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roterio- a hora da estrela

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ROTEIRO – A HORA DA ESTRELA.
Narradora: A Hora da Estrela é o último romance da autora Clarisse Lispector, publicado em
1977. Clarice Lispector é um dos grandes ícones da literatura brasileira. Nascida em 10 de dezembro de
1920. No ano de 1943, publicou seu primeiro romance, era o início de uma carreira de sucesso
como escritora, que só chegou ao fim em 9 de dezembro de 1977, com o falecimento da autora.
O livro é contextualizado no Rio de Janeiro, aborta a história da protagonista Macabéa,
mergulhando num universo de encontros e desencontros vividos. A Hora da Estrela é um
romance sobre desamparo, apesar do consolo da linguagem, todos estamos estregues.
CENA 01: (BARULHO DE RÁDIO CHIANDO E MÁQUINA DE DATILOGRAFIA)
Narradora: Em um dia comum, uma moça de exterior frágil está trancada num escritório mal
iluminado. Ela está datilografando algo, um documento a ser entregue ao seu chefe. Enquanto
isso, dois funcionários fazem conferência do estoque.
Raimundo: Quantas Caixas Chegaram?
Funcionária: 400, caixas.
Pereira: Raimundo! (fale gritando).
Raimundo: Diga.
Pereira: Olha aê, aquele papel das tintas venceu hoje, faz o seguinte você transfere uma grana da
minha conta pra conta da firma, tá? E manda pagar isso, manda a Glória fazer isso!
Raimundo: unhum
Pereira: Agora escuta, que porcaria é essa? Esse documento está sujo! (tom de irritação).
Raimundo: Foi a nova datilografa, a Macabéa.
Pereira: Maca o que?
Raimundo: Béa, Macabéa.
Pereira: Isso é nome de gente?
Raimundo: O que, que você quer?! Foi a única que aceitou um salário tão baixo.
Narradora: Macabéa se aproxima, mas ela é advertida pelo senhor Raimundo.
Raimundo: Olha quanta sujeira no papel, se você continuar assim, será demitida. Lave as mãos
antes de trabalhar.
Macabéa: Desculpa o aborrecimento Senhor.
Narradora: Neste momento, sem nenhuma delicadeza, ela limpa o nariz na barra da blusa, olha o
relógio e vai para casa.
CENA: 02 (Melodia Triste)
Narradora: A moça de exterior frágil, nasceu no sertão nordestino e ficou órfã, quando tinha dois
anos de idade. Em Maceió, passou a viver com a tia, única parenta sua no mundo, que lhe dava
cascudos na cabeça. Mais tarde, elas se mudaram para a cidade do Rio de Janeiro. Após a morte
da tia, Macabéa passou a morar num quarto compartilhado com outras quatro moças.Macabéa
não tinha nenhuma diversão. Sempre acordava cedo aos domingos, pois queria ficar mais tempo
sem fazer nada.
CENA 03
Glória: Olha quem eu encontro.
Macabéa: Oi Glória, não sabia que estava aqui.
Glória: Eu estava em um encontro e percebi que você estava aqui.
Macabéa: Você não tem medo de sempre sair com homens?
Glória: Claro que não! Quantos anos você tem?
Macabéa: Fiz 19 mês passado.
Glória: Por acaso, ficou interessada naquele homem?
Macabéa: Sim, mas pela aliança deve ser casado. E eu ainda sou virgem.
Glória: Não! Olha, você é virgem porque é muito desbotada. Devia parar de comer lanche com
coca-cola. Tem que comer comida, para ficar com corpo igual o meu.
Macabéa: Ah, eu como porque é barato, mas gosto mesmo é de goiabada com queijo.
CENA 04
Narradora: A tarde Macabéa volta para o trabalho. E Glória mais uma vez, está marcando
encontros pelo telefone da empresa.
Glória: Macabéa, hoje vou sair mais cedo. Tenho um encontro, depois eu te conto os detalhes, tá
certo?
Narradora: Com um tempo depois, Macabéa decide ir falar com o Sr. Raimundo.
Macabéa: Sr. Raimundo, com licença, O Sr. Poderia me liberar amanhã para ir para o dentista...
O Sr. Sabe, dente é coisa séria!
Raimundo: Sem problemas Macabéa, ainda bem que não é hoje, a Glória
também foi para o dentista. Tudo bem, amanhã você está liberada.
Macabéa: obrigada Sr. Raimundo, muito obrigada!
CENA 05
Narradora: No dia seguinte, Macabéa passa a manhã em casa, dançando com um lençol.
Dançava e rodopiava porque se sentia L-I-V-R-E por estar sozinha. Ela se olha no espelho e vê
como noiva. Depois se veste para dar uma volta no parque com uma flor em mãos. Lá ela sem
querer atrapalha a foto do Sr. Olímpico, eles se olharam entre a chuva e se reconheceram como
dois nordestinos. Ele super gentil vai atrás dela. neste momento começa a chuva.
Olímpico: Me desculpe, senhorita, posso convidar para passear?
Macabéa: Sim.
Olímpico: E se me permite, qual é mesmo a sua graça?
Macabéa: Macabéa
Olímpico: Maca, o quê?
Macabéa: Béa
Olímpico: Me desculpe, mas até parece nome doença de pele.
Macabéa: Também acho esquisito, mas foi minha mãe que escolheu por promessa a Nossa
Senhora da Boa Morte.
Olímpico: Também no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida de honra.
Narradora: Sem saber como se passeia, eles andavam sob a chuva grossa e paravam de frente
as vitrines das lojas. Macabéa com medo do silêncio, disse ao seu recém-namorado.
Macabéa: Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Olímpico: Você não tem o que conversar não?
CENA 06
Narradora: No dia seguinte... Macabéa vai para o trabalho toda feliz, capricha no batom, e sai
toda pintada para ir trabalhar.
Glória: Veio toda pintada por que, Macabéa?
Macabéa: Ontem eu conheci um moço lá da Paraíba.
Glória: Mas qual o seu nome?
Macabéa: Não sei, eu não perguntei.
Glória: Você não perguntou o nome dele? Mas você é tonta, hein.
CENA 07
Narradora: Da terceira vez em que se encontraram não é que estava chovendo? o rapaz irritado
dispara:
Olímpico: Você só sabe mesmo é chover!
Macabéa: Desculpe. Agora me diz, qual é o seu nome?
Olímpio: Olímpico de Jesus Moreira Chaves.
Macabéa: Não entendo seu nome, o que quer dizer, Olímpico?
Olímpico: Não sei. Quer dizer, sei mais não quero dizer.
Macabéa: Não faz mal, não faz mal... A gente não precisa entender o nome.
Narradora: Lógico que ele havia mentido. Apenas era Olímpico de Jesus, sobrenome dos que
não tem pai, mentiu apenas para impressionar. Olímpico de Jesus é operário, mas se diz
“metalúrgico”. Olímpico é ambicioso, desonesto, se acha inteligente.
CENA 09
Narradora: Macabéa era na verdade uma figura medieval enquanto Olímpico de Jesus se julgava
peça-chave, dessas que abrem qualquer porta. Macabéa simplesmente não era técnica, ela era
só ela. Mas tenho que dizer Macabéa nunca recebera uma carta em sua vida.
Macabéa: Posso te pedir uma coisa?
Olímpico: Depende do que você quer.
Macabéa: Você telefona um dia pra mim lá no escritório?
Olímpico: Telefonar pra ouvir tuas besteiras?
Macabéa: O telefone do escritório só toca para chamar meu chefe e Glória.
Olímpico: Quem é Glória?
Macabéa: É uma amiga minha. Ela trabalha comigo lá no escritório. AH! Poderia me dar a sua
fotografia 3x4?
Olímpico: Tome!
CENA 10
Narradora: Enfim o que fosse acontecer, aconteceria. E por enquanto nada acontecia, os dois
não sabiam inventar acontecimentos. E ali acomodados no banco da praça, nada distinguia do
resto do nada.
Olímpico: Pois é...
Macabéa: Mas, pois é, o quê?
Olímpico: Eu só disse pois é.
Macabéa: É...mas, pois é, o quê?
Olímpico: É melhor a gente mudar de conversa, porque você não entende.
Macabéa: Entender o quê?
Olímpico: Ai meu Deus... Macabéa, porque você não me fala mais de você?
Macabéa: EU?
Olímpico: Porque esse espanto? Gente fala de gente.
Macabéa: É que eu não acho que eu sou muita gente.
Olímpico: O que você é então?
Macabéa: É que eu não sei explicar.
Olímpico: Olha, eu vou embora.
Macabéa: Porque?
Olímpico: Porque você é impossível
(levanta e Macabéa sai atrás dele).
Macabéa: Que é que eu faço para ser possível?
Olímpico: Diga o que é do teu agrado.
CENA 11
Narradora: Uma vez Macabéa disse a Olímpico, que não precisava vencer na vida e foi a única
vez que falou de si própria para ele. Ela estava habituada a esquecer de si mesma. Nunca
quebrava seus hábitos, tinha medo de inventar.
Macabéa: A rádio relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?
Olímpico: Cultura é cultura. Você também vive me encostando na parede.
Macabéa: É que muita coisa na Rádio relógio eu não entendo bem.
Olímpico: Eu não preciso de hora certa porque tenho relógio.
Narradora: Não contou que tinha roubado no mictório da fábrica. Ninguém soube, ele era um
verdadeiro técnico em roubar; não usava o relógio no pulso quando ia trabalhar.
CENA 12
Narradora: E o namoro continuava ralo. Ele falava coisas grandes, mas ela prestava atenção nas
coisas insignificantes como ela própria. Ela achava, Olímpico muito sabedor das coisas.
Olímpico: Depois que minha santa Mãe morreu, nada mais me prendia na Paraíba.
Macabéa: De que ela morreu?
Olímpico: De nada. Acabou-se com a saúde dela.
Macabéa: Você sabe se a gente pode comprar um buraco?
Olímpico: Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou, que você só faz pergunta sem
resposta?
Macabéa: Cuidado com suas preocupações, dizem que dá ferida no estômago.
Olímpico: Preocupação coisa nenhuma, pois eu sei no certo que eu vou vencer.
Macabéa: Não será somente visão?
Olímpico: Vá para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu só não digo palavrões grossos porque
você é moça donzela.
MACABÉA: Desculpe.
Narradora: Ele dizia que ela nunca tinha ouvido e uma fez acabou dizendo:
Olímpico: A cara é mais importante que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa está
sentindo. Você tem cara de quem comeu e não gostou.
Macabéa: Não sei como faz outra cara. Mas só na cara que eu sou triste porque por dentro eu
sou alegre. É bom viver né??
Olímpico: Claro!! Mas viver bem é coisa de privilegiado. Eu sou um, sou forte, eu com um braço
posso levantar você do chão. Quer ver??
Macabéa: Não, não, os outros vão olhar.
Olímpico: Magricela esquisita ninguém olha.
Narradora: E lá foram para a esquina. Macabéa estava muito feliz. Realmente ele a levantou
para o ar, acima da própria cabeça, mas, de repente, ele não aguentou o peso num só braço e
ela caiu de cara na lama.
CENA 13
Narradora: Ela nunca irá se esquecer do primeiro encontro ele a chamou ela de “senhorita”, ele
fez dela um alguém. Mas o diálogo era sempre oco e seco. Ela se deu conta que de longe nunca
lhe disse uma palavra de amor, então chamava de... não sei o quê.
Olímpico: Olhe Macabéa...
Macabéa: Olhe o quê?
Olímpico: Não meu Deus, não é olhe de ver é olhe como quando se quer que uma pessoa
escute. Está me escutando?
Macabéa: Tudinho, Tudinho!
Olímpico: Tudinho o que, meu Deus, se eu ainda não falei! Pois olhe, vou lhe pagar um café no
botequim. Quer?
Macabéa: Pode ser pingado com leite?
Olímpico: Pode, é o mesmo preço, se for mais, o resto você paga.
CENA 15
Narradora: E uma vez os dois foram ao Jardim Zoológico, ela pagando a própria entrada. Teve
muito espanto ao ver os bichos. Tinha medo e não os entendia: por que viviam? Depois do Jardim
Zoológico, Olímpico não foi mais o mesmo. E sem notar que ele próprio era de poucas palavras
como convém a um homem sério.
Macabéa: Sabe que na minha rua tem um galo que canta?
Olímpico: Por que é que você mente tanto?
Macabéa: É verdade.
Olímpico: Pois não acredito.
Macabéa: Juro. Quero ver minha mãe cair morta se não é verdade.
Olímpico: Mas sua mãe já não morreu?
Macabéa: Ah, é mesmo... que coisa hein.
Olímpico: Você está fingindo que é idiota ou é idiota mesmo?
Macabéa: Não sei bem o que sou.
CENA 16
Narradora: E como já foi dito ou não dito Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo
cozido. Olímpico, na verdade, não mostrava satisfação nenhuma em namorar Macabéa, ele
talvez visse que Macabéa não tinha força de raça, era subproduto. (GLÓRIA PASSA POR
OLÍMPICO). Mas, quando ele viu a colega da Macabéa, sentiu logo que ela tinha classe.
Narradora: Glória possuía no sangue um bom vinho português e era amaneirada no bamboleio
do caminhar por causa do sangue africano escondido. Glória era toda contente consigo mesma.
Dava-se grande valor. Era uma safadinha esperta, mas tinha força de coração!
CENA 17
Narradora: O telefone do escritório acaba tocando e, Macabéa olha esperançosa, mas a mão de
Glória atende.
Glória: Sou eu, quem é?
Olímpico no orelhão
Olímpico: Olímpico de Jesus Moreira Chaves para servi-la. Obtive informações de sua pessoa
por intermédio de uma amiga.
Glória: Sei, e daí?
Olímpico: E daí que se me permite a senhorita, gostaria de lhe convidar a passear.
Glória: A troco?
Olímpico: Simpatia.
Glória: Sem me conhecer?
OLÍMPICO: Imagine conhecendo.
GLÓRIA: E quem lhe disse que eu quero lhe conhecer?
OLÍMPICO: Como é que você sabe que não quer me conhecer se você não me conhece?
GLÓRIA: Posso não ir com sua cara.
OLÍMPICO: A senhorita pode olhar agora mesmo uma fotografia minha.
GLÓRIA: Por que, você saiu no jornal?
OLÍMPICO: Não, mas sua colega aí do escritório tem uma foto minha na carteira.
GLÓRIA: Então vocês estão namorando!
OLÍMPICO: Ela que pensa, coitada. Você acha que alguém vai namorar Macabéa?
CENA 18
Narradora: Glória confusa acaba indo na cartomante.
Cartomante: Olá florzinha, o que veio fazer aqui? Não... deixa que eu adivinho, veio procurar
uma solução parar achar um homem de verdade, não é?
Glória: Isso mesmo Dona, quer dizer que você pode me ajudar?
Cartomante: Claro queridinha. Sabe, na sua idade eu era parecida com você. Tinha classe, e em
uma determinada idade resolvi procurar um amor. A diferença é que naquele tempo não havia
cartomantes, que eram chamas de bruxas.
Glória: Nossa...
Cartomante: Como é mesmo seu nome?
Glória: Glória
Cartomante: Vamos ver o que eu posso fazer por você. Bem, vejo aqui que você está atrás de
um namorado... Está tudo complicado na sua vida. Até pra mim está difícil de entender. Você vai
ter que fazer uma boa reza todos os dias antes de dormir.
Glória: Só isso?
Cartomante: Não, você também precisa colocar uma foto sua no lado de um homem, mas esse
homem tem que está comprometido.
Glória: Ok Madame, pode deixar que eu vou seguir suas orientações. Obrigada.
CENA 19
Narradora: Aqueles flashs de fotografia 3x4 no rosto de Glória. A tirinha de fotos saindo, e Glória
pegando.
GLÓRIA: Maca, você acha que eu sou sua amiga?
MACABÉA: Acho. Muito.
GLÓRIA: Pois eu fiz essa foto pra você.
Macabéa sorri, estende a mão. Glória se adianta e pega a bolsa dela.
GLÓRIA: Deixa eu botar na sua carteira.
Glória abre a carteira e vê a foto de Olímpico.
GLÓRIA: Você, hein?! Diz que é minha amiga, mas nem pra me contar que está de namorado!
Narradora: Assim, Glória põe sua foto do lado da foto de Olímpico.
CENA 20
OLÍMPICO: Glória e Olímpico, o nome da gente é cheio de grandezas.
GLÓRIA: Você trabalha?
OLÍMPICO: Sou metalúrgico, graças a Deus. E essa foto aí, é pra mim?
GLÓRIA: Essa aqui você não vai levar não, meu filho.
OLÍMPICO: Não precisa. A cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a
pessoa está sentindo.
GLÓRIA: Você com esse jeitinho sério de Paraíba é muito do enrolão, sabia?
OLÍMPICO: Eu?
GLÓRIA: Você, mesmo. Parece deputado nordestino prometendo acabar com a seca.
OLÍMPICO: O que é que eu fiz?
GLÓRIA: Nada, santinho do pau oco. Você não sabe que Macabéa é doida por você?
OLÍMPICO: Glória, tudo quem faz é o destino. Foi o destino que botou você no meu caminho.
CENA 21
Narradora: Aqueles flashs de fotografia 3x4 no rosto de Macabéa toda arrumadinha. A tirinha de
fotos saindo e Macabéa pegando. Olímpico marca de se encontrar com Macabéa.
MACABÉA (entregando a foto pra Olímpico) Toma. É colorida.
OLÍMPICO: (olhando) Não sei pra quê! Você tem cor de suja.
MACABÉA: Gostou não?
OLÍMPICO: Boazinha. Vou guardar como lembrança de nossa amizade.
MACABÉA: Ontem eu ouvi no rádio uma música linda.
OLÍMPICO: Era samba?
MACABÉA: Acho que era. Chamava-se "Uma Furtiva Lacrima". Não sei por que eles não
disseram "lágrima". A voz era tão macia que até doía ouvir. Até me deu vontade de chorar.
OLÍMPICO: E por que não chorou de uma vez?
MACABÉA: Não vinha lágrima. Nunca que chorei direito.
OLÍMPICO:É, deste mato não sai coelho.
MACABÉA: Como é que atriz de novela faz pra chorar?
OLÍMPICO: Pra que você quer saber? Você não tem rosto nem corpo pra ser atriz.
CENA 22
Narradora: Macabéa no quarto, ouvia "Una Furtiva Lacrima", teve vontade de chorar. Não por
causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitava que com
ela era "assim". Acho que teve vontade de chorar porque, através da música, adivinhava talvez
que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de
alma...
CENA 23
Narradora: De fato era de se espantar que para o corpo quase murcho de Macabéa tão vasto
fosse o seu sopro de vida quase ilimitado e tão rico como o de uma donzela grávida, engravidada
por si mesma. Foi então que se desmanchou, de repente, o namoro entre Olímpico e Macabéa.
Namoro talvez esquisito, mas pelo menos parente de algum amor pálido.
Olímpico: Vou te avisar uma coisa, encontrei outra moça. Você, Macabéa, é um cabelo na sopa.
Não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi.
MACABÉA: Não, não, não.
OLÍMPICO: Ah eu sou sincero.
MACABÉA: Ah, por favor, quero ir embora. Por favor, me diga logo adeus.
OLÍMPICO: Então adeus. (Ele sai.)
Narradora: É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade, provoca aquela saudade
desmaiada e lilás, não quero provocar porque dói. Macabéa, procurou continuar como se nada
tivesse perdido.
CENA 24
Narradora: Nada contou à Glória, porque de um modo geral mentia. Mentia também para si
mesma. Macabéa viu-a se despedir de olímpico beijando a ponta dos próprios dedos e jogando o
beijo no ar como se solta passarinho, o que Macabéa nunca pensaria em fazer.
Glória: Olímpico é meu, mas na certa você arranja outro namorado: Eu digo que ele é meu
porque foi o que a minha cartomante me disse e eu não quero desobedecer porque ela é médium
e nunca erra. Por que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas?
MACABÉA: É muito caro?
Gloria: Eu lhe empresto. Inclusive madama Carlota também quebra feitiço que tenham feito
contra a gente. Ela quebrou o meu à meia noite em ponto de uma sexta-feira treze de agosto, lá
para lá de S. Miguel. Você tem coragem?
Macabea: Não sei se tenho.
Narradora: Diante da súbita ajuda, Macabéa, que nunca se lembrava de pedir,
inventou uma desculpa ao chefe.
Macabéa: O senhor poderia me liberar hoje? Eu estou com uma dor de dente.
Raimundo: Bom, não tem muito trabalho hoje, está liberada.
Macabéa: Muito obrigada, Senhor.
Macabéa sai e vai até a mesa de Gloria.
Macabéa: Aceito o dinheiro. Mas nem sei quando irei devolver.
Gloria: Toma.
Narradora: Não foi difícil achar o endereço da madama Carlota e essa facilidade lhe pareceu
bom sinal. O apartamento térreo ficava na esquina de um beco e entre as pedras do chão crescia
capim.
CENA 26
Cartomante: Minha queridinha, sinto muito em te dizer mas você irá ser atropelada hoje.
Moça: Mas não é possível. (começa a chorar e sai)
Macabéa aparece na porta.
Cartomante: Olá minha jovem, como você é linda. Deixa-me adivinhar, veio atrás de resolver os
problemas do coração, não é?
Macabéa: É sim senhora.
Cartomante: Como é mesmo o seu nome?
MACABÉA: Macabéa.
Cartomante: É muito lindo.Você está interessada no que eu digo?
Macabéa: Muito.
Cartomante: Então vamos, sente-se aqui. Vou pegar minhas cartas, para ver o seu futuro.
Macabéa: Me diga, me diga, o que você vê?
Cartomante: Nossa Macabea vejo que você está muito triste com o seu amor. Mesmo assim eu
vejo que você vai encontrar um homem, um estrangeiro, ele é rico, e tem uma Mercedes amarela.
Você vai ser muito feliz! Fique sabendo minha florzinha, que até seu namorado vao voltar e
propor casamento, ele está arrependido.
Macabéa: Nossa, tem certeza, minha senhora?
Cartomante: Tenho sim! Eu nunca erro nenhuma previsão. Quando você sair daqui, vai sair uma
mulher mudada, determinada, e vai conhecer seu grande amor!
Macabéa: E que é que eu faço para ter mais cabelo?
Cartomante: Você está querendo demais. Mas está bem: lave a cabeça com sabão Aristolino,
não use sabão amarelo em pedra. Esse conselho eu não cobro.
Macabéa: Muito obrigada dona.
CENA 27
Narradora: Ela ficou um pouco perplexa sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava
mudada. E mudada por palavras. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira
tamanho desespero. Quando menos se espera, Olímpico aparece.
Olímpico: E se me desculpe, senhorita, posso convidar a passear?
Macabéa: Sim. Eu sabia que você ia voltar. A cartomante me disse e ela não erra nunca.
OLÍMPICO: E ela me disse se eu vou ser deputado e se o mundo inteiro vai saber de mim?
MACABÉA: Não.
OLÍMPICO: Pois eu estou lhe dizendo. Você não acredita?
MACABÉA: Acredito sim. Eu não lhe quero ofender. E a Glória?
OLÍMPICO: Ela usa muita água de colônia. E pinta o cabelo. E me deu um fora.
MACABÉA: Ah sim...
Olímpico: Nos encontramos na praça, tchau.
Narradora: Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino,
sussurrou veloz e guloso: é agora é já, chegou a minha vez.
Narradora: Acho com alegria que ainda não chegou a hora de estrela de cinema de Macabéa
morrer. Pelo menos ainda não consigo adivinhar se lhe acontece o homem louro e estrangeiro.E
enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a (SOM DE ATROPELAMENTO). E
da cabeça um fio de sangue acidentalmente vermelho e rico.
Gringo: Oh senhorita, você está bem? Me desculpe eu estava atrasado e acabei...
Macabéa: Não não não não, está tudo bem. Estava distraída.
Gringo: Como se chama?
Macabéa: Macabéa.
Gringo: Ah sim... me chamo Hans.
Macabéa: Você é estrangeiro?
Gringo: Sim, olha Macabéa, você está sangrando tem certeza que não quer ir no hospital?
Macabéa: Não precisa, estou um pouco tonta, mas já já passa.
Narradora: Então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo
para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida
come a vida. Sim, foi este o modo como eu quis anunciar que...que Macabéa morreu.
Narradora: Os que me ouviram, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é
um soco no estômago.
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