Uploaded by Catarina Vilas Boas

Não somos todos kafka

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Hoje decidi apanhar um banho de sol e, para dar início ao processo (que, adianto,
não consegui levar a bom termo visto que em 5 minutos já suava como uma
porca), escolhi um qualquer livro da estante aqui de casa, sem ligar ao título ou à
sinopse. Estava numa de aventura. Sem paciência para escolher. Fui a ver e tinha
agarrado "A Metamorfose" do Kafka.
Logo na primeira página do livro fico a saber que Gregor Samsa, um caixeiroviajante, acorda transformado num insecto gigante. Pela descrição deduzo que o
Gregor fosse agora uma barata mas tal não parece preocupá-lo por aí além. O
homem, em vez de ficar horrorizado, começa por descobrir as várias característica
do novo corpo - as partes moles, a parte dura, a dimensão das patas, as
dificuldades de movimento, o guincho que lhe substituiu a voz - intervalando a
curiosidade doentia com doentios devaneios sobre as horas e o alarme que não
deve ter tocado, o atraso para o trabalho, a família que o obriga a ficar preso nesse
mesmo trabalho "só" por 6 anos, até lhes quitar uma dívida que têm para com
patrão.
Julgo nunca ter lido nada de Kafka. Já tinha ouvido falar dele. Sei que é alemão e
uma breve pesquisa na internet fez-me perceber que a sua "Metamorfose" foi
concluída em vinte dias mas demorou dois anos a ser publicada e acabou por ser a
sua obra mais discutida e estudada. Percebe-se porquê. Em poucas páginas Kafka
pôs-me a pensar. Em mim, em todos nós, na minha vida em particular e na vida
de todos aqueles que me rodeiam.
Assim como Gregor, também nós vamos acabando por ter uma espécie de
impermeabilidade em relação àquilo que porventura pode mudar o quotidiano a
que estamos habituados. Como Gregor também nós nos deixamos ficar, como o
que temos e com aquilo que achamos ser a nossa sina, ignorando o que de fora
nos vai tentando mudar, mesmo que o "de fora" sejamos nós próprios, o que
passamos a sentir.
Ignoramos aquele homem bonito na rua, aquela frase dos nossos pais, o facto de
os nuggets do Mc Donalds não serem feitos de frango. Em vez disso, suspiramos
por aquele actor da televisão, citamos palavras que pesquisamos no google e
comemos os nuggets com molho de maionese e alho. Ou salsa. Eu acho que o
molho mudou por isso opto pelo primeiro. Inventamos a desculpa de que nada
poderíamos fazer porque ele tem namorada, os nossos pais são uns chatos, os
nuggets são bons.
É estranho. É estranho que um homem que acorda feito num insecto se resigne a
isso mesmo e tente desesperadamente levantar-se da cama para não chegar
atrasado ao trabalho, ignorando a sua metamorfose.
Da mesma forma que é estranho, mas principalmente triste, que nos contentemos
com uma espécie de felicidade que não passa de uma espécie de vida confinada a
uma zona de conforto que nos impede de chegar mais longe do que isso.
Mais triste ainda é que a culpa não é de ninguém a não ser de nós mesmos. Que
por mais indomáveis que queiramos ser damos por nós envergonhados e
amedrontados. Conformados. Como Gregor. Mas nunca como Kafka. Que
escreveu uma obra em 20 dias do ano de 1912 e é lido e pensado, ainda hoje, em
pleno 2016, por uma gaja que está de folga e quer aproveitar o sol.
Nem todos temos a coragem ou o dom de ser Kafka. Mas devíamos.
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