Livraria ~6° Prêmio Jabuti nhador da Categoria ias Exatas, Tecnologia e Informática . ...-- · Conceitos de Física Quântica ,•<· í i í l - 1 l \ \, i \, Editora Livraria da Física Osvaldo Pessoa Jr. Conceitos de Física Quântica Editora Livraria da Física São Paulo - 2005 - 2ª. Edição Copyright 2003 : Editora Livraria da Física Editor : José Roberto Marinho Capa: Arte Ativa Revisão : Osvaldo Pessoa Jr. Impressão : Gráfica Paym Dados de catalogação na ·Publicação (CIP )Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pessoa Junior, Osvaldo Conceitos de Física Quântica / Osvaldo Pessoa Jr. - -1. ed. - - São Paulo: Editora Livraria da Física, 2003 . Bibliografia. 1 . Física 2 . Teoria quântica 1 . Título. CDD- 539 03 - 3759 Índices para catálogo sistemático: o 1 Editora Livraria da Física Telefone: Oxxll - 3816 7599 Fax: Oxxll - 3815 8688 e-mail: livraria@if.usp.br Página na internet: www.livrariadafisica.com.br SUMÁRIO * Indica seções que podem ser puladas sem perda de continuidade Volume 1: SISTEMAS DE UM QUANTUM APRESENTAÇÃO XV Cap . I: DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA 1. A Essência da Física Quântica 2. A Contradição entre Onda e Partícula 3. Dualidade Onda-Partícula: versão fraca 4. Quatro Interpretações Básicas 5. Regime Quântico: Ondas de Baixa Intensidade 6. Soma e Divisão de Ondas 7 Cap. II: lNTERFERÔMETRO DE MACH-ZEHNDER 1. Interferômetro de Mach-Zehnder Clássico 2. Interferometria para Um Fóton 3. Por Qual Caminho Rumou o Fóton? 4. Variando a Fase de um Componente 9 11 13 14 Cap. III: COMPLEMENTARIDADE DE ARRANJOS EXPERIMENTAIS 1. "Fenómeno" Corpuscular 2. Dualidade Onda-Partícula: versão forte 3. Experimento da Escolha Demorada 4. Atualização do Passado no Presente 15 17 18 21 Cap. IV: ESTADOS QUÂNTICOS E O PRINCÍPIO DE SUPERPOSIÇÃO 1. Auto-Estado e Estados Ortogonais 2. Princípio Quântico de Superposição 3. Interpretações do Estado Quântico 4. Espaço de Hilbert: Abordagem Intuitiva 5. Observáveis 23 23 24 26 27 Cap. V: MEDIÇÕES DE TRAJETÓRIA 1. Medições de Trajetória no Interferômetro * 2. Fases Aleatórias e o Princípio de Incerteza 3. O Algoritmo Estatístico 4. O Postulado da Projeção 29 31 34 35 1 2 3 4 6 Conceitos de Física Quântica Cap. VI: COLAPSO DA ONDA OU REDUÇÃO DE ESTADO 1. Origens da Noção de Colapso e o Papel do Observador 2. A Não-Localidade no Colapso 3. O Experimento de Stern-Gerlach 4. Colapso no Experimento de Stern-Gerlach 5. A Redução de Estado segundo as Diferentes Interpretações 37 38 39 41 42 Cap. VII: EVOLUÇÃO UNITÁRIA 1. Evolução Unitária e Equação de Schrodinger 2. Reversibilidade Temporal 3. Recombinação dos Feixes de Stern-Gerlach 45 46 48 Cap. VIII: MEDIÇÕES EM FÍSICA QUÂNTICA 1. "Medição" enquanto Termo Primitivo 2. Medições Diretas na Física Quântica 3. Interpretações sobre as Medições em Física Quântica 4. Experimento de Resultado Nulo 51 52 53 54 Cap. IX: 0 PROBLEMA DA MEDIÇÃO 1. O Primeiro Problema da Medição: Caracterização 2. Criptodeterminismo e o Segundo Problema da Medição: Completeza 3. O Paradoxo do Laboratório Fechado 4. O Gato de Schrodinger 59 60 61 Cap. X: BASE MATEMÁTICA DA TEORIA 1. Estrutura Geral da Teoria Quântica 2. Revisão dos Postulados da Mecânica Quântica 3. Projetores e o Teorema Espectral * 4. Operadores de Momento e Posição * 5. Relações de Incerteza para Operadores 63 65 68 69 71 Cap. XI: 0 PRINCÍPIO DE INCERTEZA 1. Princípio de Indeterminação na Física Clássica de Ondas 2. O Princípio Quântico de Incerteza segundo as Diferentes Interpretações 3. Origens do Princípio de Incerteza 4. O Microscópio de Raios y 5. Concepção do Distúrbio Interacional 6. Observáveis de Não-Demolição 7. Retrodição 57 73 73 76 77 78 79 80 Sumário Cap. XII: EXPLORANDO OS PRINCÍPIOS DE INCERTEZA 1. Medições Conjuntas * 2. A Inexistência de um Operador Auto-Adjunto de Tempo * 3. O Princípio de Incerteza para Tempo e Energia * 4. Relação para Momento Angular e Ângulo * 5. Microscópio de von Weizsacker 83 84 85 88 88 Cap. XIII: A INTERPRETAÇÃO DA COMPLEMENTARIDADE 1. Origens da Complementaridade 2. Linguagem Clássica e a Questão do Macrorealismo 3. Descontinuidade e Distúrbio Interacional 4. Os Três Tipos de Complementaridade 5. Totalidade do Fenômeno 6. Outras Posições Ortodoxas 7. Principais Teses da Interpretação Ortodoxa 91 92 93 93 95 96 97 Cap. XIV: REALISMO E POSITIVISMO 1. Realismo em Geral 2. Os Problemas do Conhecimento 3. O Realismo Científico 4. Anti-Realismo na Física Quântica 99 100 102 104 Cap. XV: EXPLORANDO A COMPLEMENTARIDADE 1. Experimentos com Pá Giratória 2. Interferometria com Polarizadores 3. Fenômenos Intermediários entre Onda e Partícula 4. Interferômetro com Feixes Divergentes 5. Visibilidade em Fenômenos Intermediários 107 108 112 114 115 Cap. XVI: O ÁTOMO 1. Modelo Ondulatótio do Átomo 2. A Energia do Átomo é sempre Discreta? 3. O Átomo segundo as Diferentes Interpretações 4. É Possível Ver um Átomo? 5. Efeito Zenão Quântico 117 121 124 126 127 Cap. XVII: EXPLORANDO ÁTOMOS E CAMPOS 1. Férmions e Bósons 2. Indistinguibilidade 3. Teoria Quântica de Campo 4. Ondas de Luz vs . Ondas de Elétrons 5. O Vácuo 6. Pacote de Incerteza Mínima: Estados Coerentes 131 132 133 135 136 137 Conceitos de Física Quântica Cap. XVIII: MISTURAS E O OPERADOR DE DENSIDADE 1. Estados Puros e Misturas 2. Postulados para Operadores de Densidade 3. A Questão da Interpretação de Misturas 4. Flutuações em Misturas 141 143 Cap. XIX: SPIN E A INTERFEROMETRIA DE NÊUTRONS 1. O que é o Spin? 2. Simetria 4n dos Spins Semi-inteiros 3. Montagem do Interferômetro de Nêutrons 4. Recombinação de Feixes Polarizados 5. Uma Espira Inversora não provoca um Colapso? 145 146 148 149 151 139 1'40 Cap. XX: REVENDO O EXPERIMENTO DAS DUAS FENDAS 1. Explicar e Compreender 2. Revendo o Experimento das Duas Fendas 3. Relação entre Padrões com e sem Interferência 4. Interferometria com Elétrons 5. O Valor do Momento ao Passar pelas Duas Fendas EXERCÍCIOS APÊNDICE: Questionário Lúdico "Qual é seu Grau de Realismo?" Volume II: SISTEMAS DE QUANTA CORRELACIONADOS 153 154 156 159 160 163 181 Apresentação 1' Este livro foi elaborado ao longo de uma década de cursos de Fundamentos Conceituais da Física Quântica, ministrados nos Institutos de Física da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal da Bahia. A finalidade de tais cursos foi complementar as disciplinas usuais de Mecânica Quântica com uma abordagem mais intuitiva e menos matemática. Os problemas conceituais e filosóficos, normalmente evitados em tais cursos, são enfrentados con gusto no presente livro. A principal chave para destrinchar tais problemas é reconhecer desde o início que há diferentes interpretações plausíveis para a Teoria Quântica, todas com seus méritos e anomalias. Munidos de tais visões de mundo, o aluno pode compreender a sua maneira diferentes experimentos que são conceitualmente simples, mas que só foram realizados recentemente, devido às dificuldades técnicas. O formalismo matemático é apresentado da maneira mais simples possível, visando fornecer instrumentos para o entendimento dos problemas. A Parte I do livro é uma introdução bastante suave à Física Quântica, e pode ser aproveitada mesmo por aqueles que nunca cursaram uma disciplina de Mecânica Quântica, como alunos de Filosofia, Ensino de Ciências e História da Ciência. A Parte II exige um pouco mais de atenção matemática, e enfoca os problemas que surgem com dois quanta interagentes. O ponto alto deste assunto são as desigualdades de Bell e a discussão sobre realismo e localidade. Ao invés de apresentar um resumo dos tópicos cobertos, convido o leitor interessado a espiar o sumário do livro. Bastantes exercícios são apresentados no final do volume. Este livro não teria surgido sem o interesse dos alunos que participaram das disciplinas ministradas. Muitas das idéias aqui contidas surgiram de suas indagações, e a todos eles eu devo profundos agradecimentos. Várias colegas professores também contribuíram indiretamente na confecção deste livro, discutindo e ensinando-me aspectos do mundo quântico: Linda Wesscls, Harvey Brown, Carlos Escobar, Olival Freire Jr. , Luiz Carlos Ryff, Vincent Buonomano, Klaus Tausk, Sílvio Chlbeni, Michel Paty, Newton da Costa, Décio Krause, Amélia Império Hamburger, Alberto da Rocha Barros, Roberto Baginski, Roberto Montenegro, Maria Beatriz Fagundes e José Luís Silva. Agradeço também o apoio do editor do livro, José Roberto Marinho, e acima de tudo o incentivo da família, Ciça, Tô, Lipe, Nana, Beth e Frota. Nesta 2ª edição, foram feitas algumas pequenas modificações, sendo que a única importante refere-se à coITeção de um erro na Fig.V.4, além da inclusão de um novo exercício (Ex. IV.3). Capítulo I DUALIDADE Ü NDA-PARTÍCULA 1. A Essência da Física Quântica Qual é a essência da Física Quântica? Se você tivesse que resumir em duas linhas qual é sua maior diferença em relação à Física Clássica, o que você diria? Há várias respostas possíveis: a) O nome "quântico" sugere que o essencial é a presença de quantidades discretas, como os "pacotes" de energia, ou de , processos descontínuos. b) Pode-se também argumentar que a maior novidade da Teoria Quântica é o papel que a probabilidade nela desempenha, descrevendo um mundo essencialmente "indeterminista". P i c) Alguns autores consideram que a essência da Física Quântica é o princípio de incerteza, segundo o qual a posição e o momento de uma partícula não podem mais ser determinadas simultaneamente. d) Outros, com espírito mais filosófico, salientam que o que esta teoria tem de fundamental é que o observador não pode ser ./ separado do objeto que está sendo observado. e) O famoso paradoxo do "gato de Schrõdinger" parece sugerir que o traço mais importante é o princípio quântico de superposição. f) Aqueles com viés mais matemático afirmam que o essencial na Mecânica Quântica é o uso de grandezas que não comutam, ou o papel insubstituível desempenhado pelos números complexos. g) Mais recentemente, o teorema de Bell fez muitos concluírem que a grande novidade da Teoria Quântica é sua peculiar ::, não-localidade. ;1 h) Alguns acham que o mais marcante é que a constante de Planck h fixa uma "escala" na natureza, separando o mundo,,...., 0 microscópico do macroscópico. i) Todas essas afirmações são pertinentes. No . entanto, adotaremos como nosso ponto de partida a dualidade ondapartícula. Em poucas palavras, o que caracteriza a Teoria Quântica de maneira essencial é que ela é a teoria que atribui, para qualquer partícula individual, aspectos ondulatórios,e para qualquer forma de radiação, aspectos corpusculares. Esta é uma versão "geral" da dualidade onda-partícula, que refinaremos nas seções seguintes. À 2 Conceitos de Física Quântica 2. A Contradição entre Onda e Partícula Para a Física Clássica, uma partícula pode ser imaginada como uma bolinha bem pequena que se locomove pelo espaço, e que em condições normais não se divide. Além dessa indivisibilidade, uma partícula clássica também se caracteriza por estar sempre em uma posição bem definida, e com uma velocidade precisa. Com o passar do tempo, a partícula descreve uma trajetória bem definida, que pode ser concebida como uma curva no espaço. Uma onda, por outro lado, é concebida pela Física Clássica como uma excitação que se propaga em um meio, como a superfície da água, e que tem a característica de se espalhar no espaço. O que se propaga com a onda é energia, que se identifica com o movimento oscilatório das partículas do meio. Como esse movimento das pqrtículas pode ser tão tênue quanto se queira, podemos dizer que as ondas não possuem a característica de serem indivisíveis , mas que são contínuas, pelo menos em teoria. Além disso, as ondas circulares na superfície d'água claramente não descrevem uma "trajetória", do tipo definido para partículas. Elas são espalhadas no espaço, sem se localizarem em um ponto bem definido. Além de serem contínuas e espalhadas, as ondas exibem uma série de fenô menos típicos, como a interferência. Dizer simplesmente que "uma coisa (sem partes) é (ao mesmo tempo) partícula e onda" é uma contradição lógica . Pois isso implicaria que essa coisa é indivisível e divisível (contínua), que ela segue uma trajetória e não segue (é espalhada). Não podemos admitir uma contradição nos fundamentos de uma teoria física (apesar de este ponto ser passível de discussão) . E a dualidade onda-partícula, que mencionamos na seção anterior? Ela não parece enunciar uma contradição lógica, dizendo que partículas são ondas? Parece, mas não pode! A Teoria Quântica é obrigada a conciliar de alguma maneira "onda" e "partícula" sem cair numa contradição lógica. Como fazer isso? Veremos que existem dois tipos de enunciados diferentes para a dualidade onda-partícula. O que iremos chamar de "versão fraca" (seção I.3) tenta conciliar interferência (típico de uma onda) com a detecção pontual de um quantum (a indivisibilidade típica de um corpúsculo). Já a "versão forte" desenvolvida por Niels Bohr (seção III.2) concerne a existência de interferência e de trajetórias. Capítulo!: Dualidade Onda-Partícula 3. Dualidade Onda-Partícula: versão fraca A maneira mais completa de entender a indivisibilidade dos quanta, no caso da luz( é examinar o efeito fotoemissivo (fotoelétrico). Aqui, porém, iremos nos restringir a um experimento mais simples, feito com a luz pela primeira vez por Geoffrey Taylor em 1909, e também com elétrons a partir da década de 1950 1• O experimento é simplesmente o das duas fendas (no caso da luz), no qual a fonte de luz é bastante tênue (Fig. I.l). Se acompanhássemos a formação do padrão de interferência em telas fosforescentes, veríamos pontos aparecendo um após o outro, correspondendo a cada fóton sendo detectado de maneira localizada. Tais pontos, porém, se agrupariam em bandas, acompanhando o padrão de intensidade típico da interferência. Existem filmes mostrando a formação de tal padrão, ponto por ponto, no caso de elétrons CF;ig. I.2). \ Figura 1.1. Experimento de duas fendas para a luz. Por mais fra co que for o feixe de luz, após tempo suficiente o padrão de interferência se forma. 1 "f- 1 i' 1 ' ' / ! ' 1 Para uma resenha his , desses experi mentos com luz_ ver as pp. 294-301 de PIP~. F.M. (1978), "Atomic Ph_ sics Tests of the Basic Concepts in Quantum Mechanics", Advances in Atomic and Molecular Physics 14, 281-340. Para um resumo dos experimentos com elétrons, ver: HASSELBACH, F. ( 1992), "Recent Contributions of Electron Interferometry to Wave-Particle Duality", in SELLERI, F. (org.), Wave-Particle Duality, Plenum, Nova Iorque, pp. 10925. ----· / É importante frisar que essa formação ponto a ponto do padrão de interferência ocorre mesmo que apenas um fóton ou elétron incida por vez, por exemplo a cada segundo. Conforme ressaltou Paul Dirac em 1930: "Cada fóton portanto só interfere consigo mesmo . Interferência entre dois fótons diferentes nunca ocorre" (a segunda asserção não é sempre correta)2. Enunciemos então esta versão fraca da dualidade onda-partícula: Para qualquer objeto microscopico, pode-se realizar um experimento tipicamente ondulatório (como um de interferência), mas a detecção sempre se dá através de uma troca pontual de um pacote mínimo de energia. 2 DIRAC, P.A.M. (1947), The Principies of Quantum Mechanics, 3ª ed., Oxford University Press (orig. 1930), ·p. 9. Com relação à falsidade da segunda afirmação, ver PAUL, H. (1986), "Interference between Independent Photons", Reviews of Modem Physics 58, 209-31. 4 Conceitos de Física Quântica Figura I.2. Forrnàção paulatina do padrão de interferência. No caso da figura anterior, o que ocorre é que as ionizações na placa detectora ocorrem urna a urna . Notemos que nesta versão fraca, não afirmamos que os fótons ou elétrons sempre são indivisíveis ou pontuais em sua propagação, antes de atingir a tela detectora; apenas afirmamos que quando eles são detectados eles aparecem de maneira indivisível e pontual. Se quisermos nos referir a estes pontos sem nos comprometermos com a existência de partículas, podemos chamá-los de "quanta", ou nos referirmos à ocorrência de um "evento". Por outro lado, também não dizemos que um objeto quântico sempre se comporta como uma onda, mas sim que ele sempre pode exibir interferência; ou seja, é sempre possível definir uma montagem experimental (se esta for factível na prática) na qual o objeto exibe um padrão de interferência. Temos então conjuntamente uma característica ondulatória, a interferência, e uma característica corpuscular, a detecção pontual ("bem localizada") dos quanta. Como é possível que um mesmo experimento apresente ambas as características, ondulatória e corpuscular? 4. Quatro Interpretações Básicas Como interpretar a versão fraca da dualidade onda-partícula? Como é possível que um objeto quântico exiba propriedades contraditórias? O que está acontecendo na realidade, se é que podemos falar em "realidade"? É uma característica notável da Teoria Quântica que ela pode ser interpretada de diferentes maneiras, sendo que cada uma dessas interpretações é internamente consistente e, de modo : geral, consistente com experimentos quânticos. Usamos a noção de interpretação como significando um conjunto de teses que se agrega Capítulo!: Dualidade Onda-Partícula ao formalismo mínimo de uma teoria científica, e que em nada afeta as previsões observacionais da teoria. (Se houver previsões novas, deveríamos falar de uma "teoria diferente", mas se o desacordo com a Teoria Quântica for tão pequeno que não se possa fazer um experimento crucial para escolher entre elas, é costume considerar que a teoria diferente também é uma interpretação.) As teses agregadas pela interpretação fazem afirmações sobre a realidade existente por trás dos fenômenos observados, ou ditam normas sobre a inadequação de se fazerem tais afirmações. Existem dezenas de interpretações diferentes da Teoria Quântica, que podem ser agrupadas em quatro ou cinco grandes grupos 3 . Apresentaremos agora como quatro interpretações básicas, aqui simplificadas, explicam a versão fraca da dualidade onda-partícula ou o experimento das duas fendas para um único fó ton ou elétron. (1) Interpretação Ondulatória (consideraremos aqui a idéia de Erwin Schrõdinger de que os objetos quânticos são na realidade ondas, aproximando-a da visão de John von Neumann que introduz colapsos de onda). Antes da detecção, o objeto quântico propaga-se como onda, mas durante a detecção ele torna-se mais ou menos bem localizado, parecendo uma partícula. Não há mais contradição porque durante um certo tempo temos uma onda espalhada, e depois temos uma partícula (ou melhor, um pacote de onda bem estreito), sem que ambos coexistam simultaneamente. (2) Interpretação Corpuscular (defendida por exemplo por Alfred Landé, e mais recentemente por Leslie Ballentine). O fóton e o elétron seriam na realidade uma partícula, o que é manifesto quando o detectamos. Não existe uma onda associada: o padrão de interferência deve ser explicado a partir da interação da partícula com o anteparo que contém as duas fendas. Landé sugeriu que um anteparo cristalino daria "saquinhos" discretos na partícula, resultando no padrão de interferência com bandas discretas. (3) Interpretação Dualista Realista (formulada originalmente por Louis de Broglie, e redescoberta por David Bohm). O objeto quântico se divide em duas partes: uma partícula com trajetória bem definida (mas desconhecida), e uma onda associada. A probabilidade da partícula se propagar em uma certa direção depende da amplitude da onda associada, de forma que em regiões onde as ondas se cancelam, não há partícula. Não há mais contradição porque o objeto se divide em duas partes, uma sendo só partícula, e a outra só onda (4) Interpretação da Complementaridade (elaborada por Niels Bohr). Neste caso, o "fenômeno" em questão é ondulatório, e não :rpuscular, pois não podemos inferir a trajetória passada do quantum 5 3 Uma apresentação histórica dessas interpretações é dada por JAMMER, M. (1 974), The Philosophy of Quantum Mechanics, Wiley, Nova Iorque. A interpretação da complementaridade (que chamaremos de "dualismo positivista") é apresentada no capítulo 4 e nas seções 6.1 , 6.5 e 6.8 do livro de Jammer. As teorias de variáveis ocultas (que incluem o "dualismo realista") na seção 2.5 e no capítulo 7. As interpretações ondulatórias estão espalhadas pelas seções 2.2, 2.3, 2.6, 11.2, 11 .3 e 11.6. As visões corpusculares incluem a interpretação dos coletivos estatísticos, capítulo 10, e a estocástica, capítulo 9. Conceitos de Física Quântica 6 detectado (a partir da seção III.2 apresentaremos essa visão com maiores detalhes). O aspecto corpuscular que observamos na detecção se deve ao "postulado quântico" descoberto por Max Planck, e que para Bohr é o fundamento da Teoria Quântica. Este postulado afirma que existe uma descontinuidade essencial em qualquer processo atôrnico, como por exemplo na ionização de átomos de prata na chapa fotográfica devido à ação da luz. 5. Regime Quântico: Ondas de Baixa Intensidade Vimos um fenômeno tipicamente quântico, que foi obtido tomando-se um fenômeno descrito pela Física Clássica Ondulatória (interferência de luz), e reduzindo a intensidade do feixe de luz até o ponto em que se podem detectar pacotes individuais de energia. De maneira análoga, muitos dos mistérios da Física Quântica, como o princípio de incerteza e o efeito túnel, são fenômenos descritos na Física Ondulatória Clássica, e que passarri a ser fenômenos quânticos quando se reduz a intensidade do feixe e se melhora a sensibilidade dos detectores. Podemos resumir essa abordagem dizendo que o regime quântico é a Física das Ondas para baixas intensidades, quando propriedades corpusculares passam a aparecer. Para entender o comportam.ento da luz no regime quântico, é preciso considerar que a energia de cada fóton detectado é dada por E= hv, onde v é a freqüência da luz. O momento associado a este fóton é dado por p = h/À, onde À é o comprimento de onda. A primeira destas leis é devida a Albert Einstein (1905), baseando-se no trabalho pioneiro de Max Planck (1900), que definiu a constante h. A segunda foi generalizada para todas as partículas por Louis de Btoglie (1923), lembrando que para partículas com massa m não nula, p = m V, onde V é a velocidade da partícula. Para a luz, assim como para qualquer forma de onda, V·À = V. Em suma: (I. l) E=hV e p=h/À. Pela abordagem descrita acima, muitas características essenciais da Física Quântica já se encontram na Física Ondulatória Clássica. Um exemplo disso é a diferença que existe, para as ondas clássicas, entre amplitude e intensidade . Numa onda transversal em uma dimensão (como a gerada em uma corda)· a amplitude mede o deslocamento transversal da onda que se propaga, mas esta amplitude não é propor"cional à energia que se propaga. A intensidade 1 da onda (energia por unidade de tempo e de área, para ondas em três dimensões) é proporcional ao quadrado da amplitude 1f!: 1 Capítulo/: Dualidade Onda-Partícula J oc lf/2. 7 (I.2) No regime quântico, a intensidade corresponde ao número de quanta detectados . Assim, em ,uma região delimitada do espaço, o número de quanta detectados será proporcional ao quadrado da amplitude da onda associada àquela região. Se tivermos preparado experimentalmente apenas um quantum (um fóton, um elétron), a probabilidade de detectá-lo em uma certa região será proporcional ao quadrado da amplitude lf! da onda associada àquela região : (I.3) Prob. oc / lf! /2 . Esta é a regra proposta por Max Bom, em 1926. 6. Soma e Divisão de Ondas Quando dois pulsos de onda se cruzam em uma corda clássica, o pulso resultante tem uma amplitude que é a soma das amplitudes dos pulsos originais. Este é o princípio de superposição da Física Ondulatória Clássica: quando várias ondas passam por um ponto, a amplitude resultante é a soma das amplitudes componentes. Para duas ondas contínuas de mesmo À propagando-se na mesma direção e sentido, a superposição pode ser construtiva (ondas em fase) ou destrutiva (ondas deslocadas entre si por À/2) (Fig. I.3). + + Figura 1.3. Superposições: (a) construtiva (ondas em fase); (b) destrutiva (ondas fora de fase). (a) (b) 8 Conceitos de Física Quântica Se uma onda de intensidade 10 for dividida em duas partes de igual intensidade I', por exemplo a luz se dividindo em um espelho semi-refletor S (Fig. I.4), qual é a amplitude final de cada onda? Como I'= 10 12, é só usar a eq.(I.2) para ver que a amplitude final lfl' de cada componente não é a metade da amplitude lf/o da onda original, mas que lfl' = lf/ol Ji . Figura 1.4. Divisão de uma onda em duas componentes A e B de igual amplitude. 1 s LASER~ A ~ ~ B Pois bem, não poderíamos pegar as componentes A e B da Fig. I.4, acertar suas fases relativas, de forma a recombiná-las com superposição construtiva? Neste caso, a amplitude da onda resultante seria lf/o / Ji + lf/o / Ji = Ji ·lflo, donde a intensidade final do feixe seria 210 , maior que a do feixe inicial! Isso não é possível! Não podemos recombinar dois feixes dessa maneira simples para obter superposição construtiva. No capítulo seguinte veremos como se faz para recombinar amplitudes de onda. Capítulo II 1. Interferômetro de Mach-Zehnder Clássico Vamos agora apresentar uma arranjo experimental, envolvendo interferência de ondas, parecido com o experimento das duas fendas, porém mais simples. O aparelho em questão chama-se interferômetro de Mach-Zehnder4 . Para entender o funcionamento deste interferômetro, iremos considerar um feixe de luz como consistindo de ondas em uma dimensão. Um modelo ondulatório razoável para um feixe de luz, gerado por exemplo por uma lanterna, é de que ele consiste de um monte de "trens de onda". Vamos considerar apenas um destes trens de onda. O primeiro componente do interferômetro é um "espelho semi-refletor", que divide o feixe de luz em duas partes, uma transmitida e uma refletida, de igual amplitude (conforme vimos na Fig. I.4). Já vimos que neste caso de divisão de ondas, se a amplitude do feixe inicial é l/fo, a do feixe transmitido é !fio/ ..fi. , assim como a do refletido. Além disso, o trem de onda refletido sofre um deslocamento de fase em relação ao trem transmitido através do espelho. Adotaremos a regra de que a cada reflexão ocorre um avanço de 114 de comprimento de onda (À/4) em relação à onda transmitida. Isso é válido para espelhos semi-refletores que não absorvem luz e que são simétricos 5 . O esquema do interferômetro de Mach-Zehnder está na Fig. II. l. O feixe inicial passa por um espelho semi-refletor Si, que divide o feixe em um componente transmitido (A) e um refletido (B). Cada componente reflete então dos espelhos E 1 e E 2, e voltam a se cruzar no espelho semi-refletor S2, rumando então para os detectores (potenciômetros) D 1 e D 2• O que acontece? Como cada componente se divide em duas partes em S2 , poderíamos esperar que cada detector mediria 50% do feixe. Mas não é isso que acontece! Observa-se, quando a distância percorrida pelos dois componentes forem exatamente iguais e o alinhamento dos espelhos for perfeito, que 100% do feixe original incide em D 1, e 0% emD2! 9 4 Este aparelho foi desenvolvido em torno de 1892 independentemente pelo alemão Zehnder e pelo anstríaco Ludwig Mach, filho de Ernst 5 Ver ZEILINGER, A. (1981), . "General Properties of Lossless Beam Splitters in Interferometry", American Journal of Physics 49, 882-3 . Em classe, montamos um interferômetro no qual os espelhos semi-refletores são feitos através da deposição de uma fina camada metálica em uma das faces de um vidro transparente. Se a camada estivesse "sanduichada" no meio do vidro, o espelho seria simétrico, mas esse não foi o caso. Além disso, a camada metálica absorve uma pequena parcela da luz incidente. Assim, o avanço do feixe refletido em relação ao transmitido, no experimento montado em classe, não é de À/4. Mencionaremos outras propriedades do interferômentro didático na seção XVII.4. ,/'". 10 Problemas Conceituais da FíSica Quântica Fig. II.l. Interferômetro de Mach-Zehnder. Isso acontece devido à superposição construtiva em D 1 e à superposição destrutiva em D2 (ver Fig. 11.1). O feixe A se aproxima de S2 com uma amplitude l/fo / J2 e com um deslocamento de fase relativo de À/4 (por convenção, estamos considerando que a reflexão em E 1 também introduz esta defasagem); o feixe B se aproxima com mesma amplitude e uma defasagem de À/2 ciclo, pois sofreu reflexões em S 1 e E 2 . No espelho semi-refletor S2 , metade do feixe A é transmitido e metade é refletido, sendo que a mesma coisa ocorre para o feixe B. Consideremos as partes de A e de B que rumam para D 2 . O componente que percorreu o caminho A passa direto sem reflexão, permanecendo defasado em À/4, e passando a ter uma amplitude l/fo 12 após a divisão da onda; enquanto isso, o componente vindo de B sofre uma reflexão adicional (em S2), ficando deslocado em 3À/4, com amplitude l/fo/2. Temos assim uma diferença de À/2 entre os componentes de mesma amplitude, o que corresponde a uma superposição destrutiva. Ou seja, as amplitudes que atingiriam D2 se anulam, e nada é detectado neste potenciômetro. No caso das partes que rumam para Di, o componente que vem por A sofre no total duas reflexões (em Ei, S2), enquanto que o que veio por B também sofre duas (em S 1, E 2 ). Cada qual tem um deslocamento de fase de À/2, e assim não têm nenhuma diferença de fase entre si, resultando em uma superposição construtiva. Como cada um destes componentes que atingem D, tem amplitude l/fo/2, eles se somam resultando numa amplitude l/fo, igual à do feixe incidente! Podemos agora dissolver o paradoxo mencionado no final da seção anterior notando que só é possível superpor construtivamente dois componentes de onda que rumam em diferentes direções (como os componentes A e B) se os dividirmos e ocasionarmos uma superposição destrutiva de parte dos componentes resultantes. Capítulo II: Interferômetro de Mach-7.ehnder 11 2. Interferometria para Um Fóton Para transformar o arranjo precedente em um experimento quântico 6, no qual a dualidade onda-partícula seja relevante, é preciso diminuir a intensidade do feixe até que apenas poucos fótons incidam em S 1 por vez. Além disso , é preciso utilizar detectores sensíveis à presença de um único fóton , como é o caso de uma "fotomultiplicadora'', que possui uma eficiência de 30% (ou sej a, cerca de um terço dos fótons que nela incidem geram um sinal amplificado) . Mencionamos que experimentos ópticos com feixes fraquíssimos, de forma que apenas um fóton se encontre por vez dentro do interferômetro, têm sido feitos desde o começo do século. No entanto, em tais experimentos nunca sabemos quando o fóton está chegando no interferômetro. A partir de 1985, porém, tornou- se viável a preparação do que é chamado "estado monofotônico", ou seja, um pacote de onda que carrega exatamente um quantum de energia e que atinge o interferômetro em um instante bem preciso (dentro dos limites impostos pelo princípio de incerteza). Uma das maneiras de se fazer isso 7 (Fig. II.2) é direcionando um feixe de laser em um cristal não-linear (como o KDP, dihidrogênio fosfato de potássio) que tem a propriedade de transformar cada fóton incidente em dois fótons (cada qual com aproximadamente metade da energia do incidente) gerados simultaneamente e rumando em direções correlacionadas (processo conhecido como "conversão paramétrica descendente"). Quando um dos fótons do par for registrado em um detector D (uma fotomultiplic adora), sabe-se com certeza que o outro fóton está se aproximando de uma porta óptica P, que se abre durante um pequeno intervalo de tempo, deixando o fóton passar. Prepara-se assim um pacote de ondas com exatamente um fóton, cujo tempo de chegada no interferômetro é conhecido. O interferômetro de Mach-Zehnder para fóton s únicos tem o mesmo comportamento que o caso clássico: todos os fóton s incidem em D1 , e nenhum em D 2 ! Tal experimento foi realizado em 1986 em Orsay, na França, por Grangier, Roger & Aspect8. Ele exemplifica mais uma vez que cada fóton só interfere consigo mesmo. 6 O primeiro a descrever este experimento para explorar os fundamentos da Física Quântica parece ter sido Al bert Einstein, citado por BOHR, N. ([1 949) 1995), " O Debate com Ein stein sobre Pro blemas Epistemológicos na Física Atômica'', ili Física Atô- mica e Conhecimento Humano , Contraponto, Rio de Janeiro, pp. 62-3. Quem o explorou mais a fund o, como um ex perimento de escolh a demorada foi WHEELER, J. A. (1983), "Law without Law", in WHEELER, J.A . & ZUREK, W .H. (orgs.). Quantum Theory and Measurement, Prin ceton U. Press, pp. 182-21 3. 7 HONG , C. K. & M ANDEL, L. (1986), "E xperimental Realization of a Localized OnePhoton State", Physical Review Letters 56, 58-60, baseado na proposta de D. Klyshko (1977). Ver também BRAGINSKY, V.B . & KH ALILI, F.Y. (1992), Quantum Measurement, Cambridge U . Press, 1992, p. 5. 8 ÜRANG IER, P. ; ROGER, G. & ASPECT, A. (19 86), "Experimental Evidence fo r a Photon Anti correlation Effect on a Beam Splitter: A ew Light on Single-Photon Interferences" , Europhysics Letters !, 173-9. 12 Problemas Conceituais da Física Quântica [~ : [ Figura Il.2. Preparação de estado monofotônico. KD P : : p h~~.--· · ...... · / , ......... ............ 11\~"- . 1LASER uvpuhv;+ < f I hv;·-.. _ 3. Por Qual Caminho Rumou o Fóton? A questão a ser colocada agora é a seguinte. No interferômetro da Fig. II.1, depois que o fóton passou por S,, mas antes de incidir em S2, em qual caminho ele se encontra, em A ou em B? Vamos supor que o fóton se encontra em A, e não em B. Isso pode ser realizado experimentalmente retirando-se o espelho semi-refletor S1 de seu lugar (Fig. II.3a). Nesse caso, o fóton incide em S2 , e pode ser detectado ou em D 1 (50% de probabilidade) ou em D2 (50%), não ocorrendo nenhuma interferência de componentes. Se supusermos que o fóton inicialmente rumou por B, e não por A (realizado pela substituição de S 1 por um espelho de reflexão total, Fig. II.3b), também teríamos 50% de chance de detectá-lo em D 2 . Agora, se o fóton estivesse ou em A ou em B, continuaríamos a ter uma probabilidade de 50% de detectar o fóton em D 2 . Isso segue da própria definição do conectivo lógico "ou": se em A é 50% e em B é 50%, então em "A ou B" tem que ser 50%. No entanto, vimos que no experimento da Fig. II.1, para um único fóton, a probabilidade de o fóton atingir D2 não é 50%, é 0% ! Logo, é falsa a afirmação de que o fóton está ou em A ou em B! Isso é incrível! Vimos na seção I.3 que a luz é detectada na forma de partículas, e esperaríamos que tais partículas existissem durante a propagação da luz, seguindo trajetórias bem definidas (mesmo que desconhecidas). No entanto, parec'e que chegamos à conclusão de que os fótons não seguem trajetórias bem definidas. Como sair desse impasse? Capítulo II: lnterferômetro de Mach-Zehruler ILASER~- ---- --- --- ~ ------ -- ·~E 1 13 ILASER~--}.Eº ' ' a: l' S2 ' (a) ' ' .__, ll- ------ ---... ' S2 E;x-----------------~--- - -- :: ' ' 01 ~D2 ~02 (b) Há um punhado de saídas poss1ve1s. Consideremos quatro delas, que seguem as interpretações simplificadas apresentadas anteriormente: (1) Interpretação Ondulatória. Talvez o fóton possa se dividir simetricamente em dois "meio-fótons" no primeiro espelho semi-refletor S 1• Em outras palavras, teríamos um pacote de onda que se dividiria em duas partes em S1, e estes se recombinariam em S2 , conforme prevê a Física Ondulatória Clássica. O problema seria explicar por que em outros experimentos nunca detectamos meio fótons (voltaremos a isso na seção III.1). (2) Interpretação Corpuscular. Conforme vimos acima, não dá para supor que o fóton segue um dos caminhos e nada vai pelo outro. Qualquer visão corpuscular tem extrema dificuldade em explicar fenômenos ondulatórios. Uma saída possível, porém, seria argumentar que a lógica ao nível quântico é de tipo "não-clássica". Se o conectivo "ou" fosse definido de maneira diferente, o raciocínio poderia ser invalidado (voltaremos a falar da lógica quântica no final do curso). (3) Interpretação Dualista Realista. Talvez o objeto quântico se divida em duas partes: o fóton e a sua onda associada. Assim, o fó ton de fato seguiria uma trajetória, por A ou por B, mas simultaneamente a sua onda associada se dividiria em duas partes iguais, uma rumando por A e outra por B. A partícula seria um "surfista" que só pode navegar onde há ondas. Como as ondas se cancelam próximas ao detector D2 , o fóton é obrigado a surfar para D 1. (4) Interpretação da Complementaridade. Um fenômeno pode ser ondulatório ou corpuscular, nunca os dois ao mesmo tempo. O experimento examinado é um fenômeno ondulatório, e portanto não tem sentido perguntar onde está o fóton. Figura 11.3. Versões do interferômetro nos quais os fótons rumam por um caminho conhecido: (a) Espelho semi-refletor S1 é removido; (b) S 1 é substituído por um espelho de reflexão total. 14 Problemas Conceituais da Física Quântica 4. Variando a Fase de um Componente Considerando o interferômetro de Mach-Zehnder, se um pedaço fino de vidro H fosse inserido no caminho A (ver Fig. II.1), o componente que o atravessa sofreria um deslocamento de fase. Isso ocorre porque no vidro a luz viaja a uma velocidade mais baixa, resultando em um comprimento de onda menor (a freqüência da luz não muda: V·À. = V) . A espessura e orientação deste vidro pode ser escolhida de forma que o deslocamento de fase seja, por exemplo, de -M4. O que aconteceria neste caso? Considerando as ondas da Fig. II. l, só que agora com o feixe A chegando em S2 com uma fase relativa de - M4, vê-se que a superposição construtiva passa a acontecer nos componentes rumando para D2 , e a destrutiva nos componentes indo para D 1 (basta imaginar que o trem de onda mais grosso que aparece na figura é deslocado em V2 comprimento de onda). De fato, se a defasagem introduzida no componente A variar continuamente, obteremos uma variação na intensidade (número de fótons) detectada em cada detector que varia entre zero e um máximo, de acordo com cos2 </J (ou sen2 </J), onde cp é o deslocamento de fase introduzido no caminho A. Foi exatamente isso que Grangier, Roger & Aspect observaram no experimento em que os fótons entravam um de cada vez no interferômetro (Fig. IL4). Detector D1 N (cont./15 s ) Figura II.4. Resultados de Grangier et al. ( ref 8) para o número de fótons contados em cada detector a cada 15 segundos, em função da defasagem </J no caminho A. .. 300 t200 .......~·.....· 100 1:- ~..'-:. , ' i -! : ~· ~ : ·~_j_ ·-\)_l_ \j_l_ 21t 47t Srr i o .. ·: ·"· N (cont.115 s ) ~,,,..j_L ~ (rad) Detector D 2 300 ,.......,. . 200 ... 100 ~ o \ .,,\'.•., .. _l_ "J ~ 2rr I' .... ·: .. _l_ ...... 4rr Srr ~ (rad) Capítulo III COMPLEMENTARIDADE DE ARRANJOS EXPERIMENTAIS 1. "Fenômeno" Corpuscular Examinando o efeito fotoelétrico, é possível concluir que nunca se detectam "meio fóton s" . Esta conclusão pode também ser obtida por meio de um experimento de "anti-correlação". Primeiro prepara-se um estado monofotônico de energia hv 0 (Fig. II.2), e lança-se este fóton contra um espelho semi-refletor S 1• Dois detectores D 1 e D 2 sensíveis a um largo espectro de energia (incluindo hvo/2, para a eventualidade de se detectar meio fóton) são inseridos em cada um dos caminhos possíveis (Fig. III.1). Observa-se então que sempre que o fóton é detectado em Di, nada é detectado em D 2 (e vice-versa). Isso indica de maneira direta que o quantum de luz não se divide em duas partes que possam ser simultaneamente detectadas. S1 A .... ~~ --~-------------~ -~ ~ 1 Fig. III. l. Experimento de anti-correlação, realizado por Grangier et al. (nota 8). Na verdade, às vezes ocorrem contagens em coincidência (dentro de uma janela de 1 segundo, por exemplo), mas isso é devido à presença ocasional de dois fótons no pacote de onda incidente. Tal coincidência ocorre em taxas bastante baixas 9 . Também este experimento foi realizado por Grangier, Roger & Aspect, em 1986. A dificuldade em realizá-lo se deve à preparação do estado monofotônico. 15 9 Na prática, o problema é comparar as taxas de contagem p, e P2 ·nos detectores com a taxa de detecção em coincidência p, 2 • Se as coincidências fossem acidentais, P12 = p, + P2 (luz de laser, caso poissoniano). No caso ondulatório clássico, P 12 > p, + p, (luz caótica, com efeitos de condensação). Neste experimento de anti-correlação, verifica-se que P 12 < p , + p,, ou seja, a detecção de um fóton em um detector diminui as chances de medir outro no outro detector. 16 Problemas Conceituais da Física Quântica O experimento visto acima é um exemplo do que Niels Bohr chamava de "fenômeno" corpuscular. Pomos aspas na palavra fenômeno porque para Bohr ela tinha um significado diferente do convencional. Normalmente, fenômeno designa qualquer coisa que aparece para a nossa percepção. Para Bohr, a partir de 1935, ele designa a "totalidade" que inclui o objeto quântico e a aparelhagem experimental. Além disso, um "fenômeno" só se completa quando o experimento termina, quando um resultado experimental é registrado em nível macroscópico. Agora, porque o "fenômeno" descrito acima é corpuscular? Não é porque o fóton é detectado como uma quantidade discreta e bem localizada de energia, pois isto ocorre também em fenômenos ondulatórias. O fenômeno é chamado "corpuscular" porque, após detectarmos um fóton, podemos dizer com segurança qual trajetória ele seguiu. Vejamos uma outra versão do experimento acima, obtido a partir do interferômetro de Mach-Zehnder. Considere a aparelhagem representada na Fig. II.1, mas com o espelho semi-refletor S2 retirado. O arranjo resultante (Fig. III.2) é quase idêntico ao que vimos acima. Se registramos um "clic" em D 1, podemos inferir que o fóton veio pelo caminho B; se o "clic" for registrado em D2, a trajetória inferida é A. Eis um fenômeno corpuscular! A ILASER~ _, _- - - - - - - -- - - - - - --~ , Figura /II.2. Fenômeno corpuscular obtido a partir do interferômetro de Mach-Zehnder. S1 , 1 B: 1 1 1 1 1 1 ~ '--------- -- -------~-------w-1 Capítulo III: Complementaridade de Arranjos Experimentais Vejamos como as diferentes interpretações analisam este experimento simples. (1) Interpretação Ondulatória. Após atravessar S 1, o pacote de onda associado ao fóton se divide em dois, o que pode ser expresso por uma função de onda do tipo lflélf/8 . Porém, ao detectar-se o fóton em Di, por exemplo, a probabilidade de detecção em D 2 tornase nula instantaneamente! O estado inicial é reduzido, neste caso, para lf/8 . Como, nesta interpretação, o estado corresponde a uma onda de probabilidade "real", conclui-se que ocorreu um processo de colapso do pacote de onda. (2) Interpretação Corpuscular. Neste caso a explicação é direta: a partícula simplesmente seguiu uma das trajetórias possíveis, indo parar em D 1 ou D 2 • Não é preciso falar em "colapso". (3) Interpretação Dualista Realista. Esta visão também considera que, após S 1, a partícula seguiu uma das trajetórias A ou B, incidindo então no detector correspondente. Mas existiria também uma onda associada, que se dividiu em duas partes. A parte não detectada constituiria uma "onda vazia" que não carrega energia e não pode ser detectada. Há quem critique esta proliferação de entidades (as ondas vazias), mas em experimentos simples isso não leva a nenhuma conseqüência observacional indesejável. (4) Interpretação da Complementaridade. Completada a medição, essa interpretação considera o fenômeno como sendo corpuscular. O fóton pode assim ser considerado uma partícula que seguiu uma trajetória bem definida. Tal inferência com relação à trajetória passada do quantum detectado é conhecida como "retrodição" (voltaremos a ela na seção Xl.7) . 2. Dualidade Onda-Partícula: versão forte Um fenômeno é corpuscular quando podemos inferir, após completada a medição, qual foi a trajetória do quantum detectado . O fenômeno descrito na seção II.2 (interferometria para um único fóton) não é corpuscular, pois um fóton detectado em D 1 poderia ter seguido tanto pelo caminho A quanto por B (usando uma linguagem corpuscular). Um fenômeno ondulatório, como o da seção II.2, é aquele que só pode ser explicado através de um modelo ondulatório (no caso, as superposições construtiva e destrutiva após S2) . Um critério alternativo (de tipo "operacional") é que apareça um padrão de interferência espacial (como no experimento da dupla fenda, Fig. I.1) ou temporal (variando-se continuamente o deslocamento de fase em um dos caminhos, Fig. II.4) . 17 18 Problemas Conceituais da Física Quântica É um fato empírico notável que um experimento não pode ser ao mesmo tempo corpuscular e ondulatório. Eis então a versão que Bohr deu para a dualidade onda-partícula, que chamaremos de "versão forte" (ou "complementaridade de arranjos experimentais"): Um sistema quântico ou exibe aspectos corpusculares (s eguindo trajetórias bem definidas), ou aspectos ondulatórias (como a formação de um padrão de interferência), dependendo do arranjo experimental, mas nunca ambos ao mesmo tempo. Essas palavras não são as de Bohr, mas exprimem a sua noção de que onda e partícula são aspectos mutuamente excludentes, mas complementares, da natureza. Ou seja, para representar um objeto quântico como um elétron, ou um fóton, podemos encará-lo ou como partícula, para certas situações experimentais, ou como onda, para outras situações. Segundo Bohr, é impossível montar um arranjo experimental que exiba simultaneamente esses dois aspectos da natureza (porisso é que são mutuamente excludentes). Porém, só podemos compreender um objeto quântico de maneira completa, segundo ele, quando levamos em conta esses dois aspectos complementares. Para Bohr, essa situação exprime uma limitação fundamental que existe em noss a linguagem, e em nossa capacidade de representar pictoricamente o mundo. Nossa linguagem é adequada para descrever objetos macroscópicos, como um aparelho de medição, e serve para nos comunicarmos com outros homens, por exemplo informando que obtivemos um determinado resultado experimental. Porém, através de nossa linguagem não conseguimos representar um objeto quântico em um "quadro único" : precisamos de descrições complementares. Mas o "fenômeno" que chamamos ondulatório não envolve a detecção de fótons individuais, evidenciando a existência de corpúsculos indivisíveis? Sim, mas vimos (seção I.4) que, para Bohr, a detecção de fótons individuais é consequencia da "indivisibilidade dos processos atômicos", e não do princípio de complementaridade. 3. Experimento da Escolha Demorada Ao estudarmos o interferômetro de Mach-Zehnder, vimos que a única diferença entre os fenômenos ondulatório e corpuscular que descrevemos (Figs. II.1 e III.2) é a presença ou não do espelho Capítulo III: Complementaridade de Arranjos Experimentais 9 semi-refletor S2 . Até que instante o cientista pode escolher entre deixar ou retirar S2, de forma a fazer o fenômeno ser ondulatório ou corpuscular? Pode ele esperar o fóton passar pelo primeiro espelho semi-refletor (S 1) para daí então escolher qual fenômeno vai acontecer? Sim! Tal escolha pode ser feita até o instante logo antes de o pacote de onda associado ao fóton chegar a S2. Este experimento de escolha demorada usando o interferômetro de Mach-Zehnder foi estudado pelo físico norteamericano John Wheeler, a partir de 1978. Já em 1931 , porém, o alemão Carl von Weizsacker havia descrito um experimento deste tipo (que veremos na seção XII.5), usando a idéia do microscópio de raios gama de Werner Heisenberg. Para examinarmos este experimento, consideremos alguns instantes temporais ao longo do percurso do fóton, na montagem da Fig. III.3. No instante t 1, o fóton incide em S,; em tz, ele se encontra dentro do interferômetro; em t 3 ele passa pela posição do espelho semi-refletor S2 ; em t4 ele se aproxima do detector; em t 5 ele gera um sinal macroscópico no osciloscópio. B 1 t3 s2 ~/ / li/ ºº 1 ~----- -- -------- --~------ 00 00 ::::: o 00000 êJº' Figura Ill.3. Desenho do interferômetro, indicando-se diférentes instantes temporais. (Neste arranjo, nenhuma luz é detectada em D2,, e o correspondente osciloscópio é ignorado.) 20 10 HELLMUTH, T.; W ALTHER, H.; ZAJONC, A. & SCHLEICH, W. (1987), "Delayed-Choice Experiments in Quantum Interference", Physical Review A 35, 2532-41. Problemas Conceituais da Física Quântica O que diz a interpretação da complementaridade no instante t2, quando o fóton está dentro do interferômetro? Nada! Não se pode dizer nem que o objeto quântico é onda, nem que ele é partícula. Só no instante t 3 , dependendo se o espelho S2 ; estiver colocado ou não, é que ocorrerá interferência ou não. A rigor, só quando o "fenômeno" se completa, e um registro macroscópico é obtido no aparelho de medição, no instante t5 , é que se pode dizer qual é o fenômeno (onda ou partícula), e que se pode dizer o que estava acontecendo no passado, no instante t 2 ! Este experimento exemplifica bem a aplicação da interpretação da complementaridade. Só se pode falar algo sobre o objeto quântico após se obter um resultado experimental. Mesmo que em t 3 o espelho não esteja presente, o fenômeno (em !4) ainda não se constituiu como corpuscular. Pois é possível que em t4 alguém (um demônio veloz) coloque espelhos de forma a recombinar as componentes, resultando em um fenômeno ondulatório. Só com o registro macroscópico é que esta possibilidade pode ser excluída. O experimento da escolha demorada no interferômetro de Mach-Zehnder foi realizado em 1986 por dois grupos, Alley et al. e Hellmuth et al. 10 A montagem experimental deste segundo grupo está representada na Fig. IIl.4. Nela, o segundo espelho semi-refletor permanece imóvel, e uma célula de Pockels é introduzida em um dos caminhos, seguida de um polarizador. Utilizando um pulso de laser polarizado, a célula de Pockels é capaz de girar em 90º a polarização linear do pulso. Assim, quando este dispositivo de óptica não-linear é acionado por uma tensão elétrica (o que demora apenas 4 nanosegundos), o pulso de luz é girado e subseqüentemente bloqueado pelo polarizador que se segue à célula. Ou seja, com a célula ligada, o caminho A é bloqueado, e temos um comportamento corpuscular; com a célula desligada, ocorre a interferência típica do comportamento ondulatório. No experimento em questão, fibras ópticas foram usadas para aumentar cada um dos caminhos, de forma que a escolha de se ligar ou não a célula de Pockels pôde ser feita 5 nanosegundos depois que o pulso passou pelo primeiro espelho semi-refletor. Nesse mesmo trabalho, o grupo de Hellmuth et al. também realizou um interessante experimento de escolha demorada envolvendo "batimentos quânticos", que veremos na seção XIII.2. Capítulo III: Complementaridade de Arranjos Experimentais ,;; - ---,' Célula de Pockels \ 1 ', LASER ps Polarizado .______. i / 1 -~+~:::.---.:-~~~--0--0--, s ./ 1 Pnsma Polarizador Figura III.4. Realização prática do experimento de escolha demorada, por Hellmuth et al. ( 1987). A B Objetivas de Microscópio 52 -----o<-->& ----------~1'-------~ ~'~,' // 1 1 ... ----... ', 1 1 ,' 1 Fibra Óptica ~ 01 o2 . 4. Atualização do Passado no Presente Na seção anterior, vimos como a interpretação da complementaridade descreve o experimento de escolha demorada, proibindo que se fale algo sobre o fenômeno no instante t 2 . Isto porém não ocorre com as interpretações realistas. De acordo com a interpretação ondulatória, em t 2 o pacote de onda se divide entre duas posições (no caminho A e no B); o que ocorre no futuro (em t3 ) em nada afeta a realidade em t2 • O mesmo ocorre com a interpretação dualista realista. A Tabela III. l resume como cada uma dessas três interpretações descreve esse experimento de escolha demorada. No positivismo sóbrio de Bohr, os atributos "onda" e "corpúsculo" referem-se a quadros clássicos que utilizamos para representar um fenômeno experimental, e não a alguma espécie de realidade (trata-se de uma visão "epistêmica"). Ao explorar o experimento de escolha demorada, porém, Wheeler injetou uma dose de realismo na interpretação da complementaridade, pois passou a considerar que "onda" ou "corpúsculo" descrevem diretamente diferentes realidades (uma visão mais "ontológica"). Ao fazer isso, Wheeler chegou a uma conclusão que chamou a atenção da imprensa de divulgação científica mundial: apenas quando o "observador participante" decide se o fenômeno será corpuscular ou ondulatório é que a realidade passuda adquire uma existência "atualizada"; antes disto, é como se o passado não existisse! Problemas Conceituais da Física Quântica 22 11 WHEELER (1983), op. cit. (nota 6), p. 194. O artigo 01iginal e mais extenso é: WHEELER, J.A. (1978), "The 'Past' and the 'DelayedChoice' Double-Slit Experiment", in MARLOW, A.R. (org.), Mathematical Founda- tions of Quantum Theory, Academic, Nova Iorque, pp. 948. Em suas palavras: "É errado pensar naquele_passado como 'já existindo' em todos os detalhes. O 'passado' é teoria. O passado não tem existência enquanto ele não é registrado no presente. Ao decidirmos quais perguntas o nosso equipamentó quântico de registro irá fazer no presente, temos uma escolha inegável sobre o 11 que temos o direito de perguntar sobre o passado." Que estranho! No mundo da Física Quântica, pode acontecer de o passado se atualizar apenas no presente! (Ao menos segundo esta versão mais realista da interpretação da complementaridade.) Encontramos com isso uma "anomalia" conceitual da interpretação da complementaridade: às vezes ela se cala sobre o presente (em t2 , por exemplo), para posteriormente (em t5 ) se referir ao passado (em t2 ) de maneira definida. Na versão de Wheeler, a anomalia é ainda mais radical: o passado pode passar a existir apenas no presente. Essas propriedades estranhas não surgem nas interpretações realistas, conforme já vimos . As anomalias destas visões são de outra ordem. A interpretação ondulatória necessita de colapsos não-locais; a dualista realista introduz ondas vazias; e a interpretação corpuscular só consegue explicar fenômenos ondulatórios através de estranhos mecanismos ou apelando para uma lógica não-clássica. DI COMPLEMENTARIDADE t1 Fóton está em O. t2 ------------ t3 ts ts (nadapode-se dizer) Escolhemos Qfu ou retirar S2. j, j, ONDA Detecção emD1. Em t2 havia uma onda. PARTÍCULA Detecção em D1 ou Dz. Em t2 havia uma partícula em B ou A. 1 DUALISMO REALISTA 1 ONDULATÓRIA Partícula e pacote da onda _Qiloto estão em O. Onda piloto se divide em duas , e partícula escolhe um caminho, A ou B. Escolhemos pôr ou retirar S2 . Pacote de onda está em O. Pacote de onda se divide em dois componentes, AeB. Escolhemos pôr ou retirar S2 . Detecção de partícula. No caso sem S2 , sobra uma onda vazia. Detecção. No caso sem S2 , ocorre um colapso não-local. Passado não muda! Passado não muda! Tabela III. 1. O experimento de escolha demorada segundo as diferentes interpretações. Para simplificar, a situação em t4 foi omitida. 1 Capítulo IV ESTADOS QUÂNTICOS E O PRINCÍPIO DE SUPERPOSIÇÃO 1. Auto-Estado e Estados Ortogonais Vamos agora dar uma olhada superficial na maneira como o formalismo da Teoria Quântica descreve o experimento de MachZehnder para um fóton único. Aos poucos, veremos que as diferentes interpretações são consistentes com este formalismo, que fornece as regras para se calcularem valores possíveis de medições e as respectivas probabilidades. Se o espelho semi-refletor S, estiver removido (Fig. II.3a), todos concordam que o fóton ou o pacote de onda ruma pelo caminho A. Por exemplo, se inserirmos um detector neste caminho, ele sempre registrará a presença do fóton (supondo que o detector é 100% eficiente). Podemos assim atribuir um estado ao nosso sistema quântico, em um certo instante, que denotaremos por llf!A) 11 ª. Esse estado diz que o fóton será detectado com certeza no caminho A; devido a esta certeza, tal estado costuma ser chamado de auto-estado associado ao valor A para a posição do fóton 12 • Analogamente, podemos definir o auto-estado llf/8 ). Se o sistema estiver neste estado, um detector no caminho B certamente registrará um fóton. Cada um destes estados é análogo a uma amplitude de onda clássica. Esses dois estados têm uma propriedade interessante. Se o estado for ll/IA), um detector no caminho B não registrará nenhum fóton; se o estado for ll/fs), nada poderá ser detectado no caminho A. Dizemos nesse caso que esses estados são ortogonais. 2. Princípio Quântico de Superposição Agora vamos enunciar um dos princípios fundamentais da Mecânica Quântica, o chamado Princípio de Superposição: Dados dois estados admissíveis de um sistema quântico, então a soma desses dois estados também é um estado admissível do sistema. 23 l la Esta notação curiosa para estados quânticos foi introduzida por Dirac em 1926. Um vetor de estado l lf/A) é apelidado de "ket'', enquanto que seu dual (lf/8 1 é o "bra", de forma que juntos formam um "bracket" (um tipo de parêntese): (lf/sllf!A), que representa o produto escalar dos vetores de estado (ver seção V.3). 12 Esta não é a definição rigorosa de "auto-estado", e a afirmação que foi feita só vale para uma classe restrita de medições Conceitos da Física Quântica 24 Como conseqüência deste princípio, o seguinte estado também descreve uma situação possível: (IV.l) Notamos que a "soma" mencionada envolve certos coeficientes, necessários para manter os estados "normalizados", que podem assumir valores "complexos" (env~lvendo i=r-l ). De fato, a eq.(IV.1) é justamente o estado assumido pelo pulso de luz no experimento de Mach-Zehnder para um fóton! Mas o que diz esse estado? O fóton está em dois lugares ao mesmo tempo? O formalismo da Teoria Quântica não trata dessas questões, ele não se preocupa em descrever a realidade que existe além de nossas observações, mas apenas em fornecer previsões sobre os resultados de medições realizadas em diferentes situações experimentais. Mas qual o significado do "estado" em Física Quântica? A esta questão, cada interpretação responde de maneira própria. 3. Interpretações do Estado Quântico Vejamos agora diferentes maneiras de interpretar um estado 11/1). 1) Interpretação Ondulatória . Interpreta 11/1) de maneira "literal", atribuindo realidade ao estado ou à função de onda, e sem postular que exista nada além do que descreve o formalismo quântico. Mas que espécie de realidade é essa? Não é uma realidade "atualizada", que possamos observar diretamente. É uma realidade intermediária, uma potencialidade, que estabelece apenas probabilidades, mas que mesmo assim evolui no tempo como uma onda. (Essa noção de potencialidade também é usada por proponentes das visões 2 e 4, a seguir.) O maior problema desta interpretação de estado é que, para N objetos quânticos, a função de onda é definida em um espaço de configurações de 3N dimensões! O que significaria uma realidade com 3N dimensões? 2) Interpretação Corpuscular. A abordagem corpuscular que apresentamos até aqui tem tido extrema dificuldade em dar conta dos aspectos ondulatórias de partículas únicas . Apresentaremos agora uma v1sao corpuscular mais sofisticada, que chamamos interpretação dos coletivos estatísticos (em inglês: "ensemble Capítulo IV: Estados Quânticos e o Princípio de Superposição interpretation"). Ela procura escapar dos problemas vistos salientando que o estado ll/f) utilizado no formalismo da Mecânica Quântica é uma descrição essencialmente estatística, que representa a média sobre todas as posições possíveis da partícula. Em linguagem técnica, o estado representa um coletivo ou ensemble estatístico, associado a um procedimento de preparação experimental. Assim, esta visão considera que o estado quântico representa uma descrição incompleta de um objeto individual (tese esta que era defendida por Einstein) . A rigor, esta interpretação não entra em detalhes sobre como seria possível completar a Mecânica Quântica, mas na prática ela costuma ser simpática a um modelo exclusivamente corpuscular da natureza 13 • 3) Interpretação Dualista Realista. Considera que existam "variáveis ocultas" por trás da descrição em termos de estados, variáveis essas que são partículas com posições e velocidades bem determinadas. O estado l l/f) exprimiria um campo real que "guia" as partículas. Essa "onda piloto", porém, não carregaria energia, que se concentraria na partícula. A descrição através do estado quântico seria incompleta, só se completando com a introdução dos parâmetros ocultos. 4) Interpretação da Complementaridade. Considera que o estado l l/f) é meramente uma instrumento matemático para realizar cálculos e obter previsões (esta visão chama-se instrumentalismo) . Heisenberg exprimiu isso de maneira radical ao escrever que a mudança descontínua da função de probabilidade é "uma mudança descontínua em nosso conhecimento" 14 , o que constitui uma visão epistêmica do estado quântico. A interpretação dos coletivos estatísticos (item 2 acima) também compartilha desta visão; a diferença, porém, está em que a interpretação da complementaridade considera que o estado quântico seja a descrição mais "completa" de um objeto quântico individual. Em comum com a visão 1, não postula nada além do formalismo. As interpretações 1 e 3 são visões basicamente realistas, pois consideram que as entidades dadas pela Teoria Quântica (como o estado quântico) correspondem a algo real na natureza, independentemente de serem observadas ou não. A visão 4 é positivista, pois considera que a teoria só consegue descrever aquilo que é observável (existiria uma realidade independente do sujeito, mas ela não seria descritível pela Teoria Quântica). Como não podemos medir o estado de uma partícula (se não soubermos como foi preparada, nunca saberemos seu estado quântico), então tal estado não corresponderia a algo real. Quanto à visão 2, há uma tendência de seus defensores serem realistas. 13 Formulada inicialmente por Slater ( 1929) e defendida por gente ilustre como Kemble, Margenau, Blokhintsev, Popper e Landé, esta visão tem sido adotada em vários livros-texto de Mecânica Quântica, especialmente após o artigo de BALLENTINE, L.E. ( 1970), "The Statistical Interpretation of Quantum Mechanics ", Reviews of Modem Physics 42, 358-81. 14 HEISENBERG, W . (1981 ), Física e Filosofia, Editora da UnB, Brasília, p. 25 (22º parágrafo do cap. III) . Original: Physics and Philosophy, Allen & Unwin, Londres, 1958. 26 Conceitos da Física Quântica É possível diferenciar a pos1çao das quatro interpretações mencionadas considerando suas respostas a duas questões : (i) O estado quântico corresponde a uma realidade ou deve ser interpretado de maneira epistêmica? (ii) O estado quântico fornece uma descrição completa ou incompleta? A Tabela IV .1 resume tais respostas. Interpretação 1. Ondulatória 2. Coletivos Estatísticos 3. Dualista Realista 4. Complementaridade /lf/) é real ou deve ser interpretado de modo epistêmico? /lf/) fornece uma descrição completa ou incompleta? Real Epistêmico Completa Incompleta Real Epistêmico Incompleta Completa Tabela IV. J. Quatro interp retações da natureza do estado quântico l lf/) . 4. Espaço de Hilbert: abordagem intuitiva Consideremos um sistema quântico individual, como por exemplo um átomo isolado. A Mecânica Quântica representa este sistema através de um "espaço de Hilbert", que nada mais é do que um espaço vetorial linear complexo, ou seja, um espaço vetorial no qual os vetores são expressos por números complexos (com um módulo e uma fase). Uma maneira de intuir um espaço vetorial complexo de N dimensões é imaginar um espaço euclidiano de dimensão N no qual cada vetor tem N-1 fases associadas, onde cada fase pode variar entre O e 2n. (Fig. IV . l) . A cada instante, o estado de um sistema quântico "fechado" pode ser representado por um único vetor no espaço de Hilbert correspondente. Conforme já vimos, o princípio de superposição afirma que dados dois estados possíveis para um sistema quântico, então qualquer combinação linear deles também é um estado possível. Por exemplo, imaginemos que um átomo com um elétron no nível P se encontra em um campo magnético externo fraco . Este elétron tem acesso (na camada P) a 3 níveis discretos de energia. Portanto, seu estado pode ser representado em um espaço de Hilbert de 3 dimensões, como o da Fig. IV .1. Cada um desses valores de Capítulo IV: Estados Quânticos e o Princípio de Superposição energia está associado a um estado, chamado autoestado de energia. Cada um destes autoestados é representado por vetores ortogonais l<M no espaço de Hilbert, com i=l,2,3. Pois bem, pelo princípio de superposição, qualquer combinação linear I</>) déstes vetores representa um estado admissível : (N.2) onde os coeficientes a; são números complexos que satisfazem uma condição de normalização: 1. /<PJ) I ~> ..· .· -······------- -- -----· ·· ·······-·:·· _.·· (N.3) Figura IV. I. Vetor de estado em um espaço de Hilbert de 3 dimensões. Dada uma base I</>;), qualquer vetor I</>) pode ser caracterizado por suas componentes complexas em relação a esta base. O desenho deve ser visto como um espaço euclidiano, onde associam-se 2 fases ao vetor de estado ( <X21 =7ll2, entre 11/>z) e l</>1), e <X31=n, entre l</>3) e l</>1)). O vetor representado no desenho é: l<t>) = 1·i<A)+if·l<t>i)-t·I ~). 5. Observáveis De acordo com o formalismo quântico, toda grandeza física mensurável Q, chamada observável, é descrita no espaço de Hilbert por um "operador auto-adjunto" Q . Um "operador" é uma entidade matemática que agindo em qualquer vetor do espaço de Hilbert o transforma em outro vetor do mesmo espaço. Para entendermos o que significa "autoadjunto", podemos representar um vetor por uma matriz coluna om N elementos. Por exemplo, o vetor da eq.(N.2) seria escrito da seguinte forma, na representação {1</>;)}, com N=3: Conceitos da Física Quântica 28 (IV.2a) !~) = [::] Segundo esta notação, qualquer operador pode ser expresso por uma matriz N x N, que representamos por [Qij], com coeficientes Qij complexos. Um operador auto-adjunto Q é aquele que é igual ao seu "adjunto" Qt, onde este é representado pela matriz [Qj/] (complexo conjugado Cla matriz transposta). Como exemplo de operadores auto-adjuntos, tomemos quatro que agem em um espaço de Hilbert de 2 dimensões (N=2): (IV.4) É fácil verificar que estas matrizes são auto-adjuntas. As três primeiras representam os operadores de spin (matrizes de Pauli) e a última é a matriz unidade, correspondente ao operador que leva qualquer vetor em si mesmo. A estipulação de que todo observável corresponde a um operador auto-adjunto garante que no cálculo de valores médios (seção X.2) obteremos sempre números reais (e não complexos). Dado um observável Q, os resultados possíveis da medição são os autovalores Y; do operador Q, que podem ser encontrados resolvendo-se a equ~ção de autovalores: (IV.5) Os estados 1 </>;) são os autoestados de Q a que nos referimos na seção (IV. l). O cálculo dos autoestados e autovalores da eq.(IV.5) é tópico de cursos de Álgebra Linear. Capítulo V MEDIÇÕES DE TRAJETÓRIA 1. Medições de Trajetória no lnterferômetro Por que, em um fenômeno ondu!atório como o da Fig. II.1 (interferômetro de Mach-Zehnder), não. tentamos medir por onde passa o fóton por meio de um detector super-sensível, que não provoque distúrbio apreciável no fóton 15 ? Essa situação está representada na Fig. V .1. A cada fóton que entra no interferômetro, podemos determinar se ele incide ou não no detector D 3 . Se o medirmos ali, vemos que ele tomou o caminho A; senão, inferimos que ele foi por B. Temos assim conhecimento sobre a trajetória do fóton, e o fenômeno é corpuscular. Mas se o detector fosse tão tênue que não provocasse distúrbio algum nos fótons, então talvez todos eles continuassem rumando para Di, o que só poderia ser explicado através de um modelo ondulatório. Teríamos assim violado a versão forte da dualidade onda-partícula!? A B , 1 S2 ~. - - - -- - - ---- - - ---- - ~ --- - - - - ~ · •.'.: . -~ ·'·.··: 15 Tal detector de "não-demolição" para medir número de fótons foi desen volvido usando uma "célula de Kerr". Este dispositivo não-linear é inserido em um dos braços do interferômetro, e seu índice de refração varia com a intensidade do feixe luminoso. Um outro feixe, de prova, passa pelo mesma célula de Kerr, e tem um deslocamento de fase que depende do índice de refração . Ver SANDERS, B.C. & MILBURN, G.J. (1990), "Quantum Nondemolition Measurements and Tests of Complementarity", in BARUT, A.O. (org.), Ne w Frontiers in Quantum Electrodynamics and Quantum Optics, Plenum, Nova Iorque, pp. 541-54 1 1 1 1 Figura V.l. Medição nãodestrutiva do caminho pelo qual ruma o fóton Não! O que acontece é que mesmo com a presença do mais delicado detector possível no caminho A, a interferência deixa de ocorrer após S2! Com a determinação do caminho dos fótons, eles deixam de interferir como ondas coerentes, e passam a ser 29 30 Conceitos da Física Quântica detectados tanto em D 1 (50%) quanto em D2 (50%)! Como as diferentes interpretações que já introduzimos explicariam este acontecimento? Por que a interferência desaparece quando se medem trajetórias? (1) Interpretação Ondulatória. Uma maneira simples de se explicar o que acontece nesta situação é fazer uso da noção de "colapso'', que mencionamos na seção III.1 e exploraremos no capítulo seguinte. Sempre que uma medição é realizada, e um resultado obtido, a onda !f!, previamente espalhada, sofre uma redução súbita, passando a se localizar próximo de onde ela foi detectada (formando um "pacote de onda" semelhante a uma partícula). Assim, se o detector D3 registrar um fó ton, a onda some no caminho B; se D3 não registrar nada, a onda some em A e passa a existir só em B. Em ambos os casos, recai-se nas situações da Fig. II.3, e a probabilidade de detecção em cada detector passa a ser 50%. Schrõdinger não gostava deste tipo de explicação envolvendo colapsos, e neste caso poderia usar a explicação envolvendo a "perda de coerência" dada pelas interpretações dualistas, que veremos a seguir. (No entanto, a noção de colapso continua sendo necessária, nesta interpretação, para o fen ômeno corpuscular da Fig. III. 1.) (2) Interpretação Corpuscular. Esta visão já tem dificuldades em explicar a interferência para um elétron ou fóton único, quanto mais para explicar o presente problema! Os detectores simplesmente revelam as posições pré-existentes das partículas. Mas por que a interferência desaparece? ão basta supor que o detector D 3 provoca uma alteração no movimento do fóton, pois mesmo quando o fóton ruma por B a interferência desaparece (veremos mais sobre este "experimento de resultado nulo" na seção VIII.4). (3) Interpretação Dualista Realista. Uma possível explicação dentro desta visão é a seguinte. A presença do detector D 3 , ligado em A, provocaria um distúrbio nafase do trem de onda que ruma por A. O valor deste deslocamento de fase seria imprevisível , mas dependeria do estado microscópico do detector D 3 no instante da passagem da partícula (esta visão é "criptodeterminista", conforme definiremos na seção IX.2) . Como a onda contínua que ruma por A passa a ter uma fase diferente, desconhecida (a onda por B permanece com a mesma fase) , as superposições que ocorrem após S2 podem tanto ser construtivas na direção de D 1, quanto destrutivas, como podem também ser de tipo intermediário, conforme representada na Fig. II.4 (com a diferença que a defasagem não varia continuamente, mas Capítulo V: Medições de Trajetória aleatoriamente). Assim, para cada caso individual, a probabilidade do fóton terminar em D 1 varia entre O e 1 (dependendo do valor da defasagem introduzida por D 3 ), mas na média, para vários fótons, a probabilidade de incidência em D 1 é 0,5, igual ao caso em que um dos caminhos é bloqueado (o fenômeno corpuscular da Fig. Il.3). O ~ . 16 detector, em suma, provoca uma perd a d e coerencza entre os componentes A e B. (4) Interpretação da Complementaridade . Um fenômeno não pode ser ao mesmo tempo ondulatório e corpuscular. Quando medimos a posição do fóton, o fenômeno registrado é corpuscular, e assim não pode mais haver interferência. Para justificar estas afirmações, em 1927, Bohr desenvolveu uma explicação baseada no princípio da incerteza, que em essência é igual à explicação dada no parágrafo anterior, envolvendo fases aleatórias 17 • Na seção seguinte ilustraremos a conexão entre o princípio da incerteza e as fases aleatórias. Para resumir, o que essas explicações têm em comum é que uma medição (em D 3 ) provoca um distúrbio incontrolável no objeto quântico. Tal distúrbio pode ser de dois tipos: colapso (visão 1) ou perda de coerência (visões 1, 3 e 4), resultando em uma perda de coerência das ondas envolvidas, impedindo a existência de um padrão estável de interferência. Notemos que tal perda de coerência poderia ocorrer sem que a medição em D 3 se completasse: bastaria existir um processo de interação com o objeto quântico (por exemplo, espalhamento por outras partículas) que introduzisse um distúrbio para que surgissem fases aleatórias, provocando perda de coerência. 31 16 O termo "decoerência" poderia ser usado para este processo. No entanto, este termo é normalmente aplicado para o caso em que a perda de coerência surge de um acoplamento do sistema com o ambiente (conforme examinaremos em um capítulo posterior). Está claro que o detector pode ser considerado o "ambiente", mas para não misturarmos as questões, usaremos simplesmente a expressão "perda de coerência''. . 17 A expl icação baseada em fases aleatórias foi bastante usada por David Bohm, em seu período ortodoxo, e também por Richard Feynman, conforme menciona o primeiro. Ver: BOHM, D. (1951), Quantum Theory, Prentice-Hall , Englewood Cliffs, pp. 120-4, 600-2. 2. Fases Aleatórias e o Princípio de Incerteza* Vamos agora mostrar como a noção de fases aleatórias está intimamente ligada ao princípio de incerteza. Para tanto, seguiremos a discussão travada entre Einstein e Bohr no Congresso de Solvay de 192i 8, mas nos restringiremos ao interferômetro de Mach-Zehnder, ao invés de considerar o experimento das duas fendas. De forma sucinta, o princípio de incerteza (que examinaremos mais a fundo no cap. XI) diz que uma determinação exata do valor de um observável, como a posição x de um elétron, implica numa fal ta de exatidão na definição do valor da grandeza conjugada, no caso do momento Px do elétron (e vice-versa). Representando essas "inexatidões" por ôx e Ôpx , a relação de incerteza afirma que seu * Esta seção pode ser pulada sem perda de continuidade. 18 Ver BOHR (1949) , op. cit. (nota 6), pp. 56-9; JAMMER (197 4 ), op. cit. (nota 3 ), pp. 126-30. Conceitos da Física Quântica 32 produto tem um limite inferior da ordem da constante de Planck h: (V.1) Voltemos agora ao experimento-de-pensamento que visa determinar a trajetória de um fóton sem destruir a interferência no espelho S2 do interferômetro de Mach-Zehnder. A idéia é tentar determinar o caminho pelo qual o fóton rumou, por meio de uma medição do momento transferido para o espelho semi-refletor S1, supondo que este espelho possa se deslocar. Para facilitar nossa linguagem, nesta seção, visualizaremos a luz de acordo com a interpretação dualista realista (seção II.3, item 3), e chamaremos de fóton o corpúsculo associado. A luz incidente consiste de um feixe largo (representado por uma onda plana), obtida, através de lentes, a partir de um estreito feixe de laser (Fig. V.2). Estamos interessados na interferência que irá ocorrer no ponto Q de S2 , e, desta forma, concentramos nossa atenção na linha B que leva até Q. Acoplamos ao semi-espelho S 1 um medidor M de momento na direção x (paralela ao feixe refletido) (veremos na seção VIII.2 um exemplo de tal medidor). O semi-espelho está inicialmente em repouso. Se o fóton de momento p = h/Â. for transmitido através de S 1, nenhum momento é transferido para o semi-espelho, e ele permanecerá com Px = O. Se o fóton desviar para B, o momento transferido para o espelho é .fihl Â. na direção 6.P indicada na Fig. V.2, o que corresponde ao momento Px = -h!íl na direção x . . Queremos discernir a situação em que há reflexão daquela em que há transmissão do fóton. Assim, queremos discernir uma diferença de momento 6.Px = h!íl. Ora, o semi-espelho deve obedecer ao princípio de incerteza 8X.8Px ~ h/2. Para podermos discernir a transferência de momento 6.P.n é preciso que este 6.Px seja maior do que a incerteza intrínseca do espelho, certo? Queremos assim que 6.Px ~ 8P.n ou seja, 6.Px ~ h/(2·8X} Temos assim: 8X ~ h/(2·6.Px) = h/(2· h/íl) = íl.12. Em suma, 8X ~ íl.12 é a incerteza na posição do semi-espelho na direção x (de tal forma a permitir um discernimento da transferência de momento do fóton). Isso significa que a luz que chega em Q percorre uma trajetória cujo comprimento fJ. tem uma incerteza 8fl. ~ íl.12. (Iremos ignorar a incerteza do componente Y, cuja consideração só aumentaria o efeito.) Ou seja, a onda que ruma Capítulo V: Medições de Trajetória por B tem um deslocamento de fase D..({J que se encontra (aleatoriamente)em algum ponto entre - À/2 e +À/2. Às vezes isso resulta numa interferência construtiva em direção de D 1, às vezes em direção de D 2 , e em geral numa situação intermediária Uá descrevemos esta situação na seção V.1, item 3) . Em outras palavras, à medida que os fótons forem entrando no interferômetro, devido a essas fases aleatórias, metade deles será detectado em D 1 e metade em D 2 : qualquer efeito observável da interferência desaparece! D 11 1 -p ~ l) ''1,1~· ! l l f.ti~-H1i111rnTr~ 111 ( • 1 1 J 1J1 ' 1 ry X . , 1 .. :- . '' 1 ! 111 . - -·- S1 : - r· -1- B-i-. -. '''''' f A tentativa de medir o caminho dos fótons por meio do medidor de momento M acoplado a S 1 destrói o fenômeno ondulatório, resultando em um fenômeno corpuscular, de acordo com o princípio de complementaridade. Notemos que a idéia fundamental (de Bohr) que nos permitiu chegar a esta conclusão foi a de que um componente macroscópico (o semi-espelho S 1) também é limitado pela relação de incerteza (eq. V.1). Percebemos também como esta aplicação do princípio de incerteza se traduz em fases aleatórias (perda de coerência) entre os componentes A e B da onda luminosa, fazendo com que metade dos fótons terminassem sendo detectados em D 2 . Esta situação é igual à que vimos na seção V.1. Figura V.2. Versão na qual mede-se o caminho pela transferência de momento para o espelho semi-refletor S1. Conceitos da Física Quântica 34 3. O Algoritmo Estatístico Considere o estado descrito pela eq.(IV.1), lIJI) = )21 IJI A) + )2-1IJI 8) , que pode ser associado a um estado monofotônico logo após a passagem por um espelho semi-refletor (Fig. III.1). A fase i nos informa que o componente rumando pelo caminho B sofreu um avanço de À/4 em relação ao componente transmitido por A, em acordo com a regra para divisão de feixes apresentada na seção II.1. Qual a probabilidade de detectar o fóton no caminho A (em D 1), e de detectá-lo no caminho B (em D1)? Olhando para a eq.(IV.1), vemos que tais probabilidades são iguais a É só pegar 1· o coeficiente )2 que multiplica l JI A) e elevá-lo ao quadrado; e pegar o coeficiente )2 multiplicando 19 Lembremos que um número complexo r consiste de uma parte real a e de uma imaginária b: r = a + ib. O módulo quadrado de r é lrl 2 = r·r', ou seja, la+ibl 2 = (a+ib )(a-ib) :::: a 2 + b 2 . llfl 8 ), e calcular seu "módulo quadrado" (referente a números complexos 19 ) IJl-1 2 Para um estado genérico I</>) como o da eq.(IV.2), procede-se da seguinte maneira. Qual é a probabilidade de medir um observável e obter o autovalor Y; associado ao auto-estado !</>;)? Será o módulo quadrado do coeficiente multiplicando o autoestado: (V.2) E no caso em que o observável sendo medido não tem os estados l<f>;) como seus auto-estados? Neste caso, podemos reescrever I</>) em função da nova base de auto-estados, e então aplicar o método exposto acima. Por exemplo, suponha que o estado seja 1 </>) = a, 1 </> 1) + a 2 I </> 2 ), e que estejamos medindo o observável Q que possui como auto-estados os dois vetores 1</>±) = )21 </>1) ± )2-1 </>2 ) . Qual é a probabilidade de obter o autovalor Y+ correspondente ao auto-estado l<P+)? Uma maneira de resolver isso é escrevendo I</>) em função de l<P+) e j<tJ_), o que exige algumas manipulações simples, e resulta em: Capítulo V: Medições de Trajetó ria Agora é só aplicar as eqs. (V.2) e (IV.3) para obter Problqi) CY+) = 1- . Uma maneira matematicamente elegante de exprimir este procedimento para qualquer observável Q envolve a noção de "produto escalar" de vetores. Se l</J;) for o auto-estado associado ao autovalor y; obtido na medição de Q (recordar a eq. IV.4), então a probabilidade de obter Y; é dada pelo módulo quadrado do produto escalar do auto-estado l</J;) e do estado l<P) em que se encontra o sistema: (V .3) Na Fig. V.3 podemos intuir o que é o produto escalar (cp;icp) (que é o coeficiente a;, quando o estado está expresso de acordo com a eq. IV.2). Ele é a projeção de l<P) em l<P;) (ou vice-versa). Pela própria definição de produto escalar, ( <Pd <P) pode também ser visto como o cosseno do ângulo entre l<P) em l<P;) no espaço de Hilbert. Figura V.3. A pro1eçao (<P21 <P) está indicada pela área cinza. 4. O Postulado da Projeção Considere a situação em que um detector D 3 de nãodemolição (seção V.1) é colocado no caminho A, e outro D 4 no caminho B do interferômetro. O que acontece com o estado do fóton após a medição? Ora, se arrumarmos o experimento de acordo com a Fig. V.4, observaremos uma correlação entre contagens em D 3 e D 2 , e entre contagens em D 4 e D 1• Ou seja, sempre que D 3 disparar, D2 também o fará (supondo 100% de eficiência dos detectores). Isso é facilmente explicável considerando que o fenômeno é corpuscular. Conceitos da Física Quântica 36 Para a interpretação ondulatória, por outro lado, é preciso recorrer à noção de "colapso", que ocorreria após a primeira medição. No nível do formalismo, isto é expresso pela noção de "redução de estado". O estado antes da medição em um dos detectores, D 3 ou D4, é uma superposição dos auto-estados l lJ!A) e llJ!8 ), dada pela eq.(IV.1). No caso de uma detecção em D 3 , que indica que a posição do fóton é A, o estado subseqüente tem que ser l lJ!A), já que o fóton acaba caindo no detector D 2• A regra que descreve esta redução de estado é conhecida como postulado da projeção, que neste caso resumimos da seguinte maneira: P.P. (V.4) LASER~ ~ 1 Figura V.4. Arranjo experimental para justificar o postulado da projeção. - -e - --- : S1 1 rn-----~ 03 : 1 04 , A 1 : S2 ~--- --------------~------~ B , .... 1 20 VON NEUMANN, J. ([1932] 1955), Mathematical Foundations of Quantum Mechanics, Princeton U. Press, p. 439. LüDERS, G. (1951), "Über die Zustandsanderung durch den Messprozess", Annalen der Physik 8, 322-8. MARGENAU, H. (1959), "Philosophical concerning the Problems Meaning of Measurement in Physics", in CHURCHMAN, C.W. & RATOOSH, P. (orgs.), Measurement - Definitions and Theories, Wiley, Nova Iorque, pp. 163-76. (verp. 170). ~o, Este postulado foi formulado por Dirac, e de maneira mais completa por John von Neumann (1932). Este exprimiu o postulado de maneira errônea para o "caso degenerado", o que foi corrigido por Gunther Lüders em 1951. O nome ."postulado da projeção" foi introduzido apenas no final dos anos 50 por Henry Margenau 20 , que criticava sua validade, pois muitas vezes a partícula sendo medida é destruída (absorvida) durante a detecção, não tendo muito sentido, nestes casos, falar em estado do sistema após a medição. Capítulo VI COLAPSO DA ÜNDA OU REDUÇÃO DE ESTADO Neste capítulo, examinaremos um pouco mais a fundo a noção de "colapso de onda" (seções ill.1, V.1), própria da interpretação ondulatória, ou, de maneira mais geral (aceitável para todas as . interpretações), a noção de "redução de estado" (seção V.4), que ocorre no nível do formalismo quântico, e que cada corrente interpreta à sua maneira. Existem diversas tentativas de explicar o colapso a partir de outros princípios, mas deixaremos este assunto para um capítulo posterior. 1. Origens da Noção de Colapso e o Papel do Observador As origens da noção de "colapso de onda" se encontram no chamado "paradoxo da quantidade" encontrado por J.J. Thomson 21 (1897) e por W.H. Bragg (1906) em suas pesquisas com raio X . A idéia de "saltos quânticos" associada ao trabalho de Max Planck (1900) e Niels Bohr (1913) envolve uma questão semelhante, só que de um ponto de vista corpuscular. Ao desenvolver sua Mecânica Ondulatória, Schrõdinger não precisou considerar as mudanças da função de onda decorrentes de uma medição. Quem fez isso pela primeira vez foi Heisenberg, ao analisar a medição de posição de um elétron, no famoso artigo de 192722 . Introduziu . a noção de que "cada determinação de posição reduz o pacote de onda de volta a sua extensão original". Esta seria a chave para descrever as trajetórias lineares da radiação em uma câmara de nuvem de Wilson (Fig. VI.l), conforme discutido no 5º Congresso de Solvay, daquele mesmo ano. Nesta conferência, Max Bom considerou uma formulação dada por Einstein ao "paradoxo da quantidade", associado à dualidade ondapartícula: "Uma preparação radioativa emite em todas as direções partículas a.; faz-se com que estas fiquem visíveis através do método da nuvem de Wilson. Ora, se se associar a cada processo de emissão uma onda esférica, como se pode compreender que o rastro de cada partícula a. se mostra como uma linha (mais ou menos) reta?" 37 21 WHEATON, B.R. (1983), The Tiger and the Shark: Empírica[ Roots of WaveParticle Dualism, Cambridge University Press, pp. 76, 86. 22 HEISENBERG, W. (1927), "Über den anschaulichen Inhalt der quantentheoretischen Kinematik und Mechanik", Zeitschrift für Physik 43, 172-198. Tradução em inglês: "The Physical Content of Quantum Kinematics and Mechanics", in WHEELER & ZUREK (1983), op. cit. (nota 6), pp. 62-84. Citação da p. 74. 38 Conceitos de Física Quântica Figura VI. l. Colapso em uma câmara de nuvem de Wilson. CÂMARA DE NUVEM 23 lNSTITUT lNTERNATIONAL DE PHYSIQUE SOLVAY (1928), Electrons et Photons -Rapports et Discussions du Cinquieme Cansei! de Physique tenu a Bruxelles de 24 au 29 Octobre 1927, GauthierVillars, Paris. Tradução em português do capítulo "Discussão Geral das Novas Formuladas", in Idéias PESSOA JR., O. (org.) (2001), Fundamentos da Física 2 Simpósio David Bohm, Livraria da Física, São Paulo, pp. 139-72. Citação da pp. 250-1 do original. Bom em seguida explicou "como o caráter corpuscular .do fenômeno pode ser conciliado aqui com a representação por ondas", fazendo uso da "noção de 'redução do pacote de probabilidade' desenvolvida por Heisenberg", que não ocorre "durante o tempo em que não se observa ionização alguma". Para descrever o que ocorre após a observação, deve-se "'reduzir' o pacote de ondas para a vizinhança imediata dessas gotículas" .23 Neste mesmo congresso, Paul Dirac considerou o problema do colapso enfocando a perda da capacidade das componentes da função de onda de interferir entre si. "Pode-se dizer que a natureza escolhe aquele dentre os lfl,, que convém [... ] A escolha, uma vez feita, é irrevogável e afetará todo o estado futuro do mundo" (p. 262). Heisenberg criticou esta idéia de que "a natureza faz uma escolha". "Eu diria, preferencialmente, conforme fiz em meu último artigo, que o próprio observador faz a escolha, pois é só no momento em que a observação é feita que a 'escolha' se torna uma realidade física e que a relação das fases nas ondas, o poder de interferência, é destruída" (pp. 264-5). Esta ênfase no papel do observador teria seu auge nos anos 30, com a "abordagem subjetivista" de Fritz London & Edmond Bauer, segundo a qual a consciência humana seria responsável pelo colapso. 2. A Não-Localidade no Colapso Em sua intervenção neste 52 Congresso de Solvay, Einstein apresentou o seguinte experimento-de-pensamento (Fig. Vl.2). Um pacote de onda incide em uma fenda e é difratado, passando a ser representado por uma onda esférica. Esta onda se propaga então em direção a um detector circular (uma tela fosforescente). Capítulo VI: Colapso da Onda ou Redução de Estaà.o 39 p o s 111 "Se l lf/ 12 fosse simplesmente encarada como a probabilidade de que em um certo lugar uma partícula determinada se encontre em um instante determinado, poderia acontecer que um mesmo processo elementar produzisse uma ação em dois ou mais lugares do anteparo. Porém, a interpretação, segundo a qual l lf/ 12 exprime a probabilidade de que esta partícula se encontre em um lugar determinado, supõe um mecanismo de ação à distância muito particular, que impede que a onda continuamente repartida no espaço produza uma ação em dois lugares da tela" (p. 255). Esta constatação se aplica especialmente à interpretação ondulatória, que atribui uma realidade a lfl. A redução do pacote de onda por si só já estaria associada a uma ação à distância ou efeito não-local. Esta incômoda situação pode ser considerada uma "anomalia" da interpretação ondulatória, assim como a atualização do passado no presente (seção III.4) seria uma anomalia da interpretação da complementaridade, e as ondas vazias (seção III.1) de certas interpretações dualistas realistas. Veremos no capítulo XXVIII (quando estudarmos a desigualdade de Bell), porém, que a não-localidade que está associada ao colapso também está presente em qualquer interpretação realista da Teoria Quântica, mesmo as dualistas . 3. O Experimento de Stern-Gerlach Vimos como a noção de colapso era tratada em 1927, e como ela passou a ser associada à observação. Consideremos agora um experimento bem conhecido para fortalecermos nossa intuição sobre o princípio de superposição e o colapso do pacote de ondas. Figura VI.2. Não -localidade no colapso da onda, segundo Einstein. 40 Conceitos de Física Quântica Trata-se do famoso experimento idealizado por Otto Stern, e realizado no final de 1921 em parceria com Walter Gerlach na Universidade de Frankfurt. Um fino feixe de átomos de prata foi produzido por evaporação em um forno e colimado por duas fendas em série, passando então (em alto vácuo) entre os pólos de um eletro-imã que gera um campo magnético não-homogêneo. Os átomos foram coletados em uma placa de vidro. Constatou-se a formação de duas manchas bem separadas, ao invés de uma mancha contínua. Este experimento exemplifica o que é chamado quantização espacial, associada ao momento angular \/2 h do átomo de prata, onde h h/2n. Na Fig. VI.3 apresentamos um esquema desta experimento paradigmático. Aproximadamente 50% dos átomos incidem na região "em cima", e a tais átomos é atribuído o componente de momento angular de valor lz = +\/2 h, enquanto que aos que chegam na região "em baixo" é atribuído l z = -Vi h. Não tentaremos explicar a origem do efeito a partir da interação do átomo com o campo, o que é feito na maioria dos livros-texto de Mecânica Quântica, mas nos concentraremos na descrição do estado do átomo. Se os átomos que incidem no aparelho forem preparados no auto-estado IO'+d ou seja, com momento angular bem definido de valor lz = +Vi h, então todos rumarão para a região "em cima". O análogo acontece para átomos preparados com lz = - \/2 n. o que acontece, porém, quando os átomos estão em um estado que é uma superposição quântica de 1O'+) e 1O'_z)? = "~ rn Gim<i" ·e-m}Jàixo" FORNO COUMADÓRES TELA Figura VI.3. Experimento de Stern-Gerlach. Iremos argumentar que depois que o átomo passou pelo imã, mas antes de ser detectado, ele ainda não tem um momento angular bem definido. Vamos supor que o átomo é preparado no estado 41 Capítulo VI: Colapso da Onda ou Redução de Estado IO-+x), um auto-estado de ix, através de filtros apropriados. Se ele for detectado em um dos canais sem ser destruído, podemos dizer que seu estado final é IO-+z) (se for detectado no canal superior) ou lo--z) (se for detectado em D 2). Para calcularmos as probabilidades de cada um destes resultados, basta escrever o estado inicial como uma superposição dos auto-estados correspondentes ao observável sendo medido: (VI.1) Após a separação das componentes no imã, ocorre um acoplamento entre as variáveis de momento angular e de posição. Na eq.(VI.l) ignoramos o estado de posição do átomo incidente: deveríamos tê-lo escrito como 1o-+x)®1 fii) , onde r0 é a posição do átomo no eixo z=O. Após a separação, o estado torna-se: (VI.2) Os vetores 1r+) e j r_) indicam posições "em cima" e "em baixo" do eixo z. A tela fosforescente é um detector de posição, não de momento angular. Porém, como os estados de momento angular estão correlacionados com os de posição (eq. VI.2), é possível fazer uma medição "indireta" da componente de momento angular . .4. Colapso no Experimento de Stern-Gerlach Substituamos a tela detectora usada por Stern & Gerlach por detectores de não-demolição D 1 e D 2 , que não absorvem os átomos de prata, mas que são sensíveis à sua passagem (Fig. VI.4). z k::y ·x 01 ~:::::::::::::::~-----­ ----~---------·~---_::--;-~--~~~ 6 Figura VI.4. Experimento de Stern-Gerlach com detectores que não absorvem os átomos. Conceitos de Física Quântica 42 Vamos supor que o átomo é detectado na posição superior. (Pela eq.VI.2 vemos que a probabilidade disto ocorrer é 1h, seguindo o algoritmo estatístico da seção V.3). Então, após completada a medição, o estado fin al é: (VI.3 ) llj/)fin . A transição da eq.(VI.2) para a eq.(VI.3) descreve a redução de estado. Sabemos que este último é realmente o estado final porque podemos repetir o experimento de Stern-Gerlach para este estado final . a Fig. VI.5 (análoga à Fig. V.4), apenas átomos no estado l<J+) rumam para um segundo aparelho SG2, após serem redirecionados por um campo magnético estático M. Após atravessarem SG2 , todos os átomos são detectados em D 11 , e nenhum em D 12 • +z Figura Vl.5. Arranjo para mostrar que os átomos rumando para o canal de cima possuem uma propriedade bem definida, que exprimimos pelo autovalor l z = +l/2n. 5. A Redução de Estado segundo as Diferentes Interpretações Na seção III. l , vimos como as diferentes interpretações explicam um fenômeno corpuscular. A visão ondulatória, nesse caso, precisa invocar um colapso súbito e não-local para explicar o fenômeno, que é facilmente explicável pelas outras interpretações através da noção simples de partícula. Apesar dessas outras interpretações não invocarem um colapso de onda, mesmo assim elas aceitam o formalismo quântico, e em geral aceitam que haja uma redução de estado (ao nível do formalismo) do tipo descrito pela eq.(V.3). Como é, então, que cada visão interpreta a redução de Capítulo VI: Colapso da Onda ou Redução de Estado estado? Que alteração ocorre no objeto quântico, devido ao processo de medição, que é descrito pela redução de estado? Para responder a essas perguntas, levaremos em consideração as interpretações do estado quântico apresentadas na seção IV.3. (1) Interpretação Ondulatória. Como esta visão atribui uma realidade ao estado quântico que se reduz, então este processo corresponde a um colapso real da onda de probabilidade, conforme já vimos. Um problema com esta concepção é que tal colapso instantâneo é não-local (seção VI.2): uma medição feita na Lua pode instantaneamente afetar uma realidade - um estado quântico - na Terra. (2) Interpretação Corpuscular. A interpretação dos coletivos estatísticos (seção IV.3) oferece uma explicação interessante para a redução de estado24 . Consideremos o experimento de Stern-Gerlach examinado anteriormente, e o estado inicial dado pela eq.(Vl.l). Este estado, segundo esta interpretação, representaria na verdade uma grande coleção de microestados diferentes, sendo que cada um destes microestados teria o mesmo valor f x = +Y:z ti para o componente de momento angular na direção x, já que o estado quântico foi preparado no auto-estado ICY+x). Deste coletivo de microestados, metade teria o valor .e, = +Yz n para o componente na direção z, e metade .e, = -Y:z n. Cada átomo sendo medido estaria num microestado bem definido deste coletivo (com fx e .e, exatos), só que ignoramos qual. Ao realizarmos a medição e obtermos o estado final da eq.(VI.3), revela-se o valor f, = +Yz n para o componente na direção z. Assim, aumentou nosso conhecimento a respeito do microestado inicial, o coletivo inicial sendo reduzido para um de seus sub-coletivos. Na realidade, porém, nada teria mudado com relação às propriedades do átomo: o que muda com a redução de estado seria apenas nosso conhecimento a seu respeito. Apesar da elegância desta explicação, é preciso tomar cuidado para dar conta do experimento da Fig. VI.6, em que o átomo no estado inicial ICY+x) passa por dois imãs de Stern-Gerlach, um orientado na direção +z e o outro na direção +x, antes de ser detectado. Neste caso, o átomo que entra em SG2 tem uma probabilidade Yz de terminar com componente de spin f x = -Yz ti (em D 11 ), diferente do inicial (antes de SG1). Isso mostra (usando a terminologia desta interpretação) que o processo de medição (em SG1 e Dz) não meramente "seleciona um sub-coletivo do coletivo inicial", mas, ao fazer essa seleção, transforma as propriedades dos átomos do subcoletivo (que a interpretação postula existir inicialmente), compondo assim um novo coletivo com propriedades não contidas no subcoletivo inicial (devido, poderíamos dizer, a um distúrbio provocado pelo aparelho no objeto quântico, como na seção V.l). 43 24 O físico norte-americano Edwin Kemble defendeu esta visão, aparentemente sem levar em conta a complicação que mencionamos no parágrafo seguinte: KEMBLE, E.e. (1937), The Fundamental Principies of Quantum Me chanics, Mc-Graw-Hill, Nova Iorque, pp. 326-9. Já o filósofo da ciência Karl Popper distinguiu a "seleção" de uma medição real, que provoca um distúrbio no objeto: POPPE;R, K. ([1934] 1989), "Algumas Objeções a respeito da Teoria Quântica", in A Lógica da Pesquisa São Científica, Cultrix, Paulo, cap. IX, pp. 237-74. Ver também os Novos Apêndices XI, XII, pp. 50427. A posição de Popper é retomada por BALLENTINE (1970), op. cit. (nota 13). 44 Conceitos de Física Quântica Figura VI.6. Arranjo para mostrar que uma propriedade bem definida fx = +Vi 'li do estado inicial é perdida após separação dos auto-estados de Lz em SG 1 e absorção em D2. 25BOHM, D. (1952), "A Suggested lnterpretation of the Quantum Theory in terms of 'Hidden' Variables, 1 and II", Physical Review 85, 16693, reproduzido in WHEELER & ZUREK (1983), op. cit. (nota 6), pp. 369-96. Ver p. 181. (3) Interpretação Dualista Realista. Considerando que toda medição acaba envolvendo uma determinação da posição do objeto quântico, as reduções de estado resultariam sempre num auto-estado de posição (como a eq. VI.3), de forma que estas reduções podem ser interpretadas como a mera detecção da partícula presente em algum lugar da onda piloto. David Bohm25 n:;ssaltava que o "potencial quântico", que corresponde às ondas em seu modelo dualista, sofre "flutuações violentas e extremamente complicadas" durante a interação do objeto quântico com o aparelho de medição, afetando o momento da partícula e conseqüentemente sua posição final. Vale ressaltar porém, que o colapso resultante segue de maneira determinista do estado inicial do objeto e do aparelho, não sendo assim um processo essencialmente aleatório. (4) Inte rpretação da Complementaridade. Para esta visão, a redução brusca_ e impreyisível do estado quântico durante uma medição apenas reflete o distúrbio incontrolável que o aparelho de medição exerce sobre o objeto. Para um fenômeno ondulatório, como o experimento das duas fendas para um fóton único (seção I. 3), a interpretação da complementaridade explica o surgimento de ionizações individuais no detector apelando para o postulado quântico (seção I.4), que preencheria assim o papel explicativo que a noção de colapso tem na interpretação ondulatória. Isso também seria válido para um fenômeno corpuscular (seção III. 1), apesar de neste caso haver menos problema ainda, pois o objeto quântico se comporta como partícula. Capítulo VII EVOLUÇÃO U NITÁRIA 1. Evolução Unitária e Equação de Schrõdinger Na seção VI.3, descrevemos uma evolução do estado da átomo, que passou do estado inicial 1a +x) ® 1 f=o ) para o estado separado da eq.(VI.2). Esta evolução pode ser descrita pela equação de Schrodinger: in ~ 1lfl<t)) dt = J! (t) 1lfl<t)) , onde o hamiltoniano B (t) é o operador auto-adjunto associado à energia total do sistema, tendo que ser escolhido adequadamente. Uma maneira alternativa de descrever esta mesma mudança de estado é através de um operador de evolução Ú que é linear e "unitário". Um operador unitário é tal que seu inverso é igual ao seu adjunto (comparar com a seção IV.5), ou seja, rJ - I = rJ t , o que t equivale a escrever U U = 1. . A equação de Schrõdinger torna-se26 : A onde A U(t,t 0 ) (VII. l) ' i - !__J' H(t ' ) U(t' ) dt'. h 26 Ver, por exemplo, COHENTANNOUDJI, C.; DIU, B. & LALOE, F. ( 1977), Quantum Mechanics, Wiley, Nova Iorque,pp. 308-11 (VII.2) lo f é o operador identidade. Para um operador hamiltoniano H independente do tempo, a evolução temporal assume a seguinte forma simplificada (com to= 0): Ú(t) = exp(- iHt/1i) (VII.3) A evolução unitária é caracterizada por ser contínua, linear, determinista e reversível, ao passo que a transição descrita pelo postulado da projeção (seções V.4 e VI.4) é (praticamente) instantânea, não-linear, indeterminista e irreversível. Vimos na Fig. V.3 que este último pode ser imaginado em um espaço de Hilbert 45 46 27ver por exemplo BLUM, K. (1981), Density Matrix Theory and Applications, Plenum, Nova Iorque, pp. 67-9. Conceitos de Física Quântica como uma redução a um dos auto-estados do observável sendo medido. Já a evolução unitária pode ser imaginada como uma "rotação" contínua do vetor de estado no espaço de Hilbert (Fig. VII.1), podendo incluir inversões de vetor. Desta maneira, fica fácil intuir que o "ângulo" entre dois vetores no espaço de Hilbert (e portanto seu produto escalar) permanece constante se ambos fore.m submetidos à mesma evolução linear. Como corolário disto, podemos dizer que uma evolução unitária leva estados ortogonais a estados ortogonais. Por determinismo, entende-se que se um estado inicial for dado, j untamente com as condições de contorno, então o estado evoluído em qualquer instante do tempo pode ser determinado. Quando ocorre cada tipo de evolução? A evolução unitária (equação de Schrõdinger) é usada para descrever sistemas fechados. Isto engloba duas situações: (1) Sistemas que estão isolados de campos externos (donde sua energia é conservada), de forma que o hamiltoniano é independente do tempo. (2) Sistemas que estão sujeitos a campos externos bem determinados, mas que não reagem nas entidades físicas que criam os campos, caso para o qual o hamiltoniano é dependente do tempo 27 • Figura VIU. Evolução unitária de vetores no espaço de Hilbert. 2. Reversibilidade Temporal Quanto à reversibilidade, uma maneira de intuí-la é "inverter o filme" e checar se as leis continuam sendo obedecidas. Por exemplo, um filme de bolas de bilhar se chocando (sem atrito) parece tão real quanto o mesmo filme rodando de trás para frente: assim, as leis de Capítulo VII: Evolução Unitária choque são revers1ve1s. Já um filme de um copo caindo e se quebrando fica estranho quando se roda de trás para frente: é que as leis da Física macroscópica (como a Termodinâmica) são irreversíveis. Será que se invertêssemos a flecha do tempo após um átomo passar pelo aparelho de Stern-Gerlach (antes de ele ser detectado), o estado final seria igual ao estado inicial? Para examinarmos intuitivamente esta situação, consideremos o caso análogo fornecido por um divisor de feixe óptico. Um feixe de luz partindo de O é dividido em um espelho semi-refletor S 1• O que aconteceria se invertêssemos a flecha do tempo? O componente voltando por A se dividiria em dois, assim como o componente voltando por B (Fig. VII.2) . Haveria superposição destrutiva no caminho P, de forma que o feixe final rumaria por O, em sentido oposto ao feixe inicial. Figura VIl.2 . Reversão temporal de uma divisão de feixes leva ao feixe inicial (com sentido invertido). Se qmsessemos calcular o que acabamos de descrever, teríamos que tomar um certo cuidado. O operador de evolução que descreve reversão temporal não é o U (t 1 ,t0 ) da eq. (VII.2), mas o seu inverso rJ-1 ( t 1 , t0 ) . Neste caso, a regra que descreve o deslocamento de fase de ondas refletidas (em relação à amplitude transmitida, seção II.1) não envolve um avanço de À/4 (fator de fase i), mas um atraso de À/4 (fator de fase -i). É aplicando este operador ao estado da eq. (IV .1) que se obtém o estado inicial. Conceitos de Física Quântica 48 3. Recombinação dos Feixes de Stern-Gerlach 28BoHM (1951), op. cit. (nota 16), pp. 604-8 A reversão . temporal é um exercício teórico, não uma realidade prática. Há, no entanto, uma maneira de investigar se um processo é reversível ou não, fazendo uma recombinação de feixes, como foi feito no interferômetro de Mach-Zehnder. No caso do experimento de Stem-Gerlach, o arranjo de recombinação (Fig. VII.3) foi sugerido por David Bohm (1951) 28 , e mais tarde por Gunther Ludwig (1954) e Eugene Wigner (1963). Os componentes divergentes são recombinados utilizando-se campos magnéticos estáticos apropriados (M+.n M_x), e a colimação final é feita por meio de um outro imã de Stem-Gerlach (SG2 ) . Este último deveria ser invertido (por reflexão no plano xz), mas como o imã é simétrico nessa direção, o segundo imã pode ser colocado de maneira idêntica ao primeiro. +z z l:y X Figura Vll.3. Experimento de Stern-Gerlach revertido. Qual será o estado final do átomo? Consideremos dois casos possíveis: [1] Se após a separação pelo imã o estado for a superposição descrita pela eq.'(VI.2), então ao serem recombinadas, as duas componentes terão mantido uma diferença de . fase constante, e formarão um estado final "puro'', que pela simetria do arranjo experimental (e supondo que nenhuma fase relativa é introduzida entre as componentes) é igual ao estado inicial IO'+x). Para um coletivo de átomos, todos estarão no mesmo estado IO'+x). [2] Se após a separação pelo imã o átomo tiver escolhido um auto-estado de Lz (ou seja, escolhido o caminho percorrido), após incidir no imã invertido de Stern-Gerlach ele permanecerá no estado Capítulo VII: Evolução Unitária escolhido, ou IO"+z), ou IO"-z)· Esta conclusão é obtida também a partir de argumentos de simetria, imaginando-se uma reversão temporal do experimento de Stern-Gerlach usual para um estado inicial que seja um auto-estado de Lz. Para um coletivo de átomos, obtém-se não um caso puro, mas uma "mistura" (metade no estado 1O"+z), metade em JO"_z)). Pois bem, os casos [1] e [2] podem ser distinguidos para um coletivo de átomos (apenas um átomo não seria suficiente). Basta, para isso, colocar uma imã de Stern-Gerlach apontado na direção x na saída do arranjo experimental revertido (Fig. VII.4). No caso [1], todos os átomos serão detectados em D 3 ; no caso [2], mais ou menos metade cairá em D 3 e metade em D 4 . Este caso exemplifica a regra de que em geral é sempre possível distinguir um caso puro de uma mistura. Figura VII.4. Arranjo para comprovar que o estado inicial puro IO"+x) é mantido após a recombinação dos feixes de Stern-Gerlach. Apesar do experimento de Stern-Gerlach revertido nunca ter sido realizado, supunha-se que o caso [1] seria o correto. Note que a reversão não envolve nenhum colapso irreversível (pois não houve medições) e nem distúrbios. Na seção XIX.4 examinaremos um experimento recente de interferometria de nêutrons que tem precisão suficiente para conseguir a reversão. Concluímos assim que, antes de qualquer detecção, o vetor de estado representando o momento angular do sistema está em uma "superposição de estados com fz bem definído" (eq. VI.2). É incorreto afirmar que o átomo está em um dos canais (só que nós não sabemos qual deles) e que não há nada no outro canal (o que corresponderia ao caso [2]). so Conceitos de Física Quântica Agora, se um par de detectores que não destruísse os átomos fosse inserido após a primeira separação das componentes (Fig. VII.5), obteríamos informação sobre qual caminho foi percorrido pelo átomo, e isso provocaria um colapso para um estado do tipo da eq.(VI.3). Cairíamos então no caso [2]. Figura VII.5. Se a trajetória inicial for medida, a perda de coerência resultante leva a uma mistura final, com detecções tanto em D 3 quanto em D4. 29Esta é a conclusão, obtida em outro contexto, por: H.C. (1986), ÜHANIAN, "What is Spin?", American Journal of Physics 54, 500-S. Para finalizar, consideremos a questão de como a interpretação da onda piloto (dualismo realista) interpreta o experimento de Stern-Gerlach com recombinação (Fig. VII.4) . Como no caso do interferômetro, ela postula que a onda se divide em dois componentes e a partícula segue por um deles. Mas e o spin, ou momento angular? Ele estaria associado à partícula ou à onda? Ora, como o estado de spin inicial pode ser restaurado através da recombinação ou interferência de feixes (em outras palavras, quando a partícula decide por qual caminho ela irá percorrer, o spin não pode tomar semelhante decisão), parece que o spin deve ser associado ao campo ondulatório29 , ou pelo menos, a uma propriedade da relação entre o campo ondulatório e a partícula. Capítulo VIII MEDIÇÕES EM FÍSICA QUÂNTICA 1. "Medição" enquanto Termo Primitivo O pouco que vimos das regras da Mecânica Quântica indica pelo menos duas inovações em relação à Física Clássica: os papéis fundamentais adquiridos pela probabilidade e pelo indeterminismo, e o estatuto especial atribuído ao ato de medição. No que se refere ao processo de medição, os princípios da Física teórica do século XIX podiam ser enunciados sem se fazer qualquer referência ao observador ou ao instrumento de medição. O processo de medição podia em princípio ser explicado de maneira completa na linguagem da Física, e podia-se corrigir teoricamente o distúrbio provocado pelo instrumento no objeto. INICIAL FINAL 8' a 80 Fig. Vlll.l. Corrigibilidade de medições em Física Clássica. 80' ______I Como exemplo disto 30 , considere a medição da temperatura 80 de um volume pequeno de água de capacidade térmica C0 , por meio de um termômetro cujo bulbo tem tamanho e capacidade térmica e, comparáveis ao volume d' água, e temperatura inicial 8a (Fig. VIII. l). A temperatura final 8a' do termômetro não indica a temperatura inicial da água, pois a água perdeu calor para o termômetro. O medidor alterou assim o estado da água, como no caso quântico. Mas há no caso clássico uma diferença fundamental: é possível calcular a correção a ser introduzida na leitura do termômetro, usando as leis da Termologia, de forma a computar o valor inicial da temperatura da água: 80 = 80 ' + (Ca1Co)·(8a'- 8a). 51 300 exemplo que se segue foi sugerido por ZILSEL, E. (1935), "P. Jordans Yersuch, den Yitalismus quantenmechani schen zu retten", Erkenntnis 5, 56-64. Ver discussão in J AMMER (1974), op. cit. (nota 3), pp. 160- 1. 52 31 Em português, o ato de medir pode ser denotado por três substantivos: "medida", "medição" e "mensuração". Não utilizamos o primeiro termo para não fazer confusão com a "medida" de um conjunto de pontos em Análise Matemática. Utilizamos, portanto, o termo "medição" no contexto da Física. Conceitos de Física Quântica Com a Mecânica Quântica, a medição 31 tornou-se um conceito primitivo que foi integrado aos fundamentos da teoria. Este "papel primitivo" da medição em MQ tem desagradado a vários autores que desejam um retorno ao ideal clássico, no qual o comportamento dos aparelhos de medição pode ser reduzido aos princípios da teoria física fundamental. A maioria dos físicos , porém, não se incomoda com esta questão, já que em sua visão o papel primitivo da medição exprime somente o caráter inevitavelmente "instrumentalista" da Física Quântica, que deve descrever "experimentos" e não "propriedades intrínsecas dos objetos". Tal papel primitivo atribuído à operação de medição está também ligado à concepção ortodoxa de que o instrumento de medição tem comportamento fundamentalmente "clássico" (voltaremos a este ponto na seção XIII.2). 2. Medições Diretas na Física Quântica 32HEISENBERG, W. (1930), The Physical Principies of Quantum Theory, University of Chicago Press, pp. 25-28. Nas seções VI.3 e 4, vimos -que a medição de um componente do spin de um átomo é feita de maneira indireta, pois o que medimos diretamente é a posição na qual o átomo é detectado na tela. Se pensarmos como outros observáveis são medidos, veremos que em geral eles são determinados de maneira indireta a partir de uma medição direta de posição. Como exemplo adicional, consideremos como a velocidade de uma partícula é determinada. Heisenberg (1930) apresentou três maneiras de se medir a velocidade Vx (ou o momento Px = mVx) de uma partícula, dentre as quais mencionaremos a que se utiliza do efeito Doppler 32 . Irradia-se a partícula com luz de freqüência conhecida v; pelo efeito Doppler (ou equivalentemente, neste caso, pelo efeito Compton), haverá uma mudança na freqüência da luz espalhada, que passa a ser v' = v (1 - 2Vxfc) para um espalhamento de 180º (Fig. VIII.2). Como é que se determina a freqüência final v'? Ora, é só passar a luz por um prisma (ou fazê-la incidir numa grade de difração de um espectrômetro) e ver em qual posição ela incide em uma escala. Obtém-se assim, indiretamente, a velocidade Vx da partícula a partir de uma determinação direta da posição de um fóton. A tese de que todas as medições quânticas são em última instância determinações de posição foi salientada por Henry Margenau (a partir dos anos 30) e Louis de Broglie (anos 50). Ela está implícita também na interpretação da complementaridade, à medida que o postulado quântico afirma que as trocas de energia se dão em pacotes bem localizados. No entanto, não é só a medição direta de posição que fornece informação sobre um sistema quântico: Capítulo VIII: Medições em Física Quântica 53 em medições de intensidade de um campo, faz-se uma contagem de número de eventos quânticos. Tal contagem de quanta, cada qual com uma energia discretizada, pode ser vista como uma medição de energia. Enfim, pode-se defender a tese de que todas as medições diretas na Física Quântica e também na Clássica são determinações de posição e contagem de eventos. Mesmo a determinação de um intervalo de tempo pode ser reduzida a uma contagem de ciclos regulares. O j t \\\\\ , \fx V i11111111111111111r111111111111111111111111w11r10 --+ \\\\\ \ 1\11\\\11111111111111\\\1,11 ll\1 \ \ \ \ \ \ V . ~ 3. Interpretações sobre as Medições em Física Quântica Reconhecendo que o observável posição parece ter um estatuto privilegiado na Mecânica Quântica, vejamos nesta seção como as diferentes interpretações encaram a medição de uma posição. Se um experimento fornecer uma posição x para uma partícula, o que se pode dizer sobre a existência prévia desse valor medido de posição? (1) Interpretação Ondulatória. No caso em que um objeto quântico encontra-se em uma superposição de auto-estados de posição (ou seja, a função de onda l/f(x) não é fortemente centrada em torno de um valor de x), não se pode atribuir um valor bem definido para a posição. Após a medição, supondo-se que o valor x 0 foi obtido, ocorre um colapso da onda espalhada para uma onda fortemente centrada em torno de x0 (segundo o postulado da projeção). Após a medição, então, pode-se. atribuir um valor bem definido para a posição, mas não antes. (2) Interpretação Corpuscular. Nesta interpretação, é usual aceitar-se que as medições de posição são fidedignas: elas revelam o valor da posição possuído pela partícula antes do processo de medição. Além disso, logo após a medição a posição da partícula permanece a mesma. No entanto, para explicar adequadamente experimentos em que observáveis incompatíveis são medidos em sucessão (Fig. VI.6), é preciso admitir que a medição de posição provoca um distúrbio incontrolável e imprevisível no momento da Figura VIJJ.2. Velocímetro baseado no efeito Doppler. 54 33JORDAN, (1934), P. "Quantenphysikalische Bernerkungen zur Biologie und Psychologie", Erkenntnis 4, 215-252. Citação da p. 228 é reproduzida in JAMMER (1974), op. cit. (nota 3), p. 161. Conceitos de Física Quântica partícula (da mesma forma suposta por Heisenberg em sua derivação semi-clássica do princípio de incerteza, que veremos na seção XI.4). (3) Interpretação Dualista Realista . Segundo esta visão, medições de posição são fidedignas, revelando o valor possuído antes da medição. Tal medição provoca uma alteração rapidíssima na onda associada, o que afeta o momento de maneira imprevisível (a alteração na onda dependeria do estado microscópico do aparelho de medição, o que nunca é conhecido pelo cientista). (4) Interpretação da Complementaridade . Para uma interpretação que tende a atribuir realidade apenas para o que é observado, a rigor não faz sentido perguntar qual era a posição de um objeto quântico antes da medição. Tal objeto só passaria a ter um valor bem definido de posição (ou de outro observável) após ele ter interagido com o aparelho de medição e o resultado x ter sido obtido . Pascual Jordan (1934) exprimiu isso de maneira bastante radical: "nós mesmos produzimos os resultados da medição" 33 . Niels Bohr, no entanto, após 1935, acabou adotando implicitamente a retrodição, que mencionamos na seção III.l. Neste caso, então, é plausível dizer, após a detecção de um quanta em uma certa posição x 0 (tanto para fenômenos corpusculares quanto ondulatórios), que a posição do objeto quântico logo antes da medição era x 0 (mas antes da medição é incorreto dizer que "ele tem uma posição bem definida, mas desconhecida", pelas razões expostas na seção III.3) . 4. Experimento de Resultado Nulo Consideremos de novo a situação na qual um único átomo incide no aparelho de Stem-Gerlach, e na qual sabemos o instante t no qual o átomo atingirá um dos detectores. Suponha porém que o detector D 2 (da Fig. VI.4) tenha sido removido (Fig. VIII.3), e que após o tempo t nenhu m sinal seja detectado em D 1 • 1 1 DETECTOR 0 1 Figura VIJI.3. Experimento de resultado nulo. ÁTOMO ÚNICO ----~-- - - ~:::::::::::::::~----------- ------- Capítulo VIII: Medições em Física Quântica Podemos inferir com certeza que o átomo se encontra no canal inferior, com momento angular bem definido fz = - 1h n. O vetor de estado representando o estado do átomo sofreu uma redução, sabemos agora qual é o valor do observável medido, mas nenhum sinal foi detectado ! Este experimento de resultado nulo mostra assim que é possível haver uma medição e uma redução de estado (um "colapso", segundo a interpretação ondulatória) sem que um detector dispare e sem que se produza um registro macroscópico do sinal. O aspecto peculiar deste tipo de medição foi apontado por Mauritius Renninger 34 (1960). Segundo ele, um experimento de resultado nulo seria um exemplo de medição na qual não ocorre distúrbio no objeto, o que iria contra a tese do "distúrbio interacional" da interpretação da complementaridade. Contra esta conclusão, Heisenberg defendeu a posição ortodoxa apelando para a "totalidade" do fenômeno , de maneira semelhante a que Bohr respondera a EPR (conforme veremos adiante). A visão de Renninger é consistente com uma interpretação corpuscular. Por outro lado, segundo a interpretação ondulatória, ocorre um tipo de acoplamento entre objeto e detector (ou seja, haveria um tipo de interação), apesar de o detector não disparar. Mais recentemente, R.H. Dicke (1981) examinou em detalhes outro exemplo de experimento de resultado nulo, envolvendo um átomo dentro de uma caixa que está dividida em dois compartimentos. Seu estado inicial é uma superposição de estados bem localizados em cada um dos compartimentos. Irradia-se o compartimento esquerdo com fótons; se nenhum espalhamento for observado, ocorre um colapso do estado de posição do átomo para o compartimento da direita, sem haver detecção de fótons! Um fato paradoxal aqui é que este estado final (átomo mais fóton) tem mais energia do que o estado inicial! Dicke mostra, contudo, que este aumento é compensado pela diminuição de energia que ocorre quando o fóton é espalhado, de forma que a energia média é conservada. Outro ponto importante salientado por Dicke envolve a afirmação de Renninger de que "nenhuma interação" ocorre em um experimento de resultado nulo. "Mostra-se em teoria de perturbação da mais baixa ordem que esta redução da probabilidade de que o átomo se encontre no lado esquerdo da caixa está associada a um processo de espalhamento de segunda ordem. [... ] O processo de espalhamento de segunda ordem é um no qual um fóton é primeiro absorvido pelo átomo e depois emitido de volta no pacote de onda, 55 34RENNINGER, M. (1960), "Messungen ohne Stõrung des Messobjekts", Zeitschrift für Physik 158, 417-21. Experimentos de resultado nulo já haviam sido concebidos antes de Renninger: ver JAMMER, M. (1974), op.cit. (nota 3), pp. 495-6. 56 35DICKE, R.H. (1981), "Interaction-Free Quantum Measurements: A Paradox?", American Journal of Physics 49, 925-30. DICKE, R.H. (1986) , "On Observing the Absence of an Atom", Foundations of Physics 16, 107-113. Citação das pp. 10910. Conceitos de Física Quântica deixando o campo de fótons no estado original. [... ] A ausência de um fóton espalhado não implica que uma 'interação' entre o pacote de onda do fóton e o átomo não tenha ocorrido, pois o processo de espalhamento ·de segunda ordem pode ser considerado uma 'interação' ." 35 Capítulo IX 0 PROBLEMA DA MEDIÇÃO No Cap. VI examinamos a redução de estado descrita pelo postulado da projeção, e sua interpretação enquanto "colapso" feita por uma corrente da interpretação ondulatória. Porém, vários defensores de uma interpretação ondulatória não aceitam a idéia de que ocorram colapsos instantâneos, aleatórios e não-locais em conseqüência de uma medição. O exemplo mais famoso destes foi o próprio Schrõdinger. A saída para estes autores é tentar descrever o colapso como um processo físico contínuo que envolveria objeto e aparelho. Os problemas desta abordagem recebem o nome genérico de problema da medição. 1. O Primeiro Problema da Medição: Caracterização A sugestão de Heisenberg (seção VI.l) de que um colapso ou redução de estado ocorreria com uma observação ou medição foi amplamente aceita, mas o que constituiria exatamente essa medição? A questão de como ocorre o colapso associado a uma medição pode ser chamado o "problema geral da medição". Ele pode ser reenunciado como a questão de como, durante uma: medição, uma "superposição quântica" pode ser transformada em estados que se comportam "classicamente", ou seja, não se superpõem. A resposta que John von Neumann daria em 1932 é de que esta perda de coerência é descrita pelo postulado da projeção, que acompanha qualquer ato de observação. Dois problemas se desdobram desta solução ao problema geral da medição. O primeiro pode ser chamado de problema da "caracterização". Sob que condições deve ser aplicado o postulado da projeção, e se ele sempre acompanha uma medição, o que então caracterizaria uma observação ou medição? É a presença de um observador consciente? É a obtenção de um registro macroscópico? É a amplificação? A interação do objeto com uma placa metálica? O acoplamento com o ambiente? Qual etapa do processo de medição é responsável pelo colapso? Pode ocorrer colapso sem medição? (Fig. IX.1.) Sabemos que o colapso não ocorre no estágio da a;iálise (separação) de um feixe, pois é sempre possível recombinar o feixe e observar interferência (seção VI.2). Será que a amplificação é condição necessária para o colapso? Alguns autores sugeriram isso nos anos 60, mas a possibilidade de se fazer um experimento de 57 Conceitos de Física Quântica 58 36Este argumento foi formu lado por TAUSK, K. (1966), "Relation of Measurement with Ergodicity, Macroscopic Systems, Information and Conservation Laws", lnternational Atomic Energy Agency Interna! Report 1411966, Trieste (ver pp. 22-23), e também por JAUCH, J.M.; WIGNER, E.P. & YANASE, M.M. (1967), "Some Comments concerning Measurements in Quantum Mechanics", 1l Nuovo Cimento 48 B, 144-51 (ver p . 150). 37LUDWIG, G. (1961) , "Gekiste und Ungekiste Probleme des Messprozesses in der Quantenmechanik, in BOPP, F. (org.), Werner Heisenberg und die Physik unserer Zeit, Vieweg, Braunschweig, pp. 150-81. A associação do colapso com as placas detectoras é feita por: MACHIDA, S. & NAMIKI, M. (1980), "Theory of Measurement in Quantum Mechanics. resultado nulo (seção VIII.4) inviabiliza esta proposta, pois neste caso ocorre colapso sem amplificação de um sinal3 . A amplificação poderia ser uma causa suficiente para o colapso, mas não é uma causa necessária. Talvez o colapso ocorra quando o objeto quântico interage com um grande número de partículas, presentes por exemplo na placa metálica durante uma detecção, ou talvez devido a uma interação com o meio ambiente. Existem algumas propostas nesses sentidos, mas nenhuma é ainda convincente. Ludwig (1961) sugeriu que pequenas não-linearidades na equação de Schrbdinger poderiam se tornar significativas durante a interação com os octilhões de partículas do aparelho de medição 37 . Uma das primeiras explicações para o colapso, conhecida como abordagem subjetivista, afirma que o colapso seria causado apenas quando o sistema quântico interagisse com a consciência do observador38 . Apesar desta tese parecer exagerada, até hoje ninguém conseguiu refutá-la com algum experimento-de-pensamento. Assim, esta tese subjetivista é defensável, apesar de não ser muito plausível. Outra explicação radical é a tese dos "estados relativos" de Everett (1957) 39 , que postulou que o universo como um todo seria descrito por uma uruca função de onda, que evoluiria deterministicamente de acordo com a equação de Schrbdinger. Quando um observador examina o resultado de um experimento de Stern-Gerlach, por exemplo, sua consciência também entraria em uma superposição, com um ramo associado ao resultado "spin para cima", e o outro a "spin para baixo". Não ocorreria colapso! Haveria uma ilusão de colapso apenas porque as memórias associadas a "spin OBSERVAÇÃO AMPLIFICAÇÃO &F.'i• o o ;;...o"".""-...J o o 00 o ~ y-- y ~ DETECÇÃO REGISTRO Figura IX.!. Problema da Caracterização: em que estágio da medição ocorre o colapso? Na detecção? Na amplificação (envolvendo uma fotomultiplicadora FM e um pré-ampl{ficador A)? No registro no osciloscópio? Na observação consciente? Capítulo IX: O Problema da Medição para cima", por exemplo, não teriam acesso às memórias associadas a "spin para baixo", apesar de coexistirem simultaneamente em "mundos diferentes". 2. Criptodeterminismo e o Segundo Problema da Medição: Completeza O segundo problema que surge a partir de von Neumann tem sido chamado de problema da "completeza " 40 . Poderia o postulado da projeção ser explicado pelos outros princípios da Mecânica Quântica e algum modelo físico apropriado para o processo de medição? Esses "outros princípios" se resumiriam essencialmente à equação de Schrõdinger, que descreve uma evolução determinista de estados (seção VII.1), que se aplicaria para o sistema composto consistindo do objeto quântico e do aparelho de medição (e qualquer outro componente que fosse necessário, como o próprio ambiente). Von Neumann 41 iniciou a última seção de seu famoso livro considerando "uma possível explicação freqüentemente proposta para o caráter estatístico do processo" de redução, que pode ser chamado de tese do conhecimento limitado. De acordo com esta tese, "o resultado de uma medição é indeterminado porque o estado do observador antes da medição não é conhecido de maneira exata. É concebível que tal mecanismo poderia funcionar, porque o estado de informação do observador em relação ao seu próprio estado poderia ter limitações absolutas , pelas leis da natureza." Esta tese consistiria numa alternativa criptodeterminista para a formulação usual da Mecânica Quântica. "Criptodeterminismo" significa etimologicamente "determinismo escondido"42 . Segundo este ponto de vista, as leis da natureza seriam deterministas. A imprevisibilidade dos res?ltados de medições individuais seria fruto do conhecimento incompleto que temos a respeito do estado inicial de sistemas em interação com o objeto. Se uma explicação criptodeterminista fosse possível, as leis da Mecânica Quântica seriam "completas" sem a necessidade do postulado da projeção. Após argumentar que a "tese do conhecimento limitado" é plausível, von Neumann forneceu uma prova de insolubilidade para o problema da completeza, ou seja, mostrou que tal explicação não seria capaz de satisfazer uma certa exigência de consistência para medições quânticas . Tal prova seria retomada na década de 60 (Wigner, Fine etc.) sem considerar tal exigência, como veremos mais tarde 43 . 59 I. II.", Prog ress in Theoretical Physics 63 , 1457-473, 1833-47. A associação com o ambiente fo i sugerida por ZUREK, W. H . (1982), "Emvironment-Induced Superselection Rules'', Physical Review D 26, 1862-80. 38LONDON, F. & BAUER, E. La Théorie de (1939), l'Observation em Mécanique Quantique, Hermann , Paris. (Tradução para o inglês em WHEELER & ZUREK, op. cit., nota 6 , pp. 217-59.) Outros que em algum autores momento defenderam esta posição incluem Wigner, Jeans, Heitler, Eddington e o biólogo Haldane. 39EVEREIT III, H. (1957), "Relative State Formulation of Quantum Mech anics", Reviews of Modem Physics 29, 454-62, reimpresso em WHEELER & ZUREK, op. cit. , nota 6, pp. 315 -23 . Ver discussão in JAMMER (1974) , op. cit. (nota 3 ), pp. 507-16, e o influente artigo de DEWIIT, B .S. (1970), "Quantum Mechanics and Reality", Physics Today 23 (setembro) , 30-5 , de onde os gatos da Fig. IX.3 foram copiados. Os artigos de Everett e DeWitt, assim como a tese de doutorado de Everett, estão na coletânea DEWIIT, B. & GRAHAM, (orgs .) (1973 ), The Many- Worlds lnterpretation of Quantum Mechanics, Princeton University Press. Conceitos de Física Quântica 60 40Este termo foi introduzido por A. Fine. A "completeza" neste caso é diferente do caso do argumento de EPR (que veremos na seção XXII.2). Einstein, Podolsky & Rosen argumentaram que a Mecânica Quântica seria incompleta como um todo , o que incluiria os seis postulados que resumimos na seção X.2, inclusive o postulado da projeção. No contexto da presente seção, a completeza se refere aos cinco primeiros postulados da Mecânica Quântica, excluindo-se o postulado da projeção. 4l voN NEUMANN (1932), op. cit. (nota 18), p. 438. 42Termo introduzido por WHITTAKER, E.T. (1943), "Chance, Freewill and Necessity in the Scientific Conception of the Universe", Proceedings of the Physical Society 55, 459-71. 43ver JAMMER (1974), op.cit. (nota 3), pp. 476-7. Duas provas de insolubilidade importantes foram dadas por: WIGNER, E.P (1963), "The Problem of Measurement", American Journal of Physics 31 , 6-15 , reproduzido em WHEELER & ZUREK (1983), op. cit. (nota 6), pp. 324-41. FINE, A.I. (1970), "Insolubility of the Quantum Problem", Measurement Physical Review D 2, 2783-7. Figura IX.2: Paradoxo do laboratório fechado. O estatuto dos dois problemas da medição apresentados é diferente. O problema da caracterização requer uma resposta · positiva, enquanto que o problema da completeza pode bem ser respondido com uma negação ou ser mostrado ser "insolúvel". As questões porém não são independentes: se o problema da completeza obtiver uma resposta positiva, então o problema da caracterização também terá sido resolvido. 3. O Paradoxo do Laboratório Fechado Vimos na seção VII.1 que um sistema "fechado " evolui de maneira linear, contínua, reversível e determinista, de acordo com a equação de Schrõdinger. Porém, durante uma medição, o sistema em questão deixa de estar fechado, já que informação é passada para o aparelho de medição. O colapso que acompanha a medição é descrita pelo po tulado da projeção de von Neumann, que descreve uma evolução de estados que se dá de maneira não-linear, praticamente instantânea e descontínua, irreversível e não determinista. Esses dois tipos de evolução temporal são opostos, e em certas situações parecem contraditórios. Imagine um si tema fechado composto pelo objeto microscópico, pelo aparelho de medição, pelo cientista e pelo laboratório que os cerca (Fig. IX.2). Sendo um sistema fechado, ele deve evoluir como um todo de maneira determinista e co ntínua. No entanto, o cientista está fazendo medições, e portanto estão ocorrendo colapsos e tran ições indetermi nistas . Como é possível que um sistema evoluindo determinista e continuamente também tenha transições abruptas e aleatórias? Esta situação aparentemente contraditória é uma formulação possível do problema da medição. Capítulo IX: O Problema da Medição A contradição que acabamos de exibir se baseia em duas suposições: (1) um estado quântico pode ser atribuído ao aparelho de medição macroscópico; (2) o sistema quântico composto (objeto e aparelho) pode ser considerado fechado em relação ao meio ambiente, evoluindo assim de maneira "unitária" (ou seja, linear, contínua etc.). Sob essas condições, o problema da medição é a questão de como conciliar a transição indeterminista de estados do objeto, que ocorre durante uma medição, com a evolução determinista do estado composto pelo objeto e aparelho de medição. A primeira suposição viola o que chamaremos a tese da "linguagem clássica" da interpretação da complementaridade (seção XIIl.2), segundo a qual o aparelho de medição tem que ser tratado de maneira clássica, e não quântica. Assim, esse enunciado do problema da medição não se coloca nesta interpretação. Quanto à segunda suposição, ela não é satisfeita na prática, e talvez não seja nem em princípio: argumenta-se que um corpo macroscópico nunca pode ser completamente isolado do ambiente (por exemplo, da radiação de fundo do universo). A rejeição da suposição (2) constitui a base de uma das "soluções" propostas ao problema da medição, como veremos no final do livro. 4. O Gato de Schrõdinger Em um estudo do argumento de Einstein, Podolsky & Rosen (cap. XXII) em favor da incompleteza da teoria quântica, Schrõdinger44 apresentou seu experimento-de-pensamento do "paradoxo do gato", que é a formulação mais famosa do que chamamos problema da caracterização. Um gato é fechado dentro de uma câmara de aço junto com um pouquinho de uma substância radioativa, que tem uma probabilidade Y2 de acionar um detector, dentro de um certo intervalo de tempo (Fig. IX.3). Ligado a este detector há um "dispositivo diabólico" que funcionava de tal maneira que se o detector fosse disparado, o gato seria morto, enquanto que ele permaneceria vivo se nenhuma radiação fosse detectada no intervalo de tempo. A Mecânica Quântica descreve o estado do átomo radioativo como uma superposição de estados de emissão e de não-emissão 45 . Qual seria o estado do sistema macroscópico como um todo ao final do intervalo de tempo? Nos anos 30 a visão "subjetivista" (mencionada na seção IX. l), que defende que o colapso só ocorre quando um ser consciente observa o objeto quântico, era bastante difundida. De acordo com esta visão, o estado final no experimento-de-pensamento de Schrõdinger seria uma superposição de gato vivo e morto, 61 44srnRôoINGER, E. (1935), "Die gegenwartige Situation in der Quantenmechanik", Die Naturwissenschaften 23, 807-812, 823-828, 844-849. Tradução em inglês: "The Present Situation in Quantum Mechanics. A Translation of Schrodinger's 'Cat Paradox' Paper", in WHEELER & ZUREK (1983), op.cit. (nota 6), pp. 152-167. Ver pp. 1567. 45voltaremos a falar de superpos1çoes deste tipo ao estudarmos o efeito Zenão quântico, na seção XIII.4. O exemplo dado por Schrodinger poderia ser simplificado considerando-se probabilidades que não dependam da escolha de um intervalo de tempo, o que facilitaria a compreensão do paradoxo do gato. 62 Conceitos de Física Quântica Figura IX.3. Paradoxo do gato de Schrodinger. enquanto nenhuma ob ervação fosse feita. Somente quando um ser consciente abrisse a caixa e observasse o gato é que ocorreria um colapso do estado, ou para garo vivo ou para gato morto. Esta solução porém soa absurda, já que nossa noção intuitiva de um objeto clássico é que ele não existe em tais superposições e que seu estado macroscópico não é afetado pelo ato de observação . Schrodinger elaborou eu experimento-de-pensamento como um argumento para a incompleteza da Mecânica Quântica. Schrodinger tinha a esperança de que tais "antinomias de emaranhamento" poderiam ser resolvidas definindo-se de maneira apropriada um operador de tempo (que estudaremos na seção XII.2). Capítulo X BASE FORMAL DA TEORIA QUÂNTICA 1. Estrutura Geral da Teoria Quântica Neste capítulo faremos um resumo do formalismo da Teoria Quântica. Para começar, apresentamos nesta seção um esboço da estrutura geral da teoria, representado na Fig. X.1. A primeira coisa a ser notada é que esta estrutura exibe uma interessante simetria entre sistema quântico (representado pelo estado l lf!), no lado esquerdo) e observável quântico (representado pelo operador Q , no lado direito). Note que ambos são necessários para que as probabilidades de resultados experimentais possam ser calculadas. Mais à direita, na figura, representam-se diferentes níveis "epistemológicos"46 . A divisão básica aqui é entre teoria e realidade, que também apresentam uma simetria (a teoria procura espelhar a realidade). Mais em baixo no diagrama representa-se a realidade física, que em um experimento envolve: (i) a preparação do objeto quântico (por exemplo, a preparação de elétrons em um forno) e de seu estado (seleção da energia, do estado de spin etc.); (ii) o arranjo do aparelho de medição (que determina o observável sendo medido). Em um experimento tipicamente quântico, podem-se obter resultados individuais para cada objeto quântico, resultados estes que fazem parte de uma classe de resultados possíveis, e que podem ser coligidos para que se determinem freqüências relativas. Estes resultados experimentais formam a chamada "base empírica" a ser explicada pela teoria. Acima da realidade paira a teoria (pelo menos é assim no diagrama). Os conceitos da teoria que correspondem mais diretamente à base empmca são chamados de "conceitos observacionais". Os conceitos mais abstratos são chamados de "conceitos teóricos". Na parte de cima da figura temos dois deles: sistema quântico e observável quântico. Escolhe-se uma representação matemática, como o espaço vetorial complexo (o espaço de Hilbert), e nela se definem os conceitos de estado e operador. A ponte entre teoria e realidade é feita através das chamadas "regras de correspondência'', que ligam conceitos observacionais e a base empírica. De maneira simplista e figurada, podemos dizer o seguinte: a filosofia-da-ciência empirista (ou positivista) considera que essas regras de correspondência são os únicos pontos de contato 63 46 A estrutura de teoria científica exibida na Fig. X. l é o chamado " modelo do bolo de camadas", proposto pelos herdeiros do pos1t1v1smo lógico na década de 50. Ver FEIGL, H. (1970), "The 'orthodox' view of theories: remarks in defense as well as critique", in RADNER, M . & WINOKUR, S. (orgs.), Analyses of Theories and Methods of Physics and Psychology (Minnesota Studies in the Philosophy of Science IV), University of Minnesota Press, Minneapolis, pp. 3-16. Uma limitação desta abordagem é que pouco foi feito para explicar como as estruturas de teorias científicas se desenvolvem com o passar do tempo. Conceitos de Física Quântica 64 entre teoria e realidade. Já uma filosofia-da-ciência realista considera que os conceitos teóricos também estão ligados diretamente ("referem-se") à realidade (ou seja, a uma parte não observável da realidade). É justamente esta ligação entre conceitos teóricos e realidade que chamamos a interpretação da teoria. As regras de correspondência seriam uma forma básica de interpretação com a qual todos concordam, e estaria incorporada ao formalismo mínimo da teoria. Já as "interpretações" propriamente ditas seriam adicionadas por diferentes cientistas, podendo variar de cientista para cientista, sem com isso modificar as previsões da teoria. Sistema Quântico Observável Quântico Espaço Vetorial Complexo Leis Gerais Conceitos Teóricos Mod. Quad. do Prod. Esc. 1 (1JI Autovalores l11r>Iº Conceitos Observacionais q, TEORIA REALIDADE Freqüências Relativas ' ~---~\ \ Base Empírica Resultados Individuais Preparação do Objeto Quântico e do Estado Arranjo do Aparelho de Medição Figura X.l: Esquema da estrutura da Teoria Quântica. Capítulo X: Base Formal da Teoria Quântica Os conceitos observacionais são relacionados através de "leis empíricas''. Já os princípios da Teoria Quântica envolvem "leis gerais" que relacionam conceitos teóricos ou leis empíricas. Há dois tipos de leis que regem a transformação de um sistema quântico. A lei de evolução temporal é a equação dinâmica que rege um sistema "fechado" (seção VII. l), enquanto nenhuma medição esteja sendo feita. O exemplo mais famoso desta lei é a equação de Schrõdinger, que rege a evolução temporal de estados (flecha ondulada para a esquerda), enquanto que os operadores não se alteram. Porém, é possível considerar que os operadores evoluem no tempo, enquanto que o estado não se altera (enquanto não ocorra uma medição): é a chamada "representação de Heisenberg" (flecha ondulada para a direita). A outra lei que descreve a transformação do sistema é o postulado da projeção (seção V.4), que se aplica apenas para o ato da medição. Após uma medição, conforme o resultado individual obtido (resultado este que em geral é imprevisível), calcula-se com este postulado o novo estado do sistema (não há versão da Mecânica Quântica para a qual os operadores se alterem com o postulado da projeção). Terminando nossa análise da Fig. X. l, mencionemos apenas que a partir do operador podem-se calcular autovalores e autoestados. Os primeiros correspondem aos resultados possíveis de 2 uma medição, ao passo que l(l/fll/1;)1 (o modulo quadrado do produto escalar de cada autoestado com o estado do sistema) corresponde às freqüências relativas obtidas no laboratório, para cada resultado possível. Ao identificarmos 1( l/f l l/f; )12 com a probabilidade de cada resultado (a regra de Dom), podemos estar adicionando sutilmente uma interpretação à Teoria Quântica, dependendo de como 47 definimos o termo "probabilidade". 2. Revisão dos Postulados da Mecânica Quântica Vamos agora rever os postulados ou regras básicas da Mecânica Quântica não-relativística48 , que já apareceram no cap. IV e nas seções V.3, V.4 e VII.1. Limitaremo-nos a espaços de Hilbert de dimensão finita (com exceção da seção X.4 ), sendo que maiores detalhes podem ser obtidos a partir da axiomatização original de von · Neumann ou em algum texto mais moderno como Jauch ou Isham49 . Além dos seis postulados seguintes, introduziremos um sétimo na seção XIV.2, para partículas indistinguíveis. 47 O estudo das diferentes interpretações de "probabilidade" é um tema importante da filosofia da ciência. Uma introdução sucinta, com referências adicionais, se encontra nas pgs. 228-42 do artigo de HOME, D. & WHITAKER, M.A.B. (1992), "Ensemble Interpretations of Quantum Mechanics: A Modem Perspective", Physics Reports 210, 224-317. 48 A primeira axiomatização foi feita por VON NEUMANN (1932), op.cit. (nota 20). Aqui, seguimos D'ESPAGNAT, B . (1976), Conceptual Foun- dations of Quantum Mechanics, 2g edição, Benjamin, Reading (EUA), pp. 14-20; e COHEN-TANNOUDJI et al. ( 1977), op. cit. (nota 26), pp. 162-3, 2 13-25. 49JAUCH, J.M . (1968), Foundations of Quantum Mechanics, Addison-Wesley, Reading (EUA). lSHAM, C.J. (1995), Lectures on Quantum Theory, Imperial College Press, Londres. Conceitos de Física Quântica 66 Postulados de Definição: POSTULADO Pl: Em um instante fixo t0 , o estado de um sistema físico fechado é definido por um vetor de estado normalizado llJ!Cto)) em um espaço de Hilbert H. COROLÁRIO Pl.1 (Princípio de Superposição): Uma combinação linear de vetores de estado é um vetor de estado (já que H é um espaço vetorial). POSTULADO Pl.2: Dois sistemas não-idênticos e nãointeragentes, descritos individualmente por l IJI 1 ) e l IJI 2 ), podem ser representados por um vetor de estado composto l lJI 1) ® l IJI 2) definido em H1 ® H2. POSTULADO P2: Toda grandeza física mensurável ("observável") Q é descrita por um operador autoadjunto Q agindo em H. Os postulados acima fornecem uma interpretação física para as entidades matemáticas da teoria. O postulado Pl se aplica tanto para um sistema individual, como uma partícula, quanto para uma coleção de sistemas que estão no mesmo estado puro. Para a definição de "auto-adjunto", ver seção IV.5. Evolução Linear: POSTULADO P3: A evolução temporal do vetor de estado llJl(t0 )) é linear e determinista, sendo regida pela equação de Schrõdinger dependente do tempo: (X.l) d ~ in- llJl(t)) = H (t) llJl(t) ) , dt onde o hamiltoniano H (t) é o operador auto-adjunto associado à energia total do sistema. Algoritmo Estatístico: POSTULADO P4: O único resultado possível para a medição de um observável Q é um dos autovalores q; do operador correspondente Q . Capítulo X: Base Formal da Teoria Quântica Muitas vezes, por economia de notação, falaremos em "medição de um operador Q", o que ~ignificará "medição do observável Q correspondente ao operador Q ". POSTULADO PS (Decomposição Espectral): Quando o observável Q é medido em um sistema no estado normalizado llJI ), a probabilidade Prob(q;) de se obter o autovalor de ~espectro discreto qi do operador correspondente Q é: (X.2) onde é llJ!i) é o auto-estado associado ao autovalor q; de Q. O caso "degenerado" ocorre quando há estados llJI u) que são auto-estados de dois operadores Q e S que comutam: [ Q,S] = O, onde [ Q, S] Q S - S Q . Tal estado degenerado pode sempre ser reescrito como um produto tensorial 11/J;) @ IÇj ), onde os 11/J;) são os auto-estados de Q, e IÇj) os auto-estados de S, com autovalores si. Neste caso, Prob(q;) é obtido somando-se Prob(qi, si) para todos os valores de j: = (X.2a) = L l(l/fu /l/f)i- . j Prob(q;) ' J=I O valor médio de um operador Q para um estado normalizado 11/f) é a média estatística dos autovalores resultantes, e é dado por: (X.3) 2 (6) = (1J1 IQ11/f/ = L 1(l/f;11/f/ 1 = L Prob (q; ) ·q; I 50COHEN-T ANNOUDJI A evolução do valor médio !!___ dt (6)(tl segue de P3 (6) = ~ ( [Q, H(t l] ) + ( JQ \ . zn 01 j 50 : et al. (1977), op. cit. (nota 26), pp. 240-1, 247. (X.4) 68 Conceitos de Física Quântica Uma "grandeza conservada" ou constante de movimento é defi nida como um operador que não depende explicitamente do tempo, JQ/J t = O, equecomutacomohamiltoniano: [Q ,H(t) ] = O. Postulado da Projeção: POSTULADO P6: Se a medição de um observável Q em um sistema no estado llf/) fornece o resultado q;, então o estado do sistema imediatamente após a medição é a projeção normalizada de llf/) no autosubespaço associado a q;. 3. Projetores e o Teorema Espectral Considere que um sistema quântico se encontre no seguinte estado: (X.5) onde os vetores normalizados lef>;) são os autoestados de um operador Q associados a autovalores '}'; (ver eq.IV.5): (X.6) Qual é a probabilidade de medir o observável associado a Q e obter o autovalor Y; ? Pelo algoritmo estatístico (eq. X.2), sabemos que é Ja;l2• Seria possível obter este mesmo resultado calculando-se o valor médio (eq. X.3) de algum operador? A resposta é sim. O operador cujo valor médio é uma probabilidade chama-se projetor, e ele se escreve da seguinte forma: (X.7) A ação do projetor P[<A ] sobre o vetor de estado llf/) é projetá-lo sobre l<M (ver Fig. V.3). Em notação matemática, temos: P[<A] j lf!) = a; · </J;) . Assim, é possível verificar que: J Capítulo X: Base Formal da Teoria Quântica 69 (X.8) Um projetor P[<f>; J é um observável (ver postulado P2), cujos autoestados associados são os 14>1), com autovalores 8u (ou seja, 1 se i=j, e O se i7:j). Uma comparação entre as eqs.(X.3) e (X.8) sugere que é possível escrever qualquer operador Q em termos de projetores. Este resultado, o qual voo Neumann trabalhou muito para provar no caso de espectros contínuos, chama-se teorema espectral: (X.9) Com isso, fica fácil escrever qual é o operador que tem { 14>;)} como autoestados e y; como autovalores. 4. Operadores de Momento e Posição* * Esta seção pode ser pulada sem perda de continuidade. Os postulados vistos também se aplicam a grandezas contínuas como posição e momento. Considere o espaço de Hilbert de dimensão infinita Hr contendo todos os vetores de estado possíveis l'P(r)) para uma partícula. Tomemos a base de autovetores de posição { 1 r') }, d~finidos para cada autovalor de posição r por meio do operador R : I r · 1r-') . -1 (X. 10) Um vetor genérico l'P( r) ) pode então ser escrito como uma superposição de 1 r ') , que no caso de variáveis contínuas se faz por meio de uma integral (ao invés da somatória): l'P(r)) = f dr' 'P(r) Ir') Os coeficientes desta superposição contínua são expressos pela função 'P(r) , e constituem a "função de onda" introduzida por Schrodinger. (X.11) Conceitos de Física Quântica 70 Tal função tem que ser "quadrado integrável", ou seja, deve ser tal que a seguinte integral converge: J l'I'( r) 2 dr . 1 Se quisermos répresentar o autovetor 1r) na base { 1 r')} , podemos usar a eq.(X.11) substituindo 'I'(r') pela função delta de Dirac Ô(r - r' ). Tal função, porém, não é quadrado integrável, o que significa que os vetores jr') não pertencem a HI A abordagem usual Slver JAUCH (1968), op.cit. (nota 48), pp. 62-3. é pois a de "estender o domínio de definição" dos operadores de H1 51 de forma a incluir tais "autofunções" . É possível estender o domínio de definição de H1 de forma a construir a base { 1 p') } de auto vetores do operador momento P , de maneira que: (X.12) O vetor genérico expresso na eq.(X.11) pode então ser escrito como: l'I'(r)) = fdiJ''I'(,õ')liJ'), (X.13) onde os coeficientes 'I'( p) são a transformada de Fourier de 'I'( r) . Se quiséssemos representar 1,õ) na base {I ,õ')} , obteríamos novamente uma função delta de Dirac 8 ( p - p') . Mais interessante, porém, seria representar 1 P) na base { 1r')}. Neste caso obteríamos: liJ) = (X.14) onde f dr'(r'liJ)lr') , (r'j ,õ) é a função de onda representando uma onda plana de momento p . Comparando as eqs. (X.11) e (X.14), notamos que uma função de onda genérica 'I'( r) pode também ser escrita como o produto escalar (rl'I'(r'l). Capítulo X: Base Formal da Teoria Quântica * Esta seção pode ser pulada sem perda de continuidade. 5. Relações de Incerteza para Operadores* Os operadores de posição Restringindo-nos ao eixo x, temos: e momento 71 não comutam. (X. 15) O desvio padrão i1Q de um operador genérico Q é definido da seguinte maneira (onde o valor médio é dado pela eq. X.3): (X.16) ,0.Q A partir das duas equações precedentes e da desigualdade triangular, deriva-se a relação de incerteza para operadores (Kennard, julho, 1927): tz 2'. - (X.17) 2 Para generalizar esta relação para outros observáveis, como componentes de spin, Robertson (1929) obteve a seguinte expressão: (X.1 8) Esta relação é sempre verdadeira e é aceita por muitos como definitiva, mas ela tem problemas porque o lado direito depende explicitamente do estado l ltf ). Por exemplo, se tal estado for um autoestado do operador A , os dois lados da relação (X.18) se anulam ( M =O ), e a desigualdade deixa de dar um limite inferior para Af3 .s2 52UFFINK, J.B .M. (1990), Measures of Uncertainty and the Uncertainty Principie, Rijksuniversiteit, Utrecht (Holanda) [cópia no CLEUnicamp], p . 108. Capítulo XI PRINCÍPIO DE INCERTEZA 1. Princípio de Indeterminação na Física Clássica de Ondas Na seção I.5 mencionamos que muitos fenômenos tipicamente quânticos podem ser entendidos como efeitos da Física Ondulatória Clássica no regime de baixas intensidades, quando aspectos corpusculares tornam-se importantes . O "princípio de 53 incerteza" é um exemplo disto. Na Física Clássica de Ondas, podese definir uma onda contínua de comprimento de onda À bem definido - ou, para facilitar, número de onda k' = l!À bem definido-, mas neste caso não se pode associar nenhuma posição x à onda (Fig. XI.2a). Por outro lado, é possível descrever um pulso mais ou menos bem localizado superpondo-se ondas contínuas de números de onda próximos, formando um "pacote de onda" no espaço de posições x (Fig. XI.2b). Nota-se que o pulso exibe ao mesmo tempo 54 uma resolução espacial 8x e uma largura de banda ok' apreciáveis. Enfim, é possível tornar o pulso cada vez mais bem localizado em torno de um valor bem definido de x, superpondo-se ondas contínuas de uma faixa cada vez mais larga de valores de k' (Fig. XI.2c). Essas considerações sugerem que quanto menor for a resolução espacial 8.x, maior será a largura de banda ok' do pacote de onda. De fato , mostra-se que essas indeterminações obedecem a relação 8x·8k' "" l/(4n). · Analogamente, para o instante t em que um pulso clássico passa por um ponto e para sua freqüência v, temos Ot·Õv "" l/(4n). Como quaisquer ruídos adicionais (ondas com fases aleatórias) só aumentam os produtos 8x·ok' e 8t·8v, podemos escrever desigualdades: 8x·8k' ?'. l/(4n) , Ôf·ÔV ?'. l/(4n) . 53 A disti nção entre indeterminação e incerteza fi cará clara na seção seguinte. Indeterminação refere-se a uma indefinição intrínseca do objeto, ao passo que incerteza refere-se a uma ignorância do observador com relação a uma propriedade bem definida do objeto. 54 Adotamos a distinção que é usualmente feita entre resolução, precisão e acurácia. A precisão é definida, para várias repetições da mesma medição, como a proximidade média dos vários resul- (XI.l) 2. O Princípio Quântico de Incerteza segundo as Diferentes Interpretações A extensão dessas relações (XI.l) para o regime quântico pode ser feita simplesmente usando as eqs.(I.1), E = hv e p = h/À h·k' . As seguintes relações de incerteza, derivadas pela primeira vez por Heisenberg em março de 1927, colocam um limite inferior para o produto das indeterminações: = 73 RESO LUÇÃO Figura Xl.l: Fatores de qualidade de medições, exemplificados num jogo de tiro ao alvo. 74 tados a um valor médio, sendo expresso formalmente como o inverso do desvio padrão. A acurácia é a proximidade do valor médio dos vários resultados a um valor tido como verdadeiro. A resolução corresponde ao menor intervalo da grandeza sendo medida que pode ser discernido pelo aparelho de medição. Dois fatores limitam a resolução: a indeterminação intrínseca do sinal, e o espaçamento mínimo dos detectores (por exemplo, o espaçamento entre os cristais de prata em uma emulsão fotográfica). Ver por exemplo: STERN, J. (1976): "Measurement, Principies and Instruments of', in The New Encyclopcedia Britannica, Macropcedia, vol. 11, 15ª ed., Chicago, 728-33. Conceitos de Física Quântica (XI.2) 8t-8E ~ h/2. (XI.3) Pares de grandezas como posição x e (componente x do) momento P.n ou como tempo te energia E, são ditos incompatíveis. O que significam estas relações? Concentremo-nos na relação envolvendo posição e momento, que para partículas com massa, como o elétron (para as quais p = m V), envolve as grandezas posição e velocidade. ovamente temos que considerar cada interpretação separadamente. (1) Interpretação Ondulatória. A tribuindo uma realidade apenas para o pacote de onda (sem postular a existência de partículas pontuais), 8x mede a extensão do pacote, indicando que a posição x do objeto quântico é indeterminada ou mal definida por uma quantidade 8x. As eqs.(XI.2 e 3) exprimem assim um princípio de indeterminação: se x for bem definido, Px é mal definido, e viceversa. (a) 0°(\(\ \JV\/ Figura XI.2. A amplitude de qualquer onda pode ser descrita no espaço dos x ou no espaço dos k '. Nota-se porém que quanto maior 8x, menor o 8k', e vice-versa. ox (b) X r---~---- k' 8k' ~~-~-k' 1 (c) F ,____ - k' (2) Interpretação Dualista Realista. Segundo esta visão, a partícula tem sempre x e Px bem definidos simultaneamente, só que tais valores são desconhecidos. Se medirmos x com boa resolução, temos necessariamente uma incerteza ou desconhecimento grande para Px• pois a medição de x por um aparelho macroscópico provoca um distúrbio incontrolável no valor de Px· Capítulo XI: Princípio de Incerteza 75 (3) Interpretação Dualista Positivista. Vimos que é impossível um fenômeno ser (100%) corpuscular e (100%) ondulatório ao mesmo tempo. De maneira Análoga, é impossível Medir simultaneamente x e Px com resoluções menores do que 8x e Ôpx dados pela eq.(XI.2). Esta tese parece correta, . conforme examinaremos nas seções seguintes, apesar de a interpretação 4 (a seguir) negá-la. (4) Interpretação Corpuscular. Alguns proponentes da interpretação dos coletivos estatísticos, apresentada nas seções IV .3 e VI.5, afirmam que é possível medir simultaneamente x e Px, com boa resolução. O que ocorreria é que se prepararmos o mesmo estado quântico llf/ ) várias vezes, e medirmos x e Px para cada preparação, obteremos valores que variam de uma medição para outra. Ao colocar estes valores em um histograma de x e Px, obter-se-ão os desvios padrões Lli e l:J.px (Fig. XI.3). Assim, o princípio de incerteza seria exclusivamente uma tese estatística, ao contrário do que afirmam as outras interpretações, que também aplicam este princípio para casos individuais. A eq.(XI.2) não seria válida, mas sim a eq.(X.17). !J.Px 1--1 X Px O argumento original de Heisenberg para justificar as relações de incerteza, por meio de um microscópio de raios gama, pode ser enquadrado na interpretação 2 (sendo porisso às vezes chamado de argumento "semi-clássico"), já que ele supõe que um elétron tem posição e momento bem definidos, só que um deles é desconhecido. No entanto, veremos na seção XI.4 como seu argumento se encaixa na interpretação 3 ao fazer uso de um "postulado positivista". Figura XI.3. Freqüências relativas (n!!. de contagens) de uma coleção de medições simultâneas de x e Px· cujos desvios padrão satisfazem o princípio de incerteza. 76 Conceitos de Física Quântica 3. Origens do Princípio de Incerteza 55Dirac, citado dezembro por JAMMER, 1926, M. (1966): The Conceptual Development of Quantum McGraw-Hill, Mechanics, Nova Iorque, p. 326. Ver também a citação de Jordan. 56citado em HENDRY, J. (1984): The Creation of Quantum Mechanics and the Bohr-Pauli Dialogue, Reide!, Dordrecht, p. 111. 57HEISENBERG (1927), op.cit. (nota 22), p. 64. Com o estabelecimento da "teoria da transformação", no final de 1926, Dirac pôde perceber que "não se pode responder a qualquer pergunta da teoria quântica que se refira aos valores numéricos para ambos os q e os p"55 • Heisenberg e Pauli também chegaram a semelhante conclusão em outubro de 1926. Em carta daquele para Pauli: "Eu gostaria de acreditar que tuas ondas-p possuem tanta realidade física quanto as ondas-q; apenas, naturalmente, não tanto significado prático. Mas tenho muita simpatia pela equivalência em princípio entre p e q. Assim, a equação pq - qp = hi sempre conesponde na apresentação ondulatória ao fato de que é impossível falar de uma onda monocromática em um ponto fixo do tempo (ou em um intervalo muito curto de tempo). Mas se a linha for feita menos aguda, o intervalo de tempo menos curto, então na verdade aquilo tem sentido. Analogamente, não tem sentido falar na posição de uma partícula com velocidade fixa. Mas se uma posição e velocidade menos acuradas forem aceitas, então aquilo de fato tem sentido."56 Em fevereiro de 1927 Heisenberg, que estava agora em Copenhague, aproveitou uma viagem de Bohr para a Noruega para retornar ao problema, refletindo sobre como dar conta das trajetórias lineares de partículas em uma câmara de nuvem de Wilson, o que não era explicado nem pela mecânica matricial nem pela ondulatória. Adotou então novamente uma postura operacionalista, para a qual "se alguém quiser e clarecer o que significa 'a posição de um objeto', como por exemplo de um elétron, então ele tem que descrever um experimento no qual a 'posição do elétron' pode ser medida; caso contrário, este termo não tem sentido algum" 57 . Ao final de março terminou o seu artigo, após consultas a Pauli e Bohr, no qual apresentou suas "relações de incerteza". Partindo de urna função de onda 'f'(x) com uma forma gaussiana, que exprime uma incerteza nas coordenadas da ordem de 8x, Heisenberg aplicou a transformada de Fourier (ver eq.X.13) e obteve a função de onda 'I'( p) no espaço dos momentos, que resulta ser também uma gaussiana com incerteza 8p. Obteve então a relação: 8x·8p - n. Este resultado foi visto como "uma interpretação física direta da equação pq - qp = -ih." Mas o que significam na prática as indeterminações 8x e 8p, para Heisenberg? Esclareceremos esta questão examinando o microscópio de raios y, na próxima seção. Capítulo XI: Princípio de Incerteza 77 Antes, porém, devemos distinguir entre o "princípio" de incerteza e as "relações" de incerteza. O princípio, que se aplica a grandezas não compatíveis entre si (representados por operadores que não comutam, como posição e momento), exprime o fato de que uma maior previsibilidade nos resultados da medição de um dos observáveis implica uma diminuição na previsibilidade do outro. Uma relação de incerteza é qualquer relação matemática que exprima quantitativamente o princ1p10. Já vimos, na seção X.5, algumas das várias relações possíveis para um par de observáveis incompatíveis. 4. O Microscópio de Raios y Para esclarecer o significado operacional da relação de indeterminação para posição e momento, Heisenberg apresentou um experimento-de-pensamento, o microscópio de raios y (gama), para mostrar que o produto das indeterminações de medições de posição e momento em uma situação experimental possui de fato o limite inferior de h. Consideremos sua discussão apresentada nas palestras de Chicago 58 de 1930 , que incorpora algumas sugestões de Bohr, e que ilustramos na Fig. XI.4. O microscópio é utilizado para medir a posição x de um elétron, e supõe-se que ele está inicialmente com momento Px = O. A medição é feita iluminando-se o elétron com uma frente de ondas planas que incide paralelamente ao plano do objeto. Finalmente, um fóton é espalhado pelo elétron, atravessa a lente do microscópio e incide no plano de imagem na posição x' . A partir da observação macroscópica de x' , infere-se x. No entanto, pela teoria de difração óptica clássica, mesmo que a luz espalhada venha de um ponto bem definido, a sua imagem será levemente borrada. Inversamente, se um ponto bem definido se formar em x', no plano de imagem, pode-se inferir x apenas dentro do "poder de resolução" da lente, que é dado por õx = À/(2 sen E) , onde À é o comprimento de onda da luz espalhada e 2E é o ângulo subentendido pela lente a partir do objeto. Neste caso, a indeterminação õx é a resolução da medição de x. A resolução ÕX pode ser diminuída o quanto se quiser diminuindo-se o comprimento de onda, o que ocorreria no limite de raios y. No entanto, o que ocorreria com o momento do elétron, que inicialmente era zero? Como o raio y ricocheteia no elétron, este teria uma alteração em seu momento (dado pelo efeito Compton, regido pela conservação de momento linear). Porém, não sabemos qual é o valor dessa alteração, porque não sabemos exatamente qual é o momento do fóton espalhado. Sabemos que o fóton foi espalhado 58Publicadas em: HEISENBERG, w. (1930), op. cit. (nota 32). Nossa apresentação segue JAMMER (1974), op.cit. (nota 3), pp. 64-65. Uma versão mais moderna, que vale a pena ser consultada, é apresentada por BRAGINSKY & KHALILI (1992), op. cit. (nota 7), pp. 8-10. 78 Conceitos de Física Quântica no ângulo 2E, e supondo que a alteração na energia do fóton é desprezível, temos uma incerteza da ordem de 2(h/À)sen E no momento do fóton na direção x, que é então a incerteza (ou imprevisibilidade) Ôpx do momento final do elétron. O produto ÔX·Ôpx satisfaz a eq.(XI.2). Lente Fina Figura Xl.4. Microscópio de raio y de Heisenberg. Plano Focal Plano de Imagem 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 ---------:-:-~:+===~==::::::::~::::~:~:::cc~~,~J X ' 59Este argumento foi apresentado na década de 50 por alguns autores; ver JAMMER (1974), op. cit. (nota 3), pp. 73, 165. 60HEISENBERG (1930), op.cit. (nota 32), p. 3. Afirmação semelhante fora feita por BOHR, N. (1928) : "The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory", Nature 121, 580-90. Reimpresso em N. BOHR: Atomic Theory and the Description of Nature, Cambridge U. Press, 1934, pp. 5291, e em WHEELER & ZUREK (1983), op.cit. (nota 6), pp. 87-126. Tradução para o português: "O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria Atômica", in PESSOA JR., 0. (org.) (2000): Fundamentos da Física 1 Simpósio David Bohm, Ed. Livraria da Física, São Paulo, pp. 135-59. Ver p. 54. Um problema com essa explicação dada por Heisenberg é que ela supõe que, após a interação com o fóton, o elétron tem posição e momento simultaneamente bem definidos, só que 59 desconhecidos . Esta é uma hipótese própria da Física Clássica, o que tornaria a explicação "semi-clássica" . Porém, ele efetua um passo curioso, pois após mostrar que há uma impossibilidade de se poder medir com exatidão as duas grandezas conjugadas, ele conclui que um objeto nunca possui, simultaneamente, valores exatos para as duas grandezas. Esta conclusão, que passa de uma tese epistemológica (relativa ao conhecimento: "não posso conhecer") para uma tese ontológica (relativa ao ser, à essência das coisas: "não é"), só é possível se for adotado um postulado positivista (operacionista), segundo o qual só aquilo que é observado tem realidade (falaremos mais sobre esses assuntos no cap. XIV). 5. Concepção do Distúrbio Interacional Outro ponto importante na explicação do princ1p10 de incerteza dada por Heisenberg é o que se pode chamar de concepção do distúrbio interacional: no domínio da Física Quântica, o observador sempre provoca um distúrbio no objeto durante o ato de medição. Nas palavras de Heisenberg60 : "a interação entre observador Capítulo XI: Princípio de Incerteza e objeto causa alterações incontroláveis e grandes no sistema sendo observado, por causa das alterações descontínuas características dos processos atômicos". É importante distinguir entre61 : (i) a indetenninação intrínseca a um estado quântico puro (expressa por urna relação envolvendo indeterminações, eq. XI.2, ou desvios padrão de observáveis, eq. X.13); e (ii) as incertezas introduzidas pela interação com o aparelho de medição, ou seja, o distúrbio interacional. Diversos autores têm apontado que, em geral, as derivações de (i) são na verdade dependentes de (ii), o que não deveria acontecer. 62 Recentemente, Scully et al. geraram uma discussão na literatura que acabou lançando novas luzes sobre o distúrbio interacional. Estudaremos este episódio no cap. XXI, mas adiantamos que uma consequência desta discussão é o reconhecimento de que o distúrbio interacional pode se dar não só de maneira "clássica" (que inclui os exemplos das nas seções V.2 e XI.4), mas também de uma maneira tipicamente quântica, chamada por alguns de "distúrbio não-local". 63 6. Observáveis de Não-Demolição Medições de pos1çao são consideradas "repetíveis" (medições do l Qtipo), pois se imediatamente após uma determinação de posição uma outra medição for efetuada, obter-se-á o mesmo resultado. No entanto, se um intervalo de tempo finito transcorrer entre as medições de posição, o resultado da medição subsequente estará sujeito a uma flutuação imprevisível. Para entender isso, considere o seguinte argumento semi-clássico64 . Após a primeira medição de posição, x(O), a subsequente posição x(t) de uma partícula livre de massa m depende do seu momento Px, através da relação x(t) = x(O) + (p,Jm)t. Ora, uma medição com alta resolução de x(O) introduz uma grande indeterminação no momento Px· o que resulta em uma indeterminação razoável em x(t). Este fato pode ser expresso através da relação de comutação na representação de Heisenberg: [X(t),X(t+r)] = ilir!m . Por outro lado, para uma partícula livre, o momento é uma constante do movimento (seção X.2). Assim, uma medição com alta resolução de Px(O), apesar de introduzir uma indeterminação razoável em x, não irá provocar um distúrbio em Px(t): 79 61 BRAGINSKY & KHALILI (1992), op.cit. (nota 7), p. 10. 62ver por exemplo: BROWN, H.R. & REDHEAD, M.L.G. (1981): "A Critique of the Disturbance Theory of Indeterminacy in Quantum Mechanics", Foundations of Physics 11, 1-20. 63 A discussão se iniciou com: SCULLY, M .0.; ENGLERT, B .G. & WALTHER, H. (1991): "Quantum Optical Tests of Complementarity", Nature 35I, 111-6. O reconhecimento de que o que está envolvido aqui é um distúrbio "não-local" se encontra em: WISEMAN, H . & HARRISON, F . (1995): "Uncertainty over complementarity?", Nature 377, 584. 64BRAGINSKY, V .B.; VüRONTSOY, Y.I. & THORNE, K.S. (1980): "Quantum Nondemolition Measurements", Science 209, 547-57. Reimpresso em WHEELER & ZUREK (1983), op.cit. (nota 6), pp. 749-68. Ver pp. 751- 5. Conceitos de Física Quântica 80 [P(t), P(t +r)] =O. 65 A energia de localização é bastante destacada na proposta didática de se ensinar a Física Quâtica do chamado grupo de Berlim. As deficiências desta proposta estão relacionadas à excessiva ênfase numa interpretação corpuscular. FISCHLER, H. & L!CHTFELDT, M. (1992): "Modem Physics and Students' Conceptions", lnternational Journal of Science Education 14, 181-90. Neste caso, diz-se que o momento é um observável quântico de não-demolição, ao contrário da posição. Vemos assim que na Mecânica Quântica existe uma assimetria entre as grandezas posição e momento. Uma conseqüência do princípio de incerteza envolvendo posição e momento é às vezes chamada energia de localização. 65 Adotemos momentaneamente uma interpretação corpuscular . Se uma partícula for confinada a uma região espacial muito pequena (& pequeno), a incerteza no momento flpx será grande, o que corresponde a urna flutuação grande de energia. Assim, para impedir que a partícula escape do confinamento, quanto menor a região de confinamento, maior os potenciais que precisam ser aplicados. Esta propriedade está intimamente ligada à "energia de ponto zero", ou seja, mesmo que nos aproximemos da temperatura de zero graus absoluto, haverá uma energia remanescente associada à partícula. Outra propriedade que pode ser relacionada à energia de localização é a estabilidade da matéria. 7. Retrodição Suponha que a posição y 1 de uma partícula livre de massa m seja medida com boa resolução no instante ti, resultando em um pacote de onda com grande indeterminação no momento P yt· Tal medição pode ser efetuada simplesmente selecionando uma partícula que passa por uma fenda localizada em Yi num instante conhecido. Posteriormente, num instante t 2, mede-se novamente a posição y2 da partícula (Fig. XI.5). Ora, levando em consideração que a partícula está livre de forças entre as duas medições, é plausível supor que ela descreve um movimento retilíneo uniforme entre os instantes t 1 e ti, com momento dado por: (XI.4) P.v Este é o valor que se infere para o momento py1 logo após o instante ti, quando a partícula estava localizada na posição y 1• Teríamos assim uma determinação simultânea exata de posição e momento logo após o instante ti, o que violaria o enunciado da eq.(XI.2) ! O que está acontecendo? Antes de mais nada, notemos que fizemos uma inferência em relação a uma situação passada, procedimento com o qual já nos deparamos nas seções III.l, VIII.3, Capítulo XI: Princípio de Incerteza e que chamamos de retrodição. Quem cunhou este termo foi Niels Bohr66 , que salientou que a retrodição é uma "abstração, a partir da qual nenhuma informação sem ambigüidades concernente ao comportamento prévio ou futuro do indivíduo pode ser obtida." ílti p ll 1 =? --- -- -y - _·________ 81 66BOHR, N. (1928), op. cit. (nota 60), p. 66. -------' Y2 f2 ------------~ lY1 Heisenberg também discutiu este problema nas suas palestras de Chicago 67 , notando que "a relação de incerteza não se refere ao passado [... ] Este conhecimento do passado é de caráter meramente especulativo [... ] É uma questão de crença pessoal se a tal cálculo referente à história passada do elétron pode ser atribuído qualquer realidade física ou não". Em suma, se aceitarmos a retrodição, podemos concluir que o princípio de incerteza não se aplica para o passado. Quais as conseqüências desta constatação para cada interpretação? (A discussão seguinte é muito próxima daq uela da seção VIII.3). (1) Interpretação Ondulatória. Esta visão não aceita a retrodição. Após a primeira medição de momento, o estado do sistema l l/f ) corresponde a uma superposição de autoestados de pos1çao. A medição subseqüente de posição, porém, não altera estados no passado. Após medir-se x2 , o uso da eq. (XI.4) não fornece o valor real de x 1 no passado, mas apenas um valor que classicamente seria consistente com a medição de x2 • (2) Interpretação Corpuscular. A interpretação dos coletivos estatísticos aceita a retrodição, e aceita que os valores de x 1 e P x i atribuídos à partícula no passado tenham realidade simultânea. Assumindo um princípio realista de que a realidade passada e futura têm a mesma natureza, ou seja, que o observador não atualiza o passado (no sentido de Wheeler, seção III.3), autores como Ballentine concluem que partículas também têm valores simultaneamente bem definidos para x e Px no presente, e os terão no futuro , Figura XI.5. Medindo Y1 e Y2 , e aceitando-se a retrodição, pode-se inferir o valor de py1 no passado. 67HEISENBERG (1930), op. cif. (nota 32), pp. 20, 25. 82 68ver GRIFFITHS, R.B. (1986): "Making Consistent Inferences from Quantum Measurements", in GREENBERGER, D.M. (org.): New Techniques and ldeas in Quantum Measurement Theory, Annals of the New York Academy of Sciences 480, 1986, pp. 512-517. A apresentação mais completa de seu ponto de vista encontra-se em: GRIFFITHS, R.B. (1984): "Consistent Histories and the Interpretation of Quantum Mechanics", Joumal of Statistical Physics 36, 21972. Para uma crítica de sua lógica não-clássica, ver o'ESPAGNAT, B . (1989): "Are there Realisticall y Interpretable Local Theories?", Journal of Statistical Physics 56, 747-66. Conceitos de Física Quântica mesmo que nós sejamos incapazes (por causa das limitações no processo de preparação e de medição) de prever quais são estes valores (seção XI.2). (3) Interpretação Dualista Realista. Esta visão aceita uma espécie de retrodição, mas as partículas não seguem sempre trajetórias retilíneas uniformes como suposto na eq.(XI.4), mas seguem trajetórias complicadas que estudaremos no cap. XXV. (4) Interpretação Dualista Positivista. Apesar de Bohr ter salientado em 1928 que a retrodição é uma "abstração", ele passou a adotá-la implicitamente após 1935 para definir "fenômenos" corpuscular e ondulatório. Num fenômeno corpuscular, é possível retrodizer qual foi a trajetória do quantum detectado. A idéia de Wheeler (seção III.4) de "atualização do passado no presente" levaria à conclusão de que partículas podem ter posição e momento bem definidos apenas no passado. A "interpretação das histórias consistentes", um elegante dualismo positivista inaugurado por Robert Griffiths e bastante explorado nos últimos anos, adota explicitamente a retrodição. No experimento que estamos examinando, ele diria que a frase "logo após t 1 a partícula tem posição Y1 " é verdadeira, e que a frase "logo após ti a partícula tem momento pyi" é verdadeira, mas propõe uma nova lógica não-clássica para impedir que se possa afirmar que "logo após t1 a partícula tem posição y 1 e momento py1". 68 Capítulo XII EXPLORANDO OS PRINCÍPIOS DE INCERTEZA 1. Medições Conjuntas É possível medir conjuntamente (simultaneamente) observáveis incompatíveis como posição e momento? Ora, considere a detecção de uma partícula em uma câmara de nuvem de Wilson (Fig. VI.l). Após a partícula deixar várias ionizações na câmara, sabemos não só sua posição com uma resolução razoável, mas também sabemos seu momento dentro de limites mais grosseiros . O mesmo aconteceu com o microscópio de raios y de Heisenberg (seção XI.4). Em suma, é possível efetuar medições conjuntas de observáveis incompatíveis, e atribuir valores simultâneos a essas grandezas; o que não é possível, segundo a maior parte das interpretações, é atribuir valores com resoluções menores do que as estipuladas pelas relações de incerteza. Contrariando esta conclusão, conforme vimos no capítulo anterior, Margenau, Ballentine, e outros proponentes da interpretação dos coletivos estatísticos defenderam que é possível realizar medições conjuntas com ótima resolução (o princípio de incerteza limitaria apenas a reprodutibilidade destes valores simultâneos, afetando o desvio padrão ou "precisão" do coletivo de medições conjuntas). Isso inspirou diversos autores a desenvolveram uma extensão do formalismo de medições quânticas, de forma a definir medições conjuntas "não-nítidas" (un sharp joint measurements). Apesar deste resultado formal ser importante, ele aparentemente não lança luz sobre medições de quanta individuais, trazendo novidade apenas para a descrição (estatística) de um coletivo de medições. Em suma, ele não fornece uma receita para que se efetue uma medição conjunta de observáveis incompatíveis com ótima resolução para um único quantum 69 . Alguns experimentos de medição conjunta (com ótima resolução) de posição e momento têm sido propostos por proponentes da interpretação dos coletivos estatísticos, mas nenhum deles estabelece valores simultaneamente exatos de maneira satisfatória. Eles podem ser divididos em três classes: (i) Um primeiro tipo supõe que a retrodição é válida (seção XI.7), de forma que os valores conjuntos só se aplicam para o passado. (ii) Uma segunda classe é exemplificada pela proposta de se medir a posição de uma partícula usando-se raios y, e seu momento usando luz de baixa freqüência. Neste caso, a primeira medição provoca um colapso antes da segunda ser realizada, sendo que os valores médios 83 69um dos primeiros trabalhos sobre o formalismo de medições conjuntas foi: PARK, J.L. & M ARGENAU, H. ( I 968): "Simultaneous Measurability in Quantum Mechanics" , lntemational Jour- nal of Theoretical Physics 1, 211-283. Para uma avliação recente da irrelevância deste tipo de fo rmalismo, ver UFFINK, J. (1994): "The Joint Measurement Proble m", lnternational Journal of Theoretical Physics 33, 199212. Ver mais sobre esta generalização na nota 72. Conceitos de Física Quântica 84 obtidos dependerão de qual medição foi realizada primeiro. (iii) O único caso em que de fato se pode falar em "medição simultânea de observáveis incompatíveis" envolve duas partículas correlacionadas, que examinaremos com o paradoxo de EPR (seção XXIII.4). Neste caso, a ordem em que as medições são feitas não gera médias estatísticas diferentes. 2. A Inexistência de um Operador Auto-Adjunto de Tempo* * Esta seção pode ser pulada sem perda de continuidade. 7ÜSCHRÓDINGER (1935), op. cit. (nota 44), p. 166. Citação do parágrafo seguinte é de VON NEUMANN (1932), op. cir. (nota 20), p. 354. W. (1933): "Die allgemeinen Prinzipien der Wellenmechanik", in GEIGER, H. & SCHEEL, K. (orgs.), Handbuch der Physik, 2ª ed., v. 24, Springer, Berlim. Tradução para o inglês da edição alemã de 1959: General Principies of Quantum Mechanics, Springer, Berlim, 1980. Ver p. 63 da tradução. 7lpAULI, Devido à simetria entre coordenadas espaciais e temporais na teoria da relatividade restrita, Schrõdinger (1931 ) tentou descrever um operador de tempo análogo ao operador de posição, mas não conseguiu. Em 1935, ele manifestou seu descontentamento da seguinte maneira70 : "A previsão feita pela mecânica quântica contemporânea de que o tempo tem valores bem-definidos é provavelmente um erro. O valor numérico do tempo é como qualquer outro o resultado de uma observação [... ] ão deveria ele pertencer a uma variável que em geral não tem um valor preciso? [.. .] Na mecânica quântica contemporânea, considera-se de maneira a priori que o tempo é conhecido precisamante, apesar de se ter que admitir que qualquer olhada para um relógio provoca um distúrbio incontrolável no movimento do relógio [... ] ' John von Neumann (1932) também manifestou seu desagrado com essa que seria "a principal fraqueza da Mecânica Quântica". Porque não é possível definir um operador correspondente ao observável tempo? A questão foi tratada explicitamente por 71 Wolfgang Pauli em 1933 em uma nota de rodapé . Ele mostrou que a existência de um operador de tempo que fosse auto-adjunto implicaria autovalores contínuos para o operador de energia, entre oo e +=. Mas o espectro de energia para sistemas ligados é discreto, e mesmo no caso de uma partícula livre o espectro tem um limite inferior (senão, haveria um problema de estabilidade do sistema), não se admitindo assim valores negativos de energia. Portanto, não seria possível haver um operador de tempo auto-adjunto. Tendo em vista este resultado, o tempo se limita a ser um parâmetro numérico na equação de Schrõdinger (ou em equação equivalente). A discussão sobre a possibilidade de um operador de tempo foi então encerrada, sendo que nas décadas seguintes a preocupação com respeito ao tempo se concentrou na interpretação correta da relação de incerteza envolvendo tempo e energia, como veremos na seção seguinte. Capítulo XII: Explorando os Princípios de Incerteza Em 1959, porém, Engelman & Fick reabriram a discussão sobre a possibilidade de se definir um operador de tempo na Mecânica Quântica. Diversos autores atacaram o problema, e passaram a definir operadores de tempo que, devido às limitações impostas pelo argumento de Pauli, não são a rigor auto-adjuntos. Harry Paul (1962), por exemplo, explorou, para uma partícula livre de massa m, o operador (XII.l) que na vizinhança de Px = O não é auto-adjunto. Tal singularidade, porém, não intimidou Aharonov & Bohm (1961), que a consideraram "sem importância" em face dos altos valores dos momentos das partículas envolvidas nas medições de tempo por eles estudada. Ou seja, no limite de altas energias um operador autoadjunto de tempo poderia ser definido para partículas livres, conforme a eq.(XII. l). Uma das conseqüências desses estudos é a sugestão de que o formalismo de medições da Mecânica Quântica deveria ser estendido, de forma a permitir a definição de observáveis que correspondessem a operadores não auto-adjuntos. De fato, uma extensão do formalismo de medições seria realizado na década de 72 70 . No entanto, o fato do operador de tempo não ser auto-adjunto deve ser analisado com cuidado, dado que isto tem uma conseqüência significativa: os autoestados correspondentes a este operador não são ortogonais. Veremos outro exemplo disso na seção XIV.6. 3. O Princípio de Incerteza para Tempo e Energia* 72Estes avanços foram introduzidos por E.T. Davies & J.T. Lewis (1970) e Holevo (1972), e adotados por muitos outros autores. Em poucas uma "medição palavras, generalizada" não pode ser caracterizada por um único operador, definido a partir de um conjunto de projetores ortogonais (que comutam), conjunto este que é "completo" (soma dos projetores é igual a l); os observáveis das medições generalizadas são caracterizados por um comj unto completo de projetores, mas estes não são necessariamente ortogonais (podem não comutar). Ver HOLEVO, A.S . (1982), Probabilistic and Statistical Aspects of Quantum Theory, NorthHolland, Amsterdã, pp. 2733. Ver também a última referência da nota 69, que trata da mesma abordagem. * Esta seção pode ser pulada sem perda de continuidade. Já mencionamos que Heisenberg também derivou, em 1927, uma relação de incerteza para energia e tempo, que escrevemos como: Ôt·ÔE ~!!._ 2 Na seção X.5, vimos a relação de incerteza que Kennard obteve para os desvios padrão dos operadores de posição e momento (eq. X.17). Isso sugere uma relação envolvendo operadores de energia e de tempo: 85 (XII.2) Conceitos de Física Quântica 86 n. (XII.3) 73ALLCOCK, G.R. (1969): ''The Time of Arrival in Quantum Mechanics", Annals of Physics 53, 253-348. Ver pp. 256-61 , 334-7. Ver também JAMMER (1974), op.cit. (nota 3), pp. 132-56, e AHARONOV, Y. & BOHM, D. (1961): "Time m the Quantum Theory and the Uncertainty Relation for Time and Energy", Physical Review 122, 1649-58 (reimpresso em WHEELER & ZUREK, 1983, op. cit., nota 6, pp. 7 15-24). Af' · Af;::::: 2 o entanto, como não é possível definir um operador autoadjunto de tempo, a eq.(XII.3) careceria de sentido. Como interpretar então as relações de incerteza para energia e tempo? Podemos dividir essas interpretações em cinco grupos, seguindo a análise de G.R. 3 Allcock (1969) . 1) Relação envolvendo a indeterminação no tempo de chegada. Allcock aponta a interpretação original de Niels Bohr (1928) como sendo uma "relação de incerteza genuína", apesar de fundada em argumentos qualitativos. Conforme fizemos na seção XI.2, Bohr considerou um pacote de onda de luz limitado pela relação 8v·8t 2: 1, válida na Física Ondulatória Clássica, e utilizando a relação quântica E=hv obteve: 8E-8t 2: h. A indeterminação no tempo corresponde ao tempo de transcurso do pacote através de um ponto, donde Allcock argumenta que a variável tempo pode ser interpretada como o ' tempo de chegada" de uma partícula em um ponto. Bohr não se deteve na questão de como medir este tempo de chegada, questão esta que é um dos problemas atacados por Allcock em seu longo artigo. "O problema da complementaridade da energia e tempo em Mecânica Quântica dá bastante ensejo a mal-entendidos e confusão, devido ao fortuito aparecimento conjunto de uma variável energia e um parâmetro tempo em situações que nada implicam com respeito à determinação simultânea de uma variável dinâmica de tempo e uma energia. A literatura contém de fato várias relações tempo-energia que não [a de Bohr e a de Mandelstam & Tamm] [... ], todas as quais têm falhas ou induzem de alguma maneira em erro." (ALLCOCK, 1969, p. 259.) 2) Relação envolvendo o tempo de interação com um analisador estático. a derivação original de Heisenberg (1927), 8t corresponde ao tempo que um átomo permanece entre os imãs de um aparelho de Stern-Gerlach, e não a uma medição do instante de ocorrência de um evento. A indeterminação 8t poderia neste caso ser interpretada como o intervalo de tempo em que o átomo interage com o aparelho de medição, ou mais precisamante, com o " analisador" (o imã neste caso, uma grade de difração em um experimento óptico etc.). Allcock chamou tal arranjo experimental de "estático", sendo que os componentes do pacote com diferenças de freqüência maiores do que 8E!h são separados espacialmente. Neste caso, 8t estabelece um limite inferior para a duração de uma medição capaz de medir a energia com uma precisão igual a 8E. Capítulo XII: Explorando os Princípios de Incerteza 3) Relação envolvendo a diferença de energia de uma partícula-sonda. Contrastando com o arranjo estático de aparelhagem, Landau & Peierls (1931) propuseram um arranjo "dinâmico" no qual uma partícula-sonda interage por impulsão com a partícula-objeto, interação esta que dura um intervalo 8t controlável pelo experimentador. Argumentaram então que a energia da sonda pode ser medida com precisão arbitrária em qualquer instante. O termo 8E da eq.(XII.2) não corresponderia assim à precisão da medição, mas à diferença Ei-Ei , onde E1 é a energia da sonda antes da interação, e Ez a energia após a interação impulsiva. Mais tarde, Fock & Krylov (1947) concordariam que 8E deve ser interpretado como a transferência de energia entre objeto e aparelho (sonda), mas definiram 8t mais precisamente como uma indeterminação no tempo de chegada. Aharonov & Bohm (1961), porém, forneceram um convincente contra-exemplo à tese desses autores de que toda medição com duração 8t provoca uma transferência de energia 8E satisfazendo a eq.(XII.2). 4) Relação envolvendo o valor médio de um operador não constante. A abordagem de Mandelstam & Tamm (1945) define as indeterminações como desvios padrões de um coletivo de medições, conforme a eq.(XII.3). Mas como não há um operador auto-adjunto de tempo do qual se possa derivar f:..T , eles definiram este desvio padrão indiretamente, da seguinte maneira: (XII.4) a partir de um operador auto-adjunto R que não é uma constante de movimento (por exemplo, a posição de uma partícula em movimento). A crítica que se faz a esta abordagem é que ela não se aplica a medições indi viduais, crítica que Fock & Krylov estenderam também à interpretação de 8E como a largura de linha espectral, que havia sido sugerida por Weisskopf & Wigner (1930). Além disso, se o sistema (fechado) em questão estiver em um estado estacionário (um autoestado de energia), a relação de indeterminação (eq. XII.3) de Mandelstam & Tamm não se aplica. 5) Relação envolvendo os desvios padrões dos operadores de energia e tempo. Apesar das limitações impostas pelo resultado de Pauli, vários autores passaram a interpretar a eq.(XII.3) de maneira canônica, dentro de um formalismo de medições estendido, conforme mencionado na seção XII.2. 87 Conceitos de Física Quântica 88 * Esta seção pode ser pulada sem perda de continuidade. 4. Relação para Momento Angular e Ângulo* Um exemplo especialmente problemático para a abordagem padrão envolve os operadores de momento angular L, e de ângulo <I>. A suposição de que tais operadores seguem a relação canônica ""' ,,.,, "" ""' ..... de comutação <I> L, - L: <I> = il parece levar à relação de incerteza ~<i> ·l:l( ~ f, mas esta última está claramente errada, já que o 74CARRUTHERS, P. & NIETIO, M.M. (1968): "Phase and Angle Variables in Quantum Mechanics", Reviews of Modem Physics 40, 411-440. LÉVY-LEBLOND, J.M. (1976): "Who is afraid of Non-Hermitian Operators? A Quantum Description of Angle and Phase", Annals of Physics 101, 319-341. 75citação de UFFINK (1990), op. cit. (nota 52), pp. 144-5. Ver discussão nas páginas subseqüentes. * Esta seção pode ser pulada sem perda de continuidade. 76voN WEIZSÀCKER, K.F. (1931): "Ortsbestimmung eines Elektrons durch ein Mikroscop", Zeitschrift für Physik 70, 114-130. Ver em também a análise BüCHEL, W. (1965): Philosophische Probleme der Physik, Herder, Freiburg. ângulo <I> está limitado entre O e 2n (um autoestado de L, violaria a relação). Dentre as várias abordagens ao problema, pode-se destacar as de Carruthers & Nietto (1968) e de Lévy-Leblond (1976) 74 . Os primeiros alteraram a relação de comutação introduzindo novos operadores, sen <I> e cos <I> , enquanto que o segundo foi mais longe A A A A e introduziu o operador U <1> = ex p [i <I>] , que não é auto-adjunto, mas unitário (seção VII.1 ). "A proposta de que este operador 'represente' o observável de ângulo está pois em conflito com o postulado usual da Teoria Quântica segundo o qual observáveis devem ser representados por operadores auto-adjuntos. Conforme veremos, no entanto, esta proposta é de fato muito mais natural do que o querido postulado da Mecânica Quântica." O fato do operador não ser auto-adjunto implica em que seus autovalores são números complexos. Isso porém não é um problema, se aceitarmos que os autovalores são meras "etiquetas" caracterizando o resultado de medições. "Para uma variável angular parece ser muito mais natural escolher etiquetas que estão ordenadas em um círculo ao invés de uma reta real, pois isso reflete a topologia física da variável". 75 5. Microscópio de von Weizsacker':' Voltemos agora para o ano de 1931, em Leipzig, na Alemanha, onde o precoce Karl von Weizsacker de 19 anos trabalhava em sua tese de doutorado com Heisenberg. Este pediu ao jovem um estudo rigoroso, dentro da eletrodinâmica quântica de Heisenberg & Pauli, sobre a determinação da posição de um elétron por meio do microscópio de raio y. Antes de introduzir o formalismo, von Weizsacker apresentou de maneira simplificada o experimento-de-pensamento do microscópio (ver Figs. XL4 e XII. l). Uma onda plana incide no objeto paralelamente ao plano da lente, e Capítulo XII: Explorando os Princípios de Incerteza espalha em direção ao microscópio. Consideremos o que ocorre de acordo com a Óptica Clássica. Para um objeto pontual (Fig. Xl.4), se uma tela fosforescente ou uma chapa fotográfica for colocada no plano de imagem do microscop10, ocorre uma magnificação da posição do elétron, e determina-se com boa resolução esta posição. Se a tela fosse colocada no plano focal definido pela lente, observar-se-ia um borrão razoavelmente espalhado. Consideremos agora um outro caso, no qual uma onda plana incide na lente (equivalente ao caso no qual o objeto está no infinito) (Fig. XII.1). Se a tela estiver no plano focal, sabemos que tal frente de onda irá se focalizar em um ponto bem definido da tela. A posição deste ponto indicará a direção de incidência da onda plana, ou seja, medirá a direção de seu momento. Neste segundo caso, se a tela fosse colocada no plano de imagem, observaria-se um borrão espalhado na tela. No caso quântico, cada fóton espalhado forma um ponto bem definido em qualquer tela no qual ele incidir. Consideremos, para simplificar, que o objeto está inicialmente em repouso. Se a tela estiver no plano de imagem (Fig. Xl.4), a posição inicial do elétron será medida com boa resolução. O estado do elétron será reduzido a um autoestado de posição, que simplificadamente pode ser considerado uma onda esférica. Por outro lado, se a tela estiver no plano focal (Fig. XII.1), o que é medido é o momento. O estado da luz espalhada será pois reduzido a um autoestado de momento, ou seja, a uma onda plana. Como o raio y inicial também tinha momento bem definido, a diferença entre o momento inicial e final da luz fornece uma medição do momento transferido ao elétron (que supusemos estar inicialmente em repouso), e determina que o estado final do objeto seja também uma onda plana. O importante no argumento de von Weizsacker é que conforme a posição na qual a tela for colocada, medir-se-á não só observáveis diferentes e incompatíveis, como também o estado final do objeto será diferente. Ora, mas em princípio nada impede que a escolha de onde inserir a tela seja feita depois do fóton ser espalhado e atravessar a lente do microscópio! Esse experimento de escolha demorada (ver seção III.3) mostra assim o papel que o sujeito pode ter em determinar o estado final do objeto, mesmo que este esteja a uma distância considerável do observador. Jammer77 considerou tal experimento-de-pensamento uma antecipação do análise de Einstein, Podolsky & Rosen, sem que von Weizsacker estivesse preocupado em mostrar a incompleteza da Mecânica Quântica. 77JAMMER 89 (1974), op. cit. (nota 3), pp. 178-80. 90 Conceitos de Física Quântica Este experimento fez com que von Weizsacker passasse a atribuir um papel importante para a vontade do suj eito humano na Mecânica Quântica. O observador tem a capacidade de escolher, no instante em que ele insere a tela em um dos planos, se o estado final do elétron será uma onda plana ou esférica, mesmo que este elétron esteja a uma grande distância. Poderia este efeito ser usado para enviar sinais mais rápidos do que a luz? Lente Fina Plano Focal Plano de Imagem Figura XII.!. Medição de momento usando o microscópio de raio y, segundo von Weizsacker. A correspondente medição de posição está na Fig. XI.4. 1 1 1 -----1 ··................. :: ................... Capítulo XIII A INTERPRETAÇÃO DA COMPLEMENTARIDADE 1. Origens da Complementaridade Nos últimos meses de 1926, o problema da interpretação da Mecânica Quântica era o tema central das discussões entre Bohr e Heisenberg. Este morava então no último andar do Instituto Niels Bohr, e freqüentemente era visitado por Bohr a altas horas da noite, "e nós construíamos todo tipo de experimentos imaginários para ver se realmente entendíamos a teoria. Ao fazer isso, percebemos que nós dois estávamos tentando resolver as dificuldades de maneiras um tanto diferentes. Bohr procurava permitir a existência simultânea dos conceitos de partícula e onda, defendendo que ambas, apesar de mutuamente exclusivas, eram juntamente necessárias para uma descrição completa dos processos atômicos. Eu não gostava desta abordagem. Queria partir do fato de que a Mecânica Quântica, como a conhecíamos então, já impunha uma interpretação física única para algumas grandezas que nela ocorriam."78 Um pouco mais tarde, a posição de Heisenberg seria de que tanto a linguagem corpuscular quanto a linguagem ondulatória seriam satisfatórias para descrever os objetos quânticos, enquanto que Bohr insistia que ambas eram necessárias. Heisenberg ficaria assim satisfeito com o desenvolvimento da abordagem da 2ª quantização por parte do sueco Oskar Klein, de Pascual Jordan e do húngaro Eugene Wigner (1927-8), que mostrava para ele "que a representação corpuscular e a ondulatória são meramente dois aspectos diferentes de uma mesma realidade física." 79 Em fevereiro de 1927 Bohr foi esquiar na Noruega, e esta separação permitiu que cada qual desenvolvesse sua interpretação. Heisenberg chegou no princípio de incerteza e Bohr ao conceito de "complementaridade" . Conforme salientado por Jammer, Heisenberg basearia a definibilidade de grandezas físicas em sua mensurabilidade (o que chamamos de "postulado positivista" na seção Xl.4), enquanto que .Bohr tomaria a definibilidade como ponto de partida, argumentando que grandezas complementares não podem ser definidas de maneira simultânea. Em setembro, Bohr apresentou publicamente suas idéias no Congresso Internacional em homenagem ao centenário da morte de Alessandro Volta, realizado na cidade natal deste em Como, na Itália. A seguir, em outubro de 1927, no 5º Congresso de Solvay, Bohr reapresentou suas idéias, 91 78HEISENBERG, W . (197 1): "Reminiscences from 1926 and 1927", in FRENCH, A.P. & KENNEDY, P.J. (1985): Niels Bohr: A Centenary Volume, Harvard University Press, Cambridge (EUA), pp. 163-171. Verp. 166. 79JAMMER (1974), op. cit. (nota 3), p. 68. Não consegui confirmar esta afirmação de Jammer a respeito das opiniões de Heisenberg. 92 Conceitos de Física Quântica sendo que desta vez Einstein estava presente. publicou sua palestra na revista Nature. Em 1928, Bohr 2. Linguagem Clássica e a Questão do Macrorealismo 80Esta tese da linguagem clássica foi chamada de "buffer postulate" por SCHEIBE, E. (1973): The Logical Analysis of Quantum Mechanics, Pergamon, Ox- ford, p. 24. 81 Vimos um exemplo disto na seção V.2. Ver JAMMER (1974), op. cit. (nota 3), pp. 473-4. 82BOHR (1928), op. cit. (nota 60), p. 54: "é uma questão de conveniência em que ponto introduzir o conceito de observação ,, . VON NEUMANN ( 1932), op. cit. (nota 20), pp. 418-9. 83FocK, V.A. (1957), "On the Interpretation of Quantum Mechanics", Czechoslovak lournal of Physics 7, 643-56. Ver discussão sobre Landau & Lifshitz em BELL, J.S. ( 1990), "Against 'Measurement" ', in MILLER, A.I. (org.), Sixty-Two Years of Uncertainty, Plenum, Nova Iorque, pp. 17-31 (ver seção 6), republicado em Physics World (agosto 1990), 33-40 (ver pp. 34-5). Bohr iniciou a primeira seção de seu artigo se referindo às idéias e aos conceitos da Física Clássica, que têm que ser usados para interpretar os resultados experimentais, mas que ao mesmo tempo são limitados para descrever os fenómenos atómicos. Esta afirmação envolve o que chamaremos a tese da linguagem clássica80 : a descrição da aparelhagem experimental e dos resultados das medições só pode ser feita na linguagem da Física Clássica. Esta tese implica que conceitos próprios da Mecânica Quântica (como a "descontinuidade'', ou fugindo do vocabulário bohriano, a "superposição de auto-estados associados a observáveis") não podem ser aplicados aos aparelhos macroscópicos enquanto eles são usados na medição. Note, porém, que Bohr admite que conceitos quânticos possam se aplicar a partes do aparelho de medição 1• • o entanto, entre o sujeito e o objeto, sempre é preciso fazer um corte entre clássico e quântico. Tal corte, porém, não é algo "objetivo··, mas pode ser imposto em qualquer ponto entre o sujeito e objeto conforme von Neumann exprimiria matematicamente (no contexto da seção IX.2) e chamaria de "paralelismo psico-físico '. 82 A tese da linguagem clássica não proíbe que corpos macroscópicos possam ser descritos pela Mecânica Quântica. Tal descrição é possível, desde que os corpos sejam obj etos da medição. Se tal corpo for parte integrante do aparelho de medição, então ele deve ser tratado classicamente (levando em conta os comentários do parágrafo anterior). Notamos assim na concepção de Bohr e von Neumann, um certo elemento de "subjetivismo", pois o sujeito epistemológico nunca pode ser eliminado. Esta situação levou os partidários russos da interpretação ortodoxa (Fock, e de certa forma Landau 83 ) a desenvolverem um critério mais claro e simples para separar o mundo quântico do clássico. Todo corpo de dimensões macroscópicas seria descrito pela Física Clássica. Este critério se adaptava bem à abordagem "objetivista" ao problema da medição (seção IX.1), que examinaremos no final do livro. Mais recentemente, esta posição recebeu o nome de macrorealismo, associado ao nome de Anthony Leggett (ver final do livro). O macrorealismo proíbe a existência de superposições macroscópicas (como a do gato de Schrõdinger, seção IX.4). Será que esta é uma tese correta? Capítulo XIII: A Interpretação da Complementaridade 93 3. Descontinuidade e Distúrbio Interacional Desafiando nossa linguagem clássica está o postulado quântico (que já encontramos na seção I.4), "que atribui a qualquer processo atômico uma descontinuidade essencial, ou melhor, urna individualidade, completamente estranha às teorias clássicas e simbolizada pelo quantum de ação de Planck" (BOHR, 1928, p. 53). Segundo Bohr, a conseqüência desta descontinuidade é que "qualquer observação de fenômenos atômicos envolverá uma interação com o agente da observação que não deve ser desprezada". Esta é uma versão do que chamamos de concepção do distúrbio interacional: a impossibilidade de controlar os distúrbios provocados no objeto pela interação com o aparelho de medição (ver seção XI.5). Descontinuidade implicaria distúrbio. É curioso que se adotarmos um ponto de vista próximo à interpretação ondulatória, somos levados a uma inversão desta implicação: seria o distúrbio provocado pela interação com o aparelho que causaria a descontinuidade quântica. Bohr, porém, partiu do postulado quântico como um fato fundamental, e, assim, é esta descontinuidade que explica o distúrbio interacional. Mais tarde, a partir de 1935, Bohr passaria a dar menos importância ao distúrbio e mais à "totalidade" (seção XIIl.5). Devido à interação entre sujeito e objeto, "uma realidade independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenômenos, nem aos agentes da observação" (BOHR, 1928, p. 54). Esta frase exibe uma posição "anti-realista" (ou "positivista"), pois parece negar que o mundo físico tenha uma existência independente do observador. 4. Os Três Tipos de Complementaridade Na obra de Bohr é possível distinguir três tipos diferentes de complementaridade84 , no contexto da Física. (1 º tipo) Complementaridade entre coordenação espaçotemporal e asserção da causalidade. Este foi o primeiro tipo de complementaridade citado por Bohr, mas, curiosamente, ele seria abandonado. Em seu artigo de 1928, Bohr nota que só se pode definir o estado de um sistema físico quando todos os distúrbios externos são eliminados. De fato, vimos na seção VII.1 que um operador hamiltoniano auto-adjunto só pode ser associado a um sistema isolado ou a um sistema que não reage na fonte dos campos 84Esta divisão em três tipos é também apresentada por VON WEIZSÀCKER, C.F. (1955): "Komplementaritat und Logik", Naturwissenschaften 42, 521-29, 545-55, cuja pos1çao é resumida por JAMMER (1974), op. cit. (nota 3), pp. 102-4. Conceitos de Física Quântica 94 85MACKINNON, E. (1985): "Bohr on the Foundations of Quantum Theory", in FRENCH & KENNEDY' op. cit. (nota 78), pp. 101-20. Ver p. 112. externos. No entanto, um sistema mantido sob tais condições de isolamento não pode ser observado! Por outro lado, se ocorrer uma observação, com o distúrbio acompanhante, "então uma definição sem ambigüidades do estado do sistema naturalmente não é mais possível" (p. 54). Temos assim uma complementaridade entre observação e definição. Um sistema isolado conserva energia e momento, e portanto pode-se dizer que satisfaz a causalidade. Como, porém, ele não pode ser observado, não é possível associar uma posição espacial e um instante temporal a ele. Por outro lado, ao ser observado, um sistema passa a ter uma coordenação espaço-temporal (dada pelo resultado da medição), mas seu estado (após a redução) não evoluiu a partir do estado anterior de acordo com a lei da causalidade (ou seja, de maneira determinista). "A própria natureza da teoria quântica nos força assim a considerar a coordenação espaço-temporal e a asserção da causalidade, cuja união caracteriza as teorias clássicas, como aspectos complementares mas exclusivos da descrição, simbolizando a idealização da observação e da definição, respectivamente" (pp. 54-5). Este foi o primeiro enunciado do princípio de complementaridade. Esse par envolve características que são consistentes na Física Clássica: nesta, temos coordenação espaço-temporal e causalidade. Porém, após 1928, Bohr passou-se a incomodar pelo fato de que _este tipo de complementaridade feria princípios positivistas. Fazia-se uma distinção entre um átomo enquanto existente e o 85 mesmo átomo enquanto conhecido , o que não fazia sentido para o positivismo, que identifica o existente e o conhecido. Como distinguir entre observação e definição, se o positivismo estipula que só o que é observado é definível? Apenas de um ponto de vista realista é possível dar sentido a este 1Q tipo de complementaridade (veremos mais sobre positivismo e realismo no capítulo XIV). (2Q tipo) Complementaridade entre partícula e onda. Após a pequena crise conceituai pela qual Bohr passou em 1929, na qual reteve apenas o domínio da "observação" (rejeitando a pura "definição"), ele passou, especialmente a partir de 1935, a priorizar a complementaridade entre onda e partícula. Já apresentamos este tipo de complementaridade na seção III.2, como "dualidade onda-partícula forte", e notamos que ela envolve aspectos que são excludentes na Física Clássica (onde temos ou partícula, ou onda). No cap. XV examinaremos este tipo mais a fundo . Capítulo XIII: A Interpretação da Complementaridade Os aspectos ondulatório e corpuscular de um objeto quântico são revelados por arranjos experimentais mutuamente excludentes, mas, segundo Bohr, este par constitui uma descrição "exaustiva" do objeto quântico. (3º- tipo) Complementaridade entre observáveis incompatíveis, como posição e momento. Aqui temos dois aspectos que são consistentes na Física Clássica de Partículas: posição e momento. Isto distingue este tipo da complementaridade ondapartícula. Podemos igualar este tipo ao lº- tipo? Alguns comentaristas fazem isso, o que significa identificar a asserção da 86 causalidade com as leis de conservação . Mas o 1º-tipo envolve uma oposição entre o observado e o não-observado, o que está naturalmente ausente no 3º- tipo. É interessante notar que o par posição-momento se restringe a partículas. Por simetria, somos levados a nos perguntar sobre pares complementares que ocorram só na representação ondulatória. Heisenberg pensou nesta possibilidade, e sugeriu um princípio de incerteza entre campos elétrico e magnético. Com a "segunda quantização" (seção XVII.3), podemos pensar na relação de incerteza envolvendo número-de-quanta e fase, o que pode ser interpretado como uma complementaridade entre amplitude da onda e a fase da onda, aspectos que são consistentes na Física Clássica de Ondas, mas que seriam mutuamente excludentes na Mecânica Quântica. 95 86MURDOCH, D. (1987): Niels Bohr's Philosophy of Physics, Cambridge U. Press. Este autor define uma complementaridade cinematica-dinâmica (englobando os nossos lº- e 3º- tipos), em oposição à complementaridade onda-partícula (p. 58). Ver também a estranha opinião de Léon Rosenfeld, p. 66. 5. Totalidade do Fenômeno A partir do desafio lançado por Einstein, Podolsky & Rosen em 1935 (que veremos no cap. XXII), Bohr foi obrigado a refinar sua interpretação, tornando mais explicita a complementaridade de arranjos experimentais. A novidade foi a ênfase que Bohr passou a dar para o "todo" do arranjo experimental, ao se definir o "fenómeno" quântico (comparar com o uso do termo na citação de 1928 apresentada na seção XIII.3): "A lição essencial da análise de medições na teoria quântica é pois a ênfase na necessidade, para dar conta do fenómeno, de levar em consideração o arranjo experimental como um todo, em completa conformidade com o fato de que toda interpretação não ambígua do formalismo quântico envolve a fixação das condições externas."87 Chamaremos esta característica do fenómeno de totalidade ou inteireza ("wholeness"). Uma versão um pouco diferente da noção de totalidade foi 88 ressaltada por David Bohm (1951), ainda no contexto da interpretação ortodoxa da Mecânica Quântica. "Parece necessário, portanto, desistir da idéia de que o mundo pode ser corretamente 87BOHR (1939), citado . em SCHEIBE (1973), op.cit. (nota 80), p. 21. 88BOHM, D. ( 1951), op.cit. (nota 16), p. 140. 96 89JAMMER (1974), op.cit. (nota 3), pp. 160-6, 197-211. Conceitos de Física Quântica analisado em partes distintas, e substituí-la pela suposição de que o universo inteiro é basicamente uma unidade única, indivisível." (Falaremos mais sobre a concepção de Bohm sobre o universo indiviso na seção XXV.8.) Max Jammer89 salienta que a concepção de totalidade de Bohr traz consigo uma concepção "relacionista" do estado de um sistema, ou seja, que o estado quântico passou a ser definido pela relação do objeto microscópico com o aparelho de medição inteiro (ver seção X. l). Ele contrasta esta posição com a concepção anterior (pré1935) que chama de "interacionalista". Já examinamos um aspecto desta concepção com a noção de "distúrbio interacional" (seção XIII.3). Outra instância desta concepção interacionalista seria a famosa afirmação idealista de Jordan, segundo a qual "nós mesmos produzimos os resultados da medição" (ver nota 33, na seção VIII.3). 6. Outras Posições Ortodoxas 90HEISENBERG (1958), op. cit. (nota 14), cap. III (pp. 2426 da edição brasileira de 1981). No contexto da interpretação da complementaridade, a noção de potencialidade foi também utilizada por BOHM ( 1951 ), op. cit. (nota 16). A chamada ' interpretação de Copenhague" desenvolvida por Bohr, Heisenberg e Pauli é usualmente tomada como sendo uma posição monolítica, defendida por todos os fundadores da Mecânica Quântica, com exceção de realistas como Planck, Einstein, de Broglie (pré-1927 e pós-1952) e Schrõdinger. Um exame mais atento, porém, mostra nuanças nas posições ortodoxas. Heisenberg desenvolveu, nos anos 50, uma interpretação que enfatizava alguns pontos não desenvolvidos por Bohr. Sem abandonar a noção de complementaridade, Heisenberg passou a salientar que a função de onda l.fl (no caso puro) exprime uma potencialidade, no sentido aristotélico, relacionada a uma probabilidade "objetiva" que independe do estado de conhecimento do observador. Esta posição se aproxima da interpretação ondulatória (seção IV.3), sem, talvez, interpretar l.fl de maneira tão literal 90 . A respeito dos "saltos quânticos" (colapsos), da "transição do 'possível' ao 'real' [que] ocorre durante o ato de observação", Heisenberg (p. 25) enfatizou que ela "toma lugar tão logo a interação do objeto com o instrumento de medida (e, portanto, com o resto do mundo) tenha se realizado; ele nada tem a ver com o ato de registrar o resultado por parte da mente do observador". Ele assim ataca a solução subjetivista ao problema da caracterização (von Neumann, London & Bauer, etc.) (seção IX. l), oferecendo uma descrição consistente com o criptodeterminismo (seção IX.2), já que é a interação com o resto do mundo que provocaria o colapso. Capítulo XIII: A Interpretação da Complementaridade A frase que se segue a esta citação, porém, interpreta l/f de maneira claramente epistêmica, nos deixando em dúvida se as 91 potencialidades são objetivas ou não : " A mudança descontínua na função de probabilidade, no entanto, tem lugar com o ato de registro, pois é essa mudança descontínua do nosso conhecimento, no instante do registro, que tem por imagem a mudança descontínua da função de probabilidade." Tem-se explorado pouco, na literatura, as posrçoes filosóficas dos outros físicos próximos à corrente ortodoxa. Pauli se mantinha bastante próximo a Bohr, ao contrário de Max Born, que a exemplo de Heisenberg parece ter flertado com a idéia de uma "realidade intermediária" : " A questão de se as ondas são algo 'real' ou uma ficção para descrever e prever fenômenos de maneira conveniente é uma questão de gosto. Eu pessoalmente gosto de considerar uma onda de probabilidade, mesmo no espaço 3Ndimensional, como uma coisa real, como certamente mais do que um instrumento para cálculos matemáticos. Pois ela tem a característica - " 92 . . de o bservaçao. de um mvanante Heisenberg parecia concordar com isso, porém preferia considerar a onda l/f como algo "objetivo" mas não "real". 93 7. Principais Teses da Interpretação Ortodoxa Para fechar o capítulo, apresentaremos as teses principais da interpretação de Copenhague, que consiste basicamente de uma síntese das visões de Bohr, Heisenberg, Pauli, Born, Dirac, Rosenfeld, etc. Esta visão ortodoxa deve ser distinguida da chamada interpretação de Princeton, representada por von Neumann, Wigner, etc., que atribui maior importância à função de onda l/f e ao seu colapso (uma visão ondulatória positivista). 1) Postulado Quântico. Há uma descontinuidade essencial na absorção e emissão de radiação pela matéria, incluindo no processo de medição. Tais processos se dão em quanta de energia discretizados e de localização bem definida. 2) Linguagem Clássica. Só temos acesso ao mundo microscópico através de aparelhos macroscópicos, e a descrição da aparelhagem experimental e dos resultados das medições só pode ser feita na linguagem da Física Clássica. 3) Distúrbio lnteracional. Como conseqüência do postulado quântico, é impossível controlar os distúrbios provocados no objeto microscópico pela interação com o aparelho de medição. 4) Positivismo. A teoria quântica só trata das observações (ou medições) de objetos microscópicos, de forma que não faz 97 9 1Ver a análise feita por: STAPP, H .P. (1985), "Bell's Theorem and the Foundations of Quantum Physics", American Joumal of Physics 53, 306-1 7, especificamente nas pp. 311 (seção X) e 312 (2il coluna). 92BORN, M. (1949): Natural Philosophy of Cause and Chance, Oxford U. Press, Londres. 105-6. Citação das pgs. 93HE!SENBERG (1958), op. cit. (nota 14), cap. VIII (p. 78 da edição brasileira de 1981 ). Em geral, porém, ele não fazia esta distinção, como na p. 145 de HEISENBERG, W . ([1969] 1996): A Parte e o Rio de Janeiro: Todo. Contraponto. Edições anterio- res: Der Teil und das Ganze (1969), Munique: Piper; Physics and Beyond (1971 ), Nova Iorque: Harper & Row; Diálogos Atómica Verbo. sobre Física (197 5), Lisboa: 98 Conceitos de Física Quântica sentido referir-nos a uma realidade independente do sujeito (observador). 5) Totalidade. Para dar conta do fenómeno quântico, é preciso considerar não só o objeto quântico, mas também todo o aparelho experimental, incluindo partes localizadas à distância. 6) Complementaridade (Dualidade Onda-Partícula). Um experimento pode ser compreendido em um quadro corpuscular, ou em um quadro ondulatório, mas nunca nos dois ao mesmo tempo. Ou seja, se houver padrões de interferência, não pode haver inferência sobre trajetórias, e vice-versa. Além desta "exclusão mútua", essas duas descrições "exaurem" a descrição do objeto. 7) Grandezas Incompatíveis. Não é possível medir simultaneamente grandezas incompatíveis como posição e momento. Não faz sentido atribuir simultaneamente valores bem definidos para grandezas incompatíveis. 8) Quebra do determinismo. Não faz sentido defender o determinismo no mundo microscop1co. A imprevisibilidade observada em experimentos quânticos é expressa no formalismo pelo fato de que apenas podemos calcular probabilidades. As probabilidades são inelirnináveis, não devendo ser interpretadas de maneira meramente epi têmica. Levando em consideração a tese positivista, o mundo é efetivamente" (para todos os efeitos) indeterminista. 9) Completeza. A descrição quântica, mesmo para objetos individuais, é completa ão faz sentido postular variáveis ocultas, dado que sua postulação não traz nenhuma previsão nova. 10) Simetria de Representação. É igualmente aceitável representar um sistema nas representações de posição ou de momento. Nenhum observável tem privilégio ontológico, ao contrário do que ocorre na teoria da onda piloto, que privilegia a representação espacial. Capítulo XIV REALISMO E POSITIVISMO 1. Realismo em Geral Você é um realista? Distingamos primeiramente um sentido "ontológico" (relativo às essências das coisas, ao "ser" das coisas) e um sentido "epistemológico" (relativo ao conhecimento). O realismo ontológico é a tese de que existe uma realidade lá fora que é independente de nossa mente (ou de qualquer mente), de nossa observação. A negação desta tese é chamada de idealismo, que pode assumir vanas formas, conforme veremos. O realismo epistemológico afirma que é possível conhecer esta realidade, ou seja, que nossa teoria científica também se aplica para a realidade 94 não observada. Exploraremos inicialmente essas teses no nível do conhecimento individual, para depois analisarmos a forma que o realismo epistemológico assume quando consideramos o conhecimento científico - o chamado de realismo científico. Para começar, devemos salientar que o termo "realismo" tem mudado de significado ao longo da história. Na filosofia medieval, o realismo era a tese de que os universais ("a árvore", "a cadeira", "o homem") existem antes das coisas particulares, tese esta que estava associada à filosofia de Platão. A esta posição se opunha o nominalismo, segundo o qual os universais são meros nomes, e a realidade só se refere ao particular do mundo físico atual (Guilherme de Occam, século XIV). No século XIX o termo "realismo" surgiu principalmente nas artes como reação ao romantismo. Este último apresentava uma atitude holística, orgânica, intuitiva, idealizadora, que em ciência influenciou a Naturphilosophie (início do século: Goethe, Schelling, Oersted). A reação realista nas artes realçava o cotidiano e o social, tendendo a ser politicamente mais progressista. Na ciência, o realismo estava associado ao mecanicismo e ao atomismo, com uma valorização da quantificação e do método hipotético-dedutivo95 . Ele se contrapunha ao positivismo, originado com A. Comte e defendido por E. Mach e energeticistas como W. Ostwald. Para o positivismo, qualquer especulação sobre mecanismos ocultos deve ser evitado. Só tem sentido tecer afirmações sobre o que é observável, verificável. Uma sentença "sem sentido" é aquela para a qual não há um método para verificar se ela é verdadeira ou falsa. Por exemplo, a frase "a realidade física existiria mesmo que não existisse nenhum observador" seria sem sentido. Para o realista, porém, tal frase não só tem sentido como é verdadeira. 99 94Na literatura mais recente de filosofia da física de língua inglesa, é costume fazer uma distinção entre "realismo de entidade", que seria sinônimo de realismo ontológico, e "realismo de propriedade'', que atribui existência às propriedades (autovalores associados a observáveis) mesmo antes de qualquer medição. 95BRUSH, S. (1980): "The Chimerical Cat: Philosophy of Quantum Mechanics in Historical Perspective", Social Studies of Science 1O, 393-447. Conceitos de Física Quântica 100 96uma história da influência do positivismo de Mach tanto na Física quanto na Psicologia é apresentada por HOLTON, G. (1993), "Ernst Mach and the Fortunes of Positivism", in Science and Anti-Science, Harvard U. Press, Cambridge, pp. 1-55. No século XX, a questão de como fundamentar o uso da matemática na ciência levou ao "positivismo lógico" (Viena: M. Schlick, R. Camap) e "empirismo lógico" (Berlim: H. Reichenbach). Formas abrandadas dessas correntes tiveram bastante força até o início da década de 1960, na filosofia da ciência. Na década de 50, iniciou-se uma reação contra o positivismo lógico, centrando-se fogo especialmente no seu "empirismo", a tese de que as observações são bases seguras para se construir a ciência (K. Popper, W. Quine). Por um lado, autores "relativistas" (M. Polanyi, N.R. Hanson, P. Feyerabend, T. Kuhn) atacaram a ênfase excessiva na descrição lógica da ciência, salientando que o conhecimento tem um componente intuitivo, e que ele está sujeito às circunstâncias históricas e sociais. De outro lado, a corrente do "realismo científico" (G. Maxwell, H. Putnam) foi elaborada, e tentaremos esboçá-la adiante. Em outros campos, fora da filosofia da ciência, o "positivismo" foi também bastante atacado, tendo-se tornando até um termo depreciativo. Este sentido negativo parece ter surgido com as teorias positivistas em Ciências Humanas (inclusive na Educação), como o "behaviorismo" em Psicologia, que simplifica ao máximo a representação que se tem do ser humano, focalizando seu estudo apenas na relação entre estímulo e resposta (os dados "positivos"). 96 Tal abordagem pode ser usada para se justificar a manipulação e dominação de homens por outros homens, tendo sido bastante criticada, como por exemplo pela Escola de Frankfurt (T. Adorno, J. Habermas etc.). Salientemos então o seguinte: no presente estudo, iremos nos concentrar na discussão entre formas de realismo e anti-realismo nas Ciências Naturais, onde "positivismo" não é necessariamente um termo depreciativo. 2. Os Problemas do Conhecimento 97HESSEN, J. (1999), Teoria do Conhecimento, Martins Fontes, São Paulo. Original: Erkenntnistheorie, Düm- mlers, Colônia, 1926. NIINILUOTO, I. (1987), "Varieties of Realism", in LAHTI, P. & MITTELSTAEDT, P. (orgs.), Symposium on the Foundations of Modern Physics World Scientific, 1987, Cingapura, pp. 459-83. Um ponto crucial para entender as diferentes formas do antirealismo, ou o que significam os diferentes "ismos" filosóficos, é considerar o tipo de pergunta que cada um responde. Adaptaremos aqui as análises feitas pelo filósofo alemão Johannes Hessen e pelo filósofo da ciência finlandês Ilkka Niiniluoto97 . Consideremos primeiramente o problema ontológico da existência de uma realidade independente do sujeito ou de uma mente. Já mencionamos que o realismo ontológico afirma a existência desta realidade; a negação desta tese recairia em um "idealismo ontológico", que é mais conhecido como idealismo subjetivista. A forma mais radical desta é o "solpsismo", segundo o Capítulo XIV: Realismo e Positivismo qual a realidade se resume ao conteúdo do meu pensamento: a realidade seria uma espécie de sonho em minha mente. Uma forma menos radical é a doutrina do "esse est percipi" (Berkeley, séc. XVIII), segundo a qual só existe aquilo que é percebido por alguém. Berkeley termina por defender um idealismo objetivo, porque a realidade externa existiria enquanto atividade mental de Deus. Tal idealismo é consistente com o realismo ontológico. Vemos assim que o idealismo não surge apenas como negação do realismo ontológico. Um idealismo epistemológico98 (que negaria o realismo epistemológico) defenderia a impossibilidade de se conhecer entidades independentes de qualquer sujeito cognoscente. Podemos aceitar a existência de uma realidade exterior e colocar o problema epistemológico que Hessen chama de problema da "essência do conhecimento": é o objeto que determina o sujeito (realismo), ou é o sujeito que determina o objeto do conhecimento (idealismo)? O idealismo transcendental daquele que é considerado o mais importante filósofo moderno, o alemão Immanuel Kant (séc. XVIII), adota uma posição intermediária: aceita a existência de coisas-em-si ("noumeno"), mas considera que a ciência só tem acesso às coisas-para-nós, os "fenómenos". Tais fenómenos, porém, seriam organizados pelo nosso aparelho perceptivo e cognitivo, sendo assim em parte dependentes do sujeito (isso também é defendido pelo idealismo conceitua[ de N. Rescher, 1973). A causalidade, por exemplo, não existiria na realidade, mas seria uma "categoria do entendimento", uma estrutura cognitiva sem ·a qual a própria compreensão do mundo seria impossível. No outro extremo, um tipo importante de realismo é o materialismo, para o qual apenas a matéria (e energia) existe ou é real: processos mentais seriam "epifenómenos" causados por processos materiais. O marxismo, uma forma de materialismo, considera que as ações humanas são determinadas pelos aspectos económicos. Consideremos agora um outro problema epistemológico, que é o da "possibilidade do conhecimento": pode o sujeito apreender o objeto, pode ele conhecer verdades a respeito do mundo? Diferentes formas de realismo afirmam que sim, enquanto que a negação desta tese se chama ceticismo. Dentre as atitudes intermediárias podemos mencionar o pragmatismo (séc. XIX: C.S. Peirce, W. James), que leva em conta apenas as conseqüências práticas das idéias, e que é uma forma de relativismo. O relativismo considera que nosso conhecimento e as verdades dependem do contexto psicológico e social no qual nos encontramos. Por fim, consideremos o problema da "origem do conhecimento": é a razão ou é a experiência a fonte e a base do 101 H. ( 1980), "Philosophical Interpretations of Quantum Physics", in Mehlberg, Time, Causality, and the Quantum Theory, vol. 2 (Boston Studies in the Philosophy of Science 19), Reide!, Dordrecht, pp. 3-74. 98MEHLBERG, Ver p. 8. 102 98a OLDROYD, D. (1986), The Arch of Knowledge - An lntroductory Study of the History of the Philosophy and Methodology of Science, Methuen, Londres, p. 169. Este autor se baseia em KOLAKOWSKI, L. (1968), Alienation of Reason: A History of Positivist Thought, Doubleday, Garden City (original em polonês: 1966). Conceitos de Física Quântica conhecimento humano? O empirismo considera que a única fonte de conhecimento é a experiência. Conhecimento sobre o que existe não pode ser obtido de maneira "a priori". Os significados das idéias seriam redutíveis aos dados da experiência (séc. XVII-XVIII: F. Bacon, J. Locke, D. Hume). O sensacionismo (em inglês: "sensationalism") ou "empirismo radical" enfatiza que as idéias são redutíveis às sensações (sense data), e no final do séc. XIX esta posição foi defendida pelo "empirio-criticismo" de Ernst Mach. A posição de Mach também é considerada uma forma de idealismo subjetivista, devido à tese de que "o mundo consiste apenas de sensações". Uma forma mais pragmática de empirismo é o fisicalismo, para o qual os termos descritivos da linguagem se referem a objetos físicos (não sensações) e suas propriedades, e são definidos "operacionalmente''. Para o operacionismo (década de 1920: P. Bridgman) todo conceito científico é sinônimo do conjunto de operações físicas associados ao processo de medi-lo. O ponto de vista oposto ao empirismo é o racionalismo (ou melhor, intelectualismo), que defende que o critério de verdade não é sensorial mas intelectual e dedutivo (R. Descartes, séc. XVII). Verdades básicas são evidentes para a razão, e outras verdades são dedutíveis destas. A posição de Kant pode ser considerada intermediária entre o empirismo e o racionalismo. Para finalizar, salientemos que o positivismo não envolve uma tese única, mas consiste de quatro afirmações principais98ª: (i) Descritivismo: só faz sentido atribuir realidade ao que for possível descrever, observar. (ií) Demarcação: teses científicas são claramente distinguidas de teses metafísicas e religiosas, por se basearem em "dados positivos" (são verificáveis). (iii) Neutralidade: o conhecimento científico deve ser separado de questões de aplicação e de valores. (iv) Unidade da ciência: todas as ciências têm um método único, baseado no empirismo e na indução. 3. O Realismo Científico Agora nos concentraremos na interpretação realista de uma teoria física , que inclui três afirmações básicas: 1) Realismo ontológico: existe uma realidade física que independe do conhecimento e da percepção humana. 2) Realismo científico: As proposições de uma teoria têm "valor de verdade", isto é, são ou verdadeiras ou falsas, de acordo com a teoria da verdade por correspondência. Assim, uma teoria física serve para "explicar" fenômenos em termos da realidade física subjacente, e não apenas Capítulo XIV: Realismo e Positivismo para prevê-los. 3) Realidade dos termos teóricos: a teoria pode conter "termos teóricos" que se referem a entidades físicas que não são diretamente observadas. Além dessas características, costuma-se adicionar mais três afirmações para uma interpretação realista99 : 4) Realismo metodológico: atingir a verdade é a meta principal da ciência. 5) Realismo convergente (K. Popper): as teorias físicas se aproximam cada vez mais da verdade, sem talvez nunca atingi-la de maneira completa. 6) Inferência para a melhor explicação: a melhor explicação para o sucesso prático da ciência é a suposição de que as teorias científicas são de fato aproximadamente verdadeiras. A negação de uma ou outra das teses expostas acima constitui formas de anti-realismo, no contexto de teorias científicas. O relativismo nega que existam verdades únicas a serem descobertas pela ciência (anarquismo epistemológico de P. Feyerabend), sendo tudo fruto de uma negociação no âmbito das comunidades científicas (T. Kuhn, nova sociologia da ciência). Esta concepção está por trás da "verdade pragmática" que se opõe à verdade por correspondência. 100 Uma negação do realismo científico é também feita pelo instrumentalismo, que pode ser "forte" ou "fraco". O instrumentalismo forte nega que as teorias científicas tenham valores de verdade, e que elas expliquem uma realidade subjacente aos dados experimentais. Teorias seriam meramente esquemas lingüísticos que permitem fazer previsões sobre observações, e que organizam estas de maneira econômica. Já um instrumentalismo fraco não nega que sentenças teóricas (relativas a entidades não-observáveis) tenham valores de verdade, mas nega que isto tenha qualquer importância na ciência (negando a teste 4 ). O que seria importante seria a solução de problemas (L. Laudan) ou a adequação empírica (B. van Fraassen). A negação da tese 3 recai no descritivismo, que está associada ao positivismo. Uma maneira de negar o realismo convergente (tese 5) é o convencionalismo, defendido na passagem do século por H. Poincaré, segundo o qual a forma particular da teoria adotada tem diversos elementos convencionais, já que outras · teorias empiricamente equivalentes são possíveis. 103 99ver NIINILUOTO, op. cit. (nota 97), p. 467. Ver também MURDOCH (1987), op. cit. (nota 86), pp. 200-7. Para mais sobre o realismo, consultar: LEPLIN, J. (org.) (1984), Scientific Realism, U. of California Press, Berkeley; TOULMIN, S. (org.) (1970), Physical Reality, Harper & Row, Nova Iorque. 1OOPara uma excelente introdução à problemática da verdade, ver HAACK, S. (1998), Filosofias das Lógicas, Ed. Unesp, São Paulo, cap. 7; original: Philosophy of Logics, Cambridge U. Press, 1978. Em português, ver também: DA COSTA, N.C.A. (1997) , O Conhecimento Científico, Discurso Editorial, São Paulo, cap. III. 4. Anti-Realismo na Física Quântica1 1 O anti-realismo que está associado à Mecânica Quântica envolve pelo menos três níveis epistemológicos: i) no nível de teoria cientifica, o instrumentalismo afirma que a Mecânica Quântica não passa de um instrumento para fazer previsões experimentais; ii) no nível da essência do conhecimento. o idealismo afirma aue a Conceitos de Física Quântica 104 101 Dentre os que enfatizaram o realismo de Bohr estão Hooker (1972), Folse (1985), Honner (1987) e Murdoch (1987). Dentre os que enfatizam seu não-realismo, encontramos Fine (1986), Krips (1987) e Faye (1991). Estas referências, uma introdução ao problema, e vários artigos sobre Bohr podem ser encontrados em: FAYE, J. & FOLSE, H.J. (orgs.) (1994): Niels Bohr and Contemporary Philosophy, (Boston Studies in the Philosophy of Science 153), Kluwer, Dordrecht (Holanda). nível da essência do conhecimento, o idealismo afirma que a consciência humana tem um papel importante na determinação do estado do objeto; iii) no nível do significado ou da origem do conhecimento, o positivismo nega que faça sentido afirmar a existência de entidades não observáveis ou afirmar proposições não verificáveis. Na discussão sobre o realismo científico, tem-se declarado que "o realismo morreu, quem o matou foi a Física Quântica" (A. Fine, 1982). Não examinaremos em detalhes, aqui, a viabilidade das interpretações realistas da Mecânica Quântica, mas queremos apenas sublinhar que quem morreu nos anos 70 não foi o realismo em geral, mas um certo tipo que chamaremos de realismo classicista, a tese de que a realidade tem uma estrutura próxima às nossas concepções e intuições clássicas a respeito do mundo. Relembremos três capítulos do anti-realismo na história da física quântica. (I) O primeiro capítulo está associado à noção de complementaridade: "uma realidade independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenômenos, nem aos agentes da observação" (Bohr, 1928). Defendia-se que a teoria só trata do observável: uma realidade não-observada pode até existir mas ela não é descritível pela linguagem humana. A posição de Bohr modificou-se . em 1935 (ver seção XIII.5), e há uma controvérsia sobre o grau de positivismo ou instrumentalismo da visão de Bohr'º'. Mas mesmo após esta época manteve-se o chamado "relacionismo", segundo a qual a realidade observada é fruto da relação entre sujeito e objeto, sendo dependente das escolhas ou vontade do observador ("voluntarismo" de von Weizsacker). (II) O segundo capítulo é uma forma de idealismo subjetivista associada a uma consciência legisladora. Ela surge da tese de que o colapso associado a medições só é causado pela observação humana: "a transformação irreversível no estado do objeto medido" seria devida à "faculdade de introspecção" ou ao "conhecimento imanente" que o observador consciente tem de seu próprio estado (London & Bauer, 1939). Filósofos adoram explorar os paradoxos trazidos por esta posição, como no exemplo do gato de Schródinger, mas o consenso parece ser que tal posição radical é desnecessária (apesar de consistente). A interpretação dos estados relativos de Everett (seção IX. l) resolve problemas semelhantes sem atribuir um papel legislador à consciência, mas supondo que esta possa entrar em superposições quânticas. (III) O terceiro capítulo do anti-realismo está associado ao Capítulo XIV: Realismo e Positivismo trabalho de John S. Bell, que mostrou que qualquer teoria realista que satisfaça a propriedade de "localidade" (salvo algumas exceções) é inconsistente com a Teoria Quântica. Quem morreu com este resultado não foram as teorias realistas não-locais (como a de David Bohm), mas sim boa parte do realismo local, uma variedade de realismo classicista que defende que, na realidade, os sinais sempre se propagam com uma velocidade menor ou igual à da luz (ver cap. XXVII). Alguns outros exemplos de suposições classicistas que são violadas por alguma interpretação da Teoria Quântica (além da localidade) são: determinismo, corpuscularismo (a matéria é composta de partículas), a tese de que o mundo existe em quatro dimensões, de que eventos presentes não afetam o passado, de que emissões de partículas oc01Tem em instantes bem determinados, etc. Apesar do classicismo estar em geral associado ao realismo, notamos que o classicismo pode ser em ·boa parte adotado por abordagens positivistas, como é o caso da interpretação da complementaridade de Niels Bohr. 105 Capítulo XV EXPLORANDO A COMPLEMENTARIDADE 1. Experimentos com Pá Giratória Às vezes raciocinamos da seguinte forma: "se não sabemos qual é a trajetória, então o fenómeno é ondulatório e haverá interferência" . Este raciocínio nem sempre funciona, mas ele pode ser substituído por outro correto: "se em princípio for impossível distinguir as trajetórias, então o fenómeno será ondulatório e haverá interferência". Ilustremos isso, no interferómentro de Mach-Zehnder, por meio de uma pá giratória (chopper) que é colocada após S 1 (Fig. XV.1). Essa pá é preparada de forma que quando o componente A se propaga, o componente B é bloqueado, e vice-versa. Poderíamos supor também que as escolhas de qual fenda bloquear e de quanto tempo manter o bloqueio fossem aleatórias. Qual seria o comportamento dos fótons? É mais ou menos fácil de intuir que cada pulso chegará em S2 ou por A, ou por B, e que portanto não haverá interferência; 50% das contagens serão registradas em cada detector. No entanto, neste caso não sabemos por qual caminho a partícula veio. Costuma-se afirmar, porém, que em princípio poderíamos descobrir o caminho. Como fazer sentido desta afirmação, no contexto positivista da interpretação da complementaridade? Uma saída é considerar que é possível fazer uma "medição clássica" da posição da pá, no instante que quisermos. Tal medição clássica seria caracterizada pelo fato de a medição não provocar nenhum distúrbio no estado quântico da luz. Poder-se-ia determinar a posição da pá através de um tênue feixe de luz iluminado em algum ponto da pá (longe do feixe do interferómetro). Outra versão com bloqueador envolve o experimento de duas fendas. O que ocorre neste caso com o padrão de interferência? Para o ponto central na tela de detecção (situado à mesma distância das duas fendas), a situação é análoga ao do interferómetro de Mach-Zehnder. Para outras regiões da tela, porém, as franjas de interferência podem se manter, dependendo (para cada região) da velocidade de rotação da pá (Mandel, 1959). Para entender isso, é só lembrar que o tempo que a luz demora para ir de cada fenda para estas regiões é diferente. As franjas aparecem quando cada componente consegue passar sem ser bloqueado pelas pás, um num instante t 1 e o outro em outro instante, t2 . Tal experimento óptico foi realizado em 1972 por Sillitto & 102 Wykes • 107 102 No caso óptico, é preciso supor também que o intervalo de tempo tF entre o fechamento de uma fenda e a abertura da outra é menor do que o "tempo de coerência" te do feixe de luz. M ANDEL, L. (1959): "On the Possibility of Observing Interference Effects with Light Beams Divided by a Shutter", Journal of the Optical Society of America 49, SII..LIITO, R.M. & K. (1972): "An Interference Experiment with Light Beams Modulated in Anti-Phase by an ElectroOptic Shutter", Physics Letters A 39, 333. Uma versão para nêutrons foi proposta por: BROWN, H.R.; SUMMHAMMER, J. ; CALLAGHAN, R .E. & KALOYEROU, P. (1992) : "Neutron Interferometry with Antiphase Modulation", Physics Letters A 163, 21 -25. 931-33. WYKES, Conceitos de Física Quântica 108 Figura XV. J. Interferômetro de Mach-Zehnder com pá giratória. 2. Interferometria com Polarizadores Uma onda em uma corda pode o cilar rransversalmente na vertical ou na horizontal: estas são duas direções ortogonais de polarização. Dizemos que elas são ·'ortogonais porque qualquer alteração na amplitude em uma das direções de oscilação não levará a alteração alguma na outra direção. Elas são independentes. (Comparar com a definição de ortogonalidade apresentada na seção IV.l.) Pode-se produzir um feixe de luz polarizado usando um filtro polarizador. Este consiste de um filme cheio de moléculas compridas, orientadas paralelamente, nas quais os elétrons oscilam facilmente ao longo da direção de comprimento. Quando a luz incide no polarizador, os elétrons absorvem o componente de luz oscilando ao longo do comprimento da molécula, e deixam passar o componente ortogonal. Um feixe de luz inicialmente não-polarizado que passa por um polarizador tem ua intensidade reduzida à metade. Considere um feixe de luz que já passou por um polarizador, estando assim preparado com polarização linear numa direção que chamaremos de 0°, e tendo uma intensidade 10 . Ao passar por um outro filtro orientado a um ângulo 8, a intensidade final do feixe será (lei de Malus): (XV.1) Capítulo XV: Explorando a Complementaridade 109 Para um ângulo de e = 90º, a intensidade transmitida será nula: dois polarizadores ortogonais colocados em sucessão não deixarão passar nenhuma luz. Curiosamente, se um terceiro polarizador, orientado em uma direção diferente de Oº e 90º (como 45º), for colocado entre os dois polarizadores ortogonais (Fig. XV.2), alguma luz passará pelos Se pensarmos que cada polarizador "mede" a polarizadores! polarização de um fóton sem afetar seu estado, a situação seria realmente paradoxal. Mas sabemos que na Mecânica Quântica as medições alteram o estado do objeto: ao ' medir" a polarização a 45º de um feixe inicialmente polarizado a Oº, altera-se brutalmente o estado de polarização dos fótons. (a) LUZ (b) LUZ Figura XV.2. (a) A luz não passa por polarizadores ortogonais (O º e 90º). (b) Mas 114 do feixe passa quando um filtro a 45º for inserido. Existem prismas especiais que dividem um feixe luminoso em dois componentes de polarização ortogonais, sem absorver parte do feixe, como faz o filtro polarizador. Tais cristais "birrefringentes", como a calcita, desempenham um papel análogo ao imã de Stern-Gerlach para spins (Fig. XV.3). O que acontece quando dois feixes polarizados em direções ortogonais se superpõem? Suponha que eles tenham o mesmo comprimento de onda e uma defasagem de 77. Podemos escrever o estado quântico (normalizado) do feixe, após a superposição, da seguinte forma: (XV.2) Digamos que cada um dos componentes tem uma amplitude lfl. Se os componentes estiverem em fase ( 77 = 0), a onda resultante oscilará na direção 45° com amplitude ..Ji l/f. Se estiverem fora de fase (77 = n), a onda terá polarização linear na direção 135º. Se elas estiverem defasadas em 1A ou % de comprimento de onda (77 = n/2 110 Conceitos de Física Quântica ou 3n/2), a resultante será circularmente polarizada para direita ou para esquerda, com a mesma amplitude .J2 lfl obtida anteriormente. Neste caso, ver-se-ia o vetor polarização descrever um movimento circular. Para outras defasagens, a polarização resultante é chamada de "elíptica". oº (a) Figura XV.3. (a) Prisma birrefringente (como o de · Wollaston) divide um feixe de luz em componentes ortogonais. (b) É possível recombinar o feixe e obter a polarização inicial (Jamin, 1868). PRISMA DE WOLLASTON 90° (b) --~~~---~::::::_: __ _ 45° LENTE FINA Em todos os casos, a intensidade do feixe superposto é a mesma, sendo o dobro das intensidades dos componentes. Não há, portanto, superposição construtiva e destrutiva, no caso de ondas ortogonalmente polarizadas. Assim, não ocorrem f enômenos de interferência com componentes ortogonalmente polarizados! Ilustremos o que acabou de ser dito considerando um interferômetro de Mach-Zehnder no qual um filtro polarizador F 1, orientado a Oº, é colocado no caminho A e um F 2 , a 90º, em B (Fig. XV.4a). Neste caso, deixará de haver superposições construtiva e destrutiva. Se o feixe inicial não for polarizado, ou, para simplificar nosso raciocínio, estiver preparado com uma polarização linear a 45º, então 50% do feixe cairão no detector D1, 50% em D2• 111 Podemos neste caso considerar o fenômeno corpuscular? Bem, é verdade que com a montagem da Fig. XV.4a não podemos determinar trajetórias, mas poderíamos determiná-las, em princípio. Por exemplo, se substituíssemos cada detector por um prisma birrefringente (P 1, P 2) seguido de dois detectores (um para cada componente ortogonalmente polarizado saindo do prisma), poderíamos estabelecer as trajetórias (Fig. XV.4b). Este fenômeno é claramente corpuscular. Por analogia, o da Fig. XV.4a poderia também ser chamado de corpuscular: é assim que a interpretação da complementaridade o considera. LASER Figura XV.4. Duas versões de f enômeno corpuscular com polarizadores. 45" 112 Conceitos de Física Quântica Porém, lembremos que um fenômeno só se estabelece quando a medição se completa. Por exemplo, se, antes dos feixes polarizados passarem por S2, filtros polarizados F3 e F4 orientados a 45° forem inseridos nos caminhos dos componentes A e B (uma "escolha demorada", como o da seção III.3), as superposições construtiva e destrutiva voltam a ocorrer (Fig. XV .5a) ! Todos os fótons transmitidos erão detectados em D 1, nenhum em D2 ! Um experimento de escolha demorada mais radical pode ser feito inserindo-se os polarizadores não antes de S2 , mas depois (Fig. XV.5b)! Neste caso se F 3 e F 4 estiverem orientados a 45º, o fenômeno será ondulatório, de acordo com a interpretação da complementaridade. Cada fóton atingirá D1, nenhum D2! Se o componente A tiver um defasador que modifica progressivamente a fase relativa 1') , obteremo um padrão de interferência em cos2 77 (como o da Fig. II.4). É instrutivo analisar o experimentos das Figs. XV.5a e 5b usando a interpretação ondulatória. o primeiro, ocorre de fato superposições construtiva e destrutiva em S2 ; no segundo, não ocorre superposição destrutiva, mas o feixe orientado a 135º que ruma para D 2 acaba sendo totalmente bloqueado por F 4 (que está orientado a 45°). Pequenas variações ne: as montagens esclarecem diversos aspectos da complementaridade de arranjos experimentais. Por exemplo, considere a Fig. XV.5b, com F3 mantendo-se orientado a 45°, mas F4 posicionado a Oº. Um fóton que é detectado corresponde a um fenômeno ondulatório ou corpuscular? Isso depende de qual detector é acionado. Se o fóton em questão for detectado em D 1, teremos um fenômeno ondulatório; se for detectado em D2 , saberemos que ele veio pelo caminho A, e portanto o fenômeno é corpuscular! Assim, o que determina o tipo de fenômeno registrado não é somente o arranjo experimental macroscópico, mas também o comportamento do quantum detectado. 3. Fenômenos Intermediários entre Onda e Partícula Examinemos agora outra situação interessante. Se F 3 e F 4 estiverem orientados a 45°, o fenômeno é claramente ondulatório. Se F 3 estiver orientado a Oº, e F 4 a 90°, o fenômeno é claramente corpuscular. E se os polarizadores estiverem orientados em uma direção intermediária? Se F 3 estiver orientado a 22,5°, e F 4 a 112,5º (Fig. XV.6), o fenômeno é corpuscular ou ondulatório? Ora, ele é um f enômeno intermediário entre corpuscular e ondulatório! Podemos dizer que ele é 50% corpuscular e 50% ondulatório. Capítulo XV: Explorando a Complementaridade 113 LASER (a) Figura XV.5. Duas montagens de fen ômeno ondulatório com polarizadores. À primeira vista, a existência de fenômenos intermediários parece ser um problema para a interpretação de complementaridade, para a qual onda e partícula são "aspectos complementares, mas mutuamente excludentes, da descrição". Porém, mostra-se que para cada fenômeno intermediário existe um outro que lhe é complementar. Enfim, o fato de um fenômeno nunca exibir simultaneamente os dois aspectos de maneira total não implica que tais fenômenos não possam aparecer simultaneamente de maneira "parcial". 114 103 WOOTERS, W.K. & ZUREK, W.H. (1979): "Complementarity in the DoubleSlit Experiment: Quantum Non-Separability and a Quantitative Statement of Bohr's Principie", Physical Review D 19, 473-84. Reproduzido in WHEELER & ZUREK (1983), op. cit. (nota 6), pp. 443-54. Sobre fenômenos intermediários no interferômetro de Mach-Zehnder, ver: MITTELSTAEDT, P.; PRIEUR, A. & SCHIEDER, R. (1987): "Unsharp Particle-Wave Duality in a Photon SplitBeam Experiment", Foundations of Physics 17, 891 -903. Conceitos de Física Quântica Os primeiros a mostrar que há fenômenos intermediários foram Wootters & Zurek, mas somente em 1979! Eles consideraram um experimento de duas fendas com detectores especiais. No interferômetro de Mach-Zehnder para um fóton, sem polarizadores, também é possível obter fenômenos intermediários variando-se a • fl etor s2. 103 translllltancia do espelh o sellll-re • A • LASER Figura XV.6. Fenómeno intermediário entre onda e partícula. 4. Interferômetro com Feixes Divergentes Os experimentos descritos neste capítulo para o interferômetro de Mach-Zehnder puderam ser realizados em sala de aula, no regime clássico (ou seja, sem podermos discernir fótons individuais). Neste interferômetro didático, porém, o feixe é levemente divergente, e o alinhamento do interferômetro é bastante inexato. O resultado disto é que se observam padrões de interferência espacial (do tipo da Fig. I.1) na parede, colocada no lugar dos detectores D 1 e D2 da Fig. II.1. Isto difere da explicação dada na seção II.1, onde toda a luz rumava para D 1 e nenhuma para D 2 . Para entender a formação deste padrão, basta examinar a Fig. XV.7, na qual a luz é representada por feixes levemente divergentes e desalinhados de ondas circulares. Nas regiões indicadas por. setas ocorre superposição construtiva; entre elas, superposição destrutiva. Disto resulta um padrão espacial de franjas. Capítulo XV: Explorando a Complementaridade 1li Ililillillill)11)ll)l)))))))))) ----- Fig. XV. 7. No inteiferômetro de Mach-Zehnder com espelhos desalinhados, surgem padrões de interferência espaciais. Ignorou-se o componente que passa pelo último espelho e ruma para baixo. As setas indicam superposição destrutiva. 5. Visibilidade em Fenômenos Intermediários Os padrões de interferência que temos considerado até aqui envolvem regiões de escuridão total entre picos luminosos. Isto caracteriza uma situação de "visibilidade" máxima. Se Im for a intensidade de luz na região de luminosidade mínima de um padrão de interferência, e IM a intensidade da região de máximo, então define-se a visibilidade V do padrão da seguinte maneira: V Padrões com regiões totalmente escuras (Fig. XV.8a) têm visibilidade V= 1. Padrões sem contraste algum, como ocorre tipicamente em fenômenos corpusculares, têm visibilidade V=O (Fig. XV.8b). Qual é o tipo de padrão gerado em fenômenos intermediários? Justamente padrões com visibilidade entre O e 1, como o da Fig. XV.Se, para o qual V= Yz . Tal padrão pode ser imaginado como a soma de um padrão com V=O e de outro com V=l. 115 (XV.3) Conceitos de Física Quântica 116 lvW Íi----V=O- , ~ 1 ) X (a) X (b) X (e) Figura XV.8. Padrões de inteiferência com diferentes visibilidades V. Tomemos outro exemplo. Se dizemos que um fenômeno é 33% corpuscular, isto ignifica que seu padrão de interferência pode ser formado pela soma de um padrão com V=O, de intensidade 1/3, e de um padrão com V= l, de intensidade média 2/3. Para um fóton registrado em um certo detector, se tentarmos inferir sua trajetória por retrodição, teríamos que dizer algo do seguinte tipo: "Este fóton tem uma probabilidade de 33% de ter vindo pelo caminho A, e uma probabilidade de 67% de não ter vindo por um caminho bem definido". (Para o outro detector, diríamos algo semelhante com referência ao caminho B). O fenômeno complementar a este fenômeno seria um que fosse 6 % corpuscular e 33% ondulatório. · Capítulo XVI ~ OATOMO 1. Modelo Ondulatório do Átomo A imagem que temos de um átomo costuma ser bastante influenciada pelo modelo semi-clássico de Niels Bohr (1913). De acordo com este modelo, o elétron de um átomo pode se encontrar em diferentes níveis de energia, e a transição entre estes níveis é feita através de "saltos" abruptos e objetivos, independentemente da presença de um observador (Fig. XVI.1). . no curso d e M ecamca Quant1ca 104 , aprend emos que os Depms, níveis discretos de energia correspondem a autoestados sem posição bem definida (Fig. XVI.2). Como devemos pensar nos elétrons neste caso? Como uma nuvem homogênea, como se fosse um fluido A • A • n E( e V) . 00 . :--:m:r-, . - fftf! r· - ~ -:~11 2 104As figuras XVI.l a 3 foram adaptadas a partir de EISBERG, R. & RESNICK, R. ([1974] 1979): Física Quântica, Campus, Rio de Janeiro, pp. 144, 155, 324. o -0,85 :t.__ -1 ,51 ! ·--1---,-'::J:.1:d· __,_,... . ___ _ _ x:~~J_ J __ ____L _. ...... -. --·· ---------- -3,3 g -----------r1111 --··tfüt···1 :lllil ;;" i! 1 ili!; 1 illll ' liil ll -----------·---------------- -13 6 1 --'"'"''"' '-- -----"----·--···· Lyman 100 130 Balmer 200 300 500 Paschen 1000 ' 2000 l»( nm) Figura XVI. l. (Em cima: ) Diagrama com os níveis de energia do átomo de hidrogênio, conforme obtido por Bohr. (Embaixo:) Três séries de linhas espectrais do hidrogênio, obtidas através de medições espectroscópicas. A energia do fóton emitido e detectado (que aparece no espectro) é a diferença entre as energias dos níveis entre os quais pulou o elétron. 117 118 Conceitos de Física Quântica eletromagnético? Ou como partículas que ocupam a cada instante diferentes posições da nuvem de probabilidade? Veremos diferentes interpretações para isso na seção seguinte. 1 n=1 ,R=O,m,=O Figura XVl.2. Representação das ondas de probabilidade de um átomo de hidrogênio, cada qual correspondendo a um estado possível. O número quântico n designa auto-estados de energia; l designa auto-estados de momento angular total; me de componentes de momento angular na direção z. Cada um destes autoestados pode ser populado por dois elétrons, cada qual com um número quântico m, de spin diferente. Note que para um dado n e f,, a soma dos autoestados (para diferentes me) é esfericamente simétrica. n=2/ =1,mt=±1 n=3. C=O,m 1=0 n=3,f =2,m 1=0 Apesar de sabermos que os elétrons não se encontram em órbitas de raio bem definido, mantemos a idéia de que um átomo está sempre em um autoestado com energia bem definida, também chamados de "estados estacionários". O nome estado estacionário se justifica porque se um átomo isolado estiver neste estado, ele permanecerá no mesmo estado com o passar do tempo. Ora, como os fótons emitidos são detectados com energia bem definida, nada mais natural do que supor que o átomo, antes da medição, j á se encontrava Capítulo XVI: O Átomo 119 com energia bem definida. Certo? Errado! Na seção seguinte iremos mostrar que um átomo pode estar numa superposição de autoestados de energia. Em 1924, Louis de Broglie forneceu uma explicação para as órbitas discretizadas do modelo de Bohr, baseado na dualidade ondapartícula · (versão geral, seção I.1) que o próprio de Broglie estabelecera. O elétron no átomo de hidrogênio teria uma onda associada, e esta onda teria um comprimento de onda dado pela eq.(I.1): À = h/p. Tal comprimento de onda variaria com a raiz quadrada do raio da órbita do elétron: A oc J;. Pois bem, de Broglie mostrou que as órbitas para o átomo de hidrogênio são aquelas cujas circunferências correspondem a um número inteiro do comprimento de onda À do elétron. As órbitas corresponderiam assim às "ondas estacionárias" (no sentido usado na Física Ondulatória Clássica) em torno do núcleo (Fig. XVI.3). Para estes raios, o que ocorreria é que a onda associada ao elétron se move circularmente em torno do núcleo, e quando ele dá uma volta completa, os máximos se encontram em fase, de forma que há superposição construtiva. Nas regiões fora destas órbitas estacionárias, as ondas se superporiam em cada ponto às vezes construtivamente, às vezes destrutivamente, de maneira que, na média, elas se cancelariam. --- -- ---, ' ' 1 1 1 1 ,' '' ,' n=2 I ' ' '1 '1 , I n=3 ,' Eis então, grosso modo, a explicação ondulatória para os níveis discretos de energia do átomo, adotada pelas interpretações ondulatória e dualista realista. É possível construir um modelo mecânico para o que ocorre na eletrosfera do átomo de hidrogênio, a partir de uma série de aros metálicos concêntricos encostados uns nos outros, conforme a Fig. XVI.4. Neste caso, uma haste radial encostada nos aros vibraria verticalmente a uma freqüência Figura XVJ.3. Modelo ondulatório fo rnecido por L. de Broglie para o átomo de Bohr. Conceitos de Física Quântica 120 constante. O que se observaria é que apenas alguns aros vibrariam em ressonância com a haste, exibindo ondas estacionárias de amplitude razoável, enquanto que os outros aros vibrariam complicadamente de maneira não estacionária e sem uma amplitude apreciável. Figura XVl.4. Modelo mecânico da idéia de de Broglie. Podemos escrever um autoestado associado à energia E e ao momento angular m da seguinte forma: (XVI.1) A expressão exata para o vetor 11/1E.,, ( r)) é obtida resolvendo-se a equação de Schrõdinger para o potencial coulombiano do átomo de hidrogênio, acrescido do potencial do campo magnético externo (ver Fig. XVI.2). A dependência temporal pôde ser fatorada ao resolver a equação de Schrõdinger porque o potencial é independente do tempo. O termo temporal pode ser interpretado como uma oscilação ondulatória de freqüência (angular) m=Eltz, associado ao comprimento de onda de de Broglie (Fig. XVI.3). De acordo com a interpretação dualista realista, que se desenvolveu a partir dessas idéias, podemos retratar uma partícula como sempre tendo uma oscilação associada a ela. Capítulo XVI: O Átomo LI 2. A Energia do Átomo é sempre Discreta? Como é que se mede a energia de um átomo? Ora, pega-se um gás, excitam-se suas moléculas com um laser sintonizado na energia desejada e, quando eles decaírem, os fótons emitidos indicarão em qual estado excitado os átomos se encontravam. Mas este experimento é meio bobo, pois a energia que medimos nos fótons é igual à do laser! Consideremos então a seguinte situação mais interessante. Um campo magnético é colocado em torno de átomos de bário emitidos em um feixe. O estado fundamental dos átomos é 6s (n = 6, JJ, = O, me= O). Devido ao campo, o próximo nível, 6p (com JJ, = 1), passa a ser dividido em três linhas de energia levemente diferentes, cada qual associada a um momento angular diferente (nz =me= -1, O, 1). Este é o efeito Zeeman, descoberto em 1896. O pulso de laser tem uma duração muito curta (10- 12 s), de forma que sua energia é "mal definida" (devido ao princípio de incerteza para energia e tempo, que veremos em capítulo posterior), correspondendo a uma largura de banda mil vezes maior do que a diferença de energia entre os níveis atômicos 6p. Desta forma, o pulso de laser linearmente polarizado acaba populando dois dos níveis excitados, correspondentes a m = -1 em=+ 1 (Fig. XVI.5). O átomo encontra-se então em uma superposição de estados com energia bem definida: (XVI.2) (=1 } L\E"" 4.1 o-s e V ::,.E = 0,36 e V C=O m,= O Ba Figura XVI.5. Níveis excitados do átomo de bário por um pulso curto de laser. Conceitos de Física Quântica 122 Mas, mas .... Se medirmos a energia de um átomo, o que observamos? Bem, em primeiro lugar, vamos explicar como é que se mede a energia do átomo. Se o átomo está em um estado com momento angular m = + 1, e ele decair para um estado fundamental com m = O, o fóton emitido terá polarização circular em um certo sentido (digamos, anti-horário). Se estiver com m = -1 , resultará num fóton com polarização circular no sentido horário: Emite fóton circularmente polarizado no sentido antihorário: Estado inicial llf/E1 ,111 =-I ) 1<fJ+) Emite fóton circularmente polari- l<fJ-) zado no sentido horário: constante. O que se observaria é que apenas alguns aros vibrariam em ressonância com a haste, exibindo ondas estacionárias de amplitude razoável, enquanto que os outros aros vibrariam complicadamente de maneira não estacionária e sem uma amplitude apreciável. Pela linearidade das evoluções unitárias, o estado da eq.(XVI.2) resulta em um fóton no seguinte estado: (XVI.3) Medimos agora o observável polarização circular, utilizando um analisador apropriado que separa os componentes l<P+) e lcp_), sendo que cada componente incide em um detector. A probabilidade de obter o autovalor correspondente ao primeiro termo é lad 2 , e do 2 segundo, la2 1. Ou seja, medindo as intensidades da luz que incidem em cada detector, obtemos informação sobre o estado excitado atômico (eq. XVI.1 ). ote que não conseguimos determinar por completo este estado, pois a 1 e a 2 são coeficientes complexos (falta determinar a fase relativa). Para um único fóton detectado, se obtivermos o autovalor correspondente a l<P+), podemos fazer uma inferência para o passado (a retrodição que examinamos na seção XI.7) e concluir que o átomo tinha energia bem definida E1; se o fóton cair no detector correspondente a lcp_), concluímos que a energia era E 2 . Vemos então em que sentido podemos dizer que um átomo está sempre com energia bem definida. De acordo com a interpretação da complementaridade (e também a interpretação corpuscular), que aceita a retrodição, faz sentido dizer que o átomo tem energia bem definida, após medimos sua energia. Para a interpretação ondulatória não faz sentido dizer isso, pois ele estava 123 Capítulo XVI: O Átomo no estado superposto, sem energia bem definida, descrito pela eq.(XVI.2), e nenhuma escolha do observador vai mudar esta realidade passada. Muito bem. Vimos então que se medirmos a energia do átomo, de acordo com a interpretação da complementaridade, podemos dizer, após completada a medição, que o átomo tinha energia bem definida antes da medição. Mas não poderíamos medirum outro observável, um que não fosse "compatível" com a energia? Sim, podemos! Basta substituir o analisador de polarizações circulares por um analisador de polarização linear, que separe componentes 1<fJo) e 1cp90 ) , linearmente polarizados a Oº e a 90º. A relação entre esses estados é a seguinte: lcp+) = }i-l<JJo) + Jzl(/)90), 1cp_) = Ji-1 (/)o) - Jz 1(/)90) · (XVI.4) É só fazer as contas, e mostrar que o estado da luz emitida (eq.XVI.3) é: (XVI.5) Agora aplicamos o algoritmo estatístico (seções V.3 e X.2), e vemos que a probabilidade de um fóton ser detectado com polarização Oº (o módulo quadrado do primeiro coeficiente da equação acima) oscila com o tempo: (XVI.6) onde </J12 é a fase de a 1 a2 • • Esta oscilação é conhecida como batimento quântico' 05 (Fig. XVI.6). É plausível chamar este fenômeno de ondulatório (devido aos batimentos), enquanto que o anterior é análogo a um corpuscular, podendo talvez ser chamado de "fenômeno energético", pois nele sabemos de qual nível veio o fóton . O que é certo, enfim (nomes a parte), é que esses dois fenômenos são complementares: no primeiro, não há como obter batimentos; no segundo, não podemos dizer que o fóton foi emitido do nível E 1, nem de E2 . Hellmuth et al. (1987) realizaram um experimento de escolha demorada entre estes dois arranjos. 105uma introdução aos batimentos quânticos é dada por BLUM (1981), op. cit. (nota 27), pp. 46-7, 133-8. Os dados experimentais mencionados foram retirados de HELLMUTH et al. (1987), op. cit. (nota 11 ), enquanto que a fi gura é da p. 649 de D ODD, J.N. & SERIES, G.W. (c. 1976), "Time-Resolved Fluo- rescence Spectroscopy'', pp. 639-77. Conceitos de Física Quântica 124 6000 . :\ 3000··· 2000 .. 1000·· \ Número de Contagens por janela temporal de aprox. 0,04 µs. / \ \.,{ ~· Exper.imental ' ~~ Figura XVI.6. Batimentos quânticos (modulação de fluorescência) do estado 5p do cádmio. Os pontos fornecem as contagens medidas após um pulso de 200 ns, em um campo magnético de 34,5 µT. Por fim, a última pergunta desta seção: se um fóton detectado corresponder a Oº, qual é o estado inferido por retrodição? Certamente não é um autoestado de energia, mas a segunte superposição destes: .Jz (llJ!E, ,m=+tJ + llJ!E 1 ,m=-tJ )· Será que o observável correspondente a este autoestado (observável este que é incompatível com a energia) tem nome? 3. O Átomo segundo as Diferentes Interpretações A discussão que travamos na seção anterior é qualitativamente igual à que tivemos para o interferômetro de Mach-Zehnder e para o aparelho de Stern-Gerlach. Mesmo assim, nossa intuição a respeito das propriedades quânticas tende a mudar neste caso. Imagine que o estado da eq.(XVI.2) corresponda a um átomo na estrela Sírio. Será possível que a escolha do observador possa determinar se aquele átomo longínquo tinha energia bem definida ou não? Vejamos a opinião de Mário Bunge, que se alia a uma visão que chamamos de interpretação corpuscular: "As medições espectroscópicas que nos permitem comprovar a fórmula para os níveis discretos de energia do átomo de hidrogênio não exercem a menor influência sobre os átomos que emitem a luz que se está analisando. Por exemplo, os átomos de hidrogênio irradiam no sol sem o nosso consentimento e sem serem afetados pelos espectrógrafos terrestres. O observador se limita a analisar essa Capítulo XVI: O Átomo luz e, portanto, suas operações não influem nos processos de emissão." 106 Ele está certo? Ora, sabemos que isto depende da interpretação adotada. Vejamos o que cada uma diz sobre: (i) se o átomo está sempre num nível discreto de energia; (ii) se o observador pode afetar átomos à distância. (1) Interpretação Ondulatória. Se o estado do átomo for um autoestado de energia, como a eq.(XVI.1), então ele obviamente tem energia bem definida, mas se o estado for uma superposição do tipo da eq.(XVl.2), então ele não tem energia bem definida, mesmo que façamos uma medição desta energia. Segundo a versão ingênua desta interpretação, que estamos adotando no curso, a decisão do cientista com relação ao que medir determina qual o estado final que se segue ao colapso instantâneo no estado do átomo em Sírio. Porém, o passado não muda com as ações no presente. (2) Interpretação Corpuscular. Há uma tendência, nesta visão, de conceber que o átomo está sempre em um nível discreto de energia. Esta visão, porém, tem dificuldade de explicar os batimentos quânticos. Autores como Popper, Bunge e Ballentine (ver citação acima) se esforçam para mostrar que o observador não influencia de maneira essencial os objetos quânticos, ao contrário do que dizem, de uma maneira ou de outra, as outras interpretações. (3) Interpretação Dualista Realista. Mesmo para o estado superposto da eq.(XVl.2), o corpúsculo associado à onda tem a cada instante uma energia bem definida, só que seu valor oscila com o passar do tempo. Não há dificuldades em explicar os batimentos quânticos, ou o experimento de escolha demorada. A decisão do observador pode alterar instantaneamente a onda associada de um átomo na estrela Sírio, mas, conforme veremos com o teorema de Bell, isto não permite que se transmitam sinais instantâneos. Um fato curioso: na teoria de David Bohm, para níveis atômicos de tipo s, o elétron ficaria parado em relação ao núcleo, sem girar em torno dele. Isto é contra-intuitivo, sendo considerado por muitos como um defeito da interpretação. (4) Interpretação da Complementaridade. Conforme mencionamos na seção anterior, se medirmos a energia do átomo (qualquer que seja seu estado excitado), podemos sempre dizer, após a medição, que o átomo se encontrava desde o início com energia bem definida. Isto se enquadra bem com a visão (2). Porém, se medirmos o observável cujo autoestado é a superposição da eq.(Xl.6), não podemos dizer que o átomo se encontrava ou se encontra em um nível de energia bem definido. 125 106BUNGE, (1 983): M. Controversias en Fisica, Tecnos, Madri, p. 164. 126 l07Tal afirmação, porém, é feita dentro de um certo contexto filosófico. , Ver HEISENBERG ([1958] 1981), op. cit. (nota 14), p. 113 (final do cap. X); e HEISENBERG ([1969] 1996), op. cit. (nota 93), pp. 22, 145. 107a CASTILHO, C.M.C. (2003), "Quando e como o Homem 'viu' o Átomo", Ciência Hoje 33 (196), 30-7. A Fig. XVI.7 foi tirada deste artigo. Conceitos de Física Quântica 4. É Possível Ver um Átomo? Para finalizar esta discussão sobre como interpretar o átomo, consideremos a questão de se é possível "ver" ou "fotografar" um átomo. Há uma afirmação associada a Heisenberg 107 segundo a qual um átomo não seria diretamente observável. No entanto, em 1955, o alemão Erwin Müller, em colaboração com seu aluno indiano Kanwar Bahadur, na Pennsylvania State College, conseguiram fotografar átomos individuais de níquel e zircônio, usando um "microscópio iônico de campo" (Fig. XVI.7). Depois disso, só se obtiveram outras fotografias em 1980, com a "microscopia eletrônica de alta resolução", e em 1984, com a "microscopia de tunelamento e varredura". 'º7ª Figura XVI. 7. Fotografia final obtida por Müller após remoção sucessiva de átomos individuais numa amostra de níquel-zircônio. O ponto central corresponde a um único átomo. l08DEHMELT, H. (1990): "Experiments with an Isolated Subatomic Partiele at Rest", Reviews of Modem Physics 62, 525-30. Figura XV!.8. Um "curral quântico", obtido usando-se um microscópio de tunelamento e varredura. O curral consiste de 48 átomos de ferro adsorvidos numa superfície de cobre de alta qualidade. As ondas estacionárias no interior do curral correspondem à densidade de estados eletrônicos na superfície do cobre, onde se forma um gás de elétrons bi-dimensional. Em 1990, Hans Dehmelt isolou um único íon de bário em uma armadilha magnética (dando inclusive o nome de Astrid para este átomo!), iluminando-o com laser de tal forma que um ponto de luz pode ser visto claramente a olho nu (correspondendo a milhões de excitações e decaimentos de um mesmo nível eletrônico). 108 Capítulo XVI: O Átomo Mais recentemente, a técnica de microscopia de tunelamento e varredura permitiu construir imagens de átomos adsorvidos em uma superfície (Fig. XVI.8), na qual se identificam ondas estacionárias correspondentes à densidade de estados eletrônicos na superfície de um metal. 109 Podemos mencionar também a afirmação de que os orbitais eletrônicos de átomos em um cristal de óxido de cobre teriam sido "diretamente observados", a partir de técnicas simultâneas de difração de elétrons e de raio X (Fig. XVI.9). 110 Esta afirmação foi criticada por diversos autores, pois o que se estaria observando, de forma bastante indireta, seria a densidade eletrônica e não os orbitais (funções de onda). 127 109CROMMIE, M.F.; L UTZ, C.P. & EIGLER, D.M. ( 1993): "Confinement of Electrons to Quantum C01rnls on a Metal Surface", Science 262, 21820. Ver também: COLLINS, G.P. (1993): "STM Rounds Up Electron Waves at the QM Corra!", Physics Today 46(ll), 17-19. A Fig. XVl.8 foi fornecida pela Almaden Research Center, IBM, Califórnia. Figura XVl.9. Mapa de densidade de carga eletrónica em cuprita (Cu20), mostrando a ligação covalente entre átomos de cobre e oxigênio (hibridização de orbitais s-d/). Nota-se uma região maior (em forma de halteres) rodeada por três pares de pétalas, em tomo do núcleo de cobre. A imagem foi formada a partir de dados de difração de elétrons (sensíveis às ligações eletrónicas do cristal) em ângulos pequenos e de raios X (que difratam dos núcleos) em ângulos maiores. 5. Efeito Zenão Quântico Mencionamos na seção XVI.1 que se um sistema estiver isolado do ambiente, e se ele se encontrar em um auto-estado de energia, então ele permanecerá indefinidamente neste estado (justificando o uso do termo "estado estacionário"). Porém, vimos na seção VII. l que a equação de Schrõdinger também se aplica para um sistema que está fechado , ou seja, um sistema que sofre influência do ambiente, através de campos externos, mas cujo estado não afeta as fontes deste campo externo (não afeta a forma da função que descreve esse campo). llOHUMPHREYS, C.J. (1999), Nature 401 , 21 -22. O artigo original é: Zuo, J.M.; KIM, M.; O'KEEFFE, M. & SPENCE, J.C.H. (1999): "Direct Observation of d Roles and Cu-Cu Bonding in Cu20", Nature 401, 49-52. Uma forte crítica a esta afirmação está Conceitos de Física Quântica 128 em: SCERRI, E. (2000): "Have Orbitais Really Been Observed?", Journal of Chemical Education 77, 1492-4. A Fig. XVl.9 foi fornecida pela Arizona State University, Tempe. Um exemplo de um sistema fechado (mas não isolado) é um átomo no qual incide um campo eletromagnético (um feixe de luz ou de radio-freqüência). Neste caso, um auto-estado de energia do átomo não é mais estacionário, pois sabemos (usando uma terminologia corpuscular simplista) que o átomo pode absorver um fóton e saltar para outro nível energético. Isso pode ser expresso de maneira mais precisa dizendo que, sob o efeito de um campo externo ligado no instante t=O, um certo auto-estado de energia llflr ) no instante t=O passa a ser descrito pelo seguinte vetor de estado: (XVI.7) onde a é um coeficiente bem pequeno (a rigor, deveríamos introduzir um coeficiente levemente menor do que 1 multiplicando llflr) para deixar o estado devidamente normaliz.ado). Como interpretar o estado da eq.(XVI.7)? Uma coisa que esta equação diz é que se nós fizermos uma medição de energia do átomo no instante t, a probabilidade de encontramos o átomo com o autovalor E2 correspondente a llfl2 ) é: Probi'l'Cl))(E 2 ) = (a t 2 ) 2 • Esta probabilidade aumenta com o tempo, indicando que quanto mais tempo deixarmos o sistema isoladinho antes de o observarmos, maior será a probabilidade de o encontrarmos com energia E2 • Digamos então que, após 1 segundo, a probabilidade de medirmos uma transição para llfl2 ) seja a 2 . O que aconteceria com esta probabilidade (no instante t=ls) se, a cada intervalo de 0,1 segundos antes desta medição final, tivéssemos feito uma observação da energia do átomo? Bem, no instante t = 0,1 s, a probabilidade de medirmos E2 é de apenas 0,0 l ·a2 , segundo a eq.(XVI.7). Após esta medição, qual é o estado do sistema? Supondo que o resultado da medição foi E 1 (cuja probabilidade foi bem próxima de 1), aplicamos o postulado da projeção (seções V.4 e X.2) e concluímos que o estado final é llflr). A eq.(XVI.7) volta a vàler a partir deste instante, e após mais um intervalo de 0,1 s, a probabilidade de medirmos E2 é novamente 0,0 l ·a2 • Após termos feito dez medições de energia em intervalos de O, 1 s, qual é a probabilidade de observarmos pelo menos uma transição para llfl2 ) ? Ele será aproximadamente 10 · O,Ol ·a 2 = O,l·a2 . Ora, esta probabilidade é dez vezes menor do que se tivéssemos deixado Capítulo XVI: O Átomo o sistema fechadinho, sem ser observado, por 1 segundo inteiro, e só então medido sua energia! Este é o paradoxo de Zenão quântico. O mero ato da observação afeta a probabilidade de transição de um átomo. No limite de uma observação contínua, a transição seria completamente inibida! Em outras palavras: se eu deixar o átomo fechadinho, ele tem uma probabilidade razoável de fazer uma transição, mas se eu o olhar continuamente, ele não faz a transição! Os átomos no mundo ~ . . , .d 111 quant1co senam tlrm os.1 Aqueles defensores da interpretação dos coletivos estatísticos que não admitem que o observador possa afetar o estado do objeto observado (Bunge, Popper, Ballentine) atacaram a veracidade do efeito Zenão quântico, mas ele acabou sendo observado em laboratório por Itano et al., em 1990. A chave para entender este aparente paradoxo é que a "observação" requerida perturba consideravelmente o sistema. Isto está ilustrado na Fig. XVI.10, relativa ao experimento mencionado. Um campo externo de radiofrequência introduz uma probabilidade de transição hiperfina llfli) ---7 llflz) em um íon de berílio, preso em uma armadilha óptica e resfriado a 0,3 K através de "laser cooling". A "observação" da energia do átomo, neste caso, consistiu na emissão de um pulso de laser sintonizado de tal forma que se o sistema estiver no estado llfli) , ele absorve um fóton e sofre uma transição para um terceiro estado, llfl3 ) , sendo que em seguida ocorre um decaimento com a emissão de um fóton (em qualquer direção) que pode ser detectado. Porém, se o sistema já tiver feito a transição para jlf!1 ), então o pulso de laser não é absorvido, nenhum fóton é emitido, e temos assim uma medição de resultado nulo (seção VIII.4) da energia do sistema. Neste experimento, verificou-se que a taxa de transição de fato diminui com o número de pulsos de laser ("observações") emitidos por unidade de tempo, confirmando o efeito Zenão quântico. 129 11 lo nome do efeito é uma homenagem ao filósofo présocrático Zenão da Eléia, que formulou vários paradoxos do movimento. O nome "watched-pot effect" (efeito da panela observada) também foi sugerido, pois às vezes uma panela fechada está fervendo, mas quando tiramos a tampa para observála, ela pára de ferver (pois diminuiu a pressão do vapor) . Existe também o efeito do cão de guarda ("watch-dog effect"), mas este se aplica a uma inibição que ocorre na interação (unitária) entre objeto e aparelho, sem a aplicação do postulado da projeção. O efeito Zenão quântico foi previsto na década de 60, mas ele só foi explorado a partir do trabalho de MISRA, B. & SUDARS HAN, E.C.G. (1976), "The Zeno's Paradox in Quantum Theory", Journal of Mathematical Physics 18, 756-63. 130 Conceitos de Física Quântica Figura XVI.10. Níveis de energia envolvidos no experimento do efeito Zenão quântico. TRANSIÇÃO INIBIDA ESTADO INSTÁVEL Capítulo XVII ,, EXPLORANDO ÁTOMOS E CAMPOS 1. Férmions e Bósons Até aqui investigamos diversas propriedades de objetos quânticos que se aplicam igualmente para fótons, elétrons, nêutrons etc. No entanto, existe uma distinção fundamental entre dois tipos de objetos: férmions e bósons. A propriedade quântica que os distingue é seu momento angular intrínseco, ou spin. Desde a Teoria Quântica Velha, sabe-se que o momento angular de partículas girando em torno de outras só pode assumir valores que são múltiplos inteiros da constante de Planck h. No entanto, mesmo um elétron parado possui um momento angular (o spin, que o faz se comportar como um minúsculo imã), só que, no caso do elétron, este spin é quantizado em múltiplos semiinteiros de h: +1i, h , fh, 2h ... Férmions (como elétrons, nêutrons, e mesmo os quarks que compõem nêutrons, prótons e mésons) são caracterizados por spin semi-inteiro, ao passo que bósons (como o fóton e outras partículas responsáveis por interações, como o glúon que é responsável pela interação entre quarks) são caracterizados por spin inteiro (ou seja, múltiplos inteiros de h). Outra diferença entre férmions e bósons está em suas propriedades estatísticas. Férmions seguem o princípio de exclusão de Pauli (1924), que diz que dois férmions não podem ocupar simultaneamente o mesmo estado quântico. Em um átomo, isto resLringe o número de elétrons que pode ocupar cada auto-estado de energia, levando às propriedades periódicas dos elementos químicos. Já os bósons não seguem esta restrição, de forma que um grande número de fótons pode ocupar um mesmo estado quântico. Há teoremas que estabelecem a conexão entre spin e estatística, o primeiro sendo formulado por Pauli (1940). Os termos "férmion" e "bóson" são uma homenagem aos cientistas que estabeleceram pela primeira vez as leis de distribuição estatística de partículas quânticas. Na Mecânica Estatística Clássica, Boltzmann havia derivado uma função descrevendo a distribuição de energia de um grande número de partículas em um sistema fechado e em equilíbrio térmico a uma temperatura T, distribuição esta resultante das trocas de energia por colisão entre as partículas. O número médio de partículas com energia E descresce exponencialmente com o aumento do valor da energia: n Boliz (E) = 1 I [A ·ex p(E 1 k 8 T)], onde kB é a constante de Boltzmann 131 Conceitos de Física Quântica 132 e a constante A depende do número total de partículas. Na Mecânica Quântica, a fórmula equivalente é: (XVII.1) l 12Há diversos livros-texto que trazem uma introdução à estatística quântica, como EISBERG & RESNICK (1979), op. cit. (nota 104), cap. 11. A Fig. XIV.l é baseada na figura da pg. 273 de LEGGETI, A. (1989): "Low Temperature Physics, Superconductivity and Superfluidity", em DAVIES, P.: The New Physics, Cambridge U. Press, pp. 268-88. 1 BE nrn ( E ) = - - - - - - A ·exp ( E / k 1J ) ±l onde a estatística de Bo e-Einstein é dada pelo sinal "+" e a de Fermi-Dirac pelo inal "- "(ver Fig. XVII.1). 112 2- -k8 T >-------; clássico o TI 2(/) 1-·· - (a) Q) oa. (/) 2- C'il férmions 3 ~ t C'il Fig. XVII. l. Número médio de partículas por estado para diferentes estatísticas. Note que para férmions há no máximo uma partícula por estado, e que para bósons há mais partículas nos estados de energia mais baixa do que no caso clássico (o que permitirá o fenômeno de condensação de Base). l 13citação e comentários tirados de KASTLER, A. (1983), "On the Historical Development of the lndistinguishability Concept for Microparticles", in v AN DER MERWE, A. (org.): Old and New Questions in Physics, Cosmology, Philosophy and Theoretical Biology, Plenum, Nova Iorque, pp. 607-23. % a. {b) Q) <J o 'õ ·Q) E 2- º'z 1 - bósons (e) Energia do estado 2. Indistinguibilidade Em 1926, Dirac fundamentou as estatísticas quânticas na propriedade de indistinguibilidade das partículas quânticas. Analisando um sistema de dois elétrons, um dos quais está no estado m e o outro no estado n, ele escreveu: "Surge a questão de se os dois estados (m n) e (n m), que são fisicamente indistinguíveis pois diferem apenas pela troca dos dois elétrons, devem ser contados como dois estados diferentes ou apenas como um estado [... ] As duas transições mn ----7 m 'n' e mn ----7 n 'm' são fisicamente indistinguíveis [... ] Portanto, para manter a característica essencial da teoria, de que ela nos permita calcular apenas grandezas observáveis, devemos adotar a segunda alternativa, de acordo com a qual (m n) e (n m) são um único estado." 113 Capítulo XVII: Explorando Átomos e Campos Ele então mostrou como satisfazer isso "simetrização" da função de onda das duas partículas: através lf/,,,,, = _ff (lfl,, (1) lf/,, (2) ± lf/,, (1) lf/,,, (2)) , da (XVII.2) onde novamente o sinal"+" se refere a bósons (simetrização) o sinal "-" a férmions (anti-simetrização). No primeiro caso a troca das duas partículas não altera o valor de lf/111,,, ao passo que no segundo caso ela altera o sinal de lfl,,11,, o que não gera conseqüências observacionais, já que o que é observável é o módulo quadrado da função de onda. A afirmação de que partículas idênticas (ou seja, tendo mesma massa, carga etc.) devem ser descritas por estados simétricos (no caso de bósons) ou anti-simétricos (no caos de férmions) constitui um postulado adicional P7, a ser adicionado à lista da seção X.2.114 133 ~ O artigo original é DIRAC, P.A.M. (1926), "On the Theory of Quantum Mechanics", Proceedings of the Royal Society (London) 112, 661-77. comentários de l 14ver D'ESPAGNAT (1976), op. cit. (nota 48), pp. 27-8. 3. Teoria Quântica de Campo Para continuar a comparação entre bósons e férmions, é interessante apresentar sucintamente a descrição quântica de campos. Na Mecânica Clássica, as leis de um sistema contínuo como uma corda vibrante ou uma membrana podem ser derivadas supondo que o sistema consiste de um grande número de osciladores harmônicos (molinhas) acoplados. Quando Dirac, em 1927, atacou o problema de como a Mecânica Quântica descreveria um campo contínuo, o que ele precisou fazer foi considerar que os osciladores harmônicos que constituem o campo são quantizados 11 5 • No caso de um campo eletromagnético, é preciso considerar todas as freqüências v de vibração possíveis. Para cada um destes "modos" com freqüência bem definida associa-se um oscilador quantizado (cada modo está assim associado a uma onda plana com momento bem definido mas sem uma localização espacial bem definida). Para um certo modo k = 2nvlc, um auto-estado de energia do oscilador harmônico com autovalor E11 = V2 (n+l)hv é associado à existência de n quanta do campo. Suponhamos que numa certa região do espaço existam exatamente n fótons no modo k. Tal estado (chamado de "estado de . Se definirmos um Fock") pode ser escrito da seguinte forma: 1 ln) operador de número de fótons N k , naturalmente teremos a equação de autovalores: seguinte forma: Nk n) k = n· n) k • 1 I É possível exprimir Nk da l 15ver por exemplo MESSIAH, A. (1965), Quantum Mechanics. Amsterdã: North-Holland, vol. 2, pp. 959-79, 1029-37. Os primeiros a quantizar os osciladores do campo parecem ter sido Ehrenfest (1906) e Debye (1910), ver MILLER, A.I. (1994), Early Quantum Electrodynamics: A Source Book, Cambridge University Press, p. 5. Conceitos de Física Quântica 134 (XVII.3) onde âk é chamado operador de destruição, dado que âk ln )k = F; ·ln - l)k, ou seja, sua aplicação resulta na retirada de um fóton do campo, enquanto âk' é o operador de criação, pois âkt ln)k =~ · l n +l)k . No entanto, da mesma maneira que é possível colocar um oscilador harmónico em uma superposição de auto-estados de energia (de N k ), assim também é possível que o campo eletromagnético não tenha um número bem definido de fótons, mas que esteja em uma superposição de estados de Fock: (XVII.4) Notemos que o estado da eq.(XVII.4) é diferente dos estados vistos até aqui. Usualmente, associamos um "ket" a cada partícula, indicando sua posição: j IJl(r )). Se quisermos representar três 116ver, por exemplo, JAUCH (1968), op. cit. (nota 49), pp. 278-87. partículas, introduzimos um espaço de Hilbert para cada partícula (conforme o postulado P l.2 da seção X.2), e escrevemos o estado como um produto tensorial: j IJI, ( r;)) ® l1J12 ( r; ))® l1J13 ( ~ )) , que deve ser ainda simetrizado (eq. XVII.2) no caso de partículas idênticas. Para elétrons, conforme veremos, esta representação é bastante adequada, mas para fótons o número de quanta pode ser indefinido. Assim, introduz-se 116 a chamada "2ª quantização", "quantização do campo" ou "representação de número de ocupação", exemplificada pelo estado 1 <t>)k da eq.(XVII.4) . Se considerássemos três modos diferentes, o estado sena escrito como: l<t>1)k, ®l<t>2\, ®l<t>3)k, . l 17ver MILLER (1994), op. cit. (nota 115), p. 47. (XVII.5) Notemos que para n = O o oscilador harmónico tem uma "energia de ponto zero" igual a 1h h v. No caso do campo, tal estado sem quanta é chamado de vácuo, e iremos examiná-lo brevemente na seção XVII.5. Já em 1932, Pauli percebeu que uma determinação precisa do número de fótons impede uma determinação precisa da fase do campo eletromagnético. 117 Isso pode ser expresso através de uma relação de incerteza envolvendo o número nk de quanta e a fase (/Jk do campo associado: Capítulo XVII: Explorando Átomos e Campos Em termos de operadores, é possível escrever uma equação análoga a esta utilizando a eq.(XVII.3) e uma definição para o operador de fase. Há certos problemas para se definir um tal operador auto-adjunto (algo semelhante ao que foi visto na seção XII.4), mas um bom candidato é o operador proposto por Susskind 112 118 &Glogower(1964): rJ<p, =exp[iq\J= (âkâ/ t âk . Esta relação de incerteza é bastante significativa, pois ela indica que a concepção clássica de onda não se aplica no caso quântico. Classicamente, uma onda monocromática é concebida como tendo uma fase e uma amplitude conjuntamente bem definidas. No entanto, a eq.(XVII.5) indica que se um campo tiver uma amplitude bem definida, ou seja, n bem definido (pois n exprime a intensidade do campo, que é o módulo quadrado da amplitude), ele necessariamente terá uma fase mal definida, c vice-versa! Voltaremos a este ponto na seção XVII.6. 4. Ondas de Luz vs. Ondas de Elétrons Ligado às propriedades vistas nas seções anteriores, há uma distinção adicional a ser feita entre bósons e férrnions, que exemplificaremos como uma distinção entre fótons e elétrons. Um sistema fechado contendo um certo número n de elétrons tende a conservar este número. Isto pode ser entendido como uma conservação de carga do sistema, ou como conservação no "número fermiônico". Com bastante energia eletromagnética, seria possível criar pares elétrons-pósitrons (o que não violaria os princípios de conservação mencionados), mas se desprezarmos este limite relativístico, o número de elétrons se conserva em um sistema fechado. Desta forma, de acordo com a relação de incerteza da eq.(XVIl.5), como o campo tem um número bem definido de quanta (8n = 0), a fase do campo material de elétrons é totalmente indeterminada. Já para fótons a situação é diferente, como mencionamos acima. Um sistema fechado de fótons é freqüentemente descrito como tendo um número indefinido de fótons (eq. XVII.4). Podemos agora considerar uma quarta diferença entre fótons e elétrons 119 • Um campo fotônico envolvendo muitos quanta pode ter uma incerteza f:..cp pequena na fase, acarretando um f:..n razoavelmente grande (de acordo com a eq. XVII.5). Porém, como há muitos fótons, a flutuação f:..n/n é pequena, o que significa que a flutuação na intensidade do campo é pequena. Assim, tal campo pode ser representado em boa aproximação como uma onda clássica, que possui fase e amplitude (cujo quadrado é a intensidade) ll8WALLS, D.F. & MILBURN, G.J. (1994), Quantum Optics. Berlim: Springer, pp. 23-6. Para uma discussão dos problemas filosóficos envolvidos na Teoria Quântica de Campo, ver REDHEAD, M. (1988), "A Philosopher Looks at Quantum Field Theory", in BROWN, H.R. & HARRÉ, R. (orgs.), Philosophical Foundations of Quantum Field Theory. Oxford University Press, pp. 9-23. O volume todo vale ser consultado. 119pEIERLS, R.E. (1955): "Final Remarks. The New Particles", pp. 470-7, in PEIERLS, R.E.; SALAM, A.; MATTHEWS, · P.T. & FELDMAN, G., "A Survey of Field Theory", Reports on Progress in Physics 18, 42377. 136 Conceitos de Física Quântica bem definidas. Para elétrons, porém, não há um limite no qual o sistema possa ser descrito por uma onda clássica. Isso ocorre porque a estatística de Fermi-Dirac só permite que n=l elétron ocupe cada modo k (eq. XVII.4) (modo este que também inclui a componente de spin). Para ter uma fase bem definida, l!in/n seria grande, impossibilitando a representação por uma onda de amplitude bem definida. 5. O Vácuo 120Para uma história detalhada deste episódio, ver SCHWEBER, S.S. (1994), QED and the Men who made it: Dyson, Feynman, Schwinger, and Tomonaga. Princeton U. Press. 121CASIMIR, H.B.G. (1948), "On the Attraction between Two Perfectly Conducting Plates", Proceedings, Koninklijke Nederlandse Akademie van Wetenschappen 51, 7935. Uma verificação recente do efeito está em: LAMOREAUX, S.K. (1997), "Demonstration of the Casimir Force in the 0_6 to 6 µm Range", Physical Review Letters 78, 5-8. Mencionamos na seção XVI.1 que se um sistema isolado estiver em um estado estacionário, ele irá permanecer neste estado até que uma interação com outro sistema o retire do estado original. O exemplo que examinamos de estado estacionário é um estado atômico com energia bem definida (número quântico n fixo). No entanto, sabemos que átomos em estados excitados decaem, emitindo fótons. O que significa isso? O fato de átomos emitirem fótons espontaneamente indica que eles não estão completamente isolados! Mas então, eles estão interagindo com que sistema? Com o vácuo! O "vácuo eletromagnético" pode ser pensado como um campo sem fótons, mas que mesmo assim "existe", afetando de maneira indireta outros fenômenos. A Teoria Quântica associa a este campo vazio uma "energia de ponto zero", conceito este que foi descoberto por Planck já em 1911. A noção de que este vácuo flutuante é um componente essencial na Física ganhou força após a 2ª Guerra Mundial, quando Tomonaga, Feynman, Schwinger e Dyson desenvolveram a "Eletrodinâmica Quântica", uma teoria relativística de campos quânticos 120. Um efeito anômalo que esta teoria conseguiu explicar era o chamado "deslocamento de Lamb" em raias espectrais. Outro efeito, que mostrava mais claramente o efeito do vácuo eletromagnético, foi descrito por Hendrik Casimir 12 1 em 1948. Quando duas placas perfeitamente condutoras são colocadas próximas e paralelas, ocorre uma atração entre elas! Uma explicação qualitativa é que a cavidade criada pelas placas suprime certos modos k de oscilação do vácuo, de forma que a pressão que o vácuo externo exerce sobre as placas se torna maior do que a pressão interna. Outro fenômeno conhecido cuja explicação requer o vácuo eletromagnético é a força intermolecular de van der Waals. Para explicar diversos efeitos em espectroscopia atômica, é necessário descrever não somente os estados do átomo, mas também Capítulo XVII: Explorando Átomos e Campos o estado do campo eletromagnético (que descreve os fótons emitidos, absorvidos, ou nenhum dos dois). O formalismo para tratar de campos quânticos vai além do escopo de nosso curso, mas vale dizer que na descrição deste "átomo vestido" (ou seja, átomo mais campo eletromagnético), muitas vezes é essencial levar em consideração o estado do vácuo. Em particular, existe um efeito conhecido como "telégrafo quântico", semelhante ao Zenão quântico, cuja explicação envolve um experimento de resultado nulo que provoca um colapso do sistema para um certo estado do átomo acoplado ao estado do vácuo 122 . 6. Pacote de Incerteza Mínima: Estados Coerentes Um "estado de incerteza mínima" é aquele que minimiza o produto das incertezas de duas observáveis correspondentes a operadores incompatíveis. Tal estado é chamado de "estado coerente", pois tem sido usado na descrição da luz de laser. Tal estado foi introduzido por Schrõclinger em julho de 1926 123 , dentro do projeto de sua interpretação ondulatória de definir um "pacote de onda" que se comportasse como uma partícula clássica, oscilando harmonicamante sem sofrer alteração em sua forma. No seu artigo de 1927, Heisenberg mostraria que tais pacotes só mantêm .a forma com o passar do tempo no caso em que os autovalores de energia têm separação constante. Na abordagem mais moderna, que se iniciou na teoria do laser com Glauber (1963), define-se um estado coerente para qualquer número complexo v da seguinte forma 124 : 137 122v er: PORRATI, M . & PUTTERMAN, S. (1987): "Wave-Function Collapse due to Null Measurements: The Origin of Intermittent Atomic Fluorescence", Physical Review A 36 (1 987) 92932. Uma discussão mais crítica encontra-se em: SHIMONY, A . (199 1): "Desiderata for a Modified Quantum D ynamics", in FINE, A.; FORBES, M . & WESSELS, L. (orgs.): PSA 1990, vol. 2, Philosophy of Science Association, East Lansing, pp . 49-59. 123scHRóDINGER, E. (1926), "Der stetige Übergang von der Mikro- zur Makromechanik", Die Naturwissenschaften 14, 664-6. Tradução para o inglês em Collected Papers on Wave Mechanics, Blackie, Londres, 1928, pp. 41-44. Um pequeno estudo deste trabalho é feito por STEINER, F. (1988): "Schréidinger' s Discovery of Coherent States", Physica B 151, 323-6. (XVII.6) Tal estado não tem número n de fótons bem definido, nem tem uma da fase bem definida, mas ele minimiza o produto Ôn·Ô<p eq.(XVII.5). Os estados coerentes são auto-estados do operador de destruição â, que introduzimos na seção XVII.3. Como este operador não é auto-adjunto, seus autovalores v são números complexos: 124v er por exemplo NUSSENZVEIG, H .M . (1973): Introduction to Quantum Optics, Gordon & Breach, Nova Iorque, p. 43. Ou então WALLS & M ILBURN (1994), op. cit. (nota 118), pp. 12-8. (XVIl.7) Esta equação pode ser interpretada dizendo-se que a retirada de um fóton de um estado coerente não altera este estado ! Voltaremos a Conceitos de Física Quântica 138 125GLAUBER, R.J. (1964): · "Optical Coherence and Statistics", in Photon DEWITI, C.; BLANDIN, A. & COHEN-TANNOUDJI, e. (orgs.): Quantum Optics and Electronics, Gordon & Breach, Nova Iorque, pp. 63185. Citação da p. 110. esta propriedade quando examinarmos o interessante comportamento de uma espira inversora de spin, em interferometria de nêutrons. Algumas propriedades adicionais dos estados coerentes podem ser citadas diretamente de Glauber 125 : "Como eles não possuem a interessante propriedade de formar um conjunto ortonormal, muito pouca atenção tem sido dedicada a eles enquanto um conjunto de estados básicos para a descrição de campos. Mostraremos que, ·apesar de não serem ortogonais, esses estados formam um conjunto completo, e que qualquer estado do campo pode ser representado de maneira simples e única por eles [... ] Em particular, é conveniente exprimir o operador de densidade para o campo por meio de uma expansão desse tipo. Tais expansões têm a propriedade de que sempre que o campo possui um limite clássico, elas tomam evidente este limite, ao mesmo tempo em que preservam uma descrição intrinsecamente quântica do campo." Capítulo XVIII MISTURAS E OPERADOR DE DENSIDADE 1. Estados Puros e Misturas Desde os primórdios da Mecânica Quântica, a partir do experimento de Bothe & Geiger (1924), desenvolveram-se técnicas experimentais para selecionar eventos individuais. Mesmo assim, em boa parte das vezes as medições quânticas são feitas em um número muito grande de indivíduos preparados de maneira semelhante, formando um conjunto que usualmente se chama de "ensemble" ou coletivo estatístico (já mencionado na seção IV.3, item 2). A iigor, um coletivo é o conjunto imaginário de todos os sistemas possíveis que possuem as mesmas propriedades macroscópicas ou mensuráveis do sistema em questão. Por um leve abuso de linguagem, chama-se um feixe de elétrons preparados de maneira semelhante de "coletivo", pois tal feixe pode ser representado por um coletivo estatístico, desde que não haja interação entre as partículas (o que é aproximado por um feixe de baixa intensidade). Há também quem distinga entre ensemble (ou coletivo) e assembléia. O primeiro se refere ao conjunto imaginário, enquanto que o segundo se refere ao conjunto das partículas não-interagentes de um feixe real. Se a preparação de um conjunto de indivíduos for tal que cada um deles puder ser representado pelo mesmo vetor de estado em um espaço de Hilbert H, então o coletivo está em um estado puro. Porém, se diferentes indivíduos estiverem em diferentes estados em H, então o coletivo se encontra em uma mistura estatística. É possível representar cada coletivo por uma matriz densidade [ w;;·] a partir da qual prevêem-se os valores médios de quaisquer operadores sendo medidos. Os valores dos elementos de tal matriz dependem da "representação" sendo usada, uma base ortonormal </>;) } do espaço de Hilbert H. Dada esta base, e os elementos de { J matriz W;;· resultantes, constrói-se o operador de densidade W definido em H, que pode ser escrito como 126: w 126operadores de densidade foram introduzidos na Mecânica Quântica em 1927 por Landau e por von O artigo que Neumann. redespertou o interesse neste formalismo, sugerindo a interpretação instrumentalista que veremos a seguir, foi: FANO, U. (1957): "Description of States in Quantum Mechanics by Density Matrix and Operator Techniques", Reviews of Modem Physics 29(1 ), 74-93. (XVIII.1) j' É sempre possível diagonalizar a matriz densidade, escolhendo-se uma base ortonormal apropriada. 139 Conceitos de Física Quântica 140 O "traço" de uma matriz é a soma de seus elementos diagonais: Tr (W) = L,(<AIWl <A ) . O traço é invariante ante mudança na base i de representação. O operador de densidade W é usualmente normalizado de forma a que o traço da matriz associada seja 1: Tr (W) = 1 . O projetor P [ lf!] = llfl)(lfll, que já vimos na seção X.3, é o operador que projeta qualquer vetor de estado no subespaço unidimensional coberto pelo vetor · llfl) , e neste formalismo ele representa o estado puro llfl) . Os autovalores de projetores são Oe 1. O projetor é um operador de densidade W que satisfaz a propriedade de "idempotência", W2 = W, o que tem como conseqüencia Tr( W2 ) = 1. Esta propriedade distingue os ·estados puros (representados por projetores) de outras misturas, para as quais 2 W :t W , e Tr(W - ) < 1. Por causa disso, é sempre possível distinguir experimentalmente um estado puro de uma mistura (como já foi mencionado na seção VII.2). A A A 2. Postulados para Operadores de Densidade 127ver BLUM (1981), op.cit. (nota 27), pp. 37-55. As regras da Mecânica Quântica podem ser reformuladas no formalismo de operadores de densidade 127 . A equação análoga à equação de Schrõdinger (X.1) para a evolução temporal do operador de densidade W (t) é escrita a paitir do operador de evolução Ú definido na eq.(VII.2): W (t ) (XVIII.2) = Ú( t ) W (O) U (t) - 1 • O valor médio (eq. X.3) de um operador sobre o estado é dado por: \6) = rr(dw) = L,r;·w;;. (XVIII.3) ; A expressão da probabilidade de um resultado específico (eq. X.2) é dada pelo valor médio do operador de projeção sobre o autosubespaço associado. No e.aso não-degenerado teríamos: (XVIII.4) Capítulo XVIII: Misturas e Operador de Densidade 3. A Questão da Interpretação de Misturas Dada uma mistura que não é um estado puro, não existe um procedimento operacional para decidir quais são os estados puros dos subsistemas individuais que compõem o coletivo. Tudo o que se pode determinar a respeito de uma mistura é sua matriz densidade. Uma maneira de preparar misturas é combinando dois ou mais feixes independentes de partículas, cada qual em um estado puro. É possível utilizar diferentes combinações de feixes puros para preparar misturas "equivalentes", ou seja, expressas pela mesma matriz densidade 128 . Um exemplo simples é um feixe não-polarizado de luz. Tal feixe pode ser preparado combinando-se dois feixes puros polarizados respectivamente a 0° e a 90º (mistura A), ou a 45° e a 135º (mistura B) (ver Fig. XVIII.1). Os operadores de densidade WA 128BLUM (1981), op.cit. (nota 27), p. 15. e W8 que representam tais misturas são os seguintes: (XVIII.Sa) (XVIII.Sb) onde CfJe) é o estado que representa a luz linearmente polarizada a 8 1 graus. Mas os estados j q>45 ) e j q>135 ) podem ser expressos em termos de 1<Po ) e 1%o ) : (XVIII.6) Agora, quando representamos W8 na base { 1<Po), j <p90 ) } , obtemos exatamente o lado direito da eq.(XVIII.Sa). As misturas A e B são assim equivalentes, sendo ambas representadas pela seguinte matriz de densidade: [t ~] Conceitos de Física Quântica 142 (a) l<r90) --~------------El:)-- FEIXE NÃO POLARIZADO MEDIÇÃO ---- --- -->----- l<ro) --~--------- ---------- - -- --- --> PRISMA DE WOLLASTON FEIXE PURO PREPARADO LENTE FINA (b) l<ro> - - - - - - - - - - - - -J:!'- - - - l<r90) -------------~---- Figura XVIll.I. (a) Preparação de umfeixe de luz em estado puro, polarizado a O°. (b) Preparação de uma mistura, combinando feixes independentes a 0° e a 90° (comparar com Fig.XV!I.3 ). 129Por exemplo: PARK, J.L. (1968): "Quantum Theoretical Concepts of Measurement: Part I", Philosophy of Science 35, 205-231. Neste caso de feixe não-polarizado, a matriz densidade é a mesma em qualquer representação. Esta "equivalência" significa que qualquer tentativa de distinguir os dois feixes mistos por meio de filtros de polarização irá fracassar. A questão filosófica que se coloca é a seguinte: dado um feixe não-polarizado, podemos dizer que cada partícula individual está em um estado puro bem definido? A interpretação instrumentalista de misturas afirma que misturas equivalentes mas preparadas diferentemente estão no "mesmo estado quântico", já que elas são operacionalmente indistinguíveis. Uma visão mais realista, chamada interpretação da ignorância, sustenta que apesar de serem indistinguíveis, duas misturas como A e B correspondem a diferentes estados quânticos (apenas "ignoramos" quais sejam os estados puros componentes). A interpretação instrumentalista de misturas é em geral defendida pela ala gositivista dos partidários da interpretação dos coletivos estatísticos 29, enquanto que a interpretação da ignorância é próxima à interpretação ondulatória. Apesar de a interpretação da Capítulo XVIII: Misturas e Operador de Densidade complementaridade ser prox1ma da primeira, muitos teóricos que trabalhavam com a Mecânica Quântica Estatística nos anos 50 130 adotavam a visão da ignorância, por analogia ao caso clássico . 130ver comentários em FA.:-o (1957), op.cit. (nota 126), p. 76; e em PARK (1968), op.cit. (nota 129), pp. 215-6. 4. Flutuações em Misturas Em 1976, Bernard d'Espagnat 131 defendeu ser possível distinguir feixes representados por misturas equivalentes através da medição de flutuações. Considere a preparação das misturas A e B para feixes de luz (Fig. XVIII.l), supondo que cada uma foi preparada com proporções exatamente iguais de suas componentes. Inserindo um prisma birefringente de Wollaston no caminho do feixe, faz-se uma separação de componentes linearmente polarizados a 0° e a 90º (Fig. XVIII.2). PRISMAS DE PREPARAÇÃO icpo) - - - - - - - - -.t-?- - - - 13ln'ESPAGNAT (1976), op. cit. (nota 48), pp. 100-102. PRISMAS DE ANÁLISE -- ---~ ----~ ------------~Oº ·/ :'11 ------------ ---.-lliillt----------------)-------- !~ li ----111 icp90) ---------$---- icp45) ---------,J---- MISTURA A ------ - - dJ~)íf' ----------------->--------~;,i,i~l - - - - ............ icp 135) ---------~---- 00 ---- ------ - 1 /: ' · -· . 45° t MISTURA B ·, _·: •• ------ _ ................. .. - ------$-----~ -- ---~-. ~-~--~ . \..l__/ -. ___ 00 ------ - '-t.º~ ---.!,--v--~---u_,--- Figura XVIII.2. Medição das polarizações a 0° e a 90 ° nas misturas A e B. Para o feixe A, como exatamente metade dos fótons está no estado 1<Po) , e metade no estado 1cp90 ) , então após N detecções de fótons não haverá flutuação em tomo do número N/2 de contagens em cada detector: aA = O. Para o feixe B, no entanto, cada fóton tem uma probabilidade de 50% de ser detectado em cada canal, e tais eventos aleatórios estão sujeitos a flutuações da ordem de as = t JN (distribuição binomial, como aquela que afeta as jogadas 144 Conceitos de Física Quântica de uma moeda). As misturas A e B poderiam assim ser distinguidas por suas flutuações de partículas. O problema com esta tentativa é que a geração de luz também esta sujeita a flutuações. Com efeito, se as misturas A e B forem preparadas de acordo com o procedimento da Fig. XVIII.1, e se considerarmos que as fontes de luz iniciais têm uma flutuação poissoniana de .JN (para um feixe com N fótons), então pode-se mostrar que as medições para distinguir os feixes A e B fornecerão a mesma flutuação CJA = CJa = t./N. Capítulo XIX SPIN E A INTERFEROMETRIA DE NÊ 1. O que é o Spin? Desde a Teoria Quântica Velha, explica-se a existência de linhas espectrais discretas através da quantização da energia e do momento angular (seção XVI.1) . Stern & Gerlach (1921) comprovaram que a medição do momento angular de átomos resulta em componentes espacialmente quantizados (seção Vl.3). No entanto, para explicar certos dupletos espectrosópicos, Uhlenbeck & Goudsmit (1925) introduziram a idéia de que os elétrons teriam um momento angular intrínseco (e não somente devido à sua revolução em torno do núcleo), que chamaram de spin. Isso exprime a idéia intuitiva de que os elétrons seriam minúsculos imãs . Pauli (1926) incorporou a idéia do spin ao formalismo da Mecânica Quântica, representando os operadores associados ao spin através de matrizes. Se Ô-; são os operadores de Pauli (eqs. IV.4), com autovalores O e 1, os operadores de spin (de autovalores "fi/2) são definidos como: s. =-2n A 1 A (3. 1 para i= x,y,z . (XIX.l) Em 1928, Dirac derivou o spin em sua equação de onda relativística, levando à noção de que o spin seria uma propriedade essencialmente relativística. Esta conclusão foi questionada a partir da década de 60, quando o spin foi derivado também para a relatividade galileana (por contraste à relatividade einsteiniana). 132 Como as diferentes interpretações encaram o spin? (1) Interpretação Ondulatória. Na Teoria Eletromagnética Clássica, ao se calcular o momento magnético de uma distribuição de cargas no vácuo, obtém-se um termo antissimétrico que independe da presença de cargas e pode ser interpretado como o spin do campo 133 . Isso seria a base para uma interpretação puramente ondulatória do spin em sistemas quânticos. (2) Interpretação Corpuscular. Uhlenbeck & Goudsmit mostraram que o spin não poderia ser pensado como surgindo da rotação de um elétron esférico em torno de seu eixo. No entanto, existem diversos modelos corpusculares alternativos que conseguem derivar o spin, como aquele que postula que o elétron se propaga descrevendo uma trajetória helicoidal. 134 145 132ver LÉVY-LEBLOND, J.M. (1974): "The Pedagogical Role and Epistemological Significance of Group Theory in Quantum Mechanics", Rivista del Nuovo Cimento 4, 99-143. 133ÜHANIAN (1986), op. cit. (nota 29). 134BARUT, A.O. & ZAN6 Hr, N. (1984): "Classical Model of the Dirac Electron", Physical Review Letters 52, 2009-12. 146 135BOHM, D. & HILEY, B.J. (1983), in VAN DER MERWE, op. cit. (nota 113). Conceitos de Física Quântica (3) Interpretação Dualista Realista. Na seção VII.3 concluímos que, nesta visão, o spin não deveria ser considerado uma propriedade interna do corpúsculo, mas sim da onda (do campo), ou da relação entre onda e partícula. Bohm & Hiley também atribuíram o spin ao campo. 135 (4) Interpretação Dualista Positivista. Os fundadores da interpretação ortodoxa estavam satisfeitos em não atribuir uma contrapartida ontológica aos operadores de spin. Vale mencionar também que muita atenção tem sido dada a uma representação algébrica do spin. Mário Schbnberg (1940) foi um dos precursores desta abordagem. O spin seria descrito a partir de uma "álgebra de Clifford", tendo a propriedade de antissimetria. A questão da ontologia - ou seja, a questão sobre que entidade seria antissimétrica: a matéria, o espaço? - é em geral deixada aberta. No entanto, Bohm & Hiley, citados acima, chegaram a postular que esta antissimetria estaria em um "pré-espaço", uma ordem que estaria "por trás" do espaço-tempo! 2. Simetria 4n dos Spins Semi-inteiros É costume representar o estado de uma partícula com spin 1h (ou seja, lí/2) através de uma flechinha, da mesma maneira que se faz com o momento angular (ver por exemplo a Fig. VI.4). Esta • representação é aceitável para partículas de spin V2, mas não para valores maiores (1, 3/2, 2, etc.). Esta correspondência biunívoca entre os estados de spin V2 e as direções no espaço tridimensional pode, no entanto, enganar nossa intuição. O que acontece se pegarmos uma partícula de spin V2 e a girarmos em 360º (2n radianos) em tomo de um eixo passando por seu centro e perpendicular à direção do spin? Ora, esperaríamos que ela retornasse a seu estado inicial, como faria qualquer objeto macroscópico. No entanto, não é bem isto que acontece! Examinemos o que acontece a um estado ª+z) sujeito a essas rotações no espaço físico, acompanhando as transformações descritas no espaço de Hilbert (Fig. XIX.l). Após uma primeira rotação de n radianos no espaço fís ico, jª+z) passa para o estado a_ 1 ) , o que J J corresponde a uma rotação de n/2 no espaço de Hilbert. Após mais uma rotação de n no espaço físico, vê-se na figura que a_,) passa J para o estado -J a+z) , um estado que difere do inicial por uma sinal - 1. A rotação de 2n leva assim de volta ao estado inicial, mas com uma mudança de fase (de sinal) no estado. É necessário mais uma Capítulo XIX: Spin e a Interferometria de, 'êrarons rotação completa de 2n para retomar exatamente ao estado inicial. Como a rotação total no espaço físico corresponde a 4n radianos (720º), esta simetria de sistemas de spin 1h (ou meio-inteiros em geral) é chamada de simetria 4n. ROTAÇÃO DE n NO ESPAÇO FÍSICO Figura XV. l. Rotação de spin Vi no espaço de Hilbert de 2 dimensões. lcr+z) Um comentarista assim colocou a situação: "Esta característica da Mecânica Quântica pode parecer à primeira vista paradoxal. Quando um objeto ordinário faz uma rotação completa no espaço, ele retoma ao mesmo estado do qual partiu. [...] Este fato está tão profundamente enraizado em nossa experiência cotidiana que, apesar da teoria de spins de nêutrons ter agora em tomo de 50 anos, antes de 1967 até a maioria dos físicos pensava que uma rotação de 360 graus não poderia ter conseqüências diretamente mensuráveis." 136 Veremos tais conseqüências na seção seguinte. Para finalizar esta seção, citemos Feynman com relação à conexão íntima entre a simetria 4n de partículas de spin V2 e a propriedade de antissimetria na troca de dois férrnions A e B (seção XVII.2). "O efeito na função de onda de uma troca de duas partículas é o mesmo que o efeito da rotação do referencial de uma delas por 360º relativa ao referencial da outra. E por que isso deveria ser verdade? Ora, simplesmente porque tal troca implica exatamente tal rotação relativa de referencial! Nós já notamos que se A e B são trocados (por caminhos sem intersecção exata), A acha B indo em sua volta numa rotação de 180º, e B vê A indo em sua volta também por 180º no mesmo sentido; uma rotação mútua de 360º . [... ] 136BERNSTEIN, H.J. & PHILLIPS, A.V. (1985): "Fiber Bundles and Quantum Theory", Scientific American 245(1), 95-109. Citação da p. 99. 148 137FEYNMAN, R.P. (1987) : 'The Reason for Antiparticles", in FEYNMAN, R.P. & WEINBERG, S.: Elementary Particles and the Laws of Physics, Cambridge U. Press, pp. 1-59. Ver pp. 56-9. 138 Alguns textos introdutórios a assunto são: GREENBERGER, D.M. (1986): "The Neutron Interferometer and the Quantum Mechanical Superposition Principie", in ROTH, L.M. & INOMATA, A. (orgs.): Fundamental Questions in Quantum Mechanics, Gordon & Breach, Nova Iorque, pp. l17-130. BADUREK, G.; RAUCH, H. & TuPPINGER, D. (1986): "Polarized Neutron Interferometer", in GREENBERGER (1986), op.cit. (nota 68), pp. 133-146. WERNER, S.A. (1980): "Neutron Interferometry", Physics Today 33( 12), 24-30. Conceitos de Física Quântica Já que troca implica tal rotação de um objeto em relação a outro, há tõdos os motivos para esperar o fator de fase (-1) ocasionado por tal rotação para a troca de objetos de spin semiinteiro."137 3. Montagem do Interferômetro de Nêutrons A propriedade de simetria 4n dos spins V2 pode ser observada experimentalmente. Vimos até aqui a utilidade da interferometria óptica para se explorar os princípios da Mecânica Quântica. O fóton, porém, tem massa de repouso nula, e até a década de 80 era difícil precisar sua localização no interferômetro. Um grande avanço para testar o princípio da superposição e outras leis fundamentais foi o desenvolvimento da interferometria de nêutrons na década de 70. 138 O avanço técnico que permitiu este tipo de interferometria foi o desenvolvimento de cristais perfeitos de silício de até 15 cm de comprimento, usados por Bonse & Hart em 1965 para realizar interferometria de raios X. Em 1974, Rauch, Treimer & Bonse, em Viena, conseguiram adaptar tais técnicas para o caso de nêutrons "térmicos" ou "frios" (energias da ordem de 0,025 eV). Um outro grupo importante nesta área surgiu na Universidade de Missouri, com Colella, Overhauser & Werner. Os experimentos mais precisos são realizados em um reator de alto fluxo em Grenoble, reunindo pesquisadores de Dortmund, Grenoble e Viena. A Fig. XIX.2 é um esquema simplificado do interferômetro. Nêutrons de energia e spin bem definidos são preparados e incidem no monocristal de silício, que se encontra em uma região com um campo magnético constante. O feixe de nêutrons polarizado, digamos com spin +z, é difratado (espalhamento de Bragg) ao incidir na primeira "orelha" do monocristal (em S1) , se separando em dois componentes no mesmo estado de spin, e com uma defasagem relativa entre o feixe difratado e o transmitido. Para simplificar, vamos supor que esta defasagem seja i (em analogia com a seção III.l), sendo que um ajuste de fase pode sempre ser feito por meio do um defasador, que consiste de uma placa de alumínio. Cada um dos componentes que saem de S1 incide então na segunda orelha do monocristal (S2 e S3), sofrendo uma nova difração. Dos quatro componentes resultantes, dois são perdidos, e dois são recombinados, se cruzando na terceira orelha do cristal (em S4). O que acontece após a recombinação (em S4 )? O caso é análogo ao interferôr'netro de Mach-Zehnder: idealmente, todo feixe segue um caminho paralelo ao feixe original, o caminho H, ocorrendo interferência destrutiva em O. Capítulo XIX: Spin e a Interferometria de Nêutrons Com este interferômetro, os grupos mencionados na seção anterior puderam, a partir de 1975, verificar a simetria 4n associada ao spin 1/2. Foram utilízados feixes não-polarizados (ou seja, com o spin apontando em direções aleatórias), mas, apesar disso, cada nêutron pôde ser considerado como tendo um spin bem definido (comparar com a discussão da seção XVIII.3). Ao girar o spin de um dos componentes por 360º (no espaço físico), por meio de um campo magnético estático (ao invés de uma espira de corrente alternada, como a da Fig. XIX.2), observou-se que praticamente todo o feixe, que inicialmente rumava na direção H, passou a rumar na direção O. Somente quando uma rotação total de 720° foi feita é que a situação voltou à inicial. DEFASADOR \ ESPIRA R.F. SISTEMA ANALISADOR Figura XIX.2. Esquema do monocristal de silício em um inteiferômetro de nêutrons. 4. Recombinação de Feixes Polarizados Na seção VII.3 examinamos a proposta de um experimento de Stern-Gerlach revertido, feita nos anos 50. A interferometria de nêutrons permite pôr em prática aquela proposta, e isso foi feito após o desenvolvimento em 1980 da técnica de polarização de nêutrons, envolvendo um "prisma magnético". Pode-se obter assim um componente com spin na direção + z. O experimento está representado na Fig. XIX.2. No ponto S 1, o feixe de nêutrons frios se separa em dois componentes, ambos no estado de spin 1 ª+z). Para obter estados de spin ortogonais, utiliza-se uma espira inversora de spin para alterar o estado 1 ª+z ) provindo de 149 Conceitos de Física Quântica 150 S3 para o estado ja_J . Se isto for feito sem defasagens adicionais, podemos concluir que o estado final em H é -1 a +x ) , e o estado em O é i 1 a_,) . Para concluir isto, devemos lembrar que (comparar com as eqs. XVIII.6 para a luz): (XIX.2) la_J = - }i- ·la+J + }i- ·la_J O componente em O envolve um termo com componente de spin +z que seguiu o caminho S1-Sz-S4 com fator de fase - 1 (duas reflexões), e outro com spin - z que seguiu S1-S3-S4 com o mesmo fator de fase. Adicionamos também uma defasagem variável <p no primeiro caminho. O componente em H é computado de maneira análoga. Obtemos: (XIX.3a) (XIX.3b) O que acontece se variarmos a fase <p ? Vamos supor que estamos fazendo uma medição em O. Para medir o componente de spin na direção x, colocamos um filtro que seleciona apenas o autoestado 1 Ora, comparando as eqs. (XIX.2) e (XIX.3), vemos que, a+,) . para <p = O, a taxa de contagem é máxima, ao passo que, pàra <p = n , ela é nula, pois o estado em O toma-se 1 a_, ) (e nada passa pelo filtro). Obtemos um típico padrão de interferência proporcional a cos2 (<p/2). O que acontece agora se medirmos em O o componente de spin na direção z, selecionando com o filtro apenas o auto-estado 1 a+,)? Ora, examinando a eq.(XIX.3a), vemos que a variação da fase não afeta a taxa de contagem (ou seja, a probabilidade, que permanece l/2). Estas conclusões foram observadas experimentalmente por Badurek et al., em 1983, e estão representadas na Fig. XIX.3. Capítulo XIX: Spin e a Interferometria de Nêutrons I Direção x I 151 Direção z -•e••.• •• .·.+.".••..·•·•,•..... Figura XIX.3. Resultados do experimento de superposição de spins, envolvendo uma espira inversora de spin. Selecionando-se um estado final com spin na direção +x, observa-se um padrão temporal de inteiferência, ao passo que na direção +z não há padrão (BADUREK et al., 1983, nota 139). 5. Uma Espira Inversora não provoca um Colapso? Existem dois tipos de inversores de spin usados em interferometria de nêutrons. A versão DC (corrente direta) consiste meramente de um campo magnético estático orientado em uma direção não paralela ao campo que permeia o interferômetro. A orientação do spin em um campo magnético altera sua energia, mas um inversor DC não pode alterar a energia do nêutron. O que ocorre é que a energia ganha (ou perdida) com a inversão de spin é compensada por uma variação na energia cinética do nêutron. Na versão AC (corrente alternada), o inversor consiste de uma espira que gera um campo de rádio-freqüência (RF) que gira a direção de spin (ressonância de Rabi), sem alteração de momento, e com transferência de energia. Neste caso surge um problema interessante, levantado em discussões entre o grupo de Vigier e Rauch 139 . A transferência de energia entre a espira e o nêutron não poderia ser detectada examinando-se a energia final do nêutron ou da espira? Desta maneira, não se poderia determinar a trajetória do nêutron, ao mesmo tempo que a interferência seria observada, violando-se o princípio de complementaridade? O grupo de Rauch mostrou que nenhuma dessas duas possibilidade é factível devido às relações de incerteza (entre fase e número de partículas, eq. XVII.5, no caso da espira; e entre energia e o intervalo de tempo, eq. XII.2, usado na detecção "estroboscópica" dos nêutrons, necessária no caso AC). A energia transferida é muito menor do que a incerteza inicial na energia do campo. Uma outra maneira de entender isso, no caso em que a alteração de energia da 139DEWDNEY, C.; GUERET, P.; KYPRYANIDIS, A. & VIGIER, J.P. (1984): "Energy Conservation and Complementarity in Neutron Single Crystal Interferometry", Physics Letters A 102, 291. BADUREK, G.; RAUCH, H. & SUMMHAMMER, J. (1983): 'Time-Dependent Superpositions of Spinors", Physical Review Letters 51, 1015-1 8. Ver também GREENBERGER (1986), op.cit. (nota 138). 152 140LEGGETI, A.J. (1986): "Quantum Mechanics at the Macroscopic Levei", in DE BOER, J.; DAL, E. & ULFBECK, 0. (orgs.): The Lesson of Quantum Theory, Elsevier, Amsterdam, pp. 3557. Ver pp. 40-1. Conceitos de Física Quântica espira é examinada, é considerar 140 que o campo eletromagnético de rádio-freqüência da espira está em um estado coerente. Ora, vimos na seção XVII.6 que, para tal estado, a retirada de um fóton (que corresponde à transferência de energia para o nêutron) não altera o estado. Em suma, vemos que é possível alterar a energia de um dos componentes de um interferômetro sem destruir a coerência. Se o nêutron fosse um corpúsculo que passasse pelo caminho contendo a espira, ele absorveria um fóton; se ele passasse pelo outro caminho, ele não absorveria o fóton; porém, essas duas situações são indistinguíveis, não só na prática como também em princípio. Assim, tal processo não pode fornecer informação sobre a trajetória do nêutron, o que é consistente (segundo o princípio de complementaridade) com o fato de que a interferência é observada. Por outro lado, se o aparelho acoplado à espira fosse modificado de tal forma que a transferência de energia para o nêutron levasse o aparelho para um estado macroscopicamente distinto, recairíamos é claro no caso em que uma medição de trajetória é realizada (seção V .1). Capítulo XX REVENDO O EXPERIMENTO DAS DUAS FENDAS 1. Explicar e Compreender Como "entender" a Física Quântica? De acordo com Richard Feynman 141 , "o comportamento atôrnico [... ] parece peculiar e misterioso para todo mundo - tanto iniciante quanto especialista [... ] Mesmo os especialistas não o entendem da maneira como eles gostariam [...] Nós não podemos nos desfazer do mistério 'explicando' como ele funciona". O que significa "entender" ou "compreender" um fenómeno físico? Quando uma explicação é dada, não passamos necessáriamente a compreender? O que é "explicar"? Uma caracterização geral é que "explicações são respostas à pergunta 'Por quê?"'. Mais especificamente, de acordo com a "visão recebida" na Filosofia da Ciência 142, uma tese é explicada se ela puder ser deduzida logicamente de outras premissas. Este é o chamado modelo "dedutivo-nomológico" da explicação. Esta abordagem tende a separar a "explicação" da "compreensão". Explicar alguma coisa para alguém seria antes de tudo fornecer um argumento lógico a partir de premissas mais gerais cuja verdade se aceita. Se as premissas forem misteriosas, pode-se não ter o sentimento de que se entendeu o estado de coisas, mas a explicação estaria dada. Já a noção de "compreensão" está ligada a um estado psicológico de quem conhece uma explicação cujas premissas são aceitas intuitivamente. Se as premissas ou os fundamentos da teoria não são intuitivos, a explicação pode não trazer compreensão. Alguns críticos da visão recebida 143 , por sua vez, procuram fu ndamentar a noção de explicação justamente na compreensão. Qualquer informação que traz compreensão, mesmo que não envolva uma lei ou uma teoria, forneceria uma explicação adequada. Podemos concluir que a Mecânica Quântica fornece uma explicação cujas premissas vão contra a intuição ligada ao senso comum. Para "compreender" a Mecânica Quântica, portanto, é necessário mergulhar em seus princípios e conceitos fundamentais, e trabalhá-los de maneira que se tornem mais intuitivos, que fiquemos mais familiarizados com eles. O fato de existirem diferentes interpretações talvez facilite este processo, permitindo que o aluno 153 141 FEYNMAN, R.P. ; LEIGHR.B. & SA DS, M. (1965): The Feynman Lectures on Physics, vol. III: Quantum Mechanics, Addison-Wesley, Reading (EUA). Ver p. 1-1. Omitimos trechos da citação para torná-la mais enigmática. TON, 142A chamada "visão recebida" foi a corrente ortodoxa da Filosofia da Ciência nos vinte anos que se seguiram à 2• Guerra, especialmente nos Estados Unidos. Esta corrente tem suas raízes no "positivismo lógico" dos anos 20 e 30 (ver seção XVI.l). A preocupação desta corrente se centra mais no "contexto da justificativa" do que no "contexto da descoberta", ou seja, se preocupa em analisar a estrutura lógica de uma ciência ideal (ver nota 45), desprezando as circunstâncias psicológicas e sociais cercando a atividade científica. Dentro desta visão, considera-se que haja quatro padrões de explicação: dedutivo, probabilístico, funcional e histórico; ver NAGEL, E. (1961): The Structure of Science, Harcourt, Nova Iorque, pp. 15-28. Conceitos de Física Quântica 154 143Destaca-se M. Scriven ( 1962). O leitor interessado deve consultar: SALMON, W .C. (1992): "Scientific Explanation" , in SALMON, M .H. et al. (orgs.): lntroduction to the Philosophy of Science, Prentice Hall, Englewood Cliffs (NJ), pp. 7-41. 144FEYNMAN et al. (1985), op. cit. (nota 140), pp. 1-1 a 19. escolha aqueles princípios interpretativos que mais se aproximem de suas concepções espontâneas. 2. Revendo o Experimento das Duas Fendas Para explorar nossa intuição a respeito dos fenômenos quânticos, consideramos novamente o clássico experimento-depensaruento das duas fendas (que vimos na seção I.3), conforme apresentado por Feynrnan 144 . Imaginemos uma fonte de elétrons, todos com aproximadamente a mesma energia, que incidem (ao longo do eixo x) em um anteparo com dois furos apropriadamente separados. A uma certa distância atrás do anteparo se encontra uma parede na qual existe um detector móvel. A fonte de elétrons é bem fraca, de modo que o detector dispara apenas de vez em quando, indicando a chegada de apenas um elétron (ver Fig. XX.1). O experimento consiste em colocar o detector em posições sucessivas ao longo do eixo y e contar, em um intervalo de tempo constante, o número de disparos do contador. Ao final, constrói-se um gráfico cuja curva exprime a freqüência relativa com que os elétrons são detectados nas diferentes posições, o que indica as probabilidades de detecção. Se tal experimento fosse realizado, observar-se-ia uma curva de interferência típica de comportamento ondulatório, indicado por llf/A(y) + 1f18 (y)l 2 na Fig. XX.1. DETECTOR MÓVEL A ~ y : : :: :: : : :::: X B CANHÃO DE ELÉTRONS ANTEPARO PAREDE Figura XX.1 : Experimento das duas fendas para elétrons, segundo Feynman. Capítulo XX: Revendo o Experimento das Duas Fendas Se o elétron se comportasse como uma bala de revólver incidindo em um anteparo resistente com dois furos, então as detecções em nosso experimento não exibiriam um padrão de interferência, mas formariam uma cun·a uave que seria a soma das 2 2 obtidas quando cada um dos furos curvas ll/fA(y)l e ll/fn{y)l estivesse aberto sozinho ( er as curvas da Fig. XX.2). Como o elétron exibe um padrão de interferência, ele não se comporta como as balas de revólver. Mesmo assim, cada elétron é absorvido "inteiro" pelo detector (isto é, transmite uma carga e uma massa mínima), nunca em partes, e assim ele é considerado uma partícula. O caso da luz desafia mais a nossa intuição, mas ela também é absorvida em pacotes mínimos, de energia hv. Como a luz é sempre detectada como fótons individuais, temos a tendência de inferir que estes fótons mantêm sua individualidade enquanto não são observados. Tal intuição tende a ser ainda mais forte no caso de elétrons, o que se justifica por eles satisfazerem a conservação de número fermiônico (seção XIV.4). Mas se seguirmos esta intuição, teremos que admitir que o elétron passa ou pela fenda A ou pela B. Temos alguma maneira de verificar isso? Einstein sugeriu, no 5º Congresso de Solvay em 1927, que a fenda pela qual a partícula passa poderia ser determinada usando um anteparo (no qual estão as fendas) móvel, medindo-se o sentido da velocidade final do anteparo. Considerando que o anteparo está sujeito à relação de incerteza, Bohr mostrou que a incerteza na posição das fendas "borraria" o padrão de interferência (ver seção V.2). Feynman propôs que tentássemos medir a posição do elétron, quando ele passasse pelas fendas, por meio de uma fonte de luz colocada entre as fendas (Fig. XX.2). Um detector de luz DA é colocado no outro lado da fenda A, e um detector adicional D 8 é simetricamente disposto do outro lado da fenda B. Se um fóton é detectado em DA, isto indica que ele passou pela fenda A (e analogamente com B ). Constrói-se então um histograma indicando, para cada posição do detector de elétrons e para um mesmo intervalo de tempo, quantas contagens em coincidência foram registradas com o detector DA. E, analogamente, constrói-se outro histograma para detecções em coincidência com D 8 . O que se observa então é que o padrão de interferência desaparece tanto para as contagens em A quanto para em B (ver gráfico na Fig. XX.2). Somando-se estas contribuições, obtém-se um padrão geral sem franjas (Fig. XX.3a). Em conclusão: quando medimos por qual fenda os elétrons passam, eles se comportam como balas de revólver. 155 Conceitos de Física Quântica 156 A explicação dada por Feynman para isso é que cada fóton espalhado provoca um distúrbio no movimento do elétron, introduzindo uma incerteza em sua posição y que acaba borrando o padrão de interferência. 145 1450 cálculo é apresentado também em GASIOROWICZ, S. (1974), Quantum Physics, Wiley, Nova Iorque, p. 35. y {;} DA / ~ / / A ........ ........ ::--.... : ........ ... / 1 / ~/ / 1 ~ :: FONTE DE LUZ é3 1 1 ~ ,, B 1 1 1 1 CANHÃO DE ELÉTRONS : ~ ', ' ' ', ~ .. ~Da Figura XX.2: Proposta de Feynman para se determinarem as trajetórias dos elétrons. 3. Relação entre Padrões com e sem Interferência 146Note que aqui uma visibilidade V menor do 1 indica falta de coerência (uma mistura), enquanto que para fenômenos intermediários (seção XV .5) a coerência é máxima (um estado puro) qualquer que seja o valor de V. No experimento-de-pensamento da Fig. XX.2, selecionamos (por meio de contagens em coincidência) um subcoletivo dentre os elétrons que chegam à parede, justamente o subcoletivo dos elétrons cujas posições foram detectadas nas fendas. Se tal seleção de subcoletivo não fosse feita, o que se observaria no anteparo? Boa parte dos elétrons não interagiria com os fótons e, assim, eles manteriam sua coerência e exibiriam interferência. O efeito global seria uma diminuição de visibilidade do padrão de interferência. Já apresentamos a definição de "visibilidade" na seção XVII.5. Visibilidade V= l corresponde a um padrão de interferência perfeito, ao passo q~e V=O corresponde à completa ausência de padrão de interferência. Na prática, em um experimento como o da Fig. XX.2, observam-se valores intermediários de visibilidade, dependendo da porcentagem de partículas que mantém sua coerência ao passar pelo diafragma com as fendas. 146 Capítulo XX: Revendo o Experimento das Duas Fendas 157 Representemos agora a distribuição de probabilidades no anteparo de detecção para V=O. Para o caso em que a fenda B está fechada, o estado do elétron quando este atinge o anteparo é dado pela eq.(X.11): (XX.l) A função de onda l/f A (T) pode ser representada simplificadamente por uma onda esférica monocromática (somente uma freqüência w) e isotrópica (igual em todas as direções): e{~-· ( r-"1) - ax) (XX.2) lr - "11 Uma equação análoga para lf/8 ( r) vale para o caso em que a fenda A está fechada. Supondo que as probabilidades do elétron passar por cada fenda são iguais, a distribuição de probabilidade, neste caso (Fig. XX.3a) de mistura incoerente de estados jlJIA(r )) e jlf!8(r)), é dada por: (XX.3) No caso em que as duas fendas estão abertas e a coerência é mantida, o estado no anteparo é a superposição: (XX.4) Podemos calcular a probabilidade de encontrar o elétron no estado 2 jr") através da eq.(X.2): Probv=1T(r'1 = 1(r"l l/fv=1+(r))1 • Isso fornece (após eliminar as "): (XX.5) Conceitos de Física Quântica Poderíamos, é claro, ter obtido este resultado mais diretamente sem trabalhar com vetores de estado, mas com funções de onda, através 2 da regra de Born: Pro b (r) = l lf/v =I + (r) 1 Usando a eq.(XX.2) para l lflA) e o análogo para l lfls), obtemos a seguinte expressão aproximada para a eq.(XX.5), supondo f >> (y + d/2), onde f é a distância do anteparo à tela detectora, y é a posição na tela e d é a separação entre as fendas: (XX.6) Os termos de interferência lflA (T) * lf/8 (T) + lf/ 8 (r)' lflA (T) resultam no cosseno no último fator, e corresponde à parte oscilante da Fig. XX.3b. Pois bem, agora comparemos a eq.(XX.3) (Fig. XX.3a) com a eq.(XX.5) (Fig. XX.3b). Em regiões onde Probv= 0 (r) = O, temos necessariamente que Probv= 1+(r) = O vale). A curva Pro b v =O ( r) (o inverso, é claro, não é como uma curva média de Pro b v =l + ( r) , sendo que os picos de interferência de Pro b v =l + ( T) têm o dobro da altura da curva Pro b v =O ( r) para o mesmo ponto. Essas relações geométricas implicam uma curiosa propriedade. Considere um estado igual ao da eq.(XX.4) a menos de uma fase relativa (tomada agora como -1), resultando no seguinte estado antissimétrico: (XX.7) A "anti-franja" de interferência Pro bV =1- ( r) é igual ao da eq.(XX.5), só que com sinais "menos" nos termos de interferência (Fig. XX.3c). A propriedade curiosa é que: (XX.8) Capítulo XX: Revendo o Experimento das Duas Fendas O padrão de visibilidade O, correspondendo à ausência de coerência nos elétrons, pode se formar através da soma de dois coletivos de elétrons com coerência, o coletivo simétrico (representado pelo estado puro da eq.(XX.4) e o antissimétrico (eq.XX.7). Situações análogas já foram vistas na seção XVIII.3. (a) (e) (b) ,, ,, .... / .... ' / / Figura XIX.3: Distribuição de probabilidades no experimento das duas fendas. (a) Medindo-se a fenda por onde passa cada quantum, obtém-se uma distribuição de contagens sem franjas. (b) Sem medirem-se as trajetórias, obtêm-se as franjas de interferência do caso simétrico. (c) No caso antissimétrico, com uma defasagem relativa de À/2, obtêm-se "anti-franjas". 4. Interferometria com Elétrons Apesar de a experiência descrita por Feynman requerer um aparelho construído "em uma escala impossivelmente pequena", é possível observar um padrão de interferência para elétrons utilizando, ao invés de duas fendas, um arranjo conhecido como "biprisma eletrostático de elétrons". Desenvolvido por Mollenstedt & Düker em 1954, este equipamento consiste simplesmente de um filamento fino com carga elétrica positiva disposto entre duas placas aterradas (Fig. XX.4 ). Uma onda plana que incide no biprisma ao longo da direção +z é dividida em duas partes, adquirindo componentes de movimento na direção ±x. Estas componentes então interferem em um anteparo. 160 147ver: TONOMURA, A.; ENDO, J,; MATSUDA, T.; KAWASAKI, T.; EZAWA, H. (1989): "Demonstration of Single-Electron Buildup of an ln terference Pattern", American Journal of Physics 57, 117-120. Uma resenha da área, inclusive com referência ao interferômetro de Mach-Zehnder para elétrons desenvolvido em 1952 por L. Marton, é feita por HASSELBACH (1992), op. cit. (nota 1). Conceitos de Física Quântica A detecção de elétrons individuais e a lenta formação de um padrão de interferência foram filmadas por dois grupos experimentais em torno de 1983, sendo que mais recentemente o experimento foi aperfeiçoado usando um engenhoso sistema de 147 contagem de elétrons sensível à posição . Nenhum desses pesquisadores considerou a possibilidade de medir por qual lado do filamento passam os elétrons individuais (o que, como vimos , destruiria o padrão). o ~ R Figura XX.4: Interferência de elétrons usando um biprisma. 5. O Valor do Momento ao Passar pelas Duas Fendas 148Tanto que um filosofo da física do calibre de Michael Redhead chegou a considerar este fenômeno ondulatório! Ver p. 78 de REDHEAD, M.L.G. (1983): "Quantum Field Theory for Philosophers", in ASQUITH, P.D. & NICKLES, T. (orgs.): PSA 1982, vol. 2, Philosophy of Science Association, East Lansing, pp. 57-99. Foi dado um exercício em que um quanta passa por uma única fenda fina, sofrendo difração (como na Fig.VI.2), sendo posteriormente medido em uma tela detectora. A pergunta era se o fenômeno seria ondulatório ou corpuscular. Já que é possível determinar a trajetória do quantum, o fenômeno é corpuscular, apesar de associarmos o termo "difração" a um fenômeno 148 ondulatório . De fato, Heisenberg explicou como dar uma interpretação corpuscular para este efeito, lembrando que ao passar pela fenda, a partícula tem posição x bem definida, e portanto, pelo princípio de incerteza, tem uma incerteza grande no momento Px· Ora, como o momento é mal definido, a partícula pode rumar praticamente em qualquer direção após passar pela fenda. Capítulo XX: Revendo o Experimento das Duas Fendas 161 Qual é o momento da partícula após passar pela fenda dupla? Ora, existe uma maneira fácil de descobrir. É só colocar uma tela detectora a uma distância razoavelmente grande e observar o padrão 2 de interferência! Este padrão reflete j lffv =J + ( p) j na fenda, ou seja, o módulo quadrado da função de onda na representação de momento (ver eq. X.13 ), que nos dá a distribuição de probabilidade do momento Px logo após as duas fendas. Isso é intuitivo, pois o momento exprime como varia a posição: conhecendo-se Px e Pz (onde z é a direção perpendicular ao anteparo), sabe-se a direção de movimento de uma partícula. O fato de o padrão de interferência ter regiões em que não caem partículas significa que há valores de momento que são proibidos após a passagem pelas duas fendas. Qual é a origem deste peculiar distribuição de probabilidades na fenda? A explicação dada pela maior parte das interpretações é que este é um efeito ondulatório. Apenas a interpretação corpuscular tem que dar conta disto de outra maneira. Na seção I.4 mencionamos a hipótese de Landé, baseada em uma antiga proposta de W. Duane (1923), segundo a qual ocorreria uma transferência discreta de momento da rede cristalina (que constitui o anteparo difratar) para a partícula (que é difratada), transferência esta que depende da presença de fendas no anteparo. No entanto, tal explicação não funciona para experimentos sem anteparos rígidos 149 , como o do biprisma eletrônico visto na seção XX.4. 149rsso foi apontado por ROSA, R. (1979), "Electron Interference : Landé's Approach Upset by a Recent Elegant Experiment", Lettere al Nuovo Cimento 24, 54950. Ver também HOME & WHITAKER (1992), op. cit. (nota 47) . Com relação ao trabalho de Landé, ver JAMMER (1974), op. cit. (nota 3), pp. 453-65. EXERCÍCIOS Boa parte dos exercícios que se seguem foram dados em "róis de calistenia" para os alunos . Cap. 1: DUALIDADE ONDA-PARTÍCULA (1) Considere a interpretação dualista realista da seção I.4. Como ela explica o experimento das duas fendas no regime quântico (Figs. I.1. e I.2)? Você acha esta explicação satisfatória? (2) A dualidade onda-partícula (versão forte) afirma que um fenômeno ou é ondulatório, ou corpuscular, mas nunca ambos simultaneamente. Porém, vimos na Fig. I.2 que as franjas de interferência (característica ondulatória) aparecem juntamente com detecções pontuais (característica corpuscular). Isso viola a dualidade onda-partícula? (3) Na Fig. I.3 ilustramos a superposição de ondas contínuas unidimensionais (de iguais amplitude lfl e comprimento de onda À) rumando no mesmo sentido. O que acontece quando duas dessas ondas rumando em sentidos opostos se superpõem? (4) O experimento de duas fendas para a luz foi explicado por Young (1802) e Fresnel (1819) por meio da superposição construtiva e destrutiva de ondas (Fig. I.1). Um século depois, percebeu-se que a formação das franjas de interferência se dá ponto a ponto (Fig. I.2). Explique um pouco mais a fundo o que está acontecendo, inspirando-se em uma ou mais das interpretações da seção I.4. Cap. II: INTERFERÔMETRO DE MACH-ZEHNDER (1) (a) Descreva o experimento do interferômetro de Mach-Zehnder para um fóton único. (b) Adote uma das interpretações da seção II.3 e responda: por qual caminho rumou o fóton? 163 164 Conceitos de Física Quântica (2) Na seção II.1, mencionamos que quando um feixe de luz incide em um espelho semi-refletor, o componente refletido tem um avanço de 1A de comprimento de onda em relação ao componente transmitido. (a) Se um professor de laboratório de óptica lhe pedisse para elaborar um dispositivo que gerasse componentes refletido e transmitido em fase (ou seja, sem avanços ou atrasos relativos), o que você sugeriria? (Dica: ler a seção II.4.) (b) Se estes dispositivos substituíssem os semi-espelhos S 1 e S2 da Fig. II.1, o que aconteceria com as taxas de detecção em D1 e D2? (3) Observe o resultado do experimento de Grangier et al., na Fig. II.4. Como são fixados ou determinados experimentalmente os valores da abcissa <jJ e da ordenada N? Descreva o que acontece no ponto 4n da abcissa. (4) Considere o arranjo experimental para preparar um estado monofotônico. (Respostas curtas.) (a) Qual é a relação entre as freqüências v 0 , V1 e v2 ? (b) O que aconteceria se o laser utilizado não emitisse luz ultravioleta, mas sim luz verde. (e) Para que serve a lente no arranjo? (d) Para que servem os quatro espelhos no arranjo? (e) Se o detector D tivesse uma eficiência baixa, por exemplo detectando apenas um em cada dez fótons, isso inviabilizaria a geração de pulsos monofotônicos? Cap. Ili: COMPLEMENTARIDADE DE ARRANJOS EXPERIMENTAIS (1) Considere o experimento de difração da luz através de uma única fenda pontual, de forma que o padrão observado na tela fosforescente não apresenta franjas, mas apenas uma mancha circular cuja intensidade diminui constantemente até suas bordas. (a) O que se observa quando a intensidade do feixe de luz é diminuída até se atingir o regime quântico (ver seção I.3)? (b) Este "fenómeno" (no sentido usado por Bohr) é ondulatório, corpuscular ou os dois (ver seção III.2) ? Exercícios (vol. !) 165 (2) (a) Escolha uma interpretação que lhe agrade e explique sucintamente o experimento de escolha demorada (seção III.3). (b) Com base em sua resposta, analise criticamente a afirmação de Wheeler (p. 22) de que o "o passado não tem existência enquanto ele não é registrado no presente". Você concorda com ele? (3) Considere um feixe de intensidade I que incide no interferômetro de Mach-Zehnder, conforme a Fig. II.1. Se o espelho E1 for substituído por um espelho semi-refletor (semelhante a S1), quais serão as intensidades medidas nos detectores D1 e D2? (Lembre das regras para soma e divisão de amplitudes, seções I.6 e II. l.) Cap. IV: ESTADOS QUÂNTICOS E O PRINCÍPIO DE SUPERPOSIÇÃO (1) Como interpretar o vetor de estado llf!) ? Este estado se refere a uma entidade real ou não? Ele fornece uma descrição completa do objeto quântico? (Pode-se escolher uma única interpretação.) (2) Verifique se a matriz â Y da eq. (IV.4) é de fato auto-adjunta. (Ou seja, escreva a matriz adjunta â Y t e verifique se ela é igual a â Y .) (3) Considere o estado representado graficamente na figura abaixo e escreva o vetor li/>) em função dos vetores ortogonais li/>;), seguindo a notação das eqs. (IV.2) e (IV.2a) . ª21 CX.31 rr.12 rr./2 f' ~. G)o nE)o 3n/2 ~ 3nl2 I~> Figura EX.O Conceitos de Física Quântica 166 Cap. V: MEDIÇÕES DE TRAJETÓRIA (1) Considere o interferômetro de Mach-Zehnder (Fig. II.l), no qual todos os fótons rumam para o detector D1. (a) O que acontece com as taxas de contagem de fótons quando o detector D 3 é inserido no caminho A (Fig. V.1)? (b) Como você explicaria (para um colega) este comportamento? (2) Um único átomo de hidrogênio é preparado no estado Jf lIJ! 200) + t lIJ! 210 ) , onde os índices dos auto-estados correspondem respectivamente aos números quânticos n=2, C, me=O. Note que a única diferença entre os auto-estados corresponde ao valor do número e. (a) Se medirmos o observável cujo autovalor é C, qual é a probabilidade de obtermos o valor C=O? (Dica: ver seção V.3) (b) Suponha que dé fato fizemos a medição e obtivemos o autovalor C=O. Agora, se medíssemos novamente o mesmo observável, qual seria a probabilidade de obter o valor C=O? (Dica: ver seção V .4) (3) Considere o experimento óptico clássico da figura abaixo, onde S1, S2, S3 são espelhos semi-refletores, e E 1 e E2 espelhos de reflexão total. ~ A S1 '- -~ --- ----- ~o Figura EX.1. : : '' ' ' ' ' ' '' ' E1 ; S2 E ------"----· ---------------------------------------CLJ- DE : 03 : .'' ' ' ' ' ' .. , _ _ _ _ -- - - - '\,----- --- - - --- - - - --cuS3 ; F DF Exercícios (vol. /) Nossa primeira tarefa é calcular a amplitude e a fase que chega em cada detector. Como referência, tomamos o feixe inicial, de amplitude l/fo. Adotemos as seguintes regras para nosso cálculo: (i) quando um feixe de amplitude l/fo passa por um espelho semi-refletor, a parte transmitida tem a mesma fase e amplitude l/fo, enquanto que a parte refletida se escreve .)2 · l/fo, onde o Jz · i indica um deslocamento de fase de 14 de comprimento de onda; (ii) em um espelho de reflexão total, a amplitude permanece a mesma, e introduzimos uma defasagem de i (isso é uma convenção arbitrária); (iii) quando dois componentes vindos de direções diferentes acabam se superpondo em uma direção, basta somar as amplitudes correspondentes. (a) Calcule as amplitudes e fases que chegam nos três detectores, usando a notação de amplitudes complexas (tipo: .)2 · l/fo ). (A resposta e~tá nos coeficientes da equação do item b.) (b) Passemos agora para o regime quântico, reduzindo a intensidade do feixe até um único fóton entrar de cada vez, e colocando detectores fotomultiplicadores. O estado quântico logo antes da detecção pode ser escrito como: ll/fo) = t·I E) - '2+ff ·IF) + -~+;f ·IG) Qual é a probabilidade de o fóton ser medido em cada detector? (e) Suponha agora que um medidor de não-demolição seja inserido em A. Quais são as probabilidades de o fóton ser medido em cada detector subseqüente? Cap. VI: COLAPSO DA O NDA OU REDUÇÃO DE ESTADO (1) Considere um feixe de átomos de prata que atravessa um aparelho de Stem-Oerlach SG1 orientado a um ângulo e em relação ao eixo +z (ver figura abaixo). O componente que ruma para o caminho A se encontra, por definição, em um estado 1 cr + fJ). Suponhamos que este componente +e incida em outro aparelho SG2, orientado ao longo de +z. Nosso objetivo é determinar qual fração dos átomos que entram em SG2 são detectados em D . Para resolver este problema, podemos primeiro escrever o cr +fJ) em função dos aut~stados 1cr +z ) e cr -z) do componente de spin nas direções +z e - z. t!> estado J J 167 Conceitos de Física Quântica 168 Figura EX.2. +z (a) Considere o caso particular 8 =0º. Preencha os componentes da igualdade abaixo: jao·) = + 1 (} -z) e =90º, ou seja, o aparelho SG 1 está apontando na direção +x (Dica: veja a eq. VI.l). (b) Considere agora outro caso simples, aquele no qual 1 (} +z) + 1 (} -z) (e) Considere agora o caso e =180º, ou seja, SG 1 está apontando na direção -z. (Este caso é igual ao caso (a) com os componentes trocados.) + 1 (} -z ) (d) A partir do casos especiais acima, infira qual é a expressão para o estado geral 1 a +e ) , supondo que tal expressão envolva senas e cossenos. = + (e) A partir desta expressão para o estado 1 (} 1a 6) -z) em A, calcule qual fração do feixe (em A) chega no detector D. (2) Como foi que Kemble explicou a redução de estado, dentro de sua versão inicial da interpretação dos coletivos estatísticos (seção VI.5, item 2). O que é preciso levar em consideração para explicar o experimento da Fig. VI.6? Exercícios (vol. 1) 169 (3) Leia os trechos marcados por ill, V, VI, XIII e XVI do texto "Discussão Geral das Novas Idéias Formuladas", realizada no Congresso de Solvay de 1927 (ver referência na nota 23). Faça um resumo de uma a duas páginas sobre as discussões travadas. Cap. VII: EVOLUÇÃO U:\TIÁRIA (1) (ver seção VII.l) (a) Sob que condições se pode definir um operador hamiltoniano auto-adjunto (hermitiano) para um sistema, de forma que este seja regido pela equação de Schrõdinger? (b) Explique a diferença entre o caso em que o hamiltoniano não depende do tempo do caso em que ele depende. (e) (Desafio.) Para se descrever a emissão radioativa de um núcleo atômico, utiliza-se um hamiltoniano que não é autoadjunto. O que se pode dizer sobre este núcleo? (2) Um feixe de luz que incide em um prisma birrefringente de Wollaston, mostrado na figura, se divide em dois componentes, um com polarização linear a Oº, outro com polarização a 90º . •... ····· ...--···· > ····-····--... _ (a) Faça um desenho cuidadoso de um experimento que comprove que, em geral, os fótons que saem do prisma ainda não "escolheram" seu estado de polarização, permanecendo em uma superposição de estados com polarização a Oº e a 90º (análoga à eq. VI.2). (b) Você considera este experimento factível? (Lembre-se que o interferômetro de Mach-Zehnder é factível, mas o aparelho de Stern-Gerlach revertido não é). Cap. VIII: MEDIÇÕES EM FÍSICA QUÂNTICA (1) Considere o experimento da Fig. Vill.3, com um detector 100% eficiente. Se o átomo incidisse no detector, ele o faria no instante ti, mas, após este tempo, nada foi detectado. ~ Figura EX.3. 170 Conceitos de Física Quântica (a) Indique na tabela o que ocorreu: SIM NÃO d ~en de am~ific~ão COl'!QSO detec_ç_ão med!ç_ão redl!_Ç_ão (b) Após t i. alguém lhe pergunta: "o que se pode dizer sobre a existência prévia do valor medido de posição?" (ver seção Vill.3). O que você lhe responderia? Esta resposta se aproxima de qual interpretação da teoria quântica? Cap. IX: 0 PROBLEMA DA MEDIÇÃO (1) Considere o experimento de Stern-Gerlach com detectores que não absorvem o átomo (Fig. VI.4 ), e coloque-se na interpretação ondulatória. A questão é saber em que ponto do experimento ocorre o colapso (é o que chamamos o "problema da caracterização", seção IX. l). (a) Podemos dizer que o colapso ocorre durante a interação do átomo com os imãs do aparelho de Stern-Gerlach (ou seja, com os analisadores)? Por quê? (Consulte a seção VIl.2.) (b) Podemos dizer que o colapso é causado pela amplificação que ocorre na formação de gotículas em um dos detectores (supondo que sejam câmaras de Wilson)? Por quê? (Consulte a seção VIII.4.) (e) Podemos dizer que o colapso é causado apenas quando ocorre uma observação consciente por parte de um ser humano? É possível refutar esta posição? (Ver referência à visão subjetivista, seção IX. l.) (2) (a) O que é criptodeterminismo? (Ver seção IX.2). (b) A Mecânica Quântica é criptodeterminista ou indeterminista? (e) A Mecânica Clássica é determinista. Ela é também criptodeterminista? Justifique sua resposta. (d) (Desafio filosófico!) Se as leis da natureza fossem deterministas, e se aplicassem ao nosso cérebro, poderíamos tomar decisões no presente que não são determinadas pelos nossos estados cerebrais em um instante passado? Haveria "livre arbítrio"? 171 Exercícios Cap. X: BASE MATEMÁTIC DA TEORIA (1) Queremos medir um observável Q cujo operador correspondente Q satisfaz a seguinte equação de autovalores para os autoestados 1</),) e o auto valores Y; : Q1'Á) = Y; i<P;) Para o instante em que formos fazer a medição, sabemos o estado do sistema e o representamos na base de interesse da seguinte forma: Calcule o valor médio (lffl Qilff) deste observável para este estado. Para quem não tiver muita prática com este tipo de cálculo, eis algumas regrinhas úteis: onde ôiJ = O se = 1 (b) i=j . Se a for um escalar, com complexo conjugado a*, então: ia<P) = al9) ; (c) se i -:t j (a<Pl = a*(<PI Dica: cada vez que for substituir jlf!) por uma soma, usar índices i,j, k, l ... diferentes. (2) (Ver seção X.3) . (a) Considere um sistema no estado llff) = La; 1</>;). Calcule o valor médio do operador de projeção P[<P;]. Como interpretar este resultado? (b) Use o teorema espectral para exprimir o operador Q , que tem como autoestados l<A) e como autovalores Y; . Conceitos de Física Quântica 172 (e) Na notação de operadores de densidade, o estado llfl) se escreve como o operador de projeção W= P[lfl]. Calcule então o valor médio de Q para esse estado, usando a fórmula para operadores de densidade: ( o traço de um operador A é Q) = tr (QW) , onde definido como: tr(Ã) = L(<AIÃI~;) ; Cap. XI: 0 PRINCÍPIO DE INCERTEZA (1) Na sua opinião, o princípio de incerteza exprime um aspecto ontológico do objeto quântico, ou apenas um aspecto epistemológico? (Tais termos filosóficos são caracterizados no final da seção XI.4.) (2) O argumento dado por Heisenberg por meio do microscópico de raios y é correto? Explique. (Ver seções XI.2, item 4, e XI.4.) (3) Considere o movimento de uina partícula livre de massa m ao longo de 1 dimensão (o eixo x) , ilustrado na figura. No instante t 1, o momento Px1 da partícula é medido com boa resolução. No instante t2 , mede-se com boa resolução a posição x 2 da partícula. P x1 Figura EX.4. 111111111111J1111111111 {1 ~ Hlllllllli!lllll\111 1 1 \ ' '\ 0 j ~ '* \ ~ .,.__ ___________________ * X2 f1 Com base nestas medições, é possível inferir a posição x 1 da partícula logo após o instante t 1 , procedimento conhecido como "retrodição" (seção XI.7). (a) Escreva a equação que fornece o valor de x 1• (b) Qual é a sua opinião sobre este valor calculado? Ele corresponde de fato à posição do objeto quântico em t 1? 173 feios aceitando-se _ -~- da retrodição, há -,.-,,.,-=-.r;>·nte que o invalida roblema? (4) o que é um (1) É ~frel realizar mec!:~s incompaúveis ? (Seção XII.: r·ável de não-der.:. um medilk não-demolição demoliçãosendo usado ambas as ~-,.....,...:......_-ÃN? (2) Considere o operador de uma partícula livre adequada para o ope comutação (3) seção XI.6)? O que é -.1)? O termo "nãosignificado em njuntas de observáveis AJA) AAJ =tm ( XP,-P,- x para 1. Usando uma expressão E , calcule a relação de [i,Ê] , u Considere o eXJ>õ:I<::l~.3 _.e escolha demorada de von Weizsacker (seção _ ;:smo após o fóton passar pela lente, o cientista (chame ainda pode escolher colocar a tela detectora no plano ~ ou no plano focal. (a) Com a tela imagem, qual é o estado final do elétron? ro;~S;_lCi,;:; -.Ge a um fenómeno corpuscular ou ondulatório: (b) Com are -ocal, qual é o estado final do elétron? um fenómeno corpuscular ou Is o ondulatório? (e) Suponha que 5egunda cientista (chamada Grete), que não sabe qual zoi colha de Carl, resolva descobrir qual foi a escolha do amigo. Para isso, ela utiliza um outro microscópio para descobrir o estado final do elétron. Ela conseguirá descobrir qual foi a escolha de Carl? Explique. Cap. XII: A INTERPRETAÇÃO DA COMPLEMENTARIDADE (1) A posição de Bohr (seção XII.2) pode ser chamada de macrorealismo? Por quê? Conceitos de Física Quântica 174 (2) (Seção XII.4) No efeito Compton, um fóton de ra10 y com momento bem definido se choca com um elétron aproximadamente parado. O elétron é ejetado do átomo e detectado a um certo ângulo (em relação à direção de incidência do raio y), enquanto que o fó ton espalhado é detectado em um outro ângulo. Neste processo, verifica-se a conservação de energia e de momento. (a) Considere o 1º tipo de complementaridade. O efeito Compton satisfaz a "asserção da causalidade" . Ocorre uma "coordenação espaço-temporal"? (b) Considere o 2º tipo de complementaridade. Este experimento corresponde a um fenômeno "corpuscular" ou "ondulatório" ? (e) Considere o 3º tipo de complementaridade. Durante o choque do fóton e do elétron, as partículas têm posições bem definida? Têm momentos bem definidos? (3) Leia a seção 1 do texto de iels Bohr (1928), "O Postulado Quântico e o Recente Desenvolvimento da Teoria Atômica" (ver referência na nota 60), e faça um resumo de uma a duas páginas . Cap. XIV: REALISMO E P OSITIVISMO (1) Você é realista ou anti-realista com relação à Teoria Quântica? Você concorda com as três afirmações básicas da interpretação realista de teori as (seção XIV.3)? Qual a sua opinião sobre o realismo convergente? (2) Caracterize as seguintes posições anti -realistas: instrumentalismo, relativismo, convencionalismo, idealismo, positivismo. Com relação à Física Quântica, qual delas você considera mais plausível? Por quê? (3) Responda ao questionário sobre seu Grau de Realismo, no final desta lista de exercícios, e use o "gabarito" para estimar seu grau de realismo. Se quiser, teça comentários sobre o questionário. Cap. XV: EXPLORANDO A COMPLEMENTARIDADE (1) Explique a complementaridade de arranjos experimentais (seção III.2). Você considera que ela é violada em experimentos que exibem aspectos intermediários entre onda e partícula (seção XV.3)? Exercícios 175 (2) Considere o arranjo experimental da figura abaixo, onde F1, F2, são filtros polarizadores (orientados a 0° e a 90º) e P1, P2, prismas birefringentes (o primeiro separando componentes a 0° e 90°, o segundo a . - o e 135°). O detector de não-demolição D 5 pode ser ligado ou desligado. Supomos detectores 100% eficientes. 49' rb ILASER ~-- ~ ----i:.i_J -- - -- - -~ 05 ' B Figura EX. 5. (a) Supondo que D- esteja desligado (ou ausente), calcule a porcentagem do eixe inicial que incide em cada um dos detectores finais Di. D 2 , D 3 , D4 . Para isto pode-se usar a Teoria Ondulaffiria Clássica. (Dica: use as polarizações de luz indicadas na Fig. XV.4a). (b) Supondo D 5 ligado, calcule as porcentagens em Di. D 2, D 3 , e D 4 . Aqui é bastante útil utilizar o princípio de complementaridade. (e) No caso em que D- está ligado, considere apenas os fótons que são detectado neste medidor de não-demolição. Destes fótons, qual porcentagem é detectada em cada um dos outros detectores D1, D2, D 3 , D~? Conceitos de Física Quântica 176 (3) Considere a montagem da figura abaixo. (a) Um fóton que incide em D 1 corresponde a um fenómeno corpuscular ou ondulatório? Explique. (b) Um fóton que incide em D 2 corresponde a um fenómeno corpuscular ou ondulatório? Explique. (e) (Desafio!) É possível alterar o tipo de fenómeno (de corpuscular para ondulatório, e vice-versa), fazendo alterações nos componentes da aparelhagem, sem mudar o estado do objeto quântico (sua função de onda) em parte alguma do aparelho? 45" 'LASER~-- ~ ---~----- -- -----~ ' ' 1 ' Figura EX.6. B' 9~ D1 , __ -----i--------\ -4?~ ------{LJF2 135°: F3 • t35" 1 1 ~D2 (4) Leia o texto jornalístico da página seguinte. (a) Explique o experimento de Chiao, Kwiat e Steinberg, fazendo uma figura. (b) Que interpretação da Teoria Quântica o autor está utilizando? Somos obrigados a concordar com sua conclusão de que "o experimento parece desafiar as leis da causalidade"? Exercícios 177 Precisas iluminar a questão? Nigel Hawkes O experimento que para o ganhador do prêmio Nobel Richard Feynman era o mistério central da Física Quântica tomou-se ainda mais misterioso. Apesar de ser fácil de descrever, ele desafia explicação. Todo estudante de F'isica já viu franjas de interferência, causadas por dois feixes de luz que se sobrepõem um ao outro. Neste experimento, inventado pelo físico inglês Thomas Young no início do século XIX, ilmninam-se duas fendas ou buracos finos em uma tela. Do outro lado da tela. a luz se espalha a partir dos buracos e os dois feixes interferem entre si. Onde os picos das ondas luminosas coincidem, há brilho; mas onde um pico coincide com um vale, há escuridão. Uma segunda tela colocada no lugar certo exibe o padrão. O experimento fornece uma prova marcante de que a luz é uma onda. Mas outra evidência insiste que a luz também consiste de partículas individuais, chamadas fótons. De fato, as partículas podem ser produzidas uma a uma. Muito tempo depois da época de Young, os físicos mostraram que se fótons individuais são lançados nos buracos um por um, e os pontos de luz somados do outro lado por uma célula fotoelétrica, a interferência ainda ocorre. Temos aqui fótons individuais, que imaginaríamos que devessem passar por um buraco ou pelo outro. No entanto, de alguma maneira eles interferem consigo mesmos. Como isso é possível? Teóricos quânticos argumentariam que a interferência surge porque não é possível, nem em princípio, determinar por qual buraco o fóton passou. Em um certo sentido, portanto, eles passam por ambos, apesar de serem indivisíveis. Vocês ainda estão me acompanhando? A coisa fica pior. Se você colocar filtros de polarização entre os buracos e a segunda tela, o padrão de interferência desaparece. Colocando-se um tipo de filtro após um buraco, e outro tipo após o outro, é possível efetivamente "etiquetar'"' os fótons, identificando por qual buraco eles passam. Neste caso, o padrão de interferência desaparece, conforme teóricos quânticos preveriam. Três físicos adicionaram agora um refinamento adicional. Os doutores Raymond Chiao da Universidade da Califomia em Berkeley, Paul Kwiat da Universidade de Innsbruck e Aephraim Steinberg do US ational Institute of Standards and Technology em Maryland, adicionaram um terceiro filtro polarizador, que eles chamam de apagador, perto da segunda tela. Isso cancela a etiquetagem dos fótons, e um padrão devidamente reaparece. Este resultado parece indicar que o fóton pode dizer de antemão - antes mesmo de atingi-lo - que há um filtro apagador à sua espera do outro lado da tela. Se ocorre interferência, os fótons precisam estar passando pelos dois buracos: quando não há interferência, eles precisam estar passando por um ou pelo outro. Como é que um fóton que se aproxima dos buracos sabe como ele deve se comportar antes mesmo de encontrar filtros? O experimento parece desafiar as leis da causalidade, que insistem que resultados devem se seguir às causas, e não precedê-las. John Gribbin, relatando os experimentos no New Scientist, cita Feynman, que teria dito: "Ninguém entende a Física Quântica". Não há nenhuma surpresa nisto, visto que ela oferece enigmas como esse. (HAWKES, N., "Need a Li ht on the Sub'ect?'', The Times, Londres, 13 de mar o de 1995, . 16.) 178 Conceitos de Física Quântica Cap. XVI: O ÁTOMO (1) Com um poderoso telescópio, você está encarregado de fotografar a estrela Sírio, mas resolve aproveitar a oportunidade para fazer umas medições quânticas . Vamos supor que os fótons que você vai analisar são provenientes de átomos em uma superposição de estados de energia (E 1 e E 2 ), como o da eq. (XVI.2). (a) Você resolve medir a energia de um único átomo, e obtém o resultado E 1• Neste caso, o que você diria sobre a existência prévia deste valor medido? (Ver seção XVI.3 e, talvez, para ajudar, a seção VIII.3.) (b) Qual é o estado final do sistema, após a medição? O postulado da projeção (seções V.4 e X.2) é válido neste caso? (e) Ao invés da medição do caso (a), você resolve medir um observável cujo operador não comuta com o operador de energia. Neste caso, você diria que antes da medição o átomo tinha um valor bem definido de energia? (d) Existe algum problema de não-localidade (ação instantânea à distância) neste experimento? (2) É possível ver um átomo? Dê sua opinião com base no último parágrafo da seção XVI.3 . (3) O que é o efeito Zenão quântico? Você o considera paradoxal? (Seção XVI.4.) Cap. XVII: EXPLORANDO ÁTOMOS E CAMPOS (1) Aponte quatro diferenças entre bósons (como fótons) e férmions (como elétrons). (Seções XVII.1 a 4.) (2) O que é o vácuo? Ele é completamente vazio? (3) O estado 1<P v) de um feixe de laser é descrito pelos peculiares "estados coerentes", discutidos na seção XVII.6. (a) A este estado corresponde um Mmero de fótons bem definido? Uma fase bem definida? (b) O que acontece com este estado se retirarmos um fóton do feixe? Exercícios (e) Se repetirmos esta operação (de retirada de um fóton) octilhões de vezes, o feixe acabará sumindo. Isto contradiz a resposta do item (b)? Cap. XVIII: M.IsrQus E O OPERADOR DE DENSIDADE (1) O que é a interpretação da ignorância (seção XVIII.3)? Ela é uma visão reali ta? Por quê? Você simpatiza mais com esta interpretação ou com a visão rival? (2) Sejam ja_J e a_J auto-estados do componente de spin na direção z e "ja.m la=.i ) = }i-JCY+z) ± }i-JCY_ Considere o 1 ). estado representado pelo seguinte operador de densidade (apud B LUM, nota Obtenha a matriz de densidade correspondente, na representação {CY+, , cr_,} e verifique a polarização do estado nas direções x e z, calculando o 'talor médio (eq. XVIII.3) das matrizes de Pauli: Ô" = [I O] . z o -1 (3) (a) O que são duas misturas equivalentes? (b) É possível distinguir feixes representadôs por misturas equivalentes através da medição de flutuações? (Seção XVIII.4.) Cap. XIX: SPIN E A INTERFEROMETRIA DE NÊUTRONS (1) O spin é uma propriedade relativística? (2) Calcule a probabilidade de se detectar um nêutron com spin +x no caminho O, em função da defasagem <p . Utilize para isso as eqs. (XIX.2) e (XIX.3). 179 180 Conceitos de Física Quântica (3) Ao apresentarmos a noção de colapso, consideramos um exemplo (Fig. VI.l) no qual o colapso se dá de maneira concomitante à transferência de um quantum de energia do objeto quântico para o aparelho de medição. (a) Todo colapso implica uma transferência de quantum de energia? (b) Toda transferência de um quantum de energia implica um colapso? (Seção XIX.5) Cap. XX: REVENDO O EXPERIME.l'\TO DAS D UAS FENDAS (1) Considere as seguintes variações do experimento das duas fendas. (a) Se colocarmos em uma das fendas um medidor de nãodemolição que registra a passagem de um fóton sem absorvêlo, o padrão de interferência permanece ou desaparece? Explique brevemente por quê. (Ver seção V .1.) (b) Se colocarmos em uma das fendas uma "placa de meia onda", que introduz uma defasagem de meio comprimento de onda nas ondas que a atravessam, o que acontece com o padrão de interferência? Permanece ou desaparece? (Ver seção II.4.) (e) Se colocarmos em ambas as fendas filtros polarizadores, um orientado a Oº e o outro a 90º, o padrão de interferência permanece ou desaparece? Explique brevemente por quê. (Ver seção XVII.2.) (2) Como uma interpretação corpuscular explica a interferência de elétrons em um biprisma eletrostático? (Ver seções XX.4 e 5.) Exercícios APÊNDICE: Questionário Lúdico: Qual é seu Grau de Realismo? 1) Uma árvore grande que caiu em um bosque desabitado emitiu um som ao cair? D a) Sim. D b) ão. D c) Esta pergunta não faz sentido. D d) Esta pergunta faz sentido mas não tem resposta. D e) ão sei. 2) "Partículas virtuais são necessárias para explicar fenômenos em eletrodinâmica quântica, mas elas são rapidamente emitidas e absorvidas, e nunca podem ser observadas. Elas existem? D a) Supondo que a teoria está correta, sim. D b) Mesmo supondo que a teoria é correta, não. D c) Esta pergunta não faz sentido. D d) ão sei. 3) Considere uma teoria física que consegue prever corretamente os resultados de medições, em um certo domínio experimental (por exemplo através de fórmulas empíricas descobertas por tentativa e erro) . Porém. esta teoria não fornece nenhum modelo ou explicação de como a realidade funciona (neste domínio). Esta é uma boa teoria? D a) Sim. D b) Não. D c) Não sei. 4) A verdade, com relação ao mundo da física, muda de época para época, ou ela é sempre a mesma, mesmo que a desconheçamos? D a) Muda de época para época. D b) Ela é sempre a mesma. D c) Esta pergunta não faz sentido. D d) Não sei. 181 182 Conceitos de Física Quântica 5) Existe Deus? D a) Sim. D b) Não. D c) Esta pergunta não faz sentido. O d) Esta pergunta faz sentido, mas nunca saberemos a resposta. · 6) Existe "a árvore" enquanto termo universal, sendo que só existem árvores individuais ? D a) Sim, "a árvore" existe. O b) Não, "a árvore" é só um nome; só existem árvores individuais. D c) Esta pergunta não faz sentido. D d) Não sei. 7) No contexto da física, você concorda com a seguinte afirmação: "Só é válido definir uma grandeza se ao mesmo tempo fornecermos o procedimento experimental para medí-la" ? D a) Sim. D b) ão. D c) Esta pergunta não faz sentido. D d) ão sei. 8) É aceitável que a teoria quântica não descreva uma realidade independente do observador, mas apenas a realidade enquanto ela é observada? O a) Sim. De fato este é um traço que deve ser benvindo ! O b) Sim. Se não houver outra saída, paciência... D e) D d) ão é aceitável. Devemos tentar sanar esta situação. ão sei. 9) Um objeto físico (por exemplo, este papel) é um conjunto de sensações, ou é a causa externa de um conjunto de sensações? D a) Um conjunto de sensações . D b) A causa externa de um conjunto de sensações. D e) Esta pergunta não faz sentido. D d) Não sei. Exercícios 10) Podemos obter verdades sobre o mundo externo apenas a partir do pensamento (de maneira "a priori"), sem levar em consideração nenhuma observação empírica relevante? O a) Sim. De fato, este é o método mais seguro e adequado. O b) Sim. Apesar da observação ser importante, há verdades que podem ser obtidas desta maneira a priori. O c) Não. Toda informação sobre o mundo externo é obtida através da observação. D d) Esta pergunta não tem sentido. O e) ão ei. 11) Depois que você morrer (se você morrer), o mundo continuará existindo? O a) Sim. D b) ão. D e) Esta pergunta não faz sentido. D d) ão sei. ' " ' 12) Se toda a humanidade morresse (ou todos os seres pensantes do universo), e não houvesse tempo de uma nova civilização pensante evoluir, o mundo continuaria existindo? D a) Sim. . D b) Não . D e) Esta pergunta não faz sentido. D d) Não sei. 183 184 Conceitos de Física Quântica 13) Suponha que toda a humanidade morreu (nas condições da questão anterior), e um núcleo transurânico teoricamente possível (por exemplo, de número atômico 135) nunca tivesse sido fabricado. Este núcleo tem realidade? O a) Sim. O b) Mais ou menos. Digamos que tem uma realidade "potencial". O c) Mais ou menos. Digamos que tinha uma realidade "potencial' enquanto havia homens, mas depois deixou de ter. O d) Não. ão tem realidade, e nunca teve. O e) Esta pergunta não faz sentido. O f) Não sei. 14) Isto que você está vendo agora está em sua retina, ou está no mundo exterior? O a) Apenas em minha retina. A partir desta imagem, infiro fatos externo . O b) Nos dois. Em minha retina e no mundo externo. O c) Apenas no mundo exterior. O d) Esta pergunta não faz entido. O e) Não sei. 15) A Mecânica ewtoniana é verdadeira? O a) Não, ela é falsa. O b) Ela é verdadeira em certos domínios , mas em outros não. O c) Ela era verdadeira no século XVIII, mas hoje é falsa. O d) Ela era absolutamente verdadeira no século XVIII, mas hoje só é verdadeira em certos domínios. O e) ão sei . " Exercícios 16) A Mecânica Relativística (Restrita e Geral) é verdadeira? D a) Não, ela é falsa. (Não dá pra falar em proximidade com a verdade.) D b) Ela é falsa, mas está mais próxima da verdade do que a mecânica newtoniana. D c) Ela é verdadeira hoje, mas no futuro provavelmente não será mais. D d) Parece que ela é verdadeira, sim. Ela conseguiu atingir a verdade. D e) Ião tenho opinião. 17) Qual é o objetivo pri meiro da ciência? D a) Atingir a verdade. '-D b) Dar conta das observações de maneira económica. D c) Resolver problemas. D d) Gerar tecnologia. D e) ~ ão há um único objetivo principal. 18) Existe um espírito, ou uma consciência (ou talvez uma "alma") que sej a independente da matéria? D a) Sim. O espírito sobrevive fora do corpo. D b) Sim, o espírito é livre. Porém, com a morte, o espírito de aparece. D c) ão. O espírito é causado pela matéria. D d) Esta pergunta não faz sentido. D e) ão quero opinar. É possível ob ervar uma coisa de maneira desinteressada, nêutra, sem alterar de nenhum modo a percepção devido a opiniões e conhecimentos teóricos? D a) Sim. 19) D b) Não . Toda observação está impregnada de suposições teóricas. D e) Esta pergunta está mal formulada. D d) Não sei . 185 Conceitos de Física Quântica 20) Como você gosta de interpretar a Física Quântica? O a) Existem ondas, pacotes de onda, colapsos etc. O b) Existem partículas, com ondas associadas, que interagem à distância. O c) Há um dualismo complementar entre onda e partícula: ora observamos um, ora outro, conforme o experimento. O d) A teoria é incompleta. O e) Não sei. \ 187 Exercícios "Gabarito" do Questionário Lúdico: Qual é seu Grau de Realismo? Para cada pergunta, apresentamos o tema sendo sendo questionado, e o nome da posição associada a cada resposta. Para a estimativa do "grau de realismo", deve-se somar S pontos para as respostas correspondentes à letra R (realismo), 2,5 pontos para as respostas indicadas por llzR-V2P (nêutra) e O pontos para as respostas P (positivismo). A soma das vinte perguntas equivale a uma porcentagem que mede o "grau de realismo". Este é um questionário lúdico, que apenas auxilia a discussão do Cap. XIV. 1) REALISMO O NTOLÓGICO. (a) Realismo ontológico. R (b) Idealismo subjetivista. P (c) Positivismo lógico. P (d) Cético. P (e) Um "perfeccionismo", oposto ao falibi lismo. llzR-Vtl' 2) TERMOS TEÓRICOS. (a) Realismo científico. R (b) Positivismo 'negador". P (c) Positivismo lógico. P (d) llzR- 1hP 3) INSTRUME TALISMO . (a) Instrumentalismo. P (b) Realismo Científico. R (c) 1/2R-V2P 4) VERDADE. (a) Verdade pragmática: relativismo. P (b) Verdade por correspondência: realismo científico. R (c) Alguma forma de positivismo. P (d) llzR-V2P 5) DEUS. (a) Teísmo . R (b) Ateísmo. Realismo o/1tológico ou um positivismo "negador". V2R-V2P (c) Positivismo lógico. P (d) Agnosticismo. V2R-llzP 6) NOMINALISMO. (a) Realismo de uni versais, uma forma das quais é o realismo platônico. R (b) Nominalismo. P (c) Positivismo lógico. P (d) 1hR-llzP 7) ÜPERACIONALISMO . (a) Operacionalismo. P (b) Realismo científico. R (c) Algum positivismo. P (d) llzR-llzP 8) IDEALISMO NA FÍSICA QUÂNTICA. (a) Um positivismo "eufórico". P (b) Um positivismo "moderado". P (c) Realismo epistemológico. R (d) V2R-llzP 188 Conceitos de Física Quântica 9) SENSACIONISMO. (a) Sensacionismo ou empirismo radical. P (b) Realismo, mesmo um fisicalismo. R (c) Positivismo lógico. P (d) 1/zR-1/zP 10) RACIONALISMO. (a) Racionalismo cartesiano. R (b) Apriorismo kantiano. R (c) Empirismo clássico. P (d) Alguma forma de positivismo. P (e) Y2R-1/zP 11) SOLIPSISMO. (a) Realismo ontológico, consistente com formas moderadas de positivismo. R (b) Idealismo solipsista. P (c) Positivismo lógico. P (d) Alguma forma de ceticismo. P 12) IDEALISMO SUBJETIVISTA. (a) Realismo ontológico. R (b) Idealismo subjetivista. P (c) Positivismo lógico. P (d) Alguma forma de positivismo. P 13) 0 POSSÍVEL. (a) Realismo "de potencialidades". R (b) Idem. R (c) Um positivismo "de potencialidades". P (d) "Atualismo". Y2-Y2. (e) Positivismo lógico. P ( f) Y2R-1/zP 15) VERDADE. (a) Realismo com verdade por correspondência, podendo ser um realismo convergente. R (b) Atitude que pode incorporar uma noção de verdade aproximada. P (c) Verdade por convenção (pragmática). P (d) Itens b e c. P (e) Yill.-1/iP 16) REALISMO CONVERGENTE. (a) Um ceticismo. P (b) Realismo convergente. R (e) erdade por convenção (pragmática). P (d) Realismo talvez ingênuo. R (e) ~-YzP 17) OBJETIVO DA CIÊNCIA. (a) Realismo científico. R (b) Instrumentalismo (forte e fraco). P (c) Pragmatismo (tipo Laudan). P (d) Pragmatismo. P (e) Pluralismo e/ou anarquismo epistemológico. P 18) MATERIALISMO. (a) Espiritismo, dualismo mente-cérebro. R (b) Um dualismo mais materialista. R (c) Materialismo. R (d) ma forma de positivismo. P (e) Yill.-YzP 19) L\llPREG AÇÃO TEÓRICA (theory ladenness) DA OBSERVAÇÃO. 14) SENSACIONISMO. (a) Sensacionismo, com realismo ontológico. P (b) Realismo. R (c) Um realismo ingênuo. R (d) Alguma forma de positivismo. P (e) 1/zR-1/zP (a) Empirismo puro, "ingênuo". P (b) Negação do empirismo puro. R (c) 1/zR-1/zP (d) Y2R-Y2P Exercícios 189 20) INTERPRETAÇÃO DA FÍSICA QUÂNTICA. (a) Realismo da interpretação ondulatória. R (b) Realismo da interpretação da dupla solução. R (c) Positivismo da interpretação da complementaridade. P (d) Realismo da interpretação dos coletivos estatísticos. R (e) V2R-1hP .'·\ ~:. ~ ~ ~· •· .. .. ........ realismo e positivismo, fenómenos intermediários, átomos e campos, misturas e operador de densidade, spin, interferometria de nêutrons e experimento das duas fendas. Sobre oautor: '-. Osvaldo Pessoa Jr. é formado em Física (1982) e Rlosofia (1984) pela Universidade de São Paulo (USP). Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) completou seu mestrado em Física (1985) e cursou um ano do Mestrado em Lógica e Filosofia da Ciência. Estudou no Departamento de História e Filosofia da Ciência da Indiana University, EUA, onde obteve seu doutorado em 1990, com uma tese sobre o problema da medição na mecânica quântica. Trabalhou como bolsista no Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp (1991-3) e no Instituto de Física da USP (1994-6), e foi professor convidado no Instituto de Estudos Avançados da USP (1997-8). Entre 1999 e 2002 permaneceu na Bahia, onde foi professor na Universidade de Feira de Santana e no Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia, ligado ao Mestrado de Ensino, Filosofia e História das Ciências. Atualmente é professor no Depto. de Filosofia da FFLCH USP. Editora Livraria da Física www.livrariadafisica.com.br livraria@if.usp.br Este volume é uma introdução bastante suave à Física Quântica, que dá ênfase aos conceitos, às interpretações e às questões filosóficas da teoria. Uma das finalidades do livro é complementar as disciplinas usuais de Mecânica Quântica com uma abordagem mais intuitiva e menos matemática. Ele pode ser aproveitado mesmo por · aqueles que nunca cursaram uma disciplina de Mecânica · ·· Quântica, como alunos de Filosofia, Ensino de Ciências, História da Ciência e outras áreas científicas. u 1111111111111111111111111111111111111111 001352 1 . ·' Editora Livraria da Física www.livrariadafisica.com.br ectnora livraria@if.usp.br ~l!.'-~rm 111n 111 111t •n111 111 9 'fo8588 325 173