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Fotografia como documento e arte - CesarVieira Final

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FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO E ARTE.
HÁ COMO SERVIR A DOIS SENHORES?
CÉSAR BASTOS DE MATTOS VIEIRA
Professor, Arquiteto, Doutor.
UFRGS – Faculdade de Arquitetura.
E-mail: cbvieira@terra.com.br
Introdução
Tendo-se como ponto de partida a discussão, aparentemente sem fim, da dupla
origem da fotografia – tecnologia e arte – e baseando-se, principalmente, no livro de
André Rouillé, A fotografia entre documento e arte contemporânea, propõe-se um olhar
mais acurado e crítico sobre o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, mais
especificamente, sobre seu trabalho mais recente: Genisis. Este projeto é apresentado
em diversos formatos – exposições externas, exposições internas em museus e espaços
públicos, livros (edição “popular”, edição especial para colecionadores), pôsteres de
grande formato além de cópias fotográficas. Em especial, na visitação da exposição
principal, uma analise um pouco mais apurada e demorada sobre as fotografias, gerou
uma série de indagações sobre sua real “honestidade fotojornalística” em se tratando da
obra de um dos mais importante fotojornalista em atividade no mundo. Estas indagações
surgem quando em algumas de suas fotografias percebe-se cenas que parecem posadas,
outras feitas em estúdios com fundos infinito convencionais e outras, de certa forma, em
estúdios mascarados por serem construídos de folhas, mas ainda assim em um formato
que lembra os estúdios nos moldes dos utilizados no século XIX. Uma vez que
Sebastião Salgado não inclui muita informação escrita em seus projetos fotográficos,
buscou-se, então, subsídios em sua biografia. Pretende-se tentar entender seus
processos, crenças, valores e até que níveis de elaboração e alteração da realidade
Sebastião Salgado pode chagar na construção de suas imagens.
Ainda há, no senso comum, uma crença de que a fotografia, e em especial a
fotojornalística, por tratar de registrar fatos reais, seja mais “honesta”, elaborada de maneira
limpa – sem o uso de recursos técnicos, filtros e efeitos elaborados – de forma a ser um
registro fidedigno de uma determinada realidade vivenciada, observada pelo fotógrafo.
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Por outro lado, o trabalho de Sebastião Salgado parece buscar uma aproximação
com o universo das artes. Para isto, agrega valores subjetivos, dá importância a uma
“escrita” pessoal, faz com que suas fotografias sejam desejadas e consumidas por
colecionadores e estarem presente em museus do mundo inteiro. Seu formato de
apresentação amplia-se ao ser finalizado, além dos formatos tradicionais da fotodocumento, em cópias de grande formato e publicações de luxo. Entretanto, mantém
como objetivo, conforme declarado pelo autor, apresentar e servir de registro de lugares,
indivíduos e fatos ainda intactos ou que sofreram pouco com a expansão da
humanidade.
Neste contexto o trabalho e a biografia de Sebastião Salgado oferecem uma
oportunidade interessantíssima para refletir sobre como a fotografia pode servir como
documento e arte ao mesmo tempo. Se é um registro elaborado dentro dos mais altos
rigores técnicos e apresenta toda a sua objetividade científica registrando com precisão
fatos reais ou se toma de toda a subjetividade artística e apresenta uma leitura virtuosa
de um dos maiores fotógrafos mundiais. O equilíbrio entre estes dois polos pode existir?
Sempre as fotografias trarão um pouco de cada universo, mas parece interessante
sempre refletir e considerar estas minúcias da fotografia uma vez que ainda geram
surpresas, indagações e até mesmo indignação quando se percebe que determinadas
fotografias foram obtidas em cenários montados aos moldes do século XIX, ou que a
cena foi construída, seus atores preparados, esperou-se a melhor luz, tudo com a
intenção especifica de se obter uma imagem espetacular.
Discussão teórica
Sebastião Salgado: O fotógrafo e sua criação
Sebastião Salgado é um fotografo extraordinário que assim como outros grandes
fotógrafos não desenvolve muito teorias nem teses sobre a fotografia e sua obra, o que é
lastimável. Assim como Henri Cartier-Bresson acredita em algo muito próximo do
“momento mágico” e descreve o ato fotográfico da seguinte maneira:
Colocando-se num estado de total integração com aquilo que o cerca, o
fotógrafo sabe que assistirá a algo inesperado. Quando ele se funde com a
paisagem, com o lugar, a construção da imagem acaba vindo a tona diante de
seus olhos. Mas para conseguir vê-la, ele precisa fazer parte do fenômeno.
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Todos os elementos começam então a atuar para ele. Neste instante, quando
deslumbramento![...] Fotografia é isso. Em dado momento, todos os
elementos estão interligados: as pessoas, o vento, a árvore, o fundo, a luz.
Quando aciono a câmera, estou por inteiro nesse gesto. É mágico – e é um
prazer solitário. (SALGADO, 2014. p.49-50)
Por se tratar de um fotógrafo que construiu suas crenças e valores pela vivência
íntima com o ato fotográfico na prática e da observação diretas dos fenômenos, Sebastião
Salgado acredita, por exemplo, que “a fotografia é uma escrita tão forte porque pode ser
lida em todo o mundo sem tradução” (SALGADO, 2014. p.58) o que é ponto polêmico
uma vez que para os linguistas “se toda a imagem é uma representação, tal implica que
ela utilize necessariamente regras de construção [...] que para serem compreendidas por
outros exige um mínimo de convenção sociocultural” (JOLY, 2008. p. 44).
Ilustra-se assim as divergências entre teóricos “puros” e “praticantes” desta
atividade apaixonante. Entra nesta trama também o leitor/expectador que traz suas crenças
e níveis distintos de capacidade de decifração das “Histórias fotográficas” construídas
pelo fotógrafo. Consequentemente, este trabalho é fruto de um conjunto de ações: “vejo,
sinto, portanto reparo, olho e penso.” (Barthes, 2008. p. 30)
GENISIS
Tem algo, neste projeto, que remete o visitante/espectador aos projetos
fotográficos da metade do século XIX onde, conforme Rouillé:
A fotografia afirma ao ritmo das mudanças do espaço, do tempo e do
horizonte do olhar que acompanha o desenvolvimento da ferrovia e da
navegação à vapor. [...] na qual a proliferação das imagens vai projetar para
longe o olhar; a da disjunção, em razão da crescente mobilidade dos homens,
das coisas e das imagens.” (2009. p.81)
Os projetos de Sebastião Salgado lembram em muito os projetos que
aconteceram na Europa entre 1856 e 1867 e nos Estados Unidos a partir de 1930
(ROUILLÉ, 2009. p.106-107) quando surgem em grande número com o objetivo de,
conforme André-Adolphe-Eugène Disdéri terem a ambição de:
organizar missões fotográficas, encarregadas de explorar todas as regiões do
mundo e de trazer, após alguns anos, reproduções completas de tudo que, nos
diferentes lugares do globo terrestre, possa interessar às ciências físicas e
naturais. (Cf. Alophe in, ROUILLÉ, 2009. p.99)
Não por mera coincidência, os projetos de Sebastião Salgado levam vários anos
para serem elaborados, exploram diferentes e exóticas regiões do mundo e trazem
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imagens que interessam a diversas áreas do conhecimento e ao leitor em geral. Neste
sentido Sebastião Salgado poderia ser considerado um dos últimos fotógrafos
desbravadores/exploradores em atividade no mundo. Oferecendo a oportunidade de
ainda manter vivo o desejo dos primeiros espectadores de que “Colecionar fotos é
colecionar o mundo”. (SONTAG, 2004. p. 13)
Neste sentido o trabalho de Sebastião Salgado pode ser classificado como de
fotografias-documentos e assim ser também inserido neste contexto:
“Uma das grandes funções da fotografia-documento terá sido a de erigir um
novo inventário do real, sob a forma de álbuns e, em seguida, de arquivos. [...] a partir
de 1840, foram confeccionados com a ajuda de provas originais, e muitas vezes
publicados em tiragens de poucos exemplares.” (ROUILLÉ, 2009. p.97-98)
Suas fotografias destoam da enxurrada de imagens que são oferecidas por todas
as mídias e as quais estamos expostos constantemente. Mas porque destoam?
Primeiro, porque são fotografias em preto e branco. Mas não apenas por uma
conversão direta da cor para os tons de cinza. Suas fotografias possuem uma textura,
uma densidade especial. Como descreve Sebastião Salgado: “Trata-se de reconstruir
minhas emoções numa linguagem que não é real – pois o preto e branco é uma
abstração – por meio da gama de cinzas do filme fotográfico.” (2014. p.49) São
fotografias exaustivamente trabalhadas por técnicas diferenciadas que agregam uma
qualidade de difícil obtenção pelo leigo ou pelo iniciante no universo da fotografia e da
pós-edição. O resultado final das fotografias de Sebastião Salgado é fruto de um
trabalho de uma equipe especializada e de materiais diferenciados algumas vezes
desenvolvidos especialmente para ele.
Sebastião Salgado descreve a escolha pelo preto e branco da seguinte maneira:
Não preciso do verde para mostrar árvores, nem do azul para mostrar o mar ou o
céu. A cor pouco interessa na fotografia. [...] Com o preto e branco e todas as
gamas de cinza posso me concentrar na densidade das pessoas, suas atitudes, seus
olhares, sem que estes sejam parasitados pela cor. Sei muito bem que a realidade
não é assim. Mas quando contemplamos uma imagem em preto e branco, ela
penetra em nós, nós a digerimos e, inconscientemente, a colorimos. O preto e
branco, essa abstração, é, portanto, assimilado por aquele que o contempla, que se
apropria dele. Considero seu poder realmente fenomenal. (2014. p.127-128)
Segundo, porque apresentam um universo, de certa maneira, construído mais do que
se espera de uma fotografia elaborada pelo “maior fotojornalista do mundo”. (SALGADO,
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2014. capa) É esperado, pelo senso comum, que uma fotografia feita por um fotojornalista
contenha uma grande parcela de equivalência com o universo visível do qual a câmera
capturou a luz refletida nos objetos da cena. Conforme Rouillé se refere: a “reprodução
exata da natureza” (2009. p.59), porém para um olhar mais apurado pode-se perceber
indícios de uma construção de uma versão da realidade e não apenas uma “reprodução”.
Para comprovar esta tese foram selecionadas algumas fotografias da coleção
Genisis, que ilustram de maneira mais contundente e de fácil observação desta
construção de uma versão da realidade, ou uma interpretação. Esta estratégia fotográfica
parece ir na contramão da ideia original de Sebastião Salgado de ser um projeto
fotográfico que “queria mostrar a natureza no seu auge, independente do lugar onde se
encontrasse. [...] com o objetivo de retratar esses povos o mais próximo possível de seu
estilo de vida ancestral.” (SALGADO, 2013. p.7-8).
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Figura 1 – Os Mentawai, Indonésia – Xamã preparando um filtro para sagu.
Fonte: SALGADO, 2013. p.207
A figura 1 apresenta um xamã preparando um filtro para sagu, na Ilha Suberut,
Sumatra Ocidental, Indonésia, março de 2008. O que chama a atenção, nesta fotografia,
é ter sido feita sobre um fundo infinito, com uma luz difusa, muito bem distribuída e
controlada o que sugere ter sido obtida dentro de um estúdio e não em plena floresta. Só
estão presentes na imagem o modelo com seus ornamentos e o material para a
confecção do filtro de sagu, como se o fotógrafo tivesse recortado do ambiente somente
o que lhe interessava retratar.
Figura 2 – Papua-Nova Guiné
Fonte: SALGADO, 2013. p.198-199 e 200 respectivamente.
A figura 2 apresenta duas fotografias de Papua-Nova Guiné, também, apresentam os
modelos sobre fundo infinito escuro, com um controle muito preciso da luz que ilumina de
maneira suave realçando as texturas, oferecendo volume às imagens. Os modelos são
apresentados ornamentados, os primeiros em ação tocando suas flautas, todos com
expressões fortes e olhares penetrantes. Chama muita a atenção seus olhos. Parecem
denunciar certo desconforto e tensão.
Figura 3 – Os idígenas do Alto Xingu – Retrato de todos os xamãs kamayura.
Fonte: SALGADO, 2013. p.476-477
A mesma estratégia repete-se na Amazônia, com os idígenas do Alto Xingu –
Retrato de todos os xamãs kamayura – figura 3. Aqui Sebastião Salgado declara a estratégia
ao chamar a fotografia de “retrato”. Todas estas imagens até agora apresentadas são de fato
retratos feitos de uma maneira muito parecida com os retratos do século XIX, ou seja, cenas
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posadas, com os modelos devidamente caracterizados e/ou desenvolvendo suas atividades
e, portanto, oferecendo as mesmas discussões teóricas.
Figura 4 – A tribo dos Zo’é – Mulheres usando o urucum.
Fonte: SALGADO, 2013. p.462-463
A figura 4 - A tribo dos Zo’é – Mulheres usando o urucum – foi, também, obtida em
um tipo de estúdio fotográfico, porem este “estúdio” parece camuflado pela utilização no
fundo infinito de folhas de palmeiras. Este recurso, também é encontrado em diversas
fotografias o que dificulta a percepção do estúdio e torna mais difícil a percepção do nível
de construção da cena fotografada pelo leitor mais distraído e desavisado.
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Figura 5 – Os Mentawai, Indonésia – Homem-lama
Fonte: SALGADO, 2013. p.205
A figura 5 – Os Mentawai, de Papua-Nova Guiné - Indonésia – “Homem-lama
está entre as figuras mais impressionantes do imaginativo mundo dos planaltos”.
(SALGADO, 2013. Encarte p. 12) Nesta fotografia o que chama a atenção é a pose
estática, aos moldes das fotos dos primórdios da fotografia, com um tempo de exposição
prolongado. A água borrada da cachoeira e do córrego de água confirmar a necessidade
de um tempo prolongado de exposição. Esta estratégia obrigou o nativo a uma pose
estática por um tempo significativo. Sem uma cumplicidade fotógrafo/modelo isto não
teria sido possível o que tira a naturalidade da cena e coloca em dúvida o grau de
realismo: se era um momento “natural” deste grupo de indivíduos ou se é uma cena do
“mundo imaginativo do fotógrafo”.
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Figura 6 – Os Himba - África
Fonte: SALGADO, 2013. p.264-265
Figura 7 – As tribos do vale inferior do Omo - Etiópia
Fonte: SALGADO, 2013. p.309
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Figura 8 – As tribos do vale inferior do Omo – Etiópia – As mulheres mursi e surma.
Fonte: SALGADO, 2013. p.312-313
As figuras 6, 7 e 8 são retratos em espaços abertos, mas que mantém o conceito
de retrato posado, que de acordo com Barthes:
... se cruzam, se confrontam e se deformam quatro imaginários. Perante a
objetiva, eu sou simultaneamente aquele que eu julgo ser, aquele que eu gostaria que os
outros julgassem que eu fosse, aquele que o fotógrafo julga que eu sou e aquele de
quem ele se serve para exibir a sua arte. (2008. p. 21-22)
A figura 6 apresenta, em um plano de fundo desfocado, cabras sugerindo um
ofício aos modelos, mostrados no primeiro plano. Sugere ser mãe e filhos o que nem na
legenda é esclarecido, mas mostra uma mulher com fisionomia forte, seios a vista e uma
vestimenta carregada de ornamentos, que aos moldes das fotografias do século XIX
pode ser um traje de festa ou melhor do o utilizado no cotidiano. As crianças se
mostram de maneira mais natural, sem que se deixe de perceber algum constrangimento
que não parece ser por alguma repreenda da mulher.
A figura 7 apresentam um retrato quase abstrato onde parece mais importante a
forma construída pelo adorno de cabeça e o adorno da boca. A face se desconstrói pela
deformação e o grau de importância dos elementos de adorno colocados dentro de
quadro. O fundo desfocado aumenta o ponto focal para o modelo que é contraposto a
um tronco retorcido.
Já a figura 8 apresenta duas mulheres com seus adornos e uma postura e olhares
que remete às revistas masculinas pela tentativa de sensualidade. Chama à atenção a
limpeza da pele, dos panos brancos e dos adornos de boca. O fundo desfocado realça os
modelos e o tronco de árvore que parece marcar a linha de simetria da fotografia.
É importante salientar que as considerações apresentadas acima levam em conta,
pelo menos, códigos técnicos e socioculturais do pesquisador e pode – ou deverá – haver
divergências e discordâncias destas analises o que não tira o valor desta demonstração.
Verdade ou ficção?
“Genisis” é uma coleção de fotografias que, como é a intenção do autor, conta
uma história, mas que história? Qual o grau de verdade e de fantasia ela contém?
Quanto pode ser atribuído a ela de valor documental ou de valor artístico? Este é o
ponto focal deste trabalho e que parece depender em grande parte da intenção e objetivo
do fotógrafo/operador e da capacidade de leitura do espectador. O Spectator de Barthes
que experimenta e olha e que é qualquer pessoa “que consulta nas revistas, nos livros,
álbuns e arquivos, nas coleções de fotografias” (2008. p. 17) e que vai acreditar ou não
na veracidade do que a fotografia conta.
Conforme Rouillé, a verdade ou a ficção é uma construção que pode variar, ao
depender do leitor e de sues códigos e crenças:
O verdadeiro não é uma segunda natureza da fotografia: é somente efeito de
uma crença que, em um momento preciso da história do mundo e das
imagens, se ancora em práticas e formas cujo suporte é um dispositivo. O
verdadeiro da fotografia-documento se estabelece pela diferença na
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comparação, de um lado, com o verdadeiro da pintura ou do desenho, e, de
outro, com o da fotografia artística. As formas fotográficas do verdadeiro
tendem a confundir-se com as formas do útil. (ROUILLÉ, 2009. p.83)
Uma mesma fotografia pode ser apenas lida como um “instantâneo” simples sem
muitas pretensões apenas por sua beleza aparente, ou lida a fundo em sua potencialidade
de oferecer informações.
Da coisa à imagem, o caminho nunca é reto, como creem os empiristas e
como queriam os enunciados do verdadeiro fotográfico. [...] A imagem é
tanto a impressão (física) da coisa como o produto (técnico) do dispositivo, e
o efeito (estético) do processo fotográfico. [...] A imagem constrói-se no
decorrer de uma sucessão estabelecida de etapas (o ponto de vista, o
enquadramento, a tomada, o negativo, a tiragem, etc.), através de um
conjunto de códigos de transcrição da realidade empírica: códigos ópticos (a
perspectiva), códigos técnicos (inscritos nos produtos e nos aparelhos),
códigos estéticos (o plano e os enquadramentos, o ponto de vista, a luz, etc.),
códigos ideológicos, etc. (2009. p.79)
Documento e arte: duas faces da fotografia
A fotografia sempre traz em sua essência traços de sua dupla origem: no aparato
tecnológico físico/químico, as regras e demandas da óptica e da química, e das artes, a
subjetividade do olhar sempre presente no ato fotográfico.
Apesar da presunção de veracidade que confere autoridade, interesse e
sedução a todas as fotos, a obra que os fotógrafos produzem não constitui
uma exceção genérica ao comércio usualmente nebuloso entre arte e verdade.
Mesmo quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a
realidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de consciência.
(SONTAG, 2004. p. 13)
Nos seus primórdios a fotografia baseia “seu caráter de imagem-máquina, à
parte que, sem precedentes, a tecnologia ocupa em suas imagens” (ROUILLÉ, 2009.
p.31). Nesta época se vangloriava de retirar a mão do artista do processo de registro.
Jules Janin, em 1839, proclama: “Nenhuma mão humana poderia desenhar como o sol
desenha” (in ROUILLÉ, 2009. p.33). O que parecia fantástico: um processo de registro
sem a necessidade da mão humana não considerava, entretanto, com a importância do
operador no ato fotográfico, ou seja, a mão humana apenas trocou de lugar: não se
coloca mais entre o modelo e a tela, mas comanda toda a ação pelo buraco da câmera
escura por traz do plano onde a imagem acontece. Nesta posição ele escolhe ângulos,
decide pelo que fica e o que sai de quadro e compõe a imagem dentro de regras
compositivas, se isso ele desejar. Discorda-se, então, de Rouillé que desqualifica o
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operador perante o artista: “Além disso, o olho do especialista não é o olho do pintor.”
(ROUILLÉ, 2009. p.41) Não considerando que muitos dos primeiros “operadores”
foram artistas que ao perderem seus ofícios se aliam às inovações.
Entretanto, concorda-se com Rouillé que ficará sempre ligada, à fotografia, a
dicotomia:
“De um lado, a representação, o ícone, a imitação; do outro, o registro, o
índice, o rastro. E um conjunto de oposições binárias: o artista e o operador;
as artes liberais e as artes mecânicas; a originalidade da obra, contra a
similaridade e a multiplicidade das provas.” (2009. p.17)
Rouillé tem uma posição curiosa para defender a diferença entre a fotografia e a
arte ao se basear na questão da hierarquização. “A fotografia não hierarquiza, seu olhar
sobre o mundo é democrático: para ela, todas as coisas são iguais.” (2009. p.57) e
coloca esta condição para afastar a fotografia das artes ao afirmar:
Mas o que, em definitivo, afasta radicalmente a fotografia da arte é que, em
todos os níveis, ‘o acessório á tão capital quanto o principal’, é o processo
não estabelecer nenhuma hierarquia: nem entre os objetos registrados, nem
entre os detalhes reproduzidos, nem entre as bordas e o centro da imagem.”
(ROUILLÉ, 2009. p.85)
E complementa relacionando a fotografia com o desenho:
“A fotografia dá não somente o que o próprio autor viu e quis representar,
mas tudo o que é realmente visível no objeto reproduzido. Logo, a fotografia
e o desenho não se equivalem. Enquanto a fotografia reproduz todo o visível,
visto ou não visto, sem seleção e sem perda, o desenhista representa apenas
um aspecto restrito: o que consegue perceber, o que ele quer reter.” (2009.
p.41)
Esta posição de Rouillé parece da falta de uma vivência prática com o ato
fotográfico, pois há limitações no registro fotográfico que não permitem que todo o
universo visível seja apresentado “todo o visível de forma igual”. Conforme Vieira
(2012. p. 111-206) descreve no item 3.4 - As variáveis no ato fotográfico, há diversas
discrepâncias e diferenças entre o que a câmera registra e o que o olho humano vê. Já
Benjamin constatava que “A natureza que fala com a câmera é distinta da que fala ao
olho” (2008, p. 26). Para dar apenas um exemplo ilustrativo: a fotografia não é capaz de
registrar em uma mesma imagem grandes variações de luz, ou seja, em uma foto obtida
com uma fotometragem média, da luz refletida pelos objetos vão ficar sem leitura nas
altas luzes e nas zonas muito sombreadas (as baixas luzes), o que era explorada de
maneira primorosa por Ansel Adams e Sebastião Salgado, mesmo referindo à
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quantidade de imagens que ele perdeu em situações com pouca iluminação (2014. p.
118). Estas peculiaridades no registro da cena permite ao fotógrafo hierarquizar os
objetos registrados, contrariamente ao que Rouillé afirma e derruba de certa forma a não
equivalência entre a fotografia e outras formas de representação, como o desenho e a
pintura. Há como hierarquizar os objetos na fotografia de maneira diferente do desenho,
mas há esta possibilidade. Entretanto, haverá situações onde o desenho, ou em outros
onde a fotografia resultará em melhores registros das cenas pelas características
especificas de cada caso.
Rouillé é em parte confuso ao apresentar seus argumento, pois alterna pontos
controversos a respeito da capacidade da fotografia de representar o real e seu caráter de
verdade ao afirmar também que: “...o importante é como a imagem produz o real. O que
equivale a defender a relativa autonomia das imagens e de suas formas perante os
referentes, e reavaliar o papel da escrita em face do registro.” (2009. p.18)
Documento e expressão
Rouillé propõe como base na discussão de seu livro Fotografia entre documento
e arte contemporânea uma diferenciação entre o que ele denomina de fotografiadocumento e a fotografia-expressão, a saber:
Fotografia-documento: O valor documental que, longe de ser fixo ou
absoluto, deve ser apreciado por sua variabilidade no âmbito de um regime
de verdade – o regime documental. O valor documental da imagem baseia-se
em seu dispositivo técnico, mas não é garantido por ele, pois varia em função
das condições de recepção da imagem e das crenças que existem a respeito.
Fotografia-expressão: a fotografia em seu aspecto expressivo, que durante
muito tempo, esteve escondido ou foi rejeitado. (2009. p.27-28)
Rouillé apresenta dois usos da fotografia no qual um sucede o outro dentro de
uma evolução histórica. Parece que Sebastião Salgado derruba esta evolução linear com
sua “História fotográfica Genisis”, na qual ele volta aos lugares, personagens e
protocolos anteriores e mesmo assim satisfaz e surpreende seus públicos.
Lembrando que Barthes (2008. p. 12) já alertava para a dificuldade de classificar
a fotografia uma vez que ela “esquiva-se” destas tentativas. Para nossos objetivos de
entender a fotografia e seus usos uma taxionomia baseada em “tipos pontuais” –
fotografia-documento, fotografia-expressão, fotografia-artística – em uma classificação
unitária não é tão potente quanto uma classificação em escalas variáveis de uso. Como,
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por exemplo, Vieira (2012. p. 276-289) propôs para uma taxonomia da fotografia de
arquitetura que apresenta uma escala onde em cada ponto extremo está um tipo de uso
(fotografia de representação arquitetônica e fotografia de expressão arquitetônica) e que
cada fotografia pode conter uma parcela de cada tipo variando com seu uso, utilidade e
finalidade de aproveitamento. No caso das fotografias de Sebastião Salgado na coleção
Genisis, por exemplo, elas podem ter um valor artístico para um leitor leigo, pode ter
um valor histórico e assim documental para um pesquisador daquela região ou povo e
um valor de expressão para alguém que pesquise as estratégias de obtenção das imagens
pelo seu autor.
Fotografia-documento como elemento autônomo: a arte no documento
Cattani (2010) fala do desenho como elemento autônomo em relação ao que
representa e apresenta uma linha de raciocínio capaz de abarcar, também, a
possibilidade da fotografia-documento tornar-se um elemento autônomo em relação ao
seu referente. Assim Cattani argumenta:
Mas assim como a maquete pode adquirir autonomia em relação ao que
representa, colocando-se em um patamar de obra de arte autônoma, o mesmo
pode acontecer com o desenho, sobretudo os croquis de estudo de caráter
marcadamente autoral. Prova disso é a quantidade de desenhos de arquitetos
que são motivo de exposições, livros, mostras e vendas. Deste modo, fica
evidente a dupla natureza do desenho de arquitetura: de um lado, instrumento
objetivo de controle de definição de espaços construídos e processos
construtivos; de outro, instrumento de investigação, divagação, pesquisa,
invenção, criação, arte. (2010. p. 16-17)
Nesta mesma abordagem, aplicada às fotografias de Sebastião Salgado, é
possível afirmar que por possuírem “caráter marcadamente autoral”: “Minha fotografia
não é objetiva. Como todos os fotógrafos, fotografo em função de mim mesmo, daquilo
que me passa pela cabeça, daquilo que estou vivendo e pensando.” (SALGADO, 2014.
p.47 - Grifo do pesquisador). Pode-se assim atribuir, também, a “dupla natureza” à sua
fotografia: valor documental e valor artístico. Validando na proposta de Cattani pelo seu
meio de exibição (exposições) e seu consumo (por museus e colecionadores). “Os
escritores relatam com suas penas, eu relatava com minhas câmeras. A fotografia é para
mim uma escrita.” (SALGADO, 2014. p.43)
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Considerações finais
A fotografia é um ato vinculado a uma relação entre o fotógrafo, sua câmera e o
modelo que será lida por um terceiro: o leitor. Em que grau cada parte será atribuído de
importância dependerá de uma diversidade de intencionalidades possíveis motivadoras
do ato fotográfico e sua decifração. Flusser afirma que “o significado decifrado será,
pois, o resultado de síntese entre duas intencionalidades: a do emissor e a do receptor”
(2002, p. 8). Aparentemente, a intenção de registro do modelo pode não ser mais o
objetivo primário. As ambições do fotógrafo de pretender se afirmar como artista, a
necessidade de demonstração da capacidade de controle e esgotamento das
potencialidades da câmera, as demandas visuais de um publico viciado em imagens
diferentes, impactantes, surpreendentes parecem superar a demanda por um registro
mais preciso do modelo.
Sebastião Salgado com suas “histórias fotográficas” “nos ensina um novo código
visual, onde as fotos modificam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o
que temos o direito de observar.” (SONTAG, 2004. p. 13)
A obra de Sebastião Salgado, enfim, demonstra que a fotografia pode transitar
por vários universos distintos tais como a objetividade da informação documental e a
subjetividade da arte sem necessariamente sofrer grandes modificações aparentes.
A mesma imagem pode servir a dois mundos, então pode servir a dois senhores.
Há obviamente que se ter, como leitor/espectador, a consciência de que se trata sempre
de uma representação, que ali esta a mão do fotógrafo que interviu na realidade que
buscou seu olhar sobre o mundo visível: “Minhas fotos foram tiradas porque pensei que
o mundo inteiro devia saber. É meu ponto de vista, mas não obrigo ninguém a vê-las.”
(SALGADO, 2014. p.94)
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Referências
BARTHES, Roland. A câmera clara: notas sobre a fotografia. Portugal, Lisboa:
Edições 70, 2008.
BENJAMIN, Walter. Sobre la fotografia. 4 ed. Valencia, Espanha:Pre-textos, 2008.
CATTANI, Airton. Sistemas de representação em arquitetura. Relatório de estágio
pós-doutoral junto ao Centre d’Archives d’Architecture du XXe siècle da Cite de
l’Architecture et du Patrimoine. Paris, 2010. Texto inédito.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da
fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008.
ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea; tradução
Constancia Egrejas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
SALGADO, Sebastião. Genisis. Italia: Taschen, 2013.
SALGADO, Sebastião, FRANCQ, Isabelle. Da minha terra a Terra; tradução Julia da
Rosa Simões – 1. Ed. São Paulo: Paralela, 2014.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. 3 ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2007.
VIEIRA, César Bastos de Mattos. A fotografia na percepção da arquitetura. Tese
(Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Repositório Digital – UFRGS Linck:
http://hdl.handle.net/10183/53735
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