O poder de polícia e a liberdade de locomoção: estado de necessidade administrativo em tempos de pandemia ambiental* Police power and freedom of locomotion: state of administrative need in environmental pandemic times Magno Federici Gomes** Amanda Rodrigues Alves*** * Trabalho financiado pelo Projeto Edital nº 03/2019 de Incentivo à Pesquisa da Escola Superior Dom Helder Câmara, resultante dos Grupos de Pesquisas (CNPq): Regulação Ambiental da Atividade Econômica Sustentável (Rega), Negesp, Metamorfose Jurídica e Cedis (FCT-PT). Artigo recebido em 29 de dezembro de 2020 e aprovado em 27 de março de 2021. DOI: https:// doi.org/10.12660/rda.v282.2023.88640. ** Estágio pós-doutoral em direito público e educação pela Universidade Nova de LisboaPortugal (Bolsa Capes/BEX 3642/07-0). Estágios pós-doutorais em direito civil e processual civil, doutor em direito e mestre em direito processual, pela Universidad de Deusto-Espanha (Bolsa da Cátedra Unesco e do Gobierno Vasco-Espanha). Mestre em educação pela PUC Mi­ nas. Professor do Departamento de Direito Público Formal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integrante dos Grupos de Pesquisa: Responsabilidade Civil e Processo Am­bien­tal (Recipro)/CNPq-BRA, Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e So­cie­dade (Cedis)/FCT-PT e Metamorfose Jurídica/CNPq-BRA. E-mail: magno.federici@ufjf.br. *** Mestre em direito ambiental e desenvolvimento sustentável pela Dom Helder Câmara Escola de Direito. Pós-graduada em ciências penais pela faculdade Milton Campos. Pós-graduada em docência jurídica pela Faculdade Arnaldo. Graduada em processos gerenciais com ênfase no terceiro setor pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Graduada em direito pela Dom Helder Câmara Escola de Direito. Integrante do Grupo de Pesquisa: Regulação Ambiental da Atividade Econômica Sustentável (Rega). Nucleadora no Instituto Movimento Ecos. Advogada sócia no escritório Rodrigues Alves e Sella Sociedade de Advogados. Professora de processo penal no Prolabore cursos preparatórios para concursos, situado em Belo Horizonte (MG). E-mail: amanda@rasadvocacia.com.br. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 174 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O RESUMO O poder de polícia é a capacidade do Estado de intervir na esfera privada, restringindo bens e direitos, em prol do interesse público, sendo tal poder legitimado pelo estado democrático de direito. Ocorre que, diante de situações de emergência, o poder de polícia muitas vezes não encontra respaldo legal. Assim, o problema do presente estudo é verificar se a pandemia causada pela Covid-19 pode ser enquadrada como situação de emergência e, assim o sendo, se de fato justifica um estado de necessidade administrativo, capaz de relativizar ou mesmo suspender garantias fundamentais, entre elas a liberdade de locomoção. Para realizar o estudo, foi utilizado raciocínio dedutivo e metodologia teórico-jurídica. Diante do estudo, foi possível observar que em conjunturas excepcionais e de anomia, a exemplo de situações de calamidade pública, o Estado pode se valer do estado de necessidade administrativo, desde que o faça de forma racional e técnica. PALAVRAS-CHAVE poder de polícia — direito de locomoção — estado de necessidade administrativo — democracia — pandemia ABSTRACT Police power is a capacity that the state has to intervene in the private sphere, restricting assets and rights, in the interest of the public interest, and this power is legitimized by the democratic rule of law. It happens that emergency shoes the police power often does not find legal support. Thus, the objective of the present study is to verify if the pandemic caused by Covid-19 can be classified as an emergency situation, and if so, a state of administrative need is justified, capable of relativizing or even suspending fundamental guarantees, among them the freedom of movement. In order to carry out the study, deductive reasoning and theoretical-legal methodology were used, based on bibliographic sources and analysis of jurisprudence and national and international legislation, as long as it is done in a rational and technical way. KEYWORDS police power — right of locomotion — state of administrative necessity — democracy — pandemic Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… Introdução O poder de polícia, enquanto incumbência estatal de intervir nas relações privadas, de forma a discipliná-las e impor limites ao gozo de bens e direitos, é legitimado em um estado democrático de direito, em que a população se submete a tal ingerência visando o melhor interesse da coletividade. Dessa forma, cabe ao Estado, com base na proporcionalidade, fazer escolhas, desde que baseadas em lei. Todavia, diante de uma situação de anormalidade, o poder público pode se deparar com um cenário jamais viven­ ciado e que demandará um agir em prol do coletivo. A tais situações excepcionais, em que o Estado precisa agir, mesmo que não amparado por lei, convencionou-se chamar de estado de necessidade administrativo, uma espécie de estado de exceção que precisa ser instaurado em prol da ordem e do bem comum. Destarte, o problema que será respondido pelo presente estudo refe­ renciará se a pandemia causada pela Covid-19 será capaz de gerar uma situação emergencial e se ensejará um estado de necessidade administrativo, e, a partir de então, analisar-se-á se a atuação do poder público infringiu ou infringirá direitos fundamentais, em especial a liberdade de ir e vir. A justificativa da pesquisa assentar-se-á na necessidade de discussão acerca dos limites da atuação estatal, mesmo em situações excepcionais. Em vista disso, o objetivo será analisar o poder de polícia e seus limites, em uma sociedade democrática. Ademais, o estudo se voltará para a Lei nº 13.979/2020 e a liberdade de locomoção, bem como o estado de exceção instituído pela Pandemia Mundial de Sars Covid-19, um verdadeiro acidente ambiental.1 Para tanto, utilizar-se-á a metodologia teórico-jurídica e raciocínio dedu­ tivo, a partir de fontes bibliográficas e análise de jurisprudências e legislação nacional e internacional. O marco teórico utilizado será a obra Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador, de Binenbojm,2 que aborda em seu estudo os elementos estruturantes do estado de necessidade administrativo e que 1 2 Justifica-se essa afirmativa pela suspeita, ainda não confirmada, de que a origem do Sars Covid-19 foi, a princípio, o vírus de um morcego que contaminou um pangolim dentro de mercado de animais vivos que, posteriormente, foi consumido pela espécie humana, gerando uma pandemia mundial jamais vista nos tempos modernos. BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 175 176 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O serão imprescindíveis à resolução do problema central, que demonstrará se o Estado brasileiro, ao relativizar a liberdade de locomoção, como medida preventiva à Covid-19, agiu de forma arbitrária ou legítima. Os objetivos pretendidos serão atingidos em análises compartilhadas na seguinte estrutura: o primeiro capítulo abordará o conceito do poder de polícia e os limites de tal poder em uma ordem democrática. O segundo capí­tulo, por sua vez, abarcará a liberdade de locomoção enquanto garan­tia fundamental, bem como fará breves considerações acerca da Lei nº 13.979/ 2020, que apresentou como medidas de prevenção à Covid-19 a quaren­tena e o isolamento, intervenções capazes de relativizar a liberdade de ir e vir do indivíduo. Por fim, o capítulo derradeiro trará à baila o problema central da pesquisa, qual seja: a aplicação do poder de polícia nas situações de emer­ gência e o estado de necessidade ante uma pandemia tão peculiar quanto a causada pela Covid-19. 1. Poder de polícia: democracia e limites Os termos política e polícia, etimologicamente, possuem a mesma origem, já que ambos advêm do latim politia ou do grego politea. Apesar de serem pro­ venientes da mesma palavra, os conceitos diferem desde a sua origem. Na Grécia e Roma antigas, a política refletia uma forma de governo democrática, baseada no discurso e na participação dos membros da pólis. Para Binenbojm, a política possuía relação direta com viver na pólis e de “estar submetido a uma forma de governo de membros autônomos e iguais, na qual as questões de interesse comum eram resolvidas mediante recurso às palavras e à persuasão, e não por meio da força e da violência”.3 De forma diversa, a polícia ou o poder de polícia, era adstrito ao âmbito familiar, à esfera privada. Ao chefe da casa incumbia criar regras, que eram impostas aos que ali viviam. Segundo Binenbojm, a polícia possuía “natureza pré-política, aplicável à vida fora da pólis, ou seja, à vida da casa e da família, na qual o patriarca — pater familias — comandava seus subordinados com poderes despóticos e incontestáveis”.4 3 4 Ibid., p. 27. Ibid. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… Tal poder de polícia com origem na Antiguidade ganhou força na Idade Moderna. No entanto, em vez de ser exercido pelo chefe da família, a polícia passou para as mãos do soberano, ou seja, do príncipe. A célebre frase “o Estado sou eu”, de Luiz XIV da França, no século XVII, retrata bem a posição ocupada pelo soberano. Sob a justificativa de que o príncipe era um enviado de Deus, a ele incumbia impor normas limitadoras de liberdades individuais, que eram aceitas sem questionamentos. O poder de polícia não possuía justificativa legal, mas divina. Com a Revolução Francesa e o iluminismo, propulsores da era moderna, o poder soberano é questionado de forma a dar ao estado de polícia lugar ao estado de direito, em que o poder de polícia passa a ser exercido dentro dos limites legais. Pode parecer um contrassenso pensar que os direitos fundamentais de primeira dimensão foram legitimados exatamente em tal período, afinal, trata-se de direitos que visam a abstenção do poder estatal. Os direitos de primeira geração realçam o princípio da liberdade. São os direitos civis e políticos, reconhecidos nas Revoluções Francesa e Americana. Caracterizam-se por impor ao Estado um dever de abstenção, de não fazer, de não interferência, de não intromissão no espaço de autodeterminação de cada indivíduo.5 Na verdade, esse aparente contrassenso entre a legitimação do poder de polícia e o surgimento dos direitos fundamentais de primeira dimensão não existe. Na era contemporânea, o Estado absolutista é sucedido pelo estado de direito, que não prega a ausência do Estado, mas sim sua presença e atuação baseada em ditames legais, cuja base é a vontade popular e não mais a vontade única e irrestrita do soberano. Dessa maneira, vemos que o direito à democracia participativa é pilar de sus­ tentação do Estado Democrático de Direito, sem o qual não há que se falar em Estado Democrático. O povo é o titular do poder absoluto no Estado Democrático de Direito, e como tal, sua voz deve ganhar força em torno de modificações a serem operadas no arcabouço da sociedade e do direito.6 5 6 PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009. p. 93. GOMES, Magno Federici; FERREIRA, Leandro José. A dimensão jurídico-política da sustentabilidade e o direito fundamental à razoável duração do procedimento. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, v. 2, n. 52, p. 93-111, maio/set. 2017. p. 100-101. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 177 178 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O Nesse novo cenário, as liberdades individuais assumem papel de relevância, podendo ser afastadas em casos excepcionais, previamente estabelecidos em lei. A partir de então é que o poder de polícia passa a ter contornos semelhantes aos que se tem nos dias atuais, visto que é funda­ mentado na legalidade. Para que se entenda os limites do poder de polícia, essencial à compreen­ são do presente estudo, faz-se mister apresentar seu conceito. No Brasil, tal conceito é expresso no art. 78 do Código Tributário Nacional (CTN), que destaca: Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limi­ tando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.7 Para Di Pietro, o poder de polícia é a “atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”,8 em consonância com o que prevê a legislação pátria. No mesmo sentido entende Binenbojm, ao destacar que o poder de polícia é um […] conjunto de regulações sobre a atividade privada, desvinculadas ou com­ plementares a relações especiais de sujeição (estatutárias ou contratuais), dotadas ou não de força coercitiva, conforme o caso, que erigem um sistema de incentivos voltados à promoção de comportamentos socialmente desejáveis e ao desestímulo de comportamentos indesejáveis, de acordo com objetivos político-jurídicos predeterminados.9 Ao que parece, os conceitos atuais apresentados anteriormente não dife­ rem muito daquele apresentado por Meirelles em 1972, em plena ditadura militar. Para o autor, o poder de polícia nada mais é do que a possibilidade que o Estado tem “de restringir o uso e gozo de bens ou direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.10 7 8 9 10 BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1966. s.p. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 104. Gustavo Binenbojm, Poder de polícia, ordenação, regulação, op. cit., p. 71. MEIRELLES, Hely Lopes. Poder de polícia e segurança nacional. Revista dos Tribunais, v. 61, n. 445, p. 287-298, nov. 1972. p. 289. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… Mello aborda o poder de polícia de uma forma mais ampla, subdividindo-o em poder de polícia amplo (em que se compreendem os atos de polícia do Legislativo, ou seja, as normas limitadoras) e poder de polícia restrito (que abrange os atos do Poder Executivo). Apesar de apresentar tal diferenciação, para Mello o conceito stricto sensu diz respeito somente aos atos do Executivo, vez que o poder de polícia propriamente dito pertence a uma função típica da administração pública.11 Verifica-se que o poder de polícia é atividade pertencente à administra­ ção pública, portanto, inserto no ramo do direito administrativo. Ocorre que, como defende Binenbojm, “houve no Brasil, pós Constituição de 1988, uma guinada democrático-constitucional do direito administrativo”.12 O estado de direito, a partir de então, passa a ser um estado democrático de direito, em que as diversas searas do direito devem, em sua integralidade, ter por fim não a norma em si, mas seu cumprimento em consonância aos ditames constitucionais, e, principalmente, com as garantias fundamentais. Assim, embora o conceito de poder de polícia não tenha tido alteração substancial pré e pós-Constituição da República de 1988 (CR/88), resta claro que o fundamento de sua aplicação necessita ser repensado ante o estado de­ mocrático de direito, em que as garantias fundamentais assumem especial relevância. Sob a máxima da garantia da ordem ou da supremacia do interesse público sobre o privado, muitas vezes o Estado toma para si as liberdades indi­viduais dos governados. A princípio, tal premissa não possui conotação pejorativa, afinal, é exatamente na possibilidade de o Estado restringir direitos e bens que se assenta o poder de polícia, o que encontra fundamento na própria vontade popular. A problemática surge nos limites da atuação estatal, ou seja, até que ponto as garantias individuais podem ser afastadas em prol de um bem comum. Para solucionar tal impasse, é necessário estabelecer um paralelo entre a atuação estatal e a democracia, que concede ao Estado poderes amplos, mas não irrestritos. 11 12 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 780. Gustavo Binenbojm, Poder de polícia, ordenação, regulação, op. cit., p. 37. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 179 180 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O Pode-se dizer que a teoria democrática contemporânea estruturou-se a partir do paradigma liberal, reconhecendo no Estado o aparato da administração pública, orientado no interesse da sociedade, limitando a política à função de agregar e impor os interesses sociais privados ao âmbito estatal — identificado com o espaço público, por excelência.13 Dessa forma, são os interesses da sociedade, expressos democratica­mente no texto constitucional, que limitam o poder estatal. O Estado é livre para tomar decisões em prol da sociedade, mas tais regras não podem ferir o or­ denamento vigente e preestabelecido pela vontade popular. Exatamente por isso, ao Estado cabe fazer escolhas fundadas na legalidade, respeitando-se, em especial, as garantias tidas como fundamentais, que em regra são inafastáveis, se consubstanciando em limites ao poder do governado. Nesse sentido, para que a ordenação estatal não seja revertida em tirania, é necessário que na tomada de decisão o Estado adote a proporcionalidade, tal como destaca Binenbojm: A legitimidade das medidas de ordenação dependerá da observância, entre outros fatores, da lógica da proporcionalidade, em seus três exames suces­ sivos: (i) adequação (exigência de que a medida restritiva seja apta a promover razoavelmente o direito fundamental ou o objetivo de interesse geral con­ traposto); (ii) necessidade (exigência que a medida restritiva não possa ser substituída por outra que cumpra a mesma finalidade de forma razoável, mas de maneira menos gravosa ao direito restringido); e (iii) proporcionalidade em sentido estrito (exigência de que, consoante algum critério válido de análise de custo-benefício, seja possível afirmar que o grau de importância da promoção do direito fundamental ou do objetivo de interesse geral justifique a gravidade da restrição imposta ao direito em questão.14 Desse modo, para Binenbojm, tais exigências devem permear as tomadas de decisões do Estado, mesmo que baseadas na legalidade. No entanto, existem situações atípicas e emergenciais que não possuem solução legal, mas que exigem do Estado uma atuação célere e eficiente, cuja legitimidade vai além da adoção da proporcionalidade, conforme será visto adiante. 13 14 MARONA, Marjorie. Contribuições de Hannah Arendt e Habermas para a teoria democrática contemporânea. Revista Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 45-60, jan./jun. 2009. p. 58. Gustavo Binenbojm, Poder de polícia, ordenação, regulação, op. cit., p. 119-120. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… 2. A garantia constitucional à liberdade de locomoção e a Lei nº 13.979/2020 O direito de liberdade de locomoção é garantia fundamental prevista no art. 5º, XV, da CR/88, que dispõe: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.15 A regra, em qualquer estado democrático de direito, é que todos possam se locomover livremente, sendo a liberdade do indivíduo uma garantia de primeira dimensão, cerne da Revolução Francesa e do próprio liberalismo. Não há um conceito único do que vem a ser liberdade, e desde Aristóteles, no século V a.C., a temática já era objeto de estudo. O conceito apresentado por ele há mais de 25 séculos ainda é bem aceito pela filosofia. Para Aristóteles: […] ser livre é aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. A li­berda­de é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para deter­mi­nar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada ou por ninguém.16 Verifica-se que, para Aristóteles, a liberdade pode ser sintetizada como a capacidade de decidir e de agir conforme tal decisão. A liberdade de locomoção pode ser pensada dentro da perspectiva aris­ totélica de liberdade como o direito de ir e vir livremente, sem embaraços, de acordo com a autodeterminação. Fato é que tal liberdade de locomover-se, mesmo dentro do Estado nacio­ nal, apesar de ser uma garantia fundamental, encontra-se relativizada pelas medidas de prevenção adotadas ante a pandemia causada pela Covid-19. Mesmo sendo um dos direitos mais valorizados por qualquer indivíduo, a liberdade, assim como qualquer outro direito, por mais fundamental que seja, não se reveste de caráter absoluto. 15 16 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. s.p. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 4. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 360. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 181 182 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência têm enfatizado que os direitos e garantias fundamentais expõem-se a restrições autorizadas, expressa ou implicitamente, pelo texto da própria Constituição, já que não podem servir como manto para acobertar abusos do indivíduo em prejuízo à ordem pública. Assim, normas infraconstitucionais — lei, medida provisória e outras — podem impor restrições ao exercício de direito fundamental consagrado na Constituição.17 Em razão disso, o Estado brasileiro, devido à Covid-19, doença viral que surpreendeu o mundo no fim do ano de 2019, resolveu, no início do ano de 2020, publicar a Lei nº 13.979/2020, que disciplina medidas de prevenção à doença, entre elas algumas limitadoras do direito de ir e vir. A publicação da referida lei se deu no dia 6 de fevereiro de 2020 e trouxe como medidas de enfrentamento ao Covid-19, entre outras, a possibilidade de isolamento e quarentena, que serão objeto do presente estudo e que foram conceituadas pela Lei nº 13.979/2020 nos seguintes moldes: I — isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de ba­ gagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; II — quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.18 Apesar de muitas vezes serem utilizados como sinônimos, os termos qua­rentena e isolamento não são confundem. No isolamento, as pessoas a serem separadas das demais são aquelas que, comprovadamente, estão con­ tami­nadas pelo vírus. Já na quarentena o afastamento deve se dar em caso de sus­peita da doença. Por ser uma lei geral, que não trouxe mais detalhes acerca das formas e períodos de quarentena e isolamento, ela foi disciplinada por portarias, entre as quais se destaca a Portaria nº 356 de 2020 e a Portaria Interministerial nº 05 de 2020. A Portaria nº 356 do Ministério da Saúde, publicada em 11 de março de 2020, a fim de sanar as omissões da lei federal, regulamentou prazos e condições das medidas de isolamento e quarentena. 17 18 Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, Direito constitucional descomplicado, op. cit., p. 99. BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, 6 fev. 2020a. s.p. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… Segundo a Portaria, o isolamento deve ocorrer em domicílio ou hospital, inclusive para casos de pessoas que tenham sido diagnosticadas com a Covid-19 e estiverem assintomáticas. Além disso, […] a medida de isolamento somente poderá ser determinada por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, por um prazo máximo de 14 (quatorze) dias, podendo se estender por até igual período, conforme resultado laboratorial que comprove o risco de transmissão.19 No que se refere à quarentena, a Portaria nº 356 pouco esclareceu acerca do direito de ir e vir das pessoas suspeitas de contaminação, ressaltando que a medida “será determinada mediante ato administrativo formal e devi­ damente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão”.20 Quanto ao tempo de duração, destacou que a “quarentena será adotada pelo prazo de até 40 (quarenta) dias, podendo se estender pelo tempo ne­ cessário para reduzir a transmissão comunitária e garantir a manutenção dos serviços de saúde no território”.21 Importante esclarecer que a referida portaria deixou claro que o iso­ lamento e a quarentena não são medidas facultativas, mas obrigatórias, salientando no art. 5º que o descumprimento das mesmas é capaz de gerar responsabilidade. Para sanar qualquer dúvida sobre os tipos de responsabilidade em caso de descumprimento, a Portaria interministerial nº 05 de 2020, editada pelos Ministérios da Saúde e da Justiça e já revogada,22 trouxe, expressamente, a pos­sibilidade de incriminação por descumprimento, decorrente de violação dos arts. 268 e 330, ambos do Código Penal (CP), que preveem os crimes de infração de medida sanitária preventiva e de desobediência, respectivamente. Cumpre mencionar que os objetos da pesquisa foram as normas federais, sendo certo que a competência para legislar sobre saúde pública é concorrente, 19 20 21 22 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 356, de 11 de março de 2020. Gabinete do Ministro, Brasília, 11 mar. 2020b. s.p. Ibid. Ibid. A Portaria interministerial nº 05 de 2020 foi revogada pela Portaria interministerial nº 09 de 2020, publicada em 27 de março de 2020. Apesar de sua revogação, as condutas daqueles que infringem as medidas de quarentena e de isolamento podem restar tipificadas nos arts. 268 e 330, ambos do CP, ainda vigentes. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 183 184 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O inclusive, sendo possível que estados, municípios e o Distrito Federal criem medidas mais restritivas do que as adotadas em nível nacional, o que foi refe­ rendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADI 6.341 e da ADPF 672. Destaca-se mais uma vez que o objeto de estudo são as medidas de iso­ lamento e quarentena adotadas pelo poder público, não obstante existam outros atos policiais mais rigorosos, a exemplo do lockdown23 ou do toque de recolher, em que o direito de ir e vir é ainda mais afetado, e que também demandariam um estudo mais aprofundado acerca dos seus contornos e constitucionalidade. 3. O poder de polícia em situações de emergência e o estado de necessidade administrativo em tempos de pandemia Existem situações em que o Estado precisa agir, mesmo que para tanto não esteja amparado pela lei. Trata-se de situações que fogem à normalidade e à própria previsibilidade legal, como o denominado estado de necessidade administrativo, que pode ser conceituado como: […] uma espécie de cláusula habilitadora, com efeitos derrogatórios, sus­ pensivos ou até criativos, de uma atuação da Administração Pública in­ter­ ventiva e ordenadora na sociedade, não prevista em lei ou contrária a esta, integrando o conceito de legalidade alternativa, sem prescindir da constatação de circunstâncias excepcionais que clamam por uma ação urgente e necessária, posto o resguardo do interesse maior sopesado e ponderado.24 Impende destacar que o estado de necessidade pode assumir contornos distintos a depender da área do direito a que está inserido. A exemplo, para 23 24 Acerca do lockdown e da restrição de vias terrestres determinadas pelo poder público em razão da Covid-19, há artigo sobre o tema publicado por Chaves Júnior e Pádua, que concluem pela desproporcionalidade de tais medidas, valendo-se para o estudo do teste de proporcionalidade proposto por Mathias Klatt, em que a proporcionalidade é aferida em cinco passos: objetivo legítimo, meio legítimo, adequação, necessidade e sopesamento. Para Chaves e Pádua, as medidas por eles estudadas não cumprem as exigências do teste de proporcionalidade de Klatt, vez que reprovadas em relação a três dos cinco elementos do teste, quais sejam: meio legítimo, necessidade e sopesamento. (CHAVES JÚNIOR, Airto; PÁDUA, Thiago Aguiar de. Liberdade em discricionariedade?: restrições ao direito de liberdade no contexto pandêmico. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, n. 3, v. 25, p. 674-703, set./dez 2020. p. 698 e ss.). MIRANDA, Juliana Gomes. A teoria da excepcionalidade administrativa: a juridicização do estado de necessidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 116. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… a seara jurídica constitucional, o estado de necessidade foi assim conceituado pelos doutrinadores portugueses Amaral e Garcia: A expressão estado de necessidade diz respeito a situações de desordem e de perigo geral, perante as quais o exercício das funções constitucionalmente previstas dos poderes públicos é insuficiente para satisfazer as necessidades coletivas emergentes, exigindo-se aos poderes públicos o recurso a meios extra­ ordinários de ação que, desde logo, restrinjam os direitos individuais.25 Eles reconhecem que o estado de necessidade constitucional é uma espé­ cie de estado de exceção, o que não significa dizer que os atos públicos pos­ sam ser realizados sem amparo na lei em sentido amplo. Segundo Amaral e Garcia, o que existe é uma imprevisibilidade dos modos de agir, mas não dos fundamentos de agir, que devem obediência aos preceitos constitucionais, ou seja, “não é um estado de exceção ao direito, mas um estado em que a necessidade determina o afastamento das normas jurídicas formais e obriga à sujeição ao direito como um todo, como um bloco de princípios interligados, geradores de justiça e paz em sociedade”.26 Dessa forma, “o exercício do direito de necessidade da Administração só surge quando se rompe a normalidade administrativa, tal como o exercício do direito de necessidade constitucional surge quando se rompe a normalidade constitucional”.27 No Brasil, apesar do estado de necessidade constitucional ou estado de exceção estar previsto por meio das figuras do estado de defesa e do estado de sítio,28 o estado de necessidade administrativo não se encontra definido no ordenamento pátrio, diferentemente de outros países, como Portugal, que no art. 3º, n. 2, do Decreto-Lei 442/91 (Código do Procedimento Administrativo Português), prevê expressamente o seguinte: 25 26 27 28 AMARAL, Diogo Freitas do; GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O estado de necessidade e a urgência em direito administrativo. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 59, v. II, p. 447-518, abr. 1999. p. 468. Ibid., p. 469. Ibid., p. 486. Estado de sítio e estado de defesa são medidas de exceção. O primeiro, mais grave, autoriza a legalidade constitucional extraordinária, suspendendo-se direitos e garantias dos indivíduos, em casos de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa e declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”, conforme previsto no art. 137 da CR/88. Lado outro, o estado de defesa visa “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988). Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 185 186 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O Os atos administrativos praticados em estado de necessidade, com preterição das regras estabelecidas neste Código, são válidos, desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo, mas os lesados terão o direito de ser indenizados nos termos gerais da responsabilidade da Administração.29 Conclui-se que no ordenamento português o estado de necessidade administrativo deve ser aplicado como a ultima ratio, ou seja, quando a finali­ dade almejada não puder ser alcançada em razão de condutas amparadas legalmente. Um grande exemplo mundial de estado de necessidade administrativo foi o adotado pelos Estados Unidos da América, quando ocorreu o atentado às torres gêmeas em 2011. O terrorismo, como situação de grave perigo, de­ mandava uma atitude mais enérgica do Estado. Em vista disso, diversas ga­ rantias fundamentais foram relativizadas, entre elas a restrição da liberdade de centenas de pessoas, a princípio, sem qualquer motivo legal a justificar-lhe. “Imediatamente após o 11 de setembro, o governo efetuou a captura de centenas de pessoas, sobretudo estrangeiros, e praticamente todas, até onde pude perceber, com sobrenome muçulmano ou árabe.”30 Tais pessoas tiveram diversos direitos violados, entre eles a impossi­ bilidade de se comunicar com um advogado ou mesmo com a família após a prisão. Seus nomes não foram divulgados como prisioneiros, ou seja, não havia informação pública sobre a prisão e não houve devido processo legal, sob a justificativa da segurança nacional. Para ter acesso aos nomes dos presos, organizações da sociedade civil in­gressaram com uma ação para que o Estado fosse obrigado a ceder os dados daqueles que se encontravam custodiados. Apesar das sérias violações aos direitos humanos, o Tribunal negou o pedido formulado, argumentando ser “papel do Executivo melhorar e exercer sua perícia na proteção da segurança nacional. Não cabe aos tribunais questionar as decisões do executivo tomadas em prol da consecução do papel precípuo desse poder”.31 Verifica-se que no caso em apreço uma situação excepcional autorizou que fossem afastadas as garantias fundamentais individuais em prol da segurança nacional. 29 30 31 PORTUGAL. Decreto-Lei 442, de 15 de novembro de 1991. Código do Procedimento Administrativo Português. CHEVIGNY, Paul. A repressão nos Estados Unidos após o atentado de 11 de setembro. Sur Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 159, 1. sem. 2004. Ibid., p. 160. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… Quanto à Covid-19, e sob o fundamento do bem comum, assentado na garantia fundamental à saúde pública, diversas outras garantias fundamentais têm sido relativizadas, como o direito de reunião, direito à educação, à segurança, ao trabalho e o direito à locomoção, objeto do presente estudo. Assim, resta a reflexão: sendo as garantias fundamentais limites ao poder de polícia, há algum caso em que, diante da ponderação de valores, o interesse público pode se sobrepor a elas? A bem da verdade, existem estudiosos, como Carl Schmitt, que defendem um verdadeiro estado de exceção em situações de emergência. Em tais pe­ ríodos, não só algumas garantias fundamentais precisam ser relativizadas, mas o próprio estado de direito e, por conseguinte, a democracia, haja vista que: Os sistemas jurídicos das democracias liberais não podem esperar especificar as condições substantivas que vão contar como uma emergência, porque as emergências são por natureza imprevistas, ou mesmo os procedimentos que serão usados para acionar e alocar poderes de emergência, porque esses procedimentos estarão vulneráveis a serem descartados quando uma emer­ gência assim exigir. Em geral, de acordo com uma versão de Schmitt, “não se pode usar a lei para determinar quando a legalidade deve ser suspensa”. Na maioria, pensou Schmitt, o legalismo liberal pode especificar quem tem o poder para determinar se há uma emergência, mas não os procedimentos ou condições substantivas pelas quais e sob as quais os poderes de emergência são acionados.32 [tradução nossa]33 Em reflexão sobre o estado de exceção, o filósofo Giorgio Agamben, por outro lado, aduz que a exceção possui “estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência”,34 vez que se opõe à normalidade e permite uma tomada de poder justificada no medo. O grande problema, por certo, 32 33 34 VERMEULE, Adrian. Our schmittian administrative law. Harvard Law Review, Cambridge, v. 122, p. 1095-1149, 2009. p. 1099-1100. Tradução livre de: “The legal systems of liberal democracies cannot expect to specify as substantive conditions that’ will count as an emergency, because emergencies are by nature unforeseen, or even the procedures that will be used to trigger and allocate emergency powers, because these procedures must be vulnerable to be discarded when an emergency so requires. In general, according to a version of Schmitt, “one cannot use the law to determine when legality should be suspended.” In most, Schmitt, liberal legalism can specify who has the power to determine if there is an emergency, but not the procedures or substantive conditions under which and under which emergency powers are deployed”. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 12. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 187 188 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O é delimitar os limites do estado de exceção, de modo que ele não se torne a regra e que governos tiranos se valham da anomia como um pretexto para a tomada de poder e a relativização, ou mesmo, de afastamento, de garantias fundamentais. Como é cediço, não há hierarquia entre as garantias fundamentais, sendo a análise do caso concreto primordial à solução a ser adotada, principalmente em situações de emergência, em que a atuação do Estado deve ser não só eficaz, mas, sobretudo, célere. Assim, para que a decisão administrativa seja a mais razoável e de­ mo­crática possível ante um estado de necessidade, Binenbojm destaca que “a atua­ção extraordinária da Administração Pública pode ser legitimada por um regime de juridicidade contra legem”,35 desde que fundada em cinco “ele­mentos estruturantes”, quais sejam: i) a excepcionalidade do perigo, atual ou iminente; (ii) o seu caráter necessa­ riamente transitório; (iii) a boa-fé das autoridades adminis­trativas; (iv) a pro­ porcionalidade das medidas adotadas à essenciali­dade dos bens, direitos ou interesses a preservar; (v) a sua sujeição a mecanismos de accountability, inclusive mediante responsabilização civil do Estado pelos danos eventualmente resultantes para terceiros.36 Feitas tais ponderações e partindo dos elementos estruturantes elencados pelo autor, é possível analisar se a opção administrativa brasileira, no que se refere à limitação do direito de ir e vir do indivíduo em tempos de pandemia, seja em razão da quarentena ou do isolamento, pode ser tida como legítima. O primeiro dos elementos a ser observado é o perigo, que não basta por si só. Deve se tratar de um perigo excepcional, atual ou mesmo iminente, que está acontecendo ou prestes a acontecer. Se analisarmos o caso brasileiro, certamente tal requisito resta satisfeito. A publicação da Lei nº 13.979/2020, que trouxe como medidas de enfrenta­ mento à Covid-19 o isolamento e a quarentena, se deu em meio a um perigo excepcional e iminente. No dia 6 de fevereiro de 2020, data da publicação da lei, o mundo já conhecia o alto grau de contaminação do novo coronavírus. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “o surto de Covid-19 tem 35 36 Gustavo Binenbojm, Poder de polícia, ordenação, regulação, op. cit., p. 149. Ibid., p. 149. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… sido o teste mais urgente das capacidades nacionais para responder a uma emergência de saúde em mais de um século”37 (tradução nossa).38 Apesar da reconhecida gravidade da doença no mundo, o primeiro caso da Covid-19 só veio a ser confirmado no Brasil em 26 de fevereiro, segundo dados do Ministério da Saúde.39 Dessa forma, não havia um risco atual em nível nacional, mas uma iminência de um perigo excepcional, o que justificaria a adoção de uma atuação extraordinária por parte da administração pública. Se atual ou iminente, o que justifica uma atitude estatal de forma célere é a urgência que permeia a problemática, sendo ela apenas um dos requisitos do instituto analisado e não se confunde com a urgência como forma de atuação da administração pública. Assim, situações de urgência, por si só, não justificam o afastamento de normas administrativas. A urgência é natural em um cenário de administração pública e o Estado pode e deve agir em tais casos amparado pela estrita legalidade. Nesse sentido: Quer a verificação dos pressupostos do estado de necessidade e da urgência quer as actuações concretamente desenvolvidas no respectivo enquadramento estão sujeitas a controlo jurisdicional, porquanto em ambos os casos se está perante actuações jurídicas: no primeiro, a licitude da actuação deve ser ava­ liada no quadro do ordenamento jurídico no seu todo, e em particular, no quadro da Constituição; no segundo, deve ser ponderada no âmbito mais restrito da legalidade administrativa.40 O segundo dos elementos, por sua vez, é a transitoriedade. A restrição de direitos, previamente concebidos e legalmente constituídos, não pode ser feita ad eternum, sob pena de trasmudar-se em verdadeira tirania. Assim, cabe ao Estado delimitar as medidas excepcionais a um determinado período ou mesmo a uma situação específica. 37 38 39 40 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. World health statistics 2020: a visual summary. 2020a. Disponível em: https://www.who.int/data/gho/whs-2020-visual-summary. Acesso em: 14 ago. 2020. s.p. Tradução livre de: “The outbreak of COVID-19 has been the most urgent test of national capacities to respond to a health emergency in more than a century. This chart presents the epidemiological curve for COVID-19 from 11 January to 5 May: how the virus spread rapidly and globally, affecting nearly every country and territory”. “O Ministério da Saúde confirmou, nesta quarta-feira (26/2), o primeiro caso de novo coronavírus em São Paulo. O homem de 61 anos deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, nesta terça-feira (25/2), com histórico de viagem para Itália, região da Lombardia. O Ministério da Saúde, em conjunto com as secretarias estadual e municipal de São Paulo, investigava o caso desde então” (AQUINO, Vanessa; MONTEIRO, Natália. Brasil confirma primeiro caso da doença. Agenda Saúde (Ministério da Saúde), Brasília, 26 fev. 2020. s.p.). Diogo Freitas do Amaral e Maria da Glória F. P. D. Garcia, O estado de necessidade e a urgência em direito administrativo, op. cit., p. 518. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 189 190 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O Foi exatamente o que previu a Lei nº 13.979/2020, no seu art. 8º, que assim dispôs: “esta Lei vigorará enquanto perdurar o estado de emergência internacional pelo coronavírus responsável pelo surto de 2019”.41 A previsão de transitoriedade das medidas é expressa, que durarão somente enquanto persistir o estado de emergência causado pela Covid-19, em nível internacional. Apesar de ser incerto o tempo de duração do estado de emergência, resta claro que a legislação está vinculada a uma circunstância temporal, o que também legitima a atuação estatal. A transitoriedade é um requisito de extrema importância e precisa ser reconhecido como tal. O estado de exceção, como o próprio nome já pre­ nuncia, é a exceção e não pode ser usado dentro de situações corriqueiras de anormalidade,42 como uma “armadilha” por governos totalitários, para justi­ ficarem atos políticos ilegais e/ou inconstitucionais em tempos de crise. Outro requisito é a boa-fé da administração pública na adoção das medidas excepcionais que limitem direitos. Tal requisito é difícil de ser ana­ lisado no caso concreto, já que demanda uma visão global da atitude adotada. Para Binenbojm, essa boa-fé pública “se constata da sinceridade com que expõe as limitações das medidas ordinárias para fazer frente às exigências do momento e do fato de a situação de perigo não lhe ser imputável”.43 Apesar das críticas acerca das medidas adotadas, muitas vezes prove­nien­ tes de divergências políticas e partidárias, percebe-se que, em nível nacional, as medidas de prevenção à Covid-19, principalmente as referentes à quaren­ tena e ao isolamento, foram dotadas de boa-fé. Um parâmetro que pode ser utilizado para apreciar a boa-fé é se valer de experiências internacionais. A frase “fique em casa” ficou mundialmente conhecida e grande parte dos países adotou medidas que limitam o direito de ir e vir da população. Entre os países que adotaram a restrição na circulação de pessoas como medida de prevenção e que fechou suas fronteiras estava a Nova Zelândia. Considerado nos tempos atuais um dos países mais democráticos do mundo, a Nova Zelândia tomou medidas duras já no início da pandemia e, em razão disso, juntamente com o apoio da comunidade local, foi o primeiro país a 41 42 43 Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, op. cit. Para Santos, a atual pandemia foi capaz de realçar a “anormalidade da exceção”, já vivenciada com a crise do capitalismo, o que, segundo o sociólogo, já perdura por 40 anos. É essa naturalização da exceção que justifica cortes em gastos com saúde ou mesmo a precarização do trabalho (SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020. p. 5-6). Gustavo Binenbojm, Poder de polícia, ordenação, regulação, op. cit., p. 149. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… “a eliminar a transmissão comunitária do novo coronavírus”,44 isso em abril do ano de 2020. Como muito bem destacado pelo ministro Barroso, o isolamento social é a recomendação pacífica das autoridades sanitárias de todo o mundo. Não há alternativa, porque, se muitas pessoas contraírem a doença ao mesmo tempo, o sistema de saúde não suportará. Em alguns lugares, já não está suportando. O isolamento continua a ser a medida recomendada e praticada pelos países onde o combate à doença deu certo, para contornar a ascensão da curva.45 Além da experiência internacional, cumpre frisar que foram apresentadas as recomendações pela OMS para minimizar o surto da Covid-19, estando entre elas: Fique em casa e isole-se mesmo com sintomas menores, como tosse, dor de cabeça, febre baixa, até se recuperar. Peça a alguém para trazer suprimentos. Se precisar sair de casa, use uma máscara para evitar infectar outras pessoas. Por quê? Evitar o contato com outras pessoas irá protegê-los de possíveis vírus Covid-19 e outros46 [tradução nossa]47 Dessa forma, a medida preventiva adotada no Brasil também vai ao encontro das recomendações da OMS, o que corrobora a boa-fé do Estado em buscar alternativas razoáveis à contenção do vírus. O quarto elemento estruturante é a proporcionalidade, que abarca a neces­sidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito, cujos con­ ceitos já foram apresentados. No caso em análise, as medidas adotadas se enquadram na concepção de proporcionalidade. O isolamento e a quarentena são opções adequadas à contenção da Covid-19, na medida em que visam promover dois importantes direitos fundamentais: a saúde e a vida. 44 45 46 47 NOVA Zelândia anuncia fim da transmissão local comunitária de covid-19. Agência Brasil, Brasília, 30 abr. 2020. s.p. BARROSO, Luís Roberto. Responsabilidade civil e administrativa de agentes públicos e atos relacionados com a pandemia de Covid-19. Revista Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 295-317, maio/ago. 2020. p. 307. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Coronavirus disease (Covid-19) advice for the public, 2020b. Tradução livre de: “Stay home and self-isolate even with minor symptoms such as cough, headache, mild fever, until you recover. Have someone bring you supplies. If you need to leave your house, wear a mask to avoid infecting others. Why? Avoiding contact with others will protect them from possible COVID-19 and other viroses”. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 191 192 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O Não restam dúvidas que são medidas necessárias. Enquanto a vacinação não for uma realidade para a grande maioria das pessoas no país, a pre­ venção por meio do distanciamento das pessoas deve ser priorizada, como recomendado pela OMS. Já no que diz respeito à proporcionalidade em sentido estrito, apesar de no Brasil a competência ser concorrente para legislar sobre saúde pública, e existirem leis mais restritivas do que outras, em âmbito nacional, a limitação da liberdade de locomoção imposta é justificada em um sopesamento de custo-benefício, na ponderação de que “segundo os postulados da doutrina da proporcionalidade, é uma forma de aplicar a lei. Não deve ser confundido com métodos subjetivistas ou intuicionistas”48 (tradução nossa).49 Para Klatt, Meister e Costa Neto, a ponderação (ou sopesamento) possui grande relevância na análise da proporcionalidade, pois é exatamente em tal etapa que são aferidas as “circunstâncias jurídicas do caso concreto”,50 ou seja, é quando se verifica no caso posto qual dos princípios colidentes deve se sobrepor. Apesar de depender de uma análise casuística, a ponderação também deve se basear em uma técnica, o que torna a decisão mais objetiva. Em vista disso, tais autores apresentam o que eles próprios chamaram de um verdadeiro “guia para a estruturação da aferição do sopesamento”,51 em que deve ser considerado na análise do aplicador do direito o grau de interferência sobre uma garantia fundamental, sendo certo que essa deve ser sopesada levando-se em conta o objetivo a ser alcançado. Desse modo, o objetivo acaba se tornando um limitador da interferência estatal, na medida em que a técnica admite intervenções leves em face de objetivos sérios, mas inadmite intervenções sérias para objetivos menos ambiciosos. A partir dessa técnica, e diante do caso sob análise, é de se concluir que o sério direito mitigado de ir e vir é justificado em um objetivo sério, que visa a manutenção da saúde e da vida da população em geral e que depende de uma fundamentação racional. Feitas tais considerações e retomando o conceito de Binenbojm, o quinto e último elemento apresentado por ele é a sujeição da administração pública a 48 49 50 51 BOROWSKI, Martin. Derechos absolutos y proporcionalidad. Revista Derecho del Estado, Bogotá, n. 48, p. 297-339, jan./abr. 2021. p. 305. Tradução livre de: “Conforme los postulados de la doctrina de la proporcionalidad, es un método de aplicación del derecho. No debe ser confundido con métodos subjetivistas o intuicionistas”. KLATT, Matthias; MEISTER, Moritz; COSTA NETO, João. A máxima da proporcionalidade: um elemento estrutural do constitucionalismo global. Observatório da Jurisdição Constitucional, Brasília, ano 7, n. 1, p. 23-41, jan./jun. 2014. p. 25. Ibid., p. 31. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… mecanismos de accountability. Para o autor, tal postura por parte do Estado é salutar uma vez que “os terceiros afetados pelas providências administrativas não poderão valer-se da tutela jurisdicional injuntiva contra eventuais ofensas a suas posições subjetivas”.52 Exatamente por isso que a tomada de decisões do Estado, principalmente em situações de emergência, demanda transparência e uma minuciosa prestação de contas. No Brasil, em relação aos dados da Covid-19, muitas críticas vêm sendo feitas acerca de possíveis subnotificações, mas a grande problemática envolve os gastos públicos. O governo federal, através do Projeto de Emenda Consti­ tucional nº 10 — PEC 10/2020, aprovou o intitulado orçamento de guerra, dando origem à Emenda Constitucional nº 106, cujo objetivo é flexibilizar as regras de licitação, adequando-as à vigência de calamidade pública.53 Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou “Reco­ mendações para transparência de contratações emergenciais em resposta à Covid-19”.54 Para o órgão: O Brasil e o mundo encontram-se em um período absolutamente excepcional que demanda a adoção de medidas emergenciais para o enfrentamento e con­ tenção da pandemia causada pela COVID-19. A flexibilização das regras para a realização de contratações públicas é entendida, assim, como uma medida necessária para possibilitar que governos respondam de maneira célere aos desafios que o cenário impõe, especialmente na área da saúde.55 Tais normas e recomendações, apesar de objetivarem uma maior trans­ parência das contratações, certamente também geram uma maior vulne­ rabilidade dos cofres públicos. Por isso a fiscalização deve ocorrer não apenas antes das contratações, mas durante e a posteriori. Caso haja qualquer irre­ gularidade, deverá ser possível a responsabilização do Estado. Apesar de o estado de necessidade ser uma causa excludente de ilicitude, nos termos do art. 188 do Código Civil brasileiro,56 é mais que cediço que não 52 53 54 55 56 Gustavo Binenbojm, Poder de polícia, ordenação, regulação, op. cit., p. 150. BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional n. 106, de 7 de maio de 2020. Institui regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia. Diário Oficial da União, Brasília, 7 maio 2020c. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Recomendações para transparência de contratações emergenciais em resposta à Covid-19. São Paulo: TCU, 2020. Ibid., p. 2. Art. 188. Não constituem atos ilícitos: […] II — a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo (BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 193 194 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O são somente os atos ilícitos que geram o dever de indenizar. “Embora menos comum, atos lícitos, conformes ao direito, podem, também, em certos casos, empenhar dever de reparação.”57 Conforme afirma Binenbojm, “a responsabilização civil do Estado pelos danos resultantes da atuação dos poderes de necessidade da Administração é corolário da regra da responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco administrativo e da repartição equitativa dos ônus sociais”.58 Nesse cenário, a fiscalização não deve advir apenas de órgãos estatais, mas de toda a sociedade civil, afinal o “espaço público é um espaço de corres­ ponsabilidade entre o conjunto das instituições públicas e representativas e a sociedade”59 (tradução nossa),60 sendo certo que essa última, caso seja lesada, poderá pleitear a responsabilização objetiva do Estado. Feita a análise dos elementos estruturantes, e estando os mesmos cum­ pridos, razoavelmente, no atual estado de emergência mundial, resta respon­ der a indagação: é possível que ante a situação de exceção, como salientou Carl Shmitt, direitos e garantias fundamentais sejam afastados? Certamente que os direitos fundamentais não foram alçados a tal pata­mar por mera liberalidade. Foram pensados, discutidos e, diante da importância que representam na ordem social e individual, foram consagrados como fundamentais. Desse modo, em regra, não podem ser afastados, salvo nos casos de estado de defesa e estado de sítio, nos moldes previamente estabelecidos nos artigos 136 a 139 da CR/88. Em razão da Covid-19, no dia 20 de março de 2020, entrou em vigor no Brasil o estado de calamidade pública, diferente do estado de defesa ou de sítio. Dessa forma, pelo fato de a CR/88 não fazer ressalvas quanto ao estado de calamidade pública, entende-se que as garantias fundamentais sejam preservadas. Ocorre que, mesmo não estando diante de um estado de defesa ou de sítio, não há dúvidas de que a situação é de emergência, sendo indispensável a adoção de um estado de necessidade administrativo, o que vem sendo 57 58 59 60 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002). BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 11. Gustavo Binenbojm, Poder de polícia, ordenação, regulação, op. cit., p. 150. SUBIRATS, Joan. Como ser yo mismo, ser como los demás y sentirme reconocido en mi ser distinto: el reto de la nueva ciudadanía. Revista Argumentum, Vitória, v. 5, n. 1, p. 270-281, jan./ jun. 2013. p. 270. Tradução livre de: “el espacio público es un ámbito de co-rresponsabilidad entre el conjunto de instituciones públicas y representativas y la sociedad”. Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. MAGNO FEDERICI GOMES, AMANDA RODRIGUES ALVES | O poder de polícia e a liberdade de locomoção… feito, o que acaba culminando com a relativização de algumas das garantias fundamentais, entre elas o direito de locomoção. Ante o cenário de caos, o que se deve evitar é a anulação de uma garantia fundamental. Por certo que, em razão do quadro de pandemia vivenciado, seria mais eficaz para a contenção da doença que todos, indistintamente, se mantivessem em casa por três semanas,61 que segundo a OMS é o período máximo de transmissão da doença. No entanto, é óbvio que tal medida anularia não só o direito de locomoção, mas diversas outras garantias fundamentais. Assim, diante do estudo realizado e do estado de necessidade adminis­ trativo, constata-se que a legislação em nível federal que regulamentou a li­ mitação do direito de ir e vir, especialmente no que tange ao isolamento e à quarentena, é legítima. No entanto, não restam dúvidas que o cenário atual demonstrou a rele­ vância de se criarem normas, ainda que gerais, que sirvam de orientação a um estado de necessidade administrativo, a exemplo do que existe em Portugal. Tal previsão seria capaz de retomar, mesmo em meio ao caos, uma sensação de que o estado democrático de direito está presente e que as escolhas administrativas não são feitas por mera liberalidade, mas se fundam na vontade popular externada por meio do texto legal. Considerações finais O trabalho em questão teve por foco analisar o estado de necessidade admi­nistrativo e a importância de ele ser adotado em situações emergenciais, tal qual a vivenciada com a pandemia causada pela Covid-19. Não há dúvidas de que em qualquer Estado o poder de polícia é im­ prescindível à ordem e ao bem comum, sendo razoável que se reconheça a supremacia do interesse público sobre o privado. Todavia, em um Estado que se pretende democrático, tal poder deve se valer de uma ordenação legítima, assentada na vontade popular, que se exterioriza pela lei previamente estabelecida. 61 Maria Van Kerkhove disse, no dia 29 de julho de 2020, que pessoas que apresentam o quadro grave da Covid-19 podem transmitir o vírus por até três semanas após o início dos sintomas, enquanto esse período para pacientes com a forma leve ou moderada é de até nove dias (OMS: pacientes graves de Covid-19 podem transmitir vírus por até 3 semanas. Correio Braziliense, 2020). Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 173-201, jan./abr. 2023. 195 196 RE VI S T A D E D I R EIT O A DMINIST R A T IV O Como se viu, em situações excepcionais, o Estado poderá se deparar com uma anomia, o que não pode ser um empecilho à atuação pública uma vez que é exatamente em tais situações que a população mais precisa de uma resposta rápida dos governantes, a fim de minimizar o caos. Em meio a uma situação emergencial decorrente do Covid-19, o Estado brasileiro decretou estado de calamidade pública e criou, às pressas, legislações e planos de ações para minimizar o surto da doença, bem como as consequências dela advindas. Entre tais medidas, foi necessário limitar a liberdade de locomoção dos indivíduos, consubstanciadas, entre outras, na quarentena e no isolamento, que determina que pessoas contaminadas e suspeitas de contaminação pela Covid-19 devem permanecer em seus respectivos domicílios ou hospital para que não infectem outras pessoas. O objetivo da presente pesquisa foi concluído, na medida em que se cons­tatou que tais medidas foram necessárias à situação de emergência, que demandou o reconhecimento do estado de necessidade administrativo e, por via de consequência, a relativização de garantias fundamentais, como a de locomoção, que foi o objeto do estudo. Diante de tal constatação foram analisados os elementos estruturantes do estado de necessidade administrativo, tendo sido verificado que todos eles, em maior ou menor escala, estavam presentes na adoção das medidas de restrição de liberdade analisadas. Assim, a limitação imposta pelo poder público se mostrou razoável e legítima, o que não afasta a necessidade e a urgência de o Estado, a partir da realidade vivenciada, criar normas que regulem o estado de necessidade admi­nistrativo no país, a exemplo do que já existe em Portugal, e o que é indis­pensável a qualquer estado democrático de direito. Referências AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. AMARAL, Diogo Freitas do; GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O estado de necessidade e a urgência em direito administrativo. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 59, v. II, p. 447-518, abr. 1999. Disponível em: https:// portal.oa.pt/upl/%7B5ecf9da1-a3e8-4a96-b682-e12f439d2d88%7D.pdf. 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