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Escrita Pedro 7

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Um cão, apenas
Cecília Meireles
Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor,
de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus
pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o
seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido;
gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que
há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não
lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele
estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos
dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...
Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves:
acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera
de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocuparme dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um
tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava
na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido
olhar numa espécie de súplica.
Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana
infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.
Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida
sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas
rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito,
até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo,
desapareceu.
Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem
destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas
inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o,
apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim,
humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter
ocupado um lugar que não era o seu.
Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há
o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.
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Café, chá e abstrações
Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 9 de julho de 1998
Um dos costumes temíveis que a cultura norte-americana transmitiu ao mundo é a crença literal
em certas metáforas científicas que, entrando na linguagem corrente, acabam por deformar a
percepção da realidade e perverter todas as relações humanas.
Arrastadas pela credibilidade aparente dos termos, as pessoas adquirem novos padrões de
julgamento que, reputados capazes de lhes dar a correta medida do mundo, na verdade as
instalam num reino de fantasias e de puro nonsense .
Comecei a pensar nisso quando, em Bloomington, Indiana, vendo que eu tomava minha segunda
xícara de café sucessiva na intenção de adoçar o paladar para um charuto, um cidadão local
observou que meu organismo se afeiçoara a determinada quantidade de cafeína, já não
podendo viver sem ela.
– Um momento, respondi. – Quem toma cafeína é americano. Eu tomo é café.
– E que diferença faz?
– A diferença é que, se a cafeína como tal servisse de antepasto ao charuto, eu poderia tomar
chá, que às vezes a tem em quantidades maiores. No entanto abomino chá.
– Isso é subjetivo, protestou o meu interlocutor. Bioquimicamente, café e chá são a mesma
coisa.
– Com todo o respeito, meu amigo: subjetiva é a distinção entre o aspecto bioquímico e o
restante da minha pessoa. Afinal, quem toma café não é a minha bioquímica: sou eu.
Bioquimicamente café pode ser chá, mas não tem o mesmo sabor, o mesmo aroma nem as
mesmas evocações de infância, o mesmo gosto daquelas longas noites do interior, ao pé do
fogo, ouvindo histórias de assombrações. Nenhum inglês vai trocar por café o seu chá, sob a
alegação de que é também cafeína. E os beduínos achariam ridículo tomar chá em vez daquele
seu café amargo e denso, com pó no fundo.
– São meras diferenças pessoais e culturais.
– Sim, mas é em busca dessas diferenças, e não do mero efeito bioquímico, que um sujeito toma
café ou chá. Se o importante fosse o efeito bioquímico, as diferenças que você chama de
culturais não teriam razão de ser, e as bebidas poderiam ser trocadas sem que ninguém desse
pela coisa.
– Por que então os cafeinômanos não aceitam café descafeinado?
– Primeiro porque não tem gosto de café, segundo porque está escrito no rótulo:
“Descafeinado”, o que significa que se bebe por medo de morrer, não por prazer de viver.
Não logrei convencer o meu amigo americano.
Mas, se a conversa não fosse sobre bebidas, daria na mesma. O americano, quando agarra uma
mulher pelada, acredita ser um bicho em busca de orgasmo, efeito que poderia ser obtido mais
facilmente por meios manuais ou eletrônicos, se não fosse as tais “diferenças subjetivas” que a
nossos olhos separam, por exemplo, uma bela atriz de 20 anos de uma provecta professora.
A crença em que o ponto de vista científico é mais válido, mais veraz do que as motivações
pessoais com que explicamos nossas ações espontaneamente incorporou-se de tal modo à
mentalidade corrente, que hoje substitui as percepções diretas, depreciadas como preconceitos
de velhos caipiras. A americanização da cultura mundial deixa prever que esse hábito
contaminará todos os povos, todas as culturas, acabando por se tornar o critério decisivo nos
debates públicos e nas disputas privadas entre marido e mulher, entre pai e filho, em que cada
um, em lugar de expressar seus sentimentos, cada vez mais os racionalizará com argumentos
postiços de origem científica.
O problema é que tudo isso vem de uma visão fetichizada – e, esta sim, profundamente caipira
– do que seja a ciência. O ponto de vista de uma determinada ciência sobre a realidade é sempre
um recorte parcial e hipotético, que só pode valer para os propósitos limitados dessa ciência,
jamais para a generalidade do conhecimento. Mesmo porque as ciências são muitas e ninguém
sabe articular os pontos de vista de todas para criar, acima da realidade comum, uma suprarealidade mais verdadeira. Bioquimicamente, tomar café ou chá é uma carência de cafeína, mas
do ponto de vista econômico é um padrão de consumo determinado por um marketing que
independe totalmente da composição real dessas substâncias, enquanto que,
antropologicamente, pode ser um hábito cultural que resistiria mesmo à propaganda adversa
(como aliás acontece com o fumo). Ninguém pode sintetizar, numa teoria única, a bioquímica,
a economia e a antropologia do café ou do chá; no entanto essa síntese é precisamente aquilo
que cada um de nós realiza inocentemente, sem poder expressá-la em palavras, cada vez que
toma, com gosto, seu café ou seu chá. Aqui estamos em plena vida real, o Lebenswelt de Husserl,
ao qual à ciência – cada ciência ou o conjunto delas – só pode se referir de maneira indireta e
alusiva, impotente para dar conta de um único fato concreto , com toda a densidade das
determinações inseparáveis que o constituem. Eis então que o antigo apego norte-americano
aos hard facts se tornou hoje apenas um fingimento retórico, que oculta uma secreta devoção
a esquemas e teorias sofisticados e artificiosos, nostalgia de uma onipotência mental de
adolescentes e prenúncio do Brave New World em que viveremos no século 21.
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Nelson Rodrigues: A menina sem estrela, 3
1 Claro que o sujeito, seja ele um homem de bem ou um pulha, é um assassino falhado. Não há
ninguém, vivo ou morto, que não tenha concebido a sua fantasia homicida. O melhor de nós já
pensou em matar e já se imaginou matando etc. etc. (Aliás, envergonha-me estar aqui
proclamando o óbvio.) No dia em que Getúlio morreu, vi meu colega Albert Laurence irromper
na Última Hora, atropelando as cadeiras como um centauro truculento. Crispou a mão no meu
braço e me disse, com o olhar vazando luz: — “Eu vou matar Carlos Lacerda! Eu vou matar Carlos
Lacerda!”.
2 Admirável Laurence! Francês e, se não me engano, de Marselha, era de uma emotividade de
modinha antiga. Seu fervor assassino durou, se tanto, 24 horas. Dois, três dias depois, voltou a
ser o mesmo enamorado de nossos clássicos e de nossas peladas. Mas como ia dizendo: — no
dia em que Getúlio se matou, milhões de brasileiros assassinaram Carlos Lacerda. Eu próprio
atendi, na Última Hora, cinqüenta telefonemas. O ódio vinha aos soluços: — “Eu vou matar
Carlos Lacerda!”. E eram homens, senhoras, velhinhas.
3 Assim fui eu com Olegário Mariano. Durante o bate-boca, ele me matou e eu a ele. E tudo por
quê? O que ainda hoje me assombra e me dilacera é o motivo espantosamente imbecil. Eis o
fato: — minha peça Senhora dos afogados fora interditada. Recorri ao então chefe de polícia,
general Lima Câmara. Homem de temperamento forte, ele foi comigo, e com minha peça, um
doce, um terno. Pedi uma comissão de intelectuais, cujo parecer salvaria ou não Senhora dos
afogados.
Indiquei nomes, que o general aceitou. Olegário fora uma das minhas sugestões. Gilberto Freyre,
outra. Muito bem: — Olegário votou contra, vejam vocês, contra (Gilberto a favor).
4 Tomei um baque quando vi o parecer da comissão: — a maioria estava com a polícia. Há, no
meu texto, três ou quatro cenas fortes. Fortes por absoluta necessidade psicológica e dramática.
E ai de mim! O nosso literato age e reage diante do sexo como uma Bernarda Alba. Sofrendo na
carne e na alma, dei uma entrevista feroz e fiz uma alusão grosseira a Olegário. De noite, ele
bate o telefone para minha casa. Começou assim: — “Nelson, você é um cafajeste!”. Por minha
vez, subi a serra: — “Cafajeste é você!”.
5 O resto veio numa progressão fulminante. Falamos em “tiro na boca”, em “te quebro a cara”
etc. etc. Hoje, com Olegário morto, confesso: — eu não tinha razão. Olegário só podia votar
contra. Ele seria um pulha se admitisse tal peça. Eu era o anti-Olegário, Senhora dos afogados
era a anti-Olegário. Imaginem que, na peça, um personagem fazia a apologia dos “eczemas da
avó”. Ora, o único, na comissão, sem preconceito contra eczema era Gilberto Freyre. Dois anos
antes, a polícia interditara outro original meu: — Álbum de família. E o dr. Alceu Amoroso Lima
assumiu a corajosa defesa da polícia. Sim, o Tristão aplaudiu a polícia e quase pediu bis como na
ópera. Também estava certo. Eu sou, e serei, do berço ao túmulo, o anti-Alceu.
6 Saí do telefone, exausto de odiar. Mas, por toda a noite, minha casa ficou ressoante do berro:
— “Eu te matei a fome! Eu te matei a fome!”. Trinta e tantos anos já passaram. Eis o que me
pergunto: — por que dei a tal entrevista e por que não aceitei um voto de uma honradez
exemplar? Não quis ver que aquele sujeito ululante era o mesmo que há trinta e tantos anos
estava no cais; e me carregou no colo; e nos deu mesa, cama e teto. Doce poeta! Foi um dos
homens mais bonitos e mais amados do Brasil. Mesmo velho, ainda inspirava paixões. Disse que
me matara a fome. Então, eu penso em Os Maias. Você me deu, sim, uma fatia de pão e um
pouco de manteiga para lhe barrar por cima. Perdão, Olegário, eu sou uma boa besta.
7 Da casa do poeta não me lembro de nada. Minto: — me lembro de um pé de jambo, junto ao
muro, e só. Passamos lá vinte dias, um mês e, depois, fomos morar na rua Alegre, ao lado de
uma farmácia. Aluguel de cento e vinte mil-réis por mês. Amigos de meu pai fizeram uma
vaquinha para comprar um mínimo de mobiliário.
Eu me lembro do nosso jantar, na nova casa. Veio uma marmita de pensão e toda a família se
reuniu em torno de um caixote. De repente, rompe, no gramofone do vizinho, a valsa do “Conde
de Luxemburgo”. Foi com Franz Lehar que comecei a ouvir o mundo. A partir da opereta, tudo
começou a falar. Eu escutava. Ouvia a voz do meu pai, de minha mãe; os galos cantavam; os
passarinhos. Instalava-se uma fauna misteriosa e triste de ruídos noturnos. Uma vez, acordei de
madrugada e fiquei escutando: — gargalhadas cínicas atravessavam a noite.
8 Nos primeiros tempos de Aldeia Campista não tínhamos empregada. Minha mãe precisou ir
para a cozinha, para o tanque; fazia todo o serviço, varria, espanava. Milton e Roberto, os mais
velhos, tomavam conta dos menores. De vez em quando, a vizinha tocava o “Conde de
Luxemburgo”. E então minha mãe valsava, sozinha. E, nesse momento, ela se dilacerava de
felicidade. Continuei descobrindo as coisas: — o céu, a folha de tinhorão, a morte e o sexo. Uma
das minhas lembranças de Aldeia Campista é a seguinte: — manhã ou tarde de chuva. Eu estava
olhando um pé de tinhorão plantado numa lata de banha. Era garoto de pé no chão e calça
furada. Fiquei, ali, um tempo infinito, espiando o tinhorão bebendo chuva. Uma gota caía em
cima da mesma folha, com obtusa monotonia. E aquilo me deslumbrava.
9 Mas o que gostaria de contar é, se assim posso dizer, o meu primeiro feito erótico. Como
aconteceu, com quem aconteceu ou quando aconteceu, não sei. Palavra de honra, até hoje não
sei. Um dia minha mãe estava na cozinha, quando entra uma vizinha, uma tal de d. Maria. Davase muito lá em casa, emprestava sal, açúcar, farinha, e era gorda como uma viúva machadiana.
Maria chegou ventando fogo por todas as narinas. Entre parênteses, a santa senhora tinha uma
filha única, menor do que eu, de bracinhos diáfanos e um respiro de passarinho.
A vizinha foi entrando e dizendo tudo:
— D. Ester, qualquer filho seu pode entrar na minha casa. Menos o Nelson. Desculpe, mas o
Nelson, não.
Eu, não. Vejam vocês: — hoje, alguém poderia dizer, sem violentar a verdade: — “Proibido de
entrar em casa de família aos quatro anos de idade”. Mas o que é que eu fiz? Estou vendo a
menina, que seria minha vítima, com sua lancinante fragilidade. Ainda por cima, tinha asma; e,
nas crises, seus olhos se tornavam estrábicos de asfixia. Se Deus entrasse na minha sala e
perguntasse: — “O que é que você fez? Conta pra mim. O que é que você fez?”, continuaria
respondendo: — “Não sei”. Deve ter sido um ultraje, uma coisa iníqua, abominável, à altura de
tamanha indignação materna. Seja como for, o pecado é anterior à memória.
10 Toda infância é varrida de tias. Umas mais velhas, outras mais moças. Muitas vezes, eu
chegava em casa e caía sobre mim aquela saraivada de tias. Quando fui para a escola pública,
uma tia me levava, outra me trazia. Mas não era bem isso que queria dizer. O que queria dizer
é que, até certa idade, o menino tem uma certa semelhança com o Demétrio, pai dos
Karamazov. Como se sabe, para o velho bandalho, não há mulher feia. Qualquer uma tem um
charme, uma graça, uma beleza, secreta ou ostensiva. Eu, menino, até os sete anos, também via
as mulheres sem nenhum cuidado seletivo. Achava todas lindas, fabulosas, fossem brancas,
pretas, tordilhas, gordas etc. etc. A gravidez parecia-me de um gosto esplêndido, com aquele
barrigão.
11 Até que, aos sete anos, vi, pela primeira vez, uma mulher nua. Aquilo ia influir por toda a
minha vida.
(18/2/1967)
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Democracia militante
Pablo Ortellado
No curto prazo, o golpismo dos grupos antidemocráticos acampados nos quartéis será
derrotado — não há dúvida disso. Mas, no médio prazo, a aspiração revolucionária dos grupos
de extrema direita é um perigo que não deve ser subestimado. Se não agirmos para criar
instrumentos capazes de defender a democracia com firmeza, eles se aproveitarão das
liberdades constitucionais para derrubá-la na primeira oportunidade. Por isso a estratégia
adotada pela Justiça de criar mecanismos defensivos inspirados na teoria da “democracia
militante” precisa ser adotada também pelos outros Poderes.
O enfrentamento do movimento golpista é feito hoje praticamente apenas pela Justiça:
Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com base nos inquéritos dos
atos antidemocráticos e numa resolução normativa do TSE, a Justiça tem investigado e prendido
suspeitos de arquitetar ações para desafiar o resultado das eleições e derrubar o regime
democrático, bloqueado grupos de Telegram e WhatsApp e contas nas mídias sociais que
também têm pregado a derrubada do regime.
Essa defesa, porém, está assentada em bases jurídicas frágeis. O inquérito do STF é criticado por
muitos juristas por ter sido aberto “de ofício”, com base numa interpretação extensiva do que
seria uma infração cometida na sede do tribunal. Também é criticado por misturar papéis, já
que, nele, o STF é vítima, investigador, acusador e juiz. E a resolução do TSE é criticada por ser
muito ampla e ser usada muito tempo depois de concluídas as eleições.
Embora as medidas sejam defensáveis, tanto do ponto de vista jurídico quanto político, suas
fragilidades são exploradas pelos grupos antidemocráticos para desqualificar a ação da Justiça e
alimentar delírios de que vivemos numa “ditadura comunista” do Judiciário. Além disso, as
medidas concentram muito poder nas mãos de um único juiz, o ministro Alexandre de Moraes,
que preside o inquérito no STF e é também presidente do TSE. Essa concentração de poderes
extraordinários nas mãos de uma única pessoa não é saudável e é muito perigosa.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo mostrou como as ações de Moraes têm sido respaldadas
por outros ministros, invocando a teoria da “democracia militante”, conceito forjado pelo jurista
alemão Karl Loewenstein para proteger a democracia liberal dos anos 1930 das ameaças de
grupos fascistas.
Segundo Loewenstein, os fascistas exploram as liberdades constitucionais para propagar ideias
antidemocráticas e se organizar para derrubar o regime. Por isso a democracia deveria
desenvolver mecanismos de defesa, como leis impedindo que grupos políticos adotem
uniformes e portem armas, criando punições duras para a subversão da ordem democrática e,
no limite, banindo grupos cuja ideologia e visão de mundo não sejam compatíveis com o regime
democrático.
Os dois artigos clássicos de Loewenstein dão o que pensar e sugerem caminhos de ação para o
Brasil dos anos 2020. Nem sempre o paralelo entre a extrema direita de hoje e o fascismo dos
anos 1930 é perfeito, mas há muitas semelhanças. O jurista alemão observa que o fascismo não
tem exatamente um modelo de sociedade e que, por isso, se define mais por um conjunto de
técnicas de ação — são justamente essas ações que precisam ser bloqueadas por instrumentos
legislativos.
Sem dúvida, isso vale para o bolsonarismo. Ele tem se baseado na exploração de uma liberdade
de expressão pouco regulada, sobretudo nas mídias sociais, no acesso pouco controlado às
armas de fogo, na mobilização política das polícias e das Forças Armadas, em bloqueios de
estradas interrompendo o suprimento de bens essenciais e no questionamento, sem qualquer
embasamento, da lisura do processo eleitoral. Temos aí toda uma agenda legislativa
antiextremista para ser desenhada nos quatro anos de respiro pela frente.
Para que um conjunto amplo de leis antiextremistas seja aprovado, é preciso não apenas um
grande esforço pela construção de consenso entre as forças democráticas, mas também um
governo com credenciais democráticas impecáveis. Isso significa, entre outras coisas, que o
governo eleito precisará mudar seu discurso sobre os regimes não democráticos de esquerda.
Já não é mais suficiente dizer que esse é um assunto interno de cada país. É preciso afirmar com
clareza que uma ditadura de partido único como a de Cuba é um modelo político deplorável.
>>> NOTA: O primeiro parágrafo, presente na edição em papel, não aparece na versão digital.
- - - - - RUINS - - - - -
Judith Butler, tirado de http://www.denisdutton.com/bad_writing.htm
A passagem de uma explicação estruturalista em que se entende que o capital estrutura as
relações sociais em maneiras relativamente homólogas para uma visão da hegemonia em que
as relações de poder estão submetidas à repetição, à convergência, e à rearticulação trouxe a
questão da temporalidade para dentro do pensar da estrutura, e marcou uma mudança de uma
forma de teoria althusseriana que considera as totalidades estruturais como objetos teóricos
para uma forma em que as intuições sobre a possibilidade contingente da estrutura inauguram
uma concepção renovada da hegemonia como amarrada aos locais e às estratégias contingentes
da rearticulação do poder.
ORIGINAL:
The move from a structuralist account in which capital is understood to structure social relations
in relatively homologous ways to a view of hegemony in which power relations are subject to
repetition, convergence, and rearticulation brought the question of temporality into the
thinking of structure, and marked a shift from a form of Althusserian theory that takes structural
totalities as theoretical objects to one in which the insights into the contingent possibility of
structure inaugurate a renewed conception of hegemony as bound up with the contingent sites
and strategies of the rearticulation of power.
Paul
B.
Preciado,
«Dysphoria
mundi»,
Grasset,
https://twitter.com/EugenieBastie/status/1592172891004882944
lido
em
Ao contrário do que se poderia imaginar, a guerra atual na Ucrânia não remete à guerra fria,
mas exprime uma nova guerra quente: a das tecnologias farmacopornográficas de governo
petro-sexo-racial contra uma política de transição para um novo regime de produção e
reprodução da vida. Se, por um lado, as instâncias petro-sexo-raciais do poder recorrem aos
mitos nacionalistas e identitários e adotam as tecnologias digitais, bioquímicas e militares como
formas primárias de produção de valor e de controle dos corpos vivos, por outro esses mesmos
corpos subalternos aos quais o poder prega exclusivamente o trabalho, o consumo e a morte
inventam formas dissidentes de subjetivação e novos incômodos coletivos com outros corpos
humanos e não humanos e com as máquinas energéticas: o telefone celular, o computador, as
tecnologias biomoleculares.
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O Medalhão - Amanhã são décadas
Recolocar o país nos antigos trilhos já seria muito atualmente, mas seguramente insuficiente
diante dos desafios do porvir
Vivemos uma encruzilhada sobre o projeto de futuro que queremos para o país. Como disse
Nelson Rodrigues: “Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos”. Pois
desenvolvimento também não se improvisa, mas tampouco pode ser obra de séculos.
Desenvolvimento requer ciência, conhecimento de práticas, governança política e institucional,
e intencionalidade no desenho do projeto de futuro.
Deve ser uma tarefa desta geração para podermos sonhar e projetar o Brasil do futuro, ousado,
ambicioso, realista e democrático.
No entanto, as políticas públicas nas áreas de Meio Ambiente, Educação, Saúde, Assistência
Social, Cultura, Ciência e Tecnologia se encontram, nos últimos quatro anos, em um interregno.
Assoladas pela pandemia e pela inoperância do governo federal, regrediram em compasso com
o aumento da pobreza, da fome e do desemprego.
Não foi só retrocesso, mas também desmonte das políticas públicas com a intenção de reduzir
a participação e o diálogo, de se desvencilhar da ciência e das evidências empíricas e de impor
uma ótica não republicana, a favor do império de valores, costumes e opiniões de segmentos
específicos da sociedade.
Neste domingo, optaremos entre seguir com esse caminho que flerta com o autoritarismo ou
retomarmos a rota iniciada desde a redemocratização, em especial nos períodos em que
controlamos a inflação e, em seguida, retiramos 25 milhões de pessoas da pobreza.
Existe uma oportunidade e precisamos aproveitá-la, do contrário, uma parcela relevante da
sociedade poderá tornar-se estruturalmente pobre e excluída diante da transição demográfica.
Nessa direção, do ponto de vista das políticas públicas, é necessário restabelecer o pacto
federativo, com uma federação mais democrática, caracterizada pela ampliação de programas
governamentais eficazes e baseados em evidências científicas, bem desenhados e com controle
de consequências.
Adicionalmente, investir na qualificação da capacidade estatal da União, dos estados e dos
municípios com monitoramento e avaliação das políticas públicas, disponibilização de maior e
melhor financiamento federal e alinhamento estratégico entre as três esferas de governo.
Para tanto, é preciso vencer a dicotomia, sustentada nos últimos quatro anos, entre centralizar
ou descentralizar políticas públicas. O governo federal tentou desresponsabilizar-se no jogo de
coordenação e cooperação intergovernamental através de um posicionamento autocrático com
os demais poderes constitucionais e conflituoso com estados e municípios, dando origem a um
vácuo chamado de Federalismo Bolsonarista, conceito cunhado por Fernando Abrucio e
coautores, em artigo de 2020.
As transformações estruturais a serem colocadas em movimento necessitam também
reconhecer que a visão que sustenta o desmonte das políticas públicas e seus perversos efeitos
sobre os mais vulneráveis tem base social de apoio, derivada de alianças que mobilizam
contradições da sociedade, ressentimentos, e expectativas reacionárias sobre costumes, família
e religião, entre outros.
Mais ainda, a praça pública das redes sociais seguirá alimentada por usos deturpados e
manipuladores dos algoritmos, desinformação, cancelamentos e ativa arena de ódios.
Nesse contexto, podemos projetar nos médio e longo prazos a importância de uma agenda
comum de retomada de espaços para o diálogo em defesa da democracia. A amplitude do
espectro político de todos os envolvidos foi tamanha que oito ex-presidenciáveis chegaram a
reunir-se em campanha, renunciando às diferenças em prol da contenção de delírios
autoritários presentes no Palácio do Planalto.
Aqui abre-se a possibilidade do necessário caminho de concertação nacional que mobilize o
amplo espectro do campo democrático a serviço da democracia e de um projeto de
desenvolvimento sustentável com justiça social.
A questão chave é: recolocar o país nos antigos trilhos já seria muito atualmente, mas
seguramente insuficiente diante dos desafios do porvir. Distinto da evolução contínua e lenta
do período pós Constituição de 1988, temos apenas 20 anos para fugir da armadilha da renda
média e integrar a primeira liga dos países desenvolvidos nesta janela demográfica.
Assim, precisamos, simultaneamente, produzir novos trilhos e recolocar o trem em rota — agora
um trem de alta velocidade que acelere as transformações socioambientais em direção à
fronteira do conhecimento e convergindo ao ritmo dos países desenvolvidos.
Para fazê-lo, no entanto, será preciso um projeto de futuro ambicioso capaz de fazer do dia de
amanhã a abertura de um novo horizonte, e não um passo em direção a futuras décadas
perdidas.
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A Penteadeira Velha - A alegria é senhora: sobre o sentimento de tirar do poder um homem
atroz
Julián Fuks
Aquele exato momento de felicidade ninguém mais nos tira, aferrou-se no tempo, pertence
agora à história. Uma multidão embevecida de alegria, separada por paredes permeáveis,
explodindo em canto por toda parte, como se fosse o próprio júbilo a expulsar do poder o
homem atroz. Em cada riso a conflagração de outro riso, há muito prometido. Em cada abraço
a libertação do que antes só podia ser tímido, mera promessa desse abraço vindouro. Eis que o
futuro nos alcançava, o futuro respondia por fim a todo o nosso anseio, à nossa avidez por algum
alívio, o futuro nos devolvia o fôlego para o grito tantas vezes contido.
Pai, nunca vi os adultos tão felizes, foi o que disse a minha filha, e em seus olhos vi também uma
felicidade genuína, e tive certeza de que ela compreendia. Percebi ali, e voltei a perceber dias
adentro, o enorme peso que há tempos nos oprimia, a tristeza silenciosa que se escondia em
cada gesto, que discretamente nos consumia. Sobre tantas casas essa nuvem sinistra lançava
sua sombra, e agora subitamente o céu se abria, e mesmo a manhã nublada de segunda nos
trazia um horizonte límpido. Por anos, ser feliz neste país pareceu um ato insensato, uma
lamentável expressão de desconexão e insensibilidade. Agora, pelo tempo que durar, dá-se o
contrário: estar feliz torna-se o ato sensato, a expressão mais justa do sensível.
Claro, ninguém deixará de notar as tensões que ainda grassam no país, o choro dos equivocados,
a indignação dos brutos, dos que insistem em tentar impor sobre nós o seu arbítrio. O Brasil não
se cansa de mostrar sua face bárbara, e isso já poderia ser razão para reforçar pensamentos
infelizes. Mas neste momento a equação parece invertida: o inconformismo é a máxima
expressão de desconexão com o real, a mostra maior de alienação, e aos razoáveis nos resta a
calma, o equilíbrio e esta felicidade empedernida. Em país algum será imaginável uma felicidade
imaculada e plena: aqui há de nos bastar este núcleo de alegria intocada, mesmo que envolto
numa casca de ocorrências tristes.
Por longo tempo, jovem demais, estranhei a visão de felicidade que prevalecia em nossa cultura,
a recorrência da noção de uma felicidade efêmera, momento fugidio que mal faz estremecer a
dor contínua. "A tristeza é senhora", cantava João Gilberto, e eu cantava junto tentando
acompanhar seu ritmo impossível, mas acompanhando menos ainda o sentimento. Creio ter
sido esta a primeira metáfora que admirei na vida, e a primeira que descartei como imprecisa:
"A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor. Brilha tranquila, depois de leve
oscila, e cai como uma lágrima de amor." Essa mesma lágrima, essa lágrima de orvalho e de
amor, não seria, pelo contrário, a mais linda expressão da tristeza, ela sim breve e lírica?
Até ali a felicidade me parecia algo de mais amplo e mais calmo, a vasta floresta que contém
essa flor triste, por exemplo, apenas alterada por sobressaltos passageiros. E então eu vi, e
envelheci. Nestes últimos anos, nem sei dizer quantos, testemunhei muito mais do que gostaria
a incontível selvageria do país, e entendi enfim o que tantos poetas diziam, percebi como a
tristeza pode derrubar a floresta e se fazer senhora. É essa selvageria o que condena a felicidade
à impermanência, o que a torna tão inconstante, esquiva, inapreensível.
Mas agora não sei, sinto que rejuvenesço, e me encho ainda uma vez de otimismo e de imagens
ingênuas. Nesse novo futuro que se insinua à nossa frente, ainda aberto e indefinido, me
pergunto se não poderíamos construir um país em que a tristeza se mostre instável e
impermanente, e a alegria seja senhora. Se precisarmos de algum marco temporal que funde
essa nova época, sempre teremos a noite inesquecível de domingo, a noite em que a alegria
derrotou um tirano e o relegou ao silêncio, e o devolveu à sombra de onde ele nunca deveria
ter saído.
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Confuso - As marcas de um abuso emocional
Esse tipo de violência traz consequências das mais diversas, porque vai destruindo a vítima
silenciosamente
A agressão física contém o abuso emocional, uma vez que o (a) agressor (a) invade de forma
abrupta o corpo do outro, ultrapassando a barreira do limite físico, atingindo de forma
atropelada o mundo interno da vítima. As relações abusivas podem ocorrer entre colegas,
marido e mulher, parentes, namorados, pais e filhos etc.
Por agressão psicológica, podemos entender desvalorização, humilhação moral, ameaças,
manipulação, perseguição, insultos, chantagem, ridicularização, distorcer ou omitir fatos para
que a vítima fique confusa, vigilância constante, entre outras modalidades.
Toda agressão física é também um abuso psicológico, mas o mesmo não podemos dizer sobre o
abuso psicológico. Isso porque nem sempre o abuso psicológico é acompanhado da agressão
física. E, por não ficar evidente, esse tipo de violência traz consequências emocionais das mais
diversas, porque vai destruindo a vítima silenciosamente. A agressão física deixa marcas no
corpo que podem ser notadas, por isso é mais difícil de ser ignorada ou escondida.
O abuso psicológico, muitas vezes, é invisível aos olhos das pessoas mais próximas e até mesmo
da própria pessoa que sofre esse tipo de violência. A vítima fica em dúvida, confusa e, por isso,
é tão enigmático e complexo detectar. Muitos não buscam ajuda ou não consideram abuso por
não haver a agressão física.
Outras vezes, a pessoa consegue compreender que se trata de violência, mas tem dificuldade
de sair desse tipo de relação, devido ao vínculo de dependência emocional que se forma. Notase ainda que algumas vítimas se sentem fracassadas e envergonhadas quando rompem e
conseguem sair desse tipo de relacionamento.
Uma das dificuldades em entender o limite da relação, se é abuso ou não, se dá justamente
porque muitas vezes o agressor psicológico é sutil em sua atitude, faz pausas intermitentes em
que parece ser uma boa pessoa, mesclando com momentos de um relacionamento mais
saudável. Outro fator interessante, que precisa ser ressaltado, é o agressor tratar outras pessoas
com gentileza, reservando os aspectos mais agressivos para projetar na intimidade.
O comportamento gentil do agressor com os outros confunde a vítima e a faz se sentir
diminuída, desvalorizada, com sua autoestima agredida, chegando a duvidar de si.
Pessoas muito tolerantes que têm dificuldade em dizer “não”, ou aquelas que fazem tudo para
agradar ao outro, sem se preocupar consigo mesmas, são as mais propensas a esse tipo de
violência psicológica.
Algumas das sequelas causadas pela violência psicológica são estresse pós-traumático,
depressão, perda de autoestima e crises de ansiedade.
Quanto antes a vítima conseguir identificar a violência e buscar ajuda para se fortalecer, melhor,
pois levará um tempo para que esteja confiante novamente em outras relações. As marcas de
um abuso emocional podem permanecer para sempre.
*Renata Bento é psicanalista, psicóloga, membro associado da Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio, perita ad hoc do TJ-RJ e assistente técnica em processo judicial
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A Tarifa Zero já existe
Escandalizando o leitor desde o começo
(O Globo, 08/12/22)
A pandemia escancarou a falência do modelo de transporte público adotado no Brasil. A
despeito de ser um serviço de natureza essencial, os custos de sua operação são pagos com o
rateio das despesas entre os usuários. Com a falta de passageiros, o sistema se viu numa crise
financeira sem precedentes.
Fermenta nas cidades o debate sobre como financiar o serviço. O caminho natural tem sido o
subsídio público. Também surgem vozes e cidades defendendo e implantando a Tarifa Zero.
Não tem sido dito que, em todas as cidades brasileiras, a Tarifa Zero já é realidade.
Hoje de manhã, seu João, morador de Marechal Hermes, Zona Norte carioca, embarcou num
ônibus para chegar ao Engenho Novo, onde ganha a vida como trabalhador informal. Seu João
gastou R$ 8,10 para ir e voltar. Considerando que trabalha sete dias por semana, gasta 20% de
todo o seu rendimento nos deslocamentos.
Naquela mesma hora, doutor Paulo Roberto e sua SUV de quase duas toneladas partiram da
Barra da Tijuca, na Zona Oeste, em direção a seu escritório de advocacia, no Flamengo, Zona Sul.
Paulo Roberto nada pagou pelo deslocamento. A Prefeitura do Rio de Janeiro mantém o asfalto
das vias, os semáforos, as placas de trânsito e toda a engenharia por trás da instalação desses
equipamentos. Nessa viagem, doutor Paulo emitiu 45 vezes mais gás carbônico que seu João,
viajando em pé na linha 650.
Doutor Paulo tem direito à Tarifa Zero; seu João, não.
Claro que Paulo responderá que paga uma fortuna de IPVA todo ano. Seu João, homem simples,
mas atento e inteligente, ficou com os olhos brilhando quando ouviu essa justificativa. Então, se
pagar IPVA dá direito a usar uma infraestrutura construída e mantida com recursos públicos, ele
vai à prefeitura. Pedirá água e luz também de graça. Afinal, todo ano ele paga uma fortuna
(considerando sua renda) a título de IPTU.
Os dois exemplos mostram como o Brasil é pródigo em transferir renda dos pobres aos ricos.
A discussão da Tarifa Zero é fundamental, não pelo objetivo em si, mas pela luz que lança sobre
o tema da economia do transporte. A causa tem mérito. Afinal, trata-se de um serviço público.
Quem decide ir de ônibus contribui com diversos aspectos positivos: reduz as emissões de gases
poluentes, melhora a fluidez das vias públicas, diminui o número de acidentes no trânsito. Além
disso, o transporte público assegura acesso democrático a trabalho, renda, serviços públicos e
lazer. Com isso, a economia pode funcionar de forma muito mais eficiente. É justo que toda a
sociedade contribua para o financiamento do transporte público, e não apenas seus usuários.
O uso do carro como transporte individual tem, em contrapartida, diversos impactos negativos.
Consome vultosos recursos públicos para construção e manutenção de vias, além da engenharia
de trânsito e do custo com feridos e mortos.
Não será fácil encontrar fontes para viabilizar a Tarifa Zero. Talvez ela ainda seja uma utopia.
Mas é preciso debater a injustiça da economia do transporte, que cobra de seu João e isenta
doutor Paulo Roberto.
Dizer “utópico” não quer dizer que seja inviável, nem que a discussão não tenha valor. Fico, em
termos de utopia, com Eduardo Galeano:
— A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho
dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para
que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
Que essa discussão nos faça caminhar ao encontro de novas fontes de financiamento para o
transporte público e mais justiça social na economia do transporte.
*Sergio Avelleda, coordenador do núcleo de mobilidade urbana do laboratório Arq.Futuro do
Insper, foi secretário municipal de Mobilidade e Transportes de São Paulo
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