UNIVERSIDADE FEDERAL DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DE PORTO ALEGRE CURSO DE PSICOLOGIA SISTEMAS E TEORIAS II – FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL Nome do aluno: Murilo Martins da Silva ________________________________________________________________________________ A procura por ser humano em A Paixão Segundo G.H.: reflexões acerca do Humanismo e Existencialismo e suas bases fenomenológicas na obra de Clarice Lispector “Sou cada pedaço infernal de mim.” (Lispector, 2009, p. 64) A fim de realizar esse trabalho, foi necessário ler e estudar bastante o conteúdo, passo importante de se realizar antes de falar sobre as três teorias que explicitarei aqui. No desenvolver do texto, pretendo estabelecer concepções gerais do Humanismo, Existencialismo e Fenomenologia, além de discorrer sobre como as concepções fenomenológica, existencial e humanista transformaram diversas áreas do conhecimento, incluindo a Psicologia. Nessa área em específico, segundo Lima (2008), esses três movimentos alteraram e estabeleceram um novo modo de conhecer e trabalhar com o ser humano, sendo alguns dos principais autores contribuintes Rogers, Maslov e Viktor Frankl. Como base dessa investigação, a fim de trazer aspectos de aproximação e afastamento entre as teorias, tomarei o livro A Paixão Segundo G.H., da escritora Clarice Lispector, por ser um livro bastante intimista, de caráter existencial e que nos confronta com a experiência de ser humano. Inicio, portanto, uma apresentação geral de cada uma das teorias: Começo com a Fenomenologia pois ela é a base filosófica e de método; segundo Almeida (2020), Viktor Frankl, psicólogo vienense de orientação existencialista, apresenta a Fenomenologia como método de transposição do Humanismo e do Existencialismo para a clínica psicoterápica, pois ela traz uma nova forma de investigação da realidade e, assim, também do ser humano e do seu sofrimento. Compreende-se que a Fenomenologia tem seu principal autor em Husserl, matemático que se introduz na pesquisa em busca da compreensão dos números e, com influência hegeliana, acaba por estruturar a Fenomenologia (Almeida, 2020), no início do século XX. A Fenomenologia é uma visão mais dialética, que leva em conta a experiência daquele que está vivendo o fenômeno, sendo, no caso da Psicologia, aquele que está vivenciado o sofrimento. Ao romper com a dicotomia sujeito-mundo, ela permite que se estude as questões psíquicas dos indivíduos a partir de uma unidade com a realidade vivida. Nesse sentido, podemos extrapolar as implicações do método fenomenológico para além da psicoterapia, no campo da Psicologia, enxergando que, também na Psicologia Social Crítica, ela se aplica, ao colocar sujeito e sociedade como complementares e que se transformam de maneira simultânea. Compreende-se, assim, que a Fenomenologia é responsável por colocar no centro das investigações a experiência humana e a realidade, trazendo, assim, a consciência de volta aos estudos psicológicos, mas num formato diferente do que Wundt estudou nos primórdios da disciplina; agora, com foco na consciência como exercício de conhecimento, trazendo à tona reflexões sobre intersubjetividade, e não mais uma subjetividade unicamente interna e descolada da objetividade externa, como era compreendida no princípio da Psicologia. Um dos artifícios mais importantes do método fenomenológico é a colocação das hipóteses em suspensão, buscando o retorno às coisas mesmas, visando se despir de pré-julgamentos e concepções pré-estabelecidas, a fim de compreender melhor a experiência individual do sujeito; a partir da suspensão, é possível ver o fenômeno se desdobrando e surgindo possibilidades de investigação e, num contexto clínico, de conversa. Almeida (2020) aponta que, na investigação fenomenológica na psicoterapia, perguntas semelhantes a "como é isso para você?" são comuns a fim de compreender a experiência do sujeito. Isso se faz, segundo Lima (2008), a fim de ir ao encontro do fenômeno e da verdade. Nesse sentido, a Fenomenologia faz parte da Terceira Força na Psicologia, em contraposição ao Behaviorismo e à Psicanálise. Parto, então, para o Existencialismo, por sua forte influência advinda da Fenomenologia e também pela cronologia dos fatos. Autores como Husserl e Heidegger influenciaram fortemente as ideias existencialistas, que têm como um de seus principais expoentes o filósofo Jean-Paul Sartre. Esse movimento surge e ganha forças no contexto de entreguerras e durante a Segunda Guerra Mundial; por conta do período de seu crescimento, os ideais existencialistas geralmente tem um caráter mais pessimista. Seu mote é de que "a existência precede a essência" e, nesse ponto, podemos compreender, portanto, que a tarefa do sujeito e de construir a si próprio. Sendo assim, não possuímos uma essência e nem estamos em uma evolução como seres vivos, atingindo etapas ou momentos específicos do nosso desenvolvimento como humanos, mas, sim, estamos constantemente nos tornando. Disso, podemos extrair que, o que me faz ser humano é a minha própria existência e a minha relação com o outro, sendo essa relação necessária para que minha humanidade se manifeste e seja construída, concluindo, assim, a ideia de que somos um constante tornar-se. Giovanetti (2012) diz que o Existencialismo compreende que somos o destino de nós mesmos e que o existir é ir sendo; na compreensão existencial, a pergunta acerca do ser humano deixa de ser "o que é?" pare se tornar "quem é?", tendo, assim, uma influência na Psicologia, principalmente em questões de responsabilidade, escolha e liberdade. Quando transposto para a Psicologia, as ideias existencialistas se utilizam das compreensões de construção e de projeto. Compreende-se que a tarefa do sujeito é de construir o próprio sujeito, sendo que somos terrivelmente livres e com a obrigação constante de fazer escolhas e com uma responsabilidade em cima dessas escolhas. O homem é, portanto, condenado a ser livre, estando ele lançado à existência. Lima (2008) traz uma ambiguidade, que Merleau-Ponty, filósofo, aponta uma ambiguidade na dicotomia homem-mundo, já vista na Fenomenologia, pois, para ele, seria impossível compreender se o homem é quem constrói o mundo ou o oposto, pois ambos se constituem de forma dialética; a Fenomenologia existencial permite observar o homem na realidade da sua existência. Já o Dasein, em Heidegger, traz a ideia de estarmos lá fora e encontrarmos a nós mesmos no mundo, e não internamente. Já me dirigindo ao Humanismo, gostaria de salientar que algumas questões são semelhantes nas compreensões dos dois movimentos acerca do ser humano e do mundo, apesar de alguns afastamentos. Um dos principais pontos do Existencialismo que também está no Humanismo do século XX é o fato de que a pessoa é colocada no centro da investigação, valorizando o ser humano e focando no aqui-e-agora (ou seja, no presente). Nesse ponto em específico percebe-se o afastamento de uma das forças que já existia na Psicologia: a Psicanálise, com um enfoque bastante forte no passado. Almeida (2020) aponta, também, que o Humanismo trará o ser humano como iniciador de novas coisas e como empoderado frente às determinações que o afetam, o que é visto no Existencialismo de forma semelhante. Além disso, Sartre, um dos principais autores existencialistas, também aponta, no título de uma de suas obras mais famosas, que "O Existencialismo é um Humanismo"; Lima (2008) explica que isso se dá por conta de o homem se construir quando vai para fora, em suas relações. Finalmente, nos voltamos exclusivamente para o Humanismo a fim de apontar algumas coisas próprias dessa forma de pensamento. Já com o primeiro contato com as teorias existencialistas e humanistas, pode-se perceber que seus nomes apontam para caminhos correlatos, mas diferentes: o Existencialismo dá um maior enfoque na existência do ser humano, enquanto o Humanismo se debruça sobre o ser humano como objeto. Giovanetti (2012) aponta que o surgimento dos pensamentos humanistas data da época do Renascimento, mas existem tantos Humanismos quanto concepções de homem, sendo que o tipo de Humanismo que aparece na Psicologia, no contexto estadunidense, é o individualista. Esse Humanismo tem seu maior crescimento após a Segunda Guerra Mundial, principalmente nos anos 60, sendo relacionado a um crescimento econômico e a um enfoque na independência do sujeito; assim, esse Humanismo se aparelha, junto à Fenomenologia existencialista, como a Terceira Força na Psicologia. Entretanto, diferente da Fenomenologia e do Existencialismo, como apontado por Almeida (2020), esse Humanismo já nasce dentro da Psicologia, com seus principais pensadores sendo psicólogos, e, por conta do momento histórico, se apresenta como mais otimista que o Existencialismo. Os principais termos advindos desse Humanismo do final do século XX são o de essência, evolução, tendência atualizante e autonomia. O Humanismo na Psicologia tem como mote a valorização de uma interioridade humana, possuidora de uma essência própria de constante crescimento e evolução; muitos autores atentam para uma chamada tendência atualizante ou autorrealização, que seria uma espécie de motor presente na essência do ser humano, como um potencial inerente e uma tendência natural para a realização e o crescimento. Agora, após vermos os três movimentos que serão tratados, passo a falar de Clarice Lispector, escritora existencialista, intimista, de escrita psicológica, social e filosófica (Frazão, 2020), a qual abordarei no trabalho a fim de nos aprofundarmos nas concepções das três linhas supracitadas. Nascida em 1920, na Ucrânia, Clarice possuía pais de origem judaica. Mudou-se para o Brasil e morou na cidade de Aracaju, mas, posteriormente, mudou-se para o Rio de Janeiro. Frazão (2020) aponta que a escrita de Lispector raramente era linear (com começo, meio e fim), geralmente sendo composta por histórias que transcendem o tempo e o espaço, dando abertura para uma literatura de cunho existencialista – o que, como Sartre mesmo disse, e como também já foi citado, também se trata de um Humanismo. E, de fato, em Clarice se vê uma literatura voltada para os sentimentos, para o interior denso do ser humano, mas, ao mesmo tempo, um ser humano que se lança ao mundo em busca de compreensão de uma (ou alguma) verdade. O livro a ser aprofundado aqui, datado de 1961, é A Paixão Segundo G.H. (o título, provavelmente, uma referência à Paixão de Cristo segundo os evangelhos). A obra conta a história de G.H, uma mulher abastada que mora em uma cobertura no Rio de Janeiro; em um dia em que está sozinha em sua moradia, pela manhã, ela decide visitar o quarto da empregada, agora vazio, após a moça ter ido embora. Segundo Lispector, G.H. se assume como alguém que gosta de organizar as coisas: "Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira" (2009, pg. 32). Assim, se dirige a esse quarto a fim de arrumá-lo. Entretanto, diferente do que imaginava, ao chegar no local, encontra um lugar limpo, quase asséptico, o que a choca. Nesse momento, se questiona acerca de si mesma e da visão que a empregada tinha dela. Ao abrir o guarda-roupas do pequeno quarto, então, depara-se com uma barata viva, caminhando pelo móvel; num ímpeto, G.H. fecha a porta do guarda-roupas contra a barata, cortando-a ao meio e fazendo com que saia de dentro do animal um líquido pastoso e branco. Ao notar que matou um ser vivo, vê sua humanidade se esvair, abrindo, então, caminhos para uma busca metafórica e uma viagem intersubjetiva por sua experiência de existência como ser humano, indo em direção a um desconhecido. Eventualmente, G.H. percebe que é necessário que ela prove a barata, o que ela faz, a fim de interiorizar, de alguma forma, aquele Outro, e se desfazer de toda a compreensão anterior que possuía acerca de estar viva. Domingos (2016) aponta o livro como uma das obras-primas de Lispector, e como uma busca pelo real e pelo divino, tratando-se de uma epifania aterradora. Feltrin (2015) explica que a personagem, chamada apenas G.H., sem um nome específico, possui essa falta de caracterização exatamente por ser possível de enxergar a si próprio nela, sendo que cada um de nós está fazendo sua própria busca pelo real; por fim, a importância do livro não está, assim, em sua história, mas sim na experiência que é se aventurar pela escrita de Lispector e na busca pelo divino de G.H. Mas por quê, então, foi feita a escolha desse livro para se falar de Fenomenologia, Existencialismo e Humanismo? Acredito que uma das principais coisas que o livro – e a literatura de Clarice como um todo – se empenham é de serem experienciais; muitos chamam-na, inclusive, de hermética, por ser uma escrita extremamente intimista e psicológica, já que seu foco, assim como o das três linhas aqui retratadas, se baseia na experiência de vivenciar a leitura e de adentrar o (inter)subjetivo criador desses personagens. Assim sendo, não se busca explicar nada, mas sim experienciar, compreender o que se passa, o que tem um claro encontro com as três linhas de pensamento estudadas até aqui. É importante ressaltar que existem diversos estudos que embarcam na jornada de estudar A Paixão Segundo G.H. pela óptica dessas teorias, principalmente do Existencialismo (Fonseca, 2017, Souza & dos Santos, 2020, Hruschka & Libanori, 2018, Silva, 2018 e Macedo, 2014); de minha parte, entretanto, preferi ir de encontro a esse desafio com os juízos suspensos, como demanda o método fenomenológico: estruturarei a investigação a partir do que já aprendi na aula, sem me apoiar nesses outros autores que já trilharam esse caminho. “Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha subreptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.” (Lispector, 2009, p. 97) A partir daqui, discorro sobre as relações mais próximas e mais afastadas entre as conceitualizações das três linhas de pensamento estudadas, o desenrolar e a compreensão da jornada de G.H., num primeiro momento refletindo quanto à natureza humana, a essência e a visão de homem. Podemos começar nos questionando, como já feito, quem é G.H. e a que serve essa personagem; acredito que ela tenha um papel fundamental na compreensão de natureza humana que Lispector visa passar com sua escrita, pois, ao se deparar com um desconhecido, passa a buscar em si e nas suas experiências a realidade e a sua possível essência, pré-existente ou uma que constrói. Partindo de uma concepção fenomenológica, podemos compreender que G.H. está passando por uma experiência ou fenômeno, a partir da percepção da barata. Como já citado, o livro não busca explicações para o que está acontecendo, mas há um foco no encontro do leitor com o fenômeno que G.H. está vivenciando. De alguma forma, sente-se que, assim como na Psicoterapia de ordem fenomenológica, nos encontramos com a personagem, a qual está na busca de si mesma, de uma essência, e essa experiência é feita a partir de uma descrição com foco no ser humano (G.H.); assim, compreendo que o livro em si faz uma investigação fenomenológica, não estando claro, assim como na compreensão fenomenológica, que há uma essência ou natureza humana específica, mas sim que ela vai em sua jornada à procura de um contato com sua vida, humanidade e existência. Nas questões do Existencialismo, um tanto semelhante à Fenomenologia, temos um ser humano (G.H.) que se encontra ao ir para fora de si; podemos interpretar que, no livro, a personagem busca na sua experiência de vida e na experiência singular com a barata a compreensão de uma realidade que sempre esteve, de alguma forma, encoberta – no mundo. Acredito que seja válido questionar que, mesmo G.H. já existindo anteriormente ao exercício que se pôs durante a narrativa, quão conectada estava com sua força de existência nesse momento anterior? Talvez foi, a partir do fenômeno com a barata, que ela conseguiu compreender que sempre esteve indo para fora a fim de se buscar. Diferente do Humanismo, ela não está evoluindo ou se autorrealizando, mas sim se encontrando em sua existência e percebendo sua essência a partir da liberdade e das escolhas, como diz o Existencialismo. Para complementar a discussão nos moldes existencialistas, abarco, então, a Logoterapia, do existencialista Viktor Frankl, e sua compreensão de uma dimensão noética/espiritual, que compreende a existência humana; assim como Frankl aponta essa perspectiva da realidade humana, Lispector traz G.H. como em busca dessa dimensão de caráter divino. Viktor aponta que essa dimensão está caracterizada por uma transcendência de aspectos biológicos/fisiológicos e psíquicos e isso também é experimentado por G.H., já que a narrativa do livro naturalmente caminha por florestas, desertos e outros espaços – mesmo que G.H. nunca deixe de estar em sua casa –, buscando um sentido mais profundo para sua experiência e como se construiu até ali. Compreende-se, assim que, o homem, para o Existencialismo, é um tornar-se ao encontrar-se no mundo e nas suas experiências, sem essência única. Já o Humanismo advém com uma compreensão de ser humano que possui uma essência de constante autorrealização e crescimento. Diferentemente da compreensão existencialista, podemos entender G.H. como alguém que entra em contato com essa essência humana arrebatadora, levandoa a compreender que sua evolução até ali. É possível, também, apreender, a partir dessa perspectiva, que G.H. está internalizada em si mesma, analisando tudo de um aspecto mais subjetivo, o que de fato se mostra no livro e que permita uma apreensão mais Humanista do fenômeno explicitado na obra. G.H., então, é um ser humano que se constrói, que evolui, e que, ao perceber a barata e matála, passa por um desequilíbrio, sendo o livro a narrativa não-linear da busca pelo retorno ao equilíbrio, algo que é dado pelo Humanismo como essencial do ser humano. Podemos encontrar alguns pontos de tangenciamento das três compreensões ao analisarmos a experiência de G.H.: sozinha em casa, viu uma barata, matou-a, comeu-a e, podemos dizer, despersonalizou-se; no livro há um enfoque na compreensão da experiência de G.H. e numa busca da personagem por descobrir-se no mundo, como uma essência, e com um enfoque no que passava por ela no presente (apesar das referências ao passado); de certa forma, mesmo que as concepções humanistas e existencialistas divirjam quando à essência e à natureza humana, ela se encontram no ponto fenomenológico, e atribuem um tipo de essência: o de se encontrar. Os próximos conceitos em que vou me focar são os da dicotomia interioridade-exterioridade e o de desenvolvimento humano, tentando abordar aspectos dessas três linhas de pensamento e as interconexões com a história. Para isso, compreendo que o livro de Lispector se baseia numa experiência da qual G.H. não sai ilesa, mas sim transformada e, de alguma forma, desenvolvida – dados os limites de cada teoria a ser usada como lente. Na Fenomenologia, como método e base filosófica, o interior e o exterior estão conectados dialeticamente. O desenvolvimento humano não se dá, portanto, num contato com esse interior denso e pesado e nem como uma resposta natural à questões biológicas ou ambientais, necessariamente; para Husserl, não se tem uma ideia de centralidade no psiquismo do sujeito, como aponta Silva (2020), ao indicar que, na Fenomenologia, há uma compreensão de um exterior bruto, ao qual nos projetamos, enquanto somos leves por dentro; assim, não se consegue compreender as mudanças de G.H. como uma evolução ou transformação em direção a algo positivo, mas sim na dialética e no seu contato com esse exterior. Já para o Existencialismo, é importante nos perguntarmos se G.H. já é algo ou se está constantemente sendo feita. Lima (2008) indica que o Existencialismo compreende que o homem se constitui a partir de existência, vivências, cogitações, estabelecimento de crenças e, assim, vai se relacionando com o mundo. Ou seja, o homem, assim como na Fenomenologia, se estabelece pela relação constante e trocas com o mundo, sendo que o sujeito se projeta para fora a fim de constituirse. Nesse sentido, o interno vai ao externo de fim de procurar ser. Quanto ao desenvolvimento humano, acho interessante trazer a compreensão de Kierkegaard, filósofo existencialista dinamarquês, a qual Lima (2008) abarca em seu texto: para esse autor, o ser humano tem três estágios de existência, que não são, entretanto, estágios desenvolvimentais, lineares e cronológicos (como se pode ver em Freud ou em Erik Erikson, por exemplo); esses três estágios são o Estético (voltado ao prazer), o Ético (que concilia a paixão e a razão) e o Espiritual (que busca uma espiritualidade a fim de alcançar a existência humana); acredito que, nesse sentido, podemos afirmar que G.H. acaba por adentrar o estágio Espiritual, após perceber, assim como Kierkgaard também aponta, que até seu contato com a barata, esteve em uma busca incessante e desesperadora por liberdade. É preciso compreender, entretanto, que o Existencialismo não trabalha com a noção de desenvolvimento ou evolução, compreendendo que cada existência é única e a partir das experiências e escolhas feitas. No Humanismo, já com uma visão diferente da existencialista e da fenomenológica, há uma compreensão de um ser humano com uma interioridade mais bruta e de uma subjetividade de maior importância. Há pensadores humanistas que atribuem ao humano estágios de desenvolvimento mais claros e cronológicos; Giovanetti (2012), por exemplo, cita que o desenvolvimento, para os humanistas, não é um voo no escuro, mas sim algo que conta com uma direção específica, com um alcance de algo particular em cada etapa desenvolvimental. Nesse sentido, há uma evolução em cada momento do ciclo da vida, assim como Erik Erikson apresenta em seus trabalhos, por exemplo, nos quais assume que temos que alcançar momentos e experiências específicas e de forma cronológica durante a vida. Por esse ângulo, podemos pensar que, de alguma forma, a experiência vivida por G.H. após seu encontro com a barata extrapola esses ciclos, já que, quando enxergamos que ela possui uma vida adequada, com uma profissão e uma boa casa, podemos encarar que ela está seguindo num processo desenvolvimental adequado; entretanto, ao nos aprofundarmos e buscarmos o Humanismo como vertido por um pensamento de valorização da subjetividade humana – em contraponto ao Existencialismo –, não podemos deixar de pensar que a vida de G.H., até ali, talvez não tivesse sido tão plena quanto poderia se pensar olhando somente para uma espécie de ciclo desenvolvimental (como o de Erikson, por exemplo), e isso permitiu que houvesse espaço para a experiência de revisão de seu desenvolvimento humano por conta do fenômeno experienciado naquele quarto da empregada. Com isso, podemos pensar na Terapia Centrada na Pessoa, de Rogers, que diz que o ser humano está sempre melhorando; assim, assumo que a experiência de G.H. narrada no livro é de uma evolução, mesmo que extrapolando ideias pré-concebidas de desenvolvimento que possam existir. Com isso dito, podemos imaginar que todas as teorias aqui abarcadas enxergam G.H. como um ser em busca de uma melhor compreensão de onde se encontra no mundo. Sim, de fato o Existencialismo não atribui um desenvolvimento unidirecional e de elevação, diferente do Humanismo, mas ambos compreendem que há uma modificação do ser humano em sua experiência de vida, e é isso que G.H. faz nessa história: se transforma e se descobre, evoluindo quando vai ao – seu – mundo. Como último momento de análise dos conceitos, tratarei das ideias de consciência e de relação sujeito/mundo, essa última já tendo sido abordada de forma indireta nas concepções de interno/externo; para isso, me utilizarei da relação de G.H. com a barata e a estruturação perceptiva da consciência em cada uma das vertentes. Partindo da Fenomenologia, podemos compreender que a barata é um objeto no mundo e que é, portanto, denso, nas palavras de Silva (2020), entendendo a consciência de G.H. como algo leve e que flutua até essa barata a fim de conhecê-la. Nesse sentido, trazemos Husserl à baila com seu conceito de intencionalidade: a consciência de G.H. não simplesmente o é, mas sim é uma consciência da barata, sendo sempre compreendida, como bem diz Giovanetti (2012), pelo objeto que visa. Assim sendo, temos uma consciência que vai até um objeto, um sujeito consciente de algo do mundo, quebrando, portanto, a dicotomia interno/externo, sujeito/mundo. Segundo Firguieri (1193, como citado em Giovanetti, 2012), "Com a intencionalidade, há o reconhecimento de que o mundo não é pura exterioridade e o sujeito não é pura interioridade, mas a saída de si para um mundo que tem uma significação para ele". Compreendendo os ideais fenomenológicos, os quais, como diz Lima (2008), permitem um encontro do ser humano com a verdade, sem preconceitos, e, assim, um encontro com o existir, podemos compreender que foi, ao visar a vida na barata e, posteriormente, a consciência de que matou um ser vivo, indo para fora de si, que G.H. parte em sua jornada pela compreensão do seu ser. No Existencialismo trago novamente uma ideia de Kiekergaard, de um sujeito como ser ativo em busca por uma existência autêntica, o que permite que G.H. não veja só a barata, mas extraia dessa experiência – desse fenômeno – o que precisava para ir em busca de si, por uma existência mais autêntica e conectada com quem ela realmente é: não uma escultora, que foi com o que ganhou sua vida, mas talvez como uma organizadora, que disse ser a única coisa em que é boa – organizadora de coisas, existências, experiências... Já em Buber, filósofo fenomenológico e existencialista, como abordado em Lima (2008), surge o conceito da relação do Eu com o mundo (Eu-Tu), sendo esse Tu possível de ser visto como uma outra pessoa, mas também um deus, uma pedra, um animal, um objeto... nessa perspectiva, aponto que o Tu de G.H. seja a barata e a morte que ela inflige ao animal, pois, a partir disso, houve a possibilidade de um contato íntimo consigo mesma e uma (re)visão do mundo; Lima (2008) ainda aponta que psicólogos de influência existencialista, como Biswanger e Medard Boss, buscam trazer esse conceito para a Psicoterapia Fenomenológica-existencial, buscando a relação Eu-Tu a fim de compreender melhor a relação sujeito-mundo. Dito isso, a consciência, no Existencialismo, é muito semelhante à fenomenológica, que sai de si e vai ao mundo buscar pelo si. Como diria Silva (2020), é um para-si. Por fim, no Humanismo, tem-se uma compreensão de uma consciência mais internalizada e rígida, diferente da concepção fenomenológica-existencial, a qual compreende uma consciência leve. O ser humano do Humanismo é dotado de uma interioridade sólida e, por exemplo, para Rogers, a realidade é o que aparece ao sujeito e, nesse a barata – e, posteriormente, sua morte – aparecem de forma tal para G.H. que permitem-na embarcar em sua jornada interna pela busca do real, na qual ela vai se transformar e transmutar. Como diz Lima (2008), cada vivência do ser humano tem um significado único, abarcando algo único para cada pessoa e, por isso, para mim, matar uma barata não me permita contemplar os primórdios do meu ser, mas permitiu à G.H. Assim, compreende-se a consciência humanista como mais consistente, dotada de características próprias e existente em si mesma, não sendo uma consciência relativa. Nisso, a relação sujeito-mundo se dá numa perspectiva mais racionalista, com a consciência tendo maior determinação sobre a realidade. Enfim, compreendo que as teorias acabam sendo excludentes na compreensão de consciência de uma forma geral, mas ainda permanecem conectadas pela ideia de pôr o sujeito na centralidade. Assim como o livro traz, G.H. e sua experiência, sendo interna ou redirecionada ao mundo, é o que importa para as teorias. “O divino para mim é o real.” (Lispector, 2009, p. 167) Podemos pensar, a partir do que foi visto, como é valiosa a escrita de Clarice para as reflexões que essas três linhas de pensamento abarcam; gostaria de focar, por um momento, na relação de Clarice com a linguagem: na orelha da edição aqui tratada de A Paixão Segundo G.H., José Castello traz que "esse desejo de encontrar o que resta do homem quando a linguagem se esgota, move, desde o início, a literatura de Clarice"; trago essa citação pois acredito que ela é de importante reflexão como a linguagem e a comunicação nos colocam em contato com a experiência da realidade, da existência e da humanidade. Podemos relacionar essa reflexão com todo o desenrolar do livro de Lispector, de caráter bastante intimista, psicológico e, para alguns, de difícil compreensão. G.H. descreve sua experiência/esse fenômeno, tão complexo, com as limitações trazidas pela linguagem; em determinado momento, inclusive, abandona seu nome (sempre trazido como somente G.H.), pois percebe que ele está impedindo-a de acessar a real essência ou existência das coisas. Digo que, de alguma forma, para compreender Clarice é preciso se utilizar da Fenomenologia: fazer a chamada époche (a suspensão de juízos) a fim de compreender a experiência, o fenômeno, a verdade, e não buscar explicações. Trago, a fim de conclusão, também, as Terapias Existenciais dos anos 80 e 90, como abordadas por Giovanetti (2012): elas traziam um quadro referencial sistêmico, linguístico, fenomenológico, existencial e transcendental; apesar de arriscado, assumo que o livro de Clarice, mesmo que anterior (por ser dos anos 60) se encaixa nesse sentido de psicoterapia, mesmo que seja uma obra artística; é artístico, porém é humano, e também traz a experiência e a existência e se debruça sobre a linguagem e suas lacunas incontornáveis – mas que podemos tentar contornar. Sinto que, assim como Buber fala do Eu-Tu (em Lima, 2008), temos um encontro autêntico nesse livro, não só com G.H., mas com Clarice e com o Eu no mundo, também. Deve-se ir em busca da verdade do existir, que parece ser o que G.H. faz e também o que fazemos ao ler sua história. Com ares de finalização, questiono: quem somos? A Paixão Segundo G.H. é importante para, como diz Feltrin (2015), percebermos que tudo ao nosso redor nos compõe: as coisas que temos e as que não temos, as pessoas que conhecemos e também o desconhecido; isso nos traz uma ideia tanto da compreensão da experiência humana de estar vivo, possuidor de coisas, conhecedor de pessoas, mas também da visão existencial, de se estar presente no mundo, de estar se descobrindo a partir das experiências. Por último, termino com um outro questionamento: compreendo a terceira força da Psicologia, ou seja, os movimentos da ciência e teorias psicológicas com influência da Fenomenologia, Existencialismo e Humanismo, como um dos formatos de compreender o ser humano a partir de sua condição como humano, existindo num mundo, mas que não se finaliza em si e nem busca respostas definitivas; assim, pergunto novamente: quem somos? Buscamos realizar nossos desejos e aliviar a tensão causada pelas pulsões?; ou buscamos ter comportamentos adaptativos e receber reforços?; ou somos exatamente um ser que que está em busca de descobrir quem é, assim como G.H.? Sartre diz que não estamos rumo a outro ser, mas sim rumo ao nada; acho que estamos sempre à procura de ser humano. Referências Almeida, G. F. A. (2020, abril, 9). Videoaula 02 - Fenomenologia, Existencialismo e Humanismo (Seguindo na série de Psicologia Clínica) [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=rgxpfPQ_vaQ Domingos, M. (2016, novembro, 23). [Resenha] A Paixão Segundo G.H. [Postagem em blog]. Recuperado de http://www.achadoselidos.com.br/2016/11/23/resenha-a-paixao-segundo-g-h/ Feltrin, T. G. (2015, abril, 19). Você Escolheu #22: A Paixão Segundo GH (Clarice Lispector) [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=LLjFWGcJ5g8 Fonseca, L. C. (2017). 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Critério teórico-conceitual: Aplicação adequada dos conceitos da disciplina no desenvolvimento do tema (pontos serão descontados quando o aluno/a apresentar somente a “cópia dos conceitos” sem elaboração sobre o tema) 2 2.Critério crítico-reflexivo: Consistência teórica dos argumentos na defesa de um ponto de vista. Reflexão crítica que vá “além do texto” 2 3. Critério criativo-autoral: Criatividade na escrita e “autoria” – apresenta informações, dados e opiniões que estão para além do sugerido nos textos de estímulo 1 4. Critério referente ao acompanhamento da disciplina: Reflexão articulada entre o conteúdo da disciplina (orientações dadas nas aulas) e os elementos teóricos trazidos pelos textos. Capacidade de fazer relações entre os textos e as aulas assistidas. 1 5.Critério teórico-conceitual: Emprego de recursos paralelos à reflexão (ex: citações e argumentos teóricos provenientes das leituras) 1 6. Critério teórico-conceitual: Afirmativas são feitas com aprofundamento teórico (são claras e abordam conceitos teóricos centrais para a compreensão do conteúdo) 1 7. Critério teórico-conceitual: Respostas estão adequadas ao escopo teórico proposto para o módulo (eixo). 1 8. Apresentação e organização do texto 1 TOTAL 10 Pontuação