Equipe de tradução Aline Barcellos Prates dos Santos (Caps. 2, 12, 13 e 14) Bióloga do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. Mestre e Doutora em Ciências Biológicas: Entomologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Laura Romanowski Wainer (Caps. 20 a 24) Acadêmica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Certificada em Língua Inglesa por Cambridge ESOL Certificate International. Melissa Oliveira Teixeira (Caps. 9, 10, 11, 15 a 19) Bióloga. Doutoranda em Biologia Animal do Instituto de Biociências da UFRGS. Mestre em Biologia Animal pelo Instituto de Biociências da UFRGS. Paulo Luiz de Oliveira (Iniciais, Caps. 1, 3 a 8, Glossário e Índice) Biólogo. Professor titular aposentado do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS. Mestre em Botânica pela UFRGS. Doutor em Ciências Agrárias pela Universität Hohenheim, Stuttgart, República Federal da Alemanha. Revisão técnica desta edição Aline Barcellos Prates dos Santos (Caps. 12, 13 e 14) Bióloga do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. Mestre e Doutora em Ciências Biológicas: Entomologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ana Maria Leal Zanchet (Caps. 8, 9, 10, 11, 16, 17 e 22) Bióloga. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Biologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestre em Zoologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutora em Ciências Naturais pela Universität Tübingen, Tübingen, Alemanha. Helena Piccoli Romanowski (Caps. 15, 18, 19, 20, 21, 23, 24 e Glossário) Bióloga. Professora titular do Departamento de Zoologia e Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal do Instituto de Biociências da UFRGS. Ph.D. em Biologia Pura e Aplicada (Ecologia) pela Leeds University, Leeds, Reino Unido. Suzane Both Hilgert-Moreira (Caps. 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7) Bióloga. Professora adjunta do Curso de Ciências Biológicas da UNISINOS. Mestre em Geociências pela UFRGS. Doutora em Zoologia pela PUCRS. P365b Pechenik, Jan A. Biologia dos invertebrados [recurso eletrônico] / Jan A. Pechenik ; tradução e revisão técnica: [Aline Barcellos Prates dos Santos ... et al.] . – 7. ed. – Porto Alegre : AMGH, 2016. Editado como livro impresso em 2016. ISBN 978-85-8055-581-3 1. Biologia. 2. Animais invertebrados. I. Título. CDU 592 Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 14 Artrópodes Características diagnósticas:1 1) a epiderme produz um exoesqueleto quitinoso segmentado, articulado e rígido (esclerotizado), com musculatura intrínseca entre as articulações dos apêndices; 2) perda completa de cílios móveis nos estágios adulto e larval. Introdução e características gerais Quase 85% de todas as espécies animais descritas até hoje pertencem ao filo Arthropoda, o que torna o plano corporal artrópode, de longe, o mais bem representado no reino animal. Artrópodes também dominam o registro fóssil. Insetos, aranhas, escorpiões, pseudoescorpiões, centopeias, caranguejos, lagostas, camarões, copépodes e cracas são, todos, artrópodes. Como os anelídeos, artrópodes são basicamente metaméricos, com novos segmentos surgindo durante o desenvolvimento de uma zona germinativa específica na extremidade posterior do animal. Nos membros mais derivados do filo, entretanto, a repetição metamérica de segmentos iguais é mascarada pela fusão e modificação de diferentes regiões do corpo para funções altamente especializadas. Esta especialização de grupos de segmentos, chamada de tagmatização, é vista também em alguns anelídeos poliquetas, porém, ela alcança a maior extensão em Arthropoda. Dois dos principais grupos de artrópodes (Insecta e Crustacea) têm três tagmas distintos: cabeça, tórax e abdome. Artrópodes são incomuns por não possuírem cílios, mesmo nos estágios larvais. O exoesqueleto Artrópodes têm uma conspícua característica em comum com moluscos: indivíduos em ambos os grupos geralmente apresentam uma cobertura protetora externa e rígida. Todavia, a semelhança acaba aqui: as coberturas externas nos 1 Características que distinguem os membros deste filo dos membros de outros filos. 342 Capítulo 14 dois filos são produzidas por mecanismos inteiramente distintos, diferem significativamente na composição química, possuem propriedades físicas muito distintas, e executam funções bem diferentes. Enquanto a concha dos moluscos funciona, em sua maior parte, para proteger as partes moles, o integumento dos artrópodes funciona adicionalmente como um esqueleto locomotor. O exoesqueleto artrópode (Fig. 14.1) é secretado por células da epiderme. Sua camada mais externa (a epicutícula) é geralmente cerosa, sendo composta por uma firme camada de lipoproteína sobreposta por camadas de lipí­ deos. A cutícula é, portanto, impermeável à água, de modo que a superfície externa do corpo não serve para trocas gasosas. Por outro lado, a cutícula impermeável torna os artrópodes incomumente resistentes à perda de água por desidratação. A epicutícula é bem fina, talvez somente 3% da espessura total do exoesqueleto. A maior parte do exoesqueleto é composta por procutícula, formada principalmente pelo polissacarídeo quitina em associação com algumas proteínas. O interesse comercial na quitina tem lentamente aumentado nos últimos anos porque ela é forte, não alergênica e biodegradável. A quitina pode, por exemplo, ser solubilizada e, então, transformada em fibras, as quais podem se utilizadas na fabricação de tecidos e suturas cirúrgicas. Ela pode também ser utilizada para fazer cápsulas biodegradáveis que poderiam ser implantadas no corpo humano, onde elas poderiam gradualmente liberar fármacos por longos períodos de tempo. Desde que a quitina possa ser produzida como uma película clara, ela pode ser eventualmente utilizada como um substituto para a embalagem plástica. Além disso, a quitina e seus derivados se ligam prontamente a numerosos compostos orgânicos e inorgânicos, incluindo gorduras, mas eles mesmos não são digeridos pelos vertebrados. Como um aditivo nos alimentos, a quitina poderia reduzir a ingestão de calorias e de colesterol. Suas habilidades de ligação também fazem dela uma boa candidata para remover compostos tóxicos orgânicos e inorgânicos da água de abastecimento. Entre artrópodes, a quitina atua na proteção, sustentação e movimento, proporcionando um rígido sistema esquelético. A procutícula dos artrópodes é reforçada por vários elementos que a enrijecem. Em crustáceos, este endurecimento é parcialmente obtido pela deposição de carbonato de cálcio em algumas camadas da procutícula. O endurecimento é também obtido pelo “curtimento” do componente proteico da procutícula. Este processo de curtimento, também chamado de esclerotização, envolve a formação de ligações transversais entre cadeias de proteína; isso contribui para o endurecimento da cutícula em todos os artrópodes. Um processo similar ocorre com frequência também em outros filos: a esclerotização está envolvida na formação dos ligamentos e fios bissais dos bivalves; no fortalecimento do periostraco da concha; no enrijecimento da rádula dos moluscos, das setas dos poliquetas, das mandíbulas de alguns anelídeos, na cobertura de ovos de alguns platelmintos e dos trofos de rotíferos. A procutícula dos artrópodes varia em espessura e não é uniformemente rígida em todo o corpo, o que caracteriza o seu principal significado funcional. Em muitas regiões do corpo, a procutícula é fina e flexível em algumas direções, formando articulações (Fig. 14.2). Pela presença de musculatura apropriada, artrópodes têm, então, um esqueleto articulado que funciona da mesma maneira que o esqueleto vertebrado: pares de músculos agem antagonicamente entre si através de um sistema de alavancas rígidas. Algumas articulações dos artrópodes – como as articulações das asas e aquelas envolvidas em saltos – contêm uma substância, chamada de “borracha animal”, ou resilina, que armazena energia sob compressão e a libera de maneira eficiente. O desenvolvimento de um exoesqueleto flexível articulado é a essência do sucesso artrópode, e, como discutido mais adiante neste capítulo, permitiu um estilo de vida acessível somente a membros deste grupo: o voo. A hemocele O celoma pode não exercer qualquer papel importante na locomoção de animais cobertos por um conjunto de placas rígidas, e, assim, o celoma em artrópodes é, correspondentemente, muito reduzido. A principal cavidade do corpo é, em vez disso, um hemoceloma, que faz parte do sistema circulatório, como em Mollusca. Aranhas e outros aracnídeos epicutícula camada pigmentada camada calcificada camada não calcificada epicutícula procutícula endocutícula epiderme membrana basal (a) Figura 14.1 A cutícula de (a) crustáceos e (b) insetos. As cutículas de ambos os grupos de animais são secretadas pela epiderme subjacente. Baseada em W. D. Russell-Hunter, A Life of Invertebrates. 1979. exocutícula endocutícula (procutícula) epiderme membrana basal (b) Artrópodes 343 extremidade do apêndice segmento do apêndice direção do movimento quando o músculo flexor se contrai superfície de apoio (ponto-pivô) membrana flexível músculo flexor músculo extensor parede do corpo Figura 14.2 A articulação de um apêndice crustáceo. A procutícula é endurecida em todo o membro, exceto nas articulações, como indicado. Segundo Russell-Hunter. estendem suas pernas através do aumento da pressão sanguínea dentro do hemoceloma, porém, em outros casos, fluidos e cavidades do corpo geralmente têm pouco a ver com a locomoção dos artrópodes. Muda Em contraste com o crescimento da concha em moluscos, a cobertura protetora externa de um artrópode não recebe material adicional na sua região de crescimento. Em vez disso, ela é secretada em todas as regiões do corpo simultaneamente. Uma vez que o processo de endurecimento é completado, o artrópode é, literalmente, preso dentro de sua armadura, exceto nos locais onde a armadura é perfurada por pelos sensoriais e aberturas de glândulas. As principais regiões do intestino anterior e posterior são também revestidas por cutícula. Para aumentar seu tamanho corporal, o artrópode deve descartar a cutícula – incluindo o revestimento do intestino –, crescer em tamanho e, então, endurecer a nova cutícula para caber no corpo maior (e, sob certas circunstâncias, morfologicamente alterado). A antiga cutícula é parcialmente degradada por secreções enzimáticas e é rompida antes de sua remoção. Entre os crustáceos, a formação de um novo esqueleto requer uma substância denominada criptocianina, uma molécula que aparentemente evoluiu da hemocianina, uma proteína com uma base de cobre envolvida no transporte2 de oxigênio. A cutícula velha é rompida pela tomada de água ou ar e pelo aumento da pressão sanguínea, os quais causam a expansão do corpo. O processo de remoção do exoesqueleto existente é chamado de ecdise, da palavra grega que significa “uma fuga”, “escape” ou “sair fora de”. Na prática, a nova cutícula é realmente secretada antes de a velha ser descartada, o que pode explicar em parte o porquê dos artrópodes não se tornarem completamente não funcionais durante o processo de muda. Caranguejos de corpo mole – e também possivelmente outros artrópodes em muda – dependem de alta pressão sanguínea interna para manter suas funções locomotoras; assim, o hemoceloma atua como um esqueleto hidrostático interno até que o novo exoesqueleto endureça (ver Capítulo 5).3 É claro, o potencial colapso do corpo durante a muda é mais problemático no ar do que na água, já que o ar não oferece suporte para o corpo. Isso pode ajudar a explicar por que artrópodes terrestres são menores do que espécies aquáticas. A cutícula não enrijece até que alterações morfológicas (quando ocorrem) e o aumento de tamanho ocorram. Portanto, o tempo entre a ecdise e o endurecimento da nova cutícula é um período de maior vulnerabilidade a predadores; a maioria dos artrópodes procura por abrigo durante a ecdise. Embora o aumento em tamanho seja descontínuo nos artrópodes, o crescimento de tecido (biomassa) é um processo contínuo. O número de células na epiderme, por exemplo, aumenta continuamente em muitos artrópodes, com o tecido adicional tornando-se dobrado ou recolhido até que a nova cutícula seja descartada e o aumento de tamanho corporal ocorra. Os processos de ecdise e formação do novo exoesqueleto estão ambos sob controle neural e hormonal. Basicamente, uma glândula (p. ex., o órgão Y, localizado na cabeça dos crustáceos, ou as glândulas protorácicas, localizadas no tórax de insetos) produz hormônios ecdisteroides, que, por sua vez, estimulam a muda. Nos insetos, a produção ecdisteroide é engatilhada pela produção de um outro hormônio pelo cérebro, o qual ativa as glândulas protorácicas. Em contrapartida, nos crustáceos, a produção ecdisteroide é inibida entre as mudas por um segundo hormônio, produzido por um complexo neurossecretor (o órgão X), localizado nos pedúnculos oculares. Quando o órgão X cessa a produção efetiva de seu hormônio, a atividade do órgão Y deixa de ser inibida e a ecdisona pode ser produzida. A ecdise não pode ocorrer até que o órgão X pare de produzir seu hormônio inibidor (Fig. 14.3); a remoção cirúrgica dos pedúnculos oculares de crustáceos resulta em ecdise prematura. Outras funções nos artrópodes são também conhecidas por estar sob controle neuro-hormonal, incluindo a regulação do ciclo reprodutivo, da concentração osmótica do fluido corporal, da migração de pigmentos fotodetectores no olho e o movimento de grânulos de pigmento dentro de células, denominadas cromatóforos, levando a mudanças graduais na cor do corpo. 2 Terwilliger, N. B., M. C. Ryan e D. Towle. 2005. J. Exp. Biol. 208:2467-74. Taylor, J. R. A. e W. M. Kier. 2003. Science 301:209-10. 3 344 Capítulo 14 cerébro cérebro G2 G2 G1 G2 sem ecdise G2 G1 produção ecdisteroide ecdise (b) (a) indica atividade glandular indica inatividade indica um hormônio estimulador sendo transportado pelo sangue indica um hormônio inibidor sendo transportado pelo sangue Figura 14.3 Diagrama esquemático de um provável mecanismo regulador da ecdise em crustáceos. Glândulas associadas à muda estão indicadas como G1 e G2. (a) O hormônio produzido pela G2 inibe a produção ecdisteroide pela G1, e nenhuma muda ocorre. (b) A glândula G2 está inativa; o hormônio cerebral estimula a produção ecdisteroide pela G1, e o animal realiza a muda. Nervos e músculos terminando em uma única fibra muscular. Finalmente, um único neurônio artrópode pode inervar um grande número de fibras musculares, de modo que um determinado músculo pode ser inervado por muito poucos neurônios (dois a três, em alguns casos). Em contrapartida, um determinado músculo de vertebrado pode ser inervado por centenas de milhões de neurônios. A musculatura de artrópodes também difere significativamente da de outros grupos invertebrados: o músculo de artrópodes é inteiramente estriado, ao passo que a maioria dos outros invertebrados possui principalmente (ou inteiramente) músculo liso. As ramificações funcionais dessa diferença são consideráveis, pois o músculo estriado pode se contrair muito mais rapidamente que o músculo liso (Tab. 14.1). Sem músculos estriados, artrópodes nunca teriam desenvolvido a capacidade de voar. O sistema nervoso dos artrópodes merece uma menção especial, pois ele é operacionalmente bem distinto daquele de vertebrados e de outros invertebrados. Em vertebrados, cada fibra muscular é inervada por um único neurônio. A força da contração muscular depende do número de fibras que se contraem, ao passo que o número de fibras que se contraem em cada músculo depende do número de axônios contatados. No músculo de artrópodes, em contrapartida, a força de contração depende da taxa na qual os impulsos nervosos são enviados às fibras. Além disso, uma única fibra muscular pode ser inervada por até cinco tipos diferentes de neurônios (Fig. 14.4). O tipo de contração (rápida e curta versus lenta e duradoura) depende, em parte, da fonte de estímulo do músculo. Além disso, alguns neurônios são inibidores; potenciais de ação enviados para esses neurônios inibidores podem alterar a liberação de sinais enviados adiante para outros axônios da mesma fibra muscular. Uma outra complicação é que artrópodes apresentam vários tipos fisiológicos e funcionais de fibra muscular, isto é, a taxa de contração é, em parte, uma propriedade da fibra muscular. O controle fino do movimento em artrópodes, portanto, depende do tipo de fibra muscular estimulada e da interação de vários tipos de neurônios O sistema circulatório O sistema circulatório dos artrópodes também é de interesse: embora o sangue deixe o coração através de vasos fechados na maioria das espécies, ele entra no coração diretamente da hemocele através de perfurações, chamadas de óstios, na parede cardíaca (Fig. 14.5). O sistema circulatório Artrópodes 345 citoplasma da fibra muscular (sarcoplasma) cutícula fibra com somente inervação rápida fibra com inervação rápida e lenta axônio “rápido” axônio “lento” terminais axonais fibra muscular ramos do sistema traqueal (troca gasosa) cutícula axônio “rápido” axônio “lento” (a) (b) Figura 14.4 (a) Inervação de um típico músculo artrópode. Observe que somente algumas das fibras musculares recebem inervação do axônio “lento”. (b) Junção neuromuscular (destaque), em detalhe. Tabela 14.1 T empos de contração de músculos de invertebrados Fonte Anthozoa Músculo do esfincter Músculo circular Scyphozoa Annelida Músculo circular de minhoca Bivalvia Músculo retrator anterior do bisso Gastropoda Músculo retrator do tentáculo Arthropoda Músculo abdominal de Limulus Músculo de voo de inseto Tempo de contração (segundos) 5 60-180 0,5-1 0,3-0,5 1 2,5 0,195 0,025 A partir de várias fontes. é, portanto, aberto, com o sangue oxigenado passando por uma série de cavidades e, por fim, sendo drenado de volta para o interior do coração pelos óstios quando o coração se expande. Um “coração com óstios” é uma das características diagnósticas de Arthropoda, embora a troca gasosa seja efetuada por meios radicalmente diferentes em diversos grupos de artrópodes. Baseada em G. Hoyle, em M. Rockstein, ed., The Physiology of the Insecta, Vol. 4. 1974. Sistemas visuais de Arthropoda Os sistemas visuais de artrópodes podem ser de duas formas: ocelos ou olhos compostos. Um ocelo é simplesmente uma pequena taça com uma superfície sensível à luz à frente de um pigmento absorvente de luz. Esses fotorreceptores simples são encontrados em muitos filos, incluindo Platyhelminthes, Annelida, Mollusca e Arthropoda. A taça é, em geral, coberta por uma lente. Como em todos os sistemas visuais conhecidos, o pigmento fotossensível do ocelo é um derivado da vitamina A em combinação com uma proteína. A estimulação pela luz provoca uma mudança química no pigmento fotorreceptor, gerando potenciais de ação, os quais são, então, transportados por fibras nervosas, a fim de serem interpretados em outro local. Ocelos, em geral, não formam imagens. Por outro lado, olhos compostos podem formar imagens. Esses olhos são especialmente comuns e bem estudados nos insetos e crustáceos, e podem estar presentes junto aos ocelos. Olhos compostos notavelmente grandes (2-3 cm de diâmetro) foram recentemente descritos de um provável ancestral artrópode, Anomalocaris, fossilizado há cerca de 515 milhões de anos.* Algumas espécies de anelídeos poliquetas evoluíram independentemente olhos compostos que funcionam com princípios incrivelmente similares àqueles demonstrados por olhos de crustáceos e de insetos. *Paterson, J. R. et al. 2011. Nature 480:237-40. 346 Capítulo 14 coração aorta anterior (a) brânquias pericárdio óstios aorta posterior artéria esternal artéria abdominal dorsal câmara pericárdica artéria abdominal ventral artéria óstio com válvula coração (b) câmaras dos tecidos vaso eferente para o coração circulação branquial vaso aferente para a brânquia Figura 14.5 (a) Sistema circulatório de um artrópode típico, mostrando o coração com óstios. O animal ilustrado é uma lagosta. (b) Ilustração esquemática do padrão circulatório sanguíneo. O sangue oxigenado é transportado através dos vasos (representados não sombreados) até os canais hemocélicos, nos quais ocorre a troca gasosa entre o sangue e os tecidos. Sangue desoxigenado (vasos Para qualquer olho formar uma imagem, a luz deve primeiramente ser focada na superfície receptora. O animal deve, então, ser capaz de examinar cada componente da cena independentemente e monitorar como a intensidade da luz varia através da imagem formada. Assim, o animal deve possuir um sistema nervoso que seja suficientemente sofisticado para reconstruir a imagem detectada pelo sistema sensorial. No olho humano do tipo câmera, a luz entra através de uma única lente e é focada sobre a retina na parte posterior, quase da mesma maneira que uma imagem de um filme é focada em uma tela. Os componentes da imagem invertida, formada na parte de trás de um olho humano, são amostradas por milhões de células receptoras agrupadas dentro da retina – os bastonetes e cones. Impulsos nervosos de células receptoras individuais são, então, integrados e interpretados pelo cérebro. Um olho composto trabalha do mesmo modo, exceto que (1) há muitas lentes; (2) o foco de cada lente não pode variar; e (3) há muito menos células receptoras para amostrar a imagem, a qual é direta; isto é, não é invertida. O olho composto é formado por muitas unidades individuais, chamadas de omatídeos (de onde vem o termo “olho composto”). Os olhos compostos de algumas espécies de insetos contêm muitos milhares de omatídeos, cada um orientado em uma direção ligeiramente diferente dos outros, como um resultado da forma convexa do olho (Fig. 14.6). O campo visual desse olho convexo e multifacetado é muito amplo, como qualquer um que tente surpreender uma mosca pode observar. O tipo mais simples de olho composto é também o mais comum, encontrado em insetos, tão diversos quanto abelhas, formigas e baratas, e em não insetos, como limulídeos, caranguejos verdadeiros (infraordem Brachyura), ostracodes sombreados em [a]) coleta em uma série de câmaras (cavidades) ventrais. Dali, o sangue vai para as brânquias, é oxigenado e volta para a câmara (cavidade) pericárdica que circunda o coração. (a) Segundo Engemann e Hegner; segundo Gegenbauer. (b) De Cleveland P. Hickman, Biology of the Invertebrates, 2d ed. Copyright © 1973. The C. V. Mosby Company, St. Louis, Missouri. Reimpressa com permissão. Figura 14.6 Olho composto de uma mosca, contendo centenas de omatídeos. Observe a forma convexa do olho: dois omatídeos nunca estão orientados exatamente na mesma direção. © Steve Gschmeissner/SPL/Getty RF. miodocarpídeos e isópodes. Notavelmente, evidência molecular recente sugere uma origem evolutiva independente para os olhos compostos dos ostracodes miodocarpídeos.4 Contrastando com o modo de funcionamento dos olhos humanos, os olhos compostos decompõem a imagem antes de ela chegar na retina e, assim, cada omatídeo fornece apenas uma pequena parte da imagem completa. Portanto, o filme de 4 Oakley, T. H. e C. W. Cunningham. 2002. Proc. Natl. Acad. Sci. USA 99: 1426-30. Artrópodes 347 horror tem isso de errado: um inseto não vê centenas de imagens idênticas, completas, de uma vez, mas sim uma única imagem, bastante granulada, de cada vez. Cada omatídeo consiste em (1) uma lente de foco fixo (a córnea), a qual tem profundidade de campo que objetos de 1 mm a vários metros à frente estão em foco no receptor; (2) um cone cristalino gelatinoso inferior, que serve como uma lente em alguns insetos e na maioria dos crustáceos; (3) uma série de até oito corpos cilíndricos (os fotorreceptores), chamados de células retinulares, cada uma contendo pigmento fotossensível; (4) células cilíndricas contendo pigmento protetivo, opticamente isolando cada omatídeo dos omatídeos circundantes; e, (5) na extremidade basal, uma cápsula neural, um agrupamento de neurônios recebendo a informação conduzida pelas células retinulares e enviando potenciais de ação para processamento pelos gânglios (Fig. 14.7a). Olhos de insetos e crustáceos são sensíveis à polarização da luz. Luz polarizada é utilizada por muitos insetos como uma ferramenta de navegação durante o voo e por pelo menos algumas espécies de borboletas para reconhecimento do parceiro. Sua sensibilidade à luz ultravioleta (UV) também possibilita aos insetos ver padrões (sobre flores ou outros objetos) que são invisíveis aos seres humanos. Alguns insetos, sobretudo aqueles que voam à noite e antes do amanhecer, são também sensíveis a comprimentos de onda infravermelha. O pigmento fotossensível das células retinulares está contido dentro de dezenas de milhares de rabdômeros, os quais são finas projeções microvilares das paredes da célula retinular. Os rabdômeros dentro de cada omatídeo formam uma associação ordenada e discreta, chamada de rabdoma (Fig. 14.7a–c). Nos rabdomas “fechados” ou “fusionados” encontrados na maioria dos insetos, incluindo abelhas e muitos mosquitos (Fig. 14.7b, c), não há espaço entre rabdômeros adjacentes, e o rabdoma funciona como uma única unidade funcional. Em outras palavras, o rabdoma fusionado não é realmente uma estrutura única, mas sim uma entidade central formada cooperativamente por microvilosidades das células retinulares participantes. O rabdoma registra a intensidade da luz no centro da imagem que incide em sua extremidade; ele não registra a imagem inteira. A ponta de um rabdoma é essencialmente análoga a um único bastonete em nossos olhos. O restante do rabdoma cilíndrico atua como um guia de luz, para baixo do qual este pequeno componente da imagem viaja até o cartucho neuronal, situado na base. O cérebro, então, reconstrói a imagem completa de todos os sinais enviados pelas dezenas, centenas ou muitos milhares de omatídeos individuais. Menos frequentemente, os rabdômeros dentro de cada omatídeo são fisicamente separados entre si (Fig. 14.7e), de modo que cada rabdômero atua como um guia luminoso separado, aumentando, dessa forma, a sensibilidade visual ao movimento. Esses rabdomas são encontrados, por exemplo, em moscas-da-fruta e moscas domésticas. Incrivelmente, o desenvolvimento de rabdomas fechados ou abertos está sob controle de um único gene, e, portanto, de uma única proteína estrutural, facilitando a evolução de sistemas fechados para sistemas abertos.5 5 Zelhof, A. C., R. W. Hardy, A. Becker e C. S. Zucker. 2006. Nature 443:696-99. Em muitas espécies, particularmente aquelas ativas à noite, cada omatídeo é funcionalmente isolado de seus vizinhos por pigmento protetivo permanente (Fig. 14.7a), ou por traquéolas refletivas, e, assim, a acuidade visual é alta. Esse olho composto básico é chamado de olho de aposição, uma vez que a lente é aposta diretamente ao rabdoma receptor. Como cada lente é muito pequena, cada rabdoma recebe somente uma pequena quantidade de luz; olhos em aposição, portanto, funcionam melhor em intensidades moderadamente altas de luz. Para um olho composto trabalhar bem em baixas intensidades de luz, cada cápsula neural deve receber luz de mais de um omatídeo. Se o pigmento de bloqueio entre omatídeos adjacentes está faltando, muitas facetas podem combinar, ou sobrepor, a luz que elas recebem em uma única imagem sobre a retina. Esse tipo de olho é chamado de olho de superposição. Em olhos desse tipo, cada omatídeo tem um grande espaço entre a extremidade distal do cone cristalino e o rabdoma; sem o pigmento de bloqueio no caminho, a luz de um único ponto no campo visual pode ser recebida por muitas lentes e focalizada para um único rabdoma, produzindo um sinal de intensidade substancialmente maior que o recebido através de uma lente única (Fig. 14.8a). Olhos de superposição são especialmente comuns em insetos e crustáceos que são ativos à noite. Os olhos de superposição adaptam-se facilmente, com a ajuda de colares com pigmento flanqueando cada rabdoma, a diferentes condições de luz; quando a intensidade luminosa aumenta, grânulos densos de pigmento migram para baixo em cada colar, e o colar atua como uma íris, bloquean­do a luz recebida de omatídeos adjacentes (Fig. 14.8b). Na luz intensa, então, o olho em superposição funciona essencialmente como um olho em aposição. Se a intensidade luminosa é reduzida, os grânulos de pigmento migram para fora do caminho, de modo que os raios luminosos recebidos pela lente de um omatídeo podem novamente se estender sobre omatídeos adjacentes, aumentando a intensidade do sinal recebido. Como a migração do pigmento está sob controle hormonal, ela leva algum tempo para se adaptar à luz ou à escuridão em um olho de superposição. A nitidez da imagem formada por um olho composto depende de alguns fatores: (1) a extensão na qual a luz incidindo sobre os rabdômeros de um único omatídeo penetra em um feixe paralelo ao eixo óptico (i.e., o eixo longitudinal) de cada omatídeo (resolução aumentada); (2) a extensão na qual a luz de omatídeos adjacente incide sobre o pigmento receptor de um omatídeo (resolução diminuída); (3) o grau de diferença na direção na qual diferentes omatídeos estão orientados (ângulos menores resultam em aumento da resolução); (4) o número de omatídeos por olho (mais omatídeos aumentam o potencial de resolução); e (5) a complexidade do centro de informação (o cérebro) recebendo e processando os impulsos enviados dos omatídeos. Mesmo os maiores e mais sofisticados olhos compostos devem produzir uma imagem granulada. A imagem que o ser humano vê é sintetizada a partir de dados de alta intensidade luminosa por milhões de bastonetes e cones individuais; a imagem vista por um olho composto resulta dos esforços colaborativos de somente cerca de uma meia dúzia de, no máximo, vários milhares de cápsulas neurais 348 Capítulo 14 córnea cone cristalino pigmentos células da íris fibra secundária (menor) fibra principal (maior) núcleo das células retinulares célula retinular rabdoma célula retinular célula pigmentar externa nível da secção transversal ilustrada em (b) pigmentação proximal núcleo celular do pigmento basal membrana basal célula de pigmento basal rabdoma agrupamento (feixe) de axônios (cápsula neural) (b) (a) PG PRV R (c) (d) Figura 14.7 (a) Estrutura de um único omatídeo em um olho de borboleta. O pigmento fotossensível está contido no rabdoma. (b) Secção transversal da região do rabdoma de um omatídeo (no nível aproximado indicado em [a]), mostrando a relação entre o rabdoma e as células retinulares que contribuem para ele. (c) Micrografia eletrônica de transmissão de um omatídeo de caranguejo em secção transversal. PG, grânulos de pigmento nas células retinulares; R, rabdoma; PRV, vacúolo perirrabdomal. (d) Secção transversal através de um omatídeo fechado (“fusionado”) da abelha Apis mellifera e (e) pelo omatídeo aberto da mosca-da-fruta. Drosophila melanogaster. Uma única mutação pode transformar um olho como em “b”, “c” ou “d” para um como em “e”. (e) (a, b) Baseada em S. L. Swihart, em Journal of Insect Physiology, 15:37. 1969. (c) Cortesia de K. Arikawa, de Arikawa et al., 1987. Daily changes of structure, function, and rhodopsin content in the compound eye of the crab Hemigrapsus sanguinensis J. Comp. Physiol. A 161:161-74 Copyright © SpringerVerlag. (d, e) © J. Pechenik. Artrópodes 349 raios luminosos cone cristalino raios luminosos pigmento córnea pigmento célula de pigmento da córnea célula de pigmento da córnea rabdoma rabdoma célula retinular adaptado à escuridão light adapted adaptado à luz (a) (b) Figura 14.8 Um olho de superposição em condições de (a) adaptado à pouca luz e (b) adaptado à bastante luz. Observe que na condição adaptada à escuridão, a luz entrando através das lentes de vários omatídeos incide sobre um único rabdoma. A migração de pigmento dentro dos colares de pigmento impede que isso ocorra no olho adaptado para condições de boa luminosidade, aumentando a acuidade visual e a sensibilidade direcional. Para melhor clareza, os feixes de luz refletida e refratada são mostrados separadamente em (a) e (b), respectivamente. individuais. Além dos olhos formadores de imagem situados na cabeça, muitos insetos, crustáceos, aranhas e outros artrópodes possuem neurônios fotossensíveis distribuídos sobre outros locais do corpo (Fig. 14.10). terrestres. Na verdade, a fertilização interna em formas marinhas foi um pré-requisito, uma pré-adaptação, para a invasão do meio terrestre. Muitos artrópodes, incluindo insetos, escorpiões, ácaros e copépodes, transferem o esperma para as fêmeas indiretamente, geralmente através de invólucros especializados (espermatóforos), que são passados para a fêmea de várias formas, como descrito no Capítulo 24 (pp. 562–564; Figs. 24.9, 24.10 e 24.11b). Mais detalhes sobre o desenvolvimento de artrópodes são discutidos posteriormente neste capítulo, para insetos (p. 367) e crustáceos (p. 389). Reprodução nos artrópodes Reprodução sexuada é a regra entre artrópodes. A fertilização é interna na maioria das espécies, mas externa em algumas. A maior parte das espécies é gonocorística (= dioica) (i.e., tem sexos separados), embora algumas espécies – sobretudo as sedentárias e parasíticas – sejam hermafroditas (Fig. 24.3a), e até algumas espécies de vida livre exibem diferentes graus de reprodução assexuada. Partenogênese – isto é, a produção de prole a partir de ovos não fertilizados – é geralmente encontrada entre os Insecta e os Branchiopoda e em alguns copépodes de água doce. De fato, machos nunca foram encontrados em algumas espécies desses grupos. Tanto em espécies terrestres quanto em aquáticas, indivíduos frequentemente localizam potenciais parceiros através da produção de feromônio e da sinalização química. Embora a fertilização interna seja distribuída esporadicamente entre artrópodes marinhos, é a regra em espécies Classificação utilizada neste livro No esquema de classificação adotado neste capítulo, há oito classes, 80 ordens e aproximadamente 2.400 famílias contidas no filo Arthropoda. Somente os aracnídeos (ácaros, carrapatos e aranhas), sozinhos, estão distribuídos em quase 550 famílias. Apesar do enorme número de grupos taxonômicos grandes e pequenos, entretanto, a maioria dos artrópodes adultos mostra somente pequenos desvios do plano corporal geral. Distinções taxonômicas em artrópodes dependem significamente de número, distribuição, origem embrionária, forma e função dos apêndices. 350 Capítulo 14 Como este livro enfoca o vocabulário básico e a gramática da zoologia dos invertebrados, mais do que a diversidade de forma e função encontrada dentro de cada grupo, algumas das classes e subclasses de artrópodes foram suprimidas da discussão a seguir. Selecionar os grupos artrópodes “essenciais” não foi fácil. Foram incluídos aqueles grupos cujos representantes são, em geral, familiares à maioria das pessoas e aqueles grupos que têm maior importância ecológica e/ou evolutiva. Os grupos escolhidos são também aqueles mais prováveis de ser encontrados no ambiente e na literatura científica. Juntos, eles ilustram os princípios e terminologias principais da biologia e da arquitetura dos artrópodes. A seção Detalhe taxonômico, no final do capítulo, inclui informação básica sobre os grupos que foram omitidos aqui. Três grupos principais (Arachnida, Insecta e Crustacea) incluem mais de 95% de todas as espécies de artrópodes. As relações filogenéticas entre esses três grupos, dentro deles e entre eles e outros grupos artrópodes têm sido controversas por muito tempo e permanecem assim até hoje; o esquema de classificação adotado neste livro é apenas um de vários que têm sido propostos.6, 7 Como a determinação de caracteres compartilhados derivados (ou perdidos) para grupos particulares de animais requer uma boa compreensão da sua história evolutiva, foi omitida a seção Características diagnósticas para alguns dos grupos discutidos no texto a seguir. As relações entre os artrópodes serão discutidas ao final deste capítulo, depois da leitura do elenco de caracteres. Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.