Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 1/42 CULTURA/CULTURAS Edmund Leach in: Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1989, vol.5 - Anthropos — Homem, p.102-135. Índice do ensaio: 1. Desenvolvimento do conceito 2. Usos do conceito 2.1. Cultura como testemunho histórico 2.2. Cultura como testemunho de integração social 2.3. Traços culturais como dados de «ciência objectiva» 3. Interdependência e integração dos elementos culturais 3.1. A selecção dos dados e a procura de sistematização 3.2. Cultura como expressão de sistemas no espírito 3.3. Cultura como expressão do sistema social 3.4. Sistemas culturais como tipos ideais: historicismo e materialismo 3.5. Culturas primitivas como exemplos de formações sociais 4. A cultura como comunicação 4.1. A analogia linguística e os seus limites 4.2. Tabus e «ritos de passagem» como instrumentos de segmentação cultural 4.3. A antropologia estrutural de Lévi-Strauss 5. Conclusão Bibliografia 1. Desenvolvimento do conceito A palavra cultura e os termos afins das outras línguas da Europa ocidental (por exemplo, culture em inglês, culture em francês, Kultur em alemão) têm a sua raíz no termo latino cultura e, em certos contextos, conservam a sua relação com o cultivo (por exemplo, «uma cultura de bactérias»). No entanto, neste ensaio, interessam-nos unicamente os usos contemporâneos deste termo em antropologia e outros campos vizinhos. Interessa-nos, portanto, o significado e o uso do conceito de cultura enquanto tal e, em particular, as confusões que daí resultaram e continuam a manifestar-se, uma vez que, enquanto alguns autores imaginaram a Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 2/42 cultura como um estado, comparável à vida, que só pode existir singularmente, outros exprimem-se como se a «cultura» fosse um fato a adornar a nudez do corpo humano. Neste último caso, uma vez que as peças de vestuário são intercambiáveis, também a cultura e as parcelas de culturas (traços culturais) poderão existir no plural. Durante a primeira metade do século XIX, o termo alemão Kultur era sinónimo dos termos inglês e francês civilisation. Os títulos dos enormes compêndios evolucionistas de Klemm [1843-52; 1854-55] mostram como o termo podia ser usado num sentido globalizante. No entanto, numa época mais tardia, os autores alemães passaram a usar Kultur como um sinónimo de refinamento, e assim os Kulturvölker. Em Inglaterra, pouco depois de 1860, um certo número de autores usava culture como sinónimo de civilisation, e o clássico da antropologia Primitive Culture [1871] de Tylor abre com a definição frequentemente citada: «A cultura ou civilização, entendida no seu sentido etnográfico amplo, é o conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, o costume e toda a demais capacidade ou hábito adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade» (trad. it. p. 7). A tradução francesa da obra de Tylor trazia La civilisation primitive como título, mas é neste ponto que a fórmula tende a extraviar-se. Matthew Arnold em Culture and Anarchy [1869] tinha já equiparado culture a civilisation, mas num sentido que se mostrava muito diferente e muito mais restrito. A «cultura» do título de Arnold é essa variedade característica da moralidade e da sensibilidade estética disciplinadas e nobres, a qual constituía um atributo exclusivo do homem culto (ou seja, bem-educado) e que qualquer indivíduo do sexo masculino da Europa ocidental, oriundo da classe média, deveria presumivelmente ter adquirido como resultado da sua educação cristã. A ambiguidade subsiste ainda hoje. Quando um letrado inglês dos nossos dias usa a palavra culture, é provável que ao seu pensamento corresponda um conceito elitista, mais próximo da acepção que lhe deu Arnold, do que da acepção antropológica englobante indicada por Tylor. No campo antropológico, houve numerosas tentativas falhadas de, sob uma forma mais concisa e praticável, compendiar o que se entende por ‘cultura [cf. Kaplan e Manners 1972; Kroeber 1952; Kroeber e Kluckhohn 1952; Malinowski 1944; White 1949]; mas, na prática, o alcance do termo ganhou em extensão em vez de se restringir. A definição de Tylor pressupõe que a cultura consiste em qualidades mentais e em aspectos do comportamento («conhecimento», «crenças», «hábitos»); é um atributo interiorizado do indivíduo, adquirido como resultado da sua educação. Mas, rapidamente, os sucessores de Tylor começaram a falar de «cultura material», no sentido de um corpo de artefactos exterior ao indivíduo, mas característico de um ambiente tribal particular. É sobretudo neste sentido que os arqueólogos e os etnólogos ligados aos museus usam hoje o termo ‘cultura . Finalmente, por extensão, a cultura veio a poder incluir qualquer aspecto do ambiente físico e social efectivo do homem, que seja mais obra dele próprio que um dado da natureza, de tal modo que, por inversão, a cultura se tornou um critério de Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 3/42 definição do próprio homem. Nos Estados Unidos, durante os últimos cinquenta e tal anos, a maior parte dos estudantes de antropologia ouviu repetidamente a afirmação de que a cultura é uma característica única, compartilhada por toda a humanidade, mas completamente ausente do mundo não-humano. Mas, se ‘cultura for simplesmente sinónimo dos atributos humanos dos seres humanos, torna-se um termo redundante, que não diz absolutamente nada nem da cultura nem da humanidade. O dogma segundo o qual a cultura é uma característica humana distintiva apresenta-se, por vezes, sob a versão alternativa de que só o homem é capaz de aprendizagem ao nível simbólico. Segundo a definição de Tylor [1871], a cultura é, essencialmente, um comportamento social aprendido tal como se manifesta no homem, e aquele pode ser considerado como uma componente do conceito mais geral de comportamento adquirido por aprendizagem. Todos os seres vivos aprendem com a experiência através da simples interacção com o seu meio físico. Em todas as formas superiores da vida animal, existe, além disso, um outro processo de aprendizagem social dependente da interacção (estímulo-resposta e reforço) com outros seres vivos; em particular, com membros da mesma espécie. Mas só no homem — conforme tem sido defendido— se encontram as capacidades de simbolização que fazem com que a informação seja codificada em estruturas sonoras e formais de tipo linguístico e, depois, descodificada por parte de quem ouve essa espécie de mensagens. A transmissão da cultura de geração em geração consiste em aprender a manipular estes códigos. À primeira vista, isto parece representar uma abordagem bastante bem articulada do conjunto do problema. E indubitável que só o homem possui a linguagem e que as faculdades de reflexão e comunicação, que conferem ao homem a sua posição única no reino animal, dependem em grande parte do uso da linguagem. No entanto, apesar de a linguagem ser um comportamento social aprendido, no sentido de Tylor, e, portanto, parte da cultura, não se pode inverter a equação e considerar toda a cultura como simples equivalente de uma competence e performance linguística generalizada. É digno de nota que certos desenvolvimentos recentes do estruturalismo antropológico parecem pressupor precisamente uma equivalência deste género [Para uma apreciação crítica desta tendência, cf. Sperber 1974]. Por outro lado, se deixarmos de parte a linguagem e os processos do pensamento humano que lhe são conexos, o facto da cultura (tal como a descreve Tylor) ser uma característica distintiva dos seres humanos torna-se mais uma questão de dogma do que de observação. A experiência comum sugere a existência de uma grande variedade de animais que adquirem «costumes» e «hábitos», como consequência da sua pertença a uma sociedade, e não há qualquer razão óbvia para que as actividades decorrentes desse facto não devam ser consideradas culturais, ainda que o agente em questão seja um corvo, ou um coelho, ou um gato doméstico, em vez de um homem. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 4/42 Destas observações críticas resulta, em termos gerais, que «cultura» é uma categoria mal definida e redundante, que, com o passar do tempo, contribuiu mais para confundir o pensamento dos antropólogos profissionais, do que para o clarificar. Vamos examinar agora algumas dessas confusões. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 5/42 2. Usos do conceito 2.1. Cultura como testemunho histórico Independentemente das suas limitações conceptuais, a cultura é hoje considerada o objecto próprio da antropologia. Os antropólogos e os arqueólogos) profissionais estudam a diversidade na cultura. Como procedem? Primeiro que tudo, operam distinções. Existem, segundo eles, diversos tipos de cultura, sendo por isso possível distinguir uma cultura de outra. O que, mais do que um facto indiscutivelmente evidente, é uma ideia. É uma característica universal dos seres humanos acreditar que pertencem a um tipo diferente: «nós» somos de uma maneira, «eles» são de outra. Os tipos em questão são categorias do pensamento e não podem ser inferidos por demonstração empírica. Após séculos de discussão, os antropólogos físicos, que estudam o homem de um ponto de vista anatómico e zoológico, chegaram a um acordo quase pleno na afirmação de que o homem moderno (Homo sapiens) é, em toda a parte, essencialmente o mesmo enquanto espécie natural. No passado, existiram raças regionais de homens do mesmo modo que existem hoje raças de cães, e isso reflecte-se na actual diversidade morfológica; mas a humanidade, no seu conjunto, cruzou-se de tal modo que não parece existirem diferenças significativas de capacidade inata ou de temperamento entre uma «raça» e outra. Admitido isto, temos que, consequentemente, atribuir toda a diversidade verificada nas formas de civilização entre os homens (‘civilização entendida aqui no sentido englobante de Tylor) às diferenças de educação cultural. Estas diferenças são tão reais como as diferenças morfológicas do homem físico, mas não deixam de se fundir umas nas outras. As descontinuidades de cultura são tão difíceis de distinguir especificamente como as descontinuidades de «raça». Os padrões da cultura humana variam enormemente à medida que nos deslocamos ao longo de um mapa geográfico, mas as diferenças de linguagem, de crença religiosa, de regime político, de códigos morais e legais, não coincidem, regra geral, entre si. No entanto, os vários povos tendem sempre a falar «como se» essa coincidência fosse imediatamente evidente («são estes os nossos costumes», «os costumes deles são aqueles»). A convenção, há muito estabelecida, pela qual os antropólogos falam de «culturas» no plural, representa uma imitação acrítica do mesmo modo de falar. O que é bem de molde a fazer-nos perder a orientação. A ideia de que o mesmo conceito geral de cultura — no sentido de crenças e comportamentos adquiridos e da transmissão de uma herança de coisas e ideias — é susceptível de ser repartido em compartimentos isolados, no interior dos quais cada cultura distinta é específica de uma tribo particular, existente num particular contexto espacio-temporal, começou por aparecer como resultado dos interesses e das metodologias dos antropólogos interessados. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 6/42 Antes de 1914, todos os antropólogos, independentemente do seu campo de interesses específico, tinham como axioma que o seu objectivo final devia ser a reconstrução histórica. Diferiam, apenas, quanto aos meios através dos quais deveria conseguir-se essa reconstrução. Na definição original de Tylor estava implícito que a cultura deveria ser o somatório dos dados independentes (traços culturais) susceptíveis de registo num inventário por listas. Este ponto de vista encontrava-se em conexão com a crença, compartilhada por todos os colegas evolucionistas de Tylor, segundo a qual seria possível reconstruir a cultura de épocas passadas, integrando de novo nos seus conjuntos de articulação originais os traços dispersos dos antigos costumes que, pelos acasos da história, tinham sobrevivido, fora do seu contexto, até aos tempos actuais. Os antropólogos difusionistas da geração seguinte preocuparam-se igualmente em reintegrar, num contexto único, traços culturais que, com o decorrer do tempo, se tinham dissociado, mas operavam de acordo com pressupostos diferentes. A tese evolucionista era a de que os complexos culturais «originais» da antiguidade se tinham deslocado, segundo uma variedade de traços distintos, através de um processo de sobrevivência fragmentária; os difusionistas sustentavam que a fragmentação e a dispersão desses traços era o resultado de migrações e do tráfico comercial. Ambos os tipos de reconstrução histórica pressupunham que as culturas do passado podiam ser individualizadas enquanto conjuntos constituídos por componentes diferenciados (traços). A dimensão especulativa nestes dois tipos de procedimento era muito acentuada e, nos finais do século XIX, o pensamento antropológico começava já a orientar-se no sentido do empirismo, embora o empenhamento na reconstrução histórica permanecesse inalterado. Verificou-se sobretudo que os antropólogos, de olhos e pés na terra, começaram a utilizar o conceito «uma cultura» para a descrição de qualquer conjunto de artefactos recolhidos num estrato único de um nível único de prospecção, enquanto os antropólogos culturalistas americanos, seguindo o exemplo de Boas, usavam a mesma expressão para descreverem todo o corpo de costumes, tradições e objectos materiais que, num passado relativamente recente, distinguem esta ou aquela tribo índia da América. É importante ter-se em conta o facto de que Boas e os seus seguidores não se consagravam, de um modo geral, ao estudo de sociedades tribais índias directamente observáveis, enquanto entidades em acção, mas tentavam a reconstrução das características dessas sociedades com base nos resíduos materiais fragmentários e nas reminiscências de informadores de idade avançada, vivendo em condições de destribalização nas reservas índias sob tutela do governo. Os investigadores da escola de Boas tratavam com desprezo todas as generalizações especulativas acerca de quaisquer processos universais de evolução social ou de difusão cultural, mas tendiam ainda a identificar os objectivos de antropólogo com os do historiador. Eram coleccionadores indiscriminados de Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 7/42 factos etnográficos de todo o género e dos mais diversos níveis. Embora fossem ecléticos nos métodos de investigação de campo, minimizavam constantemente o elemento do sistema que teria sido possível especificar no conjunto dos dados empíricos. A Primitive Society [1920] de Lowie, texto antropológico com larga influência que, segundo parece, iria induzir mais tarde Lévi-Strauss [1955, trad. port. p. 54] a tornar-se antropólogo, concluía referindo-se à mistura sem finalidade de qualquer coisa feita de retalhos e fragmentos chamada civilização, e sustentava que o historiador se dá melhor conta que os demais dos óbices que impedem de introduzir um sentido, nesse produto amorfo. Se bem que Lévi-Strauss tenha vindo a rejeitar a opinião segundo a qual a antropologia é uma forma de historiografia, a sua conhecida afirmação de que as manifestações empíricas da cultura têm uma qualidade arbitrária comparável à de um aparelho fabricado por um bricoleur [cf. Lévi-Strauss, 1962, trad. it., p.29-45] inclui-se na mesma tradição. Uma vez que os seguidores de Boas se mostravam predispostos a acreditar que a sociedade é amorfa e destituída de intencionalidade, não é surpreendente que os costumes das sociedades tribais por eles reconstruídas emergissem das suas notas de campo como uma sobreposição confusa de elementos díspares. No entanto, toda a sua metodologia pressupunha claramente que, numa época imprecisa do passado histórico, cada tribo fora uma entidade distinta, com fronteiras territoriais e culturais bem definidas. A diferença decisiva entre uma e outra tribo poderia, por isso, ser descoberta pela comparação entre os termos de um conjunto definido de traços. Com efeito, a «totalidade complexa» de Tylor, que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes, etc., acaba por ser concebido como um inventário de elementos estáticos juntando-se uns aos outros como as peças de vestuário de um guarda-roupa de teatro. Pressupostos muito semelhantes penetravam também o pensamento dos etnógrafos europeus. (grande parte do melhor trabalho nesta área foi produzido por missionários católicos que se interessavam mais pelas sociedades contemporâneas directamente observadas, que pelas reconstruções do passado; mas os seus relatos eram publicados na revista «Anthropos», sob a orientação editorial do padre Schmidt, cuja ambição grandiosa era servir-se desses dados de modo a validar as suas teorias altamente especulativas acerca da história universal das religiões. Parece que Schmidt teria fornecido aos seus autores uma lista de traços culturais a investigar. Até mesmo a revista inglesa «Notes and Queries in Anthropology», que começou a ser publicada em 1874, se acha estruturada a partir de princípios similares. A problemática centra-se aqui em três ideias-chave. A primeira é o pressuposto de que os povos primitivos de todo o mundo se encontram naturalmente segmentados em «tribos», cada uma delas possuindo a sua própria cultura, distinta e reconhecível; a segunda é a de que cada uma dessas culturas pode decompor-se segundo um conjunto definido de traços; a terceira, que cada um desses é algo com Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 8/42 existência própria, com a sua história particular, podendo tornar-se completamente independente do contexto cultural onde foi registado. A segunda e a terceira ideias contaram-se entre os pontos decisivos sobre os quais os funcionalistas britânicos, conduzidos por Malinowski e Radcliffe-Brown, viriam a desafiar os difusionistas europeus e os seguidores americanos de Boas; mas a primeira proposição não foi seriamente contestada antes de 1935. Em alguns casos, a opinião do antropólogo, segundo a qual a «tribo» examinada constitui uma entidade naturalmente distinta, parece deveras singular. Uma das mais influentes monografias etnográficas, datada do primeiro quartel do século XX, foi The Todas de Rivers [1906], concebida quando o seu autor conservava ainda os seus pressupostos evolucionistas. O livro foi escrito como se os Toda fossem uma tribo distinta, com uma história distinta, que podia descrever-se quase sem qualquer referência às sociedades circundantes em que a tribo se encontra integrada. Ora, de facto, os Toda são uma casta de criadores de gado leiteiro, continuamente implicados em todo um conjunto de transacções quotidianas com membros de outros grupos de castas que vivem nas vizinhanças. Um outro exemplo do mesmo género é fornecido pela série, justamente famosa, das monografias de Malinowski sobre as ilhas Trobriand, na Melanésia. Publicadas entre 1922 e 1935, representam o resultado de uma investigação de campo que decorreu entre 1914 e 1918. Um dos temas centrais de toda esta produção é a importância do kula, o sistema de trocas cerimoniais entre uma e outra ilha, ligando os habitantes da ilha de Kiriwina com outras comunidades insulares, dispersas um pouco por toda a parte numa ampla zona da região Massin da Melanésia. No entanto, as monografias de Malinowski sobre as ilhas Trobriand foram escritas, em larga medida, como se a cultura de Omarakana, subdistrito noroeste da ilha Kiriwina, pudesse ser tratada como um sistema fechado auto-suficiente, do qual todas as componentes se integrassem ‘entre si, como as peças da engrenagem de um relógio. 2.2. Cultura como testemunho de integração social O trabalho de campo de Malinowski, de orientação sociológica, representou uma importante ruptura com a convenção há muito estabelecida de que o objectivo da investigação antropológica era uma reconstrução histórica. Para Malinowski e os seus colegas funcionalistas, a investigação antropológica tornou-se um exercício de sociologia comparada à maneira de Durkheim. A cultura de «uma tribo» não era para eles uma pura e simples recolha arbitrária de dados, um patchwork, mas antes a manifestação visível do funcionamento de um sistema organizado. O funcionamento das instituições sociais seria compreendido mediante o estudo rigoroso da estruturação dos elementos culturais concretos aos quais essas instituições estavam associadas. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 9/42 No entanto, tal como os etnógrafos americanos tendiam a exagerar a ausência de sistematização dos fenómenos culturais, registando os traços avulsos dos costumes fora do seu contexto de utilização original, também os seus contemporâneos britânicos se sentiram tentados a exagerar a interdependência funcional dos fenómenos que observavam, uma vez que coligiam a sua documentação no interior de um contexto temporal e espacial unitário, de onde os testemunhos históricos se achavam, no essencial, excluídos. Os etnógrafos funcionalistas britânicos justificavam o seu menosprezo pela história sustentando que nas sociedades pré-alfabetizadas, «a história» é uma mera conjectura — o que é, em si mesmo, verdade — mas, ignorando a possibilidade de explicações históricas relativamente às concatenações observáveis nos seus dados, conseguiram fazer com que o seu postulado de interdependência funcional parecesse muito mais plausível. Nos anos 30, os etnógrafos americanos começaram a seguir o exemplo dos seus contemporâneos europeus. Os seus interesses deslocaram-se da reconstrução das hipotéticas histórias tribais para o estudo das sociedades primitivas contemporâneas. Entretanto, alguns antropólogos americanos converteram-se à antropologia social funcionalista britânica, à maneira dos seguidores de Malinowski e de Radcliffe-Brown, mas mesmo assim a ideia anterior, segundo a qual «uma cultura» pode ser considerada como um simples inventário de traços estáticos, cada um dos quais com a sua própria história independente, conseguiu sobreviver por longos anos e desenvolver-se sob novas formas. 2.3. Traços culturais como dados de «ciência objectiva» Outline of Cultural MatériaIs de Murdock, concebido como guia de trabalho de campo para o etnógrafo que se inicia nesta tradição, foi publicado pela primeira vez em 1942 e desde então tem conhecido várias reedições revistas. () grandioso empreendimento conhecido como Human Relations Area Files (HRAF), centrado na Universidade de Yale e que foi uma iniciativa do professor Murdock, está ainda a recolher activamente dados tribo a tribo, segundo os mesmos princípios. Este ficheiro de informação etnográfica, com as suas entradas e referências bem elaboradas, especifica os traços culturais de muitas centenas de «culturas» consideradas como separadas, dispersas por todo o mundo. O postulado aqui implícito é o de que, com a ajuda de computadores e quadros estatísticos, tais dados podem ser tratados de maneira a fornecerem informações gerais, cientificamente verificáveis, acerca da cultura humana à escala mundial, ou de formas de cultura humana universalmente correlacionadas com determinados modos de economia de subsistência, e assim por diante. Muitos antropólogos profissionais de renome manifestaram a sua confiança nesta metodologia geral, embora mostrando um certo cepticismo acerca dos resultados efectivamente conseguidos deste modo cf. por exemplo Harris 1968], mas, na opinião de quem escreve estas linhas, são as linhas do projecto, em todo o seu conjunto, que parecem mal concebidas. O mapa etnográfico da população humana Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 10/42 mundial não se segmenta naturalmente num número finito de entidades distintas, comparáveis entre si (culturas). Só parece segmentado de tal modo, em virtude das vicissitudes sofridas pela própria descrição etnográfica. Se os traços culturais registados no HARF tivessem a significação estatística quantificável que se pressupunha, cada uma das culturas distintas deveria ser estritamente comparável a qualquer outra nos termos de um conjunto completo de parâmetros efectivamente fundamentais, compreendendo, em particular, a dimensão da população e a extensão do território; no entanto, não se procedeu, de facto, a qualquer tentativa que permita assegurar que os diferentes termos sejam comparáveis entre eles, deste ou de qualquer outro modo. Até há bem pouco tempo, os dados relativos a Tikupia, uma pequena ilha do Pacífico, com uma área de menos de três milhas quadradas e uma população de 1200 pessoas em 1929, ocupavam mais espaço do que as que diziam respeito aos 600 milhões de habitantes da China! A demonstração obtida a partir desta situação é, evidentemente, do ponto de vista estatístico, destituída de significado. Este exemplo concreto não é, na realidade, excepcional. A natureza inteiramente casual da segmentação tribal da população mundial, em que se baseiam as estatísticas do HRAF, pode ser de novo ilustrada ao considerar-se o modo como os ficheiros cobrem as regiões adjacentes do Assão oriental e da Birmânia do Norte. The Angami Nagas [1921] de Hutton compreende um mapa da zona das Naga Hills, no Assão oriental, onde se assinalava a localização de não menos de doze tribos Naga (Angami, Sema, Lhota, Rengma, Ao, Konyak, Kachin, Tangkhul, Chang, Sangtam, Yachumi, Phom). No decurso dos vinte anos seguintes, a maior parte destes grupos foi objecto de descrições monográficas separadas e cada grupo tem um lugar à parte nos registos do HRAF. Os habitantes da área geográfica mais larga, conhecida pelo nome de Kachin Hills, que se estende para oriente de Naga Hills e se situa em grande parte na Birmânia, são sob numerosos aspectos bastante semelhantes aos Naga. Nas Kachin HilIs, como nas Naga Hilis, os traços linguísticos, os costumes e a organização social variam à medida que se percorre o mapa. Por razões fortuitas, a maioria dos etnógrafos que estudaram as populações das Kachin Hills eram mais «reagrupadores» do que «segmentadores»; mas, se Hutton e os seus colegas se tivessem dedicado mais ao estudo dos Kachin do que ao dos Naga, teriam podido facilmente descobrir pelo menos vinte tribos kachin. Na realidade, tanto quanto sei, a HRAF dedica apenas uma entrada a toda a zona das Kachin Hills. O que é muito acertado, uma vez que, e apesar de existir uma considerável diversidade cultural entre as populações das Kachin Hills, não existem fronteiras culturais que justifiquem a separação de uma cultura kachin de uma outra. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 11/42 3. Interdependência e integração dos elementos culturais 3.1. A selecção dos dados e a procura de sistematização Trata-se, com efeito, de questões fundamentais, que dizem respeito tanto ao estudo da história como ao da etnografia. São duas aqui as questões decisivas: a)como devem ser segmentados os dados em questão para efeito de análise? b) uma vez que o fundo de dados etnográficos potencialmente disponíveis é virtualmente limitado, em termos ou de extensão ou de diversidade, através de que princípio deveremos distinguir o relevante do irrelevante? A história o estudo do que aconteceu no passado, mas é claro que no passado aconteceu uma infinidade de coisas. O historiador deve, portanto, saber distinguir o relevante do irrelevante, mas aquilo que considera relevante depende da sua situação imediata. A história, tal como actualmente se escreve, é não só uma confusão indiscriminada de acontecimentos passados, mas também um documento mitológico, compilado basicamente a partir de uma selecção de acontecimentos passados, de modo a permitir explicar ao leitor contemporâneo como é que as coisas se tornaram naquilo que são. O mesmo vale também que a etnografia; há sempre um número infinito de elementos concretos possíveis que o antropólogo entusiasta poderia registar no seu caderno, mas uma acumulação indiscriminada de semelhantes dados nada nos diz praticamente. Os críticos fizeram notar que Boas publicou cerca de cinco mil páginas de material etnográfico só no que se referia à tribo kwakiutl. Os dados agrupam-se por sobreposição, aparentemente ignorando a perspectiva de qualquer objectivo final. Concretamente, o material inclui e reúne dados relativos aos contos populares, à mitologia, à religião, à arte, aos cerimoniais e aos aspectos mecânicos da tecnologia e da técnica. Como Boas não estava à procura de qualquer ordenamento sistemático ou de qualquer interdependência dos seus dados, é evidente que os não encontrou. Na verdade, parece ter feito tudo para evitar a investigação em todos os campos onde se teria arriscado a descobrir uma ordem de natureza sistemática. Por entre todo o seu material, há muito pouca coisa que se correlacione com a organização económica, social ou política. Ainda hoje, apesar de ulteriores trabalhos de campo e de uma reelaboração quase ininterrupta das notas de campo de Boas, não se sabe quase nada da história do funcionamento efectivo da sociedade kwakiutl no século XIX. Mas, supondo que Boas tivesse aplicado todo o seu esforço de investigação de campo ao registo de informações de um género completamente diferente, que critérios nos poderiam levar a afirmar que o resultado seria um tipo melhor ou pior de etnografia? Deverá o analista da cultura proceder por meio de sistemas Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 12/42 ordenados à análise dos dados que recolhe? E se procura sistemas, que tipo de sistemas deverão ser? 3.2. Cultura como expressão de sistemas no espírito Trata-se de um problema decisivo, que continua a dividir os antropólogos de todo o mundo. A traços largos, parecem existir três tradições principais. Em primeiro lugar, temos o ponto de vista que Lévi-Strauss herdou de Boas através de Lowie. Os conjuntos culturais são incidentes da história, mas, uma vez que não existem leis no processo histórico, a história dos povos primitivos é sempre consideravelmente conjectural. As culturas primitivas devem ser imaginadas como se existissem fora da história; a comparação intercultural é sincrónica e fora de tempo. No entanto, apesar de Lévi-Strauss parecer concordar com Lowie ao considerar as civilizações como uma coisa feita de retalhos e fragmentos, rejeita, contudo, a sua concepção de «misturada sem ordem». @Para Lévi-Strauss, como para muitos antropólogos contemporâneos que, directa ou indirectamente, foram influenciados pelas suas ideias, a cultura é uma manifestação do mundo das ideias abstractas do espírito; é um instrument() de comunicação que, pelo menos sob certos aspectos, se assemelha a uma língua falada. Se aceitarmos as grandes linhas desta equivalência, surgem depois duas questões: a) quais são os elementos da cultura que se combinam entre si de modo a funcionarem como um código (como os elementos sonoros da linguagem), e qual o seu princípio de combinação? b) como se decifram as mensagens assim codificadas e que significam? Neste sentido, um analista da cultura (ou da linguagem) pode ocupar-se ou da formação dos fenómenos manifestos de superfície, ou das estruturas abstractas de nível profundo (no espírito), que geram os fenómenos de superfície. Por exemplo, num dos extremos, um linguista que se interesse pelas correlações sociais da fonologia pode concentrar a sua atenção em pormenores subtis dos usos linguísticos concretos no quadro de um contexto local específico. Desta maneira, pode ficar em condições de demonstrar como certos contrastes relativamente menores do comportamento cultural têm sentido, ainda que isso não implique necessariamente que os sentidos em questão sejam reconhecidos a um nível consciente pelos seus protagonistas humanos. Num outro extremo, um gramático pode tentar descobrir como os segmentos de um enunciado do discurso se reagruparam entre si e se encaixaram em sequências algorítmicas de modo a fornecerem como que uma memória electrónica de ideias significativas, que de novo podem ser depois transformadas em formas alternativas de produção linguística. Neste caso, no cerne da investigação encontram-se problemas de tipo Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 13/42 algébrico de alto nível de abstracção; embora o investigador gostasse de saber como é que o cérebro é capaz de distinguir as combinações significativas das não significativas, não tem necessidade de se preocupar realmente com o comportamento linguístico manifesto. Como exemplo deste contraste de perspectivas, pode citar-se o caso do sociolinguista Labov, que reconhece uma marca de classe social na transformação quase imperceptível de um único fonema numa área muito restrita de Nova lorque, enquanto Chomsky, gramático de orientação matemático-estruturalista, se propõe ilustrar as suas observações acerca das características universais da linguagem humana, através do uso de frases-modelo extraídas de uma forma de. inglês que, provavelmente, nunca foi falada em lugar algum. Analogamente, os antropólogos contemporâneos que partem da mesma base que Lévi-Strauss — a cultura é (mais ou menos) semelhante a uma linguagem — diferem nos resultados académicos do seu trabalho. Alguns estão interessados na estruturação ordenada de aspectos culturais a um nível de superfície, outros interessam-se pela estrutura lógica abstracta do «espírito humano». O próprio Lévi-Strauss reconhece habitualmente que os factos culturais manifestos, no contexto em .que são usados, se organizam de acordo com modelos, do mesmo modo que os elementos fonéticos de um enunciado linguístico. Na medida em que admite esta integração local dos fenómenos culturais manifestos, Lévi-Strauss aproxima-se dos sociolinguistas (por exemplo, Hymes) e dos primeiros funcionalistas (por exemplo, Malinowsky), mas o certo é que as suas intenções próprias incidem noutra direcção. O que lhe interessa, em primeiro lugar, é a significação e, mais precisamente, a significação inconsciente. Mas, neste ponto, Lévi-Strauss toma excessivamente à letra a analogia entre cultura e linguagem. Com efeito, sustenta que, do mesmo modo que o sentido de um enunciado linguístico nunca poderá ser inferido directamente de uma análise dos sons, também o sentido das formas culturais não pode ser inferido da estruturação superficial dos elementos culturais enquanto tais. E esta a base da sua crítica permanente aos antropólogos funcionalistas britânicos, que acusa de adoptarem a posição behaviourista segundo a qual o significado pertence ao mesmo nível que o comportamento manifesto. É muito possível que esta acusação tenha razão de ser. Por outro lado, se a significação existe num outro nível diferente, os funcionalistas podem perguntar com bastante lógica: significação para quem? A parte alguns casos excepcionais, todo o corpus das obras publicadas por Lévi-Strauss se ocupa com a formulação de generalizações baseadas numa comparação intercultural de larga escala. E, portanto, compreensível que Lévi-Strauss tenha prestado tão pouca atenção às peculiaridades da organização social de sociedades tribais, mas é surpreendente ouvi-lo declarar que um mito recolhido no contexto da Amazónia, na América do Sul, se torna somente decifrável quando considerado em articulação com um outro mito tribal, recolhido no extremo Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 14/42 setentrional da América do Norte [cf. Lévi-Strauss 1964-71, III, pp. 11-12]. Provavelmente, aqui, a teoria subjacente deriva de Freud. Para os actores individuais de um dado contexto tribal, os padrões culturais têm significação, mas apenas a um nível inconsciente. O antropólogo está na posição privilegiada de um psicanalista: mediante o uso da comparação intercultural, é capaz de trazer ao nível da consciência as fantasias inconscientes, compartilhadas por toda a humanidade, considerada como ser universal. E uma ideia grandiosa, mas muito longe dos factos em questão. A tese oposta, empírica, afirma que quando Lévi-Strauss declara que as manifestações culturais de superfície são arranjos arbitrários, como os de bricoleur, expressando de certa maneira significações escondidas, recorre a uma metafísica cruelmente auto-ilusória e dificilmente distinguível da que levou Durkheim a falar da sociedade como da criação de uma «consciência colectiva», que era um sinónimo de Deus. 1)e um ponto de vista empírico, as elaboradas contorsões intelectuais de Lévi-Strauss acabam por dizer apenas que a cultura é, para além da expressão, a criação de um entidade inteiramente incorpórea, «o espírito humano» (o esprit humain). Ora, isso remete-nos de novo exactamente para a definição tautológica segundo a qual a cultura é o que é humano, enquanto a humanidade é o que é cultural. Voltaremos a considerar, mais adiante, neste ensaio, o problema da significação utilizável que poderia ser atribuída ao conceito de «espírito humano». 3.3. Cultura como expressão do sistema social A segunda tradição importante no que se refere ao ordenamento em sistema dos fenómenos culturais é a que deriva de Durkheim através de Malinowski e Radcliffe-Brown, embora tendo sempre em conta que, no decorrer do desenvolvimento do pensamento antropológico dos últimos setenta anos, há um processo contínuo de fecundação recíproca de ideias. Assim, Marcel Mauss, sobrinho e discípulo de Durkheim, é tanto um dos precursores da antropologia estrutural de Lévi-Strauss como da antropologia estrutural-funcionalista dos sucessores de Radcliffe-Brown. Entre parênteses, pode notar-se que, apesar de ter reconhecido a sua dívida para com os americanos que se definiam como «antropólogos culturais» e de ter repetidamente denunciado o empirismo dos seus colegas funcionalistas britânicos, Lévi-Strauss definiu-se a si próprio coerentemente como «antropólogo social», termo já adoptado por Malinowski e Radcliffe-Brown para acentuarem o facto de estarem mais interessados na sociologia do que na história cultural. A premissa central dos funcionalistas estruturais era a de que as sociedades humanas existem como conjuntos discretos, enquanto as instituições sociais que, através da observação, prevalecem num mesmo contexto particular de tempo e espaço, se acham sempre integradas no seu conjunto como sistemas homeostáticos, o que faz com que qualquer sociedade tenha sempre uma tendência conservadora implícita no sentido de continuar tal como é. Os Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 15/42 dispositivos institucionais, tal como se manifestam no comportamento consuetudinário, são assim considerados, em certa medida, intencionais (funcionais). Segundo a versão de Durkheim e Radcliffe-Brown, a função de uma instituição é o papel que ela desempenha em ordem a manter a continuidade e a coesão do sistema global; segundo a versão de Malinowski, é o modo pelo qual contribui, directa ou indirectamente, para a sobrevivência e o bem-estar dos membros individuais da sociedade em questão. A contrapartida metodológica deste esquema teórico leva a sustentar que o objectivo da investigação antropológica é descobrir o modo através do qual as sociedades concretas «funcionam» como sistemas. Consequentemente, enquanto a investigação de campo significava anteriormente o registo minucioso das declarações feitas por informadores acerca das condições do passado, ou do que estas deveriam ter sido, tornou-se, em seguida, uma actividade de observação participante directa do modo de operar das instituições em vigor. A análise ocupava-se mais das redes de relações, concebidas como canais de comunicação social, do que dos aspectos particulares dos costumes, isoladamente considerados. As implicações do método funcionalista surgiam precisamente como o oposto das do modelo de Boas, em todas as suas variantes. Boas, Kroeber, Lowie, Murdock, Lévi-Strauss e os seus diferentes seguidores e discípulos intelectuais consideraram, todos eles, um facto comprovado que a cultura consistia em «coisas» (traços), que existem por si, e que podem dar-se combinados em conjuntos relativamente fortuitos, como as sequências de números que saem no jogo da roleta. São diversos os tipos de teorias que lhes servem para explicar porque é que os modelos de um dado tipo se apresentam mais frequentemente do que os de outro tipo, mas, por princípio, quase todas as combinações de «traços» são consideradas possíveis. Na análise funcionalista, contudo, é difícil dizer que os traços existem fora do seu contexto de uso imediato. Consideremos, por exemplo, o caso de um objecto material como um escudo de guerra, exibindo um desenho característico. Para um funcionalista, o modo e as circunstâncias da sua construção, a magia incorporada na sua preparação, a sua modalidade e o seu contexto de uso, e as tradições que definem a sua posse passada e presente, fazem parte do objecto, tanto como o substrato material que o compõe. Assim, um escudo que é retirado do seu contexto e exibido num museu etnográfico, ou um escudo de desenho idêntico que aparece num contexto cultural distinto, nunca poderá ser considerado como o «mesmo traço cultural» que o primeiro objecto observado. Mas o cerne da diferença entre as duas metodologias é uma questão de ênfase. Os funcionalistas tomaram sempre como indiscutível o facto de se interessarem pelo estudo de sistemas que se manifestam directamente no complexo de instituições culturais localmente observáveis. Por conseguinte, a organização económica, social, política e de parentesco, fornece a estrutura fundamental, a que depois são acrescentadas as observações etnográficas. Os problemas que não se encontram em correlação directa com estes sistemas de organização profunda são, de um Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 16/42 modo geral, remetidos para segundo plano ou ignorados por completo; trata-se da inversão da perspectiva que se nos depara nas notas de Boas acerca dos Kwakiutl. O contraste surge muito claramente na forma como os adeptos das duas escolas abordam o estudo do parentesco. Na tradição dos «traços culturais», um «sistema de parentesco» significa uma nomenclatura de parentesco, um conjunto de palavras extraídas de uma linguagem natural única, e as categorias de parentesco a que as palavras se referem. O sistema verbal é tratado como uma coisa em si própria, e a composição das categorias constitui um conjunto de traços. Por exemplo, considera-se como traço distintivo de um sistema de parentesco o facto de o pai e o irmão do pai serem categorizados por um só termo e o irmão da mãe por um Outro. Social Structure de Murdock [1949] é um elaborado estudo comparativo de 250 sistemas de parentesco deste teor, acompanhado de uma investigação estatística relativa à frequência de determinadas combinações de traços. O autor pressupõe que a história do desenvolvimento de cada sistema de parentesco particular, tal como foi observado, pode ser discutida independentemente do meio social em que foi recolhido. As Structures élémentaires de la parenté [1947], de Lévi-Strauss, são um estudo mais permutacional do que estatístico, mas dependem igualmente do pressuposto de base segundo o qual «um sistema de parentesco», considerado como um conjunto de termos, é susceptível de se tornar objecto de uma análise utilizável sui generis, sem que seja necessário referir a matriz institucional a que ele pertence como instrumento operativo. Pelo contrário, quando os funcionalistas estruturais escrevem acerca dos sistemas de parentesco, prestam muito pouca atenção ao uso dos termos de parentesco. Aqui, o parentesco refere-se aos direitos e deveres económicos, políticos, legais e religiosos que decorrem do reconhecimento do princípio de descendência e dos contratos matrimoniais no interior de um contexto cultural determinado. Embora a comparação intercultural não seja totalmente repudiada, é considerada, sem dúvida, com manifesto cepticismo. Uma antologia de estudos como African Systems of Kinship and Marriage [Radcliffe- Radcliffe-Brown e Forde 1950] tem, em certo sentido, o seu valor comparativo, mas o efeito global acentua mais a diversidade do que a unicidade dos sistemas descritos. Social Organization of Australian Tribes de Radcliffe-Brown [1931] é uma obra mais próxima do livro de Lévi-Strauss pelo seu estilo de apresentação, mas trata estritamente de uma única área geográfica e de um único «tipo» de sociedade primitiva. Radcliffe-Brown teria rejeitado firmemente qualquer alusão a uma possível formulação da sua parte de um princípio geral susceptível de ser considerado uma manifestação universal do espírito humano. 3.4. Sistemas culturais como tipos ideais: historicismo e materialismo cultural Na antropologia contemporânea, o terceiro tipo de análise sistemática é o tipo evolucionista e deriva, através de uma linha de descendência algo confusa, do historicismo conjectural e especulativo de Morgan e Marx. A tese comum Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 17/42 subjacente é aqui a de que existem leis do processo histórico que é possível descobrir, e que se reflectem nos contrastes culturais observados no espaço e no tempo. A origem setecentista ou oitocentista deste tipo de pensamento antropológico é discutida no artigo «Anthropos», neste volume da Enciclopédia; o seu desenvolvimento posterior, ao longo deste século, tem conhecido diversas vicissitudes, com tónicas diferentes na América e na Europa. Boas e os seus seguidores nos Estados Unidos não procuravam negar que a evolução social e tecnológica tivesse tido lugar, mas eram extremamente cépticos em relação a todas as teorias referentes a uma evolução segundo leis regulares do processo histórico, conforme as supunham Morgan e Marx. A seguinte citação de Laufer exprime, do modo mais radical, esta atitude negativa em relação à teoria: «A cultura não pode ser encaixada nos espartilhos de uma teoria, qualquer que esta seja, nem reduzida a fórmulas químicas ou matemáticas. A natureza não tem leis e o mesmo acontece com a cultura. É vasta e livre como um oceano, com as suas ondas e correntes espalhadas em todas as direcções» [1918, p. 90]. Vinte anos depois, por reacção dialéctica contra os boasianos ortodoxos, começaram a estar na moda diversos tipos de evolucionismo. Leslie Whire dedicou polemicamente grandes esforços à reabilitação de Morgan; Julian Steward desenvolveu uma versão revista da obra de Spencer, na qual linhas múltiplas de desenvolvimento substituíram os esquemas unilineares do século XIX. Neste esquema de pensamento, as «culturas», as «tribos» e as «sociedades» dos adeptos de Boas e dos funcionalistas acabaram por ser consideradas como «tipos» representativos dos estádios da evolução social e económica. Presumia-se, de forma consideravelmente injustificada, que o elemento especulativo em Morgan e outros autores do século XIX fora substituído por dados empíricos firmemente alicerçados, resultantes da arqueologia e da etnografia. Steward, por exemplo, supunha que havia provas claras de que no Peru, México, Mesopotâmia, Egipto e China Setentrional, a história passava, em larga medida, pela mesma sequência de fases — fases por ele definidas como Caça e colecta, Agricultura incipiente, Formativa, Florescência regional, Conquistas cíclicas — implicando a existência de certas leis naturais que dessem conta desta sequência [Steward 1949]. Num estilo semelhante, Elman Service, um ex-discípulo de Leslie White, sustenta que todos os tipos «aborígenes» da sociedade humana representam três «estádios evolutivos»: 1) a sociedade igualitária, a partir da qual a sociedade se formara 2) a sociedade hierárquica, que só em certos casos teria sido substituída pelo Império-Estado, base do estádio seguinte 3) a Civilização arcaica ou Império clássico [Service 1971, p. 157]. A arbitrariedade deste esquema é indicada pelo facto de apenas alguns anos antes [1962] o mesmo autor ter optado por uma sequência completamente diferente, onde os «estádios» tinham os nomes de Bando, Tribo, Chefado, Estado. A força motriz que determina o progresso histórico assim postulado é geralmente considerada de natureza económica e ecológica. As sociedades humanas Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 18/42 modificam o ambiente em que vivem e, à medida que se desenvolvem, adaptam-se a essas modificações. Se aos conceitos de «ambiente» e de «adaptação» se atribuir uma conotação suficientemente vasta e se se considerar uma escala alargada de tempo, isto passa a ser verdade, em termos muito gerais, mas continua a não ser particularmente esclarecedor. Uma história conjectural tão grandiosa não entra em contacto com os problemas práticos da vida dos seres humanos. A antropologia cultural, evolucionista e de orientação ecológica, torna-se bem mais interessante quando a profundidade do tempo histórico se vê radicalmente reduzida, de modo à investigação poder assentar no estudo meticuloso de aspectos limitados dos contextos locais, compreendendo a «etnossemântica» do caso, ou seja, quando o investigador se encontra em condições de discutir, não só os « factos» técnico-demográfico-económico-ambientais observados «objectivamente» (a ética da situação), mas também o modo pelo qual os protagonistas percepcionam as suas próprias circunstâncias (a émica da situação) [cf. Harris 1968, cap. XX e, para uma apreciação das tendências contemporâneas diametralmente oposta à apresentada neste artigo, os caps. XX-XXIII]. Os imponentes estudos de Harold Conklin sobre as práticas agrícolas extremamente apuradas dos Hananoo e Ifugao (ilhas Filipinas) pertencem também a esta categoria. O resultado final deste tipo de trabalho, tomando em consideração não só a interdependência no tempo entre o homem e a natureza, mas também a interdependência no curto prazo dos homens entre si, não raro revela uma semelhança familiar muito próxima das conclusões dos funcionalistas. Pelo contrário, as declarações históricas de escala mais ampla dos ecologistas-culturais (materialistas culturais) emitem necessariamente a dimensão émica e tendem a manifestar-se como fracas imitações do marxismo vulgar, onde Wittfogel foi rebuscar alguns floreados verbais. Em primeiro lugar, sustenta-se então a priori que a civilização se desenvolveu por toda a parte através de uma mesma sequência de estádios, definidos de modo bastante vago, e, depois, escolhe-se um período de tempo suficientemente amplo para cobrir muitos milénios e uma localização (por exemplo, a América central), frente aos quais a arqueologia pode, no melhor dos casos, limitar-se a fornecer algumas indicações muito gerais acerca do curso da história, sendo os seus testemunhos adaptados ao esquema da hipótese. Proclama-se, então, que está demonstrada assim a existência do determinismo histórico! Por exemplo: «O paralelismo das vias mesopotâmica e mexicana no sentido da formação do Estado, das formas finais que revestiram as instituições, e também dos processos que aí conduziram, indicam que ambos os casos são bastante significativamente caracterizados por um núcleo comum de aspectos regularmente verificados. Descobre-se assim, uma vez mais, que não só o comportamento social obedece a leis, como ainda que o número dessas leis é limitado» [McAdams 1966, pp. 174-75]. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 19/42 O neoevolucionismo, muito mais explicitamente marxista, dos antropólogos europeus contemporâneos, é de um tipo muito mais elaborado. 3.5. Culturas primitivas como exemplos de formações sociais pré-capitalistas Durante os últimos trinta anos, o nome de Marx foi invocado em apoio de uma imensa variedade de teorias sociológicas muito diferentes entre si, e todo o comentador destas teorias terá que dar apenas, a este propósito, uma indicação relativa às suas predilecções pessoais. O que se segue exprime a opinião pessoal de autor destas linhas. Existem dois temas imediatamente relevantes para a presente discussão: a concepção marxista do determinismo na história e a utilização marxista da dialéctica. O esquema evolucionista do próprio Marx não era nem melhor nem pior, nem muito diferente, do de muitos dos seus contemporâneos. Sabemos, de facto, que tanto ele como Engels acharam que o complexo sistema exposto por Morgan em Ancient Society [1877] era de adoptar quase na íntegra. A superioridade de Marx sobre os seus contemporâneos reside na sua compreensão da história mais recente, mais do que na sua concepção da história a uma escala global. Marx compreendeu, como quase nenhum outro, que a revolução industrial que tivera lugar na Europa ocidental, ao longo do período 1750-1850, era uma verdadeira revolução, no sentido em que tinha criado um novo sistema de relações sociais e económicas, e um novo conjunto de instituições sociais, sem precedentes históricos. Mesmo a entidade mais fundamental da sociedade, a unidade familiar doméstica, composta pelo marido, mulher e filhos, se tinha transformado na sua essência devido à separação entre a casa e o lugar de trabalho e às características peculiares do trabalho assalariado, que se tornara o símbolo do capitalismo industrial do século XIX. Marx, sobretudo, embora não só, com a sua análise das conexões e contradições que se desenvolviam no conjunto complexo e global da infra-estrutura (Basis) e da super-estrutura (Uberbau), fornecia pela primeira vez uma explicação plausível do modo como esta formação social, completamente nova, emergia através de uma mutação da que lhe preexistia. Do ponto de vista da história a longo prazo, foi este aspecto do problema que interessou especialmente muitos antropólogos europeus contemporâneos, de credo marxista, bem como numerosos dos seus colegas pertencentes a nações do Terceiro Mundo. Se, como parece claramente ser o caso, o capitalismo teve uma origem recente, e se existiram antes dele «estádios» ou «tipos» de formações sociais pré-capitalistas que é possível comparar ou contrapor ao capitalismo (por exemplo o feudalismo, ou o modo de produção asiático), então esses tipos de organização da estrutura socioeconómica devem ter sido igualmente de origem mutacional, devendo ser, além disso, possível diagnosticar o padrão de Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 20/42 contradições que, a partir de um viveiro «pré-feudal», deram origem ao «feudalismo», do mesmo modo que Marx diagnosticou as contradições que geraram o «capitalismo» a partir do «pré-capitalismo». Uma vez que os marxistas sustentam que muitos dos países do Terceiro Mundo se encontram num estádio de desenvolvimento pré-capitalista, e dado ainda que as minorias tribais que vivem nesses países são frequentemente consideradas como ainda mais «subdesenvolvidas» — mais pré-feudais do que pré-capitalistas —, uma antropologia marxista que se interesse pela estrutura das contradições nas formações sociais pré-capitalistas de todo o tipo, deveria ter — conforme tem sido defendido — um papel prático de grande relevância no desenvolvimento da consciência nacional em todos os países ditos subdesenvolvidos. Quando é este o interesse central, o testemunho da etnografia adquire uma nova significação. Ao investigador em antropologia já não interessa descobrir uma etiqueta apropriada para o estádio de desenvolvimento que o exemplar da cultura que estudou representa, nem se preocupa com a interdependência das instituições sociais que entram no seu campo de observação. Verifica-se, pelo contrário, o caso de os seus campos de interesse característicos passarem a ser precisamente os traços do sistema que os funcionalistas de orientação durkheimiana teriam considerado patológicos, esses pontos fracos da estrutura social em que o modelo de integração se torna incoerente. No entanto, apesar da valorização dos factos observados ser diferente, este tipo de antropologia marxista é, claramente, mais um desenvolvimento lógico do funcionalismo do que um regresso ao determinismo histórico característico do primeiro século XIX, e, nessa medida, a orientação antifuncionalista proclamada pelos seus principais protagonistas parece algo deslocada. A maior parte das obras até agora publicadas por antropólogos que, deste modo, se servem da bandeira do marxismo, tem-se dedicado mais à polémica anticolonialista do que à investigação científica, mas há pelo menos um aspecto em que estas ideias abrem a possibilidade de um avanço teórico importante. A dialéctica marxista sustenta que aquilo que se compreende como realidade é determinado pelas categorias do pensamento humano, sendo estas últimas porém, por seu turno, determinadas pela hierarquia das relações sociais implicitamente presentes no sistema social determinado, em cujo quadro o indivíduo vive e trabalha. Assim, indirectamente, chega-se à afirmação de que o trabalho humano (praxis) cria a «realidade» do mundo no qual a humanidade existe. Ora, no centro de todo o pensamento humano, encontra-se um processo dialéctico de âmbito mais ou menos limitado; assim, se tenho um conceito A, considero necessariamente a possibilidade do seu oposto, não-A. Consequentemente, o verdadeiro «elemento do pensamento» não é apenas A, mas também «tanto A quanto não-A», e tem-se a impressão de que há uma «luta contínua no intelecto», tentando aquele que pensa conceptualizar simultaneamente A como uma coisa em Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 21/42 si, distinta de qualquer outra (o que leva à ideia de que o mundo como um todo é feito de um número infinito de «coisas» discretas), e reter a ideia de que «tanto A como não-A» se combinam numa unidade (o que leva a conhecer o mundo como um contínuo campo de relações em perpétua transformação). Transpondo-se para o interior do sujeito, este movimento conduz à incerteza e à ambiguidade da consciência de si mesmo por parte do sujeito, quer enquanto indivíduo, quer enquanto membro da sociedade ou membro de um grupo de interesses sectorial dentro da sociedade global (classe social). Os conflitos empíricos, no interior dos sistemas sociais empíricos, reflectem o facto de os membros dos diversos grupos de interesses sectoriais percepcionarem de modo diferente a realidade social. Houve, desde o início, um debate quase ininterrupto entre os próprios marxistas em torno da questão de saber se «a dialéctica», no sentido aqui delineado, se referia apenas à nossa compreensão das relações entre o indivíduo e a sociedade, ou se era uma característica da natureza enquanto tal, fazendo com que o processo do desenvolvimento histórico fosse, em qualquer caso, «dialéctico», ainda que não existissem seres humanos para formularem ideias dialécticas. A versão mais extrema da opinião segundo a qual a dialéctica é um processo essencial da natureza, mais do que uma característica do espírito humano, aparece-nos na Dialéctica da natureza de Engels [1873-86]. Não será discutida aqui esta questão. O que nos interessa é que a valorização dialéctica marxista da realidade social fornece um desafio directo à convenção existente em antropologia, segundo a qual a humanidade se divide «naturalmente» em colectividades sociais distintas— sociedades, culturas, tribos, comunidades linguísticas —, podendo, em seguida, cada uma dessas colectividades ser subdividida em elementos fixos, os «traços culturais». Como já foi assinalado, um dos pontos fracos das primeiras formas de funcionalismo antropológico consistia em este se preocupar mais com as culturas do que com a cultura, com as sociedades mais do que com a sociedade. Internamente, os sistemas sociais eram vistos como mecanismos homeostáticos auto-perpetuantes, que actuariam como as peças de um relógio, mas, exteriormente, atribuía-se-lhes uma superfície tão lisa e dura como a de uma bola de bilhar. Cada «tribo» era concebida como completamente diferente da «tribo» vizinha. Os funcionalistas tinham já compreendido, por volta de 1937, os graves defeitos deste tipo de modelo, mas é significativo que, quando tentaram pela primeira vez adaptar as suas ideias homeostáticas de modo a levarem em conta a mutação e o desenvolvimento social, tenham começado então a falar em termos de «Contacto cultural», «choque de culturas», «destribalização», e assim por diante. No decurso dos últimos quarenta anos, muitos antropólogos, incluindo o autor deste ensaio, tentaram convencer o seu público, tanto amador como profissional, de que nunca existira uma época em que a população mundial dos grupos anteriores à escrita se subdividisse em «tribos» (culturas) completamente distintas umas das outras, cada qual persistindo como uma entidade independente no seu nicho socioeconómico próprio. Mas grande parte do debate antropológico continua hoje a Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 22/42 desenrolar-se como se as coisas fossem tal como as representa o discurso ilusório que atrás mencionámos. Os marxistas não descobriram uma solução para o problema, mas estão, pelo menos, motivados pela sua busca. Durante o período colonial, um tipo de discurso, segundo o qual a cultura dos Europeus dominantes era completamente distinta da cultura dos dominados, estando os dominados, por sua vez, subdivididos numa grande variedade de culturas completamente distintas e que não seria possível caldear entre si, era exactamente conveniente para os interesses do poder colonial dominante; mas hoje, quando as nações do Terceiro Mundo, formadas na sequência das peripécias da história colonial, se esforçam por criar identidades nacionais a partir de populações poliglotas com tradições mitológicas muito diferentes, tornou-se de importância decisiva desenvolver uma teoria social capaz de tratar o tema da separação cultural de modo mais realista. Os indivíduos diferem culturalmente uns dos outros, quer enquanto indivíduos, quer enquanto membros de grupos — comunidades locais, classes sociais, castas profissionais, e assim por diante. Mas os grupos deste tipo não são «objectos» (culturas, tribos) fixos que perdurem no tempo como entidades separadas; são, pelo contrário, conjuntos de categorias correlacionadas entre si, em interdependência dinâmica, e a análise social exige o reconhecimento tanto das correlações como da sua qualidade dinâmica em mutação contínua. Voltar ao índice Índice 4. Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 23/42 A cultura como comunicação 4.1. A analogia linguística e os seus limites Como já vimos, no que se refere à antropologia sistemática contemporânea, existem três fontes cujas correntes repetidamente se misturam. Uma das correntes deriva de Boas. Os seus seguidores são analíticos e de formação «cientista». Concebem a cultura como uma coisa em si, divisível num número finito de parcelas (traços) fixas e facilmente identificáveis. Aqui, a tarefa do antropólogo é a análise e a interpretação científica dos modelos que se verificam nos agrupamentos das diversas parcelas. Uma segunda corrente deriva de Durkheim, e é essencialmente sociológica. Os seus seguidores sustentam que a preocupação do antropólogo se deve referir às estruturas das relações sociais, susceptíveis de revelarem o funcionamento interno dos sistemas sociais isoladamente considerados. A terceira corrente deriva de Marx. Por vezes, é evolucionista-historicista à maneira do século XIX; por vezes, neofuncionalista; por vezes ainda, estruturalista; é polémica, ideológica e cheia de uma retórica ultrapassada ao denunciar os antropólogos do início do século XX como lacaios do imperialismo colonialista. A sua força reside na vontade de mostrar que as «tribos» da etnografia convencional não são sistemas isolados estáticos, com uma história isolada, mas subsistemas dinâmicos de conjuntos sociais, económicos e políticos mais vastos, que, por sua vez, estão em estado permanente de fluxo evolutivo. Mas este tipo de história das ideias poucas indicações fornece acerca do género dos possíveis desenvolvimentos futuros da teoria. Em vista deste último objectivo, é mais frutuoso considerar todo o problema de maneira inteiramente diferente, explorando com mais pormenor as implicações da analogia muito genérica de Lévi-Strauss, segundo a qual a cultura é como uma linguagem. Quanto aos objectivos desta discussão, é possível distinguir três aspectos do comportamento humano manifesto: 1) actividades biológicas naturais do corpo humano: respiração, pulsações cardíacas, processo metabólico, e assim por diante; 2) acções técnicas, que servem para alterar as condições do mundo físico exterior: escavar um buraco no solo, cozer um ovo; 3) acções expressivas, que ou nos dizem simplesmente alguma coisa acerca do estado do mundo tal como é, ou têm a pretensão de o transformar por meio de processos metafísicos. As acções expressivas, neste último sentido, incluem enunciações verbais comuns, mas também gestos como a inclinação da cabeça, os esgares e os movimentos de Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 24/42 agitar os braços, e ainda acções «simbólicas» sensíveis, como usar um uniforme, subir a um palco ou colocar a aliança de noivado no dedo. Analisado deste modo, o comportamento é «objectivo»; pode ser ponderado e descrito por um observador externo; mas, do ponto de vista dos protagonistas, o comportamento continua a ser também «subjectivo». Tenho pensamentos conscientes e tenho a impressão de que as minhas acções manifestas, ou pelo menos a maior parte das que entram nas categorias 2) e 3), são, de um modo geral, geradas por esses pensamentos. Além disso, percepciono o mundo tal como ele é exteriormente, incluindo aqui o comportamento dos outros seres humanos, como um modelo de «pensamentos conscientes no espírito». A natureza dos «pensamentos conscientes» e a sua relação com as coisas do mundo exterior e com as acções manifestas do pensador-actor, para deixarmos de lado a relação entre pensamento consciente e pensamento inconsciente, é um tema muito amplo, que abrange grande parte da filosofia, da psicologia, da fisiologia e da linguística; mas o ponto de maior importância imediata é aqui o facto de as discussões antropológicas acerca da cultura — discussões que se desenrolaram a partir da definição de Tylor de 1871 e que foram examinadas na primeira parte deste ensaio— implicarem certos pressupostos acerca da relação entre actividade física e mental. Conhecimentos, crenças... moralidade, direito... parecem, todos estes elementos, pertencer ao campo dos «pensamentos conscientes do espírito», que se manifestam, ou podem manifestar, em acções humanas individuais conscientemente controladas. ‘Arte e ‘costumes são ambos termos muito mais gerais, como o são também ‘capacidades e ‘hábitos , o que de novo faz supor que Tylor teria imaginado o seu «homem enquanto membro da sociedade» como um indivíduo humano que sabia o que fazia e era capaz de controlar as suas próprias acções de maneira a adaptá-las às suas intenções conscientes culturalmente induzidas. Hoje em dia tornou-se evidente que as motivações inconscientes do tipo postulado por Freud e os reflexos condicionados do tipo demonstrado pelos behaviouristas desempenham, no conjunto da acção humana, um papel muito mais importante do que Tylor poderia ter imaginado, e tudo isto nos põe o problema de saber até que ponto será necessário pôr em causa a concepção simplista segundo a qual a cultura se refere apenas às intenções racionais conscientes dos indivíduos humanos. Se a cultura está realmente «no espírito», manifesta-se enquanto actividade de cérebros humanos individuais, e possui também uma base bioquímica. Mas, neste ponto, uma das grandes dificuldades deve-se ao facto de, na concepção de Tylor e em todas as suas variantes subsequentes, a especificidade cultural não ser apenas uma característica dos indivíduos, como também da sociedade a que eles pertencem. As sociedades diferem enquanto conjuntos culturais porque os indivíduos que as integram têm diferentes culturas interiorizadas «nos seus Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 25/42 espíritos», e estas culturas interiorizadas são consideradas como a simples soma de uma lista de componentes mentais separáveis. Ao rejeitarem este ponto de vista, os antropólogos de orientação sociológica das gerações mais recentes, incluindo tanto os funcionalistas como os marxistas, foram buscar a Durkheim a ideia de que a sociedade é essencialmente exterior ao indivíduo; é uma rede de relações interpessoais. Contudo, na esteira de Tylor e dos seus sucessores boasianos, alguns mostram-se ainda inclinados a considerar a cultura como um fenómeno sobretudo mental, e isso acabou por levar à concepção paradoxal de que a cultura é a expressão do pensamento de uma colectividade, a consciência colectiva. Durkheim e os seus seguidores exploraram as implicações desta linha de pensamento atingindo um elevado grau de elaboração, mas os argumentos que apresentam acerca de um «espírito de grupo» actuante só podem sustentar-se supondo-se que os membros singulares do grupo em questão são determináveis enquanto indivíduos, e o que está em causa aqui é um conjunto de ideias e de processos mentais radicados nos cérebros de todos os indivíduos em questão. Os desenvolvimentos mais recentes desta noção, operados por Lévi-Strauss, e onde a consciência colectiva se transforma no «espírito humano» (o esprit humain), pertencem a uma ordem de ideias completamente diferente. O esquema de Durkheim era funcionalista; pressupunha que a sociedade humana estivesse segmentada em unidades distintas, manifestando-se cada uma delas numa cultura também distinta, e que uma consciência colectiva particular caracterizasse todos os indivíduos membros de cada uma dessas culturas. Pelo contrário, Lévi-Strauss é um universalista. Trata as descontinuidades referidas pelos etnólogos entre uma e outra cultura como se pertencessem a uma ordem mais de ideias que de factos. Mas isso implica que o que ele sustenta ser característico do «espírito humano» se deve aplicar a qualquer indivíduo humano, em qualquer parte da Terra. E aqui acaba por se ver colocado numa posição muito difícil. A ideia de «cultura» começou a sua carreira em contraposição binária à de «natureza». Nos termos da tríade acima referida, a «cultura», do ponto de vista dos observadores, parecia referir-se às acções humanas susceptíveis de controlo, do tipo 2) e 3), em contraposição às actividades biológicas incontroláveis, do tipo 1). Do ponto de vista dos actores, estas acções têm o seu complemento nas operações intelectuais «do espírito», e é claro que a referência de Tylor ao «conhecimento», às «crenças», etc., pressupõe uma separação dualista entre o espírito como facto cultural e o cérebro como facto natural. Tal como diferentes cérebros podem aprender coisas diferentes e possuir conhecimentos e crenças diferentes, assim também, apesar de os cérebros humanos serem sempre idênticos, a cultura dos indivíduos pode revestir formas muito diversas. Mas a expressão ‘o espírito humano faz-nos pensar em algo diferente da matéria bioquímica cerebral comum a todos os indivíduos humanos. E certamente possível imaginar que esse espírito universal possua um «conhecimento» e «crenças» extremamente abstractos, mas cada uma Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 26/42 dessas qualidades teria de ser, então, inata, em vez de adquirida, e assim a distinção original entre natureza e cultura deixaria de ter sentido. No entanto, deixemos por agora este problema e suponhamos que os aspectos técnicos e expressivos do comportamento humano possam ser distinguidos, sem excessivas dificuldades, dos aspectos naturais biológicos, e que, em sentido lato, seja às consequências sobre «o mundo» destas acções técnicas e expressivas que a antropologia se refere, quando fala de cultura no sentido tyloriano. Em que sentido tais fenómenos podem realmente ser comparados à linguagem? Ao nível mais objectivo, a linguagem falada é um conjunto de sons estruturados, sobrepostos à respiração humana. Os modelos são codificados e, graças aos estudos estruturalistas de fonologia que têm vindo a desenvolver-se de há quase um século a esta parte, temos aprendido muito acerca do modo pelo qual esses códigos operam. Particularmente significativas são as descobertas de Jakobson acerca dos traços distintivos. O significado é transmitido através de uma discriminação, mas a variedade das discriminações deste tipo, ao nível fonológico, é relativamente restrita, comparada com o número quase infinito de sons distinguíveis que a voz humana pode gerar ao nível fonético. Assim, na análise de Jackobson, os sons que em inglês são indicados pelas letras p, b, t, d, k, g são codificados, em primeiro lugar, como consoantes, por oposição a vogais; em segundo lugar, como consoantes surdas opostas a consoantes sonoras (p, t, k/b, d, g), e, finalmente, como labiais, dentais e guturais (p/b, t/d, k/g). Os traços distintivos deste tipo não têm qualquer significado em si próprios, mas são portadores de um significado potencial. Quem fala inglês reconhece que a palavra cat ‘gato é diferente da palavra god ‘deus , com base na seguinte sequência selectiva: C(K), G, T, D opõem-se a A, O; K e G opõem-se a T e D; K opõe-se a G, T opõe-se a D. A este nível, todas as línguas parecem ser essencialmente idênticas. Mas a emissão de uma frase não consiste simplesmente numa soma sequencial de elementos fonéticos contrastantes (fonemas) e de elementos morfológicos (morfemas); é uma construção gramatical complexa, que transmite um significado por meio de ordenamento dos sons, das palavras e das entoações. O problema dos universais linguísticos encontra-se ainda em aberto. As asserções acerca das regras universais da sintaxe, que Chomsky expôs pela primeira vez em Syntactic Structures [1957], têm sido repetidamente sujeitas a reexame, e os linguistas continuam a exprimir desacordos profundos tanto no que se refere à existência real de princípios gramaticais universais, como no que se refere à natureza desses princípios. No entanto, no decorrer deste debate, que se prolonga há vinte anos, alguns pontos se tornaram suficientemente claros: 1) As crianças não aprendem a falar através de um simples processo de estímulo-reacção-reforço, do tipo postulado pelos modelos simples que os behaviouristas aplicam à psicologia humana. Parecem possuir desde o início uma capacidade transformacional: ou seja, tendo aprendido a usar uma frase simples que funciona operacionalmente, mostram-se capazes de formar, por analogia, Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 27/42 novas frases com a mesma estrutura, sem que, na realidade, essas novas formas tenham que lhes ser ensinadas. Esta capacidade parece implicar que o cérebro humano infantil dispõe de um certo tipo de compreensão inata dos princípios gramaticais. 2) Um adulto, dispondo da competência que lhe permite falar uma língua, é imediatamente capaz de discernir uma emissão verbal que tenha sentido, de uma outra destituída dele, ainda que as duas expressões estejam superficialmente ordenadas do mesmo modo: O gato estava sentado na almofada possui sentido; A almofada está sentada no gato não o tem. Apesar de um esforço enorme, os linguistas ainda não conseguiram produzir uma descrição geral destes fenómenos em termos que possam ser reflectidos neste ou naquele processo plausível de mecanismo cerebral. 3) A análise da linguagem por parte dos linguistas especializados tem tido tendência a concentrar-se nos aspectos sequenciais (diacrónicos), lineares, sintagmáticos e metonímicos da emissão verbal. O facto é compreensível, uma vez que os aspectos do discurso, que em música corresponderiam à melodia, são predominantes no discurso racional analítico, e os linguistas têm-se interessado particularmente pelo problema de saber como é que as emissões discursivas chegam a adquirir um sentido racional. Mas, paralelamente, os linguistas têm, até hoje, prestado menos atenção aos aspectos sincrónicos, simbólicos, paradigmáticos e metafóricos do discurso, onde o sentido se transmite através de um processo mais de síntese que de análise. A metáfora, no discurso, corresponde à harmonia na música e é proeminente, em particular, no discurso poético e nos usos mágico-religiosos da linguagem. Tratando a linguagem como um canal de comunicação essencialmente linear e diacrónico, os linguistas puderam estabelecer com segurança que é sempre possível segmentar a articulação de um discurso nas suas partes constituintes — fonemas, morfemas, proposições, frases... Quando o discurso se torna escrita, os modelos resultantes são sempre sequências lineares constituídas por elementos segmentáveis. Neste ponto, o universo dos linguistas é muito semelhante ao dos antropólogos culturalistas da escola boasiana, que consideram a totalidade cultural como a simples soma de um conjunto de componentes parciais, susceptíveis de serem registadas isoladamente, uma a seguir à outra. Mas, como já vimos, o fraccionamento da cultura levanta um problema complexo. Se a cultura comunica, fá-lo através do aparelho sensorial do indivíduo humano, que é o receptor das «mensagens» que a cultura transmite. Este aparelho sensorial é, por sua vez, extremamente complexo. Geralmente, consideramos os sentidos como entidades separadas — vemos pelos olhos, ouvimos pelos ouvidos, cheiramos pelo nariz, sentimos o gosto pela língua, tacteamos através da pele... —. mas, de facto, os diversos sentidos são interdependentes e intermutáveis. Não só é possível aprender a escrever o que se ouve e ler em voz alta o que se vê, como também o surdo pode aprender a «ouvir» com os olhos e o cego a «ler» com o Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 28/42 tacto, enquanto um pianista transpõe directamente as imagens visuais da partitura em movimentos tácteis dos dedos. Mas, quando nos voltamos para o problema da segmentação, os diversos sentidos têm de ser distinguidos. As imagens visuais tendem a individualizar-se como «coisas» separadas. Se o fazemos «naturalmente», ou apenas em virtude do modo como nos servimos da linguagem para descrever coisas separáveis, é uma questão que filósofos, cientistas e psicólogos continuarão a discutir por muito tempo, mas é um dado imediato que podemos distinguir as imagens visuais, como na realidade acontece. O mesmo é válido, em grande parte, para os sons. As sequências de sons são reconhecidas como «discurso» (ou, mais discutivelmente, como «música») quando temos a sensação de que se encontram ordenadas, o que implica uma capacidade de subdividir a totalidade nos segmentos que a compõem e de reconhecer como estruturado o conjunto desses segmentos. O tacto é também comparável à vista e ao som. Se fizer festas a um gato no escuro, posso, sem o auxílio de qualquer outro sentido, distinguir os seus limites em termos de espaço, distinguir o gato do que não é gato. Mas existem outros sentidos onde a ambiguidade é muito maior. Captamos continuamente os odores do mundo exterior sem intenção consciente de o fazermos, e esses odores criam uma «atmosfera» local que desempenha um papel muito importante no fornecimento das informações acerca do lugar onde estamos e do modo como nos devemos comportar. Trata-se de um exemplo importante e pertinente, porque demonstra que não é necessário que um sistema portador de mensagens seja linear e fraccionável para ser capaz de transmitir informação. Os odores atmosféricos são combinações sintéticas que produzem sincronicamente uma reacção sensorial, como um acorde musical complexo, mais que um modelo diacrónico e linear de melodia. O olfacto é, portanto, algo muito diferente da simples soma de um conjunto de partes: não é, na sua essência, subdivisível. O mesmo se aplica ao gosto e às várias sensações globais do corpo. Embora de modo bastante vago, seja possível o reconhecimento de certas diferenças qualitativas, é impossível ao indivíduo comum, sem uma aprendizagem muito especial, distinguir contornos precisos, e as «diversas» sensações diluem-se umas nas outras. Tudo isto implica que a analogia «a cultura comunica como uma linguagem» deva ser seriamente corrigida. Embora o discurso de tipo racional comum use elementos paralinguísticos como a acentuação e a entoação, mais sintéticos que analíticos, as características da codificação verbal dependem, na sua maioria, do facto de o fluxo de sons verbais poder ser subdividido em elementos. A analogia «cultura = linguagem» sugere assim que a cultura, de um modo geral, é igualmente segmentável, e que a codificação das «mensagens» culturais é construída a partir da comunicação dos «elementos culturais» resultantes. Mas a distinção que acabámos de fazer entre sensações segmentáveis e não-segmentáveis sugere que a segmentabilidade da cultura, em termos gerais, é qualquer coisa muito menos simples do que as convenções antropológicas habituais e a analogia linguística podem fazer pensar. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 29/42 A cultura é directamente segmentável (e, portanto, imediatamente codificável) na medida em que «existe» no espírito sob a forma de conceitos verbais; uma grande parte da cultura não é directamente segmentável (nem, portanto, imediatamente codificável), uma vez que se manifesta sob a forma de coisas e acções no mundo. Mas a concepção da cultura como existindo no «espírito humano» está em relação dialéctica com as manifestações da cultura «no mundo». As categorias que o indivíduo adquire em resultado da sua educação — entendendo-se aqui por educação o processo de socialização no seu sentido mais lato — fornecem-lhe um meio de introduzir ordem no seu universo local. Através dessas categorias Eu aprendo a conhecer que sou Eu em contraposição ao Outro, e é assim que aprendo também onde me encontro Eu socialmente, além de territorialmente. Este sentido de ordem depende da discriminação; a categoria A deve ser percebida como distinta da categoria B, não pode existir qualquer ambiguidade ou esbatimento de contornos. Ao nível dos conceitos do espírito, esta forma de distinção apresenta-se automaticamente assim que começamos a representar os conceitos por meio de palavras, mas, como já vimos, a discriminação, ao nível das sensações, é, no melhor dos casos, imperfeita e, no pior, impossível. 4.2. Tabus e «ritos de passagem» como instrumentos de segmentação cultural A resposta cultural à ambiguidade da sensação foi, universalmente, a imposição de tabus: as ambiguidades da experiência sensorial são interditas e excluídas do exame consciente. Por reacção dialéctica a esta repressão formal, essas mesmas ambiguidades da sensação constituem o núcleo da polarização primária do interesse mágico-religioso e estético. Este facto de ordem muito geral tem um peso considerável na codificação do simbolismo. Tal pode ser ilustrado através de um exemplo concreto. Não é necessário um grande conhecimento etnográfico para compreender como toda e qualquer coisa relacionada com a sexualidade é susceptível de se tornar ponto de incidência de um tabu. Trata-se de algo coerente com o facto de a experiência sensorial mais intensa, que se pode deparar a qualquer indivíduo normal, se situar no terreno das relações sexuais. Aqui, não só os elementos sensoriais não são segmentáveis, o que torna esta experiência um protótipo de confusão, como também o contexto que a define faz com que a distinção categorial primária macho-fêmea se desagregue, tornando-se evidente que a díade macho/fêmea é uma unidade. Um outro ponto de incidência dos tabus, quase igualmente intenso e universal, diz respeito aos limites ambíguos entre a vida e a morte: a ordem exige que o corpo vivo e o cadáver sejam percebidos como «coisas» completamente separadas: a realidade desagradável que faz com que o ser vivo se torne morto deve, por isso, ser reprimida. Mas o que, no plano objectivo, diferencia o macho da fêmea é o falo masculino, e o que, no plano metafísico, diferencia o vivo do morto é o conceito de Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 30/42 «vida» como uma coisa em si própria. E é deste modo que encontramos em todo o mundo, quase universalmente, a equivalência simbólica: «falo masculino» = «vida». Mesmo quando a «coisa» que é objecto do tabu aflora de novo à superfície deste modo, o mecanismo do tabu continua a actuar e o «sentido» é negado. Assim, na índia clássica, o lingam e o yoni eram representações esculpidas, sem ambiguidade, dos órgãos genitais humanos, femininos e masculinos, e tratados como símbolos directos de Siva, dispensador de vida, e das suas esposas. Mas, nos templos hindus modernos, a semelhança anatómica do lingam esbateu-se de tal maneira que hoje um brâmane ortodoxo, de inclinações puritanas, pode negar que o lingam, enquanto símbolo de iva, possua qualquer conoação sexual Através de transformações ascéticas análogas, o ankh egípcio, que era um símbolo explicitamente fálico da vida, simplificou-se, transformando-se no crucifixo cristão, mas tende ainda a recordar aos devotos que, para os crentes, morte = vida = reunião com Deus. Esta aparente digressão pelo tema do tabu tem uma relação directa com o tema anteriormente abordado. Se regressarmos à tríade do S 4.1, onde, no comportamento humano, se distinguiam as actividades natural, técnica e expressiva, depreende-se do que dissemos que a actividade técnica, essencialmente racional nos seus objectivos, se acha ordenada como um discurso racional. Pode ser descrita como uma sequência segmentável de ocorrências, onde a uma coisa se segue outra. Mas a actividade expressiva, que abarca todos esses aspectos da cultura que o antropólogo se sente inclinado a rotular como mágico-religiosos ou estéticos, contém uma quantidade apreciável de material simbólico e metafórico, que, não o sendo imediatamente, acaba por nos surgir como segmentável, também ele, em resultado do funcionamento das regras do tabu. Só recentemente os antropólogos começaram a compreender que os tabus têm este tipo de relações com a «codificabilidade» dos fenómenos culturais, embora alguns elementos desta maneira de ver estivessem já implícitos numa obra clássica da teoria antropológica como Les Rites de Passage [1909] de Van Gennep. O livro de Van Gennep ocupa-se da estrutura do processo social nas sequências lineares de uma vasta classe de cerimoniais, incluindo uma quantidade substancial de todos os procedimentos rituais em todos OS contextos culturais de todas as partes do mundo. Mais especificamente, a categoria rites de passage compreende todas as ocasiões em que um indivíduo é formalmente iniciado num novo estatuto social (por exemplo, ritos associados ao nascimento, à puberdade, ao casamento, à morte, à cura de uma doença, ao luto, ao acesso a cargos importantes, às cerimónias de graduação, à iniciação numa ordem religiosa, etc.) e também todas as ocasiões que marcam a descontinuidade social no fluxo do tempo (por exemplo, aniversários de toda a espécie, celebrações de Ano Novo, ciclos anuais de festividades religiosas, o domingo como fim de uma semana e começo de outra...) Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 31/42 A característica comum de todos estes ritos é afirmarem a existência de uma descontinuidade no tempo social. O fluxo do tempo na natureza biofísica é contínuo; não existem transformações naturais nas estações do ano ou no processo de maturação e envelhecimento do indivíduo; mas trata-se de uma necessidade da vida social ordenada que o tempo apareça como segmentado, de tal maneira que uma coisa possa acontecer a seguir a outra, segundo uma sequência tecnológica definida em termos lógicos determinados. Igualmente, o ordenamento do mundo social exige que o número das categorias em que se inserem as pessoas e as estações do ano tenha que ser estritamente limitado. Na Europa ocidental actual, o indivíduo é legal e social-mente ou uma criança, ou um rapaz, ou um adolescente, ou um adulto ou um reformado; os casados e os solteiros têm responsabilidades legais diferentes; os diplomas e outros títulos qualificados implicam recompensas económicas e sociais imediatas ou potenciais. Por isso, uma mudança de estatuto é importante em sentido prático. A informação acerca da posição que alguém ocupa deve ser comunicada a todos e a cada um dos membros do conjunto do mundo social. A distância entre uma e outra posição social deve estar bem marcada e não ser ambígua. Com uma perspicácia notável, Van Gennep, na base de testemunhos empíricos simples, conseguiu compreender que todos os rites de passage são constituídos por sequências, encaixadas umas nas outras, possuindo, no essencial, a mesma estrutura trifásica. Na fase 1), que marca o fim de um período de tempo social, o iniciado (ou a iniciada) é desligado do seu antigo papel; na fase 3), que assinala o início de um novo período de tempo social, o iniciado é analogamente adstrito ao desempenho de um novo papel. A fase 2), que serve para dissociar a fase 1) da fase é um período de tabu, durante o qual o indivíduo não desempenha qualquer papel normal na sociedade e em que se vê habitualmente isolado fisicamente das condições normais da existência. Facto característico, a fase 2) é tratada «como se» estivesse fora do tempo. O efeito destes rituais é, apesar da natureza contínua dos processos de desenvolvimento biológico, fazer com que o fluxo do tempo social apareça como segmentado e descontínuo. O processo ritual tem assim o objectivo de tornar codificáveis os dados culturais. Aqui, é muito estreita a analogia com as durações temporais segmentadas do discurso corrente e da melodia musical. 4. 3. A antropologia estrutural de Lévi-Strauss As ideias discutidas até este momento encontram-se na sua maior parte na antropologia estrutural de Lévi-Strauss, embora ele tenha abordado os problemas fundamentais, correspondentes, a um nível muito mais abstracto. Por volta de 1945 e até um pouco mais tarde, o esforço de Lévi-Strauss era claramente o de tentar descobrir fenómenos que, dentro do campo geral da cultura (como era intenção dos boasianos), pudessem ser tomados como correspondentes aos traços distintivos de Jakobson em fonologia. O modo através do qual Lévi-Strauss abordava, nessa altura, as oposições binárias cultural natureza, descendência patrilinear / Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 32/42 descendência matrilinear, residência patrilocal / residência matrilocal, indica decididamente como ele pensava que essas «ideias do espírito» poderiam vir a mostrar-se dotadas de um valor analítico comparável ao das oposições consoante/vogal, sonoro/surdo, grave/agudo, etc., no estilo de Jakobson na fonologia. No sistema de Jakobson, como se torna claro pelos exemplos acima referidos, um traço distintivo é uma relação diádica X/Y, onde X e Y são ambos relações de discriminação. Por outras palavras, na análise dos traços distintivos, fala-se de «relações entre relações» e procuram-se mais os universais correspondentes do que as características particulares de qualquer língua ou conjunto de línguas particular. Seguindo este modelo, Lévi-Strauss sustentou que o «átomo de parentesco», o alicerce a partir do qual se constroem todos os sistemas de parentesco, é constituído por uma característica distintiva X/Y, onde X exprime a oposição entre irmão/irmã e marido/mulher, e Y a oposição entre irmão da mãe / filho e pai da irmã / filho. A tese é a de que um protótipo para X/Y deve existir em todas as sociedades humanas, mas podendo assumir apenas um número muito limitado de formas possíveis. As diversas combinações das permutas possíveis proporcionam uma estrutura lógica, no interior da qual é possível adaptarmos todas as «estruturas elementares» teoricamente imagináveis. Deste ponto de vista, a proibição do incesto, que Lévi-Strauss vê como pedra angular universal da sociedade humana, é um elemento da estrutura lógica das convenções culturais. Com o objectivo de desenvolver certas ideias referentes às relações de parentesco, a categoria irmã deve ser distinguida da categoria mulher. A irmã é uma de nós; a mulher é uma deles. A regra do incesto tem, portanto, a dupla consequência de tornar o universo social segmentado em grupos sociais, nós e eles, e estes grupos isolados segmentados são, através do matrimónio, ligados entre si por redes intercomunicantes. Uma característica aparentemente muito estranha deste tipo de aproximação do problema do parentesco é que os «tipos» de sistemas considerados são construções lógicas no espírito do investigador e a questão de saber se e com que frequência uma destas construções particulares se encontra, de facto, na documentação empírica da etnografia mundial, é tratada como um problema relativamente secundário. Fora do círculo restrito dos discípulos directos de Lévi-Strauss, são poucos os antropólogos antiempiristas que vão tão longe nesta matéria, apesar de ter sido largamente adoptada por numerosos investigadores a ideia de que a qualidade de uma relação de parentesco (por exemplo, irmão/irmã) só possa ser apreciada por contraposição a uma outra relação de parentesco (por exemplo, marido/mulher), de modo que as duas relações tomadas em conjunto formem uma díade binária. A aplicação feita por Lévi-Strauss da análise das características distintivas ao estudo do mito tornou-se conhecida de um público mais vasto, mas é igualmente Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 33/42 abstracta. Interessa-lhe, neste campo, mais o universal que o particular, e tanto as permutas estruturais possíveis, cuja ocorrência não passa exactamente de uma possibilidade, como as que realmente se verificam. Se considerarmos apenas o conteúdo, o significado de qualquer história mítica é estritamente local. A este nível superficial, pode ser directa e conscientemente compreendido tanto pelo narrador do conto como pelos seus auditores. Mas Lévi-Strauss postula também a existência, a um nível mais profundo, de um significado inconsciente, mais universal que local, e que se radica nas estruturas lógicas da mente humana enquanto tal, mais do que nas crenças e conceitos específicos de qualquer cultura local. Deste ponto de vista, os mitos dos povos concretos acabam por ser considerados como transformações de um número muito limitado de temas fundamentais. Os quatro volumes das Mythologiques [1964-71] são dedicados à explicitação das regras de transformação mais relevantes e também, embora de modo menos convincente e com menor clareza, à decifração da mensagem: que «diz» a mitologia ao nível mais profundo. A conclusão de Lévi-Strauss parece ser assim a de que, no centro de todos os sistemas mitológicos, se encontra o mesmo dilema que veio sendo reiterado ao longo de todo este artigo, ou seja, a escolha existencial entre a experiência do mundo como contínuo e a sua percepção como descontínuo. Se o Eu se define a si próprio como separado do outro e leva essa separação até ao extremo das suas consequências lógicas, então não existe nem comunicação, nem cultura, nem sociedade. Neste caso, porém, o Eu não pode sobreviver. Por outro lado, se o Eu se definir como inseparável do outro, levando essa inseparabilidade até ao extremo das suas consequências lógicas, então também o Eu acabará por se fundir, perdendo-se, numa confusão incestuosa com a mãe/irmã. Daí a tese abstracta formulada por Lévi-Strauss no seu ensaio acerca do parentesco: a perpetuação da sociedade exige que a convenção cultural determine que a mãe/irmã nunca se torne esposa e que o pai nunca seja o irmão da mãe. A existência cultural exige, deste modo, a manutenção de um equilíbrio precário entre uma sobrevalorização do parentesco-comunicação (que conduziria à fusão de categorias que têm que ser necessariamente separadas: mãe/irmã = mulher) e uma desvalorização do parentesco-comunicação (que levaria o Eu individual a transformar-se num autóctone isolado incapaz de estabelecer relações com quem quer que seja). A solução do dilema encontra-se na instituição do matrimónio que usa as mulheres como expressão de aliança (quer dizer, como elo de comunicação) entre nós e os outros. Supõe-se, assim, que o mito opera precisamente esta analogia entre a comunicação através do uso da linguagem e a comunicação através das relações sexuais e outras formas de aliança. Por isso, no mundo da mitologia, a vida social aparece-nos como a procura sem fim de um estado de equilíbrio entre o formular de perguntas sem resposta (não conseguindo segmentar a experiência de um modo racional) e a impossibilidade de formular as perguntas que poderiam resolver o dilema do isolamento individual. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 34/42 À primeira vista, esta abordagem radicalmente abstracta, que trata a cultura essencialmente como um fenómeno do espírito, mais do que como um conjunto de coisas e acções no mundo exterior, e que «explica» as peculiaridades da cultura em termos de soluções de problemas de lógica, mais do que em termos de soluções de problemas de adaptação ecológica ou de funcionamento dos sistemas sociais, parece ter muito pouco em comum com qualquer tipo possível de análise cultural evolucionista, funcionalista, marxista ou dos «traços culturais», a cuja discussão procedemos na primeira parte deste ensaio. E, na verdade, muitos dos colegas de Lévi-Strauss com uma orientação mais empírica, tanto na Europa, como na América ou outros lugares, têm a impressão de que o estruturalismo é um beco sem saída, que não trouxe qualquer contributo válido para a compreensão geral dos fenómenos culturais. A falta de consenso a este propósito deve-se também, ulteriormente, ao facto de a recensão que o próprio Lévi-Strauss apresentou acerca do seu trabalho tender muitas vezes a fazer com que o conjunto do seu empreendimento estruturalista pareça inutilmente mistificador. Assim, declarou recentemente que a conclusão da sua investigação é a de que «toda a mitologia acaba por equivaler a colocar e resolver um problema de comunicação; e que os mecanismos do pensamento mítico, deparando com circuitos lógicos tão complexos que não é possível fazê-los funcionar em conjunto, consistem em ligar e desligar interruptores» [1974, p. 309]. Esta visão do espírito humano como um sobre-humano e incorpóreo engenheiro electrónico tem poucos atractivos para os empiristas do mundo académico anglo-saxónico, mas mesmo aqueles que não concordam com tão grandiosas generalizações universalistas podem, por vezes, descobrir contribuições válidas no método de Lévi-Strauss. A sua fórmula, segundo a qual a cultura consiste em «mensagens», devendo por isso os sistemas culturais ser considerados como redes de comunicação, é apenas, afinal de contas, uma transformação original da ideia bastante mais familiar de que os sistemas sociais devem ser considerados como redes de relações de poder, que se expressam na troca de bens e serviços. Onde Lévi-Strauss fala de «mensagens», Barthes e outros falam de «transacções», mas frequentemente parecem estar a tratar de diferentes aspectos de um mesmo fenómeno. A opinião de que o pensamento humano é essencialmente binário, o que equivale a afirmar que reconhecemos o que é uma categoria caracterizando aquilo que ela não é, de modo a que a «coisa» e o seu oposto formem um átomo de pensamento, tem uma história muito longa que remonta aos filósofos pré-socráticos e, apesar de esta análise dos sistemas binários, efectuada por Lévi-Strauss, tender a ser algo estática, a sua ideia de base está muito próxima do dinamismo dialéctico que os marxistas foram buscar a Hegel. E é por isso que uma antropologia marxista estruturalista não é, com efeito, essa contradição nos termos que pode começar por parecer. A análise estruturalista à maneira de Lévi-Strauss tende a minimizar a pluralidade das culturas. Interessa-se pela cultura enquanto tal, ou seja, enquanto atributo Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 35/42 universal da humanidade. Um modelo de cultura diferencia-se de outro apenas enquanto variável de um mesmo processo de transformação; os limites entre uma cultura e outra existem apenas no espírito dos homens. Também neste ponto, os estruturalistas e os marxistas parecem convergir. Mas onde os marxistas vêem as diferenças da consciência social geradas pela diferença cultural enquanto «determinada» indirectamente pela estrutura fundamental das relações económicas, os estruturalistas, seguindo o modelo linguístico de Saussure, tendem a considerar os pormenores concretos da diferença cultural como arbitrários (o bricoleur de Lévi-Strauss). Voltar ao índice Índice 5. Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 36/42 Conclusão A inutilidade do conceito de cultura e da noção dele derivada de culturas foi várias vezes referida ao longo deste artigo. A um nível prático, os investigadores académicos e profissionais que se definem como antropólogos «culturais» aplicam-se, mais ou menos, ao mesmo tipo de actividades que ocupam os que preferem definir-se como antropólogos «sociais»; mas uns e outros separam-se ao nível da teoria, ‘Ciência da cultura não é mais que um outro nome para ‘ciência da sociedade ; a diferença na forma verbal do conceito corresponde, porém, a uma orientação completamente diferente perante o material a estudar. Além disso, como já vimos, aqueles que enfatizam o uso do termo ‘cultura , enquanto tal, são levados a usá-lo de modos também completamente diferentes: num dos extremos, uma ‘cultura pode significar uma colecção de artefactos materiais numa vitrina de um museu arqueológico; noutro extremo, ‘cultura é um conjunto permutável de relações inteiramente abstractas resultantes das mediações lógicas operadas pelo antropólogo que trabalha a sós no seu gabinete privado. Mas para alguns outros antropólogos, ‘cultura será, pelo contrário, o comportamento estruturado observável de homens que vivem em grupos sociais, incluído tudo o mais que esteja em relação com esse comportamento. As ambiguidades e as confusões existiram desde o início. A ideia prevalecente, em meados do século XIX, considerava que a cultura era o que resultava da educação (do cultivo do espírito), contrapondo-se ao que era natural e inato. Mas, como os filósofos tão bem sabem, nunca temos acesso directo ao conteúdo dos espíritos dos outros homens. Por isso, e apesar de a cultura ser com razão considerada como possuindo uma componente mental muito vasta, uma boa parte do debate a seu respeito concentrou-se nas manifestações de cultura verificáveis no mundo material: a modificação do ambiente físico por parte do homem, os seus produtos, os seus comportamentos habituais, as suas estruturas de organização económica, política, jurídica e religiosa, os rituais, as cerimónias mágicas, as histórias verbalmente comunica-das, os mitos. A certo nível, os antropólogos continuaram a falar como se a cultura fosse algo de interno ao ser humano individual, e, portanto, inacessível à investigação directa; a outro nível, procederam como se a cultura consistisse exclusivamente em coisas que é possível contar e expor nas vitrinas dos museus ou registar em filmes ou numa fita magnética. O modo como os antropólogos escreveram acerca da segmentabilidade da cultura, ou seja, acerca da existência de culturas no plural, está em estreita conexão com as diferenças do acento colocado sobre os aspectos mentais ou materiais do objecto. Para os racionalistas, as diferenças culturais são uma. questão de crença: nós somos diferentes deles. Tais diferenças são reflexos transitórios da ideologia, e não podem ser medidos. Mas, para os empiristas, a diferença cultural é um facto susceptível de ser descoberto, reconhecível segundo as diferentes regras formais ou mensurável através de processos estatísticos: a tribo X faz isto, a tribo Y aquilo. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 37/42 Aqui, fica-se com a impressão de que as culturas diferem não só como ideias no espírito, mas também como espécies na natureza. A este propósito, deve ter-se em conta ainda um outro factor adicional, que deriva da oposição entre as opiniões que se referem às relações entre a antropologia e a história. Se a cultura está segmentada em culturas, quer ao nível das ideias, quer ao dos factos empíricos, então as unidades resultantes podem ser consideradas sincronicamente na sua distribuição territorial, ou diacronicamente como sequências de desenvolvimento ao longo do tempo histórico. Segundo as motivações e os interesses intelectuais do investigador, ora as culturas coexistentes no mundo, num mesmo momento da história mundial, serão consideradas como partes constitutivas de uma sequência histórica, ora as culturas, cuja existência se manifesta e observa em diversos momentos da história mundial, serão tratadas como se fossem transformações sincrónicas da mesma estrutura padrão. O problema torna-se ainda mais confuso pelas interferências do altruísmo. Os que, de um modo ou de outro, amalgamam os dados antropológicos com os históricos consideram-se invariavelmente situados no instante mais avançado do progresso; nós somos o culminar do desenvolvimento histórico mundial. Consequentemente, eles são, de algum modo, «subdesenvolvidos», e o altruísmo significa assim que eles terão vantagem em se converter à «nossa» maneira de vida. Um imperialismo cultural deste tipo é tão comum entre os antropólogos que professam opiniões radicais de tipo marxista, como entre os que acreditam decididamente nos méritos do capitalismo industrial do Ocidente. Voltamos assim ao que dissemos no início. Arnold e Tylor usaram ambos a palavra ‘cultura como sinónimo de ‘civilização , mas enquanto Arnold considerava que a civilização era atributo singular de um sector privilegiado da classe dominante do seu país, Tylor pensava que a civilização era o que diferenciava os seres humanos dos animais. Mas Tylor e os seus sucessores começaram, em seguida, a dividir em fragmentos o grande bolo da humanidade e a ordenar esses fragmentos segundo critérios de qualidade — ou oposição entre superior e inferior. Tal como os antropólogos, os políticos do mundo de hoje continuam presas desta armadilha intelectual. Uma parte do problema está precisamente na excessiva importância atribuída ao intelecto. Já dissemos, a este propósito, que o discurso racional, veiculado por meio de palavras, frases ou equações matemáticas é linear, segmentado e analítico, mas que o discurso poético (bem como muitos outros tipos de experiência estética que não fazem qualquer uso de palavras) tende a ser paradigmático, metafórico, não-segmentado e sintético. A partir de meados do século XIX, a antropologia foi dominada por intelectuais de tendência analítica, que esperavam poder tornar o estudo da cultura uma ciência natural análoga à física ou à química; estes autores minimizaram constantemente os aspectos impressivos, estéticos e sintéticos da cultura, do mesmo modo que sobrevalorizaram os seus aspectos Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 38/42 segmentados, ordenados e funcionais. Mas existem aspectos da experiência estética e sensorial que, pela sua própria natureza, não podem ser «entendidos» no sentido racional e intelectual do termo. A maior parte dos antropólogos de profissão ainda não é capaz de reconhecer que a cultura, entre outras coisas, é uma obra de arte. Na opinião do autor destas linhas, a antropologia tem ainda grandes contribuições a prestar a outros ramos da investigação académica. O estudo da cultura não é um ramo, em termos lógicos, isolado do conjunto do saber adquirido; funde-se com a economia, o direito, a política, a religião, a sociologia e, sobretudo, a linguística. Nestes campos, o conceito de cultura (ou de culturas) é, em grande medida, uma redundância confusa, que poderíamos perfeitamente dispensar; mas existe um outro campo, o da estética, onde os conceitos e as teorias que os antropólogos foram desenvolvendo, ao longo dos seus debates em torno da cultura como sistema de comunicação não-verbal, podem revelar-se particularmente importantes. Isto significa que, actualmente, mais do que o aspecto económico, funcional ou histórico das investigações acerca da cultura, seja o aspecto simbólico aquele que oferece uma perspectiva mais ampla de desenvolvimento futuro e aberturas mais prometedoras. Neste campo, a analogia entre cultura e linguagem é certamente da maior importância, mas a forma segundo a qual essa analogia tem sido tratada até hoje está sujeita a numerosas restrições e reservas. Na mesma linha que os linguistas estruturalistas, os antropólogos estruturalistas têm, até hoje, acentuado o pólo sintagmático-metonímico-intelectual da «cultura como linguagem» e, desse ponto de vista, sobrevalorizaram talvez demasiado os aspectos da linearidade e da segmentação. Procuraram mais as descontinuidades que as continuidades da cultura. Pode ser que, nos seus desenvolvimentos futuros, esta analogia se aplique mais ao pólo paradigmático-metafórico, que inclui os aspectos mais impressivos, não-racionais e «simbólicos» da arte. Isso implicaria que a «linguagem» na equação «cultura = linguagem» fosse mais uma linguagem de superfície, no sentido em que a entendem os sociolinguistas, do que a uma gramática das estruturas profundas, à maneira de Chomsky e dos linguistas estruturalistas. Mas, antes de um desenvolvimento assim reorientado poder vir a ter lugar, os sociolinguistas devem abandonar os aspectos funcionalistas ingénuos da posição que os leva a sustentar que a população mundial está segmentada em pequenos compartimentos estanques chamados «comunidades linguísticas». Pelo menos uma coisa parece certa: se o conceito de cultura porventura continuar a ser usado pelos antropólogos, será no singular e não no plural. [E. L.]. Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 39/42 Bibliografia: Arnold, M. 1869 Culture and Anarcby, Smith, Elder, London. Chomsky, N. 1957 Syntatic Structures, Mouton, The Hague - Paris (trad. port. Edições 70, Lisboa 1980). Engels, F. 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Julgou-se, sucessivamente, que um traço cultural só pudesse ter um significado na medida em que fosse função do equilíbrio do sistema ou da estrutura dada (cf. equilíbrio/desequilíbrio, regulação). O evolucionismo (cf. evolução), pelo contrário, falou de cultura como estado que se realiza através de um processo de adaptação ao ambiente na interdependência homem/natureza (cf. anthropos, natureza/cultura). O marxismo, por sua vez, elegeu como elemento fundamental de uma cultura o trabalho do qual se pode extrair o modelo existente e, pela aii.ílisc das contradições que traz consigo, também o modelo precedente. Mas cultura é também comunicação; esta é provida de um linguagem expressando-se com as actividades humanas, com os diversos tipos de comportamento e condicionamento biológicos, com as acções técnicas (cf. cultura material), com as enunciações verbais (cf. língua/fala, competência/performance), com a actividade simbólica (cf. signo, símbolo, alegoria), seja a nível consciente, seja a nível inconsciente, que fazem parte da mente de forma inata (cf. inato/adquirido). A sequência da cultura torna-se Voltar ao índice Índice Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5 42/42 linear mesmo nas suas segmentações linguísticas, enquanto se nota que os processos de comunicação real são muitas vezes temporais (cf. tempo/ /temporalidade) e portanto descontínuos (cf. contínuo/discreto) como, por exemplo, nos ritos (cf. rito) de passagem. *** Voltar ao índice