CHORO: EXPRESSÃO MUSICAL BRASILEIRA Caminhos de aproximação ao universo do choro Alexandre Branco Weffort Dezembro de 2002 CHORO: EXPRESSÃO MUSICAL BRASILEIRA Caminhos de aproximação ao universo do choro INTRODUÇÃO CHORO: EXPRESSÃO MUSICAL BRASILEIRA é o produto de uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro, entre Julho e Dezembro de 2002. O propósito da pesquisa é o esboço de um caminho para o conhecimento do Choro enquanto prática musical, numa aproximação feita através tanto da análise de dados documentais, testemunhos da história do Choro, como pela pesquisa prática sobre o desempenho musical. Os exemplos sonoros apresentados foram resultantes dessa pesquisa prática. As fontes da pesquisa se distribuíram por quatro grandes grupos: i) Bibliografia sobre a música brasileira em geral, sobre a música popular brasileira e, especificamente, sobre o Choro; ii) Discografia do Choro, onde alguns dos textos inclusos vieram enriquecer os dados disponibilizados pela bibliografia; iii) Documentação acessível na Internet, com dezenas de sites dedicados à música popular brasileira, muitos especificamente ao Choro; iv) Pesquisa musical participada, realizada no Rio de Janeiro, junto de um grupo de músicos de Choro (Marcílio Lopes, Sérgio Prata, Valter Silva, Caçula, Carlos Agenor, com a orientação musical de Luiz Otávio Braga). Além da interação com esse grupo de músicos, houve ainda a oportunidade de participar em algumas rodas de Choro e contatar diversos músicos (contatos, alguns meramente ocasionais e outros mais longos) com Déo Rian e seu filho Bruno, com Joel Nascimento, Leonardo Miranda, Odette Ernest Dias e Maurício Carrilho, entre outros. O texto está estruturado em três partes. Na primeira são explanados os questionamentos que guiaram a pesquisa. Na segunda, à guisa de conclusões, são explanados os caminhos encontrados. Na terceira são expostos os dados sobre o produto áudio da pesquisa experimental (as doze faixas correspondentes às músicas gravadas durante a pesquisa da Roda de Choro que constitui a parte áudio do CD-ROM “Na Roda de Choro”). I QUESTIONAMENTOS 1. PARA UMA LEITURA RETROSPECTIVA DA HISTÓRIA Criamos um determinado entendimento do passado quando nele reconhecemos um interesse, estabelecendo com ele uma relação de intimidade. E o conhecimento histórico que assumimos sobre o passado estará impregnado dessa intimidade e desse interesse. O conhecimento histórico -a consciência que partilhamos sobre o percurso da nossa existência social - é atual, fazendo-se sempre no presente. No caso, o Choro manifesta a sua existência entre os limites de uma prática musical do passado, revivida na nossa contemporaneidade enquanto objeto 2 portador de sentido , e de uma forma de expressão cultural contemporânea, atenta às contingências sociais, tecnológicas e culturais do nosso tempo. Ao estudo do Choro -prática musical com mais de um século de existência colocam-se necessariamente duas questões: Quando se inicia a história do Choro? Qual o significado original (na sua acepção musical) do termo «Choro»? Da consideração genérica exposta sobre o sentido do conhecimento histórico, podemos partir para a resposta à primeira questão: o entendimento histórico do Choro se faz e se refaz a partir do momento presente. Quanto ao significado do termo musical «Choro», seguindo o raciocínio anterior, pretendemos encontrá-lo na atualidade, no modo como o conceito é entendido no momento presente e, a partir daí, traçar um caminho regressivo, em busca do significado que lhe foi atribuído em momentos anteriores. E podemos fazer esses dois questionamentos tanto através da busca de evidências historiográficas que validem ou confrontem as diversas hipóteses já apresentadas como seguindo a manifestação de opinião, patente na bibliografia, sobre o sentido que o termo «Choro» assumiu. 2 Menezes, Ulpiano. A História, cativa da memória?. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo (1992) 2. QUANDO COMEÇA A HISTÓRIA DO CHORO? A questão, assim colocada, nos remete para a busca de um momento cronológico, uma época, uma data. E essa busca tem sido realizada por diversos estudiosos que se debruçaram sobre o Choro e a sua história. A época encontrada para o nascimento do Choro situa-se entre o último quartel do século XIX e o primeiro do século XX, embora haja quem tente apontar de 3 4 forma mais precisa a década de 1870 e quem estenda essa data até 1845 ou 5 mesmo a 1830 . Ary Vasconcelos é, segundo Marília Trindade Barboza, «quem apresentou a primeira e única tentativa de periodização da história do choro, na qual 6 consta a existência de seis gerações de chorões» . Atendendo a essa periodização e tendo como marcos intermédios a chegada da Corte de D. Maria I com o Príncipe Regente ao Brasil e o início da bossa nova, Arthur Loureiro de Oliveira Filho equaciona a história da música popular brasileira em três grandes períodos: período de formação (de 1500 a 1808); período de 7 consolidação (de 1808 a 1958); período de globalização (de 1958 aos dias de hoje). Ao tentar periodizar a história do Choro, Henrique Cazes sublinha o papel das grandes figuras tutelares do Choro, Pixinguinha e Jacob do Bandolim, 8 sem esquecer o papel desempenhado por Radamés Gnatalli . Mas, para encontrar na cronologia da história o momento do nascimento do Choro será necessário estabelecer o que se entende por «Choro» em cada momento histórico. A origem e o significado musical do termo «Choro» não obtêm, no entanto, consenso dos pesquisadores. 3 4 Vasconcelos, Ary. E o próprio Alexandre Gonçalves Pinto em O Choro: Reminiscências dos Chorões Antigos. Cazes, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. Pg.19: «Se eu tivesse que apontar uma data para o início da história do Choro, 5 não hesitaria em dar o mês de julho de 1845, quando a polca foi dançada pela primeira vez no Teatro São Pedro» Barboza, Marília. Chorando no Rio. Pg.10 «...poderíamos começar por descrever a trajetória do choro partindo da 6 Europa, lá por volta das décadas de 30 e 40 do século dezanove, entre as duas revoluções francesas de 1830 e 1848. Barboza, Marília. Pelos caminhos do choro . Os períodos enunciados são os seguintes: 1870 a 1889; 1889 a 1919; 1919 a 1930; 1930 a 1945; 1945 a 1975; 1975 até aos dias de hoje. A proposta de Ary Vasconcelos consta de Carinhoso Etc (História e inventário do Choro). 7 O conceito de globalização utilizado por Arthur Oliveira é o elucidado por John Kenneth Galbraith, citado no livro 500 Anos da Música Popular Brasileira editado pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro: «Não é um conceito 8 sério. Nós, os americanos, o inventamos para dissimular a nossa política de entrada econômica nos outros países». Cazes, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. 3. ENCONTRAR O SENTIDO MUSICAL DO TERMO «CHORO» Várias hipóteses são defendidas por estudiosos de renome, entre eles, Luís da Câmara Cascudo (para quem «Choro é a designação de certos bailaricos populares»), José Ramos Tinhorão (que relaciona Choro com uma forma melancólica de se executarem as baixarias no violão) e Ary Vasconcelos (que atribui a origem de Choro à corporação dos «Choromeleiros», sendo o termo Choro uma possível abreviação daquela designação). Entre estes autores encontramos as definições mais difundidas na bibliografia da música popular brasileira. Mas há outras opiniões e propostas também a considerar, como a de Jacob Bittencourt (o Jacob do Bandolim), registradas no seu depoimento ao MIS. Cada uma das hipóteses explicativas apresenta, no seu prisma particular, sinais de grande plausibilidade mas, sendo divergentes, apontam para uma certeza: que a sua veracidade não deverá ser concomitante. O sentido musical do termo «Choro» observará assim um processo de metamorfose: de evento social a prática musical, de prática a repertório instrumental, de repertório a estilo interpretativo, de estilo a gênero. Gênero considerado em sentido lato, de múltiplas formas musicais, praticadas sob formações organológicas diversificadas. Provavelmente, será através do estudo dessas formações organológicas que melhor se poderão entender os elementos de gênese do Choro. Se existe a possibilidade de traçar uma genealogia do Choro, ela estará patente nas práticas musicais antecedentes. A delimitação do conceito «Choro» dada por Mário de Andrade é ampla: «O Chôro implica no geral participação de pequena orquestra com um 9 instrumento mais ou menos solista, predominando o conjunto» . O Choro apresenta grande diversidade organológica, fazendo recurso não exclusivo a instrumentos portáteis, encontramos agrupamentos de instrumentos de sopro (flauta, oficleide, clarinete, trombone, saxofone), ou de cordofones dedilhados (bandolim, cavaquinho, violão), ou ainda a combinação destes grupos organológicos, além dos instrumentos de percussão (pandeiro, surdo, ganzá). Mas o Choro está 9 Andrade, Mário. «Pequena História da Música Brasileira». também presente na escrita pianística (ressaltando, neste âmbito, a obra de 10 Ernesto Nazareth ). 11 O terno flauta, violão e cavaquinho é apresentado como sendo a primeira formação de Choro e está na base organológica da formação conhecida como «regional», que apresenta no seu quadro mais típico, ainda, o violão de sete cordas e o pandeiro. O pandeiro, que terá surgido no Choro numa fase já avançada, é hoje o instrumento de percussão mais utilizado no Choro, com presença quase obrigatória nas formações de tipo «regional». Embora a presença da percussão no Choro tenha incorporado outros instrumentos como o surdo, o reco-reco ou o ganzá, o pandeiro assumiu forte protagonismo na área da percussão, talvez derivado à sua versatilidade politímbrica. Mas, a busca da resposta à questão inicial sobre quando começa a história do Choro e à questão complementar sobre qual o significado original do termo musical Choro obriga-nos a esclarecer o modo como são observados os dados históricos. A bibliografia disponível sobre o Choro apresenta um traço recorrente: constituem representações da memória sobre o seu objeto. Os dados 12 historiográficos acessíveis são regra geral escassos , havendo grande profusão de textos de opinião sobre o Choro, mas que não são baseados em fontes primárias. Na sua maior parte são testemunhos, ou relatos sobre testemunhos, em que o prisma dos autores se manifesta de forma considerável. Jacob do Bandolim afirma assertivamente no seu depoimento ao MIS que «Pixinguinha deu rítmica ao Choro. O Choro, até então, era considerado 13 uma colecção de música para chorar, fazer chorar» . A vinculação estética do termo «Choro» ao sentimentalismo, traço presente na estética do romantismo musical, é presente também em Ramos Tinhorão, referindo a «impressão de melancolia que acabaria conferindo o nome de choro a maneira de tocar, e a designação de chorões aos músicos de tais conjuntos». Citado por Hermínio Bello de 10 Embora se possa aventar que a escrita de Nazareth procura transpor para o piano o esquema organológico dos conjuntos 11 12 baseados em flauta, violão e cavaquinho Também na formação de quarteto: flauta, dois violões e cavaquinho. No momento em que este texto era finalizado foi disponibilizado ao público um importante material sobre a Casa Edison do Rio de Janeiro. Esse material, organizado em dois volumes, contendo um livro, 19 CD áudio e 5 CDROM constitui o maior acervo sobre a música brasileira da primeira metade do século XX, tornado acessível no mercado. A frase que 13 justifica esta nota ficou, assim, claramente comprometida. Trecho do depoimento ao MIS, constante do CD «Sem Jacob, com Jacob». Carvalho no texto que acompanha o disco Vivaldi & Pixinguinha, afirma-se assim a preferência por uma tese que melhor exprime essa idéia de aceitação comum. Aliás, muitas das considerações sobre a estética do Choro têm por base considerações sobre o perfil psicológico do povo brasileiro em que ressalta o sentido da nostalgia. A Flor Amorosa de três raças tristes, poema de Olavo Bilac, é citada por Renato de Almeida, na História da Música Brasileira e este é referido como fonte por muitos outros autores. No entanto, Arthur de Oliveira contradiz essa idéia de tristeza como sendo característica psicológica do povo e da música brasileira: «as “Três Raças Tristes” das elucubrações irreais de Bilac (...) não nos transmitiam um travo de tristeza musical, até porque o que existe no mundo real da nossa música é antes um laivo claro de alegria». Procurar estabelecer uma correlação entre o caráter nostálgico atribuível a uma determinada forma de expressão musical e um perfil psicológico típico de tristeza é um problema antigo da estética musical e, também, uma tarefa inglória. A fonte mais citada nos textos sobre a história do Choro é o livro intitulado O Choro -Reminiscências dos Chorões Antigos, de Alexandre Gonçalves Pinto. «Lembrando factos de 1870 para cá», o autor oferece, em 1936, uma memória dessa prática musical. No livro de Alexandre Gonçalves Pinto encontramos diversos sentidos para o termo Choro: evento social («os choros em Catumby eram um tanto arriscados, porque ali se abrigavam os maiores valentões da época»), grupo musical («finalizado o baile, alta madrugada, o “choro” saía tocando uma polka dengosa», repertório («vou ver se me lembro de alguns choros belíssimos que se tocavam [e refere entre outros: 14 «Salomé, polka de Callado», «Geralda, quadrilha de Rangel»]) . Curiosamente, uma prática musical tão significativa e reconhecida hoje como a mais importante forma de música instrumental brasileira só apresenta registro historiográfico dedicado em 1936, mais de meio século após o momento considerado para o seu surgimento. Este desfasamento tão amplo merece ser equacionado. O livro de Alexandre Gonçalves Pinto, Choro -Reminiscências dos Chorões Antigos, é declaradamente um ato de construção da memória e os 14 Corrobora este sentido do termo Choro, a apresentação à polca Só para moer de Viriato Silva, em registro de 1902 da casa Edison (ODEON 40.047). Diz o locutor: «Só para moer, polca executada por Patápio Silva, para a casa Edison do Rio de Janeiro... escutem só que choro gostoso...». Franceschi, Humberto. A Casa Edison e seu Tempo. dados nele contidos devem ser vistos à luz da sua significação enquanto memória, formulada num momento histórico preciso que é bastante posterior ao dos fatos relatados e possivelmente influenciada pelos valores do momento em que é fixada. Quando Alexandre Gonçalves Pinto relata as suas memórias sobre o Choro, o nacionalismo brasileiro tinha já imposto o seu referencial ideológico dominante. Com os “Choros”, Villa-Lobos chamou essa forma popular de expressão musical à ribalta da chamada música culta, transfigurando-a através dos processos de erudição. 4. MÚSICA POPULAR E MÚSICA ERUDITA Na bibliografia brasileira, a música é normalmente dividida em três categorias: música folclórica, música popular e música erudita. A necessidade de se recorrer a definições diferenciadoras entre práticas musicais é esclarecida por Oneyda Alvarenga, considerando que «quaisquer definições devem ser consideradas essencialmente instrumentos de trabalho» e devem «abranger, pelo menos como hipótese de trabalho, um 15 campo de contornos definidos e extensão delimitada» . Se o conceito de música folclórica pode ser assumido na decorrência de um método de pesquisa, o conceito de música popular revela maiores dificuldades na sua delimitação. O conceito de música popular é utilizado para designar a música urbana e designa uma categoria distinta da chamada música erudita. Sendo fácil reconhecer a necessidade de diferenciação, os conceitos com que se traçam esses contornos obrigam a, pelo menos, alguma reflexão. A delimitação dos conceitos de música popular e música erudita não é tarefa fácil. Uma das razões para essa dificuldade reside no fato de se procurar aquela diferenciação sobretudo no produto «música» em vez de se colocar o enfoque na caracterização do processo «fazer música». Obras de referência da musicologia, como o New Grove Dictionary of Music and Musicians, fazem sistematicamente a distinção entre folk music, englobando a música folclórica e a música popular, e art music, considerando nessa categoria a chamada música erudita. A delimitação musical do conceito de art music aparece mais claramente assumida num estudo de Edward Cone sobre a forma musical e a prática 16 artística , referindo-se o termo art music à composição musical que não apenas apresenta claramente uma estrutura com princípio, meio e fim, mas em que esse princípio e esse fim derivam da forma musical e não da simples exigência de um fator externo. Assim, por exemplo, a música de dança, que pode ser repetida as vezes necessárias ao ato da dança, por razões extrínsecas à música, escapará ao conceito proposto de art music. 15 Alvarenga, Oneyda. Música Folclórica e Música Popular. Edward. Musical Form and Musical Performance. 16 Cone, Mas o autor referido coloca ainda outro parâmetro para a delimitação do conceito de art music, desta feita ao nível da atenção do ouvinte, propondo uma diferenciação entre ouvir e escutar. Outros autores abordam a questão da diferenciação entre tipos de atenção na audição (entre eles, Pierre Schaffer e Edwin Gordon). Há música para ouvir e, 17 como dizia Pixinguinha, «músicas que a gente precisa prestar atenção» . A questão da relação entre a música popular e a música erudita tem sido objeto de polêmica com forte carga ideológica. Uma compilação sobre essa polêmica é abordada em A Música Popular Brasileira Estilizada, de Henrique Pedrosa. Esse autor remete a problemática para a esfera social: «sempre preconceituosamente se julgou a música popular como algo inferior tecnicamente, e por essa visão equivocada, uma parcela de valor da cultura popular foi perdida ou esquecida. Os profissionais da mpb afinal não podem ser considerados povo, nem burguesia, nem aristocracia. Simplesmente uma categoria profissional que produz algo consumido às vezes por todas as classes: de acordo com o produto existe uma maior ou menor aceitação nesta ou naquela esfera social». Mas a chamada música popular não se realiza apenas na esfera das práticas profissionais. E a própria fronteira entre a prática musical profissional e não profissional não está delineada com precisão. Esmiuçando um pouco a questão, poderemos encontrar práticas musicais características ou originadas em determinados estamentos sociais que migram (enquanto objeto portador de sentido) e se transformam em práticas profissionais desempenhadas ou fruídas em outras camadas sociais. 17 Pixinguinha. Série Depoimentos. MIS. 5. DA MÚSICA POPULAR À MÚSICA TRIVIAL Num livro biográfico dedicado a Jacob do Bandolim é indicado que «Jacob possuía um caderno intitulado Repertório trivial, que constava de mais de 329 títulos, assim distribuídos: 165 choros, 31 tangos e 97 valsas, 8 frevos, 18 18 schottischs e 10 gêneros diversos» . O título «repertório trivial» dado por Jacob a esse caderno de músicas é interessante. Repertório trivial terá, neste contexto, o significado de repertório comum (o feijão com arroz da música). Na musicologia, o conceito de «música trivial» foi apresentado pelo 19 historiador Carl Dahlhaus , referindo-se exatamente à música de entretenimento praticada no século XIX. Tratando de um universo musical semelhante - das músicas de dança de salão e da música de varanda ou de taberna - a proposta de Dahlhaus a respeito da «música trivial» pode ajudar à apreciação da prática do Choro. Se a «música trivial» a que refere Carl Dahlhaus era a música praticada sobretudo pela burguesia urbana na Europa do século XIX, e atendendo ao critério assumido por Ramos Tinhorão, que relaciona o nascimento da música popular brasileira a existência das cidades, podemos verificar uma certa sobreposição entre os dois conceitos. Entre os gêneros da música brasileira, o «Choro» é aquele que, conjuntamente com a modinha dos seresteiros (ou as «serenatas de cantigas», como indica Luiz Edmundo em O Rio de Janeiro do Meu Tempo), revela maiores semelhanças com os gêneros abrangidos pela «música trivial». E mesmo a definição de Choro dada por Mário de Andrade não afasta a hipótese: «Choros e serestas são nomes genéricos aplicados a tudo quanto é música noturna de caráter popular, especialmente quando realizada ao relento». 18 19 Paz, Ermelinda. Jacob do Bandolim. Dahlhaus, Carl. The Nineteenth-Century Music. 6. A MÚSICA TRIVIAL EUROPÉIA DO SÉCULO XIX E O CHORO Aplicar ao Choro o conceito música trivial não será certamente matéria pacífica. O termo trivial carrega uma conotação de julgamento estético que tem implicações a acautelar. E, no caso do Choro, o problema tem surgido, mesmo que com outra terminologia. No século XIX, afirma Dahlhaus, a chamada «música trivial» era caracterizada pela presença paradoxal de sentimentalismo e mecanização. As melodias eram, regra geral, pouco mais que paráfrases de acordes reduzidas a duas funções harmônicas: tônica e dominante. Não podemos deixar de reconhecer a semelhança com alguns componentes do Choro. O sentimentalismo, a padronização tonal (embora mais desenvolta que o mero recurso às funções de tônica e dominante) e a forte presença do elemento acórdico na construção dos motivos melódicos. O Choro, gerado no século XIX, foi fortemente marcado pelos ideais estéticos e pelos procedimentos musicais da época, não sendo estes especificamente brasileiros. Num artigo de opinião publicado na revista Roda de Choro, essa prática 20 musical foi caracterizada como «música típica de varanda» . A reação, publicada na mesma revista em número posterior, foi truculenta. Diz Maurício Carrilho, autor da réplica: «Lendo a coluna Opinião da RdC número dois fiquei surpreso com a presença ideológica do abominável «baú do pirata» em nossa revista». Mais adiante, indica que «a máxima porém da ideologia de baú foi a seguinte: ao contrário da cosmopolita bossa nova, o 21 choro é música típica de varanda» . No início da resposta, o Carrilho sentenciava: «falar de Choro é para quem quer. Tocar um Choro é para quem sabe. Entender a importância do gênero como uma das mais fundamentais expressões do da cultura do nosso povo é 22 para quem pensa, e muito». Para aquele autor, «Baú de Pirata» é a designação para um «fenômeno da psicologia chorística [que] aparece aos primeiros acordes de uma roda de Choro (...). É um teórico acima de tudo (...). É chato que dói. Toca mal algum instrumento e, talvez por isso nunca o leve para as rodas, onde fica via de 23 regra, botando defeito nos executantes (...)» . 20 21 Silva, José Fernando. Jacob e a Bossa Nova. Roda de Choro nº 2. Carrilho, Maurício. Choro na teoria e na prática. 22 Roda de Choro nº 5 Idem. 23 Ibidem. A citação é extensa e justifica-se pelo que aporta de revelador para a compreensão dos processos de afirmação dos praticantes do Choro na 24 atualidade e dos territórios em que essa prática musical se organiza. Mas reação é também sinal revelador de uma problemática que marca o debate entre os chorões atuais: o reconhecimento do Choro como prática musical aberta a todas as correntes estéticas da música instrumental. Como nos alerta Carl Dahlhaus em relação à música trivial européia, devemos evitar a comparação direta do repertório do Choro com o repertório da chamada música erudita. Seria uma comparação enganadora e apenas reforçaria a impressão do que no Choro se apresenta como traços de «banalidade musical» sobretudo no que respeita aos recursos composicionais 25 empregados . Contrariando aquela idéia de «banalidade musical», podemos referir um 26 interessante trabalho intitulado Chorinho Gerativo , em que são enunciados e aplicados procedimentos analíticos propostos por Heinrich Schenker, enquadrados no conceito de gramática generativa da música proposto por Fred Lerdahl e Ray Jakendorff, na seqüência da teoria da gramática generativa de Noam Chomsky. A expressão «banalidade musical», levada ao pé da letra, pode até ser entendida como pejorativa. Mas a análise da questão se impõe quando a confrontamos com repertório equivalente, nos seus requisitos técnicos e nas suas ambições estéticas, de autores da chamada música erudita como, por exemplo, F. Chopin ou D. Schostakovitch. Chopin compõe, para flauta e piano, as Variações sobre um tema de Rossini (retirado da ópera La Cenerantola). Se, na parte de flauta, o tema é recriado com alguma desenvoltura, fazendo uso das técnicas básicas de variação, a parte do piano mantém-se na realização de um acompanhamento banal de tônica e dominante (banalidade essa que já não teria cabimento no quadro da prática chorística, que é bastante mais desenvolta). 27 As quatro valsas para flauta, clarinete e piano de Schostakovitch revelam uma escrita que prima pela economia de meios (e, 24 Nomeadamente, ideológicos, conforme revela Maurício Carrilho em entrevista ao autor. 25 O conceito de banalidade musical aqui considerado é o proposto por Hans Mersmann, como sendo a música para a qual a análise técnica será praticamente desnecessária. Referido por Dahlhaus em The Nineteenth-Century Music. 26 Pedroso, Bruno. Chorinho Gerativo. Publicado na Internet, no site da Universidade de Brasília, em http://primordial.cic.unb.br/lcmm/projetos/chorinho/chorinho.html 27 Editadas com instrumentação de Leon Atovmian. novamente, no piano pouco mais fazendo que um acompanhamento nas funções de tônica e dominante). Se aquelas obras, referidas a título de exemplo, podem num plano formal ser equiparadas às obras que integram o repertório do Choro, já o mesmo não ocorre com obras de maior amplitude daqueles autores (seja ao nível da dimensão temporal, do tratamento instrumental ou dos recursos composicionais empregues). Nesse caso, a simplicidade formal do Choro não proporciona uma comparação frutífera. Olhando para a cronologia desses autores, Chopin faleceu um ano após o nascimento de Joaquim Callado, sendo este último contemporâneo de Johannes Brahms, enquanto D. Schostakovitch foi, por sua vez, contemporâneo de Pixinguinha. A simplicidade formal do Choro que, na comparação com as obras de maior porte tanto do repertório camerístico como do repertório sinfônico, seria sublinhada pela negativa, é no entanto uma das suas qualidades estéticas mais relevantes. E os autores de «Choro» tinham consciência disso. Vale a pena relembrar as palavras de Pixinguinha sobre Villa-Lobos, no seu depoimento ao MIS: «em particular, ele tocava com a gente... [e ele acompanhava bem no violão?] Naquela época, acho que ele já era muito moderno para o nosso jeito de tocar mas ele gostava de tocar connosco [você acha que Villa-Lobos foi um gênio?] Reconheço que sim. Tem obras do Villa-Lobos que ... Não são o Chorinho número 1 nem o Chorinho número 2, não. Mas ele tem músicas que a gente precisa prestar atenção. Aquele Uirapuru, o efeito que ele tirou do material... Villa-Lobos, para mim é um Stravinski, um Wagner. Não é nem questão de sentir, é o efeito. É uma grande arte. Esse negócio de sentimento é outra coisa. 28 ...» . 28 Pixinguinha. Série Depoimentos. MIS. 7. O CHORO E VILLA-LOBOS Embora o enfoque do tema seja o Choro na sua acepção popular, Villa-Lobos constitui uma referência incontornável. Os seus Choros constituem peças marcantes na história da música brasileira. O compositor foi ele próprio freqüentador das rodas de Choro e este está presente sob tratamento erudito na sua obra. Discorrendo sobre o Choro popular na introdução aos Choros de Villa-Lobos, Adhemar Nóbrega afirma que «a denominação de choro não deve ser entendida como forma de música popular (...) mas sim um gênero que se subordina, como outras modalidades da música popular, à forma 29 rondó em cinco seções: A-B-A-C-A» . Sabemos que os Choros de Villa-Lobos começaram a ser compostos em 1920. Aliás, a presença do termo «Choro» na obra de Villa-Lobos é elucidativa da evolução do próprio conceito. Na Suite Popular Brasileira, que é datada de 1908 a 1912, os títulos dados às peças são Mazurca-Choro, Schottisch-Choro, Valsa-Choro, Gavota-Choro e Chorinho. Mas, a partir de 1920, a designação genérica dada a um conjunto de dezesseis obras é, no plural, Choros. Em 1926 é finalizada a composição do Choros n.º 10, para orquestra e coro misto, tendo a primeira apresentação pública ocorrido em novembro desse mesmo ano. É assinalável a presença, no quadro 30 temático dessa obra, da schottisch «Yara», de Anacleto de Medeiros . Os Choros de Villa-Lobos não estão organizados segundo a cronologia da sua composição. Conforme explica Adhemar Nóbrega, «o motivo do anacronismo foi o desejo do autor de fazer prevalecer um escalonamento por 31 ordem instrumental e por complexidade crescente de estrutura» . A valoração da dimensão e complexidade estrutural assumida por Villa-Lobos na criação dos seus Choros sublinha, por contraste, a natureza do Choro enquanto forma de expressão popular: em termos estruturais, o Choro se mantém dentro de limites praticáveis enquanto comportamento musical quotidiano. Citando novamente Adhemar Nóbrega, «as obras musicais de autores brasileiros, até à década de vinte, se chamavam canções, valsas, 29 30 Nóbrega, Adhemar. Os Choros de Villa-Lobos.. Apropriada antes disso por Catulo da Paixão Cearense, quando a edita 31 com versos seus, sob o título «Rasga o Coração». Nóbrega, Adhemar. Idem. schottiches, polcas, prelúdios, suites, sinfonias, etc., ou se pautavam por esses gêneros e formas tradicionais mesmo quando traziam outros títulos 32 circunstanciais» . Villa-Lobos foi testemunha ativa do Choro enquanto comportamento musical popular. E, com Villa-Lobos, o Choro ganhou reconhecimento pleno como expressão de identidade cultural brasileira. 32 Nóbrega, Adhemar. Ibidem. 8. O VERBO “ABRASILEIRAR” “Abrasileirar” é um verbo de uso costumeiro quando se fala do Choro, mas de sentido intrinsecamente contraditório. Recentemente, em finais da década de 90, Cazes opinou sobre o sentido do termo Choro, considerando que ele traduzia «com precisão a maneira exacerbadamente sentimental com que os músicos populares abrasileiravam 33 as danças européias» . Este é um ponto de vista com forte aceitação ao nível do senso comum. O Choro será, assim, a resultante de um processo de abrasileiramento que se 34 caracteriza pelo caráter sentimental dado às músicas européias . Hermano Vianna sublinhou, em O Mistério do Samba, o papel da intelectualidade na promoção de um determinado sentido de identidade brasileira. Gilberto Freyre e os sinais da sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1926 são o ponto nodal de desenvolvimento de uma tese que, embora referindo sistematicamente ao Samba, interessa também ao Choro. Vianna cita um encontro entre Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto: «Com eles saí de noite boemiamente. Também com Villa-Lobos e Gallet. Fomos juntos a uma noitada de violão, com alguma cachaça e com os brasileiríssimos Pixinguinha, Patrício, Donga.» Pixinguinha, Patrício e Donga são guindados a paradigma da «brasilidade», boemiamente, numa noitada de violão. E o Samba é a referência iconográfica desse paradigma. Embora Pixinguinha tenha dito expressamente que ele é do Choro (e que o Samba era «com João da Baiana»), observam-se sinais de proximidade entre as duas práticas. Mas qual a característica musical intrinsecamente brasileira do Choro? 35 Maurício Carrilho afirma que a questão está no ritmo . Darius Milhaud intrigou-se com a questão da síncope. No mesmo sentido, seguindo a trilha de Mário de Andrade, Muniz Sodré equacionou a questão do ritmo iterativo em Samba, o dono do corpo, questão também desenvolvida por Enio Squeff em Música -reflexões sobre um mesmo tema. 33 34 Cazes, Henrique. Choro - do quintal ao municipal Vimos já que o sentimentalismo é um dos traços caracterizadores de parte da música europeia no século XIX (a chamada música trivial), portanto, não exclusivo nem caracteristicamente 35 brasileiro. Carrilho, Maurício. Choro na teoria e na prática. Revista Roda de Choro n.º 5. Ambos os autores afloraram a questão da gestualidade do corpo no ritmo do Samba, sendo essa gestualidade um traço cultural que evidencia a raiz africana na cultura brasileira. Mas o Samba a que referem Squeff e Sodré é o praticado no terreiro do candomblé (festa religiosa também chamada macumba, no Rio de Janeiro) e não o samba carioca, “urbanizado” sob a forma de canção, de que trata Vianna. O abrasileiramento tem, na música, protagonistas como Pixinguinha, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth, Joaquim Callado, compositores que, fazendo uso de processos e produtos culturais exógenos, eruditos, os incorporam no patrimônio cultural comum, popular, cumprindo assim, também eles, a função de mediadores culturais. No circuito de passagens entre a prática musical erudita e a popular, onde numa ponta temos a sala de concerto e na outra o terreiro-decandoblé, 36 passamos pelo quintal-de-samba, pelo salão-de-baile e pelo sarau , como espaços intermediários de socialização (e o Choro, enquanto processo social e prática musical, se situará precisamente na zona intermediária desse circuito). O conceito de «abrasileiramento» está intimamente relacionado com a afirmação do sentido de identidade nacional brasileira. A afirmação de um determinado sentido de identidade, através de paradigmas como o estabelecido por Gilberto Freyre através do enfoque em Pixinguinha, Patrício e Donga. Sendo abrasileirar a expressão que se utiliza para assinalar o processo de afirmação da identidade cultural brasileira, é também a que melhor sintetiza o 37 processo de enculturação da sociedade brasileira pelos processos e produtos da cultura ocidental, nas suas expressões européia e norte-americana. O Choro é uma evidência musical desse processo. 36 José Wisnik apresenta essa relação («sala-de-comcerto -- sarau -- salão-de-baile -- quintal-de-samba -terreiro-de-candomblé») em Getulio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo), editado em parceria com E. Squeff (também citado neste texto) no livro Música, col. o Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. São Paulo: 37 Brasiliense (1983). Prefiro, neste contexto, o termo enculturação a aculturação ou a assimilação pois o primeiro reforça melhor o fato de a sociedade brasileira ser portadora de um quadro cultural que a identifica, não obstante a transformação operada na assimilação dos valores culturais de outras culturas, por exemplo as de origem anglo-saxônica, como hoje ocorre mundialmente por força da sua presença dominante nos midia. 9. O CHORO SERÁ MESMO UM GÊNERO MUSICAL? Basta referir duas propostas discográficas sobre a apresentação em jeito de choro de outros gêneros musicais (de Altamiro Carrilho, com Clássicos em Choro, onde são apresentadas obras de Bach e Mozart, entre outros, e de Henrique Cazes, com o repertório dos Beatles) para justificar a questão. O Choro é gênero musical ou será antes estilo interpretativo? A linguagem do Choro está nas características estruturais do gênero ou na interpretação musical? Para responder, temos de primeiro esclarecer o que se entende por «gênero musical». Os conceitos de «gênero» e de «forma» sobrepõem-se com freqüência. «Para a definição de um gênero concorrem vários pontos de vista: instrumentação, 38 função, lugar de execução e estrutura da composição» . No caso do termo «Choro», a sua consideração como gênero musical é necessariamente questionada quando as definições propostas começam por ressalvar que, «inicialmente não [sendo] propriamente um gênero [o Choro] 39 acabaria por se impor como um fascinante gênero musical» , ou afirmam categoricamente que «a denominação de Choro não deve ser entendida como forma de música popular, que não é, mas sim um gênero que se subordina, 40 como outras modalidades da música popular, à forma rondó...» , ou, pelo contrário, afirmam a importância do «gênero como uma das fundamentais 41 expressões da nossa cultura» . Ou, ainda, numa tentativa de síntese, resumem que «o Choro foi primeiro uma maneira de tocar. Na década de 10 passou a ser uma forma musical definida. (...) Mais recentemente o Choro voltou a significar uma maneira de frasear, aplicável a vários tipos de 42 música brasileira» . Na bibliografia da música popular brasileira, a importância do Choro é sublinhada por ser «a forma nobre por excelência da música popular 43 brasileira» e há até quem aponte a «presença do choro em tudo o que foi 44 criado em nossa música a partir de Chiquinha e Nazareth» . 38 39 Michels, Ulrich. Atlas de música, volume I. Vasconcelos, Ary. Choro: Um Ritmo Todo Nosso. Em Brasil Musical. 40 41 Nóbrega, Adhemar. Os Choros de Villa-Lobos. Carrilho, Maurício. Choro na teoria e na prática. Revista Roda de 42 43 Choro, n.º 5. Cazes, Henrique. Choro, do quintal ao municipal. Oliveira, Arthur. Chorando no Rio. Artigo publicado na 44 revista do Museu da Imagem e do Som, n.º 0. Carrilho, Maurício. O Choro vai muito bem, obrigado.... Revista Roda de Choro n.º 0. Mas, se a nível musicológico, o conceito de «gênero» apresenta alguma elasticidade, a sua utilização indicia a necessidade de uma organização taxonômica e de uma delimitação minimamente funcional dos conceitos, necessidade que é patente em alguma bibliografia do Choro. A dificuldade reside na própria delimitação do conceito de gênero, freqüentemente utilizado numa acepção de senso comum, onde se sobrepõem e, muitas vezes, se confundem os vários pontos de vista: instrumentação, função, lugar de execução e estrutura da composição. 10. APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO INTERPRETATIVO NO CHORO Villa-Lobos e outros compositores afamados da chamada música erudita como Darius Milhaud, que contataram com essa forma de expressão popular brasileira na segunda década do século XX encontraram na prática do Choro elementos distintivos relevantes, elementos que não derivam necessariamente da sua escrita (ou do ato formal da sua composição), mas sim no da sua recriação, no processo interpretativo. A interpretação é construída na interação entre os diversos instrumentistas, cada qual na sua função específica, aplicando seus procedimentos de improvisação ou de variação. Na síntese de Mário Aratanha, «o que há de mais sofisticado no Choro (...) é justamente o seu caráter polifônico, onde o solista da vez é desafiado em contraponto, ou um centro bem comportado 45 pode de repente desembestar em um improviso de resposta» . Sublinhando outro aspecto, Paulo Moura refere que se deve a Pixinguinha o reconhecimento da «importância da verticalidade na interpretação do Choro, essa maneira de tocar dentro de um grupo que dialoga com o 46 contracanto e a sobriedade precisa na variação melódica improvisada» . Mas consideremos as opiniões registradas na bibliografia do Choro: Darius Milhaud deixou um testemunho sobre a questão: «Os ritmos dessa música popular me intrigavam e me fascinavam. Havia, na síncope, uma imperceptível suspensão, uma respiração molenga, sutil parada, que me era muito difícil de captar. Comprei então uma grande quantidade de maxixes e de tangos; esforcei-me por tocá-los com suas síncopes, que passavam de uma para a outra mão. Meus esforços foram recompensados e pude, enfim, 47 exprimir e analisar esse pequeno nada tão tipicamente brasileiro» . Jacob do Bandolim é assertivo. «Há dois tipos de chorões: há o chorão distante, que eu repudio, que é aquele que bota o papel para tocar choro e deixa de ter, perde a sua característica principal que é a da improvisação, e há o chorão autêntico verdadeiro, aquele que pode decorar a música pelo papel, e depois dar-lhe o colorido que 45 46 Aratanha, Mário. A essência musical da alma brasileira. Revista Roda de Choro n.º 2. Moura, Paulo. De Paulo Moura 47 para Pixinguinha. No CD Choro (1906-1947), editado por Philippe Lesage. Milhaud, Darius. Notes sans Musique, citado por Arthur Oliveira em 500 Anos da Música Popular Brasileira. 48 bem entender, este me parece o verdadeiro, o autêntico, o honesto chorão». Sobre Pixinguinha, Jacob disse que «Pixinguinha deu rítmica ao choro, deu graça ao choro. Esta leveza do choro, esta malícia, malícia que só Pixinguinha sabe dar (...) porque, até então o choro era tocado meio 49 quadrado ...» . 50 Mário Séve é autor de um livro intitulado Vocabulário do Choro . Nesse trabalho, analisando os padrões harmônicos, melódicos e rítmicos preponderantes sobretudo na obra de Pixinguinha, o autor extrapola esses padrões como módulos constituintes de um “vocabulário” comum ao estilo de fraseado e aos processos improvisatórios característicos do choro. No texto introdutório sobre as «divisões rítmicas do fraseado», Mário Séve adianta que «o fraseado europeu que deu origem ao choro foi se modificando à medida em que a música se expunha à dança, sempre se adaptando aos novos gingados do brasileiro». Acrescenta que, «na música popular, principalmente quando associada à dança, permitese grande liberdade de interpretação. Com relação às partituras, pode-se dizer que “o que se escreve nem sempre é o que se toca”» pois a notação «muitas vezes corresponde apenas a um esboço ou proposta». O autor referido assinala que a síncope no choro «está, em sua interpretação, entre [a síncope e a tercina]». E que outras figurações rítmicas são executada com exatidão em andamentos ligeiros, mas tendem a ser modificadas em andamentos mais lentos, apresentando, seguidamente um conjunto de modos de variação das divisões rítmicas. Introduzindo a questão das acentuações e das alterações nas divisões, Mário Séve considera que estas «devem obedecer à estrutura rítmica dos acompanhamentos» e que, por exemplo, «uma mesma frase em um choro pode ser tocada diferente para se adaptar a um samba». A introdução estende-se a indicações sobre ornamentos e articulações, bem como aflorando aspectos rítmicos e harmônicos dos acompanhamentos. 48 49 Em depoimento ao MIS. 50 Bittencourt, Jacob. Depoimento ao MIS. Registro sonoro no Cdplus Sem Jacob, com Jacob. Séve, Mário. Vocabulário do Choro. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1999. 11. A RODA DE CHORO A hipótese sobre a qual se desenvolve este trabalho é a que o Choro é sobretudo um processo musical, portanto, social. E, enquanto processo social específico, realiza-se num espaço de interação que leva a designação de «Roda de Choro». A «Roda de Choro» é a forma de realização em que este se manifesta de forma mais característica, onde adquire a sua maior significação cultural. A «Roda de Choro» é o momento onde o Choro adquire a sua dimensão plena de expressão musical brasileira. «O Choro pode ser ouvido no palco de um teatro, casa noturna ou entre as mesas de um bar, mas não há dúvida que o habitat natural desse tipo de 51 música é a roda de Choro, um encontro doméstico» . Na Roda de Choro, quando o executante do tema propõe um tema desconhecido, apenas indicando a tonalidade de partida, o Choro requer aos participantes a demonstração de uma capacidade de antecipação sobre o sentido do movimento tonal e das harmonias possíveis. Essa capacidade é uma das qualidades fundamentais que permite à música funcionar como linguagem. 52 E, se no Choro de tipo camerístico as possibilidades serão as mais amplas, na Roda de Choro, fazendo recurso sistemático àquela capacidade de antecipação do movimento tonal, surgirão certamente comportamentos padronizados, no estabelecimento das harmonias e dos contracantos, essenciais à interação musical. Na roda, o Choro ocorre subordinado ao exercício da memória e do pensamento musical, que se manifesta de forma plena na capacidade de improvisação. A interação musical ocorre de forma próxima à da conversação. Contrariando esta ideia Hermano Vianna sugere a hipótese que «não se 53 improvisava nas rodas de choro» . A sugestão, baseada na ausência de situações de improviso assinalada por H. Cazes na sua observação dos primeiros registros discográficos, aponta para dois problemas que merecem ponderação. 51 Henrique Cazes: Choro, do quintal ao municipal. Entenda-se aqui por camerística a prática musical de grupo, com recurso à pauta ou a esquemas de notação. 53 No prefácio ao livro de Henrique Cazes: Choro, do quintal ao municipal, Vianna assinala que «até às primeiras décadas deste século, o improviso era um elemento inexistente na totalidade das gravações de choro (o que torna muito provável a afirmação de que não se improvisava nas rodas de choro)». Em primeiro lugar, o da delimitação do conceito de «improvisação»; em segundo lugar, o de saber se a «inexistência da improvisação» nas gravações discográficas permite a extensão dessa constatação às rodas de Choro, isto é, saber se o Choro realizado na roda pode ser aferido pelos mesmos parâmetros que o Choro gravado. A constatação de uma correlação não autoriza, por si, o estabelecimento de uma relação causal. Pixinguinha, no segundo depoimento ao MIS, faz uma revelação importante acerca das primeiras gravações de choros. Questionado sobre se havia partes escritas para as gravações dos Batutas, Pixinguinha responde «não». Quando lhe questionam se não havia nem partes cifradas, responde «não, era choro». Mas, quando questionado sobre o processo de preparação para as gravações, Pixinguinha responde que «o que fazíamos era ensaiar». À pergunta seguinte, se 54 «era na base do improviso», responde: «Não. Ensaiado» . Ocorrem algumas diferenças fundamentais entre a roda e o estúdio. Um aspecto a considerar quando se estabelece a correlação entre o Choro gravado e o que acontece na roda tem a ver com a diferença entre processo e produto: na roda, o Choro é processo, interação social e, não deixando de ser processo também no estúdio, o seu destino é ser produto discográfico. Contrariamente ao que ocorre num estúdio, «uma roda de verdade é aquela que mistura profissionais e 55 amadores, gente que toca melhor e pior, sem nenhum problema» . O tempo, no estúdio é contado, enquanto a roda dura sem compromisso. E há também o ambiente sonoro e social que caracteriza um e outro espaço. O estúdio existe por forma limitar o ruído ambiente, permitindo a melhor captação do som. O relacionamento é fortemente condicionado. A roda de Choro é um momento de convívio, requer um espaço doméstico, «de preferência uma varanda ou um 56 quintal» . 54 55 MIS. Série Depoimentos: Pixinguinha. Henrique Cazes: Choro, do quintal ao municipal. Curiosamente, é no prefácio 56 deste livro que Vianna emite a sua hipótese sobre a ausência da improvisação nas rodas de choro. Idem 12. A IMPROVISAÇÃO NO CHORO A improvisação no Choro é subordinada a elementos prévios: o tema, regra geral fixado na escrita musical sob a forma melódica, as possibilidades harmônicas implícitas nessa melodia e os procedimentos padronizados de harmonização. Sobre esses dois pressupostos se desenvolvem processos de improvisação ou variação rítmica, melódica e harmônica, observando, todavia, as funções tonais que garantem coesão à estrutura musical. O valor do Choro não residirá tanto na complexidade, na sofisticação ou mesmo na originalidade dos recursos composicionais empregues, mas no fato de, por se remeter a recursos de domínio comum, poder ser partilhado 57 enquanto «linguagem musical» . Creio que é exatamente a observação desses recursos de domínio comum que permite, no Choro, a prática da improvisação e, como diz Luiz Filipe Lima, a existência de «músicos que não tocam instrumentos harmônicos, nunca 58 estudaram harmonia, mas são grandes “acompanhadores”(sic.)» . Falando sobre o «Ingênuo» de Pixinguinha, Jacob do Bandolim diz: «eu improviso quando interpreto, mas improviso não com o desejo de improvisar, mas sim de aumentar a gama, aumentar a faixa de sentimento 59 daquilo que ele compôs (...) Não é o desejo de improvisar ou ser original» . 57 A questão da “linguagem musical” justifica a introdução de um parêntesis. Em rigor, a música não será uma linguagem 58 (falta-lhe tanto o nível semântico como o gramatical), mas a observa, como a linguagem, um nível sintáctico. Lima, Luiz Filipe. Choro: aprenda você mesmo. Revista Roda de Choro n.º 4. Creio haver aqui necessidade de precisar o que se entende como acompanhamento pois, em sentido estrito, no Choro, o acompanhamento é realizado por instrumentos harmónicos. O contracanto realizado pelos instrumentos melódicos poderá ser considerado acompanhamento apenas em 59 sentido genérico. Que Jacob qualifica, no seu depoimento ao MIS, como representando «o que de mais típico possa ter um choro, a beleza da melodia, a beleza da harmonia, a rítmica, o encadeamento das modulações muito bem feito, embora tenha apenas duas partes, isso é a única coisa que ele foge ao choro comum». 13. APRENDIZAGEM DO CHORO «Será que o Choro se aprende na escola? Ou prescinde da formação acadêmica, se não for mesmo incompatível com métodos de aprendizagem rigorosamente escolásticos? Será mesmo que no Choro, assim como na letra 60 de Sinhô, “quem quer se fazer não pode, quem é bom já nasce feito”?» . As questões, colocadas por Luiz Filipe Lima em 1996, em artigo publicado na revista Roda de Choro, apresentam uma face do problema da aprendizagem do Choro. A aprendizagem do Choro é contrastada com os processos de aprendizagem formal realizados nos Conservatórios e Escolas de Música. A necessidade de dominar a decifragem musical, imposta pelo mercado de trabalho, bem como a aproximação ao Choro de músicos oriundos de práticas de tipo erudito, pressionam no sentido da incorporação da notação musical na prática chorística. A maneira informal mais difundida de aprendizagem instrumental é a da imitação através da audição de registros discográficos, buscando o aprendiz as soluções possíveis para reproduzir um determinado tema. É o recurso mais acessível a quem não domine a leitura musical ou, pelo menos, os rudimentos da decifragem da escrita musical (que, como se verá, não é a mesma coisa). Houve uma época em que o recurso à audição era o mais utilizado na aprendizagem do Choro. O «enaltecimento das capacidades auditivas dos 61 músicos » era consagrado na expressão «tocar de ouvido», e na apreciação das qualidades dos chorões «tinha um ouvido apuradíssimo ... era dificultoso 62 63 cair , tal os recursos que tinha naquele instrumento» . O método de aprendizagem baseado no «tocar de ouvido» concretizava-se tanto através da Roda de Choro quanto pela audição de gravações em disco. Tal método impõe um exercício apurado da memória musical. A questão também pode ser posta de forma inversa. O «tocar de ouvido» não é contrário à aprendizagem formal da música, embora muitos dos processos de ensino formal da música (sobretudo nos instrumentos de sopro) excluam ou limitem essa capacidade musical essencial que é a aplicação sistemática da memória na prática musical. 60 61 Lima, Luiz Filipe. Choro: aprenda você mesmo. Revista Roda de Choro n.º 4. Taborda, Márcia. Dino Sete Cordas. 62 Revista do Museu da Imagem e do Som n.º 0. Cair, neste contexto, significa perder a harmonia. 63 Idem Taborda, Márcia. Sobre José Celestino. Aquilo que muitas vezes é visto de forma quase pejorativa na aprendizagem formal - tocar de ouvido - corresponde a uma qualidade fundamental de qualquer músico e o músico de Choro faz uso costumeiro dessa qualidade. Acontece também que o uso da memória implicado no «tocar de ouvido» abre caminho a outra qualidade, não menos importante: a aplicação sistemática do pensamento sobre o contexto tonal, na antecipação do movimento harmônico -uma forma de pensamento intrinsecamente musical, que se irá revelar na capacidade de improvisação. Uma proposta concreta para a aprendizagem do Choro foi apresentada por Mário Séve em Vocabulário do Choro. Baseando-se essencialmente na obra de Pixinguinha, o autor apresenta um conjunto de padrões melódicos que considera característicos do Choro e susceptíveis de configurar um vocabulário musical. Ressalta, todavia, uma questão: optando por expor cada «padrão» do seu «vocabulário» em todas as tonalidades, o autor segue o costume dos métodos de ensino tradicionais dos instrumentos de sopro (os tais métodos escolares), em que não se requer ao praticante o exercício da transposição (ela está já 64 feita no papel), remetendo-o para uma relação mecânica com a partitura . O exercício do pensamento musical é natural ao Choro. No seu depoimento ao MIS, Pixinguinha faz uma revelação fundamental quando, acerca da audição de uma peça para violoncelo e piano de Villa-Lobos, diz: «não entendi nada». Ora, sem entrar na apreciação da obra de Villa-Lobos, o que importa aqui é a consciência clara de Pixinguinha sobre a importância de, no Choro, se entender o que se ouve. É o entendimento musical que permite a antecipação do sentido de transformação do contexto harmônico. É o entendimento musical que permite a improvisação. Contrastando com a valorização do adestramento mecânico, característica mais presente na didática da chamada música erudita, no Choro, a música se exercita e se pratica de forma mais próxima à da linguagem. E, sem fazer a «apologia romântica do autodidatismo ou do aprendizado 65 informal» como recomenda Luís Filipe Lima , creio que 64 Nesse aspecto particular, diria que o Choro e os tais «métodos escolásticos» não são, de facto, compatíveis. 65 Lima, Luiz Filipe. Choro: aprenda você mesmo. Revista Roda de Choro n.º 4. é exatamente essa maior proximidade, essa familiaridade musical, que faz com que o Choro continue a ser uma forma de expressão musical popular. A roda é o espaço mais característico do Choro. Pois só «tocando em conjunto, experimentando, criando cumplicidade com os outros músicos, (...) tocando pela primeira vez um choro do qual só se sabe o tom (...), é assim que se pode capturar 66 a essência do choro» . Mas há, na prática musical do Choro, coisas que não se ensinam através dos processos de aprendizagem formal. 66 Lima, Lu iz Filipe. Choro: aprenda você mesmo. Revista Roda de Choro n.º 4. 14. A QUESTÃO DA SONORIDADE NO CHORO O ato de ouvir inclui a percepção do som de resposta da sala (o somatório do som que é percebido diretamente da fonte -os instrumentos - com a reverberação propiciada pela sala). A sonoridade é também um parâmetro que caracteriza a sonoridade naturalmente para um determinado tipo de música. A questão está em que a nossa cultura auditiva hoje é determinada sobretudo pela audição do som difundido por aparelhagens. E esse som é regra geral fabricado. A sonoridade é determinada previamente nos processos de captação e de masterização, onde são condicionados diversos parâmetros do som, nomeadamente, a equalização, a reverberação, a espacialização e a normalização. E o ouvinte pode ainda regular a amplitude geral do som emitido. Se observarmos a necessidade de equilíbrio de um determinado conjunto instrumental que desempenhe sem recurso a amplificação (sobretudo quando se misturam cordas dedilhadas, instrumentos de sopro e de percussão), haverá uma sonoridade natural a esperar. O necessário equilíbrio no volume relativo dos diversos instrumentos proporcionará uma determinada sonoridade. Se os instrumentos forem amplificados ou tratando-se de um registro feito com recurso a gravador multipista, com a plena individualização de cada instrumento, esses valores poderão ser manipulados. Um instrumento de menor amplitude potencial poderá (e isso é freqüente nas edições discográficas) soar com mais presença que outros normalmente de maior potencial. Mas além da reconstrução da sonoridade do conjunto, o processo de masterização coloca outra questão à nossa formação auditiva. Podendo controlar ao detalhe a sonoridade de cada instrumento, a audição é guiada. O que não ocorre quando presenciamos uma apresentação ao vivo ou quando dela somos participantes. A música é um evento social onde participam interpretes e público. A interação entre esses participantes, uns mais ativos outros mais passivos, vai caracterizar a natureza social do evento. O comportamento social determina uma distância entre intérpretes e público. Num auditório, seja ele uma sala de teatro ou em casa (como acontecia nos saraus em casa de Jacob do Bandolim), o silêncio da assistência é um requisito que revela uma certa sacralização do evento. Mas em outros espaços onde a execução do Choro é realizada há um certo ruído ambiente. O som ambiente não faz parte da música, mas faz parte do evento. E a música coabita com ele. O Choro, como toda a música de qualquer gênero, estilo ou forma, pode certamente ser ouvido em palco de teatro, auditórios das mais variadas feições, em casa, ao ar livre ou no isolamento dos estúdios. A questão está em saber qual a influência que o ambiente sonoro tem sobre o ouvinte e as implicações ao nível da fruição estética. No estúdio, onde o propósito é construir uma hipótese de som, todos os passos se focam no propósito de criar uma sonoridade que simule a realidade do som ouvido na sala. A sonoridade da música gravada por este processo é fabricada não pelos músicos mas pelo engenheiro de som. Enquanto a gravação em estúdio, a mais praticada na música popular, se submete a um ideal de sonoridade concretizado pelo engenheiro de som, a gravação ao vivo permite o registro do som da sala em toda a sua grandeza. O termo grandeza é aqui considerado no sentido proposto por Tovey como um parâmetro da sonoridade musical. A definição desse autor sobre o ideal clássico de sonoridade da música de câmara é lapidar: «o ideal clássico da sonoridade na música de câmara contempla tanto de grandeza como de intimidade. A apreciação, pelo ouvinte, de um trio ou quarteto ocorre apenas quando o som preenche a sala. A noção clássica de grandeza [do som] 67 determina a forma artística» . O conceito de grandeza faz retornar a questão do «Choro música de varanda». Se constatamos, como aponta Henrique Cazes, «que o habitat natural deste tipo de música é a roda de Choro, um encontro doméstico (...)» realizado «de preferência, numa varanda ou num quintal», teremos de considerar as implicações dessa constatação no que respeita à sua sonoridade específica do Choro. Mais radical, Jacob do Bandolim assevera que «não se compreende o choro sem um quintal e os quintais estão rareando hoje em dia». Na sociedade contemporânea, a fruição da música é cada vez mais passiva, sendo o contato com a música feito essencialmente através de material gravado. 67 Tovey, D. F (1944). Essays in Musical Analysis - Chamber Music. Oxford Univ. Press. «The classical idea of chamer music implies bigness as well as intimacy, and the listener is not enjoying the normal effect of a trio or quartet unless the sound is filling the room. The classical notion of bigness determines the art form». Pierre Schaffer, na sua proposta de «Solfejo do Objeto Sonoro» aponta para a existência de vários tipos de audição, entre elas, o que designou por «audição acusmática». Trata-se do tipo de audição que efetuamos quando não há estímulo visual relacionado com o som. É o tipo de atenção que exercitamos quando ouvimos música através de um disco ou de emissão radiofônica. É também a situação que hoje inunda os espaços públicos. A atenção «acusmática» se impõe na apreciação do Choro até porque o suporte discográfico foi um dos veículos essenciais para sua difusão e fixação. No caso do particular do caminho seguido na pesquisa que é relatada neste texto, procurou-se privilegiar o som natural. Os registros foram feitos com captação em estéreo, sempre do conjunto, sem recurso a amplificação ou à mixagem multipista. Seguindo os procedimentos mais habituais ao registro de música de câmara, as gravações foram feitas com a finalidade de se captar o som da sala (salão colonial do Instituto Cultural Cravo Albin, encrustado na rocha primária do Pão de Açúcar e cercado por um braço verdejante da Mata Atlântica, na Urca). A sonoridade registrada foi aquela que os músicos participantes quiseram e souberam criar. II CAMINHOS 1. DA GESTAÇÃO E NASCIMENTO AO RESGATE DO CHORO O Choro apresenta um período de gestação e um momento em que nasce enquanto comportamento musical com características particulares. Enquanto prática musical, o Choro caracteriza um comportamento social que se manifesta em eventos específicos, os Chorões do Rio de Janeiro, conduzindo à criação de grupos instrumentais tipificados, os Choros. O repertório desses grupos era constituído por composições baseadas nas formas de dança de salão européias e em algumas formas musicais especificamente brasileiras. Os músicos participantes nesses eventos eram também designados por Chorões. O conteúdo do termo Choro abrange, genericamente, os eventos (substituindo o termo Chorão, que passa a ser utilizado apenas para designar o músico do Choro), os grupos, o repertório, o estilo interpretativo ou, numa acepção ampla, o gênero musical. A gestação ocorre no Rio de Janeiro, através do cruzamento de comportamentos musicais predominantes no período histórico designado, no Brasil, por Belle-Epoque. As músicas de dança européias, novidades avidamente consumidas em modismos de forte expressão, adquirem novos traços quando realizadas pelos músicos seresteiros, herdeiros das tradições musicais antecedentes que se desenvolveram no Brasil colonial, na interação entre as três culturas matriciais do pais. Para o nascimento do Choro colaboram músicos de formação diversa, reunidos em agrupamentos de tipo organológico também diverso. Entre os conjuntos de cordofones (como o bandolim, o violão e o cavaquinho) e os de instrumentos de sopro (onde a flauta adquire maior presença, registrando-se no entanto a existência de clarinetes, saxofones, oficleides, bombardinos, etc.), não omitindo a presença do piano de Ernesto Nazareth, a organologia do Choro é, no seu nascimento, bastante diversificada. Quando se dá o nascimento do Choro, esta prática musical ainda não revela traços plenamente diferenciadores que o definam enquanto gênero musical. «Choros e serestas são nomes genéricos aplicados a tudo quanto é música noturna de caráter popular, especialmente quando realizada ao relento», informa Mário de Andrade. Mas, em determinado momento da sua história, o Choro participa de um processo de fusão com a música dos meios populares cariocas. Essa fusão também tem expressão no instrumental utilizado no Samba, parte dele oriundo do Choro (nomeadamente, os violões e o cavaquinho) e, reciprocamente, na progressiva inclusão da percussão no Choro. Observando aspectos intrinsecamente musicais, o elemento mais característico daquela fusão manifesta-se na tercina sincopada que Darius Millhaud apontou como sendo aquele «tudo nada tão especificamente brasileiro». Mas há, também, uma transformação no caráter do Choro. Torna-se mais leve. Diz Jacob do Bandolim que «Pixinguinha deu rítmica ao choro, deu graça ao choro. Esta leveza do choro, esta malícia, malícia que só Pixinguinha sabe dar (...) porque, até então o choro era tocado meio quadrado». E essa transformação de caráter conduziu, ou permitiu, uma transformação duradoura, na estrutura organológica do Choro. Surge a formação de tipo «regional», que consagra o papel do cavaquinho, dos violões de seis e de sete cordas e da percussão, realizada hoje sobretudo pelo pandeiro. E essa base mais estável vem juntar-se aos instrumentos de desempenho melódico solístico (a flauta, o bandolim, o clarinete, etc) e instrumentos harmônicos como o acordeão. E o Choro se define, efetivamente, com Pixinguinha. É quando adquire aquele traço de leveza que aponta Jacob, sem perder a potencialidade de expressar ambientes nostálgicos de grande intimidade. O gênero apresenta uma série de metamorfoses que não se revelam necessariamente a nível formal, mantendo-se o recurso à forma rondó, mas sobretudo no ato da interpretação, da recriação, que ocorre sob a forma de variações melódicas e de contracantos improvisados. 68 Não obstante o primado rítmico-harmónico que orienta a improvisação, os contracantos em contraponto, realizados tanto nos instrumentos de sopro como nos cordofones (procedimento que assumiu um valor idiomático no violão de sete cordas), levaram ao surgimento de uma textura polifônica que marca a sonoridade do Choro enquanto gênero musical. 68 Já assinalado por Mário de Andrade no verbete relativo ao Choro incluído no Dicionário Musical Brasileiro. A improvisação abre caminho ao desenvolvimento de procedimentos de modulação que estabelecem um ritmo harmônico mais desenvolto que aquele que é frequentemente utilizado nas formas da música trivial européia que concorreram para o nascimento do Choro. O Choro afirma-se como prática popular, mas manifesta uma aproximação progressiva ao universo da chamada música erudita. O mercado de trabalho impõe alterações ao comportamento musical dos músicos, pela aquisição de competências ao nível da leitura de partituras (tanto da notação musical em pentagrama como de cifras relativas à harmonia). Mas o Choro conserva um reduto na prática amadora. As rodas de Choro, prática decorrente dos encontros domésticos tão comuns na fase de gestação, passam a ser o ponto de contato entre os músicos profissionais e os aprendizes do Choro. E o seu espaço de realização pode ser a varanda, o quintal ou o botequim. Após um período de presença na Rádio e no mercado discográfico, onde pontificam figuras como Luperce Miranda, Jacob do Bandolim, Meira, Aníbal Sardinha e Benedito Lacerda, o Choro começa a perder terreno como gênero, passando os músicos de Choro a serem utilizados como mão-de-obra para o acompanhamento de cantores que assumiram o papel de protagonistas. O «regional» passa a ser o conjunto da Rádio, até que as formações equiparáveis às praticadas no jazz lhe tomam o lugar. Quando se perde o último vínculo de um «regional» com a rádio, o Choro sofre, enquanto prática social, um forte declínio. Vai reaparecer na década de setenta, agora sob a égide de Radamés Gnatalli, quando uma nova geração de Chorões oriundos dos meios universitários mas com a experiência juvenil da roda de Choro - prática que se mantinha viva na Penha (no botequim Sovaco de Cobra) - se organiza numa formação, a Camerata Carioca, que, contemplando a organologia do «regional», se direciona para um tipo de trabalho de âmbito camerístico. Os festivais surgem como espaços catalisadores impulsionadores desses grupos de novos intérpretes. A experiência da Camerata Carioca teve o seu ocaso. Mas os músicos que nela participaram continuaram ligados ao Choro e assumiram, cada qual no seu caminho, novos rumos. Surgem iniciativas de âmbito didático, editorial e de produção discográfica, onde estes músicos dão corpo a novas formas de atuação que podem ser definidas como a expressão de um movimento revivalista do Choro. As figuras tutelares de Jacob e Gnattali somam-se a Pixinguinha. O processo revivalista de resgate do Choro, a partir da década de 90, busca a renovação dos repertórios praticados pelos Chorões, agora sobretudo em bares e espaços de entretenimento público, contando com o suporte ativo de instituições públicas como o Museu da Imagem e do Som, que promoveu o Festival “Chorando no Rio” e manteve durante vários meses uma presença regular do Choro, aberta, na Lapa. Este espaço transformou-se num local privilegiado de lançamento de novos praticantes, coabitando com os grupos de músicos mais experientes, reatando assim a forma tradicional de contato dos músicos amadores ou em vias de profissionalização com os profissionais mais experimentados. A vitalidade do Choro é preocupação manifesta dos seus praticantes mais esclarecidos (ou mais intervenientes na formação de opinião). Surgem iniciativas editoriais como a revista Roda de Choro, onde alguns dos principais ativistas do movimento revivalista do Choro apresentam e confrontam pontos de vista. Começa a manifestar-se a atenção do meio acadêmico, que se envolve na produção de monografias e teses sobre a história e os personagens do Choro. Surgem no mercado algumas iniciativas editoriais sobre a história do Choro ou sobre a didática de instrumentos típicos do Choro, enquanto se multiplicam as iniciativas de âmbito discográfico especialmente dedicadas a este tipo de música. E o Choro acontece na praça, na Lapa, frente ao Museu da Imagem e do Som, na Cobal de Humaitá e em outros locais da cidade do Rio de Janeiro, assim como em outras cidades do Brasil. O Choro ganha espaço na Internet, com dezenas de sites dedicados especificamente a ele, e começa a ser projetado além fronteiras através de músicos de diversos países. A vitalidade do movimento revivalista é evidente. O resgate do Choro é a bandeira que aglutina interesses tão diversificados (das pesquisas acadêmicas aos projetos discográficos ou à indústria do entretenimento) e, ainda, pelo simples mas intenso prazer de fazer e ouvir música deste tipo, ou numa acepção ampla, deste gênero de música. 2. DO CHORO ENQUANTO GÊNERO Retomando a questão colocada anteriormente, a nível especificamente musical, como é que o Choro se caracteriza enquanto gênero (e como é que se diferencia de outros gêneros)? O Choro, enquanto prática musical, apresenta várias transformações observáveis no decurso da sua história. A sua instrumentação passou do conjunto composto por flauta, violão e cavaquinho, para agrupamentos mistos onde se incorporaram tanto o piano como os instrumentos trazidos das bandas filarmônicas. Outros instrumentos menos representativos em número de praticantes tiveram presença assinalável (até pela originalidade) no Choro, 69 como a guitarra havaiana e a cítara . A função do Choro apresenta um quadro de modificação característica da música funcional que se transforma em objeto portador de sentido histórico. Inicialmente era música de baile. Os gêneros que deram origem ao Choro foram as danças (polcas, valsas, schottiches, tangos, habaneras, lundus, maxixes, etc.). Hoje o Choro já não é música de baile. A sua fruição incorporou um comportamento contemplativo comum ao da música erudita. O lugar de execução acompanhou o percurso da sua transformação funcional. De música de varanda ou quintal, o Choro conquistou as salas, nos saraus familiares e acabou por entrar no território antes cativo da música erudita, as salas de concerto e teatros. A estrutura da composição no Choro observou uma fixação na forma rondó em três partes. A forma bipartida teve o seu primeiro gesto assinalável em Pixinguinha (com Lamentos e Carinhoso). A duração do Choro observou uma condicionante tecnológica imposta pelo processo registro discográfico (os discos de 78 rotações, por exemplo, restringiam a duração dos fonogramas a cerca de 3 minutos). 69 Da guitarra havaiana há os registros de Aníbal Sardinha e Carolina Cardoso Menezes, em duo com piano. A cítara tem como figura de referência Avena de Castro. 3. DO INSTRUMENTAL DO CHORO A organologia do Choro é bastante diversificada. A história da Choro apresenta um vasto conjunto de registros sonoros, hoje acessíveis ao público em geral, através da obra de Humberto Franceschi A Casa Edison e seu Tempo, e do volume Memórias Musicais, onde são apresentados quinze CDs com uma seleção de fonogramas registrados e editados na primeira metade do século XX, no Brasil. Esses registros permitem observar a música através da sua forma de representação mais direta: o som gravado. A gravação é uma forma de representação audível do som musical, da mesma forma que a partitura é uma das suas formas de representação gráfica. Mas o som gravado, sendo uma representação do fenômeno vivido, deve ser observado atendendo a dois fatores essenciais: um que diz respeito às contingências do ato da gravação e o outro e às contingências da reprodução do som. Por outro lado, a coleção de registros disponibilizados são uma escolha sobre um conjunto de registros que, quando foram feitos, já refletiam critérios de escolha onde entram fatores de ordem comercial, técnica e estética. Mas, mesmo atendendo a essas contingências, as gravações da Casa Edison constituem o maior conjunto de dados acessíveis e, por isso, fonte incontornável numa pesquisa sobre o Choro. O conjunto de flauta, violão e cavaquinho é a formação básica da origem do Choro. A essa formação, que representa a herança seresteira do Choro, se somam outros instrumentos, nomeadamente, o oficleide, o bombardino e o saxofone. Os conjuntos de Metais e as Bandas aparecem nos registros sonoros do Choro logo na fase da gravação mecânica. Razões óbvias para essa presença derivam das características acústicas desses instrumentos e das contingências impostas pelo processo de gravação. Mas as bandas não se apresentavam para as gravações com os seus efetivos completos. A sala onde se realizavam essas primeiras gravações não comportava mais que uma dúzia de executantes. E essa limitação de espaço pode, dessa forma, ter contribuído para a manutenção do espírito camerístico do Choro. O piano aparece nos registros da casa Edison em formas de participação extremas: como instrumento acompanhador (por exemplo, nas gravações de Patápio Silva) ou como instrumento solista (como nas gravações de Ernesto Nazareth). No início do século XX, os «pianeiros», assim se designavam os pianistas populares, tocavam em festas, em cinemas e em teatros e tocavam «também como empregados das casas de música para demonstrar ao piano as 70 partituras impressas para venda» . Os «regionais» resultam da transformação dos grupos de choro do final do século XIX. «A generalização desse nome, provavelmente, originou-se na caracterização com roupas folclóricas, com que determinados grupos se apresentavam [no Rio de Janeiro], no final dos anos 20, dentre eles, os pernambucanos Turunas Pernambucanos, Turunas da Mauricéia e o carioca 71 Grupo do Caxangá, com Pixinguinha» . O «regional» foi a forma privilegiada de participação de músicos populares na Rádio, que se iniciou em 1922, desde a primeira transmissão radiofônica no Brasil, até os anos 80. «Durante meio século, de 1930, com a criação do Gente do Morro, até o inicio dos anos 80, na interrupção da carreira do Regional do Canhoto, com o falecimento de Meira e Canhoto, essa linhagem de chorões, que foi se modificando através dos anos, fixou a relevância musical e histórica de um grupamento instrumental, e até hoje serve de referência para músicos e 72 estudiosos da nossa música popular» . A flauta integra o Choro desde a sua gestação. Inicialmente a flauta utilizada era em ébano, normalmente de cinco chaves. Posteriormente introduz-se no Brasil a flauta em sistema Bohem. Desde o século XIX, com Matheus André Reichert (1830-1880) até aos dias de hoje, com Odette Ernest Dias e Celso Woltzenlogel, a flauta teve forte presença no panorama instrumental brasileiro. No Choro, foi o instrumento de figuras como Joaquim Callado, Viriato Silva, Patápio Silva, Alfredo da Rocha Vianna Jr. (Pixinguinha), Benedito Lacerda, Altamiro Carrilho, Nicolino Cópia (Copinha). 70 Franceschi, Humberto. A Casa Edison e seu Tempo. 71 Prata, Sérgio. A História dos Regionais. 72 (http://www.samba-choro.com.br). Idem. Instrumento melódico frequentemente utilizado para o desempenho solístico, a flauta tem no Choro um repertório vasto e diversificado seja em termos de requisitos técnicos, seja em termos estilísticos. Mas o desempenho solístico no Choro não é exclusivo nem da flauta nem dos instrumentos de sopro. Esse desempenho é partilhado, entre outros instrumentos, com o clarinete, o saxofone, o bandolim ou o cavaquinho. A percussão é hoje realizada preponderantemente pelo pandeiro. Outros instrumentos de percussão, como o surdo, o reco-reco ou o ganzá, tiveram também utilização no Choro, sendo embora uma utilização mais restrita. Mais recentemente, também aparece a bateria em algumas formações de Choro. 4. A “RODA DE CHORO” E A MUDANÇA MUSICAL NO CHORO Num texto publicado na Internet, em 2001, por ocasião do Festival de Choro 73 “Chorando no Rio”, promovido pelo MIS , Luiz Otávio Braga sublinha «que o comportamento hoje episódico das rodas de choro não significa um sintoma de esmaecimento do gênero. O Choro está longe de ser uma forma 74 “morta”» . Duas questões são contidas na pequena citação: do choro -forma “viva” -e da existência episódica das rodas de Choro. No mesmo texto, o autor refere o papel do choro e seus instrumentistas na relação entre o popular e o erudito na música popular brasileira: «mesmo no ponto culminante da era radiofônica, onde evoluem músicos da dimensão de um Radamés Gnattali e a orquestração da música popular é fato marcante, o Choro teve presença notável, porquanto as grandes estações de rádio jamais abriram mão do conjunto de Choro - o “regional”». Sublinhando a sua experiência pessoal, Luiz Otávio Braga assinala que a geração à qual pertence “principiou a tocar no último quartel da década de 70, ainda se deu de ver, ouvir, para bem imitar, in loco, isto é, na roda de choro, músicos como Abel Ferreira, Claudionor Cruz, Dino Sete Cordas, Arlindo Ferreira (o Cachimbo), Meira”. Algumas das questões afloradas por Luiz Otávio Braga nesse texto informaram o enfoque desta pesquisa sobre a Roda de Choro. A hipótese sobre a qual se desenvolveu este trabalho é a que o Choro é sobretudo um processo musical, portanto, social que se realiza num espaço de interação específico: a Roda de Choro. Luiz Otávio Braga assinala que esse espaço, a Roda de Choro é hoje episódico, mas que, não obstante isso, o Choro se afirma como «forma “viva”». Manifesta-se assim um processo de mudança musical: o habitat em que se desenvolveu o Choro ao longo de mais de cerca de um século, a Roda de Choro, está em declínio. Mas a prática musical que o Choro representa sobrevive, migrando para novos espaços. Os protagonistas também mudam. Os instrumentistas de raiz popular cedem o seu território às novas gerações de músicos. A mudança musical assinalada ocorre por força de vários fatores internos e externos, entre eles o acesso a novos materiais (ou instrumentos) e a novas tecnologias de produção e difusão do som, e por interferências de âmbito estético, ideológico ou comercial. 73 74 Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Braga, Luiz Otávio. O Choro e o seu momento no século XXI. Em www.choro.com.br. As transformações operadas na prática social da música se revelam em modificações observáveis nos produtos musicais. É o sentido de mudança musical presente no conceito Choro forma “viva”. O preparo formal adquirido no circuito acadêmico, nomeadamente a utilização sistemática da partitura como recurso privilegiado de representação do som, introduz alterações substanciais na prática performativa. Ao Choro apresentam-se novos horizontes estéticos, proporcionados pelos recursos escolares. As instituições acadêmicas começam a integrar o Choro nos seus horizontes curriculares, trazendo novas formas de apreciação e valorização da música prática. Mas nesse processo de mudança o Choro perde alguns traços que o caracterizaram, perda decorrente da utilização desses novos recursos. A improvisação chorística, diálogo realizado através dos instrumentos onde a música adquiria foros de linguagem popular, tem de se adequar a novos contextos. O Choro -forma “viva” busca novos recursos. A música “global” observa novas regras, onde o novo se apresenta como um dos principais critérios de valoração. O Choro forma “viva” é contraposto ao “chorinho” (objeto portador de sentido histórico), prática musical coletiva que se desenvolveu num habitat próprio, hoje considerado episódico: a Roda de Choro. 5. QUESTÕES PARA A DIDÁTICA DO CHORO A roda de Choro continua a existir como espaço de formação e de transmissão oral (ou, antes, instrumental) da tradição. Mas a prática predominante da roda se observa não em encontros domésticos mas em espaços de desempenho profissional, nos palcos dos bares e restaurantes. Nesses espaços, os músicos do Choro cada vez mais utilizam o recurso de sistemas de amplificação de som, com implicações profundas na sonoridade e interação de grupo. Alguns comportamentos característicos do Choro são resultado de um refinamento, ao longo de décadas, de processos de interação entre instrumentistas. O contato visual adquire importância primordial no diálogo musical, mas não se trata apenas de comunicação entre protagonistas, trata-se da capacidade de ler, objetivamente, no desempenho gestual dos outros instrumentistas, sinais que conduzem a interação. Um exemplo interessante é o da comunicação entre os instrumentistas no violão de sete cordas e no violão de seis cordas. Na orgânica do Choro, cabe ao violão de sete cordas realizar os contracantos na região grave. Ao violão de seis cordas cabe o preenchimento harmônico. Mas o violão de sete cordas 75 também pode terminar os contracantos “armando o acorde” e o violão de seis cordas procurar, certas vezes, acompanhar o contracanto do violão de sete cordas em movimento paralelo. O contracanto é por regra improvisado, pelo que o violão de seis cordas tem de antecipar o sentido do contracanto para poder, de forma quase instantânea, fazer a sua variação em movimento paralelo. O recurso utilizado é a observação da mão esquerda do violão de sete cordas, cuja leitura lhe permite conhecer o sentido provável do contracanto. Trata-se efetivamente de uma leitura, mas sobre um sinal dinâmico, gestual, interpretado na prática do instrumento. Esta competência - de ler os sinais gestuais no desempenho de outro instrumento -foi adquirida no processo da aprendizagem proporcionado pela roda de Choro e refinada por aqueles instrumentistas que assiduamente se dedicavam à observação dos seus modelos, assistindo às gravações da Rádio ou procurando o convívio musical com eles. 75 “Armar o acorde” corresponde, na gíria do Choro, a terminar o contracanto com a apresentação de um acorde para preenchimento harmónico. E o refinamento dessa técnica de comunicação conduziu à ausência de domínio de outros processos de representação gráfica do som, nomeadamente 76 da partitura musical . Resta saber se o domínio da decifragem da partitura musical poderá suprir, por si, as necessidades de uma prática musical como Choro, em que a recriação se faz com freqüente recurso a procedimentos de variação e improvisação. Pode acontecer que, por inércia de um processo de adestramento musical baseado na leitura ou por economia de esforço, a aquisição da capacidade de decifrar (que não é o mesmo que ler) partituras conduza ao esmorecimento da capacidade de aplicação prática do pensamento musical e, no uso sistemático da improvisação, da capacidade de diálogo musical que caracteriza a prática do Choro. Estando o processo de mudança musical do Choro fortemente relacionado com a aproximação da sua prática aos ambientes escolares, seja pelo tipo de preparação formal que a nova geração de praticantes apresenta, seja pelo interesse que o Choro começa a despertar no circuito acadêmico, é muito provável que a sua prática venha acusar a presença de problemas que hoje são já reconhecidos pela pedagogia da música erudita. Uma das últimas contribuições para o desenvolvimento da didática musical foi 77 o constructo “audiation” apresentado pelo pedagogo Edwin Gordon . 78 Segundo ele, Audiation (ou audiação, na tradução portuguesa ) está para a música assim como o pensamento está para a linguagem e ocorre quando ouvimos e compreendemos música. Ao explanar a sua teoria da aprendizagem musical, Gordon coloca a capacidade de improvisação nos níveis mais elevados de inferência musical. Segundo Gordon, a criatividade representa um estádio de prontidão para a improvisação. Criar é mais fácil que improvisar porque há mais restrições no ato performativo que no ato criativo. Representando a criatividade e a improvisação uma relação contínua, para este autor, a 76 Em rigor, não se trata de uma ausência radical, pois a partitura é o modo de fixação e transmissão das composições originais sobre as quais se realiza o processo interpretativo. E a partitura é de uso frequente principalmente pelos solistas de sopro (a “rapaziada dos bemóis”, conforme a referência de Luiz Filipe Lima no artigo Choro: aprenda você mesmo), 77 78 anteriormente citado. Gordon, Edwin. Learning Sequences in Music. Chicago: GIA (1993). Foi essa a opção de tradução encontrada para o termo cunhado por E. Gordon. Os seus trabalhos, entre eles a Teoria da Aprendizagem Musical têm sido traduzidos pela Fundação Gulbenkian, em Lisboa. criatividade requer premeditação, enquanto improvisação faz apelo a 79 capacidades de reação imediata . Recentemente, a questão da improvisação mereceu deste autor uma atenção específica, tendo realizado pesquisas sobre a prontidão para a improvisação 80 rítmica e harmônica . Edwin Gordon, focando a questão da improvisação na aprendizagem musical acrescenta: a improvisação não pode ser ensinada, mas pode ser aprendida. Mário Séve apresentou uma proposta no seu livro «Vocabulário do Choro». Nesse trabalho são expostos elementos padrão retirados sobretudo da escrita de Pixinguinha. A proposta de Mário Séve, da qual se apresentou já um resumo em momento anterior, suscita duas questões: por um lado sobre a representatividade dos padrões selecionados de forma a constituir um “vocabulário do Choro”; por outro lado, a didática proposta não enfatiza o desenvolvimento do pensamento harmônico, aspecto essencial da prática chorística (pelo contrário, ilude o problema fornecendo a transposição de cada exercício em todas as tonalidades). Na verdade, o domínio das funções harmônicas é, sobretudo para um praticante de instrumento melódico, o elemento mais importante para o desenvolvimento dos contracantos improvisados. Recordemos a informação dada por Paulo Moura sobre a «importância da verticalidade na interpretação 81 do Choro» . Altamiro Carrilho propõe uma série de Chorinhos Didáticos para Flauta. O disco apresenta as partituras e gravação das 12 peças didáticas e mais doze faixas com as bases (os acompanhamentos), para o aprendiz poder tocar com o apoio de um conjunto pré-gravado. No mesmo sentido Luiz Otávio Braga havia realizado os LPs Dê uma canja!. Trata-se sobretudo de material de treino e não, necessariamente, de propostas de aprendizagem, todavia ambas as propostas suscitam questionamentos de ordem didática, nomeadamente ao nível da sequenciação da aprendizagem. A aprendizagem processa-se segundo uma seqüência que deve considerar tanto aspectos técnicos como estilísticos. A utilização de material pré gravado é do maior interesse para veicular modelos de sonoridade, mas os exemplos para treino não devem ser demasiado 79 80 Gordon, Edwin. Learning Sequences in Music. Chicago: GIA (1993). Gordon, Edwin. Studies in Harmonic and 81 Rhythmic Improvisation Readiness. Chicago: GIA (2000). Moura, Paulo. De Paulo Moura para Pixinguinha. No CD Choro (1906-1947), editado por Philippe Lesage. extensos sob pena de a atenção sobre o essencial se perder. Num trecho extenso, o enfoque vai provavelmente ser colocado ao nível da leitura (a partitura é, nos dois exemplos referidos, fornecida junto com o disco). Por outro lado, e essa será a maior limitação dos materiais didáticos pré-gravados, não há interação efetiva. E o Choro tem como característica primordial a improvisação em grupo, dentro de parâmetros estilísticos pré-determinados, improvisação suscitada pela interação entre os diversos instrumentistas. Recordando a definição de Mário de Andrade, «o Chôro implica no geral participação de pequena orquestra com um instrumento mais ou menos solista, predominando o conjunto». Andréa Ernest Dias apresenta a questão da didática do Choro numa 82 perspectiva diferente. No texto da sua dissertação de mestrado intitulada A expressão da Flauta Popular Brasileira - uma escola de interpretação, surge uma coletânea crítica onde são reproduzidas 12 peças do repertório do Choro e apresentadas sugestões de interpretação baseadas na experiência da autora como flautista. Sobre cada peça é feita uma descrição de aspectos formais e estilísticos, com a indicação de recomendações sobre o processo de estudo tendo em vista questões pertinentes à técnica do instrumento. Bruno de Souza Costa Pedroso apresenta outro tipo de proposta, não especificamente no âmbito da didática, mas de toda a pertinência para a questão: se trata de um projeto de software para a realização da batida do 83 pandeiro com recurso MIDI . A proposta de software não é o que nos atrai especialmente, mas sim o enquadramento histórico e analítico que a antecede. Entre os diversos elementos fornecidos, Bruno Pedroso expõe de forma sintética alguns elementos de análise musical baseados no conceito de Audição Estrutural proposto por Heinrich Schenker, integrados na teoria da gramática gerativa da música proposta por Fred Lerdahl e Ray Jakendorff. Os elementos teóricos expostos são aplicados na análise de algumas peças do repertório do Choro. 82 Apresentada à Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1996. 83 Pedroso, Bruno. Pandeiro MIDI - Geração automática de acompanhamento de pandeiro para melodias típicas do estilo Chorinho, baseada em critérios culturais. Site da Universidade de Brasília - http://primordial.cic.unb.br/lcmm/projetos/chorinho/chorinho.html Não se tratando de uma proposta didática vem cobrir uma lacuna no que refere à adequação de instrumentos teóricos para a análise musical de peças do repertório do Choro, instrumentos de fácil apreensão e grande utilidade na estruturação de uma proposta de aprendizagem. Não obstante os méritos assinaláveis a cada uma das propostas afloradas, a didática do Choro irá sempre requerer um componente curricular baseado na prática instrumental em grupo, pois essa será a única forma de se proporcionar a aprendizagem dos mecanismos de interação entre instrumentistas. As qualidades musicais próprias do Choro requerem essa dimensão coletiva. Outras propostas existem sob a forma de métodos para diversos instrumentos (cavaquinho, por Henrique Cazes; violão de sete cordas, por Luiz Otávio Braga ou por Marco Bertaglia, etc.), além de cursos livres realizados em diversas instituições, alguns orientados por músicos como Maurício Carrilho e Roberto Gnatalli. Um problema novo: o reforço do som (amplificação) Além do domínio técnico do instrumento, da capacitação para a improvisação dentro de critérios de estilo compatíveis com o gênero, a performance do Choro requer do executante um sentido de equilíbrio apurado. Esse será um dos pontos críticos atuais. Sendo a prática da roda de Choro cada vez mais ocasional e tendo o mercado de trabalho absorvido a maior parte dos seus praticantes nas chamadas «casas de choro» (esplanadas, bares e restaurantes) onde o som é sempre amplificado, o Choro vê dessa forma desaparecer uma condição essencial ao desenvolvimento da sua sonoridade específica: a intimidade, construída nos processos de interação auditiva e visual. Muda a qualidade do som e muda o sentido espacial da fonte do som. A sonoridade que se realiza na prática das «casas de choro» não é, de todo, de feição ao desenvolvimento do sentido de intimidade requerido pelo Choro. Prática de âmbito camerístico, o Choro desenvolveu-se e adquiriu características diferenciadoras enquanto “música de varanda”. A sua sonoridade é característica e diversa da que se obtém em sala de concerto, teatro, etc. Tal não significa que o Choro não possa ser executado nesses espaços. Mas requer um esforço de equilíbrio. Mesmo no âmbito da chamada música erudita, a música de câmara apresenta, para o repertório das diversas épocas, uma sonoridade característica e espaços mais adequados à sua realização. Mas podemos realizar as mais diversas formas de música instrumental nas mais variadas salas e espaços. Com a tecnologia disponível podese condicionar a reverberação de uma sala ou reforçar o som dos instrumentos através de sistemas de amplificação. Assim, a questão não será a de limitar a prática do Choro a um ambiente tido por ideal mas a de proporcionar os conhecimentos necessários à correta utilização das tecnologias por forma se obter o som desejado. O reforço do som através de sistemas de amplificação requer alguns conhecimentos básicos de acústica de salas, de técnicas de captação, mistura e amplificação do som e uma idéia muito clara do som que se pretende dos instrumentos. Saber o que se pode esperar de um determinado equipamento é a primeira condição para permitir ao técnico de som a realizar um melhor trabalho. Embora a engenharia de som seja acessória à prática performativa e esteja normalmente fora do âmbito de preocupações do músico, hoje ela está presente no nosso quotidiano de tal forma que o som que modela o nosso gosto, através da audição de registros discográficos ou da rádio, é na sua maior parte determinado pelo técnico de som. Se o músico não quer ou não pode desempenhar essa função, deverá pelo menos saber dialogar com o técnico de forma a poder interferir positivamente nessa dimensão do processo. Em resumo As várias propostas referidas dão-nos uma súmula de elementos a integrar numa didática do Choro: – Recurso a padrões tonais e a padrões rítmicos para o estabelecimento de um léxico básico do Choro; – Estabelecimento de rotinas de exercício sobre esse léxico, adequadas a cada instrumento de acordo com as suas especificidades e ao papel desempenhado pelo instrumento na orgânica do Choro; – Recurso a referências teóricas para a análise musical do repertório, com vista ao seu pleno entendimento; – Recurso a material didático de treinamento, baseado na representação sonora do repertório; Ao nível curricular: – Estabelecimento de um currículo que apresente objetivos organizados sequencialmente de acordo com o processo de aprendizagem musical; – Integração, nas práticas curriculares, do espaço de música de grupo através da recriação da orgânica da roda de Choro; – Integração, nas práticas curriculares, de componentes tecnológicas de reforço do som (microfonia, equalização, mistura e amplificação). E a didática da música terá muito a ganhar aproximando-se do Choro. O processo de aprendizagem do Choro, depurado em décadas de prática por largas centenas de músicos, merece ser estudado ao nível da pedagogia e da didática da música. Dele se poderão extrair indicações preciosas para a didática da música, aplicáveis no quadro da chamada «música erudita».