Aula Teórica 1 Introdução à Psiquiatria Impacto socio-económico da doença mental Mais de 450 milhões de pessoas no mundo, em alguma altura da suas vidas, são afectadas por depressão, ansiedade ou outras perturbações mentais, prejudicando/incapacitando o seu funcionamento e determinando uma enorme carga de custos para a sociedade. Entre 1990 e 2013, o número de pessoas com perturbações mentais aumentou quase 50%. Cerca de 1 milhão de pessoas, em todo o mundo, morrem por suicidio (ocorre um suicídio a cada 40 segundos, totalizando aproximadamente 3000 pessoas/dia). o o o o Para cada suicídio consumado, há muito mais pessoas que tentam o suicídio. Uma tentativa anterior de suicídio é o fator de risco mais importante para o suicídio na população em geral. O suicídio é a quarta principal causa de morte em jovens de 15 a 19 anos. 77% dos suicídios ocorrem em países de baixo e médio rendimento. A ingestão de pesticidas, enforcamento e armas de fogo estão entre os métodos mais comuns de suicídio em todo o mundo. As doenças mentais são responsáveis por cerca de 30% da carga global de doença, ultrapassando o cancro e doença cardiovascular. Cerca de 1/3 da população da Uniao Europeia tem perturbações mentais e afeta mais de 160 milhões de pessoas com altos níveis de incapacidade. 80% das pessoas com problemas de saúde mental vivem em países que se caracterizam por níveis de baixos/médios rendimentos, representando mais de 10 do GBD desses países. Em Portugal, a dimensão do problema também assume proporções preocupantes. O 1º relatório do Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, de 2013, mostrou uma prevalência de perturbações psiquiátricas de 22,9%. Eduarda Dias Aula Teórica 1 A doença mental acarreta custos, quer diretos (custos de cuidados de saúde, medicação, hospitalização), quer indiretos (perdas de rendimento, diminuição da produtividade, aumento da morbimortalidade), sendo os custos indiretos, na generalidade, superiores aos custos diretos. Segundo a OCDE, 1 em cada 10 indivíduos toma algum fármaco antidepressivo para um problema de ansiedade/depressivo (1 em cada 6, nas mulheres). As pessoas com doença mental correspondem a 25% da população, enquanto que as pessoas com doença física correspondem a 58% da população. Ambos os tipos de patologia se relacionam, sendo que 68% das pessoas com doença mental têm problemas médicos e 29% das pessoas com doença médica têm problemas mentais. Com isto, podemos concluir que ter uma doença mental constitui um fator de risco para desenvolver uma condição médica crónica e vice-versa. As vias que determinam a co-morbilidade entre a doença mental e médica são complexas e bidirecionais. A probabilidade de desenvolver uma depressão aumentava com a presença de cada condição médica co-mórbida adicional. Doentes com esquizofrenia ou doença bipolar têm uma probabilidade três vezes superior de ter uma ou mais doenças médicas, do que os doentes sem problemas de saúde mental. Causalidade complexa da doença mental A doença mental relaciona-se com fatores comumente chamados «outside the skin», que determinantes sociais, como fatores sociais e culturais e outros riscos ambientes, e que constituem fatores modificáveis. Por outro lado, existem os fatores «inside the skin», que são fatores intra-pessoais, como a genética, bioquímica, fisiologia, anatomia, comportamento, cognição, emoção. Determinantes sociais de risco de doença mental: instabilidade de emprego/desemprego, insegurança alimentar, deficiente acesso aos cuidados de saúde, baixo nível de educação/desigualdades na educação, pobreza/baixos rendimentos/desigualdade de rendimentos, bairro pobre/vizinhança degradada, exclusão social/isolamento social, instabilidade de habitação, experiências de vida precoce adversas. Eduarda Dias Aula Teórica 1 Estigma Para além da vulnerabilidade consequente aos próprios sintomas, as pessoas com doença mental são vítimas de gritantes desigualdades estruturais que afectam a sua saúde, participação cívica, acesso a recursos e a qualidade de vida. As respostas negativas da sociedade dirigidas às pessoas com doença mental - estigma – são isoladamente, uma das principais barreiras ao desenvolvimento do manejo eficaz da doença mental e do desenvolvimento de programas de saúde mental. • Tipos de estigma Estigma público: preconceito público e discriminação contra grupos minoritários. Auto-estigma: a pessoa de um grupo minoritário internaliza estereótipos públicos e aplica a ele próprio. Estigma estrutural: políticas píublicas e privadas restringem não intencionalmente oportunidades de um grupo minoritário. Estigma de cortesia: estigma experienciado por pessoas com contacto próximo com o grupo que sofre de verdadeiro estigma. Estigma duplo/múltiplo: um grupo mais restricto de pessoas que sofre vários estigmas. De acordo com o modelo socio-cognitivo, o estereótipo (cognitivo – ex: os doentes mentais são perigosos, violentos ou incompetentes), o preconceito (afetivo – ex: os doentes mentais causam medo) e a discriminação (comportamento – ex: não dar emprego a um doente mental) conduzem ao estigma. O abuso de substâncias e a esquizofrenia são as perturbações mentais associadas a uma visão mais negativa na população geral. Eduarda Dias Aula Teórica 1 Ao favorecer a criação de desigualdades em vários domínios da vida, as pessoas que foram sujeitas a um “rótulo” psiquiátrico ficam expostos a um maior risco de manutenção da doença. Os meios de comunicação social, pela imprecisão e negatividade dos seus relatos, contribuem para a manutenção dos esterótipos/atitudes negativas relativas à doença mental manter a relação entre doença mental e violência e perigosidade, incompetência (social e profissional). Os próprios profissionais de saúde mental, os que deviam combater o estigma, também contribuem para ele. A família e amigos sofrem o estigma de cortesia ou por associação, que é um preditor de pior prognóstico para o doente. O meio mais eficaz de diminuir o estigma é o contacto pessoal com o doente mental. Indivíduos que contactaram com doentes mentais tiveram uma maior mudança (positiva) nas suas atitudes para com a doença mental, comparativamente aos que apenas foram expostos a intervenções educativas. Psicopatologia O objectivo da psicopatologia é estudar descritivamente os fenómenos psíquicos anormais, exactamente como se apresentam à experiência imediata, procurando aquilo que constitui a experiência vivida pelo enfermo. No entanto, estabelecer o que é normal e o que é patológico foi sempre problemático. Esta distinção varia no tempo e nas culturas. O conceito de normalidade do comportamento será sempre um construto mais socialmente construído do que cientificamente baseado. Esse desvio da normalidade pode ser entendido do ponto de vista estatístico, social, como uma perturbação subjetiva ou como um comportamento maladaptativo, sendo os 2 útlimos os mais importantes. Em psiquiatria, não há nenhum teste, análise ou exame complementar com finalidade diagnóstica nem sintomas patognomómicos. Nem sequer em relação à questão básica , isto é, o modo como se define perturbação psiquiátrica (PP) existe consenso. Na definição de PM, os temas comuns são o sofrimento Eduarda Dias Aula Teórica 1 subjectivo (distress), incapacidade, défice de controlo e disfunção e estes são inespecíficos, imprecisos e de pouco valor prático. As perturbações psiquiátricas são definidas de acordo com um conjunto de queixas subjectivas (sintomas) e de anomalias observáveis do comportamento, cognição, discurso (sinais) e este conjunto de sinais e sintomas definem uma síndrome. O diagnóstico é definido com base numa síndrome característico e por isso é dito sindromáticoUma correta avaliação psicopatológica é a base de todo o processo. • Exame mental O exame do estado mental é a base da avaliação psicopatológica: avalia-se cada função psíquica (conteúdo/forma do pensamento, aparência e comportamento, cognição, afeto/humor, perceção, consciência) do paciente para depois formular o todo psíquico. Este não equivale ao reducionismo de uma simples coleção de sintomas. As anomalias dos estados mentais (AEM) são constructos que não existem numa forma “pura” ou ideal – neste sentido não são apenas “sintomas” - são sempre experiências individuais que variam em função do contexto em que são experienciados, da influência de outras perturbações do estado mental, do background cultural e pessoal do indivíduo, dos modelos e pressupostos teóricos do observador que direcciona e constrange a descrição do doente. *Ver exemplos de anomalias dos estados mentais. Diagnóstico e classificação em psiquiatria As classificações são organizadas com 5 grandes propósitos: 1. Como base de comunicação, dentro de um campo científico - permite o uso de vocabulário comum, possibilitando a transmissão de elevadas quantidades de informação de forma simples e rápida; 2. Para recolha de informação; 3. Como sistema descritivo dos objectos de estudo, num campo científico; 4. Para fazer predições - etiologia, prognóstico, resposta ao tratamento – PRINCIPAL OBETIVO. 5. Como fonte de conceitos a serem usados dentro de uma teoria científica, isto é, como instrumento científico para melhor compreender a natureza da doença. • Princípio do grande professor Surgiu no século XIX/XX. Levou ao aparecimento de múltiplas correntes, classificações e idiossincrasias. • O consenso de peritos No século XX, surgem as comissões de peritos para elaboração dos respetivos documento oficiais. Eduarda Dias Aula Teórica 1 O surgimento de critérios operacionais (1980) permitiu melhorar a comunicação e aumentar a fidelidade através da uniformização de critérios descritivos e do desenvolvimento e aplicação de entrevistas estruturadas e semi-estruturadas. * Ver exemplo de diagnóstico da depressão major No entanto, atualmente, o número de diagnósticos aumentou de forma brutal, surgindo vários problemas: • Reducionismo Valorização de sintomas de forma meramente numérica (ex: episódio depressivo major – fadiga e ideação suicida). Desvalorização de fenomenologia, isto é, da forma de início, sequência sintomática e compreensibilidade. • Função discriminativa baixa Pontos de corte e limites temporais sem base empírica sólida, sem claras fronteiras intercategoriais. Sobrediagnóstico – tratar pessoas normais com problemas. • Validade Quando os sistemas diagnósticos operacionalizados foram desenvolvidos, foi reconhecida a sua falta de validade. No entanto, a sua conveniência, fidelidade e utilidade levaram a que esse “pormenor” fosse esquecido com a consequente reificação dos diagnósticos. Clínicos e investigadores começaram a olhar para esses diagnósticos psiquiátricos como categorias válidas definindo entidades nosológicas naturais. As classificações actuais constituem um agregado de condições heterogéneas: o o o o o o o o • algumas representam estados de curta duração, outras de longo curso; algumas reflectem sofrimento interno, outras alterações do comportamento; algumas representam problemas raramente observados em normais, outras são apenas ligeiras acentuações do normal; algumas reflectem excesso de controlo, outras défice; algumas são intrínsecas ao indivíduo, outras são definidas em função das flutuações culturais; algumas começam na infância, outras na velhice; algumas afectam primariamente o pensamento, outras as emoções, comportamento ou relações interpessoais, existindo várias combinações; algumas parecem mais biológicas, outras mais psicológicas ou sociais. Perspetivas sobre a doença mental Como categoria natural: a doença “existe” como entidade – perspectiva adoptada por uma psiquiatria biológica na sua fase “naïve” – trata-se de uma simplificação reducionista; the more we learn about the brain the more ineluctably complicated it proves to be; Perspetiva nominalista: vê as perturbações mentais apenas como construtos heurísticos e úteis; Eduarda Dias Aula Teórica 1 Como rótulo social: no limite, leva o cepticismo à negação da própria doença mental, sendo os diagnósticos psiquiátricos uma forma de controlo social; Perspetiva utilitarista: definição de doença mental deve ser influenciada pela utilidade do propósito que serve. • Modelo categorial – perspetiva qualitativa/dicotómica Tem ou não tem doença; Tem utilidade clínica e maior apelo para os clínicos, porque na clínica é preciso tomar decisões dicotómicas; Como os limites entre as várias categorias são relativamente arbitrários e se sobrepõem, isso cria alguns problemas como elevada e artificial comorbilidade. • Modelo dimensional – perspetiva quantitativa Alguns autores têm proposto que uma abordagem dimensional teria maior validade; Normalidade e anormalidade, funcionamento psicológico adequado e inadequado colocam-se num continuum. As perturbações psicológicas são variantes extremas dos fenómenos psicológicos normais. Uma classificação psiquiátrica quantitativa opera em dois níveis: constrói síndromes a partir da covariação empírica de sintomas para substituir diagnósticos as categorias e agrupa as síndromes em espectros com base na covariação entre elas. As evidências mostram que as influências genéticas não se encaixam em diagnósticos psiquiátricos tradicionais (categoriais) e demonstram que abordagens de classificação alternativas (dimensionais), podem maximizar a precisão e o poder estatístico na busca de variantes genéticas moleculares ligadas à doença mental. Eduarda Dias