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Povos do Xingu dizem não
à usina de Belo Monte
Páginas 4 e 5
Página 5
ISSN 0102-0625
V Celam confirma caminhada
da pastoral indígena
Mulher Guarani faz artesanato em acampamento próximo de Porto Alegre (RS) – Foto: Priscila D. Carvalho
Ano XXIX • N0 296
Brasília-DF • Junho/Julho - 2007
R$ 3,00
A vida
na cidade
Sem deixar de ser indígena, povos lutam
por seus direitos também nas capitais
Páginas 8 a 10
Opinião
Demarcações e desintrusões
demoram. Violência aumenta
N
o Pará, no inicio de junho,
o Cacique Odair José Borari,
coordenador do Conselho
Indígena Tapajós e Arapiuns
(Cita) foi espancado por quatro homens
armados e amarrado. É o segundo atentado à liderança este ano. O primeiro
ocorreu em fevereiro. Odair estava
recebendo ameaças e o fato já havia
sido denunciado à Polícia Federal e ao
Ministério Público Federal. Apesar dos
constantes pedidos, a Fundação Nacional
do Índio (Funai) não está encaminhando
o processo de demarcação da terra da
comunidade Borari. Com a demora, os
conflitos na região se agravam.
A demarcação da terra Raposa Serra
do Sol, em Roraima, completou dois anos
em abril de 2007. Até agora, a retirada dos
ocupantes não índios não foi concluída. O
grupo de cerca de 60 ocupantes que ainda
não saíram tem perfil semelhante: são arrozeiros, garimpeiros e criadores de gado.
Ou seja, pequenos produtores e posseiros
aceitaram sair. Ficaram os grandes.
No dia 4 de junho, o Supremo Tribunal
Federal negou mandado de segurança dos
arrozeiros que questionavam a homologação. A vitória tranqüilizou as comunidades
de Raposa. Porém também gerou reações
violentas, que expõem a proximidade
entre os ocupantes da terra e os políticos
do estado de Roraima e, até mesmo, a ligação deles com os meios de comunicação
local. Um carro dirigido por um tuxaua foi
perseguido por uma caminhonete que
levava o rizicultor Paulo César Quartiero,
ex-prefeito de Pacaraima, Márcio Junqueira, deputado federal pelo PFL - atual DEM
– e uma equipe de televisão do programa
do deputado. No mesmo dia, ocorreram
mais agressões aos indígenas, também
com a presença de Quartiero: homens
armados e encapuzados dispararam tiros,
quebraram o barracão da comunidade,
derramaram óleo diesel nos alimentos e
levaram embora ferramentas.
O Conselho Indígena de Roraima
denunciou o fato ao Ministério Publico
Federal em Roraima, à Policia Federal e à
Secretaria Especial de Direitos Humanos.
O deputado Márcio Junqueira também
apresentou denúncia à Polícia Federal.
E aproveitou para divulgar sua versão a
colunistas de jornal de Brasília. Afirma
que ele e Quartiero teriam sido agredidos
e expulsos da terra indígena.
No outro extremo do País, Dom
Manoel João Francisco, bispo de Chapecó,
Santa Catarina, vem recebendo ameaças
de morte por ter apoiado as demarcações
de terras dos povos Guarani, Kaingang e
Xokleng. Neste estado, fazendeiros têm
usado da imprensa e de manifestações
públicas para divulgar sua postura contrária à demarcação das terras, não raro
questionando a origem étnica e a presença
das comunidades indígenas na região.
Os fazendeiros, como era de se
esperar, usam também pressão política
em Brasília – e conseguem reuniões com
o ministro da Justiça. Ao mesmo tempo,
acionam o Poder Judiciário. Também em
junho, duas decisões liminares, em sentidos opostos, respondem aos pedidos
dos fazendeiros.
Em 6 de junho, um juiz federal
decidiu de forma contrária ao pedido
de suspensão da portaria que declara os
limites da terra Toldo Pinhal. Em 11 de
junho, no entanto, portaria que declara
os limites da terra Toldo Pinhal foi suspensa por liminar de um juiz federal da
mesma Vara de Chapecó.
Sem a portaria, não é possível a Funai
realizar a demarcação física da terra e
retirar os ocupantes não-índios. Ou seja,
mais um processo de demarcação que
caminhará a passos lentíssimos. Resta
saber que tipo de conflito poderá vir de
mais esta situação.
Priscila D. Carvalho
Repórter
MARIOSAN
Porantinadas
Transposição e a
máfia das obras
O que o projeto de transposição do rio
São Francisco tem em comum com a máfia
das obras? A construtora Gautama. A principal
organizadora do esquema de corrupção, que
desviava dinheiro de obras públicas, comemorou
a pré-qualificação para participar das obras da
transposição na mesma semana que o esquema
foi desmontado pela Polícia Federal. A empresa
também pretendia participar da construção das
hidrelétricas do rio Madeira, em Roraima.
No início de junho, as obras da transposição
começaram (apesar dos impedimentos legais
que ainda existem) apenas com o trabalho
do Exército. Pelo visto, se as investigações
às construtoras forem a fundo, o PAC de Lula
vai depender da habilidade dos soldados com
cimento e tijolo.
Terra indígena?
Faça as contas
O presidente da Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel) preparou um anteprojeto de
lei para liberar as hidrelétricas “estratégicas”
de licenciamento socioambiental. No projeto,
ele sugere uma forma de identificar se, dentre
as áreas afetadas pelas barragens, há alguma
terra indígena. Diz o projeto: caso, em um ano,
pelo menos 100 índios sejam vistos dentro de
um círculo de 10 quilômetros, contado a partir
do centro da barragem, a terra é considerada
indígena.
Por sorte, o projeto, que ignora a legislação
indigenista, não recebeu muito apoio nem no
governo. Mas, se algum antiindígena resolve
levar a idéia a sério...
Escolinha do
professor Jobim
Os fazendeiros do Mato Grosso do Sul
tiveram uma aula especial na 43ª Expoagro
(Exposição Agropecuária de Dourados). O expresidente do Supremo Federal Tribunal (STF),
Nelson Jobim, falou sobre a questão indígena
para agricultores que têm conflitos com os
povos da região. Jobim tratou da história da
legislação indígena, dando orientações gerais
aos advogados de fazendeiros presentes. Não
se sabe se, ao final do debate, ele distribuiu
o cartão de seu próprio escritório, que tem
experiência na questão.
ISSN 0102-0625
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Edição fechada em 22/06/2007
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Dom Erwin Kräutler
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Bosi
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Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores.
Jun/Jul-2007
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma, memória.
Priscila D. Carvalho
Editora
RP 4604/02 DF
Editoração eletrônica:
Licurgo S. Botelho
Raposa Serra do Sol e
Jacaré de São Domingos:
homologações valem
Foto: Junhiti Nagazawa / STF
Terras indígenas
repórter
A
s homologações das terras Raposa
Serra do Sol e Jacaré de São Domingos seguem valendo. O Supremo
Tribunal Federal (STF) negou os
Mandados de Segurança que questionavam
os decretos presidenciais de homologação
destas duas terras indígenas, localizadas
em Roraima e na Paraíba. O julgamento
aconteceu dia 4 de junho.
No caso de Raposa Serra do Sol, a
decisão significa que os arrozeiros devem
sair da terra, homologada em abril de 2005.
Para o Conselho Indígena de Roraima (CIR),
a vitória no Supremo prova que a homologação da Raposa Serra do Sol obedeceu
todos os ritos administrativos e jurídicos
estabelecidos pela Constituição Brasileira.
“As comunidades indígenas têm muito
trabalho pela frente, recuperar a terra e de
forma sustentável, investir nos projetos econômicos das comunidades.”, disse Dionito
Makuxi, Coordenador-Geral do CIR.
Para os Potiguara da terra Jacaré de
São Domingos, a decisão significa que eles
podem seguir vivendo na terra, que estava
homologada, mas ainda não tinha sido
registrada.
As decisões são importantes também
para outros povos no Brasil, porque este
entendimento deverá ser adotado também
em casos de questionamentos de homologações que ainda serão julgados, entre eles
o da terra Nhande Ru Marangatu, no Mato
Grosso do Sul.
Os ministros do Supremo - a instância
mais alta da Justiça no Brasil - avaliaram que o
Mandado de Segurança não é o instrumento
correto para o tipo de questionamento feito
nestes casos. E também por isso negaram
as ações. Mas os mesmos questionamentos
poderão ainda ser feitos através de outras
ações judiciais. Já existem outras ações no
Supremo, que ainda precisam ser julgadas.
Argumentos
A decisão sobre Raposa foi unânime. A
ação que foi julgada sustentava, em resumo,
que a área homologada abarcava terras que
já eram de posse dos fazendeiros desde
o início do século passado e que, naquela
época, não eram ocupadas por índios. Também defendia a competência do Congresso
Nacional para decisões sobre demarcações
Há quase 15,
anos os Potiguara
esperavam pelo
julgamento de
sua ação no STF.
Acima, lideranças
indígenas na
sessão do
Supremo
de terras indígenas e a necessidade de
pronunciamento do Conselho de Defesa
Nacional sobre a homologação de terras em
faixa de fronteira.
A defesa da homologação foi feita por
Grace Maria Mendonça, da Advocacia Geral
da União. Ela questionou o argumento do
direito de propriedade dos arrozeiros sobre
a terra. “A ocupação é da década de 90”. Em
sua ponderação, ela contrapôs o direito dos
povos indígenas ao direito à propriedade.
Os argumentos dos arrozeiros também
não foram aceitos pelo ministro Carlos Ayres
Britto, relator do processo. Ele argumentou
que cabe à União demarcar terras e que, ao
fazer isto, ela cumpre determinação consti-
tucional. Decidir sobre as demarcações não
é, portanto, tarefa nem do Congresso nem
do Conselho de Defesa Nacional.
Jacaré de São Domingos
Os ministros do Supremo negaram o
Mandado de Segurança relacionado à terra
Jacaré de São Domingos, por 6 votos a 2. Isto
afasta a tese de que o decreto de homologação da terra prejudica outra ação judicial
contra a sua homologação que tramita na
primeira instância da Justiça Federal, em
João Pessoa.
Assim, o processo administrativo de
demarcação de terras indígenas segue valendo, mesmo que existam processos judiciais
questionando a demarcação.
Raposa segue invadida por fazendeiros que agridem
os indígenas
D
epois da homologação de Raposa Serra do Sol, em abril de
2005, 179 ocupantes não-índios aceitaram as indenizações
e se retiraram. Outros 63 ocupantes
permanecem na terra indígena: são sete
arrozeiros, além de fazendeiros de gado
e garimpeiros.
O prazo para a saída deles venceu em
30 de abril de 2007. No início de maio, os
arrozeiros e garimpeiros que ainda continuam na terra ganharam autorização para
ficar ali, por uma liminar do STF. Mas, com
a decisão do dia 4 de junho, volta a valer
a determinação da Funai para a retirada
dos não-índios. Se eles não saírem de
forma pacífica, poderá sem empregada
força policial.
A Fundação Nacional do Índio (Funai)
informa que já existe uma ação planejada,
com a participação da Fundação, do Ibama,
da Polícia Federal e do Exército, mas não
diz a data, por questões de segurança.
Os arrozeiros, apesar da homologação, seguem plantando – hoje também
plantam soja e criam gado na área. E, para
isso, contam com verbas de programas federais e estaduais de incentivo à produção.
Foto: Arquivo Cimi
Priscila D. Carvalho
Foto: Alcino Joena
STF mantém homologações, mas invasores não saem de Raposa
“Sem isso, eles não conseguiriam custear suas
despesas, que são altíssimas”, avalia Gonçalo
Teixeira, administrador regional da Funai em
Boa Vista.
“A presença dos arrozeiros gera violência,
ameaças. Só com a saída deles poderemos
recuperar todo o nosso território, reconstruir
roças, casas, sem sofrer pressões”, avalia Valter de Oliveira Makuxi, liderança do Conselho
Indígena de Roraima (CIR).
Agressões
No dia 17 de junho, um carro dirigido
pelo Tuxaua Anselmo Dionísio Filho foi
perseguido por uma caminhonete que
levava o rizicultor Paulo César Quartiero
(ex-prefeito de Pacaraima), Márcio Junqueira
(Deputado Federal de Roraima) e uma equipe
de televisão.
Mais tarde, Quartiero e o ex-vice-prefeito
Anísio Pedrosa foram até a comunidade
Parawani. Entraram na área
em uma caminhonete branca, observaram a situação e
voltaram para a estrada, onde
estavam dois caminhões.
Em seguida, a caminhonete,
seguida pelos caminhões,
invadiu a comunidade. Homens aramados e
encapuzados saíram dos veículos e começaram a cercar e ameaçar os indígenas. Fizeram
alguns disparos. As pessoas correram assustadas e, até o dia 20 de junho, um jovem de
19 anos, que fugiu na confusão, ainda estava
desaparecido.
Os índios foram levados no caminhão e,
sob insultos, foram largados na estrada alguns
quilômetros depois da aldeia. Os agressores
quebraram o barracão da comunidade, derramaram óleo diesel nos alimentos e levaram
as ferramentas dos indígenas.
O CIR denunciou o fato ao Ministério
Publico Federal em Roraima, à Policia Federal
e à Secretaria Especial de Direitos Humanos
da Presidência da Republica. Para o Conselho, este tipo de ataque acontece, pois, em
Raposa, permanece o clima de impunidade
e de terra sem-lei, causado pela omissão
do Estado.
Povos que
vivem em
Raposa lutam
há décadas
para tirar os
invasores de
suas terras.
Ameaças e
agressões
sempre
ocorreram
Jun/Jul-2007
Nascer já
é caminhar
Foto: Vera Souza – Editora Santuário
V Celam
Paulo Suess
Assessor Teológico do Cimi
O
enfoque dado à causa indígena
na V Conferência do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe, rea­
lizada de 13 a 31 de maio de 2007
em Aparecida, São Paulo, e no documento
final do evento não capta toda a riqueza e
complexidade desta questão. A visão da realidade, a opção pelos pobres, os poucos, mas
decisivos, parágrafos sobre as Comunidades
Eclesiais de Base, o enfoque da questão da
biodiversidade e da ecologia, o fio condutor
do seguimento dos discípulos-missionários,
a transversalidade da missão e alguns silêncios oferecem ainda muitos outros aspectos
e desdobramentos que fazem do Documento
de Aparecida um tapete colorido e políticopastoral de grande importância para as
igrejas do continente.
A opção
pelos
pobres, o
enfoque na
questão da
ecologia
e outros
aspectos
fazem do
Documento
de Aparecida
um tapete
colorido
e político
muito
importante
para as
igrejas do
continente
Jun/Jul-2007
Foto: Maikel Marques
Conferência de Aparecida confirma a
caminhada da pastoral indígena
O contexto: pluralismo
cordial
Foram setores eclesiais muito diferentes
que se reuniram em Aparecida para traçar os
caminhos da Igreja latino-americana. O setor
“Remanescentes da Teologia da Libertação”
colaborou com o setor “Bom Pastor”. O setor
“Cúria Romana” estava geralmente mais ao
lado do setor “Movimentos”, como “Legionários de Cristo”, “Opus Dei” e “Sodalício”,
querendo fazer dos discursos papais um
quinto evangelho, respaldados pela agência
de notícias Aciprensa. No meio destes havia
um grupo de “Navegantes independentes”
que votava, conforme o caso, com um ou
outro grupo.
Nas votações, geralmente, apareciam
dois blocos: os pastoralistas, com sua
experiência contextual, e os doutrinários,
com suas propostas pastoralmente mais
distantes. Em muitas votações, a maioria dos
votos foi dos pastoralistas, mas essa maioria
nem sempre se refletiu no Documento de
Aparecida (DA). Pois, se nas Conferências
de Puebla e Santo Domingo atuava um D.
Luciano Mendes, com sua santa prudência,
agora, os redatores finais são, na maioria,
pessoas trazidas de Roma, cuidadosamente
escolhidas e informadas sobre determinados
temas proibidos (neoliberalismo, reforma
ministerial, Teologia Índia...) e com teologias
que não passaram pela peneira das mediações históricas e antropológicas do lugar.
Apesar do ar condicionado, que deixou
muitos delegados com febre, o clima - num
sentido mais amplo - foi bom no subterrâneo
da Basílica de Aparecida, onde a Conferência
se reuniu. Por fim, quase todos se disseram
satisfeitos com o evento de Aparecida que
foi além do DA. Do evento faziam parte, além
da visita do Papa Bento XVI, os milhares de
romeiros, a Tenda dos Mártires, o Seminário
Latino-Americano de Teologia, a romaria das
Comunidades Eclesiais de Base e muitos
encontros na margem da V Conferência.
Alguns bispos do setor mais progressista
disseram, sem resignação: “Para que brigar
por palavras, como Teologia da Libertação,
se seus conteúdos, a opção pelos pobres,
as CEBs, o protagonismo dos índios e afroamericanos e seu método ver-julgar-agir
estão garantidos?”. Quem participou das
articulações sabe do esforço, nem sempre
bem-sucedido, necessário para que temas
óbvios constassem no DA e para que avaliações caducadas saíssem dele.
O texto: apoio à causa
A questão indígena aparece mais explicitamente em dois lugares do DA: na
análise da realidade e nas indicações
pastorais. Em outras partes do texto, os
povos indígenas e suas culturas são genericamente mencionados, em geral junto
com os afrodescendentes, em afirmações
de estima e apoio. O DA respalda os eixos
principais da pastoral indígena do Cimi. O
fio condutor do documento é o seguinte: (1)
os povos indígenas têm uma história milenar
e vivem atualmente numa situação em que
sua vida está profundamente ameaçada; (2)
nessa situação a Igreja dá todo seu apoio,
sobretudo à defesa dos seus territórios e de
sua identidade; (3) o apoio não se sobrepõe
ao protagonismo dos próprios indígenas,
mas o incentiva; (4) o trabalho específico
da Igreja é a evangelização inculturada que
inclui denúncia, anúncio e diálogo; (5) os
povos indígenas vivem valores que podem
ser considerados como o núcleo de um outro
mundo possível
Vida ameaçada
A vida dos povos indígenas está ameaçada em sua existência física, cultural e espiritual. Seus modos de vida, sua identidade e
projetos correm grandes perigos. Uns vivem
em terras insuficientes, outros são expulsos
de suas terras e vivem como migrantes, outros encontram seus territórios invadidos e
degradados. A globalização ameaça a todos
com suas mudanças culturais impostas. Os
indígenas configuram uma nova categoria
de pobres e excluídos entregues à marginalização sociocultural. Dessa situação emerge
um grito dos povos indígenas que precisa ser
ouvido por toda a América Latina.
Defesa dos direitos e
territórios
A V Conferência se comprometeu com as
igrejas locais a acompanhar os povos indígenas em suas lutas pelos seus direitos e cobrar
das sociedades latino-americanas o respeito
e o reconhecimento a sua alteridade. Em
conseqüência do modelo econômico dominante e da devastação ecológica, muitos
indígenas são hoje expulsos de suas terras
e empurrados para a periferia das grandes
cidades. Por isso, a defesa dos territórios
dos povos indígenas faz parte do serviço à
vida que os discípulos-missionários prestam
em suas Igrejas ao Deus com rosto humano,
sempre perto dos pobres e sofredores.
Fotos: Pastoral Operária-SP
Durante sua visita ao Brasil, o Papa Bento
XVI recebeu uma carta da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib) falando da
situação dos povos no país. O documento foi
entregue pelo cardeal Dom Paulo Evaristo
Arns, no dia 10 de maio, numa audiência que
Arns teve com o Papa.
A carta fala da resistência dos povos a
perseguições, invasões de territórios, assassinatos, epidemias e esterilização de mulheres
indígenas, “num verdadeiro processo de
genocídio”. Mas diz que, pela sua força e
resistência, os povos indígenas voltaram a
crescer. “Sempre mantivemos a luta pacífica
e persistente por nossos direitos históricos
e sempre contamos, nesta luta, com o apoio
solidário da Igreja, de inúmeros missionários
e missionárias em todo o país”
O documento cobra “pressa “ na demarcação de terras e questiona “a ênfase exagerada que o governo do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva vem dando à realização do PAC
– Programa de Aceleração do Crescimento.
Não somos contra o crescimento econômico
do país, só não aceitamos que este seja feito
com o atropelo de nossas comunidades; de
nossos territórios; de nossos rios e de nossas
matas; da integridade física e cultural de
nossos povos”.
Nenhum indígena foi recebido pelo Papa
Bento XVI durante sua passagem pelo país.
Em Aparecida:
romarias e
momentos de
orações e debates
sobre temas das
Pastorais Sociais
na Tenda dos
Mártires
Protagonismo indígena
Em vários lugares o DA fala dos povos
indígenas como novos atores sociais que,
junto com outros setores, podem contribuir
para o fortalecimento de uma democracia
participativa. Ao tomar consciência de
seu poder, podem gerar transformações
sociais importantes e reverter sua situação
de exclusão. O protagonismo dos povos
indígenas é um sinal de esperança que
agradecemos a Deus, reza o Documento.
Ele emerge na sociedade civil e no interior das Igrejas onde reivindicam a sua
participação. Suas cosmovisões, valores e
identidades diversos podem forjar um novo
Pentecostes eclesial, capaz de significar
uma refundação da Igreja. Esta estimula a
participação dos povos indígenas na vida
eclesial e procura fortalecer sua identidade
e suas organizações.
Um fato que sublinhou esse protagonismo foi a crítica indígena ao discurso inaugural do Papa, falando da beleza da evangelização sem mencionar as conseqüências
históricas infelizes. Dez dias mais tarde, em
sua Audiência Geral, no Vaticano, o Papa
corrigiu humildemente essa
lacuna, dizendo: “Certamente
a lembrança de um passado
glorioso não pode ignorar as
sombras que acompanharam
a obra da evangelização do
continente latino-americano. De fato, não
é possível esquecer os sofrimentos e as
injustiças que os colonizadores causaram
aos povos indígenas”.
Evangelização inculturada
A participação na vida eclesial e o
anúncio da Boa-Nova do Reino dependem
de uma evangelização mais inculturada,
com seu desdobramento na inculturação
litúrgica, e de assumir as línguas indígenas
como veículos de comunicação (tradução
da Bíblia). Também o trabalho vocacional
e, portanto, sua participação nos ministérios ordenados, depende de avanços nos
processos de inculturação que cuidam
das raízes indígenas. A evangelização
inculturada denuncia situações de pecado,
anuncia a Boa-Nova do Reino e incentiva
o diálogo intercultural, inter-religioso e
ecumênico.
Dom Paulo
Evaristo Arns
entrega carta de
indígenas a Papa
Bento XVI
Vida alternativa
A evangelização não acontece num
terreno vazio. Os povos indígenas têm uma
experiência religiosa milenar, que conservam
até hoje e que lhes deu identidade e raízes.
Essa experiência é histórica e não deve ser
destruída pelo cristianismo, mas pode ser
enriquecida por ele.
As sementes do Verbo e o próprio Verbo
estavam presentes de maneira misteriosa nas
religiões indígenas antes da chegada dos
missionários. Isso aponta para sua relevância
salvífica. Em sua base religiosa, os povos
indígenas vivem muitas vezes uma religiosidade entrelaçada com o cristianismo, com
valores próprios, resistentes à secularização
moderna. O Documento fala da abertura
para a ação de Deus e do caráter sagrado
da vida indígena, que valoriza a família e
vive a solidariedade e co-responsabilidade
em trabalhos comunitários. O DA assume
muitas reflexões de Santo Domingo. Nas culturas indígenas, vive-se um amor profundo
à terra. Terra indígena é terra para viver e
terra comunitária. Esses dois itens impedem
a transformação da terra em latifúndio ou
em objeto de contratos de compra e venda
ou de incorporá-la no agronegócio. Na
visão que os povos indígenas têm da terra,
está presente a utopia de um outro mundo
possível. Chamam de sua mãe a terra e a
natureza porque os alimentam; sua casa
comum, porque os protegem, e seu altar,
onde partilham a vida.
Enquanto os romeiros – esse povo
pobre e simples – rezavam na Basílica, os
delegados da V Conferência estavam reunidos no subterrâneo dessa Basílica, como
numa incubadora, torcendo “para que todos
tenham vida”. Depois das dores de parto, o
que interessa é a criança. E nós, Igreja local e
pastoral, estamos aqui para cuidar dela, fazer
engatinhar, levar a Igreja subterrânea para
cima ao encontro do povo, para que cuide
dessa vida “Severina” dos povos indígenas,
bela “porque corrompe com sangue novo a
anemia, infecciona a miséria com vida nova
e sadia”.
Jun/Jul-2007
As lutas dos
Guarani para viver
em seu território
Foto: Egon D. Heck
Yvy rupa
Marcy Picanço
Editora do Porantim
É
Deus que revela o lugar.”
Serras, muita mata, uma cachoeira
e um rio de águas cristalinas. Assim
é o lugar destinado por Nhanderu
para as famílias Guarani M’byá que vivem na
aldeia Peguao Ty, município de Sete Barras,
no Vale do Ribeira, a 200 km de São Paulo.
Elas chegaram lá em 2000, vindas
da aldeia Sapucaí, no litoral paulista. Na
outra área, a roça não era mais suficiente,
além disso, a aldeia era muito próxima de
cidades turísticas e o som alto das festas
incomodava. “Viemos andando até chegar
aqui. Deus revela onde podemos manter
nossa vida, nossa cultura.”, conta o cacique
Luis Eusébio. Com ele, vieram outras 54
pessoas. Em Sapucaí ficaram mais de 300.
“Aqui é mata fechada, tem água e é mais
tranqüilo.”, celebra Luis.
Ele explica que não conhecia o lugar da aldeia, mas sempre ouviu falar que, até os anos
1960, havia uma aldeia na região. No entanto,
por conta do idioma diferente, a comunidade
não se entendia com as autoridades municipais. Quando o cacique morreu, os familiares
foram para a cidade e se casaram com pessoas
de lá. Assim acabou a aldeia.
“Mas, essa região toda, desde o Uruguai
até a Bahia era cheia de índio. Mas, o pessoal
fala que não tinha índio”, lembra o cacique. A
bela aldeia, de fato, fica no território Guarani,
que se estende por sete estados brasileiros,
alem de áreas na Argentina, Paraguai e
Uruguai. No entanto, hoje, a área da aldeia
Fotos: Marcy Picanço
“
Jun/Jul-2007
Foto: Marcy Picanço
Sobreposição de unidades de conservação em terras
indígenas e invasores nas áreas homologadas são alguns dos
desafios. Para não enfrentar a estrutura fundiária, o governo
tem optado por comprar terras em algumas regiões
A luta por viver bem no seu território une
os Guarani no país e internacionalmente.
À direita, o cacique Luis Eusébio, da
aldeia Peguao Ty (SP). À esquerda, o
pajé da terra Sucuri´y (MS)
é uma unidade de conservação ambiental e,
por isso, os Guarani enfrentam uma batalha
judicial para permanecer na terra.
Guarani e meio ambiente
Atualmente, 38% das terras indígenas
no estado de São Paulo coincidem com unidades de conservação de proteção integral
(onde humanos não podem viver). Isso por
que, em geral, são as poucas áreas de Mata
Atlântica ainda preservadas.
A aldeia Peguao Ty coincide com o
Parque Estadual Intervales, administrado
pela Fundação Florestal, ligada à Secretaria
Estadual do Meio Ambiente. A Fundação
move uma ação contra a Fundação Nacional
do Índio (Funai), pedindo a reintegração da
área ocupada pelos Guarani. A Procuradoria
do Estado do Meio Ambiente também está
processando a Funai, nesse caso, pelos
danos ambientais supostamente causados
pelos indígenas.
“Se não fossemos cuidar da terra, não
íamos ficar aqui. Eles oferecem outras terras,
mas toda derrrubada, sem rio. Nós sempre
convivemos com a natureza sem destruir.
Foi a invasão dos brancos que destruiu tudo.
Agora falam que o índio destrói, que são
invasores”, se indigna Luis.
Enquanto corre a ação contra a Funai, a
comunidade luta para ter sua terra demarcada. Em 2002, receberam a promessa de que
seria criado um Grupo Técnico para estudar
o caso deles. Até hoje, isto não ocorreu. No
final de 2005, a Funai enviou à área uma
antropóloga para fazer um “levantamento
prévio” da situação. A comunidade ainda não
teve acesso a este relatório.
Educação e saúde
Junto à luta pela terra, a comunidade
trabalha para conseguir seu direito à saúde
e educação diferenciadas. Ha três anos, eles
têm escola (até 4ª série), com professores
indígenas contratados e merenda fornecida
pelo Estado. Também têm dois Agentes
Indígenas de Saúde e recebem uma visita
semanal da equipe da Fundação Nacional
de Saúde (Funasa).
O conflito pela terra, porém, torna
ainda mais difícil ter algumas melhorias. A
comunidade pretende construir módulos
sanitários, mas não está conseguindo, por
estarem em área de conservação. Por conta
desse tipo de impasse, o Ministério Público
Federal entrou na questão para garantir que
os direitos indígenas à saúde, educação e
outros sejam respeitados, mesmo que a área
ainda não esteja demarcada.
“Vamos continuar na luta para conseguir
terra, educação, saúde...”, garante o cacique
Luis. “Também sei que a situação das outras
áreas Guarani está complicada, mas não
vamos desistir”, reforça.
O alegre som da rabeca e do violão dos
jovens indígenas toma conta da aldeia. Os
Guarani também usam a música para se ligar
aos deuses. Luís lembra que a saúde dos
Guarani é ligada à Nhanderu. “Não basta
Funasa, remédio, hospital para ter saúde,
viver bem”. Se foi para ali que Nhanderu os
guiou, ali ficarão.
Nove anos depois da
homologação, fazendeiros
invasores seguem na área
Foto: Geertje van der Pas
Sucuri´y – uma viagem à terra tomada
pela soja
Egon Heck e Geertje van der Pas
À
Foto: Egon D. Heck
s 6 horas, saímos de Campo Grande.
O sol já está forte e queima o asfalto.
Um pouco fora da cidade já começa
o filme repetitivo das passagens da
soja, soja e mais soja. Às vezes, alguns brotos
do milho, que foram plantados depois da
colheita da soja, ou cana de açúcar (cada vez
mais agora com a esperança do biodiesel).
Fica difícil imaginar que existiu mata aqui...
Após duas horas de viagem, chegamos
na cidade de Maracajú, maior produtora de
soja do Mato Grosso do Sul. O que é bem
visível: na entrada da cidade ficam os armazéns de soja das empresas internacionais
Cargill e Bunge. Saindo da cidade, chegamos
ao confinamento de 67 hectares, onde vivem
cerca de 40 famílias Kaiowá Guarani: a terra
indígena Sucuri´y.
A área total de 565 hectares foi homologada e registrada como terra indígena em
1998. Mas, quase 10 anos depois, os Kaiowá
ainda vivem apenas nos 67 hectares. Em
volta, há soja ou milho, depende da época
do ano. As plantações chegam a menos de
5 metros das barracas das famílias.
Quando o fazendeiro usa agrotóxicos,
as conseqüências são terríveis.
A liderança Pay Taviterã comentou: “O
Brasil já foi pro pau. De São Paulo para lá é
só cana ou soja. Cadê o arroz, batata, feijão,
milho.... Será que mais tarde vamos nos
alimentar de soja, álcool e açúcar?”
No início de 2007, houve uma esperança
de que o fazendeiro que ocupa grande parte
da terra Sucuri´y (410 hectares), os outros
dois fazendeiros e o município que está na
área fossem sair. A Justiça Federal de Dourados determinou, em 19 de janeiro, que a
área fosse desocupada em 120 dias, sob pena
de multa diária de mil reais.
Os réus apelaram da decisão no dia 27
de fevereiro. O juiz aceitou o pedido e encaminhou o processo para o Tribunal Regional
Federal da 3ª Região, em São Paulo. No dia
19 de março, os réus recorreram ao TRF 3.
No dia 14 de maio, faltando apenas 15 dias
para o fim do prazo para a desocupação, a
desembargadora Cecília Mello, relatora do
caso, aceitou o pedido dos invasores. Com
isso, ficou suspensa a desocupação da terra
Sucuri’y até decisão definitiva do TRF.
Após essa decisão, os Kaiowá Guarani
de Sukuriý foram pessoalmente se reunir
com os desembargadores do TRF em São
Paulo. Finalmente, no dia 5 de junho, foi
dada decisão favorável aos indígenas. Agora
aguardam que a Justiça e, se necessário, a
Polícia Federal cumpram a decisão de retirar
os invasores da terra.
A soja dos
invasores
na terra
Sucuri´y:
os Guarani
vivem em
67 hectares
da área
homologada,
que é de 565
hectares
Das terras reveladas para as terras NEGOciadas
A compra de terras como negação do direito
Clovis Antonio Brighenti
Cimi Sul – Equipe Florianópolis
N
a última década ganhou força nas
ações governamentais a idéia de
adquirir terras para o povo Guarani
como forma de garantir-lhes espaços
de sobrevivência. No Rio Grande do Sul essa
idéia foi aplicada no ano 2000, quando o governo do estado desapropriou três áreas para
assentar comunidades Guarani. No mesmo
período, em Santa Catarina, essa política foi
implementada pelo Governo Federal com a
aquisição de uma área com recursos vindos
das medidas compensatórias do Gasoduto
Bolívia Brasil.
Em 2007, três novas terras foram adquiridas em território catarinense e pelo menos
mais cinco áreas estão em vias de aquisição
– uma em Santa Catarina e quatro no Rio
Grande do Sul. Todas com recursos repassados
à Fundação Nacional do Índio (Funai) pelo
Departamento Nacional de Infra-Estrutura de
Transportes (Dnit) como compensação pelos
impactos causados às comunidades Guarani
com a duplicação da rodovia BR 101 no trecho
Palhoça (SC) - Osório (RS).
Além da desapropriação e aquisição,
observamos que a Funai vem alterando o
procedimento administrativo para negar a
tradicionalidade da ocupação e a conseqüente
demarcação. Ao invés de criar Grupos Técnicos
para fazer os estudos necessários à identificação e delimitação das terras, como determina
a legislação, a Funai tem, com freqüência,
enviado a campo um único profissional para
fazer o levantamento prévio. Nesse trabalho,
ele já aponta se as áreas reivindicadas pelos
Guarani são ou não de ocupação tradicional.
Parece óbvio que essa tarefa cabe a um grupo
técnico e não apenas a um profissional em um
curto tempo.
A aquisição, desapropriação ou levantamento prévio partem de um princípio perverso
e ilegal: a negação do território Guarani. Esse
povo ocupa um território, não exclusivo, que
se estende pelo Uruguai, o leste do Paraguai,
a província de Misiones, Argentina, e por sete
estados brasileiros. As pesquisas arqueológicas
comprovam que os Guarani ocupam esse terri-
tório, com pequenas variações, há pelo menos
dois mil anos. Não reconhecer o direito sobre
as terras é negar a existência desse território
e, assim, os Guarani passam a ser tratados
como estrangeiros.
Além dos efeitos nocivos no aspecto
legal, há outros efeitos negativos diretos e
imediatos. As terras adquiridas e/ou desapropriadas são muito pequenas (entre 70 a 550
hectares), sendo que a maioria gira em torno
de 200 hectares. Uma revisão de limites fica
quase impraticável, pois seriam necessários
mais recursos para aquisição e dependeria da
disponibilidade de terras vizinhas. Já há casos
em que não foi possível a revisão de limites de
terras adquiridas, pois as áreas vizinhas ficaram
sobrevalorizadas.
O tamanho das terras interfere diretamente na organização social do povo Guarani.
Além da impossibilidade da sobrevivência
física, há um fracionamento das comunidades
em pequenos núcleos familiares, impossibilitando a vivência na família extensa,
como tradicionalmente se organiza o povo.
Quando insistem na manutenção da organi-
zação social os recursos naturais mostram-se
insuficientes.
O conceito de terra para os Guarani é do
yvy rupa: um grande território habitado sem
fracionamento e sem pertencimento. “Esse
yvy rupa é nossa vida, é nossa existência, é
onde todos nós podemos viver sem divisões”,
manifestou Werá Mirim. As terras quando demarcadas devem ter como princípio a concepção e prática desse povo, garantindo todos os
recursos naturais necessários à sobrevivência
física e cultural.
No entanto as terras adquiridas ou reservadas mudam completamente essa concepção
ao impor ao Guarani o conceito de propriedade
privada. As novas terras não são mais da coletividade, não são mais do povo Guarani, não
é mais o yvy rupa, mas é a terra do indivíduo.
É nítida a nova significação dada pelas famílias
beneficiadas, porque mudam os métodos: da
revelação da terra por Nhanderu/Deus, para a
negociação com o proprietário.
Para os governos, comodismo e falta de
vontade política de mexer com a estrutura
fundiária.
Jun/Jul-2007
Viver na cidade
grande não é abrir
mão de ser indígena
Grupo de Praiá Pankararu – apresentação em 2003 – Foto: Ana Pecci
Índios na cidade
Priscila D. Carvalho
Especial para as agências
Repórter Brasil e Carta Maior
O
O projeto que
deu origem a
este trabalho foi
ganhador das
Bolsas AVINA
de Jornalismo
Investigativo.
A Fundação
AVINA não tem
responsabilidade
pelos conceitos,
opiniões e outros
aspectos de seu
conteúdo.
Jun/Jul-2007
ônibus que leva os moradores do
bairro Brasileirinho até o terminal
urbano de Manaus só passa de
hora em hora. E pode demorar
mais, por causa da castigada estrada de terra que sacode sem dó a
carcaça e as entranhas do coletivo. São cerca de
dez minutos a pé do ramal 8 do Brasileirinho,
onde vivem 16 famílias do povo Kokama, até o
ponto de ônibus. Faço o trajeto ao lado de uma
liderança Kokama, Sebastião, e de sua esposa.
Quando chegamos à parada, o dono do bar em
frente avisa que o ônibus acabou de passar. “O
próximo demora?”, pergunto. Demora. Sentamos. A esposa de Sebastião senta e abre seu
caderno para estudar o idioma Kokama, que
ela não aprendeu quando criança.
Um carro se aproxima e oferece carona.
Aceitamos.
– Para onde estão indo?, pergunta.
– Para o centro.
– De onde são?
– Do interior. E ela é de Brasília.
– Brasília? E veio fazer o que aqui?
– Sou jornalista. Vim fazer uma matéria
sobre índios que vivem em Manaus. Visitei um
grupo de Kokama que mora aqui no Brasileirinho - respondi.
– Mas aqui não tem índio, não. Quando eles
chegam aqui já não são mais índios.
Mas Manaus tem índios e eles se mobilizam
por direitos básicos como moradia, transporte
e educação, assim como em outros centros
urbanos brasileiros. Na capital do Amazonas,
eles são mais de 7 mil. As dúvidas sobre a
presença indígena em grandes cidades, aliás,
sofreram um duro golpe do mais recente censo
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), realizado em 2000. Nele, 734 mil pessoas se autodeclararam indígenas. E 383.298
destas vivem em cidades. A população urbana
Fotos: Priscila D. Carvalho
Reportagem especial mostra a vida de indígenas em Campo Grande, Manaus, São
Paulo e Porto Alegre. O Porantim publica nesta edição os textos gerais e nos próximos
meses matérias sobre educação, moradia e trabalho dos indígenas nas cidades
ultrapassou a rural e representa 52,21% do total
de indígenas no Brasil. O IBGE mostrou também
que, dos 20 municípios com maior numero de
habitantes indígenas, 10 são capitais.
Os indígenas não migraram do campo
para a cidade sozinhos. Sua movimentação
acompanha a intensificação da urbanização
brasileira, a partir da década de 1950. Manaus
é o exemplo mais contundente: a instalação da
Zona Franca fez a população da cidade aumentar de 300 mil pessoas, em 1970, para 800 mil,
em 1985. Em 2000, Manaus já tinha 1,4 milhões
de habitantes, concentrando quase a metade
dos 3 milhões de habitantes do Amazonas. E,
dos 18.783 indígenas que vivem nas cidades
do estado, 7.894 estão na capital.
A história das migrações já faz parte das
vidas Kokama, Apurinã, Baniwa e de outros
que partiram em busca de educação formal,
saúde ou renda em Manaus. É parte da vida
dos Terena, no Mato Grosso do Sul, ou dos
Kaingang, no Rio Grande do Sul, que migram
para cidades a poucas horas de suas aldeias
de origem, em busca de renda ou de distância
das terras pequenas para uma população
crescente. É parte também das vidas dos povos Pankararu, Fulni-ô, Pankararé, Potiguara,
Atikum e de outros que saíram do Nordeste
para tentar a vida em favelas e bairros periféricos de São Paulo.
Histórias de chegadas
As migrações não são apenas escolhas
individuais. Elas são parte da dinâmica do
contato entre as sociedades. É o que pondera
o historiador Antonio Brand, da Universidade
Católica Dom Bosco, de Campo Grande: “No
Mato Grosso do Sul, as migrações são conseqüência das políticas públicas integracionistas
que falharam, da criação de reservas pequenas,
da falta de demarcações de terras. Ao mesmo
tempo em que o governo federal não demarca
terras, as administrações locais fazem aldeias
urbanas”, questiona. Aos poucos, a administração pública passa a ter que atender os grupos
na cidade.
Brand toca em uma questão que sempre
fica implícita quando se fala em índios na
cidade: se vieram para os centros urbanos,
por que estas pessoas precisam de políticas
públicas específicas? Afinal, são populações
que saíram de suas terras de origem.
A antropóloga Lucia Rangel, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP),
rejeita a idéia de que as populações indígenas
são necessariamente vinculadas ao mundo
rural. “Não importa onde eles vivem. São indígenas de qualquer maneira, falando ou não a
língua, tendo ou não religião, porque os laços
de parentesco é que de fato conferem a eles
vínculos de pertencimento. Eles sabem contar
as histórias de seus grupos, têm vínculos. Mas
o Estado trabalha com estereótipos, e muitos
deles, infelizmente, são fabricados pela antropologia. Quando só o que os indígenas têm
são os laços de parentesco, ninguém quer
reconhecê-los. Porque direitos indígenas são
justamente direitos que o Estado gostaria que
não existissem”, questiona Rangel.
“É necessário compreender primeiro que
esta demanda [por políticas públicas] é originária de um erro grande de estratégia de atenção
aos povos indígenas. No período da ditadura,
militares e especialistas diziam que no ano
2000 estaríamos desaparecidos ou integrados.
Mas o movimento cresce e centra forças na
demarcação. Ganhamos auto-estima, podemos
afirmar nossa identidade. A população deixa o
medo de lado”, afirma Jecinaldo Cabral, Sateré
Mawé, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
A liderança, no entanto, não acha que a
migração deva ser a solução para os problemas
das políticas públicas nas aldeias: “A Coiab
São Paulo
Atrás do espelho
Da janela do ônibus que vai da praça da Sé, centro de São Paulo, à favela Real
Parque, na zona Sul, dá pra notar a cidade mudando. À medida em que o ônibus se
afasta do centro, as calçadas vão ficando mais vazias, os pedestres mais arrumados,
os carros mais novos, os prédios mais espelhados. Da moderna avenida Berrini, é
só cruzar a ponte do Morumbi para chegar ao Real Parque.
Do lado esquerdo de quem chega à favela, a rua dá lugar a vielas apertadas que
levam aos barracos, morro acima. Em um destes barracos vivem Cícera Vieira do
Nascimento, Pankararu, seu marido José Carlos da Silva, e os três filhos do casal.
Crítico, José Carlos aponta para os prédios do conjunto habitacional Cingapura,
que se vêem da porta da sua casa. “Só arrumaram a parte da frente da favela. Só
fizeram esses prédios aqui para cobrir a favela. Para não ver o que está atrás. Esses
prédios são um espelho para quem passa de carro. E a gente se esconde atrás do
espelho”
Campo Grande
Gado - também na vida da cidade
A cozinha da família é embaixo da árvore. Ali, a avó termina de dar almoço às
crianças. O barraco de lona preta fica a poucos metros, e as outras casas da família
estão a três quarteirões, no bairro Jardinópolis, região industrial de Campo Grande
conhecida como Indubrasil. Os avós mudaram para perto dos filhos. Os homens da
família estão empregados na indústria de couro: o filho trabalha no corte, o cunhado
nas máquinas, o genro separa o couro da carne. Na casa da filha, o genro descansa na
rede do trabalho como “faqueiro”, no turno que vai das 5 da tarde às 5 da manhã, com
folga aos domingos. O frigorífico fica a dois quilômetros dali e dá pra ir de bicicleta.
O horário da noite é melhor, porque ganha adicional noturno.
“Falta trabalho lá em Lagoinha. Só tem no corte de cana. E tem que ficar de 60 a
90 dias fora, sem ver família, filhos. Não tem roça porque não tem terra pra roça. E a
que tem está muito cansada”, justifica o Sr. Paixão, do povo Terena, o avô.
Porto Alegre
Modelo de produção
apóia esta luta [dos indígenas em centros
urbanos], mas não queremos que todo mundo
venha para as cidades. Queremos terras indígenas onde possamos viver nossas culturas, tendo
saúde, educação, proteção territorial. A cidade
é triste: tem morte, bebedeira, prostituição”,
pondera.
Apesar dos riscos, a decisão de migrar é
parte da busca por necessidades que os indígenas passam a ter depois do contato com não
índios. Óleo, roupa, luz: tudo exige dinheiro.
Para trabalhar para ter dinheiro, há que estudar.
Mas estudar também custa. Requer roupas e
livros, sair da aldeia. Até os anos 90, quando
começaram a ser instaladas escolas indígenas
nas aldeias, o estudo formal estava vinculado
à saída - mesmo que temporária - da terra e do
convívio comunitário.
É o que conta Daniel Arcanho, do povo
Kokama. “Eu estudei na escola da missão em
Feijoal. Tingia saco de açúcar com jenipapo
para fazer farda, porque sem farda não estudava. E eu queria estudar, aprender coisa. Padre
dizia que ia apanhar quem falasse na língua.
Exército mandava matar pajé na aldeia. Nós viemos porque achamos bom ir para Manaus”.
No interior ou na cidade, o espaço Kaingang está dividido em três ambientes,
sempre articulados: o da moradia, o da coleta e manejo de recursos naturais e o da
comercialização e troca.
Durante seu mestrado em Ecologia, a bióloga Ana Elisa Freitas estudou a
ocupação do espaço pelos Kaingang, em Porto Alegre. Ela percebeu que o uso da
cidade respeita a mesma lógica utilizada nas terras indígenas. “O modelo produtivo
é o mesmo”, afirma.
Os espaços da troca são as feiras, no centro da cidade, endereço também dos
órgãos públicos, freqüentados para se exigir cumprimento de direitos - entre eles
o de expor e vender o artesanato, além dos relacionados à moradia, educação
diferenciada ou saúde.
O território da coleta de materiais para o artesanato abrange toda a bacia do
Rio Guaíba, o principal da cidade. E cada família maneja de 8 a 12 espaços de mata,
usados de forma rotativa, para que plantas possam crescer e voltar a serem coletadas.
Os lugares que os Kaingang escolhem para morar também não estão fora desta lógica.
O terreno que escolheram para ser comprado pela prefeitura, para a construção
da aldeia na Lomba do Pinheiro, fica em região alta da cidade, exatamente como a
aldeia que fica na entrada do Morro do Osso - área disputada entre os Kaingang e a
prefeitura da capital gaúcha.
Nas fotos: a
vizinhança
dos
Pankararu em
São Paulo, o
trabalho na
Associação
das Mulheres
do Alto
Rio Negro
(Amarn), em
Manaus, a
manutenção
do artesanato
Guarani em
Porto Alegre.
Não importa
onde eles
vivem. São
indígenas
e têm seus
direitos
Posso ser o que você é sem deixar de ser o que sou
Você sente falta da sua aldeia de origem?
“Para mim, estou dentro da aldeia. São os mesmos modos, os mesmos
costumes, a mesma língua, a mesma alimentação. Não muda muito. Muda
casa de alvenaria. Muda organização, higiene, outro modo de viver. Mas o que
a gente é está no sangue. A maioria das pessoas que vive aqui são parentes.
Os pequenos são gentis, tomam a bênção. Não é porque está na cidade que
vai agir diferente. Eu posso ser o que você é sem deixar de ser o que eu sou.”
Enio Metelo
Cacique da aldeia Marçal de Souza, conjunto habitacional inaugurado em 2000, em
Campo Grande, onde vivem 205 famílias, 1050 pessoas, em 135 casas.
Jun/Jul-2007
Índios na cidade
Povos reivindicam políticas; Estado esboça respostas
Repórter
A
antropóloga Graziella Reis de
Sant’anna estudou as associações
indígenas em Campo Grande durante seu mestrado e concluiu que,
por meio delas, os indígenas “buscavam garantir não só a possibilidade de manifestação
pública da diferença, mas também o acesso
a melhores condições de saúde, educação e
trabalho”, fazendo o diálogo com o Estado,
organizações não-governamentais (ONGs) e
com a sociedade em geral. “Eles enfrentam
as mesmas dificuldades sócio-econômicas
que as demais populações carentes da
cidade, com o agravante da discriminação.
Nesse sentido, as associações se tornaram
promotoras em potencial das demandas
econômicas”, afirma Graziella.
Nas cidades, as organizações se multiplicam. Em Manaus, a Associação das Mulheres
do Alto Rio Negro (Amarn) foi pioneira e
abriu espaço inclusive para articulações
nacionais, como a Coiab. Em Campo Grande,
por exemplo, há a Associação dos Feirantes
Indígenas, a Associação dos Moradores
do Bairro Marçal de Souza e o Grupo Te,
que promove a cultura Terena na cidade
formando jovens nas danças tradicionais.
A lista segue, mas a função das associações
é a mesma: ser representação, nos moldes
requeridos pela sociedade não indígena,
para o diálogo com o Estado.
Ação estatal
pontual e lenta
O poder público, por sua vez, foi construindo, a partir da pressão dos indígenas
organizados, espaços para receber e encaminhar as demandas. Lideranças conseguiram
que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa)
iniciasse o atendimento a algumas das comunidades urbanas, com a contratação de
agentes de saúde e enfermeiros.
Mas o planejamento de políticas públicas para os índios urbanos tem recaído,
pelo menos por enquanto, sobre estados e
municípios. A Fundação Nacional do Índio
(Funai), órgão federal responsável pelas
políticas de terra, habitação e assistência aos
povos indígenas, caminha a passos lentos na
relação com os povos nas cidades.
O foco principal de trabalho da Funai
são os índios aldeados. De acordo com sua
assessoria de imprensa, o órgão trabalha
com cerca de 450 mil indígenas que vivem
no meio rural no Brasil, apesar da população total de 734 mil pessoas identificada
pelo IBGE.
Entretanto, o atual presidente da Funai,
Márcio Meira, promete dedicação ao tema.
Jun/Jul-2007 10 “Há necessidade de o Estado atender a esta
Nas cidades, as organizações indígenas se multiplicam. Por meio delas, os povos
buscam melhores condições de vida e possibilidade de se manifestarem
Encontro de Formação Indígena/Tekoha Pyaú/Pico do Jaraguá/SP – Foto: Beatriz Maestri
Priscila D. Carvalho
Foto: Priscila D. Carvalho
A transformação dos direitos em políticas públicas é, ainda hoje, a principal bandeira dos movimentos indígenas.
população [indígena nas cidades] com políticas públicas. A Funai atende em parte, mas
ainda é muito pouco. Este é um dado novo na
realidade indígena brasileira”, afirma. “Isto
é um plano ainda, mas já existem algumas
coisas pontuais começadas. Há trabalho com
municípios em relação à moradia: a Funai
atuou na construção da nova aldeia urbana
em Campo Grande”.
A questão dos índios nas cidades só
passou a ser pauta na Funai oficialmente
depois da 1ª Conferência Nacional dos Povos
Indígenas, em abril de 2006. Os delegados incluíram um capítulo sobre “índios urbanos”
no documento final do encontro.
A gestão anterior, de Mércio Gomes, não
realizou, no entanto, nenhuma movimentação para o encaminhamento dessas decisões.
A Funai continua agindo pontualmente
- como a contribuição para a alimentação
dos expositores na feira de artesanato
indígena Pú Kaa, em Manaus. As ações são
definidas pelas administrações regionais,
sem orientação nacional, e não vão além do
“acompanhamento”.
Ocupando o espaço deixado pelo governo federal, o município de Porto Alegre
criou, dentro da Secretaria de Direitos
Humanos, um Núcleo de Políticas Públicas
para Povos Indígenas, com o propósito de
reunir as secretarias do poder público municipal e representantes Kaingang e Guarani
e articular políticas municipais voltadas a
esta população.
São Paulo tem, desde 2004, um Conselho Estadual Indígena, vinculado à Secretaria
de Planejamento, com a função de articular
as políticas públicas. Campo Grande tem,
desde 2005, um Conselho Municipal de Direitos e Defesa dos Povos Indígenas, formado
por 9 povos e 11 organizações indígenas, e
responsável por ouvir demandas dos povos
e encaminhá-las ao prefeito. Nas reuniões
mensais, o Conselho define as prioridades,
mas a decisão sobre as políticas ainda fica
nas mãos do prefeito.
Sem uma linha nacional para as políticas, ainda não existe uma referência de
atendimento governamental às demandas.
E os povos nas cidades dependem da abertura que conseguem em cada governo para
políticas públicas estruturadas que possam
atender a suas necessidades, particulares e
universais.
Encontro reúne os Apurinã que vivem em cidades do Amazonas
J. Rosha
Repórter
E
ntre os dias 25 e 27 de maio, em
Manaus, cerca de 60 pessoas do
povo Apurinã de Manaus e Manacapuru, encontraram-se para reviver a
vida como acontece nas aldeias.
O Encontro Apurinã reuniu os indígenas
que vivem em bairros da periferia, às vezes,
sem saber da existência dos demais. Com
mais de 70 anos, Eduardo Galdinbo da Silva,
que mora em Manacapuru – a 80 km de
Manaus - encontrou sobrinhas que só havia
visto quando crianças. Esses encontros não
são tão fáceis. Mas, há esperança.
No bairro de Valparaíso, de Manaus, vive
uma das mais antigas famílias Apurinã. Ali,
eles construíram um pequeno salão onde
se reúnem e que pode ser um centro para
os demais. Eles planejam se encontrar para
aprender a língua, fabricar artesanato e viver
os rituais do povo.
Porém, nos próximos dias enfrentarão
outro problema. As famílias moram perto
de um pequeno igarapé que transborda quando chove, alagando parte das
casas.
O governo do Amazonas planeja retirar
os moradores do local. As famílias Apurinã
querem que o governo se comprometa a
mantê-las próximas.
Identidade – Por muito tempo, os
indígenas que migraram para as cidades
escondiam sua origem por causa do preconceito. Agora, estão ocupando espaços
e expondo a realidade em que vivem no
mundo urbano.
Para os Apurinã, tem sido difícil
serem reconhecidos pelo poder público. “Quando vamos a um hospital, nos
mandam para a Funai porque dizem
que é o órgão que deve assistir aos
índios”, diz Elizabeth Apurinã. “Nossa
maior dificuldade é fazer com que
nossos direitos sejam reconhecidos
e respeitados pelo poder público”,
acrescenta.
CNPI: Primeira reunião
agenda debate sobre Estatuto
dos Povos Indígenas
Fotos: Cimi NE/Equipe Pernambuco
Política indigenista
País
Afora
Lideranças não aceitam discutir, fora do Estatuto,
mineração em terras indígenas
E
fundo dirigido pela Funai e somente a outra
metade seria controlada por um comitê
gestor em que a comunidade teria assento,
junto com outras instituições que não estão
definidas no anteprojeto. Portanto, apenas
1,5% dos recursos obtidos com a mineração
seriam destinados diretamente ao grupo
indígena atingido – mas, mesmo assim, não
seriam controlados diretamente por ele. O
licenciamento ambiental seria feito só no
final das consultas e estudos sobre o pedido
de exploração mineraria. Isto pode aumentar
a pressão das empresas sobre o licenciamento,
quando o processo administrativo já estivesse
quase terminado.
Funcionamento da CNPI
Cada uma das nove subcomissões criadas
é composta por seis pessoas. Os temas foram
divididos entre: 1 - Elaboração do anteprojeto
de lei do Conselho Nacional de Política Indigenista; 2 - Justiça, Segurança e Cidadania, 3
- Terras Indígenas; 4 - Etno-desenvolvimento,
5- Subcomissão Legislativa (incluindo temas
como Estatuto, mineração, gestão, e outros
relativos à regulamentação da CF), 6 - Saúde
Indígena, 7 - Educação Escolar Indígena, 8 Subcomissão de Gênero, Infância e Juventude,
9 - Articulação de Políticas.
A Comissão, que se reunirá a cada 2
meses, é formada por 20 lideranças de todas
as regiões do País, sendo que 10 têm direito
a voz e voto e outras 10 apenas a voz; há 13
representantes de ministérios com ações
voltadas a povos indígenas e duas entidades
indigenistas, atualmente o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Centro de Trabalho
Indigenista (CTI).
Conquista do movimento indígena, que
busca espaços para participar das definições
sobre as linhas e prioridades da política indigenista no País, a CNPI foi instalada em 19 de
abril de 2007, pelo Ministério da Justiça.
Foto: Issac Amorim/ACS/MJ
m sua primeira reunião, realizada
nos dias 4 e 5 de junho, a Comissão
Nacional de Política Indigenista
(CNPI) definiu a forma de trabalho do
grupo – que terá nove subcomissões temáticas
– e agendou reunião extra para os dias 12 e 13
de julho. Nestes dias, serão discutidas questões
sobre saúde, violência e o Estatuto dos Povos
Indígenas. Dentro deste último tema, será pautado o projeto de mineração apresentado ao
grupo pelo governo nesta primeira reunião.
O presidente da Comissão, Márcio Meira
- que também é o presidente da Fundação
Nacional do Índio (Funai), propôs que o
tema da mineração fosse pauta na próxima
reunião. As lideranças indígenas, no entanto,
não aceitaram.
Os indígenas e as entidades não governamentais da Comissão avaliam que o Estatuto
dos Povos Indígenas pode vir a ser o marco
regulatório de um conjunto integrado de
políticas públicas de saúde, educação, meio
ambiente e segurança alimentar, entre outros.
A aprovação em separado de temas polêmicos
e de interesse de grandes empresas, como
mineração e recursos genéticos, poderia
fazer com que a regulamentação de assuntos
de interesse dos povos indígenas continue
parada no Congresso, onde a proposta do
Estatuto está há 14 anos.
O anteprojeto de lei sobre mineração,
apresentado pelo governo, prevê que a exploração nas áreas indígenas poderá ser feita
por empresas, mediante licitação pública, pela
própria comunidade ou por uma sociedade
entre os dois. De acordo com a proposta,
as comunidades afetadas poderiam impor
condições aos empreendimentos, mas não
poderiam rejeitá-los. Apenas a Funai teria a
prerrogativa.
Além disso, 3% do faturamento das
atividades seriam revertidos para os povos
indígenas. Metade do recurso iria para um
Lideranças indígenas (à frente) e o presidente da Funai (à direita) na reunião da CNPI
Povo Xukuru do Ororubá realiza
sua 7ª Assembléia em Pernambuco
Reinventando o passado e revivendo seus anciãos, povo
constrói o futuro com participação dos jovens
Roberto Saraiva e Otto Mendes
Equipe Pernambuco CIMI-NE
C
om o tema “Terra: reviver a cultura, a partilha e os Encantados”,
o povo Xukuru realizou sua 7ª
Assembléia, entre 17 e 19 de
maio, na aldeia Capim de Planta, na região
da Ribeira, em Pernambuco. No dia 20 de
maio reviveu e homenageou o cacique
Xicão, mártir do povo e um dos símbolos
da luta indígena.
Reviver significa buscar, por meio
da memória dos anciãos, coisas vividas
no passado que são consonantes com o
projeto de futuro. O projeto, construído
a cada assembléia, busca uma nova forma
de relação social, onde partilha, justeza e
austeridade são fundamentais para continuidade dos Xukuru enquanto povo. Os
Xukuru sabem que muitas coisas do passado podem ser reinventadas, dando sentido
e profundidade a sua identidade e as suas
relações políticas, sociais e econômicas,
que se fortalecem nestes eventos.
No início da assembléia, o pajé
Zequinha e outras lideranças religiosas
invocaram os encantados a participarem
do projeto de vida Xukuru. Em seguida,
Agnaldo, da aldeia Pé de Serra, fez um
resumo das assembléias passadas. Na
seqüência, foi falado da organização da sociedade brasileira e dos Xukuru. O cacique
Marcos analisou a conjuntura, incluindo
preocupações com mudanças climáticas,
desertificações e a transposição das águas
do rio São Francisco.
Um dos fortes momentos da assembléia foi o depoimento dos velhos, que
falaram da vida de antigamente, de como
partilhavam os bens, como nasciam, como
eram enterrados, como trabalhavam e
trocavam mercadorias. Os depoimentos,
ricos em detalhes, deixaram a platéia
em silêncio. Os muitos jovens Xukuru
Na
assembléia,
os Xukuru
debateram
projeto
do povo,
valorizando
as histórias
dos anciãos
e suas
tradições.
O cacique
Xicão Xukuru,
plantado há
nove anos, foi
homenageado
presentes puderam aprender com os mais
velhos e, assim, participar mais da vida
política do povo.
No dia 19, os outros povos presentes
(Potiguara, Kambiwá, Pipipã, Atikum e
Truká) se apresentaram e houve uma homenagem dos Xukuru-Kariri para os Xukuru,
lembrando Xicão e Maninha Xukuru-Kariri e
consagrando a aliança entre os dois povos. O
Pajé Antônio Celestino, na sua simplicidade,
falou do movimento indígena no Nordeste
e de como Xicão e sua filha Maninha foram
importantes para as conquistas.
Para encerrar o evento, foram plantadas 1500 mudas de plantas nativas e
frutíferas, marcando o inicio do reflorestamento das aldeias Xukuru.
11 Jun/Jul-2007
Povos do Xingu dizem não à hidrelétrica de Belo Monte
País
Afora
Evento informa sobre o projeto e articula povos da região na luta contra as barragens
E
Cimi Norte II
nfrentar o governo contra a construção do Complexo Hidrelétrico de
Belo Monte. Essa foi a decisão dos
170 índios de 14 povos do rio Xingu,
além de três povos de Tocantins e Rondônia,
reunidos no Encontro dos Povos do Xingu,
entre 3 e 6 de junho, em Altamira, Pará.
O Encontro foi idéia dos indígenas, que
se queixavam da presença da Eletronorte no
Xingu medindo suas bóias espalhadas pelo
rio, mas sem ir às aldeias dar informações
sobre Belo Monte. A proposta do evento foi
reunir, informar e articular os povos indígenas do Xingu para entender e enfrentar a
questão das barragens no Xingu.
No evento, explicou-se o que é Belo
Monte, seus efeitos sobre os povos indígenas e outras populações tradicionais, a
inviabilidade do Complexo e apresentou-se
alternativas. Diversos especialistas abordaram as questões, entre eles Tarcisio Feitosa
do Instituto Internacional de Educação do
Brasil e a antropóloga Jane Beltrão, da UFPA.
O advogado Paulo Guimarães, do Cimi, e
o Procurador da República Felício Pontes
trataram dos direitos dos povos indígenas
diante dos grandes projetos.
Representantes do Movimento dos
Atingidos por Barragens e do Movimento
de Juriti contra o Projeto ALCOA falaram
dos problemas causados por barragens.
Destacaram o descaso do governo federal
com as populações afetadas pelos projetos
e mostraram como resistem ao modelo
imposto pelo governo.
Um painel formado pelos indígenas
de Rondônia e Tocantins incentivou a luta
dos povos do Xingu. O governo trata os
povos destes estados, ameaçados pelas
O que é Belo Monte?
Que povos sofrerão
impactos?
Foto : Cimi Norte II
Claudemir Monteiro
A
Ato pela vida
do Xingu
encerrou
o evento.
À direita,
Dom Erwin
Krautler, Bispo
da Prelazia
do Xingu,
que apoiou o
Encontro
hidrelétricas do rio Madeira e de Estreito,
da mesma forma que age com os povos do
Pará, ou seja, com desinformação, sem escutar as populações atingidas, escondendo
informações sobre os impactos das obras
e estabelecendo um modelo de compensação para conseguir o consentimento dos
atingidos.
Cada povo presente definiu o que fazer
diante da questão Belo Monte. Entre outras
ações, decidiram: transmitir às aldeias as
informações recebidas neste encontro,
preparar cartilhas e filmes sobre o assunto,
convocar todos os Povos do Xingu e da
Amazônia para defender o rio Xingu e os rios
da Amazônia e, num encontro previsto para
os próximos meses, chamar o governo para
dizer não às barragens no Rio Xingu.
Os povos e os movimentos sociais presentes encerraram o Encontro caminhando
de Altamira à beira do Xingu. Dom Erwin
Krautler, Bispo do Xingu e presidente do
Cimi, participou do evento, promovido pelo
Cimi Norte II, com apoio da Prelazia do Xingu
e do Movimento pelo Desenvolvimento da
Transamazônica.
ntes, o Complexo Hidrelétrico de cinco
barragens no rio Xingu recebia o nome
de Kararaô. Os Kayapó reclamaram.
Virou Belo Monte. Pretende gerar 11.182
megawatts (MW) e alagar cerca de 400 Km2.
A barragem prevista para ser feita na
Volta Grande do Rio Xingu, caracterizado
por quedas d´água, exigirá a construção de
outras barragens. O complexo deve afetar os
povos Juruna, Araweté, Assurini, Parakanã,
Kararaô, Xikrin, Arara, Xipaia e Kuruaia. Sem
contar os povos isolados que sofrerão com
a cheia permanente ou a redução da vazão
da água. Esses povos somam cerca de 1.500
pessoas, vivendo em dez terras, num total de
5,3 milhões de hectares.
Altamira também será atingida por cheias
constantes. Lá, vivem cerca de 1.200 indígenas que pescam no rio Xingu. Além disso,
o rio regula os ciclos ecológico e climático
da região.
Na altura da Volta Grande, o rio deverá
secar no verão, impedindo o transporte
fluvial, principal meio de transporte dos
ribeirinhos e povos indígenas. E cerca de
800 famílias deverão ser remanejadas,
incluindo o povo Juruna do Pakisamba. Vale
ressaltar que estes são impactos de apenas
uma barragem.
Também se questiona a real necessidade
de tantas barragens na Amazônia. Segundo
o geógrafo Reinaldo Costa do INPA (Instituto
Nacional de Pesquisas na Amazônia) e o
promotor de Justiça do Ministério Público
Estadual Raimundo Moraes esse mega-projeto virá exclusivamente para beneficiar a Vale
do Rio Doce e o Projeto Alcoa, localizado em
Juruti, no Pará.
Justiça autoriza início das obras da Hidrelétrica de Estreito, no Tocantins
N
o dia 30 de maio, a Justiça decidiu
que as obras da Hidrelétrica de
Estreito, no Tocantins, poderiam
iniciar. O Tribunal Regional Federal
(TRF) da 1a Região suspendeu uma decisão
liminar da Justiça Federal do Maranhão que
havia determinado, em abril, a paralisação
das obras. A decisão do TRF ocorreu
dois dias após uma audiência pública em
Palmas, capital do estado, discutir esta
questão.
As obras estavam paralisadas por uma
decisão favorável à ação, movida pelo
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
e pela Associação de Desenvolvimento e
Preservação dos Rios Araguaia e Tocantins
(Adprato), que pede novos estudos de
Jun/Jul-2007 12 impacto socioambiental. O atual estudo de
Foto: Cimi GO/TO
Em Palmas, movimentos sociais e povos do Tocantins reafirmam o não à barragem
Povos do Tocantins continuam lutando contra a Hidrelétrica. Acima, ato durante o Abril Indígena
impacto ambiental (EIA) não considerou as
comunidades indígenas que serão afetadas
pela hidrelétrica.
Entretanto, a decisão do TRF considerou
os aspectos políticos do pedido de autorização feito pela Advocacia Geral da União. O
Tribunal alegou que a obra seria fundamental
para evitar uma crise de energia no país.
Mais debates
Dois dias antes da decisão do TRF, aconteceu em Palmas uma audiência pública para
discutir a Hidrelétrica de Estreito e as obras
de irrigação da Fazenda Dois Rios, próximo à
ilha do Bananal. As duas obras têm impactos
em terras indígenas.
A audiência foi realizada pela Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da Câmara
dos Deputados. Os indígenas presentes
solicitaram ao presidente da Comissão, deputado Luiz Couto, que uma audiência sobre
este tema seja realizada em Brasília, com a
presença de presidentes do Ibama, Agência
Nacional de Energia Elétrica, Ministério das
Minas e Energia, entre outros órgãos.
No evento de Palmas, as lideranças indígenas dos povos Apinajé,Krahô, Krahô-Kanela, Javaé, Karajá Xambioá, Xerente e Karajá
reafirmaram que não querem a construção
da hidrelétrica.
Foram
diplomados
372 indígenas
N
o dia 26 de abril, 372 indígenas
de povos que vivem em Roraima receberam o diploma do
curso de Educação Profissional
Básica para Agentes Indígenas de Saúde
(AIS). O processo de formação dos
indígenas já se arrastava por quase
uma década.
Os indígenas certificados atuam
nos postos de saúde de mais de 200
aldeias do Distrito Sanitário Leste
(DSL) do estado, atendendo uma população superior a 34 mil indígenas das
etnias Makuxi, Wapichana,Ingarikó,
Taurepang, Sapará, Patamona e WaiWai. A atuação dos agentes tem foco
na promoção da saúde e prevenção
de doenças por meio da Educação em
Saúde, implantada pelo Ministério
da Saúde.
Clóvis Ambrósio (Wapichana), coordenador do DSL - Roraima, destaca
o esforço do movimento indígena e a
dedicação para concretizar a criação do
Distrito Sanitário Leste e fazer a formatura dos agentes. “Estou muito feliz e
sei que os agentes terão a possibilidade
de continuar a sua formação dentro
do trabalho que estão realizando nas
comunidades”, disse.
A formação da maior turma de AIS
do Brasil foi resultado de uma parceria
entre o Conselho Indígena de Roraima, a Fundação Nacional de Saúde e
a Escola Técnica de Saúde do SUS. A
formatura reuniu mais de mil pessoas,
entre formandos e convidados, em Boa
Vista, capital de Roraima.
A conclusão do curso foi um momento histórico para a saúde indígena,
além de consolidar a luta pelo reconhecimento profissional de uma categoria
diferente do Agente Comunitário de
Saúde. Além de formandos e autoridades, a solenidade contou com a
presença de pajés, artesãos, músicos e
lideranças indígenas de todo o estado.
(Conselho Indígena de Roraima)
Fotos: Cimi Norte II
Roraima
certifica
maior turma
de Agentes
Indígenas de
Saúde do Brasil
País
Afora
Povo Tembé aciona o governo e pede
indenizações por danos ambientais
Governo foi omisso na proteção da terra do povo, que está 70% desmatada
Claudemir Monteiro
Cimi Norte II
H
á três meses corre na Justiça Federal
uma ação contra o governo brasileiro pedindo indenização pelos
danos ambientais na terra do povo
Tembé, que vive no Pará. A ação, movida
pelo próprio povo, representa a revolta
dos Tembé diante da omissão e, às vezes,
concordância do governo com os invasores
de suas terras.
Os Tembé do Alto Rio Guamá vivem a
250 quilômetros de Belém, próximos ao
município de Capitão Poço, no centro do
Pará. Nos últimos 20 anos, intensificaram
as invasões de seu território e a destruição
dos recursos naturais (ver quadro). Diante da
demora do governo em retirar os invasores
e reprimir os madeireiros e plantadores de
maconha, os Tembé, por meio do cacique
da Aldeia Sede, Ednaldo, entraram com uma
ação indenizatória contra a União, pedindo
R$ 20 milhões por danos ambientais. O
recurso será usado para recuperar florestas
e em projetos que ajudem na economia
indígena.
A ação tramita na 5ª Vara da Justiça
Federal do Pará. No dia 13 de junho, o Ministério Público Federal do Pará, que havia
pedido vistas do processo, pediu para atuar
na ação como fiscal da lei. O MPF aguarda a
decisão do juiz responsável.
Cerca de 70% do território Tembé está
desmatado, formado por fazendas e capoeiras que precisam de muito tempo para
se recuperar. Em 2005, a Polícia Federal e o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) identificaram 28 madeireiras e serrarias
na área. Hoje, ainda há áreas com conflitos,
numa delas, dentre os invasores, há plantadores de maconha e madeireiros armados
que enfrentam até a Polícia Federal. É por
conta desta destruição que os Tembé exigem
indenização do governo federal.
Segundo Ednaldo, que também é Pre-
sidente da Associação do Grupo Tembé das
Aldeias Sede e Ituaçu, antes de entrarem com
a ação, os Tembé propuseram ao MPF que
a Polícia fizesse uma ação para reprimir os
madeireiros invasores. O cacique denunciou
o desmatamento e passou a sofrer ameaças
de morte. Não houve reação do governo
ou do MPF para coibir as invasões. “Fiquei
revoltado. Eu e o nosso povo.” Então entraram com a ação, apoiados pelo advogado
Mário Davi.
Ednaldo acredita que, por meio de levantamento ambiental, uma perícia identificará
um dano de cerca de 20 milhões de reais.
“Os ganhos da ação não são para beneficiar
uma aldeia ou outra, mas todo o território
do rio Guamá ao rio Gurupi”, afirma.
O cacique disse que a Funai se manteve
sem ação em relação ao processo, sugerindo
“que não vai dar em nada”. Também não
houve manifestação do MPF. “Pode ser que
não se consiga nada. Mas o governo vai
prestar mais atenção nas terras indígenas
e pensar em ações para defender as áreas.
Depois desta ação, à toa não ficaremos.”,
crê Ednaldo.
Estado não
cumpriu sua
função de
proteger
a área de
madeireiros e
fazendeiros.
O cacique
Ednaldo
(foto) crê
que a ação
pode fazer o
governo atuar
melhor
Histórico da invasão na terra Tembé
Década de 1960
Serviço de Proteção ao Índio (SPI)
incentiva a produção agrícola de posseiros,
oficializando a invasão.
1976
A Funai cede ao fazendeiro Mejer
Kabastinick parte da terra. Ele deveria
abrir estradas e impedir a entrada de novos
invasores. No entanto, milhares de famílias
ocuparam a terra, incentivadas pelo fazendeiro, por madeireiros e políticos.
Década de 1980
A Funai, em segredo, tenta criar colônias indígenas de 200 hectares para cada
índio, liberando o resto para invasores.
Lideranças indígenas, com apoio do Cimi,
denunciam a proposta, que não vingou.
A elite local tenta criar o município
de Nova Esperança do Piriá, com metade
da sede dentro da terra Tembé. Os Tembé
não aceitam.
O MPF cria uma comissão interinstitucional com Incra, Funai, Polícia Federal,
indígenas e sindicatos.
1993
Os Tembé começam a retirar os posseiros, apreendendo tratores e toras de
madeiras retiradas ilegalmente.
1996
A terra é homologada e registrada.
Setenta e sete índios Tembé são
aprisionados por posseiros no município
de Garrafão do Norte. Diante do conflito,
a Comissão inicia a retirada das famílias
com indenizações e assentamentos em
outras terras.
2000
Iniciou a retirada de famílias de uma
das áreas de conflito, Bacaba, onde os índios
passaram a viver. Outras famílias passam a
sair da área.
13 Jun/Jul-2007
O parentesco
dos Karipuna
Foto: Nello Rufaldi
A vida dos povos
Para casar, povo segue regras tradicionais que mantém
grupo unido e permitem a relação com não-índios
Cimi Norte II*
A
No povo
Karipuna, o
casamento
busca
equilibrar
dois
princípios:
não deixar
o sangue
espalhar e
não viver
isolados
Jun/Jul-2007
história do povo Karipuna é
quase desconhecida. Mas o nome
Karipuna é citado há muito tempo
na região do rio Oiapoque, em
todo o norte Amazônico e na região das
Guianas. O povo se formou a partir de
remanescentes de populações de diversos
lugares. Vêm das aldeias Palikur e Galibi
Marworno, da região da Uaça (Amapá), do
litoral paraense, dos povos que viviam no
que se tornaram as colônias inglesas e da
Guiana Francesa.
O termo Karipuna é usado como autodenominação que indica uma identidade de
índios misturados.
A descendência Karipuna
é dada aos filhos através da
linha masculina. O parentesco
no povo também reconhece
que um grupo de famílias
– uma parentela - compartilha do mesmo sangue, que
não deve se espalhar. Este
princípio leva a alianças entre
famílias do mesmo grupo de
parentes.
No entanto, esses casamentos, somados ao ideal de
viver isolados na companhia
dos parentes, são vistos de
forma negativa pelos Karipuna. Isto gera famílias extremamente fechadas em si mesmas, que não
fazem acordos com outras famílias.
Dessa forma, os princípios de casamentos dentro do grupo de famílias e
de autonomia do grupo local precisam
ser equilibrados por um outro princípio
também valorizado: estabelecer alianças
com o exterior. Esse princípio motiva os
casamentos, muito freqüentes, dos Karipuna com pessoas de outros povos indígenas,
negros, ribeirinhos e habitantes das cidades
vizinhas.
Portanto, o casamento Karipuna busca
equilibrar dois princípios: não deixar o sangue espalhar (que gera casamentos dentro da
parentela) e não viver isolados (que motiva
14 as uniões para fora). Desta forma, as uniões
Fotos: Clifford D´Souza
Clifford D´Souza
com pessoas não-Karipuna não representam
exceções à regra, mas são a condição da
manutenção dos padrões de casamento e
habitação Karipuna.
A residência do novo casal é preferencialmente na casa da família da noiva.
Tratando-se de casamentos com gente de
fora da parentela, na maior parte com outros
povos, dois arranjos são possíveis:
u o cônjuge Karipuna sai das aldeias
para morar na aldeia ou cidade da(o)
esposa(o), mas mantém laços de cooperação
com a família de origem. Os laços podem ser
acionados em caso de festas nas aldeias, de
tratamento de saúde em aldeias não-karipuna ou cidades vizinhas, de venda de produtos
e comércio e outros.
Informação geral
u o cônjuge de fora passa a viver nas
aldeias Karipuna. Há estratégias para ‘consanguinizar’ o cônjuge de fora: lembrança
de alianças já realizadas por antepassados
das duas famílias (geralmente usada em casamentos entre Karipuna e Galibi-Marworno);
realização de novas alianças com familiares do
cônjuge, que são atraídos para a nova aldeia;
inclusão do cônjuge em redes de trabalho e
cooperação, que o tornam Karipuna.
Casamentos com não-índios acontecem
com os que trabalham na aldeia, geralmente
professores, mas em geral não são bem
sucedidos. Os não-índios devem respeitar a
lei local e obedecer ao sogro.
Muitas famílias Karipuna ainda vivem
segundo o padrão tradicional: os homens
u
Atualmente 1937 pessoas vivam nas
aldeias Karipuna, na região do vale
dor Rio Uaça, município de Oiapoque,
extremo norte do estado do Amapá.
u
Há três terras indígenas contínuas,
demarcadas e homologadas: as terras
indígenas do Uaça (470.164 hectares),
Juminá (41.602 hectares), e Galibi
(6.689 hectares).
u
O estado do Amapá é o único
que tem todas as terras indígenas
demarcadas e homologadas, conforme
a reivindicação dos índios.
após o casamento passam a viver na casa
dos pais de suas esposas durante dois ou
três anos, para consolidar o casamento,
geralmente com o nascimento de um ou
dois filhos. Tempo, também, para o jovem
marido reunir o material necessário para a
construção de uma nova casa.
Os casamentos são feitos perante o
cacique e membros do Conselho. São considerados consumados depois que nasce a
primeira filha ou filho. Só mais tarde é que
casam na igreja. Há também um tribunal que
escuta as pessoas quando há problemas entre os casais e que decide sobre separações
e obrigações.
(*A partir do relatório do Curso de Formação
Básico do Cimi – Etapa II – 2006)
Homenagem
Resenha
Brasil perde um
de seus maiores
indigenistas
Aos 77 anos, falece o antropólogo
Carlos de Araújo Moreira Neto
F
aleceu, na madrugada do dia 15 de junho, o
antropólogo e etnólogo Carlos de Araújo Moreira
Neto, aos 77 anos. Moreira Neto trabalhava com
a questão indígena desde 1953, quando começou
seus estudos, sob influência de Darcy Ribeiro, Curt Nimuendaju e Herbert Baldus, grandes referências da antropologia
brasileira.
Moreira Neto foi diretor do Museu do Índio, trabalhou
para recuperar a história dos povos indígenas e escreveu
diversos livros, dentre esses, merecem destaque as obras
Índios da Amazônia, de maioria a minoria e O Índio e a
Ordem Imperial.
Esta última obra é a tese de doutorado de Moreira
Neto, defendida no início da década de 1970. A obra
só foi publicada 40 anos depois, mas antes disso já era
importante referência. O livro é uma análise da política
imperial em que se pode avaliar as causas e responsabilidades do desaparecimento de inúmeros povos indígenas,
sendo um dos únicos estudos sobre política indigenista
daquela época.
Outra grande contribuição de Moreira Neto para o
indigenismo brasileiro foi o trabalho de busca e preservação
dos documentos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). No
final da década de 1960, após um incêndio que destruiu
boa parte do arquivo do órgão em Brasília, Moreira Neto,
viajou por diversos estados brasileiros reunindo materiais
históricos guardados nas sedes regionais do SPI. Em alguns
lugares, documentos chegaram a ser vendidos como papéis
velhos.
Tendo trabalhado no antigo Serviço de Proteção ao Índio
(SPI), Moreira Neto sonhou com uma Fundação Nacional do
Índio diferente. Achava que a Funai daria um passo além do
que havia sido a política indigenista oficial.
O Conselho Indigenista Missionário, lembrando a importância da obra de Moreira Neto, lamenta a perda deste
grande defensor dos povos indígenas.
Introdução à Teologia da Missão
A
idéia que norteou a Editora
Vozes, em parceria com o Instituto Teológico Franciscano
(ITF) de Petrópolis para a criação da Coleção foi o interesse em auxiliar os inúmeros alunos e professores
dos Cursos de Ciências Religiosas, de
Teologia para Leigos e até mesmo dos
cursos institucionais de Teologia. Visam
a importância de se criar uma reflexão
acadêmica devidamente fundamentada, mas sem perder o público-alvo:
todos os homens e todas as mulheres
que buscam dar razões à própria fé
através do saber teológico. Dentre as
várias matérias teológicas que integram
um curso de Teologia o livro de Paulo
Suess introduz a Teologia da Missão,
que nasce no coração de uma Igreja
essencialmente missionária a serviço
dos pobres e dos outros.
Para se dar uma idéia do conteúdo da publicação, enumeramos os
capítulos em que o autor, com um
olhar universalmente contextualizado,
macroecumênico, transdisciplinar e
místico (capítulo 3), faz a leitura dos
textos bíblícos (capítulo 1), dos tratados
sistemáticos (capítulo 2), dos dados
históricos (capítulos 4,5 e 6) e dos dados
propriamente pastorais (capítulos 7 e 8).
No capítulo 1, o propósito é levantar
questões relevantes para uma teologia
fundamental da missão que emergem da
leitura dos escritos bíblicos. É a leitura
da Igreja, comunidade de interpretação,
que desde seus primórdios se compreendeu como herdeira legítima das
promessas de Israel.
territórios geográficos e fizeram
a Igreja descobrir sua natureza
missionária. Terminando essa
parte histórica temos no capítulo
6 a reconstrução de alguns traços
fundamentais do magistério
latino-americano vinculados à
essência missionária da Igreja e
documentado basicamente nos
documentos de Medellín, Puebla
e Santo Domingo.
No capítulo 7, o autor procura dar alguns impulsos para
refletir sobre o diálogo em
situação de pluralismo intercultural, macroecumênico e teológico-pastoral. No capítulo 8, são
Introdução à Teologia da Missão – Convocar
esclarecidos alguns pressupostos
e enviar: servos e testemunhas do Reino
para a ação missionária em suas
Paulo Suess – Editora Vozes, Petrópolis/RJ
diferentes ramificações entre
2007, 231p. Coleção Iniciação à Teologia
presença silenciosa e anúncio
No capítulo 2, o autor mostra o explícito nos confins do mundo e no
resultado de uma longa evolução e dis- meio de nós. Enfatiza que na pratica
cussão em torno do mistério da Santís- missionária há muitos zelos e atividasima Trindade, enquanto relevante para des, mas faltam, às vezes, método e
a missão. Resume esse mistério com as rumo, discernimentos e prioridades,
palavras de João: “Deus é amor”.
autocrítica e conversão.
Nos capítulos 4, 5 e 6, acompanhaNo final de cada capítulo enconmos o início da missão do cristianismo tramos um resumo, palavras-chave e
desde os grandes centros urbanos questões referentes ao texto, além de
do Império Romano; o trabalho dos uma preciosa bibliografia. Esta Teologia
missionários da Companhia de Jesus, da Missão, que é ao mesmo tempo um
nas Américas, os quais chegaram curso de missiologia fundamental, se
motivados pelo Evangelho, porém dirige fundamentalmente às comunidespreparados para o reconhecimento dades que estão vivendo, descobrindo
da alteridade, com a presença marcante ou aprofundando a sua natureza misde José de Anchieta; a importância do sionária, aos agentes de pastoral e aos
Concílio Vaticano II que iniciou proces- estudantes de missiologia.
sos que livraram a missão de fixações a
Leda Bosi – Sedoc
Convocação para XVII Assembléia do Cimi
Nos dias 30 de julho a 03 de agosto de 2007, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) realizará sua XVII
Assembléia Geral, no Centro de Formação Vicente Cañas, Jardim Ingá, município de Luziânia, Goiás. O tema
de nossa XVII Assembléia será “Economias e Territórios Indígenas: tradição, nova realidade, utopia”.
Além de comemorar seus 35 anos de fundação, o Cimi também estará deliberando sobre a criação formal,
dentro da estrutura da entidade, do Centro de Formação Vicente Cañas, instância destinada à formação e
capacitação de indígenas e missionárias(os) que atuam junto aos povos indígenas.
Assine o
Para fazer a sua assinatura, envie vale postal ou cheque nominal em favor de Cimi/Porantim:
(somente por meio de carta registrada)
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15 Jun/Jul-2007
Xicão vive, seu povo continua sua luta
F
rancisco de Assis Araújo, o Xicão Xukuru,
teve uma vida parecida com a de muitos
indígenas do Nordeste. Nascido em 1950,
em Canabrava (PE), viveu sua infância
nesta aldeia localizada nas terras Xukuru, então
bem reduzida.
Do antigo Aldeamento dos Tapuias Chururus,
da freguesia de Ararobá, dirigida pelos padres
Oratorianos (Informação geral de Pernambuco, 1749),
pouca coisa restava. Com a lei de 1757, do Marquês
de Pombal, o aldeamento tornou-se vila portuguesa,
recebendo o nome de Cimbres.
As terras passaram a ser invadidas por brasileiros
que iam ocupando a região. Nem a participação de
um grupo Xukuru na guerra do Paraguai, no século
19, garantiu a volta das terras indígenas, pois o
aldeamento era considerado extinto. Ficara para
os indígenas apenas a festa de Nossa Senhora das
Montanhas, chamada por eles Tamain, que ocorria
no dia 2 de julho, e as visitas, escondidas, que os
pajés faziam à Pedra do Rei do Ororubá.
A vida ficava cada vez mais difícil: parte da área
tornou-se cidade de Pesqueira e parte continuava
ocupada por posseiros e fazendeiros poderosos,
como os Brito e os Maciel. Por isso muitos jovens
tiveram que sair, como foi o caso de Xicão, que
partiu para São Paulo, onde se tornou motorista de
caminhão.
Apesar de ser uma profissão que dava para ganhar
algum dinheiro, era uma atividade muito estressante.
Com úlcera gástrica, voltou para a aldeia no início
dos anos 80, indo parar na Santa Casa, de Recife. Lá
encontrou outros indígenas, como João Tomaz, pajé
Pankararu, e Antônio Celestino, pajé do povo XukuruKariri, de Alagoas, que também estava internado. O
pajé Antônio disse para Xicão sair de lá, pois na aldeia
se curaria. Assim ocorreu. Não só ficou curado, como
também foi convencido de que deveria assumir a luta
para recuperar a terra Xukuru.
A luta começou e a área foi sendo recuperada. A
primeira retomada foi de Pedra D’Água, em novembro
de 1990, que os posseiros haviam arrendado
ilegalmente. Era uma área importante, pois ali se
encontrava a Pedra Sagrada do Reino de Ororubá.
Em fevereiro de 1992, retomaram a fazenda Caípe
de Baixo, invadida por um vereador do PFL que
criava gado.
A tensão aumentava. Como represália, foi
assassinado o filho do pajé, a mando do fazendeiro
Edvaldo de Farias. Revoltados, os Xukuru incendiaram
a sede da fazenda, aproveitando a fuga do fazendeiro.
Outras retomadas aconteceram em 1994 e 98.
Xicão preocupava-se também com a aldeia,
apoiando a escola e as festas tradicionais: “Nós
podemos fazer nossa viagem eterna, dizia ele,
mas nossos filhos e nossos netos precisam viver
nesta terra, e temos que prepará-los para dar este
seguimento”.
Em 1995 foi assassinado o advogado defensor
dos índios, Dr. Geraldo Rolim da Mota Filho. A tensão
aumentava e Xicão também ficou jurado de morte.
Algum dia antes de morrer, num ato contra
a violência na área, declarou: “Sou ameaçado de
morte e pode ter político atrás disso. (...) Estão
querendo fazer comigo o mesmo que fizeram com
Antônio Conselheiro e com Che Guevara. Se este
for meu destino, não vou recuar. Não vou guardar
ódio de ninguém.”
No dia 20 de maio de 1998,
quando se encontrava em
Pesqueira, Xicão tombou,
assassinado por um
pistoleiro a mando
de fazendeiros da
região, que formaram
um consórcio para
financiar este crime.
Sua mensagem foi
retomada pelo pajé de seu povo, pela
liderança forte de Zenilda, sua esposa, e
confirmada por seu filho, Marquinhos, atual cacique,
apoiado pelas lideranças das 24 aldeias Xukuru. A
luta de Xicão continua inspirando a luta de todos os
povos indígenas do Brasil.
APOIADORES
Hoje, o 20 de maio é uma data de referência para
a luta dos povos indígenas do nordeste.
UNIÃO EUROPÉIA
Benedito Prezia
Jun/Jul-2007
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