Mineirinho e O Cobrador: Duas Perspectivas Sobre a Violência Brasileira Aluna: Patrícia Silva Winck (00302972) 1 – Introdução: Ao estudarmos sobre Clarice Lispector (1920 – 1977) e Rubem Fonseca (1925 – 2020) inicialmente pode-se dizer que não havia muito em comum entre esses dois grandes autores contemporâneos brasileiros. Lispector é conhecida pelos seus textos introspectivos e intimistas, já Fonseca é mais lembrado por sua literatura brutalista e áspera. Poderíamos até dizer que as suas obras são opostas, entretanto essa seria uma opinião errônea. Durante as leituras da cronica/conto Mineirinho (1969) de Lispector e O Cobrador (1979) de Fonseca não se pode deixar de ver uma similaridade nos temas discutidos. É quase como se uma história completasse a outra, dois pontos de vista de um mesmo problema social. Em O Cobrador o leitor é aterrorizado com a violência extrema de um homem que tinha sido esquecido pela sociedade e que resolve cobrar por tudo que julga lhe ser devido. Já em Mineirinho nós temos a reação à morte de um bandido pela polícia. A história real do bandido morto leva a narradora a questionar a sociedade brasileira e a sua responsabilidade social. Os questionamentos feitos por Lispector e Fonseca ainda são tão contundente hoje quanto há quarenta anos. Muitas coisas mudaram no Brasil, entretanto, a desigualdade entre ricos e pobres ainda é um dos grandes problemas da nossa sociedade principalmente nesse último ano com a pandemia e o crescimento exorbitante da pobreza e do desemprego. É pela contínua importância desse tema que nesse ensaio nós tentaremos compreender como essas duas histórias escritas por autores tão diferentes podem parecer tão interligadas por uma mesma questão: a desigualdade brasileira e as consequências de uma sociedade de excluídos. 2 – A literatura e a Sociedade: Segundo Giorgio Agamben (2009), “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Se pensarmos assim, uma das características dos autores contemporâneos é a sua capacidade de não apenas ver o seu mundo mas compreendê-lo e tentar de alguma forma iluminar os recantos mais escuros da sua sociedade, recantos que muitas vezes são propositalmente ignorados. É como Clarice Lispector disse em Mineirinho:“Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.”(LISPECTOR, 2016. p.388). Para manter o status quo, muitas coisas devem ser ignoradas, esquecidas e uma das funções do escritor é escancarar essa face oculta do nosso tempo. A nossa nação sempre foi um país marcado pelas desigualdades, no entanto, se percebe uma maior divisão entre ricos e pobres a partir do milagre econômico brasileiro durante a ditadura militar (1964-1985). Enquanto uma grande parte da população pode ver-se cada vez mais próspera e com acesso a novos produtos de consumo como televisões e carros, outros, vindos do interior até as grandes capitais a procura de uma vida melhor, se encontravam muitas vezes sem emprego ou moradia e eram excluídos pela sociedade. Em seu artigo violência e exclusão social na literatura brasileira contemporânea (1960-1970), Nilce Camila de Carvalho (2014) exemplifica: Uma das consequências da acentuada divisão social é o aumento da violência. A sociedade produzia bens materiais e culturais ao mesmo tempo em que gerava um grande grupo que ficava a margem do usufruto desses produtos, bem como de outros essenciais para uma vida digna. (CARVALHO, p.73) É nessa sociedade cheia de dualidades que Clarice Lispector e Rubem Fonseca escreveram as suas obras e através da literatura, segundo Carvalho (2014, p.87), tentaram refletir sobre o seu tempo e questionar “as condições limites a que chegam indivíduos marginalizados” e a cumplicidade, segundo Lispector, de certas camadas da sociedade em manter essa estrutura social desigual para poderem “dormir tranquilos”. 3 – Clarice Lispector, cúmplice da desigualdade: Na sua última entrevista com Júlio Lerner, em 1977, apenas alguns meses antes de falecer, Clarice Lispector disse que uma de suas obras mais marcantes tinha sido o conto Mineirinho baseado em um crime real e que a forma como o bandido havia morrido a tinha impactado muito. “Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência.”. Na mesma entrevista a escritora disse que escrevia sem esperanças de que a sua obra pudesse alterar alguma coisa na sociedade, o que não a impedia de continuar escrevendo. Ao contar a história do assaltante José Miranda Rosa, mais conhecido como Mineirinho, morto em 1962 por treze tiros pela polícia após ter fugido de um manicômio, Lispector põe em pauta a desigualdade social brasileira mostrando as relações entre “o bandido Mineirinho, como representante de uma dada classe social de desprestigiados, e a autora, representante de uma classe que vive alienada dos problemas sociais” (CARVALHO, 2014. p.82). Em seu conto, Lispector questiona o seu lugar como privilegiada e cúmplice da desigualdade, ela coloca “em xeque não só a justiça que mata Mineirinho, mas todo um modo de vida ilusório”(ROSENBAUM, 2010. p.174): Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam. (LISPECTOR, 2016. p.387) A narradora não tem ilusões sobre poder mudar a sociedade em que vive mas, mesmo assim, não consegue manter-se calada frente a injustiça vinda de um país de desigualdades. Mesmo sendo de uma classe que usufrui da falsa sensação de paz, a narradora se questiona se melhor não seria derrubar “as paredes” da sociedade e começar de novo. 4 – Rubem Fonseca, libertador dos oprimidos: De acordo com Antonio Candido, Fonseca “agride o leitor pela violência, não apenas dos temas, mas dos recursos técnicos — fundindo ser e ato na eficácia de uma fala magistral em primeira pessoa, (…) avançando as fronteiras da literatura no rumo duma espécie de notícia crua da vida.” (CANDIDO, 1989, p.221). Essa “agressão ao leitor” da literatura brutalista de Fonseca pode ser vista em O Cobrador, uma narrativa em primeira pessoa que coloca o leitor como quase coautor dos crimes cometidos pelo poeta durante o conto. O Cobrador narra: Uma situação-limite, excepcional, um exemplo mais hipotético decorrente de uma exclusão social que leva o indivíduo a tomar uma decisão extrema de se excluir da sociedade, rejeitando todas as suas normas, valores, instituições, pensando apenas na satisfação instintiva de suas necessidades básicas (CARVALHO, 2014. p.84) Uma narrativa de um homem que, chegando no seu limite, resolve “cobrar” tudo que acredita que a sociedade tinha-o impedido de ter. “Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo” (FONSECA, 2015. p.60) Já nas primeiras linhas o personagem principal (poeta pobre que viviam em um quarto alugado na casa de Dona Clotilde, senhora doente que o cobrador ajuda a cuidar) mata o seu dentista após ser cobrado por um procedimento. “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!” (FONSECA,2015. p.59) O conto acaba com o cobrador virando terrorista e tendo planos de atacar o governador, um símbolo da real revolta do cobrador com a sociedade descriminatória que o excluiu de qualquer chance de ter uma vida justa. O cobrador personifica os problemas sociais e econômicos do Brasil dos anos 70 e que são ainda enraizados na nossa sociedade mais de cinquenta anos depois. 5 – Conclusão: Os dois contos estudados são muito diferentes mas têm temas similares, se pode ver um dialogo entre eles “o personagem de Rubem Fonseca cobra a responsabilidade social que Lispector afirma que todos devem ter” (CARVALHO, 2014. p.86). É impossível negar as semelhanças até mesmo no poema escrito pelo cobrador em que o personagem critica a aparente cegueira dos ricos sobre as disparidades entre as classes sociais: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./ (FONSECA, 2015. p.61) Em sua essência, “O contemporâneo (…) está a altura transformar (o tempo) e colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história” (AGAMBEN, 2009. p.72). É isso que os autores estudados aqui tentaram fazer, de jeitos diferentes mas com o mesmo intuito: Escancarar para a sociedade as injustiças que nós acabamos por acreditar serem parte da vida, algo imutável, e que, muitas vezes, resolvemos esquecer para podermos desfrutar das suas bonécias. 6 – Referências: AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo?. In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989. CARVALHO Nilce Camila de. Violência e exclusão social na literatura brasileira contemporânea (1960-1970): representações de João Antônio, Clarice Lispector e Rubem Fonseca. In: Rev. Hist. UEG - Anápolis, v.3, n.2, p. 71-92, jul./dez. 2014. FONSECA, Rubem. O melhor de Rubem Fonseca [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. ROSENBAUM, Yudith. A ética na literatura: leitura de “Mineirinho”, de Clarice Lispector. In: Estudos Avançados. Vol. 24, no. 69. São Paulo, 2010.