Povos do Xingu dizem não à usina de Belo Monte Páginas 4 e 5 Página 5 ISSN 0102-0625 V Celam confirma caminhada da pastoral indígena Mulher Guarani faz artesanato em acampamento próximo de Porto Alegre (RS) – Foto: Priscila D. Carvalho Ano XXIX • N0 296 Brasília-DF • Junho/Julho - 2007 R$ 3,00 A vida na cidade Sem deixar de ser indígena, povos lutam por seus direitos também nas capitais Páginas 8 a 10 Opinião Demarcações e desintrusões demoram. Violência aumenta N o Pará, no inicio de junho, o Cacique Odair José Borari, coordenador do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita) foi espancado por quatro homens armados e amarrado. É o segundo atentado à liderança este ano. O primeiro ocorreu em fevereiro. Odair estava recebendo ameaças e o fato já havia sido denunciado à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal. Apesar dos constantes pedidos, a Fundação Nacional do Índio (Funai) não está encaminhando o processo de demarcação da terra da comunidade Borari. Com a demora, os conflitos na região se agravam. A demarcação da terra Raposa Serra do Sol, em Roraima, completou dois anos em abril de 2007. Até agora, a retirada dos ocupantes não índios não foi concluída. O grupo de cerca de 60 ocupantes que ainda não saíram tem perfil semelhante: são arrozeiros, garimpeiros e criadores de gado. Ou seja, pequenos produtores e posseiros aceitaram sair. Ficaram os grandes. No dia 4 de junho, o Supremo Tribunal Federal negou mandado de segurança dos arrozeiros que questionavam a homologação. A vitória tranqüilizou as comunidades de Raposa. Porém também gerou reações violentas, que expõem a proximidade entre os ocupantes da terra e os políticos do estado de Roraima e, até mesmo, a ligação deles com os meios de comunicação local. Um carro dirigido por um tuxaua foi perseguido por uma caminhonete que levava o rizicultor Paulo César Quartiero, ex-prefeito de Pacaraima, Márcio Junqueira, deputado federal pelo PFL - atual DEM – e uma equipe de televisão do programa do deputado. No mesmo dia, ocorreram mais agressões aos indígenas, também com a presença de Quartiero: homens armados e encapuzados dispararam tiros, quebraram o barracão da comunidade, derramaram óleo diesel nos alimentos e levaram embora ferramentas. O Conselho Indígena de Roraima denunciou o fato ao Ministério Publico Federal em Roraima, à Policia Federal e à Secretaria Especial de Direitos Humanos. O deputado Márcio Junqueira também apresentou denúncia à Polícia Federal. E aproveitou para divulgar sua versão a colunistas de jornal de Brasília. Afirma que ele e Quartiero teriam sido agredidos e expulsos da terra indígena. No outro extremo do País, Dom Manoel João Francisco, bispo de Chapecó, Santa Catarina, vem recebendo ameaças de morte por ter apoiado as demarcações de terras dos povos Guarani, Kaingang e Xokleng. Neste estado, fazendeiros têm usado da imprensa e de manifestações públicas para divulgar sua postura contrária à demarcação das terras, não raro questionando a origem étnica e a presença das comunidades indígenas na região. Os fazendeiros, como era de se esperar, usam também pressão política em Brasília – e conseguem reuniões com o ministro da Justiça. Ao mesmo tempo, acionam o Poder Judiciário. Também em junho, duas decisões liminares, em sentidos opostos, respondem aos pedidos dos fazendeiros. Em 6 de junho, um juiz federal decidiu de forma contrária ao pedido de suspensão da portaria que declara os limites da terra Toldo Pinhal. Em 11 de junho, no entanto, portaria que declara os limites da terra Toldo Pinhal foi suspensa por liminar de um juiz federal da mesma Vara de Chapecó. Sem a portaria, não é possível a Funai realizar a demarcação física da terra e retirar os ocupantes não-índios. Ou seja, mais um processo de demarcação que caminhará a passos lentíssimos. Resta saber que tipo de conflito poderá vir de mais esta situação. Priscila D. Carvalho Repórter MARIOSAN Porantinadas Transposição e a máfia das obras O que o projeto de transposição do rio São Francisco tem em comum com a máfia das obras? A construtora Gautama. A principal organizadora do esquema de corrupção, que desviava dinheiro de obras públicas, comemorou a pré-qualificação para participar das obras da transposição na mesma semana que o esquema foi desmontado pela Polícia Federal. A empresa também pretendia participar da construção das hidrelétricas do rio Madeira, em Roraima. No início de junho, as obras da transposição começaram (apesar dos impedimentos legais que ainda existem) apenas com o trabalho do Exército. Pelo visto, se as investigações às construtoras forem a fundo, o PAC de Lula vai depender da habilidade dos soldados com cimento e tijolo. Terra indígena? Faça as contas O presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) preparou um anteprojeto de lei para liberar as hidrelétricas “estratégicas” de licenciamento socioambiental. No projeto, ele sugere uma forma de identificar se, dentre as áreas afetadas pelas barragens, há alguma terra indígena. Diz o projeto: caso, em um ano, pelo menos 100 índios sejam vistos dentro de um círculo de 10 quilômetros, contado a partir do centro da barragem, a terra é considerada indígena. Por sorte, o projeto, que ignora a legislação indigenista, não recebeu muito apoio nem no governo. Mas, se algum antiindígena resolve levar a idéia a sério... Escolinha do professor Jobim Os fazendeiros do Mato Grosso do Sul tiveram uma aula especial na 43ª Expoagro (Exposição Agropecuária de Dourados). O expresidente do Supremo Federal Tribunal (STF), Nelson Jobim, falou sobre a questão indígena para agricultores que têm conflitos com os povos da região. Jobim tratou da história da legislação indígena, dando orientações gerais aos advogados de fazendeiros presentes. Não se sabe se, ao final do debate, ele distribuiu o cartão de seu próprio escritório, que tem experiência na questão. ISSN 0102-0625 Redação e Administração: Faça sua assinatura SDS - Ed. Venâncio III, sala 310 pela internet: (61) 3349-5274 CEP 70.393-902 - Brasília-DF adm.porantim@cimi.org.br Tel: (61) 2106-1650 Edição fechada em 22/06/2007 Revisão: Dom Erwin Kräutler Fax: (61) 2106-1651 Preços: Conselho DE REDAÇÃO Leda Bosi PRESIDENTE Publicação do Conselho Indigenista Missionário Caixa Postal 03.679 Antônio C. Queiroz Ass. anual:R$ 40,00 Impressão: (Cimi), organismo vinculado à Conferência CEP: 70.089-970 - Brasília-DF Benedito Prezia Paulo Maldos Ass. de apoio:R$ 60,00 Gráfica Teixeira Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). E-mail: editor.porantim@cimi.org.br Egon Heck Assessor Político (61) 3336-4040 Cimi Internet: www.cimi.org.br Nello Ruffaldi América latina: US$ 25,00 APOIADORES Marcy Picanço Registro nº 4, Paulo Guimarães Administração: Outros Países: US$ 40,00 EDITORA Paulo Maldos Port. 48.920, Dadir de Jesus Costa Paulo Suess RP 44458/SP Cartório do 2º Ofício UNIÃO EUROPÉIA de Registro Civil - Brasília Permitimos a reprodução de nossas matérias e artigos, desde que citada a fonte. As matérias assinadas são de responsabilidade de seus autores. Jun/Jul-2007 Na língua da nação indígena Sateré-Mawé, PORANTIM significa remo, arma, memória. Priscila D. Carvalho Editora RP 4604/02 DF Editoração eletrônica: Licurgo S. Botelho Raposa Serra do Sol e Jacaré de São Domingos: homologações valem Foto: Junhiti Nagazawa / STF Terras indígenas repórter A s homologações das terras Raposa Serra do Sol e Jacaré de São Domingos seguem valendo. O Supremo Tribunal Federal (STF) negou os Mandados de Segurança que questionavam os decretos presidenciais de homologação destas duas terras indígenas, localizadas em Roraima e na Paraíba. O julgamento aconteceu dia 4 de junho. No caso de Raposa Serra do Sol, a decisão significa que os arrozeiros devem sair da terra, homologada em abril de 2005. Para o Conselho Indígena de Roraima (CIR), a vitória no Supremo prova que a homologação da Raposa Serra do Sol obedeceu todos os ritos administrativos e jurídicos estabelecidos pela Constituição Brasileira. “As comunidades indígenas têm muito trabalho pela frente, recuperar a terra e de forma sustentável, investir nos projetos econômicos das comunidades.”, disse Dionito Makuxi, Coordenador-Geral do CIR. Para os Potiguara da terra Jacaré de São Domingos, a decisão significa que eles podem seguir vivendo na terra, que estava homologada, mas ainda não tinha sido registrada. As decisões são importantes também para outros povos no Brasil, porque este entendimento deverá ser adotado também em casos de questionamentos de homologações que ainda serão julgados, entre eles o da terra Nhande Ru Marangatu, no Mato Grosso do Sul. Os ministros do Supremo - a instância mais alta da Justiça no Brasil - avaliaram que o Mandado de Segurança não é o instrumento correto para o tipo de questionamento feito nestes casos. E também por isso negaram as ações. Mas os mesmos questionamentos poderão ainda ser feitos através de outras ações judiciais. Já existem outras ações no Supremo, que ainda precisam ser julgadas. Argumentos A decisão sobre Raposa foi unânime. A ação que foi julgada sustentava, em resumo, que a área homologada abarcava terras que já eram de posse dos fazendeiros desde o início do século passado e que, naquela época, não eram ocupadas por índios. Também defendia a competência do Congresso Nacional para decisões sobre demarcações Há quase 15, anos os Potiguara esperavam pelo julgamento de sua ação no STF. Acima, lideranças indígenas na sessão do Supremo de terras indígenas e a necessidade de pronunciamento do Conselho de Defesa Nacional sobre a homologação de terras em faixa de fronteira. A defesa da homologação foi feita por Grace Maria Mendonça, da Advocacia Geral da União. Ela questionou o argumento do direito de propriedade dos arrozeiros sobre a terra. “A ocupação é da década de 90”. Em sua ponderação, ela contrapôs o direito dos povos indígenas ao direito à propriedade. Os argumentos dos arrozeiros também não foram aceitos pelo ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo. Ele argumentou que cabe à União demarcar terras e que, ao fazer isto, ela cumpre determinação consti- tucional. Decidir sobre as demarcações não é, portanto, tarefa nem do Congresso nem do Conselho de Defesa Nacional. Jacaré de São Domingos Os ministros do Supremo negaram o Mandado de Segurança relacionado à terra Jacaré de São Domingos, por 6 votos a 2. Isto afasta a tese de que o decreto de homologação da terra prejudica outra ação judicial contra a sua homologação que tramita na primeira instância da Justiça Federal, em João Pessoa. Assim, o processo administrativo de demarcação de terras indígenas segue valendo, mesmo que existam processos judiciais questionando a demarcação. Raposa segue invadida por fazendeiros que agridem os indígenas D epois da homologação de Raposa Serra do Sol, em abril de 2005, 179 ocupantes não-índios aceitaram as indenizações e se retiraram. Outros 63 ocupantes permanecem na terra indígena: são sete arrozeiros, além de fazendeiros de gado e garimpeiros. O prazo para a saída deles venceu em 30 de abril de 2007. No início de maio, os arrozeiros e garimpeiros que ainda continuam na terra ganharam autorização para ficar ali, por uma liminar do STF. Mas, com a decisão do dia 4 de junho, volta a valer a determinação da Funai para a retirada dos não-índios. Se eles não saírem de forma pacífica, poderá sem empregada força policial. A Fundação Nacional do Índio (Funai) informa que já existe uma ação planejada, com a participação da Fundação, do Ibama, da Polícia Federal e do Exército, mas não diz a data, por questões de segurança. Os arrozeiros, apesar da homologação, seguem plantando – hoje também plantam soja e criam gado na área. E, para isso, contam com verbas de programas federais e estaduais de incentivo à produção. Foto: Arquivo Cimi Priscila D. Carvalho Foto: Alcino Joena STF mantém homologações, mas invasores não saem de Raposa “Sem isso, eles não conseguiriam custear suas despesas, que são altíssimas”, avalia Gonçalo Teixeira, administrador regional da Funai em Boa Vista. “A presença dos arrozeiros gera violência, ameaças. Só com a saída deles poderemos recuperar todo o nosso território, reconstruir roças, casas, sem sofrer pressões”, avalia Valter de Oliveira Makuxi, liderança do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Agressões No dia 17 de junho, um carro dirigido pelo Tuxaua Anselmo Dionísio Filho foi perseguido por uma caminhonete que levava o rizicultor Paulo César Quartiero (ex-prefeito de Pacaraima), Márcio Junqueira (Deputado Federal de Roraima) e uma equipe de televisão. Mais tarde, Quartiero e o ex-vice-prefeito Anísio Pedrosa foram até a comunidade Parawani. Entraram na área em uma caminhonete branca, observaram a situação e voltaram para a estrada, onde estavam dois caminhões. Em seguida, a caminhonete, seguida pelos caminhões, invadiu a comunidade. Homens aramados e encapuzados saíram dos veículos e começaram a cercar e ameaçar os indígenas. Fizeram alguns disparos. As pessoas correram assustadas e, até o dia 20 de junho, um jovem de 19 anos, que fugiu na confusão, ainda estava desaparecido. Os índios foram levados no caminhão e, sob insultos, foram largados na estrada alguns quilômetros depois da aldeia. Os agressores quebraram o barracão da comunidade, derramaram óleo diesel nos alimentos e levaram as ferramentas dos indígenas. O CIR denunciou o fato ao Ministério Publico Federal em Roraima, à Policia Federal e à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da Republica. Para o Conselho, este tipo de ataque acontece, pois, em Raposa, permanece o clima de impunidade e de terra sem-lei, causado pela omissão do Estado. Povos que vivem em Raposa lutam há décadas para tirar os invasores de suas terras. Ameaças e agressões sempre ocorreram Jun/Jul-2007 Nascer já é caminhar Foto: Vera Souza – Editora Santuário V Celam Paulo Suess Assessor Teológico do Cimi O enfoque dado à causa indígena na V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, rea­ lizada de 13 a 31 de maio de 2007 em Aparecida, São Paulo, e no documento final do evento não capta toda a riqueza e complexidade desta questão. A visão da realidade, a opção pelos pobres, os poucos, mas decisivos, parágrafos sobre as Comunidades Eclesiais de Base, o enfoque da questão da biodiversidade e da ecologia, o fio condutor do seguimento dos discípulos-missionários, a transversalidade da missão e alguns silêncios oferecem ainda muitos outros aspectos e desdobramentos que fazem do Documento de Aparecida um tapete colorido e políticopastoral de grande importância para as igrejas do continente. A opção pelos pobres, o enfoque na questão da ecologia e outros aspectos fazem do Documento de Aparecida um tapete colorido e político muito importante para as igrejas do continente Jun/Jul-2007 Foto: Maikel Marques Conferência de Aparecida confirma a caminhada da pastoral indígena O contexto: pluralismo cordial Foram setores eclesiais muito diferentes que se reuniram em Aparecida para traçar os caminhos da Igreja latino-americana. O setor “Remanescentes da Teologia da Libertação” colaborou com o setor “Bom Pastor”. O setor “Cúria Romana” estava geralmente mais ao lado do setor “Movimentos”, como “Legionários de Cristo”, “Opus Dei” e “Sodalício”, querendo fazer dos discursos papais um quinto evangelho, respaldados pela agência de notícias Aciprensa. No meio destes havia um grupo de “Navegantes independentes” que votava, conforme o caso, com um ou outro grupo. Nas votações, geralmente, apareciam dois blocos: os pastoralistas, com sua experiência contextual, e os doutrinários, com suas propostas pastoralmente mais distantes. Em muitas votações, a maioria dos votos foi dos pastoralistas, mas essa maioria nem sempre se refletiu no Documento de Aparecida (DA). Pois, se nas Conferências de Puebla e Santo Domingo atuava um D. Luciano Mendes, com sua santa prudência, agora, os redatores finais são, na maioria, pessoas trazidas de Roma, cuidadosamente escolhidas e informadas sobre determinados temas proibidos (neoliberalismo, reforma ministerial, Teologia Índia...) e com teologias que não passaram pela peneira das mediações históricas e antropológicas do lugar. Apesar do ar condicionado, que deixou muitos delegados com febre, o clima - num sentido mais amplo - foi bom no subterrâneo da Basílica de Aparecida, onde a Conferência se reuniu. Por fim, quase todos se disseram satisfeitos com o evento de Aparecida que foi além do DA. Do evento faziam parte, além da visita do Papa Bento XVI, os milhares de romeiros, a Tenda dos Mártires, o Seminário Latino-Americano de Teologia, a romaria das Comunidades Eclesiais de Base e muitos encontros na margem da V Conferência. Alguns bispos do setor mais progressista disseram, sem resignação: “Para que brigar por palavras, como Teologia da Libertação, se seus conteúdos, a opção pelos pobres, as CEBs, o protagonismo dos índios e afroamericanos e seu método ver-julgar-agir estão garantidos?”. Quem participou das articulações sabe do esforço, nem sempre bem-sucedido, necessário para que temas óbvios constassem no DA e para que avaliações caducadas saíssem dele. O texto: apoio à causa A questão indígena aparece mais explicitamente em dois lugares do DA: na análise da realidade e nas indicações pastorais. Em outras partes do texto, os povos indígenas e suas culturas são genericamente mencionados, em geral junto com os afrodescendentes, em afirmações de estima e apoio. O DA respalda os eixos principais da pastoral indígena do Cimi. O fio condutor do documento é o seguinte: (1) os povos indígenas têm uma história milenar e vivem atualmente numa situação em que sua vida está profundamente ameaçada; (2) nessa situação a Igreja dá todo seu apoio, sobretudo à defesa dos seus territórios e de sua identidade; (3) o apoio não se sobrepõe ao protagonismo dos próprios indígenas, mas o incentiva; (4) o trabalho específico da Igreja é a evangelização inculturada que inclui denúncia, anúncio e diálogo; (5) os povos indígenas vivem valores que podem ser considerados como o núcleo de um outro mundo possível Vida ameaçada A vida dos povos indígenas está ameaçada em sua existência física, cultural e espiritual. Seus modos de vida, sua identidade e projetos correm grandes perigos. Uns vivem em terras insuficientes, outros são expulsos de suas terras e vivem como migrantes, outros encontram seus territórios invadidos e degradados. A globalização ameaça a todos com suas mudanças culturais impostas. Os indígenas configuram uma nova categoria de pobres e excluídos entregues à marginalização sociocultural. Dessa situação emerge um grito dos povos indígenas que precisa ser ouvido por toda a América Latina. Defesa dos direitos e territórios A V Conferência se comprometeu com as igrejas locais a acompanhar os povos indígenas em suas lutas pelos seus direitos e cobrar das sociedades latino-americanas o respeito e o reconhecimento a sua alteridade. Em conseqüência do modelo econômico dominante e da devastação ecológica, muitos indígenas são hoje expulsos de suas terras e empurrados para a periferia das grandes cidades. Por isso, a defesa dos territórios dos povos indígenas faz parte do serviço à vida que os discípulos-missionários prestam em suas Igrejas ao Deus com rosto humano, sempre perto dos pobres e sofredores. Fotos: Pastoral Operária-SP Durante sua visita ao Brasil, o Papa Bento XVI recebeu uma carta da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) falando da situação dos povos no país. O documento foi entregue pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, no dia 10 de maio, numa audiência que Arns teve com o Papa. A carta fala da resistência dos povos a perseguições, invasões de territórios, assassinatos, epidemias e esterilização de mulheres indígenas, “num verdadeiro processo de genocídio”. Mas diz que, pela sua força e resistência, os povos indígenas voltaram a crescer. “Sempre mantivemos a luta pacífica e persistente por nossos direitos históricos e sempre contamos, nesta luta, com o apoio solidário da Igreja, de inúmeros missionários e missionárias em todo o país” O documento cobra “pressa “ na demarcação de terras e questiona “a ênfase exagerada que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem dando à realização do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. Não somos contra o crescimento econômico do país, só não aceitamos que este seja feito com o atropelo de nossas comunidades; de nossos territórios; de nossos rios e de nossas matas; da integridade física e cultural de nossos povos”. Nenhum indígena foi recebido pelo Papa Bento XVI durante sua passagem pelo país. Em Aparecida: romarias e momentos de orações e debates sobre temas das Pastorais Sociais na Tenda dos Mártires Protagonismo indígena Em vários lugares o DA fala dos povos indígenas como novos atores sociais que, junto com outros setores, podem contribuir para o fortalecimento de uma democracia participativa. Ao tomar consciência de seu poder, podem gerar transformações sociais importantes e reverter sua situação de exclusão. O protagonismo dos povos indígenas é um sinal de esperança que agradecemos a Deus, reza o Documento. Ele emerge na sociedade civil e no interior das Igrejas onde reivindicam a sua participação. Suas cosmovisões, valores e identidades diversos podem forjar um novo Pentecostes eclesial, capaz de significar uma refundação da Igreja. Esta estimula a participação dos povos indígenas na vida eclesial e procura fortalecer sua identidade e suas organizações. Um fato que sublinhou esse protagonismo foi a crítica indígena ao discurso inaugural do Papa, falando da beleza da evangelização sem mencionar as conseqüências históricas infelizes. Dez dias mais tarde, em sua Audiência Geral, no Vaticano, o Papa corrigiu humildemente essa lacuna, dizendo: “Certamente a lembrança de um passado glorioso não pode ignorar as sombras que acompanharam a obra da evangelização do continente latino-americano. De fato, não é possível esquecer os sofrimentos e as injustiças que os colonizadores causaram aos povos indígenas”. Evangelização inculturada A participação na vida eclesial e o anúncio da Boa-Nova do Reino dependem de uma evangelização mais inculturada, com seu desdobramento na inculturação litúrgica, e de assumir as línguas indígenas como veículos de comunicação (tradução da Bíblia). Também o trabalho vocacional e, portanto, sua participação nos ministérios ordenados, depende de avanços nos processos de inculturação que cuidam das raízes indígenas. A evangelização inculturada denuncia situações de pecado, anuncia a Boa-Nova do Reino e incentiva o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico. Dom Paulo Evaristo Arns entrega carta de indígenas a Papa Bento XVI Vida alternativa A evangelização não acontece num terreno vazio. Os povos indígenas têm uma experiência religiosa milenar, que conservam até hoje e que lhes deu identidade e raízes. Essa experiência é histórica e não deve ser destruída pelo cristianismo, mas pode ser enriquecida por ele. As sementes do Verbo e o próprio Verbo estavam presentes de maneira misteriosa nas religiões indígenas antes da chegada dos missionários. Isso aponta para sua relevância salvífica. Em sua base religiosa, os povos indígenas vivem muitas vezes uma religiosidade entrelaçada com o cristianismo, com valores próprios, resistentes à secularização moderna. O Documento fala da abertura para a ação de Deus e do caráter sagrado da vida indígena, que valoriza a família e vive a solidariedade e co-responsabilidade em trabalhos comunitários. O DA assume muitas reflexões de Santo Domingo. Nas culturas indígenas, vive-se um amor profundo à terra. Terra indígena é terra para viver e terra comunitária. Esses dois itens impedem a transformação da terra em latifúndio ou em objeto de contratos de compra e venda ou de incorporá-la no agronegócio. Na visão que os povos indígenas têm da terra, está presente a utopia de um outro mundo possível. Chamam de sua mãe a terra e a natureza porque os alimentam; sua casa comum, porque os protegem, e seu altar, onde partilham a vida. Enquanto os romeiros – esse povo pobre e simples – rezavam na Basílica, os delegados da V Conferência estavam reunidos no subterrâneo dessa Basílica, como numa incubadora, torcendo “para que todos tenham vida”. Depois das dores de parto, o que interessa é a criança. E nós, Igreja local e pastoral, estamos aqui para cuidar dela, fazer engatinhar, levar a Igreja subterrânea para cima ao encontro do povo, para que cuide dessa vida “Severina” dos povos indígenas, bela “porque corrompe com sangue novo a anemia, infecciona a miséria com vida nova e sadia”. Jun/Jul-2007 As lutas dos Guarani para viver em seu território Foto: Egon D. Heck Yvy rupa Marcy Picanço Editora do Porantim É Deus que revela o lugar.” Serras, muita mata, uma cachoeira e um rio de águas cristalinas. Assim é o lugar destinado por Nhanderu para as famílias Guarani M’byá que vivem na aldeia Peguao Ty, município de Sete Barras, no Vale do Ribeira, a 200 km de São Paulo. Elas chegaram lá em 2000, vindas da aldeia Sapucaí, no litoral paulista. Na outra área, a roça não era mais suficiente, além disso, a aldeia era muito próxima de cidades turísticas e o som alto das festas incomodava. “Viemos andando até chegar aqui. Deus revela onde podemos manter nossa vida, nossa cultura.”, conta o cacique Luis Eusébio. Com ele, vieram outras 54 pessoas. Em Sapucaí ficaram mais de 300. “Aqui é mata fechada, tem água e é mais tranqüilo.”, celebra Luis. Ele explica que não conhecia o lugar da aldeia, mas sempre ouviu falar que, até os anos 1960, havia uma aldeia na região. No entanto, por conta do idioma diferente, a comunidade não se entendia com as autoridades municipais. Quando o cacique morreu, os familiares foram para a cidade e se casaram com pessoas de lá. Assim acabou a aldeia. “Mas, essa região toda, desde o Uruguai até a Bahia era cheia de índio. Mas, o pessoal fala que não tinha índio”, lembra o cacique. A bela aldeia, de fato, fica no território Guarani, que se estende por sete estados brasileiros, alem de áreas na Argentina, Paraguai e Uruguai. No entanto, hoje, a área da aldeia Fotos: Marcy Picanço “ Jun/Jul-2007 Foto: Marcy Picanço Sobreposição de unidades de conservação em terras indígenas e invasores nas áreas homologadas são alguns dos desafios. Para não enfrentar a estrutura fundiária, o governo tem optado por comprar terras em algumas regiões A luta por viver bem no seu território une os Guarani no país e internacionalmente. À direita, o cacique Luis Eusébio, da aldeia Peguao Ty (SP). À esquerda, o pajé da terra Sucuri´y (MS) é uma unidade de conservação ambiental e, por isso, os Guarani enfrentam uma batalha judicial para permanecer na terra. Guarani e meio ambiente Atualmente, 38% das terras indígenas no estado de São Paulo coincidem com unidades de conservação de proteção integral (onde humanos não podem viver). Isso por que, em geral, são as poucas áreas de Mata Atlântica ainda preservadas. A aldeia Peguao Ty coincide com o Parque Estadual Intervales, administrado pela Fundação Florestal, ligada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente. A Fundação move uma ação contra a Fundação Nacional do Índio (Funai), pedindo a reintegração da área ocupada pelos Guarani. A Procuradoria do Estado do Meio Ambiente também está processando a Funai, nesse caso, pelos danos ambientais supostamente causados pelos indígenas. “Se não fossemos cuidar da terra, não íamos ficar aqui. Eles oferecem outras terras, mas toda derrrubada, sem rio. Nós sempre convivemos com a natureza sem destruir. Foi a invasão dos brancos que destruiu tudo. Agora falam que o índio destrói, que são invasores”, se indigna Luis. Enquanto corre a ação contra a Funai, a comunidade luta para ter sua terra demarcada. Em 2002, receberam a promessa de que seria criado um Grupo Técnico para estudar o caso deles. Até hoje, isto não ocorreu. No final de 2005, a Funai enviou à área uma antropóloga para fazer um “levantamento prévio” da situação. A comunidade ainda não teve acesso a este relatório. Educação e saúde Junto à luta pela terra, a comunidade trabalha para conseguir seu direito à saúde e educação diferenciadas. Ha três anos, eles têm escola (até 4ª série), com professores indígenas contratados e merenda fornecida pelo Estado. Também têm dois Agentes Indígenas de Saúde e recebem uma visita semanal da equipe da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O conflito pela terra, porém, torna ainda mais difícil ter algumas melhorias. A comunidade pretende construir módulos sanitários, mas não está conseguindo, por estarem em área de conservação. Por conta desse tipo de impasse, o Ministério Público Federal entrou na questão para garantir que os direitos indígenas à saúde, educação e outros sejam respeitados, mesmo que a área ainda não esteja demarcada. “Vamos continuar na luta para conseguir terra, educação, saúde...”, garante o cacique Luis. “Também sei que a situação das outras áreas Guarani está complicada, mas não vamos desistir”, reforça. O alegre som da rabeca e do violão dos jovens indígenas toma conta da aldeia. Os Guarani também usam a música para se ligar aos deuses. Luís lembra que a saúde dos Guarani é ligada à Nhanderu. “Não basta Funasa, remédio, hospital para ter saúde, viver bem”. Se foi para ali que Nhanderu os guiou, ali ficarão. Nove anos depois da homologação, fazendeiros invasores seguem na área Foto: Geertje van der Pas Sucuri´y – uma viagem à terra tomada pela soja Egon Heck e Geertje van der Pas À Foto: Egon D. Heck s 6 horas, saímos de Campo Grande. O sol já está forte e queima o asfalto. Um pouco fora da cidade já começa o filme repetitivo das passagens da soja, soja e mais soja. Às vezes, alguns brotos do milho, que foram plantados depois da colheita da soja, ou cana de açúcar (cada vez mais agora com a esperança do biodiesel). Fica difícil imaginar que existiu mata aqui... Após duas horas de viagem, chegamos na cidade de Maracajú, maior produtora de soja do Mato Grosso do Sul. O que é bem visível: na entrada da cidade ficam os armazéns de soja das empresas internacionais Cargill e Bunge. Saindo da cidade, chegamos ao confinamento de 67 hectares, onde vivem cerca de 40 famílias Kaiowá Guarani: a terra indígena Sucuri´y. A área total de 565 hectares foi homologada e registrada como terra indígena em 1998. Mas, quase 10 anos depois, os Kaiowá ainda vivem apenas nos 67 hectares. Em volta, há soja ou milho, depende da época do ano. As plantações chegam a menos de 5 metros das barracas das famílias. Quando o fazendeiro usa agrotóxicos, as conseqüências são terríveis. A liderança Pay Taviterã comentou: “O Brasil já foi pro pau. De São Paulo para lá é só cana ou soja. Cadê o arroz, batata, feijão, milho.... Será que mais tarde vamos nos alimentar de soja, álcool e açúcar?” No início de 2007, houve uma esperança de que o fazendeiro que ocupa grande parte da terra Sucuri´y (410 hectares), os outros dois fazendeiros e o município que está na área fossem sair. A Justiça Federal de Dourados determinou, em 19 de janeiro, que a área fosse desocupada em 120 dias, sob pena de multa diária de mil reais. Os réus apelaram da decisão no dia 27 de fevereiro. O juiz aceitou o pedido e encaminhou o processo para o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo. No dia 19 de março, os réus recorreram ao TRF 3. No dia 14 de maio, faltando apenas 15 dias para o fim do prazo para a desocupação, a desembargadora Cecília Mello, relatora do caso, aceitou o pedido dos invasores. Com isso, ficou suspensa a desocupação da terra Sucuri’y até decisão definitiva do TRF. Após essa decisão, os Kaiowá Guarani de Sukuriý foram pessoalmente se reunir com os desembargadores do TRF em São Paulo. Finalmente, no dia 5 de junho, foi dada decisão favorável aos indígenas. Agora aguardam que a Justiça e, se necessário, a Polícia Federal cumpram a decisão de retirar os invasores da terra. A soja dos invasores na terra Sucuri´y: os Guarani vivem em 67 hectares da área homologada, que é de 565 hectares Das terras reveladas para as terras NEGOciadas A compra de terras como negação do direito Clovis Antonio Brighenti Cimi Sul – Equipe Florianópolis N a última década ganhou força nas ações governamentais a idéia de adquirir terras para o povo Guarani como forma de garantir-lhes espaços de sobrevivência. No Rio Grande do Sul essa idéia foi aplicada no ano 2000, quando o governo do estado desapropriou três áreas para assentar comunidades Guarani. No mesmo período, em Santa Catarina, essa política foi implementada pelo Governo Federal com a aquisição de uma área com recursos vindos das medidas compensatórias do Gasoduto Bolívia Brasil. Em 2007, três novas terras foram adquiridas em território catarinense e pelo menos mais cinco áreas estão em vias de aquisição – uma em Santa Catarina e quatro no Rio Grande do Sul. Todas com recursos repassados à Fundação Nacional do Índio (Funai) pelo Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit) como compensação pelos impactos causados às comunidades Guarani com a duplicação da rodovia BR 101 no trecho Palhoça (SC) - Osório (RS). Além da desapropriação e aquisição, observamos que a Funai vem alterando o procedimento administrativo para negar a tradicionalidade da ocupação e a conseqüente demarcação. Ao invés de criar Grupos Técnicos para fazer os estudos necessários à identificação e delimitação das terras, como determina a legislação, a Funai tem, com freqüência, enviado a campo um único profissional para fazer o levantamento prévio. Nesse trabalho, ele já aponta se as áreas reivindicadas pelos Guarani são ou não de ocupação tradicional. Parece óbvio que essa tarefa cabe a um grupo técnico e não apenas a um profissional em um curto tempo. A aquisição, desapropriação ou levantamento prévio partem de um princípio perverso e ilegal: a negação do território Guarani. Esse povo ocupa um território, não exclusivo, que se estende pelo Uruguai, o leste do Paraguai, a província de Misiones, Argentina, e por sete estados brasileiros. As pesquisas arqueológicas comprovam que os Guarani ocupam esse terri- tório, com pequenas variações, há pelo menos dois mil anos. Não reconhecer o direito sobre as terras é negar a existência desse território e, assim, os Guarani passam a ser tratados como estrangeiros. Além dos efeitos nocivos no aspecto legal, há outros efeitos negativos diretos e imediatos. As terras adquiridas e/ou desapropriadas são muito pequenas (entre 70 a 550 hectares), sendo que a maioria gira em torno de 200 hectares. Uma revisão de limites fica quase impraticável, pois seriam necessários mais recursos para aquisição e dependeria da disponibilidade de terras vizinhas. Já há casos em que não foi possível a revisão de limites de terras adquiridas, pois as áreas vizinhas ficaram sobrevalorizadas. O tamanho das terras interfere diretamente na organização social do povo Guarani. Além da impossibilidade da sobrevivência física, há um fracionamento das comunidades em pequenos núcleos familiares, impossibilitando a vivência na família extensa, como tradicionalmente se organiza o povo. Quando insistem na manutenção da organi- zação social os recursos naturais mostram-se insuficientes. O conceito de terra para os Guarani é do yvy rupa: um grande território habitado sem fracionamento e sem pertencimento. “Esse yvy rupa é nossa vida, é nossa existência, é onde todos nós podemos viver sem divisões”, manifestou Werá Mirim. As terras quando demarcadas devem ter como princípio a concepção e prática desse povo, garantindo todos os recursos naturais necessários à sobrevivência física e cultural. No entanto as terras adquiridas ou reservadas mudam completamente essa concepção ao impor ao Guarani o conceito de propriedade privada. As novas terras não são mais da coletividade, não são mais do povo Guarani, não é mais o yvy rupa, mas é a terra do indivíduo. É nítida a nova significação dada pelas famílias beneficiadas, porque mudam os métodos: da revelação da terra por Nhanderu/Deus, para a negociação com o proprietário. Para os governos, comodismo e falta de vontade política de mexer com a estrutura fundiária. Jun/Jul-2007 Viver na cidade grande não é abrir mão de ser indígena Grupo de Praiá Pankararu – apresentação em 2003 – Foto: Ana Pecci Índios na cidade Priscila D. Carvalho Especial para as agências Repórter Brasil e Carta Maior O O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Jornalismo Investigativo. A Fundação AVINA não tem responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo. Jun/Jul-2007 ônibus que leva os moradores do bairro Brasileirinho até o terminal urbano de Manaus só passa de hora em hora. E pode demorar mais, por causa da castigada estrada de terra que sacode sem dó a carcaça e as entranhas do coletivo. São cerca de dez minutos a pé do ramal 8 do Brasileirinho, onde vivem 16 famílias do povo Kokama, até o ponto de ônibus. Faço o trajeto ao lado de uma liderança Kokama, Sebastião, e de sua esposa. Quando chegamos à parada, o dono do bar em frente avisa que o ônibus acabou de passar. “O próximo demora?”, pergunto. Demora. Sentamos. A esposa de Sebastião senta e abre seu caderno para estudar o idioma Kokama, que ela não aprendeu quando criança. Um carro se aproxima e oferece carona. Aceitamos. – Para onde estão indo?, pergunta. – Para o centro. – De onde são? – Do interior. E ela é de Brasília. – Brasília? E veio fazer o que aqui? – Sou jornalista. Vim fazer uma matéria sobre índios que vivem em Manaus. Visitei um grupo de Kokama que mora aqui no Brasileirinho - respondi. – Mas aqui não tem índio, não. Quando eles chegam aqui já não são mais índios. Mas Manaus tem índios e eles se mobilizam por direitos básicos como moradia, transporte e educação, assim como em outros centros urbanos brasileiros. Na capital do Amazonas, eles são mais de 7 mil. As dúvidas sobre a presença indígena em grandes cidades, aliás, sofreram um duro golpe do mais recente censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2000. Nele, 734 mil pessoas se autodeclararam indígenas. E 383.298 destas vivem em cidades. A população urbana Fotos: Priscila D. Carvalho Reportagem especial mostra a vida de indígenas em Campo Grande, Manaus, São Paulo e Porto Alegre. O Porantim publica nesta edição os textos gerais e nos próximos meses matérias sobre educação, moradia e trabalho dos indígenas nas cidades ultrapassou a rural e representa 52,21% do total de indígenas no Brasil. O IBGE mostrou também que, dos 20 municípios com maior numero de habitantes indígenas, 10 são capitais. Os indígenas não migraram do campo para a cidade sozinhos. Sua movimentação acompanha a intensificação da urbanização brasileira, a partir da década de 1950. Manaus é o exemplo mais contundente: a instalação da Zona Franca fez a população da cidade aumentar de 300 mil pessoas, em 1970, para 800 mil, em 1985. Em 2000, Manaus já tinha 1,4 milhões de habitantes, concentrando quase a metade dos 3 milhões de habitantes do Amazonas. E, dos 18.783 indígenas que vivem nas cidades do estado, 7.894 estão na capital. A história das migrações já faz parte das vidas Kokama, Apurinã, Baniwa e de outros que partiram em busca de educação formal, saúde ou renda em Manaus. É parte da vida dos Terena, no Mato Grosso do Sul, ou dos Kaingang, no Rio Grande do Sul, que migram para cidades a poucas horas de suas aldeias de origem, em busca de renda ou de distância das terras pequenas para uma população crescente. É parte também das vidas dos povos Pankararu, Fulni-ô, Pankararé, Potiguara, Atikum e de outros que saíram do Nordeste para tentar a vida em favelas e bairros periféricos de São Paulo. Histórias de chegadas As migrações não são apenas escolhas individuais. Elas são parte da dinâmica do contato entre as sociedades. É o que pondera o historiador Antonio Brand, da Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande: “No Mato Grosso do Sul, as migrações são conseqüência das políticas públicas integracionistas que falharam, da criação de reservas pequenas, da falta de demarcações de terras. Ao mesmo tempo em que o governo federal não demarca terras, as administrações locais fazem aldeias urbanas”, questiona. Aos poucos, a administração pública passa a ter que atender os grupos na cidade. Brand toca em uma questão que sempre fica implícita quando se fala em índios na cidade: se vieram para os centros urbanos, por que estas pessoas precisam de políticas públicas específicas? Afinal, são populações que saíram de suas terras de origem. A antropóloga Lucia Rangel, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), rejeita a idéia de que as populações indígenas são necessariamente vinculadas ao mundo rural. “Não importa onde eles vivem. São indígenas de qualquer maneira, falando ou não a língua, tendo ou não religião, porque os laços de parentesco é que de fato conferem a eles vínculos de pertencimento. Eles sabem contar as histórias de seus grupos, têm vínculos. Mas o Estado trabalha com estereótipos, e muitos deles, infelizmente, são fabricados pela antropologia. Quando só o que os indígenas têm são os laços de parentesco, ninguém quer reconhecê-los. Porque direitos indígenas são justamente direitos que o Estado gostaria que não existissem”, questiona Rangel. “É necessário compreender primeiro que esta demanda [por políticas públicas] é originária de um erro grande de estratégia de atenção aos povos indígenas. No período da ditadura, militares e especialistas diziam que no ano 2000 estaríamos desaparecidos ou integrados. Mas o movimento cresce e centra forças na demarcação. Ganhamos auto-estima, podemos afirmar nossa identidade. A população deixa o medo de lado”, afirma Jecinaldo Cabral, Sateré Mawé, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A liderança, no entanto, não acha que a migração deva ser a solução para os problemas das políticas públicas nas aldeias: “A Coiab São Paulo Atrás do espelho Da janela do ônibus que vai da praça da Sé, centro de São Paulo, à favela Real Parque, na zona Sul, dá pra notar a cidade mudando. À medida em que o ônibus se afasta do centro, as calçadas vão ficando mais vazias, os pedestres mais arrumados, os carros mais novos, os prédios mais espelhados. Da moderna avenida Berrini, é só cruzar a ponte do Morumbi para chegar ao Real Parque. Do lado esquerdo de quem chega à favela, a rua dá lugar a vielas apertadas que levam aos barracos, morro acima. Em um destes barracos vivem Cícera Vieira do Nascimento, Pankararu, seu marido José Carlos da Silva, e os três filhos do casal. Crítico, José Carlos aponta para os prédios do conjunto habitacional Cingapura, que se vêem da porta da sua casa. “Só arrumaram a parte da frente da favela. Só fizeram esses prédios aqui para cobrir a favela. Para não ver o que está atrás. Esses prédios são um espelho para quem passa de carro. E a gente se esconde atrás do espelho” Campo Grande Gado - também na vida da cidade A cozinha da família é embaixo da árvore. Ali, a avó termina de dar almoço às crianças. O barraco de lona preta fica a poucos metros, e as outras casas da família estão a três quarteirões, no bairro Jardinópolis, região industrial de Campo Grande conhecida como Indubrasil. Os avós mudaram para perto dos filhos. Os homens da família estão empregados na indústria de couro: o filho trabalha no corte, o cunhado nas máquinas, o genro separa o couro da carne. Na casa da filha, o genro descansa na rede do trabalho como “faqueiro”, no turno que vai das 5 da tarde às 5 da manhã, com folga aos domingos. O frigorífico fica a dois quilômetros dali e dá pra ir de bicicleta. O horário da noite é melhor, porque ganha adicional noturno. “Falta trabalho lá em Lagoinha. Só tem no corte de cana. E tem que ficar de 60 a 90 dias fora, sem ver família, filhos. Não tem roça porque não tem terra pra roça. E a que tem está muito cansada”, justifica o Sr. Paixão, do povo Terena, o avô. Porto Alegre Modelo de produção apóia esta luta [dos indígenas em centros urbanos], mas não queremos que todo mundo venha para as cidades. Queremos terras indígenas onde possamos viver nossas culturas, tendo saúde, educação, proteção territorial. A cidade é triste: tem morte, bebedeira, prostituição”, pondera. Apesar dos riscos, a decisão de migrar é parte da busca por necessidades que os indígenas passam a ter depois do contato com não índios. Óleo, roupa, luz: tudo exige dinheiro. Para trabalhar para ter dinheiro, há que estudar. Mas estudar também custa. Requer roupas e livros, sair da aldeia. Até os anos 90, quando começaram a ser instaladas escolas indígenas nas aldeias, o estudo formal estava vinculado à saída - mesmo que temporária - da terra e do convívio comunitário. É o que conta Daniel Arcanho, do povo Kokama. “Eu estudei na escola da missão em Feijoal. Tingia saco de açúcar com jenipapo para fazer farda, porque sem farda não estudava. E eu queria estudar, aprender coisa. Padre dizia que ia apanhar quem falasse na língua. Exército mandava matar pajé na aldeia. Nós viemos porque achamos bom ir para Manaus”. No interior ou na cidade, o espaço Kaingang está dividido em três ambientes, sempre articulados: o da moradia, o da coleta e manejo de recursos naturais e o da comercialização e troca. Durante seu mestrado em Ecologia, a bióloga Ana Elisa Freitas estudou a ocupação do espaço pelos Kaingang, em Porto Alegre. Ela percebeu que o uso da cidade respeita a mesma lógica utilizada nas terras indígenas. “O modelo produtivo é o mesmo”, afirma. Os espaços da troca são as feiras, no centro da cidade, endereço também dos órgãos públicos, freqüentados para se exigir cumprimento de direitos - entre eles o de expor e vender o artesanato, além dos relacionados à moradia, educação diferenciada ou saúde. O território da coleta de materiais para o artesanato abrange toda a bacia do Rio Guaíba, o principal da cidade. E cada família maneja de 8 a 12 espaços de mata, usados de forma rotativa, para que plantas possam crescer e voltar a serem coletadas. Os lugares que os Kaingang escolhem para morar também não estão fora desta lógica. O terreno que escolheram para ser comprado pela prefeitura, para a construção da aldeia na Lomba do Pinheiro, fica em região alta da cidade, exatamente como a aldeia que fica na entrada do Morro do Osso - área disputada entre os Kaingang e a prefeitura da capital gaúcha. Nas fotos: a vizinhança dos Pankararu em São Paulo, o trabalho na Associação das Mulheres do Alto Rio Negro (Amarn), em Manaus, a manutenção do artesanato Guarani em Porto Alegre. Não importa onde eles vivem. São indígenas e têm seus direitos Posso ser o que você é sem deixar de ser o que sou Você sente falta da sua aldeia de origem? “Para mim, estou dentro da aldeia. São os mesmos modos, os mesmos costumes, a mesma língua, a mesma alimentação. Não muda muito. Muda casa de alvenaria. Muda organização, higiene, outro modo de viver. Mas o que a gente é está no sangue. A maioria das pessoas que vive aqui são parentes. Os pequenos são gentis, tomam a bênção. Não é porque está na cidade que vai agir diferente. Eu posso ser o que você é sem deixar de ser o que eu sou.” Enio Metelo Cacique da aldeia Marçal de Souza, conjunto habitacional inaugurado em 2000, em Campo Grande, onde vivem 205 famílias, 1050 pessoas, em 135 casas. Jun/Jul-2007 Índios na cidade Povos reivindicam políticas; Estado esboça respostas Repórter A antropóloga Graziella Reis de Sant’anna estudou as associações indígenas em Campo Grande durante seu mestrado e concluiu que, por meio delas, os indígenas “buscavam garantir não só a possibilidade de manifestação pública da diferença, mas também o acesso a melhores condições de saúde, educação e trabalho”, fazendo o diálogo com o Estado, organizações não-governamentais (ONGs) e com a sociedade em geral. “Eles enfrentam as mesmas dificuldades sócio-econômicas que as demais populações carentes da cidade, com o agravante da discriminação. Nesse sentido, as associações se tornaram promotoras em potencial das demandas econômicas”, afirma Graziella. Nas cidades, as organizações se multiplicam. Em Manaus, a Associação das Mulheres do Alto Rio Negro (Amarn) foi pioneira e abriu espaço inclusive para articulações nacionais, como a Coiab. Em Campo Grande, por exemplo, há a Associação dos Feirantes Indígenas, a Associação dos Moradores do Bairro Marçal de Souza e o Grupo Te, que promove a cultura Terena na cidade formando jovens nas danças tradicionais. A lista segue, mas a função das associações é a mesma: ser representação, nos moldes requeridos pela sociedade não indígena, para o diálogo com o Estado. Ação estatal pontual e lenta O poder público, por sua vez, foi construindo, a partir da pressão dos indígenas organizados, espaços para receber e encaminhar as demandas. Lideranças conseguiram que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) iniciasse o atendimento a algumas das comunidades urbanas, com a contratação de agentes de saúde e enfermeiros. Mas o planejamento de políticas públicas para os índios urbanos tem recaído, pelo menos por enquanto, sobre estados e municípios. A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão federal responsável pelas políticas de terra, habitação e assistência aos povos indígenas, caminha a passos lentos na relação com os povos nas cidades. O foco principal de trabalho da Funai são os índios aldeados. De acordo com sua assessoria de imprensa, o órgão trabalha com cerca de 450 mil indígenas que vivem no meio rural no Brasil, apesar da população total de 734 mil pessoas identificada pelo IBGE. Entretanto, o atual presidente da Funai, Márcio Meira, promete dedicação ao tema. Jun/Jul-2007 10 “Há necessidade de o Estado atender a esta Nas cidades, as organizações indígenas se multiplicam. Por meio delas, os povos buscam melhores condições de vida e possibilidade de se manifestarem Encontro de Formação Indígena/Tekoha Pyaú/Pico do Jaraguá/SP – Foto: Beatriz Maestri Priscila D. Carvalho Foto: Priscila D. Carvalho A transformação dos direitos em políticas públicas é, ainda hoje, a principal bandeira dos movimentos indígenas. população [indígena nas cidades] com políticas públicas. A Funai atende em parte, mas ainda é muito pouco. Este é um dado novo na realidade indígena brasileira”, afirma. “Isto é um plano ainda, mas já existem algumas coisas pontuais começadas. Há trabalho com municípios em relação à moradia: a Funai atuou na construção da nova aldeia urbana em Campo Grande”. A questão dos índios nas cidades só passou a ser pauta na Funai oficialmente depois da 1ª Conferência Nacional dos Povos Indígenas, em abril de 2006. Os delegados incluíram um capítulo sobre “índios urbanos” no documento final do encontro. A gestão anterior, de Mércio Gomes, não realizou, no entanto, nenhuma movimentação para o encaminhamento dessas decisões. A Funai continua agindo pontualmente - como a contribuição para a alimentação dos expositores na feira de artesanato indígena Pú Kaa, em Manaus. As ações são definidas pelas administrações regionais, sem orientação nacional, e não vão além do “acompanhamento”. Ocupando o espaço deixado pelo governo federal, o município de Porto Alegre criou, dentro da Secretaria de Direitos Humanos, um Núcleo de Políticas Públicas para Povos Indígenas, com o propósito de reunir as secretarias do poder público municipal e representantes Kaingang e Guarani e articular políticas municipais voltadas a esta população. São Paulo tem, desde 2004, um Conselho Estadual Indígena, vinculado à Secretaria de Planejamento, com a função de articular as políticas públicas. Campo Grande tem, desde 2005, um Conselho Municipal de Direitos e Defesa dos Povos Indígenas, formado por 9 povos e 11 organizações indígenas, e responsável por ouvir demandas dos povos e encaminhá-las ao prefeito. Nas reuniões mensais, o Conselho define as prioridades, mas a decisão sobre as políticas ainda fica nas mãos do prefeito. Sem uma linha nacional para as políticas, ainda não existe uma referência de atendimento governamental às demandas. E os povos nas cidades dependem da abertura que conseguem em cada governo para políticas públicas estruturadas que possam atender a suas necessidades, particulares e universais. Encontro reúne os Apurinã que vivem em cidades do Amazonas J. Rosha Repórter E ntre os dias 25 e 27 de maio, em Manaus, cerca de 60 pessoas do povo Apurinã de Manaus e Manacapuru, encontraram-se para reviver a vida como acontece nas aldeias. O Encontro Apurinã reuniu os indígenas que vivem em bairros da periferia, às vezes, sem saber da existência dos demais. Com mais de 70 anos, Eduardo Galdinbo da Silva, que mora em Manacapuru – a 80 km de Manaus - encontrou sobrinhas que só havia visto quando crianças. Esses encontros não são tão fáceis. Mas, há esperança. No bairro de Valparaíso, de Manaus, vive uma das mais antigas famílias Apurinã. Ali, eles construíram um pequeno salão onde se reúnem e que pode ser um centro para os demais. Eles planejam se encontrar para aprender a língua, fabricar artesanato e viver os rituais do povo. Porém, nos próximos dias enfrentarão outro problema. As famílias moram perto de um pequeno igarapé que transborda quando chove, alagando parte das casas. O governo do Amazonas planeja retirar os moradores do local. As famílias Apurinã querem que o governo se comprometa a mantê-las próximas. Identidade – Por muito tempo, os indígenas que migraram para as cidades escondiam sua origem por causa do preconceito. Agora, estão ocupando espaços e expondo a realidade em que vivem no mundo urbano. Para os Apurinã, tem sido difícil serem reconhecidos pelo poder público. “Quando vamos a um hospital, nos mandam para a Funai porque dizem que é o órgão que deve assistir aos índios”, diz Elizabeth Apurinã. “Nossa maior dificuldade é fazer com que nossos direitos sejam reconhecidos e respeitados pelo poder público”, acrescenta. CNPI: Primeira reunião agenda debate sobre Estatuto dos Povos Indígenas Fotos: Cimi NE/Equipe Pernambuco Política indigenista País Afora Lideranças não aceitam discutir, fora do Estatuto, mineração em terras indígenas E fundo dirigido pela Funai e somente a outra metade seria controlada por um comitê gestor em que a comunidade teria assento, junto com outras instituições que não estão definidas no anteprojeto. Portanto, apenas 1,5% dos recursos obtidos com a mineração seriam destinados diretamente ao grupo indígena atingido – mas, mesmo assim, não seriam controlados diretamente por ele. O licenciamento ambiental seria feito só no final das consultas e estudos sobre o pedido de exploração mineraria. Isto pode aumentar a pressão das empresas sobre o licenciamento, quando o processo administrativo já estivesse quase terminado. Funcionamento da CNPI Cada uma das nove subcomissões criadas é composta por seis pessoas. Os temas foram divididos entre: 1 - Elaboração do anteprojeto de lei do Conselho Nacional de Política Indigenista; 2 - Justiça, Segurança e Cidadania, 3 - Terras Indígenas; 4 - Etno-desenvolvimento, 5- Subcomissão Legislativa (incluindo temas como Estatuto, mineração, gestão, e outros relativos à regulamentação da CF), 6 - Saúde Indígena, 7 - Educação Escolar Indígena, 8 Subcomissão de Gênero, Infância e Juventude, 9 - Articulação de Políticas. A Comissão, que se reunirá a cada 2 meses, é formada por 20 lideranças de todas as regiões do País, sendo que 10 têm direito a voz e voto e outras 10 apenas a voz; há 13 representantes de ministérios com ações voltadas a povos indígenas e duas entidades indigenistas, atualmente o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Conquista do movimento indígena, que busca espaços para participar das definições sobre as linhas e prioridades da política indigenista no País, a CNPI foi instalada em 19 de abril de 2007, pelo Ministério da Justiça. Foto: Issac Amorim/ACS/MJ m sua primeira reunião, realizada nos dias 4 e 5 de junho, a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) definiu a forma de trabalho do grupo – que terá nove subcomissões temáticas – e agendou reunião extra para os dias 12 e 13 de julho. Nestes dias, serão discutidas questões sobre saúde, violência e o Estatuto dos Povos Indígenas. Dentro deste último tema, será pautado o projeto de mineração apresentado ao grupo pelo governo nesta primeira reunião. O presidente da Comissão, Márcio Meira - que também é o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), propôs que o tema da mineração fosse pauta na próxima reunião. As lideranças indígenas, no entanto, não aceitaram. Os indígenas e as entidades não governamentais da Comissão avaliam que o Estatuto dos Povos Indígenas pode vir a ser o marco regulatório de um conjunto integrado de políticas públicas de saúde, educação, meio ambiente e segurança alimentar, entre outros. A aprovação em separado de temas polêmicos e de interesse de grandes empresas, como mineração e recursos genéticos, poderia fazer com que a regulamentação de assuntos de interesse dos povos indígenas continue parada no Congresso, onde a proposta do Estatuto está há 14 anos. O anteprojeto de lei sobre mineração, apresentado pelo governo, prevê que a exploração nas áreas indígenas poderá ser feita por empresas, mediante licitação pública, pela própria comunidade ou por uma sociedade entre os dois. De acordo com a proposta, as comunidades afetadas poderiam impor condições aos empreendimentos, mas não poderiam rejeitá-los. Apenas a Funai teria a prerrogativa. Além disso, 3% do faturamento das atividades seriam revertidos para os povos indígenas. Metade do recurso iria para um Lideranças indígenas (à frente) e o presidente da Funai (à direita) na reunião da CNPI Povo Xukuru do Ororubá realiza sua 7ª Assembléia em Pernambuco Reinventando o passado e revivendo seus anciãos, povo constrói o futuro com participação dos jovens Roberto Saraiva e Otto Mendes Equipe Pernambuco CIMI-NE C om o tema “Terra: reviver a cultura, a partilha e os Encantados”, o povo Xukuru realizou sua 7ª Assembléia, entre 17 e 19 de maio, na aldeia Capim de Planta, na região da Ribeira, em Pernambuco. No dia 20 de maio reviveu e homenageou o cacique Xicão, mártir do povo e um dos símbolos da luta indígena. Reviver significa buscar, por meio da memória dos anciãos, coisas vividas no passado que são consonantes com o projeto de futuro. O projeto, construído a cada assembléia, busca uma nova forma de relação social, onde partilha, justeza e austeridade são fundamentais para continuidade dos Xukuru enquanto povo. Os Xukuru sabem que muitas coisas do passado podem ser reinventadas, dando sentido e profundidade a sua identidade e as suas relações políticas, sociais e econômicas, que se fortalecem nestes eventos. No início da assembléia, o pajé Zequinha e outras lideranças religiosas invocaram os encantados a participarem do projeto de vida Xukuru. Em seguida, Agnaldo, da aldeia Pé de Serra, fez um resumo das assembléias passadas. Na seqüência, foi falado da organização da sociedade brasileira e dos Xukuru. O cacique Marcos analisou a conjuntura, incluindo preocupações com mudanças climáticas, desertificações e a transposição das águas do rio São Francisco. Um dos fortes momentos da assembléia foi o depoimento dos velhos, que falaram da vida de antigamente, de como partilhavam os bens, como nasciam, como eram enterrados, como trabalhavam e trocavam mercadorias. Os depoimentos, ricos em detalhes, deixaram a platéia em silêncio. Os muitos jovens Xukuru Na assembléia, os Xukuru debateram projeto do povo, valorizando as histórias dos anciãos e suas tradições. O cacique Xicão Xukuru, plantado há nove anos, foi homenageado presentes puderam aprender com os mais velhos e, assim, participar mais da vida política do povo. No dia 19, os outros povos presentes (Potiguara, Kambiwá, Pipipã, Atikum e Truká) se apresentaram e houve uma homenagem dos Xukuru-Kariri para os Xukuru, lembrando Xicão e Maninha Xukuru-Kariri e consagrando a aliança entre os dois povos. O Pajé Antônio Celestino, na sua simplicidade, falou do movimento indígena no Nordeste e de como Xicão e sua filha Maninha foram importantes para as conquistas. Para encerrar o evento, foram plantadas 1500 mudas de plantas nativas e frutíferas, marcando o inicio do reflorestamento das aldeias Xukuru. 11 Jun/Jul-2007 Povos do Xingu dizem não à hidrelétrica de Belo Monte País Afora Evento informa sobre o projeto e articula povos da região na luta contra as barragens E Cimi Norte II nfrentar o governo contra a construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte. Essa foi a decisão dos 170 índios de 14 povos do rio Xingu, além de três povos de Tocantins e Rondônia, reunidos no Encontro dos Povos do Xingu, entre 3 e 6 de junho, em Altamira, Pará. O Encontro foi idéia dos indígenas, que se queixavam da presença da Eletronorte no Xingu medindo suas bóias espalhadas pelo rio, mas sem ir às aldeias dar informações sobre Belo Monte. A proposta do evento foi reunir, informar e articular os povos indígenas do Xingu para entender e enfrentar a questão das barragens no Xingu. No evento, explicou-se o que é Belo Monte, seus efeitos sobre os povos indígenas e outras populações tradicionais, a inviabilidade do Complexo e apresentou-se alternativas. Diversos especialistas abordaram as questões, entre eles Tarcisio Feitosa do Instituto Internacional de Educação do Brasil e a antropóloga Jane Beltrão, da UFPA. O advogado Paulo Guimarães, do Cimi, e o Procurador da República Felício Pontes trataram dos direitos dos povos indígenas diante dos grandes projetos. Representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens e do Movimento de Juriti contra o Projeto ALCOA falaram dos problemas causados por barragens. Destacaram o descaso do governo federal com as populações afetadas pelos projetos e mostraram como resistem ao modelo imposto pelo governo. Um painel formado pelos indígenas de Rondônia e Tocantins incentivou a luta dos povos do Xingu. O governo trata os povos destes estados, ameaçados pelas O que é Belo Monte? Que povos sofrerão impactos? Foto : Cimi Norte II Claudemir Monteiro A Ato pela vida do Xingu encerrou o evento. À direita, Dom Erwin Krautler, Bispo da Prelazia do Xingu, que apoiou o Encontro hidrelétricas do rio Madeira e de Estreito, da mesma forma que age com os povos do Pará, ou seja, com desinformação, sem escutar as populações atingidas, escondendo informações sobre os impactos das obras e estabelecendo um modelo de compensação para conseguir o consentimento dos atingidos. Cada povo presente definiu o que fazer diante da questão Belo Monte. Entre outras ações, decidiram: transmitir às aldeias as informações recebidas neste encontro, preparar cartilhas e filmes sobre o assunto, convocar todos os Povos do Xingu e da Amazônia para defender o rio Xingu e os rios da Amazônia e, num encontro previsto para os próximos meses, chamar o governo para dizer não às barragens no Rio Xingu. Os povos e os movimentos sociais presentes encerraram o Encontro caminhando de Altamira à beira do Xingu. Dom Erwin Krautler, Bispo do Xingu e presidente do Cimi, participou do evento, promovido pelo Cimi Norte II, com apoio da Prelazia do Xingu e do Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica. ntes, o Complexo Hidrelétrico de cinco barragens no rio Xingu recebia o nome de Kararaô. Os Kayapó reclamaram. Virou Belo Monte. Pretende gerar 11.182 megawatts (MW) e alagar cerca de 400 Km2. A barragem prevista para ser feita na Volta Grande do Rio Xingu, caracterizado por quedas d´água, exigirá a construção de outras barragens. O complexo deve afetar os povos Juruna, Araweté, Assurini, Parakanã, Kararaô, Xikrin, Arara, Xipaia e Kuruaia. Sem contar os povos isolados que sofrerão com a cheia permanente ou a redução da vazão da água. Esses povos somam cerca de 1.500 pessoas, vivendo em dez terras, num total de 5,3 milhões de hectares. Altamira também será atingida por cheias constantes. Lá, vivem cerca de 1.200 indígenas que pescam no rio Xingu. Além disso, o rio regula os ciclos ecológico e climático da região. Na altura da Volta Grande, o rio deverá secar no verão, impedindo o transporte fluvial, principal meio de transporte dos ribeirinhos e povos indígenas. E cerca de 800 famílias deverão ser remanejadas, incluindo o povo Juruna do Pakisamba. Vale ressaltar que estes são impactos de apenas uma barragem. Também se questiona a real necessidade de tantas barragens na Amazônia. Segundo o geógrafo Reinaldo Costa do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia) e o promotor de Justiça do Ministério Público Estadual Raimundo Moraes esse mega-projeto virá exclusivamente para beneficiar a Vale do Rio Doce e o Projeto Alcoa, localizado em Juruti, no Pará. Justiça autoriza início das obras da Hidrelétrica de Estreito, no Tocantins N o dia 30 de maio, a Justiça decidiu que as obras da Hidrelétrica de Estreito, no Tocantins, poderiam iniciar. O Tribunal Regional Federal (TRF) da 1a Região suspendeu uma decisão liminar da Justiça Federal do Maranhão que havia determinado, em abril, a paralisação das obras. A decisão do TRF ocorreu dois dias após uma audiência pública em Palmas, capital do estado, discutir esta questão. As obras estavam paralisadas por uma decisão favorável à ação, movida pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Associação de Desenvolvimento e Preservação dos Rios Araguaia e Tocantins (Adprato), que pede novos estudos de Jun/Jul-2007 12 impacto socioambiental. O atual estudo de Foto: Cimi GO/TO Em Palmas, movimentos sociais e povos do Tocantins reafirmam o não à barragem Povos do Tocantins continuam lutando contra a Hidrelétrica. Acima, ato durante o Abril Indígena impacto ambiental (EIA) não considerou as comunidades indígenas que serão afetadas pela hidrelétrica. Entretanto, a decisão do TRF considerou os aspectos políticos do pedido de autorização feito pela Advocacia Geral da União. O Tribunal alegou que a obra seria fundamental para evitar uma crise de energia no país. Mais debates Dois dias antes da decisão do TRF, aconteceu em Palmas uma audiência pública para discutir a Hidrelétrica de Estreito e as obras de irrigação da Fazenda Dois Rios, próximo à ilha do Bananal. As duas obras têm impactos em terras indígenas. A audiência foi realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Os indígenas presentes solicitaram ao presidente da Comissão, deputado Luiz Couto, que uma audiência sobre este tema seja realizada em Brasília, com a presença de presidentes do Ibama, Agência Nacional de Energia Elétrica, Ministério das Minas e Energia, entre outros órgãos. No evento de Palmas, as lideranças indígenas dos povos Apinajé,Krahô, Krahô-Kanela, Javaé, Karajá Xambioá, Xerente e Karajá reafirmaram que não querem a construção da hidrelétrica. Foram diplomados 372 indígenas N o dia 26 de abril, 372 indígenas de povos que vivem em Roraima receberam o diploma do curso de Educação Profissional Básica para Agentes Indígenas de Saúde (AIS). O processo de formação dos indígenas já se arrastava por quase uma década. Os indígenas certificados atuam nos postos de saúde de mais de 200 aldeias do Distrito Sanitário Leste (DSL) do estado, atendendo uma população superior a 34 mil indígenas das etnias Makuxi, Wapichana,Ingarikó, Taurepang, Sapará, Patamona e WaiWai. A atuação dos agentes tem foco na promoção da saúde e prevenção de doenças por meio da Educação em Saúde, implantada pelo Ministério da Saúde. Clóvis Ambrósio (Wapichana), coordenador do DSL - Roraima, destaca o esforço do movimento indígena e a dedicação para concretizar a criação do Distrito Sanitário Leste e fazer a formatura dos agentes. “Estou muito feliz e sei que os agentes terão a possibilidade de continuar a sua formação dentro do trabalho que estão realizando nas comunidades”, disse. A formação da maior turma de AIS do Brasil foi resultado de uma parceria entre o Conselho Indígena de Roraima, a Fundação Nacional de Saúde e a Escola Técnica de Saúde do SUS. A formatura reuniu mais de mil pessoas, entre formandos e convidados, em Boa Vista, capital de Roraima. A conclusão do curso foi um momento histórico para a saúde indígena, além de consolidar a luta pelo reconhecimento profissional de uma categoria diferente do Agente Comunitário de Saúde. Além de formandos e autoridades, a solenidade contou com a presença de pajés, artesãos, músicos e lideranças indígenas de todo o estado. (Conselho Indígena de Roraima) Fotos: Cimi Norte II Roraima certifica maior turma de Agentes Indígenas de Saúde do Brasil País Afora Povo Tembé aciona o governo e pede indenizações por danos ambientais Governo foi omisso na proteção da terra do povo, que está 70% desmatada Claudemir Monteiro Cimi Norte II H á três meses corre na Justiça Federal uma ação contra o governo brasileiro pedindo indenização pelos danos ambientais na terra do povo Tembé, que vive no Pará. A ação, movida pelo próprio povo, representa a revolta dos Tembé diante da omissão e, às vezes, concordância do governo com os invasores de suas terras. Os Tembé do Alto Rio Guamá vivem a 250 quilômetros de Belém, próximos ao município de Capitão Poço, no centro do Pará. Nos últimos 20 anos, intensificaram as invasões de seu território e a destruição dos recursos naturais (ver quadro). Diante da demora do governo em retirar os invasores e reprimir os madeireiros e plantadores de maconha, os Tembé, por meio do cacique da Aldeia Sede, Ednaldo, entraram com uma ação indenizatória contra a União, pedindo R$ 20 milhões por danos ambientais. O recurso será usado para recuperar florestas e em projetos que ajudem na economia indígena. A ação tramita na 5ª Vara da Justiça Federal do Pará. No dia 13 de junho, o Ministério Público Federal do Pará, que havia pedido vistas do processo, pediu para atuar na ação como fiscal da lei. O MPF aguarda a decisão do juiz responsável. Cerca de 70% do território Tembé está desmatado, formado por fazendas e capoeiras que precisam de muito tempo para se recuperar. Em 2005, a Polícia Federal e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) identificaram 28 madeireiras e serrarias na área. Hoje, ainda há áreas com conflitos, numa delas, dentre os invasores, há plantadores de maconha e madeireiros armados que enfrentam até a Polícia Federal. É por conta desta destruição que os Tembé exigem indenização do governo federal. Segundo Ednaldo, que também é Pre- sidente da Associação do Grupo Tembé das Aldeias Sede e Ituaçu, antes de entrarem com a ação, os Tembé propuseram ao MPF que a Polícia fizesse uma ação para reprimir os madeireiros invasores. O cacique denunciou o desmatamento e passou a sofrer ameaças de morte. Não houve reação do governo ou do MPF para coibir as invasões. “Fiquei revoltado. Eu e o nosso povo.” Então entraram com a ação, apoiados pelo advogado Mário Davi. Ednaldo acredita que, por meio de levantamento ambiental, uma perícia identificará um dano de cerca de 20 milhões de reais. “Os ganhos da ação não são para beneficiar uma aldeia ou outra, mas todo o território do rio Guamá ao rio Gurupi”, afirma. O cacique disse que a Funai se manteve sem ação em relação ao processo, sugerindo “que não vai dar em nada”. Também não houve manifestação do MPF. “Pode ser que não se consiga nada. Mas o governo vai prestar mais atenção nas terras indígenas e pensar em ações para defender as áreas. Depois desta ação, à toa não ficaremos.”, crê Ednaldo. Estado não cumpriu sua função de proteger a área de madeireiros e fazendeiros. O cacique Ednaldo (foto) crê que a ação pode fazer o governo atuar melhor Histórico da invasão na terra Tembé Década de 1960 Serviço de Proteção ao Índio (SPI) incentiva a produção agrícola de posseiros, oficializando a invasão. 1976 A Funai cede ao fazendeiro Mejer Kabastinick parte da terra. Ele deveria abrir estradas e impedir a entrada de novos invasores. No entanto, milhares de famílias ocuparam a terra, incentivadas pelo fazendeiro, por madeireiros e políticos. Década de 1980 A Funai, em segredo, tenta criar colônias indígenas de 200 hectares para cada índio, liberando o resto para invasores. Lideranças indígenas, com apoio do Cimi, denunciam a proposta, que não vingou. A elite local tenta criar o município de Nova Esperança do Piriá, com metade da sede dentro da terra Tembé. Os Tembé não aceitam. O MPF cria uma comissão interinstitucional com Incra, Funai, Polícia Federal, indígenas e sindicatos. 1993 Os Tembé começam a retirar os posseiros, apreendendo tratores e toras de madeiras retiradas ilegalmente. 1996 A terra é homologada e registrada. Setenta e sete índios Tembé são aprisionados por posseiros no município de Garrafão do Norte. Diante do conflito, a Comissão inicia a retirada das famílias com indenizações e assentamentos em outras terras. 2000 Iniciou a retirada de famílias de uma das áreas de conflito, Bacaba, onde os índios passaram a viver. Outras famílias passam a sair da área. 13 Jun/Jul-2007 O parentesco dos Karipuna Foto: Nello Rufaldi A vida dos povos Para casar, povo segue regras tradicionais que mantém grupo unido e permitem a relação com não-índios Cimi Norte II* A No povo Karipuna, o casamento busca equilibrar dois princípios: não deixar o sangue espalhar e não viver isolados Jun/Jul-2007 história do povo Karipuna é quase desconhecida. Mas o nome Karipuna é citado há muito tempo na região do rio Oiapoque, em todo o norte Amazônico e na região das Guianas. O povo se formou a partir de remanescentes de populações de diversos lugares. Vêm das aldeias Palikur e Galibi Marworno, da região da Uaça (Amapá), do litoral paraense, dos povos que viviam no que se tornaram as colônias inglesas e da Guiana Francesa. O termo Karipuna é usado como autodenominação que indica uma identidade de índios misturados. A descendência Karipuna é dada aos filhos através da linha masculina. O parentesco no povo também reconhece que um grupo de famílias – uma parentela - compartilha do mesmo sangue, que não deve se espalhar. Este princípio leva a alianças entre famílias do mesmo grupo de parentes. No entanto, esses casamentos, somados ao ideal de viver isolados na companhia dos parentes, são vistos de forma negativa pelos Karipuna. Isto gera famílias extremamente fechadas em si mesmas, que não fazem acordos com outras famílias. Dessa forma, os princípios de casamentos dentro do grupo de famílias e de autonomia do grupo local precisam ser equilibrados por um outro princípio também valorizado: estabelecer alianças com o exterior. Esse princípio motiva os casamentos, muito freqüentes, dos Karipuna com pessoas de outros povos indígenas, negros, ribeirinhos e habitantes das cidades vizinhas. Portanto, o casamento Karipuna busca equilibrar dois princípios: não deixar o sangue espalhar (que gera casamentos dentro da parentela) e não viver isolados (que motiva 14 as uniões para fora). Desta forma, as uniões Fotos: Clifford D´Souza Clifford D´Souza com pessoas não-Karipuna não representam exceções à regra, mas são a condição da manutenção dos padrões de casamento e habitação Karipuna. A residência do novo casal é preferencialmente na casa da família da noiva. Tratando-se de casamentos com gente de fora da parentela, na maior parte com outros povos, dois arranjos são possíveis: u o cônjuge Karipuna sai das aldeias para morar na aldeia ou cidade da(o) esposa(o), mas mantém laços de cooperação com a família de origem. Os laços podem ser acionados em caso de festas nas aldeias, de tratamento de saúde em aldeias não-karipuna ou cidades vizinhas, de venda de produtos e comércio e outros. Informação geral u o cônjuge de fora passa a viver nas aldeias Karipuna. Há estratégias para ‘consanguinizar’ o cônjuge de fora: lembrança de alianças já realizadas por antepassados das duas famílias (geralmente usada em casamentos entre Karipuna e Galibi-Marworno); realização de novas alianças com familiares do cônjuge, que são atraídos para a nova aldeia; inclusão do cônjuge em redes de trabalho e cooperação, que o tornam Karipuna. Casamentos com não-índios acontecem com os que trabalham na aldeia, geralmente professores, mas em geral não são bem sucedidos. Os não-índios devem respeitar a lei local e obedecer ao sogro. Muitas famílias Karipuna ainda vivem segundo o padrão tradicional: os homens u Atualmente 1937 pessoas vivam nas aldeias Karipuna, na região do vale dor Rio Uaça, município de Oiapoque, extremo norte do estado do Amapá. u Há três terras indígenas contínuas, demarcadas e homologadas: as terras indígenas do Uaça (470.164 hectares), Juminá (41.602 hectares), e Galibi (6.689 hectares). u O estado do Amapá é o único que tem todas as terras indígenas demarcadas e homologadas, conforme a reivindicação dos índios. após o casamento passam a viver na casa dos pais de suas esposas durante dois ou três anos, para consolidar o casamento, geralmente com o nascimento de um ou dois filhos. Tempo, também, para o jovem marido reunir o material necessário para a construção de uma nova casa. Os casamentos são feitos perante o cacique e membros do Conselho. São considerados consumados depois que nasce a primeira filha ou filho. Só mais tarde é que casam na igreja. Há também um tribunal que escuta as pessoas quando há problemas entre os casais e que decide sobre separações e obrigações. (*A partir do relatório do Curso de Formação Básico do Cimi – Etapa II – 2006) Homenagem Resenha Brasil perde um de seus maiores indigenistas Aos 77 anos, falece o antropólogo Carlos de Araújo Moreira Neto F aleceu, na madrugada do dia 15 de junho, o antropólogo e etnólogo Carlos de Araújo Moreira Neto, aos 77 anos. Moreira Neto trabalhava com a questão indígena desde 1953, quando começou seus estudos, sob influência de Darcy Ribeiro, Curt Nimuendaju e Herbert Baldus, grandes referências da antropologia brasileira. Moreira Neto foi diretor do Museu do Índio, trabalhou para recuperar a história dos povos indígenas e escreveu diversos livros, dentre esses, merecem destaque as obras Índios da Amazônia, de maioria a minoria e O Índio e a Ordem Imperial. Esta última obra é a tese de doutorado de Moreira Neto, defendida no início da década de 1970. A obra só foi publicada 40 anos depois, mas antes disso já era importante referência. O livro é uma análise da política imperial em que se pode avaliar as causas e responsabilidades do desaparecimento de inúmeros povos indígenas, sendo um dos únicos estudos sobre política indigenista daquela época. Outra grande contribuição de Moreira Neto para o indigenismo brasileiro foi o trabalho de busca e preservação dos documentos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). No final da década de 1960, após um incêndio que destruiu boa parte do arquivo do órgão em Brasília, Moreira Neto, viajou por diversos estados brasileiros reunindo materiais históricos guardados nas sedes regionais do SPI. Em alguns lugares, documentos chegaram a ser vendidos como papéis velhos. Tendo trabalhado no antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), Moreira Neto sonhou com uma Fundação Nacional do Índio diferente. Achava que a Funai daria um passo além do que havia sido a política indigenista oficial. O Conselho Indigenista Missionário, lembrando a importância da obra de Moreira Neto, lamenta a perda deste grande defensor dos povos indígenas. Introdução à Teologia da Missão A idéia que norteou a Editora Vozes, em parceria com o Instituto Teológico Franciscano (ITF) de Petrópolis para a criação da Coleção foi o interesse em auxiliar os inúmeros alunos e professores dos Cursos de Ciências Religiosas, de Teologia para Leigos e até mesmo dos cursos institucionais de Teologia. Visam a importância de se criar uma reflexão acadêmica devidamente fundamentada, mas sem perder o público-alvo: todos os homens e todas as mulheres que buscam dar razões à própria fé através do saber teológico. Dentre as várias matérias teológicas que integram um curso de Teologia o livro de Paulo Suess introduz a Teologia da Missão, que nasce no coração de uma Igreja essencialmente missionária a serviço dos pobres e dos outros. Para se dar uma idéia do conteúdo da publicação, enumeramos os capítulos em que o autor, com um olhar universalmente contextualizado, macroecumênico, transdisciplinar e místico (capítulo 3), faz a leitura dos textos bíblícos (capítulo 1), dos tratados sistemáticos (capítulo 2), dos dados históricos (capítulos 4,5 e 6) e dos dados propriamente pastorais (capítulos 7 e 8). No capítulo 1, o propósito é levantar questões relevantes para uma teologia fundamental da missão que emergem da leitura dos escritos bíblicos. É a leitura da Igreja, comunidade de interpretação, que desde seus primórdios se compreendeu como herdeira legítima das promessas de Israel. territórios geográficos e fizeram a Igreja descobrir sua natureza missionária. Terminando essa parte histórica temos no capítulo 6 a reconstrução de alguns traços fundamentais do magistério latino-americano vinculados à essência missionária da Igreja e documentado basicamente nos documentos de Medellín, Puebla e Santo Domingo. No capítulo 7, o autor procura dar alguns impulsos para refletir sobre o diálogo em situação de pluralismo intercultural, macroecumênico e teológico-pastoral. No capítulo 8, são Introdução à Teologia da Missão – Convocar esclarecidos alguns pressupostos e enviar: servos e testemunhas do Reino para a ação missionária em suas Paulo Suess – Editora Vozes, Petrópolis/RJ diferentes ramificações entre 2007, 231p. Coleção Iniciação à Teologia presença silenciosa e anúncio No capítulo 2, o autor mostra o explícito nos confins do mundo e no resultado de uma longa evolução e dis- meio de nós. Enfatiza que na pratica cussão em torno do mistério da Santís- missionária há muitos zelos e atividasima Trindade, enquanto relevante para des, mas faltam, às vezes, método e a missão. Resume esse mistério com as rumo, discernimentos e prioridades, palavras de João: “Deus é amor”. autocrítica e conversão. Nos capítulos 4, 5 e 6, acompanhaNo final de cada capítulo enconmos o início da missão do cristianismo tramos um resumo, palavras-chave e desde os grandes centros urbanos questões referentes ao texto, além de do Império Romano; o trabalho dos uma preciosa bibliografia. Esta Teologia missionários da Companhia de Jesus, da Missão, que é ao mesmo tempo um nas Américas, os quais chegaram curso de missiologia fundamental, se motivados pelo Evangelho, porém dirige fundamentalmente às comunidespreparados para o reconhecimento dades que estão vivendo, descobrindo da alteridade, com a presença marcante ou aprofundando a sua natureza misde José de Anchieta; a importância do sionária, aos agentes de pastoral e aos Concílio Vaticano II que iniciou proces- estudantes de missiologia. sos que livraram a missão de fixações a Leda Bosi – Sedoc Convocação para XVII Assembléia do Cimi Nos dias 30 de julho a 03 de agosto de 2007, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) realizará sua XVII Assembléia Geral, no Centro de Formação Vicente Cañas, Jardim Ingá, município de Luziânia, Goiás. O tema de nossa XVII Assembléia será “Economias e Territórios Indígenas: tradição, nova realidade, utopia”. Além de comemorar seus 35 anos de fundação, o Cimi também estará deliberando sobre a criação formal, dentro da estrutura da entidade, do Centro de Formação Vicente Cañas, instância destinada à formação e capacitação de indígenas e missionárias(os) que atuam junto aos povos indígenas. Assine o Para fazer a sua assinatura, envie vale postal ou cheque nominal em favor de Cimi/Porantim: (somente por meio de carta registrada) Caixa Postal 03679 - CEP: 70.084-970 - Brasília-DF Inclua seus dados: Nome, endereço completo, telefone, fax e e-mail. Se preferir faça depósito bancário: Banco Real Ag: 0437 - C/C: 7011128-1 - Conselho Indigenista Missionário. Bradesco Ag: 606-8 - C/C: 144473-5 - Conselho Indigenista Missionário. Envie cópia do depósito bancário para o fax (61) 2106-1651, especificando a finalidade do mesmo. P r e ç o s Ass. anual: R$ 40,00 *Ass. de apoio: R$ 60,00 América Latina: US$ 25,00 Outros países: US$ 40,00 * Com a assinatura de apoio você contribui para o envio do jornal a diversas comunidades indígenas do País. Faça sua assinatura pela internet: adm.porantim@cimi.org.br 15 Jun/Jul-2007 Xicão vive, seu povo continua sua luta F rancisco de Assis Araújo, o Xicão Xukuru, teve uma vida parecida com a de muitos indígenas do Nordeste. Nascido em 1950, em Canabrava (PE), viveu sua infância nesta aldeia localizada nas terras Xukuru, então bem reduzida. Do antigo Aldeamento dos Tapuias Chururus, da freguesia de Ararobá, dirigida pelos padres Oratorianos (Informação geral de Pernambuco, 1749), pouca coisa restava. Com a lei de 1757, do Marquês de Pombal, o aldeamento tornou-se vila portuguesa, recebendo o nome de Cimbres. As terras passaram a ser invadidas por brasileiros que iam ocupando a região. Nem a participação de um grupo Xukuru na guerra do Paraguai, no século 19, garantiu a volta das terras indígenas, pois o aldeamento era considerado extinto. Ficara para os indígenas apenas a festa de Nossa Senhora das Montanhas, chamada por eles Tamain, que ocorria no dia 2 de julho, e as visitas, escondidas, que os pajés faziam à Pedra do Rei do Ororubá. A vida ficava cada vez mais difícil: parte da área tornou-se cidade de Pesqueira e parte continuava ocupada por posseiros e fazendeiros poderosos, como os Brito e os Maciel. Por isso muitos jovens tiveram que sair, como foi o caso de Xicão, que partiu para São Paulo, onde se tornou motorista de caminhão. Apesar de ser uma profissão que dava para ganhar algum dinheiro, era uma atividade muito estressante. Com úlcera gástrica, voltou para a aldeia no início dos anos 80, indo parar na Santa Casa, de Recife. Lá encontrou outros indígenas, como João Tomaz, pajé Pankararu, e Antônio Celestino, pajé do povo XukuruKariri, de Alagoas, que também estava internado. O pajé Antônio disse para Xicão sair de lá, pois na aldeia se curaria. Assim ocorreu. Não só ficou curado, como também foi convencido de que deveria assumir a luta para recuperar a terra Xukuru. A luta começou e a área foi sendo recuperada. A primeira retomada foi de Pedra D’Água, em novembro de 1990, que os posseiros haviam arrendado ilegalmente. Era uma área importante, pois ali se encontrava a Pedra Sagrada do Reino de Ororubá. Em fevereiro de 1992, retomaram a fazenda Caípe de Baixo, invadida por um vereador do PFL que criava gado. A tensão aumentava. Como represália, foi assassinado o filho do pajé, a mando do fazendeiro Edvaldo de Farias. Revoltados, os Xukuru incendiaram a sede da fazenda, aproveitando a fuga do fazendeiro. Outras retomadas aconteceram em 1994 e 98. Xicão preocupava-se também com a aldeia, apoiando a escola e as festas tradicionais: “Nós podemos fazer nossa viagem eterna, dizia ele, mas nossos filhos e nossos netos precisam viver nesta terra, e temos que prepará-los para dar este seguimento”. Em 1995 foi assassinado o advogado defensor dos índios, Dr. Geraldo Rolim da Mota Filho. A tensão aumentava e Xicão também ficou jurado de morte. Algum dia antes de morrer, num ato contra a violência na área, declarou: “Sou ameaçado de morte e pode ter político atrás disso. (...) Estão querendo fazer comigo o mesmo que fizeram com Antônio Conselheiro e com Che Guevara. Se este for meu destino, não vou recuar. Não vou guardar ódio de ninguém.” No dia 20 de maio de 1998, quando se encontrava em Pesqueira, Xicão tombou, assassinado por um pistoleiro a mando de fazendeiros da região, que formaram um consórcio para financiar este crime. Sua mensagem foi retomada pelo pajé de seu povo, pela liderança forte de Zenilda, sua esposa, e confirmada por seu filho, Marquinhos, atual cacique, apoiado pelas lideranças das 24 aldeias Xukuru. A luta de Xicão continua inspirando a luta de todos os povos indígenas do Brasil. APOIADORES Hoje, o 20 de maio é uma data de referência para a luta dos povos indígenas do nordeste. UNIÃO EUROPÉIA Benedito Prezia Jun/Jul-2007 16