A FORMAÇÃO PARA SER TREINADOR António Rosado1 e Isabel Mesquita2 1 Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa 2 Faculdade de Desporto, Universidade do Porto RESUMO Quando, hoje, se reflecte sobre a formação de treinadores não é tanto a sua pertinência que é equacionada mas os modos de a concretizar. Apesar de não existirem estudos de avaliação do actual sistema de formação de treinadores, os diversos modelos têm evidenciado uma verdadeira incapacidade de melhorar significativamente quer a formação científica quer as competências profissionais dos treinadores. No que se refere aos âmbitos e estruturas de formação a diversidade é, também, significativa, quer no que respeita às linhas orientadoras, à estrutura institucional e logística, aos pré-requisitos de acesso, à natureza e extensão dos currículos, aos modelos e estratégias de formação e avaliação. Na realidade, a formação de treinadores desportivos, pouco presente como formação de nível superior, têm-se estruturado em torno daquilo a que chamaremos uma visão tecnocrática estrita. Os modelos de formação têm seguido uma orientação transmissiva e tecnicista, exigindo-se que os treinadores assimilem conhecimentos, nomeadamente, “conhecimentos práticos” e que, no âmbito desta abordagem tecnicista, o façam reproduzindo comportamentos fundamentalmente de cariz técnico-metodológico. Fazem-no, assim, fundamentalmente, na direcção do desenvolvimento de competências de ordem técnica e metodológica deixando de lado, muito significativamente, a formação em matéria relacional e deontológica, o desenvolvimento de posturas profissionais reflexivas e sóciocríticas, a aquisição de uma consciencialização de si enquanto pessoa e enquanto profissional e a possibilidade de desenvolver competências de investigação e criatividade. Importa, pois, discutir as condições mais adequadas para fundar a profissionalidade do treinador desportivo. Repensar a formação de treinadores com base em novas perspectivas, considerando os actuais desenvolvimentos internacionais é, hoje, essencial. A reflexão a desenvolver sublinha a necessidade de uma formação perspectivada como desenvolvimento pessoal, técnica e cultural, científica e pedagógica, caracterizando os diversos modelos e estruturas de formação no plano da auto e da hetero-formação, procurando destacar princípios gerais da formação de treinadores e as correspondentes estratégias de formação. Palavras-chave: Formação de treinadores, Competências, Estratégias de formação 1 INTRODUÇÃO Treinar deve ser entendido como fazer aprender e desenvolver capacidades, ou seja, como um conjunto de acções organizadas, dirigidas à finalidade específica de promover intencionalmente a aprendizagem e o desenvolvimento de alguma coisa por alguém, com os meios adequados à natureza dessa aprendizagem e desse desenvolvimento. Neste contexto, o treinador deve ser visto como o profissional que tem a função específica de conduzir esse processo, o treino desportivo, fazendo-o no quadro de um conjunto de saberes próprios, saberes esses que sustentam a capacidade de desempenho profissional. As funções do treinador definem-se, assim, com base num conjunto de competências resultantes da mobilização, produção e uso de diversos saberes pertinentes (científicos, pedagógicos, organizacionais, técnico-práticos, etc.), organizados e integrados adequadamente em função da complexidade da acção concreta a desenvolver em cada situação da prática profissional. Uma concepção moderna de treinador exige que se reconheça o carácter integrado, complexo e diferenciado dos processos de aprendizagem, treino e desenvolvimento dos diversos tipos de desportistas, competindo ao clube e ao treinador promovê-los e assegurá-los, no quadro do desenvolvimento dos indivíduos no clube, na comunidade desportiva e na sociedade. Na realidade, quando, hoje, se reflecte sobre a formação de treinadores não é tanto a sua pertinência que é equacionada mas, sim, os conteúdos e as estratégias ou modos de a concretizar, criando condições para a construção de uma profissão com capacidade de resposta aos desafios que o mundo do desporto actual lhe coloca. Evidenciado o reconhecimento da importância da formação de treinadores reconheça-se, também, a clara tendência para a sua complexificação, dadas as exigências crescentes que se colocam ao exercício destas práticas profissionais no espaço nacional e internacional. Parece-nos, apesar de não existirem estudos de avaliação do actual sistema de formação de treinadores, que os diversos modelos adoptados têm evidenciado uma verdadeira incapacidade de melhorar significativamente quer a formação científica quer as competências profissionais dos treinadores. Constituindo a diversidade de modelos uma das primeiras características da situação actual importa debruçarmo-nos sobre esta problemática com particular atenção. Em primeiro lugar, a diversidade é muito significativa, ultrapassando os limites de uma variabilidade aceitável; as possibilidades de formação inicial são diversas, quer no que respeita às linhas orientadoras, à estrutura institucional e logística, aos pré-requisitos de acesso, à natureza e extensão dos currículos, aos modelos e estratégias de formação e avaliação. Em 2 matéria de formação contínua, por outro lado, parece estar tudo por fazer. As tentativas de harmonização europeia dão, aliás, conta desta situação sendo uma problemática que está na ordem do dia nas redes europeias de formação, mantendo toda a actualidade quer científica quer profissional. Repensar a formação de treinadores envolve, necessariamente, embora não exclusivamente, a utilização dos conhecimentos científicos mais actuais nesta matéria e a consideração das experiências de formação em outras áreas profissionais afins. Na realidade, esta problemática corresponde a uma área da investigação em Ciências do Desporto onde a investigação é, ainda, muito limitada. No entanto, as similaridades entre a formação de treinadores e a formação de professores, em particular de Educação Física, onde a investigação é substancialmente superior, aconselham a utilização, ainda que criteriosa e particularmente contextualizada, dos resultados da investigação nesse ambiente evitando incorrer-se nos riscos e nos erros por que passou a própria formação de professores. Rupert and Buschner (1989) consideram, aliás, que ambos os grupos profissionais beneficiariam se tivessem em conta a investigação dos dois campos. Neste âmbito, algumas analogias podem ser particularmente benéficas para a formação de treinadores desportivos. Tratam-se, na realidade, de profissões de uma mesma área, hoje referenciada como “profissões do desporto”, com muitas semelhanças no que se refere à sua missão, ao serviço que providenciam e às populações a que se dirigem. Pela nossa parte gostaríamos de sublinhar alguns tópicos de reflexão estruturantes da formação de treinadores. Valorizar a competência académica Perrenoud (1995) define formação como uma intervenção visando uma modificação nos domínios dos saberes, dos saberes-fazer e dos saberes-ser do sujeito em formação. No âmbito desta concepção, teremos de reconhecer que a formação envolve o desenvolvimento de pessoas não só na área dos conhecimentos mas, também, das realizações e das atitudes, devendo acontecer ao longo da vida dos profissionais com base em movimentos estruturados, de base institucional, como, também, da auto-formação, do investimento e reflexão em situações de autoformação. A formação do treinador deve orientar-se, não só para o treinador como objecto mas para o treinador enquanto sujeito, permitindo-lhe encarar o conhecimento não, exclusivamente, como um instrumento profissional mas, também, como um meio de realização pessoal, permitindo conceber a profissão como um projecto de vida, de valorização e crescimento pessoal. Trata-se de defender a 3 organização de processos de desenvolvimento pessoal que respeitem a individualidade do treinador, que o estimulem a descobrir-se e a descobrir a sua maneira pessoal de se tornar treinador, o seu estilo, os seus sentimentos, os seus valores e crenças, num ambiente de reflexão sobre si que personalize a formação. Neste sentido, a formação académica não pode ser menosprezada; esta refere-se a processos e resultados de estudos que se orientam para o desenvolvimento mais acentuado numa ou mais áreas ou para aquilo a que se convencionou chamar cultura geral, isto é, o desenvolvimento de competências de cultura alargada que permitam desenvolver atitudes críticas fundamentadas, abertura a novas ideias e a capacidade de encarar os limites do seu próprio conhecimento. O treinador terá de ser uma pessoa culta esperando-se que essa cultura alargada lhe permita corresponder às expectativas dos atletas, desenvolver processos de auto-formação e de inovação, competências de exercício da profissão que exigem uma formação de base, académica ou escolar, cada vez mais elevada. Ora, a formação de treinadores de cariz mais tradicional assenta numa lógica de formação prática, de saberes práticos, muitas vezes sob a forma de “receitas” e num ambiente de grande desvalorização dos aspectos teóricos e dos espaços de reflexão. Por outro lado, a formação teórica que ainda existe, escassa, envolve-se em saberes teóricos abstractos onde não é possível a experimentação, não potenciando o desenvolvimento de saberes-fazer profissionais. Os níveis de formação escolar são decisivos para garantir um conjunto de pré-requisitos fundamentais à formação especializada como treinador desportivo, tendendo a condicionar o acesso a diferentes níveis de formação profissional. Combater a visão tecnocrática estrita Na realidade, a formação de treinadores desportivos, pouco presente como formação de nível superior, tem-se estruturado em torno daquilo a que chamaremos uma visão tecnocrática estrita. Os modelos de formação têm seguido uma orientação transmissiva e tecnicista, exigindo-se que os treinadores assimilem conhecimentos, nomeadamente, “conhecimentos práticos” e que, no âmbito desta abordagem tecnicista, o façam reproduzindo comportamentos fundamentalmente de cariz técnico-metodológico. Fazem-no, assim, fundamentalmente, na direcção do desenvolvimento de competências de ordem técnica e metodológica deixando de lado, muito significativamente, a formação em matéria relacional e deontológica, o desenvolvimento de posturas profissionais reflexivas e críticas, a aquisição de uma consciencialização de si enquanto pessoa e enquanto profissional, a possibilidade de desenvolver competências de investigação e criatividade. Uma formação com 4 bases pouco científicas, quer nos momentos de formação inicial quer de formação contínua, não pode permitir uma verdadeira apropriação dos conhecimentos da sua área profissional. Adoptar posturas sócio-críticas A formação pedagógica e humanista tem estado arredada das formações profissionais dos treinadores. Deixa-se de lado a formação humanista dos treinadores e o desenvolvimento das suas competências de intervenção nesta dimensão, afastada que está, da formação, a reflexão ético-deontológica e uma análise mais aprofundada do sentido do desporto e das suas práticas profissionais. Repare-se, em referência à formação de professores que, recentemente, têm existido alterações nos paradigmas de estudo do ensino da Educação Física, discutindo-se que filosofia pedagógica é mais adequada para fundar a profissionalidade em Educação Física (Kelly et al. 2000). Se responder ao “como ensinar” não deixa de ser essencial, outros programas estão preocupados em formar professores que sejam mais do que técnicos de educação e adoptam posturas orientadas para uma formação sócio-crítica (Tinning 1991). A formação de professores aproxima-se, cada vez mais, do conceito de desenvolvimento do professor, envolvendo mais do que os aspectos técnicos da profissão, as dimensões pessoais e culturais. Na realidade, mesmo considerando que a aproximação positivista e os paradigmas tradicionais de pesquisa contribuíram decisivamente para a Pedagogia do Desporto, da Educação Física e do Treino Desportivo, a adequação desses paradigmas tem vindo a ser desafiada (Macdonald, 2002). Como resultado, uma pedagogia socialmente construída tem vindo a emergir, reconhecendo alguns princípios e crenças básicas; entre esses princípios, de uma pedagogia socialmente crítica, sublinha-se a dedicação à justiça social, à inclusão e mudança social (Leistyna et al. 1996), procurando-se desafiar o status quo e provocar mudanças sociais (Sparkes 1992). A formação de treinadores não pode ficar alheia a estes desenvolvimentos. O estatuto, emergente, da Pedagogia do Treino Desportivo, necessita de retomar um processo já percorrido pela formação de professores de Educação Física embora este processo, com base na experiência da formação em Educação Física, possa, agora, ser acelerado. Na realidade, embora existam algumas dificuldades na caracterização da actividade profissional de treinador (vejam-se os actuais desenvolvimentos da AEHESIS), do seu perfil de competências profissionais e dos seus modelos de formação, é largamente aceite a sua natureza multifacetada, variando entre as competências de um professor até às 5 de um estratega de jogo, passando por competências de liderança, de gestão de pessoas e muitas mais. Os treinadores necessitam de possuir extensos conhecimentos técnicos, técnicas de aconselhamento, atributos de liderança e formação em ciências do desporto (Potrac et al. 2000). Por outro lado, uma área que exige maior desenvolvimento é a pedagogia do treino, quer nas suas dimensões teóricas quer aplicadas. Na realidade, ao contrário do que acontece com a formação de professores, onde a formação pedagógica é obrigatória e está bastante presente na formação inicial e contínua, na formação de treinadores esta formação é largamente negligenciada. Por exemplo, estudando o programa da NCAS, Alexander et al. (1994), verificaram que a Pedagogia só era tratada a nível teórico e não promovia, suficientemente, as estratégias instrucionais relacionadas com a comunicação e a gestão de grupos. Tal é, também, a realidade, em Portugal. Evitar a falácia do “accountability” É hoje corrente pugnar por sistemas de formação desenhados de forma a garantir a sua “accountability”. Trata-se tão só de promover modelos de formação que assumam responsabilidade pelos resultados previamente definidos, permitindo prestar contas. Tal significa, no essencial, a capacidade de responsabilização no plano estrito do contracto explícito e em termos de acções verificáveis. Este paradigma é claramente insuficiente em matéria de formação de treinadores. O paradigma da responsabilização tem que ser substituído pelo paradigma da responsabilidade. Na realidade, sublinhamos, a responsabilidade não é sinónima de responsabilização; inclui-a mas é algo mais. É, no essencial, um compromisso não só com os meios mas, também, com os fins, com o projecto, com a missão. A responsabilidade aponta para objectivos mais latos, envolvendo deveres profissionais que, provavelmente, não será fácil ou possível, traduzir, de modo verificável, pelo menos a curto e médio prazo. A responsabilidade, insistimos, guiase mais por princípios do que por procedimentos, mais pela criatividade do que pela anuência. Não existirá profissionalidade sem missão, sem referência a uma ideologia de serviço, determinando esta uma estrutura ética balizadora das intervenções profissionais. Fundar a profissionalidade numa prática reflexiva A reflexão sobre as experiências práticas tem vindo a revelar-se fulcral na aquisição de competências profissionais (Gould et al., 1990; Knowles, Borrie & Telfer., 2005; Salmela, 1995), colocando em causa as tradicionais estratégias de formação de 6 treinadores baseadas na valorização do aporte teórico transmitido pelo formador, assentes, não raramente, em prescrições de desempenho profissional, sem conferir espaço à aprendizagem pela reflexão acerca da própria prática (Knowles, Borrie, Telfers, 2005). O sentido da mudança não implica tanto a necessidade de reflectir para adquirir conhecimento declarativo mas, preferencialmente, a capacidade de reflectir a prática e de contextualizar o conhecimento declarativo e processual, de forma a melhorar o conhecimento condicional (Potrac et al., 2000). A importância da reflexão na aquisição de competências profissionais encontra suporte na teoria de Schön (1983, 1987). Este autor, baseado na investigação de modelos profissionais em áreas diversificadas, verificou que o crescimento profissional é consumado através da experiência de reflexão sobre os dilemas práticos, referido como conversação reflexiva. Segundo o autor os indivíduos prestam mais atenção à informação que tem um significado pessoal e imediato para eles e quando a atenção operativa é grande, o que significa que a aprendizagem quando é situada (problema concreto, emergente de cenários reais de treino/competição) com um envolvimento pessoal intensificado, promove a focalização nos problemas e, consequentemente, a sua resolução. De acordo com Schön (1987) a teoria da reflexão é particularmente apropriada para ambientes onde os procedimentos são altamente flexíveis, com possibilidades de respostas diferenciadas, sujeitas a apreciações qualitativas de processos complexos, apanágio dos envolvimentos de intervenção do treinador. Todavia, a ilusão de que a capacidade reflexiva é adquirida naturalmente pela experiência tem conduzido à sua negligência nos programas de formação de treinadores. Não é raro assistir-se a uma preocupação exagerada em se cumprir o programa, ou seja, dar toda a matéria, sendo negligenciados os processos de reflexão e, mesmo quando estes existem, são desencadeados nas horas que, eventualmente, sobram. Neste âmbito, as reflexões não são sistemáticas, não possuem orientação de acordo com parâmetros de reflexão preestabelecidos, não exercem a influência desejada na capacidade reflexiva acerca da própria acção. Complementarmente, a reflexão deve acontecer em envolvimentos situacionais apelativos da discussão, na medida em que a reflexão sobre a própria actuação ou a de outros, só melhora a capacidade reflexiva se a troca de ideias, conceitos, sentimentos, etc., for intencionalmente promovida. Sendo assim, os programas de formação devem deliberadamente provocar experiências de auto-reflexão, de partilha de pensamentos, da valorização das experiências práticas, em contextos específicos suportadas pela supervisão e aconselhamento. Obviamente que a reflexão sobre a prática não se deve cingir, exclusivamente, aos conteúdos de natureza técnica mas também, e não menos importante, ao desenvolvimento 7 pessoal e social dos formandos concretizado na capacidade de aprender a partilhar ideias, de aceitar as diferenças, de desenvolver valores morais, de valorizar a boa prática desportiva, etc. A construção de um estilo pessoal é um dos requisitos para se ser expert, sendo potenciada pela prática reflexiva. Apostar na aprendizagem experiencial Do que foi exposto acima resulta que, mais do que adquirir elevado conhecimento teórico, importa, acima de tudo, possuir conhecimento prático acerca de soluções a aplicar, em cada situação particular de treino/competição. O mesmo será afirmar que no processo de formação interessa, sobretudo, que os treinadores em fase de formação, adquiram e dominem os conhecimentos que são capazes de aplicar. De facto, é o sentido de aplicação dos conhecimentos que permite a consolidação das aprendizagens sustentáveis a longo prazo. Daí que é o conhecimento condicional (quando e onde aplicar procedimentos particulares), adquirido pela aprendizagem experiencial, que confere apropriação ecológica ao conhecimento declarativo (informação factual sobre o que fazer) e processual (como fazer). Tal significa que os conhecimentos teóricos adquiridos só se tornam verdadeiramente úteis e significativos quando mostram ser eficazes em contextos dinâmicos sujeitos a circunstâncias únicas, apanágio do treino/competição (Jones et al., 2003). Todavia, aprender experienciando não pode significar a utilização, ausente de critério, de situações práticas, sem referenciais pedagógicos e metodológicos norteadores das estratégias de formação a aplicar pelos formadores. A aprendizagem experiencial deverá ser aproveitada pelos formadores, enquanto meio prioritário de aprendizagem, desde que se baseie na compreensão das decisões tomadas e nos erros cometidos. Diversificar as estratégias de formação Na formação inicial e no desenvolvimento profissional dos treinadores o modelo mais utilizado corresponde à realização de cursos de formação com o objectivo de treinar o treinador para o domínio de competências previamente estabelecidas e ensinadas por especialistas. Algumas das críticas a este modelo referem-se ao seu pendor demasiado teórico, à pouca flexibilidade no momento de adaptar os conteúdos aos participantes e ao facto de ignorar o saber-fazer do treinador. Importa, portanto, que outros modelos possam ser adoptados na formação de treinadores. Marcelo (1995) distingue quatro modelos de formação e desenvolvimento profissional: o desenvolvimento autónomo, o desenvolvimento profissional baseado 8 na observação e supervisão, o modelo do desenvolvimento curricular e organizacional e o modelo da investigação-acção. O modelo do desenvolvimento profissional autónomo corresponde a uma concepção segundo a qual os treinadores são sujeitos capazes de auto-aprendizagem, que decidem iniciar e dirigir por si próprios os processos de formação. A falta de hábitos de reflexão e de fundamentação teórica dos treinadores (que limita o aprofundamento de temas mais complexos) e a dependência da vontade de alguém que assume a coordenação do grupo, são alguns aspectos negativos associados a esta modalidade de formação que deve ser vista de forma complementar a modelos mais organizados de formação. Por outro lado, o desenvolvimento profissional baseado na observação e supervisão usa a reflexão como estratégia para a formação. O seu objectivo é desenvolver uma maior auto-consciência pessoal e profissional. As estratégias usadas neste modelo dividem-se em dois grupos: as que usam a observação e a análise do treino e as que procuram elevar a capacidade de reflexão do treinador, através da análise da sua linguagem, dos seus constructos pessoais e do seu autoconhecimento. Integram o primeiro grupo as modalidades de apoio profissional mútuo: o coaching, o mentoring, o counseling e, mais genericamente, a supervisão. A redacção e análise de casos, a análise de biografias profissionais, a análise dos constructos pessoais e teorias implícitas, a análise do pensamento através das metáforas e a análise do conhecimento didáctico do conteúdo através de árvores ordenadas são estratégias que pertencem ao segundo grupo. O modelo do desenvolvimento profissional através do desenvolvimento curricular e organizacional inclui, potencialmente, actividades em que os treinadores desenvolvem ou adaptam um currículo, desenvolvem um programa ou se envolvem em processos de melhoria de aspectos organizacionais específicos. Um outro modelo refere-se ao desenvolvimento profissional através da investigação-acção, que propõe um tipo de pesquisa em que os problemas surgem a partir da própria prática do treinador. A investigação-acção surge com o objectivo de melhorar a profissionalidade do treinador, através de um aprofundamento da sua capacidade de análise crítica das condições em que desenvolve o seu trabalho com os atletas, com os outros treinadores assim como das pressões e limitações que as estruturas sociais e institucionais exercem na sua actividade profissional (Marcelo, 1995). Nesta inventariação de modelos de formação refira-se, ainda, por analogia com práticas instaladas na formação contínua de professores, actividades como: estágios, oficinas de formação, projectos, círculos de estudos, seminários e cursos modelares, entre outras. 9 Estas modalidades podem ser agrupadas em torno de dois modelos gerais de formação: um modelo de formação centrada nos conteúdos (“Curso”, “Módulos de Formação” e “Seminário”) e um modelo de formação centrada nos contextos, que se pode subdividir em formação centrada na mudança organizacional (Círculos de Estudos e Projectos) e no exercício profissional (Oficina e Estágios). No que se refere às modalidades de formação centrada nos conteúdos os “Cursos” e os “Módulos de Formação” são acções que se podem destinar com facilidade à aquisição de conhecimentos e competências profissionais. A diferença entre estes dois modelos de formação reside na sequencialidade dos “Módulos de Formação”, sendo que os Seminários acrescentam a estes uma característica de estudo avançado e de trabalho científico mais exigente. A sua metodologia caracteriza-se por estudo autónomo, relatos ao grupo e elaboração de ensaios críticos ou relatos científicos de investigação-acção. Quanto às modalidades centradas nos contextos profissionais, o Círculo de Estudos e o Projecto podem possibilitar que os treinadores sejam proponentes das acções de formação. No Círculo de Estudos, um grupo de treinadores pode estudar, em conjunto, uma problemática comum. O Projecto acrescenta-lhe uma dimensão de investigação-acção. Por último, a Oficina pretende potenciar a experimentação e a melhoraria dos meios materiais de acção. Já o Estágio tem como característica dominante a intervenção supervisionada dos formandos no espaço profissional, ou seja, tem características de intervenção sobre as práticas específicas da actividade profissional, alternando momentos de aplicação/experimentação e de reflexão/melhoramento das práticas. No âmbito do sistema de ensino (desportivo), alguns autores (Metzler,1990; Randall,1992; Piéron,1996) referem o estágio como decisivo na capacidade profissional. Muitas vezes, trata-se da experiência principal de ensino acompanhado, antes do fim da formação e da entrada no mundo profissional. A reforçar esta ideia, outros profissionais (professores e treinadores) consideram este momento de prática pedagógica como a fase mais importante e mais significante da sua formação profissional. Na realidade, o contacto dos treinadores principiantes com treinadores experientes têm vindo a revelar-se uma estratégia crítica para facilitar o processo reflexivo, eixo central na aquisição de competências profissionais (Knowles, Borrie & Telfer, 2005; Salmela, 1995, 1996). Entre diversas modalidades de formação sublinhamos a possibilidade de um recurso mais sistemático à Supervisão Pedagógica, ao Coaching, ao Mentoring e ao Counseling. A supervisão pedagógica deverá corresponder a um momento fundamental na formação profissional dos agentes desportivos. Para Metzler (1990) a supervisão 10 deve proporcionar ajuda e cooperação aos treinadores, de modo a que estes se tornem cada vez mais independentes na tentativa de melhorar as suas competências profissionais. A supervisão surge, habitualmente, associada ao estágio inicial de formação mas pode permanecer ao longo de períodos bem maiores de indução profissional. Outra importante modalidade de formação é o Coaching. Para Rego et al (2004), o Coaching é um processo planeado e continuado de aperfeiçoamento e superação profissional e pessoal, baseado especialmente na aprendizagem-acção e na maiêutica. Um coach, no âmbito de um relacionamento de parceria e de influência mútua, apoia o treinador na definição e concretização de objectivos profissionais e pessoais, utilizando as actividades profissionais como situações de reflexão e aprendizagem, com vista a melhorar a auto-eficácia, o desempenho, o desenvolvimento, a auto-confiança e a realização pessoal, bem como o seu valor para a organização. A mentoria é outra valiosa estratégia de formação sendo apontada pelos treinadores experts como a estratégia de formação que mais efeito produz na optimização das capacidades do treinador (Irwin et al., 2005) permitindo fazer o elo entre o conhecimento declarativo, o processual e o condicional, quando o formador estabelece a relação entre o conhecimento dito teórico ou fundamental e o conhecimento prático, emergente dos problemas concretos emergentes no processo de treino. O Mentoring, como estratégia de formação, é concretizado pelas pessoas que assumem o papel de mentor, sendo este entendido como a pessoa que encaminha outra, exercendo sobre essa o papel de guia. Schembri (2003) afirma que a mentoria é algo particularmente atractivo para aqueles que realizam a formação de treinadores, dado que essa experiência é feita, muitas vezes, em exercício, ou seja, proporciona uma oportunidade para reflectir sobre uma experiência de trabalho efectivo. Os mentorados têm, assim, oportunidade de serem formados numa situação real, de exercício das suas funções, reflectindo sobre a experiência vivida e sendo guiados para um nível novo de intervenção com a colaboração do mentor. Também o Counseling, como estratégia de formação, deve ser entendido como a solicitação de um aconselhamento a colegas experientes e/ou técnicos de outras áreas. Muitos treinadores experientes, no papel de supervisores, de conselheiros e de mentores, tanto implícita como explicitamente, têm vindo a influenciar positivamente a carreira dos treinadores, não só, nos conhecimentos e competências técnicas como também, e não menos importante, na partilha de filosofias, crenças e valores (Jones et al., 2003). Neste sentido, apesar da sua pouca 11 utilização, estas estratégias devem ser consideradas como meios de formação holística, com preocupações que ultrapassam o domínio da competência técnica e se centram na pessoa que mora no treinador pela implementação de dinâmicas psicossociais. Alargar o âmbito profissional para permitir a profissionalização efectiva A profissionalidade como treinador exigirá, ainda, um movimento complementar. O treinador não é, nem deve ser, importa sublinhar, um profissional que trabalha exclusivamente com jovens. A sua actividade profissional dirige-se para todo o tipo de praticantes, para todas as pessoas, de todas as idades, qualquer que seja a sua condição. No âmbito de uma concepção plural de desporto, a sua profissionalidade deve construir-se pela capacidade de intervir sobre públicos muito variados. Concretiza-se, sublinhamos, ao longo da vida dos cidadãos, em diferentes contextos educativos e sociais, correspondendo a uma actividade profissional que visa permitir aceder ao grau mais elevado possível de excelência motora, entendendo-se esta como a plenitude máxima na concretização das finalidades das diversas práticas desportivas. Neste sentido, a actividade do treinador estende significativamente a sua influência: dirige-se cada vez mais para novos públicos e para as mais diversas faixas etárias: estende-se ao desporto para deficientes, ao desporto na 3ª idade, ao mundo do lazer e do turismo, e não, apenas, ao desporto de rendimento e ao desporto espectáculo. CONCLUSÕES A reflexão e a investigação sobre a formação de treinadores devem ser entendidas como componentes fundamentais de qualificação da totalidade do sistema desportivo. A necessidade de treinadores qualificados tem crescido de forma exponencial na nossa sociedade, contrariando a crença geral de que qualquer um pode ser treinador, desde que o deseje e que o seu passado desportivo o permita. Se esta necessidade é, hoje, percebida como fundamental pela maioria dos agentes desportivos, também é verdade que as ofertas de formação focam-se, no essencial, na optimização da performance nos aspectos relativos aos conhecimentos e competências circunscritos à planificação e organização do processo de treino e competição. Trata-se de uma formação básica, muito curta, que deixa de fora muitas das competências verdadeiramente decisivas da formação e do desempenho profissional. De facto, a formação é muito reduzida no tempo e, na realidade, os treinadores não recebem toda a formação que precisam para o desempenho da sua actividade profissional. Modelos avançados de formação têm que ser desenhados 12 de modo a garantir as necessidades de formação, ultrapassando as barreiras que afectam o desenvolvimento profissional e a formação contínua e as suas atitudes e crenças face à própria formação. Novos modelos de formação devem garantir, também, mais oportunidades de experiências práticas de treino e mais oportunidades de aprendizagem em regimes de coaching e mentoria. A pesquisa nesta matéria é, naturalmente, fundamental e deve responder a questões sobre as necessidades de formação de treinadores, nos seus diversos níveis e contextos profissionais e sobre a eficácia das diversas estratégias de formação na promoção destes profissionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alexander, K., Davis, P., Kidman, L., & Douge, B. (1994). Evaluation of the National Coach Accreditation Scheme. Canberra: Australian Sports Commission. Gould, D., Giannini, J., Krane, V., & Hodge, K. (1990). 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