Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 1/49 NATUREZA/CULTURA Edmund Leach in: Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1989, vol.5 - Anthropos — Homem, p.67-101. Índice do ensaio: 1. A ideia de natureza na Grécia antiga e no Renascimento 2. Abordagens subjectivas e objectivas da distinção natureza/cultura 3. Cultura concebida como roupagem da natureza nua 4. A cultura como parte da natureza 5. Polaridades conceptuais: nós/outros, cultura/culturas 6. Natural, não-natural, sobrenatural 7. A natureza concebida como modelo da cultura humana 8. Tempo social e tempo natural 9. Mapas e outros modelos 10. Ciência natural/ciência social 11. A dicotomia natureza/cultura na psicanálise e seus derivados 12. A visão marxista do homem e da natureza 13. A natureza entendida como cultura Bibliografia Neste artigo propomo-nos elucidar as relações entre os conceitos de natureza e de cultura, tal como são actualmente empregues pelos investigadores e, em particular, pelos que abordam estas questões do ponto de vista da antropologia profissional. Diferentes aspectos do problema são examinados noutros artigos desta mesma Enciclopédia: «Anthropos», que se ocupa do desenvolvimento contrastado da ideia segundo a qual a «espécie humana» constitui algo de unitário, e «Cultura/culturas», que se ocupa do uso que os antropólogos profissionais têm feito do conceito de «cultura», desde que este termo começou a ser considerado sinónimo de «civilização», em meados do século XIX. Ao longo dos séculos, o significado do termo ‘natureza* tem sofrido uma série de transformações. As ideias actuais acerca do tema têm origem a) na noção grega de physis (de onde physiké ‘física', o ‘conhecimento da natureza'), e b) na modificação, num sentido dualista, que esta concepção unitária da Idade Clássica sofreu no período do Renascimento tardio. Uma excelente análise deste ramo da história das ideias é a traçada por Collingwood no seu ensaio The ldea of Nature. [1915]. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 2/49 1. A ideia de natureza na Grécia antiga e no Renascimento No pensamento grego, a natureza representava, de facto, um princípio tautológico, uma causa final. Pensava-se que o mundo exterior, dotado de existência independente do pensamento e da acção humana, estava impregnado de uma ordem — ou de um espírito — metafísica. O futuro, por conseguinte, estava imanente no presente. e a natureza de uma substância, implícita no seu desenvolvimento teleológico: é próprio da água correr pela colina, é da natureza de um feto desenvolver-se num animal completo. O mundo da natureza surgia como um mundo de corpos em movimento, uma totalidade em devir, cuja mola era a vitalidade ou a «alma». Mas o mundo da natureza não se revela simplesmente «vivo» nesta acepção; é ainda dotado de ordem própria, de uma inteligência: comporta-se como um grande animal racional, com um espírito próprio. Uma vez que os Gregos tinham como axioma que nada era cognoscível pelo homem a menos que fosse imutável, poderia parecer que uma ciência da natureza seria, para eles, uma impossibilidade, dado que viam a natureza como um mundo em perpétuo devir. O mundo é aquilo que é, e não é possível explicá-lo senão como um pensamento do espírito de 1)eus. Mas esta concepção metafísica conduz apenas a uma regressio ad infinitum. Com efeito, se se considerar Deus como a causa final da natureza, a consequência será que Deus é a natureza da natureza, e a pergunta «O que é a natureza?» continua sem resposta. Os Gregos enfrentaram esta dificuldade seguindo duas direcções: o estudo da «substância» ou da «matéria» — na qual se manifestam os processos naturais—e as «leis» que governam a acção dos processos de mudança. Estes dois elementos, a matéria por um lado, e a lei natural por outro, eram considerados (axiomaticamente) imutáveis e, por isso, cognoscíveis. A acreditarmos em Aristóteles, foram os jónicos que transformaram a pergunta «O que é a natureza?» numa outra, de sentido materialista: «De que é feita a natureza?» Em seguida, os pitagóricos, utilizando a linguagem do idealismo, puseram, pelo contrário, a seguinte questão: «O que é que significa a proposição que diz que A é feito de B ?» ou, noutros termos, «Que formas fazem com que a matéria seja aquilo que é?» A este propósito cabe lembrar que — pelo menos para Platão — as «formas» eram mais «reais» (alèthès) que a substância visível que constitui os objectos. A substância visível, com efeito, tal como é percebida pelos homens, é algo que se esconde por trás das aparências, enquanto que, relativamente às formas matemáticas, não se corre o risco de desilusões. Se se coloca a questão nestes termos, o homem torna-se potencialmente capaz de compreender a natureza, uma vez que as suas múltiplas aparências passam a poder ser interpretadas como uma série de transformações sucessivas da sua forma matemática última. Mas, deste Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 3/49 modo, também as «leis» que governam os processos de mutação transformacional ficavam para além das possibilidades de análise. Estabelecia-se que eram causas finais, verdadeiras em si próprias, mas sem explicação. No Renascimento, a ciência subverte esta teleologia aristotélica, «a teoria das causas finais, a tentativa de explicar a natureza como se esta se encontrasse animada por uma tensão, por um “esforço" no sentido de realizar formas ainda não existentes»: «a nova teoria da natureza insistia na importância das explicações por meio das causas eficientes, o que significava explicar qualquer modificação ou processo por meio da acção de entidades materiais já existentes no início dessa modificação ou processo» [Collingwood 1945, pp. 93, 94]. Esta nova posição dos termos do problema continha implicações profundas. No sistema de ideias anterior, não se punham os problemas da relação entre matéria inerte e matéria viva, entre matéria e espírito, uma vez que se assentara em que havia um princípio imanente único, capaz de explicar os movimentos dos corpos celestes, o crescimento e a decomposição sazonais das plantas, o ciclo da vida do indivíduo ou o destino das nações. «Não havia mundo material desprovido de espírito, nem mundo espiritual sem materialidade» [ibid., p. 111]. Mas, a partir do século XVII, o «espírito» e a «matéria» tinham-se tornado entidades separadas, e o mundo mecânico, objectivo, físico, é identificado com a natureza, em oposição potencial com o universo das construções do espírito humano, consideradas estas mais tarde, em termos genéricos, como fazendo parte do «mundo da cultura». Posição, como se vê, inversa da formulada pelos Gregos, para os quais a «natureza» (physis) representava o princípio espiritual do desenvolvimento, da organização e do movimento «interno» das coisas, contrapondo-se às «qualidades», em si objectivas e não naturais, que o engenho humano lograva atribuir-lhes. Paradoxalmente, as concepções actualmente em voga, segundo as quais o significado dos fenómenos culturais poderá ser descoberto através de uma análise transformacional das estruturas permanentes, revelam estreitas analogias com os procedimentos utilizados pelos Gregos para a resolução dos enigmas da natureza. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 4/49 2. Abordagens subjectivas e objectivas da distinção natureza/cultura As ambiguidades do moderno conceito de cultura são debatidas noutro lugar (cf. o artigo «Cultura/culturas» neste volume da Enciclopédia). Para certos antropólogos, o traço essencial que caracteriza a cultura é a sua transmissão de geração em geração através da aprendizagem. Deste modo, a cultura torna-se um fenómeno inteiramente subjectivo, um processo de modelagem das ideias no interior do espírito humano. Mas há também antropólogos (e arqueólogos) que consideram a cultura um dado objectivo, consistindo num conjunto de artefactos humanos e em comportamentos e costumes directamente observáveis, que se encontram (ou, noutro tempo, se encontraram) associados a esses artefactos. A relação entre natureza e cultura será representada de maneira muito diferente segundo se adopte uma ou outra destas duas orientações fundamentais. Os que sublinham os aspectos subjectivos da cultura referem-se muitas vezes à analogia entre a actividade cultural e a linguagem, à fórmula «a cultura é comunicação». Os defensores desta tese ocupam-se sobretudo das construções claramente metafísicas do espírito humano, indicadas por meio do recurso às «categorias» vagas e multiformes da «religião», da «magia», do «mito», da «filosofia», da «arte». Assim, os que fazem sua esta atitude anti-empírica consideram a documentação etnográfica mais uma ilustração do que a fonte do problema, e concordam em que o espírito humano é imutável e idêntico em toda a parte: estão, por conseguinte, convencidos de que a análise comparativa se pode alargar percorrendo todo o arco descrito pela história humana, com todos os seus cambiantes. The Golden Bough [1911-15] de Frazer e Mythologiques [1964-71] de Lévi-Strauss são exemplos deste posicionamento metodológico, embora se singularizem pela consumada destreza com que manejam o método comparativo. Com a notável diferença de que Frazer considerava o pensamento dos selvagens infantil e subdesenvolvido, enquanto Lévi-Strauss vê na Pensée sauvage o fundamento e o protótipo de qualquer forma de pensamento humano. Como seria de esperar, os antropólogos que utilizam o conceito de cultura de modo tão abstracto, geral e racionalista, tratam a «natureza» do mesmo modo. A natureza, como a cultura, é uma ideia, habitualmente definida de modo extremamente vago, e muito raramente posta em relação com um conjunto bem determinado de factos empíricos. A passagem que se segue constitui um excelente exemplo deste tipo de perspectiva analítica: «[O desenvolvimento] implica de facto uma prioridade incondicionalmente reconhecida da cultura em relação à natureza, prioridade que quase nunca vemos admitida fora da área da civilização industrial. Indubitavelmente, a descontinuidade entre os dois remos é reconhecida de modo universal, e não existe sociedade, por mais humilde que seja, que não atribua um valor privilegiado às artes da civilização, cuja descoberta e utilização fazem com que a humanidade se separe da animalidade. No entanto, entre os povos ditos Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 5/49 “primitivos”, a noção de natureza manifesta sempre um carácter ambíguo: a natureza é pró-cultura e é também subcultura; mas é sobretudo o terreno sobre o qual o homem pode esperar entrar em contacto com os antepassados, os espíritos e os deuses. Na noção de natureza há, portanto, uma componente “sobrenatural”, e esta “sobre-natureza” é tão incontestavelmente uma supra-cultura, quanto a própria natureza é subcultura» [Lévi-Strauss, 1961, trad. it., p. 362]. Voltaremos mais adiante a esta questão da relação «ambígua» entre o mundo natural e o sobrenatural. Mas é necessário dizer desde já, com toda a clareza possível, que se é fácil encontrarem-se casos de documentação etnográfica que confirmam as teses gerais de Lévi-Strauss, é também possível citar um grande número de casos em que a concordância entre a sua teoria e os factos empíricos se revela muito escassa. Os antropólogos que buscam a objectividade são, em contrapartida, muito cépticos perante as generalizações alargadas deste tipo. A sua investigação visa desde o início concretizar os pormenores mais minuciosos de uma organização sócio-cultural bem determinada. As generalizações que estes investigadores depois propõem limitam-se a estabelecer nexos comparativos entre elementos bem definidos no campo da tecnologia, da economia, do direito e da organização política. A perspectiva da análise atende sobretudo aos dados empíricos: as interpretações apresentam-se como resultado dos inquéritos etnográficos, a partir da rejeição explícita de quaisquer teses a priori. As duas posições antropológicas acima descritas, e definidas respectiva-mente como subjectivista e objectivista, são representadas nas suas formulações mais radicais, por um lado, pelo estruturalismo de Lévi-Strauss e, por outro lado, pelo funcionalismo de Malinowski e Raymond Firth. A distinção torna-se nítida na oposição dos modos que uma e outra têm de conceber e analisar os sistemas de parentesco. O ponto de partida das análises dos subjectivistas foi resumido por Lévi-Strauss numa passagem em que este procura esclarecer melhor a posição que formulara em 1945: «Que visava o meu artigo de 1945? Tratava-se de mostrar, contra Radcliffe-Brown e a maior parte dos etnólogos da sua geração, que uma estrutura de parentesco não poderá nunca, por simples que seja, ser construída a partir da família biológica composta pelo pai, pela mãe e pelos seus filhos, implicando sempre, pelo contrário, o estabelecimento à partida de uma relação de aliança. Esta última resulta de um facto praticamente universal nas sociedades humanas: para um homem poder obter uma esposa, é necessário que esta .última lhe seja cedida, directa ou indirectamente, por um outro homem, o qual, nos casos mais simples, está na posição de pai ou de irmão da mulher» [1973, trad. it., pp.121-22]. Deste ponto de vista, conforme se pode observar, o fundamento do parentesco é o matrimónio entendido como aliança, como um fenómeno cultural contraposto ao incesto entre pai e filha e entre irmão e irmã, sendo este último considerado um fenómeno natural. Por esta razão, a linguagem dos sistemas de parentesco é Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 6/49 elaborada independentemente das relações biológicas. Na prática, os subjectivistas discutem o parentesco como se este fosse um sistema de classificação quase arbitrário, articulado por regras de descendência, de residência e de matrimónio, de molde a revelar a matriz através da qual corre a comunicação cultural. Na sua obra célebre, Les structures élèmentaires de la parenté [1947] Lévi-Strauss adiantou a tese de que as regras matrimoniais e a classificação dos termos de parentesco mais difundidos nas diversas culturas apresentam uma «forma» particular (no sentido platónico), caracterizada por uma tendência interna para a transformação. No seu entender, os antropólogos poderão descobrir os mecanismos fundamentais do parentesco através da comparação de uma variedade de formas deste género, entendidas como sucessivas transformações estruturais de uma na outra. A causa final destes processos de transformação cultural é o «espírito humano» (l*esprit humain). Alguns dos críticos de Lévi-Strauss fizeram notar que, embora essa misteriosa força seja designada por ele como «humana», revela todos os atributos característicos de uma lei natural! Os objectivistas defendem ideias opostas e concebem o parentesco como um conjunto de comportamentos empíricos, que gravitam em torno dos mecanismos naturais da relação sexual e da reprodução biológica. Neste contexto, o parentesco é o quadro cultural no interior do qual uma sociedade se reproduz, através da procriação e educação da descendência. Segundo esta perspectiva, o parentesco apresenta-se como um tecido resultante da interacção dos indivíduos em todos os campos das actividades sociais instituídas, campo económico, político, jurídico ou religioso. O elemento característico do parentesco no quadro destas actividades é representado pelo interesse que os membros de um dado agregado familiar têm em comum; é esse elemento o que explica as relações de parentesco estabelecidas. Aqui, por conseguinte, o parentesco torna-se um problema de biologia. A matriz social é o mecanismo fundamental da perpetuação da espécie. As duas monografias clássicas que melhor ilustram esta corrente de pensamento são The Sexual Life of Savages in North-Western Melanesia [1929] de Malinowski e We, the Tikopia [1936] de Firth. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 7/49 3. Cultura concebida como roupagem da natureza nua Na prática, muitos dos antropólogos contemporâneos adoptaram uma posição intermediária entre o radicalismo subjectivista e o radicalismo objectivista, ou seja, oscilam entre uma e outra posição. Em parte por consequência dessa labilidade, a distinção entre natureza e cultura é muitas vezes concebida de modo simplista. Foi repetido, por exemplo, por gerações de antropólogos, que «o homem entendido como ser humano» (isto é, o homem dotado de cultura) deveria ser concebido como um «homem-animal (isto é, como um homem natural) revestido de cultura». Sendo assim, pouca importância tem que a cultura sobreposta à base animal seja concebida como uma matriz de ideias, subjectiva e interiorizada, ou como um conjunto de artefactos materiais e de comportamentos manifestos e directamente observáveis. A «definição» de cultura de Tylor [1871], tornada entretanto clássica, é uma espécie de passe-partout igualmente adequado à posição subjectivista como à objectivista. Mas, se se inverter o raciocínio acima referido, então o homem natural torna-se um «ser humano ao qual tenha sido subtraída a cultura». Um homem natural desse tipo não é susceptível de observação directa, mas imagina-se com facilidade. Basta postularmos a condição de um membro hipotético da espécie Homo que viva no estado natural, isolado de todos os outros membros da sua espécie. Essa criatura seria dotada de todas as capacidades e de todos os atributos derivados da sua hereditariedade genética, mas privada dos caracteres que os verdadeiros homens possuem graças ao facto de viverem em sociedade. Assim, o nosso Homo selvagem e isolado, o nosso protótipo de «homem natural», seria destituído de linguagem, de costumes e de todos aqueles requintes materiais de que se rodeiam significativamente os mais simples dos homens reais. Seguindose esta via, é possível elaborar um conceito de «cultura» baseado na observação do homem em sociedade, tal como é realmente, e eliminando as características do nosso homem natural imaginário, em estado selvagem. A convicção de que através de um método deste género seja possível distinguir a animalidade do homem (que é natural) da sua humanidade (que é cultural) tem uma longa história, feita de repetidas experiências nas quais crianças, que cresceram, ao que parece, em completo isolamento, ou apenas com a companhia de animais selvagens, foram atentamente estudadas com o objectivo de se apurarem os seus atributos «naturais», uma vez despidos de todo o elemento cultural, e particularmente visando definir a sua linguagem natural. Acontece que mesmo os filósofos que mais perspicazmente se deram conta de que a linguagem é uma característica cultural criada pelo homem, não souberam resistir até às últimas consequências à tendência para discutir o problema como se, em termos gerais, a cultura fosse semelhante a uma roupagem habilmente confeccionada para cobrir o corpo nu do homem natural, embora se mostrassem em desacordo entre si acerca do problema dos traços naturais fundamentais que deveriam atribuir-se a esse homem natural. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 8/49 Hobbes, escrevendo em meados do século XVII, sustenta que o homem natural deixado no estado selvagem é como uma fera, presa da luta de todos contra todos. Pufendorf, pelo contrário, escrevendo na mesma época, sustenta que o homem é por natureza uma criatura social, e que a tendência para a cooperação e para a amizade faz parte da natureza humana. Para Locke, embora o espírito do homem seja uma tabula rasa, «uma folha de papel em branco», no momento do nascimento, ele é, todavia, dotado de racionalidade, em virtude da sua própria natureza. Vico e Rousseau estavam convencidos de que a poesia acontecia naturalmente no homem, pensando que ela é a expressão imediata das emoções, enquanto o discurso racional, segundo a mesma perspectiva, representaria uma invenção cultural elaborada pelo homem, paralelamente ao desenvolvimento da linguagem. Ainda nos últimos trinta anos, o antropólogo americano Leslie A. White pretendeu que a «simbolização» é um dote natural único, próprio da espécie Homo sapiens, constituindo o fundamento de toda actividade cultural humana. Mais tarde, Noam Chomsky afirmou que, ao nível das «estruturas profundas», as gramáticas de todas as línguas humanas são semelhantes, e que a nossa capacidade de aprender a usar de modo transformacional esta gramática fundamental, em vista da manipulação de conceitos e da formação de enunciados verbais, é um dom natural inato. Estas análises partem de uma multiplicidade de pressupostos incorrectos. O primeiro está em supor que é possível pôr inteiramente a nu a natureza do homem por via experimental, examinando as características de algumas crianças que se desenvolveram em condições de isolamento artificial. O nosso modelo experimental do animal-homem natural que vive isolado é incompleto: uma criatura desse género não poderia também existir na natureza. Se se formar a hipótese de um animal desprovido de cultura, e se se lhe chamar animal natural, será preciso fornecer-lhe ainda um parceiro sexual, uma mulher natural, urna Eva, uma companheira do nosso Adão experimental. Mas, se estas criaturas imaginárias fossem membros autênticos da espécie a que nós pertencemos, o Homo sapiens, mostrar-se-iam capazes não só de «codificarem» o pensamento numa linguagem, como também de «descodificarem» o comportamento linguístico de outrem. Ainda que na nossa situação puramente hipotética o par reprodutivo inicial começasse a experiência sem dispor nem de cultura nem de linguagem, deveríamos supor que, em virtude dos seus atributos naturais, instituiria imediatamente, entre eles, um sistema de transmissão cultural, embora este não tomasse necessariamente a forma da linguagem verbal. O erro do tipo de postulado de Vico e de Rousseau é de um género bastante mais subtil, e resulta talvez de uma certa ambiguidade. As suas teses admitem uma progressão evolutiva do homem, a partir do estado natural, sem artefactos nem linguagem, até ao estado cultural, com artefactos e linguagem, mas situam a causa eficiente deste progresso na própria força inventiva humana. Isso equivale, porém, a dizer que a actividade intrinsecamente racional da previsão imaginativa abstracta Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 9/49 pode ser atributo de uma criatura que não possui ainda o instrumento privilegiado das operações espirituais humanas desse tipo, ou seja, a linguagem. Talvez alguns postulados deste género sejam inevitáveis, mas o certo é que os pensadores do século XVIII não se deram plenamente conta da complexidade do problema. É razoável supor que há muitos milhões de anos tenha existido uma espécie de Proto-hominídeos, na origem tanto do homem actual como dos símios actuais, e que essa espécie possuísse já uma capacidade rudimentar de formar e manipular categorias, análoga àquela descoberta, nos Estados Unidos, em chimpanzés criados de modo semelhante às crianças humanas. Mas o processo de evolução dessa capacidade limitada até à plena capacidade, característica do homem actual, de coordenação e elaboração linguística, implica toda uma série de mutações que, de início, devem ter tido lugar casualmente, mas que depois se tornaram de algum modo uma característica geneticamente determinada, compartilhada por todos os membros da espécie humana, na sequência de uma adaptação selectiva. Um desenvolvimento evolutivo deste género é um processo histórico completamente diferente da invenção consciente. Por fim, há o argumento do tipo adiantado por Locke, por Leslie A. White e por Chomsky, segundo o qual, embora o homem nasça destituído de cultura, é dotado naturalmente de razão. E exactamente esta capacidade particular que distingue o homem natural dos macacos. Chomsky precisou as implicações desta tese, muito mais cuidadosamente que os seus predecessores. Uma das dificuldades mais graves deste tipo de posição é a de conciliar a descontinuidade entre o homem e o não-homem com o esquema darwiniano da evolução. No sistema de Chomsky, o homem natural é dotado por natureza de um «conhecimento» inato da estrutura lógica interna que (segundo Chomsky) é uma característica de todas as línguas humanas. A criança, quando começa a falar, possui já este «conhecimento», e é capaz de organizar, desde o início, o vocabulário verbal que vai adquirindo segundo encadeamentos transformáveis, mas significativos, de um género — sempre de acordo com Chomsky — totalmente diferente do dos encadeamentos de sinais que os animais adestrados conseguem aprender a usar. Se Chomsky, ou até Locke, tiveram razão, estaremos então perante uma fractura dramática entre o pré-homem e o homem, uma cesura de tipo quase metafísico no esquema da evolução. Semelhante possibilidade poderá fazer os teólogos sentirem-se felizes, mas coloca enormes dificuldades à maior parte dos investigadores no campo das ciências naturais. No entanto, é preciso reconhecer que continuam a existir numerosas interrogações a este respeito, embora o nó central do problema se revele afinal bastante claro. Não tem sentido sustentar que a característica primária do homem natural é ser destituído de cultura, porque se pode demonstrar que faz parte da natureza biológica do homem a capacidade particular da espécie para utilizar a cultura, quer como meio de comunicação, quer como instrumento de pensamento. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 10/49 Quando nos interrogamos acerca desta característica específica do comportamento humano, damo-nos conta de que natureza e cultura não são separáveis. Devemos notar que, coerentemente com a perspectiva de análise que lhes é própria, os antropólogos subjectivistas, reclamando-se de Rousseau, sustentam que a característica específica do homem é a posse de uma linguagem, enquanto os antropólogos objectivistas e os arqueólogos pensam habitualmente que a especificidade do homem reside na sua capacidade de construir instrumentos. Mas todo o «homem» capaz ou de comunicar ideias aos outros ou de inventar um novo instrumento tem que ser igualmente capaz de formular conceitos «no seu espírito», de tal modo que, a este nível, as intuições subjectivistas e objectivistas acabem necessariamente por coincidir; as características mentais do homem fazem parte do seu desenvolvimento evolutivo. É preciso não esquecer que as diferentes peripécias da oposição destas correntes de ideias se desenrolam num contexto político, e não apenas no quadro da história das ideias. Por exemplo, durante a fase expansionista do imperialismo europeu, os missionários, os administradores e os investigadores mostravam-se predispostos a dar crédito à versão hobbesiana do homem natural. Se os selvagens em nada eram mais que feras, não seria então necessário reconhecer os seus direitos territoriais ou políticos. Esta atitude revela-se claramente na descrição, que a seguir transcrevemos, dos caçadores-recolectores nómadas de Bornéu Central, conhecidos pelos etnógrafos actuais pelo nome de Penan. A descrição é extraída de um artigo publicado pela «Singapore Chronicle» na Primavera de 1831, e citada por Charles Pickering em The Races of Man, a título de exemplo de «homens que vivem em estado natural ou desprovidos de qualquer forma de transmissão de conhecimentos». «Mais adiante, em direcção ao norte, podem encontrar-se homens que vivem num estado natural absoluto, que não cultivam a terra nem habitam em cabanas; que não comem arroz nem usam sal e que, embora não se matem uns aos outros no interior da sua comunidade, andam pelas florestas como animais selvagens. Homens e mulheres encontram-se na floresta, ou então o homem leva a mulher por meio de qualquer campong. Quando os filhos têm idade suficiente para se arranjarem sozinhos, os pais separam-se e a partir de então nenhum deles volta a pensar no Outro. À noite, dormem debaixo de qualquer grande árvore de ramadas baixas, onde prendem as crianças a uma espécie de balouço. Em volta da árvore acendem fogos para manterem à distância os animais selvagens e as serpentes. Estas criaturas cobrem-se com pedaços de peles e nessas peles envolvem igualmente as crianças. A pele é macia e quente, mas não protege da chuva. Estes pobres grupos são considerados e tratados pelos Dajaks como animais selvagens: grupos de 25-30 pessoas saem e divertem-se a atirar sobre as crianças com as suas zarabatanas, como fazem com os símios, dos quais não é fácil distinguí-las. Os homens capturados nestas expedições são invariavelmente mortos, as mulheres, se forem jovens, são poupadas. E, em todo o caso, digno de nota que os filhos destes selvagens não são domesticáveis, de modo a ser possível entregá-los Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 11/49 depois livremente a si próprios. Selgie disse-me não ter ouvido falar de um só caso em que a criança deixada em liberdade não tivesse fugido para a selva na primeira ocasião, apesar de muitas delas serem tratadas amigavelmente pelos que as rodeavam durante anos. A consequência é que todos os chefes que se dizem civilizados, mal capturam uma destas criaturas, cortam-lhe um dos pés e metem-lhe o coto num bambu cheio de resina derretida. A possibilidade da fuga fica assim anulada e é possível mais tarde fazer com que o prisioneiro sirva aos remos de uma canoa. Os velhos Dajaks gostam de contar os seus triunfos nestas expedições e o terror das mulheres e das crianças atacadas constitui um tema fértil de divertimento em todas as suas reuniões» (citado in Pickering 1848, ed. 1851 p. 306). Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 12/49 4. A cultura como parte da natureza Os investigadores mais sérios encontram-se hoje convencidos de que a linguagem constitui o atributo humano distintivo por excelência. A língua não é apenas um instrumento de comunicação intersubjectiva extraordinariamente sensível, mas permite também o plasmar das ideias no espírito. Por meio destas duas operações, é possível elaboraram-se, acerca de um futuro imaginário, hipóteses capazes de se tornarem depois um ponto de referência para actos de criação, como a construção de um instrumento ou a elaboração de um ritual. Além disso, a linguagem talvez seja o único atributo dos seres humanos adultos, simultaneamente natural e cultural. Um indivíduo aprende a sua língua com os membros mais velhos do grupo a que pertence e, neste sentido, qualquer elemento particular de uma dada língua é um facto cultural, ao mesmo tempo que a nossa capacidade de formarmos enunciados verbais e de começarmos a fazer uso de uma dada linguagem é algo de natural. A nossa capacidade de codificarmos e descodificarmos os elementos da cultura (os gestos, os artefactos, os sons), de modo a veicular significações, é um aspecto da natureza humana, da mesma maneira que o canto do pássaro é um aspecto da natureza das aves. Em todas as espécies animais superiores, a capacidade por parte do indivíduo de reagrupar em categorias distintas o meio ambiente assim como os outros animais, acha-se em relação directa e funcional com a sobrevivência. Todo o organismo que se locomove tem que saber distinguir o que é comestível do que o não é, reconhecer os seres que pertencem à mesma espécie e distinguí-Ios sexualmente entre si. A maior parte dos animais é capaz de reconhecer os seus predadores potenciais, e certas espécies animais com elevado grau de integração social (por exemplo, diversos tipos de insectos, as aves, os roedores, os babuínos) são capazes de distinguir os membros da sua comunidade social daqueles que não lhe pertencem, muito embora sejam membros da mesma espécie. Não é claro se devemos considerar inatas estas capacidades, enquanto parte do património genético do animal (e, por conseguinte, naturais), ou se, pelo contrário, elas pertencem a uma hereditariedade transmitida pelos progenitores à sua descendência por meio da aprendizagem, sendo por isso de ordem cultural. Não é fácil determinar o ponto preciso onde se deve traçar a linha de demarcação entre o que é inato e o que é aprendido. Todos os animais domésticos são capazes, sob a orientação do homem, de adquirir, por meio do hábito, certos actos de comunicação extremamente complexos, cuja posse lhes é transmitida pelos seus donos. Mas no estado selvagem, a relação de dependência da prole para com os progenitores é de tipo completamente diferente e torna-se extremamente difícil para o investigador determinar exactamente o momento em que se passa do instinto à imitação. Em qualquer caso, o fenómeno do imprinting, que foi objecto de cuidadosos estudos por parte dos etólogos (por exemplo, Lorenz, Tinbergen, e outros), indica com toda a clareza que é completamente insustentável a Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 13/49 interpretação, muito difundida durante algum tempo, da cultura (no sentido limitado de comunicação de conhecimento) como característica exclusivamente humana. Um grande número de espécies adquire a capacidade de lidar com o seu ambiente através da aprendizagem. A «hereditariedade cultural» está, por assim dizer, pré-estabelecida no contexto do processo de adaptação entre o pool genético da espécie e o quadro ecológico de que ela depende. A este nível, tanto a «cultura» como a «natureza» geneticamente determinada se encontram sujeitas em medida igual às «pressões» contínuas da selecção natural. Por outro lado, embora seja claro que, no homem, tanto a formação de conceitos como a capacidade de comunicar têm ambas uma relação retroactiva de interdependência com a utilização da linguagem e o desenvolvimento de uma tecnologia, parece indubitável que essas características especifica-mente humanas se desenvolveram muito para além das exigências funcionais da sobrevivência. Devemos admitir como certo que o desenvolvimento da capacidade linguística no homem lhe concedeu uma vantagem imediata, no que se refere ao conjunto do processo evolutivo da espécie. No entanto, não é possível explicar toda a enorme variedade das culturas humanas mediante a tese de que todas as variações são simplesmente consequência de uma adaptação a ambientes diferentes, quer naturais, quer criados pela actividade humana. Nas subespécies (traças») humanas não existe qualquer característica peculiar de tipo genético que, a qualquer título, corresponda às diferenças culturais. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 14/49 5. Polaridades conceptuais: nós/outros, cultura/culturas No homem, a capacidade de separar os elementos pertencentes a uma classe, daqueles pertencentes a outra classe, e o desenvolvimento de um Eu autoconsciente que se define por contraposição ao Outro, encontram-se em estreita conexão com a formação de conceitos verbais. A estrutura da linguagem, que é linear e segmentada, induz-nos a representarmos o ambiente circundante como se este tosse feito de «entidades» separáveis (ou «categorias»), e a estabelecermos que a cada uma delas se possa atribuir um nome. De entre estas distinções, uma das polaridades universais é a que se estabelece entre o «homem» (no sentido de «criaturas semelhantes a nós») e «todos os outros seres». Como observou Lévi-Strauss (cf. 2), esta dicotomia é habitualmente interpretada num sentido absoluto: a humanidade contrapõe-se à animalidade, e o homem à natureza. A dicotomia assenta aqui num conjunto de axiomas diferentes das distinções examinadas no § 3, onde o homem inserido na sociedade era visto como um homem natural que tivesse confeccionado para seu uso a «roupagem» da cultura. No artigo «Anthropos» são examinadas as modificações do campo semântico da categoria «homem», no sentido de «criatura semelhante a nós». Uma distinção correlativa é a que existe entre, por um lado, a «cultura manifesta» (que inclui o modelo pelo qual o mundo é modificado pelo homem: isto é, cultivado, domesticado, civilizado e construído pelo homem) e, por outro lado, todas as outras coisas, que, ao invés, são «natureza selvagem». Considerada nesta perspectiva, a natureza representa uma categoria residual, omni-englobante ou, por outras palavras, é aquilo que restaria se fosse possível descontar a entrada em cena dos homens que visam modificá-la e dividi-la em segmentos. Na prática, é extremamente difícil aplicar este tipo de distinção conceptual ao mundo que conhecemos. A estrutura da topografia terrestre, por exemplo, é tal como é em virtude, sobretudo, das acções históricas dos homens. Ao nível das ideias, uma polaridade deste tipo, que distingue o humano do não-humano, a cultura da natureza, parece ser uma consequência necessária do modo pelo qual nos concebemos a «nós próprios» como distintos dos «outros». Esta reflexão reporta-nos à tríade de Vico e de Rousseau: isolamento sem linguagem, comunicação feita de emoções, e comunicação através do discurso racional. Tem sido muitas vezes observado que os elementos do discurso, e os conceitos que estes visam representar, se encontram organizados no interior de sistemas de verbalização e de conceptualização mais vastos, ligando-se a dois tipos opostos de associação. Por um lado, distinguem-se entidades contíguas como as polaridades: como quando, por exemplo, se divide o continuum do espectro das cores em diferentes cores, a que são atribuídas nomes determinados. Neste caso, a operação consistirá num simples processo de segmentação — do tipo «O vermelho é diferente do amarelo» —, ou de hierarquização—do tipo «O conceito de cor estende-se tanto ao vermelho como ao amarelo». Em todos estes casos, as Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 15/49 categorias assim determinadas e catalogadas por meio de um nome encontram-se ligadas através de uma metonímia. Por outro lado, é possível raciocinarmos também através da analogia, ou de uma metáfora. Em lugar de distinguirmos, aproximamos. Uma ideia elementar ou uma unidade sonora podem ser sobrepostas uma à outra: neste caso, a associação estabelece-se na base de um critério de semelhança, e não de contiguidade. O contraste entre o metonímico e o metafórico corresponde à distinção que se faz em música entre a melodia e a harmonia. O metonímico é sequencial e diacrónico; o metafórico é integrado e sincrónico. O discurso racional de tipo analítico e académico é fundamentalmente metonímico, como o discurso matemático. O discurso poético e de imaginação é, pelo contrário, metafórico. Estes dois modos de processarmos as operações do espírito não são nunca completamente opostos: o autêntico processo de criação caracteriza-se por uma oscilação contínua entre os dois extremos. A distinção de Vico e de Rousseau entre comunicação através de emoções e comunicação através do discurso racional é já um exemplo do contraste entre metáfora e metonímia, mas o facto de ambos estarem convenci-dos de que o pensamento metafórico (emocional) precedia o pensamento metonímico (racional), e de que, portanto, o pólo metafórico seria natural e o metonímico cultural, revela não só a interdependência dos dois modos de pensamento, mas ainda, em última análise, a impossibilidade de separar os conceitos de natureza e de cultura. Enquanto a metonímia é necessária à formulação das distinções entre o Eu e o Outro, entre nós e eles, o homem e o animal, o domesticado e o selvagem, o cultivado e o natural, a metáfora estabelece relações analógicas entre estes pares de termos e chama a atenção para os elementos que eles possuem em comum. Acontece assim que «nós» seja um termo ligado à noção de «homem consciente e culto» e que «eles» se refira aos «animais naturais e selvagens». Mas trata-se de uma distinção conceptual mais do que de uma diferença efectiva. A ideia de natureza como pólo oposto à cultura é, com efeito, em si mesma, um produto cultural. O conteúdo efectivo da «ideia de natureza» muda à medida que se percorre o mapa geográfico, na mesma proporção em que muda a própria natureza. Os critérios por meio dos quais se definem as oposições são em grande medida arbitrários, mas os que estabelecem as associações analógicas são-no então totalmente. No conjunto, o modo de representarmos o ambiente em que vivemos não é uma simples «cópia» da «realidade», mas contém em si próprio a possibilidade de articularmos livremente essa representação. Através da utilização da linguagem, somos capazes de transformar os input sensoriais (as «percepções») em «representações do espírito», com as quais se podem elaborar diferentes jogos imaginários, independentemente das operações que se verificam no mundo exterior. A partir daqui, torna-se possível especificarmos um pouco melhor a dicotomia natureza/cultura. O mesmo mecanismo que determina a distinção entre a natureza (independente do homem) e a cultura (que é característica específica do homem) permite também definir o «nível» do «sobrenatural» (conforme a fantasia o Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 16/49 imagina) em contraposição ao mundo da natureza (que é observável empiricamente no meio ambiente). É necessário, então, voltarmos agora às amplas generalizações de Lévi-Strauss acerca deste problema (cf. § 2). Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 17/49 6. Natural, não-natural, sobrenatural Uma vez elucidado o esquema da oposição metonímia/metáfora, a análise de Lévi-Strauss da dicotomia natural/sobrenatural pode receber uma outra formulação. Dado o respeito da nossa época pela verificação científica dos factos, tanto o mundo natural da zoologia «real» como a matéria em bruto são catalogados, sem distinção, na mesma categoria de mundo da cultura material criada pelo homem e constituem, conjuntamente, o pólo oposto ao mundo sobrenatural dos animais fantásticos, dos seres sobre-humanos e dos acontecimentos miraculosos. Uma posição deste tipo exprime tanto a veneração, reforçada ainda mais nos últimos anos, pelo pólo metonímico e analítico do pensamento, como a tendência para menosprezar o pólo «não-científico», sintético, imaginativo e metafórico do pensamento humano. No passado, quando a poesia e a ciência não se encontravam tão nitidamente separadas como hoje, o «humano», o «cultural», era contraposto ao pólo não-humano (natural), enquanto o «natural» e o «sobrenatural» não se distinguiam com nitidez. Com efeito, Deus surge-nos muitas vezes representado como a Natureza personificada. Mas, apesar disso, procedeuse sempre a uma distinção entre as duas esferas de «alteridade»; que correspondem aos polos do pensamento metonímico e metafórico. O natural e o sobrenatural são invenções do espírito humano. O natural é constituído por objectos empiricamente observáveis, que o homem cria, fraccionando o continuum da experiência em entidades e acontecimentos separados, que são depois interligados de novo na base de critérios de contiguidade ou de hierarquia. O sobrenatural é construído pela combinação na imaginação de elementos díspares, extraídos do mundo da experiência empírica. Nos mosaicos de grande número de pavimentos romanos, podemos ver que no mundo submarino de Neptuno habitavam carneiros, cabras e leopardos, exactamente como no mundo terrestre mais familiar (ainda que os animais do mundo de Neptuno tivessem, todos eles, cauda de peixe!). Chegados a este ponto, torna-se talvez claro que, apesar da aparente solidez do modelo da oposição humanidade/animalidade, a ideia de natureza, tal como a entendemos quando a aplicamos às matérias humanas, comporta na realidade uma valorização relativa. A natureza humana é uma qualidade mais do que uma coisa, mas não uma qualidade absoluta. Nunca é possível dizer que dada coisa é «boa» ou «pura» ou «má» em sentido absoluto, mas dadas duas entidades A e B estaremos em condições de dizer que A é, por exemplo, melhor que B, e vice-versa. Analogamente, se estabelecermos uma comparação entre duas coisas ou dois comportamentos, poderemos dizer que um é mais (ou menos) natural que o outro, mas, pelo menos nos casos em que nos ocupamos dos fenómenos terrestres, raramente é possível dizer mais. As acções humanas realizadas no passado alteraram todo o conjunto do ecossistema do mundo, a tal ponto que se torna Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 18/49 possível afirmar que o ambiente natural que habitamos é substancialmente uma criação do homem. Segue-se que, se nos interrogarmos acerca da relação existente entre o natural e o cultural, será necessário esclarecer o que deveremos entender por não-natural. A este propósito, basta um mínimo de reflexão para nos darmos conta de que o par natureza/cultura não é tanto uma díade binária do tipo não-natureza = cultura, nãocultura = natureza, mas que implica antes uma tríade de ideias («natural», «cultural» e «sobrenatural») que podem ser consideradas pontos de valorização relativa, correspondendo assim aos vértices de um triângulo ideal. A figura 1 não pretende ser tanto a utilização de um esquema exemplificador de uma tese antropológica, como a expressão sintética de uma grande multiplicidade de ideias cosmológicas. Se considerarmos a estrutura interna de um sistema religioso, como a que se encontra no Génesis, vemos que o homem é aí apresentado como uma criatura feita «à imagem de Deus» e colocada no ponto de encontro entre o mundo natural dos animais e o mundo sobrenatural dos espíritos, enquanto à natureza selvagem (o deserto bíblico) é confiado em igual medida um papel de mediação entre o homem mortal, que vive em sociedade, e o Deus imortal, que se encontra no outro mundo. Quando apreciamos do exterior uma dada religião, chegamos, porém, à tese oposta: Deus foi criado à imagem do homem para desempenhar um papel de mediação e proteger o homem dos acidentes incontroláveis desencadeados pela acção de uma natureza cruel. A «ambiguidade» referida por Lévi-Strauss liga-se à posição da esfera do sobrenatural, que é de domínio sobre o homem, e à posição do mundo natural, que, pelo contrário, o homem domina. Ambos os mundos têm em comum uma característica negativa, a de serem «não-culturais». No entanto, como é lógico, a esfera do sobrenatural e a esfera do cultural têm em comum a característica de serem ambas «não-naturais». Este último conceito, a qualidade de não-natural ou inatural, merece um pouco mais de atenção. A ideia de que um objecto ou uma acção é «não-natural» contém um elemento moral. Na língua inglesa, por exemplo, certos tipos de comportamento sexual considerados particularmente execráveis são chamados innatural vice 'vício contranatura*. De igual modo, o celibato imposto a pessoas consideradas modelos de virtude (por exemplo, os padres e monges) é habitualmente considerado «nãonatural». Embora o objectivo das proibições do incesto possa variar muito de uma para outra sociedade, a prática do incesto continua a ser considerada não apenas um crime (quer dizer: uma violação das leis do homem), mas um pecado (uma ofensa às leis divinas). De resto, o incesto é considerado também com muita frequência uma ofensa à lei da natureza, ou seja: «não-natural». É óbvio que, de um ponto de vista objectivo, «externo», toda a actividade cultural é «não-natural», e só os homens podem realizar actos não-naturais. Mas a categorização interna dos acontecimentos é profundamente diferente. As Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 19/49 calamidades naturais, como os terremotos, as tempestades, as pestes, são muitas vezes consideradas pelas suas vítimas consequências não-naturais da intervenção divina que, por sua vez, poderá ser a consequência, ou seja a punição, dos pecados cometidos (quer dizer, de actos não-naturais realizados pelos homens). E extremamente difícil tentar generalizar acerca daquilo que, num dado contexto, pode ou não ser considerado pecaminoso e, por isso, não-natural. Figura 1. Esquema das relações entre natural, cultural, sobrenatural. Em todas as listas de pecados de que temos exemplos concretos, as transgressões sexuais ocupam quase sempre um lugar de primeiro plano, mas o comportamento não-natural não se encontra de maneira nenhuma ligado exclusivamente ao sexo. Por exemplo, segundo o conceito geomântico chinês de feng shui, transgressões gravíssimas contra a natureza podem consistir simplesmente em abater uma árvore que não devia ser cortada ou em orientar o traçado de uma casa numa direcção errada. A ideia de que acontecimentos reais, objectivos (naturais), catastróficos, possam dever-se à intervenção não-natural de uma divindade, corresponde a ideia de que a intervenção benéfica de uma divindade nos assuntos humanos se associa sempre a acontecimentos irreais objectivamente impossíveis (e por isso nãonaturais). Num grande número de religiões, a divindade incarnada é concebida por uma mãe virgem ou por uma mãe que já ultrapassou a idade natural de ter filhos. Na base de uma lógica análoga, os auspícios de um sacrifício são considerados favoráveis quando os órgãos internos da vítima sacrificial se revelam extraordinários e, por isso, não-naturais. Os deuses endereçam aos homens os seus avisos, introduzindo no mundo um elemento não-natural. É um traço característico dos acontecimentos ligados à divindade (tanto de bom como de mau agouro) serem considerados manifestações de um modo ou de outro fora do habitual, e justamente não-naturais. De um ponto de vista interno, subjectivo, a dicotomia natural/não-natural é, sem dúvida, de tipo cultural. Mas será possível estabelecer uma distinção externa e Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 20/49 objectiva do mesmo género? Admitindo que é possível, aos observadores objectivos, descobrirem um ponto de acordo acerca do modo de distinguir o natural empírico do sobrenatural imaginário, fica ainda por esclarecer em que medida a nossa categorização das coisas naturais é, ela própria, inteiramente determinada pelos factos — e, por isso, «natural» — e em que medida, pelo contrário, poderá ser determinada por razões arbitrárias e convencionais — tornando-se, por isso, «cultural». Certas distinções — é evidente — são convencionais. E-o, por exemplo, o modo pelo qual segmentamos o espectro das cores. E distinguir um arbusto de uma árvore é uma questão ligada às preferências individuais do observador. Todavia, os elementos da flora e da fauna, distinguidos pelas taxonomias locais dos povos sem escrita, revelaram-se muitas vezes inesperadamente próximos das categorias elaboradas pela botânica e pela zoologia actuais. Inclusivamente, as categorias referentes às cores parecem revelar-se muito mais padronizadas do que se pensou durante algum tempo. Os processos de transformação histórica, tanto de evolução como de involução, criaram descontinuidades empíricas reais na natureza (pense-se na distinção entre os vertebrados e os invertebrados, que é um dado de facto, e não o simples resultado de uma apreciação valorativa), e embora não seja absolutamente necessário que as nossas categorias linguísticas, culturalmente determinadas, reflictam essas descontinuidades naturais, é muito provável que na realidade o façam. Estas observações são úteis para pôr em destaque a seguinte reflexão: se a imagem que temos do mundo em que vivemos é criada pelo homem — e, portanto, cultural—, as distinções categoriais do mundo humano são em grande medida plasmadas a partir de distinções de facto existentes no mundo real. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 21/49 7. A natureza concebida como modelo da cultura humana É quase impossível elaborar uma lista completa dos princípios de classificação a que os homens recorrem para criar os seus modelos próprios de natureza, mas alguns desses princípios parecem ser mais ou menos universais. O senso comum e a etnografia comparada parecem sugerir que, seja qual for a concepção da natureza transmitida por uma dada tradição cultural, esta terá necessariamente que se elaborar a partir de dicotomias como macho/fêmea, luminoso/escuro, grande! pequeno, velho/jovem, húmido/seco, quente/frio, alto/baixo, duro! macio, próximo! longínquo, comprido/curto, antes/depois, vivo/não-vivo, móvel/imóvel, seguro/perigoso, etc. O aspecto interessante destas distinções está em que se referem mais a qualidades abstractas do que a «coisas». Ainda que as «qualidades» sejam aspectos da natureza, continua a ser indispensável um juízo humano, isto é cultural, para distinguir entre as possibilidades que constituem a díade dicotómica. Com que idade se é velho? Quando se pode dizer que uma coisa está ou é seca? A morte equivale à não-vida? Um macho castrado é ainda um macho? Uma mulher estéril continua a ser uma mulher? E assim por diante. Mas igualmente importante neste contexto é o facto de, no interior da categorização da esfera cultural, se estabelecerem distinções do mesmo tipo, referentes não só a coisas e acontecimentos, como também às relações sociais. As metáforas que nos apresentam os indivíduos dotados de influência política como big men ‘mais velhos*, ‘indivíduos de posição elevada*, ‘líderes*, ‘iluminados*, não pertencem a esta ou aquela tradição cultural particular, encontrando-se antes por toda a parte do mundo. No entanto, precisamos de ser cautelosos quando nos movemos neste terreno. O que a metáfora representa nunca é inteiramente claro. A criança é socializada na cultura onde é criada, e enquanto adquire os seus hábitos linguísticos, aprende simultaneamente a categorizar os papéis, as relações e as coisas que pertencem ao mundo humano, e, segundo critérios de semelhança e de contraste, a categorizar também as relações e as coisas que pertencem ao mundo da natureza. A construção de modelos processa-se segundo duas direcções: os homens são levados a interpretar a natureza como uma elaboração cultural e a ver a cultura como uma transformação da natureza. Uma exposição sumária e muito sintética de um exemplo etnográfico concreto, algo exótico, pode servir-nos de ilustração para este princípio importante, embora de ordem muito geral. Os Barasana são uma comunidade índia da América meridional, que habita perto dos principais cursos de água da Amazónia, na região que serve de fronteira entre a Colômbia e o Brasil. O espaço interior das casas colectivas divide-se numa área masculina na secção anterior, voltada para o rio, numa área feminina que dá para trás, orientando-se em direcção oposta Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 22/49 relativamente ao rio e, por fim, numa terceira área comum. A casa e a distribuição do espaço correspondem a um mapa da natureza a dois níveis: a) A casa é um mapa do território. O centro da casa, parte comum, corresponde à confluência dos rios que correm perto do lugar onde a casa se situa. A área masculina, a porta na frente e o caminho que leva ao rio correspondem à corrente do rio principal. As divisões das mulheres, dispostas em semicírculo na parte posterior da casa, correspondem aos rios afluentes, subsidiários do principal, que definem a região de onde vieram as mulheres que ali habitam, e à floresta selvagem, que se encontra para além dos limites do território cultivado pelos Barasana. b) A casa é um mapa dos órgãos internos do corpo humano. E neste ponto, a metáfora desenvolve-se em duas direcções distintas. Deste modo, a casa no seu conjunto é vista como um corpo humano: a porta principal «masculina» da casa representa a boca onde se introduzem os alimentos e de onde saem os enunciados verbais. O centro comum é o lugar da digestão. A porta «feminina» por trás é o ânus, e através dela são deitados fora também os refugos da cozinha. Além disso, a casa é vista ainda como um ventre: a porta principal masculina é a vagina através da qual os homens transmitem o sémen; as divisões femininas, dispostas em semicírculo atrás, representam os alimentos e o sangue que as mulheres dão ao feto; o centro comum da casa representa, pelo contrário, o ventre no sentido do lugar de procriação (tanto cultural como biológica) dos novos membros do grupo familiar [cf. Hugh-Jones 1976]. Mas todas estas metáforas podem ser invertidas. Não violentaríamos a documentação etnográfica se disséssemos que os Barasana percepcionam a conformação física do seu território e a organização biológica do corpo da mulher como modelados segundo a realidade cultural apresentada por uma casa barasana. Este caso concreto proporciona-nos um exemplo excepcionalmente claro do princípio, muito geral, segundo o qual os artefactos humanos são vistos pelos que os constroem como modelos da natureza, e vice-versa. Do mesmo modo, usos culturais que nos são mais familiares referem-se também, ainda que indirectamente, ao mesmo princípio. A casa de um Inglês «olha» para a rua, e a porta de entrada, encimada por um pórtico, e tratada com especial cuidado, é vista como uma boca. No interior da casa, muitas das divisões tomam o nome dos artefactos que contêm — por exemplo, a casa de banho, o quarto de cama — ou da função cultural que desempenham — por exemplo, a cozinha, a sala de jantar. A repartição efectuada de acordo com estes critérios corresponde a funções biológicas naturais do corpo humano: a ingestão e a digestão dos alimentos, a evacuação, a actividade sexual e o sono. No entanto, através das modificações necessárias, o mesmo modelo «natural» fornece os critérios de distinção das funções culturais dos diversos sectores e das próprias construções de conjunto, no quadro mais amplo da comunidade da aldeia. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 23/49 Por exemplo, a divisão onde se dorme na casa colectiva, que é o lugar do sono e da relação sexual, encontra a sua correspondente na igreja da aldeia que é o lugar da morte (representada esta como sono) e da comunhão com o sobrenatural. Mas pode inverter-se também esta cadeia associativa: Raglan [1964] sustentou que o quarto de cama é como uma igreja. No caso do cristianismo, a comunhão com o sobrenatural é vista mais a uma luz dessexualizada do que em termos sexuais. Mas ainda assim a associação metafórica com uma função natural (a comunhão dos sexos) não deixa de estar presente no nexo que liga entre si dois tipos de actividade cultural: o leito matrimonial, por um lado, e a balaustrada do altar, por outro. A Igreja é, de resto, concebida como a «esposa de Cristo». Com efeito, em todas as religiões, os símbolos mais poderosos encontram-se em associação metafórica mais ou menos directa com os processos biológicos (naturais), sobretudo de ordem sexual. O culto fálico (de um ou de outro tipo) é quase universal. Pode ser explícito como no caso do lMga e da yoni do hinduísmo xivaísta ou, no Egipto antigo, do ankh (um falo transformado que simboliza a vida), ou ter sido cuidadosamente mascarado (como nos vários tipos de cruz cristã, que conservam uma semelhança estreita com o ankh e simbolizam a vida reconquistada através da morte). Mas as oposições binárias subjacentes, morte! vida, impotência/omnipotência, homem/Deus, sexualidade das criaturas mortais / divindade dos seres imortais encontram-se sempre latentes em profundidade. Certos costumes do cristianismo primitivo ilustram de modo diferente, mais complexo e talvez ainda mais interessante, a interpretação dos três valores: cultural, natural, sobrenatural. No cristianismo primitivo, os símbolos visíveis de Cristo mais frequentes eram o peixe, um objecto natural mas igualmente fálico e o monograma ¥. O símbolo do peixe foi muitas vezes explicado como um anagrama do termo grego ichthys ‘peixe*, substituindo a expressão ‘Jesus Cristo Filho de Deus, Salvador*. Note-se que neste jogo verbal a equação Cristo = peixe = falo é metafórica, ligando o sobrenatural ao natural. Mas a decifração da expressão peixe = ichthys = Cristo é metonímica. Associa o sobrenatural com um fenómeno meramente cultural: a arte da escrita. As associações do monograma são igualmente complexas. A um primeiro nível, o «significado» é cultural e metonímico, e ¥ está em vez de Cristo (na forma escrita); mas não é tudo. Nos capítulos iniciais do Golden Bough, Frazer faz notar que o Santo Hipólito cristão é uma transformação da divindade romana Verbius, cujo templo se encontrava em Nemi, e que Frazer utilizara como protótipo de todos os «deuses moribundos» (incluindo o próprio Jesus Cristo). Mas Santo Hipólito, como o seu correspondente mitológico grego, sofreu o martírio: foi de facto desmembrado por quatro cavalos amarrados aos seus braços e às suas pernas. Nesta versão particular da crucificação, ilustrada com muita frequência pela iconografia medieval, acaba por simbolizar a totalidade do corpo humano-divino Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 24/49 pendurado de uma cruz com os braços abertos. A este nível, a associação estabelecida liga o sobrenatural ao natural, e a mensagem é metafórica. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 25/49 8. Tempo social e tempo natural Não é apenas na construção e na segmentação dos objectos materiais que a cultura se modela a partir da natureza, e vice-versa. O mesmo princípio vale também para a percepção que temos do tempo. Em ligação com os objectivos práticos da vida de todos os dias, o tempo é experienciado por nós como um continuum unidireccional. A entropia não pára de aumentar. Admite-se, de um modo geral, a existência de um nível cósmico-galáctico no qual as observações radioastronómicas das pulsar, interpretadas à luz da mecânica quântica, não excluem a existência de eventuais descontinuidades no tempo natural. Mas trata-se de um género de fenómenos que se encontram para além da experiência humana normal. Ao nível terrestre, o tempo continua a correr. Tornamo-nos conscientes do fluir do tempo vendo que os organismos biológicos sofrem um processo contínuo de envelhecimento e que a nossa experiência se encontra sujeita a contínuas flutuações cíclicas, como a alternância do dia e da noite, as fases da Lua, a sucessão das estações, e assim por diante. Mas para se utilizar o tempo como unidade de medida, é necessário considerá-lo descontínuo e fragmentado. As cesuras por meio das quais se distingue um segmento de outro são convenções arbitrárias da linguagem, uma espécie de grelha organizadora imposta pela cultura à natureza. Os segundos e os minutos, as horas e os dias, os meses e os anos são fenómenos sociais mais que naturais, como o demonstra o facto de, para algumas populações, o dia civil começar ao escurecer, para outras com a madrugada e para outras ainda à meia-noite. Uma vez mais, o cultural e o natural se encontram intimamente ligados. O mesmo princípio de descontinuidade ordenada se aplica ao estatuto social. Embora existam momentos do desenvolvimento individual— por exemplo, a perda do primeiro dente de leite, a primeira menstruação, a menopausa — que se manifestam como sinais evidentes de segmentação temporal, o processo real de envelhecimento biológico é contínuo. Mas, em termos culturais, o indivíduo é sempre obrigado a progredir ao longo de uma sequência de graus descontínuos — bebé, criança, adolescente, adulto, velho. Os rituais que servem de ponto de referência às diversas fases desta progressão podem imitar a natureza (impondo, por exemplo, a extracção de um dente ou o derramamento de sangue através dos órgãos sexuais por meio de circuncisão ou da clitoridectomia), ou podem, pelo contrário, utilizar um signo natural (a primeira menstruação) como ocasião imediata que indica a mudança de estatuto social. Mas não existe qualquer correlação necessária, ponto por ponto, entre a maturação biológica e o processo de maturação social. O fluir do tempo biológico é apenas um modelo para a representação do fluxo do tempo social. Na determinação do tempo social, a cultura imita a natureza num sentido ainda mais amplo. Os fenómenos naturais do nascimento e da morte proporcionam metáforas evidentes que assinalam o início e o fim de qualquer período temporal. A etnografia e os hábitos verbais correntes fornecem-nos inúmeros exemplos da validade desta proposição. Foi repetidamente comprovado que os «ritos de Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 26/49 passagem» do indivíduo de um estatuto social para o seguinte têm uma estrutura tripartida fundamental: a) um «rito de separação», em que o indivíduo é separado do seu papel anterior, b) uma fase marginal (rite de marge), em que o indivíduo é considerado numa condição fora do tempo e da sociedade; c) um «rito de agregação», em que o indivíduo é ligado ao seu novo papel. Uma vez mais, os rituais associados com a fase a) incluem símbolos explícitos da morte, enquanto os associados com a fase c) incluem símbolos explícitos do nascimento. O iniciado «morre» para o antigo papel na fase a) e «renasce» ligado ao novo papel na fase c). Em todos estes casos, o aspecto biológico do fluxo do tempo é usado como modelo cultural. Mas há um outro tipo de tempo natural que pode ser utilizado na construção de modelos culturais; trata-se do tempo ligado às fases cíclicas dos corpos celestes: o Sol, a Lua, os planetas, e certas constelações particularmente importantes. Enquanto muitos povos mais simples definem o ciclo do seu ano por meio de um calendário lunar rudimentar, uma observação mais rigorosa dos movimentos interdependentes do Sol, da Lua e das estrelas constitui património de apenas algumas sociedades particularmente complexas. A maior parte das civilizações mais antigas, tanto no Velho como no Novo Mundo, parece ter construído os seus calendários a partir de uma prolongada e precisa observação astronómica. Muitas das maiores construções arquitectónicas dos tempos pré-históricos — por exemplo, Stonehenge em Inglaterra e o templo de Kalasasaya em Tiahuanaco, na Bolívia —, parecem ter desempenhado originalmente a dupla função de observatórios astronómicos e de templos religiosos. Esta associação entre o natural e o sobrenatural é da maior importância. A história do desenvolvimento da astronomia científica acha-se por toda a parte estreitamente ligada à astrologia. O objectivo imediato da astronomia consiste na investigação das leis do tempo natural que governam os movimentos interdependentes dos principais corpos celestes. Mas o seu objectivo último residia em decifrar a causa final desses movimentos de conjunção, de modo a poder ler no espírito de Deus e descobrir assim o destino do homem antecipadamente inscrito no calendário do céu. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 27/49 9. Mapas e outros modelos Nos parágrafos anteriores, afirmámos repetidamente que os fenómenos culturais tendem a ser «modelados» a partir da natureza, mas igualmente que, viceversa, a ideia humana de natureza se encontra frequentemente «modelada» a partir da cultura. Trata-se de uma característica geral do processo de criação de modelos, que convém considerarmos neste contexto. Quando engenheiros, arquitectos ou artistas criam modelos de desenho prospectivo, a vantagem dessa operação é proporcionar, através do modelo, uma imagem radicalmente simplificada do potencial produto acabado. Este processo de simplificação aplica-se também ao modo pelo qual a natureza é modelada a partir da cultura, e vice-versa, a cultura a partir da ideia de natureza. Ao nível a que se tornam perceptíveis para o olhar humano, quase todas as formas da natureza se apresentam sob o aspecto de curvas irregulares, como o curso de um rio, ou sob a forma de modelos geométricos regulares altamente complexos. como as estruturas das folhas e das conchas do mar. As formas realmente simples, como as linhas rectas e os arcos de círculo, são muito raras. Pelo contrário, os artefactos humanos (por exemplo, as casas, os utensílios, os caminhos, os campos) são quase sempre construídos de acordo com uma geometria extremamente simples de linhas rectas, rectângulos e círculos. As formas mais complexas são usadas somente com fins decorativos ou para resolver determinados problemas técnicos. O mesmo pode dizer-se em relação à simetria. Na natureza, existem múltiplas simetrias aproximativas, mas muito poucos casos de simetria perfeita. Habitualmente as imperfeições resultam de acontecimentos acidentais. Pelo contrário, nos artefactos humanos a simetria é quase sempre a norma e, nos casos em que a assimetria se manifesta, é quase sempre introduzida intencionalmente, por motivos estéticos. Existem duas explicações plausíveis para o facto de a cultura ser nesta matéria muito mais «simples» que a natureza. A cultura tem que ser transmitida de uma geração para outra através de um processo de aprendizagem, e pode adiantar-se a hipótese de a «simplicidade» e a «simetria» dos fenómenos culturais corresponder de algum modo aos processos estruturais próprios das operações mentais do cérebro humano. Por exemplo, as polaridades binárias do tipo ou/ou, sim/não, que caracterizam os aspectos metonímicos racionais do pensamento, sugerem a hipótese da existência, quanto a certos aspectos, de uma homologia mecânica entre os cérebros humanos e os computadores digitais. Em segundo lugar, a relação entre natureza e cultura é, em parte, directamente funcional. A cultura gera um mapa simplificado da natureza que auxilia o indivíduo a encontrar o seu caminho, a saber quem é e onde se encontra, tanto no espaço como no tempo, quer como ser físico quer como pessoa social. A construção de mapas deste género é uma actividade cultural ao serviço de fins naturais de adaptação. Neste contexto, constitui um dado etnográfico de certo relevo e interesse o facto de que, enquanto a escrita—quer dizer, a operação intelectual complexa que traduz a sequência de símbolos sonoros do discurso numa sequência de símbolos lineares traçados numa superfície determinada — permaneceu património de um Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 28/49 pequeno número de sociedades humanas muito complexas, a construção de mapas topográficos a duas dimensões, que comporta associações metafóricas além das metonímicas, parece ser, pelo contrário, um fenómeno cultural difundido por todo o mundo, desempenhando uma posição central em certas culturas consideradas muito «primitivas», como a dos aborígenes australianos antes de terem entrado em contacto com o mundo ocidental, e a dos Índios das planícies da América do Norte. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 29/49 10. Ciência natural/ciência social A determinado nível, todo o problema da relação entre natureza e cultura se apresenta como uma questão ligada à categorização do conhecimento. Quem quer que se interesse por estes problemas deve ter em conta o facto de, no decorrer do processo de especialização institucional da aprendizagem, os limites das categorias se irem tornando, com a passagem do tempo, cada vez mais precisos, e as disputas em torno das competências académicas correspondentes, cada vez mais acesas. Em Inglaterra, no século XVI, todo o conjunto dos conhecimentos se achava incluído virtualmente nas grandes categorias representadas pela teologia, pela filosofia, pela matemática, pelo direito e pela medicina. Hoje, a teologia e a matemática, o direito e a medicina continuam a ser claramente as mesmas categorias que eram há quatrocentos anos, mas a filosofia sofreu um processo de fragmentação que a dividiu numa série de subclassificações. A história deste processo é muito complexa. Mas já anteriormente existia uma distinção fundamental entre a filosofia moral — que era considerada uma abordagem racional e subjectiva da consciência — e a filosofia natural — que se encontra na origem das ciências experimentais e objectivas actuais. Como a matemática, enquanto lógica ou enquanto geometria, era parte integrante tanto da filosofia moral como da natural, a divisão entre os dois territórios académicos foi sempre mais teórica que efectiva. Apesar disso, a partir das duas vertentes da divisão subjectivo/objectivo desenvolveram-se duas tradições muito diferentes no que se refere aos critérios da verdade científica. Esta distinção não é, no entanto, uma característica exclusiva dos utentes da língua inglesa: a oposição, na cultura alemã, entre Geisteswissenschaft e Naturwissenschaft é semelhante; mas o desenvolvimento destas dicotomias fez com que o elemento em comum a ambos os termos (o «conhecimento», a «ciência», Wissenschaft) se tenha tornado ambíguo e polémico. La Scienza nuova de Vico é uma teoria especulativa acerca do desenvolvimento social da humanidade, e muitas das obras escritas no nosso século, nos departamentos universitários de sociologia ou antropologia, têm sido apresentadas pelos seus autores como contribuições para a «ciência social». Epígonos contemporâneos de homens como Robert Boyle e lsaac Newton, que se atribuíam o título de «filósofos naturais», sustentam que o termo “ciência” é uma definição que só pode ser atribuída, exclusivamente, a formas de saber nas quais o conhecimento se obtém ou através de experimentações rigorosamente objectivas ou através de rigorosos cálculos matemáticos. Os defensores mais rigorosos da «ciência natural» contemporânea tendem a excluir do âmbito desta tudo o que possa ser, ainda que em medida muito reduzida, contaminado pela influência humana (isto é, pela «cultura»). Existem campos importantes da ciência natural contemporânea onde, a uma atitude de purismo doutrinário deste género, pode corresponder uma prática experimental efectiva. A traços largos, podemos dizer que a astronomia, a física, a Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 30/49 química, a geologia, a bioquímica são efectivamente «objectivas». Nestas ciências, a validação da teoria depende de uma comprovação experimental da qual são rigorosamente excluídas as intuições pessoais do experimentador. Mas existem outros campos do conhecimento onde os limites são muito menos precisos. A maior parte daqueles que dispõem de uma posição académica graças ao seu conhecimento da medicina, da psicologia ou da zoologia desejam ser considerados «cientistas naturais» e, para além disso, fazem questão de exibir em força os métodos e os procedimentos experimentais e objectivos por meio dos quais, dizem, validam as suas descobertas científicas. Mas é por demais evidente que grande parte do campo intelectual que se considera próprio destas disciplinas se encontra impregnado de cultura, e é pouco realista pensar que as componentes subjectivas do ambiente sócio-cultural não são relevantes quanto aos factos submetidos à observação. Não se trata apenas de pôr em dúvida a justificação das pretensões de objectividade dos psicólogos behavouristas (e dos médicos e zoólogos seus simpatizantes). E também duvidoso que tenha sentido pretender que a objectividade, em sentido estrito, esteja ao alcance de uma investigação que se proponha estudar os comportamentos individuais dos animais sociais (incluindo o homem). A metodologia behavourista pressupõe que é realmente possível observar o comportamento humano independentemente da influência cultural e que todos os comportamentos que são geralmente explicados como expressões de um «hábito» — ou seja, os comportamentos que consideramos terem como causa eficiente uma convenção cultural— podem ser explicados mais correctamente se, pelo contrário, os considerarmos como naturais. Mas continua a ser difícil compreender a validade de pressupostos deste género. As conclusões a que chegámos acerca das pretensas ciências naturais, como a medicina, a psicologia e a zoologia, valem igualmente para os exercícios estatísticos que representam a prática predilecta da maioria de quantos se ocupam da disciplina que pretende ser uma sociologia objectiva, experimental e científica. As idiossincrasias do homem socializado nos termos de uma cultura nunca poderão ser reduzidas mediante o recurso à estatística, e, aliás, a própria convicção de que existem leis naturais objectivas que governam os factos humanos e sociais parece ter origem numa metáfora distorcida. O raciocínio em questão parece ser o seguinte: a ciência é conhecimento; a ciência social é conhecimento do homem em sociedade; mas a única metodologia correcta da ciência é a aplicada pelos autênticos cientistas naturais (isto é, os físicos e os químicos). Por isso, a metodologia dos cientistas sociais tem a obrigação de imitar a dos cientistas naturais. Claro que semelhante inferência é completamente falsa. É necessário darmo-nos conta de que é muito mais simples e mais correcto, mesmo do ponto de vista académico, reconhecer que as categorias de natureza e de cultura podem distinguir-se ao nível dos factos objectivos do que rejeitar esta tese, a menos que não se queira abandonar o pressuposto de que o investigador terá que seguir sempre a via da análise e da dissecação, começando por desmontar as coisas e examinando-as depois pedaço a pedaço. É fácil encontrarem-se elementos de confirmação da veracidade desta proposição em todo o campo do saber. Mas há Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 31/49 um exemplo particularmente claro: a escassa consideração em que são tidos os psicólogos que ignoraram explicitamente a divisão entre natureza e cultura. No interior da medicina oficial, a maior parte dos psicólogos deste tipo são chamados «psiquiatras». Nas margens da zona franca da medicina, têm tendência a fazer-se chamar «psicanalistas» ou «psicólogos analíticos». As suas teorias têm um lugar, ainda que não muito importante, no conjunto das concepções que estamos a examinar neste ensaio, e serão analisadas no próximo parágrafo. Um outro tipo de desvio psicológico em relação à ortodoxia behavourista será brevemente apresentado no parágrafo 13. [ Para uma resenha pormenorizada e de fôlego da história das relações entre as diversas escolas de antropologia e as escolas de psicologia, de biologia e de zoologia contemporâneas, cf. Haliowell 1954 e 1963]. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 32/49 11. A dicotomia natureza/cultura na psicanálise e seus derivados Até agora temos tentado encontrar um ponto de equilíbrio entre as perspectivas subjectivistas do estruturalismo antropológico e o objectivismo dos funcionalistas. Nesta análise, o estruturalismo foi caracterizado como uma espécie de neoplatonismo, modernizado pela incorporação da ideia de feedback. Segundo os estruturalistas, as percepções que um indivíduo tem do mundo exterior são preformadas pelas suas expectativas, que se baseiam em formas estruturadas já antecipadamente presentes no seu espírito, na sequência da experiência anterior. As percepções predeterminadas são assim interpretadas à luz das qualidades formais estruturadas que se lhes atribuem, Estas interpretações estruturadas encontram-se, portanto, ligadas ao património das experiências que permitem a um indivíduo dar forma às próprias percepções, na base da informação sensorial que o seu cérebro recebe do mundo externo. Por outras palavras, não só se começa pela experiência, como não é rigorosamente possível começar sem ela. E muito provável que esta formulação geral seja válida para um grande número de animais além do homem. Este modo de representar a relação entre as coisas do mundo, as imagens sensoriais mentais, e os conceitos tem origem na posição inovadora que Ferdinand de Saussure introduziu na linguística estrutural. Há algum tempo também LéviStrauss reconheceu que a teoria psicanalítica de Freud tivera grande influência no desenvolvimento das suas teses a respeito das estruturas do espírito e das suas transformações. Por outro lado, as estruturas mitológicas universais e gerais que Lévi-Strauss atribui ao «espírito humano» têm algo mais que uma semelhança ocasional com os «arquétipos» junguianos. É significativo que nos últimos vinte anos se tenha formado em Paris, sob a orientação de Jacques Lacan e André Green, uma escola estruturalista de psicanálise que defende explicitamente que os escritos de Freud devem ser interpretados à luz das novas intuições dos investigadores estruturalistas, como Saussure e Lévi-Strauss. Não é aqui possível esboçar qualquer tentativa de investigar os mistérios desta evolução particular da herança freudiana, mas é claro que a teoria psicanalítica, em todas as suas variedades e combinações, pressupõe uma intricada rede de relações de retroacção entre a «pessoa» interior do indivíduo em desenvolvimento e a matriz social em que este se forma. A teoria estruturalista contemporânea não poderia ter-se desenvolvido do modo como o fez sem os fundamentos lançados pelo conceito freudiano de inconsciente e as proposições transformacionais implícitas contidas na teoria da análise dos sonhos proposta por Freud. Desgraçadamente a psicanálise, na sua forma «ortodoxa» original, adiantou um grande número de pretensões claramente insustentáveis à luz das descobertas científicas subsequentes. A adesão dogmática a esses erros teve um grave efeito de inibição sobre o desenvolvimento posterior da teoria psicanalítica. Nos primeiros Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 33/49 vinte anos deste século, a psicanálise constituiu um estímulo de renovação para todas as discussões acerca da relação entre a natureza e a formação do homem, mas, hoje, a influência muito reduzida que a psicanálise ainda exerce é meramente retrógada. Tanto a ideia junguiana de «arquétipo», como a afirmação categórica de Freud que o complexo de Édipo é um elemento universal da natureza humana, com origem num acto primitivo de canibalismo parricida [cf. 1912-13], implicam crer que seja possível herdar por via genética, isto é, natural, as características adquiridas, isto é, culturais. Os progressos realizados pela investigação científica dos mecanismos de reprodução genética e do desenvolvimento da espécie através de um processo de mutação e selecção natural, confirmaram que uma evolução lamarckiana desse tipo é impossível. Sabemos hoje que as categorias interiorizadas (os conceitos), formados através das operações mentais que classificam as imagens sensoriais segundo grupos de entidades do mesmo género, são um produto da cultura (ou seja, da experiência), e não subprodutos do instinto ou da natureza, quer as imagens sensoriais em questão derivem de uma experiência perceptiva (por exemplo, ver um gato), quer resultem de uma experiência emocional (por exemplo, sentir medo) ou de invenções espontâneas. As experiências realizadas mostraram que este processo de generalização não vale apenas para o homem, mas também para um grande número de animais domésticos, observados em situação de laboratório. Por estas razões, são profundamente erradas todas as versões anteriores da tese psicanalítica que afirmava a existência de formas simbólicas primárias biologicamente determinadas. Os psicanalistas ortodoxos viram-se diante da alternativa de se manterem fiéis a teorias hoje cientificamente insustentáveis ou de elaborarem versões de compromisso da teoria original, muito distantes das que Freud teria alguma vez podido admitir. Grande parte dos ensaios reunidos por Muensterberger [1969], alguns dos quais escritos enquanto Freud ainda estava vivo, procuram, por um lado, salvar ainda o dogma que o complexo de Édipo é um universal humano, como parte integrante da natureza humana, enquanto admitem, pelo contrário, que a teoria freudiana da horda primitiva deve ser considerada uma representação puramente imaginária. Derek Freeman, por exemplo, que é também antropólogo, sustenta que «os elementos essenciais da situação edipiana—o desejo sexual de dominação, a agressividade e o medo— são filogeneticamente determinados e constituem um elemento fundamental da natureza do animal humano em todos os tipos conhecidos de família e grupos de procriação» [1969, ed. 1970 pp. 77-78]. Mas Anne Parson, seguindo uma linha traçada por Malinowski há mais de cinquenta anos, sustenta que a situação edipiana descrita por Freud é só um dos numerosos complexos possíveis. «Toda a cultura se caracteriza por um complexo determinado que a distingue e cujas raízes mergulham na estrutura familiar» [1969, ed. 1970 p. 366]. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 34/49 Só que um compromisso deste género não faz mais que reduzir o complexo freudiano — que era em Freud o elemento humano fundamental da humanidade do homem— a um elemento arbitrário e quase ocasional da cultura humana. O problema que os autores enfrentam é uma questão bem conhecida: trata-se de determinar se a humanidade contemporânea, no seu conjunto, constituirá uma espécie biológica única. Ora ela é, na realidade, uma espécie altamente polimorfa; e o pool genético da espécie no seu conjunto contém genes muito mais diferenciados entre si do que aqueles que se podem encontrar em cada membro singular da espécie. Todavia, as variedades do género humano assemelham-se todas umas às outras. As chamadas «raças» (subespécies) não passam de um conjunto de subgrupos convencionais, resultantes de preconceitos culturais e não de uma análise estatística. No contexto desta diversidade na unidade, é certamente legítimo afirmar que a espécie humana tem uma natureza filogenética própria que inclui certas «tendências» biológicas fundamentais, como as que se reflectem na excitação sexual, na fome, na sede, etc. Quando, porém, a lista das tendências fundamentais se estende à área das emoções instintivas — como as definidas por Freeman (a agressividade, o medo) — entramos então num território eivado das mais graves dificuldades. Comer, beber, ter relações sexuais são comportamentos objectivos acerca dos quais os observadores podem pôr-se facilmente de acordo. Mas nenhum acordo deste género será possível, pelo contrário, quanto a observações relativas a um «comportamento de dominação», à agressividade e ao medo. É possível que os comportamentos assim referidos sejam respostas filogeneticamente determinadas a tendências instintivas que se encontram mais ou menos uniformemente distribuídas por toda a espécie humana, mas é extremamente difícil demonstrar tal hipótese. Além disso, as variações observáveis da cultura humana são profundas e desenvolvem-se constantemente. Na aparência, não se ligam de maneira alguma às diferenciações contíguas em subespécies que se manifestam nas diversas zonas do mundo. Como deverá ser conceptualizada a relação de retroacção entre uma espécie acentuadamente polimorfa, mas unitária, como o homem na natureza, e uma população humana imensamente polimorfa, como o homem na cultura? O leitor deverá neste ponto reconsiderar o artigo «Cultura/culturas» desta mesma Enciclopédia. Os antropólogos têm uma longa tradição, que os psicanalistas parecem compartilhar, de acordo com a qual a cultura está no plural, entendida como um facto objectivo, situado no mundo externo. Os antropólogos analisaram muitas vezes as culturas deste ponto de vista, como se elas fossem objectos com uma superfície dura e impermeável, capazes de chocarem umas com as outras como bolas de bilhar, ou houvesse entre elas diferenças de espécie que as situariam umas contra as outras, como leões contra elefantes. Todavia, deveria ser óbvio que as fronteiras que o antropólogo logra definir quando distingue uma comunidade étnica da outra são completamente arbitrárias, convencionais, criadas Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 35/49 ad hoc. Não deveriam ser nunca consideradas como equivalentes das superfícies de tegumento que separam os organismos vivos na natureza. Também neste caso o recurso a uma metáfora distorcida levou aos mais graves erros no plano da teoria. Dentro de certos limites, a noção freudiana de inconsciente continua a ser aceitável, embora a sua natureza e o seu conteúdo permaneçam indemonstráveis. Tudo o que os cientistas experimentais conseguiram entretanto descobrir acerca da relação entre a bioquímica do cérebro humano e o processo mental, é perfeitamente compatível com a hipótese de que só uma pequena parte da operação global através da qual utilizamos as nossas experiências passadas, armazenadas pela memória, se manifesta ao nível da consciência. A posição freudiana ortodoxa afirma que o inconsciente contém, por um lado, algo que nunca foi consciente (a representação psíquica dos instintos) e, por outro lado, algo que foi outrora consciente e a seguir reprimido (os traços mnésicos de experiências, emoções, fantasias, estados corporais, defesas e grande parte do Superego). Mas Devereux [1969] foi muito mais longe e afirmou que, do ponto de vista cultural, o material reprimido pode ser dividido a) no segmento inconsciente da personalidade étnica, e b) no inconsciente individual. Aqui o «inconsciente étnico» é definido como a parte do inconsciente individual compartilhada pela maior parte dos membros do grupo e que cada geração é ensinada pela anterior a negar. Toda a cultura consente que certos impulsos, etc., se tornem e permaneçam conscientes, mas exige que outros sejam reprimidos. Por essa razão todos os membros de um dado grupo compartilham certos problemas inconscientes. A tese de Devereux implica que, embora de um ponto de vista estritamente genético, a distinção da humanidade em raças seja uma ficção (e o homem seja, portanto, concebido como um ser dotado de uma natureza única), se, por outro lado, se aceita a ideia de que existem culturas (no plural) diferentes, então a etnopsiquiatria é levada a gerar toda uma galáxia de raças sintéticas («grupos étnicos»), onde a natureza unitária do homem é modificada segundo naturezas «étnicas» separadas, atribuindo-se depois um valor retroactivo às diversas culturas. Este modo de colocar a questão remete-nos para a obra muito citada Patterns of Culture [1934], de Ruth Benedict, onde tiveram origem um estilo de investigação e uma teoria antropológica, durante algum tempo com grande voga, conhecidos pelo nome de «cultura e personalidade». Mais tarde, a escola perdeu a sua popularidade por razões empíricas. Não é, com efeito, surpreendente que tenham sido sem êxito todas as tentativas de demonstrar a existência de «personalidades de base» características de culturas étnicas definidas (grupos étnicos) [cf. Kaplan 1961]. A fraqueza de fundo de semelhante interpretação do problema da relação entre natureza e cultura está no seguinte: por um lado, os seus representantes utilizam um universo de discurso que poderia ser apropriado a uma ciência empírica objectiva; por outro Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 36/49 lado, o material concreto que pretendem apreciar por meio das suas análises é de ordem subjectiva. Os críticos empiristas, hostis a esta escola, sentem-se assim levados a reagir frente aos trabalhos sobre a «cultura e personalidade» do mesmo modo que reagiram perante a psicanálise. «O sucesso terapêutico da psicanálise é duvidoso. A sua base empírica continua a ser fraca; a sua verificabilidade é quase nula; a sua possibilidade de quantificação... é nem mais nem menos a de um recipiente fechado» [Gass, 1975, p.4]. Isto faz-nos voltar ao ponto de partida e extrair de quanto fica dito algumas conclusões críticas: a) É de todo insustentável a tese freudiana segundo a qual existem características da natureza do homem actual (isto é, de toda a humanidade contemporânea) herdadas (à maneira de Lamarck) como parte do património genético colectivo da espécie, mas tendo origem num ou mais acontecimentos culturais sucedidos num momento não determinado do passado remoto. b) Parece lícito pensar que toda a humanidade possa manifestar propensão para desenvolver ao nível da personalidade complexos relativos ao núcleo familiar do tipo geral que Freud distinguiu pela primeira vez, do mesmo modo que toda a humanidade parece dotada por natureza de uma capacidade específica para a utilização da linguagem, capacidade que entra em acção quando a criança individual aprende uma língua concreta ouvindo e imitando os adultos do seu grupo. Mas se as coisas forem postas nestes termos, a documentação empírica parece sugerir que a forma que um complexo deste tipo assume dependerá das circunstâncias que caracterizam o ambiente no qual o indivíduo vive a sua infância mais precoce. O clássico complexo de Édipo que Freud diagnosticou não se encontra tal qual em toda a humanidade. c) A despeito das imensas pretensões dos etnopsiquiatras e dos cultores das teorias de «cultura e personalidade», não há boas razões para supormos que as variações da cultura humana sejam de um tipo tal que todos os membros de uma comunidade determinada X, dotada de um fundo cultural particular A, se diferenciem de modo significativo e demonstrável das personalidades de base de todos os membros de qualquer outra cultura Y, dotada de um fundo cultural B. Quando Freud escreveu Totem e tabu, cerca de 1913, adoptou dos evolucionistas sociais do século XIX — autores como Tylor e Frazer — a ideia sumariamente imperialista de que «os selvagens primitivos» conservavam, em adultos, uma mentalidade de crianças. Uma espécie de racismo paternalista tornouse, por isso, parte dos dogmas da teoria freudiana. Freud escreveu: «O período de latência é um fenómeno fisiológico. No entanto, só é capaz de produzir uma interrupção completa da vida sexual nas organizações da civilização humana que decidiram assumir a repressão da sexualidade infantil. Isso não se verifica na maior parte dos povos primitivos» [1924, trad. it. p. 105 nota]. Para os freudianos, os primitivos são diferentes porque continuam a ser crianças. Não crescem e por isso não se tornam «recalcados», como acontece normalmente aos civilizados. Não há absolutamente nada que justifique este sentimentalismo paternalista. Não obstante, ele exerceu até aos nossos dias uma influência desastrosa sobre todos os escritos psicanalíticos dedicados a temas antropológicos. A tese pode Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 37/49 também ser apresentada de forma oposta, afirmando-se então que a capacidade de possuir funções mentais mais elevadas depende do grau em que as actividades do Ego se tornam autónomas e que a tendência para uma maior autonomia do Ego tem aumentado no decurso da história do homem ocidental {cf. Hartmann, Kris e Loevenstein 1951]: esta versão é mais enfática e respira mais uma certa gíria académica, mas a tese continua a ser a mesma: os homens brancos são superiores porque são mais crescidos! Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 38/49 12. A visão marxista do homem e da natureza O aspecto da teoria freudiana acima destacado põe em evidência o facto — aliás evidente por si — de que toda a tese que o investigador queira desenvolver acerca dos nexos existentes entre a cultura e a natureza humanas será sempre condicionada pelas posições políticas que marcam as demais esferas da vida social. Em primeiro lugar, se se aceitar a tese da existência de um mundo objectivo, natural, fora de nós, exterior à consciência do homem, mas sujeito à análise através dos sentidos humanos, poderá então pretender-se que o homem é parte dessa natureza, que ele é um animal natural como qualquer outro e que a causa eficiente das acções humanas está na resposta dirigida pelo homem aos outros elementos que se inserem no mesmo mundo natural. É esta, em grandes linhas, a visão adoptada pelos psicólogos behavouristas e por numerosos etólogos. Neste quadro geral, conceitos subjectivos como «intenção» e «consciência» podem ser ignorados, e o estudo do comportamento humano, tanto a nível individual como a nível da organização social, deverá ser conduzido segundo os critérios habitualmente seguidos por todas as outras ciências experimentais empíricas ortodoxas, como a física ou a bioquímica. A lógica política desta posição é muito conservadora. O mundo social, tal como o mundo físico, é o que é porque foi desse modo que a evolução se verificou na natureza. O homem ilude-se se imagina poder comportar-se como um deus, criando sociedades que sejam desta ou daquela maneira melhores do que as já existentes. Nem todos os investigadores behavouristas/funcionalistas do comportamento humano e animal foram sempre declarada-mente de direita em termos políticos, mas resta o facto de subsistir uma incompatibilidade manifesta entre uma interpretação que afirma a existência de leis naturais que garantem automaticamente a integração funcional de uma sociedade, quer animal quer humana, e uma posição política radical a favor da revolução social. Com efeito, todas as vezes que os investigadores dos problemas do homem e das suas actividades tentaram combinar as ideias radicais com as funcionalistas, acabaram por abandonar ou o radicalismo ou o funcionalismo. A posição adoptada pelos psicólogos analíticos (cf. §11) é uma espécie de compromisso. Reconhece-se que as formas subjectivas da cultura humana têm um modo de existência diferente das da natureza material, mas com a introdução do conceito de inconsciente — assaz elástico mas indefinido — esquivam-se todas as implicações decorrentes dessa distinção. O objectivo da terapia freudiana é trazer o paciente neurótico à «normalidade». Quer dizer que se quer permitir-lhe inserir-se na sociedade em que se encontra. Os revolucionários são por isso considerados psicóticos e a lógica política resultante é, uma vez mais, muito conservadora. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 39/49 Por outro lado, os que entendem a cultura e a natureza como categorias completamente separáveis, inclinam-se com toda a probabilidade para a esquerda em termos políticos. White, por exemplo, que afirmava que «a cultura move-se segundo os seus próprios princípios e as suas próprias leis» [1949, p. 374], sendo «uma entidade sui generis», e que «o modo mais eficaz para estudar cientificamente uma cultura é o de proceder como se a raça humana não existisse» [1947, p.296]. Embora nunca se tenha declarado abertamente marxista, White empenhou-se profundamente em fazer do seu departamento de Ann Arbor, no Michigan, o ponto de encontro de todos os antropólogos americanos de esquerda. Mesmo admitindo que a cultura tem uma existência independente da natureza e que, em certa medida, é governada por «leis» próprias, ela permanece, no entanto, uma entidade criada pelo homem, e não por qualquer misteriosa força sobrenatural ou natural externa a este. Mas então, para de novo regressarmos a Vico, o que foi uma vez feito pelo homem é potencialmente compreensível e susceptível de ser de novo feito pelo homem: «Este mundo civil foi certamente feito pelos homens, por isso os seus princípios devem ser procurados e descobertos nas transformações do nosso próprio espírito humano» [1744, ed. 1967 p.115]. Alguns teóricos marxistas actuais levaram esta tese ao ponto de afirmarem que «o homem não tem natureza» [cf. Malson 1964], entendendo com isso que a cultura é infinitamente flexível, não sendo de modo algum determinada pelas limitações da constituição genética do homem. Trata-se, é claro, de uma afirmação grosseiramente exagerada, mas hoje que os homens chegaram à superfície da Lua, é extremamente difícil indicar com um mínimo de segurança quais sejam precisamente os derradeiros limites da capacidade técnica humana. Deste ponto de vista, é deveras singular que as teorias behavouristas/funcionalistas, segundo as quais o homem em sociedade é escravo da sua natureza biológica, se tenham desenvolvido num período ao longo do qual a capacidade técnica do homem demonstrava em todos os campos exactamente o contrário. Embora as ortodoxias e as heterodoxias do marxismo sejam tão variadas e numerosas que se torna difícil dizer se esta ou aquela posição é especificamente marxista, as observações seguintes talvez sejam aceitáveis para um certo número de doutrinadores autorizados. O mundo material fora de nós, externo em relação ao homem, existe tal como o percepcionamos. A história humana é a história do crescimento da capacidade tecnológica do homem. Através da tecnologia, o homem tornou-se senhor da natureza, quando originalmente era dela escravo. Um sistema tecnológico deve, porém, ser considerado como uma totalidade social: não é constituído apenas por um sistema de instrumentos e pela utilização dos instrumentos como meio de reprodução primária, mas também por um sistema de distribuição da actividade produtiva entre os membros da população que gozam dos benefícios da tecnologia e por um mecanismo através do qual a população se reproduz enquanto organização produtiva real. Até aqui a análise marxista da integração dos Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 40/49 elementos sociais e técnicos que se encontram em qualquer sistema de produção e de reprodução socioeconómico em nada diverge da análise funcionalista. No entanto, os marxistas desenvolvem a seguir esta tese, distinguindo entre estrutura e super-estrutura. A ‘estrutura* refere-se à ordem total do sistema socioeconómico de reprodução; em princípio, esta ordem é determinada pela lógica interna às exigências do sistema tecnológico enquanto tal, às «forças produtivas». Pelo termo ‘super-estrutura* referem-se as instituições de tipo religioso, jurídico e político, que não se ligam de modo imediato e directo ao sistema produtivo, mas constituem uma espécie de «florescência secundária», cuja origem está mais na ideologia do que na necessidade económica. Também aqui não subsiste à partida qualquer divergência fundamental entre as concepções marxista e funcionalista. Por exemplo, a versão malinowskiana do funcionalismo antropológico distingue as instituições ligadas a necessidades «primárias» das que reflectem necessidades «secundárias», mais ou menos do mesmo modo como os marxistas distinguem a estrutura da super-estrutura. A partir deste ponto, manifesta-se, todavia, uma nítida divergência de perspectivas. Para o funcionalista, o sistema social na sua totalidade é, por definição, auto-suficiente e integrado. Toda a rede do sistema de reciprocidade no interior do sistema social global deve ser mantida em equilíbrio, e por isso toda a renda ou tributo pagos pelos produtores aos seus «patrões» políticos e religiosos prevê, em troca, os «serviços» políticos e religiosos que os «patrões» por sua vez prestam à comunidade. Do ponto de vista marxista, estes «serviços» existem apenas como ideologia; a renda/tributo é considerada como exploração e o sistema, no seu conjunto, não se encontra em equilíbrio. Por consequência, todos os sistemas socioeconómicos têm uma tendência intrínseca para a revolução interna, em virtude do desequilíbrio fundamental existente na distribuição dos produtos entre produtores e não-produtores. Mas os marxistas adiantam ainda outra ordem de razões, que os funcionalistas não levam de maneira alguma em conta na sua análise. Segundo o marxismo, os sistemas tecnológicos apresentam uma tendência específica a sofrer processos de transformação na sequência das inovações tecnológicas. As transformações tecnológicas, a este nível fundamental, comportam também transformações na organização do trabalho e das organizações que reproduzem a força de trabalho. Estas transformações, por sua vez, condicionam as relações de exploração entre a estrutura e a super-estrutura. Aqueles que controlam os meios de produção, os homens que ocupam o topo das posições de dominação, graças à ideologia, verão ameaçada a sua posição sempre que se registam transformações nas relações de dependência da força de trabalho, e oporão uma dura resistência às adaptações sociais tornadas necessárias pela lógica da inovação tecnológica. Analogamente, os sistemas sociais representam um elemento de conservação que gera contradições no contexto do desenvolvimento tecnológico. A transformação revolucionária não ocorre por isso apenas em razão das imperfeições do sistema Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 41/49 interno de reciprocidade, mas também porque as inovações técnicas «de base» criam «contradições» entre a ideologia e a realidade socioeconómica. Em última análise, os pressupostos do marxismo são diametralmente opostos aos dos funcionalistas. Enquanto os funcionalistas consideram axiomático que a integração social é parte da própria natureza da sociedade, entendida esta como uma espécie animal que se autoperpetua, os marxistas, pelo contrário, em lugar da ideia de desenvolvimento através de um progresso contínuo no sentido de uma maturidade mais complexa, adiantam a ideia de um desenvolvimento descontínuo. Cada nova sociedade se constrói a si própria, por oposição dialéctica, sobre as ruínas das que a precederam. Os funcionalistas consideram que as sociedades humanas têm uma relação ecossistémica de adaptação à esfera ecológica no interior da qual se desenvolvem, enquanto os marxistas atribuem um maior peso à capacidade do homem para dominar o ambiente natural em que vive, implicando essa capacidade o direito e, na realidade, o dever de o fazer. Neste ponto, a exploração exercida pela empresa capitalista privada e os objectivos do sistema colectivista do marxismo soviético possuem numerosos elementos comuns. Os críticos podem fazer notar que a exploração tecnológica da natureza em proveito da humanidade pode acarretar a destruição da natureza e que esta, uma vez destruída, não poderá ser recriada. A menos que a humanidade no seu conjunto desenvolva uma ideologia que consiga travar as capacidades de exploração do homem, as gerações futuras herdarão um mundo no qual a cultura humana se encontrará numa posição de domínio completo sobre o que restar da natureza. Mas o mundo ter-se-á tornado um lugar muito mais pobre. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 42/49 13. A natureza entendida como cultura No início deste ensaio, fizemos notar que, enquanto os Gregos pensavam que a essência da natureza fosse a mudança permanente, a partir do Renascimento, pelo contrário, a natureza passou a ser entendida precisamente como um elemento imutável. Embora as modernas concepções da natureza reconheçam que, numa perspectiva a muito longo prazo, todas as entidades do universo se encontram submetidas a processos evolutivos em parte governados pelo acaso, e por isso imprevisíveis, continua a ser globalmente verdadeiro que o actual investigador em ciências naturais defende a tese que qualquer acontecimento da natureza é governado por «leis» (sobretudo de tipo estatístico) que o homem tem a possibilidade de investigar e compreender. Como vimos, são numerosos os cientistas que gostariam de incluir igualmente o homem neste reino da natureza imutável, determinada por leis precisas e omni-englobantes. Há muito bom senso na afirmação de que só um sentimento de vaidade humana, apoiando-se num misticismo de tipo religioso, pode ter levado alguns a suporem que, no processo geral da evolução animal, uma única espécie, a nossa, podia diferenciar-se de um modo tão radical que a subtraíria ao condicionamento das leis naturais que governam todas as outras coisas. Mas serão os seres humanos, realmente, um caso particular? Os nossos processos mentais parecem dar-nos uma «compreensão» da natureza do mundo muito diferente da que parecem possuir todas as outras criaturas vivas, e é através desta capacidade de compreender, através do tipo muito particular da interpretação humana da experiência que nos tornamos capazes de construir os modelos da natureza que se agrupam dentro da categoria da cultura, e de renovar continuamente esses modelos. Sem dúvida que isto é verdade: mas será suficiente para dizermos que somos realmente casos completamente à parte? Esta interrogação levanta um intrincado problema, e no momento actual não existe acordo entre cientistas, psicólogos e antropólogos quanto ao modo de o abordarmos. É muito possível que tenhamos interpretado de modo errado os processos mentais das criaturas vivas diferentes do homem. Em particular, não conseguimos talvez entender que provavelmente é válido para todas as criaturas vivas, e não só para o homem, o princípio de que a compreensão do ambiente se obtém somente através da experiência, ou seja, passando pela cultura, em vez de ser algo implícito na natureza biológica do animal. Experiências recentes, realizadas com animais, sugeriram a hipótese de que mesmo uma sensação tão primária, na aparência, como a dor tem que ser «aprendida» antes de poder ser sentida. Assim, símios adultos criados em condições de «ausência de dor» parecem ser absolutamente incapazes de experimentar essa sensação. As conclusões que se podem extrair destas observações são singularmente insólitas. Nalgumas espécies, por exemplo, os progenitores podem ser adaptados de modo a comportarem-se com «crueldade» para com a descendência, a fim de esta última poder adaptar-se melhor, quando adulta, às vicissitudes imprevisíveis da experiência quotidiana. Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 43/49 É verdade que animais destituídos de uma linguagem verbal não podem formar conceitos verbais, e que o processo de «criação dos símbolos», através do qual os animais diferentes do homem podem elaborar associações de categorias segundo operações analógicas, é muito diferente daquele que intervém na maior parte dos seres humanos. Parece óbvio que o pólo racional, analítico e metonímico do pensamento, tão proeminente no discurso verbalizado dos seres humanos, deve estar ou completamente ausente ou, no melhor dos casos, presente apenas de uma forma muito rudimentar nas operações mentais dos outros animais. E muito possível, porém, que se trate mais de uma diferença de grau que de uma descontinuidade. O homem é um animal que possui uma herança cultural extremamente complexa e fortemente diferenciada. No entanto, só hoje se começa a compreender que é preciso recuar muito na evolução biológica para encontrarmos animais para os quais a herança da aprendizagem, incorporada em símbolos, seja desprovida de qualquer importância. A distinção categoria! entre natureza e cultura, para utilizarmos estes termos no seu sentido actual, é significativa, mas é um erro supor que se trata de uma distinção aplicável apenas à humanidade. Para os que abordam o estudo do comportamento humano e animal com os preconceitos da ciência objectiva experimental ortodoxa, a simples discussão em torno de conceitos metafísicos como «espírito», «consciência» ou «intenção» é uma heresia, e quem quiser alargar o campo de aplicação desses atributos aos animais para além do homem arrisca-se a ser considerado um antropomorfizante blasfemo, um infractor dos primeiros princípios da análise científica séria. Porém, não é possível negar que, muito frequentemente, o modo mais simples de se compreender o comportamento de um animal é supor que ele está «a pensar como um ser humano». Por exemplo, foi recentemente demonstrado que, quando se mostra a um animal doméstico na televisão uma cena semelhante a outra que ele tenha visto na vida real, o animal chegará a partir daí ao mesmo tipo de juízo interpretativo que um observador humano poderia formular, Analogamente foi demonstrado que os macacos de laboratório não só são capazes de distinguir diversas espécies animais, mas também — coisa muitíssimo surpreendente — de as classificar de acordo com os mesmos processos utilizados pelos homens: todos os cães, por exemplo, são agrupados numa única categoria sem que se atenda à sua forma, às suas dimensões e à sua cor. As fotografias dos membros da mesma espécie a que estes macacos pertencem provocam uma resposta muito diferente: cada macaco é considerado à parte, como se pertencesse a uma espécie diferente. Os écrans de televisão e as fotografias não existem «na natureza» e qualquer psicólogo behaviourista de convicções inabaláveis será sempre capaz de fabricar raciocínios tortuosos, complicados e viciosos, que lhe permitam interpretar todos os testemunhos deste tipo como outros tantos casos de um processo mecânico do tipo estímulo-resposta, sem necessidade de recorrer a mistificações como «processos de formação de conceitos», «simbolização», «abstracção», «classificação», e assim por diante. Mas podemos contrapor a esses raciocínios uma tese subjectivista muito Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 44/49 mais simples: os actos realizados pelos animais domésticos, nas condições de um laboratório, dependem necessariamente das suas capacidades «naturais». Aqui a dedução mais evidente que podemos extrair de experiências como as referidas acima é que os processos mentais dos animais em estado selvagem devem ser mais próximos do que se julga habitualmente dos dos seres humanos culturalmente condicionados. Talvez devamos voltar ao conceito grego original de physis e reconhecer que as capacidades de realização de uma mudança «intencional» e «calculada», considerada habitualmente uma característica peculiar dos seres humanos que se movimentam no interior da esfera da cultura, podem ser uma qualidade que permeia a natureza em todo o seu conjunto. O autor destas linhas resumiu noutro lugar a posição que retoma agora na passagem seguinte, e que será talvez uma conclusão apropriada para a discussão até aqui empreendida: «O universo físico, químico e biológico que os cientistas hoje tentam compreender não é uma perspectiva imutável da Grande Cadeia do Ser, governada por leis imutáveis, fixadas pela natureza desde o início dos tempos. É um sistema evolutivo onde as relações entre os elementos constituintes, em movimento contínuo, se combinam constantemente segundo novos modelos. Num universo deste tipo, os acontecimentos mais interessantes, susceptíveis de darem lugar a transformações, revelam-se aqueles que estatisticamente são improváveis. «Os acontecimentos improváveis, geradores de transformação, ocorrem casualmente contra um fundo de ordem incompleta. Sabemos que em geral os sistemas biológicos se reproduzem com uma extraordinária precisão, e saber como isso acontece é por certo muito interessante. Mas sabemos igualmente que, às vezes, esta precisão falha, e isso é ainda mais interessante. «Através de uma maior atenção à incerteza, os investigadores das ciências naturais acabaram por reconhecer que as analogias mecânicas são absolutamente inadequadas. As máquinas comuns não cometem erros. Por isso, sendo a teoria matemática geral dos sistemas discutida na linguagem da engenharia da comunicação, diversos especialistas sérios se interrogam especulativamente acerca dos atributos que deveriam ser os de um computador ideal dotado de “inteligência artificial”. «Esta visão matemática e racionalista do universo das entidades intercomunicantes, que possuem a característica essencialmente humana da inteligência, começa a ter um efeito de retroacção sobre a percepção do cientista relativamente às entidades empíricas. Na biologia molecular, a relação da réplica geradora de erro é descrita como “RNA mensageiro”. Será esta linguagem deveras significativa? O modelo que serve de protótipo, para cada um de nós, à entidade geradora de mensagens é o espírito humano. Deste modo, em vez de assistirmos à transformação da antropologia social numa ciência natural e teórica da sociedade, é a biologia que parece ter-se tornado uma ciência social e teórica da natureza» [1976, pp. 175-76]. 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As diversas correntes da antropologia (cf. anthropos) definem-se segundo as soluções que propõem para o problema das relações entre a natureza e a cultura; o mesmo acontece em filosofia (cf. filosofia/filosofias). Análoga problemática se reencontra no debate sobre as relações entre ciências sociais e Voltar ao índice Índice Natureza/cultura — Enciclopédia Einaudi, vol.5 49/49 ciências naturais (cf. ciência, leis), na psicanálise (cf. castração e complexo, incesto), no marxismo (cf. modo de produção). *** Voltar ao índice