Capitão Cortesia . Ele era um homem comum, sem grandes atributos morais, intelectuais ou físicos. Não tinha nada de mais. A única coisa que possuía de diferente era para menos: a paciência. . Morava em uma grande metrópole, diariamente embebido no estresse, absorvendo a sujeira atmosférica e ruminando a poluição sonora. Tomava o ônibus todas as manhãs. Depois o metrô. Depois outro ônibus. Depois andava um trecho a pé. Correndo o risco de ser assaltado, assediado, hostilizado. Atropelado ele era sempre, mas por pessoas. De noite repetia o processo, na direção oposta. . Sua rotina era desgastante e extensa. Ao contrário da sua paciência, que, como foi dito, era agastada e curta. Até que em um dia cinzento como qualquer outro, usual e desimportante como nosso personagem, sua paciência rebentou de vez. Foi no ônibus. Depois que o motorista freou o veículo bruscamente a fim de não passar do ponto. Um idoso meteu a bengala na panturrilha do protagonista, e disse: . - Não vai sair da porta, não, seo porra?! . Foi a gota d'água. Um acesso de fúria tomou conta do seo porra, e, descontroladamente, o homem urrou, jogou a maleta no chão, rasgou a gravata, pisou nos óculos, arremessou os sapatos pela janela e começou a girar o cinto no ar, ameaçadoramente: . - Para essa boceta! Senão eu vou rasgar os banco na dentada! Isto é, se não for demasiado incômodo ao nobre motorista. . Nascia o Capitão Cortesia. A capacidade daquele homem de tolerar grosserias e desaforos estava definitivamente esgotada. A partir daquele momento, todos os gestos descorteses que presenciasse seriam punidos pelo destemido cinto do Capitão Cortesia, brandido com todo o requinte e elegância de um indivíduo distinto. . Um adolescente ouvindo funk no alto-falante do celular, perturbando o ônibus inteiro? Cintada na cara do meliante acompanhada de um fraterno tapinha nas costas. Um senhor fumando às baforadas enquanto se encontra parado em uma fila? Cintada no plexo solar do malcriado sucedida de um polido elogio ao seu bigode tingido. Uma dupla de velhinhas caminhando em ziguezague va-ga-rosa-men-te de braço dado, obstruindo toda a calçada? Cintada na meia kandle das anciãs seguida de um gentil cumprimento ao tom roxo dos seus cabelos. Um menino mimado esperneando no supermercado porque o pai não tem dinheiro para comprar nutella? Fivelada nos glúteos do pai (afinal, a educação da criança é responsabilidade dele) sucedida de um genuíno louvor ao talhe refinado do cavalheiro. Um vendedor atendendo ao público com desacatos e ostensiva cara de bunda? Cintada nos ovos do vilão, seguida de um sincero desejo de feliz páscoa. . Mas, se o caro leitor espera encontrar um fim surpreendente para este relato, engana-se. Esta história não termina aqui, circunscrita aos exaustivos parágrafos da ficção. Não, senhor. Esta história penetra a dimensão real das nossas vidas. Enquanto houver pessoas sem noção, o Capitão Cortesia estará à espreita, furtivo e onipresente como um pombo. Assim, o heroi da etiqueta opera incansável e anonimamente na construção de uma sociedade cordial e solidária. . Você, que faz bolinha de catota e arremessa com uma catapultinha de dedo; você, que fala efusivamente em buffets self-service lançando perdigotos sobre a comida coletiva; você, que usa o mictório e cumprimenta os coleguinhas sem lavar as mãos; você, que faz o escapamento da moto estourar para assustar os transeuntes; você, que, enfim, atenta contra uma sociedade afetuosa e acalentadora, esteja atento! A qualquer instante alguém poderá rasgar o traje executivo e estalar o cinto nas suas áreas vulneráveis. Ousa duvidar? .