Opitz Manuela Ribeiro Fernando Clara - SOCIEDADE E CULTURA ALEMAS Universidade Aberta 1998 Sociedade e Cultura Alemãs Prefácio I. ÁREAS CIENTÍFICAS E PERSPECTIVAS TEÓRICAS i' Sociedade e Cultura Alemãs: dimensão histórica e epistemológica 22 História cultural (Kulturgeschichte) 25 História social (Sozialgeschichte) 26 História da sociedade (Gesellschaftsgeschichte) 28 Perspectivas Teóricas 28 Ciência cultural (Kultunvissenschaft) 33 Teoria cultural (Kultunheorie) 37 Crítica cultural (Kulturkritik) 39 O conceito de cultura: definições II. CONCEITOS DE CULTURA -' 1 Kultur e Zivilisatioll 51 Cultura 51 Cultura e realidade intelectual 5I Cultura nacional 52 Sentido antropológico: particular e universal 53 A etimologia da palavra cultura 54 Cultura: o emergir da noção antropológica 56 Civilização 57 Civilização e Europa 57 A etimologia da palavra civilização 59 Civilização, cultura e identidade nacional 60 Civilização e imperialismo 6I A oposição KulturlZivilisatioll 61 A evolução na Alemanha entre os séculos 68 A evolução semântica das palavras Kultur e Zivilisation e a história do xvrrr e XX espaço cultural alemão 5 71 Cultura nacional e multiculturalismo 71 A reinvenção da tradição 72 A revisão da história 73 A Alemanha multicultural 74 Cultura essência e reinvenção 2o!! Bildung e Erfahrung: pedagogia, cosmopolitismo, intercul turalidade 81 A noção de Bildung 81 Dificuldades na definição de Bildung 82 Origens e usos da noção de Bildung 84 A secularização do conceito de Bildung no século XVIII 89 O (Re)Nascimento da Pedagogia 89 A educação na Europa em meados do século XVIII 92 O (Re)Nascimento da pedagogia 95 A noção de Bildung e a reforma do sistema educativo alemão 97 Bildung e Erfahrung: viagens, cosmopolitismo e interculturalidade 98 Bildung e Eifahrung 100 A viagem como corolário da educação 102 A descoberta d a Europa III. ESPAÇOS 1. 6 «So weit die Deutsche Zunge klingt»: nação, língua e território 111 Da nação ao nacionalismo 111 Questões prévias 112 O conceito de nação 113 Da nação ao nacionalismo J 17 Um conceito europeu 118 As nações alemãs 118 Estados e territórios 121 Sprachnation/Kulturnation: A comunidade da língua e da cultura 123 A nação alemã 123 Língua, cultura e sociedade 126 História e Política 127 Pedagogia política 2. Au.fkliirung e modernidade 137 Conceito de Aufkliirung 140 Luzes e século XVIII 142 Luzes e Aujkldrllng( en) 143 A sociedade na Alemanha do século XVIII 143 Nação atrasada? 147 A «Alemanha» no século XVI1I - Geografia política, sociedade, economia e cultura 150 A burguesia na «Alemanha» do século XVIII 151 Aufkliírung(eu) 153 Fases da Aujkldrung 153 A primeira fase da Aujkldrung (Frühalljkldrung) (1680-1750) 154 A alta Aujkldrung (Hochaujkldrung) (1750-1770) 155 A Spdtaujkliirung (1770-1789) 156 A contra-cultura burguesa 156 O emergir de uma consciência nacional? 158 Identidade europeia e colonialismo 160 O Pacífico: ciência do Homem e mito 161 Viagem e utopia 162 As Luzes e a dialéctica da emancipação e da opressão: selvagens, mulheres, crianças, loucos e judeus 3. A formação do espaço público 171 A contra-cultura burguesa 171 O tempo 7 172 O espaço 173 Público e privado 173 Espaço público e iniciativa privada 174 A sociedade de corte e a representação 174 Divisão do trabalho e delegação do poder 175 Espaço público e afirmação da contra-cultura burguesa 177 Órgãos do espaço público 177 A transição 179 A formação do espaço público na Alemanha do século XVIII 185 A reorganização do espaço e dos papéis sociais 185 A cisão entre o espaço do trabalho e da família: a burguesia 185 Divisão do trabalho e família 186 A redistribuição do espaço doméstico e a intimidade 188 Espaço doméstico 188 A divisão de trabalho na família burguesa: homens, mulheres e crianças 191 Espaço público e subjectividade 192 Sociedades secretas 194 O novo público: teatro e música 195 Conclusão 4. Natureza romântica e identidade nacional 8 203 A natureza como universo simbólico: o exemplo dos Alpes 206 Dimensão religiosa e moral da natureza transcendente 208 Paisagem romântica e identidade nacional alemã 210 O Reno como cenário romântico 211 A floresta alemã 213 A natureza burguesa e os seus espaços específicos 214 O espectáculo da natureza no Panorama 216 Espaços naturais recriativos no século XIX 217 A natureza compensatória IV. TEMPOS 1. A Alemanha de 1815 a 1848 229 Periodização e perspectivações historiográficas 231 Evolução das estruturas políticas e da identidade nacional 236 Crescimento demográfico e liberalização económica 238 Abertura cultural e comunicação pública 243 A dupla Revolução Alemã 2. A Alemanha Guilhermina 251 A Alemanha guilhermina: a unificação tardia e a «via específica alemã» 254 A economia na era guilhermina 255 As classes 256 O poder político 257 A unificação 259 Estruturas políticas do II Reich 261 A vida cultural 261 Ensino 263 Vida quotidiana: a família 265 Vida quotidiana, mentalidades: «A condição feminina» 268 A «questão judaica» 272 O colonialismo alemão (1884-1914) 276 A Alemanha entre a modernidade e o autoritarismo conservador 3. Emigração, Exotismo, Escapismo: do antimodernismo às vanguardas artísticas - tendências centrífugas na Alemanha oitocentista 285 A migração interna 286 A emigração 287 O exotismo 289 Tendências antimodernistas 292 Movimentos reformistas e vanguarda artística 9 4. Os Anos Vinte 303 Entre o Leste e Oeste: O regresso da Kultur 307 O pós-guerra e as tensões sociais: o exemplo soviético e a democracia ocidental 309 1923-1929/1930: a estabilidade emprestada ou a vitória da Zivilisation? 310 1930-1933: o regresso da Kultur? 31 I Para além do bem e do mal 312 A civilização e as massas 314 Bauhaus: arte e técnica 315 Cinema: entre a vanguarda e a massificação 320 A vitória da Zivilisation? 5. Da Apoteose da Superioridade Germânica à Rendição Incondicional 329 Multiculturalismo e «pureza rácica» 329 A historiografia sobre o III Reich 330 A Alemanha e a «via específica». A continuidade histórica e o nacionalsocialismo 331 Modernidade e nacional-socialismo 336 Os factos 336 Os antecedentes 337 Entre 1933 e 1934: conquista e consolidação do poder 340 Entre 1934 e 1939: Os anos da consolidação 344 Entre 1939-1945: o tempo da guerra 348 Exílio, emigração e resistência 350 A «solução final» 6. A Alemanha contemporânea 10 359 O pós-guerra 360 Migrações e modificações sociais 361 Evolução económica 362 Reconstrução do sector administrativo e público 364 A divisão alemã 365 As duas Alemanhas 366 Os anos 50 368 Os anos 60 368 Relações com a RDA 368 Reforma do sistema educativo 369 O fim da era Adenauer 370 O movimento estudantil (Sludenlenbewegung) 373 Mudanças, reformas e crises (1969-1989) 376 Desintegração do Pacto de Varsóvia e reunificação alemã 378 A RDA - 381 A Alemanha reunificada 40 anos de socialismo alemão 7. A Alemanha na Europa 390 A Europa: evolução histórica e espaço comunitário 390 A constituição do espaço cultural europeu 392 A Europa comunitária 394 A identidade alemã e a Europa na era da globalização 395 A globalização económica 397 A globalização mediática 402 Identidade e diferença na sociedade multicultural europeia Bibliografia 11 PREFÁCIO A recente valorização de cadeiras culturais nos curricula universitários das áreas de Línguas e Literaturas Modernas justifica uma reflexão prévia sobre a disciplina que aqui é designada de Sociedade e Cultura Alemãs. Esta disciplina baseia-se teórica e institucionalmente nas ciências culturais e, por isso mesmo, ultrapassa a mera transmissão de informações sobre a história, a sociedade e a cultura alemãs. No ensino do alemão para estrangeiros, recentemente designado como Deutsch aIs Fremdsprache (DaF), os conhecimentos básicos sobre as instituições e a vida actual na Alemanha eram tradicionalmente apresentados sob a etiqueta de Landeskunde. No entanto, a Landeskunde não se deve confundir, como parte do ensino da língua no ensino secundário e nos primeiros anos da faculdade, com uma área curricular (os estudos culturais) que pretende, apesar da sua orientação interdisciplinaí, uma autonomia científica, com métodos e objectivos bem determináveis e um enquadramento teórico próprio. A concepção deste Manual contempla, assim, duas linhas directrizes: evidenciar resumidamente a construção social de uma zona específica de conhecimentos (com os seus métodos, conceitos e instituições próprios) e apresentar diversos conjuntos fenomenológicos que surgem durante a evolução histórica da cultura alemã a partir do século XVIII. A concentração temporal nas épocas daAujkliirung até ao fim do século XX impõe-se por várias razões. Por um lado, não se justifica do ponto de vista pedagógico uma única cadeira anual que condense a história sócio-cultural alemã na sua totalidade. Por outro lado, a Aujkla1w1g define e antecipa já os principais problemas políticos e sociais que afectam a Alemanha actual, e os dois últimos séculos revelam, apesar de um percurso histórico bastante conturbado, uma continuidade que ajuda a explicar o tempo presente. O Manual é constituído por quatro unidades temáticas básicas: as áreas científicas, os conceitos essenciais na área da sociedade e cultura alemãs, os espaços e os tempos mais característicos da sua história social e cultural. Assim, a parte introdutória (parte I) apresenta as várias áreas científicas e os principais paradigmas teóricos das ciências culturais que abrangem actualmente uma série de disciplinas concorrentes e complementares. Na segunda parte (parte II) são definidos os três conceitos-chave (Kultur - Zivilisation - Bildung) que apontam para aspectos histórica e ideologicamente específicos da Alemanha e para a sua identidade tradicionalmente problemática. 13 Os onze capítulos seguintes (parte III e IV) exemplificam esta especificidade da cultura alemã através de núcleos temáticos representativos desde a Aujklârung à Alemanha actual numa Europa em plena mudança. Em face da riqueza duma possível fenomenologia cultural e social do espaço alemão, os capítulos e exemplos apresentados são extremamente selectivos. A música e o cinema, por exemplo, serão só tratados pontualmente e a cultura popular e quotidiana não pode ocupar o lugar que corresponde à sua importância. Neste sentido, o Manual proporciona uma base de trabalho que permite a familiarização com aspectos representativos da cadeira bem como o aprofundamento, com o apoio da bibliografia geral, do estudo dum domínio que se impõe cada vez mais no perfil curricular dos Estudos Alemães no estrangeiro. Os capítulos sobre os núcleos temáticos representativos têm, ao nível da leitura e do estudo, uma certa autonomia. Mas como pressupõem as perspectivas teóricas esboçadas na introdução, recomenda-se a releitura do primeiro capítulo (1.1.3) de modo a aprofundar, com base nos conhecimentos adquiridos ao longo do manual, os conceitos e pressupostos analíticos que orientam o entendimento dos aspectos essenciais da sociedade e cultura alemãs. As iniciais no fim da cada capítulo indicam o respectivo autor, o último capítulo (IV7) tal como a bibliografia são da responsabilidade comum dos três autores. A. O. I SV3IH03:.L SVAI.L33:dSH3:d 3: SV3IJlI.LN3:13 SV3:HV ,. ,., . -I 1. Sociedade e Cultura Alemãs: dimensão histórica e epistemológica Resumo Neste capítulo, define-se a área de estudos «sociedade e cultura alemãs» e caracterizam-se as diversas disciplinas existentes no domínio da historiografia cultural. Indicam-se as principais perspectivas teóricas e as recentes definições do conceito de cultura tal como os respectivos paradigmas analíticos que permitem uma abordagem operacional do objecto de estudo. Objectivos • Distinguir as várias ciências sociais na área da cultura e os seus objectivos. • Entender a dimensão específica duma teoria cultural modema. • Entender as razões e as implicações da actual reestruturação científica na área curricular da cultura. • Assimilar um conceito abrangente e operacional de cultura que permita estudar a realidade sócio-cultural alemã, de acordo com as premissas teóricas apresentadas. 19 Definir uma área de estudos como a de sociedade e cultura alemãs não é fácil porque cada termo em si já se revela, historicamente e no contexto da discussão actual, bastante problemático. O conceito de cultura conheceu, só durante os dois últimos séculos, uma série de definições controversas, e a própria área da cultura diferenciou-se, no século XX, num número crescente de disciplinas académicas. Mesmo as tentativas mais recentes de estabelecer uma base consensual para as Kulturwissenschaften (ciências culturais) ainda não conseguiram ultrapassar divergências básicas no que diz respeito ao próprio objecto de reflexão e de estudo. Por outro lado, o termo sociedade, em aparência tão simples como corrente, ganha também, se o examinarmos de mais perto, na sua maior ou menor exclusividade, uma ambiguidade fundamental que se verifica já durante a Aufklarung nas definições restritivas da sociedade civil (cf. Cap. III.2.8). A definição moderna do conceito, que apresenta, de acordo com a filosofia hegeliana, a sociedade como zona intermediária entre o poder e o cidadão, coloca problemas epistemológicos que afectam directamente as ciências sociais e nomeadamente o desenvolvimento institucional da historiografia na Alemanha oitocentista (cf. Cap. 1.1-3). Em último lugar, o adjectivo alemão não corresponde - e nunca correspondeu - a uma divisão estatal - a RFA, a Áustria e a Suíça alemã não apresentam nem uma homogeneidade linguística (cf. Cap. III. 1) - nem tão pouco uma unidade cultural, e a República Federal daAlemanha é composta, desde 1991, por dois Estados que se mantiveram durante mais de 40 anos em confrontação política e sócio-cultural (a «guerra fria» entre dois blocos militares e económicos), cujas sequelas continuam ainda a dificultar a integração das duas Alemanhas. As peripécias da história alemã recente não deixam de lembrar que a «Alemanha» sempre abrangeu uma variedade de espaços políticos, sociais e culturais diferentes que, além de mais, deve muito não só à cul tura clássica, mas também às culturas italiana, francesa, inglesa e, na segunda metade deste século, americana. Por outro lado, iniciou-se, com a integração europeia, um processo económico-social que veio e, decerto, irá aI terar profundamente as chamadas tradições «nacionais» e cujas consequências, para além da uniformização económica e administrativa, são ainda bastante imprevisíveis. A complexidade dos conceitos de sociedade e cultura corresponde a uma diversificação das disciplinas historiográficas que se podem distribuir em dois grupos antagónicos, caracterizados como Ereignisgeschichte (que contempla sobretudo acontecimentos isolados, importantes decisões políticas e personalidades eminentes da história sócio-cultural) e como Strukturgeschichte (que analisa estruturas e processos gerais). 21 A historiografia alemã do século XIX é dominada pela Ereignisgeschichte que se debruça principalmente sobre a história política. Na tradição do idealismo do Estado, consagrado na filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), os historiadores privilegiaram a dimensão política e nacional, considerando o Estado como sujeito e centro do processo histórico. As clivagens que se verificam, desde o fim do século XVIII, entre o Estado e uma sociedade em plena evolução, acabaram por dissociar também o objecto da historiografia que se dividiu em escolas e tendências divergentes. Assim, em oposição à corrente da história política numa perspectiva nacionalista, articularam-se, durante a segunda metade do século XIX, disciplinas como a história social e a história cultural que privilegiam o estudo duma zona intermediária entre o indivíduo e o estado, a sociedade civil segundo Hegel. A partir da dupla revolução dos anos 40 (cf. Cap. IV1), esta zona ganha, através do conceito de «sociedade» uma autonomia social e emancipatória, já que representa, face ao imobilismo das estruturas estatais, as forças dinâmicas da evolução histórica. Este conceito de «sociedade» era integrativo e abrangente no sentido de incluir aspectos políticos, económicos, sociais e culturais, pelo que necessitava, tendo em conta as ciências sociais emergentes, de uma metodologia e uma perspectivação historiográfica diferentes. É desta diferenciação crítica da sociedade que surgem também a teoria socialista de Karl Marx (18181883) e Friedrich Engels (1820-1895) e a sociologia alemã moderna que deve impulsos decisivos a Max Weber (1864-1920) e Georg Simmel (1858-1918). Por outro lado, o contexto do recém-formado Reich (1871) e do seu conserva. , dorismo favoreceu de novo os conceitos'idealistas de liberdade, Estado e personalidade, relegando-se as tendências de reforma e de democratização para segundo plano. Assim, as correntes reformistas, acusadas de materialismo e comunismo, foram marginalizadas política e socialmente. Esta marginalização afectou também a história cultural oitocentista que integrava ainda a economia e a psicologia social na sequência da perspectiva emancipatória daAujkldrung. 1.1 História cultural (Kulturgeschichte) A história cultural surge em simultâneo com o moderno conceito de cultura no contexto duma história dinâmica e progressiva que se afirma, na Alemanha, nos anos 80 do século XVIII. Já em 1782, o historiador e filólogo Johann Christoph Adelung (1732-1806) publica Versuche einer Geschichte der Cultur des menschlichen Geschlechts e, pouco depois, Johann Gottfried Herder (1744-1803) apresenta a sua versão universal da evolução histórica da humanidade (cf. Cap. II.I). 22 Directamente ligadas ao pretendido telos do próprio processo histórico, a cultura e as suas manifestações nas várias épocas e sociedades revestem-se duma função ideológica cujo impacto se revelou, no caso alemão, ao longo dos dois últimos séculos bastante complexo e problemático. Dado que o conceito de ideologia é actualmente um dos conceitos mais controversos nas ciências sociais e humanas, impõe-se uma breve clarificação. Historicamente, e na sequência da teoria crítica de Marx e Engels (Die deutsche Ideologie, 1845), ideologia significa uma maneira errada e deformada de pensar (cf. Payne 1996: 252-256). Esta definição implica ainda um saber «correcto» e uma realidade objectiva, aberta à análise crítica. Este realismo ontológico, porém, já não corresponde ao relativismo das actuais ciências cognitivas. Nas definições mais recentes, que surgem sobretudo no contexto do estruturalismo francês, entende-se por ideologia um conjunto de opiniões e atitudes dum grupo ou duma classe social (uma Weltanschauung) ou, numa perspectiva mais pragmática, o medi um mais ou menos consciente dum comportamento habitual. Uma outra vertente crítica (Foucault, Pêcheux) estuda a inscrição do poder social na linguagem e nas instituições que desenvolvem os respectivos discursos. Nestas definições, ideologia torna-se quase sinónimo de cultura, o que leva a uma certa imprecisão conceptual. Em face desta imprecisão, é conveniente a redução do conceito a uma perspectiva funcionalista. Por conseguinte, o termo de «ideologia», tal como será utilizado neste manual, significa um conjunto de ideias, valores e atitudes ligados a determinados interesses de poder. Falamos de ideologia quando se trata de manter um poder polít'ico e económico estabelecido ou de conquistar esse poder contra um outro grupo ou uma outra classe social. Esta definição permite distinguir adimensão fenomenológica (os artefactos e os rituais a eles associados), a dimensão ideológica (os interesses sócio-económicos que levam à produção e à distribuição destes artefactos) e a dimensão estrutural (o funcionamento da ideologia num determinado contexto histórico). A história cultural, que em finais do século XIX se concentra na história da civilização e da evolução interna dos povos com as suas principais ideias e manifestações, vira-se, a partir de 1900, para uma história das artes e das ideias, produzindo nesta área programas de investigação e publicações que, até hoje, e já longe da visão sintética inicial, constróem a cultura como domínio autónomo. Um exemplo disso é a Kulturgeschichte der Neuzeit (3 vols., München, 1927-1931) do escritor austríaco Egon Friedell (1878-1938) que se suicidou 23 quando os nacional-socialistas ocuparam a Áustria. A sua obra, confiscada e destruída pela Gestapo, foi reeditada repetidas vezes depois da guerra, e a introdução «Was ist und zu welchem Ende studiert man Kulturgeschichte?» ilustra bem (e não só com a alusão à famosa lição inaugural de Schiller em Jena de Maio de 1789) as aporias da história cultural tradicional de cariz idealista. Friedell parte do princípio goetheano que os factos escondem sempre uma ideia e que, por isso, a própria historiografia é basicamente tendenciosa e valorativa. A causalidade histórica não passa duma ilusão: Wir kennen die wahren Krafte nicht, die unsere Entwicklung geheimnisvoll vorwartstreiben; wir kbnnen einen tiefen Zusammenhang nur ahnen, niemals lückenlos beschreiben. (Friedell 1954: r, I 1) Por outro lado, Friedell afirma que cada época constrói a sua imagem específica do passado e a história é uma permanente reinterpretação deste passado. Assim, falar do passado é falar de nós: «Wir kbnnen nie von etwas anderem reden, etwas anderes erkennen ais uns selbst» (ib.: 17). Esta perspectiva bastante moderna - a autoreferencialidade do discurso historiográfico - remete, porém, para uma hierarquia tradicional das áreas culturais que vai, partindo da economia, da sociedade e do estado e passando pelos costumes, a ciência, a arte e a filosofia, culminar na religião. Esta perspectivação historiográfica no sentido do valor supremo da religião explica também o culto do génio, dos grandes homens que representam uma época e o seu espírito, a sua «alma», Para Friedell, a cultura é ainda um grande todo orgânico e os historiadores aparecem como os secretários do Weltgeist hegeliano. As consequências desta perspectiva são evidentes; ela implica uma selectividade extrema que exclui do horizonte histórico tanto as culturas populares e marginais como a cultura industrial. Estas limitações são compreensíveis já que a área excluída está, nesta época, ainda ocupada, em grande parte, por uma disciplina chamada Volkskunde que se estabeleceu nos finais do século XIX, com uma forte carga ideológica, para estudar as manifestações «naturais» do povo e da sua «alma». Uma pré-forma de antropologia e etnologia regional - a palavra aparece pela primeira vez nos anos 80 do século XVIII neste sentido - , a Volkskunde estuda as artes, costumes e a literatura populares, mas igualmente tradições, crenças e superstições. Ligada durante muito tempo a uma Germanística de tendência nacionalista, a Volkskunde procedeu entretanto a uma revisão teórica numa perspectiva mais moderna e isenta da ideologia organicista e nacionalista do século passado. Como disciplina que existe actualmente em 25 universidades alemãs, austríacas e suíças, por vezes já com a designação de Ciência Cultural 24 Empírica ou Etnologia Europeia, deblUça-se sobre as culturas das várias classes e grupos sociais. Neste sentido, ao investigar principalmente as relações sociais na sua evolução histórica, cobre uma área que a antropologia social explora para o tempo presente. Por outro lado, a própria história foi, na segunda metade do século XX, objecto duma importante mudança de paradigma, que levou, entre outras coisas, a uma valorização do papel do indivíduo na construção do mundo social e a uma maior atenção à dependência da historiografia de esquemas narrativos e retóricos que organizam e estruturam a contingência factual. Das posições antagónicas nesta discussão ainda vigente, que deve muito à historiografia francesa moderna, destaca-se uma perspectiva dialéctica que considera tanto a construção discursiva do fenómeno social como a construção social do discurso. A revisão da história cultural acompanha esta mudança de paradigmas da historiografia geral (cf. Hansen 1993). Nesta perspectiva, a história cultural actual é mais um alargamento da história social do que a continuação da história cultural tradicional. Ao estudar as representações do tempo passado e presente e as projecções do futuro, tal como as legitimações variáveis do agir e os diferentes ti pos da elaboração de identidade, a nova Kulturgeschichte (cf. Vierhaus/Chartier 1995) ganhou uma autonomia epistemológica que se integra perfeitamente na transdisciplinaridade das ciências sociais modernas. 1. 2 História social (Sozialgeschichte) Surgindo na sequência das mudanças económicas do século XIX e do «movimento social» que se dinamizou em face da incapacidade de o Estado absolutista reagir à transformação acelerada da sociedade, a história social analisa em primeiro lugar a estratificação soci aI e as diversas formas de interacção ao nível das classes, grupos e associações profissionais que determinam e modificam a realidade social. Tradicionalmente assimilada à história económica, a história social alemã começou a autonomizar-se durante a segunda metade do século XX, sem por isso ganhar a importância institucional que adquiriu nos Estados Unidos e na França. Com o fim do nacionalismo idealista e a experiência da ditadura fascista, estava preparado o terreno para uma mudança de paradigma que, com a rápida evolução da sociologia e das ciências políticas na RFA, criou as condições para uma história social moderna que começou por definir-se como história estrutural ao analisar as condições e as possibilidades das actividades sociais e a evolução das várias classes, camadas e grupos sociais. Com esta orientação, são focados duma maneira sistemática fenómenos importantes 25 como, por exemplo, a família e a educação, as condições de trabalho e os tempos livres, as mentalidades e a mobilidade social, a emancipação das mulheres e o turismo. A recente história social opera principalmente em três perspectivas: uma perspectiva histórica, que descreve a evolução da semântica histórica; uma perspectiva biográfica, que reconstitui vidas individuais típicas dum grupo social ou duma época e; • uma perspectiva estatística, que fornece dados concretos sobre a vida privada, a educação, etc. Hoje em dia, existe já uma teorização elaborada que distingue a história social da história económica, na sequência de um processo geral de diferenciação que abrangeu todas as ciências historiográficas Ccf. Wehler 1973). A diversificação das perspectivas corresponde ao pluralismo actual das maneiras de viver e à dissolução geral das periodizações e normas tradicionais (cf. Schulze 1994). Em vez de uma história, coexistem uma série de histórias, da história do quotidiano e da TIÚcro-história aos gender studies: «Alie diese Geschichten berühren und überschneiden sich vielfach, keine von ihnen kann den Anspruch durchsetzen, Integrationswissenschaft zu sein, alie sind Aspektwissenschaften» (Hardtwig 1994b: 26). Surgiu, no entanto, uma escola historiográfica que mantém precisamente a pretensão duma abordagem integrativ.a. l.3 História da sociedade (Gesellschaftsgeschichte) Em face da progressiva diversificação teórica e institucional das ciências historiográficas, fez-se sentir a necessidade duma interpretação abrangente, duma história geral, integrando a economia, o Estado, a vida cultural e social. É nesta perspectiva que se perfilou a história da sociedade, representada na Alemanha principalmente por Hans-Ulrich Wehler e a escola de Bielefeld, cujo obra monumental Deutsche Gesellschaftsgeschichte (em 4 volumes) é uma síntese impressionante que permite compreender a sociedade e cultura alemãs na sua complexidade e na interdependência dos sectores tratados, sectores esses que, anteriormente, eram concebidos e tratados separadamente. A história da sociedade propõe uma síntese do sistema que resulta da interacção de três domínios: o poder político, a economia e a cultura. 26 A distinção entre estes três domínios é pragmática no sentido de permitir o trabalho analítico e descritivo sobre uma determinada realidade. Ao estabelecer eixos contínuos e interdependentes, é possível destacar uma «estrutura social» que se manifesta a todos os níveis da vida social e individual e cuja evolução ao longo das épocas pode ser evidenciada. Esta perspectiva distancia-se claramente do conceito tradicional de «sociedade» que, a partir de Hegel, determina uma esfera sócio-económica entre o Estado e o indivíduo que, com o advento da burguesia, entra em oposição com a organização do Estado. Ao pensar três dimensões autónomas e interdependentes, a história da sociedade ganha uma flexibilidade que permite tanto estudos de pormenor nos sectores mais variados como uma síntese global da evolução histórica. Contudo, a história da sociedade está perfeitamente consciente da relatividade de qualquer epistemologia: Menschliches Wissen in den Humanwissenschaften bleibt Partialerkenntnis, die an bestimmte Erkenntnisabsichten oder an «Kulturwertideen» (Weber) gebunden ist und sich mit dem Wandel dieser Ideen selber wieder verandert. (Wehler 1987: 7) Na interacção entre poder, economia e cultura, a história da sociedade trata principalmente de três aspectos essenciais que marcaram não só o passado e o presente, mas determinarão ainda o futuro da sociedade alemã. São eles: 1.° o desenvol vimento do capitalismo industrial que transformou um país feudal e rural num moderno Estado industrializado. Na Alemanha esta transição situa-se nos anos 40 do século XIX; 2.° a formação de classes sociais e dum Estado centralizado e burocrati- zado e; 3.° em termos culturais, uma racionalização geral que inclui a secularização das tradições metafísicas e o desenvolvimento das ciências, um processo acelerado pelo modelo inglês e pela influência da Revolução Francesa e das invasões francesas. Um aspecto bastante controverso do trabalho de Wehler é a teoria do Sondenveg alemão (cf. Cap. IV2.1), a via específica dum país que não conheceu, como a Inglaterra, aAmérica do Norte e a França, uma revolução política bem sucedida, que realizou a revolução industrial tardiamente e só conseguiu, em 1871, a unificação territorial a troco da exclusão dum importante território de língua e tradições alemãs, a Áustria. Neste sentido, a história da sociedade dá um contributo importante para entender melhor a evolução dessa estrutura complexa e controversa a que se chama tradicionalmente a «Alemanha». 27 Neste momento, a história da sociedade pode ser considerada um paradigma particularmente funcional na medida em que pemute fazer convergir a história económica e social, por um lado, e a história política e cultural, por outro. Os principais pressupostos e ambições da história da sociedade deixam-se resumir muito globalmente da maneira seguinte: qualquer conhecimento nas ciências sociais e humanas está ligado a interesses específicos e a ideias directrizes. Por sua vez, estes interesses estão sujeitos a uma permanente mudança. Já que uma reconstrução total do passado é impossível, qualquer abordagem teórica e teminológica tem de reduzir e simplificar uma complexidade contingente que nunca é idêntica às suas representações. No entanto, a historiografia pode, no relacionamento das dimensões centrais do poder político, da econorrlÍa e da cultura, destacar as grandes linhas do processo histórico que se reflectem em todos os sectores da sociedade e da vida privada. Assim, uma história social estrutural consegue caracterizar influências e dependências que determinam e modificam tanto a vida das colectividades como os destinos individuais. 1.2 Perspectivas Teóricas A progressiva diversificação das ciências sociais e culturais produziu um pluralismo analítico que se manifesta tanto ao nível da teoria e da crítica cultural quanto ao nível do próprio conceito de cultura. Em face das numerosas teorias e tendências sucessivas e concorrentes, os capítulos seguintes limitam-se a indicar a configuração actual dos estudos culturais na Alemanha e alguns aspectos típicos da tradição alemã que se mostrou particularmente produtiva tanto no que respeita à valorização ideológica como à contestação radical do processo cultural. Finalmente, serão apresentadas várias definições operacionais do conceito de cultura que perrrlÍtem enquadrar teoricamente o estudo concreto da vida social e cultural alemã na sua dimensão histórica e actual. 1.2.1 Ciência cultural (Ku1turwissenschaft) Desde a reunificação que se tem vindo a assistir na Alemanha a uma acesa discussão pública sobre a definição e a relevância social das ciências na área da cultura. O termo tradicional Geisteswissenschaften remonta, segundo Gadamer (1986: I), à tradução do conceito de moral sciences de John Stewart Mill (1806-1873) e acentua inicialmente a analogia entre estas ciências e as ciências naturais. O termo (o equivalente dos liberal arts na Inglaterra e das 28 humanities nos Estados Unidos) viria, no entanto, a ganhar conotações elitis-tas e até nacionalistas. Assim, alnternationale Zeitschriftfür Philosophie der Kultur mudou em 1935 o seu nome para Zeitschrift für Deutsche Kulturphilosophie. Os editores, entre eles Hermann Glockner, o editor da Jubildumsausgabe (1927-1929) das obras de Hegel, salientam aquilo que o autor chama de «geistige[n] Umbruch unsererTage» na base das eternas forças do «Volkstum» alemão: «Echte Kultur ist immer der Ausdruck eines schéipferischen Gemeingeistes»; e ainda: «Diese neue Haltung der Geisteswissenschaften bestimmt die neue Richtung der Zeitschrift» (n. o 1, 1935, pp. 1-2). Dadas estas conotações duvidosas, o termo Geisteswissenschaften perdeu grande parte do seu prestígio tradicional. Daí, e tendo em conta o actual contexto intercultural da vida académica, a necessidade duma reorientação que, curiosamente, não contemplou a terminologia utilizada em França (sciences humaines e daí ciências humanas em Portugal), mas recorreu ao conceito de cultura que parece mais compatível com os respectivos sectores nos países anglo-americanos. Por outro lado, a discussão alemã situa-se nitidamente na sequência da crise geral das ciências sociais tal como foi discutida já a partir de 1970 sobretudo na França e nos Estados Unidos. Esta crise tem várias razões. O idealismo subjacente à separação tradicional entre ciências naturais e ciências do «espírito» tornou-se obsoleto, e as pretensões universalistas do paradigma sociológico dos anos 70 perderam igualmente a sua credibilidade. O declínio do projecto ocidental duma civilização progressista e universalista, tal como as limitações das teorias globais de Marx a Weber e Luhmann, prepararam uma nova atitude científica face à complexidade contingente do real. Por outro lado, a omnipresença de influências e poderes culturais chama a atenção para a mudança de valores e mentalidades e para a situação do indivíduo moderno face a um sentimento fundamental de insegurança que, segundo Bühme, caracteriza o trabalho cultural desde o início: Denn das ist eine Fundamentalerfahrung, die der «Kultur» zugrunde1iegt: alies ist ephemer, flüchtig, «dem Taglichen unterworfen», zeitlich vom Tode und raumlich vom Kollaps der gemeinschaftlichen Topographien bedroht. (Bbhme 1996: 59) A nível institucional, verifica-se uma consciência crescente de que as delimitações das disciplinas académicas são artificiais e contingentes (os estudos germanísticos, romanÍsticos e anglísticos só se estabeleceram na segunda metade do século XIX, a psicologia durante a segunda guerra mundial). O conceito de cultura, suficientemente difuso e flexível, e por isso compatível com a tendência internacional da interdisciplinaridade, permite também continuar uma tradição crítica e relativista europeia, tal como a representam na Alemanha certos aspectos da filosofia de Herder que 29 ganharam, com a globalização sócio-cultural (cf. Cap. IV7), uma nova actu aI idade. Nesta perspectiva, a reestruturação das disciplinas tradicionais no sentido da internacionalização e modernização tenta dar a devida atenção à importância da revolução mediática e à perda progressiva da predominância do livro e da imprensa escrita. As ciências culturais permitem integrar os novos media numa base comum constituída principalmente pela antropologia histórica, as ciências cognitivas e as ciências da comunicação. As funções principais desta área científica que nos anos 70 ainda eram atribuídas à sociologia, consistem, por um lado, em proporcionar conhecimentos para o poder pol ítico (Herrschaftswissen) e, por outro, numa Aufkliirung empírica e na constituição de sentido numa sociedade em crise. Assim, em vez das disciplinas tradicionais, começam a instituir-se novas formas de produção de saberes e conhecimentos, organizadas tematicamente e não por disciplinas. Neste sentido, uma ciência cultural é, no entendimento actual, algo diferente da interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade tradicional. Implica um novo quadro teórico e metodológico, que pode utilizar perspectivas e métodos das várias disciplinas tradicionais, mas numa base própria. Um exemplo desta reorganização teórica e institucional é a Kulturwissenschaftliche Fakultat da Europa- Universitiit Viadrina em Frankfurt/Oder que integra a filosofia e a história cultural, as ciências sociais numa perspectiva comparatista, as ciências literárias e a linguística. O curriculum desta faculdade já não é organizado por disciplinas, mas por núcleos temáticos interdisciplinares (como «Cidade - Região - Cultura» ou «Retórica Direito - Instituições») que proporcionam uma formação polivalente. Os futuros diplomados em ciências culturais devem igualmente conhecer três línguas estrangeiras e efectuar estágios no país e no estrangeiro. Nesta perspectiva, constituiu-se, durante os últimos anos, também em várias outras universidades alemãs um grupo de disciplinas com a designação de ciências culturais da comunicação (Medienkulturwissenschaften) que já originou uma série de novos cursos que tentam adaptar a formação académica a um mercado de trabalho em plena evolução. Estes cursos são essencialmente transdisciplinares. A transdisciplinaridade implica, neste contexto, um conceito operacional de cultura para a área estudada. Tal como a inte rdi _ciplinaridade, esta orientação pressupõe uma disciplinaridade bem defini da que permita, depois, perspectivar o objecto de estu do de acordo com metodologias de outras disciplinas. Nas ciências culturais dominam actual mente duél!. c·no..._ .. ,~~ metodológic . a semiótica e a hermenêutica estrutural. Para m.ilar o impacto das Mvthologies (19 57) de Rol d • wn liHO 30 que, ao transformar a publicidade e a imprensa em objectos de análise semiótica, criou novos campos de investigação e interpretação. Na Alemanha, o historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) já tinha esboçado, nos anos 20, um grande programa de investigação sobre a memória colectiva que incluia também materiais da vida quotidiana como anúncios publicitários, selos, fotografias etc., organizados em sequências simbólicas que documentavam a função estabilizadora da memória cultural. A importância do símbolo na expressão e na orientação das manifestações culturais levou Warburg ao projecto dum vasto atlas iconográfico cujos painéis temáticos deviam evidenciar a continuidade da produção e util ização social de mitos e símbolos. Enquanto Barthes insiste bastante na função ideológica (no sentido tradicional) das representações analisadas, o que pressupõe ainda um saber objectivo e uma verdade transcendente, a semiótica mais recente tende a abandonar a perspectiva crítica em favor duma perspectiva funcionalista não valorativa. Isto porque a crítica ideológica seria ainda, na sua pretensa objectividade, uma consequência de uma visão teleológica da história, que pressupunha o acesso da ciência a uma realidade ontológica. A teorização actual já renunciou a esta pretensão para optar por um relativismo funcionalista. Na sua definição da semiótica cultural, Posner (1993) distingue três áreas de abordagem analítica: a área social (a sociedade com as suas instituições), a área material (a civilização e os seus artefactos) e a área mental (as mentalidades e as suas convenções). Os artefactos podem ser momentâneos (ruídos, gestos, etc.) ou permanentes; se estes últimos têm um significado codificado, trata-se dum texto, se servem um determinado objectivo concreto, são instrumentos (que podem também adquirir uma função simbólica secundária). No entendimento de Posner, os comportamentos culturais são essencialmente processos semióticos baseados em convenções, o que dá da cultura uma imagem de um sistema concêntrico de esferas semióticas. A modificação das fronteiras entre estas esferas (<<das Ausserkul turelle» - «das Gegenkulturelle» - «das peripher Kulturelle» - «das zentral Kulturelle») constitui um permanente processo de aumento e redução de realidade (Kulturwandel), de inclusão e exclusão de elementos dasemiosisna construção das identidades indivi-duais e colectivas (cf. a este respeito Baumhauer 1982). A hermenêutica estrutural, ou reconstrutiva, representada na Alemanha, entre outros, pelos sociólogos Ronald HitzIer e Ulrich Oevermann, condensa uma série de teorizações que surgiram nas ciências sociais durante as duas últimas décadas. Os princípios básicos desta teorização podem-se resumir, 31 muito globalmente, da maneira seguinte. Contrariamente à hermenêutica intuitiva tradicional, a teoria reconstrutiva distingue vários níveis: • o mundo subjectivo (afectos, emoções e motivações, ideias, etc.), por princípio inacessível; • as acções e manifestações individuais e colectivas, igualmente fechadas à abordagem científica. Neste sentido, a realidade é metodologicamente inatingível; • os vestígios (Spuren) ou protocolos que estas acções e manifestações deixam, o único nível directamente aberto ao tratamento analítico; • as estruturas latentes de significados e sentidos que se manifestam em vestígios concretos e protocolos. Este último nível constitui o objecto final da reconstrução hermenêutica, uma construção hipotética das bases dum mundo que pode ser pensado e vivido, mas que está fora do alcance da percepção sensorial. Esta distinção rigorosa de níveis e a subsequente redução do campo cientÍfico permitem ultrapassar uma série de dicotomü\s tradicionais, como corpo/ alma, subjectiv%bjectivo, etc. Particularmente importante nesta teoria é a definição de texto e protocolo, sendo textos todas as formas expressivas da prática humana, e protocolo a forma concreta, material do texto, desde os media à ordenação da paisagem urbana e rural. A realidade passada torna-se unicamente acessível através destes vestígios ou protocolos, já que uma reconstrução directa dos acontecimentos é impossível. Por isso, o olhar analítico tem de dar a devida importância a cada pormenor para reconstruir a lógica atrás dos textos. Textos e protocolos remetem para uma prática vivencial e, assim, para uma subjectividade produtiva. Desta maneira, a realidade aparece no momento efémero da experiência prática; as ciências sociais trabalham só com as objectivações desta realidade: Die methodisch kontrolLierte Rekonstruktion von erfahrbarer Wirklichkeit findet a/so ihre prinzipieLLe Grenze an der Differenz von ProtokoLl und protokoLLierter Wirklichkeit. Ein direkter Zugang zur protokollierten Wirklichkeit selbst ist methodo1ogisch prinzipiell nicht moglich, vielmehr dem Hier und Jetzt der Lebenspraxis vorbehalten. (Oevermann 1995: 132) Este rigor não nega a unidade dialéctica de prática vivencial e forma expressiva (protocolo), mas impede, ao definir claramente os limites da reconstrução hermenêutica, a projecção duma compreensão intuitiva como modelo científico. O facto de supor, por razões funcionais evidentes, comportamentos e reacções idênticas do outro na comunicação corrente, não significa que uma acção e a sua interpretação pelos outros sejam efectivamente idênticas. 32 A hermenêutica estrutural é aplicada sobretudo na interpretação de artefactos culturais e na reconstrução histórica de mundos e práticas vivenciais. Este trabalho reconstrutivo é compatível com a reorientação e actualização recente das ciências literárias que privilegiam a contextualização sócio-cultural dos fenómenos literários e a estética da recepção. o carácter simbólico de grande parte das manifestações culturais leva a constituir a interligação de factores mediáticos, sociais e históricos como base de várias disciplinas específicas que estudam as diversas formas da mediatização cultural. Ao sintetizar novas perspectivas, tais como as que aparecem, por exemplo, na história do quotidiano, da vivência e das mentalidades, na micro-história e na antropologia histórica, o objecto principal da ciência cultural pode ser identificado com o conceito de Lebenswelt que, a partir da filosofia de Edmund Husser! (1859-1938), ganhou um significado relevante para esta área curricular. O mundo da vida engloba tudo o que possui coerência significativa e continuidade: as objectivações mentais na linguagem e nos símbolos, em obras e instituições, mas também nos comportamentos e estilos de vida, nas visões do mundo e ideias directrizes. Lebenswelté uma realidade social determinada pelo espaço e pelo tempo, em que existem normas e instituições tradicionais em permanente evolução: Lebenswelt ist gesellschaftlich konstituierte, kulturell ausgefonnte, symbo1isch gedeutete Wirklichkeit. Sie ist nicht statisch, sondem dem Wandel durch auf3ere Einwirkungen und innere Entwicklung unterworfen. Sie kann sich erweitern oder erstarren, sie kann aufbrechen oder zerstort werden: sie ist geschichtlich. (Vierhaus/Chartier 1995: 14) O conceito permite conciliar métodos de análise estrutural com métodos fenomenológicos. A reconstrução de mundos vivenciais diferentes, mesmo se implica uma redução sob vários aspectos, que a teoria deve reflectir e assumir, impõe-se como objectivo principal dos actuais estudos culturais na base dum vasto leque de metodologias e perspectivas teóricas que diversificam cada vez mais esta área científica aberta às recentes evoluções sociais e tecnológicas. 1.2.2 Teoria cultural (Kulturtheorie) Em face da complexa história da teoria cultural, que abrange todas as ciências sociais e humanas, este capítulo limita-se a focar um aspecto fundamental de qualquer teorização sócio-cultural, isto é, a relação entre natureza (exterior e interior) e cultura (como fenómeno social). Este aspecto determina não só a definição material (o que faz parte da cultura) do conceito, como também 33 a sua vertente fonnal (o modo como funciona a produção e difusão dos artefactos considerados culturais). A relação entre estrutura e função dos elementos concretos duma cultura tem sido objecto, ao longo da história, de interpretações diferentes (cf. Cap. II). Assim, a cultura pode ser considerada como conjunto histórico de determinados artefactos e práticas, ou como totalidade sistémica que subjaz a qualquer actividade sócio-cultural. Nas teorias culturais do século XX prevalece a ideia dum sistema simbólico que se manifesta nas mais variadas representações de sentido e sequências de significados concretos. Nos últimos anos, foram reforçados os aspectos semióticos e sistémicos da teoria cultural, o que permite o afastamento da teoria da teleologia histórica que predominava em todas as ciências sociais desde aAujkldrung. A semiótica tornou-se funcionalista no sentido descritivo e não normativo e a teoria sistémica permite uma fenomenologia cultural abrangente e, a partir daí, a análise das condições da produção de sentido sem a necessidade de ontologizar representações culturais. Numa fase mais recente das ciências sociais, que já ultrapassou a dicotomia entre função e estrutura, considera-se cultura como um sistema cognitivo que cria e reproduz permanentemente o seu próprio conteúdo. Um problema essencial, que a crítica cultural (cf. capítulo seguinte) não deixou de recordar repetidamente, é a articulação entre a teoria cultural e a ideia dum subconsciente individual e colectivo que revelou ser um dos elementos mais corrosivos do projecto de uma totalidade sócio-cultural característica da modernidade. Já Nietzsche se mostra convencido, em Morgenrothe, que ignoramos as verdadeiras razões das nossas acções: «Noch immer lebt der uralte Wahn, dass man wisse, ganz genau wisse, wie das menschliche Handeln zu Stande komme, in jedem Falle» (1980: III, 108). Para o filósofo alemão as aparências nunca correspondem às motivações profundas desconhecidas; saber e agir não têm uma relação causal inteligível. O cepticismo de Nietzsche é uma reacção à instrumentalização do conceito de «segunda natureza» que, a partir da época entre a Aujkldrung e o Romantismo, promete um homem novo e um paraíso terrestre e que, com a realidade histórica do século XIX, se mostra cada vez mais longe de poder cumprir as suas promessas. A antinomia da primeira natureza e da segunda (cultural) domina, no entanto, a teoria cultural de Nietzsche a Freud e a sua escola, até hoje. Para Sigmund Freud (1856-1939), a cultura articula-se em duas \'cr1t'ntes, na dominação das forças da natureza exterior e na domin ação dos in tintos e desejos individuais. Assim, o processo cultural tem trê fun õe : proleger o ser humano contra uma natureza poderosa e pe rI go a. proporcionar praz.2r e regular as reacções sociais. Os prazeres, porém. qu a ulLUra pode proporcionar, são para Freud compen saçõ (Ersac.~frie J un en) e i1u34 sões; Freud fala até do efeito das obras de arte como duma anestesia suave. O prazer pleno e mais intenso só vem da satisfação das pulsões selvagens, não controladas. Esta natureza instintiva primária apresenta-se para Freud sob dois aspectos: a líbido erótica e o desejo de agredir, destruir, matar e morrer. A cultura não passa dum mecanismo para controlar e dominar estes instintos; o preço da segurança que proporciona é uma perda de prazer e felicidade. Neste sentido, toda a cultura está baseada na renuncia às pulsões (Triebverzicht), e por isso, Freud pode falar do «fatídico processo cultural» cuja problemática seria inerente e sem solução possível. Além de pressupor - de modo fortemente especulativo - a existência de uma natureza pulsional, anterior e exterior a qualquer vida social, a teoria freudiana reduz a cultura a uma mera função reguladora e a uma sublimação necessária de pulsões básicas e socialmente inaceitáveis. O trabalho cultural resume-se no esforço de sublimar e controlar esta luta eterna entre Eros e a Morte. Por outro lado, Freud «naturaliza» igualmente a participação divergente dos dois sexos no trabalho cultural. O homem tem de distribuir a sua líbido: «Was er für kulturelle Zwecke verbraucht, entzieht er grol3tenteils den Frauen und dem Sexualleben ( ... )>>. Desta maneira, a mulher, pouco capaz de sublimação, vê-se relegada para segundo plano pela cultura e considera-a, por isso, com uma certa hostilidade (1994: 41, 63, 69). Curiosamente, este sexismo oitocentista corresponde à convicção eurocentrista tradicional de que a liderança do género humano cabe às «grandes nações de raça branca» (Freud 1994: 136). Na sequência das metáforas organicistas, a teoria freudiana estabelece um paralelismo entre a constelação psíquica individual (/ch/ego - Eslid - Über-Ich/super-ego) e a evolução histórica; o super-ego duma época cultural encarna nos grandes lideres e nos códigos éticos dominantes. O desenvolvimento conflituoso das instâncias constitutivas da identidade pode gerar neuroses a nível individual e, a nível colectivo, guerras e fenómenos como o fascismo e o genocídio. O princípio do retorno da natureza reprimida remete para a ambiguidade do processo cultural, tão repressivo quanto gratificante, e nunca à altura dum prazer selvagem nitidamente idealizado. No entanto, Freud não considera, na sua visão dicotómica, que a cultura, além de controlar, produz também agressividade e destruição; a separação de natureza e cultura não permite reconhecer o modo como as pulsões e comportamentos destrutivos são um produto da sociedade. Ao propor um modelo universal para a evolução do indivíduo e da sociedade, a teoria freudiana tende a reduzir as realizações culturais a meros efeitos de sublimação e peca por não considerar suficientemente os aspectos históricos da constituição de subjectividade. Com Nietzsche e Freud, porém, o conceito român35 tico duma harmonia utópica (aquém da reflexão crítica e dissociativa), e sobretudo as suas actualizações ideológicas nas várias formas de evasão que a cultura oitocentista proporcionou, perdem definitivamente a sua credibilidade. Neste sentido, a teoria crítica da Escola de Frankfurt continua não só as linhas críticas de Hegel e Marx, mas também as dissociações de Nietzsche e Freud. Esta escola tenta principalmente revelar a pseudo-naturalidade da cultura e da sociedade, tal como se manifesta nas maneiras de agir e pensar. A famosa Dialektik der Allfkldrllng (escrita entre 1942 e 1944, em plena guerra mundial, e publicada em 1947), mostra a progressiva auto-destruição da Aufkliirung e a instrumentalização da razão numa comerciaJização totaJ do mundo. É de salientar, nesta obra, o capítulo sobre a Kulturindustrie que afirma que a cultura, sob a lei da troca (Tauschgesetz), se confunde com a publicidade, um processo que atingiu entretanto um nível de interpenetração total. O sponsoring, sem o qual as principais instituições culturais já não podem sobreviver, é a manifestação mais visível desta dependência económica da cultura. A problematização da diferença entre natureza e cultura, que é um dos pressupostos da teoria crítica, é assumida plenamente nas análises dos estruturalistas franceses Michel Foucault e Claude Lévi-Strauss, como também na teoria sistémica do sociólogo alemão Niklas Luhmann. Segundo Foucault, que lamenta em 1983 não ter conhecido mais cedo os trabalhos da Escola de Frankfurt (Rath 1994: 138), as ciências humanas consolidaram conceitos de auto-estilização e auto-imposição da subjectividade moderna. Neste sentido, Foucault estuda, nos seus vários livros, a transformação de seres humanos em sujeitos, com todas as hipóstases e ilusões ligadas a este conceito. Nesta perspectiva, com a Revolução Francesa, começam a desaparecer as esperanças numa nova «natureza» como futura totalidade das condições humanas e aparecem os mecanismos sociais de constituição de sentido (cultura, arte, educação, progresso, etc.) que não são mais do que tantas outras maneiras de repelir uma contingência que é o próprio destino da modernidade. Assim, os conceitos de natureza nas várias áreas da vida social (med icina, direito, pedagogia, etc.) podem ser vistos como possib ili dade de modelar e dominar os instintos, o que implica que as ma nei r de pensar e de ag ir individuais e colectivas têm de ser interpret adas a vário nÍ\ i . Aind a se discute, em que medida o inconsciente . u ma entid d in íve l. mas considerada responsável por grande parte das no i - . pode e deve assumir uma responsabilidade soc[al. E lá m. imporüm ia de mecanismos e dependências de conheei VT~:x1IiltC~ tnlelecntais e artísticas, nas representaçõe. mentai e 36 Recentemente, a investigação na área da etnopsicanálise (Mario Erdheim 1994) e dos estudos culturais (Peter Gay 1996) tem-se debruçado sobre a questão de saber se os efeitos negativos da cultura (glorificação e mitificação da guerra, da destruição, da violência e da exploração) podem ser atribuídos a uma natureza (reprimida) ou se devem ser considerados como efeitos da própria cultura. O anti-semitismo, por exemplo, é um fenómeno essencialmente cultural, que não pode ser explicado por uma necessidade «natural» de defender um território ou uma espécie, e a história conhece ainda muitos conflitos sangrentos em nome duma cultura que se considera superior. São estas as perguntas principais com as quais se confronta uma teoria cultural moderna aquém das esperanças utópicas do início dos tempos modernos. 1.2.3 Crítica cultural (Kulturkritik) A crítica cultural, tal como se estabelece na época das Luzes, enquanto crítica de representações colectivas e práticas sociais redutoras, pode recorrer a uma tradição filosófica antiga. Desde os filósofos cínicos da antiguidade clássica a Thomas Hobbes e Samuel Swift na Inglaterra e Rousseau e Voltaire em França, destaca-se uma corrente corrosiva que põe em dúvida o próprio processo cultural e os seus valores normativos. O optimismo do progresso tecnológico e científico consegue, durante o século XIX, silenciar esta crítica, até Nietzsche propor uma revalorização radical de todos os valores tradicionais em face de uma história cada vez mais decadente: Unsere ganze europaische Cultur bewegt sich seit langem schon mit einer Tortur der Spannung, die von Jahrzehnt zu Jahrzehnt wachst, wie auf eine Katastrophe los: unruhig, gewaltsam, überscürzt: wie ein Strom, der ans Ende will, der sich nicht mehr besinnt, der Furcht davor hat, sich zu besinnen. (Nietzsche 1980: XIII, 189) Depois da Primeira Guerra Mundial, este pessimismo cultural generaliza-se. Pensadores conservadores e profetas do apocali pse projectam cenários que tiveram um grande impacto na opinião pública e contribuiram para um clima de insegurança que facilitou a ascensão do nacional-socialismo. É de mencionar, neste contexto, sobretudo Oswald Spengler (1880-1936) com a sua obra Der Untergang desAbendlandes (1.0 vol. 1918,2.° vol. 1922), cujo título, que concentra medos e apreensões bastante populares no fim da primeira guerra mundial, se tornou quase proverbial na discussão ideológica do século XX. Este esboço duma «morfologia da história mundial», reeditado ao longo de todo o século, apresenta as grandes culturas como «seres vivos superiores», organismos com uma duração de mais ou menos 1000 anos, sendo o estado da «civilização» o prelúdio do fim da cultura ocidental. 37 o escritor e jornalista Theodor Lessing (1812-1933) que desenvolve, em Die verfluchte Kultur de 1921, a antinomia entre vida e espírito, define a cultura como uma máquina cruel e implacável, e o espírito e a razão como a verdadeira fera e a potência destrutiva por excelência. Ao caracterizar a pólvora e a tipografia como «invenções satânicas do espírito alemão», Lessing transforma a história numa sequência de equívocos permanentes entre o espírito e a vida. A ideia do progresso, representada por Hegel, Darwin e Marx, é submetida a uma crítica radical que vê no conhecimento uma mera atribuição retrospectiva de sentido. De facto, a cultura transfonna a vida real num inferno, um renascimento só poderá vir do Oriente. O panfleto de Lessing, que insiste particularmente nos aspectos ecológicos da destruição cultural, é o último sonho de uma nova inocência, duma natureza harmoniosa e duma vida originária e feliz à beira da catástrofe universal: «Die Sintflut wachst. Europa stirbt an Worten, Werken, Werten» (1921: 34). Nos finais do século XX, este pessimismo cultural é actualizado pelo politólogo americano Samuel P. Huntington, cujo controverso artigo «The Clash of Civilizations» de 1993 (transfonnado em livro e publicado em 1996), que põe mais uma vez em dúvida o universalismo europeu, foi largamente discutido naAlemanha. Distinguindo sete grandes culturas (chinesa, japonesa, hindu, islâmica, latino-americana, africana e ocidental), Huntington prevê importantes conflitos interculturais nos quais a cultura ocidental corre o risco de perder a sua identidade e a sua importância tradicionais. Apresentando uma extensa documentação, Huntington tenta provar que o mundo não-ocidental consegue modernizar-se e adoptar tecnologias actuais sem, por isso, adoptar os valores e instituições da tradição ocidental. Trata-se de uma teoria pouca precisa, mas muito eficaz ao nível da discussão pública, com uma certa nostalgia da antiga importância do Ocidente, que reflecte o vazio do pós-imperialismo e a dissociação progressiva da identidade ocidental em face de evoluções que ultrapassam e negam os esquemas tradicionais. Neste sentido, as publicações de Huntington e toda a discussão sobre o antagonismo cultural são o sintoma duma crise que se condensa na questão do universalismo que dominou a história europeia dos últimos séculos. Em que medida uma cultura, que inventou e praticou as atrocidades mais devastadoras da história da humanidade, tem ainda o direito de dar lições a outras civilizações? É esta a perspectiva de Walter Benjamin que afirmou nos anos 30: «Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Barbarei zu sein» (1980: I, 2, 696). Na Alemanha, esta questão reflectiu-se muito concretamente numa discussão política acesa sobre a participação activa de forças militares alemãs nas missões das Nações Unidas. Em causa está, além da identidade problemática da Alemanha em face da sua história recente, a posição da cultura ocidental, 38 os seus valores positivos (os direitos humanos, o estado de direito, etc.) e as suas práticas imperialistas. Na área académica, estas preocupações reflectem-se na investigação de fenómenos interculturais, área essa que nos últimos anos tem sido influenciada, entre outros, pelos trabalhos do comparatista árabe-americano Edward W. Said, nomeadamente o seu estudo sobre o oriental ismo (Orientalism, LondonlNew York, 1978, trad. alemã: Frankfurt a. M./Berlin, 1981). Neste contexto é de mencionar também a Germanística Intercultural que, desde os anos 70, se interroga sobre a produção e a função social da alteridade (cf. Wierlacher 1993). Neste sentido, verifica-se uma abertura de perspectivas na investigação e na própria política cultural das nações mais industrializadas que atribui à crítica cultural um papel central na definição de uma identidade diferente e moderna da Europa. 1.3 O conceito de cultura: definições Na tradição alemã, o conceito de cultura tem uma história particularmente rica e controversa (cf. cap. seguinte). Na perspectiva pragmática dos estudos da sociedade e cultura alemãs, convém, antes de mais, delimitar uma definição que permita constituir o próprio objecto de estudo. A definição de cultura que Klaus P. Hansen defende nas suas recentes publicações sobre a Kulturwissellschaft (1993, 1995), insiste, na sequência de E. B. Tylor (1871), na aquisição social de saberes e comportamentos. O autor recorre igualmente a Max Weber que estabeleceu a sociologia como ciência cultural ao insistir no carácter cultural de todas as manifestações da vida humana desde que se reportem a ideias de valor (Wertideen). Considerando, no sentido etimológico da palavra, a cultura como transformação da natureza exterior e interior pelo trabalho segundo as normas da tradição, Hansen opõe a natureza biológica à cultura do contexto de socialização. Assim, apenas fenómenos que não servem fins materiais fazem pa11e da cultura: «NU[ das Geburtstagfeiem, aber nicht das Zahneputzen; nur das Frühstücken, aber nicht die bei ihm statthabende Ernahrung im biologischen Sinne» (Hansen 1995: 119). Esta antinomia tradicional é problemática porque a natureza biológica do ser humano manifesta-se sempre como culturalmente formada. Mesmo as actividades mais «naturais» como comer, dormir e procriar mostram sincrónica e diacronicamente uma grande diversidade que relega a função biológica e reprodutiva para um papel secundário: «Menschliche Natur ist nirgends ais voraussetzungslose, ungesellschaftliche, reine N atur gegeben» (Rath 1994: 7). O que é «natural», o que faz ou não parte da natureza, depende do contexto histórico e está sujeito à mudança, como documentam, 39 por exemplo, os estudos de Norbert Elias sobre as maneiras e costumes sociais e a história da paisagem e dos espaços naturais (cf. Cap. lUA). Por outro lado, ao excluir a economia, o Estado e a política do domínio cultural, Hansen ignora que os símbolos e rituais ligados às instituições estatais (bandeiras, visitas oficiais, cerimónias comemorativas, etc.) fazem parte integral do poder político. A economia também tem aspectos profundamente irracionais que se tornam cada vez mais evidentes. Esta importância da dimensão simbólica e mítica da produção material evidenciou-se sobretudo depois do fracasso total do «racionalismo» da economia planificada de cariz socialista, que, aliás, era acompanhada duma permanente mitificação e valorização simbólica. A questão crucial levantada pela definição de Hansen é a de se saber se podemos considerar a dimensão cultural como uma dimensão «suplementar» atribuída às actividades económicas, sociais e políticas ou se temos de partir de uma perspectiva dialéctica: valores, tradições etc. criam e desenvolvem actividades económicas, políticas e sociais, e estas práticas precisam da dimensão simbólica para se manter e se desenvolver. Na prática, e mesmo do ponto de vista histórico, parece impossível separar estas dimensões. Assim o etnólogo Clifford Geertz propõe que se considere a cultura e a estrutura social como abstracções diferentes a partir dos mesmos fenómenos: Kultur ist das Geflecht von Bedeutungen, in denen Menschen ihre Erfahrung interpretieren und nach denen sie ihr Handeln ausrichten. Die soziale Struktur ist die Form, in der sich das Handeln manifestiert, das tatsachlich existierende Netz der sozialen Beziehungen. (Geertz 1987: 99) o próprio Hansen sublinha que o ser humano produz significados. Por isso, a história deve incidir não sobre os objectos, mas sim sobre a mudança dos seus significados. Esta história dos significados, fortemente influenciada pela histoire des mentalités desenvolvida na França desde os anos 30, permite definir a cultura como um sistema de estandardizações que abrangem as interacções sociais e a comunicação, mas também os pensamentos e sentimentos individuais. A cultura produz e determina ideias, sensações e afectos, criando, assim, uma realidade específica. Na socialização do indivíduo (família, escola, meio ambiente) intemalizam-se as normas que orientam o nosso agir, pensar e sentir, sendo a comunicação e a imitação os principais veículos desta aprendizagem. Este carácter colectivo dos fenómenos culturais é ainda entendido por Hansen na senda de Tylor. Convém, no entanto, adoptar uma perspectiva mais dialéctica, já que mesmo as manifestações e \ariantes possíveis da individualidade fazem parte dum repertório colecti\'o que, por seu lado, se modifica também através de inovações indi viduai . No que diz respeito aos mecanismos do processo cu ltura l. Han en d i li ngue três níveis: 1. 0 os signos e símbolos, 2. 0 as instituiçõe e 3.° o aber col ectivo 40 e as mentalidades. O autor destaca historicamente três conceitos principais de cultura que se prendem com uma maior ou menor insistência na função ou na substância da cultura: 1) O conceito instrumental de cultura, presente sobretudo na antropologia tradicional, que considera os fenómenos culturais como determinados por necessidades biológicas: a cultura garante a sobrevivência da espécie humana. Esta definição, porém, implica uma relação causal simplista e ignora completamente a interacção dialéctica entre indivíduo e contexto histórico-cultural. 2) O conceito substancial de cultura que, desde Herder e até hoje, considera a cultura como entidade ontológica, como substância permanente e independente das diversas manifestações contextuais. 3) O conceito semiótico que, desde os anos 70, descreve a cultura como universo de acções simbólicas. Nesta perspectiva, o ser humano aparece como objecto e sujeito da cultura que transforma uma contingência indiferente num conjunto coerente de significados. Este conceito, que prevalece também na etnologia moderna, encontra-se concentrado na definição de Clifford Geertz que considera a cultura como um sistema simbólico que pretende criar nos homens disposições e motivações fortes, globais e duráveis, envolvendo ideais/ representações com uma tal aura de facticidade que as disposições e motivações parecem corresponder totalmente à realidade (cf. Geertz 1987: 48). Central em todas estas definições actuais de cultura é o conceito de representação que permite, segundo Chartier, delimitar e ligar três áreas fundamentais: • as representações colectivas que, no interior dos indivíduos, reproduzem as divisões do mundo social e organizam os esquemas de percepção e de apreciação que permitem classificar, julgar e agir; • as formas de expressão do ser social e do poder político que se manifestam nos signos e nas «performances» simbólicas (imagens, rituais, estilizações da vida); • a condensação duma identidade ou dum poder garante de continuidade e estabilidade num representante individual ou colectivo (Vierhaus/Chartier 1995: 49-50, cf. também a introdução em Chartier 1988). Estas definições podem ser completadas pelas considerações «comportamentais» de Kroeber/Kluckhohn (cf. Baumhauer 1982: 8 e segs.), para 41 os quais a cultura consiste em modelos implícitos e explícitos de comportamentos e para comportamentos, adquiridos e transmitidos através de símbolos e na sua materialização em artefactos. Os sistemas culturais são, assim, resultado de acções e condicionam, ao mesmo tempo, futuras acções; a interacção entre indivíduo e grupo social é reactiva e criativa. Ao longo da história, os esquemas culturais são adquiridos, modificados e substituídos por outros. Os autores distinguem vários níveis de culture patteming: os modelos básicos e sistémicos que prevalecem durante milhares de anos, os modelos secundários mais instáveis que incluem organizações formais e sistemas de pensamento, e, acima de tudo, os modelos universais que fornecem o quadro geral para as diferentes culturas e a sua respectiva produção de valores e símbolos. No interior de cada cultura, podem-se destacar ainda os modelos genéricos que caracterizam a simbolização, os patterns of patterns. O historiador vê-se, assim, confrontado com uma permanente reconstrução colectiva da realidade material, social e espiritual. Considerada como complexidade organizada de práticas e sistemas simbólicos, sancionados por um gmpo social ou uma sociedade inteira, a cu Itura tanto resulta da interacção e da comunicação como as determina. Esta definição é compatível com a perspectiva sistémica de Luhmann que propõe a substituição do termo «cultura» pelo de «complexo simbólico-semântico». Para Luhmann, a cultura é um arsenal de temas possíveis para a comunicação, utilizados nos vários sistemas de interacção: Kultur ist kein notwendig normativer Sinngehalt, wohl aber eine Sinnfestlegung (Reduktion), die es ermoglicht, in themenbezogener Kommunikation passende und nichtpassende Beitrage oder auch korrekten bzw. inkorrekten Themengebrauch zu unterscheiden. (Luhmann 1985: 224-225) Pare resumir as definições citadas numa síntese operacional, podemos dizer que são essenciais os aspectos seguintes para a abordagem analítica duma determinada cultura: 42 • A realidade é uma construção social, uma projecção considerada como «natural» e «objectiva». O real, a contingência vivencial e factual, estão para além da representação e simbolização culturais. • História cultural e teoria cultural devem basear-se numa extensa fenomenologia dos processos e artefactos que constituem uma cultura, para descrever depois a mudança dos significados em determinados contextos sociais e históricos. • O significado e a função dos elementos culturais não tem existência objectiva, mas resultam dum contexto comunicacional concreto que a análise pode reconstruir. Mesmo os símbolos mais convencionais podem, na mesma época, aparecer em contextos muito divergentes e vestir assim significados variáveis. Esta variabilidade problematiza, como é óbvio, qualquer «dicionário» de símbolos como também a semântica histórica tradicional que tenta «fixar» significados fora do seu contexto concreto. Estas premissas evitam a redução dos estudos culturais a uma acumulação de saberes enciclopédicos e permitem tanto analisar a produção social de sentidos Ce a respectiva materialização em artefactos) quanto salientar a importância destes processos ao nível concreto e individual. Neste equilíbrio precário entre fenomenologia descritiva e contextualização funcionalista reside o objectivo principal das ciências culturais que pretendem reconstruir - e entender, assim, pelo menos parcialmente - realidades vivenciais alheias e diferentes. Bibliografia aconselhada Para o conceito de «cultura» e a área das ciências culturais, pode consultar-se o artigo de Bausinger C1980) e o livro de Hansen C1995), ambos destinados a um público estudantil. Os estudos reunidos por Schulze (1994) informam sobre a discussão actual na área da historiografia, enquanto Chartier (1988) tematiza a história cultural. A teorização recente na sociologia cultural encontra-se, entre outras, nas publicações da série suhrkamp taschenbücher wissenschaft Cp. ex. Müller-Dohm 1995). Para uma informação rápida e sucinta sobre os principais tópicos e teorias nas ciências sociais e culturais recomenda-se o dicionário de Paynes (1996). Actividades propostas • Resumir os principais aspectos da definição seguinte de cultura CVierhaus/Chartier 1995: 16-17): Für das Gesamt der Weisen lebensweltlicher Wirklichkeitserfahrung und -gestaltung, der symbolischen Wirklichkeitsdeutungen, Konununikationsforrnen, Produktionsweisen und Machtverhaltnisse bietet sich der Begriff Kultur ano Modeme Kulturgeschichte tendiert zur «histoire totale» von konkreten Lebenswelten ( ... ). Kulturgeschichtliche Forschung in diesem Sinne, die vergangene komplexe Lebenswelten rekonstruiert, hat es mitWirklichkeiten zu tun, die Ergebnisse sozialer Praxis, also geschichtlich und das heiBt auch immer schon von den 43 Handelnden und durch Überlieferung interpretiert sind. AIso nicht allein mit sozialen Zustanden und Prozessen, sondem auch deren raumund zeitbedingten Deutungen. • Comentar a antinomia cultura - natureza na definição seguinte de Sigmund Freud (1994: 116-117): Unsere Kultur ist ganz allgemein auf der Unterdruckung von Trieben aufgebaut. Jeder einzelne hat ein Stück seines Besitzes, seiner Machtvollkommenheit, der aggressiven und vindikativen Neigungen seiner Personl ichkeit abgetreten; aus diesen Beitragen ist der gemeinsame Kulturbesitz an materielIen und ideellen Gütern entstanden. AuJ3er der Lebensnot sind es wohl die aus der Erotik abgeleiteten Familiengefühle, welche die einzelnen lndividuen zu diesem Verzicht bewogen haben. Der Verzicht ist ein im Laufe der Kulturentwicklung progressiver gewesen; die einzelnen Fortschritte desselben wurden von der Religion sanktioniert; das Stück Triebbefriedigung, auf das man verzichtet hatte, wurde der Gottheit zum Opfer gebracht; das so erworbene Gemeingut für «heilig» erklart. Wer kraft seiner unbeugsamen Konstitution diese Triebunterdrückung nicht mitmachen kann, steht der Gesellschaft aIs «Verbrecher», aIs «outlaw» gegenüber, insofem nicht seine soziale Position und seine hervorragenden Fahigkeiten ihm gestatten, sich in ihr ais groJ3er Mann, aIs «Held» durchzusetzen. A. O. 44 VlIill.'1il:J 30 SOl.I3:JNO:J "II Resumo Definem-se em diversas acepções os termos «cultura» e civilização», partindo-se da sua utilização na linguagem quotidiana para a seguir se delimitar o campo semântico das palavras, com palticular destaque para o espaço cultural alemão, em correlação com o seu uso em outras línguas europeias. Avalia-se a influência que a situação histórica terá tido nesse processo, bem como a relação entre a mesma e a identidade nacional, à luz da globalização e multiculturalidade. Objectivos • Dominar os conceitos de «cultura» e «civilização» nas suas diferentes acepções, tendo em conta as al terações semânticas, verificadas no espaço e no tempo. • Associar a evolução semântica das palavras Kultur e Zivilisation com a evolução de vocábulos afins no contexto europeu e com a história do espaço cultural alemão. • Problematizar as noções tradicionais de cultura nacional e história, à luz da realidade contemporânea, tendo em conta as manifestações multiculturais nas sociedades contemporâneas. 49 1.1 Cultura A utilização das palavras cultura e civilização na linguagem corrente esconde as inúmeras implicações de ordem histórica, social e política que as mesmas envolvem, bem como uma série de factores particulares, consoante o grupo que as utiliza. Assim, quando se analisa as acepções em que a palavra cultura é actualmente utilizada em Português, facilmente se apreende as inúmeras contradições e ambiguidades inerentes à sua utilização. 1.1.1 Cultura e realidade intelectual Quando se fala, por exemplo, de um Ministério da Cultura, ao mesmo associam-se domínios relacionados com a intervenção artística, literária, filosófica, isto é, com o mundo predominantemente intelectual, a que as humanidades se encontram associadas, por oposição ou em complemento à ciência e à tecnologia, que, frequentemente, se encontram sob uma tutela diferente. É também um pouco neste sentido que se fala de uma camada culta, de uma «pessoa culta»: são, no primeiro caso, por exemplo ou sobretudo, os intelectuais, a quem nos estamos habitualmente a referir, enquanto que, no segundo, o sentido é mais amplo e difuso. Uma «pessoa culta» tanto pode ser um especialista, como um auto-didacta, embora possa haver especialistas que não são «cultos». Esta concepção de cultura remete fundamentalmente para uma cultura de elite a que se opõe implicitamente a cultura popular e a cultura de massas. 1.1.2 Cultura nacional Mas a palavra cultura adquire um carácter particular, noutro contexto, a saber, quando surge associada a uma realidade nacional, remetendo, neste caso, prioritariamente, para as realizações dentro de um determinado território histórica e geograficamente delimitado. O carácter universal só é recuperado, quando se proclama a universalidade dos valores helénicos, portugueses, ocidentais etc. Esta estreita associação manifesta-se em designações como «história da cultura», «cultura portuguesa» ou «cultura alemã». Saliente-se que, no espaço francófono ou anglófono, a área foi tradicionalmente designada de 51 civilisation allemande ou Gennan civilization. COl.tudo, tais desi gnações e associações não só surgem extremamente vagas, como, por si só, pouco indicam acerca do real conteúdo que as disciplinas oferecem: an al i ar-se-á, no âmbito das mesmas, temas relacionados predominantemente com as realizações artísticas e intelectuais ou tomar-se-á em consideração outros elementos como factores de ordem política, histórica, social e económica? Qual o papel ocupado pela cultura popular e de massas nessas disciplinas? A resposta a esta questão depende essencialmente (;0 modo como se entende as relações entre a realidade intelectual ou simbólica e a esfera económica ou materi::tl, isto é, se estas são entendidas numa relação de reciprocidade, interpenetrando-se mutuamente, se de causalidade (uma sendo res ul tado da outra, a economia determinando o plano teórico ou este se ndo o motor essencial) ou ainda como realidades independe~ltes. Mas existe ainda uma outra questão central, a saber, qual o tipo de associação a estabelecer entre uma «nação» e a sua cultura. Se a estabilidade geográfica parece oferecer algumas garantias quanto à cultura «pünuguesa», tal sucede, apenas, à primeira vista. Será que a cultura portuguesa, antes do século XVI, deverá ser integrada numa cultura ibérica mais ampla? E o que sucede com a cultura lusófona das antigas colóni as? Como cl assificar a cLlllUra produzida por portugueses no Brasil antes da independência? A questão também se levanta no que respeita ao espaço cultural alemão, dada a complexa história da geografia política dos territórios de expressão alemã. Estar-se-á apenas a falar da cultura dos habitantes da actual RFA, reunificada depois de 1990? Incluir-se-á outros povos gennanófonos? Mas que dizer das minorias que durante muito tempo viveram dentro das fronteiras do Sacro Império Romano-Germânico até à sua extinção em 1806? E que tratamento conferir às vastas camadas de im igrados que élctualmente constituem uma importante parte da sociedade civil alemã austríaca ou suíça? Este tema a que se regressará, noutro contexto, serve, de momento, apenas para problematizar a associação por vezes irreflectida entre «cultura» e «nação». ( 1.1.3 Sentido antropológico: pa rticular e universal A moderna antropologia cultural in trod uz iu um a noção de cultura que merece também ampl a difusão nos me ios c ient íficos: cultura será tudo aquilo produzido pelo Homem, enquanto se r dotado da capacidade material de fabricar e transmitir utensíli o ', bem como da faculdade da linguagem. 52 Assim desaparece a distinção entre a cultura de elite (dita superior) e a cultura popular e a de massas (dita inferior), deixando simultaneamente de fazer sentido a associação entre uma determinada nação e uma cultura . .J A cultura é assim uma manifestação universal que assume formas e manifestações diferentes, consoante os grupos que a produzem e a transmitem. Assim, reconhece-se em cada grupo o modo como essas manifestações culturais são organizadas, material e simbolicamente de forma específica ou particular. 1.1.4 A etúnologia da palavra cultura A palavra cultura, originária do Latim, tanto remetia para processos mate· riais - patentes ainda em determinados vocábulos nossos contemporâneos, como cultura do trigo, do algodão, agricultura - , como intelectuais, tal como em Cícero, que utilizou a expressão «collere animi» (cultivar/domesticar/afinar os espíritos). Implícita está a noção de que a cu ltura trabalha a matéria-prima oferecida pela natu reza fora e dentro do homem. Por outro lado, a etimologia remete ainda para a palavra cultus, associando-se a manifestações de carácter predominantemente simbólico. ( E ste duplo significado - material e intelectual- manter-se-á até meados do século XVHr, sobretudo em inglês e em alemão, confundindo-se a sua \ utilização com o te m10 civilização (em francês a palavra civilisation será ( sempre privilegiada). \---. ,r / A crença num processo de domesticação de um estado natural ou «selvagem», conducente ao ;.;stádio de liberdade, pressupõe a interacção entre o domínio material e simbólico: a cultura e a civilização coincidem com o processo de aperfeiçoamento que conduz em última instância às Luzes. ~ ~ulo XIX conhecerá a gradual tendência para associar o termo cultura ,. .a fenómenos predominantemente intelectuais, tendência que se verifica, por exemplo, nos autores de expressão alemã, ao consagrarem, entre outras, a oposição entre uma história predominantemente intelectual - Kulturgeschichte - e uma história política -Politikgeschichte. Ao contrário do que uma ideia muito vulgarizada (Elias 1976) pretende, tal evolução far-se-á, contudo, também igualmente sentir em autores de expressão inglesa, sobretudo a partir do século XIX. A cuJtura assim entendida remete para uma concepção humanista de uma tradição que funda uma ic1entida(~e nacional na diferença que demarca uma 53 sociedade de outras, baseando-se sobretudo num conjunto de ideias ond e reflecte a excelência de um povo, a superioridade da sua camada intele lUa\. Este conceito ainda actualmente em uso tenderá a exprimir a crescente c i ão entre uma chamada cultura superior ou de elite e uma inferior ou popular (Arnold 1993). Contudo, o interesse por esta última também se virá a fazer sentir no século XIX, assistindo-se ao emergir dos primeiros estudos etnográficos: seguindo uma tradição iniciada fundamentalmente por Johann Gottfried Herder (1744-1803), os românticos alemães, nomeadamente os Irmãos Grimm (Ludwig Karl Grimm, 1785-1863, e Wilhelm Karl Grimm, 1786-1859) e Clemens Brentano (1778-1842), lançam, no século XIX, as bases da futura Volkskunde, claramente separada da Kulturgeschichte. Tal divisão entre uma cultura predominantemente intelectual e o dominio dos artefactos quotidianos e de utilidade material, reproduz e consagra a divisão do trabalho (intelectual e manual) que a Revolução Industrial viera a acentuar de forma renovada. É também a industrialização a responsável pelo interesse crescente por formas de cultura popular, cujo desaparecimento se receia e que postula a existência de culturas «puras» ou «originais» cujo legado deverá ser preservado. A moderna antropologia cultural herdou tal tradição, na sua atenção ao local e ao tradicional, com os méritos daí advenientes, embora, por vezes, a ela se associe a hipostasiação e o uso propagandístico do «folclore». 1.1.5 Cultura: o emergir da noção antropológica Herder pode ser considerado um precursor do relativismo cultural, assente na diferença, ao defender as diferentes culturas como unidades orgânicas e auto-suficientes, dotadas de autonomia e legitimando-se a partir de um centro próprio, definindo-se a partir das suas próprias regras internas contra as pretensões totalizantes do universalismo eurocêntrico das Luzes. As Luzes, associadas a civilização, passam consequentemente a ser encaradas não como garantia ou momento num processo de aperfeiçoamento, mas como instrumento de destruição. Será também por influência alemã que o termo cultura recuperará uma carga semântica mais ampla, incluindo de novo aspectos materiais e políticos, como é o caso do historiador G. F. Klemm. Este, mantendo a acepção vulgarizada ao longo do século XVIII, descreverá na sua Allgemeine Kulturgeschichte der Menschheit (1843-1845) a evolução da humanidade desde um estádio «selvagem» até à liberdade, mediante um processo de domesticação, com 54 evidentes afinidades com o significado da palavra civilização ao longo do século XVIII. Edward BurnettTylor adoptará o termo cultUl'e na sua obra Primitive Culture (1871), para dotar a palavra de uma conotação eminentemente antropológica, por oposição às restantes acepções. Culture or civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that complex whole which includes knowledge, belief, art, morais, law, custom, and any other capabilities and habits acquired by man as a member of society. (Tylor 1976: 1) Este novo conceito inclui toda uma série de manifestações quotidianas, enquanto transmissíveis de geração em geração, mas não abdica da palavra civilização, indicando um pressuposto evolucionista que trai o modelo eurocêntrico, segundo o qual as diferentes culturas «primitivas» serão interpretadas e hierarquizadas. Mas será em Herder que Franz Boas (1858-1942) se inspirará ao propor mais uma vez o plural da palavra, bem como ao defender contra o evolucionismo l , a possibilidade de cada cultura ser capaz de invenções independentes, reagindo a diferentes estímulos e combinando-os de maneira diferenciada. Boas inaugurará, assim, a corrente difusionista 2 , menos hierarquizante do que a versão proposta pelos evolucionistas, a que Edward Tylor ainda se encontra intimamente ligado, contribuindo assim para a diluição da oposição entre os termos cultura e civilização (Stocking 1982: 195-233) e para a aceitação da ideia do relativismo cultural nos estudos antropológicos. Embora não seja a conotação que a palavra possui na linguagem quotidiana, a palavra cultura adquiriu assim um significado universal, na medida em que apenas o Homem, enquanto ser dotado da capacidade da linguagem e assim de produzir símbolos, é capaz de criar cultura. Tal entendimento de cultura passou a permitir uma abordagem em termos de igualdade de todas as manifestações culturais, desde a cultura ocidental, à da Melanésia, dos ameríndios ou dos aborígenes da Austrália, recusando simultaneamente qualquer relação de causalidade entre determinadas características físicas (as «raças») e uma hierarquia correspondente de culturas. Assim, surgiria gradualmente reforçada a noção do valor idêntico de todas as manifestações culturais, produto de uma constante interacção e miscigenação, de que a noção de evolução ou de progresso está ausente. A consagração desta noção de cultura viria a reforçar-se com a era pós-colonial, permitindo um olhar renovado sobre a riqueza de manifestações culturais de sociedades anteriormente tidas por «primitivas». I Evolucionismo - corrente predominante na antropologia e no pensamento do século XIX em geral, segundo a qual a humanidade se encontraria toda ela submetida a idêntico processo de evol ução, porque participando de uma única espécie, pelo que lodo o processo de desenvol vi mento cultural se faria a partir da influência e transmissão de um modelo, que explicaria afinidades e paralelismos nos mitos e costumes. O facto de a «civi lização europeia» e de a «raça» caucasiana terem sido aquelas que supostamente teriam alcançado mais feitos e influência, colocava· as no topo de uma hierarquia civilizacional de que Tylor ainda é adepto. 'Difusionismo - corrente antropológica que defende exactamente o oposto: a saber, todas as culturas são dotadas da capacidade de invenção, pelo que as afinidades entre culluras tanlo poderão ser herdadas como resultado de contaclos e de migrações. Tal posição surge esboçada por Boas, na sua defesa das culturas, assim contribuindo para a abolição do mito de uma suposta superioridade «rácica», 55 Se é problemática a associação irretl êcl i nação, o mesmo sucede no que respeita àser vista como um corpo ou organismo vivo q grupo e que tende a desaparecer, quando se dá um é àri te s o resultado de inúmeros estímulos e de respo assim impossível falar de 234-235). 1.2 t Civilização Quando se fala de um país «civilizado», tal conceito surge habit ualmente associado a um certo bem-estar social, à existência de instituições p líticas que garantem a estabilidade e a representatividade dos cidadãos, por opo. rção a outras sociedades onde esse viver pacífico é impedido ou por costumes «selvagens» ou «bárbaros». O termo pode também indicar uma certa superioridade institucional, política e histórica, segundo este princípio. Todas as sociedades poderão possuir a sua cultura, mas nem todas constituem uma civilização, isto é, não são portadoras de valores universalmente transmissíveis. Assim, a cultura aborigene poderá ter as suas manifestações de interesse meramente etnológico, mas não pode aspüar a fazer parte das manifestações culturais de sociedades que merecem o epíteto de civilizações, como será o caso da suméria, egípcia, helénica, romana, renascentista, europeia, ocidental, chinesa ou árabe. Tal como a palavra cultura, a designação civilização também é frequentemente associada a uma realidade nacional. É assim que se fal a de civilização francesa ou inglesa. Mas tal associação não invalida o elemento normativo anteriormente referido. As nações «civilizadas» são aquelas que constituem manifestações de um processo em que as mesmas teriam atingido um determinado grau de aperfeiçoamento. Assim, só as nações «civilizadas» podem constituir um legado universal para a humanidade, algo que as comunidades ditas «primitivas» ou «selvagens», «menos desenvolvidas» ou «bárbaras» não estariam em condições de fazer. Quando utilizada como adjectivo, a palavra «civilizado» remete, sobretudo, para a ideia de cortesia, de polimento, de boas-maneiras que impedem a agressão no quotidiano, desde os transportes públicos, à maneira de estar à mesa, em suma ao modo de se comportar em sociedade. Tanto num caso como no outro, a palavra civilização possui uma componente claramente normativa: quando se fala do homem «cjvilizado» encon56 tra-se implícito um termo oposto, o «selvagem», o «bárbaro». Este dualismo não só serve como modo de avaliar, valorizar um outro diferente e implicitamente inferior, mas cumpre uma função identificadora essencial: o outro diferente ou inferior, porque «bárbaro», «selvagem» ou «primitivo», constitui um ponto de referência comum para aquele que assim nomeia e rejeita. Ao designar um comportamento inadequado do ponto de vista das regras por que uma comunidade, país ou grupo social se rege, a designação «civilizado» aponta simultaneamente para a interacção social. A civilização diz respeito não tanto a um indivíduo ou a um país, como à sociedade em que aquele se insere ou a que este se reporta: ser-se ou não «civilizado» depende não só da aceitação e interiorização dessas normas, mas igualmente da adequação entre as mesmas e a sociedade. 1.2.1 Civilização e Europa Se tomámos até ao momento em consideração as conotações que a palavra civilização tem, actualmente, em português, isto não invalida que as mesmas não tenham significados muito semelhantes noutras línguas europeias como o francês e o inglês, traindo toda uma série de pressupostos, por sua vez, influenciados e moldados pelo percurso histórico europeu e dos vários grupos que compõem o Velho Continente. Mais ainda: se a palavra «civilizado» passou a designar preferencialmente, sobretudo a partir do século XVIII, os habitantes europeus, tal norma remete implicitamente para o modo como a auto-consciência da Europa se foi construindo, por oposição ao mundo não-europeu. 1.2.2 A etimologia da palavra civilização A palavra civilização remete, etimologicamente, para o espaço urbano, indicando um processo de aperfeiçoamento, não tanto em oposição a uma natureza inculta, mas, sobretudo à barbárie, diferente ou estranha. Note-se que a Antiguidade grega, porque indiferente aos que falavam outra língua que não o grego, se recusava a conferir a esses forasteiros o direito de cidadania 3 . Vedando-se-lhe o acesso ao ágora, vedava-se-lhe o caminho que conduziria ao uso da palavra perante os iguais, à racionalidade, à participação nos destinos políticos e nas vantagens materiais que decorriam do facto de se ser homem e livre. O escravo e a ) Recorde·se que a palavra «bárbaro» pretendia repro· duzir. em Grego, através de uma onomatopeia, a ininte· ligibilidade das línguas forasteiras. 57 mulher ver-se-ão reduzidos ao mero estatuto de reprodutores, incapazes de operar a associação criadora e criativa entre o domínio da palavra e da racionalidade ou da política - e do mundo material ou da economia. Com o advento da expansão romana e da formação do império, o mesmo reunirá as condições essenciais para não se limitar a propagar a igualdade dos seus membros, ignorando ou ostracizando os diferentes, iniciando um processo de assimilação de novos cidadãos, desde que unidos a Roma pela língua, os deuses, os valores. A igualdade potencial em breve surgirá associada a um gesto imperialista que, rejeitando as culturas diferentes, exige a imposição de uma norma que lhe permita dominar. A palavra incluirá aspectos materiais, políticos, económicos, para além das realizações artísticas e filosóficas, uma vez que a civilização não funda uma mera identidade cultural, como sucedia com a Hélade, mas se revê na materialização da sua superioridade do ponto de vista técnico, jurídico, político. Esta abrangência do conceito de civilização encontramo-la na expressão civilisation em francês, implicando não só um processo de aperfeiçoamento, no século XVIII, intimamente associado às Luzes, como um processo universal. Em inglês, a palavra civilization tem as mesmas conotações, indicando, tal como em francês, um processo de progresso universal. As razões de ser desta evolução semântica encontramo-las, em parte, na difusão e imposição dos valores e costumes destas sociedades, sobretudo a partir do século XVIII, em todo o mundo, isto é através do seu passado imperial e imperialista. De termo relativamente neutro, uma vez que implica a superioridade da cidade sobre o campo, invocando para o efeito, todo o processo de cristianização e pacificação ocorrido durante a Idade Média, com recurso à tradição clássica por via da cultura urbana, a palavra «civilização» evolui, sobretudo durante o século XVIII, para a noção implícita da superioridade da Europa das Luzes. A civilização, pese embora a sua crença no progresso e na possibilidade de todos os homens a ela aderirem, pressupõe um modelo ou norma: o modelo do racionalismo ocidental, em estreita associação com o expansionismo colonial inglês e francês. 58 1.2.3 Civilização, cultura e identidade nacional A utilização dos termos civilização ou cultura pode adquirir conotações distintas, consoante as comunidades linguísticas, que, por sua vez, são inseparáveis de um determinado percurso, num determinado momento e espaço, numa constelação histórica particular. Assim, quando um Alemão fala de Zivilisation ele remete implicitamente para algo de radicalmente diferente do que um Inglês quando utiliza a palavra civilization; por sua, vez a palavra francesa civilisation possui uma familiaridade que não encontra uma reacção semelhante em alemão. Norbert Elias (1976) teve ocasião de chamar a atenção para o modo como, ainda nos anos trinta do nosso século, esse entendimento das palavras possuía a faculdade de reflectir aquilo que o sociólogo designa de auto-consciência de um povo. ( ... ) wenn man prüft, welches eigentlich die allgemeine Funktion des Begriffs «Zivilisation» ist, und um welcher Gemeinsamkeit willen man alie diese verschiedenen menschlichen Haltungen und Leistungen gerade ais «zivilisiert» bezeichnet, findet man zunachst etwas sehr Einfaches: dieser Begriffbringt das SelbstbewuBtsein desAbendlandes zumAusdruck. Man kbnnte auch sagen: das NationalbewuBtsein. Es faBt alies zusammen, was die abendlandische Gesellschaft der Ietzten zwei oder drei lahrhunderte vor früheren oder vor «primitiveren» zeitgenbssischen Gesellschaften voraus zu haben glaubt. Durch ihn sucht die abendlandische GeseUschaft zu charakterisieren, was ihre Eigenart ausmacht, und worauf sie stolz ist: den Stand ihrer Technik, die Art ihrer Manieren, die Entwick.lung ihrer wissenschaftlichen Erkenntnis oder ihrer Weltanschauung und vieles andere mehr. (Elias 1976: l, 1-2) Se para um Francês ou um Inglês seria mais evidente falar da sua civilização, o Alemão orgulhar-se-ia da sua cultura. Nesta forma de falar encontrar-se-ia cristalizada toda a experiência recente desses espaços: a civilização francesa ou britânica não se esgotaria na sua arte, pensamento e filosofia, mas incluiria aspectos chamados materiais como a política, a organização económica, costumes e usos. O Inglês orgulha-se tanto de Shakespeare como das suas instituições políticas, ou da sua marinha; o Francês preza tanto o seu Voltaire ou Proust como a sua culinária, a sua alta costura; o Alemão pode amar secretamente os seus costumes, mas define-os por comparação, por exemplo, ou com o parlamentarismo britânico ou com o requinte francês. Há contudo um domínio, em que sente que a sua superioridade poderá ser incontestada: o das suas grandes realizações no domínio da literatura, da filosofia, da música. Se se pode discutir quais os hábitos 59 culinários maisr~quintados, sabe-se ou receia-se que a França encontre maior eco em observador mais distante se se remeter para o mérito da experiência política, a admiração será relativa. Mas Goethe . Ka nt ou Beethoven poderão sempre rivalizar com o que de melhor a Europa produ ziu . 1.2.4 Civilização e imperialismo Aquilo para o que pretendemos chamar a atenção não é a justeza destas afirmações, mas antes para um consenso europeu raras vezes questionado e que, longe de representar uma espécie de verdade absoluta, remete antes para o passado especíl'ico dessas diferentes realidades. Admitir ou pressupor que exi ste uma via política, uma regra de convívio ou normas de comportamento em sociedade, costumes que são mais facilmente universalizáveis não tem que ser associado com a sua superioridade efectiva, mas antes com relações específicas de poder. Se a palavra civilização foi consagrada em inglês e em francês, isto prende-se com o facto de, exactamente no século XVIII, os dois países terem ocupado o lugar hegemónico em termos europeus e não-europeus. O carácter normativo do termo civilização, embora não excluísse um processo de aperfeiçoamento que todos os homens poderiam mais cedo ou mais tarele protagonizar, implicava a ideia de um modelo, modelo esse aplicado na prática a todos os países por eles colonizados. O facto de, em breve, se passar a utilizar a expressão, acrescentando-se-lhe um adjectivo que remetia para uma determinada realidade nacional, retirar-lhe-ia a problemática universalidade, ao mesmo tempo que dava corpo a uma normatividade sustentada por uma potência dominante. A excelência de uma determinada civilização seja da britânica, da francesa, da chinesa ou da árabe não pode nunca ser dissociada das suas capacidades expansionistas, do processo de difusão e de opressão q~le as acompanhou . .:-Io espaço de expressão cultural alemã verificaram-se iguaimente evoluções semânticas, embora diferentes por razões que se prendem com o seu percurso particular, este por sua vez também determinado pelas relações que foi estabelecendo com outras sociedades. 60 1.3 A oposição Kllltur/Zivilisatioll 1.3. i A evolução na Alemanha entre os séculos XV/II e XX A história da evolução semântica dos termos Kultur e Zivilisation remete claramente para a história específica do espaço cultural alemão e para a complexa questão da sua identidade nacional. Em autores do século XVIII (Adelung, Christian Daniel Voss), a palavra Kultur aponta para um conjunto de fenómenos políticos, económicos, artísticos e filosóficos, à semelhança do que sucede, em inglês, com a palavra culture que surge associada à indústria e à chamada esfera das carências, isto é, das relações de interdependência que se geram nüma sociedade determinada pela divisão do trabalho, por oposição a uma sociedade de privilégios, em que a reciprocidade dos serviços e a hereditariedade dos papéis se encontra fixada de antemão. Assim Christian D aniel Voss associa Kultur ao «aumento da indústria» (<< Vermebrung der Industrie») e à disponi bili zação de um maior número de forças produtivas (<<Summe produktiver Krafte» apud Garber 1992: 413). Aufkldrung e Kultur identificam-se. O mesmo sucede com Adelung que define Kultur como a supelação de um estádio de animalidade e como a difusão da Aujkldnmg, com o equivalente refinamento do gosto e o desenvolvimento dos elementos intelectuais no homem (Garber 1992: 411-412). Assim, durante o século XVIII, tanto em alemão como em inglês, os termos Kultur/culture/cultivation e Zivilisation/civilization confundem-se e contaminam-se frequentemente. Este é o caso de Moses Mendelssohn (1729-1786) no seu texto «Über die Frage. Was heiBt aufkJaren?» (Mendelssohn 1986): a Bildung divide-se em Kultur e Aufkldrung, remetendo a última para o Homem, num plano predominantemente teórico e individual, a Kultur diz respeito ao domínio prático, pensando-se o ser humano enquanto ser inserido na sociedade civil. Contudo, o facto de a Aujkldrung dela aparecer demarcada, aponta já para uma futura dicotomia. Die Worte AuJklarung, Kultur, Bildung sind in unserer Sprache noch neue Ankbmml inge. Sie gehbren vor der Hand bloS zur Büchersprache. Der gemeine Haufe vestehet sie kaum. SoIlte dieses ein Beweis sein, daS auch die Sache bei uns noch neu sei? ích glaube nicht. Man sagt von einem gewissen Volke, daB es kein bestimmtes Wort für Tugend, keines für Aberglauben habe; ob man ihm gleich ein nicht geringes Mal3 von beiden mit Recht zuschreiben darf. 61 Indessen hat der Sprachgebrauch, der zwischen diesen gleichbedeutenden Wortern einen Unterschied angeben zu wollen scheint, noch nicht Zeit gehabt, die Grenzen derselben festzusetzen. Bildung, Kultur und AufkJarung sind Modifikationen des geselligen Lebens; Wirkungen des FleiJ3es und der Bemühungen der Menschen ihren geselligen Zustand zu verbessem. Je mehr der gesellige Zustand eines Yolks durch Kunst und Fleil3 mit der Bestimmung des Menschen in Hannonie gebracht worden; desto mehr B ildung hat dieses Volk. Bildung zerfallt in Kultur und Aufklarung. Jene scheint mehr auf das Praktische zu gehen: auf Güte, Feinheit und Schonheit in Handwerken, Künsten und Geselligkeitssitten (objektive); auf Fertigkeit, FleiJ3 und Geschicklichkeit in jenen Neigungen, Triebe und Gewohnheiten in diesen (subjektive). ( ... ) Aufklarung hingegen scheinet sich mehr auf das Theoretische zu beziehen.Aufvemünftige Erkenntnis (obj.) und Fertigkeit (subj.) zum vernünftigen Nachdenken, über Dinge des menschlichen Lebens, nach MaJ3gebung ihrer Wichtigkeit und ihres Einflusses in die Bestimmung des Menschen. Ich setze allezeit die Bestimmung des Menschen aIs MaJ3 und Ziel aller unserer Bestrebungen und Bemühungen, aIs einen Punkt, worauf wir unsere Augen richten müssen, wenn wir uns nicht verlieren wollen. Eine Sprache erlanget Aufklárung durch die Wissenschaften und erlanget Kultur durch gesellschaftlichen U mgang, Poesie und Beredsamkeit. Durch jene wird sie geschickter zu theoretischem, durch diese zu praktischem Gebrauche. Beides zusammen gibt einer Sprache die Bildung. Kultur im AuJ3erlichen heiJ3t Politur. Heil der Nation, deren Politur Wirkung der Kultur und Aufklarung ist; deren auJ3erliche Glanz und Geschliffenheit innerliche, gediegene Echtheit zum Grunde hat. (Mendelssohn 1986: 3-4) Aquilo que caracteriza este entendimento de Kultur é o modo como na Alemanha de finais do século XVIII se passa a interpretar o processo que conduz às Luzes e ao progresso a partir da dedução histórico-genética das suas condições materiais e intelectuais. Assinale-se mais uma vez que a palavra Kultur ainda se identifica com aquilo que, mais tarde, será designado de civilização. A oposição entre Kultur e Zivilisation será anunciada por Immanuel Kant (1724-1804), ao afirmar que o progresso da humanidade se faz por uma via que conduz da civilização, à moralização, através da cultura. Retomando a crítica da civilização iniciada por Jean Jacques Rousseau (1712-1778), Kant indaga das razões de mal-estar na mesma, para opor o estádio de cultura ao de civilização. 62 ( ... ) Rousseau hatte so Unrecht nicht, wenn er den Zustand der Wilden vorzog, so bald man namlich diese letzte Stufe, die unsere Gattung noch zu ersteigen hat, weglaBt. Wir sind im hohen Grade durch Kunst und Wissenschaft kultiviert. Wir sind zivilisiert, bis zum Überlastigen, zu allerlei gesellschaftlicher Artigkeit und Anstandigkeit. Aber, uns schon für moralisiert zu halten, daran fehlt noch sehr viel. Denn die Idee der Moralitat gehort noch zur Kultur; der Gebrauch dieser ldee aber, welcher nur auf das Sittenahnliche in der Ehrliebe und der auJ3eren Anstandigkeit hinauslauft, macht bloJ3 die Zivilisierung aus. So lange aber Staaten alie ihre Krafte auf ihre eiteln und gewaltsamen Erweiterungsabsichten verwenden, und so die langsame Bemühung der inneren Bildung der Denkungsart ihrer Bürgerunaufhorlich hemmen, ihnen selbst auch alie Unterstützung in dieser Absicht entziehen, ist nichts von dieser Art zu erwarten; weil dazu eine lange innere Bearbeitungjedes gemeinen Wesens zur Bildung seiner Bürger ertordert wird. Alies Gute aber, das nicht auf moralisch-gute Gesinnung gepfropft ist, ist nichts ais lauter Schein und schimmemdes Elend. ln diesem Zustande wird wohl das menschliche Geschlecht verbleiben, bis es sich, auf die Art wie ich gesagt habe, aus dem chaotischen Zustande seiner Staatsverhaltnisse herausgearbeitet haben wird. (Kant 1991: 44-45) Mas sublinhe-se que esta hierarquia não exclui nenhum desses momentos. São três planos distintos, é certo, contribuindo todos eles para esse progresso que a filosofia da história pode interpretar. Herder, por sua vez, irá chamar a atenção para as culturas específicas e para a necessidade de às mesmas se conferir voz adequada, também por oposição à civilização superficial e destruidora, designadamente ao modo como todas elas dependem de uma totalidade que é a essência da humanidade. Mas note-se também que, mais uma vez, a palavra Kultur é associada a dOITÚnios políticos, materiais. Mit Wissenschaften und Künsten ziehet sic h also eine neue Tradition durchs Menschengeschlecht, an deren Kette nur wenigen Glücklichen etwas Neues anzureihen vergonnt war; die andem hangen an ihr wie treufleiBige Sklaven und ziehen mechanisch die Kette weiter. Wie dieser Zucker und Mohrentrank durch manche bearbeitende Hand ging, eh er zu mir gelangte und ich kein andres Verdienst habe, ais ihn zu trinken: so ist unsre Vernunft und Lebensweise, unsre Gelehrsamkeit und Kunsterziehung, unsre Kriegs- und Staatsweisheit ein ZusammenfluB fremder Ertindungen und Gedanken, die ohn' unser Verdienst aus aller Welt zu uns kamen und in denen wir uns von Jugend auf baden oder ersaufen. Eitel ist also der Ruhm so manches Europaischen Pobels, wenn er in dem, was AufkHirung, Kunst und Wissenschaft heiJ3t, sich über alie drei Weltteile setzt, und wie jener Wahnsinnige die Schiffe im Hafen, alie Ertindungen Europa's aus keiner Ursache fur die Seinen halt, ais weil er im Zusammenfluf3 dieser Erfindungen und Traditionen geboren worden.Arm- 63 seliger, erfandest du etwas von diesen Künsten? Denkst du etwa bei allen deinen eingesognen Traditionen? DaS du jene brauchen gelernt hast, ist die Arbeit einer Maschine: daS du den Saft der Wissenschaft in dich ziehest, ist das Verdienst des Schwammes, der nun eben auf dieser feuchten Stelle gewachsen isto Wenn du dem Otahiten ein Kriegsschiff zulenkst und auf den Hebriden eine Kanone donnerst, so bist du wahrlich weder klüger noch geschickter, ais der Hebride und der Otahite, der sein Boot künstlich lenkt und sich dasselbe mit eigner Hand erbaute. Eben dies wars, was alie Wilden dunkel empfanden, sobald sie die Europaer naher kennen lernten. ln der Rüstung ihrer Werkzeuge dünkten sie ihnen unbekannte, hbhere Wesen, vor denen sie sich beugten, die sie mit Ehrfurcht grüJ3ten; sobald sie sie verwundbar, sterblich, krankhaft und in sinnlichen Übungen schwacher ais sich selbst sahen, fürchteten sie die Kunst und erwürgten den Mann, der nichts weniger ais mit seiner Kunst Eins war. Auf alie Kultur Europa's ist dies anwendbar. Darum, weil die Sprache eines Volks, zumal in Büchern, gescheut und fein ist: darum ist nichtjeder fein und gescheut, der diese Bücher leset und diese Sprache redet. Wie er sie lieset? wie er sie redet? das ware die Frage; und auch dann dachte und sprache er immer doch nur nach: er folgt den Gedanken und der Bezeichnungskraft eines andern. Der Wilde der in sei nem engern Kreise eigentümlich denkt und sich in ihm wahrer, bestimmter und nachdrücklicher ausdrückt, Er, der in der Sphare seines wirklichen Lebens Sinne und Glieder, seinen praktischen Verstand und seine wenigen Werkzeuge mit Kunst und Gegenwart des Geistes zu gebrauchen weiJ3; offenbar ist er, Mensch gegen Mensch gerechnet, gebildeter ais jene politische oder gelehrte Maschine, die wie ein Kind auf einem sehr hohen Gerüst steht, das aber leider fremde Hande, ja das oft die ganze Mühe der Vorwelt erbaute. (Herder 1989: 358-359) Aqui ecoa o grito de revolta de um espaço de língua alemã até certo ponto colonizado, economicamente pela Grã-Bretanha, política, literária e artisticamente pela França. O direito à diferença implícito na definição de Herder dá conta do posicionamento do território alemão em meados do século XVIII. Assim, a distinção entre Kultur e Zivilisation não é essencial. Mesmo Wilhelm von Humboldt (1767-1835), ao distinguir as duas, não faz dessa oposição algo de central, mas destaca antes a Bildung em confronto com as mesmas (cf. Cap. 1I.2). Die Civilisation ist die Vermenschlichung der Vblker in ihren ausseren Einrichtungen und Gebrauchen und der darauf Bezug habenden innren Gesinnung. Die Cultur fügt dieser Veredlung des gesellschaftlichen Zustandes Wissenschaft und Kunst hinzu. Wenn wir aber in unsrer Sprache Si/dung sagen, so meinen wir damit etwas zugleich Hóheres und mehr lnnerliches, nemlich die Sinnesart, die sich aus der Erkenntnis und dem Gefühle des gesamten geistigen und sittlichen Strebens harmonisch auf die Empfindung und den Charakter ergiesst. (Humboldt 1988: 401) 64 A identificação entre ambos os termos persistirá ao longo do século XIX. Os dicionários contemporâneos são prova disso: embora o Groj3es Konversationslexikon diferencie as palavras, à Kultur ainda é associado o domínio da indústria, da arte e do saber. O Brockhaus fala de Kultur no mesmo sentido que de Zivilisation. associando aos dois termos um processo de aperfeiçoamento a nível tecnológico, teórico, político, moral. Aquilo que se pode verificar é, com efeito, não predomina ainda um conceito de Kultur adverso à realidade política, social e económica (Breuer 1995: 188). O mesmo se aplica à maior parte dos autores do século XIX e inícios do século XX, tais como Max Weber, que analisa a correlação dos fenómenos económicos e religiosos como é o caso paradigmático deDie Protestantische Ethik und der Geist des Kapitalis/71us (Weber 1972). Georg Simmel não utilizará a palavra Zivilisation, recorrendo antes à oposição entre cultura objectiva e subjectiva (Simmel 1987). Se a primeira não pode passar sem a segunda, que a institucionaliza e a torna possível, a sua exterioridade ao indivíduo manifesta também a separação do mesmo. Toda a cultura subjectiva depende da objectiva, mas esta mais não é que o resultado da primeira, numa relação de permanente interdependência e acção recíproca, se bem que a objectiva possua o estigma de uma herança cultural cristalizada que pode impedir, por vezes, a livre expressão da cultura subjectiva. Será só em finais do século XIX, que as tendências que se adivinham em Kant e Humboldt evoluirão no sentido de opor claramente os dois termos. Kultur passará a des ignar os elementos teólicos, filosóficos, artísticos, a que a noção de progresso será estranha, fixando-se na diferença local dessas manifestações, enquanto resultados. Segundo Breuer (1995), a oposição surge apenas nos anos 70, em figuras marginais ao mundo oficial da cultura: Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Paul de Lagarde (pseudónimo deAnton Botticher 1827-1891) começam por denunciar a Zivilisation, manifesta na falsa Bildung que as instituições universitárias alemãs começam a oferecer, para reaparecer em Richard Wagner (1813-1883) como o mundo da guerra e do materialismo. É também Nietzsche que, em Zur Genealogie der Moral, falará da artificialidade da Zivilisation, patente nas estruturas políticas, no conforto, na técnica, no Estado seus contemporâneos, ao que oporá a vitalidade e naturalidade da Kultur. Mas esta oposição não transforma a Kultur num equivalente de uma essência especificamente alemã, como virá a suceder mais tarde nos círculos em torno de Stefan George (1868-1933), em Ludwig Klages (1872-1956) ou em Hugo von Hofmannsthal (1874-1929). A mudança coincide, grosso modo, com a primeira guerra mundial. É nessa ai tura que esses mesmos círculos associarão, de um modo mais ou menos veemente, a Zivilisation ou à superficialidade 65 francesa, ou à anglo-saxónica, sobretudo à norte-americana, correspondendo a barbárie incapaz de qualquer progresso à Europa Oriental, nomeadamente, à Rússia. Ao mesmo tempo identificam a KultUl; ou com a herança helénica de que só os alemães serão os verdadeiros herdeiros, ou com uma barbárie criadora, contra o espírito da modernidade dominado pelo capitalismo, pelo protestantismo e pelo racionalismo (Breuer 1995: 201 e segs.). Será nesta linha que Oswald Spengler em Der Untergang des Abendlandes (1918-1922) verá na Zivilisation o estádio esclerosado de uma Kultur entrada em decadência, assim apontando implicitamente para as ressonâncias ideológicas que a oposição continha. A oposição entre Zivilisation e Kultur, com as suas conotações pejorativas, reflectir-se-á na oposição entre Dichter e Literat, consagrada pelo jovem Thomas Mann (1875-1955), em que o primeiro é o fiel seguidor da cultura autónoma de raízes eminentemente germânicas - a Kultur - , enquanto que o segundo reproduz a cristalização em modelos alheios e cosmopolitas - a Zivilisation - (Mann 1956), posição que o escritor reverá mais tarde. o conceito de Kultur viria de resto a assumir um significado diferente durante o III Reich e no pós-guerra, face à apropriação crítica dessa tradição. Autores de inspiração marxista, comoTheodorW. Adorno (1903-1969), Max Horkheimer (1895-1973) ou Herbert Marcuse (1898-1979), chamariam a atenção para a importância da associação entre essa esfera pretensamente independente dos domínios económico, social e político, mas salvaguardando a respectiva tradição iluminista e crítica. Marcuse oporia Kultur aZivilisation, sublinhando agora a dimensão utópica da primeira (Marcuse 1965). O pessimismo cultural de um Marcuse no seu livro Eros and civilization (Marcuse 1955) ou ainda os ataques à cultura de massas e aos efeitos perniciosos da mesma por Adorno e Horkheimer (Horkheimer/ Adorno 1971) são tanto expressão dessa posição, como uma manifestação crítica face à sociedade capitalista e liberal. A evolução semântica operada depois de 45 revela, mais uma vez. as vicissitudes da Alemanha, confrontada ou com a perseguição movida a uma intelligentsia judaica que, pese embora o exílio, nunca se conseguiria identificar com a sociedade de acolhimento, incapaz de abdicar de uma separação entre cultura de elite e de massas, o que não im pedir ia , po rém, um diagnóstico particularmente interessante dos mecan i mo de manipulação de massas, seja na sociedade nazi, seja na norte-ame ricana . Subli nhe- s que este diagnóstico pressupôs uma atenção partiL.u lar obre de te rminados fenómenos da cultura de massas e da indústria da c ull1lra no E "A, onde as mesmas já conheciam um desenvolvimento ba "lant uperi r ao europeu. Contudo, há que reconhecer a influência látente das po ições referidas anteriormente: 66 a desconfiança perante a modernidade, os perigos da moderna racionalidade, embora agora contrabalaçados pela herança marxista e freudiana. Por sua vez, Norbert Elias, socorrendo-se da teoria psicanalítica de Sigmund Freud, advogaria que a civilização seria um processo ao longo do qual uma sociedade aprenderia a usar de um crescente auto-controle (Elias 1976). Claro que sociedades onde esse processo se iniciou prematuramente, em estreita associação com a criação de um aparelho de Estado centralizado, como seria o caso da Inglaterra e da França, teriam avançado mais do que a Alemanha, onde a unificação tardia, sob hegemonia da nobreza prussiana, teria retardado esse processo, o que explicaria a ascensão de Hitler ao poder e o carácter da barbárie nazi. A evolução da carga semântica de Kultur reflecte, segundo Norbert Elias, o estatuto predominantemente teórico da burguesia alemã, tradicionalmente afastada do poder político. O certo é que, ainda segundo Elias, de uma concepção eminentemente associada a princípios universalistas e humanistas, a palavra teria evoluído para um conceito que pretende sublinhar a diferença, substituindo-se a oposição social por uma oposição nacional. Enquanto que Zivilisation remete para uma herança universal, europeia, comum a todos os homens e sociedades, a evolução semântica de KultUl~ levava a que à mesma se associasse não só a recusa de factores de ordem não meramente espiritual, como o termo passasse gradualmente a integrar elementos nacionalistas e xenófobos, culminando a evolução na célebre oposição dos dois conceitos em vésperas da e durante a primeira guerra mundial. Assim se explica que Elias tenha recuperado, no espaço linguístico alemão, um termo com uma conotação cada vez mais questioná velo Com efeito, a predominância da palavra cultura na maior parte das línguas continua a fazer-se sentir, pelos motivos anteriormente assinalados. Por outro lado, a teoria civilizacional de Elias contempla apenas um modelo estreitamente associado à emergência do moderno estado ocidental, absolutizando categorias como a da auto-contenção das pulsões, segundo o modelo freudiano, que reproduz os estereótipos face aos «selvagens», com alguns séculos de história. Com efeito, a experiência pós-colonial e o pós-guerra, viriam a reforçar a necessidade de se questionar os modelos predominantemente eurocêntricos. Da associação quase imediata entre cultura e nação passou-se à constatação e defesa ou debate sobre a coabitação de uma multiplicidade cultural e étnica dentro de um mesmo espaço nacional. A importância dada ao multiculturalismo viria assim a reforçar-se nos últimos tempos: a forma de as culturas coabitarem e comunicarem entre si revela uma evolução semântica 67 da palavra cultura, que na senda da antropologia cultural, tende a tratar as diferentes manifestações culturais em termos de igualdade. 1.3.2 A evolução semântica das palavras Kultur e Zivilisation e a história do espaço cultural alemão Que leitura extrair desta evolução? Olhada com a devida atenção, a mesma dá conta de complexos processos, fundamentais para a compreensão da história da sociedade alemã e para o modo como a identidade cultural alemã se foi definindo ao longo desse espaço de tempo. A ausência de demarcação entre os dois conceitos em alguns autores do século XVIII revela a importância de ambos os domínios para uma burguesia, que em alguns estados alemães atingia um desenvolvimento económico e político comparável, se bem que menos generalizado, ao das suas congéneres inglesa ou holandesa. A alteração introduzida por Kant, ao diferenciar as esferas da civilização, da cultura e da moralidade, embora apontando para a evolução posterior, vê nessas três modal idades, outras tantas fases num processo que garante o progresso do género humano, progresso esse que a filosofia da história de Herder virá a questionar. Em Herder ecoa a revolta social da burguesia alemã, contra os modelos da corte francesa, mas simultaneamente a recusa de se ver o local submetido à hegemonia cultural e imperial das nações dominantes. A história garante ainda a educação do género humano, mas o modelo eurocêntrico (a Zivilisation) é agora questionado, adquirindo a particularidade regional uma importância decisiva. Mas se a importância dada ao local, à diferença, constitui o elemento fundamental do contributo herderiano, que viria a influenciar o conceito antropológico de culturas, tal como Boas o viria a propor, tal ênfase levaria a que a diferença, erigida em fundamento do futuro nacionalismo alemão, transformasse essa mensagem humanista e tolerante num panfleto xenófobo (cf. Cap. III. 1.3). Norbert Elias (1976) interpreta a diferenciação de Kant entre civilização, cultura e moralidade como a manifestação de uma cisão correspondente à situação da burguesia letrada na Alemanha. Esta, partilhando, embora, dos ideais cosmopolitas das Luzes, tenderia, devido à impossibilidade de participar directamente nas decisões económicas e políticas - dado tratar-se de uma burguesia letrada, eminentemente dependente a nível económico, social e 68 político da corte onde prestava serviço - a distanciar-se do dominio predominantemente material para fixar a carga semântica de Kultur no campo intelectual como o dominio privilegiado onde podia utilizar a sua influência e possível contrapoder. Esta interpretação faz certamente sentido no que respeita a alguns Estados alemães, designadamente o Grão-Ducado de Weimar, onde Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e Friedrich Schiller (1759-1805) contribuiram decisivamente para a introdução de um conceito de cultura individualizado, inspirado nos modelos da Antiguidade clássica, conceito esse que reaparecerá igualmente no de BiLdung, tal como defendido por W. von Humboldt. Contudo, também é verdade que a interpretação de Elias ainda se atém excessivamente a uma imagem monolítica de uma Alemanha atrasada, que a recente historiografia viria a desmentir, ao recorrer a uma análise mais regionalizada e diferenciada do passado. Com efeito, as osci lações semânticas e a convergência ou contaminação dos seus significados não são - como Elias o pretende - exclusivas do espaço cultural alemão. A língua inglesa conhece as mesmas oscilações, deixa-se influenciar pela evolução contraditória e extremamente complexa noutros idiomas. A excelência da «civilização» britânica é associada a um mito nacional, sobretudo a partir do século XIX, e consagrada significativamente por John Stuart Mill (1806-1873) em 1830 em 011 the Constitution oi Church and State, em polémica com os que, como Coleridge - inspirando-se em autores alemães - opunham culture/cultivation a civilization. Esta pressupõe, apesar das suas contradições e elementos menos positivos, um aperfeiçoamento geral que não invalida que o defensor da liberdade a recuse aos povos colonizados. A associação entre nação e civilização conterá os mesmos elementos xenófobos que se adivinham na oposição da Kultur alemã à Zivilisation universal. No entanto, enquanto que a Grã-Bretanha e a França conhecem ao longo de todo o século XVIII a confinnação do seu papel hegemónico e imperialista, a Alemanha permanecerá um aglomerado de territórios sujeitos aos jogos de interesses das grandes potências. A grande alteração dar-se-á com a invenção da identidade alemã durante o século XIX. Em 1871, assistir-se-á à unificação da Alemanha sob a hegemonia prussiana (cf. Cap. IV2). Os ideais unitários de democratas e liberais alemães eram assim substituídos por um regime autocrático, que só vencera mediante o recurso à guerra contra a França, prenunciando assim a futura dicotomia KulturlZivilisation em vésperas de 1914, como já acima foi referido. 69 Se tal solução levará à aliança da burguesia com a nobreza, face a receIO gerado pelas reivindicações crescentes da classe operária em rge nte, também é verdade que as raízes desse nacionalismo virado para a dife ren ça, esquecendo a mensagem cosmopolita e universalista do nac io na l ismo francês e da sua definição de cidadania, remontam ao período da oc upação napoleónica. Incapazes de enfrentar o inimigo, os territórios alemães ver-se-ão obrigados a sucumbir: a Prússia conhece a humilhação em JenaJAuerstedt, o Imperador depõe a coroa. Napoleão intervém, tudo fazendo para aproximar os territórios alemães do modelo racionalizado que dera à França, unindo principados ínfimos em unidades mais vastas, impondo o seu código nos protectorados sob influência directa ou um modelo cartista nas zonas sob influência indirecta, maioritariamente situadas a sul. O particularismo dos príncipes sucumbe face ao poder da levée en masse: a Liga Renana constitui uma associação de principados dispostos a colaborar, desde que mantenham a sua autonomia territorial. Será a Prússia, mais racionalizada e com maior poder militar, que extrairá a lição mais adequada da derrota. Reformando a sua economia, democratizando o serviço militar e o ensino, conseguirá em breve recuperar o poder perdido, sem pôr em causa o poder da classe nobre dominante. Misto de restauração e reforma, será o Estado alemão mais apto a catalisar e a chamar a si o descontentamento real que as populações sentem sob a ocupação. O nacionalismo alemão nasce contra o inimigo comum, a França e o herdeiro das Luzes e da Revolução, Napoleão. Fichte oporá à hegemonia francesa um conceito de nacionalismo fundado no local, nas raízes, naquilo que distingue os alemães, a língua, a etnia, a história comuns. Toda a miscigenação de culturas é entendida como traição a um princípio mítico de uma unidade originária que os alemães partilharão por excelência. É aqui que radica, mais uma vez, a associação entre Kultur, a vida, o originário, por oposição à Zivilisation cosmopolita, artificial e derivada, tal como a língua francesa o é. Assim, transfigurada pelo nacionalismo crescente, a oposição ganhará traços renovados. A fraqueza dos alemães é transformada em fo rça. o direito à diferença em breve dará origem à tentação da expansão em nome dos ideais a ela associados: o nacionalismo torna-se expansionista. E a Prú _sia aberá servir-se desse ideário, no momento em que, afast.ldo o perig de a unificação anular a sua hegemonia, já a tiver garantida. A unifi 3 , -o d~á-se contra o inimigo comum, a França, reforç an do- e o rr ,o xenófobo face à Zivilisation francesa, ecos que voltarão a e oar em 191 e. ob a forma da descriminação e exterminação racial, e m 193". Quando a burguesia alemã, que se vira gradualment afastada do centro do poder, se aproxima do mesmo, apó I 71 , fá -lo abdicando do seu ideal 70 emancipatório e humanista do século XVIII, para, interiorizando os valores militaristas e belicistas da grande nobreza prussiana, erigir a sua herança de Kultur num instrumento de nacionalismo xenófobo. Alguns filósofos mantinham-se à margem, mas a maior parte da burguesia académica fazia frente comum com o regime instituído. A aliança entre o poder e o ensino já era clássica, mas depois de 1871 e com a crescente industrialização, o poder do capital industrial passou a associar-se com o da investigação de ponta, sendo esta aliança entre o poder e o saber levada até às últimas consequências no III Reich (cf. Caps. IY.3 e IY.S). A reacção a esta situação não deixa de revelar as suas ambiguidades. É na recusa crítica e elitista da modernidade que os defensores de uma Kultur essencialmente germânica se irão basear para promover no período da primeira guerra mundial um ideal de superioridade que, associado ao culto carismático das grandes personalidades, ressurgirá e se consolidará depois de 1933. Mas que essa tradição não pode ser lida unilateralmente provam-no a apropriação crítica dessa mesma tradição no pós-guerra: o certo é que mais do que nunca a sociedade alemã ficou, a partir de então, sujeita à influência ocidental, tendo sido esse o modelo que vingou depois da unificação em 1990. Contudo, seria exactamente esse mesmo modelo que iria assistir a uma revisão crítica, mesmo pelos países que até então se haviam auto-proclamado os defensores dos ideais da civilização ocidental. 1.4 Cultura nacional e multiculturalismo 1.4.1 A reinvenção da tradição Confrontados com a catástrofe da segunda guerra mundial, mesmo os vencedores, sobretudo as gerações mais novas, particularmente activas nos movimentos de contestação à ordem vigente nos anos 60, seja na Europa, seja na América, (sobretudo durante a guerra do Vietname) questionaram-se sobre os fundamentos da sua cultura ou civilização. Acrescente-se, contudo, que tal orientação tem tido particular ressonância na prática e investigação anglo-saxónica, seja em função de uma herança imperial, caso do Reino Unido, seja em função de uma multiculturalidade que existe, pesem embora todos os esforços de assimilação, como é o caso dos EUA, do Canadá e da Austrália. É esta evolução que se reflecte na política multicultural, nas reflexões e práticas sobre a coabitação entre culturas e formas de as mesmas comu71 nicarem entre si. Tal entendimento da palavra cultura ignora um estatuto de superioridade entre as diferentes realidades culturais, ciente da importância que todo o fenómeno de transmissão de cuJtura tem para a realidade social e histórica dos seus diferentes representantes. A importância dada às particularidades étnicas decorre, de resto, de uma evolução, que, nos anos 60, colocaria a tónica na diferença, em prol dos direitos de maiorias ou minorias durante muito tempo silenciadas (caso das mulheres, dos não-europeus, autóctones). A ideologia do melting pot passou a ser contestada: o modelo assimilacionista passou a ser visto não como um modo de se assegurar a igualdade, mas antes como a perversão do mesmo. 1.4.2 A revisão da história A historiografia passou a ser vista de forma céptica, na medida em que a mesma se fizera em termos predominantemente nacionais e etnocêntricos. Países colonizadores como a Grã-Bretanha ou a França passaram a interrogar-se sobre os povos anterionnente silenciados, nos EUA, tratava-se de minorias étnicas, subjugadas pelo ideá rio do homem protestante e branco: tais revisões constituíram o eco dos movimentos pelos direitos cívicos dos negros, ameríndios. Reivindicou-se o àireito à diferença, insinuando-se a perspectiva do relativismo cultural entre aqueles que operavam a revisão da historiografia. Tal reflexão assumiria tón icas diferenciadas, consoante a experiência dos respectivos espaços culturais: na Grã-Bretanha, Holanda ou França tratava-se, mais uma vez, de reflectir sobre as consequências de um passado imperial, na RFA sobre a coabitação, num país que nunca se ,·ira como sociedade de imigração intensiva, com elementos de etnias mais ou menos familiares, desde os italianos, aos espanhóis, aos portugueses, aos turcos ou aos jugoslavos. Redescobriu-se, simultaneamente, os regionalismos, abafados ou silenciados por um estado-nação mais ou menos nivelador. 1.4.3 A Alemanha multicultural Também na Alemanha, as correntes multiculturalistas, isto é aquelas que privilegiam o direito à coabitação entre diferentes etnias, sem que as mesmas tenham de abdicar da sua especificidade, têm vindo a ganhar terreno, tornando cada vez mais necessário um olhar renovado sobre as tradicionais definições de cultura. O facto de a tradição alemã, sobretudo desde o século 72 XIX, apontar para um nacionalismo cada vez mais étnico e fechado, decorre de uma evolução histórica particularmente acidentada. Mais do que nunca esse nacionalismo foi uma construção, tanto mais necessária, quanto a identidade alemã estava longe de se encontrar consolidada. Para compreendermos este tema e o articularmos com uma série de questões e problemas em debate convirá recordar os seguintes aspectos: m a) O Reich defendeu a sua soberania e a sua política de expansão através de um nacionalismo emjnentemente étnico, acrescido de teorias pseudo-científicas de uma pretensa «raça alemã» que deveria ser purificada de todos os elementos a ela estranhos. O facto de a ideia não possuir qualquer fundamento histórico ou científico é irrelevante, uma vez que foi nela que os nacional-socialistas fundamentaram as suas políticas. b) Com o fim da segunda guerra não só a identidade alemã voltou a sofrer um profundo abalo, como as necessidades do pós-guerra levaram a que a Alemanha recebesse de bom grado mão-de-obra estrangeira, provinda predominantemente do Sul da Europa (Itália, Espanha, Grécia, Portugal) e da Turquia e Jugoslávia, para citar as mais importantes fontes de imigração. A estadia temporária, que o termo Gastarbeiter pretendia reproduzir, transformar-se-ia numa estadia definitiva, existindo actualmente já uma terceira geração dentro das comunidades de imigrantes. Tal realidade viria a entrar em conflito com a noção de nação alemã, não só a nível jurídico, como a nível prático. O certo é que estas comunidades, mais ou menos assimiladas, mais ou menos integradas, trariam um novo colorido ao espaço cultural alemão, influenciando o seu quotidiano e a sociedade em geral. c) Se esta situação era vulgar e quotidiana na RFA, já o mesmo não sucedia na ex-RDA, onde o carácter fechado da sua economia dificultou as trocas de bens, de ideias e de pessoas. Contudo, há que assinalar que tanto um como o outro território não possuíam uma tradição imigratória, ao contrário da França ou dos EUA, questão que, dada a definição essencialmente étnica da cidadania segundo a Constituição Federal, levanta inúmeros problemas quanto ao estatuto jurídico desses «estrangeiros» que, há gerações, vi vem em território alemão. Parece, portanto, evidente que o conceito de cidadania em vigor não se adequa às novas exigências e realidade migratória. 73 1.4.4 Cultura essência e reinvenção Tal evolução leva a repensar a interpretação da cultura alemã e de outras culturas nacionais, numa perspectiva essencialista - como se a identidade étnica, cultural ou nacional tivessem de constituir um absoluto originário ou um núcleo puro. A identidade cultural passa antes a ser vista como o resu Itado de uma interacção permanente entre diferentes realidades culturais, que assim se vão redefinindo e reinventando. o estudo de uma cultura nacional terá de tomar em consideração essa multiplicidade de perspectivas, sob pena de impossibilitar uma hermenêutica das realidades contemporâneas, divididas entre uma crescente globalização e miscigenação e a consequente necessidade de redefinir a sua diferença específica. ( BibliOgrafia aconselhada ~ Para uma súmula da evolução do conceitos de Kultur e Zivilisation recomenda-se a leitura da Introdução da I Parte de Elias 1976, complementada pela consulta de Williams 1988 e Enciclopédia Einaudi 1985. Actividades propostas • Consulte um dicionário francês, português e alemão e verifique o que consta das rubricas «cultura» e «civilização», «culto» e «civilizado»; articule os dados obtidos com o conteúdo desta unidade. • Leia o seguinte texto de Thomas Mann e comente: Der Unterschied von Geist und Politik enthalt den von Kultur und Zivilisation, von Seele und Gesellschaft, von Freiheit und Stimmrecht, von Kunst und Literatur; und Deutschtum, das ist Kultur, Seele, Freiheit, Kunst und nicht Zivilisation, Gesellschaft, Stimmrecht, Literatur. Der Unterschied von Geist und Politik ist, zum weiteren Beispiel, der von kosmopolitisch und international. Jener Begriff entstammt der kulturel1en Sphare der Zivilisarlon und Demokratie und ist etwas ganz anderes. International ist der demokratische Bourgeois, moge er überall auch noch so national sich drapieren; der Bürger ( ... ) ist kosmopolitisch, denn er ist deutsch, deutscher aIs 74 Fürsten und «Yolk»: dieser Mensch der geographischen, sozialen und seelischen «Mitte» war irruner und bleibtTrager deutscher Geistigkeit, Menschlichkeit undAnti-Politik. (Thomas Mann, Betrachtungen eines Unpolitischen, «Yorrede») M. R. S. 75 2. Bildung e Erfahrung: pedagogia, cosmopolitismo, interculturalidade Resumo Face à especificidade do conceito de Bildung (que desempenhou, e desempenha ainda hoje, um papel fundamental na cultura alemã), proporciona-se uma panorâmica histórica da noção de Bildung, das suas origens e fixação durante o século XVIII, e do seu posterior desenvolvimento. É ainda dado relevo às repercussões europeias deste conceito, nomeadamente as que têm a ver com o (re)nascimento de um pensamento pedagógico e com o subsequente surgimento de um espaço europeu, cosmopolita e intercultural. Objectivos • Identificar os diferentes usos da noção de Bildung, bem como o processo de desenvolvimento e fixação do sentido do mesmo conceito. • Relacionar a noção de Bildung com o surgimento e desenvolvimento da pedagogia na Europa e, mais especificamente, nos espaços de língua alemã. • Compreender a importância que as noções de Bildung e Eifahrung têm para a formação de um espaço (intercultural) europeu. 79 A noção de Bildung 2.1 2.1.1 Dificuldades na definição de Bildung Uma das primeiras dificuldades que se nos deparam quando procuramos entender ou explicar o termo alemão Bildung é exactamente a da sua tradução para a língua portuguesa. Os dicionários de alemão-português referem normalmente como equivalentes da palavra alemãBildung os termos portugueses «formação, constituição, cultura, criação, forma, desenvolvimento, instrução, educação». Remete-se assim para o contexto específico (textual e epocal) em que a palavra ocorre a decisão de a traduzir por cada uma das variantes acima mencionadas. O mesmo, de resto, acontece noutras línguas europeias, nomeadamente no castelhano, no francês e no inglês. Tal como acontece com a palavra portuguesa «saudade», se partirmos agora da perspectiva inversa (isto é, do português para uma língua estrangeira), a variedade da escolha que os dicionários nos proporcionam, juntamente com a ambiguidade que é inerente a essa mesma escolha, são de novo um sintoma claro, não tanto da intraduzibilidade do conceito em causa, mas sim da especificidade desse conceito no âmbito da cultura em que ele se desenvol veu e de onde ele é originário. O termo alemão Bildung remete pois para uma noção que é específica da língua e cultura alemãs. A atestar essa especificidade e, simultaneamente, a importância e a riqueza deste conceito no âmbito da história cultural alemã estão ainda as diversas palavras compostas criadas a partir de Bildung. Refiram-se, a título de exemplo, dois termos surgidos no século XVIII: • Bildungsroman, que no português é habitualmente traduzido por «romance de formação» e que corresponde a um tipo de romance que acompanha e descreve a formação e a evolução de um indivíduo (normalmente do sexo masculino) até à sua maturidade, sendo especialmente destacadas as vertentes social, psicológica e cultural desse percurso evolutivo; Wilhelm Meisters Lehrjahre (1795) de Goethe pode ser visto como o exemplo e modelo deste tipo de romance alemão característico de finais do século XVIII (veja-se p. ex. Beutin 1992: 16gesegs.). • Bildungsbürgertum, palavra que no português é habitualmente traduzida por «burguesia culta», «letrada» ou «esclarecida» e que, ao contrário do que o termo «burguesia» aqui parece indiciar, remete mais para uma esfera do privado, onde se sublinham as virtudes morais 81 da vida famjliar, do que propriamente para o sentido de «cl asse social» que entretanto o termo adquiriu (cf. igualmente Beutin 1992: 136). Em termos muito gerais, dir-se-ia pois que a noção de Bildung aponta para um núcleo semântico que se adivinha complexo e que tem no seu centro a educação: Bildung remete tanto para o processo de educação e formação (o caso de Bildungsroman), como para o resultado desse processo (o caso de Bildungsbürgertum). Sublinhe-se ainda que a palavra pode ser utilizada nestes dois sentidos - enquanto processo e enquanto resultado - e aplicada, quer ao indivíduo, quer à comunidade ou à colectividade dos indivíduos. Bildung implica pois uma forma interior (de formação individual, psicológica, de desenvolvimento pessoal) e uma forma exterior (de educação colectiva, social). 2.1.2 Origens e usas da nação de Bildung Muito embora seja durante o século XVIII que o conceito de Bildung adquire o seu significado actual e corrente, a verdade é que este termo surge bastante mais cedo na língua alemã, num contexto bem determinado. Durante a Idade Média, e no âmbito do pensamento religioso, palavras como Bild, bilden e Bildung remetem para um significado específico que está directamente ligado ao passo do Génesis (1, 26-27) em que se afirma que Deus criou o homem «à sua imagem e semelhança»: Und Gott sprach: Lasset uns den Menschen machen nach unserm Bild und Gleichnis (... ). Und Gott schuf den Menschen zu seinem Bild; zum Bilde Gottes schuf er ihn, aIs Mann und Weib schuf er sie. Nesta acepção inicial o termo é utilizado quer como sinónimo de «imagem» - Bild, Abbild, Ebenbild (imago) - , quer como sinónimo de «cópia» ou «imitação» - Nachbildung, Nachahmung (imitatio). Possivelmente mais importante (e determinante para o sentido actual do termo) do que este passo do Génesis é, porém, o eco que dele faz Paulo no Novo Testamento (2: Epístola aos Coríntios, 3, 18, sublinhados nossos): Nun aber spiegelt sich in uns allen des Herrn Herrlichkeit mit aufgedecktem Angesicht, und wir werden verwandelt in dasselbige Bild, von einer KJarheit zur andern, ais vom Geist des Herrn. Não se trata já aqui de o homem ter sido criado por Deus à sua imagem e semelhança, não se trata já aqui de o homem ser uma mera e passiva imitação de Deus; trata-se, sim, de o homem (cópia) se poder activamente 82 aproximar de Deus (original) através de um longo caminho de desenvolvimento e apelfeiçoamento interiores. Isto é, se cada indivíduo foi criado à imagem de Deus, então, um adequado e correcto aproveitamento das potencialidades individuais tornará possível, através de um processo demetamO/fose e transformação (venvandeln) interiores, a aproximação a Deus. o termo Bildung (e naturalmente também bildenlsich bilden) é então aqui utilizado quer no sentido de Gestalt (forma), quer, principalmente, no sentido de Gestaltung (jonnatio, formação, transformação). Ora é precisamente esta última vertente do conceito, uma vertente claramente mais dinâmica e activa, que a mística religiosa medieval alemã desenvolve e que se prolonga até aos círculos pietistas do século XVIII (cf. Rauhut 1953: 88 e Vierhaus 1972: 509 e segs.). Coménio (1592-1670), o humanista pedagogo nascido na Morávia que ficou conhecido como o «Bacon da pedagogia» ou o «Gal ileu da educação», ilustra de uma forma exemplar esta nova perspectiva na sua Didáctica Magna, publicada em 1657 (Coménio 1996: 102-104; vejam-se também as pp. 32-33 da tradução alemã da obra indicada na bibliografia): É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então não será uma imagem. ( ... ) Não é necessário, portanto, introduzir nada no homem a partir do exterior, mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza. Esta noção de desenvolvimento interior e pessoal de cada indivíduo para e em direcção a Deus tornar-se-á pois determinante no que diz respeito à especificidade da noção de Bildung no espaço de língua alemã, repercutindo-se, posteriormente, durante o processo de secularização do conceito: termos como «indivíduo», «desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal» ou «transformação interior» fazem agora parte das palavras-chave sem as quais não seria possível definir Bildung. Embora a obra acima referida de Coménio seja a vários títulos precursora I - nomeadamente no que diz respeito à progressiva deslocação do conceito de Bildung do plano do religioso para o plano do pedagógico - , a secularização do conceito (e portanto o seu alargamento e aplicação a outras esferas que não as exclusivamente religiosas) ocorre fundamentalmente durante o século XVIII. I Veja-se por exemplo o elogio que Herder I he faz nas suas Briefe zu Befbrderung der Human;rGr (<<57 Brief» in: Herder 1991· 294-301). Papel decisivo, terá tido a este respeito a tradução alemã da obra de Shaftesbury (1671-1713), Soliloquy or Advice to an Author, tradução essa 83 que foi publicada em Magdeburg e Leipzig em 173 . Ao 100 o de roda a tradução os termos to form,formation e inward f O/71/ ão empre trad uzidos por bilden, Bildung e innere Bildung. Contudo, os l rmo j á não . refe rem aqui à esfera do religioso, mas sim à esfera do moral. do e (' ri .0 e do pedagógico. Assiste-se portanto a um crescimento, a um trans bordar do conceito, como Bollenbeck refere com razão ao mesmo tempo qu ali e nta a importância e influência de Shaftesbury em todo este processo (Bolle nneck 1994: 116): Entscheidend ist Shaftesburys Beitrag zum Bedeutungszuwachs des Bildungsbegriffs. Mit der grol3en Wirkung seines Denkens erhalt die mystisch-pietistische Vorstellung von «bilden» bzw. «Bildung» eine moralisch-asthetische Bedeutung. «Bildung» wird so sakularisiert und in eine verweltliche Frbmm.igkeit eingeweiht. 2.1.3 A secularização do conceito de Bildung no século XVIII o processo de secularização do conceito de Bildung ou, talvez melhor e mais exactamente, o conceito resultante desse longo processo é de tal modo importante para a história da cultura alemã que o filósofo Hans-Georg Gadamer não hesita mesmo em ver na noção de Bildung «o maior pensamento do século XVIII», que está na origem das ciências sociais e humanas, e cujos efeitos e repercussões se prolongam, assim, muito para além do século XVIII (Gadamer 1986: 15): Der Begriff der Bildung (oo.) war wohl der grbl3te Gedanke des 18. Jahrhunderts, und eben dieser Begriff bezeichnet das Element, in dem die Geisteswissenschaften des 19. Jahrhundert leben (oo.). , Sobre a distinção entre KullLlr, Bildllng e Aufkltmtng vejam-se também os capítulos 11.1 (<<Kultur e Zivilisotiun») e 1l1.2 («Aufkldrung e modernidade») deste Manual. Na perspectiva de Mendelssohn estas três noções estão intimamente ligadas, sendo contudo Bildung o conceito central a partir do qual os outros dois derivam (MendeJssohn 1986: 4, sublinhados no original): <de mehr der gesellige Zustand eines Volks durch Kunst und FleiG mit der Bestimmung des Menschen in Harmonie gebracht worden, desto mehr Bildung hat dieses Volk. Bildung zerfiillt ln Kultur und Aufkliimng». 84 Haverá porém que acrescentar que «secularização» não é SInOnImo de imediata «vulgarização» ou «divulgação» do conceito aqui em causa. Na verdade, tal como Moses Mendelssohn nota logo no início do seu artigo intitulado «Über die Frage: was hei13t aufklaren?», publicado no número de Setembro de 1784 da revista Berlinische Monatsschrift (Mendelssohn 1986: 3), Die Worte Aujktarung, Kultur, Bildung sind in unsrer Sprache noch neue Ankbmmlinge. Sie gehbren vor der Hand blol3 zur Büchersprache. Der gemeine Haufe versteht sie kaum. 2 o que a frase de Mendelssohn deixa claramente transparecer é que aqueles termos são apenas usados e entendidos no seu novo sentido especifico por uns quantos letrados, especialmente por aqueles que têm contacto com obras provenjentes do estrangeiro. E estrangeiro signifjca, para a Alemanha da época, Inglaterra e França. Ora são precisamente estes dois países que mais contribuirão (e que maior influência virão a ter) na fixação do conceito de Bildung. Essa fixação ocorre fundamentalmente na esfera das novas preocupações pedagógicas que começam a surgir em Inglaterra (com nomes como Bacon, Locke e Shaftesbury) e posteriormente na França (com autores como Rousseau). ~o caso de Rousseau, que possivelmente será dos autores mencionados aquele que mais directamente influenciou o pensamento alemão da época, convirá distinguir três noções-chave da sua filosofia que se revelam importantes para a discussão e formação do conceito que aqui nos ocupa. Trata-se, em primeiro lugar, da ideia de que a capacidade ou faculdade de aperfeiçoamento - a perfectibilidade (pe/fectibilité) - é característica específica do género humano; esta faculdade é de resto, no entender de Rousseau, a característica que melhor permite diferenciar o homem do animal (Rousseau 1984: 102-103; 298 e segs.). Ora, como facilmente se constata, esta ideia de perfectibilidade é análoga e complementar da noção de aperfeiçoamento pessoal e desenvolvimento interior que se verificavajá nos círculos religiosos pietistas alemães. Trata-se, em segundo lugar, de uma ideia que é, de alguma forma, consequência da anterior: ao eleger a perfectibilidade como a característica que permite distinguir o homem do animal. Rousseau instala também uma cisão (que considera inultrapassável) no próprio homem - entre natureza, por um lado, e cultura, por outro. O homem «natural» (leia-se: o homem na natureza) é um homem livre, o homem «civil» (leia-se: o homem na sociedade e na cultura, submetido portanto às regras da vida com outros homens) é um escravo. Não surpreende pois que logo a iniciar o seu ensaio Émile ou de l'Éducation (publicado em 1765) Rousseau advirta (1966: 38) «(. .. ) ii faut opter entre faire un homme ou un citoyen: car on ne peut faire à la fois l'un et I'autre», já que natureza e cultura não são, do seu ponto de vista, conciliáveis na espécie humana 3 . E trata-se, em terceiro e último lugar, da importância que Rousseau atribui àquilo a que hoje poderíamos chamar experiência pessoal e ao papel de relevo que essa mesma experiência desempenha durante os processos de assimilação (educação) e produção do conhecimento. Num argumento que é profusamente repetido ao longo do seu Émile, Rousseau recomenda (1966: 215, sublinhados nossos): 3 Veja.se Rousseau 1984: 264 e segs. e 304 e segs. sobre a dicotomia natureza/cultura, e especialmente sobre as diferenças entre o homem (<natural» e o homem «civil» (ou «homme policé» como Rousseau também lhe chama). Dans les premieres opérations de I' esprit, que les sens soient toujours ses guides [d'Émile]: point d'autre livre que lemonde, point d'autre instruction que les faits. 85 A recepção alemã destas três noções-chave de R!ooiSZ::Dl dade», «dicotomia natureza/cultura» e «ex pe ri ên . ordinariamente produtiva. Em termos muito gerais dir-se-ia que aAlemanha do ' o este conceito de perfectibilidade de Rousseau pertinente transforma-o, adapta-o, reformula-o. _ort..ort"j bi I i- ex lra- on ide ra .. .ihdo . mas Em primeiro lugar, acentua-se o carácter individual e interi or da noção de perfectibilidade: a perfectibilidade poderá ser uma característica específi ca universal da espécie humana, mas a verdade é que se entende agora (por influência dos círculos religiosos pietistas) dever sublinhar que el a' esse ncialmente uma característica específica individual, de cada um dos indivíduos da espécie humana. Paralelamente destaca-se no mesmo conceico de perfectibilidade o que ele tem de processo, de devir, de aperfeiçoamento interior e pessoal. J Vejam-se também as passagens de Herder e Blumenbach citadas por Vosskamp 1993: 197; Blumenbach refere-se mesmo a um Bildllngslrieb (Nisus fonnalims) inato e de carácter universal. , Veja-se a definição de AlIJkldrung que abre o seu célebre ensaio "BeantwoI1ung der Frage: Was ist AufklarungO" publicado no número de Dezembro de 1784 da revista Ber/inische Monalsschr(fr, a que já acima aludimos (Kant 1986: 9). O facto de nos referirmos aqui a uma definição de Ar({k/anll1g (e não de Bi/dlll/g) nào causa problemas de maior, sobretudo face à complementaridade e contiguidade dos conceitos já atrás mencionada. No que diz respeito à liberdade e autonomia que o homem tem para determinar o seu próprio destino, deve no entanto sublinhar-se que essa liberdade é, na perspectiva de Kant, condicionada pelo uso regulador da Razào. 86 Por outro lado, uma vez que se trata de um processo patente em cada um dos indivíduos da espécie humana (e que faz por conseguinte parte da natureza de cada um deles), trata-se sem dúvida também de uma capacidade universal, naturalmente característica de toda a espécie humana, pelo que não faz qualquer sentido falar de uma dicotomia natureza/cultura Ao contrário, considera-se que a pelfectibilidade não é a característica que distingue (e por conseguinte separa) o homem «natural» do «civil», mas sim, precisamente, a característica que, no homem, une natureza e cultura, e que se constitui assim como a força centrípeta que proporciona unidade e universalidade a toda a espécie humana. Dito de outro modo: a capacidade de aperfeiçoamento é uma das características específicas da natureza humana e a cultura é tida justamente como o resultado ou produto dessa capacidade 4 • Ultrapassada esta Clsao «natureza/cultura», tal como ela era entendida e defendida por Rousseau, também as dicotomias valorativas que lhe eram subsequentes (do tipo homem «natural», «bom» e «livre» versus homem «social», «mau» e «escravo» das regras sociais) deixam de fazer qualquer sentido. O caminho fica assim aberto para Kant poder proclamar a autonomia de cada um dos indivíduos que constituem a espécie humana, e portanto também, a fundamental liberdade da espécie humana no que diz respeito à auto-determinação do seu próprio destinoS. Como se depreende, o conceito de Bildung assim reformulado é cada vez mais entendido como processo e menos como resultado: trata-se de um processo, simultaneamente individual e universal, que se baseia nos princípios da autonomia, da liberdade e da auto-determinação do sujeito, e que tem por objectivo o desenvolvimento (leia-se aperfeiçoamento) da humanidade, já não para e em direcção a Deus, mas sim para e em direcção à própria humanidade, em que as preocupações iniciais de ordem religiosa são substituídas por outras de ordem, ética, estética e pedagógica. Para o caso alemão, os dois nomes que se revelam sem dúvida importantes na fixação do sentido actual da palavra são lohann Gottfried Herder e Wilhelm von Humboldt. Não deixa de ser interessante notar que tanto Herder como Humboldt planeiam, cada um, uma obra que se lhes afigura simultaneamente grandiosa e necessária - uma história universal da formação da humanidade. Herder refere-se-lhe como projecto já em 1769, no diário da sua viagem a França (Herder 1976: 17): Welch ein Werk über das Menschliche Geschlecht! den Menschlichen Geist! die Cultur der Erde l aller Raume! Zeiten I V olker! ( ... ) Universalgeschichte der Bildung der Welt l o projecto, porém, nunca seria cumprido, ou melhor, foi sendo parcial e fragmentariamente realizado ao longo de toda a vida de Herder, com a publicação de diversas obras, de entre as quais é justo destacar as Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit (1784), Briefe zu Beforderung der Humanitiit (1793) e Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit, esta última publicada em 1774 e a que adiante nos referiremos com mais detal he 6 . o mesmo entusiasmo, a mesma grandiosidade de projecto se pressente também em Humboldt, num manuscrito que data possivelmente de 1795 e que tem precisamente o título de «Theorie der Bildung des Menschen» (Humboldt 1980a: 234): , Veja-se o posfácio de J. M. Justo (1995) à tradução portuguesa desta obra, espe· cialmente as pp. 155 e segs. Es ware ein grosses und trefl iches Werk zu liefem, wennjemand die eigenthümlichen Fahigkeiten zu schildem unternahme, welche die verschiedenen Facher der menschlichen Erkenntniss zu ihrer glücklichen Erweiterung voraussetzen; den achten Geist, in dem sie einzeln bearbeitet, und die Verbindung, in die sie alie mit einander gesetzt werden müssen, um die Ausbildung der Menschheit, ais ein Ganzes, zu vollenden. Mas há diferenças nesta noção de Bildung. Essas diferenças não resultam tanto da introdução de elementos novos no núcleo central de significados que compõem a noção de Bildung, mas sim de uma re-combinação dos elementos já existentes, ou seja, de umafundamental mudança de perspectiva, que a partir de agora se consolidará como constitutiva do conceito aqui em questão (Humboldt 1980a: 235, sublinhados nossos): 1m Mittelpunkt aller besonderen Arten der Thatigkeit nemlich steht der Mensch, der ( ... ) nur die Krafte seiner Katur starken und erh6hen, seinem 87 Wesen Werth und Dauer verschaffen v.ill. Da jed h . Krafl eincn Gegenstand braucht ( ... ), und die blosse Form. der ~I Gedanke. einen Stoff, in dem sie, sich darin auspragend, fortdauern kõnne. $0 bt'dwf der Mensch einer Welt ausser sich. De alguma forma poderá parecer que se retomam aqui o argum nto de Rousseau, que apontavam no sentido de dar à experiênci a p . oal (mais do que aos livros, quer dizer, à alegada experiência de terceiro. ) um p::I.pe l relevante durante o processo de educação e formação do indiv íduo. Contudo deve sublinhar-se que já não há qualquer dicotomia do tipo natureza/cultura, homem «natural»lhomem «civil», sujeito/mundo. Ao contrário, a importância que Humboldt aqui atribui ao mundo exterior é a importância da experiência do sujeito no mundo, de modo que o que está implícito na noção de Bildung - a evolução, o desenvolvimento e a transformação do indivíduo - é um processo que se vai realizando ao longo de um eixo homem/mundo, processo esse cujos resultados são tanto melhores quanto maior for a diversidade da experiência proporcionada pela interacção indivíduo( s )-mundo. 7 Veja-se Vosskamp 1993: 199 A dicotomia natureza/cultura transforma-se porianto em Humboldt numa complexa relação de complementaridade, de interdependência e de interacção homem/mundolhumanidade, em que se concil iam e se combinam hannonicamente o particular (constituído pela liberdade e auto-determinação do indivíduo) e o universal (constituído pelo inexorável destino da humanidade)7. quando eira Humboldt. Bildung impõe-se pois, no século XVIII alemão, como o conceito genérico (Oberbegriff) que abarca e simultaneamente transcende as noções de cultura e civilização (Humboldt 1988: 401): Die Civilisation ist die Vermenschlichung der Vblker in ihren ausseren Einrichtungen und Gebrauchen und der darauf Bezug habenden innren Gesinnung. Die Cultur fügt dieser Veredlung des gesellscbaftlichen Zustandes Wissenschaft und Kunst hinzu. Wenn wir aber in unsrer Sprache Bildung sagen, so meinen wir damit etwas zugleich Hbheres und mehr Innerliches, nemlich die Sinnesart, die sich aus der Erkenntnis und dem Gefühle des gesamten geistigen und sittlichen Strebens harmonisch auf die Empfindung und den Charakter ergiesst. Em suma, o que fica da noção de Bildung, tal como ainda hoje é entendida no espaço de língua alemã, são quatro núcleos de significado que se afiguram fundamentais, na medida em que se constituem como os elementos estáveis de um conceito que apresenta inúmeras variações ao longo dos tempos (cf. Vosskamp 1993: 190 e Pleines 1989: 7 e segs.): 1. 88 Individualidade: o princípio basilar em que assenta a definição de Bildung é o de que cada sujeito é único e tem o potencial Ce por conseguinte também a liberdade e a autonol1úa) para se desenvolver em função da sua própria individualidade, isto é, em função das capacidades que lhe são específicas; esta será porventura a componente mais intraduzível do conceito (cf. Bollenbeck 1994: 112). 2. Educação: o tenno Bildung remete naturalmente para educação e formação (Ausbildung), muito embora não possa ser definido exclusivamente por estas duas palavras; Bildung não significa apenas o desenvolvimento do sujeito no mundo,face ao mundo ou para o mundo, mas sim, também, o desenvolvimento pessoal do sujeito por si epara si, ou seja, no âmbito da sua própria individualidade; trata-se neste sentido de um permanente processo de formação (leia-se: «que dá fonna») simultaneamente interior (indivíduo) e exterior (mundo); o termo remete, por outro lado, tanto para o processo de educação e formação em si, como para o resultado desse mesmo processo. 3. Desenvolvimento: como vimos, inerente à noção de Bildung está sempre a noção de processo, desenvolvimento, evolução e/ou progresso; os objectivos desse percurso evolutivo, de resto um percurso sempre inacabado e inacabável, são de ordem ética, estética e pedagógica, e não (como sucedia inicialmente nos círculos pietistas) de ordem religiosa. 4. 2.2 Universalidade: tendo embora a componente individual um peso significativo e determinante na definição do conceito, a verdade é que a noção de Bildung é também, simultaneamente, uma noção universal; o desenvolvimento educacional e fonnativo de cada um dos indivíduos, quer se trate de um desenvolvimento exterior (no mundo), quer se trate de um desenvolvimento interior (aperfeiçoamento e formação individua!), é característica universal de toda a espécie humana; assim como o indivíduo determina a comunidade em que vive ao mesmo tempo que é determinado por ela, também a Bildung individual determina e é determinada pel a Bildung universal. O (Re)Nascimento da Pedagogia 2.2.1 A educação na Europa em meados do século XVIII Naturalmente que num contexto histórico e de mentalidades como o que acima fica delineado, em que as noções de Bildung, Kultur e AufkLarung desempenham um papel primordial, a educação e, de uma forma geral, os temas de âmbito pedagógico não poderiam deixar de estar no centro das atenções. 89 Muito embora não se pretenda fazer aqui uma hi Lória da educação. a verdade é que se afigura necessário recordar algu ns traço cara. terí ticos e princípios (muito gerais) da educação dos clássicos - greg.o e ro manos - , uma vez que são os próprios autores alemães que para el dir ctame nte remetem. Aliás, ao longo da reflexão e discussão em tom o do concei to de Bildung muitas vezes se recorre à noção grega de «p aideia » (ed ucação, formação, cultura), justamente para iluminar (e diferenciar) o conceito aI mão a que temos vindo a aludir. x De resto, o termo "pedagogia» (Pâdogogik) é um neologismo arcaico, proveniente do grego antigo onde o termo «pedagogo» se referia ao escravo que acompanhava a criança nobre à escola - e que se fixa definitivamente nas línguas ocidentais precisamente no século XVIII. As culturas clássicas - especialmente a cultura grega - têm por conseguinte um peso e uma influência determinantes naAlemanha do século XV IU . Humboldt dá bem conta desse peso e dessa influência quando escreve (1986: 65): «Die Griechen sind uns nicht bloss ein nützlich historisch lU kennen Volk, sondem ein Ideal. ( ... ) Sie sind für uns, was ihre Gótter für sie waren»8. No que diz respeito à educação, convirá em primeiro lugar referir que a instituição «Escola», tal como a conhecemos hoje (isto é, enquanto sistema público de educação), é uma instituição relativamente recente, que só começa a existir em meados do século XVIII. É certo que na Grécia Antiga existiam escolas, mas tratava-se essencialmente de escolas privadas, frequentadas exclusivamente por jovens do sexo masculino pertencentes às classes superiores. As escolas fundadas pelos filósofos - a Academia de Platão, ou o Liceu de Aristóteles - são exemplos do tipo de centros de educação e formação frequentados pelos jovens gregos. Esparta constituía uma excepção, já que o Estado se encarregava da educação de todas as crianças. Com a expansão do império helénico, porém, a civilização grega passou a viver cada vez mais do comércio e a depender assim em grande parte da alfabetização da população, de modo que a partir do ano 300 a. C. quase todos os filhos e (agora também) filhas dos cidadãos livres recebiam uma educação básica, que lhes permitisse ler e escrever. A alfabetização era também a preocupação fundamental para Roma, onde a educação continuava a ser um privilégio, não apenas dos cidadãos livres, mas também das classes mais altas. Durante a Idade Média a (in)formação recolhe aos conventos ou às universidades (que dependiam directamente da Igreja). No entanto a educação baseava-se agora numa estrutura disciplinar mais complexa e rígida. Para além da Teologia (matéria a que, por motivos óbvios, cabia um papel central nas instituições de ensino da época), o estudante tinha um curriculum a cumprir que era composto pelas sete artes liberais: numa primeira fase (Trivium) deveriam ser assimiladas a Gramática, a Retórica e a Dialéctica; e 90 numa segunda fase (Quadrivium) a Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia (cf. Gudjons 1995: 75 e segs.). Na Renascença dá-se uma viragem fundamental. Como refere Blankertz, o Humanismo renascentista (Blankertz 1982: 18-19) ( ... ) griff auf die Werte der Antike (Kunst, Literatur, Philosophie, Lebensgefühl) ( ... ) zurück. Dadurch wurde überall in Europa das Bedürfnis nach einer nicht mehr theologisch überformten, sondem rein weltlichen Bildung gefordert. Ficava assim aberto o caminho para uma futura secularização da área educacional, secularização essa que só viria efectivamente a concretizar-se nas últimas décadas do século XVIII. Como desta panorâmica muito geral sobre a educação se depreende, a Escola - e o termo só pode ser usado aqui metafórica e eufemisticamente - parece ser o local onde se preserva (mais do que se distribui) informação e conhecimento. A Igreja e a Cniversidade da Idade Média são aliás paradigmáticas no que respei ta a esta fUi1damental função de guardiãs da informação e do conhecimento. Ora esta dupla limitação das instituições de ensino - o facto de (1) a escola estar apenas ao alcance das camadas sociais mais elevadas e (2) ser o local de preservação (mais do que de distribuição) do conhecimento - é profundamente contrária às ideias iluministas do século XVIII. Mais: esta dupla limitação é evidentemente incompatível com as teses emancipatórias e universalistas que decorrem dos próprios conceitos de Bildung, Kultur e Aufkliirung. Assim, as transformações e reformas que se verificam na área da educação na Alemanha de finais do século XVIII e inícios do século XIX (reformas essas que adiante analisaremos com mais detalhe), poder-se-iam resumir em duas palavras: secularização e distribuição. Em termos genéricos dir-se-ia que se passa de um paradigma educacional que vê na escola o local de preservação do conhecimento para um paradigma educacional que olha para a escola como o local onde se procede à distribuição do conhecimento. Assiste-se então à criação das primeiras escolas públicas (o Estado substitui-se portanto à Igreja), a educação, lenta mas progressivamente, torna-se obrigatória para todas as camadas populacionais 9 e são publicados os primeiros manuais totalmente custeados e financiados pelo Estado. No caso da Alemanha a implementação da escolari· dade obrigatória (Schulpjlichl) começa já no século XVII. Em 1619 é introduzida em Weimar, em 1642 em SachsenCoburg-Gotha, em 1649 em Württemberg, em J 662 em Brandenburg e em J 717 e J 763 na Prússia. As decisões de introduzir por decreto a escolaridade obrigatória não têm no entanto consequências práticas imediatas. de modo que estas datas não devem portanto ser lidas como os momenlOS a partir dos quais é efecrivamellre introduzida a escolaridade obrigatória. Na realidade. o processo de implementação de um sistema público e universal de ensino foi um processo moroso. que se foi concret i zando progressiva e lentamente ao longo dos séculos XIX e XX (cr. Blankertz 1982: 59) 9 91 2.2.2 O (Re)Nascimento da pedagogia Ao desenvolvimento, implementação e consolidação de um I 1 ma ed uca\'iu ainda tivo como este - sistema que, sublinhe-se, numa fase inicial consideravelmente limitado, quer em termos sociais (às elas mai. al tas), quer em termos geográficos (no caso alemão a escol aridade obrigal ' ria é implementada em apenas alguns Estados) - não são al h ei ~ as preocupações e os postulados da Filosofia da época. Já anteriormente ficou referido o papel precursor de Coménio no q ue diz respeito à progressiva deslocação do conceito de Bildung do plano do religioso para o plano do pedagógico. Interessa agora analisar com algum detalhe o modo como progressivamente esse «plano do pedagógico» se emancipa da Filosofia e se constitui como área temática específica e autónoma, reconhecida de resto como tal pela Academia, que em 1779 entrega a Ernst Christian Trapp (1745-1818) a primeira cátedra de Pedagogia (Lehrstuhl für Piidagogik), na Universidade de Halle (cf. Blankertz 1982: 28). Coménio, no capítulo IV da sua Didáctica Magna que tem significativamente o título «O Homem tem necessidade de ser formado para que se torne Homem», já havia chamado a atenção para a especificidade e importância do tema em questão (1996: 119): ( ... ) a natureza dá as sementes do saber, da honestidade e da religião, mas não dá propriamente o saber, a virtude e a religião; estas adquirem-se! orando, aprendendo, agindo. Por isso, e não sem razão, alguém definiu o homem um «animal educável», pois não pode tomar-se homem a não ser que se eduque. Mas, ao contrário do que sucedia (e sucedera) anteriormente, Coménio entende que a educação, essa árdua tarefa de «ensinar o homem a agir como homem», é um processo que envol ve um método e um programa específicos. Esse método e esse programa ficam explícitos no longo subtítulo da sua Didáctica Magna que a seguir se transcreve parcialmente (Coménio 1996: 43): Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos ou Processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer Reino cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude de um e de outro sexo, sem exceptuar ninguém em palte alguma, possa ser formada nos estudos, educada nos bons costumes, impregnada de piedade, e, desta maneira, possa ser nos anos da puberdade, instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e à futura, com agrado e com solidez. 92 Deste subtítulo convirá reter três aspectos que se revelarão os verdadeiros alicerces da futura Pedagogia: • saliente-se em primeiro lugar que se trata de um programa duplamente universalista: pretende-se «ensinar tudo» (ou seja, qualquer tipo de conteúdo) «a todos (oo.) sem exceptuar ninguém» (quer dizer, a qualquer tipo de pessoa independentemente da sua proveniência ou situação social); • saliente-se em segundo lugar o carácter prático e utilitário da educação assim entendida: a instrução deve dizer «respeito à vida presente e à fu tura»; e sublinhe-se, por fim, os termos «juventude» e «puberdade» (por oposição a idade adulta) que indiciam já uma mudança radical de atitude no que diz respeito às concepções da criança vigentes durante a Idade Média (em que esta era vista como um pequeno adulto). Deduz-se pois que o método de ensino deverá ser adaptado à idade da criança e estar em conformidade com as suas capacidades de aprendizagem à medida que o jovem evolui para a idade adulta (cf. Gudjons 1995: 81). Durante todo o século XVIII são inúmeras as obras e os autores que se debruçam especificamente sobre a educação, um século que por isso mesmo foi considerado «o Século da Pedagogia» (cf. Gudjons 1995: 82). E nem mesmo Kant parece ter ficado imune ao tema e à moda, que entretanto se tinha instalado, de escrever um tratado sobre a educação, já que lhe dedicou também uma pequena obra (Über Padagogik, 1803) onde ecoam ainda os princípios definidos por Coménio: «Der Mensch kann nur Mensch werden durch Erziehung» (Kant 1988b: 699). Porém, de entre os muitos autores que se debruçam sobre a educação, conviria destacar Locke, com o seu Some Thoughts concerning Education, pu bl icado em 1693, e Rousseau, com Émile ou de l'Éducation, publicado em 1762, na medida em que se trata, em ambos os casos, de autores e obras influentes no pensamento pedagógico alemão. Em termos gerais dir-se-ia que, tanto Locke como Rousseau, repetem e se baseiam nos argumentos, programa e método de Coménio: a educação deverá ser universal, prática, utilitária e, tanto o método, como os conteúdos, deverão ir sendo sucessivamente adaptados às diferentes fases e idades da criança e do jovem. Mas, no que diz respeito ao acentuar da diferença desta nova concepção da criança, Rousseau é particularmente crítico, incisivo e, acima de tudo, bastante mais explícito que os seus antecessores (Rousseau 1966: 32): 93 On ne conna!t point l'enfance C.. ). Les pl u sage ' aua henL à ce qu'il importe aux hommes de savoir, sans considérer ce que les enfants sont en état d' apprendre. Ils cherchent tou jours I' homme dans r enfant. SeLns penser à ce qu'il est avant que d'être homme. Ora esta nova concepção da criança enquanto criança - e já não enquanto pequeno adulto - constitui porventura o aspecto mais visivelmente revolucionário das novas ideias pedagógicas, na medida em que implicará mudanças e reformas (muitas vezes radicais) em áreas tão diversas como as do vestuário, alimentação, cuidados de saúde, literatura e cultura (cf. Becher 1990). Tome-se aqui como exemplo o caso da leitura e, mais genericamente, da literatura. Já Locke havia assinalado a lacuna existente no que concerne as leituras da infância. Numa fase inicial, e à falta de livros mais apropriados, as crianças deveriam ler as Fábulas de Esopo (cf. Locke 1996: §§156-157). Mas numa fase posterior (em que o jovem domina já a técnica da leitura mas não entrou ainda na idade adulta) o problema do vazio continuava a colocar-se, daí que Locke faça um apelo que é simultaneamente uma recomendação: Die zweite Empfehlung Lockes (... ), daf3 «leichte, vergnügliche Bücher», die den Fahigkeiten und der Fassungskraft der Kinder angemessen sein müJ3ten, geschrieben und verbreitet werden sollten, fand in Deutschland groJ3e Resonanz. (Beutin 1992: 150) Maior ressonância ainda encontraram os apelos e as sugestões de Rousseau na Alemanha do século XVIII. E isto em virtude da radicalidade discursiva deste autor francês. Depois de se render à evidência da necessidade de aprender a ler. mas não sem que antes se sinta uma vez mais obrigado a reafirmar a sua profissão de fé numa educação «natural» baseada na «experiência» (<de hai s les livres; ils n'apprennent qu'à parler de ce qu'on ne sait pas»), RO L! seau e creve (1966: 238-239): Puisqu'il nous faut absolument des livres, il en exi ste un qui fo umit, à mon gré, ]e plus hellreux traité d' éducation naturelle. Ce Ii\Te ra le premier que lira moo Emile (... ). II sera le texte allquel [ OU no en Lre t i e n ~ sur les sciences naturelles ne serviront que de commentaire. 11 sen lra d'épreuve durant nos progres à I'état de notre jugement L.. ). Qu I e . 1 do nc ce mervei lJeux livre? Est -ce Aristote? est-ce Pline? e. ( -ce Buffon? on: c' est Robinson Crusoé. 94 Esta última sugestão foi levada à letra por inúmeros autores de diversos países, nomeadamente por Joachim Heinrich Campe (1746-1818), preceptor dos irmãos Humboldt (Alexander e Wilhelm) e autor de inúmeras obras destinadas à infância, de entre as quais se destaca justamente um Robinson Crusoe adaptado para crianças (Robinson der Jüngere, Hamburg 1779) que conheceu um êxito editorial assinalável, tendo sido sucessivamente reeditado até finais do século XIX (cf. Beutin 1992: 152). Resu]tante das novas preocupações pedagógicas, assim se inaugurou pois um novo género literário - a literatura infantil e juvenil (Kinder- und Jugendliteratur) - que conheceria, a partir da segunda metade do século XVIII, um crescimento deveras impressionante e que tem, ainda hoje, uma quota-parte muito significativa na produção livreira mundial. 2.2.3 A noção de Bildung e a reforma do sistenw educativo alemão Em finais do século XVIII estão definitivamente criadas as condições necessárias para que tenha lugar uma reforma profunda e (mais) alargada do sistema educacional alemão. Essas condições são: • o facto de a noção de Bildung, e especialmente as teses emancipatórias e universalistas que lhe são inerentes, conhecerem progressivamente maior divulgação; • o alargamento de um espaço públ ico (burguês) onde cada vez mais são discutidos os temas educacionais, que entretanto conheciam um processo de secularização irreversível; • as reformas (e, acima de tudo, a necessidade de reformas) de ordem jurídica que, após a Revolução Francesa, os Estados europeus se esforçam por fazer, no sentido de garantirem a sua sobrevivência na nova ordem mundial que se desenhava. o caso da Prússia é a vários títulos paradigmático. A promulgação em 1794 do Allgemeines Landrechtfür die Preussischen Staaten institui uma nova (e moderna) relação jurídica entre o Estado, o soberano e o súbdito/cidadão que é, apesar de tudo, «ambivalente» no entender de Bollenbeck (1994: 168). O Estado absolutista (e, no caso da Prússia, de tendência ainda feudalizante) só ficaria definitivamente desmantelado com as reformas que se lhe seguiram a partir de 1807: referimo-nos às reformas do exército, do aparelho estatal e, fundamentalmente, do sistema educativo (d. Botzenhart 1985: 45 e segs.). 95 Embora sejam muitos, na época, os autores a refl ect ir sob re a educação, diversas as suas perspectivas e igualmente variadas as su as propostas e programas - como Bollenbeck afirma, «das Bildungs ideal UiJ3t sic h (. .. ) nicht auf einen Nenner bringen» (Bollenbeck 1994: 166) - , a verdade é que, no que diz respeito a esta reforma do sistema educativo da Prússia, faz todo o sentido voltar a referir o nome de Humboldt. De facto, é precisamente Wilhelm von Humboldt que, na qualidade de chefe de uma recém-criada Sektion für del1 Cult~lS, offentlichen Unterricht und Mediúnalwesen do Ministério Prussiano do Interior lidera e arquitecta, a partir de 1809, as reformas educativas daquele Estado alemão. Essas reformas ou, talvez melhor, os princípios orientadores dessas reformas, surgem por conseguinte in nuce nos seus escritos sobre a noção de Bildung e num ensaio (provavelmente escrito em 1792, mas cuja publicação integral só foi feita postumamente) que tem o título significativo de «Ideen zu einem Versuch, die Granzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen». Convirá recordar aqui que, na perspectiva deste autor, a noção de Bildung apontava para um processo evolutivo complexo que se ia realizando ao longo de um eixo interactivo homem/mundo, processo esse cujos resultados eram tanto melhores quanto maior fosse a diversidade da experiência proporcionada pela interacção indivíduo(s)-mundo. As componentes essenciais desta noção de Bildung eram pois o mundo (cf. supra: «(. .. ) 50 bedarf der Mensch einer Welt ausser sich»), a variedade de situações proporcionadas pela interacção homem/mundo e a liberdade que justamente permitisse ao homem a maior variedade possível dessas situações. No referido ensaio sobre os limites da acção do Estado a tónica é posta agora na liberdade (Humboldt 1980b: 64): Der wahre Zwek des Menschen ist die hbchste und proportionirlichste Bildung seiner Krafte zu einem Ganzen. Zu dieser Bildung ist Freiheit die erste, und unerlassliche Bedingung. Allein ausser der Freiheit erfordert die Entwikkelung der menschlichen Krafte noch etwas andres, obgleich mir der Freiheit eng verbundenes, Mannigfaltigkeit der Situationen. Daí que a primeira grande conclusão (leia-se também: recomendação) do ensaio seja (Humboldt 1980b: 90, sublinhados no original): der Staat enthalte sich alter SargfaI! for den pasitiven Wahlstand der Bürger, und gehe keinen Schritl weiter, aIs zu ihrer Sichersteltung gegen sich selbs!, und gegen auswiirtige Feinde nalhwendig is!; zu keinem andren Endzwekke beschriinke er i/ue Freiheit. o Estado constitui, no entender de Humboldt, um factor indesejável de uniformização (Einformigkeit, cf. ib.: 71) da sociedade, daí que a acção do 96 Governo tenha de ser limitada, para proporcionar ao indivíduo um correcto e produtivo desenvolvimento das suas faculdades. A educação pública só poderia então, também, ser entendida como um modo coercivo de o Estado impor ao indivíduo uma certa forma social, uniformizando gradualmente deste modo a própria sociedade (Humboldt 1980b: 107): «lede offentliche Erziehung ( ... ), da immer der Geist der Regierung in ihr herrscht, giebt dem Menschen eine gewisse bürgerliche Form» 10. Não deixa por isso de ser paradoxal que seja justamente Humboldt, no exercício do cargo público governamental acima referido (que corresponderia hoje, sensivelmente, ao de Ministro da Educação), a instituir um sistema educativo público, cuja longevidade se revelaria surpreendente. la Veja-se a este respeito todo o capítulo VI ("Über bffemliche Staatserzjehung») do referido ensaio (Humboldt 1980b 103·109) Nos escassos 16 meses que ocupou o cargo (1809-1810) e em conjunto com os seus colaboradores - nomeadamente Johann Wilhelm Süvem, que permaneceu no Ministério até 1819 - , Humboldt fundou a Universidade de Berlin e lançou as bases de um sistema educativo que ainda hoje prevalece na Alemanha (cf. Blankertz 1982: 116 e segs.). Muito resumidamente, a reforma arquitectada por Humboldt assenta nos seguintes princípios basilares: 2.3 1. dar prioridade a uma educação universal, de índole geral e generalista (Bildung), em detrimento de uma formação específica e profissionalizante (Ausbildung, Berufsausbildung); 2. lançamento de um sistema uniforme de ensino (escalonado em três níveis) que se adapte às diferentes fases etárias do jovem: escola, liceu, universidade (Elementarunterricht, Schulunterricht, Unive rsitatsunter richt); 3. limitar a acção do Estado por forma a que este assuma, na educação, o simples papel de «espectador» ou «guarda-noctumo» (Nachtwachter na expressão original; cf. Gudjons 1995: 93); 4. promover o desaparecimento e a eliminação da atitude/mentalidade de súbdito (Untertan). Bildung e Erfahrung: viagens, cosmopolitismo e interculturalidade Vimos anteriormente como a discussão em torno da noção de Bildung teve consequências e efeitos práticos imediatos no espaço cultural alemão e também, mais genericamente, europeu: o nascimento de um novo género 97 literário - a literatura infantil e juvenil - e o surg" _nto d um is tema público de educação são duas dessas con sequencias a qu aqui fo i dado o devido destaque (muitas outras haveria ain da que referir)_ De seguida procurar-se-á ver como o mesmo concei ra de Bilr1ul1 o, agora em articulação com o de Erfahrung (a que já no in ício fizemo refere nc ia), são determinantes na construção da identidade de um e paço eu ropeu . cosmopolita e intercultural. 2.3.1 Bildung e Erfahrung Com a publicação, em 1774, de Auch eine Philosophie de r Gesclzichte zur Bildung der Menschheit começa a tomar forma, no pensJmento de Herder, um «( ... ) distanciamento crítico face a uma concepção finalista, fechada sobre si própria, auto-satisfeita e estática de 'Aufklarung'» (Justo 1995: 158). Vejam-se as «Notas à Tradução}} que acompanham a edição portuguesa da obra, pp. 128-130. II Esse distanciamento é desde logo notório no título da obra de Herder II , que remete para um ensaio de Voltaire publicado em 1765, sob o pseudónimo de Abade Bazin, intitulado Philosophie de l'Histoire. E há ainda diversas passagens em que essa atitude de distanciamento crítico transparece com grande clareza. Um exemplo: «Die sogennante AujkLarung und Bildung der Welt hat nur einen schmalen Streif des Erdballs berührt und gehalten» (Herder 1990: 89). Porém, em alguns passos deAuch eine Philosophie der Geschichte torna-se particularmente óbvio que essa crítica se apoia em argumentos que têm a sua origem no empirismo inglês, onde a noção de experiência -Erfahrung - desempenha um papel fundamental. Embora se trate de uma citação relativamente longa, julgamos que vale a pena dar a palavra a Herder quando, a propósito da educação, se refere criticamente a uma noção de Bildung que parece não contemplar o contacto com o mundo exterior (Herder 1990: 66-68): Es gab ein Zeitalter, wo die Kunst der Gesetzgebung für das einzige Mittel galt, Nationen zu bilden, und dies Mittel auf die sonderbarste Art angegriffen, nur meist eine allgemeine Philosophie der Menschheit, ein Kodex der Vernunft, der HumaniUit - was weiB ich mehr? werden sol\re ( ... ) Es war eine Zeit, da die Errichtung von Akademien, Bibliotheken, Kunstsalen, Bildung der Welt hieJ3 - vortreffJich! dieseAkademie ist der Name des Hofes, das würdige Prytaneum verdienter Manner, eine Unterstützung kostbarer Wissenschaften, ein vortreff1icher Saal am Geburtsfeste der 98 Monarchen. - Aber was die nun zur Bildung des Landes, der Leute, der Untertanen tue? ( ... ) Es war eine Zeit, da alies auf Erziehung stürmte - und die Erziehung wurde gesetzt in schbne Realkenntnisse, Unterweisung, Aufklarung, Erleichterung ad captum und ja in frühe Verfeinerung zu artigen Sitten. Ora o que de todas estas tentativas resultou não foi um progresso efectivo, um desenvolvimento prático, enfim, um avanço do mundo e da humanidade, mas sim «( ... ) ein Lehrbuch der Erziehung, wie wir tausend haben! ein Kodex guter Regeln, wie wir noch Millionen haben werden, und die Welt wird bleiben, wie sie ist» (Herder 1990: 68). Feito o diagnóstico da situação, a solução proposta por Herder na sua exortação final não pode deixar de recordar os argumentos de Rousseau que apontavam no sentido de privilegiar uma educação baseada na experiência em detrimento da «cultura Iivresca» (Herder 1990: 69, sublinhados nossos): Wenn meine Stimme ( ... ) Macht und Raum hatte, wie würde ich allen, die an der Bildung der Menschheit würken, zurufen: nich! Allgemeinorter von Verbesserung! Papierkullur! womoglich Anstalten - !un! LaBt die reden und ins Blaue des Himmels hineinbilden, die das Unglück haben, nichts anders zu kbnnen. Trata-se, de facto, de um passo onde as críticas às Luzes são particularmente incisivas. Dessas críticas convirá reter dois aspectos que na perspectiva de Herder estão interligados. Refira-se, em primeiro lugar, a crítica que tem a ver com o carácter limitado, limitativo e limitador da Aufkldrung tal como havia sido entendida e praticada até aí: tanto a educação como as Luzes atingiram apenas uma pequena faixa do globo terrestre, não tendo por isso a característica universalidade que tanto apregoam; assim, tanto a noção de Bildung como a deAufkldrung, não passam de boas intenções, cujos resultados práticos ficam muito aquém das promessas feitas e das expectativas geradas (a crítica é aqui especialmente dirigida à historiografia de cariz euro e etnocêntrico proposta por Voltaire). E trata-se, em segundo lugar, de verificar agora que não é possível falar de uma Bildung (ou de uma Aufkléirung) verdadeiramente universal a não ser que com esta noção se articule uma outra - a de Erfahrung. De facto, no entender de Herder, não é possível falar de uma sem outra - a própria ideia de uma educação sem experiência (e sem experimentação) é uma contradictio in adiecto - , daí que as duas noções sejam interdependentes e se encontrem estreitamente interligadas. 99 2.3.2 A viagem como corolário da educação Ao contrário do que acontecera em séculos anteriores, em que a educação e a formação, quer dizer, a transmissão do saber era feita através dos livros (sendo que a autoridade da escrita não era passível de ser questionada), a partir de finais do século XVII, e especialmente com a crescente influência dos filósofos empiristas ingleses (nomeadamente Newton, Bacon e Locke), desenvolve-se progressivamente a ideia que há essencialmente duas vias para o conhecimento: uma que passa naturalmente pelos livros e pela leitura de obras consagradas pela tradição e outra que, pela primeira vez, concede à experiência individual e à experimentação um papel de relevo na construção e transmissão do conhecimento. A experiência do e no mundo torna-se simultaneamente o ponto de partida do saber (o mundo é o local onde se devem recolher os dados que farão eventualmente parte do saber constante dos livros) e o ponto de chegada do mesmo (é pelo mundo que se deve aferir a validade das teorias e das hipóteses formuladas nos livros). Assim também no que diz respeito à educação: a realização e a consolidação efectiva de uma formação educativa e individual, que aspira a ser universal, só poderia portanto ser feita através da experiência, isto é, no duplo confronto com o mundo atrás referido. "A propósito do caráctereducativo e fonnativo da viagem vejam-se Elkar 1987. Bbdeker 1986 e Stagl 1987: 368 e segs. Não surpreende pois que sejam justamente os autores ingleses a destacar o papel que a viagem por países estrangeiros deverá ter na educação, enquanto forma ideal de adquirir e consolidar experiência e de, assim, pôr à prova o conhecimento humano l2 . Locke dedica-lhe um dos parágrafos finais do seu ensaio Some Thoughts concerning Educatfon, onde é peremptório ao afirmar: «The last part usuaJly in education is travel, which is commonly thought to finish the work and complete the gentleman» (Locke 1996: §212); e já Bacon, antes dele, havia chamado a atenção para o papel específico, e simultaneamente multifacetado, que a viagem poderia (e deveria) desempenhar no decorrer da vida: «TraveI in the younger sort is a part of education; in the elder, a part of experience» (Bacon 1985: 113). Como seria de esperar, também Rousseau dedica todo o último capítulo do seu ensaio sobre a educação às viagens (Rousseau 1966: 590-629). E Kant, que quase nunca saiu da sua Kbnigsberg natal, dá bem conta da importância que a viagem entretanto adquirira ao afirmar, de uma forma que se poderá considerar emblemática para todo o século XVIII: «Zu den Mitteln der Erweiterung der Anthropologie im Umfange gehbrt das Reisen; sei es auch nur das Lesen der Reisebeschreibungen» (Kant 1988a: 400). 100 No culminar do percurso educacional clássico surge então, agora, a viagem por países estranhos e estrangeiros como a forma privilegiada de consolidar e adquirir conhecimentos e Welterfahrung. Na Inglaterra o Grand Tour transforma-se numa verdadeira instituição (cf. Bausinger 1991 e Hibbert 1974): a viagem a Itália e a França (e muito mais raramente a Espanha), outrora obrigatória para os jovens oriundos das classes aristocráticas, vulgariza-se, a partir da segunda metade do século XVIII, entre a nascente classe média burguesa. Cerca de um século mais tarde (por volta de 1880) o fenómeno adquirira proporções tais que Eça de Queiroz o considera digno de registo, um registo naturalmente irónico e sarcástico. Numa das suas cartas de Inglaterra, em que procede à inventariação das instituições características da «velhaAlbion», escreve aquele autor (Queiroz s/d: 23-24): Temos ainda a TraveLling-Season, a estação das viagens, quando o famoso touriste inglês faz a sua aparição no continente. Nesta época (Setembro e Outubro) todo o inglês que se respeita (ou que não podendo em consciência respeitar-se pretende ao menos que o seu vizinho o respeite) prepara umas dez ou doze malas e parte para os países do sol, do vinho e da alegria. Os anjos (oo.) devem assistir então do seu terraço azul a um espectáculo bem divertido: toda a Inglaten'a fervilhando no porto de Dover - e daí sucessivamente partirem longos formigueiros de touristes, riscando de linhas escuras o continente, indo alastrar os vales do Reno, negrejando pelas neves dos Alpes acima, serpenteando pelos vergéis da Andaluzia, atulhando as cidades da Itália, inundando a França! Tudo isto são ingleses. A verdade, porém, é que nem «tudo isto são ingleses». Na realidade, grande parte dos viajantes são também alemães, franceses ou italianos. A viagem tinha-se vulgarizado entre a Europa culta e esclarecida. E desse movimento de vulgarização e de valorização dos benefícios (culturais e educacionais) da viagem haveria de resultar o turismo dos nossos dias. Aliando duas expressões-chave do Iluminismo tardio -Bildung e Eifahrung - a viagem constituía pois uma área de profundo consenso na mentalidade da época. Regressado de França, o próprio Herder reconheceria e definiria em 1769 de uma forma quase aforística o valor da viagem, salientando, ao mesmo tempo, essa interessante e estreita relação entre experiência e educação: «Wie anders lemt man die Welt kennen; je weiter man in sie tritt: jeder Schritt ist Erfahrung; und jede Erfahrung bildet» (apud Bodeker 1986: 95). 101 2.3.3 A descoberta da Europa Em relação aos séculos anteriores, como observa Paul Hazard (1983: 401), nomeadamente em relação ao século XVII, «a viagem [tinha, no entanto, mudado] de carácter; não erajá o capricho de um original demasiado curioso, mas uma aprendizagem, um trabalho, o complemento de uma educação ( ... )>>. Como vimos, esta «mudança de carácter» é o reflexo directo de uma nova mentalidade científica e pedagógica que modernamente se alicerça num relacionamento directo entre o indivíduo e o mundo. Do ponto de vista pedagógico, o interesse que a viagem oferecia era precisamente o de expor o indivíduo às mais variadas situações e diferentes experiências. E que melhor espaço haveria para ilustrar e exemplificar a diversidade e variedade do mundo do que justamente a Europa? Cerca de dois séculos depois de ter descoberto o Novo Mundo, a Europa viajava agora pela Europa à descoberta da Europa. Tratava-se de uma espécie de peregrinação interior em busca da própria identidade, isto é, em busca das semelhanças e das diferenças de realidades muito diversas que subitamente se descobrem (re)unidas no centro geográfico do novo Mapa Mundi mental (cf. Chaunu 1982: 35 e segs). E tratava-se também, afinal, de uma viragem para si própria, fundamental e simultaneamente limitadora (como adiante veremos). Os habitantes da Europa tomavam definitivamente posse do seu domínio. A nova filosofia mercantilista, o consequente aumento das trocas comerciais entre os vários países europeus e o rápido desenvolvimento das vias de comunicação possibilitam a vulgarização, ou, talvez melhor, a trivialização da viagem. À moda de viajar rapidamente se sucede uma outra, que se constitui porventura como um dos traços mais característicos da vida literária dos séculos XVIII e XIX - a da literatura de viagens (veja-se Beutin 1992: 185). A literatura de viagens europeia desta época apresenta-se, muito possivelmente, como um dos locais privilegiados (mais interessantes e mais produtivos) para assistir à complexa construção de uma identidade europeia. Do que se tratava agora não era exactamente de assinalar a fundamental unidade do espaço europeu. Essa já fora entrevista por Rousseau (1966: 612-613): Toutes les capitales se ressemblent, tous les peuples s'y mêlent, toutes les moeurs s'y confondent; ce n'est pas là qu'il faut aller étudier les nations. Paris et Londres ne sont à mes yeux que la même ville. ( ... ) C' est dans les provinces reculées, ou ii y a moins de mouvement, de commerce, ou les étrangers voyagent moins ( ... ), qu' iI faut aller étudier le génie et les moeurs d'une nation. 102 Do que se tratava agora, como daqui se depreende, era de descobrir a diversidade nacional e regional dentro da crescente uniformização que a Europa (cada vez mais cosmopolita) começava a conhecer. A hierarquia de nações, culturas e valores que daí resulta é, no entanto, uma hierarquia profundamente eurocêntrica e, por conseguinte, limitada. Todas as comparações, que estes viajantes constante e permanentemente fazem, dizem apenas respeito à própria Europa. O outro mundo - o mundo não-europeu - é o espaço da alteridade radical, da diferença tantas vezes incompreensível, por isso mesmo, frequentemente apelidada de «bárbara» ou «primitiva». E muito embora este outro mundo, só raramente seja nomeado na literatura de viagens europeia a que nos temos vindo a referir, a verdade é que é sobre o seu pano de fundo (por contraste e oposição a ele) que aqui se joga a questão fundamental da identidade europeia (cf. Cap. III.2, «Aufklarung e modernidade»). À medida que os habitantes da Europa iam tomando posse do seu domínio, iam transformando também esse domínio. Se o que se buscava era a diversidade regional e nacional, então, a variedade das línguas que se falavam na Europa proporcionava, sem dúvida, um bom ponto de partida para redefinir e repensar a identidade europeia. É neste sentido que se devem entender uma série de fenómenos que, a partir da segunda metade do século XVIII, parecem alastrar e generalizar-se por toda a Europa: • refira-se em primeiro lugar o progressivo abandono do Latim nas universidades e a sua substituição pelas línguas nacionais; • destaque-se também o súbito incremento na publicação de traduções; vale a pena ler a este respeito o notável texto de Friedrich Nicolai (1988) - que tem significativamente o título de «Übersetzungsfabriken» - em que é feito um retrato irónico e mordaz das práticas verdadeiramente «industriais» e «comerciais» dos editores e dos gabinetes de tradução da época, práticas essas onde não faltam nem a especialização do trabalho, nem a sub-contratação de mão-de-obra barata; • e saliente-se, por fim, a proliferação de métodos e gramáticas para o ensino de uma língua estrangeira (especialmente o inglês e o francês), que a médio prazo fará parte dos curricula escolares públicos (cf. Kimpel 1985). É pois na língua e na cultura que se começa progressivamente a desenhar um espaço supranacional europeu, que se caracteriza justamente por ser um espaço comummente dominado pela diferença: o espaço intercultural e cosmopolita da Europa. 103 Bibliografia aconselhada Para uma panorâmica generalista, mas nem por isso men os ap rofundada, do conceito Bildung vejam-se Vosskamp 1993, Bollenbeck J 994 e Pleines J 989; os textos de Herder 1990 e Humboldt 1980a constituem, por seu turno, fontes primárias extraordi nariamente importantes relativamente a esta temática. No que diz respeito à pedagogia e à educação consultem-se B lankertz 1982, Coménio 1996 e Humboldt 1980b (especialmente o capítulo «Über bffentliche Staatserziehung»). Finalmente, sobre o cosmopolitismo do ~éculo XVIII e as suas diversas manifestações, vejam-se Hazard 1983, Chaunu 1982 e Bausinger 1991. Actividades propostas Releia o capítulo e tente caracterizar em poucas palavras a especificidade da noção de Bildung. • Depois de ler o ensaio de Bacon (1985) e o último capítulo de Hazard 1983 (<<A Europa e a falsa Europa») compare as noções de «viagem» (os seus objectivos e utilidade funcional) veiculadas em ambos os textos. F.c. 104 S03VdS3: "III 01.I9l!.I.Ial a en~uJI 'o~~eu :«laU!lJf aaunz alf.:Jsl na a aJp ]!aM oS» °1 Resumo Proporciona-se uma panorâmica histórica dos conceitos de «nação» e de «nacionalismo», em especial a partir de finais do século XVIII. Analisa-se a formação da «nação alemã», dando particular destaque aos argumentos - comunidade de língua e de cultura - que estiveram na base da construção da identidade nacional daquele país. Objectivos Identificar os conceitos de «nação», «nacional» ou «nacionalismo» nas suas várias acepções, bem como na sua evolução histórica. • Entender a forma como de uma identidade nacional atomizada (<<as nações alemãs») se procedeu à construção de uma identidade nacional do espaço alemão (<<a nação alemã»). • Compreender a importância que a cultura, a língua e a história têm nesse processo de construção da identidade nacional alemã. 109 1.1 Da nação ao nacionalismo 1.1.0 Questões prévias Tennos como «nação», «nacional» ou «nacionalismo» entraram hoje em desuso e em descrédito no vocabulário político da Europa ocidental e as razões são fáceis de descortinar. Trata-se, em primeiro lugar, de razões que estão directamente relacionadas com a história europeia mais recente, nomeadamente as guerras, a violência, a devastação e os excessos políticos de má memória que a Europa conheceu durante a primeira metade do século XX, precisamente na sequência do exacerbar daqueles sentimentos nacionalistas. A título de exemplo do uso e abuso destes termos e da sua importante componente político-ideológica, recorde-se, no caso português, a conhecida fórmula que até 1974 deveria obrigatoriamente encerrar todo e qualquer documento público - «A bem da Nação» - , refira-se ainda que o Parlamento, a actual «Assembleia da República», tinha durante o Estado Novo a designação oficial de «AssembleiaNaciona/» e sublinhe-se, por fim, que o partido único que então governava o país se chamava significativamente «União Nacional». No caso alemão os termos - e os sentimentos - são bem mais problemáticos e radicais: a palavra «Nationalismus», por exemplo, tem frequentemente um sentido pejorativo, remetendo para uma ideologia política extremista, violenta, exacerbada e intolerante, a ideologia propagada pelo partido nacional-socialista alemão, que foi responsável directa pelos acontecimentos que levaram à II Guerra Mundial (cf. Alter 1985: 11-12). Por outro lado, o menor uso que os termos «nação», «nacional» e «nacionalismo» hoje conhecem tem também a ver, pelo menos em parte, com outra questão: a da ambiguidade que lhes é inerente uma vez que se constituem no plano de uma lógica paradoxal da identidade. Quando digo «eu» excluo assim todos os outros do horizonte de referências para as quais a palavra «eu» remete e, no entanto, cada um dos outros pode também dizer «eu». Paradoxalmente «eu» podem ser muitos. Do mesmo modo, podemos usar uma única expressão - por exemplo, «cultura nacional» - e remeter para realidades tão diversas como sejam a cultura portuguesa, francesa, chinesa, senegalesa ou tailandesa. Assim, à semelhança do que sucede com inúmeros conceitos mais abstractos, os termos «nação», «nacional» ou «nacionalismo», tal como o pronome pessoal «eu», dependem sempre daperspectiva ou do ponto de vista de quem os diz e do contexto para o qual remetem. E esta dependência da perspectiva e do contexto - que no caso aqui em apreciação é de um grau extremo111 torna os termos falhos de sentido, ambíguo ' e . por inadequados do ponto de vista da economia da língu a. I o . muita vezes Por razões que têm naturalmente mais a ver com os moti o hi tóric os acima apontados, a tendência, hoje, é para falar de «países». No entant o. quando os termos não estão especificamente conotados com um p roject político-ideológico, ou quando a ambiguidade que lhes é inere nte e dissolve em face dos destinatários e do carácter claramente local Ce para U 'O interno) da informação veiculada, os termos continuam a ser usados. Exemplo disso mesmo são expressões correntes como «selecção nacional» (<< Nationalmannschaft») ou «feriado nacional» (<<Nationalfeiertag»). 1.1.1 O conceito de nação Independentemente das suas actuais limitações e conotações, a verdade é que os conceitos que têm vindo a ser referidos e o contexto em que eles surgem desempenham um papel de extraordinária importância na construção da identidade alemã, pelo que se torna necessário observá-los na sua génese e evolução, primeiro num âmbito mais alargado europeu e, posteriormente, no contexto mais específico do espaço alemão. o conceito de «nação», tal como hoje o entendemos, tem a sua origem nos finais do século XVIII. A Revolução Francesa teve uma importância e uma influência decisivas, tanto na fixação como na consolidação, em termos modernos, do conceito em causa. Convirá no entanto salientar que a palavra «nação» já era anteriormente utilizada na grande maioria das línguas europeias ocidentais. Numa fase iniciaI, a partir do século XIV, «nação» - natio, do latim nasci (nascer) apontava para a origem comum de um grupo de indivíduos e aplicava-se a uma comunidade étnica ou aos habitantes oriundos de uma mesma região; porém, sublinhe-se, uma natio não envolvia nesta primeira fase qualquer tipo de forma organizacional política. Só posteriormente é que a palavra começa a ocorrer num âmbito e contexto claramente políticos. De facto, a partir do século XVII o termo «nação» remete também para os nobres que tinham um estatuto político (de representação) junto da coroa - a «nação francesa», por exemplo, referia-se exclusivamente ao clero e à aristocracia francesa que tinham acesso directo ao monarca (cL Schulze 1995: 112-113 e 117). o que daqui interessa reter é que em meados do século XVIII o termo «nação» é utilizado em dois sentidos diferentes que não se encontram directamente relacionados entre si: «nação» tanto remete para as origens comuns de um grupo de indivíduos, como para a função social e política de representação. 112 Claramente adaptada à realidade política alemã da época, a definição que Adelung dá do conceito, no seu Deutsches Worterbuch de 1776, é ainda paradigmática no que diz respeito à inexistência de uma relação entre a «nação» e o «Estado» ou o poder político: Nation, die eingebornen Eil1wohner eines Landes, so fern sie einen gemeinschaftlichen Ursprung haben, eine gemeinschaftliche Sprache reden, und in etwas engerem Sinne auch durch eine ausgezeichnete Denk- und Handlungsweise oder den Nationalgeist sich von andem VoJkerschaften unterscheiden, sie mogen übrigens einen einigen Staat ausmachen, oder in mehrere verteilt sein. (apud Schulze 1995: 170) De algum modo estão já aqui in nuce as componentes essenciais do conceito: língua, território e origem comuns. Mas a Revolução Francesa haveria ainda de o transfOlmar radicalmente, especialmente no que diz respeito à fundamental unidade da componente política que, em Adelung, é considerada irrelevante. De facto, as mudanças que a Revolução Francesa imprime ao conceito são mudanças de natureza essencialmente política: ao contrário do que sucedia no passado, depois de 1789 o termo «nação» passa a designar específica e directamente o terceiro estado, ou seja, o povo (a integração da aristocracia e do clero na nação fica assim condicionada à aceitação, por parte destes, do princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei); simultaneamente entende-se que a «nação» se afirma, se realiza e se espel ha no Estado que, desse modo, se torna componente essencial do conceito, na medida em que lhe confere unidade formal (cf. Schulze 1995: 168-169). Uma nação é agora, modernamente, constituída por uma comunidade de indivíduos, quer dizer, um povo, que paltilha uma mesma língua, e que tem usos e costumes, um passado e um território comuns, comunidade essa que se encontra reunida e enquadrada em torno de uma forma organizacional de cariz político - o Estado. 1.1.2 Da nação ao nacionalismo Das componentes acima mencionadas há duas que se revelarão especialmente importantes e produtivas, no que diz respeito à construção de uma identidade nacional alemã. Por isso, mas também porque ambas desempenham um papel fundamental no processo de ideologização do conceito de «nação», isto é, na sua transfom1ação em «nacionalismo», ser-lhes-á aqui dado o devido relevo: trata-se dos argumentos que tomam a língua e o passado histórico comuns como os factores de união e unidade das nações. I 13 I o termo «nacionalismo» só pode ser usado em relação a esta época com algumas cautelas. De facto não se trata exactamente de «nacionalismo» no sentido actual e moderno do termo, na medida em que lhe falta, pelo menos, uma componente essencial: a consciência e o sentimento de pertença a uma nação por parte dos indivíduos que a formam (cf. Schulze 1985: 109-111 e 169, nomeadamente quando cita a célebre conferência de Ernest Renan intitulada «Qu'est-ce qu'une Nationo» e proferida na Universidade de Paris em 1882) Convirá começar por sublinhar que, relati\"amente à lin gua, não se trata exactamente de um argumento novo. De facro. pri meira onda de nacionalismos europeus - que ocorre no final da Idade ~ tédia em que se assiste ao nascimento de Estados-Nações como a França, Inglaterra, Portugal, Espanha e Suécia (cf. Alter 1985: 27) - apoia-se com frequê ncia no argumento de que a uma língua deve «naturalmente » corre ponder uma unidade nacional e política fundamental I . Neste sentido, não será descabido afirmar que o Estado na, ce ao mesmo tempo que a Nação. O caso espanhol- com a língua castelhana a servir de traço e argumento da unidade nacional - e o caso português são, a este título, exemplares. Quando em 1492 Antonio de Nebrija (1441-1522) escreve a primeira Gramática da Língua Castelhana (que lhe havia sido significativamente encomendada pela Rainha Isabel, a Católica), dá conta, no prólogo, daquela que foi a sua preocupação em fixar e normalizar o castelhano como língua franca (e factor de unidade) da «grande nação espanhola» (repare-se como se está perante uma situação em que a língua determina a nação ao mesmo tempo quea nação- ou seja, o seu mais alto representante: a Rainha -determina a língua -leia-se: encomenda a gramática). Mas Nebrija faz mais: ao afirmar que «siempre la lengua fue compafíera deI imperio» está a enveredar por um tipo de raciocínio argumentativo que apresenta a língua não apenas como factor determinante da unidade nacional, mas também como traço de união, progresso e desenvolvimento da Nação, do Estado e do Império. O mesmo raciocínio haveria de ser repetido e explicado com uma frequência digna de nota por diversos gramáticos, nomeadamente pelos portugueses João de Barros (1496-1570) e Fernão de Oliveira (1507-1581), Este último é particularmente explícito quando afirma na primeira gramática da língua portuguesa publicada em 1536 (Oliveira 1975: 42): , Este tipo de argumenlo, que se pode considerar polílico e nacionalista avaJ1l la le"re, não surge nas primeiras gramáticas alemãs que são significativamente escritas em latim (cf. Stedje 1996: 127). Desde o século XV I até ao século XVHI a grande preocupação dos gramáticos alemães e os grandes temas das reOexões que tinham por objecto a lingua alemã eram invariavelmenle a defesa dessa mesma língua, da sua pureza, beleza e correcção (cf. Wolff 1994: 131 e 142 e segs.). 114 o estado da fortuna pode conceder ou tirar favor aos estudos liberais e esses estudos fazem mais durar a glória da terra em que florescem. Porque Grécia e Roma só por isto ainda vivem, porque quando senhoreavam o Mundo mandaram a todas as gentes a eles sujeitas aprender suas línguas e em elas escreviam muitas boas doutrinas, e não somente o que entendiam escreviam nelas, mas também trasladavam para elas todo o bom que liam em outras. E desta feição nos obrigaram a que ainda agora trabalhemos em aprender e apurar o seu, esquecendo-nos do nosso. Não façamos assim, mas tomemos sobre nós agora que é tempo e somos senhores, porque melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma (... ).2 Este argumento, de resto, sobreviveu até aos dias de hoje, encontrando porventura uma das suas formas mais apuradas no conhecido aforismo de Bernardo Soares, o semi-heterónimo pessoano: «minha pátria é a língua portuguesa». Sublinhe-se, no entanto, que se trata de uma lógica argumentativa de índole profundamente renascentista que se vai consolidando ao longo do tempo e simultaneamente transformando o mapa político da Europa. Em 1601, por exemplo, quando Henrique IV de França se vê obrigado a explicar aos habitantes da cidade de Buguey a sua integração na coroa francesa, é deste modo que defende o seu ponto de vista (o episódio é relatado por Coulmas 1985: 48 e Ortega y Gasset 1985: 85): II était «raisonnable» que, «pu isque» vous parlez naturellement le français, vous fussiez sujets au roi de France. Je veux bien que la langue espagnole demeure a I'Espagne, I'allemande a I' Allemagne, mais la française doit estre à moi. A língua transforma-se pois num meio para atingir um objectivo político: o da unidade da nação consubstanciada no poder político de um Estado. De facto, como refere Peter Alter (1985: 65), Die Sprache ist das au13ere, sichtbare Zeichen ali jener Merkmale, die eine Nation von der anderen unterscheiden. Sie ist der wichtigste Pctifstein, der das Vorhandensein einer Nation beweist und das Anrecht auf den eigenen Staat begctindet. Ora o que aqui interessa justamente salientar é o processo de ideologização a que o conceito de nação estava a ser submetido: no início é o elemento «língua» que se utiliza para sublinhar o que há de comum nos indivíduos que fazem parte de uma nação; posteriormente é ainda ao argumento «língua» que se recorre no sentido de justificar o direito à edificação de um Estado modemo; e, finalmente, considera-se que a «língua» é o factor que proporciona a unidade necessária ao desenvolvimento e prosperidade futura de um Império. É, pois, através da língua que a nação se constitui como Estado e é ainda pela língua que o Estado, transformado em Império, assegura a sua unidade fundamental. O mesmo sucede no que diz respeito à História, ou seja, em relação ao uso que se faz do argumento que funda a nação na partilha da memória de um passado comum. Especialmente na segunda fase dos nacionalismos europeus - a partir de finais do século XVIII - a reconstrução de um passado glorioso comum é uma das marcas ineJudíveis do processo de ideologização a que o conceito de «nação» estava a ser progressivamente submetido. Como refere Coulmas (1985: 46) Eine Vergangenheit wird (... ) partiell rekonstruiert, um die Gegenwart aIs rationale Fortsetzung erscheinen zu lassen und einer Nation die Rolle des bewu13t handelnden Subjekts der Geschichte zu geben. Die in der Vergangenheit begctindete Authentizitat wird von nationalistischen Bewegungen betont, um das Ziel der Einigkeit und Unabhangigkeit zu legitimieren. 115 Esta reconstrução do passado histórico com o objectivo de glorificar a nação e legitimar o presente é particularmente evidente na mitificação dos ditos «heróis fundadores» das nações europeias, na sua maioria chefes tribais que resistiram ao poderio de Roma, como é o caso de Hermann ou Armínio (o príncipe dos Queruscos) para a Alemanha, Vercingetorix (o chefe gaulês) para a França, ou Viriato para os países ibéricos (d. Schulze 1995: 108 e segs.). Alicerçado nos argumentos «naturais» da pm1ilha de uma língua e de um passado histórico comuns, o nacionalismo transforma-se assim numa ideologia política avant la lettre, numa verdadeira religião, especialmente durante o século XIX, época em que, na fórmula do historiador alemão Thomas Nipperdey, o religioso é secularizado e o nacional sacralizado (cf. Alter 1985: 15). Do ponto de vista político deverá entretanto sublinhar-se que, na sequência da Revolução Francesa, por um lado, e da discussão em torno dos argumentos «naturais» da partilha de uma língua e de um passado histórico comuns, por outro, o nacionalismo apresenta duas características que, sendo constitutivas do conceito, são simultaneamente responsáveis pela sua flexibilidade e longevidade, isto é, pelo seu sucesso em termos mundiais. No que diz respeito à sua flexibilidade refira-se, em primeiro lugar, que o nacionalismo é intrinsecamente paradoxal (tal como, de resto, a própria lógica da identidade em que se baseia): por um lado implica a uniformização da nação através da língua e da história (e isso é particularmente óbvio no caso da Alemanha, que adiante analisaremos em pormenor); mas, por outro lado, os nacionalismos europeus são também, na sua essência e origem, movimentos emancipatórios e anti-discriminatórios, ou seja, verdadeiras apologias do direito à diferença e auto-determinação dos povos (cf. Coulmas 1985: 43 e 58). Em segundo lugar, e no que respeita à longevidade do conceito, deve salientar-se que o nacional ismo se constitui como uma espécie de «grau zero» de todas as outras ideologias (e utopias) políticas que, por seu turno, se apresentam como propostas de futuros caminhos para uma sociedade que se encontra já fundamentalmente unida ao nível da língua e da história. Inaugurando um espaço sobre o qual as outras ideologias políticas assentam, do qual dependem e onde encontram o ambiente próprio para se desenvolverem, o nacionalismo surge assim como um princípio consensualmente universal, como o factor que «naturalmente» empresta unidade e coesão a qualquer sociedade. 116 1.1.3 Um conceito europeu o nacionalismo é, como se verifica, um conceito flexível. E é precisamente essa sua flexibilidade que lhe assegura longevidade e operacionalidade em termos universais. Se numa primeira fase o conceito de identidade nacional se jogou essencialmente no âmbito de argumentos que tinham a ver com a língua, numa segunda fase será o elemento histórico que conhecerá algum destaque e, mais tarde, o elemento étnico que, consagrado na noção de raça oriunda das teorias evolucionistas, justificará muitas das acções dos Estados e das Nações europeias, dentro e fora da Europa. Em todo o caso, o que interessa aqui sublinhar é que, qualquer que seja o entendimento do que é uma nação, quer dizer, acentue-se a unidade nacional a partir de argumentos religiosos, étnicos, linguísticos ou históricos, o conceito de nação é um conceito essencialmente europeu. Como refere Ortega y Gasset, toda a consciência de nacional idade «(oo.) supone otras nacionalidades en torno, que se han ido formando a la par que la propria y con las que convive en forma de permanente comparación» (Ortega y Gasset 1985: 75), e esse estado de «permanente comparação» é particularmente favorecido na Europa, um espaço comum de convívio profundamente marcado pelas diversidades linguísticas, históricas, religiosas e étnicas. Nado e criado na Europa, com a expansão europeia (que ocorre a partir de finais do século XV e mais sistematicamente durante todo o século XVIII) o nacionalismo haveria, porém, de constituir um caso de sucesso, também em termos universais. Com efeito, «der Nationalismus breitete sich mit der Expansion der modernen Zivilisation über die ganze Welt aus» (Eisenstadt 1991: 33), constituindo um modo caracteristicamente europeu de encarar a organização da sociedade. A essa expansão não é alheia a flexibilidade operacional do conceito de «nação», que permite a sua adaptação a qualquer tipo de sociedade (mesmo àquelas cujo sistema e lógica organizacional originais pouco tinham a ver com os argumentos fundadores das nações europeias). Assim, o mundo que conhecemos hoje é histórica e politicamente moldado e determinado por este conceito de nação oriundo do espaço europeu. Neste contexto não surpreende, pois, que a i nstituição onde se reúnem os representantes dos Estados da maior parte dos países do mundo se chame precisamente «Organização das Nações Unidas». 117 1.2 As nações alemãs 1.2.1 Estados e territórios No âmbito dos movimentos nacionalistas europeus, da sua história e desenvolvimento até aos dias de hoje, aAlemanha constitui indubitavelmente um caso sui generis. Na segunda metade do século XVIII, o território a que nos habituámos a chamar «Alemanha» é, em traços muito largos, um espaço definido e marcado pela existência de duas forças que actuam simultaneamente, mas em sentidos opostos. Trata-se, em primeiro lugar, de uma força que actua no sentido da dispersão política do território alemão; e trata-se, em segundo lugar de uma força que actua no sentido da união cultural e linguística daquele mesmo espaço. o vigor da força que actua no sentido da dispersão política do território manifesta-se claramente no mapa da Alemanha de meados do século XVIII que a seguir se reproduz (BoockmannlSchilling 1990: 265): Deulscllland 1763 Rc:ichsgrenu Kgl.preuJll<cbe Und", HabsbUIg;sche Lãoder 118 Trata-se de um espaço territorial atomizado, medieval mente dividido em Estados de dimensão muito desigual (muitas vezes são apenas pequenos Estados-Cidade), de entre os quais se destaca uma Prússia que não esconde o seu desejo de hegemonia. São mais de 360 os Estados autónomos que se encontram, na época, formalmente agregados em torno do Sacro Império Romano-Germânico (cf. Scheidl 1993: 7). o lado caricatural desta atomização do espaço em que a língua alemã é, por assim dizer, considerada língua franca fica bem patente em diversos passos da comédiaLeonce UM Lena, de Georg Büchner (1813-1837), nomeadamente num (2. 0 Acto, Cena 1) em que Valerio, uma das personagens, se queixa ao Príncipe Leonce do cansaço resultante de uma longa caminhada de apenas meio dia em que ambos teriam atravessado nada mais nada menos do que uma dúzia de Principados, meia dúzia de Grão-Ducados e um par de Reinos (Büchner 1976: 97-98): Wir sind schon durch ein Dutzend Fürstenthümer, durch ein halbes Dutzend Grof3herzogthümer und durch ein paar Konigreiche gelaufen und das in der grof3ten Uebereilung in einem halben Tag C... ). C... ) Por muito grotesco que este estado de atomização política possa parecer, a verdade é que se trata de uma situação que perdurou até à ocupação napoleónica e que, por conseguinte, haveria de marcar profundamente a ideia de «nação alemã», acentuando a vertente regionalista da mesma. Aliás, impOlta referir que só depois de 1500 - e na sequência da descoberta em 1455 do texto de Tácito sobre a Alemanha (Germania), que naturalmente constitui um elemento decisivo para a legitimação histórica da fundamental unidade alemã - é que, em vez de «deutschen Landem> (<<países alemães»), se passa a designar o espaço alemão por «Deutschland» (cf. Schulze 1995: 142). Porém, a par desta atomização hierárquica e territorial, assiste-se a uma força e uma vontade tendencialmente unificadoras desse mesmo espaço alemão. Apoiadas historicamente pelo uso de uma mesma língua e pelo mito de uma unidade política outrora existente, essas tendências unificadoras têm origem e encontram igualmente um eco significativo na solidariedade crescente demonstrada por uma classe, também ela socialmente a crescer, que é frequentemente designada de «burguesia esclarecida» (Bildungsbürgertum). Acrescente-se, no entanto, que esta burguesia esclarecida e nacionalista é simultaneamente cosmopolita e está especialmente atenta ao que se passa na Europa, nomeadamente à França pós-revolucionária, assistindo interessada ao desenrolar dos acontecimentos franceses numa primeira fase, e desiludida (leia-se também traída) numa segunda fase, por força das invasões napoleónicas que não pouparam o espaço territorial alemão. 119 Finalmente, resta sublinhar, como o faz Madame de Stael (Anne-Louise-Germaine Necker de Stael, 1766-1817) numa obra publicada em l 810 e que se haveria de revelar importante na discussão pública da identidade alemã e extraordinariamente influente na projecção europeia da Alemanha - De l'Allemagne - , que «L' AlIemagne, par sa situation géographique, peut être considérée comme le coeur d'Europe» (StaeJ 1968: 1, 41). Resumindo, dir-se-ia pois que a Alemanha de finais do século XV ilI se confronta problematicamente consigo mesma no centro do espaço político europeu, enquanto território mal definido e carente de um poder centralizado e forte, rodeado por potências altamente hierarquizadas como a Rússia, a Inglaterra e a França. Os testemunhos desse complexo e problemático confronto abundam na literatura de língua alemã da época: ln seinem Aufsatz «Über teutschen Patriotismus» (1793) fragte Wieland in bezug auf die Deutschen: «Wer sind sie?Wer zeigt, wer nennt sie uns')> Er kann sich nicht entsinnen, so hief3 es weiter, «das wort Teutsch oder Deutsch ( ... ) jemals ehrenhalber nennen gehort zu haben». Vier Jdhre spâter stellen Goethe und Schiller in ihrem Xenienalmanach au! das Jahr 1797 âhnliche Fragen: «Deutschland? Aber \,vO liegt es?!eh weif3 das Land nicht zu finden. Wo das gelehrte beginnt, hort das politische auf». (Johnston 1990: 11) Na verdade, e a julgar pelo que acima fica dito, dir-se-ia que a Alemanha não existia nem nunca existiu (cf. Barrento 1989: 1,27 e segs.). No entanto, os passos acima citados de Wieland, Goethe e Schiller deverão ser objecto de uma reflexão mais atenta. Por muito consensual que fosse na Europa da época o conceito de «nação» a verdade é que importa não esquecer que o século XVIII é o século da crítica. Também da crítica ao nacionalismo. Tanto mais no caso da Alemanha, um espaço profunda e tradicionalmente marcado pela divisão política, territorial e confessional. Neste contexto não surpreende, pois, que as críticas mais radicais ao nacionalismo sejam justamente provenientes do espaço de língua alemã. É, por exemplo, o que sucede numa obra que teve a sua primeira edição em 1758 - Vom Nationalstolz - (que conheceu um sucesso editorial invulgar e foi objecto de inúmeras polémicas), onde o médico e escritor suíço Johann Georg Zimmermann (1728-1795) afirma lapidar: «Die Liebe des Vaterlands ist freilich ln vielen Fallen nicht mehr aIs die Liebe eines Esels für seinen Stal!» (Zimmermann 1980: 80). Sublinhe-se no entanto que a crítica subjacente aos excertos acima transcritos de Wieland, Goethe e Schiller não é tão fundamentalista nem tão radical 120 como à primeira vista se poderia supor, quer dizer, não se refere ao conceito de «nacionalismo» em abstracto, mas sim à aplicabilidade e à utilidade do conceito de «nação» no caso específico da Alemanha. De facto, o termo «nacionalismo» tem, no contexto alemão da época, um sentido frequentemente pejorativo, semelhante ao que hoje tem a palavra «chauvinismo» (cf. Dann 1991: 57), por oposição a «patriotismo» ou «amor pela pátria». Estes últi mos sentimentos e valores, de pendor claramente positivo e moralizante, eram aqueles que o burguês nutria pela região de onde era oriundo, pelo seu Estado e pelo seu soberano. Para a Alemanha da época a pátria (Vaterland) era portanto bem diferente da nação (Nation): Mit «Vaterland» war dabei zunachst noch nicht die Summe der einzelnen deutschen Territorien, sondem haufig nur einer der jeweiligen Kleinstaaten gemeint. (Giesen/Junge 1991: 273) Neste patriotismo de carácter local estão as raízes do tradicional regionalismo alemão, que se prolonga, de resto, até aos dias de hoje'. À impossibilidade, e em grande parte também à indesejabilidade, de uma união política contrapunha-se, no entanto, uma fundamental unidade cultural da Alemanha, como Schiller e Goethe observam no passo atrás transcrito das suas Xénias. A nação alemã haveria pois de ser construída com base nessa comunidade de cultura. 1.2.2 SprachnationlKultumation: A comunidade da língua e da cultura De um ponto de vista cultural não deixa de ser interessante notar que, tendo tido a Alemanha a importância que teve na Refom1a através da figura de Lutero-l, acabou por inesperadamente adiar o seu «despertar cultural» precisamente até ao século XVIII. Ora uma burguesia activa, eJlldita e culturalmente empenhada como era a alemã, não poderia deixar de ver este atraso como consequência directa e exemplarmente negativa da atomizada e feudal estrutura política do território. Na realidade, e tal como Madame de Stael escreve na obra a que já acima se fez referência (Stacl 1968: l, 55): L' Allemagne était une fédération aristocratique: cet empire n'avait point un centre commun de lumieres et d'esprit public; ii ne formait pas une nation compacte, et le lien manquait un faisceau. De faclo. e por molivos que obviamenle lêm lambém a ver com os acontecimenlos da hislória europeia deste século (nomeadamenle as duas Guerras Mundiais), ainda hoje, na Alemanha, o indl' víduo se lende a identificar mais com o Estado (Land) ou a região onde nasceu do que com a complexa e proble· mática cidadania alemã. Sobre as dificuldades inerenles a eSle «ser·se alemão» vejam·se por exemplo as anlOlogias de Nünning/Nünning (1994) e Longerich (1990) 3 , O caso de Lutero é, neste cOnlexto, especialmente inle· ressante uma vez que acaba por se lornar parad igmálico da complexa e contradilória identidade nacional alemã. É que LUlero, com a sua Ira· dução da Bíblia, é simultanea· mente responsável pela fixa· ção e uni formização da língua alemã e pela inlrodução de novas fissuras confessionais que resultam, em lermos polí· licos, numa maior e mais acentuada divisão dos lerri· lórios alemães. Esse elo de união encontrá-lo-ia a Alemanha, em termos sociais, na burguesia e, em teill10S culturais, exactamente na língua que essa burguesia falava e muito em particular na literatura que essa mesma burguesia pro121 duzia e consumia nas diversas «sociedades de leitura» (Lesegesellschaften), que se multiplicam a uma velocidade vertiginosa durante o século XVIII (cf_ Dülmen 1986: 82 e segs.; 150 e segs_), facto, aliás, que ilustra bem o vigor e o poder de uma classe que, do ponto de vista sociológico, apresenta um grau de coesão assinalável e se vai progressivamente impondo na sociedade em virtude da sua formação universitária especializada (cf. Schulze 1995: 145 e segs_)_ As pátrias alemãs dão assim lugar à nação alemã. Não se trata porém, ainda, de uma «nação alemã» unida em torno de um mesmo Estado, mas sim de uma «nação alemã» reunida em torno de uma mesma língua e cultura (Kulturnation ). É a este respeito exemplar um poema - «Des Deutschen Vaterland» - que Ernst Moritz Arndt (1769-1860), escreve no ano de 1813. Depois de se revelarem infrutíferas as tentativas de definir política e territorial mente a Alemanha, o autor conclui (apud Ulmer 1990: 23): Was ist des Deutschen Yaterland? So nenne mir das grof3e Land! So weit die Deutsche Zunge kJingt Und Gott im Himmel Lieder singt, Das s01l es sein! o espaço alemão toma uma forma diferente: as fronteiras políticas e geográficas diluem-se para darem lugar às fronteiras linguísticas, históricas e culturais, facto extraordinariamente importante, que justifica muitas das futuras iniciativas e incursões alemãs no espaço europeu. Convirá no entanto sublinhar que, tal como sucedera na primeira fase dos nacionalismos europeus, os argumentos da partilha de uma mesma língua e de um mesmo percurso histórico só com muita dificuldade se aplicam ao caso alemão. , Refira-se aliás que o termo «alemão» (deuIsch) lerá surgido na Baviera por volta do século VIII e significava <<língua populaP> (Volkssprache). Porém, esta língua falada pelo povo não era de forma nenhuma uma língua uniforme e homogénea, «sondem eine Vielfalt von germamschen Stammesdialekten, die sich vom gelehrten Latein der Kirche wie von den romanischen und slawischen Sprachen Europas unterschieden» (Schulze 1995: 115). 122 No que diz respeito à história, se é certo que os territórios de expressão alemã partilham um passado histórico comum, deve acrescentar-se que se trata de um passado repleto de conflitos, guerras internas e dissensões das mais diversas (por motivos confessionais, pela política de alianças com as potências europeias, etc.). No que diz respeito ao argumento da partilha de uma mesma língua, a verdade é que uma observação mais atenta da Alemanha da época não pode deixar de constatar uma realidade bem diferente: de facto, o espaço alemão é um espaço onde não só se falam inúmeros dialectos regionais - muitos dos quais sobrevivem ainda hoje como sejam o Frísio (Friesisch), o baixo-alemão (Plattdeutsch), o Suabo (Schwabisch) ou o Bávaro (Bayerisch)5 - , como também é um espaço profundamente marcado por divisões de cariz sócio-linguístico (as classes mais altas usam entre si o francês como língua franca e de cultura). A atestar - de uma forma evidentemente caricatural - este plurilinguismo da nobreza alemã está a conhecida anedota sobre Frederico II da Prússia (1712-1786), de quem se dizia que falava espanhol com Deus, francês em sociedade, italiano na intimidade e alemão com cavalos e soldados. 1.3 A nação alemã Os mitos, como se sabe, criam realidades a partir do nada. Reorganizam o diverso, o disperso ou o disforme, emprestam-lhes unidade e, desse modo, sentido e forma. Os argumentos míticos de uma sociedade unida pela partilha de uma língua e de uma memória histórica comuns, por muito inadequados que a posteriori possam parecer, não constituem a este título excepção. Tal como acontecera com a primeira vaga de nacionalismos europeus e tal como acontecia na França pós-revolucionária - onde a um inventário exaustivo dos dialectos falados nas províncias rapidamente se sucedeu a proibição dos mesmos, conseguindo-se assim por decreto a uniformização da língua francesa (cf. Coulmas 1985: 30) - a construção da nação alemã iria pois percorrer os caminhos já conhecidos, nomeadamente utilizando os argumentos que apontavam para a «natural» unidade de uma sociedade que partilha a mesma língua e cultura, e se revê num passado histórico comum. No entanto, por força da especificidade do caso alemão, sob a inl1uência do pensamento do século XVIII e face aos desenvolvimentos da história europeia mais recente (revolução e invasões francesas), esses argumentos haveriam de ser agora revistos a uma outra luz, pensados a partir de uma outra perspectiva. 1.3.l Língua, cultura e sociedade À semelhança do que sucedera no Renascimento, durante a primeira fase dos nacionalismos europeus, a questão da língua (e mais genericamente da linguagem) é também uma questão central para o pensamento do século XVIII. Mas, diferentemente do que sucedera naquela época, a mesma questão já não se equaciona agora em função do binómio latimllínguas vulgares. Ao século XVIII interessa menos a discussão sobre a «pureza» das línguas, sobre o maior ou menor afastamento das línguas vulgares em relação ao latim - que entretanto caía progressivamente em desuso nas universidades - , do 123 que a investigação sobre a diversidade das línguas e a origem da linguagem, estes sim, os verdadeiros centros das atenções setecentistas. Correndo embora o risco de uma generalização e de uma simplificação excessivas, poder-se-ia contudo afirmar que o debate em torno da origem da linguagem oscilava entre aqueles que defendiam a origem divina daquela faculdade humana e aqueles que se inclinavam para a origem humana da mesma. No que diz respeito à diversidade das línguas, as explicações que ocorriam e as hipóteses que se colocavam eram de índole muito variada, valendo a pena destacar de entre elas (porventura por ser uma das mais divulgadas desde a Antiguidade Clássica) a tese que explicava essa diversidade em função de factores climatéricos. A língua falada numa região seria directamente influenciada pelo clima dessa mesma região, de modo que a diferenças climáticas corresponderiam necessariamente, também, entre outras, diferenças linguísticas. Esta antinomia Norte-Sul constitui aliás a base de uma tipologia nacional que se general iza por toda a Europa apanirdoséculo XVllleque tem um papel de relevo na produção literária, nomeadamente na literatura de viagens. 6 Na sequência de Montesquieu (que é um dos grandes divulgadores destas teorias na Europa do século XVIII), Rousseau pode ser tomado aqui como exemplo daqueles que à época defendiam esta última posição. Já em 1755, no seu Discours sur l'origine et les Fondements de I 'ln égalité parmi les Hommes, este autor chamava a atenção para a importância e influência que o clima teria no desenvolvimento diverso da espécie humana (cf. Rousseau 1984: 116 e segs., 158 e 324) e no Essai sur I 'origine des Langues, escrito entre 1753 e 1761 e que conheceu a primeira edição, póstuma, em 1781, retoma e desenvol ve a mesma tese aplicando-a agora à origem e diversidade das línguas (cf. Rousseau 1990: 89 e segs.). Assim, no Norte, onde a natureza é ávara e as necessidades se sobrepõem às paixões, a primeira palavra a ser pronunciada por boca humana teria sido «aidez-moi», enquanto que no Sul, onde a natureza é pródiga e as paixões dominam, essa primeira palavra teria sido «aimez-moi»6. É justamente neste quadro de ideias e neste contexto de mentalidades (que aqui ficam traçados de uma forma necessariamente muito breve) que surge em 1772 o Ensaio sobre a Origem da Linguagem, de Herder. Trata-se de um ensaio que no ano anterior havia sido premiado pela Academia das Ciências de Berlim e que procurava responder à questão posta a concurso em 1769 pela mesma Academia sobre as «possibilidades» e os «meios da invenção humana da linguagem». A frase que abre o Ensaio de Herder constitui sem dúvida uma resposta revolucionária e, de algum modo também, provocatória às questões colocadas, ao mesmo tempo que assinala um ponto importante de viragem no que diz respeito à reflexão sobre a I inguagem que se vinha fazendo na época: «5chon aIs Tier hat der Mensch 5pracho) (Herder 1966: 5). Se a linguagem era, na perspectiva de Herder, uma faculdade humana, uma capacidade anterior e, 124 fundamentalmente, interior à própria espécie humana, então Ce ao contrário do que sucedia por exemplo com Rousseau), a diversidade das línguas não poderia ser explicada por factores externos, climatéricos ou outros, mas sim apenas por factores internos (Herder 1966: 108-109, sublinhados no original): Er [der Mensch] ist kein Rousseauscher Waldmann: er hat Sprache. Er ist kein Hobbesischer Wolf: er hat eine Familiensprache. Er ist aber auch in andem Verhaltnissen kein unzeitiges Lamm. Er kann sich also entgegengesetzte Natur, Gewohnheit und Sprache bilden - kurz: Der Grund von dieser Verschiedenheit so naher kleiner Vdlker in Sprache, Denk- und Lebensart ist - gegenseitiger Fami/ien- und NationalhaJ3. A língua é pois entendida como um código, fechado aos inimigos e aberto aos indivíduos solidários, a mais humana e por isso a principal das fronteiras entre os homens que, além do mais, eles próprios criaram. A esta visão fragmentária da realidade linguística e humana, Herder contrapunha no entanto uma ordem e uma unidade que poderiam ser igualmente observ á veis: So wie nach aller Wahrscheinlichkeit das menschliche Geschlecht ein progressives Ganzes von einem Ursprunge in einer grol3en Haushaltung ausmacht, so auch alie Sprachen, und mit ihnen die ganze Kette der Bildung. (Herder 1966: 104, sublinhados no original) Em termos muito gerais dir-se-ia pois que as línguas se tinham progressivamente modificado e afastado dessa origem comum, modificação e afastamento esses a que não é alheia a vontade dos próprios indivíduos que formam e fazem parte da comunidade. Deste modo se verificava ainda o carácter «interior» da língua, isto é, o papel determinante que o indivíduo tem na formação e transformação de uma língua, ao mesmo tempo que se sublinha a estreita relação existente entre língua e cultura, ou seja, confirmava-se por último o papel determinante que a língua tem na formação e transformação do indivíduo, na medida em que esta lhe fornece desde o início o quadro lógico-mental e as próprias palavras com que expressa os seus pensamentos. Dito de outro modo: tanto é o homem que cria a língua como é a língua que cria o homem 7 • Esta complexa e rica relação entre indivíduo, social, língua e cultura, é a base da filosofia de Herder, e sem ela dificilmente se poderia compreender o seu pensamento político: Herder's central politicaI idea lies in the assertations that the proper foundation of a sense of collective politicai identity is not the acceptance of a common sovereign power, but the sharing of a common culture. For the former is imposed from outside, whilst the latter is the expression of an inner consciousness. (Bamard 1969: 7) Profundamente influenciado por Herder, Humboldt escreveria mais tarde que não é possível pensar um sem o outro: «Die Gelsteseigenthümlichkeit und die Sprachgestaltung eines Volkes stehen in solcher lnnigkeit der Verschmelzung in einander, dass, wenn die eine gegeben \Vare, die andre müsste vollstandig aus ihr abgelei!e! werden k6nnen. ( ... ) Die Sprache is! glelchsallJ die ausserliche Erscheinung des Gelstes der Vólker; ihre Sprache iSl ihr Geist und ihr Geis! ihre Sprache. man kann sich beide nie identisch genug denken» (Humboldt 1988: 414·415) 7 125 A comunidade não se funda portanto com base num «contrato negociado» (como Rousseau sustentava no seu Contrato Social), tem a sua origem, isso sim, numa vontade, num desejo natural expresso por uma comunidade de indivíduos, talvez melhor, por cada um deles, que partilham historicamente uma mesma língua e cultura. 1.3.2 História e Política Na Alemanha de finais do século XVIII e inícios do século XIX a reflexão sobre a lingua(gem) não é - nem pode ser considerada - uma reflexão puramente académica, isto é, desinteressada do ponto de vista político. Na realidade, trata-se quase sempre de uma reflexão que se inscreve sobre um pano de fundo dominado por preocupações políticas e nacionalistas. Essas preocupações tornam-se porventura mais claras ainda no caso de Wilhelm von Humboldt, seja pela sua participação activa na vida política alemã, seja pela sua proximidade em relação ao poder político prussiano (cf. supra o Cap. 11.2, «Bildung e Elfahrung»). É assim que em 1813, no ano em que as tropas francesas abandonam derrotadas o território alemão, se vêem de novo transportar para o campo político os argumentos que apontavam para a «natural» unidade política de um povo que partilha a mesma língua e cultura, e se revê num passado histórico comum. Numa longa carta sobre a futura constituição alemã enviada ao seu amigo e ex-ministro prussiano Freiherr von Stein (1757-1831) Humboldt escreve (1982: 304): ( ... ) das Gefühl, dass Deutschland ein Ganzes ausmacht, [Jasst sich] aus keiner deutschen Brust vertilgen, und es beruht nicht bloss auf Gemeinsamkeit der Sitten, Sprache und Literatur ( ... ), sondem auf der Erinnerung an gemeinsam genossene Rechte und Freiheiten, gemeinsam erkampften Ruhm und bestandene Gefahren, auf dem Andenken einer engeren Verbindung, welche die Vater verknüpfte, und die nur noch in der Sehnsucht der Enkel Jebt. ( ... ) Die Frage kann ais o nur die sein: wie soU man wieder aus Deutschland ein Ganzes machen? Sublinhe-se que os argumentos relacionados com a comunidade de costumes, língua e literatura se consideramjá um dado adquirido e, por isso mesmo, incontestável. Interessante é agora o modo como se reforça o argumento relacionado com a partilha de um passado histórico: Humboldt não só glorifica a memória de um passado comum, como também transforma uma história nacional numa história familiar, feita de pais e netos, procurando assim dar mais coesão à imagem de um todo social indissoluvelmente unido por laços familiares. 126 Face à sua constante preocupação com a questão dos direitos e das liberdades individuais, à ideia de que o futuro deve ser a sequência lógica de um presente reformador mas não necessariamente revolucionário em relação ao passado histórico e a partir da constatação dos erros e virtudes dos vários regimes e sistemas políticos entretanto experimentados (nomeadamente o francês, o ital iano e o norte-americano), Humboldt acaba por concluir na mesma carta: «Di e Richtung Deutschlands ist ein Staatenverein zu sein ( ... )>> (Humboldt 1982: 308). A unidade da Alemanha seria indelevelmente marcada pelo Estado e fundar-se-ia sempre ao nível da língua, da cultura, dos costumes, enfim, de uma memória histórica compartilhada desde há séculos, muito embora o mesmo autor admitisse que noutras condições histórico-culturais seria eventualmente de preferir uma constituição unitária e um poder estatal centralizado e forte. 1.3.3 Pedagogia politica Bem mais radical é a perspectiva proporcionada por] ohann Gottlieb Fichte (1762-1814), professor da Universidade de Berlim, quando no Inverno de 1807/1808 profere naquela cidade uma série de catorze conferências que intitula Reden an die Deutsche Nation. Nessas conferências toma-se perfeitamente claro o modo como a reflexão académica que se ocupa da linguagem rapidamente se pode transformar num meio para atingir um objectivo político. Estes discursos têm lugar porventura num dos piores momentos da história alemã: com a Prússia aniquilada militarmente desde a Paz de Tilsit (Julho de 1807) e Berlim ocupada pelas tropas francesas, dir-se-ia que a Alemanha tinha deixado de existir. É neste contexto que, falando exclusivamente de alemães e a alemães (Fichte 1978: 13), Fichte se propõe, em primeiro lugar, indagar da possibilidade de uma nova época (leia-se de um futuro que traga à Alemanha a autonomia e a independência perdidas) e, em segundo lugar, admitindo e desejando essa possibilidade, indicar os melhores caminhos que levem à construção desse futuro autónomo. Logo no primeiro discurso se tornam claras quais as soluções preconizadas para os problemas que a «nação alemã» enfrenta ( ... ) eine ganzliche Veranderung des bisherigen Erziehungswesens ist es, was ich, ais das einzige Mitrei die deutsche Nation im Dasein zu erhalten, in Vorschlag bringe (Fichte 1978: 21) - e quais os objectivos gerais das conferências: «Wir wollen durch die neue Erziehung die Deutschen zu einer Gesamtheit bilden» (Fichte 1978: 23). 127 Face à sua constante preocupação com a questão dos direitos e das liberdades individuais, à ideia de que o futuro deve ser a sequência lógica de um presente reformador mas não necessariamente revolucionário em relação ao passado histórico e a partir da constatação dos erros e virtudes dos vários regimes e sistemas políticos entretanto experimentados (nomeadamente o francês, o italiano e o norte-americano), Humboldt acaba por concluir na mesma carta: «Die Richtung Deutschlands ist ein Staatenverein zu sein ( ... )>> (Humboldt 1982: 308). A unidade da Alemanha seria indelevelmente marcada pelo Estado e fundar-se-ia sempre ao nível da língua, da cultura, dos costumes, enfim, de uma memória histórica compartilhada desde há séculos, muito embora o mesmo autor admitisse que noutras condições histórico-culturais seria eventualmente de preferir uma constituição unitária e um poder estatal centralizado e forte. 1.3.3 Pedagogia política Bem mais radical é a perspectiva proporcionada por J ohann Gottlieb Fichte (1762-1814), professor da Universidade de Berlim, quando no Inverno de 180711808 profere naquela cidade uma série de catorze conferências que intitula Reden an die Deutsche Nation. Nessas conferências toma-se perfeitamente claro o modo como a reflexão académica que se ocupa da linguagem rapidamente se pode transfonnar num meio para atingir um objectivo político. Estes discursos têm lugar porventura num dos piores momentos da história alemã: com a Prússia aniquilada militarmente desde a Paz de Tilsit (Julho de 1807) e Berlim ocupada pelas tropas francesas, dir-se-ia que a Alemanha tinha deixado de existir. É neste contexto que, falando exclusivamente de alemães e a alemães (Fichte 1978: 13), Fichte se propõe, em primeiro lugar, indagar da possibilidade de uma nova época (leia-se de um futuro que traga à Alemanha a autonomia e a independência perdidas) e, em segundo lugar, admitindo e desejando essa possibilidade, indicar os melhores caminhos que levem à construção desse futuro autónomo. Logo no primeiro discurso se tornam claras quais as soluções preconizadas para os problemas que a «nação alemã» enfrenta ( ... ) eine ganzliche Veranderung des bisherigen Erziehungswesens ist es, was ich, ais das einzige Mittel die deutsche Nation im Dasein zu erhalten, in Vorschlag bringe (Fichte 1978: 21) - e quais os objectivos gerais das conferências: «Wir wollen durch die neue Erziehung die Deutschen zu einer Gesamtheit bilden» (Fichte 1978: 23). 127 Ao longo dos catorze discursos é pois à construção de uma identidade nacional alemã que se assiste, neles se sublinham caricaturalmente as semelhanças internas e as diferenças externas em relação a outros povos e nações, redimensiona-se e, em alguns passos, profetiza-se umaAlemanha unida do futuro. o quarto desses discursos tem o significativo título de «Hauptverschiedenheit zwischen den Deutschen und den übrigen VaI kern germanischer Abkunft» e merece uma análise mais detalhada. Inaugurando uma série de outros dois que podem ser considerados o núcleo argumentativo central das conferências, neles pretende responder-se à pergunta que o título acima deixava já adivinhar: «was ist der Deutsche, im Gegensatze mit andern Valkern germanischer Abkunft?» (Fichte 1978: 124). E a resposta encontrada por Fichte é simples: as diferenças entre os alemães e os outros povos de origem germânica residem na tribo ou na etnia a que pertencem, na língua que falam, no território que ocupam e na memória de um passado histórico comum que partilham. Os alemães teriam permanecido nas terras inicialmente povoadas pela tribo original (Stammvolk) e preservavam assim a língua e a memória de um passado comum, por oposição aos outros povos que, tendo-se deslocado para outros territórios e povoado novas terras, necessariamente se desviaram também das suas origens germânicas. Para além da ideia de «germanidade» (Deutschheit) que aqui se veicula, o que na realidade interessa reter é que deste desvio primordial resultam, por exemplo, consequências políticas extraordinariamente importantes (Fichte 1978: 60): Der zu allererst, und unmittelbar der Betrachtung sich darbietende Unterschied zwischen den Schicksalen der Deutschen und der übrigen aus derselben Wurzel erzeugte Stiimme ist der, daJ3 die ersten in den ursprünglichen Wohnsitzen des Stammvol.ks blieben, die letzten eine fremde Sprache annahmen, und dieselbe allmahlich nach ihrer Weise umgestalten. Aus dieser frühesten Verschiedenheit mi.issen erst die spater erfolgten, z.B. daS im ursprünglichen Vaterlande, angemessen germanischer Ursitte, ein Staatenbund unter einem beschrankten Oberhaupte blieb, in den fremden Uindern mehr auf bisherige romische Weise, die Verfassung in Monarchien überging, u. dgl. erklart werden, keineswegs aber in umgekehrter Ordnung. Ora esta diferença nos sistemas políticos é provocada quase exclusivamente pelo desvio linguístico - a língua parece surgir aqui como argumento central -, uma vez que Fichte entende que a mudança de território não pode, só por si, modificar um povo que continue a usar a língua original. Numa primeira análise notar-se-á no conceito de língua que aqui transparece algumas semelhanças com o carácter «interior» da língua de que falava 128 Herder, nomeadamente no que diz respeito à fraca influência de factores externos na formação e transformação da mesma. Mas estes pontos de contacto rapidamente se dissipam já que, em primeiro lugar, Fichte fala exclusivamente da língua alemã e, em segundo lugar, entende que essa mesma língua não é arbitrária nem convencional. É, isso sim, a única língua natural que ainda sobrevive. E embora mais uma vez se esteja assim a sublinhar que o que a comunidade partilha tem pouco ou nada a ver com convenções ou «contratos negociados», o que está igualmente aqui a ser dito é que a língua alemã é a língua original, a única língua europeia que mantém uma relação directa com o Real. Noções como as de «iiberdade», «igualdade», «fraternidade» ou «humanidade» seriam pois «verdadeiras» quando pronunciadas na língua alemã e «falsas», na medida em que resultariam de uma reflexão especulativa, em qualquer outra língua europeia, nomeadamente na francesa. Desta fonna o discurso de Fichte, proferido naturalmente em alemão, diz que diz a verdade e assim se fecha tautologicamente sobre si mesmo. É claro - e este é um aspecto que não deve deixar de ser sublinhado - que os Discursos à Nação Alemã são discursos contra o invasor francês que ocupa o território alemão, sendo nesse sentido discursos tipicamente nacionalistas, de incitamento à revolta e apologéticos do direito à diferença, independência e auto-detenninação do povo alemão. Contudo, por muito que se considerem estas atenuantes contextuais ou por muito que se considere que este nacionalismo de Fichte não é incompatível com o seu cosmopolitismo (cf. Meinecke 1969: 88), a verdade é que a radicalidade nacionalista deste filósofo alemão tem já todos os ingredientes que mais tarde viriam a ser perversamente postos em prática na construção do Estado nacional-socialista alemão e na política usurpadora de agressão e conquista de territórios levada a cabo pelo mesmo Estado em meados deste século (cf. adiante o Cap. IVS). Concluindo, convirá reter que entre Rousseau e Fichte ficam de algum modo traçadas as fi liações dos dois tipos de nacionalismos que depois do século XVIII haveriam de dar fonna ao mundo político actual: é, por um lado, o nacionalismo de tipo francês e americano, cuja sociedade se funda a partir de uma base contratual clara - a da aceitação do princípio que todos os cidadãos são iguais perante a lei; e é, por outro lado, o nacionalismo de tipo alemão que se baseia na comunidade étnica, de língua, cultura e história. Significativamente estas diferenças traduzem-se, ainda hoje, em diferentes mecanismos jurídicos de aquisição da nacionalidade: no caso alemão a nacionalidade adquire-se pela consanguinidade (jus sanguinis), no caso francês e americano a nacionalidade é determinada pelo princípio da territorialidade (jus soli). 129 Por outro lado, se é certo que todo o nacionalismo é o resultado de uma construção ideológica, não é menos verdade que o carácter artificial dessa construção se toma pal1iculannente evidente no caso daAJemanha, que teve de reinventar a sua nação e a sua identidade nacional ao longo dos séculos XIX e XX. Como certeiramente observa Seeba a este respeito (1986: 154-155), Paradoxically, the German claims to national unity reflect a long history of pol itical divisions. C.. ) The concept of national identity, at least as far as Germany is concemed, is nothing but, linguistically speaking, a word without a referent. The word may generate a reality of its own, but it does not reflect a politicaI reality that exists before, outside, and independently of the concept. No caso da Alemanha, o conceito de «identidade nacional» acabou, de facto, por encontrar um referente e a palavra por criar uma realidade nova: a «nação alemã». Mas precisamente porque se trata de uma realidade criada a partir da palavra, a construção da «nação alemã» foi feita com base em argumentos e conceitos de cariz mítico-histórico e estético-literário. Como recorda o mesmo autor (Seeba 1986: 165, sublinhados no original), When the famed founder of the discipline called «Germanistik», Jacob Grimm, published the first volume of his Deutsches Wdrterbuch (1854-1860) he typically introduced it as a monumentfor, not of, national identity and with the expressed understanding that its formation in the German language and literature had no equivalent in the politicaI reality: «Was haben wir denn gemeinsames ais unsere Sprache und Literatur?» o carácter estético-literário, e pOl1anto retórico e ficcional, deste argumento fundador da «nação alemã» torna-se óbvio quando confrontado com uma realidade linguística e dialectal muito diversa e multifacetada, como acima houve oportunidade de referir. Por seu turno, o carácter mítico e irrealista de uma Alemanha outrora harmoniosamente unida e em paz fica bem patente num epigrama de Johann Vogel (1589-1663) publicado em 1649, do qual se depreende que é mais fácil ver passar um camelo por uma agulha do que assistir ao nascimento de uma «paz alemã» (apud Wagenknecht 1976: 171): Was du nit glaubest, das geschiht. Wie? sol nicht ein Camel durch eine NadeI gehn? Wann du den Teütschen Fried jetz wider sihst entstehen. Epigrama irónico e sarcástico, já que é publicado justamente no ano seguinte ao da assinatura do tratado de paz da Vestefália (1648), que veio pôr termo à Guerra dos Trinta Anos e assim trazer a paz a um vasto território que desde inícios do século XVI começava progressivamente a adoptar a 130 designação de Rediges Romisches Reich Deutscher Nation. Mas é igualmente um epigrama premonitório: não apenas em relação à história futura da Alemanha, mas sim, também, em relação a todo o espaço europeu. Bibliografia aconselhada Sobre a fonnação dos conceitos de nação e nacionalismo no espaço europeu consultem-se Alter 1985, Coulmas 1985, Schulze 1995 (especialmente o capítulo «Nationen», pp. 108-208). No que diz respeito ao caso alemão vejam-se em particular Amarante 1983, Barrento 1989 (nomeadamente as pp. 27-51 do vol. I), Runa 1992, Hermand/Steakley 1996, Longerich 1990 e Schulze 1996. No âmbito desta temática os textos de Fichte (1978) e Humboldt (1982) constituem fontes primárias, cuja leitura vivamente se aconselha. Actividades propostas Leia os textos de Hugo von Hofmannsthal (<<Boicote às línguas estrangeiras?») e de Thomas Mann (<<A Alemanha e os Alemães») incluídos na revista Runa (1992) e compare o conceito de «Alemanha» que está subjacente a cada um deles. Comente o seguinte texto: Que significa «alemão»? Ao que parece, essencialmente uma forma de ser, literária e filosoficamente, contraditória. Ostensivamente contraditória e carregada de tensões, umas vezes destrutivas, outras produtivas (... ). Aquilo que Nietzsche via como um mal - o facto de a Alemanha se alimentar, «com um apetite nada vulgar... de coisas contraditórias» (Ecce Homo) -, parece, afinal, quando visto numa perspectiva histórica mais larga, um factor de dinamismo e vitalidade. (Barrento 1989: I, 50) F.c. 131 Resumo Define-se o conceito de Aujklarung, tendo em conta o contexto das Luzes europeias e a tradição racionalista, em geral. Caracteriza-se a sociedade alemã no século XVIII, tendo em consideração a situação particularmente diferenciada do espaço de expressão alemã, a nível político, económico, social e cultural. Distinguem-se as diferentes fases do movimento das Luzes na Alemanha, associando o movimento com o papel da burguesia ascendente. Integra-se a Aujklarung no contexto do espaço não-europeu e avalia-se o modo como as Luzes lidaram com a diferença. Objectivos • Definir o termo Aujklarung, em diferentes acepções, associando-as com as implicações que tais definições têm no actual debate sobre a racionalidade e a modernidade, em geral, e na interpretação das Luzes, em particular. • Caracterizar o movimento das Luzes na Alemanha, inserindo-o no contexto europeu. Caracterizar de forma diferenciada a sociedade alemã no século XVIII. Avaliar da correlação entre as Luzes no século XVIII e a modernidade ocidental, numa perspectiva não estritamente europeia. 135 Conceito de Aujklarung 2.1 o termo Au.fkliirung, frequentemente utilizado na Germanística portuguesa, pressupõe um consenso científico quanto à especificidade que o movimento das Luzes terá adquirido na Alemanha do século XVIII. Contudo, para que se possa operar com a devida eficácia com este conceito, há que principiar por delimitá-lo semântica e historicamente. o termo Au.fkliirung é, actualmente, utilLzado em língua alemã, num sentido amplo, sem se referir a qualquer período histórico, remetendo para um processo de esclarecimento e de informação, a que não são estranhas as conotações que o termo adquiriu no século XVIII (cf. Cap. UI.3). o termo pode ainda surgir estreitamente associado a racionalismo, mais uma vez sem uma fixação histórica precisa, para designar uma evolução característica do Ocidente e da modernidade. Se é ponto consensual a associação entre racionalismo e modernidade, ambos, de resto, estreitamente ligados ao Ocidente, o mesmo já não se passa com a delimitação histórica dessa mesma ligação. Há interpretações que associam o emergir da modernidade à época que a historiografia tradicional designou de Era Moderna (assinalada com a Reforma e o Renascimento no século XVI) com os respectivos efeitos na Era Contemporânea (iniciada no século XVUI), associando a essa tendência a afirmação • do moderno espírito científico; • de uma visão secularizada do mundo, crescentemente centrada sobre o Homem (antropocentrismo), por oposição à mundovisão teocêntrica que teria caracterizado a Idade Média; • a utilização do experimentalismo e do uso da razão como fundamentos essenciais do conhecimento e da interpretação do mundo e da natureza, que teriam tido as suas primeiras manifestações no Renascimento e na Reforma protestante e que teriam ganho em consistência e importância durante o século XVIII. Entre Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642), Kepler (1571-1630), Lutero (1483-1546) e Calvino (1509-1564), Bacon (1561-1626), Descartes (1596-1650), Locke (1632-1704) e Newton (1643-1727) existi ri a uma li nha de continuidade essencial. Por outro lado, a associação entre Luzes e modernidade deve grande parte dos seus pressupostos ao conceito de racionalidade tal como definido por Max Weber. Segundo o sociólogo alemão, a racionalidade seria uma característica do Ocidente, que o autor define como uma vertente que, em 137 termos sociais, económicos e políticos, se caracterizaria, sobretudo, tanto pela crescente afinnação de um Estado centralizador, apoiado por estruturas burocráticas, como por uma planificação rigorosa da actividade das empresas capitalistas, substituindo-se assim o improviso e o espírito aventureiro dos primórdios do capitalismo por uma racionalidade utilitária que ponderaria cuidadosamente os meios para atingir os fins (Weber 1972: 4-5; cf. ainda pp. 60 e segs.). Der «Staat» überhaupt im Sinn einer politischen Ansta/t, mit rational gesatzter «Verfassung», rational gesatztem Recht und einer an rationalen gesatzten Regeln: «Gesetzen», orientierten Verwaltung durch Fachbeamte, kennt, in dieser für ihn wesentlichen Kombination der entscheidenden Merkmale, ungeachtet aller anderweitigen Ansatze nur der Okzident. Und so steht es nun auch mit der schicksalvollsten Macht unsres modernen Lebens: dem Kapitalismus. Erwerbstrieb, «Streben nach Gewinn», nach Geldgewinn, nach moglichst hohem Geldgewinn hat an sich mit Kapitalismus gar nichts zu schaffen. Dies Streben fand und findet sich bei Kellnern, Aerzten, Kutschern, Künstlem, Kokotten, bestechlichen Beamten, Soldaten, Raubern, Kreuzfahrem, Spielhollenbesuchem, Bett/em: - man kann sagen: bei «ali sorts and conditions of men», zu allen Epochen aller Lander der Erde, wo die objektive Moglichkeit dafür irgendwie gegeben war und ist. Es gehort in die kulturgeschichtliche Kinderstube, daS man diese naive Begriffsbestimmung ein für aliem aI aufgibt. Schrankenlose Erwerbsgier ist nicht im mindesten gleich mit Kapitalismus, noch weniger gleich mit dessen «Geist». Kapitalismus kann geradezu identisch sein mit Bandigung, mindestens mit rationaler Temperierung, dieses irrationalen Triebes. AlIerdings ist Kapitalismus identisch mit dem Streben nach Gewinn, im kontinuierlichen, rationalen, kapitalistischen Betrieb: nach immer emeutem Gewinn, nach «Rentabilitat». Denn er muS es sein. lnnerhalb einer kapitalistischen Ordnung der gesamten Wirtschaft würde ein kapitalistischer Einzelbetrieb, der sich nicht an der Chance der Erzielung von Rentabilitat orientierte, zum Untergang verurteilt sein. - Definieren wir zunachst einmal etwas genauer aIs es oft geschiehl. Ein «kapitalistischer» Wirtschaftsakt soll uns heil3en zunachst ein solcher, der auf Erwartung von Gewinn durch Ausnützung von Tauschchancen ruht: auf (formell) friedlichen Erwerbschancen also. ( ... ) Wo kapitalistischer Erwerb rational erstrebt wird, da ist das entsprechende Handeln orientiert an Kapitalrechnung. Das heil3t: es ist eingeordnet in eine planmal3ige Verwendung von sachlichen oder personlichen Nutzleistungen ais Erwerbsmittel ( ... ). A expressão «racionalização» de meios e recursos, empregue no vocabulário contemporâneo, dá conta do modo com a racionalidade ocidental se viu parcialmente esvaziada de outros conteúdos críticos que acompanharam o processo de secularização característico da modernidade, que Weber, de resto, já anunciava numa fórmula que pretendia descrever o processo de 138 gradual secularização que o calvinismo viria a reforçar, mas que indica simultaneamente o seu cepticismo relativamente a este processo, o «desencantamento do mundo» (<<Entzauberung derWelt», Weber 1972: 114). Com efeito, no seu estudo sobre o processo de racionalização - que associa à afirmação do calvinismo, sobretudo na sua variante puritana, e, em estreita correlação com este, ao emergir do espírito do capitalismo -, Weber teve ocasião de salientar os elementos negati vos, coercivos desse processo que havia transformado uma arma toda-poderosa numa armadura de ferro. Der Puritaner wollte Berufsmensch sein, - wir müssen es sein. Denn indem die Askese aus den Mbnchszellen heraus in das Berufsleben übertragen wurde und die innerweltliche Sittl ichkeit zu beherrschen begann, half sie an ihrem Teile mit daran, jenen machtigen Kosmos der modernen, an die technischen und bkonomischen Voraussetzungen mechanisch-maschineller Produktion gebundenen, Wirtschaftsordnung erbauen, der heute den Lebensstil aller einzelnen, die in dies Triebwerk hineingeboren werden . - nicht nur der direkt bkonomisch Erwerbstatigen - , mit überwaltigendem Zwange bestimmt und vielleicht bestimmen wird, bis der letzte Zentner fossilen Brennstoffs verglüht isto Nur wie «ein dünner Mantel, den man jederzeit abwerfen kbnnte», sollte nach Baxters Ansicht die Sorge um die auBeren Güter um die Schultern seiner Heiligen liegen. Aber aus dem Mantel lieB das Verhangnis ein stahlhartes Gehause werden. (Weber 1971: 203) Esta concepção da racionalidade viria a ressurgir, com novos traços, na obra Dialektik der Aufklarung (1947) de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (Horkheimer/Adorno 1971). Traumatizados pelos acontecimentos do nacional-socialismo e pela sua experiência de exílio nos Estados Unidos da América, os autores propõem uma interpretação do racionalismo ocidental ainda mais ampla. Seit je hat Aufklarung im umfassendsten Sinn fortschreitenden Denkens das Ziel verfolgt, von den Menschen die Furcht zu nehmen und sie ais Herren einzusetzen. Aber die vollends aufgeklarte Erde strahlt im Zeichen triumphalen Unheils. Das Prograrrun der Aufklarung war die Entzauberung der Welt. Sie wollte die Mythen aufIdsen und Einbildung durch Wissen stürzen. (Horkheimer/ Adorno 1971: 7) Aber die Mythen, die der Aufklarung zum Opfer fallen, waren selbst schon deren eigenes Produkt. ln der wissenschaftlichen Kalkulation des Geschehens wird die Rechenschaft annuliert, die der Gedanke in den Mythen einmal vom Geschehen gegeben hatte. Der Mythos wollte berichten, nennen, den Ursprung sagen: damit aber darstellen, festhalten, erklaren. (ib.: II) Denunciando a dialéctica das Luzes, isto é, o processo através do qual a racionalidade ocidental teria gerado a sua própria negação, instrumentalizando a Natureza e o Homem, enquanto parte desta, o racionalismo teria 139 gradual secularização que o calvinismo viria a reforçar, mas que indica simultaneamente o seu cepticismo relativamente a este processo, o «desencantamento do mundo» (<<Entzauberung derWelt», Weber 1972: 114). Com efeito, no seu estudo sobre o processo de racionalização - que associa à afirmação do calvinismo, sobretudo na sua variante puritana, e, em estreita correlação com este, ao emergir do espírito do capitalismo - , Weber teve ocasião de salientar os elementos negativos, coercivos desse processo que havia transformado uma arma toda-poderosa numa armadura de ferro. Der Puritaner wollte Berufsmensch sein, - wir müssen es sein. Denn indem die Askese aus den Mbnchszellen heraus in das Berufsleben übertragen wurde und die innerweltliche Sittlichkeit zu beherrschen begann, ha1f sie an ihrem Teile mit daran, jenen machtigen Kosmos der modernen, an die technischen und bkonomischen Voraussetzungen mechanisch-maschineller Produktion gebundenen, Wirtschaftsordnung erbauen, der heute den Lebensstil aller einzelnen, die in dies Triebwerk hineingeboren werden - nicht nur der direkt bkonomisch Erwerbstatigen - , mit überwaltigendem Zwange bestimmt und vielleicht bestimmen wird, bis der letzte Zentner fossilen Brennstoffs verglüht ist. Nur wie «ein dünner Mantel, den man jederzeit abwerfen kbnnte», sollte nach Baxters Ansicht die Sorge um die au/3eren Güter um die Schultern seiner Heiligen liegen. Aber aus dem Mantellie/3 das Verhangnis ein stahlhartes Gehause werden. (Weber 1971: 203) Esta concepção da racionalidade viria a ressurgir, com novos traços, na obra Dialektik der Aufklarung (1947) de Max Horkhei mer e Theodor W. Adorno (Horkheimer/ Adorno 1971). Traumatizados pelos acontecimentos do nacional-socialismo e pela sua experiência de exílio nos Estados Unidos da América, os autores propõem uma interpretação do racionalismo ocidental ainda mais ampla. Seit je hat Aufklarung im umfassendsten Sinn fortschreitenden Denkens das Ziel verfolgt, von den Menschen die Furcht zu nehmen und sie aIs Herren einzusetzen. Aber die vollends aufgeklarte Erde strahlt im Zeichen triumphalen Unheils. Das Programm der Aufklarung war die Entzauberung der Welt. Sie wollte die Mythen auflbsen und Einbildung durch Wissen stürzen. (Horkheimer/ Adorno 1971: 7) Aber die Mythen, die der AufkIarung zum Opfer fallen, waren selbst schon deren eigenes Produkt. ln der wissenschaftlichen Kalkulation des Geschehens wird die Rechenschaft annuliert, die der Gedanke in den Mythen einmal vom Geschehen gegeben hatte. Der Mythos wollte berichten, nennen, den Ursprung sagen: damit aber darstellen, festhalten, erklaren. (ib.: 11) Denunciando a dialéctica das Luzes, isto é, o processo através do qual a racionalidade ocidental teria gerado a sua própria negação, instrumenta- lizando a Natureza e o Homem, enquanto parte desta, o racionalismo teria 139 provocado o irracionalismo e a barbárie em que o século XX desaguara, manifesto no terror, quer do nacional-socialismo, quer no totalitarismo pseudo-Iiberal do capitalismo norte-americano. Nicht umsonst stammt das System der Kulturindustrie aus den liberaleren IndustrieUindem, wie denn alie charakteristischen Medien, zumal Kino, Radio, Jazz und Magazin, dort triumphieren. Ihr Fortschritt freilich entsprang den allgemeinen Gesetzen des Kapitals. Gaumont und Pathé, Ullstein und Hugenberg waren nicht ohne Glück dem internationalen Zug gefolgt; die wirtschaftliche Abhangigkeit des Kontinents von den USA nach Krieg und lnflation tat dabei das ihrige. Der Glaube, die Barbarei der Kulturindustrie sei eine Folge des «culturallag», der Zurilckgebliebenheit des amerikanischen BewuBtseins hinter dem Stand der Technik, ist ganz il1usionar. Zurilckgeblieben hinter der Tendenz zum Kulturmonopol war das vorfaschistische Europa. Gerade so\cher Zurilckgeb liebenheit aber hatte der Geist einen Rest von Selbstandigkeit, seine letzten Trager ihre wie immer auch gedrilckte Existenz zu verdanken. (ib.: 118-119) Desta forma, o conceito de Luzes e de Iluminismo via-se desligado da contextualização histórica a que tradicionalmente fora associado, passando a constituir um ponto de apoio para aqueles que, cépticos quanto ao processo da pretensa emancipação ocidental, viriam a encontrar ecos semelhantes na crítica do discurso do poder e do logocentrismo de um Michel Foucault e de um Jacques Derrida. Foi esta questão relativa ao papel e consequências do racionalismo ocidental que ressurgiu no debate que colocou frente a frente, sobretudo na década de oitenta duas posições fundamentais. Os adversários da modernidade não só recusaram as grandes narrativas ou «metanarrativas» (Lyotard s/d, sobretudo a «Introdução», pp. 7-10), mas também a possibilidade de se aceder a uma verdade essencial ou objectiva, ao mesmo tempo que denunciavam os pressupostos totalitários do racionalismo ocidental. Por sua vez os defensores da modernidade, de que Habermas terá sido o principal arauto, mantêm-se apegados aos valores essenciais das Luzes e do seu potencial emancipatório. Cientes das distorsões a que esse legado foi submetido, defendem o princípio de que a modernidade ainda está por cumprir (Habermas 1985). Este debate tem vindo a influenciar a leitura e as interpretações do século XVIII. 2.2 Luzes e século XVIII No contexto preciso da temática a abordar, os termos Luzes e Iluminismo remetem fundamentalmente para o emergir de uma série de tendências a nível político, económico e cultural que se manifestaram com particular 140 acutilância na Europa do século XVIII, embora os seus fundamentos e influências próximas se possam fazer remontar a meados e finais do século XVII, na medida em que foi então que alguns dos seus principais inspiradores, como Descartes, Locke, Newton e Leibniz (1646-1716) produziram a sua obra. '. Também será de assinalar o cepticismo que a moderna investigação tem vindo a oferecer face a designações excessivamente abrangentes tais como a de «século das Luzes» ou de «século da razão». Os motivos de tal objecção prendem-se não só com questões de periodização histórica, como a que acabámos de referir, mas também com a recusa em se ver o século XVIII a partir de uma perspectiva única, ignorando-se a importância de movimentos como o do sentimentalismo (na Alemanha Empfindsamkeit) I ou do sensualismo 2 . Se é certo que Descartes constituiu uma referência obrigatória para o século XVIII, também é verdade que a sua herança foi apropriada criticamente. A importância dada ao experimentalismo de Locke levava a que o método dedutivo fosse questionado pelos pensadores iluministas que retiveram, sobretudo a dúvida sistemática do filósofo francês. O empirismo de Locke e a física experimental e matemática de Newton serão os modelos preferenciais dos pensadores do século XVIII. Contudo, há que não esquecer a importância também determinante de Leibniz, sobretudo na Alemanha, com a sua visão optimista da criação «de meilleur des mondes possibles »), a sua defesa da metafísica contra o empirismo radical de Locke, postulando que nada existe no intelecto, antes da experiência, a não ser o próprio intelecto. A racionalização, tal como entendida por Max Weber, manifesta-se um pouco por toda a Europa: a nível económico, são introduzidas políticas mercantilistas ou de rentabilidade económica, sobretudo nas sociedades mais desenvolvidas, como é o caso da Inglaterra em vias de industrialização acelerada. A nível político, assiste-se ao reforço do papel do Estado nacional, que passa a concentrar o sistema de tributação, a defesa e ajustiça, com a crescente importância da respectiva burocracia para o efeito. A nível científico e filosófico, afIrma-se a crescente crença na capacidade de, por via racional, se poder dominar e controlar a natureza. Independentemente da multiplicidade de tendências e leituras do pensamento do século XVIII, recorde-se alguns traços essenciais desta época: 1 • o claro pendor para a secularização, a tónica pedagógica - sempre sustentada por uma razão que deverá constituir não o fundamento de uma ortodoxia, mas fonte de toda a crítica; I Empfindsam keit - termo alemão para a palavra sentimentalismo que no século XVlll passou a designar as tendências Iiterárias que, na senda das correntes inglesas afins - de Senrimel1ta/ Joumey de Lawrence Sterne (1713-1768) e dos romances de Samuel Richardson (1695-1761) - confere particular ênfase ao domínio do sentimento e de que o Werrher de Goethe constituirá o mais célebre exemplo. 'Sensualismo ou sensismocorrente filosófica ou pressuposto segundo o qual o conhecimento do mundo depende essencialmente das sensações, recusando-se a existência de ideias inatas e de uma metafísica absoluta. O empirismo de Locke inscreve-se, consequentemente, nesta mesma corrente que surge radicalizada em Condillac (1715- 1780), bem como nas posições materialistas de La Mettrie (1709-1751) e de Helvétius (1717-1771) ou no cepticismo escocês, de que David Hume (1711-1766) terá sido o principal representante. A filosofia moral, inspirada no modelo de um Shaftesbury (1681-1713) ou de um Hutcheson (1694-1746) apela igualmente a uma sensibilidade agora predominantemente interiOr como fundamento da moral e da religião naturais, assim paJ1iIhando da mesma desconfiança contra a tradição e todo o inatismo. 141 • o zelo reformador - baseado na crença na perfectibilidade do género humano, sob o pano de fundo de uma igualdade essencial; • a reivindicação da tolerância - a que não é estranho o incremento das trocas comerciais que requer que todos sejam potenciais parceIros. Todos estes projectos surgem predominantemente associados a uma visão antropocêntrica e virada para o aquém, para o mundo imanente, por oposição às visões teocêntricas e orientadas para o além, para o mundo transcendente que se pretende contestar. 2.2.1 Luzes e AufkHirung(en) o consenso relativamente à especificidade das Luzes na Alemanha não pode deixar de ignorar o facto de que o movimento das Luzes foi essencialmente europeu e cosmopolita. Tal traço encontra-se patente no modo como o movimento alastrou de forma mais ou menos generalizada a quase todos os países do velho Continente, influenciando modelos políticos que se viam a si mesmos como de alcance universal, como sucedeu durante as Revoluções Americana e Francesa. Contudo, se é certo que a universalidade dos princípios iluministas influenciou a sua difusão na Europa e na América, também é verdade que sempre se reconheceu a especificidade que as suas manifestações assumiram, consoante os países ou regiões em que se fizeram sentir. Recentemente, cada vez mais se tem vindo a falar de «Iluminismos» por oposição às Luzes em geral. Esta atenção dada à especificidade de cada território tanto mais se justifica no que respeita ao espaço cultural alemão, se se atender à geografia política e às tradições locais das regiões por ele abrangidas. Assim, em vez de se falar de Au.fkliirung será mais rigoroso falar em Au.fkliirungen: os traços que o movimento assumiu na Berlim burocrática e prussiana ou na Hamburgo burguesa e liberal foram forçosamente diferentes dos que caracterizaram o movimento na Baviera ou na Áustria católicas. Falar de Au.fkliirungen também se justifica noutro sentido mais lato, remetendo agora para a história da sua recepção. As imagens que a historiografia foi construindo das Luzes na Alemanha são tão multifacetadas quanto as correntes e as épocas. 142 Se a abstracção e o cosmopolitismo iluministas foram criticados pelos historiadores românticos, se Hegel viu nas Luzes um momento de cepticismo necessário mas redutor no processo da realização da razão, influenciando a historiografia alemã ao longo dos séculos XIX e XX, já a herança das Luzes seria recuperada em favor de uma tradição progressista, sobretudo depois de 1968, no rescaldo dos movimentos de contestação estudantil à ordem estabelecida. A recuperação do ideário iluminista na Alemanha depois de 1945, seja na RFA, seja na RDA, equivalia, também, a um ajuste de contas com uma tradição irracionalista que, responsabilizada pela «destruição da razão», segundo Georg Lukács em Die Zerstorung der Vernunft, publicado pela primeira vez em 1954 (Lukács 1962), teria sido um factor detenninante para a ideologia do nacional-socialismo. Contudo, a visão das Luzes seria simultaneamente objecto de uma reapreciação crítica sob influência da auto-crítica corrosiva do projecto racionalista levada a cabo por Horkheimer e Adorno em Dialektik der Aufklarung, perspectiva esta que a consciência ecológica viria a reforçar. 2.3 A sociedade na Alemanha do século XVIII 2.3.1 Nação atrasada? o conceito de nação atrasada, utilizado por Helmuth Plessner no seu livro Die verspatete Nation (Plessner 1974), recolha de lições proferidas em Groningen entre 1934-1935, no exílio holandês, tentava explicar o destino peculiar da Alemanha, lido agora à luz do passado nazi. Segundo este autor, a unificação e modernização tardias da Alemanha eram indissociáveis de um processo tipicamente alemão. Tal processo, iniciado com a Reforma luterana, levara esses territórios a afastar-se da tradição latina e românica e a optar por um modelo autoritário, que, de Lutero ao idealismo alemão, consagrara o autoritarismo nos campos político, económico e ideológico, dando lugar a um racionalismo deficitário. Deutschlands Konflikt mit dem alten Europa und der von ihm geschaffenen auJ3ereuropaischen Welt vertieft sich zu einem Kampf gegen den politischen Humanismus, dessen Wurzeln und Blüte im 16.,17. und 18. Jahrhundert liegen. So muJ3 die Untersuchung von der bedeutsamen Tatsache ihren Ausgang nehmen, daJ3 das Deutsche Reich in keiner seiner Traditionen ein Verhaltnis zu der Rechts- und Staatsidee dieser für Entstehung und Ausbildung der modernen Nationen entscheidenden Jahrhunderte hat. Ais eine Gründung des 19. Jahrhunderts ohne Staatsidee fiel die nur bedingt nationalstaatliche Konsolidierung des deutschen Volkes in die 143 Zeit einer bereits vorgeschrittenen Skepsis an dem Wertsystem des Humanismus. Der Mangel einer Staatsidee hielt den Antagonismus der beiden Reichstraditionen im deutschen BewuJ3tsein wach. Das im Zuge der Verweltlichung immer süirker werdende NationalbewuJ3tsein fand in Deutschland auch nach der Bismarckschen Reichsgrundung keine Form und keinen Halt an einer Staatsidee, wie schon Jahrhunderte fruher Frankreich, England und die Vereinigten Staaten ihn gefunden hatten. Ais Ersatz dafür und zugleich im HinbJick auf die Inkongruenz zwischen Reichsgrenzen und Volkstumsgrenzen übernahm der romantische Begriff des Volkes die Rolle ei ner politischen ldee. lndem die Untersuchung dieser Linie folgt, hat sie zugleich im Auge zu behalten, daJ3 eine zweite Linie ihren Verlauf mit bestimmt. Diese zweite Linie entspringt in dem für Deutschland wieder eigentümlichen religioskonfessionellen Dual ismus zwischen Kathol izismus und protestantisc her Zwangstaatsidee bei fehlendem freikirchlichen Glaubensleben. (Plessner 1974: 40-41) A teoria de uma via específica (Sonderweg) alemã surgiu igualmente na historiografia alemã do pós-guerra (Wehler 1995), atribuindo a catástrofe nacional-socialista a um atraso político, que não soubera acompanhar o surto económico, sobretudo a partir de 1871, e que seria responsável pela falta de estruturas democráticas e pelo autoritarismo que culminaria na ascensão de Hitler ao poder. o atraso económico e político dos territórios do Sacro Império Romano-Germânico fora, de resto, um tema constante de reflexão, que se manteve até ao século XX, embora com um significado diferente do que Plessner lhe atribuira. Como explicar, a fazer-se fé desse pressuposto, a importância que autores como Goethe, Schiller, Leibniz e Kant, para não falar dos românticos e dos representantes do idealismo filosófico alemão, haviam tido em toda a Europa? Em França, foi Mme. de Stael quem, com a sua obra De I 'Allemagne (1810), soube criar o mito de uma Alemanha romântica e virada para a metafísica, a Alemanha «dos poetas e dos pensadores», como contrapartida à França revolucionária. Tal interpretação teve, de resto, consequências para a leitura da realidade alemã no espaço cultural francês até aos nossos dias, como o atestam a sedução exercida pelo irracionalismo da mitologia wagneriana, a adesão ao heroísmo de um Ernst Jünger ou a recepção de Heidegger na França do pós-guerra. o irracionalismo surge assim como traço característico de uma «essência» ou «alma» alemã, adivinhando-se nesta caracterização a clássica oposição 144 entre Kultur e Zivilisation, de resto, erigida em porta-estandarte contra a civilização francesa, herdeira das Luzes e da Revolução Francesa, em vésperas da primeira guerra mundial (cf. Cap. II. 1). Seria a esta imagem da superioridade romântica da Alemanha difundida por Mme. de Stael, celebrando os traços irracionais germânicos, que Heinrich Heine em Zur Ceschichte der Religion und Philosophie in Deutschland (1835) e Die romantische Schule (1835) viria a contrapor a de uma tradição alemã, ambivalente nas suas influências. Céptico face aos românticos alemães, que polemicamente responsabilizaria de modo unilateral pelas suas influências restauracionistas, em Zur Ce-o schichte der Religion und Philosophie in Deutschland, Heine reabilitaria os elementos emancipatórios e críticos de um Lutero, fazendo da sua rebelião anti-papista e do seu apelo à interpretação livre das Escrituras - enquanto fundamento de uma relação directa entre o crente individual e Deus - um princípio precursor das Luzes. Por outro lado, na mesma obra, Heine poria a tónica nos elementos revolucionários da filosofia alemã, desde Kant a Fichte e Hegel, estabelecendo um paralelismo entre o primeiro e Robespierre e vendo no segundo o Napoleão da filosofia alemã. Apesar dos elementos claramente regressivos que a filosofia da natureza de um Schelling, segundo Heine, conteria, a filosofia de Hegel anunciaria a recuperação de um panteísmo revolucionário. Se fora exactamente este quem, em primeiro lugar, interpretara esses elementos críticos, teoricamente revolucionários, como forma de tornar desnecessária uma revolução política na Alemanha, tal como sucedera em França, já Heine via nessa herança uma arma poderosa, embora ambígua para transformar o mundo. o jovem Marx também retomou esse tema, salientando a actualidade da teoria alemã, por oposição ao anacronismo das suas estruturas políticas e económicas. Esta versão seria retomada por inúmeros autores de inspiração marxista que interpretaram o surto do pensamento e da literatura alemães nos séculos XVIII e XIX como compensação para o atraso económico desses territórios. Se é certo que o espaço cultural alemão não conheceu uma revolução industrial como a Inglaterra, também é certo que esse atraso foi relativo. A moderna investigação sobre o século XVIII, ao dar redobrada atenção às características regionais e ao estudo de fontes mais amplas, tem vindo a demonstrar que existiu uma efectiva modernização das estruturas políticas e económicas na Alemanha, à semelhança do que sucedia noutros territórios europeus. Pode mesmo falar-se de um surto demográfico e manufactureiro em determinadas regiões. 145 É certo que essa evolução se f:Jzia sentir, sobretudo, nas zonas ocidentais, onde o regime de servidão feudal começara a ser abolido e onde o intercâmbio comercial com os países atlânticos era mais in tenso. Apesar de terem perdido a SLJ. importância, mercê da concorrênc ia britânica, as cidade.; hanseáticas do N orte da A le manha, evidenciavam um desenvolvimento comercial e político bastante mais avançado do que as regiões do Leste, onde o regime de latifú ndio e de serv idão permanecia preponderante. M as note-se qu_e o surto urbano, verificado nas regi ões oc identais, viria a revelar-se favorável às regiões do Leste , que, deste modo, puderam funcionar como seu celeiro, exercenuo simul taneamente uma influência benigna nas trocas comerciais de que as antigas cidades banseát icas eram os grandes entrepostos. A estrutura autoritária, marcada pelas relações de produção feudais ou feudalizantes da Prússia, pôde assim sobreviver e reforçar-se, sem colidir com o progresso económico das zonas urbanas do litoral a seu Ocidente, o que não pôde deixar de exercer uma influência consideravel nos destinos da ,\lemanba. A Prússia do século XVIII revelava exactamente este misto de conservadorismo e de abertura às inovações, patente na Realpolitik de Fredelico [[ e na impol1ância crescente das suas univers idades, como Halle (fundada em 1694) e Konigsberg. Estas universidades tinham , contudo, que rivalizar com a recém-fundada de Gottingen (1737) que, dependente do Eleitorado de Hannover. mantinba est reitas relações com as instituições congéneres inglesas e escocesas e que, assim, se dedicaria a «ciências de ponta» como a estatística, a antropologia e a física. Por outro lado, centros como H amburgo, L übeck, Leipzig ou Frankfurt am Main davam mostras de um surto económico de características predominantemente urbanas, daí decorrendo uma organização de p oder e manifestações culturais mais de acordo com o modelo liberal. Pode, pOl1anto, afirmar-se que, analisado com mais pormenor, o espaço cultural alemão não revela um atraso general izado, dando a entrever algu mas zonas em relaLiva expansão política e económica. Se a comparação com a restante Europa tanto mais se justifica numa época de intercâmbio renovado de bens e de ideias, há que não reduzir unilateralmente os modelos de comparação aos países economicamen te m ais desenvolvidos. nem transformar os mesmos numa via excl usiva de modernização. Por outro lado, há que buscar as razões de um a evoluç ão particul ar que dê conta do percurso do espaço cultural alemão, não o redu zindo a uma abstracção que impeça a atenção aos fenómenos territoriais que, como adiante se verá, tiveram uma importância determinante. 146 2.3.2 A «Alemanha» no século XVIII - Geografia política, sociedade, economia e cultura A Alemanha do século XVIII caracteriza-se ainda pela fragmentação política, herdada do sistema feudal do Sacro Império e reforçada pela cisão luterana. Ao erguer-se contra o poder de Roma, o reformador legitimara, do ponto de vista religioso, o reforço do poder dos senhores territoriais, poder esse que estes haviam conquistado face à debilidade crescente do Império e à sua incapacidade de resolver as questões internas e de funcionar como pólo aglutinador, como o grande cisma da Igreja provocado pela Reforma viera provar. Deste modo, a tendência centralizadora dos Estados absolutistas emergentes, embora se venha a fazer gradualmente sentir na Alemanha, com a respectiva racionalização e burocratização do poder, far-se-á em torno do poder local, a expensas do Império. Este, não obstante as tentativas de unificação jurídica e política, ver-se-ia cada vez mais reduzido a uma mera ideia, sem grande eficácia política, ou a uma fonte de prestígio para a dinastia dos Ha bsburgos, não podendo, por isso, constituir um pólo aglutinador dos interesses alemães. Assinale-se de resto que, neste momento histórico, é problemático falar de Alemanha. O império incluía populações que não se enquadravam na área de expressão alemã, como é o caso, por exemplo, da Boémia, da Silésia e do Norte da Itália. Embora a capital do Reino da Prússia, Berlim, se encontrasse situada no Brandenburgo, o domínio dos Hohenzollern incluía territórios - exactamente a Prússia Ocidental e Oriental - que se situavam fora das fronteiras imperiais. Por outro lado, a ideia de império encontrava-se intimamente associada à noção de uma cristandade universal que de modo algum se adequava ao crescente nacionalismo, tal como corporizado, desde o Renascimento, pelas modernas monarquias: o fim do Sacro Império, com a abdicação formal de Francisco II em 1806, face a Napoleão, e as medidas empreendidas por este no sentido de racionalizar a geografia política alemã são prova clara disso. Assinale-se ainda que a secularização do Estado, para a qual a política napoleónica contribuiria decisivamente, seja em França, seja nas áreas sob sua influência, já se fizera sentir anteriormente no espaço cultural alemão nas zonas de influência luterana. A Confissão de Augsburgo de 1555, não só reconhecera a legitimidade do biconfessionalismo, como consagrara a relação entre o poder político e a 147 esfera religiosa, sob a fonna do cuius regio, eius religio, segundo a qual os súbditos eram obrigados a praticar a confissão adoptada pelo senhor territorial. Submetendo o poder da Igreja aos senhores locais, o Estado tomava-se assim independente da Igreja, embora esta se mantivesse vinculada ao mesmo, numa relação de vassalagem desconhecida nos territórios de influência calvinista onde o inverso se verificava. A fragmentação política e o biconfessionalismo viriam a ser reforçados pelos Tratados de Vestefália de 1648 que, pondo termo à Guerra dos Trinta Anos, reconheceriam, do ponto de vista do direito internacional, um facto há muito consumado internamente. Se bem que o Sacro Império Romano-Germânico continuasse a existir e se mantivesse, até certo ponto, como factor de coesão dos interesses locais, cada vez mais dispersos e divididos, o certo é que politicamente funcionava mais como símbolo de uma relação feudalizante e de uma universalidade sem correspondência real. Contudo, esta Kleinstaaterei, como tem sido designada criticamente, não teve apenas consequências negativas. Se é certo que a existência de um centro que aglutinasse o poder económico, político e cultural prejudicou em certa medida a expansão nestes domínios, segundo o modelo de Estados mais centralizados como o inglês e o francês, também é verdade que a mesma possibilitou uma diferenciação e riqueza de tendências, cujas consequências ainda hoje podemos apreciar na diversidade cultural das diversas regiões e dos Ldnder da actual Alemanha. o facto de esta fragmentação política ter tido consequências que retardaram, como em Itália, a fonnação de um moderno estado-nação, que só se viria a concretizar em 1871, sob a hegemonia da Prússia, não equivale a que os territórios de expressão alemã vivessem num marasmo generalizado. Assim, assinale-se que, não obstante o atraso efectivo de algumas regiões, devido, sobretudo, às consequências da Guerra dos Trinta Anos (que, de resto, há que estimar com ponderação, na medida em que os seus efeitos foram muito diferenciados, consoante as regiões), os senhores territoriais, acompanharam, em alguns casos, as tendências que se adivinhavam na Europa mais desenvolvida do ponto de vista económico e político, nomeadamente no sentido de racionalizar, centralizar e burocratizar o aparelho de Estado. Se é certo que em grande parte dos territórios alemães não existia uma burguesia independente, capaz de ser a porta-voz fundamental dos valores liberais do ponto de vista económico e político, o mesmo já não se pode dizer de cidades como Hamburgo, Lübeck, Frankfurt ou Leipzig. 148 Por sua vez, a par dos pequenos Estados, muitos dos quais eram autênticas caricaturas da corte do rei Sol, algumas dinastias evidenciavam uma crescente importância económica e política: era o caso dos Wittelsbach da Baviera, dos Wettin da Saxónia ou da Casa de Braunschweig-Lüneburg de Hannover, que, entre 1714 e 1837, ocuparia o trono inglês. Mas seriam as monarquias dependentes dos Hohenzollem e dos Habsburgos, a Prússia e a Áustria, aquelas que, na sua rivalidade, desempenhariam um papel decisivo na futura história da Alemanha. Rivalizando no seu expansionismo, revelavam já diferenças assinaláveis. A estrutura do Estado prussiano apresentava-se claramente distinta da austríaca: o papel do exército e da grande nobreza fundiária equivalia, grosso modo, ao que o clero e a nobreza detinham nos domínios dos Habsburgos. Na Prússia, a relação entre a Igreja e o Estado sofrera o processo de secularização característico da Reforma luterana, o que explica parcialmente a política de tolerância reI igiosa praticada não só por Frederico II, acolhendo a abolida Companhia de Jesus na recém-ocupada Silésia, como pelo seu antecessor, o Grande-Eleitor da Prússia. Este recebera, após a revogação do Édito de Nantes por Luís XIV, os protestantes franceses, os Huguenotes, oriundos em grande parte da burguesia manufactureira e mercantil, que, desse modo, dariam um importante contributo para a econo. . mia prussiana. o facto de Frederico II poder acolher no seu reino e no seu salão pensadores-livres como Voltaire (1694-1778), Maupertuis e D' Alembert (1717-1783) decorre certamente da adesão do rei aos ideais dos philosophes, mas a sua indiferença e agnosticismo em matéria religiosa não tinham contrapartida em matéria política, nem corriam o risco de colidir com esta, dado que na Plússia protestante o domínio religioso se encontrava formalmente submetido ao estatal. Esta secularização do Estado e a consequente independência do poder político face ao religioso garantiram o sucesso das reformas fredericianas que não pôde encontrar um equivalente na Áustriajosefina.As medidas empreendidas por José II para modernizar os seus territórios deparariam com a resistência do clero. Contudo, o espírito crítico das Luzes não deixou de se fazer sentir nos territórios fiéis a Roma. É portanto difícil fornecer uma imagem homogénea da Alemanha no século XVIII, na medida em que o territorialismo e as diferenças regionais desempenharam um papel determinante nesse espaço cultural essencialmente heterogéneo, do ponto de vista político, religioso e económico. 149 2.3.3 A burguesia na «Alemanha» do século XVIII A noção prevalecente em determinadas interpretações da história da Alemanha, que sublinham o atraso estrutural da sua economia e institJições políticas, designadamente a ausência de uma classe burguesa autónoma, não pode ser generalizada. Se é certo que em determinados Estados, de que o exemplo clássico será o Grão-Ducado de Weimar, a burguesia alemã se recrutou predominantemente entre a burocracia letrada ao serviço da corte dos senhores territoriais, já o mesmo não se aplica a algumas cidades como Hamburgo, centro do tráfego marítimo atlântico e de Leipzig ou de Frankfurt am Main, imnortantes feiras e entrepostos comerciais internos. Embora a rigidez da estratificação social, o intervencionismo do Estado, a manutenção das corporações, as barreiras alfandegárias e as diferentes moedas dificultassem as trocas comerciais, há que recordar que mesmo em monarquias como a francesa tais dificuldades ainda se faziam sentir. A prová-lo recorde-se as medidas de liberalização da economia tomadas pela administração Turgot (1727 -1781) e seu subsequente fracasso e respectiva implementação revolucionária após 1789. Apesar do atraso em relação aos países economicamente desenvolvidos, como a Grã-Bretanha e a Holanda, e não obstante a reduzida importância conferida às trocas internacionais, na ausência de relações coloniais, a política cameralista seguida por algumas cortes alemãs desempenhou um papel modernizador, no apoio dado a manufacturas, no recrutamento de quadros não-nobres para a sua administração, quando comparado com outros territórios europeus. Saliente-se, ainda, que, apesar da censura e repressão em matéria política, os territórios alemães - mesmo os católicos - não viviam sob o peso de uma censura tão violenta como sucedia no Portugal pombalino. O pretenso déspota esclarecido viria a criar a Mesa Censória que proibia tanto os filósofos franceses como a Nouvelle Heloi"se de Rousseau, determinando simultaneamente que os estudos fossem confiados ao «santo zelo e ciência» das corporações religiosas. Isto apesar das magras reformas introduzidas na Universidade de Coimbra e que tinham como principal alvo a Companhia de Jesus - de resto acolhida, como atrás já foi referido, por Frederico li na Prússia, na sequência das perseguições pombalinas - e não tanto a difusão dos princípios das Luzes. Em contrapartida, nos Estados alemães, o protestantismo garantira a possibilidade do desenvolvimento de um espírito crítico sobretudo nas universidades sob a sua intluência, que não deixara incólumes, as suas congéneres católicas. 150 o surto demográfico, verificado de resto em quase toda a Europa, a que não foram estranhos os progre.::sus em matéria san itária e med icinal e encarados, por isso, como um factor e razão de progresso, também se fez sentir na Alemanha. o interesse pela pedagogia , característico do ideal iluminista, não se manteve como pura abstracção à boa maneira, diz-se, alemã. Os «poetas e pensadores» esforçaram-se por Ievar à prática a sua crença em como, só mediante a educação, os Homens poderi:1m atingir a felicidade e o progresso. Foi o caso de Joachim Hei nrich Campe (1746-18 18) em \Volfenbüttel, de Johann Bemhard Basedow (1723-1790) em Dessau, apoiado por um senhor territorial anglófilo, ou de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) em Zurique. Se é certo que tais medidas ficaram aquém do desejado, dada él. :;ituação de miséria mais ou menos extrema em que camponeses e pequenos artesãos continuavam a viver, o mesmo sucedia noutras regiões europeias, mesmo na França antes de 1789, como o comprovam a cri se de penúria e a fúria das massas nas vésperas da Revolução, bem como os contínuos esforços do jacobinismo por assegurar a igualdade que o liberali smo deix ava esquecido. o papel desempenhado a nível intelectual pela burguesia culta manifesta-se ainda no emergir de um espaço de debate públicú, em estreita associação com os ideais de progressG e de esclareci mento, como adiante se analisará (cf. Cap. III.3). C surto da imprensa, das sociedades de leitura (Lesegesellschaften) demonstra que, nalguns locais, o emergir de uma opinião pública já se fazia sentir nos territórios alemães, antes do eclodir da Revolução Francesa. Pode, portanto, afirmar-se que o atraso relativo do espaço cultural alemão, quando comparado com a situação nos países económica e politicamente mais desenvolvidos da Europa, se esbate quando se toma em consideração, por um lado, outras zonas mais afastadas dessa zona de influência, como o Leste e o Sul da Europa e, por outro, a situação extremamente diferenciada dos territórios alemães. 2.4 Aujkldrung( en) Como já se assinalou, a comparação entre as diversas zonas europeias tanto mais se justifica, quanto o século XV III se caracterizou pelo intenso intercâmbio entre as mesmas, fundando uma herança europeia naquilo que tem de pior e de melhor. Reduzir as Luzes a um movimento uniforme é tão inexacto, quanto recusar extrair as convergências que, apesar das diferenças, se fizeram sentir nos movimentos que aderiram a esta corrente um pouco por toda a Europa. 151 Em comum possuem a crença numa racionalidade emancipatória como fonte de poder sobre a natureza, fiel à máxima de Francis Bacon segundo a qual «o conhecimento é poder»; • o zelo pedagógico, baseado na crença que a educação auxiliará os homens a aproximar-se de um ideal de perfeição e de bem-estar; • o pendor crítico, na sua apropriação céptica do passado; • a ênfase colocada no experimentaJismo, a recusa de autoridades e de verdades absolutas como algo de dado; • a tónica na capacidade de os indivíduos se esclarecerem com base no princípio da autonomia; • a secularização do pensamento filosófico e político. Se é certo que as Luzes naAJemanha conheceram uma evolução diferenciada, consoante a zona confessional em que se desenvolveram, pode, contudo, afirmar-se que a Au.fkliirung se revelou em regra geral mais moderada nas suas conclusões do que os movimentos seus congéneres ingleses e franceses, designadamente, no que toca à conciliação entre a religião revelada e a religião natural, entendidas como visões complementares e não se excluindo reciprocamente. Este traço é comum a Gottfried Wilhelm von Leibniz, Christian Wolff (1679-1754), Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) ou mesmo Immanuel Kant, ao propor o impossível acesso à metafísica a nível do conhecimento, mas a possibilidade de a mesma ser salvaguardada pela razão prática. Para tal terá contribuído o multiconfessionalismo que se verificava em território alemão e que levou a que, depois de longos anos de guerras religiosas, se buscasse os elementos comuns naturalmente idênticos a todas as confissões ou que, como Lessing em Die Erziehung des Menschengeschlechts (1780), se visse nas religiões fases de um processo de educação do género humano. Por outro lado, a dependência de vastas camadas da burguesia culta da corte também ajuda a compreender esta moderação, embora existissem situações diferenciadas, como, por exemplo, a das cidades hanseáticas, onde uma tradição política mais li beral, propunha referências políticas semelhantes às que predominavam - de forma mais generalizada - na Holanda e na Grã-Bretanha. Com efeito, o cepticismo radical de um Hume (1711-1776) não foi alheio ao livre comércio de mercadorias e de bens na Inglaterra em vésperas da Revolução Industrial, modelo por excelência e fonte de inspiração para as concepções liberais e libertinas dos enciclopedistas franceses. 152 2.4.1 Fases da Aujkldrung Fal ar de Aufkliirungen não só se justifica face à mu I tiplicidade de i nterpretações e às diferenças que caracterizam o movimento consoante as regiões. O mesmo sucede com as diferentes fases que o movimento conheceu. Apesar de não se poder distinguir com precisão entre as mesmas, uma vez que não correspondem rigorosamente à periodização - com carácter mais esquemático do que cronologicamente rigoroso, podendo mesmo verificar-se a sua sobreposição - pode-se distinguir três fases, em função das tendências predominantes ou de maior impacto. 2.4.1.1 A primeira fase da Aujkldrung (Frühaujkldrung) (1680-1750) A primeira fase da A ufkliirung, também designada de Frühaufklarung situar-se-ia entre finais do século XVII e meados do século XVIII. Tendo como principais centros Hamburgo, Zurique, Leipzig e Halle, e principais representantes Leibniz, Christian Thomasius (1655-1728) e Wolff, esta fase tanto é produto de uma cultura urbana, como irradia da corte. Se Leibniz ainda utiliza o latim e o francês como línguas universais por excelência, quer da academia, quer da corte para difundir a sua mensagem cosmopolita e tolerante, já Thomasius e Wolff, teorizadores da nova ideologia da burocracia prussiana emergente, se teriam distinguido pelo recurso à língua alemã. Tal traço não tem de ser interpretado como uma manifestação de nacionalismo, prematuro no Sacro Império e numa Prússia que, segundo os critérios das lutas dinásticas, se tentava libertar da vassalagem dos Habsburgo, mas antes como mais uma tentativa de democratizar o pensamento, fazendo-o sair dos círculos nobres, onde a filosofia de um Leibniz ainda se movera com à vontade. Este filósofo permaneceria de resto como uma fonte inspiradora, seja de uma prática cosmopolita e tolerante, seja de uma visão do progresso de inspiração metafísica. o seu principal discípulo e divulgador foi Christian Wolff, cujas ideias esclarecidas depressa suscitariam a desconfiança, quer da ortodoxia luterana, quer dos influentes pietistas na cidade Halle, em cuja universidade possuía uma cátedra. O seu método matemático e dedutivo muito devia a Leibniz, tendo Wolff exercido um papel fundamental na teorização de uma prática governativa esclarecida, que separava a pessoa do cargo em termos de poder e que viria a ser consagrada na fórmula de Frederico II «O monarca é o primeiro servidor dos povos sob o seu domínio», por oposição à clássica máxima de Luis XIV «O Estado sou eu». 153 Defendendo igualmente os valores racionalistas e a democratização da cultura ao optar também pela língua alemã, Thomasius enveredaria por um a senda menos teórica: invocando a autonomia do pensar contra todos os p reconceitos, elaborou reflexões no domínio da teo ria polític a e jurídica, desenvolvendo uma acção particularmente intensa no combate à perseguição às bruxas. Pode reencontrar-se o carácter geométrico e deduti vo do pensamento wolffiano nas linhas clássicas dos palácios de Potsdam, sobretudo no Sans Souci de Frederico II, bem como na teoria e prática dramática de um Johann Christoph Gottsched (1700-] 766), que, em Leipzig, tentava renovar a tragédia alemã, recorrendo aos modelos do classicismo francês. 2.4.1.2 A alta AlIjkldrung (Hoclwujklarung) (1 750-1770) Os seus principais focos foram os centros urbanos protestantes, onde uma burguesia relativamente autónoma se começava a afirmar: era o caso de Hamburgo, das cidades hanseáticas como Lübeck. Bremen, D anzig, Konigsberg, ou comerciais como Basileia, Zurique ou Frankfurt am Main. Berlim, onde Christoph Friedrich Nicolai (1733-]811), Christian Garve (1742-1798) e Moses Mendelssohn apelavam ao esclarecimento público, mediante a divulgação dos ideais iluministas em camadas cada vez mais vastas, passa igualmente a constituir um importante centro iluminista. Esta filosofia utilitarista e de pendor essencialmente pragmático, também designada de Popularphilosophie, encontrou os seus principais órgãos nos jornais e almanaques que iam pro liferando, de acordo com a crescente importância que a burguesia letrada ia ganhando, assim contribuindo decisivamente para a formação de uma opinião pública (cf. Cap. III3). O pensamento dedutivo e sistemático de Wolff cede o lugar à influência das correntes empiristas e sensualistas inglesas , às ideias de Locke e à física de Newton que, à semelhança do que sucedera noutros países, como a França, começam a ser brandidos contra o racionalismo dedutivo. A autonomia do pensar, a razão crítica, a verdade como processo encontram em Lessing o seu mais perfeito e enérgico representante, que dará um significado renovado às noções de tolerância, de educação do género hldTIanO, de progresso. A influência inglesa e escocesa far-se-á sentir, sobretudo, em GOLtingen, cuja recém-fundada universidade (1737) constituiria um importante centro científico, nomeadamente no domínio da estatística, cameralística e no da moderna antropologia e da física. Georg Christoph Lichtenberg (1742-] 799) 154 e Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) foram alguns dos importantes nomes de um centro que ousava competir com as congéneres europeias no domínio das mais inovadoras tendências científicas. Lichtenberg não só se tornou célebre pelas suas lições de física experimental, como contribuiria de forma pal1icularmente inovadora no domínio da escrita aforística, mais uma prova de como é difícil estabelecer critérios rígidos para a definição de uma época: o estilo fragmentário, unindo o humor mordaz ao hermetismo da inspiração súbita, representa uma forma de expressão aparentemente incompatível com a serenidade de uma visão do mundo e do universo, inspirada no newtonismo. Blumenbach pode ser considerado o mais importante representante da recém-fundada disciplina da antropologia física; simultaneamente, a modema etnologia era desenvolvida por Christoph;.1einers (1747 - 1810), que no seu interesse por povos distantes e na sua visão etnocêntrica e claramente racista, anunciava a evolução dessa ciência durante o século XIX. 2.4.1.3 A Spdtaufkldrung (1770-1789) A última fase da Aufklâl'llng radicaliza a exigência de autonomia do pensar, a ponto de colocar em questão a própria mensagem racionalista, ciente da dialéctica de emancipação e de opressão a que as Luzes iam conduzindo. A herança pedagógica não sendo recusada, é vista com olhos cada vez mais cépticos. O apelo à espontaneidade, à I ivre subjectividade, à recusa de quaisquer modelos ecoa tanto no pensamento dos Stürmer und Driingel; como no de Herder, para encontrar um eco problemático mas decisivo no criticismo de Kant. Este, estimulado pelo cepticismo radicaJ de Hume, reabilitará a metafísica, colocando, contudo, I imites à razão teórica e imprimindo novos impulsos à razão prática. Se bem que a influência de Rousseau fosse predominante nestas tomadas de posição, também é verdade que elas retomavam tendências que haviam surgido em paralelo, sobretudo, sob inOllência do sensualismo e do sentimentalismo ingleses. A tónica colocada na experiência e nos sentidos ou no sentimento, por oposição às filosofias escolásticas, baseadas num racionalismo dedutivo e dogmático, tinha-se vindo a afirmar gradualmente, expressão de uma burguesia culta que se tentava libertar de modelos de contenção próprios de uma sociedade de corte e que apelava à espontaneidade quer de afectos, quer do próprio pensar para criar alternativas à sociedade vigente. 155 o papel do sentimento e daquilo que escapa ao controle racional, a experiência individual não podem deixar de se manifestar neste contexto: a melancolia hipocondríaca e a auto-observação psicológica ganham impoltânciacrescente, patentes, por exemplo, no romance autobiográficoAnton Reiser (1785-1790) de Karl Philipp Moritz (1757-1793), que editou igualmente o Magazinfür Erfahrungsseelenkunde (1787) que tinha como objectivo «o conhecimento analítico das paixões». Über die Einsamkeit (1785) de lohann Georg Zimmermann é mais um exemplo das tendências melancólicas de um século apressadamente rotulado de optimista. 2.5 A contra-cultura burguesa Contudo, esta tendência não se reduz à fase tardia daAu.fkldrung. A luta contra o universo escolástico levada a cabo pelos Popularphilosophen, o zelo reformador de um Campe ou de um Pestalozzi, a revolta de um Lessing contra o teatro de inspiração francesa e o seu recurso à comédie larmoyante de um Denis Diderot (1713-1784) como modelo alternativo de inspiração revelam, se entendidos nesta perspectiva, claras afinidades com as reivindicações dos jovens Stürmer und Drdnger, que radicalizarão estas tendências. o próprio pietismo foi também um elemento catalisador destas aspirações, com o seu apelo à praxis pietatis (de resto determinante para a ética de um Kant), a sua ênfase na relação sentimental e individual com Deus, a sua prática reformadora e pedagógica. Pode, pois, afirmar-se que, não obstante as divergências, entre os adeptos da razão ou do sentimento, sentidas então de forma particularmente aguda, como o provam as querelas entre pietistas e wolffianos em HaJle, as invectivas contra o We rthe r (1774) de Goethe por parte de um Lessing ou as polémicas entre Herder e Kant, as várias tendências reflectem um sentimento generalizado de oposição a modelos teóricos distantes da prática, elitistas e escolásticos, avessos à manifestação da liberdade e da autonomia individuais e que podem ser lidos como reacção à etiqueta e convenção em que a sociedade de corte fundamentava as suas relações de poder. 2.6 O emergir de uma consciência nacional? Algumas destas tendências viriam a ser interpretadas por uma historiografia de pendor essencialmente nacionalista como manifestações de uma consciência nacional alemã de que a burguesia teria sido a principal porta-voz. 156 Se é certo que tal leitura faz algum sentido, na medida em que esse surto intelectual desempenharia um papel determinante para os futuros movimentos nacionalistas, criando mesmo uma certa identidade cultural, através de uma cultura e língua comuns, também é verdade que as diferenças regionais se continuaram a fazer sentir. A rejeição dos modelos de corte constitui antes uma reacção essencialmente social, distante de uma ideia de Estado-nação totalmente anacrónica para o espaço cultural alemão do século XVIII. Apesar de uma crescente noção de identidade alemã, patente por exemplo nas críticas mais ou menos veementes de um Herder à superficialidade dos enciclopedistas, ao verniz francês, há que salientar que o ilustrado Frederico II só concordava com este na partilha do cepticismo face ao projecto enciclopédico de D' Alembert e de Diderot, vendo, de resto, com desconfiança as prestações alemãs no domínio da literatura e da cultura. O seu desprezo pelo Goetz von Berlichingen de um Goethe e pela língua e literatura alemãs em geral, não serão tanto de estranhar num homem culto e musical como o foi o rei da Prússia, se se tiver em consideração que o seu modelo cultural era essencialmente o da COl1e francesa, com os seus códigos de etiqueta e regras que se adequavam bastante melhor à estrutura de poder que representava, pesem embora todas as reformas que empreendeu no sentido de tornar mais flexíveis e eficazes esses modos de conduta e de funcionamento (Elias 1973). Saliente-se que Frederico II desempenharia um papel determinante no sentido de reforçar e afirmar o poder político de um Estado alemão, a Prússia, papel esse de forma alguma incompatível com a sua francofilia. Atribuir ao programa de um teatro nacional de Lessing um cunho quase xenófobo equivale a conferir tendências anacronicamente nacionalistas que só encontraram expressão teórica nos Reden an die deutsche Nation de Fichte, após a ocupação napoleónica. Ao recusar o modelo gottschediano, reivindicando como alternativa um teatro nacional e burguês, Lessing fá-lo com recurso a modelos que não os alemães, invocando a originalidade da tragédia grega ou a genialidade do drama shakespeariano. O culto da espontaneidade, a recusa da rigidez das regras atesta muito mais a busca de novos modelos sociais, do que a exaltação de um nacionalismo fechado sobre si mesmo. O mesmo se pode verificar noutro campo, o da música. Quando Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1591) opta pela língua alemã, nos Singspiele, Die Entführung aus dem Serail (1782) e Die Zauberfldte (1791), fá-lo para divulgar mensagens de tolerância e de igualdade universal. Mas não se esqueça que o mesmo sucederá com Le Nozze di Figaro (1786), onde, em língua italiana, o subordinado, Figaro, canta «Se vuol ballare signor 157 contino», desafiando a autoridade feudal, embo ra num tom bastante mais brando do que na peça de Beaumarch a is que lhe servira de inspiração. Contudo, dois anos depois da Revolução F rances a, Mozart compunha por ocasião da coroação de Leopoldo n, La clemenza di Tito (1791), agora preferencialmente para a corte. o mesmo já não sucedia com Die Zauberflbte dest inada ao moderno público que, reunido num espaço próprio para o efeito, podia, mediante aquisição de um bilhete ou de uma subvenção através de assinatura, gozar dos prazeres da música, o que constitui mais uma manifestação de uma importante evolução verificada ao longo do século xvm (cE. Cap. m .3). 2.7 Identidade europeia e colonialismo Já houve ocasião de assinalar o modo como o cosmopolitismo das Luzes coabitou com a multiplicidade regional. Mas se este cosmopolitismo surge essencialmente associado a uma noção de identidade europeia crescente, esta careceu de realidades a ela alheias para se afirmar. Essa diferença, necessária para a construção de uma identidade, irá ser encontrada na alteridade por «civilizar» ou em vias de se colonizar. A reorganização do espaço (ct". Cap. m .3) não se limitou à criação de uma esfera de contra-poder ao Estado absolutista, quando este deixou de corresponder aos interesses da burguesia em expansão; a sua reorganização irá igualmente reflectir a estreita interdependência entre a afirmação dos valores da civilização europeia e os do colonialismo. o domínio do espaço encontra o seu mais perfeito equivalente na moderna Recorde-se que será somente no século XVIII que a invenção do cronómetro por John Harrisson permitirá o dlculo da longitude, mediante a fixação da di fcrença entre a hora local e a hora do local de partida. James Cook transportará consigo. na sua segunda circumnavegação (1772-177 5) o referido insttUmento, pelo que poderá não só localizar com precisão ilhas e arquipélagosjd anteriormente descobertos, entre outros, por navegadores portugueses. mas tambem empreender uma cartografia exacta dos mesmos. j 158 cartografia, que substitui as perspectivas múltiplas e a representação táctil das paragens, para que remete, por um ângulo único e pela abstracção e precisão que o cronómetro lhe permitiu para calcular a longitude 3 . A perspectiva única erige-se em absoluta e confere a segurança de um olhar monolítico e avassaladO!': é esse olhar, subjectivo e eurocêntrico, que permite a localização precisa da alteridade. Para além do olhar subjectivo, dependente de uma perspectiva única, da abstracção e da precisão dos mapas, estes reflectem um dado essencial: os limites dos continentes encontram-se traçados, o mundo é conhecido, torna-se mais pequeno. As grandes potências coloniais rivalizam pela hegemonia do globo, mas cientes agora dos seus limites, a expansão é substituída por uma política de ocupação de territórios em que a Grã-Bretanha e a França constituirão, passada a época de ouro da conqu ista espanhola, os principais protagon is tas. Ocupar equivale ainda a descobrir o interior dos continentes por explorar, avaliar dos seus recursos, em termos de flora e de fauna, de acordo com a nova racionalidade do capitalismo ocidental (M ax Weber). .. À semelhança da descoberta dos domínios da psicologia mais recôndita, depois de gara'ltida a supremacia da subjectividade racional, a nível do conhecimento e tal como sucedera com o individualismo, que, no seu auto-centramento se tornara responsável pelo aflorar da melancolia, da hipocondria e pela suspeita de uma irracionalidade, porventura, indomável, do mesmo modo o «civilizado» descobre, com minúcia e atenção crescente, o outro não-europeu, cada vez menos estilizado, cada vez mais enigmático. Se é verdade que o processo de colonização e de civilização não é radicalmente questionado, partilhando alguns dos seus maiores críticos, como um Herder, das tentações hierárquicas, que tendem a colocar o «homem branco» no seu topo, também é certo que o projecto colonizador cria, na sua convicção de uma su perioridade mais ou menos segura, as condições para, com algum sentimento de superiori dade, mas também de tolerância e curiosidade genuína, se anali sar esses povos distantes. Por vezes, a sBspeila surge de novo: talvez o «bom selvagem» não seja uma abstracção, como é o caso dos habitantes de Taiti, redescobertos pelo francês Louis-Antoine de Bougainville (1729-1811) e pelo inglês James Cook (1728-1779), observados pelo alemão Georg Forster (1754-1794) , fundando assim, o mito do Pacífico que, ba nalizado e erigido a mais uma fonte de consumo, se mantém até aos nossos dias. M as a alteridade é ainda frequentemente recuperada pelos interesses europeus: seja para ser dizimada, como acontece com os indígenas do Novo Mundo, seja para ser escravizada, como sucede com os africanos na América do Norte ou Central, seja para se erigir em fonte de crítica velada à Europa. Os chineses, persas, hurões adquirem as feições do «homem branco», à semelhança do pavilhão chinês de Frederico li, onue a alteridade adquire traços de um exotismo meramente decorativo. Mas, por detrás dessa construção, acena a reivindicação genuína da tolerância como sucede com a Palestina imaginária de um Nuthan der Weise, propondo a legitimidade de todas as religiões, desde que na esfera prática se revelem positivas, ou a 'T'urquia de Mozart em D ie Entführung aus dem Serail, onde um O riente estilizado, depois de dominado, serve de pretexto para se difundir uma imagem de reconciliação tolerante, pesem embora todos os estereótipos sobre o «cão turco», mesmo sob a forma caricatural de Osmin. 159 Contudo, as viagens no século XVIII não se reduzem às grandes expedições científicas, nem aos cenários mais ou menos exóticos do drama ou do Singspiel burgueses. A reorganização do espaço efectua-se também através da política mercantilista, praticada um pouco por toda a Europa, de tornar as vias de comunicação mais eficazes. Antes da introdução das vias férreas, constroem-se estradas, canais, reivindica-se melhores transportes. Já então se sabia da importância da comunicação para o incremento das trocas e do modo como os lucros aumentam, na proporção exacta da rapidez com que as mesmas se fazem. É na mesma época que a Revolução Industrial é anunciada pelo investimento nos caminhos de ferro, inaugurando uma era radicalmente nova para a Europa e o mundo dela dependente. 2.7.1 O Pacífico: ciência do Homem e mito Se é certo que em termos globais não se pode afinnar o atraso generalizado da Alemanha, a verdade é que os territórios de expressão alemã também não podiam rivalizar com as duas grandes potências europeias, a Grã-Bretanha e a França, que, na altura, disputavam a hegemonia mundial. Assim, os alemães raramente faziam viagens com outros intuitos que não os do comércio ou da formação individual (cf. Cap. 11.2.3). Contudo, as descobertas internacionais não deixariam de exercer um importante papel na Alemanha contemporânea. O mito de um paraíso redescoberto e dos seus habitantes, enquanto personificação do «bom selvagem» viria a ganhar redobrado interesse com a publicação de Reise um die Welt (1784) de Georg Forster. Assinale-se, contudo, que o original da obra fora inicialmente publicado na Grã-Bretanha em 1777, em inglês, e só posteriormente o seu jovem autor traduziria o mesmo para língua alemã, de resto com dificuldade, uma vez que passara a sua adolescência em Inglaterra. O facto de poder publicar o respectivo relato provinha de condições de excepção para um alemão contemporâneo. Georg Forster tivera a oportunidade de acompanhar o célebre Capitão Cook, na sua segunda viagem à volta do mundo (1772-1775), podendo assim, observar directamente realidades e culturas tão diferentes e exóticas como as dos habitantes da Terra do Fogo, da Nova Zelândia, das diferentes Ilhas do Pacífico. 160 É certo que a recepção da obra na Alemanha viria a acentuar os elementos utópicos, sobretudo da Ilha de Taiti, já celebrada por Bougainville no seu relato de outra circumnavegação ao serviço da Coroa francesa. Por outro lado, também é verdade que o modo como o jovem Georg Forster registaria objectos, costumes e línguas dos povos observados fazem dele um dos pioneiros da modema antropologia. O relato constituiria uma fonte preciosa, quer para os académicos alemães que descobriam, em simultâneo com os seus congéneres ingleses e franceses, a «Ciência do Homem», quer para um Herder, com quem Forster manteria uma relação de apreço e de admiração mútua. 2.7.2 Viagem e utopia Contudo, muitos dos contemporâneos reterão dessa viagem não tanto o elemento científico como a promessa de um mundo diferente, alternativa ao quotidiano por demais deficitário da Europa. A viagem que ganhara contornos cada vez mais didácticos, funcionando como grande experiência de vida em sociedade, para a sociedade de corte, ou de abertura de horizontes e de Bildung (cf. Cap. 11.2), redefine-se de forma aparentemente paradoxal, quando não prossegue os seus objectivos predominantemente utilitários e comerciais. A monotonia do mundo burguês, no seu cálculo e previsibilidade, apela à aventura; os primeiros fumos industriais despertam a nostalgia pela natureza incólume. Goethe foge para Itália, o círculo em torno do círculo literário do Gouinger Hain sonha em construir uma Arcádia em Taiti, dirigindo-se ao único alemão culto que conhecia o Pacífico, Georg Forster, para apadrinhar o seu projecto. O Sul representa a utopia: no Pacífico ou em Itália. Busca-se as origens da humanidade ou da Europa, procura-se consolo para uma subjectividade cada vez mais desencantada com os espartilhos da civilização europeia. Mas, na Alemanha, o Sul pode conter conotações diferentes. Tal como Georg Forster descobre que o paraíso entrevisto não existe em Taiti, também a Itália e o Sul da Europa podem funcionar como vestígios de um passado obscurantista e católico, por oposição ao modelo britânico e liberal. Lichtenberg e Wilhelm von Archenholtz (1742-1812) preferem a sociedade inglesa, estabelecendo uma cisão clássica Norte-Sul, de conotações opostas às de Goethe, que mesmo actualmente, em plena era de união europeia, continua presente. 161 Entre o sonho cosmopolita e a identidade europeia, alguns hiatos vinham-se a estabelecer, criando novas cisões, em que a diferença dificilmente era reconhecida na sua especificidade ou, a sê-lo, corria, por vezes, o risco de ser instrumentalizada segundo os padrões omnipotentes de uma civilização tida por superior. 2.8 As Luzes e a dialéctica da emancipação e da opressão: selvagens, mulheres, crianças, loucos e judeus o cosmopolitismo das Luzes pode ser lido segundo duas vertentes: por um lado, a universalidade dos seus pressupostos assenta no princípio da igualdade essencial de todos os homens, assim criando o fundamento de uma mensagem e prática igualitárias que, juridicamente, ignoravam a diferença, para reconhecer todos os seres humanos, homens e mulheres, cristãos e judeus, católicos e protestantes, crentes e ateus, brancos e negros. Simultaneamente, a crescente influência das correntes empiristas e sensualistas lançava as bases para o reconhecimento da diferença, olhar por detrás do qual se erguem as grandes construções da moderna antropologia , etnologia, ginecologia, psiquiatria e pedagogia infantil. É certo que o século XVIII soube permanecer, em geral, fiel aos princípios universalistas, reconhecendo-se por detrás das diferenças que a experiência captava e analisava a essência comum a tudo o que era humano; por outro lado, do mesmo modo que o discurso das Luzes não evitara que o seu cosmopolitismo se tornasse predominantemente eurocêntrico, também a prática consagraria a desigualdade, estilizando a diferença feminina, a inocência da criança e do selvagem, ou regulamentando o tratamento psiquiátrico, a fim de melhor exercer o poder. Se é verdade que o Sacro Império não pôde rivalizar em termos coloniais com a Grã-Bretanha e a França, tal situação não impediu os territórios alemães de terem acesso a objectos e dados essenciais para a criação das modernas antropologia e etnologia; as suas universidades, academias e revistas não deixaram de participar, de forma mais distanciada e, por isso, mais reflectida nos mesmos debates. Foi na Universidade de Gbttingen que a antropologia física conheceu um maior desenvolvimento, dadas as estreitas relações com as suas congéneres britânicas. Blumenbach interveio de um modo decisivo nos debates científicos sobre a reprodução biológica e sobre a classificação dos grupos humanos, Meiners era lido com interesse pelos futuros membros da sociedade dos Observadores do Homem em França, as investigações anatómicas de um 162 Samuel Thomas Sbrrunemng (1755-1830) eram acolhidas pela comunidade científica internacional. Por sua vez, o orientalista Johann David Michaelis (1717-179 I) não só contribuía para a construção da linha imaginária que demarcaria, agora com novos fundamentos científicos e etnológicos, a fronteira entre o Oriente e o Ocidente, como era encarregue de elaborar instruções para uma expedição de Carsten Niebuhr (1733-1785), segundo os moldes de uma pesquisa que pretendia unir a observação empírica à sistematização desses dados. M as se a distância permitia um maior potencial reflexivo, ela não invalidava a adesão ao discurso eurocêntico: a diferença era registada para, esquecida gradualmente a igualdade essencial entre todos os homens, sob a presença imediata da empiria 4 , se postular uma nova desigualdade baseada nos traços meramente fís icos, desigualdade essa que viria a constituir o fundamento do racismo biologista no século XIX. Também em Gbttingen, as mulheres começavam a dar que falar: as filhas de famosos docentes universitários, como Cm-oline Michaelis (1763-1809), futura mulher do filólogo August Wilhelm Schlegel (1767-1815) e do filósofo Joseph Schelling (1775-1854), e Therese Huber (1764-1829), filha do classicista Christian Gottlob Heyne (1729-1812) mais tarde casada em primeiras núpcias com Georg Forster, causavam escândalo com o seu comportamento heterodoxo inspirando humana e literariamente alguns dos mais importantes protagonistas da vida cultural contemporânea. , Empiria - os dados que se oferecem aos nossos sentidos e que constituem o objecto da experiência e - sobretudo, para a corrente empirista - o fundamento e a condição sine qUQ I/on de todo o conhecimento. Mas, se em 1792, o chefe da pol ícia de Kbnigsberg, Theodor Gottlieb von H ippel (1741-1796), ousava defender o belo sexo em Über die bürgerliche Verbesserung derWeiber,já o seu conterrâneo Kant lhes recusava peremptoriamente o acesso ao espaço público, à semelhança de outros seres dependentes, como os assai miados. A crescente atenção para com a mulher não impediu, antes reforçou, a sua clausura no espaço doméstico, acompanhada das crianças que deveria educar segundo modelos que lhe eram ditados por parâmetros masculinos, restando como forma de expressão o romance intimista, frequentemente escrito sob pseudónimo. As dificuldades de integração social de Caroline Schlegel-Schelling e de Therese Forster-Huber não deverão ser esquecidos perante o colorido das suas vidas amorosas. A marginalidade era o preço a pagar por uma vida em que a livre opção individual era marcante. Mesmo a emancipação judaica seria feita a expensas de uma assimilação excessiva, como o prova a acção empenhada de um Moses Mendelssohn, por vezes sem contrapartida prática, como sucedia na Prússia sua contemporânea. Tal como as mulheres, a minoria judaica teria de se satisfazer na Alemanha dos séculos XVIII e XIX com a sua marginal ização nos ghettos, ou com a interdição generalizada de ocupar cargos públ icos (cf. Cap. IV,2, o ponto 2.8). 163 A pedagogia não evitara a mesma dialéctica de libertação e de opressão, ao racionalizar formas de domínio e de contenção do corpo bem mais subtis do que aquelas que as práticas obscurantistas haviam permitido e encorajado. Recorde-se o que, na Prússia Oriental, Kant escrevia acerca dos jogos e brincadeiras infantis e da sua importância (ou instrumentalização) pedagógica: Diesen Spielen zu gut versagt sich der Knabe andere Bedürfnisse, und lemet so allmahlich auch etwas anderes und mehr entbehren. Zudem wird er dadurch an fortdauemde Beschaftigung gewbhnt, aber eben daher darf es hier auch nicht bloJ3es SpieJ, sondem es mul3 SpieJ mit Absicht und Endzweck sein. Denn, je mehr auf diese Weise sein Kbrper gestarkt und abgehartet wird, um so sicherer ist er vor den verderblichen Folgen der Verzarlelung. (Kant 1988b: 727) A descoberta, nomeação e aprisionamento da alteridade não-europeia, não-adulta, não-masculina constituiu um elemento essencial do processo de constituição de novas identidades, a europeia, a adulta, a masculina. É neste processo de emancipação e de dominação, de colonização e de libertação que a dialéctica das Luzes se toma gritante: o seu fundamento encontra-se no capitalismo vitorioso que, libertando novas possibilidades económicas e tecnológicas, internacionalizando e liberalizando as trocas, criou novas formas de opressão e de exploração, nada deixando incólume, nem mesmo as nações «atrasadas» . A diferença observada e hierarquizada, corria o risco de se sobrepor à igualdade postulada e de esquecer os programas tolerantes anteriormente defendidos. É neste contexto que a dialéctica das Luzes se torna por demais evidente: no seu furor emancipatório e reformador, o século xvm apresenta importantes acções no domínio da pedagogia infantil, no reconhecimento da potencial igualdade entre religiões, sexos e «raças», descobre e analisa, com a distância benevolente que a certeza da sua superioridade civilizacional lhe confere, essas formas de alteridade. É a essa tradição que ainda actualmente em todo o mundo se recorre para defender os direitos cívicos das mulheres, das minorias étnicas, das crianças, dos deficientes. Mas também é verdade que, da mesma maneira que as classes se antagonizavam, divididas entre os interesses e as necessidades do capital e do trabalho, o mesmo sucedia entre a Europa e o mundo colonizado, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, «civilizados» e «selvagens», «loucos» e «normais». A modernidade encontra-se assim estabelecida, naquilo que tem de pior e de melhor. A actual reivindicação feita em nome de minorias ou de maiorias silenciadas inspira-se ainda e é herdeira dos impasses e promessas das Luzes. Só ela permite compreender o apelo ao direito à diferença radical, que, no final da década de sessenta do nosso século, começou a ecoar. 164 o feminismo, o anticolonialismo, o anti-racismo, a anti-psiquiatria revêem esses parâmetros. Prolongamento ou fim da herança modema? É certo que o debate continua por encerrar. Contudo, a análise diferenciada do século da razão e do sentimento mostra uma realidade mais colorida e complexa que os seus detractores pretendem, presas de visões derivadas e leituras excessivamente abrangentes, e por isso, redutoras. Bibliografia recomendada Para uma introdução ao século XVIII na Alemanha recomenda-se a leitura de Vierhaus 1988, Amarante 1983, da introdução de Grimminger 1980 e Móller 1986. Para uma visão mais abrangente consulte-se Hazard 1983 e Cassirer 1932. Para o tema das viagens e do confronto com a alteridade leia-se o capítulo «Reiseliteratur» de Wolfgang Griep em Grimminger 1980: 739-765. Actividades propostas LeiaNathan der Weise e caracterize o programa de tolerância proposto nesse mesmo texto. Comente o texto de r. Kant «Was ist Aufklarung?» e relacione-o com os temas abordados ao longo deste capítulo. • Oiça Die Zauberjlote de Mozart e analise a música e o respectivo libreto à luz das considerações do presente capítulo: papel da razão e do sentimento, do mundo mascul ino e feminino, classes sociais. • Analise os excertos de Max Weber transcritos no presente capítulo, indicando os principais argumentos. M. R. S. 165 O~!Iq~d oJudsa op o!JJUW.I0J V °r Resumo Descreve-se o contexto do emergir do espaço público durante o século xvrn como local onde a burguesia começou a manifestar formas de contra-poder ao regime absolutista predominante; refere-se a cisão entre a esfera pública e privada em correlação com as transformações surgidas a nível político, económico e social e consequentes manifestações no domínio cultural, na vida quotidiana e nas mentalidades. Objectivos • Associar o emergir do espaço público burguês no século XVIII com as transformações económicas e sociais suas contemporâneas na Europa e na Alemanha do século XVIII. • Relacionar o espaço público com o emergir da família burguesa e a correspondente redefinição da intimidade e redistribuição dos papéis SOCiaIS. • Avaliar o modo como o espaço público se foi afirmando em vários campos, com particular destaque para o teatro, a música e as sociedades secretas. 169 A contra-cultura burguesa 3. 1 Embora o século XVIII não possa ser lido unilateralmente como o século da racionalidade burguesa, como atrás foi referido, também é verdade que, durante o mesmo, se assistirá ao e-nergir de uma contra-cultura decisiva para a fu tura evolução da Europa e que se pode resumir esquematicamente do seg uinte modo: , • à sociedade absolutista fundada na representação e centralização do poder , a contra-cultura burguesa oporá a delegação e djvisão de poderes; • contra a sociedade de corte. regida pela etiqueta e pela contenção, esquematizadas em códigos racionais e convenções assumidamente artificiais e, por isso mesmo, tan to mais respei tadas (E li as 1983), a burguesia reivi ndic ará uma racionalidade, que se baseie na experiência e nos sentidos, e o direito ao sentimento, à espontaneidade e à sinceridade. A afirmação de um a contra-cultura burguesa não te ria sido possível sem as transformações económicas e sociai s, associadas com a afi nnação do moderno capitalismo, no seu proces so de gradual racionalização, e que também se manifestam numa evolução essencial nos conceitos de espaço e de tempo. 3.1.1 O tempo o tempo passa a ser cronometrado. medido: acerta-se a hora pejo relógio, ;s~o é, segundo normas sociais que não coincidem com a hora solar natural, passando o tempo a ser contabi Iizado em termos de lucro, consoante a máxi ma de Benjam in F ranklin (1706-1790) «tempo é din hei ro». o aceleramento do ritmo de trabalho, associado à disciplina e à pontualidade necessárias em função da div; são de trabal ho na man ufactura, onde os trabalhadores se ag rupam para de. empenhar tarefas distintas mas, por isso mesmo tanto mais interdependentes, evi de ncia também uma nova concepção e vivência do tempu. intimamente associadas às transform ações espaciais. Por outro lado, o tempo cíclico, condicionado por uma visão teocêntrica do mundo que afastava qualquer ideia de progresso terreno, tempo esse inspirado pejo regresso pcm1anente das estações e do fluir de uma semana que consagra o domingo como o dia do repouso e da celebração da transcendência, é substituído por uma noção de tempo linear, orientado para o futuro, que, 171 constitui a condição de realização do progresso. As visões escatológicas, que anunciam ou prometem a redenção e o paraíso no fim dos tempos, são substituídas pela filosofia da história que interpreta o passado e o presente em função do futuro e enquanto etapas nesse processo de aperfeiçoamento terreno. 3.1.2 O espaço o espaço passa a ser concebido como um momento desse universo secularizado: para a E uropa no auge da sua fase colonial o mundo é, por um lado, mais pequeno, na medida em que já não existem territórios incógnitos nem terras por cartografar, por outro, é maior, na medida em que a identidade e o poderio europeus se definem face ao espaço colonizado. Subjacentes a esta nova forma de experienciar e definir o espaço, encontram-se as acima referidas concepções de tempo e de progresso: o espaço não-europeu é simultaneamente associado a uma distância não apenas espacial, mas também temporal. Os não-europeus serão potencialmente iguais, mas representam estádios anteriores da história da hu:nanidade. Mas esta evolução na concepção do espaço encontra-se também intimamente associada às novas formas de produção que antecedem e acompanham os primeiros passos dados na industrialização da Europa - intimamente associada com a nova fase colonial, e m que a Grã-Bretanha se tomará não só o centro da Revolução Industrial mas também se afirmará como a grande potência mundial - , criando outras di visões fundamentais para a compreensão daquilo que caracteriza o século XVIII e a sociedade burguesa: a separação entre espaço público e privado. A antiga união entre produção e habitação, de que a grande família é o principal núcleo, como centro de uma economia pré-industrial, isto é , rural, cede gradualmente o lugar a uma separação entre o domínio da produção e do consumo: a antiga família rural, que, de resto, sobreviverá ao longo de todo o século XIX e mesmo ainda no século XX nas zonas menos industrializadas, é o local onde se lavra o terreno e se fabrica os objectos de consumo necessários que não os que a agricultura fornece. As primeiras unidades de produção da futura industrialização surgem no seio da família, onde os tecelões trabalham as matérias-primas que os intermediários lhes fornecem, permanecendo assim esse trabalho predominantemente doméstico. Com o incremento da industrialização, surgem as primeiras manufacturas de produção fora desse mesmo espaço, divisão essa que não só consagra a separação entre a unidade de produção e de consumo, como a separação 172 entre capital e trabalho: os assalariados que trabalham as matérias-primas não são proprietários nem destas nem dos objectos com que as transformam, não lhes pertencendo igualmente o espaço onde realizam essas mesmas tarefas. A produçãc ocupa o lugar essencial na nova ordem económica em expansão, pelo que para a burguesia o poder, as decisões políticas e económicas serão transferidas para o escritório, a loja ou a manufactura, cada vez mais separados da esfera de consumo, a residência. 3.2 Público e p rivado 3.2.1 Espaço público e iniciativa privada A noção de um espaço público, tal como começa a emergir durante o século xvrn, em primeiro lugar e sobretudo, em Inglaterra, decorre de uma viragem essencial. Esse novo espaço público não coincide com a esfera do Estado, mas constitui antes um local à margem das instituições colectivas - ou públicas. embora noutro sentido da palavra - , local esse onde vontades privadas se manifestam na sua individualidade, podendo opor-se ou contestar a ordem económica e política vigente: Bürgerliche Offentlichkeit laJ3t sich vorerst ais die Sphare der zum Publikum versammelten Privatleute begreifen; diese beanspruchen die obrigkeitlich reglementierte Offentlichkeit alsbald gegen die bffentliche Gewalt selbst, um sich mit dieser über die allgemeinen Regeln des Verkehrs in der grundsatzlich privatisierten, aber bffentlich relevanten Sphare des Warenverkehrs und der gesellschaftlichen Arbeit auseinanderzusetzen. Eigentümlich und geschichtlich oJ,pe Vorbild ist das Medium dieser politischen Auseinandersetzung: das bffentliche Rasonnement. (Habermas 1962: 42) Tal evolução pressupõe portanto o aparecimento de uma actividade económica autónoma que não se inscreve nos tradicionais circuitos de produção e distribuição, pelo que os seus principais porta-vozes e protagonistas serão os membros oriundos da burguesia mercantil ou culta, que gradualmente se emancipa económica e culturalmente. A divisão entre um espaço público e privado favorece portanto o emergir de uma opinião pública, à margem das instituições consagradas, opinião pública que se manifesta consequentemente como contra-poder. A respectiva institucionalização conhecerá as suas primeiras manifestações em Inglaterra, com a Glorious Revolution em 1688 que, depois do primado do regime absolutista dos Stuarts, recuperará o poder parlamentar, conferindo-lhe agora um cunho 173 difere nte, confol111e com as novas necessidades políticas e conórnlcas e consagrando a prime ira divisão de poderes: ao momrca compete apenas a execução (poder executivo) das lei s e dec isões do parl amento (poder legislativo). 3.2. 1. 1 A socied ade de corte e a representação A nobreza de corte não conheci a esta cisão, sendo todo o seu quoti d iano atravessado pela encenação de ri tuais fund amentais para o exercício do poder, que se fund ava essencialmente na representação. A cisão entre aparência e essência, f~nt re simu lação e autenticidade era aí inexistente, u ma vez que o poder coincidia em absoluto com a forma que o exterio riz.ava. Tal en te ndimento do poder mani festa-se tanto na importância do ritual e da pompa xterior no culto da Igreja católica, como no papel decjsivo das regra·~ de encenação do poder nas cortes absolutistas. Tanto num caso como no outro, a autoridade era e,ltendida como dependendo fundamenta lmente de uma força legitimada a partir de uma e ntidade exterior a ela (origem divina do poder do Papa, do imperador ou do mo narca), Que os rituais reproduziam. O poder não é passível de ser delegado, entendimento este que pressupõe uma cisã0 entre exercício e legitimidade do poder. 3.2.:.2 Divisão do trabalho e delegação do poder Tal entendimento do poder passará a ser questionado a partir do momento em que o mesmo se verá obrigado a auto-legitimar-se, como sucede de forma exemplar no Leviathan (1651 ) de Thomas H obbe s (1588-1679), onde a autoridade é descrita como o resultado de um acordo entre indivíduos que cedem todos os seus direitos com vista à preservação da paz. O caráctci' totalitár io deste projecto pnlftico é-o apenas de forma aparente, na medida em que a época não conhecia uma noção de indiv idualidade e de intimidade, como a era burguesa o viria crescentemente a afi rmar. M as, sobretu do, o que se adivinha na proposta hobbesiana é a distinção entre exercício e legitimidade do poder. Este só surge legitimado na med id a em que passa a depender de um acordo ou contrato previamente estabelecido entre indivíduos livres e iguais que voluntariamente abdicam da sua liberdade e igualdade, isto é, consentem na respectiva de legação, ass im tom ada fo rçosamente provisória. Tal concepção da legitimação do poder pressupõe exactamente a cisão entre a prática do poder e a sua fund amentação abstracta e teórica, cisão que reproduz a separação entre o domínio prático e do trabalho e o da teori a individual, cuja distância a família burgues a garantia e torn ava possível. 174 1 . 3.2.1.3 Espaço público e afirmação da contra-cultura burguesa Assim o espaço reorganiza-se em função das novas necessidades de produção e relações de poder. O poder político do Estado absolutista e das instituições centralizadoras a ele ligadas conhece uma crescente contestação e pulverização, sobretudo através dos sectores em que a burguesia letrada consegue afirmar-se com crescente independência. A imprensa, a literatura. tornam-se focos de uma crescente afirmação da opinião pública; os cafés, os teatros e as salas de concertos vão-se enchendo de frequentadores, que livremente dissertam, observam, ajuízam, criando assim os fundamentos dos correspondentes juízos políticos e estéticos. a partir dos quais avaliam a ordem vigente, quer a nível social, quer artístico. Este processo revela como a afirmação desta contra-cultura burguesa não teria sido possível sem a gradual criação de novos espaços ou sem a reorganização dos mesmos. Por outro lado, demonstra até que ponto essa contra-cultura é também a manifestação de forças económicas que, na esfera privada, se organizam com crescente soberania em relação ao domínio da esfera do poder político do Estado absolutista. Se este processo surgiu de forma precoce em Inglaterra, fruro de urna sociedade economicamente mais dese nvolvida e dos consequentes mecanismos políticos daí ';ubsequentes, as mesmas tendências tainbém se irão manifestar no continente europeu, embora com evoluções distintas. A França terá que aguardar o eclodir da Revolução Francesa para que a respectiva institucionalização a Il ível político seja possível, tendo os Estados alemães que esperar por mais algumas décadas até que a mesma implantação se verifique. Contudo, a formação de uma intelectualidade consciente da sua diferença constituirá um elemento decisivo para a afirmação do projecto iluminista nos territórios de expressão alemã, no decurso do século xvrn. A burguesia letrada, juristas, conselheiro.'. funcionários da corte, embora dela dependentes criam urna cultura própria: contra o direito cons uetudinário assiste-se na Europa - à excepção da Grã-Bretanha, o que prova o modo como a nobreza aí se soube adaptar, de modo a poder garantir a manutenção dos seus privilégios - a urna crescente recuperação da tradição do direito romano, que consagra os princípios legisladores a partir de um texto escrito, que fixa de modo abstracto e universal os direitos, deveres e penas. A tal recuperação não será estranha a reivindicação por parte da burguesia do princípio da igualdade - abstracto e uni versal - contra o privilégio feudal e nobre - concreto 175 e particular. Saliente-se que esta particularidade não pode ser confundida com a esfera privada que se irá afirmando no espaço burguês, na medida em que aquela tenderá a garantir a manutenção dos princípios da nobreza dominante na era feudal, universalizando dentro do seu território particular os seus privilégios (leis particulares apenas neste sentido ). o emergir desta nova noção de poder faz-se com a afirmação do poder absolutista que carece do apoio da burguesia de modo a fazer face a outros poderes particulares, pelo que a monarquia viverá da tensão entre a nova classe emergente e a adaptação da antiga nobreza feudal às novas necessidades políticas e económicas. Contudo, a monarquia absolutista caracterizar-se-á pela centralização e concentração dos poderes que a burguesia numa fase mais avançada, no decurso da afirmação do seu poder económico, passará gradualmente a contestar, de modo a obter uma institucionalização mais eficaz e adequada às suas necessidades. Saliente-se que no espaço de expressão alemã a evolução corresponderá, consoante as tendências regionalistas desse mesmo território, a uma evolução particular. Assim, os Estados mais vastos como a Prússia e a Áustria podem até certo ponto equiparar-se com as modernas monarquias, como o provam de resto as medidas de racionalização introduzidas nos mesmos, sobretudo durante a vigência dos reinados dos respectivos déspotas iluminados - Frederico II na Prússia, Maria Teresa e José II na Áustria, - havendo, contudo, que recordar que estes não contam com a existência de uma burguesia mercantil autónoma. O mesmo já não sucederá nas cidades livres hanseáticas, onde as tradições burguesas permitem o florescimento de um ideário liberal que redefine o exercício do poder, enquanto que os pequenos Estados dependentes sobretudo do poder da corte ainda se mantêm apegados a uma particularidade feudal, se bem que modernizada, através da imitação de Versalhes. Contudo, a diminuta importância política e territorial destes últimos, embora promova uma certa racionalização das estruturas burocráticas corresponde mais a um feudalismo modernizado do que a uma efectiva reorganização do poder. No entanto, também nos telTitórios alemães se fará sentir uma evolução que pode ser associada com o movimento geral que atravessa a Europa: a prova disso encontra-se na importância decisiva da imprensa alemã e no crescente aumento de uma faixa de letrados que se auto-definem como representantes de um esclarecimento necessário à modernização e ao progresso da sociedade que pretendem influenciar. 176 3.2.2 Órgãos do espaço público Locais privilegiados para a expressão de uma opinião pública emergente serão os cafés, os jornais, as sociedades de leitura, onde se debate os temas mais candentes, se lê periódicos e romances. Em Inglaterra são os jornais Tatler (1709-1711) e Spectator (1711-1712, 1714) e The Guardian (1713) de Joseph Addison e Richard Steele os primeiros orgãos dessa opinião que se vai formando à margem das instituições e que gradualmente toma a forma de um contra-poder, no plano literário e estético. Os seus porta-vozes manifestam as suas opiniões enquanto indivíduos, cientes da importância da sua participação para a formação de uma opinião pública. Para a formação da mesma contribuem os espaços neutros, como os cafés e as sociedades de leitura: espaço de passagem entre o local de trabalho e a residência, estes constituem o pressuposto para que os que nele convivem e se cruzam possam, temporariamente libertos das pressões económicas, sociais e familiares, debater livremente os assuntos de importância colectiva. Também o saloll francês representa outra forma de criar um espaço neutro e relativamente marginal às instituições consagradas pelo regime de Luís XIV Do mesmo modo que a etiqueta de corte entra em crise, sobretudo durante o período da Regência (1715-1723), acentuando-se a tendência durante o reinado de Luís XVI (1754-1793), o saloll, surgido em torno de uma mulher nobre - que, assim revela o estatuto de liberdade de que as burguesas se verão privadas - permite a reunião num espaço neutro de nobres e burgueses que privam entre si dada a comunidade de interesses culturais, literários ou pessoais. Rousseau, plebeu suíço, privará assim num plano de quase igualdade, com extensão ao domínio íntimo, com representantes da grande nobreza francesa, que verão com interesse o comportamento exótico desse suíço camponês e aderirão às suas teorias e prática de uma simplicidade natural, por reacção ao excesso de artificialismo de normas e etiquetas cada vez mais desfasadas da realidade e assim tornadas praticamente ineficazes. 3.2.3 A transição Contudo, o século XVIII ainda não conhece a divisão distinta entre esses dois espaços, patente no modo como as associações de privados (cafés, clubes de leitura, maçonaria) eram entendidos. O salon francês do século XVIII encarna exactamente esse espaço híbrido: tendo à sua frente uma mulher culta, o referido espaço, constituía uma pequena ilha no seio das convenções rígidas da sociedade de corte então já em pleno declínio 177 (época da Regência), onde a dona da casa não só se permItia um comportamento mais libertino, como podia privar com homens oriundos da burguesia. Por outro lado, a sociabilidade que constitui um dos traços mais generalizados do século XVIII ainda não fora contaminada pelo exacerbamento de uma intimidade que, nas suas manifestações mais radicais raiava a hipocondria. O exemplo de Jean-Jacques Rousseau, a sua misantropia, aliada à sua obsessiva aspiração de autenticidade, de transparência (Starobinski 1971), a sua auto-observação, serve para ilustrar esta última tendência, embora o seu empenhamento social e político, revelem simultaneamente, o modo como o domínio público, continuava a permanecer um elemento decisivo, exigindo-se antes para o mesmo idênticos valores que aqueles que se preconizava para a descoberta individual. Contudo, esta adequação excessiva não era habitualmente praticada, optando a burguesia por uma vida oscilante entre o dominio público e privado, deixando, porém, que as esferas se interpenetrassem e se inspirassem frequentemente. Tal interpenetração encontrava-se, contudo, reservada aos seres masculinos, os únicos a terem acesso a ambos. O mito da mulher passiva e do homem activo conheceu uma nova legitimação com a reorganização do espaço decorrente da crescente divisão do trabalho. Dans l'union des sexes chacun concourt également à I' objet commun, mais non pas de la même maniere. De cette diversité naí't la premiere différence assignable entre les rapports moraux de I'un et de l'autre. L'un doit être actif et fort, I'autre passif e faible: iI faut nécessairement que I'un veuille et puisse, iI suffit que I'autre résiste peu. Ce principe établi, ii s'ensuit que la femme est faite spécialement pour plaire à I' homme. S i I' homme doit lui plaire à son tour, c 'est d'une nécéssité moins directe: son mérite est dans sa puissance; ii plaí't par cela seul qu' ii est fort. Mais n'est pas ici la loi de I'amour,j'en conviens; mais c'est celle de Ia nature, antérieure à l' amour même. Si la femme est faite pour plaire et pour être subjuguée, elle doit se rendre agréable à I'homme au Iieu de le provoquer; sa violence à elle est dans ses charmes; c'est pareux qu'elle doit le contraindre à trouver sa force et à en user. L'art le plus sur d'animer cette force est de la rendre nécessaire par la résistance. Alors I'amour-propre sejoint au désir, et I'un triomphe de la victoire que I' autre Iui fait remporter. De là naissent I' attaque et la défense, I' audace d'un sexe et la timidité de I'autre, enfin la modestie et la honte dont la nature arma le faible pour asservir ]e fort. (Rousseau 1966: 466-467) Com efeito, o mundo público dos cafés e dos jornais é um mundo masculino, onde a burguesia emergente faz sentir a sua pressão contra o poder absolutista do Estado, opondo-lhe os seus interesses privados (de acordo 178 com o novo modelo capitalista e liberal) e os correspondentes modelos a nível político e estético. A maior parte das ideias que ainda identificamos com as Luzes é sustentada e fomentada por um debate constante entre congéneres, não só nos cafés, como nas academias, nas revistas especializadas, seja através da actividade recenseadora, seja da apreciação crítica. É aí que esses homens, desligados das suas obrigações profissionais, aparente ou provisoriamente libertos das restrições que a hierarquia social lhes impõe, privam num espaço recentemente conquistado e reinventado, onde a igualdade teórica da sua posição é uma condição e um pressuposto fundamental. A leitura individual não se auto-satisfaz, mas é complementada pela discussão dos temas lançados pelos periódicos. O debate constitui um elemento essencial desta cultura. Nos cafés discutem-se as ideias lidas nos jornais e revistas à disposição nessas salas, ideias essas que encontrarão o seu reflexo nas colunas de opinião, nas cartas abertas. Estas reflectem a individualidade que usa o espaço público que a imprensa em geral lhe fornece. Esse debate, que se auto-define como um debate entre iguais, desenrola-se num plano radicalmente diferente daquele que caracteriza a retórica do poder da corte: teoricamente, não se trata de representar uma camada social ou uma tendência da sociedade, mas de, usando do próprio entendimento, reflectir livremente sobre os temas surgidos. O participante nesse debate representa-se a si mesmo, enquanto indivíduo autónomo e pensante, fazendo uso do seu entendimento, tal como Kant o formula no célebre texto «Beantwortung der Frage: Was ist Aufklarung?» Aujkliirung ist der Ausgallg des Menschen aus seiner selbst verschulderen Unmiindigkeit. Unmündigkeit ist das Unvermogen, sich seines Verstandes ohne Leitung eines anderen lU bedienen. Selbslverschuldet ist diese Unmündigkeit, wenn die Ursache derselben nicht am Mangel des Verstandes, sondem der Entschlie13ung und des Mutes liegt, sich seiner ohne Leitung eines andem lU bedienen. Sapere aude! Habe Mut, dich de ines eigenen Verstandes lU bedienen! ist also der Wahlspruch der Aufklarung. (Kant 1986: 9) 3.2.4 A fOr/nação do espaço público na Alemanha do século XVIII No espaço cultural alemão, foram também a imprensa, as sociedades de leitura, as academias, a maçonaria e as sociedades secretas que constituíram 179 um local de debate e d,,: difusão de ideia, a q ue sobretudo as camadas letradas - minoritárias e predominan teme nte burguesas - ti veram acesso. Os almanaques, a literatura militante e pedagógica das M oralische Wochenschriften (1740-1760), a filosofia popular de um Me nde lssoh n, na sua c renç a na democratização das Luzes e no pape l da ins tr ução, foram annas esse nci ais neste processo de criação de um espaço de opinião púb lica. Crê-se na importância do espaço literário para a formação de u ma opinião pública - expressão de um conjunto de opiniões indi viduais que colectivamente se exprimem - a filosofia deverá ser inteligível , recu sando o jargão que a afasta do homem comum - tendência que apenas a parti r de Kant se passará a inverter - , os almanaques e revistas d iv ul gam conselhos de utilidade quotidiana, recomendações para donas de c a5a be m como cons ti tuem o foro onde os debates políticos e científicos se realizam. A separação entre públi co leitor e autores ai nda não se verificou: os lei to re s colaboram regu lar e activamente com cOI::ribuições , com o cartas a bertas, e mitem opiniões , fomentam e alimentam as polémicas. Os títulos de a lgumas M oralische Wochenschriften são eloquentes: Der Patriot (1724-1726, 1728-1729), jornal de H amburgo orientado sobretudo segundo o modelo inglês, que terá conhecido uma tiragem de 6000 exemplares, o famoso Der Biedermann (1727-1729), Die vernünftigen Tadlerinnell (1 725/1726) de Gottsched . Freund de r Aufkldrung lInd M enscheng lückse lig ke it. Eine M onatsschrift fiir denkende Leserinnen aus allen Religionen und Stdnden (1785 e segs.). Os periódicos de conteúdo político como o Teutscher M erkur (1773-1810) de Wieland, o .Jeutsches Museum (1776 e segs.) de He inrich C h ristian Boie (1744-1806), o Hamburger Politische Joumal, a De utsche Chronik (1774 e segs.) de Christian Friedrich Daniel Schubart (1739-179 1) ou os Staatsanzeigen (1782 e segs.) de August Ludwig Schlbzer (1735- 1809) constituem foros de debate e de contestação pol ítica. O periód ico de Schlbzer era especialmente temido pelos príncipes alemães que, nalgu ns casos, não hesitaram em proceder de forma brutalmente decisiva: o encarceramento de Schubart durante dez anos é prova disso. W ieland impunha um estilo particularmente contundente ao reclamar a liberdade da imprensa, que de facto não existia em qualquer território alemão: Freyheit der Presse ist Angelegenheit und In teresse des ganzen Menschengeschlechts. Ihr haben wir hauptsachlic h die gegenwartige SLUfe vo n Kultur und Erleuchtung, worauf der grb l3ere Theil der Europaischen Vblker steht, zu verdanken. Man raube uns diese Fre iheit, so wird das Licht, dessen wir uns gegenwartig erfreuen, bald wieder verschwinden ( ... ). (Wieland 1930: 65) A tiragem destes jornais era significativa em termos re lativos, na medida em que apenas uma ínfima minoria (10%) da população era alfabetizada, se ndo 180 outras revistas com grande procura a Allgemeine Deutsche Bibliothek de ~'~icolai (1777 e segs.) e a Allgemeine Literatur-Zeitung (1785 e segs.), esta sobretudo pelas recen sões nela publ icadas. Christoph Meiners e Leo Spitteler editavam em Gottingen o Gottingisches Historisches Magazin, onde os artigos científicos alternavam com as reflexões políticas, sendo também este o caso do 'Jottingisches Magazin der Wissenschaften und Litteratur (1780-1785) da responsabil idade de Lichtenberg e Forster. Embora nestes últimos dois casos se tratasse de revistas especializadas, o seu estatuto não se pode comparar com as suas congéneres nossas contemporâneas: a acessibilidade dos artigos e a profusão de ternas, para não falar da multidisciplinaridade, para que alguns títulos apontam, são prova disso. É também neste contexto que às mulheres será concedido um espaço corno destinatárias. como se pode deduzir pelos títulos de algumas Moralische Wochenschriftell. Contudo, as mesmas verão interdito o acesso às sociedades de leitura, o que não invalida que uma faixa minoritária letrada se dedique a leituras que não apenas as de romances sentimentais. Assim Caroline Schlegel-Schelling recorda, em carta a amiga, a leitura de Mirabeau, atitude pouco ortodoxa é ceno, para mais quando se tratava de um protagonista da Revolução Francesa, recomendando mais tarde ao jovem Friedrich Schlegel a leitura de Condorcet. Simultaneamente a primeira tradução de The Rights of Man de Thomas Paine é da autoria de urna mulher, Dorothea Forkel. o modo como al gumas muli1eres encontravam no espaço doméstico um local de debate e de reflexão, que, de certa maneira, reproduzia o ambiente dos espaços públicos masculinos, como os cafés ou as sociedades de leitura, é testemunhado nu ma carta por Camline: Die [Menschen]. die ich jetzt sehe, sind gut, in mehr wie gewohnlichem Grade, gewahren meinem Kopf mehr Nahrung ais - er bedarf - oder e;gentlich mehr ais ei ihnen wieder geben kan [sic], und erleichtern meine Lage durch ali e D ienstleistungen der Freundschaft. Sie genief3en ihr Leben, in dieser schonen Gegend - sie arbeiten und gehn spazieren und ic h theile uas alies mit ihnen. Jeden Abend bin ich dort um Thee mit ih nen zu tri nken, die interef3antesten Zeitungen zu lesen, die seitAnbeginn der Welt erschienen sind - raisonniren zu horen, selbst ein bif3chen zu schwazen - Fremde zu sehn u.S.W. (Schlegel-Schelling 1988: 142) Contudo, tratava-se de urna situação excepcional. Só mais tarde os salões femininos poderão começar a contribuir para o emergir de uma contra-cultura burguesa naAiemanha: sitGados cronologicamente numa fase relativamente posterior, os salões berlinenses equivalem exactamente a esse espaço neutro, onde a intelectualidade pode assumir livremente a sua individualidade e humanidade, rompendo com as convenções sociais que a própria burguesia não ousava maioritariamente pôr em questão. Os salões de algumas 181 berlinenses judaicas, como Rahel von Varnhagen (1771-1883) e Henriette Herz, Lemos de solteira, (1764-1847) - uma vez que seu pai era um famoso médico de origem portuguesa-constituem centros de intercâmbio literário. Saliente-se, de resto, que o próprio movimento romântico teria sido impensável- pese embora toda a sua contestação da tradição da Aufklarung - sem esta mesma evolução. A utopia de alternativas à família tradicional, às convenções matrimoniais burguesas e ao papel da mulher - de que Caroline Schlegel-Schelling, Henriette Herz e Dorothea Veit-Schlegel também foram exemplos por excelência - mais não são do que o reverso da medalha de uma subjectividade exacerbada e da protecção asfixiante que as novas instituições haviam passado a assegurar. Mas no tempo que antecede essa primeira grande crise da racionalidade e do progresso europeus que a Revolução Francesa também trará consigo, ainda se pensa esse espaço público em vias de ser conquistado como a instância que garante e permite que o indivíduo faça uso público e ilimitado da sua razão, se manifeste como ser pensante autónomo, desligado dos seus vínculos sociais e institucionais, a que se mantém fiel, enquanto funcionário do Estado, como Kant o sublinha. Zu dieser Aufklarung aber wird nichts erfordert aIs Freiheit; und zwar die unschadlichste unter allen, was nur Freiheit heil3en mag, namlich die: von seiner Vemunft in allen Stücken offentlichen Gebrauch zu machen. Nun hbre ich von alIen Seiten: rasonniert nicht! Der Offizier sagt: rasonniert nicht, sondem exerziert! Der Finanzrat: rasonniert nicht, sondem bezahlt! Der Geistliche: rasonniert nicht, sondem glaubt! (Nur ein einziger Herr in der Welt sagt: rasonniert so viel ihr wollt gehorcht!) Hier ist überall Einschrankung der Freiheit. Welche Einschrankung aber ist der Aufklarung hinderlich? welche nicht, sondem ilir wohl gar befbrderlich? - Ich antworte: der offentliche Gebrauch seiner Vemunft mul3 jederzeit frei sein, und der allein kann AufkJarung unter Menschen zu Stande bringen; der Privatgebrauch derselben aber darf bfters sehr enge eingeschrankt sein, ohne doch darum den Fortschritt der Aufklarung sonderlich zu hindem. Ich verstehe aber unter dem bffentlichen Gebrauche seiner eigenen Vernunft denjenigen, den jemand ais Gelehrter von ihr vor dem ganzen Publikum der Leserv,;elt macht. Den Privatgebrauch nenne ich denjenigen, den er in einem gewissen ihm anvertrauten bürgerlichen Posten, oder Arnte, von seiner Vemunft machen darf. (Kant 1986: 11) Note-se que, para o filósofo, aquilo que contribui para as Luzes é o uso ilimitado da razão pública, isto é, enquanto exercício do pensar autónomo e individual, sem quaisquer restrições, posição de resto perfeitamente compatível com a obediência naquilo que Kant designa, agora numa acepção diferente, de domínio privado, isto é, enquanto o mesmo homem acede a respeitar as normas vigentes na sociedade ou grupo profissional ou confessional a que pertence. 182 É apenas enquanto ser racional, independentemente da ordem a que se pertence, da profissão que se ocupa (mas não do rendimento que se aufere), que o indivíduo corporiza uma forma alternativa à sociedade vigente. Tal posição revela até que ponto o domínio do mundo privado burguês ainda se encontrava por desenvolver na Prússia fredericiana. Note-se, de resto, que esta cisão entre uso público e privado da razão lança luz sobre os limites que as Luzes conheciam na Prússia e noutros territórios alemães, onde o vínculo institucional ao Estado, não impedindo a expressão pública, apenas prometia reformas graduais sancionadas pela autoridade a que o «livre» pensador também se encontrava submetido. Variante da clássica distinção luterana entre liberdade interior e submissão ao poder secular do senhor territorial, a mesma revela as virtualidades superiores do modelo calvinista que colocava a autoridade religiosa acima de qualquer autoridade política e media os poderes senhoriais por parâmetros exteriores à mesma, ao contrário do que sucedia na confissão evangélica l . Contudo, que esta posição não pode ser generalizada prova-o o apelo à liberdade ilimitada da imprensa de Wieland em 1784, exactamente no mesmo ano em que Kant publica o referido texto: 50 wie es keinen wissenschaftlichen Gegenstand giebt, den man nicht untersuchen, ja selbst keinen Glaubenspunkl, den die Vernunft wohl beleuchten durfte, um zu sehen, ob er glaubwürdig sey ode r nicht: so giebt es auch keine historische und keine praktische Wahrheit, die man mit einem lnlerdikt zu belegen, oder für Konlrebande zu erklaren berechtigt ware. Es ist widersinnig, Staatsfieheimnisse aus Dingen machen zu wollen, die aller Welt vor Augen liegen, oder übel zu nehmen, wenn jemand der ganzen Welt sagt, was einige hundert tausend Menschen sehen, hóren und fühlen. (Wieland 1930: 72) I Note-se que o modelo de organização da comunidade calvinista pensa a relação entre poder político e poder religioso de forma radicalmente diferente do modelo luterano. Enquanto este. à semelhança do que sucedera com a Igreja Anglicana, pressupõe a subordinação da Igreja ao Estado, o modelo calvinista submele o poder político ao religioso, pelo que contribuirá para fomentar o princípio de uma inslância individual e moral, a partir da qual a prática política e o poder a ela associado podem ser avaliados e conteslados. Note-se, contudo, que Georg Forster levantará a questão do modo como na Alemanha o espaço público não possui o mesmo alcance que conhece na Grã-Bretanha, salientando a ausência de Gemeingeist, tradução alemã do termo inglês public spirit. A palavra alemã Gemeingeist começa a difundir-se então, surgindo quer em Forster quer em Herder, porventura não tanto por influência mútua como recorrendo a um neologismo que Joachim Heinrich Campe utilizara pela primeira vez no sentido de uma acção empreendida para o bem-comum, como de resto o Dicionário Grimm ainda aponta. ( ... ) schon haben wir siebentausend Schriftsteller, und dessen ungeachtet, wie es keinen deutschen Gemeingeist giebt, so giebt es auch keine deutsche offentliche Meinung. Selbst diese Wórter sind uns so neu, so fremd, daf3 183 jedermann Erlauterungen und Definitionen ford~n: indeG kein Englander den andem miGversteht, wenn vompublic spirit, kein Franzose den andem, wenn von opinion publique die Rede ist. (Forster 1974: 365) Equivale a dizer que a ausência de um sentido social comum, livremente expresso a partir das opiniões individuais, reconhecidas e não dominadas ou instrumentalizadas pelo Estado liberal, constitui o pressuposto da modernização política da Alemanha. A ausência de Gemeingeist ou de opinião pública deve-se, segundo Forster, à falta de união política e de uma cidade centralizadora, capaz de levar a cabo essa tarefa de universalização contra as particularidades territoriais, leia-se, feudais. Mas o termo offentliche Meinung ganhará para Forster um significado diferente face à experiência directa da Revolução Francesa. Se anteriormente a igualdade abstracta e a individualidade, independentemente do posicionamento social e económico, haviam sido enfatizados, a opinião pública passará a equivaler agora ao poder e à pressão violenta que as massas parisienses exercem sobre o governo e a canalização que da mesma o Governo jacobino, na fase de revolução democrática em França (1793-1794), fazia. Mas ela é sobretudo a ferramenta e a alma da Revolução (<<Werkzeug und Seele der RevoJution», Forster 1990: 602). O modelo liberal britânico cede, em parte, o lugar a uma vontade geral, inspirada em Rousseau, onde o colectivo tem de predominar, colectivo esse que só pode assumir a importância que tem pelo facto de emanar de uma cidade, Paris, que é o centro da França e da Revolução. É a pressão da opinião pública que explica e legitima a violência revolucionária, cientes os seus protagonistas de que a situação social, a miséria das massas, a torna necessária. Recorde-se que será o Governo jacobino que instituirá o sufrágio universal- relativo na medida em que excluía a população maioritária feminina - e legislará a abolição da escravatura, radicalizando o potencial utópico das Luzes, que Napoleão virá a questionar, ao mesmo tempo que institucionaliza a herança revolucionária. Com efeito será esse Homem abstracto que, ignorando aparentemente a diferença, irá corporizar, quer os momentos mais emancipatórios, quer os elementos mais problemáticos ou repressivos das Luzes. A mensagem de libertação é vedada na prática às humanas de sexo diferente, aos iletrados (aos que não pertencem à burguesia e nobreza letradas), aos desapossados, aos colonizados: a todos aqueles que, sem escrita, se verão impedidos de fixar as suas histórias, histórias essas perdidas numa tradição que vê na oralidade uma manifestação cada vez mais negativa. Ao espaço público apenas têm acesso os homens, os «brancos», os letrados, os proprietários, assim se equacionando claramente esta forma de expressão de um poder com os interesses - então ainda facilmente universalizáveisda burguesia masculina e europeia. 184 3.3 A reorganização do espaço e dos papéis sociais 3.3.1 A cisão entre o espaço do trabalho e da família: a burguesia A antiga unidade de produção e de habitação e a grande família, como centro dessa economia, cedem gradualmente o lugar a uma separação cada vez maior entre o domínio do trabalho (produção) e da residência (consumo), que corresponde, de resto, a mais uma manifestação da crescente divisão do trabalho na sociedade burguesa. É assim que a fanulia nuclear poderá erigir-se em espaço privilegiado de um intercâmbio de carácter exclusivo. Desligado das suas tarefas profissionais, o burguês pode reencontrar-se consigo mesmo, erigindo outros critérios que não os da eficácia económica e a produtividade para imaginar outras formas de se relacionar. Local onde a autoridade masculina será cada vez mais evidente, o espaço doméstico da burguesia ficará reservado ao repouso, à meditação, à leitura que, de voz alta passará cada vez mais a ser feita em voz baixa, tornando-se assim cada vez mais individualizada e extensiva. É a descoberta de uma realidade imaginária a substituir o quotidiano feito de rotina, onde a cada um é concedido o direito de escolher a leitura que mais lhe apraz, criando-se um espaço de compensação sentimental para a ética do trabalho burguesa, que, entretanto, encontrara nas virtudes do café um estímulo mais eficaz do que as propriedades calóricas do chocolate, bebida preferida da nobreza, ou as mais populares mas anestesiantes do vinho, que, até então, acompanhara as refeições e o espaço de convívio desde o pequeno almoço ao jantar. É esta divisão que permite a manifestação de uma dupla moral: se no local de trabalho é cada vez mais a lei do economicamente mais forte que predomina, no domínio doméstico, a relação afectiva compensa a opressão exercida no local de trabalho. É a este espaço que o burguês vai buscar a inspiração para a sua humanidade, independentemente das hierarquias e das relações de poder, é aí que ele protagoniza a humanidade abstracta e subjectiva que permite pensar a igualdade entre todos, independentemente de diferenças de classe, de sexo ou de cor (Horkheimer et alo 1987). 3.3.2 Divisão do trabalho e família À semelhança da nobreza feudal ou de corte, também as camadas camponesas não conheciam a distinção entre o domínio público e privado, na 185 medida em que a organização económica e social da grande familia pressupunha a estreita contaminação entre o local de trabalho (produção) e de habitação (consumo). Com a crescente dissociação destes espaços, na sequência da Revolução Industrial, os novos assalariados não conhecerão, porém, nem em termos de mera aparência, a autonomia da vontade privada como criadores de novos empreendimentos económicos. Por sua vez, o espaço doméstico não verá o seu domínio consagrado, dependente como se encontra da mais estrita necessidade económica. Tal como os homens, as mui heres ver-se-ão obrigadas 'a abandonar o local doméstico para assim poderem garantir a sua sobrevivência. Significativamente, será durante a Revolução Francesa que, com a crescente subversão da ordem vigente, as mui heres desempenharão um papel decisivo no domínio político, na medida em que são elas que mais directamente sentirão no seu quotidiano as consequências da escassez e da penúria, assim propondo estratégias de acção alternativas que ameaçavam, por isso mesmo, pôr radicalmente em causa a ordem política da burguesia masculina, de formação predominantemente jurídica que, em 1789, redigira a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tal entendimento da política por parte das mulheres questionava de modo radical a separação entre local de produção e de consumo, pondo em causa a divisão de papéis dela decorrente, ameaçando o domínio da intimidade, onde ao indivíduo burguês fora concedida a possibilidade de ser «ele mesmo», ser racional, potencial, temporariamente liberto das suas obrigações profissionais e hierarquias sociais. Não será portanto de estranhar a proibição dos clubes políticos femininos, bem como a condenação de toda a actividade política espontânea por parte das mulheres, ao longo de quase todo o século XIX, um pouco por toda a Europa. E o século XIX consagrará o modelo burguês da familia nuclear, conforme com a ordem económica e social nele triunfante (cf. Cap. IV2, pontos 2.6 e 2.7) 3.3.3 A redistribuição do espaço doméstico e a intimidade A possibilidade de um membro de uma família se refugiar no seu quarto, para aí poder dar largas à sua emoção, a noção de novas formas de poder, que levariam a que, nas famílias burguesas, se passasse a separar a sala de 186 estar, da sala de visitas, que a cozinha - local de reunião e de convívio na grande faoúlia rural - fosse transferida para o local mais distante desta última e que o quarto dos pais passasse a ser distinto do dos filhos, que, por sua vez gradualmente não só teriam um espaço próprio para brincar, como veriam surgir a diferença de sexo como mais um critério de organização dos espaços, todas estas transformações constituem momentos essenciais no processo de criação da intimidade (Shorter 1975). Se a sala de visitas guarda os traços de uma exterioridade e de uma representação em regressão, a burguesia inventa a sala de estar, espaço neutro onde toda a faoúlia se reúne, depois de terminadas as diferentes tarefas, conduzidas de forma crescentemente separada. É aí que os seus membros se entregam aos seus lazeres, preferindo-se as actividades susceptíveis de serem realizadas em comum, como a música de câmara, a leitura em voz alta, ou que não interrompam a sociabilidade como o bordado, o jogo de cartas. Não será, portanto, de estranhar, o ataque aos efeitos perniciosos da leitura individual e sobretudo de romances: esta não só afastava das obrigações, como estimulava excessivamente a imaginação, sendo as suas vítimas preferenciais as mulheres burguesas que, confinadas ao espaço doméstico, preenchiam por vezes os seus tempos livres com actividades que podiam ser incontroláveis. De resto, a sua curiosidade intelectual era frequentemente motivo de troça, como sucede com Kant, que adivinha nas mulheres o culto das aparências de que a sociedade burguesa e os adeptos de Rousseau tanto desconfiavam: Was die gelehrten Frauen betrifft: so brauchen sie ihre Bücher etwa so wie ihre Uhr, namlich sie zu tragen, damit gesehen werde, daS sie eine haben; ob sie zwar gemeinig!ich sti!! steht oder nicht nach Sonne gestellt isto (Kant 1988: 654) Mas a curiosidade intelectual feminina não só era motivo de troça ou censura, mas também de complexo de culpa por parte das próprias mulheres, como se pode ler no seguinte excerto de uma carta da jovem Therese Forster-Huber: ( ... ) Wegen meiner Lektüre habe ich mir biswei!en Vorwürfe gemacht, habe gedacht, ich sei se!bst daran schu!d, wenn ich nicht mehr so unbefangen unschu!dig war, wie meine Janre es mit sich brachten, und es meines Geistes würdig sei. Sie beruhigen mich um vieles, aber daS Sie mein Lesen zu einem Grund meiner plagenden Unruhe machen, das ist mir ganz unerwartet; denk ich aber mehr darauf nach, so g!aub ich, Sie haben ziemlich recht. Ich habe mir einmal einen Ton gegeben, der nur der einzige ist, der mir gefallt, was ich hore und antreffe, muS in diesen Ton einstimmen, um mir zu gefallen, ists dies nicht, so ist mirs gleichgültig und zuwider. Da ich nun wenig finde, das mir gefallt, so macht mir vieles Langeweile, ist I 187 mir unschmackhaft, und weil ich inuner mehr suche, und nie fi nde, so bin ich, glaub ich, unruhig. Die vielen Romane, und andre Schri ften, die bloS furs Herz waren, haben meine Zartlichkeit gereizt ; ic h fü hle , dal3 ich würde glücklich sein, wenn ich einen Gegenstand wül3te, dem ich diese Zarllichkeit ganz geben kbnnte, aus dem ich meinen Abgott machen kbnn te , da ich aber keine Seele um mich sehe, die mich versteht, mul3 ich mich verschliel3en, mich in mich selbst hinziehn, ich traume biol3 cin Gli.ick, das ich mir ausschweifend traume, 50 wie ich mir kein Gewissen daraus machen würde, Mahomeds Paradies mit ausschweifender Pracht und Gli.ickseligkeit allszuschmi.icken, beides sind Traume, und Unmbglichkeiten. (Huber 1989: 13-14 ) Com efeito, Rousseau aconselhava à futura companheira de Emílio, Sofia, a moderação em tudo, desde os atributos físicos, aos intelectuai s e recomendava como actividade ideal para qualquer jovem os trabalhos manuais (Rousseau 1966). Certo é que entre a amamentação, a admini stração da casa e outros trabalhos manuais, pouco tempo lhe restava para a le itura, quando esposa e mãe. A propósito das cartas de M irabeau, escrevia Caroline à amiga Luise Gotter de Mainz no ano de 1792: Liebe Madam Luise, Du kbntest doch auch dergleichen [Mirabeaus Schriften] lesen, wenn Du deine Kleinen, die Dir im Schauspielera.kzent vorgelarmt haben, zu Bett geschickt has~ - aber ich weiS dann wirst Du mi.ide ( ... ) - denn Du Gute sorgst fur Deine nahen Freunde llnd Dekümmerst Dich nicht um eínen hal3lichen Bbsewicht, wie der aul3erordent liche Mirabeau war (... ). (Schlegel-Schelling 1988: 138) 3.4 Espaço doméstico 3.4.1 A divisão de trabalho nafamília burguesa: homens, mulheres e cnanças A igualdade teórica e abstracta postulada no espaço público não invalida, antes pressupõe outras formas de sepa · ação e de hierarquizaçãe, mesmo no seio da burguesia. A família nuclear burguesa saberá inventar e defi nir de forma tanto mais eficaz as formas de opressão patriarcal, reproduzindo-se, a nível doméstico, outras tantas maneiras de exercer a autoridade sobre os economicamente dependentes: mulheres, crianças e criados (Horkheimer et a!. 1987). 188 Se es ta di visão do espaço cons titu iu, com efeito, o grande pólo de inspi ração par a a inven ç ão de u ma racional idade individual, para uma fo rma de estar e m sociedade mais «humana», o cel10 é que a geografia da casa burguesa não esconde o modo como a «dialéctica do Iluminismo» (H orkheimer/A dorno I 971) gera o reverso dessa humanidade sem sexo ou sem idade. A separação entre mundo público e privado e a subsequente invenção do mu ndo domés tico, cria a fronteira entre o m u ndo masculino e feminino, ad ulto e infantil, entre senhores e criados, em suma, marginalizando aqueles que não di spõem de maioridade política ou biológica. Reino do sen timento, poupado das agressões da concorrência e da racionalidade instrument a Uzadora do capitali~mo. será o local ideal de consumo de lite ratura se ntimental, bem como de produção da mesma por parte de algumas mulheres mais ousadas . O mundo doméstico torna-se feminino, reino da ;nulher burguesa que, impedida de aceder política e economicamente ao mundo público, se reali za nas tarefas domésticas, criando fi lhos e praticando a administração dos bens masculinos. São estas mulheres que encontram em R ousseau a emancipação possível, amamentando e educando os futuros cidad ãos para uma pa11icipação de que permanecerão excluídas formal e praticame nte até ao princípio do século XX. Por sua vez, esta d ivisão tanto mais distinta se torna, quanto o corpo se transform a no local, on de a difere nça empiricam ente perceptível se irá inscrever: a mulher passa a ser gradu almente encarada não como uma variante de um model o humano único, mas como um ser pOl1ador de uma diferença biológica irredutível (Ga llagherlLaqueur 1987). Assim, quando Rousseau advoga a d ife rença natural entre os sexos, ainda o faz socorrendo-se de um conceito abstracto de natu reza, em que a diferença biológica é relativa nesse processo de demarcação e de atribu ição de papéis: En tout ce qui tient au sexe, la femme et I'homme ont partout des rapports et ?artout des différences: la diffículté de comparer víent de celle de déterminer dans la constitution de l'un et de l' autre ce qui est du sexe et ce qui n' en est pas. Par l' anatomie comparée, et même à la seule inspection, l' on rrou ve entre eux des di fférences générales qui paraissent ne point tenir au sexe; elles y tienn~nt pourtant, mais par des liaisons que nous sommes hors d' état d'apercevoir: pous ne savons jusqu'ou ses lJasons peuvent s' étendre; la seule chose que nous savons avec certitude est que tout ce qu il s ont de commun est de l' espece, et que tout que ce qu' ils ont de di fférent est ciu sexe. Sous ce double po!:nt de vue, nous trouvons entre eux tant de rappom et tant d' opposítions, que c' est peut-être une des merveilles de la nature d'avoir pu faire deux êtres si semblables en les constituants si différe mmen t. (Rous seau 1966: 466) 189 Ora é exactamente essa natureza comum que será cada vez mais relegada para segundo plano, legitimando e antecipando o discurso científico a necessidade de o poder político justificar o afastamento das mulheres enquanto sujeitos de direito (GallagherlLaqueur 1987). Kant recusar-lhes-á exactamente esse mesmo direito, tal como aos assalariados e não-proprietários, medidas que a Constituição francesa de 1791, de resto, também, asseguraria. A caracterização kantiana do sexo feminino revela tanto os preconceitos de um celibatário como a fonte em que os terá provavelmente bebido: Jean-Jacques Rousseau. Weibliche Tugend oder Untugend ist von der mfumlichen, nicht sowohl der Art ais der Triebfeder nach, sehr unterschieden. - Sie soll geduldig, er muf3 duldend sein. Sie ist empfind!ich, er empfindsam. - Des Mannes Wirtschaft ist Erwerben, die des Weibes Sparen. - Der Mann ist eifersüchtig wenn er !iebt; die Frau auch ohne dal3 sie liebt; weil so viele Liebhaber, ais von andern Frauen gewonnen worden, doch ihrem Kreise der Anbeter verloren sind.- Der Mann hat Geschmack für sich, die Frau macht sich selbst zum Gegenstande des Geschmacks für jedermann. (Kant 1988: 654) Condorcet apela ainda para o carácter secundário dessa diferença para advogar a legitimidade da maioridade política e pública das mulheres, reproduzindo assim o discurso da igualdade abstracta, fundada numa racionalidade sem corpo e sem sexo. Reclamando para as mulheres direitos cívicos e políticos, incluindo-se nestes o direito ao sufrágio, escreve no seu libelo «Sur l'admission des femmes au droit cité», já durante a Revolução Francesa, no ano de 1790: Je demande maintenant qu' on daigne réfuter ces raisons autrement que par des plaisanteries et des déc1amations; que surtout, on me montre entre les hommes et les femmes une différence naturelle qui puisse légitimement fonder l' exclusion du droit. (Condorcet 1968: 129) Mas este marquês republicano inspirava-se noutros modelos que não os que os adeptos de Robespierre consagravam. E a familia bu rguesa saberá basear-se no princípio de que a diferença biológica legitima a passividade pública das mulheres. A proclamação da igualdade abstracta caminha de par com a fixação de uma diferença irredutível. Se a criança é reconhecida e retratada já não como uma miniatura do adulto, a ela se dedicando uma pedagogia que confere de forma particularmente inovadora ao ritmo de desenvolvimento infantil o lugar de direito que ainda actualmente lhe é reconhecido, inventando-se exactamente então a literatura infantil (cf. Cap. II.2, ponto 2.2.2), que conhece em Robinson der Jüngere (1779) de J. H. Campe (1746-1818) um dos seus mais importantes representantes, também é verdade que a mesma serve de meio para consagrar a divisão de sexos e capacidades. 190 A garantia da existência de mulheres saudáveis e equilibradas servia uma finalidade: a de uma procriação tão eficaz quanto possível e não a de um direito próprio. (. .. ) Mütter, denen das künftige Wohl ihrer Kinder am Herzen 1iegt, kbnnen daher von dem ersten Augenblicke ihrer Empfangni13 an, nicht zu aufmerksam auf die Erhaltung der Gesundheit ihres Leibes und ihres Geistes seyn, kbnnen vor jeder Unpal31ichkeit, vor jeder Ausschweifung aus der graden Stra13e der Tugend und Rechtschaffenheit, und vor jedem widrigen Affekte, nicht zu sorgfaltig sich in Acht nehmen. Nie wird auf einem kranklichen, faulenden, ode r durch Sturmwinde zersplitterten Stamme das zarte, so eben erst hervorgequollene Knbspchen, zu einem gesunden und starken Fruchtaste gedeien kbnnen. (Campe apud Schmid 1995: 62) No espaço público e político de que as mulheres, as crianças e os criados se verão privados, apenas ecoa a voz patriarcal do chefe de família. E nem o direito ao prazer lhes era autorizado como forma de compensação. 3.5 Espaço público e subjectividade Na Alemanha, o pietismo contribuiu também de forma particularmente relevante, para a formação de um espaço público. O pietismo, movimento oriundo do luteranismo e estimulado pela obra de Philipp Jakob Spener (1635-1705), Pia Desideria (1675), desenvolvera-se inicialmente em Frankfurt e mais tarde em Berlim. O movimento correspondia a uma reacção à ortodoxia luterana, que parecera esquecer os elementos de uma prática da piedade e o sentimento de relação mística com Deus que constituira um importante elemento na doutrina de Martinho Lutero. Os seus principais representantes foram August Hermann Francke (1663-1727) em Halle e o conde de Zinzendorf (1700-1760). Enquanto o primeiro desenvolveu uma importante acção social e pedagógica, fundando, por exemplo, em 1710 o célebre orfanato de Halle (Waisenhaus), o segundo apelava à renovação dos laços sentimentais e místicos. Apesar da rivalidade entre pietistas e Aufkldrer em Halle, que resultou na expulsão de Christian Wo!ff, em 1727, para Marburg, o certo é que o zelo reformador e as preocupações práticas e pedagógicas de um Francke possuem traços comuns ao modelo iluminista. Por outro lado, a importância dada à responsabilização individual do crente na praxis pietatis contra a ortodoxia instituída libertara energias semelhantes àquelas catalisadas pelos metodistas e puritanos em Inglaterra. 191 A responsabilização do indivíduo para com a comunidade passou a constituir uma alternativa ao espaço burocrático do Estado e um foro de expressão da autonomia. Sem a influência desta subjectividade renovada pelo pietismo, a crítica religiosa e do dogma não teriam assumido o radicalismo que caracteriza, por exemplo, as posições de alguns teólogos como Carl Friedrich Bahrdt (1741-1792) e Karl Leonhard Reinhold (1758-1823), na sua crítica radical da ortodoxia e da religião, nem a análise psicológica de um Karl Philipp Moritz, no seu romance Antol1 Reiser. Por outro lado, esta subjectividade permitiria às mulheres a descoberta de uma diferença não biologicamente detectável: a iredutibilidade de uma experiência encontraria na escrita uma forma de se afirmar, assim adquirindo as mulheres a possibilidade de fazer ouvir gradualmente a sua voz. A utilização da carta como meio de expressão privilegiado nesta época constitui mais um elemento nesta história da invenção da intiITÚdade. A mesma serve de veículo de comunicação de emoções e de exteriorização de afectos. As fórmulas de cortesia quase servil cruzam-se com um registo afectivo impensável para o século do racionalismo: homens e mulheres apenas se distinguem na selecção de temas, havendo por pm1e das últimas uma atenção mais virada para o quotidiano sem história, as tarefas domésticas, as interrupções de momentos dedicados a manifestações de racionalidade autónoma pelas crianças que impedem a leitura ou a vida contemplativa em geral, enquanto o mundo masculino é aquele em que se exprime a preocupação com o mundo das carências económicas, as grandes decisões políticas. Todos revelam, porém, quase o mesmo à vontade para manifestar o seu amor, dedicação ou verter lágrimas de emoção. No entanto, as cartas não se limitam à expressão de afectos nem a ser um veículo de temas do foro íntimo, mas constituem um instrumento fundamental de debate que, transcendendo esse domínio, abordam assuntos sociais, científicos e literários e se alargam, sob a forma de cartas-abertas, polémicas e correspondência científica aos órgãos de imprensa. Assim a epistolografia, a Briejkultur do século XVIII, foi também uma das instâncias essenciais para a afirmação do espaço público. 3.6 Sociedades secretas A maçonaria constitui uma outra instância de impor1ância decisiva para a formação desta esfera de contra-poder. O espaço privado e delimitado destas sociedades secretas criava novas relações de dependência e de poder que, se 192 em parte reproduziam as existentes, também criavam alternativas à ordem vigente, na sua proclamação da igualdade entre nobres e burgueses, na sua fixação em hierarquias segundo os méritos que não os do nascimento, a que as provas e ritos iniciáticos davam corpo. Ser-se homem é mais que ser-se príncipe como Lessing e Mozart o afirmam, separadamente em Ernst und Falk e Die Zauberflote. A tolerância, a educação, a ordem universal do Grande Arquitecto coadunam-se com os ideais iluministas ou constituem antes o seu eco mais adequado. A prova de que não se pode, com efeito, identificar as Luzes com a ideologia da classe burguesa em vias se de emancipar, prova-o também a composição variada das lojas. Enquanto que em Hamburgo ela era maioritariamente frequentada pela burguesia, nas cidades residenciais a nobreza era predominante, embora nos centros universitários imperassem os docentes do ensino superior. o secretismo das sociedades contrasta com o carácter do debate púb1ico e aberto praticado na imprensa, mas constitui um complemento dele: neste espaço conspira-se efectivamente contra o carácter ilimitado do poder absolutista, minando-se as bases em que o mesmo se apoiava. A proliferação de lojas maçónicas foi tão intensa nos territórios alemães como na Grã-Bretanha e em França. Hamburgo foi a cidade onde a respectiva actividade mais cedo se fez sentir através da influência inglesa, contando-se nessa cidade com cinco lojas no ano de 1778. A Loge Friedrich zu den drei Balken que iniciara a sua actividade em 1778 com 18 membros, contava em 1803 com 103 adeptos. Na Prússia a maçonaria floresceria sob o reinado de Frederico II, ele próprio maçon, o mesmo sucedendo com José II da Áustria, sendo Viena um dos seus mais importantes centros, possuindo 15 lojas. Joseph Haydn (1732-1709) e Mozart são outros célebres membros da maçonaria, tendo este último, membro da loja Zur Wohltdtigkeit, composto inúmeras peças maçónicas, para não falar nas alusões aos ritos iniciáticos presentes em Die Zauberflote. Mas, em simultâneo, proliferam outras sociedades secretas que não se inspiram tanto nos princípios fraternais e esclarecidos que marcavam as principais lojas, mas que promovem o oculto, o irracional: os Rosacruz e os Illuminaten, fundados por Adam Weishaupt (1748-1830), professor de direito canónico e natural do Sul da Alemanha. O que é certo é que muitos dos seus membros também privavam nas lojas maçónicas. Se é verdade que as mesmas adquiriram um carácter gradualmente avesso ao espírito da Aujkldrung, sobretudo depois de o sucessor de Frederico II ter subido em 1786 ao trono, introduzindo uma política de retrocesso relativamente às reformas do seu antecessor, o certo é que, inicialmente, estas ordens de pendor místico contavam entre si, além de nobres, sobretudo com médicos e cientistas, o que mostra até que ponto a cisão entre o ocultismo e a ciência institu193 cionalizada estava longe de se cumprir. Entre os seus adeptos contavam-se Goethe, o jovem Forster e o anatomista Sbmmerring, embora os mesmos cedo tenham abandonado o grupo Rosacruz a que haviam aderido, temendo cabalas e influências secretas por parte dos Jesuítas. Este dualismo nas tendências das sociedades secretas e o facto de partilharem os seus membros revela até que ponto a historiografia tem sido parcial na imagem que forneceu do século XVIII: as Luzes possuem as sombras equivalentes, o irracional mantém um papel decisivo. Embora gradualmente relegado para um plano não-oficial, não-institucional, persiste em organizar-se. 3.7 O novo público: teatro e música o teatro constitui outra vertente que se associará à formação de uma opinião pública esclarecida: Lessing e Schiller utilizam-no como arma de contestação dos valores da sociedade de corte predominante, contra a aliança entre a burguesia esclarecida e o absolutismo de corte que Gottsched ainda representara. Mas uma vertente essencial é o facto de o teatro se destinar a um público mais amplo que se desloca às salas, pagando o seu bilhete, criando-se assim uma relação diferente daquela que existira nas encenações da corte. O público constitui uma nova autoridade a que o autor e o actor têm de se submeter e de que dependem economicamente. As opções estéticas de um Lessing não são de modo algum estranhas a esta evolução. O bürgerliches Trauerspiel apela à individualidade do público, à transparência de uma comunicação, à espontaneidade dos afectos contra a contenção das normas de corte. Por outro lado, a emergência de um público não-especializado, que se desloca às salas de espectáculos, apenas por economicamente estar em condições de o fazer, cria a figura do crítico, órgão e voz dessa opinião pública que ensaia os seus primeiros passos. Lessing corporiza, na sua polémica contra o drama de Gottsched exactamente esta tendência. A cisão entre o espaço púbJico e o privado faz-se sentir igualmente no modo como se praticará a música: entre a sala de concertos, onde o virtuoso, mercê do sistema de assinaturas, evidencia o seu talento e a sua genialidade, e a sala de estar, com música de câmara e piano, instrumento individualista que, na sua autonomia harmónica e na sua robustez física, surgirá como o símbolo da burguesia até finais do século XIX. 194 As grandes construções sinfónicas, iniciadas por Haydn e levadas por Ludwig van Beethoven (17l 0-1827) ao seu expoente máximo, terão a sua contrapartida no carácter elitista da música de câmara ou no tom intimista dos nocturnos para piano e dos Lieder que reelaboram a lírica subjectiva. A Heróica (1803) de Beethoven contrapõe-se à sua Mondschein-Sonate (1800/180 I); a grandiosidade épica e o intimismo lfrico, dando voz às impressões do artista solitário, são duas faces da mesma moeda. O virtuosismo do concertista e a construção sinfónica adaptam-se às necessidades de um público mais vasto e menos conhecedor, tentando-se captar o ouvinte através de efeitos espectaculares do ponto de vista da execução e da composição. Mas a associação de indivíduos apresenta o seu reverso: o isolamento do artista solitário é a outra face do espaço público a que os românticos darão a devida expressão. A ópera aburguesa-se: de espectáculo para entretenimento da corte a mesma transforma-se em diversão para camadas gradualmente mais amplas. Prosseguindo uma viajá iniciada por Christoph Willibald Gluck (1714-1787), a retórica barroca, sustentada por figuras mitológicas e estilizadas, é substituída por um registo cada vez mais intimista e sentimental. A Olfeo ed Euridice (1762) sucedem-se Figaro e Susana, plebeus que contestam a omnipotência dos nobres em As bodas de Fígaro (1786); Don Giovanni (1787), protagoniza não as virtudes de deuses, mas a hybris demasiado humana de um nobre que encarna a espécie humana. Por sua vez, a Zauberflote, representada, em 1791, no Teatro auf der Wieden, espaço independente da ópera tradicional associada à corte, serve também de pretexto para o libretista, Emanuel Schikaneder (1751-1812), e o compositor divulgarem, de forma tão aberta quanto o código maçónico o permitia, os ideais de igualdade e o sacrifício iniciático pela transparência de um mundo mais fraterno e racional. É esta herança que Beethoven retomará em Fidelio (1805), celebrando a liberdade recém-conquistada pela humanidade e significativamente invertendo o papel dos castra ti, ao introduzir uma mulher transvestida de homem, a fim de poder libertar o amado acorrentado pelas forças da opressão. 3.8 Conclusão Resumindo pode afirmar-se que no espaço cultural alemão se fez sentir, à semelhança de outros países europeus e pese embora um relativo atraso económico, uma evolução fundamental na criação de um espaço público. 195 Antes da Revolução Francesa já se desenhara e consolidara um espaço de debate e de oposição a que a mesma iria dar a mai s pe rfe ita exp res~ ão política, abrindo simultaneamente o caminho para o reforço do papel do génio solitário face à liberdade cada vez mais instituc ion ali zada e regulamentada. A nova ordem decorrente das transformações revolucionári as em França, institucionalizaria e consagraria no Continente europeu algumas das reivindicações iluministas, para as quais o debate surgido no seio do espaço público foi determinante. Mas, se a nova realidade herdeira do século XVIII radicalizava as aspirações das Luzes, também as desvirtuava. Com efeito, a Revolução Francesa institucionalizou as reivindicações e práticas que associamos ao emergir do espaço público, sancionando a liberdade de imprensa, de confissão religiosa o direito à propriedade, criando uma esfera distante e estanque da vida íntima, onde tudo seria permitido, desde que não interferisse com o domínio público. Mas a tolerância religiosa não encontraria sempre o seu mais adequado equivalente político e jurídico, a igualdade permaneceria me ro postulado jurídico sem a correspondente prática económica. A iguaJdade e a liberdade, a identidade e a diferença e o modo de se articular esses doi s elementos seriam o maior dilema e equívoco com que a nossa contemporaneidade ainda se vê a braços. A igualdade jurídica, baseada no postulado de uma igualdade abstracta e universal garantiu, - e garante - o tratamento idêntico de todos os seres, independentemente do sexo, da origem, das crenças, da cor, mas simultaneamente não escapou à tentação de tornar esse modelo e essa referência num modelo monolítico e absoluto, em evidente contradição com o programa tolerante que o inspirara. O «Terror da razão» (Georg Forster), tudo nivelando e instrumentalizando, não foi descoberta dos críticos e cépticos das Luzes e da modernidade no nosso século (Horkheimer e Adorno), mas algo já então sentido pelas mulheres, pelos colonizados na Europa e fora dela, pelas minorias revolucionárias, antes de ser reapropriado e instrumentalizado pelos seus críticos, entre os quais os mais ferozes adeptos da sociedade do privilégio e da diferença mais unilateral. A racionalidade abstracta e utópica gerou. na sua dialéctic2 os apelos m8is eloquentes ao direito à diferença, baseada na origem, no sexo, nacor, criando assim a possibilidade do moderno discurso racionalista, feminista, racista em tudo aquilo que de mais polémico possuem. E sub linhe-se também: o pensamento das Luzes inscreveria no seu discurso e lógica do poder essa diferença de homem branco, cristão/protestante, europeu, contra a inferioridade seja da mulher, seja do não-europeu, segundo uma pretensa norma 196 universal, m as masculina e colonial. Seria na recuperação dessa difere nça marginalizad a que os protestos dos dominados se iriam reunir para denunciar a abstracção dessas normas e buscar o fundamento, a inspiração e a mitologia para a (re)invenção de uma identidade entretanto destruída. E é também na Revolução Francesa, enquanto institucionalização da modernidade e de um espaço público centralizado, que vamos encontrar as origens de uma organização desta esfera até aos nossos dias: a crescente influência e pressão do poder económico levará a que esses espaços de reflexão e debate cedam gradualmente o lugar a uma imprensa manipuladora da opinião pública que passa a constituir uma mera correia de transmissão do poder instituído. A velocidade e a quantidade da informação virão, a partir do século XIX, prejudicar os elementos críticos do público leitor, cada vez mais passivo. O aparecimento dos meios audiovisuais viria a revolucionar a imprensa e a criar as condições para o aparecimento dos modernos meios de comunicação de massa. A cultura escrita cederia gradualmente o lugar à comunicação audiovisual. Pesem embora todas as d iferenças radicais entre esses dois momentos há que não esquecer que conceitos como os de opinião pública, espaço púb;ico e publicidade, surgidos no século xvru. ainda persistem no nosso imaginário social e político e constituem o modelo segundo o qual inconscientemente ou não medimos a nossa realidade pós-moderna. Bibliografia recomendada Para o conceito de espaço público e respectivas instituições consulte-se o estudo clássico de H abermas 1962. complementando esta leitura com os dados constantes de «Institu tionen der AufkHirung» (Grimminger 1980: 103-216) e de Beuti n 1992. Sobre a evolução da famflia consulte-se Shorter 1975, 'Veber- Kellermann 1974, sobre as sociedades secretas Móller 1986, sobre a música e outras artes Hauser 1973. Actividades propostas • Leia o texto de Kant «Beantwortung der Frage: Was ist Aufklarung?» caracterize o que o autor entende por uso público e privado da razão e associe estes conceitos com o de opinião pública no século XVllI. 197 • Analise Die Zauberflote à luz das teorias abordadas neste capítulo, não esquecendo o papel das figuras femininas . • Confronte a definição de Wieland de liberdade de imprensa com o emergir de uma opinião pública na Alemanha e articule a mesma com o movimento das Luzes no século XVrll europeu . M. R. S. 198 Resumo Apresentam-se, dentro da história cultural da natureza, quatro linhas temáticas que focam as relações entre formas típicas da paisagem romântica e a identidade nacional alemã. Mostra-se a evolução deste universo simbólico «natural» a partir da dimensão religiosa e moral da natureza transcendente oitocentista, a sua diversificação nos espaços naturais que a burguesia começa a criar no século XIX e, finalmente, as funções compensatórias do ambiente natural cujo carácter artificial ganha, na construção de zonas comerciais de lazer, um novo significado social. Objectivos Entender a dimensão cultural do conceito de «natureza». • Distinguir as principais fases da história da natureza desde a Aujkldrung. • Entender a função social dos espaços naturais na sociedade burguesa. • Reconhecer a tipologia da paisagem romântica. Compreender a função compensatória do espaço natural e as suas recentes simulações. 201 4.1 A natureza como universo simbólico: o exemplo dos Alpes Na recente história cultural alemã, o conceito de «natureza» encontra-se intimamente ligado não só à definição dos espaços públicos e privados que caracterizam a vida burguesa moderna, mas também a uma identidade nacional problemática que se exterioriza no mundo. A «descoberta» das altas montanhas como objecto estético e moral no poema Die Alpen de 1729 do escritor suíçoAlbrecht von Haller (1708-1777), o entusiasmo lírico expansivo do Sturm-und-Drang, a paisagem romântica cujos esquemas estereotipados dominam a percepção da natureza até hoje, o parque inglês e a sua integração na vida pública do século XIX e os movimentos de evasão e de protesto, desde o Wandervogel ao Partido dos Verdes e aos ambientes naturais simulados da indústria turística, são diversos aspectos dum complexo cultural que apresenta as várias facetas da natureza como objectos sociais com elevado valor integrativo. Falar de natureza significa, neste contexto, identificar um universo simbólico que se articula na produção e apreciação afectiva de objectos, práticas sociais e atitudes mentais que se projectam no espaço e no tempo. A natureza não será, como ainda na filosofia materialista e marxista e no positivismo científico tradicional, uma parte da realidade objectiva, mas, antes de mais, um mundo simbólico inscrito na realidade, a organização estruturada de determinados elementos num todo significativo. Nesta perspectiva, a natureza faz sempre parte da cultura e está sujeita, por conseguinte, à evolução histórica do entendimento e das categorias estéticas. o simbolismo da natureza é uma parte importante da tradição ocidental. Neste sentido, o escritor e filósofo Christian Garve pode considerar os fenómenos naturais como uma Iinguagem que precisa, para ser entendida correctamente, da ajuda da razão filosófica. Se a natureza «fala», a sua voz é suave e precisa de ser reforçada: lhre Sprache ist uns anfangs fremd, und wir müssen sie studiren, um sie zu verstehen. Zuweilen sind ihre Ausdrücke rathse1haft und wir müssen sie auslegen. (1974: 1072) Garve retoma aqui a metáfora do mundo-livro que remonta às tradições exegéticas do cristianismo e percorre toda a história cultural do Ocidente. Ainda no fim do século XX é publicada uma antologia de textos literários com o título significativo Die Sprache der Landschaft(SchaferlStorch 1993) que se apresenta como continuação da famosa colectânea Der Deutsche in der Landschaft editada por Rudolf Borchardt em 1927. No seu posfácio, Borchardt situa a unidade dos textos apresentados (1770-1870) no contexto duma «história do espírito alemão» (473), documento 203 genuíno dum povo que, dado o seu carácter nacional , se aprop ria do mundo inteiro: «der Deutsche ist Liberal! zu Haus u nd nichl zu H aus ( ... ). D ie Welt geht in ihn ein, indes er in die Welt aufgeht». N um a época de recentes nostalgias coloniais, Borchardt perpetua o m ito do domínio cultural alemão: Der eigener landerverknüpfender und besiedelnder Polit ik fast ganz E nterbte überblickt nach Teilung der Erde aus den nur ihm eigenen Hohen des Ge istes eine kosmisch tellurische Verhaltniswelt, die auf keinen Karavellen und Briggs der seefahrenden Eroberer zu erschiffen war. (Borchardt 1953: 462-463) Assim, identidade nacional e conceito de natureza re velam uma correspondência essencial; na apreensão científica e estética real izam-se os ideais expressos no grande «século do espírií.o alemão» entre a Aujkliirllllg e a fundação do Reich. A concepção da natureza-texto tem duas implicações importantes: supõe não só o espaço natural como um conjunto articulado e inteligível, mas considera também este entendimento como uma técnica cultural que pode ser aprendida com a ajuda de especialistas na matéria. Um elemento importante da «leitura» do texto natural é a identificação dos seus vários elementos significativos. Garve fornece no seu artigo um catálogo dos topai da natureza da sua época que remetem para uma ordem inalterável (ritmo de dia e noite, alternância das estações) e uma tipologia estética ela paisagem na transição da Aufklarung para o Romantismo: Der Mittag und der Abend, der heil3e Sommer und der milde Herbst, die dunklen Schatten des Waldes, die Gestade eines Flusses oder Sees, das offene Feld, mit Baumen umkranzte Wiesen, s;lnft emporsteigende Hügel, und schroffe hohe Fe1sen; jede dieser verschiedenen Ansichten hat ihren eigenthümlichen Charakter, ist mit andem Gemüthsbewegungen verwandt, und ist geschickt, andre Ideen zu erwecken. (Garve 1974: 1072) Esta atribuição de elementos naturais a um paradigma estético e fiJosófico condensa-se, nas primeiras décadas do século XIX , em universos antinómicos. Assim, o escritor Daniel LeSmann (1793-1831) já pode distinguir, no exemplo da paisagem, elementos clássicos e românticos e explicar, wamm die Nacht und der Abend romantisch, n icht aber der Tag und der Morgen - der \1ond und der Nebel, nicht aber die Sonne und das Blau des Himmels - eine gotrische Kathedrale und eine verfallene R itterburg, nicht aber ein attischer Minerventempel und eine romische Arena - ( ... ) ein naturwilder englischer Garten, nicht aber ein franzosischer, den die Scheere dressirt und gelichtet hat. (1828: li, 257 e segs.) As ideias que a natureza desperta, Garve situa-as, na sequência de Kant, na semelhança entre natureza e obra de arte. Tal como esta remete para o artista, 204 a natureza remete para um criador dotado de razão por detrás do mundo visíve l. As pr incipai:; funções atribuídas naAufklarung ao conceito moderno de natureza, já se encontram expressas numa carta de 1541 do humanista suíço Konrad Gesner (1516-1565) sobre a alta montanha: Welchen Genuf3 gewahrt es nieht, die ungeheuern Bergmassen zu betraehten und das Haupt jn die Wolken zu erheben! Wie stimmt es zur Andaeht, wenn man umringt ist von den Sehneedomen, die der grof3e Weltbaumeister an dem einen langen Sehbpfungstage gesehaffen hat! Wie leer ist doe h das Leben, wie niedrig das Streben derer, die auf dem Erdboden urnher krieehen, nur um zu erwerben und spief3bürgerlieh zu genief3en! lhnen bleibt das irdisehe Paradies versehlossen. (apud Friedlander 1873: 7) Esta valorização da paisagem alpina situa-se na linha da teologia da criação, enquanto a teologia da redenção despreza a vida terrestre e a própria natureza. Admirar a beleza da paisagem é reconhecer a obra e o poder de Deus. Gesner, que se distinguiu também como botânico e coleccionador (o seu Naturalienkabinettera um dos primeiros na Europa), atribui um espaço específic o (a al ta montanha) a este sentimento de admiração e opõe, assim, a natureza à vida burguesa e materiali sta; o paraíso terrestre implica uma s:ntonia com o espaço natural transcendente que proporciona, ao mesmo tempo, na aprox imação do viandante a Deus, uma superioridade moral. A idei a ka ntiana do deus-artista, porém, já é apresentada por Garve como uma suposição, um desejo secreto do mais profundo coração humano que se pode descrever, em termos actuais, como necessidade social de reduzir a complexidade e a contingência do universo. Neste sentido, Goethe insiste na produção de sentido como factor antropológico universal; o ser humano é organizado de tal maneira que deve sempre tentar, ao ordenar os objectos convenientemente, criar um mundo adequado à sua dimensão. A natureza aparece, assim, como fenómeno essencialmente cultural. Para a simbolização cullUral só mais dois exemplos que mostram a disponibilidade total dos fenómenos para contextos diferentes e, nalguns casos, contrári os. No seu poema de 1729, Haller idealiza o espaço alpino por oposição ao luxo, a riqueza inútil e a depravação que reinam nas cidades. Na montanha, dominam ainda a antiga harmonia entre razão e natureza - «Hier herrschet die Vernunft, von der )Jatur geleitet» (:-faller 1984: 6) - e o ritmo natural duma vida sem excessos e drogas - «Der Mensch allein trinkt Wein und wird dadurch ei n ""!'ier» (12). Haller apresenta os Alpes como lugar dum equil íbrio perfeito - «\\10 nichts, was nbtig, fehlt und nur, was nutzet, blüht» (15); os habitantes estimam ainda as virtudes ancestrais e dedicam-se inteiramente ao trabalho: Die Arbeit 'üllt den Tag und Ruh besetzt die Naeht; Hier laf3t kein hoher Geist sieh von der Ehrsueht blenden, 20S Des Morgens Sorge fril3t des Heutes Freude nie. Die Freiheit teilt dem Vol.k, aus milden Mutter-Handen, Mit immer gleichem Mal3 Vergnügen, Ruh und Müh. Kein unzufriedner Sinn zankt sich mit seinem Glücke, Man il3t, man schJaft, man liebt und danket dem Geschicke. (6) Os Alpes de Haller são a imagem duma sociedade frugal e simples, essencialmente pré-moderna, em sintonia com o ambiente natural e em dependência total do trabalho rural que cria e mantém uma ética rigorosa. Em 1911, o sociólogo Georg Simmel, um dos grandes historiadores dos espaços culturais da modernidade, baseia a sua antinomia natureza/cultura numa interpretação sugestiva dos Alpes que seriam símbolo da transcendência e da matéria caótica ao mesmo tempo, uma absoluta paisagem ahistórica que concentra e reflecte «letzte seelische Kategorien» (apud Schafer/Storch 1993: 69-74): Das Hochgebirge mit der Unerléistheit und der dumpfen Wucht seiner blol3en materiellen Masse und dem gleichzeitigen überirdisch Aufstrebenden, über alie Lebensbewegtheit hinaus VerkJarten seiner Schneeregion bringt beides in uns zu einem Klang. Jener Mangel einer eigenen und eigentlichen Bedeutung seiner Form Jal3t in ihm GefühJ und SymboJ der grol3en Daseinspotenzen: dessen, was weniger ist ais alle Form, und dessen, was mehr ist ais alle Form - seinen gemeinsamen Ort finden. (ib.: 71) Não podemos insistir mais aqui na estetização da alta montanha, aliás já bem estudada (cf. Raymond 1993). Da longa e complexa história da natureza como universo cultural estruturado, serão abordadas no quadro deste capítulo apenas quatro linhas temáticas essenciais: 4.2 • a dimensão religiosa e moral da natureza transcendente; • a paisagem romântica e a identidade nacional alemã; • a natureza burguesa e os seus espaços específicos; • a função compensatória da natureza. Dimensão religiosa e moral da natureza transcendente Os conceitos de natureza que dominam na segunda metade do século XVIII são ainda paradigmas europeus que remetem para antagonismos ideológicos comuns. Assim, o parque geométrico francês corresponde ao absolutismo feudal, enquanto o parque inglês, que se torna popular na Alemanha no fim 206 do século, projecta e recria uma natureza autónoma e aparentemente livre. Filósofos e escritores ingleses como Antony Shaftesbury (1671-1713) e Joseph Addison (1672-1719) já tinham oposto, em 1711, a expressão de arbitrariedade e escravatura nos parques aristocráticos às virtudes da natureza «natural» (cf. Wimmer 1989: 419). Esta batalha política em termos culturais culmina nas aspirações naturalistas da Revolução Francesa que tenta impor, entre outros, um novo calendário cujos nomes contemplam o ritmo das estações e do trabalho rural. Aqui, a natureza fornece um ponto de referência que permite projecções duma ordem igualitária e harmoniosa ao contrário da tradicional ordem hierárquica do antigo regime. Sem ter realizado a revolução burguesa, a Alemanha também já imagina mundos alternativos, onde reine uma ordem natural, embora ainda pensada no quadro da monarquia absolutista. Enquanto a literatura e a arte bucólicas estão ainda integradas no contexto aristocrático, novas formas do sentimento da natureza já se distanciam, em meados do século, explicitamente deste mundo revoluto. O sentimentalismo de Rousseau entusiasma a Europa inteira e o mesmo acontece com a natureza heróica dos cantos de Ossian (1760), filho do suposto bardo celta Fingal, uma mistificação literária de James MacPherson (1736-1796) que teve um êxito extraordinário na Alemanha (Herder, Goethe) com numerosas traduções até meados do século XIX. Herder inclui na sua antologia de poesia popular mundial vários cantos de Ossian, que foi determinante, na sua fusão de antigas tradições populares e dum imaginário paisagístico sentimental, para o seu conceito de Naturpoesie. Embora situada num contexto europeu, a recepção de Rousseau e de Ossian na Alemanha tem um carácter específico que enfatiza a dimensão afectiva e moral do fenómeno natural. O programa pedagógico de Rousseau utiliza a natureza transcendente como enquadramento duma vida exemplar e os filantropos alemães que, a partir de 177 4 (data da abertura do Philanthropinum em Dessau por Johann Bernhard Basedow), fundam escolas e internatos, levam os alunos para passeios educativos que confirmam as lições morais dos professores. O movimento filantrópico criou também uma literatura infantil e juvenil e instituiu a educação física e a experiência como parte integrante da pedagogia. Por outro lado, o rousseauismo pedagógico já instrumentaliza a natureza no sentido duma interiorização dos valores burgueses que visam o domínio total do ambiente exterior e da natureza humana. O panteísmo autónomo e crítico do Sturm-und-Drang, nomeadamente na obra de Wilhelm Heinse (1746-1803), opõe-se directamente a este conceito duma natureza domesticada ao serviço da ideologia burguesa. No seu diário duma viagem a Itália (1780-1783), Heinse aponta: 207 Unser heutiges Leben ist in der That nur ein gemachtes Leben, wie Uhrwerk. Es hat gar die Veranderung, Neuheit und Mannichfaltigkeit nicht mehr wie die Natur. Das beste Leben muJ3 dem Wetter gleichen, Wind und Regen und Sonnenschein, Sturm und Erdbeben, Winter und Sommer. Unser Stubensitzen, unsre RegelmaJ3igkeit bringt uns um alie Freuden. (1924: 34) Esta citação radicaliza a crítica de Gesner do materialismo burguês numa antinomia de vida natural e ordem social. O sonho duma vida diferente, mais espontânea, em harmonia com uma natureza transformada em dinâmica vital, transforma-se num topos da crítica social e cultural e antecede a Lebensphilosophie moderna propagada por Wilhelm Dilthey (1883-1911) e Ludwig Klages, um vitalismo anti-racionalista que opõe o criativo ao mecânico, o instinto e a alma ao intelecto. Os últimos resíduos deste conceito vitalista enfático encontram-se ainda no turismo moderno e na publicidade que, ao enquadrar os seus produtos num ambiente natural, remete para uma ordem transcendente e uma simplicidade harmoniosa que já não existem. Sobretudo bens de consumo poluentes e nocivos (automóveis, tabaco, álcool) são apresentados numa paisagem intacta e idflica, de preferência à luz quente do pôr de sol, que nega o contexto industrial que fabrica estes mesmos produtos. As referências à natureza simbólica na publicidade, porém, evidenciam uma mitologia internacionalizada; a dimensão nacional - e nacionalista - da paisagem romântica alemãjá se dissolveu, nas últimas décadas, na uniformização do mercado mundial. Paisagem romântica e identidade nacional alemã 4.3 A estética do Romantismo é panteísta e mitológica ao mesmo tempo; na apreensão poética da natureza revelam-se o significado profundo do universo e o destino do ser humano. A natureza como unidade de ideia e aparência é essencialmente comunicativa, a gramática universal do mundo que Novalis imagina, permite múltiplas interpretações na perspectiva duma unidade primeira, divina. Assim, o Romantismo realiza uma dupla expansão: • espacial, ao explorar espaços novos (a floresta, o mar, a Itália arcádica e sensualista); • temporal, ao reconstruir uma Idade Média idealizada e um passado poético duma Alemanha mais imaginária do que real. 208 Esta mitificação é tão eficaz, que os lugares típicos da Alemanha medieval se transformam rapidamente em ícones do turismo organizado. Basta lembrar a popularidade do Reno (Rheinromantik) com os seus castelos e lendas, que surgem no Romantismo alemão como paisagem típica no sentido nacional e poético. Igualmente, as pequenas cidades medievais como Dinkelsbühl e Rotenburg ob der Tauber fazem as delícias dos turistas estrangeiros, e até as imitações oitocentistas como o palácio de Neuschwanstein de Luís II de Baviera (construído entre 1868-1886) continuam a atrair milhões de turistas todos os anos. Estes lugares criados pela mitologia romântica determinam ainda em grande parte a imagem da Alemanha no estrangeiro. A sua eficácia social deve-se a várias razões. Por um lado, a fusão de tendências filosófico-literárias e tradições populares tem um elevado valor afectivo. Por outro lado, a paisagem romântica é essencialmente nostálgica. Ao ignorar a indústria, a poluição e a miséria social da modernidade, o Romantismo oferece uma reconciliação entre natureza e história e a promessa duma ordem harmoniosa que, sendo metafísica, está para além do tempo e da morte. A pintura romântica, da natureza metafísica de Caspar David Friedrich (1774-1840) e Philipp Otto Runge (1777-1810) às cenas idílicas de Ludwig Richter (1803-1884) e Ernst Moritz Schwind (1804-1871), ilustra as várias facetas desta tradição que se transformaram rapidamente em símbolos nacionais. Ainda hoje em dia, a recorrência do adjectivo «romântico» no turismo alemão lembra esta identificação cuja «linguagem» repete sempre os mesmos elementos típicos: castelos e ruínas, casas em madeiramento (Fachwerk), rios, florestas, árvores como o carvalho e a tília, com as respectivas tradições populares. o postulado duma nova mitologia na Frühromantik, que se perfila contra a fragmentação da vida moderna e o horizonte da industrialização, é essencialmente utópico e transforma-se no início do século XIX numa mitologia retrospectiva. O trabalho dos irmãos Grimm será, neste sentido, a reconstrução duma mitologia popular (contos, lendas e tradições, Kinderund Hausmarchen, 1813-1815). A viragem do cosmopolitismo cultural setecentista para o projecto duma tradição nacional anuncia-se já nos respectivos títulos das grandes colectâneas de Herder (Stimmen der Volker in Liedern, com este título na 2: edição de 1807) e dos irmãos Grimm (Deutsche Sagen, 1816-1818). 20') 4.4 O Reno como cenário romântico o apro v itamento ideo lógico dum cenário ro mântico pode e tudar-se tamt~m na história do Reno. Para Georg Forster, a paisagem do Re no é ainda monó tona e cansati va, e , nos sítios ma is se lvagen ,até <me lancó li ca e terrÍvel» (B orch ardt 1953: 73-74). Com a Revol ução France a, este ri o tinha-se tornado num dos principai · pomos de di scórd ia entre a França e a Alemanha . Fronteira política entre os do is países de 'de 1795 , a proximidade da França na outra marge m do Re no provocou uma séri e de pan fletos e de canções com reivin d icações territo riais expl ícitas. ~ntretant o, autores ingleses como Ann Radcliffe (1764- 1823) e Lord B yron (1788-1 824) já tinham descobe rto a l1Iínas medievais e as paisagens românticas do Reno, criando com a suas descrições uma nova atracção turística para os vi aj antes ingleses no conti nente , Q uando o Congresso de Viena, em 1815, atribui a Re nânia à Prúss ia, estão reunidas as cond ições para o desenvolvimento do pri me iro fe nóme no dum turismo de massas em solo alemão. Com os barcos a vapor (ligação regular Kijl n-Mainz a paI1ir de 1827) e a instalação e uniformi zação das infra-estruturas (hotéis, restaurantes miradouros) e das modalidades da viagem no Reno, o número de turistas aumenta rapidamente. E m 1836, Karl B aedeker (180 1-18 59) pu blica a Rheinreise von Straj3burg bis Rotterdam que está na origem dos famosos gui as turísticos que servem ainda os viajantes anu ais. A romanti zação da paisagem deve-se às ruínas e aos m itos locais, sendo o mais conhecido o da Loreley inventado por Brentano e popu larizado por Heine e as numerosas adaptações musicais do seu famoso poema. A Rheinromallt ik tem consequências concretas ao nível turístico que con tin uarão, sem dúvida, pelo sécu lo XXI dentro. A transformação arquitectónica e social duma paisagem pelo tu rismo pode estudar-se também na Suíça, na A lemanha do Sul e nas ilhas do M ar do N orte. Durante o século XIX o Re no continua, apesar da sua ve11ente poética, a provocar emoções políticas. A chamad a crise do Ren o de 1840 (Rheinkrise), uma manifestação reivi ndicativa do nacionalismo francês e as respecllvas respos tas líricas do la lo a lemão no meadamenle o «R heí nlied» de N ikoJaus Becker de 1840 e a «Wacht am Rhein» de Max Schnecken burger de 184 1, que se tornou numa das canç ões patrióticas mais populares até à Primeira GuelTa Mundial , leva os dois países à beira duma confrontação militar. A concretização mon um ental da mitificação nacionalista do Re no, que se conj uga sem problemas com a tradi ção romântica, é a Germania do N iederwald perto de R lidesheim (18 83) que atrai ai nda actualme nte, doi s milhões de turistas por ano, tal como o Reno. sobretudo a sua parte «ro mâr1Lica» entre Koblenz e R üdeshcim. conti nua a movimentar visitantes alemães e estrangeiros em elevado nú mero. 210 4.5 A floresta alemã Um outro lugar tópico, não menos im portante, da identi dade nacional alemã é a floresta . A transfonnação românt ica da tl ores ta num espaço mítico já tem uma longa pré-história que remonta até à Gennania de Tácito (cf. Schama 1996 : 92 e segs.). As vicissitudes pelas quais es te manuscrito passou, são um exemplo da valorização ideológica du m símbolo nacionaI. A Germania, verdadeira «certidão de nascimento» da nação germânica, é descoberta no início do sécul o X V num claustro alemão, levada para Itál ia e impressa em Veneza em 1470; a primeira traéução alem ã data de 1496. O regresso do nacional -socialismo às raízes germân icas da Alem anha transforma o livro de T áci to nu m sím bolo da origem germ ânica. N uma curiosa troca de p romessas e exigências. o manuscrito entra, na época fascis ta numa odisseia entre H itl er e Mussolini culmi nando, durante a guerra, no saque do palácio do proprietário itali ano do manuscrito por parte das SS que tentam, em vão, levar o preci oso documento outra vez para a Alem anha. Aparece ainda, em 1943, uma edição alemã com um prefácio de Heinrich H immler que, parLi cularmen te interessado na legitimação histórica do nacional-socialismo, insiste na importância do passado e dos anciãos (germânicos) para um fu turo glorioso da Alemanha. o texto de Tác ito tomou-se, assim, num mito da origem nacional , como confirma também Plínio ao mencionar os carvalhos imensos e intactos nas fl orestas al emãs que datam da origem do mundo (vastitas intacta aevis et congenita mundo). A Gelmania desta tradição é um mundo natural, sem cidades (por oposição ao império ro mano), com uma religião ao ar livre, sem as instituições durla igreja (romana), onde rein am virtudes bélicas como a agressiv idade e a força físi ca, mas tam bém sociais como a simplicidade e a honestidade do homem natural. Na época do romantismo, que conLribuiu largamente para a revalorização mítica da floresta , grande parte das antigas florestas alemãs já não existem. A G uerra dos Tri nta Anos (1618-1648), a venda de madeira para a construção naval inglesa e francesa e a subsequente reflorestação com pinheiros nórdicos mais lucrativos tinham dest ru ído muitos dos carvalhais no século XIX . O que não impede minimamente a mitificação do carvalho, como nas nostálgicas encenações do Gottinger Hainbund (fundado em 1772) à procura dum passado mítico. Com as guerras de libertação na época de N apoleão, os carvalhos ganhai am um simbolismo político nacional, os voluntários trazem bolotas nos uniformes e as pilturas deste te mpo mostram frequentemente a árvore tradicional alemã. No quadro de Caspar David Friedrich, Der Chasseur im Walde de 18 13, aparece um soldado francês perdido numa imensa floresta (uma referênc ia à velha antinomia entre a A lemanha e o mundo galo-românico) , e os irm ãos G ri mm pub licam a partir de 1813 Altdeutsche Wiilder l , I o termo Wtilder designa desde o barroco colectâneas de te, tos di versos, nlas ganha no título dos irmãos Grimm em combinação com o adjectivo alldeulsch conotações específicas. 211 antologias de poesia medieval e de lendas e provérbios popula res. O sim bolismo da floresta nos Mdrchen dos irmãos Grimm mereceria um estudo à parte; a redescoberta da literatura medieval, o início da fi lologia germânica e a construção duma tradição popular permitem pelo menos ao nível cu ltural, a formação duma consciência nacional que politicamente ainda não existe. O mito da floresta como mito fundador da nação alemã continua durante os séculos XIX e XX. O pintor renano Johann W ilhelm Schirmer (1807-1863), «wesentlich der vaterIandischen Natur treu» na escolha dos seus motivos no dizer do Brockhaus de 1914, pinta em 1828 um quadro intitulado Deutscher Urwald com imponentes carvalhos que evocam a tradição da identidade germânica. Por outro lado, o carvalho que aparece já em Tácito e que é revalorizado no fim do século xvrn como símbolo da nacionalidade alemã (força, raízes fundas, continuidade e sabedoria), é oposto mui tas vezes à tília, o lugar do sonho amoroso desde a Idade Média. Esta polaridade simbólica ilustra os dois lados do Rom antismo alemão : poesia, se ntimento e saber filosófico, por um lado, e agressividade nacional ista, por outro. No século XIX começam também as medidas oficiais de protecção das florestas, nomeadamente dos carvalhos. Como diz Wi lhelm He inrich R iehl (1823-1897), jornalista, historiador e, nos últimos anos da sua vida, conservador dos monumentos artísticos e históricos da Baviera, na sua popular Naturgeschichte des Volkes, que se transforma, com as suas numerosas reedições, num arsenal não só da ideologia anti-urbana e anti-moderni::;ta, mas também do anti-semitismo moderno: Ein Dorf ohne Wald 1St wie eine Stadt ohne historische Bauwerke, ohne Denkmaler, ohne Kunstsammlungen, ohne Theater und Musik, kurz ohne gemütliche und künstlerische Anregung. (apud Schama 1996: 13 I) Bismarck, o controverso fundador do Reich, afirma ter tomado as suas decisões mais importantes na solidão, na floresta (Welchert 1965: 10), e o valor identificativo deste espaço mítico é tão grande e persistente que mesmo Helmut Kohl achou-se obrigado a apresentar, na conferência mundial das Nações Unidas sobre os problemas do ambiente em Junho de 1997, uma proposta alemã para a protecção global das florestas. Artistas contemporâneos comoAnselm Kiefer (cf. Schama 1996: 138 e segs.) e Joseph Beuys também não fogem a esta tradição. Em 1982, Joseph Beuys (1921-1986) apresenta a sua con tri buição para a documenta, uma conceituada mostra periódica de al1e moderna em Kassel, sob forma dum prnj ec to que prevê a plantação de 7000 carvalhos na cidade, consideran do a florestação como «redenção» ao transformar o mundo <<Duma gran de fl oresta» (Schama 1996: 141-142). O artista participa també m no congresso fu ndador do Partido dos Verdes e candidata-se nas suas li Slas para as eleições fede rais de 1980. 212 Já em 1971, Beuys se tinha referido ao mesmo espaço mítico numa acção directa que visava ultrapassar as normas tradicionais da comunicação cultural. Para impedir a transformação duma floresta perto de Düsseldorf em campos de ténis, Beuys e os seus alunos varreram ritualmente a zona e pintaram cruzes e círculos nas árvores ameaçadas para evocar os antigos espíritos elementares. Todas estas acções e manifestações visam ainda a reconciliação romântica de história e natureza. E m 1965, por exemplo, é publicado um livro sobre Bismarck com o título significativo Über die Natur, que apresenta o artesão da unidade alemã como amigo sentimental das flores e animais e grande protector do meio ambiente (Welchert 1965). Numa carta à mulher de 1851, Bismarck concretiza os principais elementos do seu horizonte ideológico: c.. ) mir ist. ais wenn man an einem schbnen Septembel1age das gelbwerdende Laub betrachtet; gesund und heiter, aber etwas Wehmut, etwas Heimweh, Sehnsucht nach Wald, See, Wiese, dir und den Kindem, alies mit Sonnenuntergang und Beethovenscher Symphonie vermischt. (3S) Cada elemento desta enumeração tem o seu significado tradicional: o mito da família, o «Hei/1nveh» (palavra tipicamente alemã que permite só traduções aproximativas), a melancolia que indica a consciência do carácter utópico da natureza id íl ica, o pôr-do-sol que continua, até nas suas formas mais trivializadas (postal, publicidade turística e outra) a iluminar o sentimentalismo burguês, e finalmente Beethoven, como Goethe e Schiller, uma das grandes figuras directrizes do humanismo idealista oitocentista. 4.6 A natureza burguesa e os seus espaços específicos A sucessão do jardim francês , reservado à corte e à aristocracia, pelo parque inglês já roais aberto (o Englische Garten em Munique é instalado no fim do século XV III) e pelo passeio público do século XIX mostra a importância ideo lógica da construção de espaços <<naturais» que completam e reflectem a própria organização social. Na época da Aufkldrung, a burguesia privilegia ainda a natureza cultivada e o valor estético do útil que se prolonga na instituição de museus de história naturaL Mas com o Romantismo, os lugares llaturais diversificam-se. Um inventário descritivo da pintura romântica daria uma ideia bastante completa da extrema variedade de motivos naturais e das respectivas dimensões simbólicas . .Jo panorama abrangente ao olhar dajanela aparecem uma série de esquemas perceptivos que situam o observador numa configuração simból ica específica. Assim, o Wanderer über dem Nebelmeer (1818) de Caspar David Friedrich 2 13 mostra o sujeito monumental em fac e duma paisagem montanhosa iluminada pela luz divina, e'lquanto o Monch am Meu de 1809 reduz a figura consideravelmente e apresenta céu e mar como reflexos da omnipo tência natural. 4.6.1 O espectáculo da natureza no Panorama Enquanto os quadros de l-;riedrich en contram, sobretudo nos últimos anos da sua vida, uma certa incompreens ão junto do grande público e da crítica, uma outra forma da pintura paisagística teve. desde o início, um êxito enorme. O Panorama, que surgiu no fim do séc ulo XVIII na I ng late rra e se multiplicou rapidamente por todas as grandes cidades da Euro pa central, ilustra bastante bem um novo paradi gma da apreensão da natureza. Uma pintura circular (ou semi-circular), instalada num edifício redondo ilumi nado por cima e com uma plataforma para os espectadores no centro, cliava uma ilusão de realidade que deve ter, segundo as testemu nh as da época, causado uma impressão avassaladora. Se os primeiros panoramas na Alemanha são ainda de orige m inglesa (Ein grosses Natur-Cemdhlde der weltberühmten Stadt London, Hamburg 1799), os pintores alemães viram-se cedo para este novo mediul11. Uma primeira tentativa - uma vista de Roma (Berlin 1800) - levanta aind a problemas técnicos (iluminação) e cogni tivos (habituação à visão circular) (cf. Oettermann 1980: 144-221). Um projecLo panoramálico do jovem Caspar David Friedrich (1810) não se concretiza, enquanto o arquitecto Karl Fri edrich Schinkel (1781-1841) pinta em quatro meses um grande PaJ10rama von Palenno (1808) que é mostrado depois com gmnde êx ito e m Berlim e outras cidades alemãs. Os panoramas das décadas seguin tes mostra m prin cipa lmente ciJades conhecidas (Hamburgo, Frankfurt. Roma, mas també m Constantinopla e o Cairo), a natureza selvagem (os vulcões Etna e Vesúvio, os Alpt::s) e cenas históricas (guerras napoleónicas). Já em 1833 aparece o Pleorama des Rheins von Mainz bis St. Coar, no qual os espectadores, instalados num barco, assistem durante uma hora à passagem de duas telas late rais com as margens do Reno. A publicidade salienta as vantagens desta «vi agem» (independência do mau tempo e nenhum perigo de naufrágio) e in siste no aspecto patriótico do tema: Der Gegenstand ais vaterHindische Gegend wird nicht nur fur alle diejenigen von Interesse seyn, welche die ~eise dahin noch untemehmen wollen, sondem auch fur alie, die bereits dort waren, und denen diese Nachreise nur eine erfreuliche Erinnerung seyn kann. (apud Oettermann 1980. 169) 214 Enqu anto a populaJidade e a subsequente produção de novas telas estagnam a partir de 1850, aAle manha vive de 1880 a 1900 um novo apogeu desta arte popular. Financiados por sociedades anónimas com e levada capacidade financeira , novos panoramas são instalados nas principais cidades do império e atraem , ao longo destes anos , ma is d" 1O mil bõ s de espectadores. Em Hamburgo, concorrem três instituições, oito em Berlim e em todas as grandes exposições industriais da época são igualmente mostrados panoramas. Por outro lado, o pano rama corresponde às orientações ideol óg icas do império . O patriotis mo moderado do B iedenneier transforma-se agora num imperialismo explícito que , nes ta altura, se pratica abertamente na F rança e na -~nglaterra . O National-Palloral71 a em Berl im mostra de prefe rência cenas da guerra franco-alemã de 1870/1871 , tal como oSedan-Panorama na meSIT1 J cidade que glorifica a bata lha decisiva de Sedan (l.9 .1870). Os p intores encarregados do projecto, sob a direcção de A nton von Wernci (1843-1915), visitaram clandestiname nte o campo de batalha e estudaram as pinturas frances2.s sobre o mesmo tema. Concluído em 1883, este panorama, no qual os espectadores eram instalados numa plataforma rotativa, estabeleceu-se como um a das grandes atracções tur ísticas da capital durante 20 2nos. A crítica da época salienta o re alismo incomparável, mas também a moderação do:: pintores na representação do sangue e dos cadáveres . Um outro panorama berlinense, in augurado em 1885, tematizou durante três anos cenas das colónias alemãs , nomeadamente uma expedição punitiva nos Camarões, enquan to a Hohenzollerngalerie glorificou a história prussiana e a mar in ha ale mã. U m dos pa noramas mais lucrativos, porém, foi uma vista de Jeru salém com a crucificação de C risto , nintado por B runo Pigelhein (1884-1894) em 1886, que junta o monumentalismo pomposo da pintura de salão ao realismo «c ientífico» que garante a verdade da representação. A~..;im, a Zeitschriftfiir Bildende Kunstvê neste panorama o «triunfo da arte moderna realista»: Erst das lahrhundert der exakten W issen s,chaft , der Photographie und der Eisen bahnen ermbglichte die umfassenden Studien , welche die wissensc haftli c he Grundlage des groBen Werkes bilden . Nur ein Kün s tler, der an Ort und Stelle die grundlichsten landschaftlichen, volkstypischen und archaologischen Forschungen gemacht hatte, vermochte den unzahlige male dargestellten Gegenstand in so durchau s neuer Weise behandeln . (apud Oettermann 1980: 217) Este realismo significa, no entanto, o fim do panorama. A crescente popularidade da fotografia e do cinema, que começa a aparecer nas cidades alemãs a partir de 1895 , por um lado, e, por outro, a própria evolução das artes plásticas, qu e se afastam, com o expF~ssionismo e a pintura abstracta, cada vez mais do realismo tradicional, levam ao encerramento dos panoramas. 215 Os panoramas actuais (Einsiedeln, Altbtting e o Bauernkriegspanorama de Werner Tübke - pintado de 1976 a 1989 - em Bad Frankenhausen) que atraem milhões de visitantes, oferecem ainda a possibilidade de viver, embora já num contexto cultural completamente diferente, uma experiência visual que proporcionou a um século inteiro a ilusão duma apropriação total da natureza e da história. O ambiente idílico e opathos, que dominam a pintura paisagística alemã no século XIX, integram-se sem grandes problemas na sociedade burguesa; o triunfo económico e político desta burguesia provoca reacções artísticas que põem termo à estética da representação na qual a mimesis da natureza tinha ainda um papel central. 4.6.2 Espaços naturais recriativos 110 século XIX A comercialização da representação da paisagem, tal como a integração da natureza no espaço social, pressupõe a separação da cidade e do campo; à expulsão da natureza das cidades corresponde o seu regresso como espaço verde (<<soziales Grün») (Kbnig 1996: 321). A cultura do passeio (Spaziergang) que se estabelece no fim do século XVIII, exprime as normas burguesas como reprodução mítica duma totalidade que a prática profissional e comercial nega cada vez mais. Enquanto os primeiros passeios públicos são ainda instalados por iniciativa dos soberanos, os burgueses do século XIX começam a criar Verschonerungsvereine e outras associações filantrópicas que financiam novos espaços recriativos e terapêuticos. A abertura do Prater em Viena (1766) e do Tiergarten em Berlim (1772) ao grande público é acompanhada pela exigência burguesa de criar novos jardins públicos. A instalação destes jardins tomou-se possível, no início do século XIX, com a remoção dos muros e fortificações que circundavam as cidades. Na base deste movimento para fora está a exploração das zonas rurais à volta das cidades: Die Aneignung der Heimat, der Spaziergang in die vertraute Umgebung, war für die Zeit um 1800 das eigentlich Neue. Mit Ausflügen, Picknicks, Landpartien und Spaziergangen wurde die Umgebung erkundet. (Kbnig 1996: 15) Ao contrário do passeio aristocrático, que representava ainda a hierarquia da corte, o Spaziergang do burguês integra os espaços naturais numa nova ética do trabalho e do descanso correspondente. A estética da natureza completa e substitui a prática religiosa por hábitos que consolidam a família (Sonntagsspaziergang) e a pretendida harmonia de natureza interior e exterior. 216 Por outro lado, a cultura do passeio instituiu também uma diferenciação genérica de papéis sociais e dos respectivos corpos (masculino e feminino); a vida nos espaços naturais prolonga e diversifica os esquemas essenciais da sociedade burguesa que se delimita tanto da aristocracia improdutiva como do povo inculto. O saneamento básico das cidades, que se realiza no decorrer do século XIX, inclui também as zonas verdes dentro e fora das cidades que se encontram ainda cheias de lixo, excrementos e cadáveres animais. A natureza recriativa exige pureza e limpeza, a sua estética não tolera os incómodos da civilização e ainda menos os resíduos (humanos e materiais) da produção industrial. A preferência pela natureza idílica explica-se também pelo facto de na Alemanha nunca ter existido uma cultura urbana como em Roma ou, na modernidade, em Paris e Londres. Formas reduzidas desta urbanidade modema verificam-se unicamente em Viena, capital do império Austro-Húngaro, e na Berlim do fim-de-século e dos anos vinte. O que predomina numa Alemanha industrializada tardiamente é a pequena cidade, o lugar duma vida burguesa pacata e idílica, tal como aparece na pintura do Biedermeier e nos quadros ainda muito populares de Carl Spitzweg (1808-1885). Esta ausência duma cultura urbana modema traz consigo a valorização dos espaços naturais, não só das florestas, mas também do pequeno quintal arrendado nos arredores da cidade. Esta instituição tipicamente alemã, o Schrebergarten ou Kleingarten que surge a partir de 1864, assim denominado em memória do médico e pedagogo Daniel GottJob Moritz Schreber (1808-1861), existe ainda em muitas regiões da Alemanha; a sua estrutura característica (cerca de 300m2 ) que junta o agradável (flores, sombra, sossego, relva, um pequeno pavilhão em madeira) ao útil (legumes e fruta, trabalho ao ar livre), é uma versão em miniatura do sonho burguês duma harmonia total entre trabalho e natureza, espaço saudável e vida humana. A parcela individual numa zona «verde pública» (que tem, desde 1919, o seu próprio estatuto jurídico) recria em poucos metros quadrados um universo aparentemente intacto e controlável. Mas, com a expansão demográfica e espacial das cidades e a poluição do ambiente, o Schrebergarten torna-se numa fOlma obsoleta de evasão e a progressiva industrialização dos lazeres cria outros cenários naturais que são comercializáveis de uma forma muito mais rentável e eficaz. 4.7 A natureza compensatória Em face do aspecto representativo do parque barroco, por um lado, e da função crítica do conceito de natureza na ideologia burguesa, por outro, não 217 ". é de admirar que o jardim ocupe um lugar importante na di sc ussão pública do século xvrn (cf. W immer 1989: 426 e segs.). Para os teó ricos ingleses, o gardening torna-se uma forma de arte, e os filósofos alemães acompanham esta valorização da Gartenkunst, que implica igualmente u ma nova visão global da natureza. No poema «uer Spaziergang» de Friedrich Schiller, o viandante, «entflohn des Zimmers Gefangnis/U nd dem engen Gesprach» , refugia-se numa sagrada e eterna natureza que se apresenta nas suas mais variadas n1anifestações como uma «Freundliche Schrift des Gesetzes, des menschenerhaltenden Gottes». Para Schiller, a relação entre o ser humano e i::: natureza está sujeita à evolução histórica; a «liberdade» da era burguesa permite não só uma nova apreciação estética da natureza, mas implica também, para quem esquece as suas leis, o perigo do caos e da anarquia social. Numa perspectiva mais concreta, o filósofo Christi an Cay Lorenz H irschfeld (1742-1792), cuja Theorie der C;artenkunst (5 vols ., 1779-1785) marcou fortemente a estética da natureza no fim do século xvrn, salie nta a função compensatória do ambiente natural da paisagem serena e agradável do Heeschenberg perto de K iel: Dieser Ort schien nach seinem Charakter und nach seinen Wirkungen vorzüglich von der N atur zum Ruheplatz eines Geistes bestimmt, der von den grossen Geschaften der We!t zurückkehrt zu der Einsamkeit des geliebten Landes, der seinen Abend im eigenen ruhigen Schatten felem will, unter dem N achgenuss seiner offentlichen Verdienste, und unter der stillen Wonne eines wohltatigen Privatlebens. Kein Sturm der Hofe, kein Zwist der Konige mehr; die ganze Welt scheint von hier aus besanftigt und befriedigt. Alle S zenen umher winken ibm Ruhe und sanfte Erquickung zu. (Borchardt 1953: 15) Integrada no ritmo da vida pública e privada, esta paisagem carece das características do prospecto romântico: «Keine prachtige, der Bewunderung oder des Erstaunens würdige Gegenstande, keine Gebürge, keine Felsen, keine von ihnen herabhangende Walder, keine Aussichten auf die U nermesslichkeit des Meeres» (ib.: 14), mas a solidão da floresta e o «silêncio da natureza que respira paz» e harmonia. Nas descrições de Hirschfeld perfilam-se claramente as duas vertentes da função compensatória da natureza, tal como prevalecem até hoje: o aspecto pitoresco, grandioso e terrível dos fenómenos naturais que provoca emoções fortes e será, por isso, reservado para ocasiões especiais, e a natureza amena e agrad:ível cujos efeitos benéficos são integrados na vida quotidiana. Neste sentido, o arquitecto paisagista Leberecht Migge ( 188 1-1935) exige a participação activa dos utentes na plantação do jardim (Garten-D ilettan218 tism us) a fi m de com pensar os efeitos nocivos e descrutivos da civilização moderna. O povo devi a aproveitar os jardins públi.cos também durante a semana - « W ir brauchen keine SonntagsgarLcn» (Wim mer 1989: 364) - e por isso ter o dire ito de pisar a relva, hrincar e dançar no jardim e tomar banho nos iagos. A pal1 icipação activa na instalação e utilização do jardim está também no centro das acti\ idades das associações que se organizam depois da morte do já citado médico Schreber. M as estes peq uenos quintais ou hortas fora da cidade, concebidos como uma altern ativa às formas pouco saudáveis da vida urbana, tornam-se, também, com a revolução ind ustrial e o crescimento acelerado dos centros urbanos, num meio de evasão que opõe o trabalho profis sional muitas vezes desgastante ao Feierabelld recriativo. Curiosamente, esta prática é retomada ultimamente pelas famílias turcas nas zonas industriais do Ruhr que instalam em ttrenos abandonados um a pequena Heimat onde podem cultivar os legumes tradicionai s e conviver com família e amigos (cr. a reportagem «Türkische G arte n» de Frauke H unfeld e Brigitte K raemer no Zeitmagazin de 18.4.1997, pp. 42-47): «Wir Türken sind ein ~I eil des Ruhrgebie ts geworden », di z um destes turcos que passaram mais tempo naAJ emanha do que na Turquia, «D eutsch land hat uns verandert, und wir haben D eutsch lan d verandert. M e ine Enkelkinder sollen hier grol3 werden» (ib.: 47). A função compen sató ria do ambiente natural do Schrebergarten é ainda resultado áum trabalho individual que transformê, pl an ta e recolhe os frutos deste esforço. O que se paga é a ocupação do terreno e não os efeitos benéficos do jardim. Rec riar estes efeitos num ambiente artificialjá permite um acesso mais rápido às compensações que a natureza pode oferecer e isto a números elevados de pessoas que podem ainda escolher entre cenários diferentes. A s;mulação de ambien tes naturai , porém , não é só uma manifestação do processo de modernização, como afirma G roBklaus (19 93: 14). As funções por ele apontadas (anular a di stância temporal e geográfica, transformar espaços longínquos e difere ntes em espaços interiores simultâneos) já se verificam em épocas pré-industriais; simular um ambiente aparentemente natural é uma técnica cul tural com uma longa tradição. As fontes, grutas e lagos do parque barroco eram tão artifi ciais como as colinas e riachos do parque inglês. As paisagens turísticas modernas, porém, obedeciam aos imperativos duma indústria que formou e transformou cidades e regiões inteiras. M as, neste contexto, o carácter artificial do ambiente natural era ainda camuflado, a transição imperceptível. A redução considerável da superfície agrícola e florestal na segunda metade deste século, a mecanização da agricultura e o bai xo valor estético e afectivo das monoculturas exige m novas formas de ence'fração. 219 Uma destas formas é o aproveitamento e a transformação da natureza concreta em realidade mediática. Desde 1994, vários canais de televisão apresentam durante o dia inteiro as «sete maravilhas do mundo», transportando também o público alemão para os lugares mais espectaculares do pl aneta. Por outro lado, já está em elaboração, desde 1%5, uma rede informática chamada Terravision, um projecto americano-alemão que pretende nada mais dada menos do que criar um segundo mundo digitalizado que per'Dita viajar no tempo e no espaço, isto é, através das suas representações arquivadas e preparadas para uma utilização interactiva. Mas também o turismo em zonas exóticas, antes exclusivamente reservadas a uma clientela rica (Caraíbas, Pacífico, etc.), por um lado, e a instalação de grandes parques de lazer (Freizeitparks) na Alemanha, por outro, visam um alargamento da oferta paisagística. Assim o Grugapark de ESSF;fl, uma das instalações mais antigas deste género, incluiu não só um jardim japonês, americano e mediterrânico, mas também uma paisagem alpina com cascata. A publicidade (cf. Grugapark Aktuell, 8." edição, Junho-Julho 1997, p. 4) insiste particularmente na função compensatória deste conjunto: Warum in die Feme schweifen, im Grugapark Essen erleben Sie eine Reise durch die Welt. Mil exotischen Tieren und Pf1anzen in einer der grbf3ten Freizeitanlagen - eine in Jahrzehnten gewachsene idy llische Parklandschaft für Ruhe und Erholung, Sport und Spie1, Frohsinn und Abenteuer. Vergessen Sie den grauen AJltag. Gbnnen Sie sich ein paar schbne Stunden. Os novos parques que, por razões de clima e poluição industrial, são instalados em grande parte em áreas cobertas, também incluem elementos tropicais e exóticos (plantas, animais, temperatura adequada), estruturas de divertimen lo (parques aquáticos, instalações desportivas, etc.) e de consumo (cafés, bares, restaurantes, supermercados) e recriam, assim, UIi1 conjunto harmonioso de «natureza», férias e consumo. Enquanto a multiplicação dos canais de televisão e a evolução rápida da realidade virtual, que oferecem não só desporto, música e ilfonnação, mas também viagens e descobertas, limitam o espectador a uma realidade mediática integrada no ambiente familiar, a excursão para os novos parques tem ainda uma dimensão concreta e sensual que explica o êxito destes empreendimentos. A fórmula para estas «novas» experi2ncias é a do Erlebnistourismus (e, na sua variante mais exclusiva, do Abenteuer- und Risikotourismus) que deve proporcionar o que a monotonia da vida quotidiana já não fornece. O «Erlebnis)), a experiência da diferença e da alteridade é, porém, reduzido à disponibilidade de elementos estandardizados e a uma regularidade que limita também o valor afectivo dum ambiente acessível para toda a gente, a horas certas e preço fixo. Por outro lado. o novo Freizeitpark é um fenómeno internacional (nos países ind us triali zados) que prescinde largamente de componentes regionais e nacionais em favor de ambientes estereotipados na sequência da globalização da civilização ocidental. Esta uniformização da natureza simulada resulta, sem dúvida, como GroBklaus salienta (1993), da perda de espaços naturais e da destruição geral do ambiente, mas a desconexão actual de natureza e ident idade nacional, cuja identificação teve tantos efeitos duvidosos na Alemanha, poderia ter também consequências positivas. Além de proporcionar descanso e divertimento, estes parques podem transformar-se em lugares de encontro e convívio que permitam também a participação em manifestações culturais, sem as barreiras sociais que limitam o público das instituições tradicionais como a ópera e o teatro. A integração de ambientes naturais e culturais pode favorecer novas formas de interacção social e, até, uma relação diferente com o espaço a que se chama Heimat. A redefin ição deste conceito, isento das antigas conotações ideológicas, já se verifica na literatura e crítica (a nova He imatliteratu/~ sobretudo na Áustria e na Su íça) e no cinema. Um papel pioneiro nesta valorização da Heimat no contexto da história do quotidiano e da cultura popular teve o filme Heimat de Edgar Reitz que, rodado de 1981 a 1984, apresenta em mais de 15 horas o mundo limitado da terra natal e, ao mesmo tempo, a instrumentalização e a des truição deste ambiente idílico e dos respectivos sentimentos. Nesta perspectiva, Reitz cita o filme lleimat (1938) de Carl Froelich (1875-1953), um cineasta ao serviço do nacional-socialismo, que reivindicou o conceito para a ideologia fascista. Reitz remete, pelo contrário, para a dimensão utópica de um mundo que, tal como a paisagem romântica, não deixa de ter uma função crítica e compensatória na actual comercialização global da vida social e cultural. Bibliografia aconselhada Além das antologias de Borchardt (1953) e Schafer/Storch (1993), pode-se recorrer também, numa perspectiva que abrange outros países como a Inglaterra e os Estados Unidos, aos estudos de Wimmer (1989) e Schama (1996); para uma abordagem mais analítica numa perspectiva interdisciplinar recomenda-se Das Naturbild des Menschen (1982) de Jbrg Zimmermann . Neste conjunto de estudos de vários autores destacam-se os artigos de H ans Hollander (<<Weltentwürfe neuzeitlicher Landschaftsmalerei», pp. 183-224) e do próprio Jbrg Zimmermann (<<Zur Geschichte des asthetischen Na turbegriffs», pp. J 18-154). Sobre as modalidades do turismo moderno infor m a G abriele M . Knoll: «Reisen aIs Geschaft. Die Anfange des organi si crten Tourismus», in B ausinger 1991: 336-343. 221 Actividades propostas • Ler e interp retar o poema «Der Spaziergang» de Friedrich Schiller: • Resum ir os argumentos principa is nos ex tractos seguin tes do artigo «Mit Caspar Davi d Friedrich ins Malboro Country. D ie Deutsc hen und ihre Sehnsucht nach der Natur» (Bolz 1996: 189-205) de Peter Wippermann (pp. 193,204): M it der Industrialisierung und imOler strengeren Arbe itsteilung gegen Ende des achtzehnten Jahrhunderts en t 'le ht so etwas wie ein LoslOseli der W ünsche aus Konventionen der realen L eben s umstande. D ie Z weck- und Funktionsfrei he il 1St ei ne der wesen tlichen VOI aussetzungen für unsere modeme bildende Kunst, die nicht mehl- nach Reprasentation. sondem nach S timmungsbildern un d Ausdruckswerten sucht. ( ... ) Stimmung ware aIs Einhei tsbeziehu~g des Menschen und der LandschaftsdarstelIung, ais Z usamme nh;mg von We llanschaLung und Lebcnsgefühl noch vor dem Zustand von ';\ToIlen und Erken ne n zu definieren. ( ... ) Die so bestimmte Landsch aft ist ein fi ktionaJer Ideal raum, der d ie VorstelIung einer erhobenen Welt vermittelt. F unktion dieser Landschaft ist einzig, auf den SeeIenzwtand des Betrachters angenehm zu wirken. Es handeIt sich ais o um ein frühes Konzept von dem, was heute ai s «Emotion al Design» in der M arketingkommunikation eine zentrale R olle spielt. Coleccionar em revistas alemãs e portuguesas exem plos de pub licidade que util izem e lementos raturais e interp retar o significado mítico destes elementos (paraíso, amor, aven tura, liberdade, etc.). A. O. 222 SOdW3i "AI 8P81 e S181 ap equemaIV V -1 Resumo Define-se a periodização problemática e a perspectivação historiográfica da Alemanha, entre 1815 e 1848, e descrevem-se as figuras simbólicas da identidade alemã no contexto da evolução política. Salienta-se a relação entre a liberalização económica e as modificações no sector público e explicam-se os efeitos da «dupla revolução» alemã. Objectivos • Distinguir as três principais designações para a época compreendida entre 1815 e 1848. • Entender a evolução das estruturas políticas e a problemática elaboração da identidade nacional alemã. • Caracterizar o crescimento demográfico e a liberalização económica. • Explicar os motivos da mobilização cultural e a evolução do espaço público. Identificar o conceito da «dupla revolução» e os seus efeitos para a Alemanha da segunda metade do século XIX. 227 A época entre o Congresso de Viena e a Revolução de Março de 1848 representa uma fase importante na constituição da nação alemã e das estruturas políticas e económicas que caracterizam o estado e a sociedade modernos.A '.<..evolução Francesa e as subsequentes invasões francesas tiveram efeitos mais importantes na Alemanha do que em outros países europeus. Ao destruir o obsoleto Sacro Império Romano-Germânico e ao evidenciar a superioridade de modelos políticos, sociais e militares diferentes, a França revolucionária colocou os territórios alemães perante a necessidade de reformas que, no contexto conservador do poder político, tinham sido sistematicamente adiadas. No entanto, a modernização sócio-económica, a mobilização cultural e a crescente tensão política culminaram, em meados do século, numa situação de crise generalizada que Wehler descreve na perspectiva de uma «dupla revolução» (1987: 583): Tatsachlich aber stand Deutschland an der Schwelle zweier Revolutionen: der erfolgreichen Industriellen Revolution und der scheitemden politischen Revolution mit dennoch irreversiblen positiven Konsequenzen. Diese «Doppelrevolution» trieb den gesamtdeutschen TransformationsprozeJ3 in eine neue Phase der modemen deutschen Geschichte hinein. 1.1 Periodização e perspectivações historiográficas A complexidade da época, o seu carácter transitório e as suas múltiplas contradições no jogo entre Restauração e Revolução dificultaram e polarizaram as sucessivas abordagens historiográficas deste período. De facto, a época nunca se reconheceu numa etiqueta, numa designação geralmente aceite e os numerosos estudos historiográficos perpetuam esta multiplicidade de perspectivas e pontos de vista. Prevalecem, porém, três designações Vornúirz, Resfauration, Biedermeier - que caracterizam duma maneira significativa aspectos e períodos essenciais desta época. Não podemos esquecer, no entanto, que esta periodização e as respectivas terminologias por ela produzidas, estão sujeitas ao dilema básico de qualquer fenomenologia histórica: a abstracção que constrói linhas de evolução, cronologias e significados centrais, revela-se extremamente selectiva e redutora, enquanto a mera acumulação de factos, objectos e materiais (que permitiria uma melhor aproximação à realidade do passado) corre o risco de acabar na contingência total. Face a esta situação, os significados historiográficos só podem ter um valor heurístico, remetendo não só para um passado, mas também para um presente que precisa dum passado específico. 229 o espaço alemão de 1815 a 1848 oferece um exemplo particularmente significativo deste duplo carácter da historiografia cultural e social, que constrói o passado a partir dum projecto que visa o presente e o futuro da instituição científica e da sociedade que a suporta. Assim, os estudos na área da história cultural, literária e social integram-se, desde meados do século XIX, nas grandes tendências antinómicas que têm vindo a caracterizar, até hoje, a reflexão sobre os vários níveis da sociedade alemã. o conceito de Vormarz, que se refere à revolução de Março de 1848, implica uma perspectivação que privilegia as correntes críticas e progressistas com base numa cronologia político-histórica na linha do mito do progresso da sociedade. O conceito é utilizado duma maneira variável, tanto para a época de 1815 a 1848, como para os anos entre a revolução de Julho (1830) e a revolução de Março (1848), e ainda, mais especificamente, para os oito anos particu larmente agitados que antecedem esta revolução. A perspectiva do Vormarz reduz uma época complexa e contraditória a uma linha evolutiva que se prolonga, implícita ou explicitamente, até um presente que se entende como continuação e corolário (sempre adiado) deste passado pré-revolucionário. No entanto, devido à importância da dupla revolução de meados do século para o futuro turno da Alemanha, a designação de Vormarz, utilizada com as devidas cautelas hennenêuticas, justifica-se para uma abordagem sócio-cultural da lenta formação da Alemanha moderna. Assim, a Revolução Francesa e a dupla revolução (industrial e política, com o primeiro esboço duma democracia parlamentar) de 1848 criaram as bases dum projecto sócio-cultural e económico, cujos aspectos problemáticos (a representatividade de eleições às vezes pouco concorridas, a globalização económica e as vicissitudes da classe política, entre outros), no findar do século XX, se tornam cada vez mais visíveis. O tenno Restauração insiste no restabelecimento do poder absolutista a partir do Congresso de Viena e suas consequências: censura, perseguição das tendências constitucionalistas e emancipatórias, discriminação dos judeus e francofobia agressiva. Na prática, a restauração tem sobretudo um efeito retardador, já que ela não põe em questão alguns dos resultados principais da época revolucionária, tais como uma centralização territorial relativa e a integração ideológica do «povo» num projecto sócio-cultural que se apresenta cada vez mais como projecto nacional. Por outro lado, a restauração conhece, entre 1815 e 1848, várias fases e tendências até contraditórias. Apesar de terem revelado abertura à introdução do sistema constitucionalista durante o Congresso de Viena, os dois Estados mais importantes da Liga Alemã, a Prússia e a Áustria, recusam cada vez mais uma representação política significativa da burguesia e do povo. Neste sentido, a política da Liga é uma reacção às tendências gerais de 230 uma Europa cujos sistemas políticos se adaptam mais ou menos facilmente à realidade complexa do moderno estado industrializado. Biedermeier designa, em primeiro lugar, um estilo de vida e as suas manifestações materiais na arquitectura, nas artes plásticas e nas artes aplicadas. Utilizado principalmente para o período compreendido entre 1815 e 1835, o nome surge na revista Fliegende B/atter (1855-1857) numa série de poemas atribuídos a uma personagem letárgica e indiferente às grandes questões políticas e torna-se particulannente popular na perspectiva nostálgica da segunda metade do século. NumaAlemanha em plena revolução industrial e em permanente agitação política e social, a época relativamente pacífica entre o fim das guelTas napoleónicas e o fracasso da revolução nacional surge como essencialmente idílica e estável. De facto, a democratização de determinados valores (bem-estar e conforto, beleza, comunicação) e a eclosão duma cultura centrada no ambiente familiar e nas respectivas instituições públicas (imprensa, bibliotecas e gabinetes de leitura, teatros, museus, etc.) favorece a imagem dum passado pré-industrial idealizado que, ainda hoje em dia, é evocado e apreciado. Em termos gerais, o Biedermeier pode ser considerado como uma manifestação original e qualitativamente importante da cultura burguesa, de uma classe cada vez mais consciente dos seus valores, mas ainda à margem do poder político e à procura de uma identidade nacional. 1.2 Evolução das estruturas políticas e da identidade nacional o resultado do longo processo negocial do Congresso de Viena, que se prolonga de I de Setembro de 1814 a 9 de Junho de 1815, será a Europa das velhas monarquias pré-revolucionárias, cujo equilíbrio precário é garantido pela SantaAliança entre a Rússia, a Áustria e a Prússia. Embora peremptório na restauração dos regimes absolutistas, o Congresso procede a algumas modificações telTitoriais, que, sobretudo no espaço alemão, virão a influenciar a evolução futura dos antigos estados do Sacro Império. Por um lado, a Liga Alemã (Deutscher Bund) que ocupa agora o lugar do antigo império, reduz a fragmentação territorial extrema segundo o modelo federativo do Rheinbwul de 1806, resultante da aliança de mais de 20 Estados do Sul e Centro da Alemanha e a França napoleónica. A nova Liga, cuja assembleia está sediada em Frankfurt, inclui 35 territórios soberanos e 4 cidades imperiais livres, o que significa um passo decisivo no sentido da unificação económica e administrativa da Alemanha (veja-se a figura que a seguir se reproduz segundo Gbrtemaker 1989: 78). Por outro lado, as recompensas territoriais obtidas pelos principais vencedores de Napoleão criam uma situação de bipolarização hegemónica, que se transformará, na segunda metade do século, num conflito aberto. 231 - Grenze des deUISChen Ilundes .1 I, ,\1, A Liga Alemã depois de 1815 Ao incorporar a Vestefálía católica e chegando, assim, ao Reno, a Prússia protestante deixa de ser uma potência oriental relativamente homogénea em termos sócio-culturais. A Áustria, ao retirar-se do Sul da Alemanha e ao ganhar novos territórios na Itália e nos Balcãs, acentua o seu carácter multinacional, o que vai preparar a divisão dos dois impérios, consumada definitivamente, depois da guerra de 1866 entre a Prússia e a Áustria, com a fundação do Reich sob liderança prussiana em 1871. Entre 1815 e 1848, porém, a Áustria ainda domina a aplicação das decisões restritivas do Congresso de Viena. O complexo sistema repressivo, reforçado e alargado várias vezes, é representado pelo príncipe KIemens Wenzel von Mettemich (1773-1859) que, até à sua demissão forçada em 1848, não se cansará de combater todas as tendências liberais e oposicionistas nos territórios da Liga. Na sequência do assassinato do escritor e espião russo, August von Kotzebue (1761-1819), em 23 de Março de 1819, Mettemich convoca uma conferência em Karlsbad para promulgar uma série de decretos que proíbem as associações estudantis, instalam uma vigilância generalizada sobre as universidades e os professores, introduzem a censura prévia para todos os jornais e livros com menos de 320 páginas e criam uma comissão central de fiscalização que deverá vigiar e perseguir todas as actividades consideradas revolucionárias. 232 o escritor Heinrich Heine caracteriza esta época da maneira seguinte: Eine widerwartige Reakzion trat gegen allen Liberalismus, gegenjede heitre und freye Manifestazionen des Lebens. Die Frbmmeley hatte gute Tage und der Obscurantismus herrschte sowohl im protestantischen wie im katholischen Kirchenwesen. Die Gentilhommerie, das Gespenst der Feudalzeit, hob sich aus sei nem Sarg und wollte seine vergilbtesten Pergamente wieder geltend machen. Ueberall Censur. ( ... ) Nur in den Tavernen der Cniversitaten wehte noch ein freyer Hauch, der Flügelschlag der Begeisterung, hier erloschen nie die Tradizionen der wahren Humanitat (1973-1997: VI, 358). Depois das revoltas que, na sequência da Revolução de Julho de 1830 em França, rebentam em várias cidades alemãs como Colónia, Frankfurt, Munique e Gbttingen, onde cidadãos e estudantes ocupam a câmara municipal e só recuam passada uma semana perante a força de 8000 soldados, Metternich multiplica as medidas repressivas. A perseguição permanente, os numerosos processos que levam à condenação a penas pesadas de centenas de estudantes, professores e escritores, conseguiram abafar efectivamente as tendências oposicionistas. Mas emigrantes como Heinrich Heine (1796- I 856), Ludwig Bbme (1786-1837), Arnold Ruge (1802-1880) e Marx continuaram a intervir na discussão pública alemã a partir do estrangeiro e mesmo a interdição, em 10 de Dezembro de 1835, de todos os escritos da chamada JovemAlemanha(Junges Deutschland) não conseguiria travar por muito tempo as críticas ao imobilismo cada vez mais intransigente do sistema. Nos anos 40, já é óbvio que a atitude rígida e defensiva da Liga não deixa margem para qualquer reforma e este desencanto radicaliza a oposição fora e dentro do país. A política de Metternich apenas adiara um confronto violento que irá generalizar-se nos territórios alemães logo após a Revolução de Fevereiro de 1848 em Paris. o fracasso da política repressiva da Liga Alemã deve-se, entre outros, ao facto de a restauração não ter conseguido corresponder às expectativas e às promessas feitas durante a ocupação francesa, nomeadamente à instalação dum regime constitucional e à garantia dos direitos fundamentais. O fim do Sacro Império e a derrota militar da Prússia haviam criado um vazio que permitiria uma breve era de reformas que iniciariam a difícil modernização das antiquadas estruturas políticas e administrativas. Por outro lado, uma resistência eficaz contra os exércitos franceses não era possível sem a mobilização geral da população através de um ideário nacionalista e liberal. A visão duma Alemanha livre que reunisse todos os cidadãos, tal com o rei da Prússia o reclamou, invocando, de resto, na sua famosa proclamação An mein Volk de 1813, o exemplo da resistência anti-napoleónica em Espanha e 233 em Portugal, suscitou um entusiasmo popular que não se esgotou na derrota de Napoleão. Não é por acaso que as cores da bandeira da Liga (vermelho, preto, ouro) - que são ainda as cores nacionais da Alemanha actual - foram retiradas dos uniformes dos voluntários que lutaram contra as tropas francesas. Mas a derrota de Napoleão e sobretudo as decisões do Congresso de Viena não deixaram grande margem para um nacionalismo unificador e liberal, esse «sonho alemão de liberdade e igualdade» (Heine 1973-1997: II, 184), que sobreviveu nas universidades e nas associações estudantis (Burschenschaften). Em 1817, durante a festa destas associações organizada no castelo de Wartburg, evocou-se explicitamente a reforma de Lutero e a batalha de Leipzig de 1813 afim de exigir a unidade e a liberdade para uma Alemanha cujos principais soberanos já não queriam ouvir falar das antigas promessas que podiam limitar o exercício do poder absolutista. Mas estes princípios duma nova consciência nacional tinham uma falha que viria a influenciar duma maneira perniciosa os destinos da futura Alemanha. Na ausência duma base territorial bem definida e de uma estrutura estatal adequada, o patriotismo alemão definiu-se em grande parte a partir duma francofobia sanguinária. Na festa do Wartburg não são queimados unicamente os símbolos do absolutismo, mas também livros considerados contrários às ideias nacionais. Este nacionalismo tacanho, que favorece também, a partir dos anos 20, um anti-semitismo cada vez mais virulento, torna-se entre as facções mais conservadoras da oposição parte integrante do conceito de identidade nacional alemã, enquanto as correntes mais liberais situam a Alemanha no contexto europeu e se identificam com a luta dos gregos contra a ocupação turca (1821-1829) e a insurreição na Polónia (1830). Esta perspectivação internacional representa, porém, só uma faceta da ambígua identidade nacional desejada. As aspirações da oposição articulam-se ostensivamente na festa de Hambach, que reúne, em 1832, cerca de 30 000 participantes para exigir um estado liberal e democrático unido. Os discursos de Hambach não só rejeitam a monarquia, mas apontam também para uma revolução social, o que leva imediatamente ao reforço das medidas e dos decretos repressivos por parte da Liga. O modelo político esboçado nos anos 30 põe em causa o poder absolutista baseado na monarquia, na aristocracia e na Igreja. A burocracia encontra-se bastante dividida, o que permite, por exemplo, na aplicação da censura uma certa flexibilidade local habilmente explorada pelas editoras da época. Contudo, as crescentes dificuldades económicas e a incapacidade dos principais estados da Liga de resolver os prementes problemas estruturais e sociais reforçam inevitavelmente a tendência para uma mudança radical. 234 Na discussão pública, estes diferentes aspectos do projecto alemão condensam-se em três figuras alegóricas, que personificam as principais tendências do imaginário nacional. o Michel, representado em numerosas caricaturas e poemas satíricos do Vormarz, é um sonhador letárgico que atura pacientemente todas as represálias e vexações arbitrárias por parte do poder, símbolo do sofrimento dum povo sem tradição revolucionária. Mas o Michel pode também acordar e liquidar os seus inimigos como sucede, por exemplo, no Liederbuch des deutschen Michel editado por Hermann Marggraff em 1843. A grande popularidade desta figura, que integra atitudes bastante contraditórias, explica a sua futura recuperação pela propaganda nacionalista do Reich e do hitlerismo, enquanto que a sua utilização em caricaturas mais recentes se refere mais à letargia do Michel do Vormarz (cf. Riha 1991). As metamorfoses do Michel durante o ano de 1848 (caricatura da época) $ommrr. Mais agressiva é a figura da Germania que, com as guerras de libertação na sequência da ocupação da Prússia pelas tropas francesas e a crise do Reno em 1840, resultando dum surto nacionalista dos dois lados, condensa as aspirações nacionais face a uma França expansionista. O quadro de Philippe Veit (1793-1877), que foi instalado em 1848 na assembleia constitucional da Paulskirche, e a famosa pi ntura de Lorenz Clasen (1812-1899) de 1860, fixam os traços anti-franceses e imperialistas desta virgem combativa que se virão a materializar, depois da guerra franco-alemã de 1870/1871, em numerosos monumentos patrióticos (veja-se a figura ao lado que reproduz o monumento de Leipzig). O exemplo mais conhecido deste patriotismo monumental é a estátua da Germania no Niederwald perto de Rüdesheim, erigida em 1883. Contrariamente a estas figuras, a representação da Europa tem uma consistência simbólica relativamente fraca. Por um lado, a aliança emancipatória das nações, «das groBe VblkerbündniB, die heilige Allianz der Nazionen», que Heine preconiza em 1832 (1973-1997: XII, 65), permite uma visão optimista: Germania Siegesdenkmal in Leipzig von Rudolf Siemering (1888) 235 Die Jungfer Europa ist verlobt Mit dem schonen Geniusse Der Freyheit, sie liegen einander im Arm, Sie schwelgen im ersten Kusse. (1993-1997 : IV, 92) Por outro lado, o passado feudal e absolutista da Europa favorece uma atitude de resignação, tematizada de maneira paradig m át ic a no romance Die Europamüden de Ernst Willkomm (1810-1886) de 1838, que antecipa os movimentos decadentistas e escapistas do fim-d e-séc ulo (d. Cap IV3). A bipolarização partidária entre esquerda e direita, que se acentua a partir de 1830 e que continua mais tarde no internacionali mo socialista, dificulta igualmente uma simbolização positiva, o que pode explicar ainda, nos nossos dias, a fraca identificação com uma Europa comunitária que se define sobretudo em termos económicos e administrativos. 1.3 Crescimento demográfico e liberalização económica Na primeira metade do século XIX, verifica-se nos territórios alemães um extraordinário crescimento demográfico. A população da P rússia, por exemplo, aumenta 90%, e a cidade de Berlim, que conta 197717 habitantes em 1816, já concentra uma população de 666 800 pessoas em 1866. Entre 1815 e 1848, a população global da Liga Alemã passa de 22 para 35 milhões. Wehler indica três razões principais para este crescimento: a modernização da agricultura orientada para o mercado e para a exportação, uma extensa pequena indústria caseira e uma conjuntura internacional favorável. Mesmo assim, as capacidades de absorção de mão de obra são rapidamente esgotadas e, já nos anos 20, se começa a manifestar um dos problemas mais preocupantes do século, a «questão social» e o fenómeno do «pauperismo»: uma nova pobreza generalizada que caracteriza uma situação de transição entre a produção agrária e artesanal e a industrialização emergente que, a partir de meados do século, com a melhoria nos meios de transporte e a construção em massa de alojamentos nas cidades consegue resolver em grande parte os aspectos materiais mais visíveis do problema social. A continuação e o aumento da emigração, já considerável nos anos 30 e 40, mostra, porém, que o ritmo do crescimento demográfico continua a exceder as capacidades económicas dos territórios alemães. Sendo ainda no século XVIII um fenómeno marginal devido aos regulamentos restritivos dos governos do antigo regime, a emigração transformou-se, durante a segunda metade do século XIX, num fenómeno de grandes dimensões que modificou profundamente não só a situação sócio-cultural dos países afectados como também a estrutura populacional das diferentes zonas de imigração. 236 A cOl1lradição aparente entre o patriotismo patético e a necessidade de emigrar para garantir a subsistência material, dá bem conta das dificuldades em conciliar macro-estruturas económicas globais e ideologias nacionais numa época de grandes modificações. Na época do Vormàrz, a questão social é sem dúvida um dos aspectos que mais preocupa a opinião pública. Já nos anos 20, o escritor Heinrich Heine fala da «guerra» entre pobres e ricos e, em 1843 , Bettina von Arnim (1785-1859) publica um livro de «reportagens sociais», Dies Buch gehort dem Konig, que denuncia a miséria inimaginável nas cidades alemãs. Falando dos bairros pobres às portas de Hamburgo, a autora aponta: Am leichtesten übersieht man einen Theil der Armengesellschaft in den sogenannten «Fam.ilienhausem». Sie sind in viele kleine Stuben abgetheilt, von welchen jede einer Familie zum Erwerb, zum Schlafen und Küche dient. Tn 400 Gemachem wohnen 2.500 Mcnschen. Ich besuchtedaselbst viele Familie und verschaffte mir Einsicht in ihre Lebensumstande. (PoIs 1979: 258) Mas, enquanto Bettina vonArnim dedica ainda o seu livro ao rei da Prússia, o Hessische Landbote de Georg Büchnerjá articula uma crítica muito mais radicaI. O texto começa com as palavras «Fliede den Hütten! Krieg den Palasten!» (em alusão à Revolução Francesa de 1789) e acaba com a promessa: «Deutschland ist jetzt ein Leichenfeld, bald wird es ein Paradies sein» (Büchner 1976: 142). Este panfleto de 1833 é de tal modo violento nas suas conclusões, que Büchner terá de fugir para evitar a prisão. As situações denunciadas por Büchner não se limitavam ao estado de Hessen; em 1842, nas grandes cidades comerciais da Liga, entre 20 e 50% da população viram-se obrigados a recorrer à assistência social. Os governos não conseguiram elaborar uma polftica social eficiente e tomaram, no caso de conflitos concretos, o partido dos empresários e da ordem. Assim, a revolta dos tecelões famintos da Silésia contra um sistema desumano e repressivo, em 1844, é derrotada pela força militar. Mas esta revolta transformou-se, num símbolo do sofrimento e da insurreição nos textos literários da época (de Heine, entre outros) e, mais tarde, nas gravuras de Kathe Kollwitz (1867-1945) e na peça Die Weber (1892) de Gerhart Hauptmann (1862-1946). Os problemas sociais são ainda agravados pelas precárias condições higiénicas que facilitam a propagação de doenças contagiosas e de grandes epidemias. Hegel, o filósofo do progresso histórico, morre em 1831 em Berlim, vítima da cólera. O problema do saneamento das grandes cidades só será resolvido em finais do século XIX e ainda em 1892, a cólera mata em Hamburgo mais de dez mil pessoas. Em 1871/1872, a varíola faz 180 000 vítimas nos territórios alemães, um número quatro vezes superior ao número dos mortos na guerra franco-alemã. Só na Prússia morrem mais de 120000 pessoas; a lei que impõe a vacina obrigatória para todos os recém-nascidos só é 237 promulgada em 1874 e até à Primeira Guerra Mundial, morrem ainda milhares de pessoas desta doença. Neste sentido, o conforto material do Biedermeier é bastante relativo e, comparado com a Inglaterra e a França, o progresso civilizacional realiza-se com grande atraso. A iluminação pública a gás, por exemplo, introduzida na Inglaterra a partir de 1807, só é adoptada em Berlim em 1846. Neste contexto, as iniciativas de modernização partem principalmente da burguesia mercantil. O liberalismo económico, representado pelo economista Friedrich List (1789-1846), tenta ultrapassar as limitações administrativas que resultam da divisão territorial da Liga. As primeiras associações de comércio livre são criadas em finais dos anos 20 e o Deutsche Zollverein de 1834 integra já a maior parte dos estados da Liga Alemã, com excepção da Áustria e do Sul da Alemanha. List, que tinha visto durante a sua estadia nos Estados Unidos a importância primordial dos meios de transporte modernos para o desenvolvimento económico, tomou-se um promotor incansável da construção de linhas férreas nos estados alemães, linhas férreas que, em poucos anos, transformaram radicalmente a realidade sócio-económica e a construção ideológica duma futura Alemanha unida. A criação dum mercado nacional e a mobilidade geral de bens e pessoas pôs termo ao isolamento das culturas regionais, criando novas mitologias patentes, por exemplo, nas utopias socialistas que preconizam um progresso ilimitado e um paraíso finalmente ao alcance de todos. Em Deutschland. Ein Wintermarchen (1844), Heine profetiza esta totalidade de progresso material e plenitude estética e sensual nos versos seguintes: Es wachst hienieden Brod genug Für alle Menschenkinder, Auch Rosen und Myrten, Schonheit und Lust, U nd Zuckererbsen nicht minder. (1993-1997: IV, 92) Abertura cultural e comunicação pública 1.4 Se nos territórios da Liga Alemã podemos verificar um atraso considerável em termos económicos e tecnológicos, o mesmo já não se pode dizer da vida cultural. Esta área é caracterizada por mudanças aceleradas e modernizações rápidas que se manifestam principalmente na • • alfabetização e generalização do ensino básico; consolidação da formação universitária na sequência das refonnas de Humboldt e na; • 238 rápida expansão dos meios de comunicação. Com efeito, o ensino básico atinge até 1848 uma taxa de integração que ultrapassa, sobretudo nos estados protestantes, o nível ainda bastante deficiente da Inglaterra e da França. Na Prússia, cerca de 82% das crianças frequentam a escola em 1848 e o analfabetismo baixa, na mesma altura, para 20% em geral (contra 40-45% em França e na Inglaterra), embora com grandes diferenças regionais. A Saxónia e a Vestefália, por exemplo, contam no início dos anos 40 só com 1 a 2% de analfabetos (cf. Wehler 1987: 478-485, 504-525). Esta importância atribuída à formação escolar explica-se, por um lado, pela falta de operários e técnicos especializados e, por outro, pela necessidade de consolidar a mitologia social desenvolvida na sequência da Aujklarung e da sua pedagogia refonnista (família, trabalho, propriedade, etc.). Numa Alemanha cujas estruturas políticas se estão a desmoronar, o sistema de valores éticos e culturais que a burguesia setecentista preconizava à revelia do antigo regime, surge reforçado na sequência dos efeitos da Revolução Francesa. o liceu (Gymnasium) com o seu exame final, o Abitur, constitui, a partir de 1834, a única via de acesso à universidade, instituindo assim uma fonnação privilegiada e selectiva. Por outro lado, em todos os maiores estados da Liga são fundados, a exemplo do Instituto Politécnico de Viena inaugurado em 1815, uma série de escolas politécnicas que se transformarão, na segunda metade do século, em escolas superiores técnicas. No entanto, o liceu é ainda vedado às raparigas, que só podem frequentar escolas especializadas (Hohere Madchenschulen, Tochterschulen) que se limitam a preparar as alunas para as funções convencionais de mulher e esposa. As universidades continuam a funcionar na perspectiva do neo-humanismo já aplicado no modelo da nova universidade de Gottingen (fundada em 1737), frequentada, entre outros, por Wilhelm von Humboldt que irá orientar a criação da universidade de Berlim, inaugurada em 1810, segundo os mesmos princípios. Os estatutos desta universidade dão, porém, prioridade à formação de funcionários públicos e funcionários da Igreja e confinnam a tutela do Estado. No entanto, as verbas do orçamento público atribuídas às seis universidades prussianas (cerca de 0,5%) são ínfimas, comparadas com as despesas militares que arrecadam mais de 40% do orçamento geral. Por outro lado, a diversidade e a concorrência das 20 universidades existentes nos vários estados da Liga Alemã favorecem as inovações e a flexibilidade funcional das elites que se integram sem problemas nos processos de modernização que começam nos anos 30 e 40. O total de estudantes nestas 20 universidades aumenta de 8277 em 1819 para 15 836 em 1830 - só na 239 universidade de Gbttingen contavam-se, em 1996, cerca de 30000 estudantes. Os estudos nas universidades da Liga Alemã eram livres, sem qualquer plano definido, sendo a maiolia dos estudantes protestantes de origem burguesa. Os judeus compunham 10% da população académica, sobretudo nas faculdades de direito e de medicina que proporcionavam uma formação em profissões menos sujeitas à discriminação. A mobilidade de docentes e discentes entre as várias universidades alemãs constituiu uma rede académica nacional particularmente aberta a movimentos reformadores e contestatários. O elemento mais significativo da mobilização cul tural que impregna a Europa na sequência da Aufkliirung é sem dúvida a rápida expansão da imprensa, baseada na capacidade cada vez mais generalizada de saber ler e escrever. Já no fim do século XVIII se verifica a transição da leitura intensiva (um livro para muitos leitores), repetida, de poucos livros, para uma leitura extensiva, de muitos livros e jornais diferentes e novos para cada leitor. Na época do Vormiirz, a leitura regular de livros, revistas e jornais já faz parte da vida quotidiana de boa parte da população. Para corresponder a esta necessidade de leitura, criam-se quase 2000 bibliotecas comerciais, muitas vezes com salas de leitura para jornais, abertas a pessoas de todos os níveis sociais. Nas 341 cidades da Liga Alemã existem já 1321 livrarias em 1841 e vendedores ambulantes (Kolporteure) distribuem a literatura e a imprensa populares nas zonas mais periféricas. A função integrativa desta mobilização cultural é evidente; generaliza o uso duma língua e duma mitologia social comuns e transmite conhecimentos e perspectivas que ultrapassam as fronteiras regionais e nacionais. Ao mesmo tempo, o aumento quantitativo da produção de livros e jornais é facilitado, a partir dos anos 20, pela fabricação industrial do papel, pela utilização de prensas rápidas (57 600 páginas à hora) e pela invenção da litografia que permite ilustrações em grande tiragem. Assim, a produção de livros conhece na primeira metade do século XIX um aumento espectacular de quase 330%, com o número recorde de 14039 títulos publicados em 1843. Entre 1801 e 1845, o mercado livreiro alemão pennite a escolha entre cerca 285 000 títulos. Uma parte considerável deste mercado é ocupada pelos dicionários e enciclopédias que se tornam cada vez mais populares. Editoras como as casas Brockhaus e Meyer fazem fortuna com sucessivas edições das suas enciclopédias; entre 1837 e 1842, dos 12 volumes da oitava edição da Real-Enzyklopiidie de Brockhaus vendem, nada mais nada menos, do que 32 000 exemplares. O número de revistas e jornais aumenta igualmente e um jornal como a Allgemeine Zeitung, publicado em Augsburgo pela editora Cotta, com uma excelente rede de correspondentes no estrangeiro e uma informação abrangente e cautelosamente liberal, já se apresenta como um exemplo de jornalismo moderno. As quase 700 publicações periódicas nos vários Estados da Liga em 1848 oferecem, apesar da censura e das respectivas limitações, uma 240 variedade temática e formal bastante ampla que vai desde a informação sobre as mais recentes publicações científicas nacionais e estrangeiras nas Gottingische Gelehrte Anzeigen às primeiras revistas ilustradas (Illustrierte Zeitung de Leipzig, desde 1843). As numerosas editoras - as mais conhecidas são Campe em Hamburgo, Cotta em Augsburgo e Brockhaus e Reclam em Leipzig - organizam-se desde 1825 na associação dos livreiros alemães (Borsenverein der deutschen Buchhdndler) e com a lei da assembleia federal de 1835, que proíbe as edições piratas correntes, inicia-se uma legislação reguladora que integra as actividades culturais no moderno estado de direito. Por outro lado, a imprensa continua até 1848 a ser alvo de medidas repressivas que contribuem para o ambiente de tensão que precede a Revolução de Março e que transformam o jornalismo crítico numa profissão de alto risco. o antagonismo entre a política restritiva da Liga Alemã e a rápida comercialização dos vários sectores da vida cultural cria núcleos de reflexão crítica e zonas de evasão, que privilegiam não só a leitura de romances e relatos de viagens, mas também o teatro, o museu, a ópera e os mais variados divertimentos populares. Curiosamente, o mais importante museu para a história e a arte alemãs, o Germanisches Nationalmuseum em Nürnberg, foi fundado em 1852, depois do fracasso da revolução de 1848, de acordo com uma perspectiva ideológica que o nome indica claramente. As novas orientações sociais reflectem-se igualmente na importância crescente das associações (Vereinswesen) que se distinguem significativamente das tradicionais corporações com as suas hierarquias e exclusividades bem determinadas. O Verein, pelo contrário, apresenta-se igualitário, livre e dinâmico. Na primeira metade do século domjnam as Geselligkeitsvereine (associações das elites burguesas urbanas) que desenvolvem, muitas vezes em edifícios próprios, as mais variadas actividades, desde concertos, exposições e convívios festivos às salas de leitura que chegam a ter centenas de jornais e revistas l . Estas Associações, compostas por várias centenas de membros, pretendiam ainda fomentar uma coesão social que, com a progressiva diferenciação da própria burguesia na segunda metade do século, já se tomava impraticável. Ao estenderem-se às classes médias e à pequena burguesia, as associações multiplicam-se e especializam-se cada vez mais. Em Munique, por exemplo, existem no fim do século já 3000 associações diferentes. Normalmente fixadas em zonas de interesses e actividades específicas (desde o patriotismo, a música e a literatura até aos coleccionadores de selos, jogadores de xadrez e criadores de pombos), as associações são, sobretudo nas zonas rurais e nas pequenas cidades, um importante elemento de coesão social que, no entanto, privilegia, no decorrer dos tempos, cada vez mais a função compensatória da vida associativa. I Segundo Sobania (em Hein! Schulz 1996: 170-190), as principais associaçôes nas gra[\des cidades movimentavam já capitais importantes e contribuíam com a introdução de novas teCrlologias (iluminação a gás, etc.) e com um alto nível de informação para a modemi zação da sociedade urbana. 241 Ao nível do divertimento, as feiras rurais e populares integram o comércio e a evasão para um público que não tem acesso às imponentes instituições culturais como museus, teatros urbanos e óperas. O Panorama, inventado nos finais do século XVIII na Inglaterra, continua, com as suas pinturas circulares que representam cidades famosas, cenas bíblicas e vitórias militares alemãs, a ser uma das principais atracções das grandes cidades (cf. Cap. lHA). Do lado oposto destes grandiosos panoramas, que fascinaram o público até ao fim do século, situa-se a pintura intimista do Biedermeier cujos motivos preferidos são o retrato, a fanul ia, a paisagem e os quadros da vida quotidiana. Oscilando entre o realismo do pormenor e o idílico, esta arte enfeita as casas burguesas e documenta a progressiva estetização da vida privada. A integração da pintura no ambiente familiar cria um mercado considerável; só em Berlim, trabalham mais de 400 pintores, sendo Düsseldorf e Munique outros centros importantes da pintura Biedermeier. Em lares mais modestos, as gravuras e as mais acessíveis litografias substituem os quadros. Mas o cidadão não se limita à intimidade do seu lar; uma paz de várias décadas e as melhorias nos transportes favorecem também as viagens dentro e fora das fronteiras alemãs permitindo o conhecimento de outras realidades e o alargamento dos horizontes. De facto, o turismo do século XIX faz-se ainda na perspectiva mais abrangente da viagem instrutiva da Aufkliirung e os viajantes visitam não só estabelecimentos industriais e sociais, hospitais e asilos, mas também instituições políticas e culturais. Enquanto o contexto familiar privilegia a música de câmara clássica e romântica, a evolução da óperajá anuncia tendências pomposas e nacionalistas que culminam na obra e na controversa personagem de Richard Wagner. Significativamente, a Alemanha imperial escolhia como ópera nacional não o Fidelio (1804-1816) de Ludwig van Beethoven com os seus ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade, masDie Meistersinger de Wagner que enfatizava a arte e as virtudes alemãs. Estreada em 1868, a ópera foi inspirada pela Geschichte der poetischen National-Literatur der Deutschen (1835-1842) de Georg Gottfried Gervinus (1805-1871) que Wagner leu antes da revolução de 1848 na qual participou activamente. A génese desta ópera acompanha a transformação do compositor num nacionalista imperialista e anti-semita. Na época guilhennina, osMeistersinger são interpretados como símbolo da vitoriosa luta gennânica contra as forças estrangeiras. Mais tarde, o nacional-socialismo reivindicará Wagner como precursor de Hitler que participa, em 1933, na representação dos Meistersinger de Bayreuth e manda inaugurar, a partir de 1934, o Reichsparteitag de Nürnberg com esta ópera. O importante contributo de Wagner para a renovação das artes cénicas tal como o modo como as suas obras se 242 prestaram a ser instrumentalizadas pela ideologia nacionalista e imperialista, são um capítulo particularmente interessante da cultura alemã. Na vida cultural do Biedermeier germinam já as contradições políticas que determinam a história alemã oitocentista. Em face do imobilismo dos Estados da Liga Alemã que se vêem confrontados nos anos 40 com uma modernização económica e cultural à qual não sabem corresponder, o movimento nacionalista organiza-se a todos os níveis sociais. As numerosas associações eruditas e académicas e até os grupos musicais e desportivos cultivam e promulgam uma forte ideologia nacional integradora que se desenvolve numa extensa rede de comunicação pública e privada. O liberalismo, inicialmente burocrático e constitucional, e depois cada vez mais democrático, transforma-se num poder público que começa a contrariar abertamente a administração absolutista. Nos anos 40, os problemas e tensões acumulam-se de tal maneira, que tanto conservadores como liberais e socialistas estão conscientes da iminência duma crise geral. 1.5 A dupla Revolução Alemã A revolução que, em Fevereiro de 1848, se espalha a partir de Paris a grande parte da Europa, é entendida na Alemanha como a tentativa duma mudança fundamental da sociedade. A interdependência dos vários factores e o policentrismo administrativo alemão conferem a esta revolução, que é política e social ao mesmo tempo, uma complexidade e uma dinâmica bastante particulares. Depois das primeiras revoltas nas zonas rurais, que conseguiram libertar os camponeses das últimas restrições feudais, os movimentos contestatários, nas principais cidades da Liga Alemã, confrontaram o poder com um extenso catálogo de reivindicações de ordem liberal e democrática. Em Viena e Berlim, o conflito transforma-se rapidamente em guerra civil, a população constrói barricadas que, na capital prussiana, são atacadas por 15 000 soldados. As lutas de rua, que acabam com a vitória dos revolucionários, fazem centenas de mortos. O rei da Prússia vê-se obrigado a homenagear as vítimas da revolução e a retirar todas as tropas de Berlim; em Viena, Mettemich e a corte têm de fugir e uma assembleia constitucional assume o poder. Esta primeira fase vitoriosa da revolução confrontou a oposição com uma série de problemas políticos e sociais que o parlamento de Frankfurt, que iniciou os seus trabalhos em 18 de Maio de 1848, tentou resolver. Duas tarefas prioritárias dominaram as suas preocupações: estabelecer as bases 243 uma nova estrutura social, administrativa, judicial e militar no contexto da constituição a elaborar e institucionalizar um Estado nacional alemão que teria de limitar necessariamente a soberania dos seus membros, já que a Liga Alemã continuava a existir formalmente. A recusa da Áustria em renunciar aos seus territórios de etnias diferentes tornou inviável a grande Alemanha (grojJdeutsche Losung), e a solução dum império sem a Áustria (kleindeutsche Losung), que foi finalmente adoptada, fracassou com a recusa do rei da Prússia em aceitar a coroa imperial das mãos dos revolucionários. A constituição de Frankfurt, elaborada nos cinco prime:ros meses das sessões parlamentares, aboliu os privilégios dh aristocracia e os direitos feudais, fixou os direitos fundamentais dos cidadãos, a liberdade de imprensa, de ensino e de religião, a independência da justiça e a abolição da pena de morte. Nas discussões de dois pontos essenciais, a forma do futuro Estado alemão (monarquia ou república, confederação ou Estado centralizador) e a constituição dos órgãos do poder (por via democrática ou por delegação), não se verificou o consenso geral sobre os direitos fundamentais. O medo da república e do proletariado, que dominava grande parte da burguesia liberal, favoreceu um compromisso: um sistema político federal e centralista, uma monarquia constitucional com um imperador hereditário, uma assembleia nacional com duas câmaras, o Volkshaus (com deputados eleitos directamente) e o Staatenhaus com os representantes dos governos e assembleias dos Estados membros. Esta estrutura de representação directa dos cidadãos e representação indirecta dos estados federais antecipa a actual divisão de Bundestag e Bundesrat. Promulgada em 13 de Março de 1849, a constituição encontrou a resistên-cia generalizada da contra-revolução que se tinha entretanto organizado . Os governos conseguiram substituir o liberalismo democrático por assembleias nacionais e abafar as últimas revoltas em favor da constituição de Frankfurt. As razões principais para o fracasso da Revolução residem na falta de entendimento entre a burguesia liberal e as camadas proletarizadas, na divisão dos centros de poder, que permitiu uma rápida recuperação do absolutismo, e na incompatibilidade dos interesses particulares dos estados da Liga, para além duma acumulação de dificuldades concretas e reformas imprescindíveis cuja solução ultrapassou de longe as possibilidades de qualquer assembleia. As consequências mais directas do fracasso da re volução de 1848 são uma repressão geral e um aumento espectacular da emigração; de J 850 a 1855, 244 728 300 alemães, entre eles muitos especialistas e quadros qual ificados, deixaram o país. Por outro lado, já não era possível anular uma série de resultados positivos do processo revolucionário, tal como a reforma agrária e o fim definitivo de feudalismo. Os governos viam-se também obrigados a iniciar uma política social e a praticar uma abertura económica que permitiu prosseguir a rápida industrialização da Alemanha. Mesmo permanecendo monarquias, os estados alemães adoptaram, embora duma maneira diluída, estruturas constitucionais e os trabalhos parlamentares de Frankfurt criaram um conjunto de direitos fundamentais, princípios e perspectivas que inspiraram as tendências democráticas da vida política alemã durante um século. Na dialéctica de revolução e contra-revolução cristalizaram-se igualmente as seis forças principais que iriam dominar a cena política alemã até 1933: Konservatismus, viJlkischer Nationalislllus, Nationalliberalismus, Linksliberalismus, politischer Katholizismus, Sozialdemokratie. A Revolução de 1848 contribuiu para criar estruturas sócio-económicas que permitiram o desenvolvimento rápido do capitalismo industrial que, em duas décadas, transformou a Alemanha numa grande potência. A generalização do mercado, a forte tendência para a expansão económica e a constituição de novos centros industriais (Rhein, Ruhr) caracterizam esta primeira fase da revolução industrial alemã. Nos estados alemães, destacam-se quatro sectores principais: as vias férreas, a siderurgia, as minas de carvão e a construção de máquinas. A evolução da construção ferroviária é particularmente espectacular: entre 1840 e 1847, regista-se um aumento que ultrapassa a Inglaterra, a França e os Estados Unidos; em 1850, a L iga Alemã já dispõe de 5875K111. de linhas. Este boom cria não só grandes necessidades em ferro, carvão, máquinas e locomotivas, mas desenvolve também, em termos financeiros, a especulação e as sociedades anónimas. Assim, o balanço da dupla revolução alemã é essencialmente positivo. Apesar dos fracassos e retrocessos no longo e complicado processo da unificação nacional e da democratização política, a nova mobilidade de pessoas e bens, a rápida modernização da vida pública e a industrialização, criam, já a partir dos anos 40, uma nova realidade, um espaço alemão com a sua própria dinâmica sócio-cultural. 245 Bibliografia aconselhada A obra de referência básica para esta época é o segundo volume da Gesellschaftsgeschichte de Wehler (1987), uma apresentação concentrada da evolução política fornece o cap. «Die Geburt der deutschen Nation» em BoockmannlSchilling (1990: 201-288). Uma imagem concreta da vida cultural e social na Alemanha do Vormdrz proporcionam as antologias de BockIPlbse (1994) e Mbhrmann (1989, reclam UB 9903); o artigo de Martino (1980) informa sobre a evolução do público letrado e da imprensa. Actividades propostas Resumir, com base nos dados fornecidos pelos capítulos seguintes, as linhas directrizes das três perspectivas conceptuais para a época de 1815-1848 e a sua continuação na história alemã até hoje. • Interpretar as duas estrofes seguintes do poema «Erleuchtung» de Heinrich Heine: Michel! fallen dir die Schuppen Von den Augen? Merkst du itzt, Da/3 man dir die besten Suppen Vor dem Maule wegstibizt? Ais Ersatz ward dir versprochen ReinverkHirte Himmelsfreud' Droben, WQ die Engel kochen Ohne Fleisch die Seligkeit! (1973-1997: II, 127-128) A.O. 246 Resumo Integra-se a época entre 1871 e 1914 no contexto da história do espaço de expressão alemã. Caracteriza-se a sociedade, a economia, o sistema político e a vida cultural da Alemanha depois de 1871. Refere-se a evolução verificada nas estruturas sociais e as alterações dela decorrentes na famOia, bem como as respectivas consequências para a situação da mulher. Descreve-se o surto de anti-sernitismo surgido em finais do século XIX. Refere-se a expansão colonial e imperialista da Alemanha. Objectivos • Inserir o processo de modernização da sociedade alemã entre 1871 e 1914 numa perspectiva europeia e mundial. • Caracterizar o modelo bismarckiano, tendo em conta o posterior desenvolvimento da história da Alemanha durante o século XX. • Caracterizar a sociedade guilhermina nas seguintes vertentes: social e económica: industrialização, evolução demográfica, urbanização, migração; política: organização do poder, política hegemónica da Pn5ssia; cultural: sistema escolar, universitário. • Caracterizar a situação da mulher na Alemanha guilherrnina, tendo em consideração as estruturas sociais e económicas (família, divisão do trabalho, industrialização) e culturais (história das mentalidades, história da vida quotidiana). • Inserir os movimentos anti-semitas na história da minoria judaica na Alemanha e no contexto da sociedade sua contemporânea. Avaliar a correlação entre as estruturas económicas, sociais, políticas e culturais e o emergir do colonialismo alemão. 249 É do seguinte modo que, em Gdtzenddmmerung, Friedrich Nietzsche caracteriza a Alemanha resultante da unificação em 1871: Die Deutschen - man hiess sie einst das Volk der Denker: denken sie überhaupt heute noch? Die Deutschen langweilen sich jetzt am Geiste, die Deutschen misstrauen jetzt dem Geiste, die Politik verschlingt allen Ernst für wirklich geistige Dinge - «DeutschJand, DeutschJand über Alies», ich fürchte, das war das Ende der deutschen Philosophie ... «Giebt es deutsche Philosophen? giebt es deutsche Dichter? gibt es gute deutsche Bücher?» fragt man mich imAus1and. Ich errothe; aber mit derTapferkeit, die mir auch in verzweifelten Fallen zu eigen ist, antworte ich: «la, Bismarck!» - Dürfte ich auch nur eingestehn, welche Bücher man heute liest? .. Verma1edeiter lnstinkt der Mittelmal3igkeit! (Nietzsche 1980: VI, 103-104) 2.1 A Alemanha guilhermina: a unificação tardia e a «via específica alemã» A chamada época guilhermina corresponde ao período de tempo compreendido entre 1871 e 1918, isto é, ao II Reich, resultante da unificação da Alemanha sob hegemonia prussiana até à derrota na primeira guerra e consequente deposição da dinastia dos Hohenzollern. A designação «guilhermina» surge na sequência dos nomes dos imperadores alemães, Guilherme I (1797-1888) e Guilherme II (1859-1941). Em 1871, a Prússia conseguia realizar finalmente o seu sonho de unificação da Alemanha, impondo não só a sua hegemonia aos restantes Estados, mas excluindo também definitivamente a Áustria desse processo: vingava a solução da «Pequena Alemanha», já esboçada em 1848 (cf. Cap. IV. I ). A historiografia tem vindo a interpretar este momento como um elemento central de uma evolução que remontaria à era da Reforma luterana, com o seu autoritarismo, com alguns momentos decisivos na política realista dos Hohenzollern - pese embora a proverbial tolerância prussiana, sobretudo de Frederico II - , no nacionalismo xenófobo e na incapacidade de os alemães darem forma política às suas aspirações liberais ou democráticas. Essa tradição teria, finalmente, culminado na solução musculada de unificação de atto von Bismarck (1815-1898) e nas estruturas sociais e políticas do Império guilhermino. Contudo, a historiografia recente (Wehler 1995), para além de assinalar o mito do eterno atraso alemão, que a história económica e política não veio confirmar no que respeita ao século xvrn e primeira metade do século XIX, 251 aponta antes para uma nova fase iniciada com esta primeira p-.lemanha unificada, com consequências decisivas para o emergir do totalitarismo nazi no século XX. É certo que, a longo prazo, existem alguns aspectos na história do Estado prussiano que permitem reconhecer a posição vantajosa da Prússia, no sentido de, em finais do século XIX, conseguir impor a sua hegemonia. Recorde-se que as anteriores tentativas de unificação alemã em 1815, 1830 e sobretudo em 1848, haviam embatido contra a resistência do dualismo austro-prussiano, estando ambas as potências pouco interessadas em se ver diluídas num projecto de unificação. Tanto a Prússia como a Áustria haviam preferido a permanência de uma liga formal, mas pouco consistente, sem um instrumento de política externa e económica comuns, de modo a poder fazer valer o seu poder particular. Contudo, desde os anos 30 que a Prússia preparava uma solução que seria decisiva nesse processo: a união aduaneira, gradual e eficaz, excluindo progressivamente a Áustria e os seus Estados satélites, havia permitido a união económica de facto, por volta de finais dos anos 60, passo esse a que a decisão de «reconquistar» à Dinamarca a região do Schleswig-Holstein viria a conferir novo peso. A união dos Estados do ;'\[orte da Alemanha (Norddeutscher Bund) que daí resultaria permitiria um esboço de união, segundo os planos hegemónicos da Prússia, patentes na guerra que dividiria os adeptos das duas grandes potências alemãs, em 1866. a que se viria a acrescentar, entre 1867 e 1871, a guerra franco-prussiana, que uniria numa causa comum os Estados alemães ainda divididos. A solução de Bismarck, a unificação não-voluntária, segundo a necessidade do «sangue e do ferro», viria a iniciar uma fase decisiva na história da Alemanha, colorindo com novos matizes a questão da sua identidade nacional, com reflexos até à união de 1990: Auch nach der Niederlage im ersten totalen Krieg und den Gebietsverlusten von 1918, auch nach der Zerschlagung der nationalsozialistischen Diktatur hat das Kaiserreich die politische Vorstellungswelt und die poJitische Phantasie der Deutschen weiterhin besetzt. Trotz seiner im Grunde kurzlebigen, nur fünfzig Jahre wahrenden Existenz galt es ais der «eigentliche» deutsche Staat. Ais auf den Tliimmem des «Dritten Reiches» die beiden deutschen Neustaaten von 1949 entstanden und 1990 durch einen vblker- und staatsrechtlichen FusionsprozeG vereinigt wurden, beharrte die Umgangsprache auf dem Begriff der «Wiedervereinigung», obwohl es beide Staaten vor 1949 nie gegeben hatte. Auch darin trat die pragende Kraft des reichsdeutschen Nationalismus zutage. (Wehler 1995: 490) 252 A questão que aqui se levanta não só se revela fundamental dentro da perspectiva de que toda a leitura do passado remete fundamentalmente para o nosso presente e projectivamente para o futuro que, em parte, depende dos mesmos, como enuncia implicitamente a pergunta acerca da relação entre esta solução nacional e a catástrofe nazi. A admitir uma via específica para aAlemanha, onde situá-la? Já em Lutero e na sua doutrina dos dois reinos que remete a llberdade para um puro plano individual e teórico e defende a submissão à autoridade secular como momento de estrita necessidade a que nenhum cristão se pode eximir? No despotismo esclarecido de Frederico II? No nacionalismo de conotações xenófobas do romantismo político alemão, com o seu culto das origens étnicas, da pureza originária alemã, a sua glorificação do Estado e da comunidade contra os modelos liberais? Ou exactamente na solução de hegemonia prussiana imposta em 1871? Que as respostas não podem ser unilaterais e que não se pode ocultar a multiplicidade de causas políticas, económicas, ideológicas, sociais deverá ser o primeiro aspecto a reter-se. Contudo, parece haver uma certa unanimidade em fazer remontar as causas remotas do III Reich a uma estmtura social e política que surge reforçada na sociedade resultante da unificação de 1871, assinalando a peculariedade da evolução da história alemã. SubI inhe-se, contudo, que a tese da via específica alemã não surgiu apenas na sequência da II guerra, mas já era anteriormente apontada, então na sua vertente positiva: a Alemanha teria conseguido um equilíbrio entre modernização e preservação de estruturas conservadoras, com as vantagens visíveis no seu poderio económico ou na excelência das suas universidades, quer na vertente teórica, quer prática. Depois de 1945, a via específica alemã passou a ser vista com outros olhos, interrogando-se os historiadores acerca da questão de se saber se as raízes da catástrofe do nacional-socialismo não poderiam estar exactamente na era bismarckiana, momento em que a Alemanha, finalmente unida, se transfonnara rapidamente numa potência da Europa Central e mundial, ocupando com os EUA e a Grã-Bretanha um lugar cimeiro, tendo culminado esse desenvolvimento numa temível política belicista e expansionista. A resposta a estas questões resultará da exposição que a seguir se apresenta: a caracterização da Alemanha guilhermina poderá indicar quais as possíveis ligações e causalidades que tornaram a via específica alemã uma pesada herança até aos nossos dias. 253 2.2 A economia na era guilhermina A economia alemã conhecera já desde 1848 um importante surto industrial que se manterá ao longo da época guilhermina, não obstante algumas crises cíclicas, fenómeno que, de resto, mostra até que ponto o capitalismo se implantara na Alemanha. Entre 1871 e 1914, a população aumentou em 58% (de 41, 1 para 64,9 milhões de habitantes), verificando-se simultaneamente a diminuição da taxa de mortalidade infantil, bem como o aumento da esperança média de vida. Assim a Alemanha guilhermina possui uma população maioritariamente juvenil, vendo-se igualmente dotada de enormes recursos em matéria de mão-de-obra. A acompanhar a industrialização, verifica-se igualmente a urbanização da sociedade alemã: as cidades redefinem-se, em termos de espaço e de habitação. Os bairros periféricos acolhem e marginalizam a classe operária, enquanto que as zonas de exclusividade burguesa assumem os seus traços essenciais. O idílio Biedermeiel; a Alemanha dos «poetas e dos pensadores» deixava de ser cada vez menos real. Em 1914, um em cada cinco alemães vivia nas cidades (cf. Cap. VI.2, em particular, 2.2). Apesar destas profundas transformações sociais e dos notáveis planos para dar resposta às novas necessidades, patentes no modo como inúmeras cidades alemãs conseguem desenvolver as infra-estruturas urbanas, a sociedade alemã revela um misto de conservadorismo e de inovação: a cidade de Berlim é nesse aspecto eloquente. Transformando-se numa das grandes metrópoles europeias, servindo ao sociólogo Georg Simmel de modelo para as suas reflexões sobre a modernidade no seu célebre ensaio «Die GroBsUidte und das Geistesleben» (1908), a mesma é simultaneamente o núcleo de uma sociedade de corte, onde o poder se afirma sobretudo no plano da representação (Elias 1983), contra o que era predominante nas sociedades industrialmente mais avançadas, onde os princípios da cidadania moderna haviam sido consagrados. Simultaneamente, a Alemanha, apesar de apenas começar a constituir-se como potência colonial, transforma-se num importante país de imigração, o segundo a seguir aos EUA, dados os seus elevados recursos económicos. Com efeito, a Alemanha conhecerá, não obstante as crises económicas, um surto de crescimento acelerado, que não tem paralelo na história de outros países europeus. Face a esta convulsão económica, tanto maior foi o sentimento de mudança e de choque perante uma realidade totalmente nova, a que as estruturas políticas estavam longe de corresponder. E é esta situação que também ajuda a explicar a violência dos confrontos sociais, a que o carisma e autoritarismo de Bismarck oferecerão o primeiro ponto de resistência. 254 Para além das indústrias clássicas do ferro, do aço e dos caminhos de ferro, assistir-se-á ao surto das indústrias química e electrotécnica (Siemens, AEG), sectores em que aAlemanha passará a dominar a economia mundial. O capital financeiro torna-se simultaneamente cada vez mais poderoso, surgindo uma poderosa oligarquia neste sector. A investigação de ponta, desenvolvida nas escolas politécnicas, instituições-modelo de um novo ensino superior, rapidamente adoptado por outros países europeus, garante a superioridade tecnológica da Alemanha unida. Tal situação não excluirá, como, de resto, já foi referido, a existência de crises económicas sucessivas (1873-1879, 1882-1886, 1890-1895), alternando com períodos de crescimento acentuado que culminarão numa época de saturação da procura no mercado interno, o que levará a Alemanha a enveredar por uma política de expansão colonial, como meio de escoar a sua sobreprodução. 2. 3 As classes Apesar dos sucessos económicos que colocam aAlemanha numa posição de clara supremacia política e hegemonia económica em termos europeus e mundiais, o certo é que, a par das profundas alterações sociais, as classes mantêm um misto de apego à tradição e inovação que será determinante para a futura evolução. Demarcando-se da burguesia recente, enriquecida pela revolução económica e industrial, a burguesia cu1ta mantém um estatuto privilegiado, patente numa cultura à parte, numa ligação íntima com a antiga aristocracia fundiária e militar. O fosso entre os cultos e não-cultos surge mais marcado do que em qualquer outro país europeu, embora a tradição setecentista da Bildung já se veja confrontada com as necessidades de uma formação mais especializada e técnica, de acordo com a evolução de uma indústria modernizada. Por outro lado, a nobreza prussiana mantém o seu poder quer económico, quer político, fruto de uma tradição que, já em séculos anteriores, se havia desenvolvido: a exportação de cereais para a Alemanha Ocidental e outros países europeus havia permitido o seu florescimento continuado, favorecido pelo surto urbano já séculos antes. Introduzindo, como em Inglaterra, as novas técnicas agrícolas e os novos métodos de exploração capitalista da propriedade fundiária, essa mesma nobreza manterá, ao contrário do que sucedera em Inglaterra, a sua total independência da burguesia, formando consequentemente um grupo com interesses próprios que raramente articulará com os naCiOnaIS. 255 Será essa mesma nobreza e os elementos dela oriundos que virão a exercer uma redobrada influência, depois dos conflitos bélicos que parecerão trazer, até 1914, a garantia da supremacia alemã. Simultaneamente, a classe operária com crescente importância numérica, como será de depreender da evolução económica e da súbita industrialização, passará a organizar-se de forma particularmente eficaz. Dotada de instrumentos teóricos fundamentais, entre eles a importante contribuição do marxismo, a mesma passará a constituir uma força decisiva impossível de ser ignorada. Saliente-se que a esta evolução não será, porventura, estranha a elevada taxa de alfabetização da população alemã de então. Entre estas classes, encontramos a pequena burguesia dividida entre o desejo de ascensão social e o ressentimento para com os mais poderosos. É aqui que se irão recrutar os elementos que defenderão um nacionalismo mais xenófobo, fazendo-se sentir igualmente tendências marcadamente anti-semitas, sobretudo, em fases de crise económica. A situação híbrida da sociedade alemã é evidente: enquanto que as suas universidades constituem um modelo em termos de investigação e de ensino, as corporações estudantis (Burschenschaften) mantêm-se apegadas à prática do duelo, reminiscência de uma sociedade aristocrática, com os seus códigos de honra, aparentemente incompatíveis com os valores de uma ética burguesa. Pode concluir-se que a sociedade alemã revela a vários níveis um carácter de hibridez que, sendo característico, não é, contudo, exclusivo da mesma - podendo observar-se sinais semelhantes nas sociedades britânica ou francesa, para sugerir os exemplos clássicos - o que leva a ponderar a afirmação taxativa segundo a qual essa coexistência de elementos conservadores e modernos terá equivalido a uma via específica alemã. 2.4 O poder político o regime que resultará da unificação imposta pela Prússia caracterizar-se-á pela manutenção das estruturas tradicionais no que respeita à organização do poder político, com uma influência predominante da grande nobreza, influência essa que Bismarck saberá habilmente associar aos interesses da burguesia liberal. o certo é que nesse processo de alianças a burguesia perderá o seu estatuto de autonomia, que, nos países do parlamentarismo clássico, como a Grã256 -Bretanha, a França ou Holanda lhe dera um papel essencial na consolidação de estruturas de formação de uma contra-opinião. Por outro lado, o emergir de uma classe operária cada vez mais numerosa e crescentemente dotada de um considerável poder de associação e organi·· zação levará a que a burguesia liberal se veja cercada por duas forças antagónicas. o carisma de Bismarck sobrepor-se-á à influência partidária, marcando de forma decisiva o imaginário político dos alemães. O Estado determinará de forma particularmente enfática, quer a vida política, quer a vida económica, através de medidas proteccionistas, designadamente na política aduaneira, bem como através do apoio e ligação às grandes empresas industriais. 2.4.1 A unificação Nomeado primeiro-ministro da Prússia em 1861 por Guilherme I, na sequência de um conflito parlamentar que opusera a monarquia às forças liberais, Bismarck evita a abdicação do rei, disposto a dominar a situação contra a constituição e o Parlamento. O exército sairá reforçado desta situação, vendo-se assim confirmada a sua tradicional influência sobre a sociedade civil e o Estado. Por sua vez, a burocracia prussiana constituirá um ponto de apoio fundamental para o poder monárquico: educada na tradição autoritária prussiana, promovendo a obediência eficiente, a mesma também continha nos seus quadros dirigentes oriundos da aristocracia, que assim podiam continuar a influenciar a vida política. Por outro lado, a constituição consagrava a intervenção directa do monarca, como chefe das forças armadas, destruindo-se assim qualquer ilusão liberal no que toca ao modelo e à prática de uma Alemanha unificada. Bismarck não ficará na história como um representante dos interesses da nobreza fundiária prussiana, embora oriundo da mesma, mas antes pela sua Realpolitik, misto de estratégia e de sentido de oportunidade, que o levará a praticar alianças tácticas, com vista a obter o seu principal objectivo: o reforço do poder da Prússia no contexto do espaço cultural alemão, neutralizando a sua tradicional rival, a Áustria. O seu maquiavelismo político está patente nas suas alianças, a nível da política externa, bem como no modo como os seus inimigos se sucederão, desde os liberais, aos católicos, aos sociais-democratas, sabendo o Chanceler propor uma política de reconciliação e de aproximação quando oportuno. 257 o seu papel carismático marcaria profundamente o horizonte político de uma Alemanha que, conquistada a unidade, projectava na figura do seu líder os seus anseios e expectativas, relegando o papel da sociedade civil e dos seus grupos activos para segundo plano. Tal tendência não deixaria de marcar profundamente o modelo político alemão até 1945. E não será certamente de estranhar, neste contexto, a clássica associação de Max Weber entre modernização e burocracia de Estado, bem como o conceito de «carisma» por ele introduzido e posteriormente vulgarizado na gíria política. Os primeiros passos dados pouco antes da unificação, os conflitos que dividiram os alemães entre si e a guerra que os opôs à França contribuiriam sintomaticamente para o emergir dessa figura nas suas qualidades carismáticas. A guerra iniciada contra a Dinamarca resultará na cedência, em 1864, dos territórios do Schleswig e do Ho1stein a favor, respectivamente, da Prússia e da Áustria. No ano imediatamente a seguir, a Prússia exige reformas dentro da Liga Alemã (Deutscher Bund), nomeadamente um parlamento eleito e, perante a resistência austríaca a tais alterações, invade o Holstein, sob domínio dos Habsburgos. Com o abandono da Prússia da Liga Alemã, iniciar-se-á a Guerra Alemã (1866) que culminará na vitória prussiana. No mesmo ano, assiste-se à dissolução da Liga e à formação da Liga Alemã do Norte (Nordeutscher Bund), unindo todos os Estados inimigos da Áustria, a norte do rio Meno, à excepção da Saxónia e de Hessen-Darmstadt. Entretanto, apesar da divisão inicial dos liberais prussianos face a Bismarck, o Partido Liberal Nacional (Natíonalliberale Partei) alia-se em 1867 aos conservadores (Freikonservative Partei), sendo, no mesmo ano, votada a constituição da Liga do Norte que elege o novo Reichstag, com Bismarck como Chanceler Federal. A linha que conduzirá à solução para a unificação da Alemanha já se encontra claramente traçada. 258 , Grv.. Reichsgrenze 1871 IIIII Nach 1919 \'erlorene Gebiele III Saargebiet1919-1935 1!1!lllll Freislaat Danzig nach 1919 e Perdas Territoriais (depois de /9/9) Mas uma outra evolução será decisiva para a mesma, a saber a guerra franco-alemã (1870/1871), Em 1871, a união entre todos os Estados alemães (v. figura acima reproduzida a partir de Gbrtemaker 1989: 338) será possível, dada a aliança dos Estados do Sul da Alemanha com os territórios do norte em tomo dessa causa comum. No mesmo ano, na sala dos Espelhos de Versalhes, Luís II da Baviera (1845-1886), proclama , em nome dos príncipes alemães, Guilherme I imperador. 2.4.2 Estruturas politicas do II Reich o novo Estado alemão possui uma estrutura federativa, competindo , porém, ao poder central controlar as alfândegas, o comércio, os transportes e cabendo aos Estados federais a responsabilidade em matéria jurídica, administrativa e cultural. 259 o Conselho Federal (Bundesrat) é o mais importante órgão com poderes legislativos, competindo ao Imperador a represen tação e xterna e a nomeação do Chanceler Federal. Este corresponde ao cargo de primeiro-ministro da Prússia, presidindo ao Conselho F ederal e superintenuendo a toda a administração. o regime parlamentar coexiste com esta estrutt'ra autoritána, através do Reichstag, ao qual compete a votação de projectos de lei e a aprovação do orçamento. Assim, embora se assista à institucionalização de uma vida político-partidária na Alemanha, a mesma não terá grandes consequências, impossibilitada como se encontra de controlar ou limitar os poderes do Chanceler Federal ou do Imperador. o novo Reich providenciará para unir os Estados, uniformizando o direito e as moedas. Contudo, os católicos, representados, sobretudo, pelo partido do Zentrum, constituirão uma força de oposição ao novo poder predominantemente protestante, resultando tal conflito numa série de medidas adversas às instituições católicas (Kulturkampf). Em breve uma nova força se oporá à uniformização imposta de cima: a classe operária. Mas as leis promulgadas por Bismarck para aniquilar qualquer acção dos movimentos operários derivam mais de um cauchemar de la révolution, que identificava comunistas, anarquistas, social-democratas com a tradição revolucionária - desde a Revolução Francesa (1789), recentemente reavivada pela Comuna de Paris (1870) - , do que de motivos concretos. o pretexto para a sua repressão foi fornecido por dois atentados contra o Imperador Guilherme I em 1878. No mesmo ano, o Parlamento aprovava o Sozialistengesetz, com 22! votos a favor, por parte dos Nati01wlliberalen e dos Conservadores contra 149 do DFP (Deutsche Freiheitspartei) e do SAP (Sozialistische Arbeiterpartei). Esta legislação proibia toda a organização e imprensa social-democrata, socialista e comunista. Tal manifestação de poder arbitrário levaria a inúmeras prisões e milhares de militantes ao exílio, mas não impediria que os atingidos continuassem a organizar-se na clandestinidade, saindo os social-democratas reforçados na sua influência e vontade de resistência. Contudo, Bismarck saberá contrabalançar estas perseguições: tal como sucedera com a pacificação do conflito com os Católicos, designadamente através da mediação do Papa Leão XIII (l8! 0-1903), o Estado providenciará algumas medidas a fim de evitar a agudização dos conflitos sociais. Assim surgirão diplomas, dotando os trabalhadores de protecção contra acidentes no trabalho e de segurança na reforma. Embora a Alemanha passe a dispor de um dos mais avançados sistemas de segurança social, o certo é 260 que alguns dos problemas essenciais permanecerão por resolver. A redução do horário de trabalho, o direito ao descanso ao domingo, a limitação do trabalho feminino e infantil, a existência de um salário mínimo serão medidas que ainda ficJ!'ão por tomar. Por isso mesmo, o prestígio do SPD, sobretudo devido às recentes perseguições, bem como a sua forte componente teórica, em particular dos seus dirigentes marxistas, Wilhelm Liebknecht (1871-1919) e August BebeI (1840-1913), não permitirão a pacificação social. o Chanceler saberá, contudo, manter até 1890 o poder centralizado na sua pessoa, mediante a sua política instrumentalizadora, elemento fundamental para garantir a preservação do seu carisma que quase o toma invulnerável a críticas general izadas, o rr Reich encontrará na monarquia um apoio fundamental, gozando o Imperador alemão de poderes incomparáveis com outros países europeus, detendo o controle das forças armadas e do exército. Por outro lado, a nobreza será a grande força de apoio quer a nível militar, quer burocrático, enquanto que o Parlamento constitui um mero joguete dos interesses dessas mesmas camadas dirigentes. Contrariamente à agressividade inicialmente demonstrada, a política de Bismarck caracterizar-se-á fundamentalmente por uma política de alianças, com vista ao isolameno da França, sendo o período correspondente à sua governação uma fase de paz europeia. Mas, com o afastamento de Bismarck em 1890 e o reforço da autoridade do Imperador Guilherme II a que as estruturas político-partidárias não podem oferecer a devida resistência, dada a forma como o poder se encontra institucionalizado, a Alemanha iniciará uma fase mais agressiva na sua política externa, a par de uma orientação assumidamente expansionista e imperialista. O corolário da mesma surgirá em 1914, com a aliança com o Império dos Habsburgos, que levará ao primeiro conflito mundial (1914-1918). 2.5 A vida cultural 2.5.1 Ensino O ensino constitui um dos sectores em que a modernização é evidente. O ensino gratuito e obrigatório tornar-se-á efectivo (cf. Cap. 11.2), verificando-se simultaneamente um maior afluxo de jovens oriundos 261 de camadas menos favorecidas, quer ao ensino primarIo, quer ao liceal. A democratização do ensino será assim bastante mais eficaz do que na Grã-Bretanha, onde o modelo liberal sancionará a divisão em classes, mediante o ingresso da maioria da população em escolas estatais, de menor qualidade, sendo as escolas privadas reservadas às elites económicas e políticas. Assim, a Alemanha será um dos países com maior taxa de alfabetização, com as consequências óbvias para a sua economia. Simultaneamente, as suas universidades, desenvolvendo de resto uma tradição de autonomia já lançada pela sua criação no contexto da reforma protestante, não só continuam a brilhar pelos seus representantes das humanidades, como se adaptam às novas necessidades económicas, conforme acima foi recordado. Mas os perigos desta aliança entre poder político e universidades, poder económico e institutos politécnicos, começam a desenhar-se: o elitismo de um Friedrich Nietzsche revela até que ponto a Alemanha só dificilmente consegue concil iar a sua cultura com as necessidades de um processo de industrialização e de democratização. A imagem que fornece do ensino alemão não faz eco da admiração que internacionalmente lhe era votada. Dem ganzen h6heren Erziehungswesen in Deutschland ist die Hauptsache abhanden gekommen: Zweck sowohl ais Millel zum Zweck. Dass Erziehung, Bildung selbst Zweck ist - und nichl «das Reich» . -, dass es zu diesem Zweck der Erúeher bedarf - und nichl der Gymnasiallehrer und Universitats-Gelehrten - man vergass das ... ( ... ). Die Erzieher fehlen, die Ausnahmen der Ausnahmen abgerechnet, die ersle Vorbedingung der Erziehung: daher der Niedergang der deutschen Ku 1tur. ( ... ) - Was die «h6heren Schulen» Deutschlands thatsachlich erreichen, das ist eine brutaleAbrichtung, um, mit moglichst geringem Zeitverlust, eine Unzahl junger Manner für den Staatsdienst nutzbar, ausnulzbar zu machen. «H6here Erziehung» und Unzahl- das widerspricht sich von vornherein. ( ... ) Es steht Niemandem mehr frei, im jetzigen Deutschland seinen Kindern eine vornehme Erziehung zu geben: unsre «h6heren» Schulen sind allesammt auf die zweideutigste Mittelmaf3igkeit eingerichtet, mit Lehrern, mit Lehrplanen, mit Lehrzielen. Und überall herrscht eine unanstandige Hast, wie ais ob etwas versaumt ware, wenn der junge Mann mit 23 Jahren noch nicht «fertig» ist, noch nicht Antwort weif3 auf die «Hauptfrage»: welchen Beruf? - Eine h6here Art Mensch, mit Verlaub gesagt, liebt nicht «Berufe», genau deshalb, weil sie sich berufen weiss ... Sie hat Zeit, sie nimmt sich Zeit, sie denkt gar nicht daran, «fertig» zu werden - mit dreissig Jahren ist man, im Sinne hoher Cultur, ein Anfanger, ein Kind. (Nietzsche 1980: IV, 986-987) 262 2.6 Vida quotidiana: a família A família manterá as estruturas consagradas no século XVIII, constituindo o seu modelo por excelência o burguês, tal como já se desenhara em finais do século XVIII (cf. Cap. III.3). A cisão entre espaço público e privado, entre produção e consumo toma-se generalizada: oásis de recolhimento privado onde o homem burguês pode repousar das agressões do mundo da concorrência económica, ser ele próprio, este é o mundo da mulher, confinada ao espaço doméstico. Afastada do mundo da produção, ao contrário do que sucedera na economia tradicional, a mulher vê-se consagrada na sua especificidade feminina e sexual, como mãe e esposa, mas impedida de se realizar noutras esferas. O pai controla o seu futuro enquanto permanece solteira, o marido assegurará mais tarde essa tutela: é ele que decide do essencial, embora a mulher disponha de aparente autonomia no que respeita à organização das tarefas domésticas e à educação dos filhos. É certo que a realidade será outra nas classes rurais: a economia ainda depende excessivamente do espaço familiar como esfera de produção e de consumo para que a mulher seja entendida e tratada como ser essencialmente caseiro e passivo. A intimidade, para a qual é necessária uma concepção diferente do espaço e a equivalente área e subsequente divisão, ainda não é generalizada: as crianças são educadas em conjunto com os adultos, não se lhe reconhecendo um estatuto especial, ao contrário do que sucedia nas classes burguesas. Por outro lado, as camadas operárias embora se vissem confrontadas com a divisão da esfera do trabalho e da habitação, não possuíam as infra-estruturas de que a burguesia dispunha para criar novas formas de convívio e de sociabil idade: assim, o espaço doméstico excessivamente exíguo, sem quaisquer condições de intimidade, é apenas penetrado ao fim do dia pelo chefe de família para ser rapidamente abandonado pela taberna ou outro local de encontro onde se prolonga o convívio exclusivamente masculino. As mulheres ver-se-ão obrigadas a trabalhar na fábrica, conhecendo desse modo a mesma divisão de tarefas que fora recentemente atri buída aos homens, sem que dispusessem dos mesmos apoios domésticos. Assim, o trabalho fabril centra-se, sobretudo, nas solteiras, divorciadas e viúvas, abandonando as primeiras o seu trabalho com o nascimento do primeiro ou do segundo filhos. Em 1882, 81 % das trabalhadoras fabris eram solteiras ou divorciadas, 6,2% viúvas e apenas 12,7% casadas, sendo as percentagens para o ano de 1907 de 71,1%,7,6% (agora incluindo as divorciadas) e de 21,3%, respectivamente, e situando-se 59% na faixa etária entre os 16 e os 30 anos e 29,8% entre os 30 e os 70 anos. O trabalho na indústria era mino263 ritário, embora se assistisse a um crescimento de 13,3% para 18,2%, entre 1882 e 1907 (Nipperdey 1993). Uma percentagem bastante mais elevada trabalhava em casa, na confecção de vestuário, fabrico de brinquedos ou na prestação de serviços domésticos temporários. Os domínios onde se verificou o maior aumento do trabalho feminino foi o terciário, sendo o comércio aquele que empregava a maior parte das mulheres. A grande cidade é também o centro de trabalho para muitas mulheres, a maior parte das vezes, oriundas da província, que para aí se deslocam, a fim de trabalhar como empregadas domésticas em casas burguesas. Note-se que não é só a grande burguesia endinheirada que dispõe desse privilégio: a média e a pequena burguesia também se podem dar a esse luxo. As condições de vida dessas mulheres são precárias: salários baixos, dependência económica dos patrões, isolamento social. Com o casamento, abandonarão esse espaço onde os laços afectivos e as diferenças de classe são pródigos em criar situações particularmente ambíguas que vão da dedicação sentimental à agressividade mais ou menos explícita. Pode, portanto, concluir-se que o modelo de família burguesa embora não generalizado tende a ser universalizado: a pequena burguesia imita-o, o mesmo sucedendo com a classe operária ascendente. Modelo possível entre muitos outros, tenderá a ser glorificado como padrão eterno, fundado numa ordem natural e biológica, que mais não faz do que reproduzir o discurso do poder. Assim, a famflia nuclear pode ser vista como a miniatura da sociedade guilhermina com todos os seus elementos positivos e negativos. Para a burguesia ela constitui um espaço de refúgio, de humanidade e de cultura, de consolidação de laços afectivos, de descoberta do lazer e do direito ao prazer e à infância. Mas esse espaço de refúgio e de protecção contém em si igualmente elementos marcadamente autoritários, simbolizados, sobretudo, pelo patriarca da família, que controla económica e juridicamente esse espaço, que pode dispor do destino da mulher e dos filhos de um modo quase ilimitado. Com o enriquecimento da classe burguesa, a mesma passa a misturar com a sua tradição intimista e recatada a necessidade da representação. Assim, a sala de visitas passará a constituir um espaço de crescente importância. A atmosfera de recolhimento da Bildung clássica cede gradualmente lugar ao exibicionismo pretensioso de uma cultura falsamente elitista. O piano que a filha musicalmente mais ou menos dotada tem de aprender a tocar serve de pretexto para saraus de qualidade duvidosa, complemento ao cenáculo de Bayreuth onde se começa a encenar um misticismo germânico, 264 consagrando a superioridade alemã, consoante as necessidades de um nacionalismo agora com efectiva contrapartida económica e polLtica. É com ironia que Walter Benjamin evoca a atmosfera do interior burguês da Alemanha guilhermina: Das bürgerliche 1nterieur der sechziger bis neunziger Jahre mit seinen riesigen, von Schnitzereien überquollenen Büffets, den sonnenlosen Ecken, wo die Palme steht, dem Erker, den die Balustrade verschanzt und den langen Konidoren mit der singenden Gasflamme wird adaquat allein der Leiche zur Behausung. «Auf diesem Sofa kann die Tante nur ermordet werden». Die seelenlose Üppigkeit des Mobiliars wird wahrhafter Komfort erst vor dem Leichnam. Viel interessanter ais der landschaftliche Orient in den Kriminalromanen ist jener üppiger Orient in ihren Interieurs: der Persenteppich und die Ottomane, die Ampel und der edle kaukasische Dolch. Hinter den schweren gerafften Kelims feiert der Hausherr seine Orgien mit den Wertpappieren, kann sich ais morgenlandischer Kaufherr, ais fauler Pascha im Khanat des faulen Zaubers fühlen, bis jener Dolch im silbernen Gehange überm Divan eines schónen Nachmittags seiner Siesta und i hm selber ein Ende macht. (Benjamin 1980: 11.1, 89) 2.7 Vida quotidiana, mentalidades: «A condição feminina» o destino das mulheres encontra-se, como será óbvio, directamente dependente do tipo de estruturas familiares que se acaba de descrever. Adulada como mãe, esposa e procriadora pelo discurso oficial, a mulher hesitará entre essa protecção e a sua liberdade. Dominando o espaço doméstico quando o marido está ausente, a mulher burguesa conquistará gradualmente um sentimento de autonomia que virá a dar os seus frutos, durante a mesma época. Em breve reivindicará o seu direito a exercer uma profissão, a aceder ao ensino universitário, a usufruir do direito de voto, a ser vista como um ser com direitos iguais. Mas esses mesmos direitos, sobretudo o de poder exercer uma profissão, ser-lhe-ão concedidos, desde que abdique do casamento e da maternidade. Ou mais precisamente: se a estrutura da família burguesa levava a que se visse o celibato das mulheres como uma ameaça, na medida em que isso equivalia à eterna dependência destas últimas, também o exercício de uma profissão impedia as mulheres burguesas de se dedicarem a tempo inteiro às suas tarefas domésticas e de educação dos filhos, surgindo assim como potencial ameaça às estruturas tradicionais. Assim, não será de estranhar que as primeiras burguesas a desempenharem papéis de relevância social fora da família fossem na sua maioria solteiras, ao mesmo tempo que as 265 tarefas a que se dedicavam eram do foro da educação ou de auxílio humanitário: o ensino e a medicina eram algumas das actividades que mais se pareciam coadunar com a sua natureza e a sua diferença, gradualmente fixada a partir do foro biológico. Com efeito, para se entender a situação da mulher ao longo do século XIX e, em particular, na sociedade guilhermina, há que tomar em consideração não apenas as estruturas sociais e políticas, como o próprio modo como o discurso científico organizava essas mesmas práticas de poder. A reivindicação da igualdade de direitos, sustentada por uma concepção jusracionalista que via no homem e na mulher seres teórica e potencialmente iguais, podia ser quotidianamente contrariada na prática, mas essa mesma noção levava a que, desde a Revolução Francesa, mulheres como Olympe de Gouges ou Mary Wollstonecraft (1758-1797) reivindicassem uma concepção que não pensava tanto a diferença como um direito, mas antes via na mesma um obstáculo de somenos que haveria que ultrapassar. No entanto, em simultâneo, a ciência inscrevia essa mesma diferença no corpo. A sexualidade passa a ser vista não como mero acidente, mas antes como uma diferença irredutível, que legitima, do ponto de vista biológico, uma excepcionalidade que há que sublinhar. Será a partir destas concepções, que deixam de ver a mulher como avesso do homem (Laqueur 1987) e a instituem na sua diferença específica que, na chamada sociedade vitoriana, uma sociedade que não se confina exclusivamente à Grã-Bretanha, se irá consolidando o discurso masculino sobre a natureza essencialmente distinta das mulheres: como mães, como portadoras de um ciclo biológico distinto e de uma sexualidade própria que obrigam a um tratamento equivalentemente distinto (Laqueur 1990). A ciência crescentemente positivista busca nos dados físicos, empiricamente comprováveis a chave desse enigma que é a mulher. A sexualidade passa a ser objecto de uma medicina feita por homens que decidem das necessidades das mulheres, prescrevem os métodos de parto e comportamento equivalentes: o puritanismo burguês em relação à sexualidade convive com o discurso aparentemente objectivo sobre essa diferença, que faz da mulher um ser naturalmente submisso, passivo, incapaz de prazer e de transgressão. A histeria, doença tipicamente feminina, inscreve-se exactamente nessa diferença sexual. Qualquer desvio aparente a essa mesma diferença é socialmente proscrito: a homossexualidade é objecto de desconfiança crescente e de interdição ou penalização tanto mais violentas. A ciência não tolera qualquer ambiguidade: seja fora da biologia sexual, seja racial. Os não-europeus são igualmente diferentes no plano da biologia que condiciona, segundo o mecanicismo predominante, a mente: qualquer casamento 266 fora de u ma «raça» que se considera dever manter-se «pura», tanto mais condenável será. A descoberta de que o explorador Carl Peters (1856-1918), quase herói nacional pelas suas expedições na África Oriental, coabitava com uma mulher africana foi objecto de condenação social, o mesmo sucedendo com os devaneios homossexuais do industrial Friedrich Alfred Krupp (1854-1902). Mas o certo é que os comportamentos sociais se recusavam a manter-se estritamente dentro do esquema da «normalidade»: afemmefatale, misto de anjo e de demónio, irrompe no imaginário colectivo, associada, é certo, ao desregramento que o prazer tem de acarretar consigo, a arte celebra a ambiguidade e o desvio. Tantos outros mecanismos que finalmente ajudam à estabilidade de uma sociedade que vê com desconfiança todo o modo de vida que pense a diferença de um modo mais problemático. Assim, não será de estranhar que as primeiras tentativas de reivindicação de igualdade das mulheres, insiram-se elas no discurso jusracionalista ou numa diferença biológica assumida, sejam geralmente vistas com alguma desconfiança e associadas ou a alguma histeria ou frustração l . Mas a questão não se esgota no modelo burguês e nas reivindicações que o mesmo inspira: também a ordem social é contestada pelas mulheres sociais-democratas que alargam, ao contrário das mais moderadas, as suas reivindicações ao campo dos direitos políticos e sociais, vendo nas reformas sociais e nos apoios humanitários à situação da mulher mais uma manobra de diversão da burguesia masculina. Nos sectores operários, predominantemente masculinos, as suas reivindicações não serão sempre bem acolhidas, apesar do sucesso, mesmo entre as mulheres burguesas mais afoitas, do livro Die Frau und der Sozialismus (1879) de August Bebei, que se transformaria num verdadeiro bestseller. '0 notável capítulo que Nipperdey dedica às mu lhe res no seu \'()Ium~ so bre a sociedade alemã entre I 66 e 1918 não consegue eSCClnder uma posição que se encaminha neste ,"ntido (Nipperdey 1993' 82 e segs.). A grande clivagem persiste. O que colocar à frente: a diferença de classe ou a diferença feITÚnina? Não será esta maioritariamente instrumentalizada pelas forças políticas predominantemente masculinas? Contudo, a organização das mulheres era um facto na Alemanha guilherITÚna com tradições que remontavam à consciencialização política de 1848. Em 1865, Luise Otto-Peters (1819-1895) fundava o Allgemeiner Deutscher Frauenverein, que visava não tanto a obtenção de direitos políticos como a reivindicação de melhorias no direito de família e no acesso das mulheres à vida profissional e que, nos anos 80, contava com cerca de 12 a 14 mil activistas. Em seu torno florescem outros pequenos agrupamentos que não reclamam grandes alterações mas, sobretudo, uma preocupação com o papel e vocação eminentemente social da mulher: tratava-se de prosseguir de uma 267 forma mais consciente a clássica imagem da mulher devotada aos outros, demitindo-se perante qualquer potencial narcIsismo que permanecia um privilégio masculino. Em 1894, as diferentes associações reuniam-se num movimento mais vasto, o Bund Deutseher Frauenvereine que se tornaria no principal órgão do movimento de emancipação feminina. Com o termo do TI Reieh, as mulheres conseguiam um consenso relativamente amplo, no que respeita às suas vertentes mais reformistas ou revolucionárias. O SPD já aceitara o princípio do sufrágio feminino em 1891, embora Clara Zetkin (1857-1933), a grande dirigente do movimento das rrulheres sociais-democratas, persistisse na recusa de qualquer colaboração com os movimentos burgueses. Contudo, só a Constituição da República de Weimar concederia direitos políticos às mulheres. A actividade e militância destas mulheres oriundas de diversos extractos sociais não deverá, porém, fazer esquecer a organização predominante, o Vaterliindiseher Frauenverein. Surgido em 1866, isto é, entre as duas guerras que conduziriam à hegemonia prussiana, o mesmo destinava-se a apoiar os feridos de guerra, prestar auxílio aos soldados, desenvolvendo actividades que iam da culinária à costura. É neste campo claramente conservador que se iria desenvolver uma tradição de apoio feminino ao nacionalismo que encontrará a sua contrapartida nas organizações femininas do nacional-socialismo. 2.8 A «questão judaica» Se a mulher, na sua diferença específica ou na sua igualdade jurídica, dificilmente se ia impondo, outra faixa da população, estigmatizada pelo peso da diferença, os judeus, conhecia uma fase particularmente problemática. Enquanto que no século XVIII haviam surgido algumas tentativas de concessão de direitos aos mesmos, designadamente na sequência das medidas tomadas pelo Grande Eleitor Frederico Guilherme da Prússia (1640-1688), ao reconhecer as vantagens da imigração de judeus sefarditas para o repovoamento do seu principado em 1671, as mesmas haviam regredido nos reinados de Frederico I (1713-1740) e Frederico :1, levando, por exemplo, aos protestos de um Lessing em Nathan der Weise (1779-1781). Em 178 1, o ministro prussiano Christian Wilhelm Dohm (1751-1820) publicava, impulsionado por Moses Mendelssohn, o livro, Über die bürgerliehe Verbesserung der Juden, que influenciaria as reformas levadas a cabo por José li da Áustria (1741-1790) com vista à concessão de direitos à população judaica. 268 Com as invasões e a ocupação francesas dos territórios alemães, os judeus gan ha riam direitos de cidadania, situação que se manteria até 1815. Face à liberalização da economia que se verificaria simultaneamente, os judeus alemães alcançariam posição proeminente quer a nível económico, quer cultural, vantagens que perderiam, após a derrota napoleónica. o certo é que a difíci I identidade nacional alemã em breve iniciava a sua política de exclusão da diferença. Já em 1793, Johann Gottlieb Fichte assocIava a sua defesa da Revolução Francesa ao anti-semitismo ao escrever: Juden Bürgerrechte zu geben, dazu sehe ich wenigstens kein Mittel ais das, in einer Nacht ihnen alie die Kopfe abzuschneiden, und andere aufzusetzen, in denen auch nicht eine jüdische Idee sei. Um uns von ihnen zu schützen, dazu sehe ich wieder kein anderer Mittel, ais ihnen ihr gelobtes Land zu erohern, und sie alie dahin zu schicken. (apud Geiss 1988: 268) Nos seus Reden an die deutsche Nation (1810), Fichte argumentava de forma mais consistente ainda, articulando a defesa de uma nação alemã, com a fantasia de uma pureza originária e de uma língua superior, mais próxima das raízes, que transformava os herdeiros do Hebraico, anteriormente língua sagrada, agora produto derivado, numa parte não integrável na «nação alemã» (cf. Cap. III. 1). Os argumentos biológicos ainda estão ausentes deste nacionalismo místico, de que o missionarismo germânico de Richard Wagner também é exemplo. Contudo, a defesa da «pureza rácica» surgiria gradualmente fundamentada numa pseudo-ciência positivista, que os círculos de Bayreuth iriam buscar ao diplomata francês Gobineau (1816-1882), por intermédio do genro de Wagner, o inglês Houston Stewart Chamberlain (1855-1927). Entre 1815 e 1848, o nacionalismo xenófobo não hesitaria em condenar qualquer tentativa de emancipação judaica e a sua associação com os direitos da nação alemã, como Ludwig Borne e Heinrich Heine, importantes mentores da oposição ao regime autoritário da Restauração alemã, o souberam denunciar. Bornes Beobachtung, er registriere eine auffallige Verbindung von Nationalismus, Aristokratenha13 und Judenha13, ist diesbezüglich bemerkenswert. Die Judenfeindschaft des frühen 19. Jahrhunderts verband sich mit emanzipatorischen Interessen und (mi13)verstand sich selber so, ais Teil der Frontstellung gegen die reaktionare Politik der deutschen Staaten nach dem Wiener Kongre13 unter Führung Metternichs und damit Befreiung des ais Nation, also ais Einheit gleichberechtigter Bürger aufgefaf3ten Volkes, wie problematisch und widersprüchlich im Hinblick auf die jüdische Minoritat diese Vorstellungen auch waren. (Greive 1983: 19) 269 Os anos 50 e 60 revelariam algum pacificação desta agressividade, que culminaria na emancipação dos judeus no início do processo de unificação entre 1869 e 1872, Contudo, o mesmo ano conheceria, com o início da primeira depressão económica, os primeiros movimentos anti-semitas, inicialmente entre os sectores católicos, como minoria perseguida dentro de um Estado maioritariamente protestante. O lema era o da associação, de resto, já polemicamente utilizada por Karl Marx em Zur ludenfrage, entre o judeu e as forças não só da usura mas do grande capital. Tal tema não demoraria a ser instrumentalizado pelas forças políticas mais conservadoras protestantes e católicas, unidas nesta frente comum, contra o liberalísmo político e econóffiJCO. Em breve, o capelão da corte Adolf Stoecker (1835-1909) fundava o partido Christlich soziale Arbeiterpartei, de tendências anti-semitas e anti-social-democratas, cujas posições se alargarão a sectores mais vastos do que a pequena burguesia, a que inicialmente se dirigira. A germanidade surge ameaçada por essa população «semita» que deverá ser eliminada. O historiador liberal conservador Heinrich von Treitschke (1834-1896) também partilha do receio de que a pureza alemã venha a ser contaminada, cunhando a tristemente célebre frase «Die Juden sind unser Unglück» num texto publicado nos Preussische lahrbücher em 1879. A tendência encontrará um dos seus momentos mais extremos, do ponto de vista ideológico, em Wilhelm Marr (1818-1904), cujos círculos consagrariam o neologismo «anti-semitismo », ao fundar a Liga Anti-semita, que pretendia fornecer ao movimento uma base de organização , , Pogrom - termo ru sso para «devastação» e que , no século XIX, passou a designar o massacre organizado da população de confissão judaica, Os anos 80 conhecerão nova vaga de anti-semitismo, na sequência dos movimentos migratórios de judeus provindos do Leste, por sua vez provocados por pogroms locais 2 . A reacção dos judeus assimilados foi ambivalente: por um lado, olhavam com suspeita essa vaga de correligionários que lhes recordavam as origens ou uma ortodoxia que há muito haviam abandonado; por outro, receavam a onda de xenofobia que os mesmos reacendiam e de que também poderiam ser vítimas. O distanciamento e a identificação revelavam até que ponto a assimilação, com a consequente rejeição de qualquer reminiscência da sua identidade religiosa e cultural, não era satisfatória, nem garantia a cidadania política. Em breve o movimento estudantil associava-se à vaga anti-semita, como já sucedera , de resto, em 1815 (cf. Cap. IVI), fundando em 1881 o Verein deutscher Studenten (VdSt), assim garantindo a difusão da tendência entre os meios académicos e a burguesia mais esclarecida. Em 1893 , eram eleitos 16 deputados explicitamente anti-semitas para o Reichstag, mandatos esses 270 que estes perderiam, porém, já em 1903. Contudo, não deixava de ser preocupante o facto de o Partido Conservador (Deutschkonservative Partei) ter incluído em 1893 princípios anti-semitas no seu programa. o movimento ia assim ganhando terreno, reclamando Julius Langbehn (1851-1907) e Paul Lagarde (1827 -1891) que esse «corpo estranho» fosse extirpado, inimigo como era da «pureza rácica» germânica (cf. Cap. IY.2). O anti-semitismo organiza-se igualmente em grupos de acção política, não deixando incólume o movimento operário. Contudo, seria a crise de poder do imperialismo alemão em 1911, com a crise de Marrocos, a que seguiria a vitória dos sociais-democratas em 1912, que suscitaria nova onda de anti-semitismo. O lema de duas obras então muito divulgadas, o livro de Friedrich v. Bernhardi, Deutschland und der nachste Krieg e Und wenn ich der Kaiser ware, da autoria do juiz conselheiro Heinrich ClaS sob o pseudónimo de Daniel Frymann, era o da defesa da integridade da nação alemã e a exclusão do elemento «semita». A argumentação, com aceitação nos mais elevados círculos do poder e efeitos a nível das massas, era a da defesa necessária quer no interior, quer no exterior: no interior, contra a social-democracia e os judeus (da associação entre judaísmo e capitalismo passara-se a outra que identificava o comunismo com o mesmo), no exterior, contra os perigos internacionais que ameaçavam a unidade e a integridade da pureza nacional alemã. O anti-semitismo e o chauvinismo eram apenas duas faces da mesma moeda, como, de resto, se podia adivinhar já desde os primeiros autos-de-fé, levados a cabo pelas corporações estudantis. O exemplo de tolerância que a sociedade alemã soubera dar ao longo do século XVIII e mesmo no século XIX era assim destruído. A política anti-judaica recorria a duas armas poderosas: por um lado, uma ciência positivista que, na senda dos primeiros passos dados na antropologia e na anatomia setecentista, inscrevia a diferença no corpo - em paralelo com o que sucedia com as mulheres e os «selvagens» - , estabelecendo simultaneamente uma relação de causalidade unilateral entre o exterior e interior, entre corpo e mente; por outro, um misticismo nacionalista que exaltava, do ponto de vista do irracional e de uma missão superior da «raça» alemã, a necessidade de se excluir os elementos «estranhos» e «paras itários». A noção de cultura enquanto organismo vivo, herdada de Herder e retomada pelos românticos alemães, isenta de quaisquer convenções e artificialismos, associada à ideia de uma pureza necessária para que se evitasse a degenerescência, surtiajá então efeitos que, depois de 1933, o nacional-socialismo viria a utilizar em seu favor. 271 o Estado unificado rejeitava assim um grupo que representava uma das mais conseguidas simbioses culturais: os judeus eram obrigados a pagar o preço pela sua ambivalência e estranheza para as quais não havia lugar (Bauman 1991). Se os factores de ordem económica ajudam a explicar a atmosfera de ressentimento face a uma população assimilada e disposta a morrer na guerra de 1914 a 1918 por esse ideal nacionalista que potencialmente a excluía, eles não conseguem fornecer, por si só, uma causa totalmente convincente para o fenómeno que não foi de modo algum exclusivo da Alemanha. Contudo, a estrutura autoritária do Estado que Bismarck ajudara a concretizar não dava lugar a um direito que consagrasse a cidadania, nem que meramente potencial, dos judeus, não obstante as suas relações íntimas com a cultura alemã. Com efeito, o alemão foi até 1933 a língua oficial do sionismo: língua franca nos seus congressos e aquela em que os seus textos fundamentais - como é o caso de Judenstaat (1896) de Theodor Herzl (1860-1904) - foram publicados. E que terá sido o sionismo senão mais uma reacção a uma política nacionalista, originando, por sua vez, outros fenómenos de exclusão até aos nossos dias? A reacção quer de cristãos quer de judeus, por muito distantes que as convicções religiosas se tivessem tornado, mostrava bem até que ponto a ambivalênciajudaica era o verdadeiro estigma dessa «questão» (Bauman 1991). M. R. S. 2.9 O colonialismo alemão (1884-1914) Com a deslocação geográfica do comércio marítimo internacional na sequência das Descobertas, a poderosa Liga Hanseática (séculos XII-XV) perde definitivamente a sua importância. Durante séculos a Alemanha será, principalmente um observador da ascensão e da queda dos impérios coloniais português, espanhol e holandês. Uma situação geográfica pouco favorável ao comércio de além-mar, a fraqueza política do Sacro Império Romano-Germânico e os entraves e limitações do poder absolutista afastaram a Alemanha, durante esta primeira fase, da expansão europeia. As pontuais iniciativas e projectos coloniais alemães nos séculos XVII e XVIll não obtiveram resultados significativos. A partir de 1840, porém, a questão colonial manifesta-se cada vez mais na discussão pública. Várias tentativas concretas de comprar e colonizar territórios ultramarinos (cf. Gründer 1991: 17 e segs.) fracassaram, com excepção 272 das colónias alemãs na América do Sul e, nomeadamente, no Brasil. A liberalização da emigração no século XIX, o contexto internacional diferente e o imperialismo oitocentista inglês e francês criaram uma situação que favoreceu também na Alemanha do Reich tendências expansionistas e imperia· listas. A Aufklarung tinha, apesar da crítica de Herder, preparado o caminho para a legitimação ideológica do colonialismo. A teoria racista de Meiners, cujos argumentos principais a favor da superioridade cultural e moral da raça branca se transformaram rapidamente em lugares comuns, o universalismo europeu e a rápida evolução do comércio internacional criaram condições favoráveis para uma segunda fase colonialista que visava regiões ainda pouco exploradas (África, Pacífico e Oriente). Durante a primeira metade do século XIX, a Alemanha participa neste movimento expansionista com uma forte emigração, seguida, a partir de meados do século, da criação de feitorias comerciais em África. A revolução industrial e a subsequente explosão demográfica, mas também a fundação do Reich em 1871 intensificaram a discussão pública das possibilidades e vantagens dum colonialismo alemão. Já em 1879 o publicista Ernst von Weber exige a «exportação da questão social» e a neutralização das «acendalhas revolucionárias»: Für die bedrangtesten unserer Proletarierschichten ware aber eine rasche und durchgreifende Verbesserung ihrer Lage offenbar am leichtesten und sichersten durch ihre Uebersiedelung nach eigenen deutschen Ackerbaucolonien zu erOffnen. Gerade die unzufriedensten und gahrendsten Elemente unseres Proletariats, welche zumeist die denkenden Kopfe unter den Arbeitem und ihre Führer und Leiter umfassen, würden sich am meisten von der ihnen gebotenenAufbesserung ihrer wirthschaftlichen Lage angezogen fühlen und sich gewil3 sehr gem nach den Colonien einschiffen lassen. (apud Frohlich 1994: 143) A prioridade da política de Bismarck, porém, visa a estabilização internacional do jovem Reich e um entendimento cauteloso com a Inglaterra e a França. O pragmatismo de Bismarck recusa a fundação de colónias alemãs sem importância económica e militar, na medida em que só podem prejudicar as relações com as tradicionais potências coloniais. Mas a euforia colonialista em França e na Inglaterra, a partir dos anos 80, manifesta-se também na Alemanha. No seguimento das sociedades geográficas constituem-se, a partir dos anos 70, uma série de associações coloniais, tal como o Deutscher Kolonialverein (1882, com fins propagandísticos) e a Gesellschaft für deutsche Kolonisatiol1 (1884, com projectos coloniais concretos) que pretendem lançar a Alemanha na corrida expansionista. Em face desta evolução, e por motivos de conjuntura política, Bismarck vê-se obrigado a admitir, em 1884, a necessidade duma protecção imperial 273 (Reichsschutz) das feitorias alemãs e, no mesmo ano, são oficializadas as primeiras colónias: Deutsch-Südwestafrika (a actual Namíbia), o Togo, os Camarões, a Nova Guiné e o arquipélago Bismarck no Pacífico. No ano seguinte o mesmo se passa com uma parte da África Oriental, as ilhas Marshall no mar do Sul e ainda, em 1898-1899, Kiautschou na China e outras ilhas no Oceano Pacífico. O total das colónias alemãs abrangeu uma população de quase 15 milhões de habitantes (com cerca de 29 000 brancos, nem todos eles alemães), enquanto que o império colonial britânico incluiu mais de 300 milhões de pessoas. Os principais motivos e argumentos da propaganda colonial eram tanto ideológicos (nacionalismo e messianismo alemão) como económicos (exportação e emigração), mas o factor decisivo era a ambição duma política a nível mundial (Weltpolitik) que, com Guilherme II, se transformou num nacionalismo imperialista sem medida. O historiador Felix Dahn (1834-1910) caracteriza este ambiente numa canção intitulada Deutsches Koloniallied que enfatiza o heroísmo imperialista na apropriação do mundo: Noch ist die Welt nicht ganz verteilt! Noch manche Flur auf Erden harrt gleich der Braut: die Hochzeit eilt: Des Starken wiJl sie werden. Noch manches Eiland lockt und lauscht aus Palmen und Bananen: Der Sturmwind braust, die Woge rauscht, auf, freudige Germanen! Aufs Meer, du Vo]k des Heldentums, und such' auf blauen Bahnen das Wundereiland alten Ruhms: das Win-Land deiner Ahnen. (Sembritzki 1911: 8-9) Os versos de Dahn mostram a necessidade de legitimar o colonialismo alemão através de uma tradição histórica, que um artigo da revista Die Gartenlaube de 1884 refere explicitamente, ao comparar as ruínas duma primeira feitoria alemã na costa da Guiné (1683-1717) com os símbolos nacionais da montanha de Kyffhauser (onde Barbarossa espera, segundo a lenda, a hora do renascimento imperial) e do castelo de Wartburg (o refúgio de Lutero): Eine geheimnisvolle Macht waltet über Ruinen. Jahrhunderte vermbgen nicht ihren Einflu/3 zu schwachen, denn eifersüchtig wird sie von der Sage und der Geschichte beschützt, die aus Schutt und Staub das Edelste zu retten wissen. ln den Erinnerungen an grol3e Thaten vergangener Zeiten ruht diese Zaubermacht, und mehr aIs einmal hat sie Wunder gewirkt. (349) 274 o milagre, neste caso, seria a «solução da questão colonial» e a participação activa da Alemanha no expansionismo europeu. As mesmas ideias são divulgadas em numerosos panfletos, artigos e revistas que tentam entusiasmar a população com uma aventura colonial, cujas perspectivas eram no fundo pouco prometedoras; a retórica oficial e propagandística não encontra uma adesão popular significativa. Assim, um dos objectivos principais da política colonial (canalizar a emigração e implantar números elevados de colonos alemães) não foi atingido, e a brutalidade do domínio militar e a exploração dos indígenas entraram até em contlito com as missões católicas e protestantes instaladas nas colónias, aliás, as únicas instituições alemãs que se encarregaram da formação e instrução dos indígenas. Não obstante, a burguesia mercantil (a única a lucrar com o colonialismo) continuou a sonhar com um grande império colonial na África Central, à custa da Bélgica e de Portugal (tratado secreto anglo-alemão de 1898 sobre a repartição das colónias portuguesas); outras tentativas expansionistas visaram Marrocos e as zonas colonizadas por alemães no Brasil. De facto, o balanço de trinta anos de colonialismo alemão era principalmente negativo. A importância militar e económica das colónias era mínima e, em termos políticos, mesmo negativa, já que a França e a Inglaterra não estavam dispostas a tolerar a expansão alemã nas suas zonas de influência. Grande parte dos emigrantes alemães preferiam terras mais acolhedoras e a presença militar alemã em África, que custou centenas de milhões de marcos, era marcada por escândalos e massacres. Uma revolta na África Oriental em 1905 causou mais de 75000 vítimas e a guerra contra os Hereros na actual Namíbia (1904-1907) levou ao extermínio de cerca de 80% da tribo. Por outro lado, registou-se uma elevada taxa de mortalidade nas plantações africanas (até 30% dos trabalhadores) como também na construção das vias-férreas nos Camarões e no Togo que ocuparam centenas de milhares de pessoas, enquanto a comunidade branca no Togo nunca chegou a ultrapassar 400 pessoas. Neste sentido, o deputado social-democrata August Bebei caracterizou, em 1899, a política colonial como «a exploração elevada à máxima potência duma população estrangeira»: Wo immer \Vir die Geschichte der KolonialpoJitik in den letzten drei Jahrhunderten aufschlagen, überall begegnen wir Gewaltthatigkeiten und der Unterdrückung der betreffenden VoLkerschaften, die nicht selten schl ie13lich mit deren vollstandiger Ausrottung endet. (apud Frohlich 1994: 145) Mas também os outros partidos do Reichstag manifestavam reservas em relação à política colonial propagada principalmente pela burguesia mercantil e favorecida pelo nacionalismo imperialista a nível europeu. O «lugar ao 275 sol», que a Alemanha guilhermina exigia com tanta insistência, devia compensar uma identidade nacional bastante frágil que encontrou na Colonialbewegung e na figura heróica dos Auslandsdeutschen a sua forma mais rígida e tradicionalista. Com o início da Primeira Guerra Mundial, quase todas as colónias alemãs foram ocupadas; só na África Oriental os alemães resistiram até ao fim da guerra. Não obstante, a recuperação e o aumento das colónias alemãs haviam sido um dos objectivos declarados da guerra, e o colonialismo continuará na ordem do dia durante os anos 20 e 30. O sonho duma Weltmacht Deutschland e o slogan dum povo sem espaço, na sequência do romance Volk ohne Raum de Hans Grimm (1875-1959), publicado em 1926, manifestam-se em sentimentos de frustração nacional e reivindicações territoriais que o nacional-socialismo recuperará habilmente. Significativamente, os anos mais férteis da literatura colonial alemã situam-se na fase revisionista que precede a Segunda Guerra Mundial. Embora orientado principalmente para a conquista da Europa Oriental, o fi Reich continuou a alimentar tendências expansionistas a nível mundial que são a última consequência do imperialismo guilhermino. A. O. 2.10 A Alemanha entre a modernidade e o autoritarismo conservador AAlemanha resultante da unificação em 1871 possuía as suas ambivalências, dividida entre a modernização social e a estrutura hierárquica herdada do Estado prussiano. O poder do II Reich fundava-se em primeiro lugar na figura carismática do Chanceler que centralizava na sua pessoa o poder. Outros apoios essenciais constituíam, como foi acima referido, uma monarquia com poderes mais amplos que as instituições suas congéneres na Europa, a nobreza, maioritariamente representada nos altos cargos das forças armadas e, em particular, da burocracia, reforçando-se assim o espíIito corporativo, que permitia, sob a aparência da proverbial eficiência desses quadros - com os quais, de resto, a administração pública francesa tradicional e os mais recentes civil servants podiam competir - o florescimento do compadrio e da política de intriga. É este um dos aspectos que levam Norbert Elias a referir o facto de, na sociedade guilhermina, as regras típicas de uma sociedade de corte (Elias 1992) ainda vigorarem, com a sua ênfase na representação, na hierarquia convencionada até ao último pormenor, onde a simulação e a aparência eram 276 factores decisivos por oposição aos valores burgueses que celebravam a produção, a simplicidade, a sinceridade e a recompensa do talento. Se é verdade que essa mesma burocracia deu mostras da sua competência a nível da administração urbana e no plano educativo, também é verdade que as cidades constituíam os locais onde a industrialização se fizera sentir de modo mais intenso, acarretando consigo uma mobilidade social desconhecida até então. Por outro lado, a vida urbana constituía uma herança da tradicional fragmentação política do espaço cultural alemão, o que permitia que, independentemente dos esforços de centralização, a vida económica e cultural preservasse alguma autonomia. Esta coexistência de modelos, encontramo-la novamente a nível da política educativa, onde a par das universidades clássicas, herdeiras de uma tradição cultural que a burguesia cultivara por excelência, surgiam cursos técnicos que se adaptavam às necessidades económicas de um grande império industrial e colonial, assim formando os quadros e especialistas tornados entretanto necessários. o mesmo se pode dizer das classes sociais: a burguesia abdicava gradualmente do seu estatuto autónomo, nem que fosse no puro plano teórico, como sucedera na primeira metade do século XIX, para se refugiar numa atitude elitista que sabia conjugar a herança cultural com o desprezo pelos iletrados, transformando-a rapidamente em mera pose. Bayreuth foi o grande cenáculo dessa burguesia, acorrendo a adorar a nova religião da germanidade encenada por Wagner na sua Tetralogia, Der Ring des Nibelungen, composta entre 1848 e 1874, ou a deixar-se envolver pelas ondas da unendliche Melodie do amor fatal de Tristan und Isolde (1857-1859), antes de sucumbir aos novos devaneios cristianizantes de Parsifal (1877), como Nietzsche bem o soube denunciar em Nietzsche contra Wagner. Que a universidade nem sempre sabia proporcionar a Bildung clássica, com o seu espírito humanista e a sua distância crítica, prova-o o modo como a filosofia mais inovadora passou a ser um actividade gradualmente independente. Já Arthur Schopenhauer (1788-1860) não conseguira reunir mais de alguns estudantes marginais nos seus cursos na Universidade de Berlim, perante a concorrência de Hegel, tendência que se acentuará com os disCÍpulos deste último: Ludwig Feuerbach (1804-1872) e outros representantes do chamado hegelianismo de esquerda terão de se satisfazer com um estatuto de marginalidade, impedidos que haviam sido de exercer a actividade docente. Também Nietzsche abdicará desse mesmo papel, sabendo que os verdadeiros educadores não se encontram na academia. Reacção que tanto melhor se explica, se se recordar a aliança entre o poder e o saber que o Império de Bismarck levará à perfeição. 277 o Estado guilhermino era a caricatura do figurino político que Hegel proclamara em 1821 na sua Filosofia do D ireito. Possuía uma monarquia que decidia, na certeza da incapacidade de à maioria da população ser confiada essa soberania. Apoiava-se numa burocracia que zelava pela manutenção da tradicional eficiência e autoritarismo prussianos, ao mesmo tempo que sabia organizar-se dentro das necessidades e mecanismos da economia capitalista e mantinha estruturas que negavam os conflitos de classe, em nome de privilégios feudalizantes ou corporativos, sustentado por uma célula fundamental, a moderna família nuclear burguesa. Esta dividia claramente o espaço masculino da produção do da reprodução e do consumo. onde a mulher, tida por elemento predominantemente vegetal, gozava de escassa autonomia. O Estado garantia o controle das forças antagonizadas pela crescente industrialização, a defesa dos interesses crescentemente imperialistas, bem como a sobrevivência dos antigos privilégios, modernizados, da nobreza prussIana. Se é verdade que a França possuía uma larga tradição administrativa e centralizadora, herdada, sobretudo, da era napoleónica, modelo em que, de resto, Hegel também se inspirara, se é certo que a Grã--Bretanha se vira forçada a desenvolver os seus quadros burocráticos, dadas as necessidades administrativas das suas colónias, a situação na Alemanha era diferente. Esta não operara a ruptura liberal e democrática como a França, nem possuía uma tradição parlamentar como a Grã-Bretanha. Assim, ao mesmo tempo que fazia o referido salto industrial, tornando-se numa das maiores potências do mundo, a Alemanha permanecia fiel a concepções aparentemente incompatíveis com este processo de modernização, como será visível no nacionalismo de tendências místicas, secundado por um social-darwinismo que terá a sua contrapartida mais sinistra nas manifestações contemporâneas de anti-semitismo. Pode pois dizer-se que, se é discutível fazer remontar as raízes da história recente da Alemanha a épocas tão longínquas como a Reforma luterana, o modelo bismarckiano e o Império dele resultante revelam exactamente essas ambivalências fatais entre modernização e conservadorismo que tanto dificultariam a estabilização do regime da República de Weimar e abririam caminho ao programa nacional-socialista. É com esta tradição que a Alemanha contemporânea se tem de confrontar, numa permanente reinvenção da sua identidade, o que Hans-lJrich Wehler resume nas palavras seguintes: Nach der geglückten Staatsbildung von 1990 steht aber heutzutage die Nationsbildung erneut aIs schwierige Aufgabe ano Sie sollte in der Gestalt einer sozial- und rechtstaatlichen verfaJ3ten Staatsbürgernation auf der normativen Legitimationsbasis eines liberal-demokratischen Grundgesetzes mit konstitutionell garantierten, naturrechtlich begrundeten Individualrechten gelbst werden, nicht aber in Gestalt einer «Volksnation» auf der 278 GrundJage einer fiktiven, archaischen Abstammungsgemeinschaft, geschweige denn ais nationaler Machtstaat, der in der Fiebertraumen des neuen RechtsradikaJismus schon wieder die Grenzen von 1937 ode r 1938 besitzt. (Wehler 1995: 491) Bibliografia recomendada Sobre a «via específica» alemã e para a obtenção de dados reI ativos à evolução económica, social e política consulte-se Wehler 1995. Sobre a polémica acerca da «via específica» veja-se Evans 1987. Para uma caracterização e análise da sociedade guilhermina 1995 poderá consultar-se Elias 1992 e Evans 1987. Sobre o imperialismo alemão veja-se Frohlich 1994, sobre o anti-semitismo Geiss 1988 e Greive 1983. Sobre a situação das mulheres e história das mentalidades e da vida quotidiana consulte-se Nipperdey 1993 e Weber-Kellermann 1974. Actividades propostas • Leia o excerto de Nietzsche citado no final do ponto 2.5.1 do presente capítulo e relacione-o com a evolução da educação e pedagogia na Alemanha guilhermina, tomando em conta a sua evolução desde o século XVIII (cf. Cap.ll.2, «Bildunge Elfahrung»). • Assinale cronologicamente as diferentes tentativas de unificação da Alemanha desde 1815 e articule-as com a evolução da rivalidade austro-prussiana. Leia os seguintes excertos do texto de Georg Simmel «Über weibliche Kultur», destacando as principais ideias e avaliando o modo como as posições neles apresentadas podem ser articuladas com o movimento de emancipação feminina na Alemanha guilhermina: Die Voraussetzungen wie die Ergebnisse dieser Fragestellungen [betr. die Frauenbewegung] übersieht man erst von der Erkenntnis aus, da/3 die Kultur sozusagen nichts Geschlechtsloses ist, dal3 sie keineswegs in reiner Sachlichkeit jenseits von Mann und Weib steht. VieJmehr unsere Kultur ist, mit Ausnahme ganz weniger Provinzen , durchaus mannlich. Manner haben die Industrie und die Kunst, die Wissenschaft und den Handel, die Staatsverwaltung und die Re\igion geschaffen, und so tragen diese nicht nur objektiv mannlichen Charakter, sondern verlangen auch zu ihrer immer wiederholten Ausführung spezifisch 279 mannliche Krafte. Der schbne Gedanke einer menschlichen Kultur, die nicht nach Mann und Weib fragt, ist historisch nicht realisiert, der Glaube daran entstammt dem gIeichen Gefühl, das in so vielen Sprachen für Mensch und Mann dasselbe Won setzte. ( ... ) (SimmeI 1985: 160) Alie Kulturgebilde, nach deren Produktion hier gefragt wird, haben den Charakter der Dauer, sie stehen ihrem Sinne nach jenseits des individuellen Lebens und seines zeitlichen Verflief3ens. Vielleicht aber ist diesem Schaffenstypus die ganze Art und der Rhythmus des weiblichen Wesens prinzipiell fremd. Es tragt vielleicht, viel starker ais der Mann, den Charakter des FlieJ3enden, in der Forderung des Tages Aufgehenden, auf das bloJ3 individuelle Leben Gerichteten. Es gehbrt zu den banalen Vorwürren gegen die Frauen, daJ3 sie keine Objektivitat besaJ3en, daf3 ihre Hingabe eigentlich niemals einem Gegenstand oder einer Idee, sondem in letzter Instanz immer einer Person galte, d.h. einem Zeitlichen und gleichsam PunktuelIen gegenüber der Abgewogenheit und ÜberzufaIligkeit, die der rein sachlichen Interessiertheit eigen ist. Was daran richtig sein mag, hangt sicher damit zusammen, daf3 die Tatigkeit der Frauen, besonders seit der Einschrankung der hauslichen Produktion, seIten «Objekte» schafft. Die noch übrige hausliche Arbeit gilt dem Tage - woran sie den ganzen Vormittag gekocht haben, wird in einer halben Stunde aufgegessen - , sie ordnet sich dem Flusse und Wechsel momentaner Ansprüche und Interessen ein, ohne ein substantieIles Resultat zu hinterIassen, das nicht wieder unmittelbar in diesen FluJ3 hineingezogen würde. Das Leben im Zeitlosen - das etwas ganz anderes ist ais die Ewigkeit im religibsen Sinne - , die reine Sachlichkeit und die unvermeidliche Einseitigkeit substantieller Arbeit, die Einordnung in überpersbnliche Zusammenhange - dies widerstrebt vielleicht dem innersten Leben der weiblichen Seele. Hier handelt es sich also nicht mehr darum, ob diese besonders charakterisierte InhaIte besaf3e, die in das geschichtliche KulturIeben hinein verkbrpert werden kbnnten. Dies mbchte im Prinzip zugegeben werden und doch zugleich behauptet, daf3 die typische, innere Lebensform, daJ3 der psychische Rhythmus der Weiblichkeit sich gegen die Produktion der Werte, die wir objektive Kultur nennen, straubt. Es ist hier nicht die Sache, somdem ihr Trager, nicht der seelische Gehalt, sondem die Funktion, die ihn verwiklicht, nicht das Sein, sondem dieArt seines Werdenswas die Aufgabe vielleicht illusorisch macht. (ib.: 173-174) M. R.S. 280 3. Emigração, Exotismo, Escapismo: do antimodernismo às vanguardas artísticas - tendências centrífugas na Alemanha oitocentista Resumo Descrevem-se as migrações internas e externas na sequência da revolução industrial alemã e o exotismo literário e cultural que impregnou o imperialismo guilhermino. Indicam-se as principais tendências antimodernistas e anti-capitalistas da chamada «reacção progressista» e os movimentos de vanguarda artística na última fase do império. Objectivos • Entender as razões para o aumento da migração interior e da emigração na segunda metade do século XIX. Conhecer as manifestações do exotismo na Alemanha oitocentista. • Distinguir as várias tendências antimodernistas e os movimentos de vanguarda artística no império guilhermino. 283 A fragmentação tradicional do território alemão não alimentava só o desejo duma identidade nacional comum, mas proporcionava também uma variedade de contextos definidos, uma Heimat concreta, segura e reconfortante, apesar do seu atavismo. A industrialização e a respectiva modernização das infra-estruturas a partir dos anos 40 começam a desagregar esta estabilidade regional da velha Alemanha. O aumento da mobilidade social na sequência do progresso económico manifesta-se tanto em tendências migratórias (atracção das grandes cidades e das novas regiões industriais) como em movimentos centrífugos que afastam as pessoas, quer em termos geográficos (emigração), quer em termos simbólicos (exotismo, escapismo).A fundação do Reich reforça curiosamente esta dinâmica; a realização dum velho sonho colectivo traz consigo uma forte carga de descontentamento e de desengano. 3.1 A migração interna A migração interna, que se manifesta desde meados do século, aumenta nos anos 80 para atingir na década seguinte, com a favorável conjuntura guilhermina, uma dimensão única na Europa da época (cf. Wehler 1995: 503 e segs.). Na base desta migração, que, entre 1860/1870 e 1914, abrange cerca de 16 milhões de pessoas, estão as mudanças económicas e a progressiva urbanização da sociedade alemã entre a fundação do Reich e a Primeira Guerra Mundial. Em 1871, o império só conta 8 cidades com mais de 100000 habitantes (um total de 1,97 milhões), mas em 1910 já existem 48 cidades desta dimensão (com 13,82 milhões de habitantes). Enquanto a população alemã aumenta, neste período, de 41,1 para 64,9 milhões, a população urbana cresce 160%. Em 1910, já 38,97 milhões (60%) vivem em cidades; sendo a taxa média de crescimento das cidades de mais de 200%. Esta urbanização massiva traduz-se principalmente numa segregação social nos bairros residenciais e no desenvolvimento de novas formas de vida que contemplam as necessidades culturais (instituições de divertimento, de desporto e de lazeres) das massas que se acumulam nas cidades. A urbanização não corresponde, porém, a uma modificação demográfica unilateral, dado que a migração interna é também circular no sentido campo-cidade-çampo. Os migrantes, maioritariamente jovens sem fanulia, vão para os grandes centros urbanos e industriais (sobretudo Berlim e o Ruhrgebiet cuja população aumenta sete vezes entre 1850 e 1900), regressam depois à terra natal e recomeçam a migração com outros destinos. Assim, Berlim conhece entre 1880 e 1890 um aumento populacional de 465 000 pessoas, mas um volume migratório de 2747 600, um valor, que chega a atingir 4848 000 pessoas entre 1900 e 1910. 285 Esta flutuação enorme provoca uma instabilidade social que modifica profundamente os hábitos e tradições dos alemães. Já em 1907, quase metade da população vive fora da sua terra natal; a mobilidade profissional transforma-se numa prática corrente. Esta circulação da mão-de-obra permite, por um lado, a uma grande parte da população melhorar as condições de vida e conhecer outras real idades, mas cria, por outro, novas formas de exploração e uma grande insegurança que desintegra rapidamente as estruturas sociais tradicionais. Além do mais, a migração interna não consegue absorver completamente a mão-de-obra disponível e muitos alemães vêem-se obrigados a adoptar uma solução mais radical. 3.2 A emigração Durante todo o século XIX, a Alemanha é um país de emigração; as estatísticas existentes apontam para mais de 5 milhões que deixam o país entre 1820 e 1914 em busca de uma vida melhor. Em 1836, Heinrich Heine descreve um encontro com emigrantes alemães que vão embarcar em Le Havre e estas famílias personificam para o escritor, também ele emigrante, a pátria perdida: J a, es war das Vaterland selbst das mir begegnete, auf jenen Wagen saf3 das blonde Deutsehland, mit seinen ernstblauen Augen, seinen trauliehen, allzubedaehtigen Gesiehtern, in den Mundwinkeln noeh jene kümmerliehe Besehranktheit, über die ieh mieh einst so sehr gelangweilt und geargert, die mieh aber jetzt gar wehmüthig rührte - ( ... ). (1973-1997: V, 371) A miséria na base desta emigração em massa (145 000 pessoas só nos anos trinta, principalmente em direcção à América), leva o autor à ideia dum patriotismo revolucionário que se opõe, na sua perspectiva redentora global, às tendências restritivas e exclusivas do nacionalismo alemão. Enquanto a emigração é ainda fraca nos anos 20, os números aumentam consideravelmente a partir de 1840 (418 000 de 1840 a 1849, entre 1846 e 1851 cerca de 1,1 milhão). A situação económica e o fracasso da revolução de 1848 reforçam esta tendência; só entre 1850 e 1871, cerca de 2 mil hões de alemães decidem emigrar. Uma terceira onda, entre 1880 e 1893, atinge os 1,8 milhões, até que uma crise industrial nos Estados Unidos e a crescente procura de mão-de-obra na Alemanha reduzem substancialmente estes números e começam a favorecer a imigração. Enquanto que, em 1871, vivem na Alemanha cerca de 207 000 estrangeiros, esse número atinge em 1910 já 1,26 mil hões. 286 De facto, durante o século XIX, quase 90% dos errúgrantes alemães, sobretudo famílias, escolhem como destino os Estados Unidos que os integram sem grandes problemas na agricultura em expansão (go west) e na indústria. Em outros países, porém, a situação económica e climatérica apresenta-se menos favorável, e o destino de muitos emigrantes não corresponde às expectativas exageradas provocadas por uma propaganda enganadora. Um artigo na revista Die Gartenlaube de 1884 (pp. 283-285, 299-302), por exemplo, relata a construção de uma estrada entre a colónia alemã de Petrópolis e Juíz de Fora no Brasil e chega à conclusão que, tal como sucede na província de Santa Catarina, os colonos alemães, nesta região pouco propícia à agricultura, vivem muito modestamente: Der Colonist leidet allerdings keinen Mangel, sondem lebt, dank der Hühner- und Schweinezucht, die er nebenbei betreibt, mit seiner Familie derart, daB ihn mancher arme Schlesier und «Hundsrücker» in Wahrheit beneiden kann, aber von wirklichem Wohlstand, von vollstandiger Entfaltung seiner Krafte, von glanzenden Hoffnungen für die Zukunft seiner Nachkommen, kann heute wenigstens noch nicht die Rede sein. (301) Outros emigrantes encontram-se em situações ainda piores. Em [bicaba. Das Paradies in den Kapfen (1995), um romance baseado em acontecimentos e documentos, a escritora suíça Eveline Hasler retrata o destino de um grupo de emigrantes que, no ano de fome de 1855, partem para o Brasil. Enganados por relatos entusiastas nos jornais e promessas falsas, os errúgrantes suportam uma viagem em condições indescritíveis para se verem depois, nas plantações brasileiras, reduzidos à condição de escravos que vivem na miséria e na dependência total do latifundário. Enquanto a atracção do «paraíso» ultramarino resulta, nas camadas populares, de condições de vida insuportáveis, as tendências centrífugas na burguesia traduzem um mal-estar político, social e filosófico. Uma vertente importante deste movimento e, sobretudo, as suas manifestações culturais, podem ser resumidas no conceito de exotismo. 3.3 O exotismo O exotismo pode definir-se como uma tendência cultural surgida a partir de finais do século XVIII que se manteve até hoje e cujo aspecto constitutivo seria o ennui romântico, uma relação problemática com a realidade que nunca cumpre as suas promessas. Daí a busca de sensações extraordinárias, a preferência por espaços e tempos longínquos, o sonho duma vida mais intensa e plena (cf. Reif 1975: 55 e segs.). Neste sentido, o exotismo é uma 287 manifestação da subjectividade moderna, que não pode ser identificado com a curiosidade por artefactos e representantes de outras culturas (sobretudo ultramarinas), que se verifica também na Alemanha a partir da época das descobertas. o exotismo moderno reside numa nova dialéctica de proximidade e distância que produz objectos, imagens e mitos resultantes duma relação problemática entre o eu e o mundo, e que se condensa numa grande aversão a um presente negativo, insuportável: a realidade da Europa oitocentista. Surgido no contexto da sociedade burguesa moderna, o exotismo é um fenómeno europeu. Reif menciona, na área da literatura, Rousseau e o seu discípulo Bernhardin de Saint-Pierre (Paul et Virginie, 1787), William Beckford (Vathek, em francês 1782, em inglês 1786) e Wilhelm Heinse (A rdinghello, 1787). Estes autores representam as principais tendências e temáticas do exotismo moderno: o paraíso tropical, o primitivismo vital e a mitificação da época do Renascimento, tendências essas que se acentuarão na segunda metade do século XIX. o cariz romântico do exotismo continua na época do Vormiirz, embora limitado, em grande parte, a motivos isolados e tópicos na poesia. Este exotismo situa-se ainda no contexto da emigração, como, por exemplo, no caso do escritor Nikolaus Lenau (1802-1850) que tenta viver o mito da liberdade americana, tentativa essa, de resto, fracassada e de Friedrich Gerstacker (1816-1872), viajante permanente e autor de numerosos romances de aventura. Na base destas vidas e obras está o desejo de uma intensificação da vida e a vontade da anulação da morte, o velho mito da fonte da eterna juventude (Jungbrunnen), tal como Heine o tematiza no poema «Bimini» de 1852: Auf der Insel Bimini Blüht die ew'ge Frühlingssonne ( ... ) Schlanke Blumen überwuchem Wie Savannen dort den Boden, Leidenschaftlich sind die Düfte Und die Farben üppig brennend. Grol3e Palmenbaume ragen Draus hervor, mit ihren Fachem Wehen sie den Blumen unten Schattenküsse, holde Kühle. Auf der Insel Bimini Quilt die al\erliebste Quelle Aus dem theuren Wunderbom Fliel3t das Wasser der Verjüngung. (1973-1997: III, 377) 288 o ponto alto do exolL mo moderno é, se m dúvida, a época imperialista entre 1880 e 19 14 qu e regista uma grande popularidade da literatura exotista. principalmente do Abenfeuerroman, da literatura de viagens e do primitivismo erótico. É de salientar, neste contexto, a importância de Karl May ( 1842-19] 2) qu e , apreciado, entre muitos outros, pela geração expressionista e por personagens tão diferentes como H itler e o filósofo marxista Ernst B loch (1885- 1977), conheceu na Alemanha uma imensa popularidade que continua até hoje. Ao combinar o exotismo de mundos longínquos com as v irt udes da pequen a burguesia, os romances de Karl May são um fenóme no tipicamente alemão. As últimas obras do autor, porém, propagam um pacifismo transcendental que entrou em conflito com o militarismo da Alemanha guilhermina. Assim, o romance Friede au! Erden (1904) aprec:enta uma comunidade cosmopolita, humanista e ecumtnica na China, longe duma E ur pa que já camiilha para a guerra. 3.4 Tendências antimodemistas As tendê nc ias antimodernistas que se manifestam naAlemanha oitocentista, recorrem esse ncialmente ao idealismo tradicional que surge, no fim do século xvrn, no contexto duma Kulturnation alemã de cariz filosófico e humanista. A pol itiz8.cão deste idealismo acentua-se depois da fundação do Reich. Os escritos de Paul de Lagarde, o Praeceptor Gemwniae que Thomas Mann ainda glori fi ca em 1917 (Hepp 1992: 59), dirigiam-se tanto contra o funcionalismo industrial e político como contra a civilização moderna das grandes cidades. Por outro lado, Lagarde era anti-semita e propagandista dum império pan-germânico que devia incluir os países eslavos e uma grande parte da R ússia. A sua Kulturreligion é profundamente imperialista e racista, o seu individualismo visa um contexto organicista (família, povo, terra, etc.) e não a independê ncia e os direitos da pessoa singular. Os dois principais aspectos do antimodemismo idealista - a recusa da vida urbana e um acentuado missionruismo cultural - estão igualmente no centro dum livro publicado em 1890 que teve, no mesmo ano, trinta reedições e que atinge, em 1936, a sua 85. a edição. Rembrandt aIs Erzieher do historiador da arte Julius Langbehn foi um bestseller que preparou o autoritarismo e a ideologia do Blut und Boden ao recusar o espírito progressista do século e ao exigir a «descoberta» do ser humano, deformado pela ciência e pela pseudo-cultura: Ueberkultur ist thatsachlich noch roher, aIs Unkultur. Hier haben also etwaige neue erzieherische Faktoren einzusetzen, und zwar werden sie gerade entgegengesetzt wirken müssen, wie die bisherige oder gewbhnliche Erziehung: das Yolk muG nicht von der Natur weg-, sondem zu ihr zurückerzogen werden. (Langbehn 1890: 3) 289 o regresso à natureza concretiza-se na evocação da essência do povo alemão e na refonna da sua educação. O novo ideal é uma mistura de arcaismos germanizantes e de uma valorização da arte como educadora nacional. «Der deutsche Mensch sei individueI I künstlerisch philosophisch synthetisch glaubig frei !», por um lado, e por outro: «Aus bauerlicher Wurzel muJ3 sich der künftige innere Aristokratisrnus der Deutschen entwickeln» (ib.: 279). Nesta perspectiva, Langbehn propaga um «idealismo corpora!», um novo ascetismo que inspira os princípios básicos da JugendbelVegung: Besonders sollten die Letzteren [die jetzigen Deutschen] darauf sehen, ihre Korper nicht durch Bierl,·inken allzu sehr aufzuschwemmen; die zahllosen \Virthshauser konnten sonst für die Volksgesundheit leicht Das bedeutcn, was Bacillenherde für die Gesundheit des Einzelnen sind; schon einmal, in der Zcit unmittelbar vor dem dreiGigjahrigen Kriege, haben die Dtutschen ihren Geist und ihren Korper in vielem Biere erstickt. (ib.: 297) Ao atribuir uma «tendência centrífuga» ao carácter alemão, Langbehn justifica a irradiação mu ndial d a arte e cultura alemãs; a Alemanha devia praticar uma política a nível da humanidade inteira: Der Deutsche beherrscht aIso, aIs Aristokrat, bereits Europa; und er beherrscht, ais Demokrat, auch Amerika: es wird vie Ileicht nicht Iange dauern bis eL aI. Mensch, die ganze Welt beherrscht. (ib.: 223) Langbehn insiste ainda no carácter pacífico desta missão alemã cujas pretensões são, no contexto internacional da época, completamente irrealistas: Die Deutschen sind bestimmt, den Adel der Welt darzustLlkn. Deutschlands Weltherrschaft kann nur eine innerliche sein: wie auch sein AristokIatismus nUr cin innerlicher sein kann; aber beide werden sich trotzdem auGerlich bethatigen und geltcnd machen müsscn. (ib.: 223) A contradição evidente deste pangernlanisrno aparece, depois, na afirmação segundo a qual a hegemonia munJial alemã deve ser garantida no plano político e espiritual por uma forte disposição para a gue rra e uma verdadeira inclinação artística. As numerosas referências a G oethe e às figuras emblemáticas do idealismo alemão como Fichte e B eethoven, a ideia dum «Volksorganismus», que deve rejeitar todos os elementos estrangeiros (da democracia e ciência às ma,lÍfestações da vida urbana moderna), e a ideia do alemão como sacerdote duma humanidade superior (ib.: 281) mostram já a aliança eficaz entre tradicionalismo e refonnismo radical que o nacionalsocialismo virá a condensar no seu próprio nome. Assim, o socialismo nacional - e racista - já aparece no ideário dum conjunto de movimentos e grupos que Jost Hermand designa por «fortschrittliche Reaktion» (HamannlHerrnand 1973: 26 e segs.). Livros como Die 290 weltgeschichtliche Bedeutung des deutschen Geistes (1914) de Rudolf Eucken, Deutschland ais Welterúeher (1915) de Joseph August Lux e ainda Das dritte Reich (1923) de Moeller van den Bruck, dirigido igualmente contra o comunismo proletário e o liberalismo burguês, caracterizam esta tendência progressista e reaccionária. À insistência de Langbehn numa «Volkserziehung» generalizada corresponde um aumento considerável do interesse público por questões educativas; no fim-de-século, publicam-se na Alemanha mais de 400 revistas e jornais pedagógicos que se orientam cada vez mais no sentido do missionarismo alemão (HamannlHermand 1973: 86-87). A síntese dos dois movimentos ideológicos mais importantes do século XIX - nacionalismo e socialismo - , explica a grande popularidade do fascismo hitleriano. A ideia dum socialismo nacional (ao contrário do socialismo proletário cosmopolita), já bastante corrente na época guilhermina, integra os ressentimentos anti-capitalistas e as nostalgias organicistas oitocentistas. Ao conciliar uma modernização diferente das práticas capitalistas e uma necessidade elementar de ordem e estabilidade políticas, o nacional-socialismo instrumentaliza um conjunto de mitos e apreensões que tinham marcado profundamente a memória colectiva alemã. A efervescência de movimentos reformistas e escapistas nas duas décadas que antecedem a Primeira Guen·a Mundial deve-se a uma constelação sócio-política específica. Enquanto as elites guilherminas praticam um nacionalismo exagerado, o proletariado e a social-democracia orientam-se pelos valores culturais tradicionais, tal como a educação e a aquisição de saberes (Wissen ist Macht). Assim, as camadas burguesas progressistas encontram-se, desde 1871, numa dupla oposição às elites e aos operários. Na base da sua crescente importância económica e social, a burguesia começa, no entanto, a exigir a liderança em todos os domínios da vida pública. Esta oposição burguesa manifesta-se em duas tendências dominantes, uma reaccionária, que propaga formas de vida e organização política tradicionais, e outra progressista, que tenta integrar a industrialização e as estruturas reformistas. Todos estes movimentos, porém, acabam por sofrer, a partir de 1910, as consequências do irracionalismo e imperialismo guilhermino que culmina no entusiasmo belicista do mês de Agosto de 1914 (início da Primeira Guerra Mundial). Segundo o historiador Mommsen, os factores culturais tiveram uma influência decisiva nas correntes nacionalistas que levaram a um imperialismo agressivo, tal como estas correntes determinaram, por outro lado, atitudes culturais e ideais estéticos (Mommsen 1996: 1 e segs.): Nicht nur im Deutschen Reich sahen die Bildungseliten den Ersten Weltkrieg von Anbeginn ais einen Krieg an, der über die künftige Gestaltung 291 der europaische n Kul tu r entscheid n werde . l n der Wahmeh m ung der Zeitgenossen war de r Erste Weltkrieg auch, und zuweilen vom e hmlich, e in Krieg der Kulturen. Die breite Unterstützu ng de r Kriegs füh ru ng durch die Bildungsschichten, wie sie sich nahezu unte rschiedslos in allen eu ropaischen M achten findet, spe iste s ic h gute nle il a us so1chen Quellen. Baseado na distinção en tre cultura (alemã) e civ ili zação (capital ista e industrial nos outros países oc identais) (cf. Cap. II. I ), as elites intelectu ai · e artísticas estavam convencid as de dever defender, até com meios mi litares. uma cultura autên tica co ntra uma sociedade modern a massificada. A perspectiva duma guerrajá era antes de 1914 considerada como uma inev itável renovação vital da cultura nacional alemã. Sobretudo nos primei ros meses da guerra, prevalece um entusiasmo catártico que , no d izer de Anz, liherta «ein neues, une rhortes Sinnpotential kult urelJ er, nati onaler, ja menschhe i[]jche r Reichweite» (Anz 1996: 238). Neste sentido , a gl orificação da guerra é um resultado paradoxal da rápida modern ização da Alemanha: Die Iiterarische Kriegs me lap horikj c ner Jahre war Ausdruck e ines kol lek tiven Unbehage ns an zivilisator ischen M ode m isieru ngsprozessen, die s ic h in Deutschl and seit de r Re ichsgründ ung rap ide beschle unigt hatten . Anomische E rfah ru ngen de r Si nnleer , Mo ti vationslos igke it, Langewei le und Beengung sc hlugen um in einen zerstdrerische n Hu nger nach Vi tali tat, Aktivitat und Abenteuer. (ib.: 237) Com as raras excepções de, por exemplo autores como Hermann Hesse ( 1877-1962) e revistas do ex press ionismo como Die A ktion de Franz Pfemfert (1879-1954), as vanguardas artísticas e as ciências sociais (Georg Simmel, Werner Sombart) justificaram e enalteceram a guerra em nome da renovação da cultura. 3.5 Movimentos reformistas e vanguarda artística 1\a perspectiva da Primeira Guerra Mundial, a históri a cultural da época guilhermina evidencia, apesar da sua divers idade e complexidade, uma oposição à sociedade moderna e materialista que se revela tão produtiva como impotente. Enquanto as tendênc ias revivalistas (Historismus) correspondem às necessidades de representação das e liles imperi ai ·, a tendência centrífuga reforça-se nas vanguardas artísticas e nos movimentos reformadores, princi palmente na Jugendbewegung e no esoterismo de tendências orientais. Estes movimentos recrutam-se tan to na esquerda revolucionária como na direita conservadora· poli ticamente ambivalentes , co nvergem , porém, na procura dum a nova simplicidade e criatividade e na crítica das normas tradicionai s e do patriotismo guilhermino. 292 o mov imen to da j uventu de, concentrado no Wandervogel, começa em 1890 co m as primeiras excursões nas regiões montan hosas; os jovers deslocam-se a pé, dormem e m tendas e ali mentam-se de uma fo rma s imples. Esta «v ita no va» é tão frug al como senti mental; a mús ica e a dança popuJ:J.res e a ap re c iaçã o da n atureza pré-ind ustrial fa ze m parte do ambiente destas excursões. Ainda cos mopolita nos seus inícios, o Wandervogel integra rapidamente rituais militares e tradições nacion alistas. As canções do movimento. que co nta e m 191 1/1912 cerca de 1200 membros, são reuni das no Zupfgeigenhansel (1908), que vai ter, ao longo dos anos, uma série de tiragens com mais de um milhão de exemplares . O movimento perece na Primeira G ue rra M un dial, mas os seus rituais mantê m-se nas o rganizações de ju ve ntude na República de Weimar e na juventude hit1eri8.,.a que recupera e perverte os ideais contestatários do Wanderl"Ogel. Urna socialista alemã lemb ra a sua participação no Wandervogel nos termos seguintes: Zu Beginn wu rde ich wohl nur von der Naturschwarmerei angezogen und von der Lu st des ju ngen M enschen am gemeinsamen E rlebnis, bald spürte ic h jedoch, ohne es noch richtig zu erfassen, da/3 es um Entscheidenderes ging al s nur u m Wandern und Lagerfeucrromantik. Soweit diese Verbande übe rhaupt eine klares Programm bcsa/3en, war einer ihrer wesentlichen Punkte der Kampf gegen dic erslarrten F"ormen der bürgerlichen Gesellschaft und gegen das D iktal der Erwachsenen in Schule und Elternhaus. (Rüter/K ocka 1982: 426) À vol ta de 1900 o rganizam-se tam bé m as primeiras colónias de artistas (Worpswede, a partir de 1889, a Mathildenhohe em D armstadt, Dachau) e as comunidades da chamada LebensreforJilbewegung na Alemanha e na Suíça (Monte Verita). Esta co mu nid ades propa gam o nudismo (FKK - Freie K Olpe r-Kultur) e a ali mentação vegetar iana, I.:cusam o álcool e o tabaco (como j á o Wandervogel). A fu ga à vid a c itadina e à civilização modem a em geral favo receu o aparecimento de comunidades rurais; uma das mai co nhec idas, a Obstbaukolonie «Eden» jJ-.:rto de Oranienburg produz ia ali mentos vegetarianos numa base ecológica e visava uma refonna geral da v ida, inclui ndo u ma distri bui ção mai s justa do solo e uma organização ma is human a da estrutura social. O modelo da Gartenstadt, que integra trab alho, cultura e natu rez a num ambi e nte harmonioso e estimulante, infl uenciará durante todo o século as orientações duma arquitectura que trabalha com fo rmas e valores ((adicionais e modern os . A comunidade de M onte Verita em Ascona, fundada em 1900, tomou-se lendári a, duran te du as décadas, atraindo não só escritores, pintores e músicos, mas també m cientistas, médicos e industriais. Num convívio caótico e estimulante, di scutiam-se as grandes questões da época. O anarquismo 293 individualista e o esoterismo ecléctico desta comunidade são representativos da primeira fase dos movimentos contestatários que, depois de 1918, se organizam cada vez mais segundo critérios ideológicos e religiosos. A contestação social durante a última fase do império guilhermino reflecte-se também nas vanguardas a11ísticas que procuram novas fontes de inspiração e uma linguagem formal diferente. Os dois grupos artísticos que revolucionaram a pintura alemã datam ainda de antes da Primeira Guerra. Em 1905, juntaram-se em Dresden quatro jovens pintores para formar a Brücke (1905-1913) que, ao continuar o caminho de van Gogh, Gauguin e dos Fauves em França, desenvolveram um expressionismo alemão. Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976), EllCh Heckel (1883-1970), Ludwig Kirchner (1880-1938) e, mais tarde, Emil Nolde (1867-1956) e Max Pechstein (1881-1959) eram os principais membros do grupo que se reorganizou em Berlim, em 1910, sob o nome de Neue Sezession, incluindo agora também Otto Mueller (1874-1930). Com designações idênticas, estabeleceram-se outros grupos de artistas nas grandes cidades, sendo uma das mais antigas e mais conhecidas a Wiener Sezession fundada em 1897. No centro do famoso Blaue Reiter de Munique, está a amizade entre o russo Wassily Kandinsky (1866-1944) e Franz Marc (1880-1916). August Macke (1887-1914), Gabriele Münter (1877-1962), Alexej Jawlensky (1864-1914) e Paul Klee (1879-1940) completaram o grupo que, em poucos anos, desenvolveu uma actividade artística cuja intensidade e qualidade impressionam ainda hoje. O programa e as ideias do grupo são fixados num anuário com o mesmo título, Der Blaue Reiter (1912), que proclama a importância da arte no contexto duma nova religião espiritual. Contrariamente aos pintores da Brücke, os membros do Blaue Reiter insistem na dimensão espiritual da arte. Kandinsky, que evoluiu até à arte abstracta, publica em 1912 um livro chamado Das Geistige in der Kunst e proclama a autonomia de formas e cores e a liberdade ilimitada do artista na escolha dos seus meios. Atribuindo um carácter cósmico à obra de arte, Kandinsky aspira a uma pintura absoluta. Nesta perspectiva, Paul KJee que integrou mais tarde o Bauhaus (ct. Cap. IY.4.6.1), escreve em 1920 a frase programática: «Kunst gibt nicht das Sichtbare wieder, sondem macht sichtbar». Tal como a terra, a arte é um símbolo, uma parábola de verdades cósmicas latentes: «Die Kunst spielt mit den letzten Dingen ein unwissend Spiel und erreicht sie doch!» (Klee 1976: 118-122). Uma série de revistas novas trabalham igualmente neste sentido: Ver Sacrum (1898-1903) em Viena, a Jugend (1896-1940) em Munique, a Insel (1899294 -1900) em Leipzig e Pan (1895-1900) em Munique e Berlim. Estas revistas revolucionaram a arte gráfica ao experimentar novas correspondências entre texto, imagem e formatação, alcançando uma qual idade técnica e estética que poucas publicações posteriores conseguiram repetir. Esta intensa actividade artística na véspera da P ri meira G uerra M undial incluiu também a música (Amold Schbnberg, 1874-1 95 1, Alban Berg, 1885-1935) e a arquitectura (Adolf Loos, 1870-1933); a nova estética engloba, como no Jugendstil, todos os domínios da vida cultural no ideal da obra de arte total (Gesamtkunstwerk), da Allgemeinkullst, na base da interdependência das artes. De facto, muitos artistas desta geração excelaram em vários campos artísticos (cf. H epp 1992: 129-130). Uma outra revista importante para a arte nova e a literatura de vanguarda, o Sturl11 fundado por Herwarth Walden (1878-1941) em 1910, e a respectiva galeria, que provocou, em 1913, um escândalo com a sua primeira grande exposição de arte moderna intemacional, divulgavam tanto o expressionismo como o futurismo, o construtivismo e o Dada. Para o jovem Oskar Kokoschka (1886-1980), a colaboração no Sturm era a confirmação da sua vocação. Gravemente ferido em 1916, o pintor torna-se pacifista e declara: «Bitte mit dem Weltkrieg aufubren, ich mbchte arbeiten» (apudMommsen 1996: 14n.). A visão duma nova Allgemeinkul1st, liberta dos ornamentos do historismo, está também na base dum movimento com vista a reformar as artes aplicadas e decorativas. Em 1906, a Dritte allgemeine deutsche Kunstgewerbeausstellung em Dresden mostra duma maneira programática as novas ideias duma cultura integrativa que ignora a separação tradicional entre artes livres e artes aplicadas. Um ano depois, é fundado o Deutscher Werkbund, que, ao contrário do movimento anti-modernista inglês Arts-and-Crafts (inspirado por William MülTis), tenta integrar, num alto nível qualitativo, produção artística, artesanal e industrial na perspectiva duma renovação ética e estética da cultura alemã. O Werkbwul concilia uma mística da natureza, um patriotismo missionário com um pragmatismo técnico na concepção e produção de artefactos, móveis e casas. Richard Riemerschmid (1868-1957), cujo quadro Garten Eden de 1897 se tornou num ícone do movimento reformista, apresenta dez anos depois, com móveis de madeira simples e sólidos, um Maschinenmobelprogramm; o arquitecto Peter Behrens (1868-1940) tornou-se, com o seu trabalho na AEG a partir de 1907, o primeiro designer alemão. O Werkbwul conseguiu estabelecer uma intensa cooperação entre os seus membros e a indústria; as suas exposições mostraram e popularizaram os respectivos produtos, e a sensibilidade dos consumidores e decoradores para a qualidade e o aspecto estético das mercadorias foi desenvolvida em cursos específicos. 295 Um dos projectos mais espectaculares do Werkbund foi a Gartenstadt He llerau perto de Dresden, uma síntese das tendências de reforma social e cul tural na tentativa de conciliar trabalho e vida num contexto hu mano e natural. Um centro cultural apresentava as manifestações mais variadas da arte moderna que atraíam visitantes como Paul Claudel, Franz Kafka e Martin Buber. Depois da guerra, o Werkbund privilegiou a técnica indu strial e o funcionalismo formal, corno na Weij3enholSiedlung em S'uttgart (1927). Embora maioritariamente apolítico, o Werkbl/nd transfomlOu-se logo em 1933 numa associação nacional-socialista, o Kampjbund Deutsche Kultur. Os membros da vanguarda artística que haviam optado então pela oposição vêem-se reduzidos ao silêncio ou à emigração. Aliás. um dos movimentos mais radicais, Dada, surgira em 1916, em plena guerra, quando fora fundado em Zurique o Cabaret Voltaire. Ponto de encontro de re fugiados, desertores e pacifistas, o Cabaret torna-se no palco duma revolta artísti ca que visa as bases da sociedade burguesa. Os membros tentam por todos os meios provocar e desconstruir a arte e as normas tradicionais, experimentando novas formas e técnicas e ostentando uma maneira difere nte de viver. O movimento, que se espalhou depois do fim da guerra na Alemanha e conquistou também Paris e Nova Iorque, influenciou fortemente o surrealismo francês e, duma maneira geral, todo o desconstrutivismo moderno. Estes poucos exemplos já evidenciam a extrema d;versidade dos movimentos artísticos entre 1890 e 1914 e a subsequente polariz ação ideológica que colocou o modernismo alemão e as vanguardas at1Ísticas numa posição defensiva. A luta aberta do regime hitle ri ano co ntra o modern ismo , porém, não só contou com um largo apoio da população como pôde lambém legitimar-se com uma tradição anti-modernista que se tin ha desenvolvido à margem da política cultural do l<eich, já de si bastante conservadora. A crítica cultural das últimas décadas do império é principalmente itTacional e nacionalista. O idealismo alemão, qUe fora originalmente universalista e cosmopolita, transforma-se, na segunda metade do século XIX, numa ideologia nacional que assenta na ideia da cultura sagrada e superior duma «raça» eleita. A modernização económica e política só pode, nesta perspectiva, tomar dimensões negativas. Esta mistura de aristocratismo cultural, conservadorismo político e misticismo popular caracteriza tendências e movimentos bastante diversos do fim-de-século. Os aspectos compensatórios e os ressentimentos do escapismo burguês resultam duma situação social concreta que leva à desvalorização da civilização ocidental Ccf. Cap. 11.1), enquanto a cultura se transforma em legitimação ideológica e ostentação decorativa. Por outro lado, a crítica evidencia também os limites do racionalismo e os perigos da mitificação do passado cultural alemão. Neste sentido. a «revolução conservadora» cujos 296 resíduos se fazem ainda senti.r na A lemanha co nte mporânea, é uma fase decisiva na própri a d ialéctic a da Aufkldrung; o irracion alismo soci al que domi nará os desti nos da Aleman ha até 1945 prob1ematiza radical me nte o papel da razão e da crítica numa fase avançada da modern idade. Bibliografia aconselhada U m apanhado sumári o da época encontra-se em Gbrtemaker (19(\9), especialmente no c ap. V (323-386) ; Hepp (19 92) apresenta duma forma suci nta os mov imenros de contestação e de vanguarda artística, baseando-se, entre outros, no estudo exaustivo de Hamann/Herm and (1973). Actividades propostas • Comentar o in íc io do livro de L ang behn (1890: 1): Es ist nac hgerade zum éiffentl ichen Ge he iIlU1i13 geworden. dal3 das geis tige Le ben des deu tschen Volkes sich gegen wartig in ei ne m Zu st ande des la ngsam 11 , E in ige rneinc n auch des rapiden Verfa Jl s be fi ndet. Die W is e nse hafl zersti ebt a ll sei tig in Spezia li smus; au f de m G eb iet d es De nke ns wi e der se héin e n L iteratur [eh lt es an epoche mae he nden Individual itate n; die bilde nde Kun st, obwohl durch bedeutcnde Meis ter venreten. entbeh rt d och der MO Il umentalitat und dam it ihrer be sten Wirk:u ng ; Mus iker ind se lten, M usik anten zahllos. D ie Arc hi tektur .iS l d ieAc hse der bi ldenden Kun sL wie d ie Phllosop hie die Aehse alie s wiss nschaftl iche n Denkens ist; augenblicklich giebt es aber weder e ine deutsche Architektur noch eine deutsche P hilo~ ()phje . Di grol3en Koryphaen auf den verschiedenen Gebieten sterben ati,,; les rois s'en von!. D as heutige Ku ns lgewerbe hat, auf seiner slí li st ischen He tzjagd, alie Zeiten und Vblker durchprobirt und ist trotzdem ode r gerade deshalb nicht zu einem eigenen Stil gelangt. Ohne F rage spric ht sich in aliem die se m der demokratisirende nivel li re nde atomisirende G e ist des jetzigen lahrhunderts aus. Comentar o excerto seguinte (M ommsen 1996: 268-269) sobre U:l1a reunião em Lauenstein (1917) onde se discutem as possibilidades duma nova cultura espiritual (Geisteskultur) . . esta perspectiva, um dos oradores defende a aliança entre o estado, a burocracia prussialla e o «espír ito» alemão. Seiner Auffassung nach ist der Staat das oberste Prin::-ip. Volk und Nation sind seine Gesc h bpfe. D ie Überwindung kapitalistischer 297 Mechanisierung und des Materialismus des politischen Kampfes ist nur durch grbJ3tmbgliche Starkung des idealistischen deutschen Staates mbglich, für den er eine Art Partei der Geistigen schaffen will Er glaubt, daJ3 der dem Staat hingegebene Mensch der künftige Menschheitstyp ist, der allein nicht veraltet sei, und an dem kurz gesagt, die Welt genesen werde. Dieses Weltbild erklart Maurenbrecher schon in den deutschen Klassikern insbesondere Fichte, und Hegel, Humboldt (wohl nur dem spateren), Goethe und Schiller zu finden, wenn man ihren Humanitatsbegriff richtig verstehe. Der Weltkrieg ist ihm der Opfer wert, wenn der deutsche klassische Staatsgedanke sich zu erhalten vermag. A. O. 298 alU!A souV sO -17 Resumo Enquadra-se a Repúb lica de Wei mar no contexto histórico alemão e internacional, na sequência da nova ordem decorrente da Revolução de Outubro e da I G uerra Mu ndial. Ind icam-se os principais acontecim entos que caracterizam o pcáodo a nível político e social. Referem-se as transformações a nível dos modemos meios de comunicação de massas, com particular ênfase para o cinema, destacam-se as importantes alterações introduzidas pela Escola do Bauhaus, no domín io da arquitectura e do design. Objectivos • E nq uadrar os acontecimentos relacionados com o período entre as duas guerras mundiais no contexto da história contemporânea do espaço de expressão cultural alemã. • Distinguir as diversas fa ses da R epública de We imar, tendo em consideração o jogo de forç as soci ai s e políticas suas contemporâneas, quer a nível nacional, qu~r internacional. Articular os acontecimentos políticos e sociais COIr: as transformações tecnológicas no campo dos modernos meios de comunicação ele massas (cinema, rádio) e com as vanguardas artísticas. 301 4.1 Entre o Leste e Oeste: O regresso da Kultur Num célebre ensaio, Betrachtungen eines Unpolitischen (Mann 1956, cf. Cap. II.I), escrito durante a primeira guerra mundial, Thomas Mann utiliza um estilo particularmente contundente e inesperadamente primário para, num jogo de oposições simplista, opor a Kultur alemã à Zivilisation francesa. Tudo aquilo que pode ser associado a exterioridade, a superficialidade, a falso brilho é colocado do lado da Zivilisation, que não representa, além do mais, a verdadeira liberdade, mas apenas consagra o direito ao sufrágio. A Zivilisatiol1 desconhece a verdadeira humanidade, pesem embora todas as proclamações de fraternidade no campo político, campo esse que mais não é que um momento desse mundo puramente aparente que, não só a França, como toda a Europa ocidental protagonizam. A verdade, poder-se-ia ainda dizer, seguindo a lógica do jogo de oposições de Thomas Mann, encontra-se do lado da Kultur, que a gemlanidade encarna por excelência. Representa, além do verdadeiro espírito humanista de uma tradição burguesa, na qual o autor se fil ia - apelando às suas raízes burguesas na cidade de Lübeck - , tudo o que de positivo existe nessa tradição: não só a «verdadeira» Iiberdade, a «verdadeira» profundidade, como a «verdadeira» arte, arte essa que não pode ser reduzida à tagarelice dos literatos de café que, distraídos, ouvindo apenas o rumor em seu redor, se alienam da sua interioridade, se vendem ao público ou a uma causa política, traindo a sua «essência alemã». Para além das implicações que este texto tem para uma caracterização da evolução de Thomas Mann, o posicionamento do autor dos Buddenbrooks (1901, obra a que, sobretudo, deve o Prémio Nobel) retoma um conjunto de oposições que são paradigmáticas da história da Alemanha sua contemporânea. o texto faz parte de uma série de tomadas de posição enunciadas por inúmeros intelectuais alemães, em vésperas e no decurso da primeira guerra mundial. As oposições que Thomas Mann fixa - e que Oswald Spengler também utilizara em Der Untergang des Abendlandes (Spengler 1972) - correspondem a um entendimento particular da identidade alemã e da sua vocação de pendor fundamentalmente essencialista e isolacionista. A «alma», a «cultura», o «Homem alemão» representam toda uma série de valores positivos, a saber a verdade face à aparência e à impostura de um Ocidente cada vez mais artificial, exterior a si mesmo. Este isolacionismo, como consequência fatal de uma vocação específica da «essência» ou da «cultura» alemãs, ecoava de resto no diário de Thomas 303 Mann , onde, já m 19 11 , o mesmo citava o escritor su íço Jakob Schaffner (1875- 1944), mais tarde conhec ido pe las suas simpatias nacional-socialistas: Der deutsche Mensch \VeiJ3 im tiefsten Gru nde seiner Seele, daJ3 seine Eigenart in der Welt níemals vers tand n u. gedu ldet sein wird, die deutsche ation muS im Gegensatz zur Welt exisli ren oder sie mu J3 aufhbren, ais solche zu exist iere n. (apud Mann 1979: 102-103) Reencontramos aqui não só muitos dos estere ót ipos que os a le mães cultivaram em relação a si mesr,lOS, como muitos dos que a.i nda persistem no estrange iro, em bora po r vezes com carga neg ativa, e que conheceriam redobrado vigor, depois de 1945, para reaparece rem na stq uência da unificação em 1990. Se bem que com sinais contrários, a «v ia específica» (Sonderweg) da Alema nh a, como al tcridade seja respéi tad a seja temida, é renovadamente sublinhada. Se a A lem anha teve ou não uma «via específica» ou se de facto foi ou não, sobretudo, uma Kulturnatiol1, não compete aqui decidir (ver sobre a questão o Cap. IV.2), mas tão só apontar para o facto de que a ideia de uma partic ul aridade alemã existi u e existe. A mesma já ecoa nos D iscursos à nação alemâ de Fichte, onde se celebra uma germanidade essencial e pro fund a, baseada numa lín gua pura e, por isso, viva, por oposição à latinidade (à Zivilisation) , que se funda numa língua derivada, separada das suas raízes, contaminada por estrangeirismos que a falsificam e to m am, co nsequentemen1c:, acessória e morta (cf. Cap. ID.I). D e certa forma é esta oposição que ree ncontramos no al udido texto de T homas M ann , passados cerca de cem anos subl inhan do agora, em condições diferentes , a necessidade de a Alemanha se isolar, se se quiser manter fiel a si própria. Contudo, este isolamento em breve deixaria de equival er à ten tativa de preservar uma identidade cultural , a partir da qual se sonh ava uma união política, como sucedera com Fichte em Berlim, inveclivando contra a França napoleónica. Com o fi m da guerra e a derrota ale mã em 1918. não só se punha cobro ao primeiro grande sonho da Alemanha imperialista, como terr.linava o II Reich de recente fu ndação (1871), soçobrando simultaneamente oll tra rem iniscência de um passado germânico mais antigo e mais glorioso , o I mpério dos Habsburgos. ::ra a derrota de duas ideias possíveis de Alemanha que então terminava, bem como a capi~ulação de uma l·..:;cém-consagrada potência, não só perante as clássicas rivais eu ropeias - a França e a Grã-Bre tanha - , mas também face a um novo in imigo, herde iro dos valores da Europa ocide ntal, contra a qual a identidade alemã se tentara també m afirmar no dec urso do conflito, a saber, os Estados U ni dos da Amé ri ca, que , pela pri meira vez , invertiam o 304 jogo de acontecimentos e de interesses no Velho Continente. E um antigo adversário manifestava-se agora sob novas roupagens, ameaçando subverter a antiga ordem europeia, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a acenar com novos modelos e a construção de uma utopia ainda mais radical que a que a França ousara em 1789. Não só a Alemanha, como o mundo, eram obrigados a repensar estraté .. gias, a redefinir opções económicas, políticas e sociais, face aos acontecimentos ocorridos nesse princípio de século. Mas, enquanto potência derrotada, a Alemanha via-se confrontada com uma situação particular, se se tomar em consideração as providências previstas no Tratado de Versalhes. Este fora assinado, sob pressão dos aliados vencedores, a 26 de Junho de 1919, determinando a cedência da Alsácia e da Lorena, de Posnan, da Prússia Oriental e de outras regiões, devendo ainda a Alemanha renunciar a quaisquer direitos no estrangeiro, bem como às suas colónias. O Tratado exigia ainda o desarmamento da Alemanha, a cedência de todo o material bélico e estipulava graves reparações de guerra, com pesadas consequências para a indústria alemã. Os territórios da margem esquerda do Reno foram ocupados e divididos em três zonas, a fim de garantir o cumprimento do acordo. As dívidas da Alemanha elevavam-se a 269 mil mil hões de marcos, que deveriam ser pagos em 42 prestações anuais, embora o montante viesse a ser reduzido, sob pressão inglesa e francesa, para 132, na Conferência de Londres (1921). Seguir-se-lhe-ia o Plano Dawes (1924), que regulamentava as reparações e concedia um empréstimo de 800 mil milhões de marcos, a que em 1930 se sucederia o Plano Young, cujas concessões já não surtiriam quaisquer efeitos, dada a situação catastrófica da economia alemã. Em 1932, a conferência de Lausanne encerrava a questão das reparações de guerra, sendo a dívida perdoada. Perante estes factos, acrescidos da difícil conjuntura internacional, sobretudo nos anos 20, a que nem os EUA ficariam incólumes, pode-se registar a precariedade da situação económica e financeira da Alemanha durante a República de Weimar, com um pequeno e ilusório oásis de prosperidade entre 1925 e 1929/1930, na sequência do referido Plano Dawes e dos empréstimos internacionais. O certo é que este período se encontra rodeado de anos de choque e de caos, de desemprego e de terror político. A capitulação da Alemanha será vista como uma catástrofe a nível económico, é certo, sendo a maioria da população por ela atingida, mas a derrota será, sobretudo, sentida como desonra, manifestando-se, deste modo, o orgulho ferido de uma «nação atrasada», que só recentemente tivera ocasião de resolver, de forma autoritária (pelo ferro e pelo sangue, como o afirmou 305 Bismarck) e sob hegemonia prussiana, o problema da criação de uma nação política. Oscilando entre a revolta social da esquerda, inspirada em parte pelos conselhos de operários e de soldados da União Soviética (como foi o caso da USPD - Unabhiingige Sozialdemokratische Partei Deutschlands-e da Liga Spartakus, o futuro partido comunista alemão, KPD -Kommunistische Partei Deutschlands) e o rad ical ismo de direita, du rante os breves anos desta efémera República, a Alemanha ver-se-á dividida entre duas soluções radicais, que pouco espaço darão para a normalização de uma vida parlamentar, cuja experiência começava a ensaiar. A representação dos cidadãos pelos seus deputados eleitos, a consagração da divisão dos poderes serão sentidas como uma consequência da derrota e da perda da autonomia nacional de uma colectividade que apenas começara a tomar consciência da sua unidade política. Assim, a tradição prussiana, no seu autoritarismo e consequente recusa de um debate político efectivo através de orgãos constitucionalmente instituídos, ressurgirá quer na desconfiança perante o parlamento por parte dos partidos conservadores, quer no terrorismo dos Freikorps. Estes eram constituídos por grupos de voluntários, saídos do exército - cujo papel de intervenção lhes fora inicial e ironicamente atribuído pelo SPD, na sua urgência de defender a via parlamentar contra a solução radical da esquerda revolucionária - , grupos esses que gradualmente ressuscitariam um heroísmo que a derrota na guerra não lhes permitira levar a cabo. Simultaneamente, as elites militares mantinham o seu poder, pesem embora todas as humilhações infligidas pelos vencedores. Por sua vez, grande parte da classe operária e a esquerda revolucionária encaravam o exemplo soviético como um estado de excepção a seguir, vendo com suspeita a estratégia de moderação e de capitulação dos sociais-democratas perante a tradicional aliança entre a aristocracia - com considerável representação entre a admiristração estatal e as forças armadas - e a alta burguesia. Contudo, outra grande parte da classe operária parecia apoiar esta estratégia reformista, se bem que um vasto número de trabalhadores visse com graves reservas esta política de alianças. Foi assim que a República conheceu os seus primeiros grandes sobressaltos . .Ylesmo o compromisso de tentar fazer coexistir a democracia directa dos conselhos revolucionários com a representação parlamentar não viria a ser consagrado, interrogando-se os historiadores sobre a possibilidade de a Alemanha ter podido mais uma vez encetar uma «via específica». Esta via era agora destruída por uma correlação de forças em tudo desfavorável a esta mediação, embora outras leituras defendam a inevitabilidade do choque entre duas concepções que se excluíam necessariamente uma à outra. 306 Assim, a República de Weimar, fundada à sombra da herança de Goethe e de Schiller e do seu humanismo clássico, dificilmente encontrou eco na população em geral, mesmo na maioria mais silenciosa que passou a associar o parlamentarismo à derrota e à crise económica e social, ansiando intimamente por um poder musculado e paternalista que gerisse a crise, como o viria a confirmar a ascensão, por via eleitoral, de Adolf Hitler (1889-1945) ao poder e o consentimento prestado às medidas crescentemente demagógicas e autoritárias. Assim a Zivilisation e a sua tradição política democrática eram contestadas à direita e à esquerda, em nome de uma Kultur, de uma herança ou de um futuro que se adivinhava apenas a Leste. Deste modo a posição de Thomas Mann em Betrachtungen eines Unpolitischen (1918), que o escritor temperaria de resto, após a consagração do novo regime republicano em Von deutscher Republik (1922), evoca essa oposição entre a Alemanha e «os outros», entre a democracia ocidental e a «via específica» daKulturnation, entre o Ocidente e o Oriente, entre os EUA e a URSS, reflectindo, sobretudo, essas posições a polarização entre os grupos activos que, no seu radicalismo, recusavam qualquer solução que levasse à normalização da jovem república. Entre estes dois extremos uma população descontente, mas sem empenho político, vivendo o desespero provocado, quer pela precária situação económica, quer pelos traumas e dramas quotidianos e pessoais da guerra perdida, aguardava, passiva, uma solução. Não será de estranhar que o livro de Erich Maria Remarque (1898-1970), 1m Westen nichts Neues (1929), descrevendo os horrores de uma luta sem finalidade, tenha constituído um best-seller numa sociedade em que a literatura ia sendo cada vez mais submetida às regras do mercado. Mas esse anti-belicismo tardaria em manifestar-se civicamente e as frustrações da guerra e da deITota seriam instrumentalizadas pelo regime totalitário que, tendo proibido o referido romance, conduziria essa mesma população abstencionista a uma nova guerra, porventura, ainda mais devastadora. 4.2 O pós-guerra e as tensões sociais: o exemplo soviético e a democracia ocidental Recorde-se que o regime parlamentar não constituiu o resultado de uma imposição ou conquista popular, mas foi consequência de uma situação extrema. No estado de sítio que antecedeu a derrota, assiste-se, a 20 de Outubro de 1918, à revolta da marinha alemã, alastrando a rebel ião aos operários e 307 Bismarck) e sob hegemonia prussiana, o problema da criação de uma nação política. Oscilando entre a revolta social da esquerda, inspirada em parte pelos conselhos de operários e de soldados da União Soviética (como foi o caso da USPD - Unabhiingige Sozialdemokratische Partei Deutschlands-e daLiga Spartakus, o futuro partido comunista alemão, KPD -Kommunistische Parte i Deutschlands) e o radicalismo de direita, durante os breves anos desta efémera República, a Alemanha ver-se-á dividida entre duas soluções radicais, que pouco espaço darão para a normalização de uma vida parlamentar, cuja experiência começava a ensaiar. A representação dos cidadãos pelos seus deputados eleitos, a consagração da divisão dos poderes serão sentidas como uma consequência da derrota e da perda da autonomia nacional de uma colectividade que apenas começara a tomar consciência da sua unidade política. Assim, a tradição prussiana, no seu autoritarismo e consequente recusa de um debate político efectivo através de orgãos constitucionalmente instituÍdos, ressurgirá quer na desconfiança perante o parlamento por parte dos partidos conservadores, quer no terrorismo dos Freikorps. Estes eram constituídos por grupos de voluntários, saídos do exército - cujo papel de intervenção lhes fora inicial e ironicamente atribuído pelo SPD, na sua urgência de defender a via parlamentar contra a solução radical da esquerda revolucionária - , grupos esses que gradualmente ressuscitariam um heroísmo que a derrota na guerra não lhes permitira levar a cabo. Simultaneamente, as elites militares mantinham o seu poder, pesem embora todas as humilhações infligidas pelos vencedores. Por sua vez, grande parte da classe operária e a esquerda revolucionária encaravam o exemplo soviético como um estado de excepção a seguir, vendo com suspeita a estratégia de moderação e de capitulação dos sociais-democratas perante a tradicional aliança entre a aristocracia - com considerável representaç5.o entre a administração estatal e as forças armadas - e a alta burguesia. Contudo, outra grande parte da classe operária parecia apoiar esta estratégia reformista, se bem que um vasto número de trabalhadores visse com graves reservas esta política de alianças. Foi assim que a República conheceu os seus primeiros grandes sobressaltos. Mesmo o compromisso de tentar fazer coexistir a democracia directa dos conselhos revolucionários com a representação parlamentar não viria a ser consagrado, intelTogando-se os historiadores sobre a possibilidade de a Alemanha ter podido mais uma vez encetar uma «via específica». Esta via era agora destruída por uma correlação de forças em tudo desfavorável a esta mediação, embora outras leituras defendam a inevitabilidade do choque entre duas concepções que se excluíam necessariamente uma à outra. 306 Assim, a República de Weimar, fundada à sombra da herança de Goethe e de Schiller e do seu humanismo clássico, dificilmente encontrou eco na população em geral, mesmo na maioria mais silenciosa que passou a associar o parlamentarismo à derrota e à crise económica e social, ansiando intimamente por um poder musculado e paternalista que gerisse a crise, como o viria a confirmar a ascensão, por via eleitoral, de Adolf Hitler (1889-1945) ao poder e o consentimento prestado às medidas crescentemente demagógicas e autoritárias. Assim a Zivilisation e a sua tradição política democrática eram contestadas à direita e à esquerda, em nome de uma Kultu/; de uma herança ou de um futuro que se adivinhava apenas a Leste. Deste modo a posição de Thomas Mann em Betrachtungen eines Unpolitischen (1918), que o escritor temperaria de resto, após a consagração do novo regime republicano em Von deutscher Republik (1922), evoca essa oposição entre a Alemanha e «os outros», entre a democracia ocidental e a «via específica» da Kulturnation, entre o Ocidente e o Oriente, entre os EUA e a URSS, reflectindo, sobretudo, essas posições a polarização entre os grupos activos que, no seu radicalismo, recusavam qualquer solução que levasse à normalização da jovem república. Entre estes dois extremos uma população descontente, mas sem empenho polftico, vivendo o desespero provocado, quer pela precária situação económica, quer pelos traumas e dramas quotidianos e pessoais da guerra perdida, aguardava, passiva, uma solução. Não será de estranhar que o livro de Erich Maria Remarque (1898-1970), 1m H0sten nichts Neues (1929), descrevendo os horrores de uma luta sem finalidade, tenha constituído um best-seller numa sociedade em que a literatura ia sendo cada vez mais submetida às regras do mercado. Mas esse anti-belicismo tardaria em manifestar-se civicamente e as frustrações da guerra e da derrota seriam instrumentalizadas pelo regime totalitário que, tendo proibido o referido romance, conduziria essa mesma população abstencionista a uma nova guerra, porventura, ainda mais devastadora. 4.2 O pós-guerra e as tensões sociais: o exemplo soviético e a democracia ocidental Recorde-se que o regime parlamentar não constituiu o resultado de uma imposição ou conquista popular, mas foi consequência de uma situação extrema. No estado de sítio que antecedeu a derrota, assiste-se, a 20 de Outubro de 1918, à revolta da marinha alemã, alastrando a rebelião aos operários e 307 soldados que passam a organizar-se em conse lhos, soviético. O Imperador Guilherme U vê-se obrigado sendo a República p'-oclamada pelo social-democrata (1865-1939) e confiado o executivo ao Fr':sidente do (1871-1925). seguindo o exemplo a renu nciar ao tronl, Philipp Scheidemann SPD , F riedrich E bert Em Novembro é criado um novo governo a cargo do Conselho de Comissários do Povo (Rat der Volksbeauftragten), unindo representantes do SPD (Sozialdem.okratische Partei Deutschlands) e do US PD (Unabhangige Soúaldemokratische Partei Deutsch/ands), surgindo paralel amente o Conselho Executivo dos Conselhos dos Operários e Soldados. A escolha de uma via que conciliasse os modelos parlamentar e revolucionário parecia ainda possível. Ainda no mesmo mês, a Alemanha aceita as condições de ces sar-fogo impostas pelos aliados, o mesmo sucedendo, algum tempo depois, com o Império Austro-Húngaro que se di<;solvera pouco antes, sob o impulso do Presidente norte-americano Wilson, dando OrIgem à nova ordem balcâilica. Recuando perante um modelo soviético que sentia cada vez mais iminente, o Presidente do SPD e o sucessor de Ludendorff, o General Groener, firm am um acordo que conduzirá à realização de eleições com vista à criação de uma assembleia nacional, o que leva a que os representantes do US PD abandonem o Conselho de Comissários do Povo. À sua esquerda, a Liga Espartaquista transformar-se-á no KPD (Kommunistische Partei Deutschlands), liderando a revolta espartaquista os seus dirigentes Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg (1871-1919), que morrerão às mãos dos Freikorps, postos ao serviço do regime parlamentar em construção. Assim, quando em Fevereiro de 1919, o Parlamento inaugura os seus trabalhos em Weimar, este não pode ignorar a situação precária em que foi criado: contestado à esquerda, apoiado por uma aI iança problemática, defendido por voluntários belicistas que se reconhecem, independentemente de vagas concepções políticas, na obediência incondicional ao chefe, o desejo do novo regime parlamentar de prosseguir uma via de normalização ver-se-á permanentemente confrontado tanto com a desconfiança do exército e da burguesia nacionalista como com as pressões extremistas , quer da esquerda, quer da direita, apesar do apoio tácito de uma população maioritária que, contudo, se retrai de uma intervenção política activa. A nova constituição é também uma con stituição de compromi sso, tendo à sua cabeça um presidente dotado de poderes excessivos, como a evolução nos anos 30 o virá a confirmar. e se ndo composta por du as câmaras, o Reichstag, com depLltados eleitos nacion alme nte, e o Reichsrat, órgão que reúne os representantes dos Vinder. 308 4.3 1923-1929/1 930: a estabilidade emprestada ou a vitória da Zivilisatiol1 ? Os anos en tre 19 19 e 1923 caracterizar-se-ão por uma débil situação económica, a que acrescem as sublevações constantes. É o caso do Ruhr, de Hamburgo e de M unique, onde é criada uma ~epública de conselhos revolucionários, rapidamente abolida, através de uma sangrenta intervenção armada. Entretan to, a extrema direita difunde o terror, através de sucessivos assassinatos, entre os quais, o M inistro dos Negócios Estrangeiros, Walter Rathenau (1867 -1922) em 1922, e empreende diversos golpes de estado (Kapp-Lüttwitz Putsch 1920, Putsch da Schwarze Reichswehr 1923, Hitler-Putsch 1923). Mas a Repúbl ica sobrevive com o apoio do SPD e do partido católico do Zentrum, sob o olhar crescentemente céptico da burguesia nacionalista e sob a desconfiança das elites militares. As coligações sucedem-se, a soberania nacional vê-se novamente posta em perigo face à invasão do Ruhr pelas tropas francesas e belgas, como forma de pressionar a Alemanha a pagar as suas dívidas, a desordem eclode em Hamburgo e, em Munique, Hitler tenta um golpe de Estado a 8 de Novembro de 1923. Na Baviera, no Reno e no Palatinado as revoltas separatistas são dominadas, sendo finalmente a Grande Coligação - l ide rada por Stresemann e integrando representantes do SPD, do Zentrum, do D D P liberal (Deutsche Demokratische Parte i) e do DVP (D eutsche Volkspartei), igualmente liberal, mas situado mais à direita impossibi litada de prosseguir o seu trabalho face ao voto de desconfiança dos sociais-democratas (1923), que vêem com maus olhos o tratamento desigual dado às revo ltas da extrem a esquerda, na Saxónia, e da extrema direita, na B avie ra. Contudo, Gustav Stresemann (1878-1929) conseguirá, agora como ministro dos negóc ios estrangeiros do governo constituído após as eleições de 1924, a nornJali zação das relações intemacionais, designadamente com a França. Assim, o Ruhr é desocupado e a Alemanha consegue fazer-se representar na Sociedade das Nações (1926). No ano seguinte, é posto termo ao controle militar dos aliados sobre a Alemanha e, na Conferência de Haia, consegue-se uma solução provisória para os problemas de reparação, designadamente através do Plano Young. Nias a extrema direita mantém-se atenta: Hitler consegue uma ali a nça com o partido conservador DNVP (Deutsche Nationalvolkspartei) para contestar, sem sucesso, esse apoio. Cs governos e as eleições sucedem-se, a crise acentua-se, a esquerda ganha telTeno, obtendo, nas eleições de 1928, 40% da totalidade dos mandatos no parlamento. Con~(ldo, as cisões entre os diversos partidos, nomeadamente nos de esquerda não deixam de favorecer a ascensão da extrema direita. 309 4.4 1930-1933: o regresso da Kultur? Com efeito, entre 1930 e 1933, assiste-se a uma evolução cada vez mais favorável à radicalização e imposição do ideário nacional-socialista. A situação surgia favorecida, por um lado, pelas deficiências da Constituição da República de Weimar - corrigidas, de resto, em 1949, na Lei Fundamentai da RFA - por outro, pelo facto de, entre 1924 e 1929, o sucesso da política externa de Stresemann não ter conseguido pôr cobro aos conflitos sociais e a precariedade da situação económica só ter sido provisoriamente ultrapassada. O desemprego mantinha-se como uma constante. Por outro lado, com a ascensão de Hindenburg ao poder, um ano depois da morte de Stresemann em 1929, a velha elite militar passara a obter um lugar fundamental no controle dos acontecimentos. À queda do governo liderado pelo último chanceler social-democrata Müller em 1930, sucede o governo de Brüning, apoiado por Hindenburg a fim de fazer frente à esquerda maioritária. Nas eleições de 1930, o SPD e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiter-Partei), conhecem um aumento considerável de apoios (24,5 e 18,3% respectivamente), mas a situação radicaliza-se, ganhando este último as eleições de 1932 (37,3%) e aumentando os votos no KPD (16,9% contra 13,1 em 1930) em prejuízo do SPD (20,4%), depois de, com o governo de von Papen, a república se ter transformado num regime presidencial. O facto de a Alemanha ter recuperado o crédito externo e de a questão das reparações de guerra se ter entretanto resolvido definitivamente não evitava o descrédito de sucessivos governos e o avanço da extrema direita. Mas embora na sequência das eleições de Julho de 1932, o NSDAP tivesse surgido como o partido eleitoral mais votado (37,3%, 230 deputados), nas eleições subsequentes à crise política de Novembro do mesmo ano, desce para 33,1 %: o número de deputados eleitos pelo SPD (121) e pelo KPD (100) representam a maioria parlamentar contra os 196 mandatos do NSDAP. Em Janeiro de 1933, Hitler e von Papen acordam na formação de um governo, ganhando o apoio de Hindenburg que aceita nomear Hitler Chanceler e convocar novas eleições. A estas suceder-se-á o incêndio do Reichstag, a 27 de Fevereiro de 1933, que servirá de pretexto para inúmeras perseguições, designadamente aos comunistas - acusados pelos nacional-socialistas de estarem na origem do mesmo. Os direitos fundamentais são suspensos e, a pretexto da «protecção do povo», é declarado o estado de emergência, sendo o Parlamento encerrado a 23 de Março de 1933. Assim terminava o primeiro regime parlamentar na Alemanha. 310 Ao escolher esta via, a Alemanha não optava por uma solução particular, mas antes por uma solução semelhante à de outros estados europeus, designadamente a do fascismo italiano (1929), em cujo modelo os nacional-socialistas também se haviam inspirado, à semelhança de Portugal (cf. Constituição de 1933) e da Espanha (1939). As SA (Sturmabteilung), em breve substituídas pelas SS (Schutzstaffel), disseminavam o terror de um regime em torno de um Führer que sabia dividir os seus correlegionários para afirmar a sua omnipotência. Entre a adesão das massas, devidamente manipuladas e o terror dos grupos nazis, a Alemanha abdicava da democracia recentemente conquistada. Restava saber se prevaleciam os argumentos a favor da Kultur ou da ZivilisatioT1. 4.5 Para além do bem e do mal Que os jogos de dicotomias raras ou nenhumas vezes correspondem à realidade, mas constituem antes meras grelhas deficitárias para a apreciação e construção fatalmente subjectivas da mesma provam-no as ambiguidades da República de Weimar que o UI Reich saberia instrumentalizar a sua favor. A sucessão dos acontecimentos mais marcantes, a incapacidade de a República constituída lidar com os radicalismos e, sobretudo, o desfecho do regime parlamentar contribuiram para uma leitura do período em questão, predominantemente orientada para a trágica evolução depois de 1933. Por um lado, há que reconhecer que a polarização social varria toda a Europa, dividida entre o modelo soviético e o parlamentarismo tradicional. Por outro, há que recordar que a Alemanha, a «nação atrasada», não só possuía uma importante indústria nacional, apesar de toda a crise do pós-guerra, como se encontrava entre as nações tecnologicamente mais desenvolvidas da Europa. Além disso, a sua classe trabalhadora possuía uma das mais fortes e teoricamente mais bem apetrechadas organizações, o que leva a indagar da validade absoluta das teses que atribuem o desfecho da República de Weimar ao atraso político da Alemanha, em contraste com a industrialização da mesma. Saliente-se ainda que o mundo e a Europa viram durante algum tempo o emergir do poder nacional-socialista de uma forma ambígua, não só como uma ameaça remota, mas também como uma garantia de o mesmo constituir um tampão para o «perigo bolchevique». O certo é que a Alemanha demonstraria a incapacidade de normalizar a sua vida política e social entre as duas guerras, levando apenas a derrota de 1945 à capitulação dos seus sonhos excessIvos. 311 Com efeito, a República de Weimar nasceu de uma situação de emergência, terminando com outra ainda mais fatal para a identidade alemã. Também é certo que essa situação de excepção, deconente dos acontecimentos de 1918, não pusera cobro a uma tradição que remontava à era bismarckiana e a uma determinada maneira de entender a nação alemã, ou seja, à medida dos interesses prussianos e da tradicional aliança entre a aristocracia e a alta burguesia. Será essa aliança que ressurgirá nestes anos de república, em associação com o reformismo de uma classe operária, habituada a contar com o apoio do Estado, que lhe oferecia a segurança e alguma prosperidade a troco de cedências no campo político e social. Por outro lado, o ressentimento face às reparações de guerra não se justificava tanto como frequentemente se pretende. Para além da afirmação dos interesses económicos e estratégicos das diversas nações vencedoras, as condições do Tratado de Versalhes não haviam posto em causa a soberania alemã no seu essencial, como o comprova - ao contrário do que invocavam os nacionalistas mais aguerridos - a evolução dos acontecimentos. Os aliados não recusariam as tentativas de normalização da vida económica e pol ítica alemã, pelo que finalmente, pouco antes da subida de Hitler ao poder, a Alemanha se via novamente reconhecida como membro de pleno direito da comunidade internacional, bem como cessavam as obrigações financeiras que as reparações haviam implicado. É certo que a crise económica foi avassaladora, mas a mesma foi extensiva a outros países que, no entanto, se souberam abster de soluções totalitárias. A Alemanha apenas constituía parcialmente um caso particular. Se é verdade que a experiência parlamentar foi vista como um corpo estranho, uma solução imposta pela força das circunstâncias ou avessa ao heroísmo que a derrota abalara, também é verdade que a adesão ao discurso radical tardou em fazer-se: no início da República de Weimar a classe trabalhadora apoiava maioritariamente o compromisso social-democrata contra a esquerda radical, os católicos reunidos no Zentrum e a burguesia moderada anuíam, embora com reservas, ao regime. Embora a polarização da sociedade se fosse acentuando, há que recordar que a oposição ao Plano Dawes, fomentada pela extrema direita, não logrou suscitar os apoios desejados. 4.6 A civilização e as massas Pese embora a difícil situação económica, a Alemanha obtivera, através dos empréstimos concedidos para o auxílio do pagamento das dívidas e reparações da guerra, condições que lhe haviam permitido renovar a sua indústria e a sua produção, aproximando-se assim dos países mais desenvolvidos da 312 Europa. A terra dos «poetas e pensadores» - fiel, de resto, à Realpolitik de que Bismarck fora o grande arauto - sabia unir ao heroísmo de direita e ao radicalismo de esquerda a capacidade de renovar eficazmente a sua economia. Em breve, se assistia na Alemanha ao eclodir de hábitos de consumo, decorrentes de uma produção inspirada no fordismo, em que as massas eram simultaneamente os grandes sujeitos da produção e do consumo. Tal evolução pennitia o emergir de uma massa anónima consumidora que, seduzida pelo modelo norte-americano, privilegiava os filmes de Chaplin e saudava com entusiasmo o jazz, sob os olhos reprovadores dos conservadores mais elitistas ou dos estetas mais nacionalistas. Os hábitos de consumo cada vez mais generalizados, desde os cosméticos, às revistas ilustradas, à frequência do cinema e aos locais de diversão, ofereciam uma realidade cultural e uma indústria inimagináveis antes da guerra. A rádio difundia, a par do cinema, uma cultura do lazer, permitindo a distracção e o entretenimento pouco exigentes para uma população fatigada por longas horas de trabalho, em que o sector terciário ganhava peso crescente, sobretudo, em Berlim. É assim que a subjectividade expressionista, herdada do século XIX, é gradualmente posta em causa, processo esse, de resto, já iniciado, pela provocação Dada, no seu recurso à montagem, na sua contestação da arte como uma manifestação da Bildung humanista e burguesa, recuperada pela sociedade guilhermina para fins de eficácia política e económica, confonne com os interesses das classes dirigentes. Seguir-se-Ihe-ia a vaga da Neue Sachlichkeit, com o seu culto da tecnologia, da neutralidade, da objectividade, da estatística: o engenheiro substitui o poeta, a linguagem dos factos consumados ocupa o lugar da especulação metafísica. Busca-se a realidade nua e crua, despida de qualquer substância, tal como a estética proibe aos seus modelos os acessórios burgueses ou decadentes. A literatura, sujeita às regras do mercado, abandona o santuário: o público reclama temas mais «objectivos» (sachlich), mais reportagens e menos ficção, mais ensaio e muita autobiografia. As sondagens de opinião horrorizam a camada mais culta: aquilo que as massas lêem nada tem em comum com os textos que a escola canonizara e institucionalizara. A fotografia e o cinema zelam através das suas técnicas de reprodução para que o culto da obra de arte, o seu carácter inédito e único, dê lugar a uma relação de proximidade que impossibilita a manutenção da sua «aura»: Es empfiehlt sich, den oben für geschichtliche Gegenstande vorgeschlagenen Begriff der Aura an dem Begriff einer Aura von natürlichen Gegenstanden zu illustrieren. Diese letztere definieren wir ais einmalige Erscheinung einer Ferne, so nah sie sein mago An einem Sommemachmittag ruhend 313 einem Gebirgszug am Horizont oder einem Zweig folgen, der seinen Schatten auf den Ruhenden wirft - das hei Bt dieAura dieser Berge, dieses Zweiges atmen. An der Hand dieser Beschreibung ist es ein Leichtes, die gesellschaftliche Bedingtheit des gegenwartigen Verfalls der Aura einzusehen. Er beruht auf zwei Umst~lnden, die beide mit der zunehmenden Bedeutung der Massen im heutigen Leben zusammenhangen. Namlich: Die Dinge sich rdumlich llnd menschlich »ndherzubringen« ist ein genau 50 leidenschaftliches Anliegen der gegenwdrtigen Masse wie es ihre Tendenz einer Überwindung des Einmaligen jeder Gegebenheit durch die Aufnahme von derer Reproduktion isto Tagtaglich macht sich unabweisbarer das Bedürfnis geltend, des Gegenstands aus nachster Nahe im Bild, vielmehr im Abbild, in der Reproduktion, habhaft zu werden. Und unverkennbar unterscheidet sich die Reproduktion, wie illustrierte Zeitung und Wochenschau sie in Bereitschaft halten, vom Bilde. Einmaligkeit und Dauer sind in diesem so eng verschrankt wie Flüchtigkeit und Wiederholbarkeit injener. (Benjamin 1980: IV1, 479-480) o desporto conhece um interesse redobrado, quer corno prática, quer como espectáculo. O culto do corpo vigoroso e saudável revela a mesma busca de uma realidade desnudada de artifícios, de que as práticas do nudismo, cada vez mais popularizadas, constituem também exemplo. O aparente regresso à simplicidade natural tem a sua verdadeira contrapartida numa vida na grande metrópole cada vez mais rodeada dos artifícios técnicos da «civilização» (cf. Cap. IV2). Na arquitectura e na decoração, a preferência pelo estilo da Neue Sachlichkeit surge relativamente divulgada entre as classes da pequena e média burguesia, independentemente dos seus credos ou opiniões políticas. A vanguarda do projecto do Bauhaus tornava-se gradualmente popular e acessível, fruto das próprias concepções da escola, antes de o nacional-socialismo proibir a sua actividade. Em Dessau, Walter Gropius (1883-1969) consagrava um projecto que já se começara a desenhar em Weimar, segundo o qual o modelo inicial da escola que pretendia unir a arte ao artesanato, evoluiria para uma associação crescente entre a arte e a técnica: a utopia expressionista de Johannes Itten (1888-1967), com o seu culto da individualidade, os elementos místicos e a sua associação entre reflexão e produção, será em breve substituída pelo tecnicismo de Walter Gropius e de Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969). 4.6.1 Bauhaus: arte e técnica Do mesmo modo que, segundo Walter Benjamin, a fotografia e o cinema, baseados no princípio da reprodução, revolucionam de forma radical a arte tornando-a acessível às massas, despojando-a do seu carácter de culto e da 314 sua natureza inédita - da sua «aura» - também o Bauhaus busca as linhas simples e despojadas, os materiais industriais como o ferro e o aço que permitam a sua (re)produção industrial e o seu consumo e utilização por qualquer operário. o lema do Bauhaus é a racionalização: os espaços tornam-se sóbrios e geométricos, a pintura prima pela abstracção (Paul Klee e Wassily Kandinsky), as coisas querem-se despidas de ornamento, desde os objectos de uso quotidiano às máscaras teatrais. A austeridade e a simplicidade são o lema, austeridade e simplicidade que não se esgotam na metafísica utópica que fez com que os membros do Bauhaus unissem as suas produções em massa ao vanguardismo mais arrojado: o seu sonho é o conforto e a estética para todos. A tristeza uniforme dos futuros bairros sociais - construídos sobretudo depois de 1945 - ainda não é perceptível para quem vê a construção de um mundo melhor a erguer-se diante dos seus olhos e sonha com a resolução da questão soci aI. As simpatias de esquerda dos seus membros tornam-nos suspeitos aos olhos dos mais conservadores e levarão a que a sua actividade seja proibida pelos nacional-soci aI istas. Entretanto, o Bauhaus sonha com as habitações sociais luxuosas, os espaços abertos, o luxo massificado e funcional, expresso na chamada «cozinha americana», para a qual os futuros emigrados viriam a contribuir decisivamente, para não falar do sonho modernista de palácios de vidro e de aço que os mesmos viriam a construir em Chicago e Nova Iorque. A arte sai do museu burguês, invade o quotidiano, seja sob a forma do candeeiro metálico, seja sob a dos acessórios culinários discretos e funcionais. 4.6.2 Cinema: entre a vanguarda e a massificação No cinema, a evolução demonstra a vitalidade e a especificidade da sociedade alemã durante os anos 20. Reconhecendo a importância do cinema como arma de propaganda bélica, Ludendorff, um general de alta patente das forças armadas alemãs, fundara, já em 1917, à altura da tradicional Realpolitik prussiana, uma companhia Bufa (Bild und Filmamt) que, unida à sua concorrente DLG (Deutsche Lichtspiel-Gesellschaft), dará origem à UFA (Universum FilmAG). Erich Pommer, produtor e fundador da Decla (1915), a mais importante produtora cinematográfica alemã, une-se à UFA, iniciando-se, graças ao seu talento artístico, que combina eficazmente com a técnica empresarial, a grande era do cinema alemão. 315 Mas os escritores e os intelectuais - partilhando assim da atitude da alta burguesia mais conservadora - hesitam em dai" o seu apoio a uma manifestação que entendem como pouco nobre, tra indo a Bildung que é necessariamente individual, satisfazendo gostos circenses e pouco elevados de um proletariado pouco exigente na ocupação dos seu s tempos livres. Bertolt Brecht (1898-1956), Alfred Doblin (1878-1957) colaboram, contudo, na adaptação das suas obras, o primeiro inicialmente convicto das possibilidades de agitação de massas existentes no novo me io de comunicação, para depois se desiludir face à versão cinematográfica de Die 3-Groschen-Oper (1930/1931) e à incapacidade de inverter os rumos da indústria cinematográfica. Thomas Mann distancia-se da adaptação dos B uddellbrooks (1923), para cuja adaptação não contribuíra, ao contrário de Düblin que se dispusera a escrever o guião de lJerlin Alexanderplatz (1931) e cuja esc rita já fora influenciada por esse novo modo de express§o. Por sua vez, os autores dos guiões dos grandes clássicos do cinema a lemão de então não verão os seus textos publicados. Será esta a sorte de Carl M ayer, o autor do guião de Das Kabinett des Dr. Caligari (1919-1920), in iciação do cinema alemão naquilo que viria a ser designado de fase expressionista, usando de uma linguagem fisionómica, de uma iluminação e de uma decoração excessivas, deliberadamente anti-naturalistas. Dr. Caligari aterroriza e manipula, augúrio de futuras acções que ditadores e realizadores levarão a consequências então impossíveis de se encenar (KracJ.uer 1979). Nosferatu (1921/1922), o outro nome do herói de Bram Stoker, Dracula (1897) - para não se pagar direi tos de autor ou se citar obra não alemã numa indústria nacional e nacionalista -lida com o irracional e com efeitos especiais, utilizando a aceleração das imagens ou o negativo numa decoração fantasmagórica e sombria, que nenhu m filme de vampirismo virá a poder ignorar. o macabro, o bizarro - o elemento irracio nal da germaflidade que o romantismo supostamente descobrira e que o expressionismo, segundo Lotte Eissner (1980), levara até às suas últimas consequências - são, contudo, também resultado das mais inovadoras técnicas cinematográficas, que recorrem a artifícios habilmente construídos, inovam no campo da iluminação, do cenário e da mobilidade da câmara, outros tantos marcos na história do cinema, que a indústria concorre nte de Hollywood saberá usar em seu proveito. Os arquitectos desempregados constroem os cenários ;nesquecíveis de Dr. Caligari, uma câmara é colocada numa bicicleta ou oscilada para reproduzir, seja a velocidade, seja o estado de espírito caótico de um protagonista, em Der letzte Mann (1924) de F. W. M urnau (1888-1931). E, enquanto os intelectuais persistem, na sua maioria, em desdenhar o cinema, pese embora toda a sua celebração da moderna tecnologia, 3rnst Lubitsch 316 (1892-1 947) invade o mundo com o seu erot i mo ousado, o seu cinema irrevere nte na sua ausência de mensagem e de valores, com a sua versão delicodoce da Revol ução F rancesa, reduzida a intriga amorosa entre camareira rea l e mon arca em vias de extinção, Ila sua Madame Dubarry (1919). O picante dos seus filmes choca e seduz a Europa e a América, a inflação ajuda a e xportação do cinema, antes ele se dar a primeira vaga de emigração para a dourada e soalhclfa Califórn ia: Lubi tsch será um dos que optará por H ollywood antes do totalitarismo de H itler expulsar Marlene Dietrich (1901-1992), embora Georg W. Pabst (1885-1967) saiba fazer face à concorrênc ia norte-americana, importando, por su a vez, Louise Brooks para incarnar a mulher fatal do pós-guerra (Die Büchse der Pandora, 1928/1929). Mas o teatro soubera contaminar o cinema: a distracção e a tactibilidade do novo meio de comunicação (Be njamin 1980: IV.!, 504-505) deixa-se inspirar pelo teatro intimista de um M ax Reinhardt (1873-1943) e pela dramaturgia de Henri k Johan Ibsen (1828-1906) e de August Stri ndberg (1849-19 12). Com o Kammerspiel, a câmara demora-se nos interiores, nos confli tos psicológicos e nos dramas existenciais (Hintertreppe de L. Jessnner, 1921; Der letzte M ann de F. W. M urnau, 1924) antes de, seguindo a corrente da Neue Sachlichkeit, sai r à rua (Die StrajJe de Karl Grune, 1923), captando a grande metrópole no seu anonimato e terror (DI: Mabuse, der Spieler 1922, Fritz Lang 1890-1976) recorrendo às subtis técnicas da montagem, já celebradas pelo Dada e utiliz adas pelo cinema soviético, estabelecendo o paralelo entre a técnica cinematográfica e a musical no plano da composição (B erlin. Sinfonie der GrojJstadt, Walther R uttmann, 1927). G. W. Pabst transfigura pela primeira vez a fu tura diva de Hollywood, Greta Grabo, para falar simultaneamente, passada a primeira grande crise, da miséria do pós-guerra (D ie freudlose Gasse de G. W. Pabst, 1925). A cidade invade a tela, seja sob a fonna naturalista, seja sob a fonna do herói furtivo e anónimo do assassino sem rosto do primeiro filme sonoro de Fritz Lang em M (1930), seja ainda sob a fonna da grande utopia modernista de Metropolis (1925-1926): se o realizador se inspirara em Nova Iorque para construir um cenário dispendiosíssimo que a produção não conseguiria rentabilizar, a utopia radicalizar-se-ia mais tarde nas construções de um Ludwig M ies van der Rohe, emigrando com o seu projecto de um Bauhaus proibido para o <<DOVO mundo» ou nas visões futuristas de uma Los Angeles assolada pelo perigo totalitário da autoria de um outro europeu em Hollywood, R idley Scott, este agora indagando dos limites desse mesmo vanguardismo em B lade Runl1er (1982). Contudo, o mesmo F ritz Lang recuperara os mitos germânicos, encenando aquele que seria o filme preferido de H itl er, D ie Nibelungen (1923/1924), citando? mitologia germânica, não tanto a partir de Wagner, como das gravuras de compêndios escolares da época guilhermina em que o grande 317 público facilmente se revia: a grande mensagem da mística germânica tem de ser consumível pelas massas, que são estimuladas na sua tactibilidade (W. Benjamin) pela luta com um dragão vermelho - embora o filme desconheça a cor - , accionado por vários homens ou pela luminosidade da mítica floresta alemã, reconstruída nos estúdios de Babelsberg, com recurso a iluminação eléctrica. A associação entre a memória colectiva e a modema tecnologia dava assim os primeiros passos, antes de ser eficazmente instrumentalizada por Goebbels e pela sua mais dotada aliada, Leni Riefenstahl (nascida em 1902). Murnau opta por outro «mito germânico», o Dr. Faust (1926), mas como pretexto para ensaiar uma linguagem própria, não descurando os efeitos especiais que permitem o rejuvenescimento do alquimista, o seu voo sobre os Alpes, demonstrando desse modo como o cinema, tal tradutor, tanto mais cria, quanto mais trai o original. Contudo, não são estes os filmes com maior sucesso de bilheteira: o sector terciário em expansão, as empregadas de balcão (veja-se o artigo de Siegfried Kracauer «Die kleinen Ladenmadchen gehen ins Kino», 1992) procuram na penumbra da sala de cinema o entretenimento que promete o casamento desinteressado, a ascensão social milagrosa sem assédio sexual - ou de como o grande amor redime economicamente ou os ricos são sempre generosos - , a aventura erótica neutralizada pela censura, a viagem aos estúdios decorados com adornos pretensamente exóticos. Foge-se para os espaços livres e grandiosos, Dr. Franck descobre o alpinismo e as grandes aventuras nos cumes nevados, Leni Riefenstahl é seleccionada como heroína desse cinema «ecológico» avant la lettre (Der heilige Berg, 1926), antes de esta passar a celebrar a virilidade pagã, seja do colectivo do congresso do NSDAP em Nürnberg (Triumph des Willens, 1935), seja dos atletas caucasianos ou afIicanos no estádio de Berlim (Fest der Volker e Fest der Schonheit, 1938), ou de, nos anos 70, ir buscar a pretensa pureza originária na musculação dos núbios. o filme histórico conhece também redobrado interesse: Frederico II, rei da Prússia, é elevado, mais uma vez, depois da sua apropriação guilhermina, a herói alemão (Fridericus R ex, 1921/1922), repetindo-se, segundo a receita eficaz até aos nossos dias, o seu aparecimento em diferentes fitas, que recuperam os ingredientes de iguarias anteriormente consumidas com grande entusiasmo e lucros. A estrela do cinema brilha. Além da perturbante e andrógina Louise Brooks, um anjo azul invade a tela, antes de conquistar Hollywood: Marlene Dietrich ofusca o texto de Heinrich Mann (1871-1950), Professor Unrat, em Der blaue Engel (1930) de Joseph von Sternberg (1894-1969). Apesar das 318 reticências da crítica informada, o filme e o vampirismo de Marlene Dietrich continuarão a perdurar na memória colectiva. Contudo, a intelectualidade mantém a sua posição de reserva, indignando-se com a massificação e a banalização, em suma, a americanização que, ruidosa, invade a Alemanha com o seu jazz e Charlie Chaplin. No recuo de Adorno perante a música afro-americana já nos anos 50 e na crítica da tecnologia «americana» por Heidegger, mesmo no pós-guerra, ecoa essa recusa. Mas o <<novo mundo» é suficientemente ambivalente: o racismo de um Walt Disney (1901-1906) e do seu rato Mickey, negro e envergando luvas brancas, tal escravo submisso admitido em casa do senhor, é esquecido face à animação que seduz o mundo inteiro; Charlie Chaplin (1889-1977) comove as multidões até às lágrimas e provoca o riso ao invocar o taylorismo em Tempos Modernos. W. Benjamin, embora lamentando a perda da aura, ousa sonhar, seguindo o exemplo destrutivo dos surrealistas franceses, com uma nova forma de praticar e consumir a arte, admitindo que a distracção dos espectadores dos espectáculos massificados pode conter momentos subversivos. Die technische Reproduzierbarkeit des Kunstwerks verandert das Verhaltnis der Masse zur Kunst. Aus dem rückstandigsten, z. B. einem Picasso gegen ü ber, sc hlagt es in das fortschritt Iic hste, angesichts z. B. eines Chaplins, um. Dabei ist das fortschrittliche Verhalten dadurch gekenn· zeichnet, da/3 die Lust am Schauen und am Erleben in ihm eine unmiuelbare innige Verbindung mit der Haltung des fachmannischen Beurteilers eingeht. Solche Verbindung ist ein wichtiges gesellschaftliches 1ndizium. Je mehr namlich die geseJIschaftliche Bedeutung einer Kunst sich vennindert, desto mehr fallen - wie das deutlich angesichts der Malerei sich erweist - die Jaitische und die geniel3ende Haltung im Publikum auseinander. Das Konventionelle wird Jaitiklos genossen, das wirklich Neue kritisiert man mit Widerwillen. 1m Kino faJlen kritische und geniel3ende Haltung des Publikums zusammen. (Benjamin 1980: IV.!, 496-497) Por sua vez, Brecht sonhara com o grau zero da Kultur na América do Norte, o mesmo sucedendo com John Heartfield (1891-1968) que usa a técnica da colagem para desconstruir a propaganda da classe dominante, assim entrevendo, como poucos, as potencialidades da moderna propaganda mediática, mais tarde utilizada pelos nacional-socialistas, que virá a combater com os mesmos meios, subvertendo-os. A arte reproduzida abolia as fronteiras entre o museu e a vida, repensava e questionava o culto burguês de um cânone estético, consagrado pelo poder e pela escola. Significativamente seria o novo mundo que mais beneficiaria a curto prazo com as interdições nazis: Hollywood acolheria realizadores e actores, que renovariam a sua indústria cinematográfica, rival da grande era do cinema alemão. 319 4.7 A vitória da Zivilisation? A Zivilisation e o Ocidente, contra os quais Thomas Mann erguera a sua voz, pareciam ter-se imposto. As massas consumiam, sobretudo na verdadeira capital da República, Berlim, mas, simultaneamente, o mal-estar, que o cinema e a rádio - esta bastante mais acarinhada pelos escritores e intelectuais - pretendiam iludir e abafar, não deixava de se fazer sentir. Contudo, são apenas alguns meios de escape, entre outras fugas que a pura diversão dos «anos loucos» oferece, sobretudo em Berlim; a dança e a viagem (cf. o artigo «Die Reise und der Tanz» in: Kracauer 1992) são outros antídotos que os economicamente mais abastados podem buscar contra o niilismo, a que já o Dada dera prematura e inocentemente voz e que o Bauhaus nega na sua utopia construtivista. Mesmo a Neue Sachlichkeit acaba por se resumir, na sua recusa absoluta da subjectividade, a mais uma negação de uma herança para a qual não existe alternativa que não a da distracção das massas. A fuga pode assumir ainda traços ostensivamente irracionalistas, ao recuperar-se correntes pseudo-místicas ou ocultistas, conhecendo a antroposofia de Rudolf Steiner (1861-1925) uma curiosidade redobrada. O cepticismo do olhar isento de valores, que a intelectualidade alemã aprendera com a sociologia de Max Weber, faz, porém adivinhar nas grandes manifestações de massas, em torno do cinema e do desporto, o esvair-se do individualismo e da tão contestada subjectividade expressionista, reduzindo a modema cultura de massas homens e mulheres a meros ornamentos, sem alma, nem personalidade (Kracauer 1992). Contudo, a emancipação feminina, consequência da redobrada participação das mulheres no mercado de trabalho durante a guerra, levara a que as mesmas cortassem cabelos e saias, fumassem em público, gesto rapidamente recuperado quer pelas divas andróginas ou fatais, que conheciam em Louise Brooks ou Marlene Dietrich dois dos seus mais divulgados estereótipos, quer por um mundo cada vez mais masculino na sua competitividade, no seu sucesso tecnológico e na sua neutralidade «objectiva» e inexpressiva, de que o novo realismo daNeue Sachlichkeit também era exemplo. Algumas mulheres reagem a tais padrões, recusam a artificialidade dos modelos da tela, celebrando, em contrapartida, a naturalidade abandonada, o regresso ao solo e à maternidade, aos valores alemães: o III Reich saberá consagrar a mulher reprodutora de heróis e mártires, recusando os lábios pintados e o vício tabagista que Hollywood exportara. É sobre este vazio e esta distracção que o nacional-socialismo virá a actuar. Os mais incrédulos verão as multidões encontrar um ponto de identificação, por um lado, no programa social que os líderes nacional-socialistas haviam ido buscar em parte aos seus adversários de esquerda, sobretudo ao 320 comunismo na sua fase estalinista, por outro, na exaltação de valores de uma germanidade dificilmente compatíveis com o individualismo «norte-americano» ou «capitalista». o autoritarismo e prussianismo da sociedade alemã, bem como a hábil instrumentalização por parte dos nacional-socialistas dos meios de comunicação, que a esquerda hesitava em reconhecer e que a intelectualidade com ela simpatizante se recusava a compreender, pesem embora as posições marginais de um W. Benjamin ou de um S. Kracauer, ganhava assim terreno numa república que tardava em normalizar a sua opção par Iame n tar. Em 1933, o presidente e antigo general da Reichswehr Hindenburg proclama, fazendo uso de poderes constitucionais, o estado de sítio, dissolvendo o parlamento. O mundo assistirá estranhamente passivo à ascensão ao poder de Hitler, que utiliza os meios legais que a Constituição de Weimar lhe concedera A «revolução democrática», com que, em 1918, o presidente norte-americano Wilson tentara exorcizar o perigo soviético, permitia que os adversários da «ameaça bolchevique» assumissem uma posição de expectativa face à destruição do primeiro regime verdadeiramente demo· crático na Alemanha. Terá sido este desfecho consequência do tradicional atraso alemão, incapaz de articular a modernização económica e industrial com a mesma evolução a nível das instituições políticas e das mentalidades ou antes o resultado de uma cultura de massas que fazia perigar as anteriores referências, gerando esse clamor irracional por valores que a propaganda manipulava e esvaziava de sentido? Porventura a subtil combinação dos dois dados, evolução que talvez não fosse exclusiva da Alemanha, como o viriam a descobrir os pensadores emigrados, nos seus estudos sobre a personalidade autoritária e o anti-semitismo (Adorno 1950; Lówenthal 1989). O certo é que a efémera república se manteve e se mantém, talvez por isso mesmo, no imaginário alemão e mundial, como um símbolo dos riscos e dos limites de uma sociedade que se limitou a gerir esse intervalo entre duas guerras, incapaz de compreender ou sequer aceitar a derrota, entre a passividade e o radicalismo, praticando a mera sobrevivência. Por isso é inevitável que a leitura da República de Weimar seja particularmente determinada pelos fatídicos acontecimentos que lhe sucederam. Contudo, também é verdade que toda a apresentação do passado é incompleta e subjectiva; neste caso, tanto mais o é quanto se trata de um passado recente, que podemos con frontar com os testemunhos tão diversos quanto as experiências daqueles que lhe foram contemporâneos. Bibliografia aconselhada Sobre a República de Weimar em geral consulte-se H. Mommsen 1996, Erdmann 1980. Sobre o cinema dos anos 20 Jakobsen 1993 e Eissner 1980. Para a análise sociológica em correlação com o nacional-socialismo veja-se Elias 1992. Actividades sugeridas • Leia o seguinte excerto e articule com os dados contidos no capítulo: Bauten werden auf doppelte Art rezipiert: durch Gebrauch und durch Wahmehmung. Oder besser gesagt: taktil und optisch. Es gibt von solcher Rezeption keinen Begriff, wenn man sie sich nach Art der gesammelten vorsteJlt, wie sie z. B. Reisenden von beruhmten B auten gelaufig ist. Es besteht namlich auf der taktilen Seite keinerlei Gegenstück zu dem, was auf der optischen die Kontemplation ist. Die taktile Rezeption erfolgt nicht sowohl auf dem Wege der Aufmerksamkeit ais auf dem der Gewohnheit. Der Architektur gegenüber bestirnrnt dieser letztere weitgehend sogar die optische Rezeption. Auch sie findet von Hause aus viel weniger in einem gespanntenAufmerken ais in einem beilaufigen Bemerken statt. Diese an der Architektur gebildete Rezeption hat aber unter gewissen Umstanden kanonischen Wert. Denn: Die Aufgaben, welche in geschichtlichen Wendezeiten dem menschlichen Wahrnehmungsapparat gestellt werden, sind auf del1l Wege der blojJen Optik, also der Kontemplation, gar nicht zu IOsen. Sie werden allmiihlich nach Anleitung der taktilen Rezeption, durch Gewohnung bewaltigt. Gewahnen kann sich auch der Zerstreute. Mehr: gewisseAufgaben in der Zerstreung bewaltigen zu kannen, erweist erst, daS sie zu lasen einem zur Gewohnheit geworden ist. [ ... ] Die Rezeption in der Zerstreung, die sich mit wachsendem Nachdruck auJ allen Gebieten der Kunst bemerkbar macht und das Symptom von tiefgreifenden Veranderungen der Apperzeption ist, hat am Film ihr eigentliches Übungsinstrument. ln seiner Chockwirkung konunt der Film dieser Rezeptionsform entgegen. Der Film drangt den Kultwert nicht dadurch zuruck, daJ3 er das Publikum in eine begutachtende Haltung bringt, sondem auch dadurch, daJ3 die begutachtende Haltung im Kino Aufmerksamkeit nicht einschlieJ3t. Das Publikum ist ein Examinator, doch ein zerstreuter. (Benjamin 1980: IV1, 504-505) • 322 Leia e assinale as principais teses do seguinte texto, tendo em conta os dados do presente capítulo e os elementos sobre as vanguardas artísticas constantes do capítulo rV3: Obwohl expressionistische Malerei und Literatur schon Jahre vor dem Krieg existierten, fanden sie doch erst nach 1918 ein Publikum. ln dieser Beziehung glich die Situation in Deutschland annahemd der in der Sowjetunion, wo wahrend der kurzen Periode des Kriegskommunismus die verschiedenster Richtungen abstrakter Kunst sich grof3er Beliebtheit erfreut hatten. Einem revolutionierten Volk muf3te es so scheinen, ais verbinde der Expressionismus mit der Absage an bürgerl ichen Traditionen den Glauben an die im Menschen gelegenen Krafte, Gesellschaft und Natur nach freiem Ermessen zu gestalten. Solcher Eigenschaften wegen mag er viele Deutsche, die durch den Zusammenbruch ihrer Welt verstbrt waren, in seinen Bann gezogen haben. «Das Fi lrnbild mu 13 Graphik werden», dies war Hermann Warms Leitspruch zur Zeit, aIs er und seine beiden Mitarbeiterdie CALIGARI-Welt erschufen. Dem entsprachen die Dekorationen mit ihrem Reichtum an gezackten, spitz zulaufenden Gebilden, die wie gotische Muster wirkten. Erzeugnisse eines Stils, der fast schon zur Manier geworden war.( ... ) ln CALIGARl scheint Expressionismus nichts anderes zu sein ais die angemessene Übersetzung einer lrrenphantasie in eine Folge von Bildem. So verstanden und genossen denn auch viele zeitgenbssische deutsche Kritiker die Szenerien und Gebarden. ( ... ) Der in CALIGARl unternommene Versuch, szenische Aufmachung, Schauspieler, Licht und Handlung einheitlich zu gestalten, zeugt von jenem Sinn für durchgreifende Organisation, der sich von diesem Werk an im deutschen Film kundgibt. Rotha pragt das Wort «Studio-Konstruktivismus», um die «sonderbare Atmosphare der Vollstandigkeit und Endgültigkeit, die jedes Produkt der deutschen Studios umgibt» zu charakterisieren. Aber organisatorische Vollstandigkeit kann nur dann erreicht werden, wenn das zu organisierende Material ihr nicht widerstrebt. (Die Fahigkeit der Deutschen, sich selbst zu organisieren, verdankt sich nicht wenig ihrer Sehnsucht danach, sich zu unterwerfen.) Da die auf3ere Realitat ihrem Wesen nach unberechenbar ist und daher nicht so sehr beherrscht aIs beobachtet zu werden verlangt, schlief3en sich Realismus und total e Organisiation im Film gegenseitig aus. Sowohl durch ihren «Studio-Konstruktivismus» wie durch ihre Lichtbehandlung gaben die deutschen Filme zu erkennen, daf3 sie unwirklichen Ereignissen zugewandt waren, die sich in einer grundsatzlich beherrschbaren Sphare entrollten. (Kracauer 1979: 78 e segs.) M. R. S. 323 5. Da Apoteose da Superioridade Germânica à Rendição Incondicional Resumo Referem-se em traços largos as causas da ascensão dos nacional-socialistas ao poder, tendo em conta as diferentes interpretações da mesma, no contexto da história da Alemanha. Assinalam-se os principais acontecimentos entre 1933 e 1945, mencionando-se igualmente o exílio e o holocausto. Objectivos • Enquadrar os acontecimentos e a problemática do III Reich no contexto da história da Alemanha e da historiografia recente. • Avaliar das possíveis causas próximas da consagração do regime nacional-socialista. • Distinguir e diferenciar os diversos momentos da história do l i Reich, tendo em conta factores de ordem económica, política e cultural . 327 5.0 Multiculturalismo e «pureza rácica» Quem deambular pelas actuais ruas de uma cidade alemã, poderá facilmente verificar que a diversidade caracteriza a sua atmosfera, fazendo entremear as largas avenidas, com pequenas zonas destinadas a peões, os grandes centros comerciais, com as pequenas lojas de bairro, onde as frutas e as mercearias chegam a invadir as ruas por vezes excessivamente cuidadas. No metro e no autocarro, crianças de tez clara cruzam-se com outras de olhos mais negros do que será de esperar na Alemanha, mulheres que não escondem a sua origem oriental ou turca escolhem tecidos num armazém, enquanto que os filhos preferem observar na secção de discos os ídolos rock, cujas indumentárias e adornos inspiram a sua forma de vestir. Os restaurantes jugoslavos, gregos, italianos, turcos são uma constante e um elemento de um novo colorido na Alemanha contemporânea. Este colorido do multiculturalismo que faz parte do quotidiano da Alemanha reunificada e que integra manifestações culturais que vão da Europa meridional ao Oriente e, sobretudo depois de 1989, da Europa de Leste, é também consequência da situação da Europa depois de 1945 e teria sido impensável nos anos 30, quando Hitler intensificava a sua campanha nacionalista e racista, com base num pretenso «arianismo» da população alemã, onde os cabelos loiros e os olhos azuis seriam obrigatórios, preconceito que, de resto, ainda hoje persegue o estereótipo dos alemães no estrangeiro. Embora os ataques a estrangeiros em território alemão se baseiem, por vezes, em ideias eslogans herdados desse tempo, o certo é que, para além do perigo real de movimentos racistas e de extrema direita - que não são, de resto exclusivos da Alemanha - estes pouco têm a ver com a situação que garantiu a ascensão de Hitler e do Partido nazi ao poder. Saliente-se ainda que tais manifestações de xenofobia têm dado origem não só a um amplo debate público, como à respectiva denúncia por vários sectores. Contudo, no estrangeiro reage-se com desconfiança redobrada, quando se fala da agressão a estrangeiros em território alemão: com efeito, o peso da herança histórica a que a Alemanha foi associada, depois da catástrofe e da barbárie nazis, não pode ser ignorado, mesmo que razões históricas e científicas a possam questionar. 5.1 A historiografia sobre o III Reich A época compreendida entre 1933 e 1945 é a mais complexa da história da Alemanha no que toca a uma tentativa de uma explicação e interpretação racionais, como o comprova a historiografia sobre o tema. 329 As polémicas sobre este período histórico são uma constante, desde a célebre Controvérsia dos Historiadores (Historikerstreit), nos anos oitenta, em torno da herança de Auschwitz, protagonizada, sobretudo, por Ernst Noite e Jürgen Habermas, divididos em duas facções antagónicas, por muito que os especialistas a entendam ultrapassada (BrozsatlFrei 1989: 1 e 11), até ao escândalo provocado pelo livro de Daniel Goldhagen, Hitler's Willing Executioners (1996), que recentemente veio colocar de novo o problema da responsabilidade alargada dos alemães no processo que conduziria à tristemente célebre «solução final» (Endlosung), isto é, à liquidação sistemática dos alemães de confissão ou origem judaica. Independentemente de questões de ordem ética, como a que se acabou de enunciar, quaJquer abordagem histórica, se bem que fatalmente subjectiva, tem de se basear em factos e documentos que comprovem a sua hipótese de interpretação. No entanto, pode resumir-se a situação da seguinte maneira: depois de um período de menor distância, em que o teor acusatório foi predominante, passou-se a uma fase em que, com maior distância e com mais dados, é possível proceder a um balanço, porventura, menos envolvido. Contudo a questão da continuidade da história alemã permanece como um ponto controverso, designadamente a de se saber se os acontecimentos entre 1933 e 1945 não teriam sido preparados por momentos anteriores, influenciando as interpretações que a historiografia tem vindo a fornecer (sobre o tema veja-se a súmula em Benz et al. 1998: 18-24). 5.1.1 A Alemanha e a «via específica». A continuidade histórica e o nacional-socialismo Neste contexto pode assinalar-se duas correntes: a primeira vê no Terceiro Reich a consequência quase natural de uma «via específica» (Sonderweg) da história daAlemanha, que teria sido incapaz de articular a sua modernização industrial e social com a correspondente democratização das suas estruturas políticas. O tradicional autoritarismo alemão, visível, sobretudo, na solução bismarckiana da unificação da Alemanha em 1871, com a célebre associação entre «o ferro e o sangue», como pressupostos para essa mesma união, teria contribuído para a «prussianização» da Alemanha, que, por sua vez, teria sido decisiva para o fracasso da República de Weimar e a consequente ascensão de Hitler ao poder (cf. Cap. IV.2). Autores como Plessner (1974) chegam mesmo a fazer remontar essa causalidade à era da Reforma e ao subsequente afastamento da Alemanha da latinidade e da sua civilização, eminentemente europeia; outros como Hans330 Ulrich Wehler (1973, 1995) vêem na era bismarckiana e no seu compromisso entre Estado, classes dominantes, modernização e autoritarismo, o momento-chave para se entender a subsequente evolução alemã. A interpretação dos dois autores tem um traço comum que cumpre destacar: tanto um como outro vêem na «via específica» da Alemanha o resultado da ausência de modernização das estruturas políticas: o nacional-socialismo teria sido, sobretudo, consequência do atraso político alemão. 5.1.2 Modernidade e nacional-socialismo Contudo, a referida leitura tem vindo a ser contestada por uma outra interpretação (veja-se sobretudo Evans 1987; para uma bibliografia pormenorizada consulte-se Wehler 1995). Esta tende a minimizar os elementos específicos da evolução histórica da Alemanha, designadamente a tese da «via específica», associando a evolução do nazismo sobretudo às transformações características das modernas sociedades de massas. Com efeito, se é verdade que o Terceiro Reich reabilitou e manipulou algumas tradições da história da Alemanha, empenhando-se no culto dos seus mitos e apelando a forças irracionais e obscuras, também é verdade que, sem o recurso eficaz aos modemos meios de comunicação de massa no campo da propaganda, o nacional-socialismo não poderia ter tido o alcance e o impacto que então conheceu. Pense-se no papel decisivo da rádio na difusão dos discursos de Hitler e do Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels (1897 -1945), e no do cinema, na divulgação e encenação de paradas militares e congressos partidários, com recurso por vezes aos mais requintados truques de montagem. Por outro lado, toda a organização social e económica do Terceiro Reich pressupõe um panorama só passível de ser criado a partir de uma sociedade fortemente industrializada: só assim se pode compreender o papel decisivo da grande indústria alemã, a sua associação com a produção de annamento e a eficácia inicial do Blitzkrieg, bem como com a organização e concepção de campos de concentração e de extennínio e outras técnicas de selecção «rácica», para não falar da eutanásia. Segundo esta interpretação, não haveria tanto uma «via específica» alemã, um caminho que teria conduzido aAlemanha do autoritarismo prussiano ao terror nazi, mas seria antes a própria sociedade moderna e liberal que conteria em si o gérmen dessa destruição da razão. Esta interpretação ecoaria, por exemplo, no célebre livro de Horkheimer e Adorno, Dialektik der Aujkldrung (Horkheimer/Adomo 1971), escrito no 331 exílio americano, associando a análise dos fundamentos económicos e políticos a elementos de ordem cultural e psicológica. Os estudos sobre autoridade e família (Horkheimer/FrommJJv!arcuse et al. 1987), publicados, em Paris, no ano de 1936, pelos membros do lnstitutfür Sozialforschung, uniam a metodologia marxista à psicanálise, orientando a sua análise para fenómenos culturais na sua autonomia - assim contrariando o marxismo ortodoxo. Numa série de estudos havia-se analisado a relação entre as práticas autoritárias e o papel da família, pelo que sairia reforçada a ideia de uma linha de continuidade entre a tradição histórica alemã e a submissão voluntária e colectiva a um Fiihrer (ct. sobretudo os ensaios de Horkheimer e de Marcuse). Contudo, estas conclusões viriam a sofrer um abalo relativo, quando os estudos sociológicos de Adorno, agora reforçados na vertente empírica, na senda da escola norte-americana, viriam a provar que o anti-semitismo também se mani festava, a par de uma componente marcadamente autoritária, no país da «liberdade democrática» (Adorno 1950). Contudo tal interpretação não consegue explicar o porquê da radicalização da evolução alemã, sobretudo, a partir de 1933, tendo em consideração que muitas outras sociedades contemporâneas conheceram como ela o desemprego, a crise económica, a crise de valores. É por este motivo que Wehler (1995) se mantém apegado à sua interpretação segundo a qual a «via específica» alemã, iniciada sobretudo depois de 1871, reunirá as características decisivas para essa mesma evolução (cf. Cap. IV2). Se é certo que estas interpretações são incompletas e parciais, os mesmos traços surgem tanto mais reforçados, quanto por detrás das diversas leituras se adivinham opções políticas e modelos culturais claramente demarcados. Enquanto que a primeira, ao identificar a catástrofe nazi com o termo de uma evolução específica da Alemanha, acaba, em última instância, por postular os méritos absolutos da modernização, segundo um modelo ocidental, a segunda, ao salientar a correlação dialéctica entre modernidade e nazismo, lança a suspeita dos perigos totalitários que o Ocidente também contém latentes. Sublinhe-se ainda que as teorias do totalitarismo, que tendiam a interpretar em estreita correlação os regimes nazi e estalinista, seriam particularmente florescentes, no Ocidente, durante os anos 50, como seria de esperar, em pleno período de maccarthismo e de «guerra fria» (Arendt 1996). Por sua vez os ideólogos do modelo soviético enfatizavam a teoria da estreita associação entre o fascismo e grande capital. 332 Contudo, os ade ptos menos ortodoxos de uma alte rn ativa ao modelo capitalista ocidental, por sua vez, recusavam-se a identificar o telTor nazi com o Gulag estalinista e as teorias soviéticas oficiais, iniciando um debate e uma reflexão teórica sobre o fascismo nas suas diferentes vertentes (cf. súmula e bibliografia em Erdmann 1993: 62-78 e Benz et aI. 1998: 457-458, bem como Kühnl 1979). Que a queda do muro de Berlim e a nova orde m internacional vieram fazer rever os critérios unilaterais e esque máticos é uma conclusão que, contudo, deverá ser formulada com alguma precaução, sobretudo, depois de algum optimismo excessivo face à vitória do modelo ocidental que fez reviver de novo as teorias predom.inantemente políticas do totalitarismo, enquanto que versões mais diferenciadas eram postas de parte. Tal vez a interpretação que contemple múltipl as perspectivas e abordagens seja a mais adequada, sobretudo, se não pretender fornecer uma explicação definitiva ou absoluta para o que dificilmente se consegue compreender. É neste sentido que as causas do Terceiro Reich e do terror nazi podem ser ponderadas. Sem dúvida que a situação económica, com uma inflação galopante e a elevadíssima taxa de desemprego, durante algumas fases da República de Weimar, constituíram um factor de insatisfação e de desestabilização da vida política, mas por si só não podem fornecer uma explicação absoluta para o fenómeno, uma vez que crises semelhantes ocorreram, simultaneamente, na Europa e no mundo, não levando, contudo, a situações tão extremas. A tese defendida pelo sector marxista mais ortodoxo que vê no fascismo uma manifestação de terror por parte do capital financeiro, nos seus elementos mais chauvinistas, reaccionários e imperialistas, e de uma aliança entre a grande indústria e o nacional-socialismo, como o propôs a análise soviética em 1933, não só não é sustentável, como constituiu um ponto de partida fatal para os equívocos em que a oposição marxista se deixou envolver. Ao interpretar Hitler e o seu partido como um mero joguete nas mãos do grande capital, associação que existiu, mas que em parte também iludiu os partidos conservadores, convictos de que poderiam servir-se do nacional-socialismo para os seus fins, a referida análise não deu conta de outros factores de ordem política e cultural que teriam igualmente um papel fundamental em todo o processo. Assinale-se que a teoria marxista evoluiria no sentido de uma visão mais diferenciada da relação entre capitalismo e fascismo, assinalando as rivalidades entre os diferentes grupos e alianças estratégicas, vindo a importância do elemento pol Ítico subsequentemente a ser sublinhada (Kühnl 1979). 333 Com efeito, os partidos conservadores apoiaram mais ou menos indirectamente Hitler, na esperança de, através do mesmo, poderem regressar a uma ordem mais musculada. Mas, se este dado ajuda a explicar em parte o decorrer dos acontecimentos, também é verdade que as divergências surgidas, no decurso dos acontecimentos, entre os referidos partidos e o poder nazi mostram até que ponto esta explicação é incompleta. De resto, opções semelhantes, com vista à contenção do «perigo bolchevique», surgiram noutros países e foram partilhadas por inúmeros países europeus assim contribuindo para a passividade internacional, de que o exemplo da Grã-Bretanha poderá constituir um dos mais eloquentes. Por outro lado, as fontes recentemente vindas a lume, documentos como as memórias do membro do partido do Zentrum, o Chanceler Heinrich Brüning (1885-1970), mostram que a dissolução, em 1930, do Parlamento, eleito apenas há dois anos, e as consequentes eleições - com resultados claramente favoráveis aos nacional-socialistas e impossibilitando a formação de uma maioria democrática - não foram apenas resultado da incapacidade de os partidos conseguirem um consenso democrático, mas revelam antes a responsabilidade dos partidos conservadores, incluindo o Zentrum, na subida de Hitler ao poder. É cada vez mais consensual entre os historiadores a importância do ideário divulgado por Hitler em Mein Kampfcomo fonna de explicar o decurso e o desfecho do terror nacional-socialista. Sem dúvida que nesse mesmo texto o futuro Führer não só propunha uma política rácica de aniquilamento dos judeus - se bem que não se torne claro se se trataria de uma extinção física como viria a ser praticada - , como defendia o expansionismo germânico, sobretudo a Leste, contra os povos pretensamente inferiores de origem eslava, com recurso a um social-darwinismo primário que postulava o abandono de quaisquer ideais humanistas, em prol do triunfo dos mais fortes e mais capazes (Benz et ai. 1998: 11-21). Por outro lado, se Hitler via o confronto com o continente americano como uma hipótese remota, já revelava a sua habilidade estratégica, ao assinalar a necessidade de se sacrificar causas menores aos grandes objectivos, designadamente abdicar do Tirol do Sul a favor da Itália com a qual previa uma aliança conforme se viria a verificar. É certo que o desfecho tenebroso da guerra facilita um certo detenninismo, vendo-se a posteriori nesse desfecho a consequência directa desses princípios postul ados. o facto de o livro de Hitler ter conhecido ampla divulgação - recorde-se que já em 1932 haviam sido vendidos 287 000 exemplares, atingindo mais tarde a edição os 10 milhões - pode explicar-se pela circunstância de que 334 alguns princípios encontravam ressonância na sociedade alemã, na medida em que se partilhava do princípio de que a derrota de 1918 constituíra uma humilhação para a Alemanha, bem como da desconfiança perante o parlamentarismo dada a sua inoperância. Além disso, a Alemanha possuía uma tradição recente que sabia associar o culto do excesso, a crítica nietzscheana do humanismo, as visões utópicas e voluntaristas à necessidade de modernizar e revitalizar a sociedade alemã. Foi desse modo que inúmeros jovens se sentiram atraídos pelas organizações hitlerianas: estas não só possibilitavam a ascensão social, como algum poder, desligando-os dos contextos tradicionais, designadamente os familiares. O anti-comunismo não punha em questão um ideal igualitário e anti-burguês, nem um aventureirismo consumível pelas massas, o que leva mesmo alguns intérpretes a falar da modernização social que o nacional-socialismo teria acarretado consigo (Graml 1995: 161-l74, aqui 169). Tais questões tanto mais tornam premente a questão relativa à filiação ideológica destas tendências na história alemã, que conheceria redobrado interesse no pós-guerra, levando por vezes a interpretações simplistas da história do espaço de expressão alemã, designadamente na sua vertente cultural, orientadas segundo as consequências do nacional-socialismo. Assim, rapidamente toda a tradição intelectual alemã passou a ser vista nos seus momentos precursores do Terceiro Reich, desde o anti-semitismo de Lutero, ao nacionalismo xenófobo de Fichte ou ao vitalismo de Nietzsche, gradualmente associado a um processo de destruição da razão (Lukács 1962). Embora se possa associar o atraso alemão a esta evolução, sobretudo quando se trata de indagar acerca da ausência de tradições democráticas na Alemanha, em particular no século XIX, a tendência para se ver na tradição autoritária luterana ou prussiana a origem do comportamento de massas verificado no decurso do Terceiro Reich não surge totalmente convincente, quando confrontada com a teoria segundo a qual o terror institucionalizado teria tido um papel determinante na submissão dos alemães ao regime. Talvez as explicações se complementem: note-se o aparente e súbito assentimento e aceitação por parte dos alemães de uma ordem imposta pelos aliados no pós-guerra. Se este comportamento também pode, sem dúvida, ser entendido à luz dos traumas dos últimos anos de guerra, quer junto das tropas, quer junto dos civis, também é verdade que a chamada «desnazificação», levada então a cabo e que consistiu quer em processos e julgamentos, quer em campanhas de esclarecimento, não permitiu que os vencidos, pressionados, de resto, pela questão da sobrevivência imediata, pudessem confrontar-se de um modo mais reflectido com o passado recente e a questão da culpa e responsabilidade colectivas e individuais. 335 Parece assim indubitável que o passado continua a constituir uma ferida alemã, por muitas tentativas de normalização que se tenham empreendido, ferida essa permanentemente acompanhada da interrogação sobre o passado que a teria possivelmente viabilizado. Por isso, tanto mais urge recordar a necessidade da precaução na elaboração de conclusões que não tomem em consideração um número tão grande quanto possível de factores e não os pensem em correlação, evitando, sobretudo, os estereótipos e as leituras apressadas que, quer condenando, quer defendendo incorrem num mesmo erro: a visão redutora e limitada de um tema que não diz certamente apenas respeito à história da Alemanha. 5.2 Os factos 5.2.1 Os antecedentes Os antecedentes do Partido de Hitler encontramo-los na atmosfera que preparou a primeira guerra mundial e que viria a ser reavivada pela derrota de 1918, misturando o ressentimento nacional com o orgulho ferido, depois de Versalhes (cf. Cap. IV4), e a histeria face ao «perigo bolchevique», com um programa populista e racista. A própria conjuntura social e política que rodeara a infância e juventude de Hitler, com o crescente anti-semitismo que viria a caracterizar o Império dos Habsburgos, tradicionalmente multi-confessional e multinacional, viera a reforçar o sonho de uma união com os restantes territórios de expressão alemã, assim se tentando restaurar um Império que agora se deveria caracterizar pela unidade linguística, cultural e «rácica» (Hamann 1996). o embrião do futuro NSDAP (Natiollalsozialistische Arbeiterpartei) encontramo-lo no DAP (Deutsche Arbeiterpartei) fundado, no ano de 1919, em Munique, com um escasso número de membros (vinte a quarenta), a que em breve Hitler se associaria. Em 1920, contudo, o pequeno grupo já aumentara consideravelmente, contando com 2000 activistas e possuindo um programa de vinte e cinco pontos. Entre estes - para cuja formulação Hitler contribuíra decisivamente - figuravam a exigência de uma união alemã, segundo os parâmetros de uma GrandeAlemanha, a reivindicação de reformas na agricultura, no sistema de empréstimos, a nacionalização de monopól ios, a descri mi nação dos judeus a pretexto da pureza «rácica», alemã a ser preservada. Foi no seu primeiro Congresso nesse mesmo ano que seria consagrada a nova designação: Nationalsozialistische Arbeiterpartei - NSDAP. 336 Em breve, o partido passava a deter um órgão próprio na imprensa, o Volkischer Beobachte/; sendo, em 1921, Hitler eleito seu secretário-geral, depois de um abandono provisório por dissensões internas. Por outro lado, o partido criava as suas milícias próprias, as SA (Sturmabteilung), e conseguia organizar e semear o terror, sendo responsável não só por revoltas e motins como finalmente por uma tentativa de golpe de Estado a 8 de Novembro de 1923, pelo que Hitler seria condenado à prisão por cinco anos. Contudo recuperaria a liberdade já em Dezembro do ano seguinte. Entre 1925 e 1926, Hitler terá ocasião de reorganizar o partido, buscando novos apoios, designadamente entre os industriais do Ruhr, podendo o NSDAP contar com representação parlamentar a partir de 1928. Os anos imediatamente a seguir, com a crise económica e o caos político, facilitarão a ascensão de Hitler ao poder (cf. Cap. IV4). Por questões de exposição e clareza pode dividir-se a época subsequente à tomada do poder pelos nacional-socialistas em três fases: 5.2.2 Entre 1933 e 1934: conquista e consolidação do poder Nomeado Chanceler do Reich pelo Presidente Hindenburg a 30 de Janeiro de 1933 (Machtergreifung, na designação dos nacional-socialistas), o governo reúne ainda membros apartidários, antigos adeptos do Zentrum (von Papen), do DNVP e independentes, salientando-se o predomínio do poder de Hitler que assim vai, na prática, esvaziando de funções os restantes cargos. Contudo, os objectivos do nazismo surgem ainda suficientemente camuflados, recuando Hitler relativamente a posições anteriores, no que respeita ao anti-semitismo, anti-c1ericalismo, belicismo e expansionismo. A razão de ser de tal estratégia residia, antes de mais, na participação minoritária dos nazis no governo, embora os ministérios por que eram responsáveis fossem decisivos, a saber, o Ministério do Interior do Reich e a direcção regional de idêntico pelouro na Prússia. Contudo, logo a 4 Fevereiro do mesmo ano, Hitler introduzia uma série de medidas legislativas, visando a restrição da liberdade de imprensa, de associação e de eleição, a pretexto de proteger o povo alemão (zum Schutze des deutschen Volkes). No dia 21 do mesmo mês, na sequência de outras medidas de «saneamento» (Sauberung), todos os membros do SPD com cargos na administração interna eram substituídos por funcionários considerados leais ou «nacionais», assistindo-se ao reforço da acção das SA e das SS. 337 Tais iniciativas atingiriam o paroxismo face ao incêndio do Reichstag a 27 de Fevereiro. Atribuído ao ex-comunista holandês Martinus van der Lubbe, a prisão do mesmo seria seguida da divulgação por Goebbels e Hermann Goring (1893-1946) da ideia de que tal acto de terror seria apenas parte de uma conspiração organizada do DKP, com conhecimento do SPD, pelo que seria ordenada a prisão dos respectivos deputados e funcionários, o encerramento das sedes partidárias e a proibição da imprensa comunista. No dia imediatamente a seguir, o governo radicalizaria as medidas já anteriormente iniciadas com vista a «proteger o povo e o estado alemães», assinando Hindenburg a disposição que legalizava a utilização da violência e suspendia os mais importantes direitos fundamentais. Desta forma, o Partido nacional-socialista não só conseguia desferir um golpe fatal à esquerda, na sequência de outras iniciativas já anteriormente tomadas, então com a anuência benevolente dos partidos conservadores, unidos numa causa comum, como consolidava o seu poder a nível da administração interna, coordenada por Hermann Goring. A política seguida por Hitler durante o período que antecedeu as eleições para o Reichstag de 5 de Março de 1933 fornece indícios preciosos do que viria a constituir a prática política nazi: um misto de calculismo e brutalidade que a palavra «neutralização» (Gleichschaltung) resume. O partido comunista não foi imediatamente proibido, receando-se que os votos viessem a beneficiar os sociais-democratas; por outro lado, Joseph Goebbels serviu-se do acto eleitoral para ensaiar a sua máquina propagandística por via radiofónica. Com efeito, na sequência das eleições, que não dariam a desejada maioria absoluta aos nacional-socialistas, uma vez que estes receberiam 43,9% dos votos, apesar da declaração de inconstitucional idade do SPD, KPD e do Zentrum, às medidas restritivas dos direitos fundamentais viria a juntar-se o aumento do terror exercido junto da população pelas SA e SS, terror esse que se manifestara já anteriormente, particularmente durante o período eleitoral. Estas milícias não possuíam, como é, de resto, característico do terror, qualquer ideologia ou programa, sendo, sobretudo, expressão da violência mais crua, exercida por elementos ressentidos e aventureiros que assim procuravam uma «razão de existência» ou uma ocupação. Tais acções constituíam um modo de intimidar a população e de criar um apoio para a ocupação definitiva e total do poder. Simultaneamente, as pnsoes em massa e as deportações prosseguiam. A 8 de Março de 1933, o ministro do Interior Frick anunciava a criação de 338 campos de concentração (Konzentrationslager) e, no dia 20 do mesmo mês, Himmler, chefe das SS dava a conhecer a existência do campo de Dachau. Até finais do mesmo ano, pode registar-se cerca de 500 a 600 mortos e 100 000 prisões. Ainda em Março, o governo começara a tomar medidas relativas a uma «higiene rácica», seguindo-se-lhe em Abril do mesmo ano o início do boicote ao comércio judaico, organizado pelo Partido e pelo Ministério da Propaganda, chefiado por Joseph Goebbels, sendo promulgado, a 7 deAbril de 1933, o «parágrafo ariano» (Arierparagraph) que impedia os judeus de terem acesso a cargos na administração pública. Assim, a população judaica via-se gradualmente privada de cargos em que vira garantida uma importante influência social. Ao mesmo tempo que prossegue a política anti-semita, o Partido nacional-socialista toma medidas a fim de aniquilar totalmente a oposição de esquerda. Depois das prisões em massa, do terror exercido, segue-se-lhe a ocupação dos sindicatos que serão dissolvidos a 2 de Maio de 1933, em nome da criação de uma Frente de Trabalho Alemã (Deutsche Arbeiterfront - DAF), ligada ao Partido nacional-socialista, e são criadas associações corporativas (Reichstande) que constituem a negação do princípio da organização sindical e forçam a aliança entre assalariados e patronato. o terror invade de um novo modo a vida quotidiana, designadamente através dos autos de fé de livros em diversas cidades universitárias (lO de Maio de 1933), aumentando o número de exilados, sobretudo entre os membros do SPD e KPD. o facto de a política nazi criar ilusões quer entre os partidos, quer entre sindicatos, crendo estes sempre na possibilidade de a situação se inverter, a desatenção e a incapacidade de agir de forma eficaz, encontram-se bem visíveis na impossibilidade de a oposição conseguir domar a fúria de ocupação de poder a todos os níveis por parte de Hitler e do seu partido. Finalmente, qualquer promessa de vida parlamentar seria destruída, com a proibição, a 22 de Julho, do SPD, a que se seguiria a auto-dissolução dos restantes partidos, integrando-se os deputados do DNVP no partido nacional-socialista. «Neutralizada» a oposição, Hitler assume uma atitude mais moderada, anunciando a 6 de Julho que a «revolução» poderá agora ser sucedida pela «evolução». O governo zela pela manutenção de uma opinião pública favorável, instrumentalizando-a. Assim o programa megalómano de construção de auto-estradas, tendendo a garantir o emprego e a assegurar uma comunicação eficaz, prende-se mais directamente com estratégias de controle de poder e de futuras agressões do que com as necessidades reais da Alemanha de então. 339 A moderação aparece igualmente na Concordata celebrada a 20 de lul ho de 1933 com a Igreja Católica, depois de assegurada a submissão da Igreja evangélica. Contudo, a situação não é de modo algum estável. O desemprego e a crise económica persistem. Entre os mais radicais das SAjá se fala da necessidade de uma segunda «revolução» A moderação está longe de ser uma realidade. As perseguições ajudeus mantêm-se. A 4 de Outubro, estes vêem-se impossibilitados de publicar na imprensa, face a uma lei que define a dependência dos jornalistas não do editor, mas do Estado. A 12 de Novembro o Partido nacional-socialista recebe, mediante eleições aparentemente livres, 92,2% dos votos, encetando ainda no mesmo mês uma série de acordos decisivos. É celebrado um acordo entre o governo e a empresa IG Farben (14.12.1933) com vista à produção de combustível sintético, firma-se um pacto de não-agressão e um tratado comercial com a Polónia, intensificam-se os laços com outros territórios como a Itália, a Áustria e a Hungria (Protocolos de Roma). Deste modo, com o recurso ao terror, à neutralização de partidos e à submissão de todas as áreas, indústria, sindicatos, organizações profissionais, sob a tutela do Partido e do Führel; Hitler conseguira dominar a sociedade, restando-lhe agora apenas o problema do poder excessivo do chefe das SA, Rohm. Este viria a ser derrotado. depois de ter sido denunciado um possível atentado da sua parte, passando o poder para as SS, sob o comando de Himmler que reconhecera as vantagens estratégicas de uma aliança com o Führer. O reforço do poder deste ver-se-ia consolidado através de um decreto (1 de Agosto de 1934) que proclamava a união do cargo de Presidente com o de Chanceler do Reich, um dia antes da morte de Hindenburg. A 19 de Agosto um referendo dava 89,9% de votos a Hitler que assim via consagrado o seu poder total. A celebração desta vitória seria encenada no Congresso do Partido em Nuremberga em Setembro do mesmo ano, encarregando-se Leni RiefenstahI de realizar um dos mais eficazes filmes de propaganda ao partido e ao Führer, Triumph des Willens (1935). 5.2.3 Entre 1934 e 1939: Os anos da consolidação O período compreendido entre o ano da consagração do poder de Hitler e o início da li guerra mundial caracterizou-se por uma fase de crescimento económico e pela diminuição do desemprego (de três milhões em 1935 para 1 milhão em 1936), o que favoreceu o reforço do poder nacional-socialista e 340 o consenso relativamente amplo face ao regime. Contudo, tais resultados não impediram o regime de prosseguir a sua actividade de controle de todas as instâncias da sociedade civil e o recurso à propaganda. No domínio económico assiste-se ao reforço da colaboração entre a grande indústria e o Estado: ao já referido acordo com as IG Farben suceder-se-á a cooperação no campo da indústria do armamento, a que se virá a acrescentar o plano quadrianual (1936) que criava contingentes no que respeitava a matérias-primas, divisas e forças de trabalho, segundo as prioridades fixadas pelo Estado, ao mesmo tempo que este controlava preços e salários. Contudo, a destruição da organização sindical impedia a actualização salarial, não obstante as melhores condições económicas. A manutenção da animosidade nazi face à agitação comunista e social-democrata, levada a cabo na clandestinidade, não impede de constatar que o mal-estar para com o regime autoritário diminuíra consideravelmente entre a classe trabalhadora, disposta a pagar o preço da perda de liberdade pela manutenção da estabilidade económica. A popularidade do regime era, além disso, acrescida de um maior prestígio internacional através do restabelecimento da autoridade militar na Alemanha, mediante a recuperação da região do Sarre (Saarland) em 1935, a ocupação da zona desmilitarizada do Reno em 1936 e da anexação da Áustria e dos Sudetas em Março e Outubro de 1938, respectivamente. Note-se que este programa expansionista correspondia aos tradicionais desejos alemães, pelo que a comunidade internacional hesitava em opor-se a esta afirmação de poder, vendo com bons olhos U111 regime que impedia a expansão do programa bolchevique, auxiliava as forças franquistas na Guerra Civil espanhola e que a ";"greja Católica também sancionava. Mas os resultados favoráveis ~lOS plebiscitos acerca da política de Hitler de 5 de Março 1936 e de IOde Abril de 1938, embora questionáveis dada a repetida maioria de 99% de votos favoráveis, não invalidavam a actuação da polícia política (Gestapo, abreviatura de Geheime Staatspolizei) e das SS sob o comando de Himmler. Embora a perseguição fosse menor, as SS reforçaram neste período o número de efectivos e a sua organização, prosseguindo a criação de campos de concentração (Dachau 1933, Sachsenhausen 1936, Buchenwald 1937, Flossenbürg, Mautthausen e Neuengamme 1938, Ravensbrück e Stutthof 1939, Auschwitz I e GroG-Rosen 1940, Natzweiler-Struthof, Lublin-Majdanek, Auschwitz Il-Birkenau 1941, Auschwitz III-Monowitz 1942, Herzogenbusch-Vught, Riga, Bergen-Belsen, Dora-Mittelbau, Kauen, Vaivara e Klooga 1943, Cracóvia-Plaszow 1944) e de campos de extermínio, os Vemichtungslager (KulmhoflChelmno 1941, Auschwitz-Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka e Lublin-Majdanek, a partir de 1942). 341 Simultaneamente, todos os domínios da vida civil eram submetidos à organização partidária Ao serviço militar obrigatório suceder-se-ia o serviço cívico compulsivo, a que as mulheres também eram forçadas. As organizações juvenis zelavam pela educação nos princípios do partido, rivalizando com a escola e neutralizando as influências familiares. o culto do corpo e da naturalidade contra os vícios civilizacionais, que já irrompera durante a República de Weimar, seria instrumentalizado, tal como se pode verificar nos célebres Jogos Olímpicos de 1936, onde, por detrás da encenação de uma mensagem pacífica e de eficiência alemã, se escondia o constante policiamento da vida quotidiana. A reportagem realizada para o efeito por Leni Riefenstahl, habilmente montada nos filmes Fest der Volker e Fest der Schonheit (1938), é bem eloquente na utilização das modernas técnicas de manipulação de massas, de uma tecnologia requintada ao serviço de uma ideologia que se assumia como um regresso à «espontaneidade» e «naturalidade primitivas». A rádio era quase exclusivamente utilizada como instrumento de propaganda, intercalando-se os discursos e comícios com o entretenimento aparentemente sem consequências. A imprensa escrita também viria a ser objecto de controle cada vez mais intenso. No domínio da arte, o ano de 1937 ficaria tristemente célebre através da exposição Entartete Kunst que, reunindo obras de alguns dos mais importantes artistas plásticos alemães, as exibiria pela última vez em Munique, antes de as confiscar e leiloar. Os principais visados foram os expressionistas e os modernistas, desde os grupos Der blaue Reiter, Die Brücke, a alguns membros do Bauhaus, bem como pintores internacionais, entre os quais Van Gogh e Picasso. O programa artístico do nacional-socialismo seria dado a conhecer através da primeira Grande Exposição Alemã (GrofJe Deutsche Kunstausstellung) na Casa da Arte Alemã (Haus der Deutschen Kunst) em Munique no ano 1937, no seu neo-classicismo e academismo, no seu culto do natural e do rústico, com as suas alegorias nacionais e todo o kitsch de que encontramos ecos na arte portuguesa durante o Estado Novo de Salazar. Recorde-se ainda que, entretanto, Joseph Goebbels proibira a critica de arte na imprensa, autorizando apenas a «contemplação» artística (Kunstbetrachtung, 1936). Na arquitectura, a omnipotência do Führer era celebrada nas construções classicistas de um Paul LudwigTroost, a que se seguiria Albert Speer (1905-1981) que elevaria à megalomania o desejo de grandeza, de que o Estádio onde se realizariam as Olimpíadas de 1936 é um dos exemplos, encenando simu ltaneamente as grandes paradas e manifestações militares e de massas. 342 o poder totalitário entretinha as massas com arte medíocre, desde a opereta ao cinema de que não constam apenas produtos de pura propaganda, como sucede com os filmes de Riefenstahl, ou com Der ewige Jude de Fritz Hippler ou Jud Süj3 de Veit Harlan (1899-1964), ambos de 1940, primariamente anti-semitas. Mas era o puro entretenimento que predominava, quer no cinema, quer na rádio. A par da arte medíocre e orientada para o apaziguamento das massas, as festas e celebrações colectivas quebravam o quotidiano cinzento, sob pretexto de uma efeméride pseudo-pagã, anunciando o solstício de Verão (Sommersonnenwende, 21/22 de Junho), de uma homenagem às mulheres «arianas», recuperando o já existente dia da Mãe, ou do dia do Trabalho, encenando a vocação operária do partido anti-comunista, a todas as evocações dos heróis partidários, festividades essas que culminavam no Congresso de Nuremberga, sempre no mês de Setembro. Apenas a música parecia querer subtrair-se à mediocridade que caracterizou a vida cultural sob o Terceiro Reich. O grande maestro Wilhelm Furtwangler (1886-1954) continuava a servir o ideal da superioridade musical alemã, artistas e solistas garantiam a reputação internacional. Carl Orff (1895-1982) e Richard Strauss (1864-1949) acomodar-se-iam ao regime, mas outros nomes não menos famosos como Paul Hindemith (1895-1963), Arnold Schbnberg e Kurt Weill (1900-1950) optavam pelo exílio. Não havia espaço para compositores que cultivavam a música atonai e o experimentalismo mais radical, vistos como manifestação de arte «burguesa e decadente», quando não degenerada (entartet), epíteto que era atribuído ao jazz, critério a que de resto os pressupostos racistas não eram estranhos: ambas as formas continham em si elementos ou «semitas» ou africanos. Entretanto as Leis de Nuremberga (1935) garantiam que a perseguição aos judeus se acentuasse: ao afastamento dos cargos públicos sucederia a interdição de frequentar lugares públicos. O entretenimento, a que apenas «arianos» tinham acesso, ajudava, entretanto, a ocultar as crescentes dificuldades económicas resultantes da política de armamento, patentes na falta de alimentos (Fettkrise) ou no facto de a dívida externa aumentar consideravelmente (de 12,9 mil milhões de Reichsmark em 1933 passar-se-ia para 31,5 mil milhões de RM em 1938). A insatisfação face aos baixos salários não deixava de se fazer sentir. É também então que os desejos expansionistas de Hitler se começam a manifestar, assumindo o Führer o comando da Wehrmacht. No mesmo ano, uma nova vaga de terror abatia-se sobre os judeus, com o pogrom de Novembro (Reichskristallnacht, na noite de 9 para IOde Novembro de 1938), 343 organizado e encenado por Goebbels. Numa fúria incontida e «espontânea» e perante a estupefacção e a impotência da população, grupos a soldo dos nazis destroem montras e lojas de membros da comunidade judaica, incendeiam sinagogas, matando 91 pessoas e ferindo e violando muitas outras. Seguir-se-Ihe-ão prisões e deportações em massa (30 OOO).As medidas contra os judeus agravam-se, originando uma nova vaga de emigrações. No mês de Dezembro do mesmo ano, iniciam-se as perseguições a ciganos, que se tornarão mais intensas com o início da guerra, com esterilizações e deportações para campos de concentração. 5.2.4 Entre 1939-1945: o tempo da guerra Em Março de 1939, os alemães invadem a Checoslováquia, passando a exigir, pouco depois, à Polónia a devolução de Danzig e do respectivo corredor, pretensão recusada pela mesma, com apoio franco-britânico. Depois de ter firmado uma aliança com a Itália (Pacto do Aço), em 22 de Maio de 1939, Hitler firmará um pacto de não-agressão com Estaline (23 de Agosto de 1939), com uma cláusula secreta que prevê a divisão da Europa Oriental entre os dois países segundo esferas de interesse. Com a invasão da Polónia em 1 de Setembro de 1939, a Alemanha esgotará a capacidade de expectativa da Grã-Bretanha que, com a França, declarará dois dias mais tarde a guerra à Alemanha. A ofensiva dirige-se, a partir de então, à Europa Ocidental, com recurso ao sofisticado equipamento militar, sobretudo através da guerra-relâmpago (Blitzkrieg). Ocupadas a Dinamarca e a Noruega (9 deAbril de 1940), seguir-se-á (lO de Maio), a invasão da Bélgica, da Holanda e do Luxemburgo, ignorando-se o estatuto de neutralidade desses países. A guerra que opõe a França à Alemanha será, entretanto interrompida, quando o governo francês assina, a 22 de Junho, o armistício. Os colaboracionistas criarão um governo fantoche em Vichy, sob a anuência de Pétain, herói da primeira guerra mundial. Mas, pouco depois, De Gaulle lança, de Londres, o apelo à resistência. A partir de então, a guerra relâmpago dirigir-se-á, sobretudo, contra a Inglaterra, com sucessivos ataques aéreos que exigirão a mobilização geral da população civil. Com todo este esforço bélico e ao contrário do que sucede nos países ocupados, a população alemã não conhece grandes sacrifícios de guerra. Tal situação deve-se não tanto à proverbial organização alemã, como à constante 344 preocupação do poder em manter a população afastada de situações de carência que possam ocasionar uma nova sublevação como sucedera em 1918 (cf. IV4). o fornecimento de matérias-primas e de bens alimentares será assim uma preocupação sempre presente, resol vida ou através de políticas de aliança - mais ou menos naturais, como sucede com as transacções com a Itália, Hungria e outros países balcânicos - ou de conveniência: durante o ano de 1941, a União Soviética continuará a abastecer a Alemanha com produtos essenciais para a sobrevivência da respectiva economia. A ocupação dos territórios da Europa Ocidental bem como da Europa do Sudoeste terá um papel decisivo na garantia de fornecimento de produtos alimentares, para além das alianças com a Itália e o Japão e do apoio tácito da Espanha e da neutralidade portuguesa. Mas já em 1939 o Ministerrat fii,- Reichverteidigung passava a centralizar os esforços bélicos, ao que se sucederia o crescente poder do Ministro doArmamento Speer que, depois de ter elaborado os planos megalómanos da Berl im de Hitler, punha a sua capacidade de organização ao serviço dos desígnios expansionistas nazis. Embora com alterações substanciais na economia, designadamente o reforço da indústria bél ica e a mobilização de recursos, o certo é que a vida quotidiana não foi totalmente subvertida, nesta fase da guerra. Assinale-se, por exemplo, que só uma diminuta fracção de trabalho feminino viria a substituir os homens mobilizados, que o racionamento alimentar seria escasso, quando comparado com outros países europeus. Na Grã-Bretanha e nos EUA a invasão do espaço laboral pelas mulheres será bastante mais intenso: o poder totalitário sabia preservar a imagem da mulher maternal e procriadora, assim obviando a todo o tipo de artificialismos civilizacionais que incluíam, desde o desejo do afastamento do trabalho no espaço público urbano, ao uso de brincos e de cosméticos. Apesar desta situação favorável, o poder não se sentia suficientemente seguro a ponto de não reforçar as suas estruturas com mecanismos de vigilância e de repressão. As SS controlam o aparelho policial, os julgamentos sumários sucedem-se, as medidas repressivas sobre os judeus acentuam-se, iniciando-se e reforçando-se a política de extradição e aniquilamento. A propaganda reforça os seus meios de actuação, embora a estratégia nem sempre seja isenta de contradições. Goebbels prefere uma actuação mais cautelosa, evitando um triunfalismo excessivo, ponderando a necessidade de não criar expectativas que não se venham a cumprir. Contudo, o Ministro da Propaganda mantém-se incansável, organizando conferências de imprensa quotidianas. 345 o cinema exibe habilmente a invasão da Polónia e dos Países Baixos (Kracauer 1979), manipulando os espectadores com técnicas de montagem que já dominava há muito. O sistema repressivo zela e pune severamente os suspeitos de ouvir as notícias do campo oposto, designadamente a célebre propaganda anti-nazi da BBC. E a indústria da diversão mantém-se: o Barão de Münchhausen (1943) de Joseph von Bak:y, com guião de Erich Kastner, ocultado sob o pseudónimo de Berthold Bürger, sendo o célebre herói da mentira interpretado pelo ídolo kitsch da cançoneta alemã, Hans Albers, delicia as multidões, a canção «Lili Marleen» - mais tarde título de outro filme alemão célebre, Lili Marleen (1980) de Rainer Werner Fassbinder (1946-1982) - entretém mais os soldados na frente e as populações civis do que Wilhelm Furtwangler, que põe o seu talento de maestro ao serviço das tropas alemãs. A 22 de Junho de 1941, Hitler decide atacar a frente oriental, levando a ameaça nazi até à União Soviética. A partir de então a guerra desenrola-se em diversas frentes, sucedem-se as vitórias alemãs em múltiplas batalhas, a consagração do sonho de hegemonia nazi parece iminente. Mas o ano de 1943 caracterizar-se-á pela inversão da situação vantajosa alemã. A campanha a Leste revelará que a guerra não será breve, garantindo uma vitória rápida à Alemanha nazi, sobretudo depois da capitulação em Estalinegrado, entre 31 de Janeiro e 2 de Fevereiro. Entretanto o conflito assumira já proporções mundiais, com a declaração de guerra de Hitler aos EUA, quatro dias depois do ataque japonês a Pearl Harbor em 7 de Dezembro de 1941. No ano imediatamente a seguir, iniciavam-se as primeiras execuções de prisioneiros judaicos nas câmaras de gás de Auschwitz. No início de 1943, Roosevelt e Churchill exigiam, durante a Conferência de Casablanca (14 a 26 de Janeiro) a ~<capitulação incondicional» da Alemanha, ao que o governo nazi responde com um acto de desespero, quando Goebbels declara a «guerra total», uma enorme acção de propaganda, com vista a minimizar os efeitos da derrota de Estalinegrado. Em breve a economia alemã vai à bancarrota. O mercado negro floresce. A resistência acentua a sua pressão. A deportação de judeus prossegue, as perseguições e execuções de suspeitos de oposição e de autores de revoltas torna-se tanto mais violenta. O princípio do fim parece começar a tomar-se uma realidade: a mobilização de toda a população masculina não consegue impedir a catástrofe iminente. Himmler ordena que se apague os vestígios dos campos de exterminio. A fuga das populações alemãs da Europa de Leste nos territórios reconquistados pelo Exército Vermelho serve ainda de pretexto para uma propaganda anti-bolchevista reforçada. Mas a Grã-Bretanha e os EUA continuam a exigir a rendição incondicional. 346 Os aliados não pouparão a população alemã: os constantes bombardeamentos, designadamente de zonas sem importância estratégica que não a da guerra psicológica, como será o caso do tristemente célebre bombardeamento de Dresden, levarão a que a escassez em breve se comece a fazer sentir. O desaparecimento, quer das habitações com o seu estatuto de sÍmbolo social, quer dos objectos mais insignificantes de uso quotidiano alterarão o dia a dia dos alemães na guerra. A população infantil e feminina é evacuada para as zonas menos perigosas. Mas mesmo esta solução, subsidiada pelo governo, não evita as consequências negativas provocadas pela separação das familias e pelo afastamento do lugar de habitação. Os últimos anos de guerra parecem fazer prenunciar o seu desfecho: embora inúmeras revoltas comunistas tivessem sido violentamente reprimidas, também nos campos de concentração a sublevação se toma possível. Apesar da dificuldade em obter resultados eficazes, devido ao policiamento, censura e repressão brutais, a resistência organiza-se, sobretudo no exílio, a nível nacionaJ e internacional. Com o desembarque na Normandia, a 6 de Junho de 1944, a resistência francesa associa-se aos aliados, Paris regressa ao regime democrático, entrando as tropas americanas em Aachen a 21 de Outubro de 1944 e iniciando-se a ofensiva soviética na frente alemã em Janeiro de 1945. A 27 do mesmo mês, Auschwitz é libertada pelo Exército Vermelho que depara aí com cerca de 5000 prisioneiros doentes, que não haviam sido «evacuados», depois de Himmler ter dado ordens para que os vestígios do campo de extermínio fossem destruídos. A 19 de Março, Hitler ordena a total destruição dos recursos e indústrias durante a retirada, ordem que Speer não cumprirá. Em Abril, o Exército Vermelho conquista Viena e, pouco depois, a 2 de Maio de 1945, Berlim. Entretanto Hitler suicidara-se no seu bunker, a 30 de Abril, seguindo-se-Ihe Goebbels a 1 de Maio. Entre 7 e 9 de Maio o exército alemão capitula no quartel-general norte-americano em Reims, repetindo-se a cerimónia em Berlim, no quartel-general soviético. Quando os aliados vencedores se reunem, a 5 de Junho, em Berlim para decidir da sorte da Alemanha, a mesma encontra-se em ruínas, o número de mortos ascende aos 3,76 milhões entre militares e aos 0,5 milhões entre os civis, o de feridos é de 4 milhões, o de desaparecidos de 1 milhão, o dos órfãos de guerra de 1,4 milhões, o de viúvas de mais de 1 milhão. Mas, do lado dos vencedores, as perdas não são menores. De entre 5,7 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, apenas 3,3 milhões sobreviveram o cativeiro. O total das vítimas da guerra mundial é de cerca de 55 milhões, embora todos estes números sejam de difícil confirmação. 347 o número dos mortos nos campos de extennínio é, não esquecendo os ciganos e os presos políticos, impossível de ser contabilizado, ascendendo certamente aos milhões. Mas também para aAlemanha soava agora a «hora zero» (Stunde Nul!). es e momento de ruptura definitiva com o sonho da hegemonia alemã, vivido e m cidades arrasadas e pilhadas e sem outras referências passadas que não a do sonho absurdo e totalitário do Fiihrer, que o desfecho da guerra traíra. Contudo, essa hora fora também aguardada ansiosamente por muitos alemães que haviam resistido activa ou passivamente a esses anos totalitários. 5.3 ExíJio, emigração e resistência o exílio teve razões e consequências extremamente diversas. Pôde ser forçado ou voluntário e teve inúmeras motivações: desde a simples fuga, à emigração temporária ou definitiva, com particular destaque para os intelectuais e cientistas. Mas também a resistência política no estrangeiro passou a desempenhar um papel crescente, incapacitada como se encontrava no interior, face ao aparelho repressivo que o poder criara. Apesar da repressão imediatamente exercida pelos nacional-socialistas sobre a esquerda, logo em 1933, a oposição subestimou a situação, pensando, quer comunistas, quer sociais-democratas que se estava perante uma situação semelhante à vivida durante a época do Sozialistengesetz, na era guilhermina (cf. Cap. Iv'2). o certo é que a acção clandestina se tornava impossível no interior: todas as tentativas de reorganizar os partidos na Alemanha deparavam com um policiamento particularmente eficaz através da infiltração de agentes provocadores que permitiam o seu desmantelamento logo após a sua activação. A incapacidade de avaliar as consequências do poder totalitário levaria milhares de comunistas à prisão e aos campos de concentração. Simultaneamente a vida sindical também era aniquilada, restando apenas a organização no exílio. Com o início da guerra, os contactos com o exterior tanto mais difíceis se tomaram, vendo-se simultaneamente os comunistas alemães confrontados com as consequências do Pacto Hitler-Estaline. Contudo, depois das primeiras derrotas a Leste, tanto estes como os seus adversários sociais-democratas restabeleceram as suas esperanças numa derrota da Alemanha naZI. 348 Apesar de uma tentativa de união de esquerda no Verão de 1935 através da Frente Popular Alemã (Volksfront), unindo todas as forças contra o regime de Hitler, em breve a colaboração com o Partido Comunista se revelou vã, na medida em que este apenas estava interessado na instrumentalização dessa aliança, segundo os seus interesses. Tal correlação de forças não deixaria de influenciar a situação da Alemanha no pós-guerra, acentuada pela «guerra fria», levando à criação em 1949 dos dois Estados alemães, a República Federal da Alemanha e a República Democrática Alemã. A evolução da situação e, sobretudo a eclosão da guerra levara, entretanto, a que a emigração - que gradualmente deixara apenas de dizer respeito à esquerda, passando a abranger liberais, conservadores e mesmo antigos membrc)s do NSDAP - se interrogasse sobre a sua corresponsabilização no decurso dos acontecimentos. Embora descrentes de que se tratasse apenas de uma luta entre a liberdade e a ditadura, os opositores viam como único modo de contri buir para a queda do regime a colaboração nem sempre fácil com os aliados que olhavam qualquer cidadão alemão, mesmo no exílio, com suspeitas. Foi esta situação que levou inúmeros exilados a combater a tese segundo a qual o desastre nacional-socialista se resumiria a um assunto especificamente alemão, substituindo, porém, esse programa, sobretudo a partir de 1943 - depois de terem tomado conhecimento dos projectos que pretendiam privar a Alemanha dos territórios polacos - , por planos de reorganização da vida política democrática, uma vez ganha a guerra contra Hitler. Tal decisão correspondeu simultaneamente à ruptura definitiva dos sociais-democratas com os partidos com apoio soviético, optando claramente pelo modelo do parlamentarismo ocidental, o que teve uma influência decisiva no pós-guerra. A resistência fez-se igualmente sentir entre os oficiais da Wehrmacht, conduzindo ao atentado fracassado de 20 de Julho de 1944, organizado pelos círculos em torno de Helmuth von Moltke (1907-1945), o chamado «círculo de Kressau» (Kressauer Kreis) e que a historiografia pode agora provar não ter sido apenas uma tentativa desesperada de pôr termo a uma guerra por si já perdida, mas tratar-se antes de um plano longamente preparado. Representado, sobretudo, pelo corpo de oficiais, o mesmo estabelecera ligações com membros da diplomacia, da oposição mais conservadora, com representantes dos trabalhadores, de organizações sindicais e membros da Igreja. Recorde-se que também entre estes últimos, e apesar da política de conivência de ambas as Igrejas, se verificou frequentemente uma atitude de reserva 349 mental e de resistência passiva, pouco visível e espectacular, é certo, de eficácia difícil de avaliar, mas que não impediu que alguns membros dos seus fiéis fossem executados e deportados, face a tomadas de posição mais notórias. Inúmeros cientistas e intelectuais, foram obrigados a emigrar, representando assim um enorme défice para aAlemanha. Na sua maioria de origem judaica e/ou suspeitos de simpatias de esquerda, sobretudo os intelectuais, viriam a constituir uma importante força moral exemplificativa de uma outra Alemanha depois da guerra. 5.4 A «solução final» Contudo, as principais víti mas do regime de Hitler foram os judeus. É certo que a Alemanha conhecera já antes do regime nacional-socialista importantes focos de anti-semitismo, particularmente a partir da época guilhermina (cf. Cap. IV2). Mas, por outro lado e independentemente das importantes questões que o tema só por si levanta numa perspectiva histórica internacional mais alargada (cf. Mosse 1985, Geiss 1988, Greive 1983), na Alemanha viviam desde o século XVIII, grupos de origem confessional judaica, embora grande parte tivesse vindo a assimilar-se gradualmente. Esta população via-se confrontada com a persistente emigração de judeus oriundos do Leste da Europa (Polónia e Rússia). Dado o estatuto economicamente mais desfavorecido destes últimos, a xenofobia desenvolveu-se, sobretudo, face a estes grupos, xenofobia essa de resto, até certo ponto, partilhada pelos judeus assimilados (cf. Cap. IV2.8). Embora minoritários - a emigração decrescera desde 1880, contando-se na Alemanha apenas 503 000 judeus, o que correspondia a apenas 0,76% da população alemã - , o certo é que os judeus alemães ou se encontravam concentrados em regiões urbanas, sobretudo Berlim, ou exerciam importantes cargos nas profissões liberais, sobretudo como médicos e advogados, constituindo também uma elevada percentagem de importantes agentes da economia privada. Nomes como os de Rathenau, Edmund Husser! (1859-1938), Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer, Herbert Marcuse, Hannah Arendt (1906-1975), Arnold Schonberg, Norbert Elias, Albert Einstein (1879-1955), Freud, Fromm, Bruno Bettelheim (1903-1990), Siegfried Kracauer, Doblin, Lion Feuchtwanger (1884-1958), entre muitos outros, revelam não só a importância que teve para a cultura da República de Weimar essa extraordinária simbiose, como dão a ver as perdas, nalguns casos irremediáveis, que a emigração e perseguição acarretaram consigo. 350 As perseguições começaram a fazer-se sentir logo em 1933, com boicotes a estabelecimentos judaicos, sucedendo-lhe o afastamento dos membros da comunidade judaica dos cargos estatais, a que se seguiria a «arianização» das empresas judaicas. Mas a medida de maior alcance foram as tristemente célebres «Leis de Nuremberga» (Nürnberger Gesetze ou Reichsbürgergesetz) de 1935 que passavam a distinguir entre os «cidadãos de sangue alemão ou de tipo afim» (Reichsbürger deutschen oder artverwandten Blutes), dotados de plenos direitos de cidadania e aqueles que eram meros «cidadãos». Os critérios de distinção eram pseudo-científicos e absurdos na medida em que a distinção entre «ariano», «judeu puro» (Volljude) e «mestiço de primeiro grau» (Mischling 1. Grades) ou «de segundo grau» (Mischling 2. Grades) se baseavam nas práticas religiosas dos antepassados, algo impossível de controlar a partir da terceira geração. Contudo, dezenas de milhares de Halbjuden (isto é com dois avôs judeus) fizeram parte do exército alemão durante a guerra, de resto com o beneplácito do Führer que se reservara, no artigo 7.° das Leis de Nuremberga, o direito de «arianizar» pessoas com antepassados judeus (Bryan Mark, «Riggs Liste» em Die Zeit, n.O 15 de 4.4.97, pp. 11-13). Com base na distinção entre «arianos» e «não-arianos», todos os judeus foram sendo progressivamente afastados dos seus postos, incluindo gradualmente notários, professores, universitários, farmacêuticos, atingindo a situação o seu paroxismo com a «noite de Cristal» de 9 para 10 de Novembro de 1938, que iniciaria uma nova fase na política de perseguição aos judeus. Para além da exploração financeira,já praticada anteriormente e que obrigava os judeus a declarar as suas fortunas e a pagar uma «multa» que viria a render milhares de Reichsmark ao Estado nazi, os judeus viam-se agora não só privados de frequentar piscinas, cinemas e outras zonas de recreio, como lhes passou a ser interdita a liberdade de circulação, ocupar cargos públicos, frequentar escolas ou universidades estatais, bem como exercer qualquer actividade económica. A política de expulsão e emigração forçada em breve seria substituída, sobretudo depois do início da guelTa, pela política de extermínio, decisão tomada a 20 de Janeiro de 1942, com vista «à solução final da questão judaica», seguindo os métodos sistemáticos de liquidação já empregues em doentes psiquiátricos em Agosto do ano anterior: a Auschwitz juntaram-se os campos de exterminio de Belzec, Sobibor, Treblinka e Majdanek. A historiografia discute acerca do carácter premeditado deste acto criminoso, designadamente acerca da responsabilidade de Hitler ou da população alemã, enquanto colectivo - maioria silenciosa que ignoraria os excessos, 351 mas testemunhou todas as sevIcIas e humilhações públicas, desde as interdições anteriormente assinaladas, ao uso de uma estrela como símbolo de uma «raça» inferior que passou a corporizar tudo aquilo que alimentava os receios e as frustrações de um povo a braços com uma difícil identidade nacional. Discute-se acerca dos números de vítimas. Dificilmente se pode explicar ou compreender. Daí que séries televisivas como Holocausto (1978) ou filmes como Shoa de Claude Lanzmann (1985) e A Lista de Schindler de Steven Spielberg (1993) tenham sempre o mérito de indignar e recordar um dos mais atrozes crimes perpetrados, como Günther Anders o soube reconhecer. Mas a maior parte das vezes resta apenas a constatação da incapacidade de recordar ou de fazer o luto (Mitscherlich 1984) desse crime que, recalcado, persiste. Ou como escreveu Günther Anders, a propósi to deAuschwitz: «Und dabei haben wir noch keinen einzigen Toten gesehen», flüsterte sie. «Eben», flüsterte ich zurück, «So tot sind sie». «Wie meinst du das?» «Da/3 ja sogar noch Tote irgend wie noch da sind. Aber was wir gesehen haben, ist blo/3 ihr Nichtdasein. Freilich in der Form von Dingen, die noch da sind. ln Form ihrer Koffer, ihrer Berge von Koffern, ihrer Brillen, ihrer Berge von Brillen, ihrer Haare, ihrer Berge von Haaren, ihrer Schuhe, ihrer Berge von Schuhen. Gesehen haben wir also, da/3 unsere Dinge, wenn sie noch verwendet werden konnen, begnadigt werden, wir dagegen nicht. Und das gesehen zu haben, ist sehr viel schlimmer, aIs wenn du die Leichname gesehen hattest». (Anders 1977: 270) ( ... ) Denn Millionen Ermorderte nicht trauem zu konnen, ist nicht ein Manko der Deutschen, dessen ist in derTat niemand fahig. Freilich bedeutet dieses Zugestandniss nicht, da/3 man sich bei dieser Unfahigkeit beruhigen dürfe. Mindestens darüber, da/3 man angemessenenesTrauem nicht leisten konne, über diese Unfahigkeit soBte man trauem. (Anders 1979: 179) 352 Bibliografia aconselhada Sobre a historiografia consulte Ayçoberry 1979, Evans 1987 e Benz et alo 1998. Para uma súmula dos principais acontecimentos e indicações bibliográficas mais pormenorizadas leia Brozsat 1995, Erdmann 1993 e Benz et alo 1998. Sobre a relação dos alemães com o passado nazi veja-se Mitscherlich 1984. Actividades propostas Leia os seguintes textos e analise as suas posições relativamente aos limites da est ética perante o Holocausto: ( ... ) nach A uschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch, und daf3 frif3t auch die Erkenntnis an, die ausspricht, warum es unmoglich ward, heute Gedichte zu schreiben. (Adorno 1977: 26) Eindrücke, die man nicht ausdrücken kann, bleiben nichts ais Eindrücke. Adornos Wort über die Unmoglichkeit, nach Auschwitz Gedichte zu dichten, ist wahrer, ais er es selbst geahnt hat. Niemand wird je behaupten, daf3 unsere Sprache ausreiche, um Auschwitz in Worte zu fassen. (Anders 1977: 191) • Releia o capítulo «Os anos 20» e articule com as referências contidas no presente texto. M. R. S. 353 Resumo Apresentam-se as fases principais da evolução económica, política e cultural da Alemanha, desde o pós-guerra até à reunificação, e explica-se a divisão do país e o confronto de dois sistemas (federalismo democrático - totalitarismo centralista) a partir do contexto internacional da época. Na comparação histórica dos dois estados alemães salientam-se a aprendizagem da democracia na RFA e as contradições que levam ao fracasso do regime socialista na RDA. Descreve-se a reunificação na sequência da desintegração da União Soviética e do Pacto de Varsóvia que coloca a Alemanha contemporânea numa situação sócio-cultural particular, entendida a partir da própria história alemã e dos problemas estruturais gerais na Europa actual. Objectivos Compreender a situação sócio-cultural da Alemanha actual. • Conhecer a evolução sócio-económica e política do pós-guerra. • Distinguir as fases principais da história dos dois estados alemães. Entender o processo de reunificação e os problemas sociais daí decorrentes. 357 Para entender os problemas que a Alemanha actual enfrenta e que, sem dú vida, ainda continuarão pelo século XXI dentro, é preciso remontar ao fim do III Reich em 1945. De facto, a RFA, tal como se apresenta neste momento em termos territoriais, políticos, sociais e culturais, é o resultado duma determinada constelação histórica na Europa Central na fase final da Segunda Guerra Mundial. Com a capitulação militar incondicional de 7 e 9 de Maio e a subsequente ocupação do território alemão pelos aliados termina o império criado em 1871 (com as respectivas amputações territoriais de 1918, nomeadamente Posen, a Alsácia-Lorena e a Prússia Oriental) e o estado nazi e o seu totalitarismo que arrastou mais de 60 países para uma guerra devastadora com mais de 50 milhões de mortos. Em face do imperialismo nazi, a «Declaração das Nações Unidas» de 21 de Janeiro de 1942 já tinha proclamado uma política de segurança global que levou à constituição formal das Nações Unidas que coincidiu com o fim da guerra. É nesta perspectiva duma tutela internacional que se situa também a proclamação dos aliados de 5 de Junho de 1945 que reclama o poder político integral para as forças de ocupação na Alemanha vencida. Por outro lado, começa em 1945, ao nível das mentalidades e sobretudo da consciência nacional, um complexo processo de recalcamento, de reeducação forçada (Entnazifizierung) e de reorientação ideológica cujos factores mais importantes para o futuro serão a difícil aprendizagem da democracia, uma progressiva autonomização política e uma internacionalização cultural e civilizacional que virão a mudar por completo a vida dos alemães. 6.1 O pós-guerra Na situação caótica da Alemanha destruída e ocupada no fim da Segunda Guerra Mundial, destacam-se, numa síntese retrospectiva, quatro aspectos dominantes: • uma forte migração de refugiados e soldados desarmados que modifica profundamente a estrutura social e demográfica alemã; • a reconstrução das cidades e das infra-estruturas destruídas pela guerra e, mais tarde, a controversa reorganização da economia que dará origem a dois sistemas concorrentes (economia de mercado VS. econOIllia planificada); • a instauração dum federalismo administrativo como reacção ao poder centralista do império nacional-socialista e; • uma progressiva polarização política nacional e internacional que levará à existência de dois estados alemães cujo confronto dominará a segunda metade do século XX. 359 6.1.1 Migrações e modificações sociais Com a entrada dos exércitos aliados em solo alemão e a redefinição territorial da Alemanha decidida na conferência de Potsdam, realizada de 12.7. a 2.8.1945, começa uma migração que abrange, durante os primeiros anos do pós-guerra, cerca de 12 milhões de pessoas. Grande parte desta migração deve-se ao êxodo dos alemães atingidos pela redefinição territorial da Polónia que estabelece a fronteira oriental alemã, segundo uma linha formada pelos rios Oder e Neisse (Oder-Neisse-Linie), e atri bui as regiões polacas orientais e a Prússia Oriental à União Soviética. Esta perda de territórios que faziam ainda parte do Reich está na base ele um sentimento de «revanchismo» por parte dos refugiados que se prolongará até ao fim do século XX e que só desaparecerá, provavelmente. com as novas gerações que já não viveram a guerra e as primeiras décadas da divisão alemã. As divergências entre os aliados, que se fazem sentir desde 1945, levam a uma certa autonomia na governação das quatro zonas de ocupação. Em Setembro de 1947, a instalação da Bizone (Estados Unidos, Inglaterra), conduz a uma divisão administrativa e económica que prefigura a criação de dois estados alemães. Assim, entre 1945 e 1949, várias centenas de milhares de pessoas deslocaram-se da zona soviética e de Berlim-Leste para o Oeste. A partir desta época, a Alemanha e. sobretudo, a RFA não deixa de receber refugiados e estrangeiros cujo número ultrapassa de longe as migrações que sempre se verificaram em território alemão. Enquanto a integração dos refugiados da Segunda Guerra (Vertriebene) é facilitada pela reconstrução económica e a grande falta de mão-de-obra, a imigração dos chamados Gastarbeiter a partir de 1955 provocará, a longo prazo, uma série de problemas sociais que afectam directamente a identidade da Alemanha numa Europa em plena transformação (cf. Cap. IV.7). Enquanto o termo administrativo auslandische Arbeitnchmer (trabalhadores estrangeiros) é muito mais abrangente (incluindo as populações que trabalham do outro lado da fronteira, mas também habitantes dos países anglo-americanos e nórdicos), os primeiros Gastarbcitcr vêm de países do Sul, com estruturas sociais e económicas diferentes. Assim, o termo não indica só o estatuto precário destas pessoas, mas também a sua inferioridade social em relação ao nível de desenvolvimento na Europa Central. A consequência mais directa destas migrações será uma modificação da estrutura social regional em termos duma maior diversificação e mobilidade profissional e religiosa. Regiões predominantemente católicas recebem famílias de outras confissões e etnias, pequenas e médias indústrias instalam-se em zonas rurais e nas grandes cidades concentram-se populações de origens variadas. Esta dissolução forçada de estruturas e comunidades estáveis (e da respectiva identificação terri torial) causa uma desorientação que implica, 360 por seu lado, uma aprendizagem difícil para uma população com uma longa prática de tradições regionalistas - e, porventura, racistas e xenófobas. Tanto mais que, na propaganda nacional-socialista, este provincianismo alemão se solidificara numa mitologia nacional que resiste, em parte ainda hoje, a atitudes mais cosmopolitas e interculturais. O medo duma predominância estrangeira (Überfremdung) remete para uma precária identidade nacional e cultural que deve adaptar-se a um mundo cada vez mais diversificado e, pelo menos no contexto europeu e atlântico, mais uniformizado. 6.1.2 Evolução económica Enquanto, durante os dois primeiros anos do pós-guerra, a sobrevivência quotidiana e a reconstrução provisória das estruturas sociais são uma prioridade imperativa, com a lenta e progressiva normalização das condições de vida, colocam-se questões de fundo sobre o futuro rumo económico da Alemanha. A aliança entre o grande capital e a ditadura nacional-socialista tinha deixado uma forte desconfiança a respeito do capitalismo moderno e favoreceu, mesmo no programa de Ahlen do CDU de 1947, perspectivas mais sociais e mesmo socialistas. As reparações a pagar às forças aliadas, o desmantelamento da indústria pesada e química tradicionais e a desmontagem de fábricas inteiras na zona soviética contribuíram para a necessidade duma reorientação económica. Por outro lado, a ajuda americana (o plano Marshall - European Recovery-Program - de Junho de 1947-1952 que contemplava as zonas ocidentais da Alemanha e a ajuda alimentar CARE - Cooperative for American Remittances to Europe, 1946-1960 - de particular importância no difícil ano de fome de 1947), a reforma monetária de 1948 nas zonas ocidentais para travar a inflação e pôr cobro ao mercado negro e o empenho incondicional dos aliados durante o bloqueio de Berlim (de Junho de 1948 a Maio de 1949) inclinaram a opinião pública e o poder administrativo para o liberalismo económico. Com a fundação de dois estados alemães, a economia de mercado define-se claramente em oposição a uma economia socialista planificada. A conjuntura económica dos anos 50 (o Wirtschaftswunder favorecido por um mercado internacional propício à exportação na sequência da guerra da Coreia de 1952) confirma esta opção que é, desde 1949, ideologicamente modalizada por uma vertente social (soziale Marktwirtschaft) representada pela figura popular de Ludwig Erhard (1897-1977, Ministro da Economia de 1949 a 1963 e chanceler de 1963 a 1966). No início dos anos 50, a RFA já está completamente integrada no contexto económico europeu e atlântico (Westbindung), contexto esse que se apresenta, ao mesmo tempo, como 361 garante de segurança internacional e estabilidade política no quadro das democracias ocidentais. 6.1.3 Reconstrução do sector administrativo e público Se os aliados assumem formalmente o poder na Alemanha do pós-guerra (instalação do Kontrollrat em Junho de 1947), a administração local integra, desde o início, personalidades e entidades alemãs. São publicados, desde Setembro de 1945, jornais alemães sob controle dos aliados e, entre 1946 e 1948, aparecem novos partidos políticos (CDU e FDP, entre outros), estações de rádio, sociedades científicas (Max-Planck-Gesellschaft) e uma nova central sindical (DOB - Deutscher Gewerkschaftsbund). Enquanto o SPD, na zona soviética, se funde em Abril de 1946 com o KPD para formar o SED (Sozialistische Einheitspartei Deutschlands), o SPD ocidental sob a liderança de Kurt Schumacher (1895-1952) segue uma via independente e pacifista, defendendo um socialismo democrático que aposta na independência da Alemanha. A desnazificação dos alemães, decidida na conferência de Potsdam, realiza-se sob a forma de inquéritos e processos, sendo as figuras sobreviventes mais destacadas do regime nazi julgadas e, em doze casos, executadas em Nuremberga (1945-1949). O saneamento político dos serviços públicos e da economia, porém, abranda nas zonas ocidentais desde 1948 face às necessidades administrativas que não conseguem prescindir completamente de funcionários e especialistas que já estavam ao serviço do nacional-socialismo. Por outro lado, os Estados Unidos, tal como a União Soviética, não hesitam em recuperar, logo depois da guerra, especialistas das tecnologias de ponta (aeronáutica espacial etc.), como Wernher von Braun (1912-1977), para reforçar a sua própria posição militar e política. A nível cultural, a política de isolamento do regime, tal como a emigração e o assassínio de muitos escritores, artistas e cientistas judeus causaram uma ruptura que se faz sentir particularmente nos primeiros anos do pós-guerra. O mito duma «hora zero» (Stunde Nu I!), porém, corresponde mais a um apagamento do passado do que aos recomeços reais duma vida cultural que, sobretudo nas grandes cidades, privilegia o divertimento e a evasão no meio da miséria e das carências materiais. Significativo, neste aspecto, é um pequeno artigo do primeiro número do Spiegel, de 4 de Janeiro de 1947, sobre os filmes apresentados em Berlim 362 nesta altura onde se constata que uma grande parte do público recusa representações realistas: Das wirkliche Leben, hie13 es, namentlich auch unter den Frauen, sei heute traurig genug. 1m Kino wolle man sich erholen, wolle man «vergessen», aber nicht an die Note des Alltags erinnert werden. Ruinen und zerJumpte Heimkehrer ( ... ) wolle man nicht mehr sehen. Man wolle freundlichere Eindrilcke haben. (p. 20) Reeducação e esquecimento, crítica e evasão dum quotidiano triste e difícil, é entre estes pólos que oscila a vida cultural do pós-guerra e ainda dos anos 50. Esta tendência escapista verifica-se sobretudo no cinema e na música, com o Schlager alemão, as revistas e operetas, por um lado, e a continuação do culto da música clássica, por outro. A produção cinematográfica, que recomeça já em 1946, privilegia durante as duas primeiras décadas do pós-guerra, o género ligeiro e nostálgico, como o Heimatfilm que entusiasma o público dos anos 50, e o filme histórico ao nível da literatura de cordel, cujo exemplo mais popular serão os três filmes sobre a imperatriz austríaca Elisabeth (Sissi 1955-1957), representada por Romy Schneider (1938-1982). A vontade de recuperar o tempo perdido e de esquecer as atrocidades da guerra, por um lado, e a necessidade de reflectir sobre o passado e de encontrar uma explicação para os crimes da ditadura, por outro, dividem os alemães e geram controvérsias e conflitos exacerbados. É neste contexto que se situa também a discussão sobre a culpa colectiva (Kollektivschuld) do povo alemão que agita a opinião pública até hoje. Prova disso foi a discussão sobre o livro do historiador americano Daniel Jonah Goldhagen (1996) que insiste na participação de centenas de milhares de alemães na exterminação dos judeus na base dum anti-semitismo eliminatório generalizado, e os ataques de meios' oficiais e conservadores contra uma exposição do Hamburger lnstitut für Sozialforschung sobre a frequente participação do exército alemão nos crimes de guerra (Vernichtungskrieg. Verbrechen der Weh,macht 1941-1944) I. Ambos os casos mostram claramente que muitos alemães nunca chegaram a assumir e a discutir publicamente o passado nacional-socialista. Por outro lado, o grande interesse público que o livro de Goldhagen tal como a exposição sobre o exército alemão na II Guerra Mundial encontraram na Alemanha (a exposição foi exibida de 1995 a 1997 em mais de vinte cidades), parece indicar que uma parte substancial da população e sobretudo os jovens são sensíveis a uma história cujas sequelas ainda afectam a identidade nacional. '0 exército foi responsável, desde 1941, pela mone de mais de 3 milhões de prisioneiros russos e pelo massacre' de milhares de civis inocentes (cC. HeerlNaumann 1995). Se a RDA sempre insistiu, pelo menos oficialmente, num anti-fascismo declarado, a RFA não conseguiu demarcar-se claramente do fascismo. Uma série de escândalos à volta de altas personalidades directa363 mente envolvidas no nacional-socialismo indicam a persistência de valores como disciplina, lealdade e obediência que favorecem uma mentalidade servil (Obrigkeitsdenken) que dificilmente se deixa conciliar com uma democracia moderna que submete o próprio estado à crítica dos cidadãos. 6.1.4 A divisão alemã o crescente desentendimento entre a União Soviética e os aliados ocidentais culmina, já em 1948, numa série de acontecimentos que aprofundam irreversivelmente as diferenças entre a zona soviética e a Bizone anglo-americana. A saída da União Soviética do Kontrollrat em Março, a reforma monetária em Junho e a sua aplicação aos sectores ocidentais de Berlim e o subsequente bloqueio da cidade, que sobreviveu graças a uma ponte aérea dos aliados durante onze meses, evidenciam um antagonismo político e económico que leva ao confronto permanente de dois blocos mundiais em solo alemão. O estatuto específico de Berlim, que prevê uma administração comum dos quatro aliados, transforma a cidade num foco de conflitos e, na sequência das várias crises daí resultantes nos anos 50 e 60, num símbolo de liberdade e resistência para a RFA. A fundação da República Federal em Maio de 1949 e a da RDA em Outubro do mesmo ano, após várias semanas de negociações secretas em Moscovo, institucionalizam finalmente a divisão alemã. Enquanto a RFA instala um sistema federativo, tal como já existira no Vormarz com a Liga Alemã, no império criado por Bismarck e ainda na República de Weimar, a RDA segue o modelo soviético da república popular com uma administração centralista e dirigista. O federalismo alemão não só criou, na RFA, doze Liinder com uma autonomia administrativa e política notável, mas favoreceu também uma diversificação cultural que se revelou bastante produtiva e útil. Duma maneira geral, os diferentes sistemas políticos e económicos nos dois estados alemães correspondem às orientações básicas divergentes das duas grandes potências e às personagens e forças políticas que surgem neste contexto. Enquanto Konrad Adenauer (1876-1967) prossegue duma maneira decidida a integração da RFA nas alianças ocidentais na base dum anti-comunismo intransigente, Walter Ulbricht (1893-1973) representa a ortodoxia comunista e a imposição duma econorn.ia socialista na RDA. Assim, a Alemanha segue deliberadamente o caminho da divisão, enquanto a Áustria, igualmente ocupada em 1945, consegue recuperar a sua i ndependência a troco de uma neutralidade que o primeiro governo da RFA nunca quis considerar como alternativa possível. 364 6.2 As duas Alemanhas :;-..Ia história dos dois estados alemães, a alternância de governos ou de figuras dominantes como Konrad Adenauer, Walter Ulbricht e Willy Brandt (1913-1992), não corresponde sempre a mudanças de fundo que abrangem a sociedade inteira. Neste sentido, o historiador Dietrich Thranhardt distingue na sua Geschichte der Bundesrepublik Deutschland 1949-1990 (1996: 16-18) três fases: 1) 1945-1961: uma época de reconstrução e de integração no mundo ocidental que leva à divisão do país e que conhéce, na era Adenauer, o milagre económico e uma democratização dos principais estruturas públicas. Nesta perspectiva, a fundação da RFA (como a da RDA) aparece como o resultado de decisões e orientações político-económicas na sequência da Segunda Guerra Mundial. O consenso geral anti-comunista na RFA traduzia-se numa atitude intransigente frente ao bloco de Varsóvia, e a construção do muro de Berlim em 1961 mostra que a política da integração ocidental levou finalmente à consolidação da divisão alemã. 2) 1961-1974: reformas e mudanças. O progressivo aumento do SPD nas eleições autárquicas e regionais reflecte a necessidade de novas perspectivas tanto na política interna como nas relações com os países de Leste. Temas centrais como a segurança social, a saúde, o ambiente e o ensino começam a ocupar um lugar cada vez mais importante na discussão pública, e a política de aproximação, que WiJJy Brandt pratica em Berlim com as autoridades da RDA, é alargada, a partir de 1969, a uma nova Ostpolitik que traz uma normalização considerável nas relações com a União Soviética e a Polónia e um certo entendimento pragmático com a RDA. Toda esta época se caracteriza ainda pela confiança no crescimento económico e numa política social abrangente. 3) 1974-1989: recessão e crises. A crise energética de 1974 (Olschock) significa o fim do optimismo económico e uma progressiva consciencialização que evidencia a extrema vulnerabilidade das economias ocidentais e os limites do poder (financeiro e administrativo) do estado. O aparecimento duma nova força social, que se condensa nos movimentos de protesto (Bürgerinitiativen) e no Partido dos Verdes, mostra a incapacidade dos partidos tradicionais para ultrapassar as crises estruturais que àfectam a sociedade alemã. A desintegração do bloco de Leste e a queda do muro em 1989 significam o fim da guerra fria e da antiga RFA; a Alemanha reunificada, com os seus problemas específicos, já se situa numa Europa diferente e, na sua parte oriental, ainda pouca definida. 365 6.3 Os anos 50 A primeira década na história dos dois estados alemães é caracterizada por uma progressiva consolidação política e económica, ainda que a morte de Estaline em 1953 e a revolta popular na RDA em 13 de Junho do mesmo ano ponham temporariamente em perigo a posição do SED. O tratado de Maio de 1952 (Deutschlandvertrag) equivale à suspensão do estado de ocupação que é substituído no ano seguinte pelos tratados de Paris que garantem o estatuto de Berlim, reconhecem o direito de representação exclusiva da RFA (Alleinvertretungsanspruch) e preconizam a fundação da União da Europa Ocidental (WEU). A União Soviética, cujo plano de paz de 1952, com uma possível reunificação duma Alemanha neutra, tinha fracassado devido às excessivas exigências territoriais e políticas do governo federal, recusa os tratados de Paris e propõe mais uma vez a reunificação alemã para travar a integração da RFA no Tratado do Atlântico Norte. Em Maio de 1955, é proclamada a plena soberania da RFA que ingressa imediatamente na NATO, o que provoca a constituição do pacto de Varsóvia sob a liderança da União Soviética e, em Setembro, a declaração da soberania da RDA. A visita de Adenauer a Moscovo, no mesmo mês, resulta, porém, no estabelecimento de relações diplomáticas e no regresso dos últimos prisioneiros de guerra. Por outro lado, a integração dos dois estados alemães em blocos militares internacionais implica a remilitarização das duas partes e impossibilita, assim, durante várias décadas qualquer esperança duma reunificação. O governo de Adenauer decide, contra uma forte oposição interior, a criação da Bundeswehr em 1955 e um ano depois é criada a Nationale Volksarmee (NVA) como contributo militar da RDA para o pacto de Varsóvia. Em 1957, Franz-Josef Strauss (1915··1988), o novo ministro da defesa, chega a exigir, com o apoio de Adenauer, armas nucleares para o exército alemão, o que provoca o protesto público de 18 cientistas (Gottinger Appell derAtomwissenschaftler) que teve uma enorme ressonância mediática. Adenauer recua, mas negoceia em Novembro um protocolo secreto com a França e a Itália sobre a produção comum de armas nucleares, anulado em 1958 por de Gaulle, cujas ambições militares nacionais acabam com as pretensões alemãs de se tornar numa potência nuclear. Com o rearmamento bilateral da Alemanha, a «guerra fria» ganha uma nova dinâmica que se manifesta, na RFA, com a interdição do partido comunista (17 de Agosto de 1956) e a doutrina Hallstein (segundo o diplomata Walter Hallstein) que visa o isolamento internacional da RDA ao declarar incompatíveis as relações diplomáticas entre um estado terceiro e os dois estados alemães. A nível europeu, o referendo no Saarland ainda ocupado pela França abre o caminho para a reintegração deste território na RFA, eliminando assim o último ponto controverso nas relações franco- 366 -alemãs, favorecendo a reconciliação de dois países que se tinham confrontado como inimigos desde a Revolução Francesa. O tratado franco-alemão de 1963, assinado solenemente por de Gaulle e Adenauer, será o ponto alto desta reconciliação oficial que aproxima também os dois povos através dum aumento considerável do intercâmbio cultural, escolar e económico. Embora marcados pela divisão alemã e a agudização da guerra fria, os anos 50 foram, na RFA, uma época de reconstrução e de esperança. A dinâmica do milagre económico, a prosperidade crescente e a perspectiva dum enquadramento militar e político internacional dajovem república criaram uma estabilidade relativa que a política autoritária de Adenauer aproveitou habilmente. O slogan eleitoral «Keine Experimente» traduz muito bem esta atitude que teve um largo apoio eleitoral (como o revela a maioria absoluta do CDU nas eleições federais de 1957). A política do SPD, porém, que tentou opor-se ao rearmamento da Alemanha e à sua integração atlântica e que manteve ainda uma orientação essencialmente socialista, teve de adaptar-se, em face da evolução europeia, às novas realidades políticas e económicas. O congresso do partido em 1957 e o Godesberger Programm que daí resultou confirmaram esta transformação do partido operário tradicional num partido popular com perspectivas mais real istas em termos de política externa e económica. Por outro lado, a prioridade económica travou a democratização da sociedade alemã e a necessidade de segurança e conforto material favoreceu um estilo de vida bastante típico e restaurador no sentido dum quietismo burguês, dum novo Biedermeier que, mesmo quando se abre a culturas estrangeiras (exemplos disso são a popularidade do jazz, do cinema americano e de autores como Hemingway) fica dentro dos limites dum modernismo clássico. Este conformismo e o respectivo optimismo materialista manifestam-se tanto na arquitectura como no design do quotidiano desta época. A reconstrução dos centros urbanos é feita num estilo simples e funcional, sem grandes pretensões estéticas, o que transforma o centro de muitas cidades num aglomerado anónimo de lojas, grandes armazéns e prédios incaracterísticos. Este funcionalismo privilegia a circulação dos automóveis em detrimento da comunicação e da integração social da população urbana; e assim, o psicanalista Alexander Mitscherlich (1908-1982) pode denunciar, no seu livro de 1965, o aspecto inóspito das cidades alemãs (Die Unwirtlichkeit unserer Stadte). A vontade de reconstruir o país também não deixa uma grande margem para contemplações para com o restante património histórico; desaparecem, nos anos 50, muitos bairros e prédios antigos, como o Hansaviertel em Berlim, na sequência duma política de alojamento que prefere blocos novos à reconstrução do perfil histórico das cidades. Comparados com a década seguinte, muito mais agitada, os anos 50 apresentam-se na RFA como uma época de estagnação que, ao preocupar-se 367 principalmente com a reconstrução do país e a sua consolidação políticosocial, evita as questões de fundo que se prendem com a identidade dum estado alemão moderno e democrático. 6.4 Os anos 60 o equilíbrio relativo dos anos 50 conhece, no início dos anos 60, uma série de abalos que já deixam prever as mudanças que afectarão a sociedade alemã no fim da década. Estas mudanças dizem principalmente respeito às relações com a RDA, às reformas do sistema educativo, ao fim dos governos CDU e ao movimento estudantil. 6.4.1 Relações com a RDA Na sequência da crise de Berlim de 1958, quando a União Soviética exige a revisão dos estatutos da cidade, realiza-se, entre Maio e Agosto de 1959 em Genebra, uma conferência dos quatro ministros aliados dos negócios estrangeiros, na qual participam também os respectivos representantes da RFA e da RDA. As negociações sobre os dois planos de paz apresentados ficam, porém, sem resultado. Em 1960, a RDA começa a impor restrições aos visitantes da RFA e, quando, em 1961, o número de refugiados aumenta espectacularmente (só em Julho são mais de 30 000), é iniciada a construção do muro de Berlim sendo igualmente encerrada a fronteira entre a RFA e a RDA. As cenas dramáticas que ocorrem nestes dias em Berlim revoltam sobretudo a opinião pública, enquanto os aliados e o governo de Adenauer evitam dramatizar a situação, acabando por aceitar o muro para o integrar rapidamente na propaganda anti-comunista. Organizam-se, por exemplo, nas escolas e nos liceus viagens a Berlim que incluem uma visita ao muro e à zona oriental da cidade. Para a RDA, o fim das fugas para o Oeste significa uma maior estabilidade social e política que se traduz num aumento significativo da produtividade industrial. 6.4.2 Reforma do sistema educativo A autonomia dos estados federais, que abrange também os ensinos secundário e superior, dificulta bastante uma coordenação eficaz do sistema educativo ao nível federal. Só em 1966, por exemplo, os vários ministros da 368 cu ltura acabam por entender-se sobre um iníc io comum do ano escolar 11') Outono. P0f outro lado. havia ainda em mu ita ~ regi ões escolas confessi onais t;: na Baviera a fO ffilação dos profes sores pri mários fez -se. até 1967 , separana 111en te segundo as confissões dos candi datos. As universidades ex istentes já não conseguiam corresponder ao desenvolvim nto industrial e soci al da RFA, uma situação que o publicista Georg P icht caracteriza em 1964 num famos o estudo de Die deutsche B ildungskatastrophe. Assim , os li.illder decidiram no mesmo ano a fun dação de novas universidades que se estabeleceram em Bochum , Dortmun d, R egensburg, Konstanz e B remen. As duas últi mas eram concebidas como universidades novas tamb ' m ao nível dos cuniel/la, privilegiando formas d ife rentes de trabalho e uma orientação interdi sc ip lin ar dos estudos. A partir de ] 969, ve rifica-se uma autêntica «ex plosão » do ensino superior na RFA. Enquanto em 197 1 exi stem 471 000 vagas, em 198 1 as universidades já podem oferecer 1120 000. E sta democratização do ensino superior, propagada pri nc ipalmente pelo SPD, não produ ziu , no entanto. só efeitos positi vos. As sucessivas crises económicas e o au mento do desemprego, por um lado , e a saturação do sector público, por outro, contribu iram para um desemprego académico que, e m certas disciplinas (Língu as e Literaturas, H istó,'a, Di reito, Gestão etc .) se tom ou numa constante do ensi no superior que, em mui tos casos, actualmente já não pode garantir uma profissiol1alização dos licenciados. Ass im, as reformas não con seguiram prever ou minimizar o desemp rego j uven il e académico e o poder político continua perplexo perante uma situação que tem consequências sociais e financeiras bastante negativas . 6 .4.3 O .fim da era Adenauer Quando Ade nauer se retira em O!1cub . . o de 1963 para deixar o lugar ao seu popul?r m in istro da economia Ludwig ~rh~rd, era difícil de prever que o hom(.,TI libr·ral do Wirtschafts·wl"Ider não fosse capaz de enfrentar as crises económicas e políticas que criavam cada vez mais cOllfl itos dentro da própria coI igação CD U-FDP. A recessão de 1966 provocou um choque tão forte no eleitorado alemão que Erhard teve de se demitir a favor duma Grande Coligação CDU-SPD, com o chanceler Kurt Georg Kiesinger (1904-1988) e Willy Brandt na pasta dos negócios estrangeiros. Esta união dos dois maiores partidos da RFA começou a praticar novas formas de intervenção estatal na economia para garantir a estabilidade conjuntural. Para o SPD, esta coligação significava, depois de 17 anos de oposição, uma oportunidade de mostrar as suas capacidades governativas e a competência dos seus ministros. 369 A nível cultural, o fim da era Adenauer traduz-se, sobretudo na literatura e no cinema, por tendências mais críticas e inovadoras em termos formais. O filme alemão dos anos 50, apesar dum volume produtivo bastante elevado (só em 1955 estreiam 128 longas metragens), limitou-se a um conformismo formal e temático e a uma nostalgia sentimental, recusando abrir-se à política e à realidade social da época. Em 1962, 26 jovens cineastas assinaram uma declaração pública (Oberhauser Manifest) que termina com as frases: «Der alte Film ist tot. Wir glauben an den neuen Film» (Gregor 1978: 123). Esta nova geração, inspirada pelaNauvelle Vague francesa, produz cineastas como Alexander Kluge, Edgar Reitz, Werner Herzog, Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlondorff e Wim Wenders (todos nascidos entre 1932 e 1945), cujos filmes apresentam um 01 har original sobre a realidade alemã e os seus sonhos e problemas durante várias décadas. Os filmes mais relevantes neste contexto da temática alemã são Abschied van Gestern (1966) e Gelegenheitsarbeit einer Sklavin (1974) de Kluge, Die verlarene Ehre der Katharina Blum (1975) e Die Blechtrommel (1979) de Schlondorff, Die Ehe der Maria Braun (1976) e Der Handler der vier lahreszeiten (1972) de Fassbinder, leder für sich lIlul Gatt gegen aUe (1974) de Herzog e 1m Lauf der Zeit (1976) e Der Himmel über Berlin (1988) de Wenders. Embora limitado pela crescente influência da televisão e das distribuidoras americanas, o novo cinema alemão não deixa de acompanhar a evolução política e social da RFA. Os filmes formalmente mais interessantes são realizados por Alexander Kluge, também escritor e teorizador dos mass media, que continua actualmente o seu trabalho de cineasta na televisão, procurando transformá-la num meio de comunicação inteligente e interactivo. O novo interesse pela realidade alemã no fim da era Adenauer manifesta-se na oposição a uma vida política que prolonga as opções básicas do pós-guerra. O largo consenso parlamentar da Grande Coligação, que dera mais uma vez a prioridade à política económica, tornou-se, nos últimos anos da década de 60, rapidamente alvo de muitas críticas que se concentraram no protesto dos estudantes. 6.4.4 O movimento estudantil (Studentenbewegung) A onda de descontentamento que alastra durante os três anos da Grande Coligação (1966-1969), tem várias razões que não se prendem unicamente com a situação política alemã. O protesto, que abrange não só as escolas e universidades, mas também uma parte do movimento sindical e as camadas mais jovens da população, focaliza principalmente os temas seguintes: 370 • a guerra do Vietname e o imperialismo americano; • as leis de excepção (Notstandsgesetze),' • a sociedade de consumo. Assim, para a geração jovem, o aliado americano, cuja presença militar na RFA se tinha revelado imprescindível para a sobrevivência da Europa, transforma-se num agressor imperialista. Esta viragem anti-americana justifica-se tanto mais quanto, segundo pesquisas recentes, o presidente Johnson teria pedido ao governo alemão a participação de tropas alemãs naGuerra do Vietname. Em 1969, decon'e em Berlim um Congresso Internacional sobre o Vietname que condena a intervenção americana e o apoio alemão a esta guerra considerada como cruzada anti-comunista. Por outro lado, o movimento estudantil inspira-se nas várias formas de protesto praticadas nos Estados Unidos; são organizados então «teach-ins» e «sit-ins», e as fracções mais individualistas do movimento imitam os hippies americanos. Em Junho de 1967, o Xá do Irão, considerado um ditador e um fantoche dos Estados Unidos, visita Berlim e, durante as manifestações organizadas nesta ocasião, um estudante inofensivo é morto a tiro por um polícia. Este acontecimento revela, de repente, que o poder dum Estado, com o qual a população se tinha plenamente identificado até agora, pode virar-se brutalmente contra os próprios cidadãos. No mesmo ano, Rudi Dutschke (1940-1979), um dos principais representantes da revolta estudantil em Berlim, é alvo dum atentado que é entendido como resultado das agressivas campanhas jornalísticas da editora Springer contra o movimento de protesto. Sob a iniciativa do SDS (Sozialistischer Deutscher Studentenbund), são bloqueadas as várias filiais e incendiadas camionetas da editora, cujo periódico principal, o jornal Bild, continua até hoje, e com a mais elevada tiragem nesta área, a sua linha demagógica e sensacionalista. O protesto contra Springer não conseguiu quebrar o poder dos mass media, mas mobilizou a opinião pública contra uma manipulação mediática que, no caso de Springer, propagava opiniões políticas de tendência de direita. Uma outra vertente do protesto, que mobilizou também grande parte dos sindicatos e dos membros do SPD, dirigiu-se contra as leis de excepção que, apesar de todas as manifestações, foram aprovadas no parlamento federal em Junho de 1968. Neste aspecto, a Grande Coligação reforçou consideravelmente os poderes do estado, enquanto a oposição extraparlamentar (APO - Auj3erparlamentarische Opposition) não conseguiu influenciar o poder legislativo. Um outro alvo importante do movimento estudantil era a sociedade de consumo, resultado do milagre económico e da integração da Alemanha 371 , Marcuse e Habermas participaram activamente no movimento de protesto. Enquanto Marcuse, professor visitante em Berlim desde Julho de 1967, explicou e justificou a contestação como resultado da despolitização e da repressão numa pseudo-democracia, Habennas defendeu o estado constitucional e as suas instituições. federal no sistema ocidental. Baseado nos escritos do psicanalista Wil helm Reich (1897-1957) e dos sociólogos Herbert M arcuse, M ax Ho rkheimer e Theodor W. Adorn0 2 e na análise marxista tradicional do capitalismo moderno, os círculos académicos forneceram uma série de estudos sobre o poder do mercado, a estética da mercadoria e a reificação das relações humanas na sociedade de consumo. Esta crítica. porém, que incentivou formas de vida alternativas (recusa das regras e do vestuário burgueses, escolas anti-autoritárias, comunidades - Wohngemeinschaften - e relações livres), não afectou as estruturas económicas básicas e o mercado transformou as manifestações alternativas em modas ou práticas sociais perfeitamente aceitáveis. Embora rapidamente transformado em mito, o movimento de 68 (na sequência do Mdio revolucionário de 1968 em França) não deixou de mudar a mentalidade duma geração inte ira. Mesmo que muitos dos objectivos do movimento se tenham revelado idealistas e irrealistas (como é o caso da educação anti-autoritária, da revolução sexual e do socialismo humano), a geração de 68 conhece maiores liberdades pessoais e uma participação mais concreta na vida social e política. Neste sentido, os Verdes herdaram em muitos aspectos os sonhos duma vida que aproxima mais o indivíduo, o cidadão e as instâncias do poder. Com o fim da Grande Coligação em 1969 e o advento dum governo SPD, o movimento estudantil dividiu-se rapidamente. Uma fracção mais ortodoxa organizou-se em grupos de orientação radical ou entrou no recém-formado partido comunista (DKP), outros capitularam ou integraram o SPD para iniciar a «longa marcha através das instituições» preconizada já por Rudi Dutschke. Uma minoria, finalmente, escolheu o caminho do terrorismo armado que, sob o nome de RAF (Rote Armee Fraktion) se manifestou principalmente durante os anos 70. o movimento estudantil faz parte duma mudança cultural que ultrapassa largamente o domínio político e económico. O que está em causa é, sobretudo, uma mentalidade que já não se deixa dominar pelo passado e que quer uma vida diferente. Assim, a irrupção dos Beatles e da música pop nos anos 60, evidencia, antes de mais, um conflito de gerações bastante profundo. Enquanto a geração dos pais, os sobreviventes da guerra, acreditava ainda nos valores do trabalho, da disciplina e duma morai rígida, a nova geração exigia já outras coisas: uma maior liberdade pessoal (e, com isso, também sexual), uma vida não alienada pelas leis do consumo, mas ao mesmo tempo uma verdadeira democratização da sociedade na base do pacifismo, da igualdade e da transparência. O ambiente desta mudança, a eufori a crítica e as alternativas utópicas formam um grande contraste com o pessimismo, a desorientação e a falta de perspectivas concretas que predominam neste fi m de século. 372 6.5 Mudanças, reformas e crises (1969-1989) A grande prioridade do governo SPD-FDP sob a liderança de WilJy Brandt era uma nova Ostpolitik. De facto, a crescente influência económica internacional da RDA e o imobilismo político da RFA perpetuaram um impasse conflituoso. As conversações com a União Soviética que começaram logo em Dezembro de J 969 e, poucos meses depois, com a Polónia, levaram a uma normalização que reconheceu as fronteiras existentes e permitiu resolver problemas práticos como a reintegração dos russos e polacos de origem alemã que queriam deixar o país (Aussiedler). As negociações com a RDA só se desb loquearam depois da morte de Ulbricht em 1971, resultando, em Setembro desse ano, num tratado que garantia os acessos a Berlim e a presença militaI dos aliados nesta cidade. O Grundlagenvertrag de 1972, que garante a soberania e a independência dos dois estados alemães, tem sobretudo efeitos práticos e humanitários, as questões básicas (reconhecimento formal mútuo, problema da nacionalidade ale"lã, etc.) ficam em suspenso. Assim, a Ostpolitik de Willy Brandt, reconhecido internacionalmente com o Nobel da Paz em 197 I, teve os seus principais efeitos nas relações com a União Soviética e a Polónia; o tratado com a RDA, muito mais limitativo, pennitiu porém a entrada dos dois estados alemães nas Nações Unidas em 1973 e um aumento das viagens e colaboração inter-alemã na área do comércio, dos transportes e das telecomunicações. Em termos de política interna, o governo iniciou um largo programa de reformas (Betriebsverfassungsgesetz de 1971 sobre a representação sindical nas empresas, infra-estruturas, investigação, ensino, política social) que acabou por inrIacionar as finanças públicas duma maneira preocupante. Em bora confirmada pelas eleições de 1972, a euforia reformista encontrou, com a crise do petróleo de 1973/1974, os seus limites. A estagnação económica, o aumento rápido do desemprego e um escândalo político (a descoberta dum espião da RDA entre os conselheiros de Brandt) levaram à demissão do chanceler e à eleição de Helmut Schmidt (nascido em 19 18) que tentou estabilizar a economia e controlar as despesas públicas. No fundo, o governo 1\..ohl, que substituiu Schmidt em 1983, debate-se ainda com os mesmos problemas: um desemprego estrutural substancial, um aumento incontrolável das despesas e dívidas públicas e a subsequente necessidade de cortes radicais nos vários sectores sociais. O velho sonho da social-democracia, o Estado-providência (Wohlfahrtsstaat), com uma rede social que abrange todos os cidadãos, revela-se cada vez mais utópico e na Alemanha das duas últimas décadas do século XX começa a surgir uma nova pobreza que atinge, entretanto, vários milhões de pessoas. 373 A recessão económica dos anos 70 começa a criar uma consciência colectiva da extrema fragilidade da economia modema e da própria problemática das ideias de progresso e permanente crescimento económico. O conceito de Lebensqualitat, que aparece no contexto sindical em 1974 e que é rapidamente retomado pelo SPD, insiste no contexto global e na gestão equilibrada dos recursos naturais, enquanto o desenvolvimento forçado da energia nuclear encontra cada vez mais resistência entre as populações afectadas. As manifestações contra a construção das centrais de Brokdorf e Whyl e do depósito de resíduos radioactivos em Gorleben mobilizam centenas de milhares de pessoas cujos receios serão confirmados pelo acidente da central russa de Tchernobyl em 1986. A contaminação de largas zonas da RFA com precipitações tóxicas evidencia a dimensão global do perigo nuclear e a necessidade dum controlo internacional eficaz, além de chamar a atenção para o desenvolvimento de possíveis energias alternativas. É neste contexto que o livro Ein Planel wird geplündert (1975) do deputado Herbert Gruhl (CDU) apresenta um primeiro balanço bastante negativo da situação ecológica e, já em finais de 1978, os vários grupos de «verdes», que começam a surgir em todo lado, decidem constituir uma organização administrativa e política comum. Em Outubro do ano seguinte, os Verdes conseguem entrar no parlamento regional de Bremen e, cinco anos mais tarde, no Bundestag. Com este quarto partido, a vida política da RFA e mesmo a discussão no interior dos outros partidos ganhou uma nova dinâmica, que assegurou aos problemas ambientais um lugar de destaque. As lutas dentro do partido (realistas contra fundamentalistas) e as ideias às vezes irrealistas dos Verdes não impediram que o ambiente se tornasse num tema político que nenhum governo pode ignorar e que a própria indústriajá converteu numa série de novas tecnologias que colocam a Alemanha numa posição pioneira em matéria de protecção do ambiente, reciclagem dos resíduos industriais e domésticos e recuperação de zonas contaminadas. O fraco interesse que a problemática ecológica encontra na ex-RDA (onde, durante 40 anos, foi privilegiado o aumento da produtividade a troco duma poluição industrial generalizada) mostra que a mudança das mentalidades não só leva muito tempo, como depende também dum contexto social favorável. Enquanto o Waldsterben (a destruição das florestas pela chuva ácida) e o Treibhauseffekt (efeito de estufa) são largamente discutidos, uma limitação do trânsito e o desenvolvimento sistemático de transportes alternativos encontram ainda pouco apoio político e popular. O Smogalarm, verificado em Janeiro de 1985, quando foi proclamada na zona do Ruhr a interdição total da circul ação automóvel devido aos elevados valores tóxicos do ar, é ainda considerado um acidente passageiro, e até hoje, nenhuma das grandes forças políticas (incluindo os sindicatos e o SPD) ousa imaginar e 374 propor uma sociedade sem crescimento económico. A prosperidade e a valorização intensiva do consumo individual impedem, para já, qualquer reorientação fundamental da sociedade alemã que, aliás, com as suas dependências internacionais, dificilmente poderia praticar uma política ecológica que entrasse em conflito com os interesses dos seus parceiros comerciais. Mas a RFA não conhece apenas dificuldades económicas nos anos 70 e 80. O Radikalenerlaj3 de Janeiro de 1972, uma decisão comum dos Uinder e do governo SPD para impedir extremistas (na prática, sobretudo a esquerda socialista e comunista) de integrar a função pública, cria um ambiente de desconfiança e suspeita e explica, pelo menos no início, algumas simpatias pelo grupo terrorista da RAF que tenta derrubar o estado capitalista pela força das bombas e dos assassínios. Quando os principais membros do grupo são presos em 1972, começa uma «guerra» de atentados e sequestros para libertar os presos condenados no julgamento de Stammheim (1975). Dois anos depois, o assassínio da várias figuras proeminentes da política alemã e o desvio dum avião da Lufthansa por um comando árabe em apoio da RAF, marcam o ponto mais alto dum confronto que leva, ao fim e ao cabo, a um reforço substancial dos poderes do estado e das forças policiais. O fracasso do comando árabe provoca o suicídio dos presos de Stammheim e a progressiva desintegração da RAF cujos últimos membros são descobertos na RDA durante a reunificação. Por outro lado, o fracasso da RAF confirmou o fim das grandes lutas ideológicas e a ausência de alternativas concretas ao estado de direito. Neste contexto, o terrorismo reduziu-se a uma função desestabilizadora (aproveitada pelo SED) que reforçou finalmente as forças repressivas que eram o alvo principal da crítica. Mais êxito tiveram os movimentos em favor do desarmamento e da redução da energia nuclear que continuam a actuar com grande apoio popular e que, no âmbito de instituições como a Amnesty Internacional e o Greenpeace, se empenham cada vez mais a nível global. Um outro problema que muito ocupa a opinião pública na RFA nos anos 80 é o crescente afluxo de refugiados políticos e económicos que pedem asilo (Asylanten). Só na primeira metade de 1986, mais de 70 000 pessoas chegam à RFA com este intuito, o que implica a adopção de medidas sociais e burocráticas extraordinárias. Dado que a taxa de reconhecimento de asilo político varia entre 5 e 9%, a expulsão dos restantes refugiados não deixa de provocar situações dramáticas. Uma limitação do direito de asilo e a queda do bloco comunista (em 1988,30000 dos refugiados eram polacos) contribuíram para reduzir o número de pedidos e para desviar a opinião pública e os ressentimentos populares para as grandes mudanças que deviam transformar por completo a Europa oriental. 375 6.6 Desintegração do Pacto de Varsóvia e reunificação alemã o fracasso das economias socialistas, que se torna cada vez mais evidente a partir do início dos anos 80, acarreta turbulências pol íticas que se mani festam primeiro no movimento Solidariedade na Polónia e numa corrente reformista na U nião Soviética que leva G orbatchev ao poder m 1985. A sua polÍtica de maior transparência administraliva (C/asnost) e cautelosa li berali zação económica tenta ainda garantir a sobrevivência do sistt: ma soviético, deixando urna maior marge m de manobra aos países satéli tes ao decretar a auto-determinação dos vários regimes com unistas. As primeiras mudanças liberais na Hu ngri a e na Checoslováquia, por seu lado, incitam turistas da RDA a aproveitar a situação para fugir via Áustria (abertura da fron te ira austro-húngara em Maio, confirmada na cimeira de Budapeste em Ju lho) ou para se refu g iar, nov'erão de 1989, nas embai xadas da RFA em P rag a e Varsóvia. Neste ambiente de cresce nte tensão, a RDA festej a ai nda, em 7 de O utubro, os 40 anos da sua existência: poucos dias depois Erich Honecker (1912-1994) é substituído por E gon Krenz na tentati va de travar os protestos populares. Mas nas primeiras semanas de Nove mbro centenas de milhare s de pessoas em Be rlim e em Leipzig rec\"mam eleições livres e a demissão do governo. A primeira abertura dum ponto de passagem em 9 de N ovembro, que desencadeia a queda do muro, provoca uma invasão de Berlim-Ocidental, e as sucessivas lentativas do SED de acompanhar o mov imento (demissão de Kre nz, mudança de nome do SED e nomeação do jovem Gregor Gysi para a pres idê nci a do part ido chamado agora PDS - Partei des Demokratischen Sozialismus) só vêm acelerar o processo de desintegração. A abertura do Brandenburger Tor em 22 de Dezembro, na presença dos políticos federais e de uma multidão cm fe ta, transfo rmou -se no símbolo du ma vontade gemi de união. A mudança das palavras de ordem ilustra esta evolução para uma convergência política. «Wir sind das Volk» , gri ta-se nas primeiras manifestações na Alemanha nrientaI que recuperam um conceito usurpado pelo aparelho do SED, enquanto depois se proclama: «Wir sind ein Vol k». As negociações dos meses seguintes levam às primeiras ele:ções livres na RDA, que dão uma maioria relativa ao CDU , e, em M aio 1990, começam as negociações dos (lOIS estados alemães com a participação dos quatro aliados (2+4) que regulam a situação mi litar da Alemanha (reduçãu dos efectivos, integraç ão na NPJO e retirada das tropas russ as cofin an ciada pelo governo ale mão) e preparam a união monetária e económica que entrajá em vigor em I de Julh o. As negociações seguintes sobre o tratado de unificação (Einigungsvertrag) avançam rapidamente sob a pressão da integração económica; o tratado é assinado em finais deAgosto. O tratado dete rmina no meadamente o carácter definitivo das frontei ras alemãs, a renúncia às annas nucleares, biológicas e qu ímicas e a plena soberania alemã em todos os rest antes assuntos internos 376 e externos. No dia 3 de Outubro de 1990, a união é oficialmente realizada e a RDA deixa de existir. O seu território divide-se agora em cinco novos estados federais (Brandenburg, Mecklenburg- Vorpommern, Sachsen, Sachsen-Anhalt, T hüringen) que integram a República Federal (cf. o mapa seguinte do Statistisches Bundesamt, Wiesbaden) e organizam em 14 de Outubro as primeiras eleições regionais. As primeiras eleições comuns para o parlamento fede ral alargado em Dezembro de 1990 dão uma maioria confortável ao governo CD U-FDP que aproveita o entusiasmo popular, minimizando ou ignorando os custos reais desta reunificação rápida. A Alemanha Actual Esta sucessão de datas mal pode dar conta da dimensão humana que implica o fim duma separação de 28 anos. A eufórica desmontagem do muro, o reencontro de famílias longamente separadas e a simples possibilidade de viajar livremente nos países ocidentais abafaram todas as vozes críticas que se levantaram durante o processo de reunificação, de tal modo que só a partir de 1991 se tornam evidentes os enormes problemas e custos desta operação politicamente tão fácil e evidente. 377 A privatização da economia da RDA, entregue à Treuhand (1990-1994), uma empresa pública constituída expressamente para o efeito, não só levantou complexas questões jurídicas, como também graves problemas sociais na sequência do encerramento e da liquidação de numerosas empresas que já não eram viáveis face à concorrência do mercado livre. Em 1992,já se contam 1,3 milhões desempregados na ex-RDA e, todos os anos, um número elevado de empresas vai à falência. Ao fim de quatro anos de actividade, muitas vezes criticada por negócios mal conduzidos, a Treuhand privatiza cerca de 13 000 empresas e deixa dívidas no valor de 250 biliões de marcos. o acesso aos arquivos da ex-RDA e, nomeadamente, da polícia política (Stasi) revelou uma rede de vigilância e denúncia sistematizada que abrangia 85 000 funcionários e mais de 100 000 colaboradores não oficiais recrutados nas empresas, serviços públicos, universidades e até nas próprias famílias das pessoas suspeitas. A extensão e a minúcia burocrática deste sistema de controlo (que incluía também mais de 20 000 colaboradores entre os cidadãos da RFA) só se explica pela fraqueza básica do regime que não podia contar com um grande apoio popular. Desde que foi aberto o acesso público ao extenso material de arquivo, muitas personalidades da vida cultural e política revelaram-se como colaboradores da Stasi. A descoberta de um sistema que, baseado oficialmente nos valores do humanismo, da solidariedade e do progresso, conseguia criar um ambiente de desconfiança, de denúncia e de chantagem, foi um dos aspectos que mais afectou a normalização da vida política e social na ex-RDA. Por outro lado, 40 anos duma história antagónica criaram mentalidades diferentes que, uma vez passada a euforia da união, complicaram a aproximação das duas populações. Os termos depreciativos de Ossis e Wessis concentram uma série de preconceitos que se prendem principalmente com a falta de disciplina, eficiência e iniciativa dos habitantes da ex-RDA, desresponsabilizados pelo próprio regime autoritário, por um lado, e o materialismo, a frieza e a arrogância dos alemães federais, por outro. A integração total da RDA nas estruturas da RFA, o triunfo arrogante do sistema capitalista e as persistentes diferenças sócio-económicas contribuiram muito para estas divergências que só desaparecerão a médio ou longo prazo. 6.7 A RDA - 40 anos de socialismo alemão Os 40 anos da RDA constituiram uma tentativa de realizar, a nível económico, político e social, uma alternativa ao sistema capitalista e imperialista que dominou na Europa central ou nos seus domínios coloniais, desde o século XIX, e que tinha permitido o genocídio dos judeus e o cataclismo da 378 II Guerra Mundial. A primeira fase do pós-guerra, ainda caracterizada por flutuações ideológicas, caminha, no entanto, para a progressiva divisão da Alemanha e, a partir de 1949, para a implantação do modelo soviético na RDA. Marcado pela luta contra o fascismo hitleriano, o comunismo alemão integra-se, pela força do contexto histórico e internacional, num estalinismo que nunca conseguiu, até ao fim do SED, ultrapassar completamente. o historiador Hermann Weber (1991) distingue, na evolução da RDA, duas etapas principais: uma primeira, até 1961, com a prioridade da uniformização ideológica na sequência da transplantação e consolidação do sistema soviético. O que caracteriza o estalinismo é, segundo Weber, uma burocracia hierárquica e o domínio dum único partido hegemónico que controla dogmaticamente não só a administração e a economia, mas também os media e os vários sectores da vida pública e privada. Já em 1945, com a reforma agrária e a distribuição de terras a 200 000 operários agrícolas e refugiados na zona soviética, seguida da nacionalização de grande parte da indústria pesada em 1946, deram-se os primeiros passos duma revisão económica fundamental. A nível político, a desnazificação foi praticada sistematicamente; até 1948, mais de 500 000 pessoas que tinham participado activamente no regime hitleriano, foram afastadas das suas funções. A partir de 1949, a reorganização do aparelho do partido e do estado Uustiça, polícia política e, mais tarde, exército) e das organizações colectivas levou a um controlo e uma endoutrinação ideológica permanentes, sobretudo com a expropriação dos camponeses e a instalação forçada de cooperativas agrícolas (LPG - Landwirtschaftlíche Produktionsgenossenschaft). Esta omnipresença do partido visava igualmente a transformação das mentalidades da população e o desenvolvimento do ensino, sobretudo politécnico e superior. Entre 1956 e 1961, o regime distancia-se formalmente dos excessos do estalinismo, mantendo, contudo, as linhas principais da sua política. O aumento do ritmo das colectivizações provoca protestos da população e mais fugas para o Oeste (quase 200000 pessoas em 1960, sendo metade jovens com menos de 25 anos), até que a construção do muro isola e consolida definitivamente a RDA. Numa segunda fase, de 1961 a 1989, a RDA sofre as contradições entre as exigências duma sociedade industrializada modema e as obsoletas estruturas do centralismo burocrático. A política não pode ignorar mais os parâmetros do consumo individual que fascina cada vez mais a população e continua a alimentar um movimento de fuga, mesmo depois da construção do muro (cerca de 40 000 refugiados entre 1961 e 1989). Por outro lado, praticava-se, nestes anos, um comércio lucrativo para a RDA (designado criticamente deMenschenhandel) que «vendia» a preços elevados ao governo federal a libertação de quase 42 000 pessoas. A Zona de ocupação soviética 379 conta, em 1946, 18,3 milhões de habitantes; depois da união vivem ainda no território da ex-RDA 15 milhões. Os anos 60 foram, no entanto, uma fase de estabilização e de modernização, com novos métodos de planificação e um aumento considerável da produção de bens de consumo. A profissionalização das mulheres (atingindo os 86%, um dos valores mais elevados a nível mundial) foi desenvolvida sistematicamente, tal como o ensino, a investigação e o desporto. A substituição de Walter Ulbricht em 1971 permitiu flexibilizar os orgãos directivos do partido que, por outro lado, intensificou a endoutrinação ideológica. No início dos anos 70, a RDA conseguia estabelecer relações diplomáticas com o mundo ocidental e marcar presença nas mais importantes instituições e conferências internacionais. Na área da cultura e da arte, é proclamado, desde 1951, o «realismo socialista» à maneira soviética que implica uma recusa categórica do modernismo e do chamado formalismo capitalista. Enquanto o caminho de Bitterfeld (conferência cultural em 1959) preconizou a participação da classe operária em todas as actividades culturais, o SED privilegiou igualmente a «herança humanista» interpretada como antevisão do socialismo. Cma certa liberalização da política cultural nos anos 70 acabou em 1976 com a expatriação de WolfBiermann, o que provocou uma onela de protestos e o êxodo duma série de outros escritores. O descontentamento cresceu ainda com a evolução dos outros partidos comunistas europeus na direcção dum eurocomunismo liberal e independente da União Soviética, uma via totalmente recusada pelo SED. Na própria RDA, Robert Havemann (1910-1982) reivindicou um socialismo liberal e pluralista, incluindo uma imprensa livre e o direito à greve. Esta distinção entre o - falso - socialismo real e um socialismo democrático e moderno negava radicalmente o papel hegemónico do SED. Para Havemann e toda a oposição na RDA, a abolição do capitalismo privado, a nacionalização da economia e o poder absoluto do partido único não tinham conseguido realizar os ideais humanistas da teoria socialista oitocentista. Durante os anos 80, as contradições internas da RDA agudizaram-se dramaticamente. As crescentes dificuldades económicas, a liberalização verificada noutros países socialistas vizinhos como a Polónia e a Hungria e a influência da televisão ocidental, que espalhou não só uma informação livre, mas também a miragem dum paraíso de consumo e liberdade ilimüada em toda a RDA, fortificou a oposição, que se organizou, a partir de 1983, num movimento pacifista (Friedensbewegung) com grande ressonância popular. Por outro lado, a Igreja protestante transformou-se num porta-voz da oposição ao exigir publicamente direitos democráticos. O aparelho político reagiu, aumentando as actividades da Stasi e falsificando os resultados das 380 eleições que deviam legitimar um regime que tinha fracassado nas áreas essenci ais da vida económica e social. A possibilidade de pedir legalmente uma autorização de saída levou, desde 1984, a centenas de milhares de pedidos, o que permitiu ao regime, que autorizou cerca de 40 000 saídas, localizar e controlar de perto os descontentes. Os defeitos estruturais do sistema (centralismo burocrático, planificação, totalitarismo ideológico) criaram contradições permanentes e um descontentamento geral alimentado pela comparação mediática quotidiana com uma RFA idealizada, cujas emissões televisivas eram captadas na RDA. O fim rápido da RDA e a sua integração quase incondicional no sistema ocidental, não permitiram, porém, ver que a única alternativa existente não era uma solução para os grandes problemas do mundo actual. O descrédito do socialismo e o fracasso total das suas realizações concretas é, sem dúvida, mais um argumento contra as teorias globais e os perigos totalitaristas que representam. M as , por outro lado, a dimensão utópica e humanitária oriunda da Aujkliirlllzg e da filosofia idealista alemã, que impregna o socialismo oitocentista, continua a fornecer critérios e objectivos para o debate sobre uma futura sociedade europeia. 6.8 A Alemanha reunificada A República Federal encontra-se, no fim do século XX, 11uma situação particular na medida em que a reunificação criou uma série de problemas que estão ainda longe de terem sido ultrapassados. As diferenças salariais entre os antigos e os novos Liillder continuam, tal como a elevada taxa de desemprego na ex-RDA. A transformação de Berlim em nova capital implica mudanças com elevados custos financeiros e sociais. Até 1997, desapareceram 300000 postos de trabalho e a cidadf' divide-se cada vez mais em zonas ricas e bairros pobres (como Kreuzberg) onde o desemprego chega a atingir 30% da população. Assim, a capital alemã, com a sua elevada dívida pública e um desemprego juvenil que deve atingir, até ao fim do sÉculo, os 40%, representa o paradoxo àa sociedade industrializada moderna que, aumentando a produtividade e excluindo ao mesmo tempo uma parte: considerável da população, renuncia definitivamente ao antigo equilíbl10 entre prosperidade, liberdade e solidariedade social. A rápida liquidação do regime comunista afectou também uma cultura que, sobretudo na área da literatura, do teatro e da música, tinha produzido obras interessantes e importantes que se vêem, de repente, votadas ao esquecimento. As perspectivas dum futuro incerto não dei xam muito espaço para recordações e in terrogações acerca duma época que j á pertence definitivamente ao passado. 381 Mas a história cultural da RDA é também a história de experiências e protestos, de esperanças e tentativas de tomar à letra o ideal do socialismo. A resignação e o desencanto que se verificam neste fim de século são típicas das duas Alemanhas: da RDA, cujas gerações mais velhas devem assumir, na fórmula do subtítulo da autobiografia do escritor Heiner Müller (1929-1996), um Leben in zwei Diktaturen (1992), e da RFA que não consegue assumir a sua culpa histórica e que se identifica com um materialismo e consumismo que dominam totalmente a vida pública e privada. Por outro lado, a Alemanha actual enfrenta problemas que são comuns ao mundo ocidental, nomeadamente o desemprego estrutural e a necessidade de imaginar e impor politicamente uma redistribuição do trabalho e uma nova solidariedade social. Neste sentido, a classe política caracteriza-se por uma total falta de imaginação e esgota-se em remendos e manobras que evitam tomadas de posição e decisões de fundo. O famoso pragmatismo alemão apresenta-se, neste fim de século, essencialmente conservador. A sociedade alemã actual é, como as suas vizinhas europeias, uma sociedade pós-moderna que se debate com a falta de orientações e sentidos essenciais, que oferece aos cidadãos principalmente bens materiais e que fica perplexa perante a miséria e as carências que resultam da inactividade forçada de milhões de pessoas. Esta sociedade ainda não está preparada para enfrentar a segunda modernidade, isto é, as consequências da industrialização, do progresso científico e tecnológico e do desenvolvimento quantitativo que caracterizam a primeira modernidade. O desaparecimento dos valores universais ligados a esta fase histórica explica fenómenos como a crescente popularidade de seitas e movimentos esotéricos, por um lado, e a atracção da droga e da delinquência, por outro. A própria ideia de Estado, como garante da coerência social e económica, começa a perder o seu significado tradicional. A noção forte do Estado (Wohlfahrtsstaat, estado de direito e paraíso terrestre ao mesmo tempo) está a diluir-se em soluções parciais e pragmáticas que, até agora, proporcionaram um bem estar confortável a uma grande parte das populações dos países industrializados. Mas a crescente discrepância entre o primeiro e o terceiro mundo, o crescimento e a consequente instabilidade económica do espaço asiático e a globalização das novas tecnologias deixam prever que a sociedade e a cultura alemãs serão obrigadas a definir-se cada vez mais em termos internacionais e interculturais. 382 Bibliografia sugerida No âmbito deste capítulo, recomenda-se a leitura de dois ou três estudos globais sobre a evolução da RFA (Thranhardt 1966, Sontheimer 1991, Ellwein 1989) e da RDA (Weber 1991); para uma orientação mais sintética pode-se recorrer aos capítulos 6 a 8 de Boockmann/Schilling et a!. (1990: 477-560). Uma informação global e regularmente actualizada encontra-se em Tatsachen über Deutschland (1996), distribuído pelas embaixadas alemãs e disponível, também em versão portuguesa (Perfil da Alemanha), nos Goethe-Institute. Actividades propostas • Leia o conto «Nachts schlafen die Ratten doch» de Wolfgang Borchert e descreva a paliir do texto a situação do pós-guerra na Alemanha. • Resuma as principais diferenças políticas, económicas e culturais entre a RFA e a RDA. A. O. 383 edO.ID]: eu equernarV V ·L Resumo Evoca-se a constituição do espaço europeu e a sua evolução como unidade cultural. Indicam-se a origem dos tratados europeus e o crescimento do espaço comunitário e apontam-se as consequências da recente globalização económica e cultural. Objectivos Entender a coesão cultural da Europa Central face mico e bizantino. <lO mundo islâ- • Conhecer as sucessivas fases da integração europeia. • Entender a importância das novas realidad e~; mediáticas e a transformação da identidade alemã no contexto cultural da futura Europa. 387 A Alemanha, país que ainda está em vias de resolver a questão da sua iden·tidade nacional, vê-se em finais do século XX confrontada com uma evo·· lução internacional a que nenhum país se pode furtar: a da globalização. Saliente-se que essa globalização se articula de forma mais restrita com o projecto de união europeia a que a Alemanha Ocidental aderiu no pós-guerra, em pleno período da guerra fria. Esta articulação faz-se por via de uma crescente internacionalização dos mecanismos económicos, que tornam irrealistas e ineficazes as economias fechadas sobre si mesmas, como o decurso dos acontecimentos a Leste, antes de j 989, o veio a demonstrar. Se é verdade que à ideia de Europa assistiu a noção de uma identidade cultural e política - berço do Ocidente e da democracia - também é verdade que os mesmos valores têm vindo a ser predominantemente protagonizados, já desde a I Guerra Mundial, pelos EUA, herdeiros legítimos da tradição europeia naquilo que ela tem de melhor e de pior. Por outro lado, sem a pressão económica, a saber o reconhecimento dos limites que o Estado-nação impõe ao capitalismo, esse mesmo projecto não se teria concretizado. :"-Jascida em pleno momento de tensão entre os dois grandes blocos militares e económicos, os EUA e a URSS, a ideia de umacomunidade europeia implicou simultaneamente a exclusão de inúmeros países e territórios, como os da Europa Central, que tiveram um papel relevante para a formação dessa mesma identidade cultural, ao mesmo tempo que privilegiava os tratados com antigas colónias europeias ou outros membros da NATO, que, embora ocidentalizados, se inserem numa tradição cultural distinta, como é o caso da Turquia. Por outro lado, e se não se reduzir a Europa aos países que aderiram no pós-guerra ao Tratado do Atlântico, a ideia de uma «identidade europeia» não pode fazer esquecer a efectiva diversidade desse mesmo espaço cultural, político, económico e social, onde a multiplicidade de línguas, costumes, hábitos, a diversidade de modelos políticos, as assimetrias económicas e, dentro de cada país, as desigualdades regionais são evidentes. Não devem também ser esquecidas as diferentes situações e influências geográficas -coincidentes com o atraso económico - , designadamente nos países periféricos, como POltugal, a Grécia ou os países balcânicos, onde essa linha de demarcação imaginária e culturalmente construída ao longo de séculos (cf. Said 1995) entre o Ocidente e o Oriente é mais do que ténue, como o atesta o multiconfessionalismo que preside à diferenciação e eventualmente a conflitos étnicos em alguns dos países da região balcânica. É evidente que a nova ordem política decorrente de 1989 leva a que a própria ideia e os mecanismos de legitimação de uma união europeia sejam 389 repensados, como sucede, por exemplo, através da inclusão de países da Europa Central e Oriental na União Europeia (UE), mas a verdade é que a «grande Europa» nunca se encontrou tão dividida, como hoje, desde a II Guerra Mundial. Veja-se, por exemplo, por detrás de todas as declarações de intenção e das aparências de uniformidade, o recrudescimento dos nacionalismos e etnicismos, para além das diferenças ainda consideráveis entre a Europa Ocidental e Oriental. Contudo, as aparências de uniformidade também não devem ser subestimadas: a crescente influência dos modernos meios de comunicação e sobretudo da informática não só aproximam como uniformizam objectos de consumo e, consequentemente, modelos de comportamento. É face a este complexo conjunto de problemas e questões que se propõe uma reflexão sobre a situação histórica e actual da Alemanha na Europa. 7.1 A Europa: evolução histórica e espaço comunitário 7.1.1 A constituição do espaço cultural europeu Situada na periferia do Império Romano, a Europa Central assume só relativamente tarde um papel activo e dominante em termos políticos e económicos. Com os reis carolíngios, que retomam no século X a função centralizadora do Império Romano, a história europeia entra numa fase de complexidade e expansão crescentes. A Europa constituiu-se entre 950 e 1350 a partir do centro do antigo Império Carolíngio (França, Alemanha Ocidental e Norte da Itália), através de um longo processo de guerras, conquistas e colonizações sucessivas que duplicaram o espaço da cristandade latina. A reconquista da Espanha árabe e a colonização alemã pacífica nos países eslavos da Europa central, os dois fenómenos principais desta primeira expansão europeia, trouxeram modificações profundas que se manifestaram principalmente em privilé-gios excepcionais para os recém-chegados, mas também na introdução de tecnologias modernas (nas áreas militar, urbanística e agrícola). Esta Europa medieval era dominada por dois centros culturais e económicos: os Países-Baixos, com a Valónia e a Flandres, e o Norte da Itália que, com os eixos comerciais do Mar do Norte e do Mar Báltico, por um lado, e do Mediterrâneo, por outro, criaram as condições para a ascensão económica do espaço europeu. Esta nova prosperidade permitiu, por seu turno, uma progressiva expansão política e militar, mas originou também conflitos internos que opuseram as cidades e as associações da burguesia mercantil ao feudalismo rural. 390 Em termos políticos, a hegemonia do Império Carolíngio domina a Europa entre 962 (coroação de Otão I, o Grande) e 1198. A luta entre os Guelfos (Welfen) e os Gibelinos (Staufer) enfraqueceu o império e facilitou, assim, a ascensão da França a primeira potência europeia. Enquanto vários vizinhos da Alemanha se transformaram em Estados nacionais coesos (cf. Cap. III. 1), o Sacro Império permaneceu uma associação desarticulada de soberanos e territórios independentes. Por outro lado, o antagonismo dinástico entre as casas de Habsburg e Bourbon, que divide a Europa desde Carlos V até meados do século XVIII, não favorece uma unificação política da Alemanha, cujos modelos culturais renascentistas, humanistas, barrocos e iluministas são importados do estrangeiro. Assim, a Europa apresenta, no fim da Idade Média, e apesar duma certa unidade cultural, graves antagonismos políticos e dinásticos que se agudizam em tempo de grandes crises, como, por exemplo, a Guerra dos Cem Anos (1339-1453), a Grande Peste de 1348/1349, o Cisma (1378-1417) e, finalmente, a Reforma iniciada por Lutero em 1517. Enquanto Portugal consegue conciliar as antigas e novas elites (aristocracia rural e burguesia urbana), criando assim as bases para a expansão ultramarina, a Europa Central assiste, desde o fim do século XV, a uma nova feudalização. Ao mesmo tempo que com Colombo (1492) e Vasco da Gama (1498) se inicia o processo de globalização da história europeia, na velha Europa acentua-se a divisão entre um Leste agrário e feudal e um Oeste a caminho da industrialização e da liberalização. Esta evolução favorece o aparecimento de novas tecnologias e, a partir do século XVIII, uma revolução industrial que será a base do imperialismo cultural e económico europeu. Neste contexto político e sócio-cultural, carecendo dum poder central forte e eficaz, aAlemanha viu-se reduzida durante séculos a um mero joguete dos interesses dinásticos e religiosos. Mas apesar da heterogeneidade política e administrativa do Sacro Império Romano, estabeleceu-se uma unidade cultural que delimitava a Europa claramente face ao mundo islâmico e bizantino num espaço geográfico correspondente já às fronteiras comunitárias de finais do século XX. Ao longo dos sécu los, o espaço europeu viveu uma série de divisões e guerras que travaram e perverteram o desenvolvimento sócio-económico. Com a ascensão dos Estados nacionais depois da Revolução Francesa e a rápida evolução da tecnologia militar, os confrontos entre os Estados europeus tomaram uma dimensão que prejudicava seriamente os interesses imperialistas cada vez mais transnacionais. Isto explica as repetidas tentativas de limitar estes conflitos «internos», desde as alianças dinásticas até à formação de instituições supranacionais como a Sociedade das Nações (1920-1946), criada sob iniciativa americana, instituições que conseguiram interromper, 391 pelo menos temporariamente, a «sucessão de catástrofes» (a expressão é de Walter Benjamin) que constitui a «história europeia». A incapacidade da Sociedade das Nações (Volkerbund) de evitar a ascensão do fascismo e a catástrofe da Segunda Guerra Mundial não impediu iniciativas semelhantes que levaram à constituição das Nações Unidas em 1945. Na base desta organização, como também na ideia da integração europeia que começa a perfilar-se logo no pós-guerra, está a convicção de que, na era da tecnologia industrial e militar moderna, só estruturas supranacionais podem garantir um equilíbrio e uma segurança relativa. Assim, a rede de alianças e tratados que se estabelece durante a segunda metade do século, visa não só o progresso económico, mas também o controlo e a limitação de eventuais conflitos político-militares. 7.1.2 A Europa comunitária A integração europeia é, antes de mais, uma consequência directa da Segunda Guerra Mundial. Em Setembro de 1946, o ministro americano dos negócios estrangeiros aponta num discurso em Stuttgart para a necessidade de se limitar a influência soviética na Europa e de reconstruir a Alemanha nesta perspectiva. Uma semana mais tarde, Churchill exige em Zurique a formação duma união europeia. Em 1948 é criada a OEEC (Organization for European Economic Cooperation) e um plano do primeiro ministro francês Pleven, de Outubro de 1950, pronuncia-se a favor da criação dum exército europeu que deveria incluir também tropas alemãs. O tratado da Montan-Union (CECA - Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) estabelece em 1951 a colaboração entre a RFA, a França, a Itália, os Países Baixos e o Luxemburgo a nível da indústria pesada. Um tratado sobre a EVG/CED (Europaische Verteidigungs-Gemeinschaft/Comunidade Europeia de Defesa), negociado entre 1951 e 1954, fracassa face à recusa francesa e é substituído, em 1954, pelos tratados de Paris que prevêem, entre outras coisas, a fundação da WEU/UEO (Westeuropaische Union/União da Europa Ocidental). Em 1957 são concluídos os Tratados de Roma que estão na base da Europa comunitária actual. Um ano mais tarde a assembleia parlamentar europeia, que reagrupa a Montan-Union, a Euratom (fundada em 1957 para promover a utilização pacífica da energia nuclear) e a EWG/CEE (Europaische Wirtschaftsgemeinschaft/Comunidade Económica Europeia), estabelece-se em Estrasburgo. 392 A evolução rápida da integração europeia foi uma das grandes prioridades dos sucessivos governos de Adenauer, enquanto o SPD se opôs durante longos anos a esta política, sobretudo à sua vertente militar. Embora concordando com os Tratados de Roma, os sociais-democratas só em 1960 se pronunciam publicamente a favor dos tratados europeus e atlânticos que, desde então, serão um elemento largamente consensual da política alemã. Em 1962 o conselho de ministros dos seis países fundadores da Comunidade Económica Europeia decide a construção do mercado agrícola comum e, em 1967, as três organizações comunitárias (Montan-Union, EWG, Euratom) fundem-se para dar origem às Comunidades Europeias (CEIEG). O tratado bilateral franco-alemão de 1963 inaugura uma colaboração privilegiada entre os dois países vizinhos que, até hoje e apesar de mal-entendidos pontuais, constitui uma das forças mais activas da integração europeia. Na Alemanha, a união europeia contribui para o desenvolvimento económico que recorre cada vez mais à mão-de-obra estrangeira. Em Dezembro de 1964, o número dos chamados Gastarbeiter ultrapassa um milhão, em 1996, a RFA conta 7,2 milhões de estrangeiros numa população de 81,8 milhões. Enquanto a integração dos estrangeiros oriundos de outros países da UE se torna cada vez menos problemática (sobretudo depois de Tratado de Schengen que garante a livre circulação de pessoas e bens dentro da comunidade), a presença de etnias islâmicas, que ultrapassa o quadro tradicional da diversidade europeia, é muito menos pacífica. Assim, a Alemanha é, no quadro europeu, um dos países com uma taxa mais baixa de naturalização (Einbürgerung) de estrangeiros. Um facto cuja explicação reside, por um lado, na reconhecidamente difícil integração dos estrangeiros no tecido social alemão e, por outro, numa lei de nacionalidade baseada no jus sanguinis, que impede a muitos dos que nasceram na Alemanha obter a nacionalidade alemã (cf. Caps. II!.l e IY.6). Mas também o crescimento do espaço comunitário não se realiza sem dificuldades. O progressivo alargamento da Comunidade (em 1973, aderem à Comunidade a Dinamarca, a Irlanda e a Inglaterrà, em 1981, a Grécia, em 1985, Portugal e Espanha e, em 1995, a Áustria, a Suécia e a Finlândia) transforma a União Europeia na maior zona económica do mundo. A dimensão deste projecto promete um paraíso de bem-estar e prosperidade que exerce uma forte atracção sobre os países da Europa Oriental, cada vez mais orientados para o contexto ocidental e atlântico. A segunda fase da integração europeia, concretizada no Tratado de Maastricht de 1992, visa a União Monetária e Social e uma maior colaboração ao nível da política externa e da justiça. Se a União Monetária já coloca uma série de problemas que põem em questão a própria União Europeia, o objectivo duma união política parece ainda mais utópico. As 393 divergentes políticas nacionais, as desproporções sócio-económicas entre os membros cada vez mais numerosos da UE e os problemas práticos que a administração dum espaço desta dimensão levanta, indicam a necessidade duma reflexão aprofundada sobre o rumo futuro da Comunidade. Por um lado, a globalização económica favorece e exige estruturas supranacionais; por outro, começa a discutir-se a questão de saber se uma nova identidade europeia pode (ou não) assentar unicamente em vantagens e critérios de ordem económica. Para a RFA, a CE ofereceu, sem dúvida, a possibilidade de estabilizar o sistema democrático e de, depois do desastre nacional-socialista, se desenvolver num contexto integrativo virado para um futuro em moldes diferentes. A presença alemã nas várias organizações europeias, nomeadamente: • no Conselho da Europa (Europarat) com 36 países-membros após a admissão da Rússia; • na Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) que inclui 54 países; • e na União Europeia constituído pelo Parlamento de Estrasburgo, eleito directamente desde 1979, pelo Conselho Europeu, o Conselho de Ministros dos países-membros e a Comissão Europeia que executa as decisões da Comunidade, e ainda oTribunal Europeu de Justiça, o Comité das Regiões e o Comité Económico e Financeiro, garante-lhe um papel importante e, por vezes, decisivo nos grandes debates da política europeia. 7.2 A identidade alemã e a Europa na era da globalização A posição da Alemanha na Europa, no entanto, não pode ser reduzida às estruturas políticas e económicas e aos objectivos comunitários. Na sequência duma progressiva globalização económica e cultural, a vida quotidiana dos alemães mudou consideravelmente nas últimas décadas. Os factores mais visíveis desta globalização são o turismo (nomeadamente com a crescente procura de destinos exóticos e distantes), que se tornou numa indústria importante com muitos efeitos negativos nos países de acolhimento (polarização social, prostituição, destruição do ambiente, etc.), e a presença dos mass media que transformam todos os hábitos sociais. Assim, a certas horas (transmissão dum jogo de futebol ou dum policial na televisão), as ruas das cidades alemãs apresentam-se quase desertas, enquanto 394 que a televisão passou a constituir um tema recorrente nas conversas familiares e nos locais de trabalho. A introdução das televisões privadas (nos anos 80) confundiu definitivamente consumo e cultura, informação e publicidade. A invasão dum consumismo que obedece unicamente às leis do mercado e duma realidade mediática que substitui cada vez mais os ambientes tradicionais (Lebenswelten) introduziu na Alemanha, nos últimos 40 anos, mudanças sócio-culturais que ultrapassam as que caracterizavam a evolução do país desde a Revolução Francesa. Os efeitos concretos destas mudanças já começam a dissolver a imagem tradicional da Alemanha e da sua história cultural. A revisão da ordem política e económica que se sucedeu ao ano de 1989, leva a colocar com maior acuidade o tema da identidade alemã, dado que, nos últimos anos, à integração europeia em curso desde a Segunda Guerra Mundial se sobrepõem importantes mudanças globais. Estas mudanças começam a afectar directamente a sociedade e a cultura alemãs: Europaisierung heiJ3t, daJ3 Europa aIs grbJ3ere Einheit im Vergleich zu den Nationalstaaten in immer grbJ3erem Umfang unser Leben bestimmt. Globalisierung bedeutet, daJ3 diese Entwicklung zugleich eingebettet ist in globale Zusammenhange, die ebenso einen immer grbJ3eren EinfluJ3 auf unser Leben nehmen. (Münch 1995: 14) Neste contexto, a Alemanha actual apresenta-se como uma sociedade multicultural sob o predomínio duma única cultura mundial universalista. 7.2.1 A globalização econónúca O triunfo mundial do capitalismo ocidental que, depois da queda do império soviético, prevalece como modelo único para o rumo futuro das sociedades industrializadas e não-industrializadas, acelerou substancialmente as tendências de internacionalização, tanto a nível da produção como da distribuição de mercadorias. As grandes empresas alemãs operam cada vez mais no estrangeiro (a Siemens, por exemplo, está presente em 190 países), substituindo o esquema tradicional (produção local e exportação) por uma rede global de fábricas, filiais e empresas subcontratadas, o que permite alterar ou mesmo deslocar rapidamente a produção consoante as condições locais sejam mais ou menos favoráveis. O volume das transacções das maiores empresas do mundo (em grande parte japonesas e americanas) já ultrapassa o produto interno bruto de muitos países e, entretanto, concorrem no mercado mundial mais de 40 000 empresas transnacionais. Em 1995 as empresas transnacionais controlavam já 2/3 do 395 comércio global, sendo que 1IS de todos os bens e serviços era comercializado à escala mundial (cf. Martin/Schuhmann 1996 relativamente a estes dados). Esta revolução, cujos efeitos sociais e políticos começam a preocupar a opinião pública europeia, tornou-se possível graças às novas tecnologias (informáüca e telecomunicações), por um lado, e à redução das barreiras administrativas e financeiras do comércio internacional, por outro. Por seu turno, a liberalização dos mercados cambiais em 1973, que desde o tratado de Bretton Woods (1944) estavam sujeitos a paridades fixas, criou um mercado financeiro que, com o surgimento dos «paraísos tinanceiros» off-shore, escapa em grande parte ao controlo cios Estados nacionais. A redução de receitas fiscais do Estado alemão provocada por esta evasão fiscal (legal) estima-se em 50 biliões de marcos por ano. Os principais efeitos negativos da globalização, tal como se verificaram nos últimos anos, são pois os seguintes: • aumento do desemprego e dos empregos a tempo parcial e mal remunerados; • decréscimo do rendimento real das famílias e redução do âmbito de protecção da segurança soc ial; • enfraquecimento progressivo das classes médias. A grande versatilidade do mercado de trabalho, resultante da automatização das tarefas e da mobilidade dos empregos, transformou radicalmente a situação económica e social na RFA nos últimos anos. Assim, entre 1991 e 1994 desapareceram na indústria alemã mais de 1 milhão de postos de trabalho (só na indústria automóvel mais de 300 000), enquanto a produção se mantém ou chega mesmo a aumentar. Depois de terem extinto 150000 postos de trabalho, as grandes empresas químicas como a Hoechst, a Bayer e a BASF registaram em 1995 os lucros mais elevados da sua história. Por outro lado, estas empresas pagam cada vez menos impostos. Enquanto que em 1991 metade dos lucros das empresas se destinava à tributação, em 1995 essa taxa baixou para 20%. Em 1996 o Delltsche Bank declarou lucros de 4,2 biliões de marcos, mas conseguiu reduzir a sua contribuição fiscal em 377 milhões de marcos. Em 1983 as empres3s e os trabalhadores por conta própria pagavam ainda 13,1% do total de impostos, mas em 1996 as contribuições daqueles dois grupos já representavam apenas 5,7% da totalidade das receitas fiscais do Estado alemão e esta tendência continua a acentuar-se. Deste modo, a globalização, que, por um lado, aumenta e facilita consideravelmente a circulação de bens e pessoas e oferece uma série de vantagens 396 práticas (uniformização de normas técnicas, maior oferta e preços mais baixos na área dos bens de consumo), enfraquece, por outro, a situação financeira e institucional dos Estados nacionais, criando novas categorias sociais (working pOOl; desemprego de 10nga duração, etc.) que podem a médio prazo provocar uma grande instabi lidade social e política. Por isso os governos europeus já começam a revalorizar o pape1 do Estado a nível nacional e a reivindicar um controlo internacional eficaz das empresas transnacionais. 7.2.2 A globalização mediática Cma das consequências da globalização económica é a uniformização das referências cu1turais, para o que os modernos meios de comunicação de massas contribuiram decisivamente. Enquanto a imprensa escrita (Schl'lflkulIUl~ Buchkultur) se desenvolveu durante séculos. a invasão do espaço social pelos novos media (TV, video, informática, etc.) realizou-se em poucas décadas. A omnipresença da televisão, sobretudo nos anos mais recentes, com a introdução das transmissões via satélite e cabo, multiplicou ainda a compra de emissões estrangeiras. Por cada 100 domicílios alemães, a te1evisão está presente em 97, a televisão por cabo em 43 e a TV por satélite em 27. Tendo a imprensa escrita estado p redominantemente ligada a iniciativas privadas, o mesmo não sucedcu com a rádio e a tele,'isão. Reconhecendo o seu papel determinante na informação e fOITn ação do público, os governos europeus tenderam, inicialmente, a tran sform á-las num serviço de intere sse público, com preocupações pedagógicas e de esclarecimento político. Seguindo o modelo da BBC, a maior parte das estações recusavam qualquer submissão a um padrão político ou económico, caracterizando-se por ser sociedades sem fins lucrativos, com preocupações de ordem cultural. Com a crescente tendência para a privatização das emissoras televisivas, o panorama viria a alterar-se significativamente. Por um lado, constituindo a publicidade a sua principal fonte de receitas, tais emissoras vêem-se obrigadas a garantir audiências tão elevadas quanto possível. Para tal, sucedem-se os programas com sucesso garantido, sem quaisquer critélios de qualidade ou de formação cívica ou cultural. Com o aparecimento das emissões por cabo e satélite, as mesmas tenderiam a uniformizar cada vez mais os seus padrões, de modo a garantir audiências a nível internacional. Tais características não impedem, contudo, a forte concorrência das emissoras norte-americanas que, dispondo de um vasto público nacional, vêem o seu investimento compensado pelo consumo interno, pelo que podem exportar os seus produtos a preços baixos. 397 Como forma de competir com estas, as emissoras europeias, apesar de manterem alguns programas de características locais e nacionais, com garantias de audiência interna, viram-se obrigadas a estandardizar os seus produtos a fim de conquistar um público mais vasto: contudo, os sucessos internos não garantem os lucros que as referidas emissoras podem hipoteticamente obter a nível internacional. Surgem assim duas questões: a primeira diz respeito à preservação de uma identidade loca], que não é apenas ameaçada pela união europeia, mas também e sobretudo pela globalização marcada pelo modelo norte-americano. A segunda diz respeito à identidade cultural europeia: num momento em que são dados os últimos passos para uma união monetária, será que a Europa se resumirá a ser uma correia de transmissão de interesses económicos, incapaz de encontrar uma política que respeite o local, seja a nível nacional seja regional, ou será que conseguirá reinventar uma tradição que se caracteriza tanto pelo seu universalismo como pela diferença? É também a este nível que a identidade cultural alemã tem de ser repensada, identidade essa que não pode ignorar os fenómenos introduzidos pelas novas tecnologias de informação. A Alemanha ocupa, neste campo, um papel particularmente favorável a nível europeu. A sua situação económica não só lhe garante ter uma voz de peso decisiva, como afirmar-se a vários níveis. A sua imprensa escrita é ainda relativamente forte e oferece uma grande variedade temática e formal. Por outro lado, a própria tradição cu ltural do espaço alemão não só lhe permite a manutenção de periódicos locais, como de uma série de jornais de importância nacional, por vezes, com um público que excede claramente as suas fronteiras, como é o caso dos semanários Der Spiegel e Die Zeit ou dos diários Frankfurter Allgemeine Zeitung, Frankfurter Rundschau, Die Welt, Süddeutsche Zeitung ou Taz para não falar do prestigiado Neue Zürcher Zeitung de proveniência suíça. Todos estes mantêm uma tradição jornalística de grande qualidade, com destaque para os seus Feuilletons (secção cultural) sendo, na maioria dos casos, a sua apresentação gráfica particu larmente densa e sóbria, por oposição ao tablóide Bild Zeitung, que conhece, porém, a maior procura, reforçada de resto com a unificação de 1990. Contudo, a componente regional não só marca os referidos semanários, como se manifesta numa série de diários locais, de grande prestígio, como é o caso, por exemplo do referido Taz, jornal berlinense, constituído por uma cooperativa de jornalistas, que teve um papel fundamental durante os dias de agitação que antecederam a queda do muro em 1989. Por outro lado, o número de pessoas que falam o Alemão, quer como língua materna, quer como língua estrangeira é um dos maiores na Europa. 398 o mesmo se pode dizer da televisão. Com quinze canais públicos e privados, a Alemanha é um dos países com mais espectadores ligados à televisão por cabo e satélite. Nos anos 80, aAlemanha iniciaria uma política de expansão das suas emissões a nível internacional, adaptando-se simultaneamente as suas editoras a um mercado que requeria cada vez mais novas tecnologias mediáticas. Assim, a editora Bertelsmann é das mais importantes na Europa, possuindo a Alemanha um número considerável de canais de difusão internacional. É o caso da RTL, Sat 1, Viva de iniciativa privada, bem como das emissões da televisão pública, como é o caso da Deutsche Welle. O facto de possuir um público extremamente amplo, justifica a dobragem de filmes e de programas. E embora assim se uni formizem e descaracterizem os produtos estrangeiros (com o consequente efeito de fechamento da sociedade sobre si mesma e sobre as suas próprias língua e cultura), a verdade é que essa mesma dobragem facilita, ao mesmo tempo, o entendimento dos mais variados temas por todos os membros da comunidade (aproximando-os assim em termos culturais), constituindo, paralelamente, uma importante fonte de emprego para profissionais de diversas áreas. Contudo, se observarmos a programação da TV alemã poderemos verificar que pouco ou nada possui que a distinga dos seus congéneres europeus ou norte-americanos. Os filmes são frequentemente produções de Hollywood ou séries norte-americanas (nas televisões públicas cerca de metade, nas privadas até 90%) o mesmo sucedendo com os programas de entretenimento (talk-shows, concursos, etc.) cujos modelos são, na sua grande maIOrIa, igualmente importados. Neste sentido, pode afirmar-se que a situação dos media, com a respectiva privatização e com o fenómeno da globalização, pouco ou nada contribuem para uma redefinição da identidade cultural europeia que reconheça uma tradição comum e a impol1ância das diferenças locais: os elementos comuns inspiram-se nos padrões de caça às audiências norte-americanos, que uniformizam os programas. E pode também concluir-se que as televisões via satélite ou cabo contribuiram mais para a globalização do que propriamente para a difusão da cultura alemã na Europa. É neste contexto que tanto mais se justifica o aparecimento de um projecto televisivo europeu como é o do canal ARTE (Association Relative à la Télévision Européenne). Iniciado em 1992 como um projecto franco-alemão, englobando a ARTE Deutschland TV GmbH - em colaboração com inúmeras televisões e estações radiofónicas alemãs - e a Sept ARTE, o canal dispõe neste momento duma estrutura mais plural, incluindo a Bélgica, a Suíça e a Espanha. Definindo-se como uma emissora de interesse público, sem qualquer recurso à publicidade, a ARTE difunde, para além das produções próprias, programas de qualidade cultural produ399 zidos em todos os países da Europa. O artigo 2.° do seu tratado fundador diz explicitamente: Gegenstand der Vereinigung ist es Fernsehsendungen lU konlipieren, lU gestalten und durch SatelJit oder in sonstiger Weise auslustrahlen oder ausstrahlen lU lassen, die in einem umfassenden Sinne kulturellen und internationalen Charakter haben und geeignet sind, das Verstandnis und die Annaherung der Vblker in Europa lU fordem. (http://www.sdv. fr/arte) As suas emissões dedicadas ao cinema permitem visionar produtos quer da história do cinema europeu, quer produções menos divulgadas, designadamente filmes habitualmente afastados dos circuitos de distribuição. As suas selecções, que privilegiam aquilo que de melhor se produz na Europa, não ignoram, contudo, as produções de origem diversa, desde os países não-industrializados às produções norte-americanas que os circuitos comerciais ignoram. Com noticiários sobre aquilo que no mundo da arte e da cultura se faz na Europa, (Metropolis, entre outros) as emissões conseguem dar uma imagem das potencialidades universais e locais do «velho continente». Resta saber se a sua difusão será assegurada ou se sucumbirá à conconência desleal, f'mbora de momento tudo aponte para um aumento de espectadores, que em ; lJ97 era de vinte milhões em toda a Europa que, neste caso não se confina .iOS membros da União Europeia. Pesem embora os efeitos nefastos da globalização, há que ponderar o discurso predominantemente pessimista que a intelectualidade europeia sobre a mesma tem produzido e que lembra o cepticismo dos primeiros dias do cinema. Se é verdade que a globalização corre o risco de fazer desaparecer as tradições locais, transformando a Europa e o mundo numa «aldeia» totalmente uniforme, também é certo que, analisados com maior atenção, os produtos europeus se distinguem, em alguns aspectos, claramente dos seus equivalentes norte-americanos. Séries como Schwarzwaldklinik ou Lindenstraj3e, por exemplo, duas telenovelas muito populares na Alemanha, mas de qualidade duvidosa, possuem algumas marcas locais, o que leva a questionar as vantagens da prioridade absoluta a dar a produções nacionais, se o critério não se esgotar no economicismo. Por outro lado, há que constatar uma maior americanização dos media alemães, em confronto com os de proveniência britânica, onde o sabor inglês de séries como Yes Minister ou Mr. Bean são evidentes. Se é verdade que, à primeira vista, a MTV não parece oferecer qualquer característica europeia, o mesmo não será já verdade, se se comparar a sua versão com a norte-americana ou se se atender aos pequenos coloridos locais detectáveis nas emissões alemãs e francesa de música popular, onde vozes de rappers franceses, alemães ou portugueses se fazem ouvir. 400 A questão do comportamento das audiências deverá também, por seu turno, ser tomada em linha de conta. Ao contrário do desprezo a que as mesmas foram votadas pela intelectualidade alemã, na Grã-Bretanha do pós-guerra, elas foram objecto de atenção redobrada, exactamente como reacção a uma excessiva influência norte-americana que, na altura, se começava a fazer sentir. O Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham, fundado em 1964, desenvolveria um trabalho pioneiro nesse campo, avançando teses particularmente inovadoras com os seus estudos sobre os media e o comportamento das audiências. Segundo Stuart Hall (1993), essas audiências não são forçosamente passivas, mas podem descodificar de forma diferenciada as mensagens que lhes são impostas. Por outro lado, estudos nesta área permitiram avaliar a importância dos media na formação de contra-culturas e subculturas, designadamente, através da cultura pop que, na Grã-Bretanha permitiria recuperar um registo local, como o demonstra sobejamente a produção dos Beatles, para não falar do reggae, símbolo da minoria jamaicana e da sua identidade étnica (Gray/McGuigan 1993). Por outro lado, há que referir que se a globalização uniformiza, também aproxima: assim a juventude mundial pode dialogar sobre os ícones da cultura rock e trocar impressões sobre um imaginário que a televisão e o cinema lhe forneceu, descodificando de forma imaginativa e subversiva aquilo que as grandes empresas lhe oferecem. Contudo, há que não ignorar que a cultura mediática se encontra gradualmente mais presa de um sistema financeiro omnipotente que cria necessidades, gostos e os manipula de forma a que a mesma se consiga substituir à realidade aparentemente mais imediata. No entanto, os seus efeitos são difíceis de avaliar: depende da capacidade de descodificação dessas mesmas audiências que, de televisor aceso, podem discutir sobre o que vêem, troçar do que lhes é apresentado ou ignorar aquilo que lhes é imposto. Por outro lado, há que assinalar que os discursos pessimistas de perda de identidade reproduzem noções estereotipadas e essencialistas de uma diferença hipostasiada que é também ela o resultado de um permanente intercâmbio entre povos. O facto de existirem McDonalds por todo o mundo, de os adolescentes usarem t-shirts com alusões a equipas de futebol ou universidades norte-americanas pouco nos diz acerca do modo como organizam esses símbolos ou vivem essa apropriação. E, finalmente, recorde-se os efeitos, nem sempre benévolos, da reacção à globalização, que vão desde a defesa da etnicidade local ao tribalismo mais virulento, o que permite questionar a tão propagada dissolução dos Estados nacionais e a existência de uma «aldeia global» sempre anunciada e repetidamente adiada. 401 No campo da globalização estritamente mediática os perigos resultam sobretudo de uma concentração excessiva em monopólios de informação, com os riscos de às manifestações mais marginais e inovadoras não ser dada qualquer oportunidade de se manifestar ou de as mesmas serem rapidamente recicladas e assimiladas segundo os padrões de consumo necessários à estabilidade do sistema. Note-se que neste campo, a rádio, dado não carecer' de recursos tão onerosos, tem vindo a gradualmente criar intervenções de teor mais independente, em contraste com a uniformização da televisão, do cinema e mesmo da indústria discográfica, à excepção de algumas produções independentes. o certo é que fenómenos como a crescente importância da cultura audiovisual e da globalização são incontornáveis, embora as virtualidades do espaço cibernético possam vir a operar transformações consideráveis neste campo. Com efeito, a Internet oferece possibilidades incomparavelmente superiores para a difusão do local. Neste campo assinale-se que a reinvenção da comunicação escrita é outro dos desafios, bem com da capacidade de manipular e organizar a informação. Resta saber se a identidade cultural europeia conseguirá afirmar-se nesta dialéctica da uniformização e da diferença que as «auto-estradas» da informação permitem e, por vezes, estimulam. 7.2.3 Identidade e diferença na sociedade multicultural europeia A tecnologia e a técnica desempenham hoje - e decerto desempenharão no futuro - um papel determinante na globalização e uniformização da Europa e, mais genericamente, de todo o mundo. O rápido desenvolvimento que a Internet conheceu nos últimos anos, um desenvolvimento - sublinhe-se - só possível em virtude da adopção de protocolos e linguagens técnicas universalmente compatíveis, ilustra bem a estreita relação de mútua dependência que se estabeleceu entre a técnica e o referido efeito de globalização. Compatibilidade parece pois ser a palavra-chave de um mundo que, por força de se tornar mutuamente compreensível, cada vez mais se assemelha. Recorde-se a este título a recente reforma ortográfica alemã que entrará progressivamente em vigor a partir de Agosto de 1998. Trata-se de uma reforma que obedece a dois princípios fundamentais: o da simplificação da escrita face às mudanças verificadas na oralidade nos úl timos anos (as regras ortográficas actualmente em vigor datam de 1901/1902) e a eliminação dos traços mais caracteristicamente nacionais - ou regionais, em termos europeus - , como seja o «8», que até 2005 praticamente desaparecerá do alemão escrito. O mesmo sucedeu, aliás, há uns anos em Espanha quando se tentou 402 - neste caso sem êxito - eliminar o alegado preciosismo ortográfico que o caracter «o» constitui na língua castelhana. A crescente informatização das sociedades não é naturalmente alheia a estas tentativas uniformizadoras. Face ao desenvolvimento de uma lógica de produção industrial e em série que - é importante lembrá-lo - se consolida definitivamente a partir do século XVIII, as desvantagens da diferença, ou seja, os custos acrescidos que as diferentes línguas, nacionalidades e mesmo alfabetos europeus acarretam são óbvios. No entanto, deve igualmente acrescentar-se que esta diversidade de línguas, nacionalidades e alfabetos é uma das componentes fundamentais do espaço a que nos habituámos a chamar Europa. Assim, tão importante como o movimento de globalização a que hoje se assiste no espaço europeu são os movimentos de expressão contrária, i. e., de desintegração, que nos últimos anos tomaram igualmente conta do espaço onde se joga a identidade europeia: o renascer dos nacionalismos radicais, as novas tendências regionalistas (de uma «Europa das Regiões» que, no entanto, se apresenta cada vez mais uniforme em termos políticos e económicos), enfim, a crescente luta pela autonomia por parte de comunidades locais (cada vez mais pequenas e mais fe,chadas sobre si mesmas, que se apresentam como «imensas minorias») são disso um exemplo claro. A Europa é tradicionalmente um espaço complexo, multifacetado e paradoxal. Quando aplicada ao espaço europeu, a expressão «aldeia global» - reunindo o particular (<<aldeia») e o universal (<<global») - exprime de uma fonna particularmente eficaz as tensões contraditórias e paradoxais que constituem o núcleo onde se joga a identidade europeia. No que diz respeito às forças que actuam no sentido da desintegração (ou atomização) do espaço europeu, convirá sublinhar que se trata de forças que, hoje como ontem, se alimentam fundamentalmente dos tradicionais movimentos nacionalistas. Nesse sentido, não será descabido afirmar que os nacionalismos terão sido os movimentos que mais marcaram a construção da Europa. Com efeito, a identidade europeia sempre se construiu no e do choque das várias «contra-identidades» (counter-identities; a expressão é de Ranum 1986) que coabitam o espaço europeu. Como Johann Georg Zimmerman notavajá em meados do século XVIII: Jede Nation ist mit sich seIbst vorzüglich zufrieden und betrachtet in mehr und weniger Absichten jede andere Gesellschaft von Menschen aIs Geschopfe einer schlechtem Art. Ein Fremder und ein Barbar waren bei den Griechen Worte von gIeicher Bedeutung. (Zimmermann 1980: 30) No grego tal como no alemão, poder-se-ia acrescentar, uma vez que qualquer dicionário etimológico revela a curiosa, mas significativa, proximidade 403 semântica existente entre os termos Elend (miséria) e Ausliinder ou Ausland (estrangeiro). Este acentuar do carácter local, regional ou nacional, no fundo, este estado de «permanente comparação» (Ortega y Gasset 1985) em que a Europa vive desde sempre, revela-se como uma das características constitutivas da complexa identidade europeia. Sob este ponto de vista, a fundamental unidade do espaço europeu é uma unidade questionável, a não ser que por Europa se entenda um espaço comummente marcado pela diferença. Já em 1803, num texto publicado no primeiro volume da revista Europa, Friedrich Schlegel (1772-1829) chamava a atenção para o carácter arbitrário e puramente convencional da unidade europeia, ao mesmo tempo que aproveitava para expor algumas das antinomias mais marcantes que caracterizam, ainda hoje, o espaço europeu: Darf ich nach der Geschichte, den Menschen, nach dem individuellen Charakter der Uinder urtheilen, ( ... ) so halte ich dafür, da/3 wir Europa vielleicht mit Unrecht so durchaus ais Einheit betrachten. wenn nicht blo/3 von einer willkührlichen, sondern von einer natürlichen, klimatischen und organischen Einheit und Eintheilung die Rede seyn sol!. ( ... ) Das nbrdliche und das südliche Europa scheinen mir aus diesem Standpunkt zwei durchaus verschiedene Uinder, jedes seinem innern Wesen nach ein eigenes lndividuum für sich, die nur auBerlich gewaltsam verbunden sind. (Schlegel apud Lütze ler 1982: 97-98) Não deixa de ser interessante notar que esta breve e sucinta análise do espaço europeu bem se poderia aplicar também à Alemanha de 1803 sem que para isso se tivesse de proceder a alterações de grande monta no texto: bastaria substituir o termo «Europa» por «Deutschland». Na época da globalização das economias nacionais e da progressiva integração europeia, a identidade alemã joga-se mais do que nunca nas relações complexas entre «N ationalstaat, regionaler Au tonomie und Wel tgesellschaft» (Münch 1995). O século XVIII tornou-se vincadamente eurocêntrico face à crescente impoltância dada ao mundo não-europeu. Por sua vez, a descoberta da nação, ao longo do século XIX, só tornou possível a formação de uma identidade, em função da rejeição ou da demarcação de outras identidades locais europeias e, no caso dos impérios coloniais, ultramarinas. A Alemanha, que tantas dificuldades teve (e continua a ter) em consolidar uma identidade nacional, vê-se, no limiar do século XXI, integrada numa nova cultura universal europeia: 1m weltweiten Konkurrenzkampf werden sich nicht die alten europaischen National- und Regionalkulturen behaupten kbnnen, sondern nur eine 404 daraus sich entwickelnde, durchaus vielfaltige, aber auch zugleich vereinheitlichte und kommerzialisierte europaische Universalkultur. (Münch 1995: 302) Mas esta nova cultura universal europeia caracteriza-se por um fenómeno específico do qual também depende: a comercialização da cultura. Esta, porém, não teria sido possível sem uma mudança significativa nos interesses e nas ocupações extralaborais das populações. Assim, verifica-se um aumento significativo das actividades na área cultural desde os anos 50. Entre 1954 e 1989 o número de museus na RFA multiplicou-se por dez, e o número dos visitantes por sete (cf. Münch 1995: 278). O tempo livre por dia de trabalho aumentou, até 1980, sete horas e meia, valorizando assim uma série de actividades que eram até aí consideradas secundárias. Sobretudo nas últimas décadas organizou-se, por exemplo, um importante turismo cultural que (cor)responde a uma grande mobilidade das pessoas. Numa visão mais pessimista desta evolução, as culturas regionais parecem perder definitivamente a sua importância tradicional. Desaparecem dialectos, gastronomias e costumes locais, ou transformam-se em produtos facilmente comercializáveis. O turismo limita-se a fazer um «ErlebnisCocktail» ao gosto e ao preço de toda a gente; a nova Erlebnisgesellschaft integra totalmente cultura e comércio, transformando identidades tradicionais em efeitos de mercado. Resumindo, dir-se-ia que, tal como a Alemanha de finais do século XVIII e inícios do século XIX, a Europa é um espaço marcado e dominado por duas tensões contraditórias: • uma tensão globalizante (que actua no sentido de promover uma «desejável» unidade e autonomia culturais e económicas face ao exterior, nomeadamente face aos mercados, culturas, modos de vida e costumes americanos ou asiáticos); • uma tensão desi ntegradora (que actua no sentido da dispersão, para contrabalançar a alegada perda de identidade local face aos efeitos «perniciosos» da globalização e ainda por oposição à ideia de uma «Europa unida» que é tida como uma construção artificial). Tal como o espaço alemão, esta Europa conhece Ce conheceu ao longo da sua história) vários centros e diversas periferias. Trata-se por conseguinte de um espaço fundamentalmente descentrado, construído ao longo de eixos relacionais (o «eixo Paris-Bona» é disso um exemplo) e profundamente marcado pelas antinomias ~orte/Sul e Leste/Oeste. 405 À semelhança do que sucedeu com a identidade nacional da Alemanha (cf. supra Cap. III. 1), a identidade europeia foi sendo sucessivamente reinventada ao longo da história, como o mesmo Schlegel deixa significativamente entrever no final do texto acima referido: «das eigentliche Europa muG erst noch entstehen» (Schlegel apud Lützeler 1982: 105). o que está em causa neste processo de integração e de reinvenção de uma identidade europeia é uma nova dimensão da política ao nível supranacional que possa garantir formas de vida capazes de compensar a progressiva (e previsível) perda de valores e identidades tradicionais. Neste sentido, a Europa é um projecto cuja realização social e política não só depende da Alemanha, como tem também no espaço geográfico, político, económico e cultural de língua alemã um dos seus centros mais importantes. Bibliografia aconselhada Para uma perspectiva global e histórica sobre a formação do espaço cultural europeu veja-se Ortega y Gasset 1985, Ranum 1986 e Morin 1987; sobre a Europa actual consulte-se Münch 1995 e, relativamente aos efeitos negativos da globalização, MaltinlSchuhmann 1996. Actividades propostas • Recolher na imprensa alemã e portuguesa imagens e metáforas da Europa e da Alemanha e interpretar este material. • Depois da leitura do capítulo pondere as vantagens e desvantagens da globalização. 406 A literatura crítica na área da sociedade e cultura alemãs compreende um número infindável de estudos a que cada ano se somam milhares de novos títulos. Por razões de ordem prática, a bibliografia que aqui se apresenta limita-se às obras básicas que serviram para a elaboração deste manual e aos principais estudos recentes nas respectivas áreas temáticas. Recorde-se que no final de cada capítulo ficaram já indicadas as obras que se entende serem essenciais para o adequado acompanhamento dos temas abordados. Existem ainda várias senes de bolso muito acessíveis que apresentam épocas e temas numa síntese informativa de qualidade, incluindo referências bibliográficas para consultas mais aprofundadas. De entre essas séries de bolso, recomendam-se as seguintes: • dtv (Deutscher Taschenbuchverlag): Deutsche Geschichte der neuesten Zeit vom 19. lahrhundert bis zur Gegenwart. Hrsg. Martin Broszat, Wolfgang Benz und Hermann Graml, com mais de 30 títulos; • UTB (Universitiitstaschenbücher), nas áreas das ciências literárias e culturais, história e ciência política; • stw (suhrkamp taschenbuch wissenschaft), na área das ciências sociais, nomeadamente sociologia, etnografia e antropologia, incluindo traduções de autores estrangeiros; • VR (Kleine Vandenhoek-Reihe), na área da história, ciências sociais e culturais. ADORNO, Theodor W. 1950 The Authoritarian Personality. New York, Harper & Row. 1977 Prismen. Kulturkritik und Gesellschafr. Frankfurt am Main, Suhrkamp [:1955]. ALTER, Peter 1985 Nationalisl71us. Frankfurt am Main, Suhrkamp. AMARANTE, Maria Antónia 1983 «As cadeias de Prometeu: Modos de afirmação e crise da cultura burguesa na Alemanha», in João BARRENTO (org.), Literatura e 409 Sociedade Burguesa na A lemanha - Séculos XVIII e XIX. Introdução de Maria Antónia Amarante. Organização, glossário e notas de João Barrento, Lisboa, Apáginastantas (pp. 7-43). 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