FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO E ARTE. HÁ COMO SERVIR A DOIS SENHORES? CÉSAR BASTOS DE MATTOS VIEIRA Professor, Arquiteto, Doutor. UFRGS – Faculdade de Arquitetura. E-mail: cbvieira@terra.com.br Introdução Tendo-se como ponto de partida a discussão, aparentemente sem fim, da dupla origem da fotografia – tecnologia e arte – e baseando-se, principalmente, no livro de André Rouillé, A fotografia entre documento e arte contemporânea, propõe-se um olhar mais acurado e crítico sobre o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, mais especificamente, sobre seu trabalho mais recente: Genisis. Este projeto é apresentado em diversos formatos – exposições externas, exposições internas em museus e espaços públicos, livros (edição “popular”, edição especial para colecionadores), pôsteres de grande formato além de cópias fotográficas. Em especial, na visitação da exposição principal, uma analise um pouco mais apurada e demorada sobre as fotografias, gerou uma série de indagações sobre sua real “honestidade fotojornalística” em se tratando da obra de um dos mais importante fotojornalista em atividade no mundo. Estas indagações surgem quando em algumas de suas fotografias percebe-se cenas que parecem posadas, outras feitas em estúdios com fundos infinito convencionais e outras, de certa forma, em estúdios mascarados por serem construídos de folhas, mas ainda assim em um formato que lembra os estúdios nos moldes dos utilizados no século XIX. Uma vez que Sebastião Salgado não inclui muita informação escrita em seus projetos fotográficos, buscou-se, então, subsídios em sua biografia. Pretende-se tentar entender seus processos, crenças, valores e até que níveis de elaboração e alteração da realidade Sebastião Salgado pode chagar na construção de suas imagens. Ainda há, no senso comum, uma crença de que a fotografia, e em especial a fotojornalística, por tratar de registrar fatos reais, seja mais “honesta”, elaborada de maneira limpa – sem o uso de recursos técnicos, filtros e efeitos elaborados – de forma a ser um registro fidedigno de uma determinada realidade vivenciada, observada pelo fotógrafo. 1 Por outro lado, o trabalho de Sebastião Salgado parece buscar uma aproximação com o universo das artes. Para isto, agrega valores subjetivos, dá importância a uma “escrita” pessoal, faz com que suas fotografias sejam desejadas e consumidas por colecionadores e estarem presente em museus do mundo inteiro. Seu formato de apresentação amplia-se ao ser finalizado, além dos formatos tradicionais da fotodocumento, em cópias de grande formato e publicações de luxo. Entretanto, mantém como objetivo, conforme declarado pelo autor, apresentar e servir de registro de lugares, indivíduos e fatos ainda intactos ou que sofreram pouco com a expansão da humanidade. Neste contexto o trabalho e a biografia de Sebastião Salgado oferecem uma oportunidade interessantíssima para refletir sobre como a fotografia pode servir como documento e arte ao mesmo tempo. Se é um registro elaborado dentro dos mais altos rigores técnicos e apresenta toda a sua objetividade científica registrando com precisão fatos reais ou se toma de toda a subjetividade artística e apresenta uma leitura virtuosa de um dos maiores fotógrafos mundiais. O equilíbrio entre estes dois polos pode existir? Sempre as fotografias trarão um pouco de cada universo, mas parece interessante sempre refletir e considerar estas minúcias da fotografia uma vez que ainda geram surpresas, indagações e até mesmo indignação quando se percebe que determinadas fotografias foram obtidas em cenários montados aos moldes do século XIX, ou que a cena foi construída, seus atores preparados, esperou-se a melhor luz, tudo com a intenção especifica de se obter uma imagem espetacular. Discussão teórica Sebastião Salgado: O fotógrafo e sua criação Sebastião Salgado é um fotografo extraordinário que assim como outros grandes fotógrafos não desenvolve muito teorias nem teses sobre a fotografia e sua obra, o que é lastimável. Assim como Henri Cartier-Bresson acredita em algo muito próximo do “momento mágico” e descreve o ato fotográfico da seguinte maneira: Colocando-se num estado de total integração com aquilo que o cerca, o fotógrafo sabe que assistirá a algo inesperado. Quando ele se funde com a paisagem, com o lugar, a construção da imagem acaba vindo a tona diante de seus olhos. Mas para conseguir vê-la, ele precisa fazer parte do fenômeno. 2 Todos os elementos começam então a atuar para ele. Neste instante, quando deslumbramento![...] Fotografia é isso. Em dado momento, todos os elementos estão interligados: as pessoas, o vento, a árvore, o fundo, a luz. Quando aciono a câmera, estou por inteiro nesse gesto. É mágico – e é um prazer solitário. (SALGADO, 2014. p.49-50) Por se tratar de um fotógrafo que construiu suas crenças e valores pela vivência íntima com o ato fotográfico na prática e da observação diretas dos fenômenos, Sebastião Salgado acredita, por exemplo, que “a fotografia é uma escrita tão forte porque pode ser lida em todo o mundo sem tradução” (SALGADO, 2014. p.58) o que é ponto polêmico uma vez que para os linguistas “se toda a imagem é uma representação, tal implica que ela utilize necessariamente regras de construção [...] que para serem compreendidas por outros exige um mínimo de convenção sociocultural” (JOLY, 2008. p. 44). Ilustra-se assim as divergências entre teóricos “puros” e “praticantes” desta atividade apaixonante. Entra nesta trama também o leitor/expectador que traz suas crenças e níveis distintos de capacidade de decifração das “Histórias fotográficas” construídas pelo fotógrafo. Consequentemente, este trabalho é fruto de um conjunto de ações: “vejo, sinto, portanto reparo, olho e penso.” (Barthes, 2008. p. 30) GENISIS Tem algo, neste projeto, que remete o visitante/espectador aos projetos fotográficos da metade do século XIX onde, conforme Rouillé: A fotografia afirma ao ritmo das mudanças do espaço, do tempo e do horizonte do olhar que acompanha o desenvolvimento da ferrovia e da navegação à vapor. [...] na qual a proliferação das imagens vai projetar para longe o olhar; a da disjunção, em razão da crescente mobilidade dos homens, das coisas e das imagens.” (2009. p.81) Os projetos de Sebastião Salgado lembram em muito os projetos que aconteceram na Europa entre 1856 e 1867 e nos Estados Unidos a partir de 1930 (ROUILLÉ, 2009. p.106-107) quando surgem em grande número com o objetivo de, conforme André-Adolphe-Eugène Disdéri terem a ambição de: organizar missões fotográficas, encarregadas de explorar todas as regiões do mundo e de trazer, após alguns anos, reproduções completas de tudo que, nos diferentes lugares do globo terrestre, possa interessar às ciências físicas e naturais. (Cf. Alophe in, ROUILLÉ, 2009. p.99) Não por mera coincidência, os projetos de Sebastião Salgado levam vários anos para serem elaborados, exploram diferentes e exóticas regiões do mundo e trazem 3 imagens que interessam a diversas áreas do conhecimento e ao leitor em geral. Neste sentido Sebastião Salgado poderia ser considerado um dos últimos fotógrafos desbravadores/exploradores em atividade no mundo. Oferecendo a oportunidade de ainda manter vivo o desejo dos primeiros espectadores de que “Colecionar fotos é colecionar o mundo”. (SONTAG, 2004. p. 13) Neste sentido o trabalho de Sebastião Salgado pode ser classificado como de fotografias-documentos e assim ser também inserido neste contexto: “Uma das grandes funções da fotografia-documento terá sido a de erigir um novo inventário do real, sob a forma de álbuns e, em seguida, de arquivos. [...] a partir de 1840, foram confeccionados com a ajuda de provas originais, e muitas vezes publicados em tiragens de poucos exemplares.” (ROUILLÉ, 2009. p.97-98) Suas fotografias destoam da enxurrada de imagens que são oferecidas por todas as mídias e as quais estamos expostos constantemente. Mas porque destoam? Primeiro, porque são fotografias em preto e branco. Mas não apenas por uma conversão direta da cor para os tons de cinza. Suas fotografias possuem uma textura, uma densidade especial. Como descreve Sebastião Salgado: “Trata-se de reconstruir minhas emoções numa linguagem que não é real – pois o preto e branco é uma abstração – por meio da gama de cinzas do filme fotográfico.” (2014. p.49) São fotografias exaustivamente trabalhadas por técnicas diferenciadas que agregam uma qualidade de difícil obtenção pelo leigo ou pelo iniciante no universo da fotografia e da pós-edição. O resultado final das fotografias de Sebastião Salgado é fruto de um trabalho de uma equipe especializada e de materiais diferenciados algumas vezes desenvolvidos especialmente para ele. Sebastião Salgado descreve a escolha pelo preto e branco da seguinte maneira: Não preciso do verde para mostrar árvores, nem do azul para mostrar o mar ou o céu. A cor pouco interessa na fotografia. [...] Com o preto e branco e todas as gamas de cinza posso me concentrar na densidade das pessoas, suas atitudes, seus olhares, sem que estes sejam parasitados pela cor. Sei muito bem que a realidade não é assim. Mas quando contemplamos uma imagem em preto e branco, ela penetra em nós, nós a digerimos e, inconscientemente, a colorimos. O preto e branco, essa abstração, é, portanto, assimilado por aquele que o contempla, que se apropria dele. Considero seu poder realmente fenomenal. (2014. p.127-128) Segundo, porque apresentam um universo, de certa maneira, construído mais do que se espera de uma fotografia elaborada pelo “maior fotojornalista do mundo”. (SALGADO, 4 2014. capa) É esperado, pelo senso comum, que uma fotografia feita por um fotojornalista contenha uma grande parcela de equivalência com o universo visível do qual a câmera capturou a luz refletida nos objetos da cena. Conforme Rouillé se refere: a “reprodução exata da natureza” (2009. p.59), porém para um olhar mais apurado pode-se perceber indícios de uma construção de uma versão da realidade e não apenas uma “reprodução”. Para comprovar esta tese foram selecionadas algumas fotografias da coleção Genisis, que ilustram de maneira mais contundente e de fácil observação desta construção de uma versão da realidade, ou uma interpretação. Esta estratégia fotográfica parece ir na contramão da ideia original de Sebastião Salgado de ser um projeto fotográfico que “queria mostrar a natureza no seu auge, independente do lugar onde se encontrasse. [...] com o objetivo de retratar esses povos o mais próximo possível de seu estilo de vida ancestral.” (SALGADO, 2013. p.7-8). 5 Figura 1 – Os Mentawai, Indonésia – Xamã preparando um filtro para sagu. Fonte: SALGADO, 2013. p.207 A figura 1 apresenta um xamã preparando um filtro para sagu, na Ilha Suberut, Sumatra Ocidental, Indonésia, março de 2008. O que chama a atenção, nesta fotografia, é ter sido feita sobre um fundo infinito, com uma luz difusa, muito bem distribuída e controlada o que sugere ter sido obtida dentro de um estúdio e não em plena floresta. Só estão presentes na imagem o modelo com seus ornamentos e o material para a confecção do filtro de sagu, como se o fotógrafo tivesse recortado do ambiente somente o que lhe interessava retratar. Figura 2 – Papua-Nova Guiné Fonte: SALGADO, 2013. p.198-199 e 200 respectivamente. A figura 2 apresenta duas fotografias de Papua-Nova Guiné, também, apresentam os modelos sobre fundo infinito escuro, com um controle muito preciso da luz que ilumina de maneira suave realçando as texturas, oferecendo volume às imagens. Os modelos são apresentados ornamentados, os primeiros em ação tocando suas flautas, todos com expressões fortes e olhares penetrantes. Chama muita a atenção seus olhos. Parecem denunciar certo desconforto e tensão. Figura 3 – Os idígenas do Alto Xingu – Retrato de todos os xamãs kamayura. Fonte: SALGADO, 2013. p.476-477 A mesma estratégia repete-se na Amazônia, com os idígenas do Alto Xingu – Retrato de todos os xamãs kamayura – figura 3. Aqui Sebastião Salgado declara a estratégia ao chamar a fotografia de “retrato”. Todas estas imagens até agora apresentadas são de fato retratos feitos de uma maneira muito parecida com os retratos do século XIX, ou seja, cenas 6 posadas, com os modelos devidamente caracterizados e/ou desenvolvendo suas atividades e, portanto, oferecendo as mesmas discussões teóricas. Figura 4 – A tribo dos Zo’é – Mulheres usando o urucum. Fonte: SALGADO, 2013. p.462-463 A figura 4 - A tribo dos Zo’é – Mulheres usando o urucum – foi, também, obtida em um tipo de estúdio fotográfico, porem este “estúdio” parece camuflado pela utilização no fundo infinito de folhas de palmeiras. Este recurso, também é encontrado em diversas fotografias o que dificulta a percepção do estúdio e torna mais difícil a percepção do nível de construção da cena fotografada pelo leitor mais distraído e desavisado. 7 Figura 5 – Os Mentawai, Indonésia – Homem-lama Fonte: SALGADO, 2013. p.205 A figura 5 – Os Mentawai, de Papua-Nova Guiné - Indonésia – “Homem-lama está entre as figuras mais impressionantes do imaginativo mundo dos planaltos”. (SALGADO, 2013. Encarte p. 12) Nesta fotografia o que chama a atenção é a pose estática, aos moldes das fotos dos primórdios da fotografia, com um tempo de exposição prolongado. A água borrada da cachoeira e do córrego de água confirmar a necessidade de um tempo prolongado de exposição. Esta estratégia obrigou o nativo a uma pose estática por um tempo significativo. Sem uma cumplicidade fotógrafo/modelo isto não teria sido possível o que tira a naturalidade da cena e coloca em dúvida o grau de realismo: se era um momento “natural” deste grupo de indivíduos ou se é uma cena do “mundo imaginativo do fotógrafo”. 8 Figura 6 – Os Himba - África Fonte: SALGADO, 2013. p.264-265 Figura 7 – As tribos do vale inferior do Omo - Etiópia Fonte: SALGADO, 2013. p.309 9 Figura 8 – As tribos do vale inferior do Omo – Etiópia – As mulheres mursi e surma. Fonte: SALGADO, 2013. p.312-313 As figuras 6, 7 e 8 são retratos em espaços abertos, mas que mantém o conceito de retrato posado, que de acordo com Barthes: ... se cruzam, se confrontam e se deformam quatro imaginários. Perante a objetiva, eu sou simultaneamente aquele que eu julgo ser, aquele que eu gostaria que os outros julgassem que eu fosse, aquele que o fotógrafo julga que eu sou e aquele de quem ele se serve para exibir a sua arte. (2008. p. 21-22) A figura 6 apresenta, em um plano de fundo desfocado, cabras sugerindo um ofício aos modelos, mostrados no primeiro plano. Sugere ser mãe e filhos o que nem na legenda é esclarecido, mas mostra uma mulher com fisionomia forte, seios a vista e uma vestimenta carregada de ornamentos, que aos moldes das fotografias do século XIX pode ser um traje de festa ou melhor do o utilizado no cotidiano. As crianças se mostram de maneira mais natural, sem que se deixe de perceber algum constrangimento que não parece ser por alguma repreenda da mulher. A figura 7 apresentam um retrato quase abstrato onde parece mais importante a forma construída pelo adorno de cabeça e o adorno da boca. A face se desconstrói pela deformação e o grau de importância dos elementos de adorno colocados dentro de quadro. O fundo desfocado aumenta o ponto focal para o modelo que é contraposto a um tronco retorcido. Já a figura 8 apresenta duas mulheres com seus adornos e uma postura e olhares que remete às revistas masculinas pela tentativa de sensualidade. Chama à atenção a limpeza da pele, dos panos brancos e dos adornos de boca. O fundo desfocado realça os modelos e o tronco de árvore que parece marcar a linha de simetria da fotografia. É importante salientar que as considerações apresentadas acima levam em conta, pelo menos, códigos técnicos e socioculturais do pesquisador e pode – ou deverá – haver divergências e discordâncias destas analises o que não tira o valor desta demonstração. Verdade ou ficção? “Genisis” é uma coleção de fotografias que, como é a intenção do autor, conta uma história, mas que história? Qual o grau de verdade e de fantasia ela contém? Quanto pode ser atribuído a ela de valor documental ou de valor artístico? Este é o ponto focal deste trabalho e que parece depender em grande parte da intenção e objetivo do fotógrafo/operador e da capacidade de leitura do espectador. O Spectator de Barthes que experimenta e olha e que é qualquer pessoa “que consulta nas revistas, nos livros, álbuns e arquivos, nas coleções de fotografias” (2008. p. 17) e que vai acreditar ou não na veracidade do que a fotografia conta. Conforme Rouillé, a verdade ou a ficção é uma construção que pode variar, ao depender do leitor e de sues códigos e crenças: O verdadeiro não é uma segunda natureza da fotografia: é somente efeito de uma crença que, em um momento preciso da história do mundo e das imagens, se ancora em práticas e formas cujo suporte é um dispositivo. O verdadeiro da fotografia-documento se estabelece pela diferença na 10 comparação, de um lado, com o verdadeiro da pintura ou do desenho, e, de outro, com o da fotografia artística. As formas fotográficas do verdadeiro tendem a confundir-se com as formas do útil. (ROUILLÉ, 2009. p.83) Uma mesma fotografia pode ser apenas lida como um “instantâneo” simples sem muitas pretensões apenas por sua beleza aparente, ou lida a fundo em sua potencialidade de oferecer informações. Da coisa à imagem, o caminho nunca é reto, como creem os empiristas e como queriam os enunciados do verdadeiro fotográfico. [...] A imagem é tanto a impressão (física) da coisa como o produto (técnico) do dispositivo, e o efeito (estético) do processo fotográfico. [...] A imagem constrói-se no decorrer de uma sucessão estabelecida de etapas (o ponto de vista, o enquadramento, a tomada, o negativo, a tiragem, etc.), através de um conjunto de códigos de transcrição da realidade empírica: códigos ópticos (a perspectiva), códigos técnicos (inscritos nos produtos e nos aparelhos), códigos estéticos (o plano e os enquadramentos, o ponto de vista, a luz, etc.), códigos ideológicos, etc. (2009. p.79) Documento e arte: duas faces da fotografia A fotografia sempre traz em sua essência traços de sua dupla origem: no aparato tecnológico físico/químico, as regras e demandas da óptica e da química, e das artes, a subjetividade do olhar sempre presente no ato fotográfico. Apesar da presunção de veracidade que confere autoridade, interesse e sedução a todas as fotos, a obra que os fotógrafos produzem não constitui uma exceção genérica ao comércio usualmente nebuloso entre arte e verdade. Mesmo quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a realidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de consciência. (SONTAG, 2004. p. 13) Nos seus primórdios a fotografia baseia “seu caráter de imagem-máquina, à parte que, sem precedentes, a tecnologia ocupa em suas imagens” (ROUILLÉ, 2009. p.31). Nesta época se vangloriava de retirar a mão do artista do processo de registro. Jules Janin, em 1839, proclama: “Nenhuma mão humana poderia desenhar como o sol desenha” (in ROUILLÉ, 2009. p.33). O que parecia fantástico: um processo de registro sem a necessidade da mão humana não considerava, entretanto, com a importância do operador no ato fotográfico, ou seja, a mão humana apenas trocou de lugar: não se coloca mais entre o modelo e a tela, mas comanda toda a ação pelo buraco da câmera escura por traz do plano onde a imagem acontece. Nesta posição ele escolhe ângulos, decide pelo que fica e o que sai de quadro e compõe a imagem dentro de regras compositivas, se isso ele desejar. Discorda-se, então, de Rouillé que desqualifica o 11 operador perante o artista: “Além disso, o olho do especialista não é o olho do pintor.” (ROUILLÉ, 2009. p.41) Não considerando que muitos dos primeiros “operadores” foram artistas que ao perderem seus ofícios se aliam às inovações. Entretanto, concorda-se com Rouillé que ficará sempre ligada, à fotografia, a dicotomia: “De um lado, a representação, o ícone, a imitação; do outro, o registro, o índice, o rastro. E um conjunto de oposições binárias: o artista e o operador; as artes liberais e as artes mecânicas; a originalidade da obra, contra a similaridade e a multiplicidade das provas.” (2009. p.17) Rouillé tem uma posição curiosa para defender a diferença entre a fotografia e a arte ao se basear na questão da hierarquização. “A fotografia não hierarquiza, seu olhar sobre o mundo é democrático: para ela, todas as coisas são iguais.” (2009. p.57) e coloca esta condição para afastar a fotografia das artes ao afirmar: Mas o que, em definitivo, afasta radicalmente a fotografia da arte é que, em todos os níveis, ‘o acessório á tão capital quanto o principal’, é o processo não estabelecer nenhuma hierarquia: nem entre os objetos registrados, nem entre os detalhes reproduzidos, nem entre as bordas e o centro da imagem.” (ROUILLÉ, 2009. p.85) E complementa relacionando a fotografia com o desenho: “A fotografia dá não somente o que o próprio autor viu e quis representar, mas tudo o que é realmente visível no objeto reproduzido. Logo, a fotografia e o desenho não se equivalem. Enquanto a fotografia reproduz todo o visível, visto ou não visto, sem seleção e sem perda, o desenhista representa apenas um aspecto restrito: o que consegue perceber, o que ele quer reter.” (2009. p.41) Esta posição de Rouillé parece da falta de uma vivência prática com o ato fotográfico, pois há limitações no registro fotográfico que não permitem que todo o universo visível seja apresentado “todo o visível de forma igual”. Conforme Vieira (2012. p. 111-206) descreve no item 3.4 - As variáveis no ato fotográfico, há diversas discrepâncias e diferenças entre o que a câmera registra e o que o olho humano vê. Já Benjamin constatava que “A natureza que fala com a câmera é distinta da que fala ao olho” (2008, p. 26). Para dar apenas um exemplo ilustrativo: a fotografia não é capaz de registrar em uma mesma imagem grandes variações de luz, ou seja, em uma foto obtida com uma fotometragem média, da luz refletida pelos objetos vão ficar sem leitura nas altas luzes e nas zonas muito sombreadas (as baixas luzes), o que era explorada de maneira primorosa por Ansel Adams e Sebastião Salgado, mesmo referindo à 12 quantidade de imagens que ele perdeu em situações com pouca iluminação (2014. p. 118). Estas peculiaridades no registro da cena permite ao fotógrafo hierarquizar os objetos registrados, contrariamente ao que Rouillé afirma e derruba de certa forma a não equivalência entre a fotografia e outras formas de representação, como o desenho e a pintura. Há como hierarquizar os objetos na fotografia de maneira diferente do desenho, mas há esta possibilidade. Entretanto, haverá situações onde o desenho, ou em outros onde a fotografia resultará em melhores registros das cenas pelas características especificas de cada caso. Rouillé é em parte confuso ao apresentar seus argumento, pois alterna pontos controversos a respeito da capacidade da fotografia de representar o real e seu caráter de verdade ao afirmar também que: “...o importante é como a imagem produz o real. O que equivale a defender a relativa autonomia das imagens e de suas formas perante os referentes, e reavaliar o papel da escrita em face do registro.” (2009. p.18) Documento e expressão Rouillé propõe como base na discussão de seu livro Fotografia entre documento e arte contemporânea uma diferenciação entre o que ele denomina de fotografiadocumento e a fotografia-expressão, a saber: Fotografia-documento: O valor documental que, longe de ser fixo ou absoluto, deve ser apreciado por sua variabilidade no âmbito de um regime de verdade – o regime documental. O valor documental da imagem baseia-se em seu dispositivo técnico, mas não é garantido por ele, pois varia em função das condições de recepção da imagem e das crenças que existem a respeito. Fotografia-expressão: a fotografia em seu aspecto expressivo, que durante muito tempo, esteve escondido ou foi rejeitado. (2009. p.27-28) Rouillé apresenta dois usos da fotografia no qual um sucede o outro dentro de uma evolução histórica. Parece que Sebastião Salgado derruba esta evolução linear com sua “História fotográfica Genisis”, na qual ele volta aos lugares, personagens e protocolos anteriores e mesmo assim satisfaz e surpreende seus públicos. Lembrando que Barthes (2008. p. 12) já alertava para a dificuldade de classificar a fotografia uma vez que ela “esquiva-se” destas tentativas. Para nossos objetivos de entender a fotografia e seus usos uma taxionomia baseada em “tipos pontuais” – fotografia-documento, fotografia-expressão, fotografia-artística – em uma classificação unitária não é tão potente quanto uma classificação em escalas variáveis de uso. Como, 13 por exemplo, Vieira (2012. p. 276-289) propôs para uma taxonomia da fotografia de arquitetura que apresenta uma escala onde em cada ponto extremo está um tipo de uso (fotografia de representação arquitetônica e fotografia de expressão arquitetônica) e que cada fotografia pode conter uma parcela de cada tipo variando com seu uso, utilidade e finalidade de aproveitamento. No caso das fotografias de Sebastião Salgado na coleção Genisis, por exemplo, elas podem ter um valor artístico para um leitor leigo, pode ter um valor histórico e assim documental para um pesquisador daquela região ou povo e um valor de expressão para alguém que pesquise as estratégias de obtenção das imagens pelo seu autor. Fotografia-documento como elemento autônomo: a arte no documento Cattani (2010) fala do desenho como elemento autônomo em relação ao que representa e apresenta uma linha de raciocínio capaz de abarcar, também, a possibilidade da fotografia-documento tornar-se um elemento autônomo em relação ao seu referente. Assim Cattani argumenta: Mas assim como a maquete pode adquirir autonomia em relação ao que representa, colocando-se em um patamar de obra de arte autônoma, o mesmo pode acontecer com o desenho, sobretudo os croquis de estudo de caráter marcadamente autoral. Prova disso é a quantidade de desenhos de arquitetos que são motivo de exposições, livros, mostras e vendas. Deste modo, fica evidente a dupla natureza do desenho de arquitetura: de um lado, instrumento objetivo de controle de definição de espaços construídos e processos construtivos; de outro, instrumento de investigação, divagação, pesquisa, invenção, criação, arte. (2010. p. 16-17) Nesta mesma abordagem, aplicada às fotografias de Sebastião Salgado, é possível afirmar que por possuírem “caráter marcadamente autoral”: “Minha fotografia não é objetiva. Como todos os fotógrafos, fotografo em função de mim mesmo, daquilo que me passa pela cabeça, daquilo que estou vivendo e pensando.” (SALGADO, 2014. p.47 - Grifo do pesquisador). Pode-se assim atribuir, também, a “dupla natureza” à sua fotografia: valor documental e valor artístico. Validando na proposta de Cattani pelo seu meio de exibição (exposições) e seu consumo (por museus e colecionadores). “Os escritores relatam com suas penas, eu relatava com minhas câmeras. A fotografia é para mim uma escrita.” (SALGADO, 2014. p.43) 14 Considerações finais A fotografia é um ato vinculado a uma relação entre o fotógrafo, sua câmera e o modelo que será lida por um terceiro: o leitor. Em que grau cada parte será atribuído de importância dependerá de uma diversidade de intencionalidades possíveis motivadoras do ato fotográfico e sua decifração. Flusser afirma que “o significado decifrado será, pois, o resultado de síntese entre duas intencionalidades: a do emissor e a do receptor” (2002, p. 8). Aparentemente, a intenção de registro do modelo pode não ser mais o objetivo primário. As ambições do fotógrafo de pretender se afirmar como artista, a necessidade de demonstração da capacidade de controle e esgotamento das potencialidades da câmera, as demandas visuais de um publico viciado em imagens diferentes, impactantes, surpreendentes parecem superar a demanda por um registro mais preciso do modelo. Sebastião Salgado com suas “histórias fotográficas” “nos ensina um novo código visual, onde as fotos modificam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar.” (SONTAG, 2004. p. 13) A obra de Sebastião Salgado, enfim, demonstra que a fotografia pode transitar por vários universos distintos tais como a objetividade da informação documental e a subjetividade da arte sem necessariamente sofrer grandes modificações aparentes. A mesma imagem pode servir a dois mundos, então pode servir a dois senhores. Há obviamente que se ter, como leitor/espectador, a consciência de que se trata sempre de uma representação, que ali esta a mão do fotógrafo que interviu na realidade que buscou seu olhar sobre o mundo visível: “Minhas fotos foram tiradas porque pensei que o mundo inteiro devia saber. É meu ponto de vista, mas não obrigo ninguém a vê-las.” (SALGADO, 2014. p.94) 15 Referências BARTHES, Roland. A câmera clara: notas sobre a fotografia. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008. BENJAMIN, Walter. Sobre la fotografia. 4 ed. Valencia, Espanha:Pre-textos, 2008. CATTANI, Airton. Sistemas de representação em arquitetura. Relatório de estágio pós-doutoral junto ao Centre d’Archives d’Architecture du XXe siècle da Cite de l’Architecture et du Patrimoine. Paris, 2010. Texto inédito. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008. ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea; tradução Constancia Egrejas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009. SALGADO, Sebastião. Genisis. Italia: Taschen, 2013. SALGADO, Sebastião, FRANCQ, Isabelle. Da minha terra a Terra; tradução Julia da Rosa Simões – 1. Ed. São Paulo: Paralela, 2014. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. 3 ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2007. VIEIRA, César Bastos de Mattos. A fotografia na percepção da arquitetura. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Repositório Digital – UFRGS Linck: http://hdl.handle.net/10183/53735 16