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CULTURA CULTURAS

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Índice
Cultura/Culturas — Enciclopédia Einaudi, vol.5
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CULTURA/CULTURAS
Edmund Leach
in: Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1989, vol.5 - Anthropos
— Homem, p.102-135.
Índice do ensaio:
1. Desenvolvimento do conceito
2. Usos do conceito
2.1. Cultura como testemunho histórico
2.2. Cultura como testemunho de integração social
2.3. Traços culturais como dados de «ciência objectiva»
3. Interdependência e integração dos elementos culturais
3.1. A selecção dos dados e a procura de sistematização
3.2. Cultura como expressão de sistemas no espírito
3.3. Cultura como expressão do sistema social
3.4. Sistemas culturais como tipos ideais: historicismo e materialismo
3.5. Culturas primitivas como exemplos de formações sociais
4. A cultura como comunicação
4.1. A analogia linguística e os seus limites
4.2. Tabus e «ritos de passagem» como instrumentos de segmentação cultural
4.3. A antropologia estrutural de Lévi-Strauss
5. Conclusão
Bibliografia
1. Desenvolvimento do conceito
A palavra cultura e os termos afins das outras línguas da Europa ocidental (por
exemplo, culture em inglês, culture em francês, Kultur em alemão) têm a sua raíz no
termo latino cultura e, em certos contextos, conservam a sua relação com o cultivo
(por exemplo, «uma cultura de bactérias»). No entanto, neste ensaio,
interessam-nos unicamente os usos contemporâneos deste termo em antropologia
e outros campos vizinhos. Interessa-nos, portanto, o significado e o uso do conceito
de cultura enquanto tal e, em particular, as confusões que daí resultaram e
continuam a manifestar-se, uma vez que, enquanto alguns autores imaginaram a
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cultura como um estado, comparável à vida, que só pode existir singularmente,
outros exprimem-se como se a «cultura» fosse um fato a adornar a nudez do corpo
humano. Neste último caso, uma vez que as peças de vestuário são
intercambiáveis, também a cultura e as parcelas de culturas (traços culturais)
poderão existir no plural.
Durante a primeira metade do século XIX, o termo alemão Kultur era sinónimo dos
termos inglês e francês civilisation. Os títulos dos enormes compêndios
evolucionistas de Klemm [1843-52; 1854-55] mostram como o termo podia ser
usado num sentido globalizante. No entanto, numa época mais tardia, os autores
alemães passaram a usar Kultur como um sinónimo de refinamento, e assim os
Kulturvölker. Em Inglaterra, pouco depois de 1860, um certo número de autores
usava culture como sinónimo de civilisation, e o clássico da antropologia Primitive
Culture [1871] de Tylor abre com a definição frequentemente citada: «A cultura ou
civilização, entendida no seu sentido etnográfico amplo, é o conjunto complexo que
inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, o costume e toda a
demais capacidade ou hábito adquiridos pelo homem enquanto membro de uma
sociedade» (trad. it. p. 7). A tradução francesa da obra de Tylor trazia La civilisation
primitive como título, mas é neste ponto que a fórmula tende a extraviar-se.
Matthew Arnold em Culture and Anarchy [1869] tinha já equiparado culture a
civilisation, mas num sentido que se mostrava muito diferente e muito mais restrito.
A «cultura» do título de Arnold é essa variedade característica da moralidade e da
sensibilidade estética disciplinadas e nobres, a qual constituía um atributo exclusivo
do homem culto (ou seja, bem-educado) e que qualquer indivíduo do sexo
masculino da Europa ocidental, oriundo da classe média, deveria presumivelmente
ter adquirido como resultado da sua educação cristã. A ambiguidade subsiste ainda
hoje. Quando um letrado inglês dos nossos dias usa a palavra culture, é provável
que ao seu pensamento corresponda um conceito elitista, mais próximo da acepção
que lhe deu Arnold, do que da acepção antropológica englobante indicada por
Tylor.
No campo antropológico, houve numerosas tentativas falhadas de, sob uma forma
mais concisa e praticável, compendiar o que se entende por ‘cultura [cf. Kaplan e
Manners 1972; Kroeber 1952; Kroeber e Kluckhohn 1952; Malinowski 1944; White
1949]; mas, na prática, o alcance do termo ganhou em extensão em vez de se
restringir. A definição de Tylor pressupõe que a cultura consiste em qualidades
mentais e em aspectos do comportamento («conhecimento», «crenças»,
«hábitos»); é um atributo interiorizado do indivíduo, adquirido como resultado da
sua educação. Mas, rapidamente, os sucessores de Tylor começaram a falar de
«cultura material», no sentido de um corpo de artefactos exterior ao indivíduo, mas
característico de um ambiente tribal particular. É sobretudo neste sentido que os
arqueólogos e os etnólogos ligados aos museus usam hoje o termo ‘cultura .
Finalmente, por extensão, a cultura veio a poder incluir qualquer aspecto do
ambiente físico e social efectivo do homem, que seja mais obra dele próprio que um
dado da natureza, de tal modo que, por inversão, a cultura se tornou um critério de
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definição do próprio homem. Nos Estados Unidos, durante os últimos cinquenta e
tal anos, a maior parte dos estudantes de antropologia ouviu repetidamente a
afirmação de que a cultura é uma característica única, compartilhada por toda a
humanidade, mas completamente ausente do mundo não-humano. Mas, se ‘cultura
for simplesmente sinónimo dos atributos humanos dos seres humanos, torna-se um
termo redundante, que não diz absolutamente nada nem da cultura nem da
humanidade.
O dogma segundo o qual a cultura é uma característica humana distintiva
apresenta-se, por vezes, sob a versão alternativa de que só o homem é capaz de
aprendizagem ao nível simbólico. Segundo a definição de Tylor [1871], a cultura é,
essencialmente, um comportamento social aprendido tal como se manifesta no
homem, e aquele pode ser considerado como uma componente do conceito mais
geral de comportamento adquirido por aprendizagem. Todos os seres vivos
aprendem com a experiência através da simples interacção com o seu meio físico.
Em todas as formas superiores da vida animal, existe, além disso, um outro
processo de aprendizagem social dependente da interacção (estímulo-resposta e
reforço) com outros seres vivos; em particular, com membros da mesma espécie.
Mas só no homem — conforme tem sido defendido— se encontram as capacidades
de simbolização que fazem com que a informação seja codificada em estruturas
sonoras e formais de tipo linguístico e, depois, descodificada por parte de quem
ouve essa espécie de mensagens. A transmissão da cultura de geração em
geração consiste em aprender a manipular estes códigos.
À primeira vista, isto parece representar uma abordagem bastante bem articulada
do conjunto do problema. E indubitável que só o homem possui a linguagem e que
as faculdades de reflexão e comunicação, que conferem ao homem a sua posição
única no reino animal, dependem em grande parte do uso da linguagem. No
entanto, apesar de a linguagem ser um comportamento social aprendido, no sentido
de Tylor, e, portanto, parte da cultura, não se pode inverter a equação e considerar
toda a cultura como simples equivalente de uma competence e performance
linguística generalizada. É digno de nota que certos desenvolvimentos recentes do
estruturalismo antropológico parecem pressupor precisamente uma equivalência
deste género [Para uma apreciação crítica desta tendência, cf. Sperber 1974].
Por outro lado, se deixarmos de parte a linguagem e os processos do pensamento
humano que lhe são conexos, o facto da cultura (tal como a descreve Tylor) ser
uma característica distintiva dos seres humanos torna-se mais uma questão de
dogma do que de observação. A experiência comum sugere a existência de uma
grande variedade de animais que adquirem «costumes» e «hábitos», como
consequência da sua pertença a uma sociedade, e não há qualquer razão óbvia
para que as actividades decorrentes desse facto não devam ser consideradas
culturais, ainda que o agente em questão seja um corvo, ou um coelho, ou um gato
doméstico, em vez de um homem.
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Destas observações críticas resulta, em termos gerais, que «cultura» é uma
categoria mal definida e redundante, que, com o passar do tempo, contribuiu mais
para confundir o pensamento dos antropólogos profissionais, do que para o
clarificar. Vamos examinar agora algumas dessas confusões.
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2. Usos do conceito
2.1. Cultura como testemunho histórico
Independentemente das suas limitações conceptuais, a cultura é hoje considerada
o objecto próprio da antropologia. Os antropólogos e os arqueólogos) profissionais
estudam a diversidade na cultura. Como procedem?
Primeiro que tudo, operam distinções. Existem, segundo eles, diversos tipos de
cultura, sendo por isso possível distinguir uma cultura de outra. O que, mais do que
um facto indiscutivelmente evidente, é uma ideia.
É uma característica universal dos seres humanos acreditar que pertencem a um
tipo diferente: «nós» somos de uma maneira, «eles» são de outra. Os tipos em
questão são categorias do pensamento e não podem ser inferidos por
demonstração empírica. Após séculos de discussão, os antropólogos físicos, que
estudam o homem de um ponto de vista anatómico e zoológico, chegaram a um
acordo quase pleno na afirmação de que o homem moderno (Homo sapiens) é, em
toda a parte, essencialmente o mesmo enquanto espécie natural. No passado,
existiram raças regionais de homens do mesmo modo que existem hoje raças de
cães, e isso reflecte-se na actual diversidade morfológica; mas a humanidade, no
seu conjunto, cruzou-se de tal modo que não parece existirem diferenças
significativas de capacidade inata ou de temperamento entre uma «raça» e outra.
Admitido isto, temos que, consequentemente, atribuir toda a diversidade verificada
nas formas de civilização entre os homens (‘civilização entendida aqui no sentido
englobante de Tylor) às diferenças de educação cultural. Estas diferenças são tão
reais como as diferenças morfológicas do homem físico, mas não deixam de se
fundir umas nas outras. As descontinuidades de cultura são tão difíceis de distinguir
especificamente como as descontinuidades de «raça».
Os padrões da cultura humana variam enormemente à medida que nos deslocamos
ao longo de um mapa geográfico, mas as diferenças de linguagem, de crença
religiosa, de regime político, de códigos morais e legais, não coincidem, regra geral,
entre si. No entanto, os vários povos tendem sempre a falar «como se» essa
coincidência fosse imediatamente evidente («são estes os nossos costumes», «os
costumes deles são aqueles»). A convenção, há muito estabelecida, pela qual os
antropólogos falam de «culturas» no plural, representa uma imitação acrítica do
mesmo modo de falar. O que é bem de molde a fazer-nos perder a orientação.
A ideia de que o mesmo conceito geral de cultura — no sentido de crenças e
comportamentos adquiridos e da transmissão de uma herança de coisas e ideias —
é susceptível de ser repartido em compartimentos isolados, no interior dos quais
cada cultura distinta é específica de uma tribo particular, existente num particular
contexto espacio-temporal, começou por aparecer como resultado dos interesses e
das metodologias dos antropólogos interessados.
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Antes de 1914, todos os antropólogos, independentemente do seu campo de
interesses específico, tinham como axioma que o seu objectivo final devia ser a
reconstrução histórica. Diferiam, apenas, quanto aos meios através dos quais
deveria conseguir-se essa reconstrução.
Na definição original de Tylor estava implícito que a cultura deveria ser o somatório
dos dados independentes (traços culturais) susceptíveis de registo num inventário
por listas. Este ponto de vista encontrava-se em conexão com a crença,
compartilhada por todos os colegas evolucionistas de Tylor, segundo a qual seria
possível reconstruir a cultura de épocas passadas, integrando de novo nos seus
conjuntos de articulação originais os traços dispersos dos antigos costumes que,
pelos acasos da história, tinham sobrevivido, fora do seu contexto, até aos tempos
actuais. Os antropólogos difusionistas da geração seguinte preocuparam-se
igualmente em reintegrar, num contexto único, traços culturais que, com o decorrer
do tempo, se tinham dissociado, mas operavam de acordo com pressupostos
diferentes. A tese evolucionista era a de que os complexos culturais «originais» da
antiguidade se tinham deslocado, segundo uma variedade de traços distintos,
através de um processo de sobrevivência fragmentária; os difusionistas
sustentavam que a fragmentação e a dispersão desses traços era o resultado de
migrações e do tráfico comercial. Ambos os tipos de reconstrução histórica
pressupunham que as culturas do passado podiam ser individualizadas enquanto
conjuntos constituídos por componentes diferenciados (traços).
A dimensão especulativa nestes dois tipos de procedimento era muito acentuada e,
nos finais do século XIX, o pensamento antropológico começava já a orientar-se no
sentido do empirismo, embora o empenhamento na reconstrução histórica
permanecesse inalterado. Verificou-se sobretudo que os antropólogos, de olhos e
pés na terra, começaram a utilizar o conceito «uma cultura» para a descrição de
qualquer conjunto de artefactos recolhidos num estrato único de um nível único de
prospecção, enquanto os antropólogos culturalistas americanos, seguindo o
exemplo de Boas, usavam a mesma expressão para descreverem todo o corpo de
costumes, tradições e objectos materiais que, num passado relativamente recente,
distinguem esta ou aquela tribo índia da América.
É importante ter-se em conta o facto de que Boas e os seus seguidores não se
consagravam, de um modo geral, ao estudo de sociedades tribais índias
directamente observáveis, enquanto entidades em acção, mas tentavam a
reconstrução das características dessas sociedades com base nos resíduos
materiais fragmentários e nas reminiscências de informadores de idade avançada,
vivendo em condições de destribalização nas reservas índias sob tutela do
governo.
Os investigadores da escola de Boas tratavam com desprezo todas as
generalizações especulativas acerca de quaisquer processos universais de
evolução social ou de difusão cultural, mas tendiam ainda a identificar os objectivos
de antropólogo com os do historiador. Eram coleccionadores indiscriminados de
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factos etnográficos de todo o género e dos mais diversos níveis. Embora fossem
ecléticos nos métodos de investigação de campo, minimizavam constantemente o
elemento do sistema que teria sido possível especificar no conjunto dos dados
empíricos. A Primitive Society [1920] de Lowie, texto antropológico com larga
influência que, segundo parece, iria induzir mais tarde Lévi-Strauss [1955, trad.
port. p. 54] a tornar-se antropólogo, concluía referindo-se à mistura sem finalidade
de qualquer coisa feita de retalhos e fragmentos chamada civilização, e sustentava
que o historiador se dá melhor conta que os demais dos óbices que impedem de
introduzir um sentido, nesse produto amorfo.
Se bem que Lévi-Strauss tenha vindo a rejeitar a opinião segundo a qual a
antropologia é uma forma de historiografia, a sua conhecida afirmação de que as
manifestações empíricas da cultura têm uma qualidade arbitrária comparável à de
um aparelho fabricado por um bricoleur [cf. Lévi-Strauss, 1962, trad. it., p.29-45]
inclui-se na mesma tradição.
Uma vez que os seguidores de Boas se mostravam predispostos a acreditar que a
sociedade é amorfa e destituída de intencionalidade, não é surpreendente que os
costumes das sociedades tribais por eles reconstruídas emergissem das suas notas
de campo como uma sobreposição confusa de elementos díspares. No entanto,
toda a sua metodologia pressupunha claramente que, numa época imprecisa do
passado histórico, cada tribo fora uma entidade distinta, com fronteiras territoriais e
culturais bem definidas. A diferença decisiva entre uma e outra tribo poderia, por
isso, ser descoberta pela comparação entre os termos de um conjunto definido de
traços. Com efeito, a «totalidade complexa» de Tylor, que inclui o conhecimento, as
crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes, etc., acaba por ser concebido como
um inventário de elementos estáticos juntando-se uns aos outros como as peças de
vestuário de um guarda-roupa de teatro.
Pressupostos muito semelhantes penetravam também o pensamento dos
etnógrafos europeus. (grande parte do melhor trabalho nesta área foi produzido por
missionários católicos que se interessavam mais pelas sociedades contemporâneas
directamente observadas, que pelas reconstruções do passado; mas os seus
relatos eram publicados na revista «Anthropos», sob a orientação editorial do padre
Schmidt, cuja ambição grandiosa era servir-se desses dados de modo a validar as
suas teorias altamente especulativas acerca da história universal das religiões.
Parece que Schmidt teria fornecido aos seus autores uma lista de traços culturais a
investigar. Até mesmo a revista inglesa «Notes and Queries in Anthropology», que
começou a ser publicada em 1874, se acha estruturada a partir de princípios
similares.
A problemática centra-se aqui em três ideias-chave. A primeira é o pressuposto de
que os povos primitivos de todo o mundo se encontram naturalmente segmentados
em «tribos», cada uma delas possuindo a sua própria cultura, distinta e
reconhecível; a segunda é a de que cada uma dessas culturas pode decompor-se
segundo um conjunto definido de traços; a terceira, que cada um desses é algo com
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existência própria, com a sua história particular, podendo tornar-se completamente
independente do contexto cultural onde foi registado. A segunda e a terceira ideias
contaram-se entre os pontos decisivos sobre os quais os funcionalistas britânicos,
conduzidos por Malinowski e Radcliffe-Brown, viriam a desafiar os difusionistas
europeus e os seguidores americanos de Boas; mas a primeira proposição não foi
seriamente contestada antes de 1935.
Em alguns casos, a opinião do antropólogo, segundo a qual a «tribo» examinada
constitui uma entidade naturalmente distinta, parece deveras singular. Uma das
mais influentes monografias etnográficas, datada do primeiro quartel do século XX,
foi The Todas de Rivers [1906], concebida quando o seu autor conservava ainda os
seus pressupostos evolucionistas. O livro foi escrito como se os Toda fossem uma
tribo distinta, com uma história distinta, que podia descrever-se quase sem
qualquer referência às sociedades circundantes em que a tribo se encontra
integrada. Ora, de facto, os Toda são uma casta de criadores de gado leiteiro,
continuamente implicados em todo um conjunto de transacções quotidianas com
membros de outros grupos de castas que vivem nas vizinhanças.
Um outro exemplo do mesmo género é fornecido pela série, justamente famosa, das
monografias de Malinowski sobre as ilhas Trobriand, na Melanésia. Publicadas
entre 1922 e 1935, representam o resultado de uma investigação de campo que
decorreu entre 1914 e 1918. Um dos temas centrais de toda esta produção é a
importância do kula, o sistema de trocas cerimoniais entre uma e outra ilha, ligando
os habitantes da ilha de Kiriwina com outras comunidades insulares, dispersas um
pouco por toda a parte numa ampla zona da região Massin da Melanésia. No
entanto, as monografias de Malinowski sobre as ilhas Trobriand foram escritas, em
larga medida, como se a cultura de Omarakana, subdistrito noroeste da ilha
Kiriwina, pudesse ser tratada como um sistema fechado auto-suficiente, do qual
todas as componentes se integrassem ‘entre si, como as peças da engrenagem de
um relógio.
2.2. Cultura como testemunho de integração social
O trabalho de campo de Malinowski, de orientação sociológica, representou uma
importante ruptura com a convenção há muito estabelecida de que o objectivo da
investigação antropológica era uma reconstrução histórica. Para Malinowski e os
seus colegas funcionalistas, a investigação antropológica tornou-se um exercício de
sociologia comparada à maneira de Durkheim. A cultura de «uma tribo» não era
para eles uma pura e simples recolha arbitrária de dados, um patchwork, mas antes
a manifestação visível do funcionamento de um sistema organizado. O
funcionamento das instituições sociais seria compreendido mediante o estudo
rigoroso da estruturação dos elementos culturais concretos aos quais essas
instituições estavam associadas.
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No entanto, tal como os etnógrafos americanos tendiam a exagerar a ausência de
sistematização dos fenómenos culturais, registando os traços avulsos dos costumes
fora do seu contexto de utilização original, também os seus contemporâneos
britânicos se sentiram tentados a exagerar a interdependência funcional dos
fenómenos que observavam, uma vez que coligiam a sua documentação no interior
de um contexto temporal e espacial unitário, de onde os testemunhos históricos se
achavam, no essencial, excluídos. Os etnógrafos funcionalistas britânicos
justificavam o seu menosprezo pela história sustentando que nas sociedades
pré-alfabetizadas, «a história» é uma mera conjectura — o que é, em si mesmo,
verdade — mas, ignorando a possibilidade de explicações históricas relativamente
às concatenações observáveis nos seus dados, conseguiram fazer com que o seu
postulado de interdependência funcional parecesse muito mais plausível.
Nos anos 30, os etnógrafos americanos começaram a seguir o exemplo dos seus
contemporâneos europeus. Os seus interesses deslocaram-se da reconstrução das
hipotéticas histórias tribais para o estudo das sociedades primitivas
contemporâneas. Entretanto, alguns antropólogos americanos converteram-se à
antropologia social funcionalista britânica, à maneira dos seguidores de Malinowski
e de Radcliffe-Brown, mas mesmo assim a ideia anterior, segundo a qual «uma
cultura» pode ser considerada como um simples inventário de traços estáticos,
cada um dos quais com a sua própria história independente, conseguiu sobreviver
por longos anos e desenvolver-se sob novas formas.
2.3. Traços culturais como dados de «ciência objectiva»
Outline of Cultural MatériaIs de Murdock, concebido como guia de trabalho de
campo para o etnógrafo que se inicia nesta tradição, foi publicado pela primeira vez
em 1942 e desde então tem conhecido várias reedições revistas. () grandioso
empreendimento conhecido como Human Relations Area Files (HRAF), centrado na
Universidade de Yale e que foi uma iniciativa do professor Murdock, está ainda a
recolher activamente dados tribo a tribo, segundo os mesmos princípios. Este
ficheiro de informação etnográfica, com as suas entradas e referências bem
elaboradas, especifica os traços culturais de muitas centenas de «culturas»
consideradas como separadas, dispersas por todo o mundo. O postulado aqui
implícito é o de que, com a ajuda de computadores e quadros estatísticos, tais
dados podem ser tratados de maneira a fornecerem informações gerais,
cientificamente verificáveis, acerca da cultura humana à escala mundial, ou de
formas de cultura humana universalmente correlacionadas com determinados
modos de economia de subsistência, e assim por diante.
Muitos antropólogos profissionais de renome manifestaram a sua confiança nesta
metodologia geral, embora mostrando um certo cepticismo acerca dos resultados
efectivamente conseguidos deste modo cf. por exemplo Harris 1968], mas, na
opinião de quem escreve estas linhas, são as linhas do projecto, em todo o seu
conjunto, que parecem mal concebidas. O mapa etnográfico da população humana
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mundial não se segmenta naturalmente num número finito de entidades distintas,
comparáveis entre si (culturas). Só parece segmentado de tal modo, em virtude das
vicissitudes sofridas pela própria descrição etnográfica. Se os traços culturais
registados no HARF tivessem a significação estatística quantificável que se
pressupunha, cada uma das culturas distintas deveria ser estritamente comparável
a qualquer outra nos termos de um conjunto completo de parâmetros efectivamente
fundamentais, compreendendo, em particular, a dimensão da população e a
extensão do território; no entanto, não se procedeu, de facto, a qualquer tentativa
que permita assegurar que os diferentes termos sejam comparáveis entre eles,
deste ou de qualquer outro modo. Até há bem pouco tempo, os dados relativos a
Tikupia, uma pequena ilha do Pacífico, com uma área de menos de três milhas
quadradas e uma população de 1200 pessoas em 1929, ocupavam mais espaço do
que as que diziam respeito aos 600 milhões de habitantes da China! A
demonstração obtida a partir desta situação é, evidentemente, do ponto de vista
estatístico, destituída de significado.
Este exemplo concreto não é, na realidade, excepcional. A natureza inteiramente
casual da segmentação tribal da população mundial, em que se baseiam as
estatísticas do HRAF, pode ser de novo ilustrada ao considerar-se o modo como os
ficheiros cobrem as regiões adjacentes do Assão oriental e da Birmânia do Norte.
The Angami Nagas [1921] de Hutton compreende um mapa da zona das Naga Hills,
no Assão oriental, onde se assinalava a localização de não menos de doze tribos
Naga (Angami, Sema, Lhota, Rengma, Ao, Konyak, Kachin, Tangkhul, Chang,
Sangtam, Yachumi, Phom). No decurso dos vinte anos seguintes, a maior parte
destes grupos foi objecto de descrições monográficas separadas e cada grupo tem
um lugar à parte nos registos do HRAF.
Os habitantes da área geográfica mais larga, conhecida pelo nome de Kachin Hills,
que se estende para oriente de Naga Hills e se situa em grande parte na Birmânia,
são sob numerosos aspectos bastante semelhantes aos Naga. Nas Kachin HilIs,
como nas Naga Hilis, os traços linguísticos, os costumes e a organização social
variam à medida que se percorre o mapa. Por razões fortuitas, a maioria dos
etnógrafos que estudaram as populações das Kachin Hills eram mais
«reagrupadores» do que «segmentadores»; mas, se Hutton e os seus colegas se
tivessem dedicado mais ao estudo dos Kachin do que ao dos Naga, teriam podido
facilmente descobrir pelo menos vinte tribos kachin. Na realidade, tanto quanto sei,
a HRAF dedica apenas uma entrada a toda a zona das Kachin Hills. O que é muito
acertado, uma vez que, e apesar de existir uma considerável diversidade cultural
entre as populações das Kachin Hills, não existem fronteiras culturais que
justifiquem a separação de uma cultura kachin de uma outra.
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3.
Interdependência e integração dos elementos culturais
3.1. A selecção dos dados e a procura de sistematização
Trata-se, com efeito, de questões fundamentais, que dizem respeito tanto ao estudo
da história como ao da etnografia. São duas aqui as questões decisivas: a)como
devem ser segmentados os dados em questão para efeito de análise? b) uma vez
que o fundo de dados etnográficos potencialmente disponíveis é virtualmente
limitado, em termos ou de extensão ou de diversidade, através de que princípio
deveremos distinguir o relevante do irrelevante?
A história o estudo do que aconteceu no passado, mas é claro que no passado
aconteceu uma infinidade de coisas. O historiador deve, portanto, saber distinguir o
relevante do irrelevante, mas aquilo que considera relevante depende da sua
situação imediata. A história, tal como actualmente se escreve, é não só uma
confusão indiscriminada de acontecimentos passados, mas também um documento
mitológico, compilado basicamente a partir de uma selecção de acontecimentos
passados, de modo a permitir explicar ao leitor contemporâneo como é que as
coisas se tornaram naquilo que são.
O mesmo vale também que a etnografia; há sempre um número infinito de
elementos concretos possíveis que o antropólogo entusiasta poderia registar no
seu caderno, mas uma acumulação indiscriminada de semelhantes dados nada nos
diz praticamente. Os críticos fizeram notar que Boas publicou cerca de cinco mil
páginas de material etnográfico só no que se referia à tribo kwakiutl. Os dados
agrupam-se por sobreposição, aparentemente ignorando a perspectiva de qualquer
objectivo final. Concretamente, o material inclui e reúne dados relativos aos contos
populares, à mitologia, à religião, à arte, aos cerimoniais e aos aspectos mecânicos
da tecnologia e da técnica.
Como Boas não estava à procura de qualquer ordenamento sistemático ou de
qualquer interdependência dos seus dados, é evidente que os não encontrou. Na
verdade, parece ter feito tudo para evitar a investigação em todos os campos onde
se teria arriscado a descobrir uma ordem de natureza sistemática. Por entre todo o
seu material, há muito pouca coisa que se correlacione com a organização
económica, social ou política. Ainda hoje, apesar de ulteriores trabalhos de campo
e de uma reelaboração quase ininterrupta das notas de campo de Boas, não se
sabe quase nada da história do funcionamento efectivo da sociedade kwakiutl no
século XIX.
Mas, supondo que Boas tivesse aplicado todo o seu esforço de investigação de
campo ao registo de informações de um género completamente diferente, que
critérios nos poderiam levar a afirmar que o resultado seria um tipo melhor ou pior
de etnografia? Deverá o analista da cultura proceder por meio de sistemas
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ordenados à análise dos dados que recolhe? E se procura sistemas, que tipo de
sistemas deverão ser?
3.2. Cultura como expressão de sistemas no espírito
Trata-se de um problema decisivo, que continua a dividir os antropólogos de todo o
mundo. A traços largos, parecem existir três tradições principais. Em primeiro lugar,
temos o ponto de vista que Lévi-Strauss herdou de Boas através de Lowie. Os
conjuntos culturais são incidentes da história, mas, uma vez que não existem leis
no processo histórico, a história dos povos primitivos é sempre consideravelmente
conjectural. As culturas primitivas devem ser imaginadas como se existissem fora
da história; a comparação intercultural é sincrónica e fora de tempo. No entanto,
apesar de Lévi-Strauss parecer concordar com Lowie ao considerar as civilizações
como uma coisa feita de retalhos e fragmentos, rejeita, contudo, a sua concepção
de «misturada sem ordem».
@Para Lévi-Strauss, como para muitos antropólogos contemporâneos que, directa
ou indirectamente, foram influenciados pelas suas ideias, a cultura é uma
manifestação do mundo das ideias abstractas do espírito; é um instrument() de
comunicação que, pelo menos sob certos aspectos, se assemelha a uma língua
falada. Se aceitarmos as grandes linhas desta equivalência, surgem depois duas
questões: a) quais são os elementos da cultura que se combinam entre si de modo
a funcionarem como um código (como os elementos sonoros da linguagem), e qual
o seu princípio de combinação? b) como se decifram as mensagens assim
codificadas e que significam?
Neste sentido, um analista da cultura (ou da linguagem) pode ocupar-se ou da
formação dos fenómenos manifestos de superfície, ou das estruturas abstractas de
nível profundo (no espírito), que geram os fenómenos de superfície.
Por exemplo, num dos extremos, um linguista que se interesse pelas correlações
sociais da fonologia pode concentrar a sua atenção em pormenores subtis dos usos
linguísticos concretos no quadro de um contexto local específico. Desta maneira,
pode ficar em condições de demonstrar como certos contrastes relativamente
menores do comportamento cultural têm sentido, ainda que isso não implique
necessariamente que os sentidos em questão sejam reconhecidos a um nível
consciente pelos seus protagonistas humanos. Num outro extremo, um gramático
pode tentar descobrir como os segmentos de um enunciado do discurso se
reagruparam entre si e se encaixaram em sequências algorítmicas de modo a
fornecerem como que uma memória electrónica de ideias significativas, que de
novo podem ser depois transformadas em formas alternativas de produção
linguística. Neste caso, no cerne da investigação encontram-se problemas de tipo
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algébrico de alto nível de abstracção; embora o investigador gostasse de saber
como é que o cérebro é capaz de distinguir as combinações significativas das não
significativas, não tem necessidade de se preocupar realmente com o
comportamento linguístico manifesto.
Como exemplo deste contraste de perspectivas, pode citar-se o caso do
sociolinguista Labov, que reconhece uma marca de classe social na transformação
quase imperceptível de um único fonema numa área muito restrita de Nova lorque,
enquanto Chomsky, gramático de orientação matemático-estruturalista, se propõe
ilustrar as suas observações acerca das características universais da linguagem
humana, através do uso de frases-modelo extraídas de uma forma de. inglês que,
provavelmente, nunca foi falada em lugar algum.
Analogamente, os antropólogos contemporâneos que partem da mesma base que
Lévi-Strauss — a cultura é (mais ou menos) semelhante a uma linguagem —
diferem nos resultados académicos do seu trabalho. Alguns estão interessados na
estruturação ordenada de aspectos culturais a um nível de superfície, outros
interessam-se pela estrutura lógica abstracta do «espírito humano». O próprio
Lévi-Strauss reconhece habitualmente que os factos culturais manifestos, no
contexto em .que são usados, se organizam de acordo com modelos, do mesmo
modo que os elementos fonéticos de um enunciado linguístico. Na medida em que
admite esta integração local dos fenómenos culturais manifestos, Lévi-Strauss
aproxima-se dos sociolinguistas (por exemplo, Hymes) e dos primeiros
funcionalistas (por exemplo, Malinowsky), mas o certo é que as suas intenções
próprias incidem noutra direcção. O que lhe interessa, em primeiro lugar, é a
significação e, mais precisamente, a significação inconsciente.
Mas, neste ponto, Lévi-Strauss toma excessivamente à letra a analogia entre
cultura e linguagem. Com efeito, sustenta que, do mesmo modo que o sentido de
um enunciado linguístico nunca poderá ser inferido directamente de uma análise
dos sons, também o sentido das formas culturais não pode ser inferido da
estruturação superficial dos elementos culturais enquanto tais. E esta a base da
sua crítica permanente aos antropólogos funcionalistas britânicos, que acusa de
adoptarem a posição behaviourista segundo a qual o significado pertence ao
mesmo nível que o comportamento manifesto. É muito possível que esta acusação
tenha razão de ser. Por outro lado, se a significação existe num outro nível
diferente, os funcionalistas podem perguntar com bastante lógica: significação para
quem?
A parte alguns casos excepcionais, todo o corpus das obras publicadas por
Lévi-Strauss se ocupa com a formulação de generalizações baseadas numa
comparação intercultural de larga escala. E, portanto, compreensível que
Lévi-Strauss tenha prestado tão pouca atenção às peculiaridades da organização
social de sociedades tribais, mas é surpreendente ouvi-lo declarar que um mito
recolhido no contexto da Amazónia, na América do Sul, se torna somente decifrável
quando considerado em articulação com um outro mito tribal, recolhido no extremo
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setentrional da América do Norte [cf. Lévi-Strauss 1964-71, III, pp. 11-12].
Provavelmente, aqui, a teoria subjacente deriva de Freud. Para os actores
individuais de um dado contexto tribal, os padrões culturais têm significação, mas
apenas a um nível inconsciente. O antropólogo está na posição privilegiada de um
psicanalista: mediante o uso da comparação intercultural, é capaz de trazer ao nível
da consciência as fantasias inconscientes, compartilhadas por toda a humanidade,
considerada como ser universal. E uma ideia grandiosa, mas muito longe dos factos
em questão.
A tese oposta, empírica, afirma que quando Lévi-Strauss declara que as
manifestações culturais de superfície são arranjos arbitrários, como os de bricoleur,
expressando de certa maneira significações escondidas, recorre a uma metafísica
cruelmente auto-ilusória e dificilmente distinguível da que levou Durkheim a falar da
sociedade como da criação de uma «consciência colectiva», que era um sinónimo
de Deus. 1)e um ponto de vista empírico, as elaboradas contorsões intelectuais de
Lévi-Strauss acabam por dizer apenas que a cultura é, para além da expressão, a
criação de um entidade inteiramente incorpórea, «o espírito humano» (o esprit
humain). Ora, isso remete-nos de novo exactamente para a definição tautológica
segundo a qual a cultura é o que é humano, enquanto a humanidade é o que é
cultural. Voltaremos a considerar, mais adiante, neste ensaio, o problema da
significação utilizável que poderia ser atribuída ao conceito de «espírito humano».
3.3. Cultura como expressão do sistema social
A segunda tradição importante no que se refere ao ordenamento em sistema dos
fenómenos culturais é a que deriva de Durkheim através de Malinowski e
Radcliffe-Brown, embora tendo sempre em conta que, no decorrer do
desenvolvimento do pensamento antropológico dos últimos setenta anos, há um
processo contínuo de fecundação recíproca de ideias. Assim, Marcel Mauss,
sobrinho e discípulo de Durkheim, é tanto um dos precursores da antropologia
estrutural de Lévi-Strauss como da antropologia estrutural-funcionalista dos
sucessores de Radcliffe-Brown. Entre parênteses, pode notar-se que, apesar de ter
reconhecido a sua dívida para com os americanos que se definiam como
«antropólogos culturais» e de ter repetidamente denunciado o empirismo dos seus
colegas funcionalistas britânicos, Lévi-Strauss definiu-se a si próprio
coerentemente como «antropólogo social», termo já adoptado por Malinowski e
Radcliffe-Brown para acentuarem o facto de estarem mais interessados na
sociologia do que na história cultural.
A premissa central dos funcionalistas estruturais era a de que as sociedades
humanas existem como conjuntos discretos, enquanto as instituições sociais que,
através da observação, prevalecem num mesmo contexto particular de tempo e
espaço, se acham sempre integradas no seu conjunto como sistemas
homeostáticos, o que faz com que qualquer sociedade tenha sempre uma
tendência conservadora implícita no sentido de continuar tal como é. Os
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dispositivos institucionais, tal como se manifestam no comportamento
consuetudinário, são assim considerados, em certa medida, intencionais
(funcionais). Segundo a versão de Durkheim e Radcliffe-Brown, a função de uma
instituição é o papel que ela desempenha em ordem a manter a continuidade e a
coesão do sistema global; segundo a versão de Malinowski, é o modo pelo qual
contribui, directa ou indirectamente, para a sobrevivência e o bem-estar dos
membros individuais da sociedade em questão.
A contrapartida metodológica deste esquema teórico leva a sustentar que o
objectivo da investigação antropológica é descobrir o modo através do qual as
sociedades concretas «funcionam» como sistemas. Consequentemente, enquanto a
investigação de campo significava anteriormente o registo minucioso das
declarações feitas por informadores acerca das condições do passado, ou do que
estas deveriam ter sido, tornou-se, em seguida, uma actividade de observação
participante directa do modo de operar das instituições em vigor. A análise
ocupava-se mais das redes de relações, concebidas como canais de comunicação
social, do que dos aspectos particulares dos costumes, isoladamente considerados.
As implicações do método funcionalista surgiam precisamente como o oposto das
do modelo de Boas, em todas as suas variantes. Boas, Kroeber, Lowie, Murdock,
Lévi-Strauss e os seus diferentes seguidores e discípulos intelectuais
consideraram, todos eles, um facto comprovado que a cultura consistia em
«coisas» (traços), que existem por si, e que podem dar-se combinados em
conjuntos relativamente fortuitos, como as sequências de números que saem no
jogo da roleta. São diversos os tipos de teorias que lhes servem para explicar
porque é que os modelos de um dado tipo se apresentam mais frequentemente do
que os de outro tipo, mas, por princípio, quase todas as combinações de «traços»
são consideradas possíveis. Na análise funcionalista, contudo, é difícil dizer que os
traços existem fora do seu contexto de uso imediato. Consideremos, por exemplo, o
caso de um objecto material como um escudo de guerra, exibindo um desenho
característico. Para um funcionalista, o modo e as circunstâncias da sua
construção, a magia incorporada na sua preparação, a sua modalidade e o seu
contexto de uso, e as tradições que definem a sua posse passada e presente,
fazem parte do objecto, tanto como o substrato material que o compõe. Assim, um
escudo que é retirado do seu contexto e exibido num museu etnográfico, ou um
escudo de desenho idêntico que aparece num contexto cultural distinto, nunca
poderá ser considerado como o «mesmo traço cultural» que o primeiro objecto
observado.
Mas o cerne da diferença entre as duas metodologias é uma questão de ênfase. Os
funcionalistas tomaram sempre como indiscutível o facto de se interessarem pelo
estudo de sistemas que se manifestam directamente no complexo de instituições
culturais localmente observáveis. Por conseguinte, a organização económica,
social, política e de parentesco, fornece a estrutura fundamental, a que depois são
acrescentadas as observações etnográficas. Os problemas que não se encontram
em correlação directa com estes sistemas de organização profunda são, de um
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modo geral, remetidos para segundo plano ou ignorados por completo; trata-se da
inversão da perspectiva que se nos depara nas notas de Boas acerca dos Kwakiutl.
O contraste surge muito claramente na forma como os adeptos das duas escolas
abordam o estudo do parentesco. Na tradição dos «traços culturais», um «sistema
de parentesco» significa uma nomenclatura de parentesco, um conjunto de palavras
extraídas de uma linguagem natural única, e as categorias de parentesco a que as
palavras se referem. O sistema verbal é tratado como uma coisa em si própria, e a
composição das categorias constitui um conjunto de traços. Por exemplo,
considera-se como traço distintivo de um sistema de parentesco o facto de o pai e o
irmão do pai serem categorizados por um só termo e o irmão da mãe por um Outro.
Social Structure de Murdock [1949] é um elaborado estudo comparativo de 250
sistemas de parentesco deste teor, acompanhado de uma investigação estatística
relativa à frequência de determinadas combinações de traços. O autor pressupõe
que a história do desenvolvimento de cada sistema de parentesco particular, tal
como foi observado, pode ser discutida independentemente do meio social em que
foi recolhido. As Structures élémentaires de la parenté [1947], de Lévi-Strauss, são
um estudo mais permutacional do que estatístico, mas dependem igualmente do
pressuposto de base segundo o qual «um sistema de parentesco», considerado
como um conjunto de termos, é susceptível de se tornar objecto de uma análise
utilizável sui generis, sem que seja necessário referir a matriz institucional a que ele
pertence como instrumento operativo.
Pelo contrário, quando os funcionalistas estruturais escrevem acerca dos sistemas
de parentesco, prestam muito pouca atenção ao uso dos termos de parentesco.
Aqui, o parentesco refere-se aos direitos e deveres económicos, políticos, legais e
religiosos que decorrem do reconhecimento do princípio de descendência e dos
contratos matrimoniais no interior de um contexto cultural determinado. Embora a
comparação intercultural não seja totalmente repudiada, é considerada, sem
dúvida, com manifesto cepticismo. Uma antologia de estudos como African Systems
of Kinship and Marriage [Radcliffe- Radcliffe-Brown e Forde 1950] tem, em certo
sentido, o seu valor comparativo, mas o efeito global acentua mais a diversidade do
que a unicidade dos sistemas descritos. Social Organization of Australian Tribes de
Radcliffe-Brown [1931] é uma obra mais próxima do livro de Lévi-Strauss pelo seu
estilo de apresentação, mas trata estritamente de uma única área geográfica e de
um único «tipo» de sociedade primitiva. Radcliffe-Brown teria rejeitado firmemente
qualquer alusão a uma possível formulação da sua parte de um princípio geral
susceptível de ser considerado uma manifestação universal do espírito humano.
3.4. Sistemas culturais como tipos ideais: historicismo e materialismo
cultural
Na antropologia contemporânea, o terceiro tipo de análise sistemática é o tipo
evolucionista e deriva, através de uma linha de descendência algo confusa, do
historicismo conjectural e especulativo de Morgan e Marx. A tese comum
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subjacente é aqui a de que existem leis do processo histórico que é possível
descobrir, e que se reflectem nos contrastes culturais observados no espaço e no
tempo. A origem setecentista ou oitocentista deste tipo de pensamento
antropológico é discutida no artigo «Anthropos», neste volume da Enciclopédia; o
seu desenvolvimento posterior, ao longo deste século, tem conhecido diversas
vicissitudes, com tónicas diferentes na América e na Europa.
Boas e os seus seguidores nos Estados Unidos não procuravam negar que a
evolução social e tecnológica tivesse tido lugar, mas eram extremamente cépticos
em relação a todas as teorias referentes a uma evolução segundo leis regulares do
processo histórico, conforme as supunham Morgan e Marx. A seguinte citação de
Laufer exprime, do modo mais radical, esta atitude negativa em relação à teoria: «A
cultura não pode ser encaixada nos espartilhos de uma teoria, qualquer que esta
seja, nem reduzida a fórmulas químicas ou matemáticas. A natureza não tem leis e
o mesmo acontece com a cultura. É vasta e livre como um oceano, com as suas
ondas e correntes espalhadas em todas as direcções» [1918, p. 90].
Vinte anos depois, por reacção dialéctica contra os boasianos ortodoxos,
começaram a estar na moda diversos tipos de evolucionismo. Leslie Whire dedicou
polemicamente grandes esforços à reabilitação de Morgan; Julian Steward
desenvolveu uma versão revista da obra de Spencer, na qual linhas múltiplas de
desenvolvimento substituíram os esquemas unilineares do século XIX. Neste
esquema de pensamento, as «culturas», as «tribos» e as «sociedades» dos
adeptos de Boas e dos funcionalistas acabaram por ser consideradas como «tipos»
representativos dos estádios da evolução social e económica. Presumia-se, de
forma consideravelmente injustificada, que o elemento especulativo em Morgan e
outros autores do século XIX fora substituído por dados empíricos firmemente
alicerçados, resultantes da arqueologia e da etnografia. Steward, por exemplo,
supunha que havia provas claras de que no Peru, México, Mesopotâmia, Egipto e
China Setentrional, a história passava, em larga medida, pela mesma sequência de
fases — fases por ele definidas como Caça e colecta, Agricultura incipiente,
Formativa, Florescência regional, Conquistas cíclicas — implicando a existência de
certas leis naturais que dessem conta desta sequência [Steward 1949].
Num estilo semelhante, Elman Service, um ex-discípulo de Leslie White, sustenta
que todos os tipos «aborígenes» da sociedade humana representam três «estádios
evolutivos»: 1) a sociedade igualitária, a partir da qual a sociedade se formara 2) a
sociedade hierárquica, que só em certos casos teria sido substituída pelo
Império-Estado, base do estádio seguinte 3) a Civilização arcaica ou Império
clássico [Service 1971, p. 157]. A arbitrariedade deste esquema é indicada pelo
facto de apenas alguns anos antes [1962] o mesmo autor ter optado por uma
sequência completamente diferente, onde os «estádios» tinham os nomes de
Bando, Tribo, Chefado, Estado.
A força motriz que determina o progresso histórico assim postulado é geralmente
considerada de natureza económica e ecológica. As sociedades humanas
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modificam o ambiente em que vivem e, à medida que se desenvolvem, adaptam-se
a essas modificações. Se aos conceitos de «ambiente» e de «adaptação» se
atribuir uma conotação suficientemente vasta e se se considerar uma escala
alargada de tempo, isto passa a ser verdade, em termos muito gerais, mas continua
a não ser particularmente esclarecedor. Uma história conjectural tão grandiosa não
entra em contacto com os problemas práticos da vida dos seres humanos.
A antropologia cultural, evolucionista e de orientação ecológica, torna-se bem mais
interessante quando a profundidade do tempo histórico se vê radicalmente
reduzida, de modo à investigação poder assentar no estudo meticuloso de aspectos
limitados dos contextos locais, compreendendo a «etnossemântica» do caso, ou
seja, quando o investigador se encontra em condições de discutir, não só os «
factos» técnico-demográfico-económico-ambientais observados «objectivamente»
(a ética da situação), mas também o modo pelo qual os protagonistas
percepcionam as suas próprias circunstâncias (a émica da situação) [cf. Harris
1968, cap. XX e, para uma apreciação das tendências contemporâneas
diametralmente oposta à apresentada neste artigo, os caps. XX-XXIII]. Os
imponentes estudos de Harold Conklin sobre as práticas agrícolas extremamente
apuradas dos Hananoo e Ifugao (ilhas Filipinas) pertencem também a esta
categoria.
O resultado final deste tipo de trabalho, tomando em consideração não só a
interdependência no tempo entre o homem e a natureza, mas também a
interdependência no curto prazo dos homens entre si, não raro revela uma
semelhança familiar muito próxima das conclusões dos funcionalistas.
Pelo contrário, as declarações históricas de escala mais ampla dos
ecologistas-culturais (materialistas culturais) emitem necessariamente a dimensão
émica e tendem a manifestar-se como fracas imitações do marxismo vulgar, onde
Wittfogel foi rebuscar alguns floreados verbais. Em primeiro lugar, sustenta-se
então a priori que a civilização se desenvolveu por toda a parte através de uma
mesma sequência de estádios, definidos de modo bastante vago, e, depois,
escolhe-se um período de tempo suficientemente amplo para cobrir muitos milénios
e uma localização (por exemplo, a América central), frente aos quais a arqueologia
pode, no melhor dos casos, limitar-se a fornecer algumas indicações muito gerais
acerca do curso da história, sendo os seus testemunhos adaptados ao esquema da
hipótese. Proclama-se, então, que está demonstrada assim a existência do
determinismo histórico! Por exemplo: «O paralelismo das vias mesopotâmica e
mexicana no sentido da formação do Estado, das formas finais que revestiram as
instituições, e também dos processos que aí conduziram, indicam que ambos os
casos são bastante significativamente caracterizados por um núcleo comum de
aspectos regularmente verificados. Descobre-se assim, uma vez mais, que não só o
comportamento social obedece a leis, como ainda que o número dessas leis é
limitado» [McAdams 1966, pp. 174-75].
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O neoevolucionismo, muito mais explicitamente marxista, dos antropólogos
europeus contemporâneos, é de um tipo muito mais elaborado.
3.5. Culturas primitivas como exemplos de formações sociais
pré-capitalistas
Durante os últimos trinta anos, o nome de Marx foi invocado em apoio de uma
imensa variedade de teorias sociológicas muito diferentes entre si, e todo o
comentador destas teorias terá que dar apenas, a este propósito, uma indicação
relativa às suas predilecções pessoais. O que se segue exprime a opinião pessoal
de autor destas linhas.
Existem dois temas imediatamente relevantes para a presente discussão: a
concepção marxista do determinismo na história e a utilização marxista da
dialéctica.
O esquema evolucionista do próprio Marx não era nem melhor nem pior, nem muito
diferente, do de muitos dos seus contemporâneos. Sabemos, de facto, que tanto ele
como Engels acharam que o complexo sistema exposto por Morgan em Ancient
Society [1877] era de adoptar quase na íntegra. A superioridade de Marx sobre os
seus contemporâneos reside na sua compreensão da história mais recente, mais do
que na sua concepção da história a uma escala global. Marx compreendeu, como
quase nenhum outro, que a revolução industrial que tivera lugar na Europa
ocidental, ao longo do período 1750-1850, era uma verdadeira revolução, no
sentido em que tinha criado um novo sistema de relações sociais e económicas, e
um novo conjunto de instituições sociais, sem precedentes históricos. Mesmo a
entidade mais fundamental da sociedade, a unidade familiar doméstica, composta
pelo marido, mulher e filhos, se tinha transformado na sua essência devido à
separação entre a casa e o lugar de trabalho e às características peculiares do
trabalho assalariado, que se tornara o símbolo do capitalismo industrial do século
XIX. Marx, sobretudo, embora não só, com a sua análise das conexões e
contradições que se desenvolviam no conjunto complexo e global da infra-estrutura
(Basis) e da super-estrutura (Uberbau), fornecia pela primeira vez uma explicação
plausível do modo como esta formação social, completamente nova, emergia
através de uma mutação da que lhe preexistia.
Do ponto de vista da história a longo prazo, foi este aspecto do problema que
interessou especialmente muitos antropólogos europeus contemporâneos, de credo
marxista, bem como numerosos dos seus colegas pertencentes a nações do
Terceiro Mundo. Se, como parece claramente ser o caso, o capitalismo teve uma
origem recente, e se existiram antes dele «estádios» ou «tipos» de formações
sociais pré-capitalistas que é possível comparar ou contrapor ao capitalismo (por
exemplo o feudalismo, ou o modo de produção asiático), então esses tipos de
organização da estrutura socioeconómica devem ter sido igualmente de origem
mutacional, devendo ser, além disso, possível diagnosticar o padrão de
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contradições que, a partir de um viveiro «pré-feudal», deram origem ao
«feudalismo», do mesmo modo que Marx diagnosticou as contradições que
geraram o «capitalismo» a partir do «pré-capitalismo».
Uma vez que os marxistas sustentam que muitos dos países do Terceiro Mundo se
encontram num estádio de desenvolvimento pré-capitalista, e dado ainda que as
minorias tribais que vivem nesses países são frequentemente consideradas como
ainda mais «subdesenvolvidas» — mais pré-feudais do que pré-capitalistas —, uma
antropologia marxista que se interesse pela estrutura das contradições nas
formações sociais pré-capitalistas de todo o tipo, deveria ter — conforme tem sido
defendido — um papel prático de grande relevância no desenvolvimento da
consciência nacional em todos os países ditos subdesenvolvidos.
Quando é este o interesse central, o testemunho da etnografia adquire uma nova
significação. Ao investigador em antropologia já não interessa descobrir uma
etiqueta apropriada para o estádio de desenvolvimento que o exemplar da cultura
que estudou representa, nem se preocupa com a interdependência das instituições
sociais que entram no seu campo de observação. Verifica-se, pelo contrário, o caso
de os seus campos de interesse característicos passarem a ser precisamente os
traços do sistema que os funcionalistas de orientação durkheimiana teriam
considerado patológicos, esses pontos fracos da estrutura social em que o modelo
de integração se torna incoerente.
No entanto, apesar da valorização dos factos observados ser diferente, este tipo de
antropologia marxista é, claramente, mais um desenvolvimento lógico do
funcionalismo do que um regresso ao determinismo histórico característico do
primeiro século XIX, e, nessa medida, a orientação antifuncionalista proclamada
pelos seus principais protagonistas parece algo deslocada.
A maior parte das obras até agora publicadas por antropólogos que, deste modo, se
servem da bandeira do marxismo, tem-se dedicado mais à polémica anticolonialista
do que à investigação científica, mas há pelo menos um aspecto em que estas
ideias abrem a possibilidade de um avanço teórico importante.
A dialéctica marxista sustenta que aquilo que se compreende como realidade é
determinado pelas categorias do pensamento humano, sendo estas últimas porém,
por seu turno, determinadas pela hierarquia das relações sociais implicitamente
presentes no sistema social determinado, em cujo quadro o indivíduo vive e
trabalha. Assim, indirectamente, chega-se à afirmação de que o trabalho humano
(praxis) cria a «realidade» do mundo no qual a humanidade existe.
Ora, no centro de todo o pensamento humano, encontra-se um processo dialéctico
de âmbito mais ou menos limitado; assim, se tenho um conceito A, considero
necessariamente a possibilidade do seu oposto, não-A. Consequentemente, o
verdadeiro «elemento do pensamento» não é apenas A, mas também «tanto A
quanto não-A», e tem-se a impressão de que há uma «luta contínua no intelecto»,
tentando aquele que pensa conceptualizar simultaneamente A como uma coisa em
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si, distinta de qualquer outra (o que leva à ideia de que o mundo como um todo é
feito de um número infinito de «coisas» discretas), e reter a ideia de que «tanto A
como não-A» se combinam numa unidade (o que leva a conhecer o mundo como
um contínuo campo de relações em perpétua transformação). Transpondo-se para
o interior do sujeito, este movimento conduz à incerteza e à ambiguidade da
consciência de si mesmo por parte do sujeito, quer enquanto indivíduo, quer
enquanto membro da sociedade ou membro de um grupo de interesses sectorial
dentro da sociedade global (classe social). Os conflitos empíricos, no interior dos
sistemas sociais empíricos, reflectem o facto de os membros dos diversos grupos
de interesses sectoriais percepcionarem de modo diferente a realidade social.
Houve, desde o início, um debate quase ininterrupto entre os próprios marxistas em
torno da questão de saber se «a dialéctica», no sentido aqui delineado, se referia
apenas à nossa compreensão das relações entre o indivíduo e a sociedade, ou se
era uma característica da natureza enquanto tal, fazendo com que o processo do
desenvolvimento histórico fosse, em qualquer caso, «dialéctico», ainda que não
existissem seres humanos para formularem ideias dialécticas. A versão mais
extrema da opinião segundo a qual a dialéctica é um processo essencial da
natureza, mais do que uma característica do espírito humano, aparece-nos na
Dialéctica da natureza de Engels [1873-86]. Não será discutida aqui esta questão.
O que nos interessa é que a valorização dialéctica marxista da realidade social
fornece um desafio directo à convenção existente em antropologia, segundo a qual
a humanidade se divide «naturalmente» em colectividades sociais distintas—
sociedades, culturas, tribos, comunidades linguísticas —, podendo, em seguida,
cada uma dessas colectividades ser subdividida em elementos fixos, os «traços
culturais».
Como já foi assinalado, um dos pontos fracos das primeiras formas de
funcionalismo antropológico consistia em este se preocupar mais com as culturas
do que com a cultura, com as sociedades mais do que com a sociedade.
Internamente, os sistemas sociais eram vistos como mecanismos homeostáticos
auto-perpetuantes, que actuariam como as peças de um relógio, mas,
exteriormente, atribuía-se-lhes uma superfície tão lisa e dura como a de uma bola
de bilhar. Cada «tribo» era concebida como completamente diferente da «tribo»
vizinha. Os funcionalistas tinham já compreendido, por volta de 1937, os graves
defeitos deste tipo de modelo, mas é significativo que, quando tentaram pela
primeira vez adaptar as suas ideias homeostáticas de modo a levarem em conta a
mutação e o desenvolvimento social, tenham começado então a falar em termos de
«Contacto cultural», «choque de culturas», «destribalização», e assim por diante.
No decurso dos últimos quarenta anos, muitos antropólogos, incluindo o autor deste
ensaio, tentaram convencer o seu público, tanto amador como profissional, de que
nunca existira uma época em que a população mundial dos grupos anteriores à
escrita se subdividisse em «tribos» (culturas) completamente distintas umas das
outras, cada qual persistindo como uma entidade independente no seu nicho
socioeconómico próprio. Mas grande parte do debate antropológico continua hoje a
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desenrolar-se como se as coisas fossem tal como as representa o discurso ilusório
que atrás mencionámos.
Os marxistas não descobriram uma solução para o problema, mas estão, pelo
menos, motivados pela sua busca. Durante o período colonial, um tipo de discurso,
segundo o qual a cultura dos Europeus dominantes era completamente distinta da
cultura dos dominados, estando os dominados, por sua vez, subdivididos numa
grande variedade de culturas completamente distintas e que não seria possível
caldear entre si, era exactamente conveniente para os interesses do poder colonial
dominante; mas hoje, quando as nações do Terceiro Mundo, formadas na
sequência das peripécias da história colonial, se esforçam por criar identidades
nacionais a partir de populações poliglotas com tradições mitológicas muito
diferentes, tornou-se de importância decisiva desenvolver uma teoria social capaz
de tratar o tema da separação cultural de modo mais realista.
Os indivíduos diferem culturalmente uns dos outros, quer enquanto indivíduos, quer
enquanto membros de grupos — comunidades locais, classes sociais, castas
profissionais, e assim por diante. Mas os grupos deste tipo não são «objectos»
(culturas, tribos) fixos que perdurem no tempo como entidades separadas; são, pelo
contrário, conjuntos de categorias correlacionadas entre si, em interdependência
dinâmica, e a análise social exige o reconhecimento tanto das correlações como da
sua qualidade dinâmica em mutação contínua.
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4.
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A cultura como comunicação
4.1. A analogia linguística e os seus limites
Como já vimos, no que se refere à antropologia sistemática contemporânea,
existem três fontes cujas correntes repetidamente se misturam.
Uma das correntes deriva de Boas. Os seus seguidores são analíticos e de
formação «cientista». Concebem a cultura como uma coisa em si, divisível num
número finito de parcelas (traços) fixas e facilmente identificáveis. Aqui, a tarefa do
antropólogo é a análise e a interpretação científica dos modelos que se verificam
nos agrupamentos das diversas parcelas.
Uma segunda corrente deriva de Durkheim, e é essencialmente sociológica. Os
seus seguidores sustentam que a preocupação do antropólogo se deve referir às
estruturas das relações sociais, susceptíveis de revelarem o funcionamento interno
dos sistemas sociais isoladamente considerados.
A terceira corrente deriva de Marx. Por vezes, é evolucionista-historicista à maneira
do século XIX; por vezes, neofuncionalista; por vezes ainda, estruturalista; é
polémica, ideológica e cheia de uma retórica ultrapassada ao denunciar os
antropólogos do início do século XX como lacaios do imperialismo colonialista. A
sua força reside na vontade de mostrar que as «tribos» da etnografia convencional
não são sistemas isolados estáticos, com uma história isolada, mas subsistemas
dinâmicos de conjuntos sociais, económicos e políticos mais vastos, que, por sua
vez, estão em estado permanente de fluxo evolutivo.
Mas este tipo de história das ideias poucas indicações fornece acerca do género
dos possíveis desenvolvimentos futuros da teoria. Em vista deste último objectivo, é
mais frutuoso considerar todo o problema de maneira inteiramente diferente,
explorando com mais pormenor as implicações da analogia muito genérica de
Lévi-Strauss, segundo a qual a cultura é como uma linguagem.
Quanto aos objectivos desta discussão, é possível distinguir três aspectos do
comportamento humano manifesto:
1)
actividades biológicas naturais do corpo humano: respiração, pulsações
cardíacas, processo metabólico, e assim por diante;
2)
acções técnicas, que servem para alterar as condições do mundo físico
exterior: escavar um buraco no solo, cozer um ovo;
3)
acções expressivas, que ou nos dizem simplesmente alguma coisa acerca do
estado do mundo tal como é, ou têm a pretensão de o transformar por meio de
processos metafísicos.
As acções expressivas, neste último sentido, incluem enunciações verbais comuns,
mas também gestos como a inclinação da cabeça, os esgares e os movimentos de
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agitar os braços, e ainda acções «simbólicas» sensíveis, como usar um uniforme,
subir a um palco ou colocar a aliança de noivado no dedo.
Analisado deste modo, o comportamento é «objectivo»; pode ser ponderado e
descrito por um observador externo; mas, do ponto de vista dos protagonistas, o
comportamento continua a ser também «subjectivo». Tenho pensamentos
conscientes e tenho a impressão de que as minhas acções manifestas, ou pelo
menos a maior parte das que entram nas categorias 2) e 3), são, de um modo geral,
geradas por esses pensamentos. Além disso, percepciono o mundo tal como ele é
exteriormente, incluindo aqui o comportamento dos outros seres humanos, como
um modelo de «pensamentos conscientes no espírito».
A natureza dos «pensamentos conscientes» e a sua relação com as coisas do
mundo exterior e com as acções manifestas do pensador-actor, para deixarmos de
lado a relação entre pensamento consciente e pensamento inconsciente, é um tema
muito amplo, que abrange grande parte da filosofia, da psicologia, da fisiologia e da
linguística; mas o ponto de maior importância imediata é aqui o facto de as
discussões antropológicas acerca da cultura — discussões que se desenrolaram a
partir da definição de Tylor de 1871 e que foram examinadas na primeira parte
deste ensaio— implicarem certos pressupostos acerca da relação entre actividade
física e mental.
Conhecimentos, crenças... moralidade, direito... parecem, todos estes elementos,
pertencer ao campo dos «pensamentos conscientes do espírito», que se
manifestam, ou podem manifestar, em acções humanas individuais
conscientemente controladas. ‘Arte e ‘costumes são ambos termos muito mais
gerais, como o são também ‘capacidades e ‘hábitos , o que de novo faz supor que
Tylor teria imaginado o seu «homem enquanto membro da sociedade» como um
indivíduo humano que sabia o que fazia e era capaz de controlar as suas próprias
acções de maneira a adaptá-las às suas intenções conscientes culturalmente
induzidas.
Hoje em dia tornou-se evidente que as motivações inconscientes do tipo postulado
por Freud e os reflexos condicionados do tipo demonstrado pelos behaviouristas
desempenham, no conjunto da acção humana, um papel muito mais importante do
que Tylor poderia ter imaginado, e tudo isto nos põe o problema de saber até que
ponto será necessário pôr em causa a concepção simplista segundo a qual a
cultura se refere apenas às intenções racionais conscientes dos indivíduos
humanos.
Se a cultura está realmente «no espírito», manifesta-se enquanto actividade de
cérebros humanos individuais, e possui também uma base bioquímica. Mas, neste
ponto, uma das grandes dificuldades deve-se ao facto de, na concepção de Tylor e
em todas as suas variantes subsequentes, a especificidade cultural não ser apenas
uma característica dos indivíduos, como também da sociedade a que eles
pertencem. As sociedades diferem enquanto conjuntos culturais porque os
indivíduos que as integram têm diferentes culturas interiorizadas «nos seus
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espíritos», e estas culturas interiorizadas são consideradas como a simples soma
de uma lista de componentes mentais separáveis. Ao rejeitarem este ponto de vista,
os antropólogos de orientação sociológica das gerações mais recentes, incluindo
tanto os funcionalistas como os marxistas, foram buscar a Durkheim a ideia de que
a sociedade é essencialmente exterior ao indivíduo; é uma rede de relações
interpessoais. Contudo, na esteira de Tylor e dos seus sucessores boasianos,
alguns mostram-se ainda inclinados a considerar a cultura como um fenómeno
sobretudo mental, e isso acabou por levar à concepção paradoxal de que a cultura
é a expressão do pensamento de uma colectividade, a consciência colectiva.
Durkheim e os seus seguidores exploraram as implicações desta linha de
pensamento atingindo um elevado grau de elaboração, mas os argumentos que
apresentam acerca de um «espírito de grupo» actuante só podem sustentar-se
supondo-se que os membros singulares do grupo em questão são determináveis
enquanto indivíduos, e o que está em causa aqui é um conjunto de ideias e de
processos mentais radicados nos cérebros de todos os indivíduos em questão. Os
desenvolvimentos mais recentes desta noção, operados por Lévi-Strauss, e onde a
consciência colectiva se transforma no «espírito humano» (o esprit humain),
pertencem a uma ordem de ideias completamente diferente.
O esquema de Durkheim era funcionalista; pressupunha que a sociedade humana
estivesse segmentada em unidades distintas, manifestando-se cada uma delas
numa cultura também distinta, e que uma consciência colectiva particular
caracterizasse todos os indivíduos membros de cada uma dessas culturas. Pelo
contrário, Lévi-Strauss é um universalista. Trata as descontinuidades referidas
pelos etnólogos entre uma e outra cultura como se pertencessem a uma ordem
mais de ideias que de factos. Mas isso implica que o que ele sustenta ser
característico do «espírito humano» se deve aplicar a qualquer indivíduo humano,
em qualquer parte da Terra. E aqui acaba por se ver colocado numa posição muito
difícil.
A ideia de «cultura» começou a sua carreira em contraposição binária à de
«natureza». Nos termos da tríade acima referida, a «cultura», do ponto de vista dos
observadores, parecia referir-se às acções humanas susceptíveis de controlo, do
tipo 2) e 3), em contraposição às actividades biológicas incontroláveis, do tipo 1).
Do ponto de vista dos actores, estas acções têm o seu complemento nas operações
intelectuais «do espírito», e é claro que a referência de Tylor ao «conhecimento»,
às «crenças», etc., pressupõe uma separação dualista entre o espírito como facto
cultural e o cérebro como facto natural. Tal como diferentes cérebros podem
aprender coisas diferentes e possuir conhecimentos e crenças diferentes, assim
também, apesar de os cérebros humanos serem sempre idênticos, a cultura dos
indivíduos pode revestir formas muito diversas. Mas a expressão ‘o espírito humano
faz-nos pensar em algo diferente da matéria bioquímica cerebral comum a todos os
indivíduos humanos. E certamente possível imaginar que esse espírito universal
possua um «conhecimento» e «crenças» extremamente abstractos, mas cada uma
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dessas qualidades teria de ser, então, inata, em vez de adquirida, e assim a
distinção original entre natureza e cultura deixaria de ter sentido.
No entanto, deixemos por agora este problema e suponhamos que os aspectos
técnicos e expressivos do comportamento humano possam ser distinguidos, sem
excessivas dificuldades, dos aspectos naturais biológicos, e que, em sentido lato,
seja às consequências sobre «o mundo» destas acções técnicas e expressivas que
a antropologia se refere, quando fala de cultura no sentido tyloriano.
Em que sentido tais fenómenos podem realmente ser comparados à linguagem?
Ao nível mais objectivo, a linguagem falada é um conjunto de sons estruturados,
sobrepostos à respiração humana. Os modelos são codificados e, graças aos
estudos estruturalistas de fonologia que têm vindo a desenvolver-se de há quase
um século a esta parte, temos aprendido muito acerca do modo pelo qual esses
códigos operam. Particularmente significativas são as descobertas de Jakobson
acerca dos traços distintivos. O significado é transmitido através de uma
discriminação, mas a variedade das discriminações deste tipo, ao nível fonológico,
é relativamente restrita, comparada com o número quase infinito de sons
distinguíveis que a voz humana pode gerar ao nível fonético. Assim, na análise de
Jackobson, os sons que em inglês são indicados pelas letras p, b, t, d, k, g são
codificados, em primeiro lugar, como consoantes, por oposição a vogais; em
segundo lugar, como consoantes surdas opostas a consoantes sonoras (p, t, k/b, d,
g), e, finalmente, como labiais, dentais e guturais (p/b, t/d, k/g). Os traços distintivos
deste tipo não têm qualquer significado em si próprios, mas são portadores de um
significado potencial. Quem fala inglês reconhece que a palavra cat ‘gato é
diferente da palavra god ‘deus , com base na seguinte sequência selectiva: C(K), G,
T, D opõem-se a A, O; K e G opõem-se a T e D; K opõe-se a G, T opõe-se a D.
A este nível, todas as línguas parecem ser essencialmente idênticas. Mas a
emissão de uma frase não consiste simplesmente numa soma sequencial de
elementos fonéticos contrastantes (fonemas) e de elementos morfológicos
(morfemas); é uma construção gramatical complexa, que transmite um significado
por meio de ordenamento dos sons, das palavras e das entoações. O problema dos
universais linguísticos encontra-se ainda em aberto. As asserções acerca das
regras universais da sintaxe, que Chomsky expôs pela primeira vez em Syntactic
Structures [1957], têm sido repetidamente sujeitas a reexame, e os linguistas
continuam a exprimir desacordos profundos tanto no que se refere à existência real
de princípios gramaticais universais, como no que se refere à natureza desses
princípios. No entanto, no decorrer deste debate, que se prolonga há vinte anos,
alguns pontos se tornaram suficientemente claros:
1) As crianças não aprendem a falar através de um simples processo de
estímulo-reacção-reforço, do tipo postulado pelos modelos simples que os
behaviouristas aplicam à psicologia humana. Parecem possuir desde o início uma
capacidade transformacional: ou seja, tendo aprendido a usar uma frase simples
que funciona operacionalmente, mostram-se capazes de formar, por analogia,
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novas frases com a mesma estrutura, sem que, na realidade, essas novas formas
tenham que lhes ser ensinadas. Esta capacidade parece implicar que o cérebro
humano infantil dispõe de um certo tipo de compreensão inata dos princípios
gramaticais.
2) Um adulto, dispondo da competência que lhe permite falar uma língua, é
imediatamente capaz de discernir uma emissão verbal que tenha sentido, de uma
outra destituída dele, ainda que as duas expressões estejam superficialmente
ordenadas do mesmo modo: O gato estava sentado na almofada possui sentido; A
almofada está sentada no gato não o tem. Apesar de um esforço enorme, os
linguistas ainda não conseguiram produzir uma descrição geral destes fenómenos
em termos que possam ser reflectidos neste ou naquele processo plausível de
mecanismo cerebral.
3) A análise da linguagem por parte dos linguistas especializados tem tido
tendência a concentrar-se nos aspectos sequenciais (diacrónicos), lineares,
sintagmáticos e metonímicos da emissão verbal. O facto é compreensível, uma vez
que os aspectos do discurso, que em música corresponderiam à melodia, são
predominantes no discurso racional analítico, e os linguistas têm-se interessado
particularmente pelo problema de saber como é que as emissões discursivas
chegam a adquirir um sentido racional. Mas, paralelamente, os linguistas têm, até
hoje, prestado menos atenção aos aspectos sincrónicos, simbólicos,
paradigmáticos e metafóricos do discurso, onde o sentido se transmite através de
um processo mais de síntese que de análise. A metáfora, no discurso, corresponde
à harmonia na música e é proeminente, em particular, no discurso poético e nos
usos mágico-religiosos da linguagem.
Tratando a linguagem como um canal de comunicação essencialmente linear e
diacrónico, os linguistas puderam estabelecer com segurança que é sempre
possível segmentar a articulação de um discurso nas suas partes constituintes —
fonemas, morfemas, proposições, frases... Quando o discurso se torna escrita, os
modelos resultantes são sempre sequências lineares constituídas por elementos
segmentáveis. Neste ponto, o universo dos linguistas é muito semelhante ao dos
antropólogos culturalistas da escola boasiana, que consideram a totalidade cultural
como a simples soma de um conjunto de componentes parciais, susceptíveis de
serem registadas isoladamente, uma a seguir à outra. Mas, como já vimos, o
fraccionamento da cultura levanta um problema complexo.
Se a cultura comunica, fá-lo através do aparelho sensorial do indivíduo humano,
que é o receptor das «mensagens» que a cultura transmite. Este aparelho sensorial
é, por sua vez, extremamente complexo. Geralmente, consideramos os sentidos
como entidades separadas — vemos pelos olhos, ouvimos pelos ouvidos,
cheiramos pelo nariz, sentimos o gosto pela língua, tacteamos através da pele... —.
mas, de facto, os diversos sentidos são interdependentes e intermutáveis. Não só é
possível aprender a escrever o que se ouve e ler em voz alta o que se vê, como
também o surdo pode aprender a «ouvir» com os olhos e o cego a «ler» com o
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tacto, enquanto um pianista transpõe directamente as imagens visuais da partitura
em movimentos tácteis dos dedos. Mas, quando nos voltamos para o problema da
segmentação, os diversos sentidos têm de ser distinguidos. As imagens visuais
tendem a individualizar-se como «coisas» separadas. Se o fazemos
«naturalmente», ou apenas em virtude do modo como nos servimos da linguagem
para descrever coisas separáveis, é uma questão que filósofos, cientistas e
psicólogos continuarão a discutir por muito tempo, mas é um dado imediato que
podemos distinguir as imagens visuais, como na realidade acontece. O mesmo é
válido, em grande parte, para os sons. As sequências de sons são reconhecidas
como «discurso» (ou, mais discutivelmente, como «música») quando temos a
sensação de que se encontram ordenadas, o que implica uma capacidade de
subdividir a totalidade nos segmentos que a compõem e de reconhecer como
estruturado o conjunto desses segmentos.
O tacto é também comparável à vista e ao som. Se fizer festas a um gato no escuro,
posso, sem o auxílio de qualquer outro sentido, distinguir os seus limites em termos
de espaço, distinguir o gato do que não é gato. Mas existem outros sentidos onde a
ambiguidade é muito maior. Captamos continuamente os odores do mundo exterior
sem intenção consciente de o fazermos, e esses odores criam uma «atmosfera»
local que desempenha um papel muito importante no fornecimento das informações
acerca do lugar onde estamos e do modo como nos devemos comportar.
Trata-se de um exemplo importante e pertinente, porque demonstra que não é
necessário que um sistema portador de mensagens seja linear e fraccionável para
ser capaz de transmitir informação. Os odores atmosféricos são combinações
sintéticas que produzem sincronicamente uma reacção sensorial, como um acorde
musical complexo, mais que um modelo diacrónico e linear de melodia. O olfacto é,
portanto, algo muito diferente da simples soma de um conjunto de partes: não é, na
sua essência, subdivisível. O mesmo se aplica ao gosto e às várias sensações
globais do corpo. Embora de modo bastante vago, seja possível o reconhecimento
de certas diferenças qualitativas, é impossível ao indivíduo comum, sem uma
aprendizagem muito especial, distinguir contornos precisos, e as «diversas»
sensações diluem-se umas nas outras.
Tudo isto implica que a analogia «a cultura comunica como uma linguagem» deva
ser seriamente corrigida. Embora o discurso de tipo racional comum use elementos
paralinguísticos como a acentuação e a entoação, mais sintéticos que analíticos, as
características da codificação verbal dependem, na sua maioria, do facto de o fluxo
de sons verbais poder ser subdividido em elementos. A analogia «cultura =
linguagem» sugere assim que a cultura, de um modo geral, é igualmente
segmentável, e que a codificação das «mensagens» culturais é construída a partir
da comunicação dos «elementos culturais» resultantes. Mas a distinção que
acabámos de fazer entre sensações segmentáveis e não-segmentáveis sugere que
a segmentabilidade da cultura, em termos gerais, é qualquer coisa muito menos
simples do que as convenções antropológicas habituais e a analogia linguística
podem fazer pensar.
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A cultura é directamente segmentável (e, portanto, imediatamente codificável) na
medida em que «existe» no espírito sob a forma de conceitos verbais; uma grande
parte da cultura não é directamente segmentável (nem, portanto, imediatamente
codificável), uma vez que se manifesta sob a forma de coisas e acções no mundo.
Mas a concepção da cultura como existindo no «espírito humano» está em relação
dialéctica com as manifestações da cultura «no mundo». As categorias que o
indivíduo adquire em resultado da sua educação — entendendo-se aqui por
educação o processo de socialização no seu sentido mais lato — fornecem-lhe um
meio de introduzir ordem no seu universo local. Através dessas categorias Eu
aprendo a conhecer que sou Eu em contraposição ao Outro, e é assim que aprendo
também onde me encontro Eu socialmente, além de territorialmente. Este sentido
de ordem depende da discriminação; a categoria A deve ser percebida como
distinta da categoria B, não pode existir qualquer ambiguidade ou esbatimento de
contornos. Ao nível dos conceitos do espírito, esta forma de distinção apresenta-se
automaticamente assim que começamos a representar os conceitos por meio de
palavras, mas, como já vimos, a discriminação, ao nível das sensações, é, no
melhor dos casos, imperfeita e, no pior, impossível.
4.2. Tabus e «ritos de passagem» como instrumentos de segmentação
cultural
A resposta cultural à ambiguidade da sensação foi, universalmente, a imposição de
tabus: as ambiguidades da experiência sensorial são interditas e excluídas do
exame consciente. Por reacção dialéctica a esta repressão formal, essas mesmas
ambiguidades da sensação constituem o núcleo da polarização primária do
interesse mágico-religioso e estético.
Este facto de ordem muito geral tem um peso considerável na codificação do
simbolismo. Tal pode ser ilustrado através de um exemplo concreto. Não é
necessário um grande conhecimento etnográfico para compreender como toda e
qualquer coisa relacionada com a sexualidade é susceptível de se tornar ponto de
incidência de um tabu. Trata-se de algo coerente com o facto de a experiência
sensorial mais intensa, que se pode deparar a qualquer indivíduo normal, se situar
no terreno das relações sexuais. Aqui, não só os elementos sensoriais não são
segmentáveis, o que torna esta experiência um protótipo de confusão, como
também o contexto que a define faz com que a distinção categorial primária
macho-fêmea se desagregue, tornando-se evidente que a díade macho/fêmea é
uma unidade.
Um outro ponto de incidência dos tabus, quase igualmente intenso e universal, diz
respeito aos limites ambíguos entre a vida e a morte: a ordem exige que o corpo
vivo e o cadáver sejam percebidos como «coisas» completamente separadas: a
realidade desagradável que faz com que o ser vivo se torne morto deve, por isso,
ser reprimida. Mas o que, no plano objectivo, diferencia o macho da fêmea é o falo
masculino, e o que, no plano metafísico, diferencia o vivo do morto é o conceito de
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«vida» como uma coisa em si própria. E é deste modo que encontramos em todo o
mundo, quase universalmente, a equivalência simbólica: «falo masculino» = «vida».
Mesmo quando a «coisa» que é objecto do tabu aflora de novo à superfície deste
modo, o mecanismo do tabu continua a actuar e o «sentido» é negado. Assim, na
índia clássica, o lingam e o yoni eram representações esculpidas, sem
ambiguidade, dos órgãos genitais humanos, femininos e masculinos, e tratados
como símbolos directos de Siva, dispensador de vida, e das suas esposas. Mas,
nos templos hindus modernos, a semelhança anatómica do lingam esbateu-se de
tal maneira que hoje um brâmane ortodoxo, de inclinações puritanas, pode negar
que o lingam, enquanto símbolo de iva, possua qualquer conoação sexual Através
de transformações ascéticas análogas, o ankh egípcio, que era um símbolo
explicitamente fálico da vida, simplificou-se, transformando-se no crucifixo cristão,
mas tende ainda a recordar aos devotos que, para os crentes, morte = vida =
reunião com Deus.
Esta aparente digressão pelo tema do tabu tem uma relação directa com o tema
anteriormente abordado.
Se regressarmos à tríade do S 4.1, onde, no comportamento humano, se
distinguiam as actividades natural, técnica e expressiva, depreende-se do que
dissemos que a actividade técnica, essencialmente racional nos seus objectivos, se
acha ordenada como um discurso racional. Pode ser descrita como uma sequência
segmentável de ocorrências, onde a uma coisa se segue outra. Mas a actividade
expressiva, que abarca todos esses aspectos da cultura que o antropólogo se sente
inclinado a rotular como mágico-religiosos ou estéticos, contém uma quantidade
apreciável de material simbólico e metafórico, que, não o sendo imediatamente,
acaba por nos surgir como segmentável, também ele, em resultado do
funcionamento das regras do tabu.
Só recentemente os antropólogos começaram a compreender que os tabus têm
este tipo de relações com a «codificabilidade» dos fenómenos culturais, embora
alguns elementos desta maneira de ver estivessem já implícitos numa obra clássica
da teoria antropológica como Les Rites de Passage [1909] de Van Gennep.
O livro de Van Gennep ocupa-se da estrutura do processo social nas sequências
lineares de uma vasta classe de cerimoniais, incluindo uma quantidade substancial
de todos os procedimentos rituais em todos OS contextos culturais de todas as
partes do mundo. Mais especificamente, a categoria rites de passage compreende
todas as ocasiões em que um indivíduo é formalmente iniciado num novo estatuto
social (por exemplo, ritos associados ao nascimento, à puberdade, ao casamento, à
morte, à cura de uma doença, ao luto, ao acesso a cargos importantes, às
cerimónias de graduação, à iniciação numa ordem religiosa, etc.) e também todas
as ocasiões que marcam a descontinuidade social no fluxo do tempo (por exemplo,
aniversários de toda a espécie, celebrações de Ano Novo, ciclos anuais de
festividades religiosas, o domingo como fim de uma semana e começo de outra...)
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A característica comum de todos estes ritos é afirmarem a existência de uma
descontinuidade no tempo social. O fluxo do tempo na natureza biofísica é
contínuo; não existem transformações naturais nas estações do ano ou no processo
de maturação e envelhecimento do indivíduo; mas trata-se de uma necessidade da
vida social ordenada que o tempo apareça como segmentado, de tal maneira que
uma coisa possa acontecer a seguir a outra, segundo uma sequência tecnológica
definida em termos lógicos determinados. Igualmente, o ordenamento do mundo
social exige que o número das categorias em que se inserem as pessoas e as
estações do ano tenha que ser estritamente limitado. Na Europa ocidental actual, o
indivíduo é legal e social-mente ou uma criança, ou um rapaz, ou um adolescente,
ou um adulto ou um reformado; os casados e os solteiros têm responsabilidades
legais diferentes; os diplomas e outros títulos qualificados implicam recompensas
económicas e sociais imediatas ou potenciais. Por isso, uma mudança de estatuto é
importante em sentido prático. A informação acerca da posição que alguém ocupa
deve ser comunicada a todos e a cada um dos membros do conjunto do mundo
social. A distância entre uma e outra posição social deve estar bem marcada e não
ser ambígua.
Com uma perspicácia notável, Van Gennep, na base de testemunhos empíricos
simples, conseguiu compreender que todos os rites de passage são constituídos
por sequências, encaixadas umas nas outras, possuindo, no essencial, a mesma
estrutura trifásica. Na fase 1), que marca o fim de um período de tempo social, o
iniciado (ou a iniciada) é desligado do seu antigo papel; na fase 3), que assinala o
início de um novo período de tempo social, o iniciado é analogamente adstrito ao
desempenho de um novo papel. A fase 2), que serve para dissociar a fase 1) da
fase é um período de tabu, durante o qual o indivíduo não desempenha qualquer
papel normal na sociedade e em que se vê habitualmente isolado fisicamente das
condições normais da existência. Facto característico, a fase 2) é tratada «como
se» estivesse fora do tempo. O efeito destes rituais é, apesar da natureza contínua
dos processos de desenvolvimento biológico, fazer com que o fluxo do tempo social
apareça como segmentado e descontínuo. O processo ritual tem assim o objectivo
de tornar codificáveis os dados culturais. Aqui, é muito estreita a analogia com as
durações temporais segmentadas do discurso corrente e da melodia musical.
4. 3.
A antropologia estrutural de Lévi-Strauss
As ideias discutidas até este momento encontram-se na sua maior parte na
antropologia estrutural de Lévi-Strauss, embora ele tenha abordado os problemas
fundamentais, correspondentes, a um nível muito mais abstracto. Por volta de 1945
e até um pouco mais tarde, o esforço de Lévi-Strauss era claramente o de tentar
descobrir fenómenos que, dentro do campo geral da cultura (como era intenção dos
boasianos), pudessem ser tomados como correspondentes aos traços distintivos de
Jakobson em fonologia. O modo através do qual Lévi-Strauss abordava, nessa
altura, as oposições binárias cultural natureza, descendência patrilinear /
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descendência matrilinear, residência patrilocal / residência matrilocal, indica
decididamente como ele pensava que essas «ideias do espírito» poderiam vir a
mostrar-se dotadas de um valor analítico comparável ao das oposições
consoante/vogal, sonoro/surdo, grave/agudo, etc., no estilo de Jakobson na
fonologia.
No sistema de Jakobson, como se torna claro pelos exemplos acima referidos, um
traço distintivo é uma relação diádica X/Y, onde X e Y são ambos relações de
discriminação. Por outras palavras, na análise dos traços distintivos, fala-se de
«relações entre relações» e procuram-se mais os universais correspondentes do
que as características particulares de qualquer língua ou conjunto de línguas
particular.
Seguindo este modelo, Lévi-Strauss sustentou que o «átomo de parentesco», o
alicerce a partir do qual se constroem todos os sistemas de parentesco, é
constituído por uma característica distintiva X/Y, onde X exprime a oposição entre
irmão/irmã e marido/mulher, e Y a oposição entre irmão da mãe / filho e pai da irmã
/ filho. A tese é a de que um protótipo para X/Y deve existir em todas as sociedades
humanas, mas podendo assumir apenas um número muito limitado de formas
possíveis. As diversas combinações das permutas possíveis proporcionam uma
estrutura lógica, no interior da qual é possível adaptarmos todas as «estruturas
elementares» teoricamente imagináveis. Deste ponto de vista, a proibição do
incesto, que Lévi-Strauss vê como pedra angular universal da sociedade humana, é
um elemento da estrutura lógica das convenções culturais. Com o objectivo de
desenvolver certas ideias referentes às relações de parentesco, a categoria irmã
deve ser distinguida da categoria mulher. A irmã é uma de nós; a mulher é uma
deles. A regra do incesto tem, portanto, a dupla consequência de tornar o universo
social segmentado em grupos sociais, nós e eles, e estes grupos isolados
segmentados são, através do matrimónio, ligados entre si por redes
intercomunicantes.
Uma característica aparentemente muito estranha deste tipo de aproximação do
problema do parentesco é que os «tipos» de sistemas considerados são
construções lógicas no espírito do investigador e a questão de saber se e com que
frequência uma destas construções particulares se encontra, de facto, na
documentação empírica da etnografia mundial, é tratada como um problema
relativamente secundário. Fora do círculo restrito dos discípulos directos de
Lévi-Strauss, são poucos os antropólogos antiempiristas que vão tão longe nesta
matéria, apesar de ter sido largamente adoptada por numerosos investigadores a
ideia de que a qualidade de uma relação de parentesco (por exemplo, irmão/irmã)
só possa ser apreciada por contraposição a uma outra relação de parentesco (por
exemplo, marido/mulher), de modo que as duas relações tomadas em conjunto
formem uma díade binária.
A aplicação feita por Lévi-Strauss da análise das características distintivas ao
estudo do mito tornou-se conhecida de um público mais vasto, mas é igualmente
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abstracta. Interessa-lhe, neste campo, mais o universal que o particular, e tanto as
permutas estruturais possíveis, cuja ocorrência não passa exactamente de uma
possibilidade, como as que realmente se verificam.
Se considerarmos apenas o conteúdo, o significado de qualquer história mítica é
estritamente local. A este nível superficial, pode ser directa e conscientemente
compreendido tanto pelo narrador do conto como pelos seus auditores. Mas
Lévi-Strauss postula também a existência, a um nível mais profundo, de um
significado inconsciente, mais universal que local, e que se radica nas estruturas
lógicas da mente humana enquanto tal, mais do que nas crenças e conceitos
específicos de qualquer cultura local.
Deste ponto de vista, os mitos dos povos concretos acabam por ser considerados
como transformações de um número muito limitado de temas fundamentais. Os
quatro volumes das Mythologiques [1964-71] são dedicados à explicitação das
regras de transformação mais relevantes e também, embora de modo menos
convincente e com menor clareza, à decifração da mensagem: que «diz» a
mitologia ao nível mais profundo.
A conclusão de Lévi-Strauss parece ser assim a de que, no centro de todos os
sistemas mitológicos, se encontra o mesmo dilema que veio sendo reiterado ao
longo de todo este artigo, ou seja, a escolha existencial entre a experiência do
mundo como contínuo e a sua percepção como descontínuo. Se o Eu se define a si
próprio como separado do outro e leva essa separação até ao extremo das suas
consequências lógicas, então não existe nem comunicação, nem cultura, nem
sociedade. Neste caso, porém, o Eu não pode sobreviver. Por outro lado, se o Eu
se definir como inseparável do outro, levando essa inseparabilidade até ao extremo
das suas consequências lógicas, então também o Eu acabará por se fundir,
perdendo-se, numa confusão incestuosa com a mãe/irmã. Daí a tese abstracta
formulada por Lévi-Strauss no seu ensaio acerca do parentesco: a perpetuação da
sociedade exige que a convenção cultural determine que a mãe/irmã nunca se
torne esposa e que o pai nunca seja o irmão da mãe. A existência cultural exige,
deste modo, a manutenção de um equilíbrio precário entre uma sobrevalorização
do parentesco-comunicação (que conduziria à fusão de categorias que têm que ser
necessariamente separadas: mãe/irmã = mulher) e uma desvalorização do
parentesco-comunicação (que levaria o Eu individual a transformar-se num
autóctone isolado incapaz de estabelecer relações com quem quer que seja). A
solução do dilema encontra-se na instituição do matrimónio que usa as mulheres
como expressão de aliança (quer dizer, como elo de comunicação) entre nós e os
outros. Supõe-se, assim, que o mito opera precisamente esta analogia entre a
comunicação através do uso da linguagem e a comunicação através das relações
sexuais e outras formas de aliança. Por isso, no mundo da mitologia, a vida social
aparece-nos como a procura sem fim de um estado de equilíbrio entre o formular de
perguntas sem resposta (não conseguindo segmentar a experiência de um modo
racional) e a impossibilidade de formular as perguntas que poderiam resolver o
dilema do isolamento individual.
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À primeira vista, esta abordagem radicalmente abstracta, que trata a cultura
essencialmente como um fenómeno do espírito, mais do que como um conjunto de
coisas e acções no mundo exterior, e que «explica» as peculiaridades da cultura
em termos de soluções de problemas de lógica, mais do que em termos de
soluções de problemas de adaptação ecológica ou de funcionamento dos sistemas
sociais, parece ter muito pouco em comum com qualquer tipo possível de análise
cultural evolucionista, funcionalista, marxista ou dos «traços culturais», a cuja
discussão procedemos na primeira parte deste ensaio. E, na verdade, muitos dos
colegas de Lévi-Strauss com uma orientação mais empírica, tanto na Europa, como
na América ou outros lugares, têm a impressão de que o estruturalismo é um beco
sem saída, que não trouxe qualquer contributo válido para a compreensão geral
dos fenómenos culturais.
A falta de consenso a este propósito deve-se também, ulteriormente, ao facto de a
recensão que o próprio Lévi-Strauss apresentou acerca do seu trabalho tender
muitas vezes a fazer com que o conjunto do seu empreendimento estruturalista
pareça inutilmente mistificador. Assim, declarou recentemente que a conclusão da
sua investigação é a de que «toda a mitologia acaba por equivaler a colocar e
resolver um problema de comunicação; e que os mecanismos do pensamento
mítico, deparando com circuitos lógicos tão complexos que não é possível fazê-los
funcionar em conjunto, consistem em ligar e desligar interruptores» [1974, p. 309].
Esta visão do espírito humano como um sobre-humano e incorpóreo engenheiro
electrónico tem poucos atractivos para os empiristas do mundo académico
anglo-saxónico, mas mesmo aqueles que não concordam com tão grandiosas
generalizações universalistas podem, por vezes, descobrir contribuições válidas no
método de Lévi-Strauss.
A sua fórmula, segundo a qual a cultura consiste em «mensagens», devendo por
isso os sistemas culturais ser considerados como redes de comunicação, é apenas,
afinal de contas, uma transformação original da ideia bastante mais familiar de que
os sistemas sociais devem ser considerados como redes de relações de poder, que
se expressam na troca de bens e serviços. Onde Lévi-Strauss fala de
«mensagens», Barthes e outros falam de «transacções», mas frequentemente
parecem estar a tratar de diferentes aspectos de um mesmo fenómeno. A opinião
de que o pensamento humano é essencialmente binário, o que equivale a afirmar
que reconhecemos o que é uma categoria caracterizando aquilo que ela não é, de
modo a que a «coisa» e o seu oposto formem um átomo de pensamento, tem uma
história muito longa que remonta aos filósofos pré-socráticos e, apesar de esta
análise dos sistemas binários, efectuada por Lévi-Strauss, tender a ser algo
estática, a sua ideia de base está muito próxima do dinamismo dialéctico que os
marxistas foram buscar a Hegel. E é por isso que uma antropologia marxista
estruturalista não é, com efeito, essa contradição nos termos que pode começar por
parecer.
A análise estruturalista à maneira de Lévi-Strauss tende a minimizar a pluralidade
das culturas. Interessa-se pela cultura enquanto tal, ou seja, enquanto atributo
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universal da humanidade. Um modelo de cultura diferencia-se de outro apenas
enquanto variável de um mesmo processo de transformação; os limites entre uma
cultura e outra existem apenas no espírito dos homens. Também neste ponto, os
estruturalistas e os marxistas parecem convergir. Mas onde os marxistas vêem as
diferenças da consciência social geradas pela diferença cultural enquanto
«determinada» indirectamente pela estrutura fundamental das relações
económicas, os estruturalistas, seguindo o modelo linguístico de Saussure, tendem
a considerar os pormenores concretos da diferença cultural como arbitrários (o
bricoleur de Lévi-Strauss).
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5.
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Conclusão
A inutilidade do conceito de cultura e da noção dele derivada de culturas foi várias
vezes referida ao longo deste artigo. A um nível prático, os investigadores
académicos e profissionais que se definem como antropólogos «culturais»
aplicam-se, mais ou menos, ao mesmo tipo de actividades que ocupam os que
preferem definir-se como antropólogos «sociais»; mas uns e outros separam-se ao
nível da teoria, ‘Ciência da cultura não é mais que um outro nome para ‘ciência da
sociedade ; a diferença na forma verbal do conceito corresponde, porém, a uma
orientação completamente diferente perante o material a estudar. Além disso, como
já vimos, aqueles que enfatizam o uso do termo ‘cultura , enquanto tal, são levados
a usá-lo de modos também completamente diferentes: num dos extremos, uma
‘cultura pode significar uma colecção de artefactos materiais numa vitrina de um
museu arqueológico; noutro extremo, ‘cultura é um conjunto permutável de
relações inteiramente abstractas resultantes das mediações lógicas operadas pelo
antropólogo que trabalha a sós no seu gabinete privado. Mas para alguns outros
antropólogos, ‘cultura será, pelo contrário, o comportamento estruturado
observável de homens que vivem em grupos sociais, incluído tudo o mais que
esteja em relação com esse comportamento.
As ambiguidades e as confusões existiram desde o início. A ideia prevalecente, em
meados do século XIX, considerava que a cultura era o que resultava da educação
(do cultivo do espírito), contrapondo-se ao que era natural e inato. Mas, como os
filósofos tão bem sabem, nunca temos acesso directo ao conteúdo dos espíritos
dos outros homens. Por isso, e apesar de a cultura ser com razão considerada
como possuindo uma componente mental muito vasta, uma boa parte do debate a
seu respeito concentrou-se nas manifestações de cultura verificáveis no mundo
material: a modificação do ambiente físico por parte do homem, os seus produtos,
os seus comportamentos habituais, as suas estruturas de organização económica,
política, jurídica e religiosa, os rituais, as cerimónias mágicas, as histórias
verbalmente comunica-das, os mitos. A certo nível, os antropólogos continuaram a
falar como se a cultura fosse algo de interno ao ser humano individual, e, portanto,
inacessível à investigação directa; a outro nível, procederam como se a cultura
consistisse exclusivamente em coisas que é possível contar e expor nas vitrinas
dos museus ou registar em filmes ou numa fita magnética.
O modo como os antropólogos escreveram acerca da segmentabilidade da cultura,
ou seja, acerca da existência de culturas no plural, está em estreita conexão com as
diferenças do acento colocado sobre os aspectos mentais ou materiais do objecto.
Para os racionalistas, as diferenças culturais são uma. questão de crença: nós
somos diferentes deles. Tais diferenças são reflexos transitórios da ideologia, e não
podem ser medidos. Mas, para os empiristas, a diferença cultural é um facto
susceptível de ser descoberto, reconhecível segundo as diferentes regras formais
ou mensurável através de processos estatísticos: a tribo X faz isto, a tribo Y aquilo.
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Aqui, fica-se com a impressão de que as culturas diferem não só como ideias no
espírito, mas também como espécies na natureza.
A este propósito, deve ter-se em conta ainda um outro factor adicional, que deriva
da oposição entre as opiniões que se referem às relações entre a antropologia e a
história. Se a cultura está segmentada em culturas, quer ao nível das ideias, quer
ao dos factos empíricos, então as unidades resultantes podem ser consideradas
sincronicamente na sua distribuição territorial, ou diacronicamente como
sequências de desenvolvimento ao longo do tempo histórico. Segundo as
motivações e os interesses intelectuais do investigador, ora as culturas
coexistentes no mundo, num mesmo momento da história mundial, serão
consideradas como partes constitutivas de uma sequência histórica, ora as
culturas, cuja existência se manifesta e observa em diversos momentos da história
mundial, serão tratadas como se fossem transformações sincrónicas da mesma
estrutura padrão.
O problema torna-se ainda mais confuso pelas interferências do altruísmo. Os que,
de um modo ou de outro, amalgamam os dados antropológicos com os históricos
consideram-se invariavelmente situados no instante mais avançado do progresso;
nós somos o culminar do desenvolvimento histórico mundial. Consequentemente,
eles são, de algum modo, «subdesenvolvidos», e o altruísmo significa assim que
eles terão vantagem em se converter à «nossa» maneira de vida. Um imperialismo
cultural deste tipo é tão comum entre os antropólogos que professam opiniões
radicais de tipo marxista, como entre os que acreditam decididamente nos méritos
do capitalismo industrial do Ocidente.
Voltamos assim ao que dissemos no início. Arnold e Tylor usaram ambos a palavra
‘cultura como sinónimo de ‘civilização , mas enquanto Arnold considerava que a
civilização era atributo singular de um sector privilegiado da classe dominante do
seu país, Tylor pensava que a civilização era o que diferenciava os seres humanos
dos animais. Mas Tylor e os seus sucessores começaram, em seguida, a dividir em
fragmentos o grande bolo da humanidade e a ordenar esses fragmentos segundo
critérios de qualidade — ou oposição entre superior e inferior. Tal como os
antropólogos, os políticos do mundo de hoje continuam presas desta armadilha
intelectual.
Uma parte do problema está precisamente na excessiva importância atribuída ao
intelecto. Já dissemos, a este propósito, que o discurso racional, veiculado por
meio de palavras, frases ou equações matemáticas é linear, segmentado e
analítico, mas que o discurso poético (bem como muitos outros tipos de experiência
estética que não fazem qualquer uso de palavras) tende a ser paradigmático,
metafórico, não-segmentado e sintético. A partir de meados do século XIX, a
antropologia foi dominada por intelectuais de tendência analítica, que esperavam
poder tornar o estudo da cultura uma ciência natural análoga à física ou à química;
estes autores minimizaram constantemente os aspectos impressivos, estéticos e
sintéticos da cultura, do mesmo modo que sobrevalorizaram os seus aspectos
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segmentados, ordenados e funcionais. Mas existem aspectos da experiência
estética e sensorial que, pela sua própria natureza, não podem ser «entendidos»
no sentido racional e intelectual do termo. A maior parte dos antropólogos de
profissão ainda não é capaz de reconhecer que a cultura, entre outras coisas, é
uma obra de arte.
Na opinião do autor destas linhas, a antropologia tem ainda grandes contribuições
a prestar a outros ramos da investigação académica. O estudo da cultura não é um
ramo, em termos lógicos, isolado do conjunto do saber adquirido; funde-se com a
economia, o direito, a política, a religião, a sociologia e, sobretudo, a linguística.
Nestes campos, o conceito de cultura (ou de culturas) é, em grande medida, uma
redundância confusa, que poderíamos perfeitamente dispensar; mas existe um
outro campo, o da estética, onde os conceitos e as teorias que os antropólogos
foram desenvolvendo, ao longo dos seus debates em torno da cultura como sistema
de comunicação não-verbal, podem revelar-se particularmente importantes.
Isto significa que, actualmente, mais do que o aspecto económico, funcional ou
histórico das investigações acerca da cultura, seja o aspecto simbólico aquele que
oferece uma perspectiva mais ampla de desenvolvimento futuro e aberturas mais
prometedoras.
Neste campo, a analogia entre cultura e linguagem é certamente da maior
importância, mas a forma segundo a qual essa analogia tem sido tratada até hoje
está sujeita a numerosas restrições e reservas. Na mesma linha que os linguistas
estruturalistas, os antropólogos estruturalistas têm, até hoje, acentuado o pólo
sintagmático-metonímico-intelectual da «cultura como linguagem» e, desse ponto
de vista, sobrevalorizaram talvez demasiado os aspectos da linearidade e da
segmentação. Procuraram mais as descontinuidades que as continuidades da
cultura. Pode ser que, nos seus desenvolvimentos futuros, esta analogia se aplique
mais ao pólo paradigmático-metafórico, que inclui os aspectos mais impressivos,
não-racionais e «simbólicos» da arte. Isso implicaria que a «linguagem» na
equação «cultura = linguagem» fosse mais uma linguagem de superfície, no sentido
em que a entendem os sociolinguistas, do que a uma gramática das estruturas
profundas, à maneira de Chomsky e dos linguistas estruturalistas. Mas, antes de
um desenvolvimento assim reorientado poder vir a ter lugar, os sociolinguistas
devem abandonar os aspectos funcionalistas ingénuos da posição que os leva a
sustentar que a população mundial está segmentada em pequenos compartimentos
estanques chamados «comunidades linguísticas». Pelo menos uma coisa parece
certa: se o conceito de cultura porventura continuar a ser usado pelos
antropólogos, será no singular e não no plural. [E. L.].
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G
Da acepção singular de cultura como sinónimo de civilização, da primeira metade
do século XIX, passou-se gradualmente a identificar com cultura o estado de cada
população e a definir como traços culturais elementos como as crença s. a técnica,
os objectos de uso, o direito, a religião, a raça, os sistemas de parentesco, o
cerimonial, etc.; daí o ter-se tornado hábito falar de culturas, cuja diversidade
residia na diferenciação dos seus vários traços constitutivos. Um processo
semelhante usado para o conhecimento dos povos primitivos (cf. primitivo,
selvagem/ /bárbaro/civilizado) conduzia a um método de sistemática e classificação
que não levava em conta nem o sistema global nem a sua estrutura. Julgou-se,
sucessivamente, que um traço cultural só pudesse ter um significado na medida em
que fosse função do equilíbrio do sistema ou da estrutura dada (cf.
equilíbrio/desequilíbrio, regulação). O evolucionismo (cf. evolução), pelo contrário,
falou de cultura como estado que se realiza através de um processo de adaptação
ao ambiente na interdependência homem/natureza (cf. anthropos, natureza/cultura).
O marxismo, por sua vez, elegeu como elemento fundamental de uma cultura o
trabalho do qual se pode extrair o modelo existente e, pela aii.ílisc das contradições
que traz consigo, também o modelo precedente. Mas cultura é também
comunicação; esta é provida de um linguagem expressando-se com as actividades
humanas, com os diversos tipos de comportamento e condicionamento biológicos,
com as acções técnicas (cf. cultura material), com as enunciações verbais (cf.
língua/fala, competência/performance), com a actividade simbólica (cf. signo,
símbolo, alegoria), seja a nível consciente, seja a nível inconsciente, que fazem
parte da mente de forma inata (cf. inato/adquirido). A sequência da cultura torna-se
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linear mesmo nas suas segmentações linguísticas, enquanto se nota que os
processos de comunicação real são muitas vezes temporais (cf. tempo/
/temporalidade) e portanto descontínuos (cf. contínuo/discreto) como, por exemplo,
nos ritos (cf. rito) de passagem.
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