De entre as catástrofes da história europeia do século xx, a Guerra Civil de Espanha continua, hoje, a exercer um particular fascínio sobre nós. Por um lado, trata-se da primeira guerra «fotogénica» da história, no sentido em que nos deixou uni impressionante legado de in1agens sobre as várias faces do conflito. Por outro lado, implicou a mobilização civil não só de espanhóis como de homens e mulheres de todo o mundo, que ingressaram nas suas fileiras voluntarian1ente. Por fim, a Guerra Civil de Espanha foi o cenário onde outras potências testaram as inovadoras tecnologias bélicas utilizadas pouco depois, durante a Segunda Guerra Mundial. Com exemplaridade literária e científica, Helen Grahwn propõe-nos uma primeira abordagem ao tema. Profusamente ilustrada com fotografias e cartazes, esta síntese sublinha o contexto nacional e internacional do conflito, as suas causas, o seu percurso e as suas consequências. , TRADUÇÃO DE VLADIMlRO Nt:NES 1 "STOR • ISBN 972-8955-13·8 ' . � ' . '• • i� ' _- [:. rnrR CHINH . - - -- . . . -• .._ •· t.,;;. �, ·..'.':.:_'·". :: .._ ' -- ;; ' 1, ' - : -%ul9fesrun . -, :, i � 1 •• 1 • - -• • "·•, • -. -1. ,' 11 • ' - • --,- �-, •• ·. ·.:·. ., • '. L BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA HELEN GRAHAM BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Tradução de Vladimiro Nunes LISBOA: TINTA-DA-CHINA MMVI © 2006, Edições tinta-da-china, Lda. Rua João de Freitas Branco, 33, Loja 8 1500-627 Lisboa Tels: 21 726 90 28/9 1 Fax: 21 726 90 30 E-mail: tintadachina@netcabo.pt © 2005, Helen Graham The Spanish Civil Wlr -A Vtóry Short Introduction was originally published in English in 2005. T his translation is published by arrangement with Oxford University Press. T his edition is not for sale in Brazil. The Spanish Civil Wlr -A Vtóry Short Introduction foi originalmente publicado em inglês em 2005. A presente edição resulta de um acordo estabelecido com a Oxford University Press. Esta edição não pode ser vendida no Brasil. Autor: Helen Graham Tradução: V ladimiro Nunes Revisão: Tinta-da-china Capa: Vera Tavares Composição: Olímpio Ferreira e Vera Tavares 1.' edição: Agosto 2006 ISBN 972-8955-13-8 Depósito Legal n.º 247307/06 Tens de lembrar-te disto e garantir que os outros se lembram. Lurs CERNUDA lndice Prefácio e agradecimentos 11 1. As origens da Guerra Civil de Espanha 17 2. Rebelião, revolução e repressão 39 3. Mobilizar e sobreviver: a república em guerra 57 4. A construção da Espanha rebelde 91 5.A república sitiada 113 6. Vitória e derrota: as guerras depois da guerra 145 7. Os usos da história 169 Lista iconográfica 187 Notas 189 Outras leituras 193 Cronologia 199 Glossário 207 Índice remissivo 209 Prefácio e Agradecimentos D G.M. E entre as dolorosas catástrofes da história europeia do século xx, a Guerra Civil de Espanha continua, hoje, a exercer um particular fascínio. A força desta atracção não pode, decerto, ser explicada em termos da escala geográfica e humana do conflito ou dos horrores tecnológicos a que então se assistiu, uma vez que, em maté­ ria de destruição material e de tragédia humana, a guerra de Espanha é mitigada por outros conflitos. E isto mesmo se incluirmos numa análise comparativa o horror continuado de prisões e de assassínios em massa que foi o «pós-guerra» na Espanha dos anos 40. Porém, o vínculo que estabelecemos com a Guerra Civil de Espanha é inegável, tendo gerado mais de 15 mil livros - um acervo bibliográfico que riva­ liza com o da Segunda Guerra Mundial. O principal objectivo deste pequeno livro é explicar a Guerra Civil - as suas causas, o seu curso e as suas consequências, tanto no âmbito interno como no internacional. O texto não trata em detalhe de batalhas ou de estratégia, pelo que os leitores mais interessados na história militar convencional devem procurá-la noutra bibliografia (ver Outras leituras). No seu todo, a obra debruça-se principalmente sobre a forma como a guerra afectou as vidas física e psíquica de sol­ dados e civis, e sobre a forma como moldou o curso da política, da sociedade e da cultura em Espanha, mas também além-fronteiras. A Guerra Civil de Espanha foi o primeiro conflito da Europa em que os civis se tornaram alvos em massa, através de bombardeamentos [12} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA em grandes cidades. O novo fotojornalismo, que fez dela a primeira guerra «fotogénica» da história, transmitiu imagens impressionantes do vasto número de refugiados políticos que o conflito produziu.Já durante a Primeira Guerra Mundial tinham ocorrido migrações popu­ lacionais, mas nenhuma obteve a visibilidade das que aconteceram em Espanha. A Guerra Civil impressionou profundamente aqueles que a ela assistiram a partir de outros países europeus. Para os pró­ prios espanhóis, o choque foi enorme. Não havia termos comparati­ vos de referência, por mais remotos que fossem, para a mobilização militar, industrial, social e política que a Guerra Civil provocou, uma vez que Espanha não tinha participado na Primeira Guerra Mundial de 1914-18. Como é sobejamente conhecido, Espanha também se tor­ nou o local onde outras potências testavam as mais recentes tecnolo­ gias de guerra. Ainda mais friamente, o conflito revelou o que poderia significar a guerra em solo europeu, pressagiando os conflitos puri­ ficadores, genocidas e vingativos de muitas outras guerras civis que grassaram pelo continente entre 1939 e o final da década de 40. O que isto também indica é que, mesmo nas suas origens, a Guerra Civil de Espanha foi um fenómeno intrinsecamente europeu. Não se pretende aqui sugerir que as tensões e ansiedades no interior da sociedade espanhola, que conduziram ao golpe militar que precipi­ tou a guerra, tenham sido geradas por outras causas que não as de ori­ gem interna. Contudo, nem a polarização social e política em torno de questões como o sufrágio universal, a reforma da segurança social e a redistribuição da propriedade fundiária e do poder económico nas zonas rurais, nem os conflitos culturais que então se faziam sentir (desde antes da eclosão da guerra civil) em torno das reformas secu­ larizantes ou da oposição entre cosmopolitismo urbano e tradição rural, aconteceram exclusivamente em Espanha. As pretensas «solu­ ções» para o conflito espanhol carregavam consigo todos os ingredien­ tes das receitas monolíticas impostas por outros regimes fascistas ou quase fascistas um pouco por toda a Europa. Este contexto partilhado fornece a chave para explicar por que razão a Guerra Civil exerceu um impacto tão forte fora de Espanha e por que razão ainda hoje ressoa o sentido da importância da guerra. O segundo objectivo deste livro consiste, portanto, em examinar os debates históricos e as polémicas PREFÁCIO E AGRADECIMENTOS políticas que a Guerra Civil alimentou, já que a sua discussão nunca foi território exclusivo dos historiadores profissionais - tanto em Espanha como nos outros países. O capítulo I procura esclarecer tematicamente os factores em conflito na história espanhola do século xx, explorando o papel que desempenharam nos anos 30. No entanto, não fornece uma narra­ tiva completa e cronológica dos anos de república que antecederam a guerra (1931-36), uma vez que esta se encontra facilmente disponí­ vel em muitas outras fontes (ver Outras leituras). Estes conflitos são desenvolvidos no capítulo 2, que explora a forma como os diferentes quadrantes políticos e sociais procuraram resolvê-los na sucessão de acontecimentos desencadeada pelo golpe militar de 17 e 18 de Julho de 1936. Estes dois primeiros capítulos também procuram retratar a cultura de caserna e de campo de batalha (colonial) em que se for­ maram os militares do exército que se insurgiram contra a segunda república democrática, entre eles o general Francisco Franco, que ascendeu à suprema liderança militar e política durante a guerra civil e que, tendo-a conquistado, governou Espanha durante os 36 anos seguintes. Os capítulos 3, 4 e 5 exploram não só a escalada do con­ flito ao longo do seu complexo processo de internacionalização mas também o modo como a experiência de guerra moldou a política e a sociedade - quer nas zonas republicanas quer nas franquistas - e como, em última análise, a política e a diplomacia das grandes potên­ cias foram determinantes para o seu desfecho. Na sua globalidade, o livro percepciona a Guerra Civil como um cenário de transformação social onde nasceram e subsistiram dife­ rentes ideias sobre cultura (entendida no seu sentido mais lato), e no qual participaram, com o mesmo grau de envolvimento, cidadãos espanhóis e estrangeiros. Estes conflitos haveriam de continuar por toda a parte - não apenas na Europa - durante a Segunda Guerra Mundial de 1939-45. O capítulo 6 trata destes temas, bem como da violenta repressão exercida em Espanha por um regime que se con­ siderava parte da nova ordem nazi na Europa. Inerente às aspirações totalitárias do franquismo vitorioso, houve uma tentativa de bran­ queamento da memória dos vencidos. A própria escrita da história tornou-se campo de batalha. O capítulo 7 documenta a tentativa de o BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA regime se apropriar do passado, bem como o subsequente fracasso patente na nova historiografia da guerra e, acima de tudo, no regresso da memória republicana que se verifica através dos canais da socie­ dade civil espanhola no começo do século xx1. No final do livro, a secção Outras leituras fornece uma bibliogra­ fia sucinta com abordagens variadas do tema, incluindo alguns títulos sobre as relações de Portugal com a Espanha entre 1936 e 1939, e al­ guns romances que têm como cenário a Guerra em Espanha. Indicam­ -se ainda os sítios de internet considerados mais relevantes. Gostaria de agradecer a todas as pessoas que leram esboços do meu texto, e também a EmilyJolliffe e Marsha Filion, por serem edito­ ras amáveis e pacientes. No que respeita à ajuda específica com fontes escritas ou visuais, ou ao auxílio a nível tecnológico, estou em dívida para com (por ordem alfabética): Peter Anderson, Richard Baxell, Benito Bermejo, a família Campafiá, Hilary Canavan, Cornell Capa, Jane Durán, o falecido Harry Fisher, Laia Isla, Conxita Mir, Cary Nelson, Paul Preston, Alex Quiroga, Antonina Rodrigo, Francisco Romero, Mariano Sanz, Ramón Sender Barayón, Rémi Skoutelsky, Mary Vincent e Ricard Vinyes. Mais genericamente, gostaria de agra­ decer aos meus amigos, colegas e alunos, por tudo o que me ensinaram sobre o esforço colectivo de fazer história. Todas as restantes insufi­ ciências e erros são, obviamente, da minha inteira responsabilidade. 1. As origens da Guerra Civil de Espanha Vivam aqueles que nos trazem a supremacia da lei. A MINISTERIO JuanAntonio Morales, 1936. DE PR PACANDA Guerra Civil de Espanha começou com um golpe de estado. Il.Havia um longo historial de intervenções militares na vida polí­ tica espanhola. O golpe de 17 e 18 deJulho de 1936, ainda que se enqua­ drasse nesse contexto, apresentava um objectivo inusitado: travar a massificação da democracia política que se iniciara com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa e que fora acelerada pelas con­ sequentes mudanças sociais, económicas e culturais dos anos 20 e 30. Neste sentido, a insurreição militar contra a segunda república democrática em Espanha foi o equivalente às viragens fascistas em Itália e na Alemanha, com a chegada ao poder de Mussolini (1922) e de Hitler (1933), também elas concebidas para controlar manifestações de mudança social, política e cultural. À primeira vista, pode parecer contraditório que, no pacato ter­ ritório espanhol, o embate entre o antigo e o novo tenha degenerado numa guerra civil em larga escala. No entanto, antes de mais e acima de tudo, temos de recordar que a transformação do golpe militar em guerra civil, e depois em guerra «total» moderna, envolvendo a grande maioria da população civil, decorreu essencialmente de factores exter­ nos ao panorama espanhol. Também é verdade que, quando procuram identificar retrospectivamente as causas da Guerra Civil, os espanhóis recorrem com frequência a pensamentos e sentimentos que foram gerados pela guerra propriamente dita. Apesar de ter vingado a ideia da existência de «duas Espanhas» prontas a confrontarem-se a 18 de {18} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Julho de 1936, «nós» e «eles» foram categorias forjadas pela experiência violenta da guerra, e não existiam propriamente antes dela. Todavia, mesmo no rescaldo imediato do golpe militar de Julho, e antes que quaisquer factores internacionais pudessem entrar em jogo, já ocorriam por praticamente toda a Espanha formas extremas de violência recíproca. Por isso, os historiadores têm de explorar o significado desta violência e a sua relação com o ambiente interno do pré-guerra. Neste aspecto, houve três factores fundamentais. Pri­ meiro, os níveis extremamente desfasados de desenvolvimento pre­ valecentes em Espanha por volta dos anos 30, no sentido em que o golpe militar desencadeou, efectivamente, uma série de guerras entre culturas: a cultura urbana e os estilos de vida cosmopolitas versus a tradição rural; o secular versus o religioso; o autoritarismo versus as culturas políticas liberais; o centro versus a periferia; o papel tradi­ cional do género feminino versus a «nova mulher»; e até mesmo os jovens versus os velhos, uma vez que os conflitos geracionais também se faziam sentir. Em segundo lugar, a violência com que os elementos em oposi­ ção se confrontaram não pode ser dissociada da influência cultural de um tipo de catolicismo maniqueísta que ainda predominava em Espanha, afectando inclusive muitos daqueles que tinham rejeitado de forma consciente a crença religiosa e a autoridade da igreja. Final­ mente, e uma vez que o detonador dos acontecimentos foi um golpe militar, temos de observar o papel desempenhado pelo exército espa­ nhol e, em particular, a emergência de uma cultura política rígida e intolerante no seu corpo de oficiais ao longo das primeiras décadas do século xx. Um aspecto crucial em todos estes factores, especialmente no militar, foi a perda definitiva do império, em 1898, que privou o país dos seus mercados externos protegidos e, consequentemente, desencadeou um debate amargo e intermitente sobre como deveria a Espanha modernizar-se economicamente e quem deveria suportar os custos dessa modernização. Os argumentos evocados a favor das reformas internas pelas elites industriais espanholas relativamente mais progressistas, em especial as originárias do sector têxtil catalão, tiveram pouco seguimento, uma vez que afrontavam os interesses ins- AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA talados de um sector agrícola inevitavelmente mais poderoso, num país cuja economia ainda se baseava sobretudo na agricultura. Os grandes latifundiários, cujas propriedades dominavam a metade sul de Espanha, teriam sido o sector de elite mais afectado pelas refor­ mas económicas e políticas. Além disso, eram também inflexíveis em termos de temperamento: muitos eram pais e irmãos mais velhos das elites militares - grupos conhecidos pela sua extrema desconfiança em relação à mudança. A perda do império destituiu o descomedido corpo de oficiais espanhol, herdado das constantes guerras do século x1x, de qualquer papel significativo na defesa externa, transformando os militares num poderoso lóbi político interno, determinado em encontrar um novo papel e, ao mesmo tempo, em precaver-se contra qualquer perda de rendimento ou de prestígio. Para remover o estigma da derrota, cres­ ceu entre os corpos de oficiais um mito poderoso, segundo o qual os políticos civis tinham sido os únicos responsáveis pela perda defini­ tiva do império, o que lhes conferiria escassa legitimidade moral para governar o país. Esta convicção estava já profundamente enraizada quando Francisco Franco ingressou, aos 15 anos, na academia militar, em 1907. Uma nova geração de cadetes começou a afirmar-se como defensora da unidade e da hierarquia de Espanha, bem como da sua homogeneidade cultural e política, consubstanciada na grandeza his­ tórica do país. De facto, boa parte da elite militar foi mais longe, inter­ pretando a apologia desta ideia de «Espanha» como um novo dever imperial - e, desse modo, interpretando erradamente a constituição monárquica, que definia os territórios coloniais espanhóis como pro­ víncias da metrópole. O aspecto mais perigoso desta nova interpreta­ ção da defesa do império foi o facto de ter sido dirigida contra outros grupos de espanhóis, que simbolizavam as mudanças sociais e econó­ micas em curso nas vilas e cidades. Estas mudanças foram mais lentas do que em alguns outros paí­ ses europeus, mas, por volta da segunda década do século xx, a Espa­ nha urbana estava em movimento. Cidades como Sevilha ou Saragoça cresciam, à medida que a indústria (ainda que numa escala pequena) se expandia para além das habituais áreas do norte (minas de carvão, fundições de ferro e aço, construção naval) e do nordeste (têxteis {20} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA catalães). Igualmente afectada foi a região de Valência, na costa nor­ deste, onde o desenvolvimento industrial e urbanístico reforçou o anticentralismo tradicional (federalismo). Estas mudanças económi­ cas e o desenvolvimento que as acompanhou - por exemplo, ao nível da melhoria das vias de comunicação e transporte ou da circulação relativamente mais livre de novas ideias - criaram novos círculos sociais: um sector profissional urbano e trabalhadores da indústria, ambos com um desejo crescente de expressão política. A ordem social tradicional, com os seus privilégios altamente restritos, estava, por­ tanto, sob uma pressão cada vez maior na Espanha urbana. No entanto, existia outro país, de longe bem menos afectado por estas reivindicações: a Espanha rural e provinciana, la Espanaprofanda. A maior parte dos 20 milhões de espanhóis (21 milhões e 303 mil, em 1920) ainda vivia em aldeias e pequenas vilas. No centro e no norte, o grosso da população era constituído por camponeses minifundiários, muitos de condição modesta, algu ns muito pobres. Esta sociedade rural servia as populações de cidades agrárias ou mercantes, habitadas por uma classe média provinciana, de atitudes sociais semelhantes. Era um mundo austero, unido pelos laços dos costumes e da tradição, no qual uma forma conservadora de catolicismo fornecia a linguagem, os valores e a cultura comuns. A relação estreita entre a igreja e a comu­ nidade era cimentada pela decisiva função pastoral exercida pelos párocos locais. A igreja proporcionava não só conforto espiritual, mas também apoio em questões práticas - frequentemente sob a forma de bancos de crédito agrícola, que ofereciam uma tábua de salvação a uma classe empobrecida de pequenos agricultores, permanentemente ameaçada pelo fracasso das culturas e receosa de ficar à mercê dos capitalistas. O facto de a igreja e a comunidade desejarem proteger-se reciprocamente derivava do receio que ambas sentiam em relação à mudança, assim como do facto de se identificarem com um velho e acarinhado mundo de ordem e hierarquia. Muitos identificavam-se especificamente com a monarquia, que entendiam ser a melhor forma de governo para proteger esta ordem. A igreja mantinha-se-lhe fiel, quanto mais não fosse para evitar as consequências do avanço do libe­ ralismo político e do pluralismo cultural, que ameaçavam profunda­ mente o seu próprio monopólio da verdade.Já nas primeiras décadas AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA {21} do século xx, a igreja católica espanhola sentia o cerco a apertar: não só dispunha de pouca autoridade entre os trabalhadores citadinos, como também há muito perdera os numerosos pobres do sul rural. Os trabalhadores agrícolas do «sul profundo» consideravam-na como o sustentáculo perpetuador de uma ordem fundiária que os oprimia. O sul de Espanha era dominado por enormes propriedades, onde tra­ balhavam camponeses sem terra cujas vidas eram dominadas por uma luta constante contra a fome. Por norma, as grandes propriedades cultivavam uma só plantação, o que significava que os trabalhadores dependiam de uma única fonte de rendimento, a qual, mesmo assim, existia apenas durante uma parte do ano - as épocas de sementeira e de colheita. Na ausência de um sistema público de segurança social ou de quaisquer outras formas de combate à pobreza, esta dependência transformava os sem-terra em potenciais escravos à disposição dos latifundiários e dos intendentes. Os trabalhadores eram agredidos pelos capatazes e pela polícia rural, a odiada guarda civil que atirava a matar contra trabalhadores desempregados que procurassem bolotas e madeira em propriedade privada. O facto de o pároco local actuar, invariavelmente, como aliado do proprietário e do chefe da polícia tornava as classes rurais desfavorecidas veementemente anticlericais e fazia da religião um foco vicioso de cisão política e de classe social. A exploração sistemática dos mais fracos transformava a violência num factor endémico a esta sociedade rural fortemente reprimida. As periódicas revoltas de escravos protagonizadas pelos camponeses pobres eram no entanto facilmente neutralizadas pela polícia, tanto antes como depois da Primeira Guerra Mundial. Contudo, na Espanha urbana, a Primeira Guerra Mundial foi, tal como no resto da Europa, a grande impulsionadora das mudan­ ças sociais. Embora Espanha não tenha participado militarmente, a guerra deu origem a um acentuado crescimento económico, mas tam­ bém a formas extremas de inflação e de êxodo populacional que afec­ taram drasticamente os sectores mais desfavorecidos da sociedade, tanto nas zonas rurais como nas urbanas. Foi nas zonas urbanas que a consequente agitação social mais alarmou os grupos de elite, que começaram a encarar os protestos incontrolados à luz da Revolução Russa. O epicentro da ameaça era a «vermelha» Barcelona. As classes {22} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA dominantes espanholas não temiam propriamente a sombra do bol­ chevismo, mas sim a da CNT (Confederación Nacional dei Trabajo), um poderoso movimento anarco-sindicalista daquela cidade. A CNT empenhava-se em formas directas - e por vezes violentas - de acção contra os empregadores mais intransigentes, que conspiravam com as autoridades militares (houve mesmo um caso célebre envolvendo um oficial de alta-patente que era governador civil de Barcelona) para assassinar líderes sindicais afectos àquele movimento. Com o objec­ tivo de pôr cobro aos distúrbios laborais e de restaurar a ordem con­ servadora no país, o general Miguel Primo de Rivera conduziu, em 1923, um golpe militar «moderado», bem acolhido pelo monarca em exercício, o rei Afonso XIII, que privilegiava fortemente as soluções militares para os problemas da governação, em detrimento das solu­ ções constitucionais. O trilho da ditadura também foi facilitado pelo crescimento eco­ nómico dos anos 20, que, ao mesmo tempo, intensificou as reivindi­ cações dos sectores urbanos de classe média por reformas políticas, nomeadamente por direitos constitucionais que defendessem os seus interesses face ao poder arbitrário do ditador. Os partidos políticos eram ilegais, mas, nos anos 20, assistiu-se à proliferação de associa­ ções profissionais - de professores, de funcionários dos correios, de médicos, entre outros - , processo que, na prática, levou alguns secto­ res da classe média espanhola a tornarem-se republicanos, em busca de direitos políticos. O crescente êxodo para as cidades em tempos de crescimento económico e a difusão da rádio entre as camadas instruídas das metrópoles também aumentaram dramaticamente o fosso entre a Espanha urbana e as aldeias e vilas da Espanha profunda. O florescimento da modernidade podia ainda ser pressentido nas próprias contradições da ditadura. Apesar do seu empenho em restaurar uma ordem conservadora, Miguel Primo de Rivera tam­ bém procurou implementar algumas reformas-chave nos domínios do exército e dos direitos laborais. Mas, nesses aspectos, até mesmo uma ditadura militar se via condicionada pelos interesses corporati­ vos dos militares, ao mesmo tempo que as elites fundiárias travavam a extensão das principais reformas sociais às massas empobrecidas do sul rural. Quando a oposição militar derrubou Miguel Primo de AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Rivera, em 1930, o rei viu-se comprometido. Perante a vaga de repu­ blicanismo na Espanha urbana, a igreja católica era a única instituição do antigo regime a apoiar inequivocamente a monarquia. A recorda­ ção dos elementos perigosamente inéditos da ditadura pode ter tido a paradoxal consequência de tornar o cenário de uma república menos significativo aos olhos dos grupos de elite. Na verdade, quando foi proclamada de forma pacífica, a 14 de Abril de 1931, a república pode até ter sido encarada como um meio eficaz para apaziguar a opinião pública, representada pelas multidões jubilantes que se aglomeraram nas ruas das grandes cidades. Porém, aqueles que acreditavam que a república seria, simplesmente, «mais do mesmo» - a ordem política da monarquia, embora sem um rei - cedo se desenganaram: o pri­ meiro governo republicano estava determinado em conferir ao novo regime uma essência reformista, capaz de produzir uma redistribui­ ção fundamental do poder social e económico em Espanha. Os apoiantes de uma agenda reformista constituíam dois grupos distintos. O primeiro, dos republicanos progressistas, era uma classe política composta sobretudo por advogados e professores, que for­ mavam pequenas associações, mais do que partidos de massas. Jus­ tamente por lhes faltar força eleitoral no que era agora um sistema político baseado no sufrágio universal, os republicanos necessitavam do apoio do segundo grupo: o movimento socialista espanhol (par­ tido político e sindicato). Historicamente moderado e reformista, este era, à altura da proclamação da república, o único movimento político de massas em Espanha. Enquanto os socialistas estavam empenhados nas reformas sociais, desejando criar um pequeno estado-providência, os republicanos centravam os seus objectivos nas reformas estruturais. Consideravam-se herdeiros da Revolução Fran­ cesa de 1789 e procuravam abrir Espanha à Europa, implementando a modernização económica e cultural, segundo o modelo francês, em quatro aspectos essenciais: propriedade agrícola, educação, relações entre estado e igreja, e exército. A reforma agrária visava a criação, no sul de Espanha, de uma comunidade de pequenos proprietários rurais afectos à causa republi­ cana, cujo aumento do poder de compra também potenciasse um mer­ cado interno que pudesse estimular o desenvolvimento industrial. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA A igreja e o estado deviam ser separados, e os subsídios públicos atri­ buídos ao clero progressivamente extintos, de modo a libertar recur­ sos para financiar um sistema nacional não religioso de instrução primária, através do qual a nação republicana pudesse ser construída. A reforma do exército visava colocar aquela instituição sob controlo civil e constitucional. Paralelamente, a redução dos corpos de ofi­ ciais também permitiria cortes na factura dos salários, gerando mais fundos para as reformas estruturais. Todas as reformas republicanas, assim como a legislação para um sistema de segurança social dos seus colegas socialistas, tinham por objectivo aumentar a democracia eco­ nómica enquanto pré-requisito essencial para o estabelecimento de uma democracia política. Os republicanos progressistas eram, acima de tudo, constitucionalistas, apesar de compreenderem que muitos mais cidadãos económica e socialmente desfavorecidos tinham de ser incluídos até que a república pudesse, efectivamente, implemen­ tar a supremacia da lei. Mas compreender uma situação é uma coisa e ter o poder indispensável para implementar as medidas necessárias é outra, bem diferente. O programa de reformas estruturais da república era extrema­ mente ambicioso. De facto, era certamente demasiado ambicioso para que se pudesse tentar concretizar de uma só vez. Pior ainda, a tentativa ocorreu numa época de depressão económica mundial, em que o novo governo estava sobrecarregado por um ónus de dívidas herdado da ditadura de Rivera. É mesmo assim compreensível que os republicanos e socialistas sentissem que não havia tempo a perder. T inha passado meio século desde a última vez que forças políticas progressistas haviam estado no poder - e, mesmo assim, de forma muito fugaz, durante a primeira república de 1873. Assim, tornava-se patente a acumulação de reformas por implementar. Mas a complexi­ dade própria das reformas estruturais, associada à dificuldade que o governo sentia em encontrar quadros com experiência - também ela pouco surpreendente, uma vez que a esquerda estivera tanto tempo excluída do poder - só foram agravar os problemas que depressa se conglomeraram no novo horizonte político. Inevitavelmente, as reformas suscitaram a oposição das elites tra­ dicionais espanholas. A reacção da hierarquia eclesiástica assumiu um AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA tom apocalíptico, antes mesmo que a república tivesse sequer come­ çado a fazer política. A carta pastoral emitida pelo cardeal-patriarca a 1 de Maio de 1931 continha uma incendiária homilia monárquica que levou o governo a exigir-lhe que abandonasse Espanha. O apelo que lançou aos fiéis, no sentido de se mobilizarem em nome do rearma­ mento espiritual e patriótico, ficou a um passo de declarar a república como regime ilegítimo. Ainda por cima, nas suas intervenções públi­ cas, outros bispos fizeram-no abertamente, ao descreverem a repú­ blica como um triunfo do erro e do pecado. Em determinados sectores das elites militares espanholas era também evidente uma tendência para o apocalipse ideológico. Desde o fim do império, os corpos de oficiais tinham-se tornado uma casta cada vez mais encerrada sobre si própria. As academias militares favoreciam descaradamente os filhos de oficiais. As filhas de oficiais faziam casamentos em famílias de militares. Era um mundo onde as pessoas estabeleciam cada vez menos laços com outros grupos sociais. Nos primeiros anos do século xx tinha começado, em Marrocos, uma nova investida colonial à pequena escala. Todavia, a experiência das campanhas no norte de África forjou uma nova estirpe de naciona­ lismo belicista que contribuía ainda mais para endurecer a atitude dos militares. De facto, foi entre os oficiais que fizeram carreira no exér­ cito colonial de África, incluindo o próprio Francisco Franco, que emergiram as visões mais fatalmente redutoras sobre o que havia de errado na sociedade e nas políticas da Espanha metropolitana. Quando, em 1927, Franco chegou à chefia da principal academia militar espanhola, em Saragoça, fez-se rodear de uma equipa de ins­ trutores dominada por esses oficiais coloniais, os africanistas. A aca­ demia transformou-se num terreno fértil em ideias de renascimento imperial, dos militares como guardiães e salvadores de Espanha, e, nessa medida, fez parte integrante de uma emergente política ultra­ nacionalista de direita. A ideia de um batalhão de soldados «salvando a civilização» seria moldada, na sua forma definitiva e mais extrema, pelo fascismo europeu, na década de 30. José Antonio Primo de Rivera, líder do partido fascista espanhol - a Falange - citou a for­ mulação clássica do livro A Decadência do Ocidente (vol. 2, 1922) de Oswald Spengler -, um texto que, à semelhança das soluções propostas {26} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA pelos africanistas, era um sintoma patológico de mudança social, mais do que a cura que proclamava ser. Uma das primeiras decisões do governo republicano foi o encerramento da academia militar de Saragoça. Além disso, foram também congeladas as promoções atri­ buídas durante as campanhas em Marrocos, facto que enfureceu os africanistas. Muitos oficiais não só eram hostis ao propósito repu­ blicano de impor o controlo civil e constitucional sobre o exército, como também sentiam que isso afrontava os seus princípios ultracen­ tralistas, já que os republicanos e socialistas, apesar de serem bastante centralistas, se preparavam para devolver alguns poderes políticos às nações do País Basco e da Catalunha, num exercício de construção do regime e de boa-fé democrática. À parte das questões de cultura política e de ideologia, outros aspectos não menos cruciais para os jovens oficiais do exército eram o dos salários e o das perspectivas de carreira. Inevitavelmente, ambos seriam comprometidos pelas reformas republicanas. A verdade é que nem mesmo a ditadura militar dos anos 20 tinha alcançado quais­ quer resultados ao tentar interferir nas prerrogativas do exército, o que não era um bom presságio para os políticos civis - republica­ nos à cabeça - que estavam decididos a deitar mãos à reforma do exército. No final, o golpe de Julho de 1936 haveria de encontrar os seus mais acérrimos apoiantes entre esta classe de jovens oficiais, que recusava ver os seus privilégios materiais mais prejudicados e que era também profundamente hostil à ideia de uma democracia pluralista. Porém, estes oficiais não se mobilizaram por terem mais a perder em 1936 do que em 1932, quando foi ensaiada, sem sucesso, uma pri­ meira tentativa de golpe, nem a propensão apocalíptica era necessa­ riamente mais exacerbada agora do que no passado. Decerto alguma coisa mudara, embora tal não se relacionasse fundamentalmente com os militares. Em última instância, o que «armou» o golpe militar de Julho de 1936 foi a emergência e o crescimento, entre os sectores civis da sociedade espanhola, de uma oposição política maciça às reformas republicanas. A resistência às reformas não partiu apenas das velhas elites espa­ nholas. A população do interior-norte conservador também começou a erguer a voz contra a nova república, sobretudo devido às relações AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA com a igreja. As reformas secularizantes feriram as susceptibilidades extremamente católicas desta região. Haveria sempre oposição ecle­ siástica a medidas como a separação entre a igreja e o estado, mas o que mais ofendeu a população foi a interferência da república na cul­ tura católica que moldava as identidades sociais e a vida quotidiana: por exemplo, a forma como as novas autoridades restringiram as pro­ cissões religiosas ou o toque dos sinos das igrejas, bem como a sua intromissão nas cerimónias e celebrações organizadas em torno de santos locais ou de evocações à Virgem Maria. Este era um mundo de devoções privadas e familiares, mas também de culto comunitário, onde as emoções profundamente sentidas tinham tanto a ver com a adesão a um modo de vida e a um lugar específico (a localidade ou patria chica), como com fé religiosa ou espiritualidade per se. Melhor dizendo, a lealdade a tudo isto era indivisível. Foi por se sentir que estes universos locais se encontravam ameaçados - pelas reformas republicanas mas também por pro­ cessos mais alargados de mudança social e económica dos quais a república era tida como parte - que o revivalismo religioso exerceu um papel tão significativo na oposição popular ao novo regime. Em Ezkioga, no País Basco, registaram-se novas aparições marianas em 1931. Segu iram-se grandes romagens. Como mostra a história social europeia dos séculos x1x e xx, as visões religiosas tendem a ocor­ rer em épocas traumáticas de convulsão, cujos agentes mais comuns são as crises económicas, as epidemias, a guerra e as perseguições políticas. Ainda que não se trate de um processo consciente, a reli­ gião costuma, nestas alturas, adquirir um significado ainda mais poderoso, como defesa contra realidades novas e assustadoras. O facto de a república ter feito cortes nas remunerações dos clérigos seculares também alienou muitos párocos mais pobres, que, de outro modo, não teriam sido necessariamente opositores irreconci­ liáveis. No entanto, a mobilização católica na Espanha dos anos 30 foi sobretudo a das pessoas laicas que, desde muito antes da Guerra Civil, tinham vindo a empenhar-se numa cruzada em defesa de um modo de vida ameaçado. Isto verificou-se tanto nos redutos rurais de Navarra, no norte, onde os quase teocráticos carlistas, que se opunham radicalmente a todas as manifestações de modernidade {28} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA social e cultural, treinavam as suas milícias, como entre os jovens católicos das cidades de província e mesmo das grandes cidades, que se tornaram activistas das novas organizações de massas da direita. Esta mobilização incluía, paradoxalmente, o apoio ao alargamento do direito de voto às mulheres, ao passo que os republicanos pro­ gressistas eram bem mais hostis à emancipação feminina, por acre­ ditarem que a maior influência da igreja sobre este eleitorado teria como consequência o voto em bloco nos conservadores (as mulhe­ res votariam, pela primeira vez em Espanha, em Novembro de 1933). É certo que a questão religiosa podia ser manipulada, tal como veio a sê-lo quando os latifundiários do sul a utilizaram para mobilizar os pequenos proprietários desfavorecidos do norte contra uma reforma agrária que apenas afectava os seus próprios interesses. Não obstante, o conservadorismo popular em massa era mais do que o simples resultado da manipulação pelas elites. É igualmente verdade que os formatos políticos desta nova mobilização conser­ vadora teriam sido inconcebíveis sem as bem estabelecidas redes organizacionais da igreja católica espanhola. Os reformadores republicanos experimentaram o pior dos mundos possíveis. Legislaram no sentido de afastar as ordens reli­ giosas do ensino, acreditando que estas constituíam uma barreira insuperável à criação de um estado republicano em Espanha, mas, na prática, a tentativa de afastamento falhou, em consequência de evasivas e atrasos legais. Quando a Guerra Civil rebentou, no Verão de 1936, não tinha ainda havido um período de governo republicano durante o qual os religiosos tivessem efectivamente deixado de ensinar em Espanha. Ao tentarem uma tal exclusão, os republica­ nos tinham mobilizado contra si uma poderosa coligação de forças conservadoras. Tendo também em conta os constrangimentos orça­ mentais, é difícil perceber como podia a república ter substituído a igreja no ensino básico. A secularização republicana era, então, apolítica, mal pensada e assaz contraproducente. Alguns comentadores também têm defen­ dido que foi eticamente questionável - tanto mais que a república pôs em causa a sua própria legitimidade no que tocava a princípios constitucionais. Mas esta constatação não é tão óbvia como parece. AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA As polémicas sobre a secularização estão bem vivas nas sociedades ocidentais politicamente liberais e culturalmente diversas do século xx1, embora poucos sugiram que, com isso, essas sociedades este­ jam a renegar as suas credenciais constitucionais mais básicas. Nem o «liberalismo» nem o «constitucionalismo» nem a «democracia» são conceitos estanques; todos eles têm de ser compreendidos e questio­ nados de acordo com contextos históricos específicos. Os católicos conservadores da Espanha dos anos 30 sentiram-se ultrajados por as suas crenças e práticas estarem a ser condicionadas, embora eles pró­ prios não preconizassem qualquer modelo de direitos civis e cultu­ rais no seio do estado Espanhol para aqueles que professavam outras religiões, muito menos para os adeptos do livre pensamento ou do ateísmo. A derradeira ironia política é que a direita espanhola dos anos 30, mesmo sendo fundamentalmente contra a noção de mudança democrática progressiva, aprendeu, com sucesso, a funcionar no novo ambiente político da república, com o objectivo de travar essa mudança. A esquerda, por outro lado, provou ser bem menos eficaz ou adaptável. Por que seria? Desde o início, a esquerda esteve condicionada pelas grandes diferenças ideológicas entre as suas partes constituintes. A maior de todas era o abismo entre o movimento parlamentar socialista e a CNT antiparlamentar e anarco-sindicalista. Ao contrário do que a narrativa histórica muitas vezes sugere, essas diferenças não eram apenas uma questão de voluntarismo ou de teimosia. A sua irredutibilidade resultava, mais exactamente, das experiências políticas, económicas e culturais muito diversas dos constituintes sociais da esquerda, num país com níveis extremamente díspares de desenvolvimento. Por exemplo, a acção política directa defen­ dida por muitos anarco-sindicalistas apelava mais aos iletrados e aos camponeses sem terra, cuja falta de poder de compra e vulnera­ bilidade social tornavam as promessas socialistas de mudança pro­ gressiva altamente inverosímeis, se não mesmo completamente inacreditáveis. Os republicanos e os socialistas também se confrontavam com um tremendo abismo entre a autoridade política e o poder de facto. {30) BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA O novo governo dispunha da legitimidade investida pelo processo eleitoral democrático, e podia aprovar legislação no parlamento de Madrid.Já assegurar a sua implementação para lá desse parlamento era outro assunto. Parte do problema residia na falta de pessoal com formação, embora a oposição entrincheirada das elites, que não tinham perdido nenhum do seu poder social e económico, fosse uma dificuldade bem maior. Isso era sobretudo visível no sul rural, onde, depois de 14 de Abril de 1931, os grandes proprietários conti­ nuaram a recorrer à guarda civil local para disciplinar trabalhadores insubordinados, à semelhança do que faziam antes. Os quadros da polícia eram os mesmos e, consequentemente, ainda estavam enre­ dados em relações de clientelismo com as elites locais. Os proprie­ tários também se recusavam a aceitar aspectos cruciais da legislação redistributiva de segurança social, ao deixarem os campos por culti­ var e os trabalhadores no desemprego. Além disso, os seus capangas exerciam violência - por vezes com consequências fatais - sobre os funcionários dos sindicatos que iam monitorizar a aplicação das novas medidas. No sul rural, a temperatura política subiu pelo sim­ ples facto de o nascimento da república ter gerado expectativas · entre os pobres e desfavorecidos - se para muitos católicos a repú­ blica era o Anticristo, para essas pessoas era uma fonte de salvação messiânica. A tensão agravou-se ainda mais devido ao carácter vin­ gativo dos opositores da reforma, que dirigiam aos desempregados e famintos sarcasmos como «A república que vos dê de comer» (comed república). A frustração do povo face à não concretização das mudanças sociais a que aspirava produziu desilusão não só entre os sem-terra e desempregados do sul rural, exasperados com a permanência das velhas relações de poder, mas também entre os eleitores que trabalhavam nas zonas urbanas. Aí, os efeitos da depressão come­ çavam a fazer mossa, com o desemprego a subir, especialmente entre os menos qualificados, como os trabalhadores da construção que tinham afluído às cidades durante o boom dos anos 20. Mui­ tos viviam agora abaixo do limiar da subsistência, e a república dispunha de capacidades limitadas para mitigar a situação. Eram sobretudo os republicanos, e não os socialistas, quem controlava AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA COM8ATIEND0 LAIGNORANCIA DERROTAREIS ALFASCISMO a política financeira, numa abordagem bastante mais monetarista do que keynesiana. A única área em que estavam dispostos a gastar era na educação, para a qual contraíram dívidas consideráveis, com vista ao financiamento do seu programa de construção de escolas. Em termos relativos, o governo republicano-socialista fez mais para proporcionar bem-estar social do que qualquer outro execu­ tivo. Ironicamente, foi em parte devido às expectativas elevadas da população que a república viu este feito ser interpretado como um fracasso político. A alienação política também ocorreu porque o peso da lei e da ordem republicanas recaía sobre grupos de pobres e marginais. {32} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Enquanto a direita se queixava, no parlamento, do défice de ordem pública, os trabalhadores empobrecidos podiam contar uma histó­ ria bem diferente. Em várias e célebres ocasiões, nas zonas rurais e urbanas de toda a Espanha, as forças de segurança republicanas entraram funestamente em confronto com trabalhadores em pro­ testo: em Castilblanco, em Dezembro de 1931; em Arnedo (Logro­ nho) e Llobregat (província de Barcelona), ambas em Janeiro de 1932; e em Casas Viejas (Andaluzia), emJaneiro de 1933. Na base des­ tes incidentes de grande repercussão havia toda uma vivência diária de repressão e exclusão. A nova polícia urbana criada pela república despejava os inquilinos que não pagavam renda e, em resposta às queixas da Câmara de Comércio e dos proprietários de lojas, afas­ tava das ruas os mercadores ambulantes que vendiam alimentos a preços acessíveis aos pobres e marginais. Este tipo de incidentes reforçava as alegações dirigidas à república pelos críticos afectos à esquerda radical, especialmente os anarquistas, de que nada tinha mudado e de que as reformas parlamentares e legislativas eram um embuste que jamais beneficiaria aqueles que nada tinham. Com o bloqueio às reformas nas povoações e a depressão a fazer-se sentir, quer nas zonas rurais quer nas zonas urbanas, as tensões sobre a democracia constitucional começaram a manifestar-se. Os republi­ canos não tinham suficiente credibilidade para exigir respeito pelas regras do jogo àqueles que, diariamente, dele eram excluídos através da negação dos seus direitos sociais e económicos enquanto cida­ dãos - mais ainda quando esses direitos deveriam ser garantidos pela constituição e pela lei. A situação agravou-se depois de as divisões na esquerda terem dado origem ao regresso de um governo conservador, em Novem­ bro de 1933. As reformas legais tornaram-se letra morta. As elites procuraram reverter, até ao mais ínfimo pormenor, as mudanças redistributivas que tinham sido levadas a cabo nas povoações. É num contexto de frustração e de fúria explosiva contra o recuo das reformas que temos de compreender a escalada de greves e pro­ testos em 1934. Tanto os movimentos juvenis de esquerda como a radicalizada juventude católica, conservadora e fascista levaram a política para as ruas das cidades. Não só o espaço político espanhol AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA estava em mudança, como a mobilização dos jovens - particular­ mente do sexo feminino - estava a transformar a própria natureza do espectro político. As frustrações da esquerda culminaram, em Outubro de 1934, na incitação de uma tentativa de greve geral revolucionária, que não chegou sequer a ganhar força em Madrid, onde foi liderada por sectores radicais do movimento da juventude socialista. Contudo, no norte, na região das minas de carvão das Astúrias, fortemente atingida pela crise económica e com um historial de relações labo­ rais contenciosas, o protesto degenerou em insurreição armada. Os mineiros resistiram durante duas semanas, mas as suas aldeias foram bombardeadas pela força aérea e as cidades costeiras pela marinha, até que, por fim, o exército invadiu os vales. Seguiu-se, por toda a região das Astúrias, uma dura e prolongada repressão: o general Franco, enquanto comandante de facto do Ministério da Guerra, recorreu a tropas nativas de Marrocos e à Legião Estran­ geira, receando que os recrutas espanhóis não fossem politicamente leais. As garantias constitucionais foram suspensas em toda a Espa­ nha. O impacto sobre a esquerda foi catastrófico: 30 mil pessoas foram presas, muitas delas torturadas. Foram fechadas instalações de partidos e sindicatos, e silenciada a imprensa de esquerda. Os executivos camarários socialistas foram depostos, os funcionários públicos com opiniões políticas liberais ou de esquerda tornaram-se alvo de discriminação, os patrões e administradores aproveitaram a oportunidade para denunciar, em massa, sindicalistas e activistas de esquerda. Os acontecimentos de Outubro de 1934 são frequentemente citados por historiadores como prova de que não se podia confiar que a esquerda espanhola jogasse segundo as regras democráticas. Todavia, esta análise não tem em consideração a complexidade dos eventos que conduziram a Outubro, o menor dos quais não terá sido a ofensa à lei pelo próprio governo conservador, quando pro­ curava travar ou reverter as reformas sociais. Por outro lado, tam­ bém ignora a lição óbvia que deve ser retirada do que aconteceu nas Astúrias. Na verdade, a esquerda não tinha outra opção senão lutar pela mudança social através das vias legais e parlamentares, uma BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA vez que não conseguiria prevalecer se recorresse a demonstrações de força física - até a história de outros conflitos menores entre os trabalhadores e o estado, ocorridos a part ir de 1931, o indicava. Após os acontecimentos de Outubro de 1934, isso tornou-se claro não só para os líderes socialistas espanhóis (mesmo para aqueles que continuaram a empregar uma retórica radical com propósitos estratégicos), mas também para o grande número de pessoas que os apoiava. Esta constatação, a par de uma consciência da necessidade de consonância política na esquerda, deu origem a uma nova aliança eleitoral de forças progressistas, que venceu as eleições de Fevereiro de 1936, no compromisso de reimpor o programa de reformas parla­ mentares de 1931-33. Foi então que os militares intervieram, não para conter a «revo­ lução», como alegavam, mas para bloquear a reforma constitucional e legislativa que, evidentemente, a direita parlamentar não podia agora impedi r. Durante a Primavera e o Verão de 1936 assistiu-se à reapro­ ximação das direitas civil e militar, e também dos conservadores aris­ tocratas e radicais, ao mesmo tempo que o líder do partido fascista espanhol se comprometia a apoiar um golpe militar. O que poderiam as forças progressistas de esquerda fazer para amenizar a situação? Um governo reforçado pela bancada parla­ mentar socialista teria constituído uma melhoria face ao execut ivo exclusivamente republicano, cujos membros pareciam incapazes de empreender acções decisivas mesmo quando, por altura da Primavera de 1936, já não era segredo que estava a ser preparado um golpe mili­ tar. Porém, os socialistas tinham os seus próprios problemas: havia profundas cisões internas no movimento e, tal como os republicanos, os líderes socialistas, apesar das suas políticas sociais progressivas, sentiam-se pouco confortáveis com a política de mobilização de mas­ sas que a república tinha iniciado. Os desafios que rodeavam a nova democracia espanhola nos anos 30 eram complexos e profundamente enraizados, não sendo, por isso, passíveis de uma resolução rápida. Se se pode dizer que a república «fracassou» (outro lugar-comum historiográfico), então o seu fracasso foi muito específico e consistiu na incapacidade de evi­ tar que sectores do corpo de oficiais fizessem um golpe de estado. AS ORIGENS DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA {35} itos dos Embora a especulação contrafactual não faça parte dos háb para o ções i cond ou historiadores, pode argumentar-se que o que cri , sucesso do golpe não foram as profundas tensões em Espanha mas antes o fracasso dos republicanos e socialistas em implementar refor­ mas políticas essenciais em 1931-33 ou, talvez mais crucialmente, em desmilitarizar a ordem pública. Mas, como os historiadores também sabem, a observação a posteriori incorre no perigo da ilusória visão linear. Todos aqueles que apoiaram os militares rebeldes espanhóis tinham em comum o medo das consequênc ias da mudança, inde­ pendentemente de os seus receios serem de ordem material ou psicológica (riqueza, estatuto profissional, hierarquias sociais e polí­ t icas estabelecidas, dogmas religiosos ou de género). Em Espanha, durante os anos 30, assistiu-se à expansão de uma série de conflitos culturais que haveria de desempenhar o seu papel durante os anos da Guerra Civil propriamente dita. Como em todas as guerras de culturas, o modo como as pessoas mitificaram os seus medos gerou violência. No entanto, o que permit iu que tudo isso chegasse a acontecer fo i o golpe militar, cujo acto prim9 rdial de violência foi a ext inção de outras formas pacíficas de evolução política. A rebelião militar delineou os contornos do campo de batalha, mas o seu s ignificado não ficou estabelec ido a 18 de Julho. O s ignificado da guerra seria construído pelos seus protagonistas políticos e pelas suas vít imas; pelos voluntários e soldados conscritos, os operários de guerra e os opositores ao ser v iço militar, pelos refug iados; por todos aqueles que suportaram ou part ic iparam nos três anos de conflito que se seguiram. O modelo de golpe de estado confe riu uma aparênc ia polít ica t radi c ional à insurre i ção de Julho cont ra a democ rac ia de mas­ sas. Mas a missão darwinista e pretensamente soc ial dos militares rebeldes, que eclod iu nas colón ias do no�te Áfr ica - e que será analisada no próx imo capítulo - , ind icava algo v iolentamente novo. O mesmo se pode dizer da aproximação da «falange de solda­ dos» ao fasc ismo espanhol. O derradeiro paradoxo é que a moder­ ni dade do golpe de Julho também esteve patente na declaração {36} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA pública proferida pelos rebeldes aquando do levantamento. Nela, justificavam a sua acção fazendo referência ao apoio da sociedade espanhola no seu todo. Assim, a própria linguagem dos militares reconhecia, inadvertidamente, a profundidade das transforma­ ções sociais e políticas pós-iluministas que eles próprios queriam reverter em Espanha. M.G.,1935- 2. Rebelião, revolução e repressão º J Cabanas, 1937/1939. Todas as épocas permanecem na memória das geraçõesfuturas. Mas cada época tem a sua própria lógica interna, a sua própria estrutura de sentimento. J. UGARTE TELLERÍA,La nuevaCovadongainsurgente GOLPE militar contra a república começou a 17 de Julho de 1936, entre elementos do exército colonial sedeado na África do Norte espanhola (Marrocos). No dia seguinte, a rebelião alastrou-se à metrópole, sob a forma de revoltas em guarnições de província. Ela foi, ao mesmo tempo, bem e malsucedida: não conseguiu tomar o país todo de um só golpe, como era intenção dos rebeldes, mas conseguiu paralisar o regime republicano e, mais importante, privá-lo dos meios para organizar rapidamente uma resistência eficaz. A insurreição desagregou a estrutura de comando do exército e deixou o governo de Madrid sem tropas, inseguro quanto aos oficiais em quem podia con­ fiar. O colapso simultâneo da polícia veio juntar-se a estes já de si gra­ ves problemas, criando um vazio de autoridade na maioria das zonas afectas à república, que não encontrava paralelo nas zonas rebeldes, sobre as quais os militares assumiam o controlo a partir do exterior. Mas, apesar do colapso do regime, os elementos da polícia que lhe permaneciam leais uniram-se às milícias de trabalhadores, formadas pelos sindicatos e partidos políticos da esquerda para responder à situação de emergência; juntos, conseguiram deter a revolta das guar­ nições em grande parte da Espanha urbana e industrial. A divisão inicial do território espanhol entre a república e os rebel­ des (ver mapa da página seguinte) reflectia a geografia política do país. A revolta tendeu a fracassar em áreas onde havia um apoio significa­ tivo às reformas republicanas e/ou a uma agenda política progressista BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA A divisão de Espanha a 22 de Julho de 1936. num sentido mais lato. Por isso, os centros urbanos, com a sua elevada concentração de trabalhadores em movimentos laborais organizados, eram sobretudo afectos à república - com algumas excepções, a mais notável das quais foi Sevilha, onde o general Queipo de Llano desta­ cou o grosso da sua guarnição, cerca de 5800 tropas, para fazer frente ao movimento laboral daquela cidade. Em todas as restantes zonas rurais do sul profundo, a presença de milhares de camponeses sem terra constituiu, inicialmente, um factor de inibição do sucesso do golpe. Na costa nordeste, as regiões da Catalunha e de Valência, com o seu passado confederalista e um forte sentimento anticentralista, haveriam de se manter republicanas ao longo da guerra. As áreas que ficaram imediatamente sob controlo dos militares rebeldes foram, tendencialmente, as mesmas onde se tinham verifi­ cado maiorias conservadoras nas eleições de Fevereiro de 1936. Isto aplicava-se sobretudo às zonas minifundiárias do centro-norte e do noroeste de Espanha. Aí, o apoio da população ao golpe militar REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO derivava em boa medida da hostilidade do campesinato e das clas­ ses médias conservadoras da província ao programa secularizante da república. O caso do País Basco, no norte de Espanha, foi excepção, uma vez que até os conservadores convergiram contra os militares rebeldes ultracentralistas para apoiar uma agenda nacionalista regio­ nal em prol de autonomia política. No entanto, a geografia política do pré-guerra não explica, por si só, a disposição territorial que emergiu depois de 18 de Julho. Nenhuma região de Espanha era inteira ou homogeneamente conser­ vadora. Mesmo nas áreas que lhes eram afectas, os militares tinham de exercer uma violenta repressão sobre algu ns sectores que lhes resistiam, como foi o caso dos trabalhadores portuários da cidade galega de Vigo, no norte. A repressão sanguinária também funcio­ nava como força de coerção num sentido mais lato. Por exemplo, nas aldeias e nas cidades pequenas, as pessoas que tinham simpatizado vagamente com os republicanos sentiram-se, de repente, compelidas a alinhar publicamente com as autoridades de modo a protegerem as suas famílias, ainda que isso pudesse implicar trair amizades e laços pessoais. O filme La Lengua de las Mariposas (1999), baseado num conto do escritor galego Manuel Rivas, relata um exemplo extremo deste fenómeno. Um rapaz é coagido pela mãe a participar na deten­ ção e humilhação pública do seu estimado mestre-escola republicano, como forma de desviar as atenções do passado liberal do próprio pai. Assim se pode compreender as razões complexas e contraditórias que, tão frequentemente, fundamentaram as opções binárias toma­ das pelas pessoas na ressaca do golpe. De facto, esta delimitação for­ çada, a obrigação de «tomar partido», constituiu o primeiro e mais duradouro acto de violência dos golpistas. De modo a viabilizarem o seu golpe, os militares rebeldes tam­ bém tiveram de afastar (e, muitas vezes, matar) um número significa­ tivo de oficiais superiores que se recusavam a apoiá-los. Em parte, isso fazia com que também os rebeldes sentissem uma certa perturbação militar - o exército dividira-se, com consequências para ambos os lados. Por outro lado, a ausência de uma força de combate integrada não podia ser compensada pelas milícias políticas de direita dos car­ listas e falangistas, em rápida mobilização nos territórios rebeldes. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA A divisão de Espanha imediatamente a seguir ao golpe desor­ denado parecia favorável à república, que detinha a capital, Madrid, situada no coração da rede de comunicações do país e depositária das suas reservas de ouro. Ao controlar a maioria dos grandes centros urbanos, a república também controlava a indústria. Para os rebeldes, o factor tempo era essencial: a menos que conseguissem galvanizar e aumentar rapidamente as suas forças, a república teria sérias possi­ bilidades de conseguir reagrupar-se e, com isso, conter as guarnições revoltosas. Foi por esta altura - cerca de uma semana após o golpe inicial - que a intervenção estrangeira se tornou, pela primeira vez, um fac­ tor relevante no conflito. Face à provável derrota, os militares rebeldes solicitaram e receberam aviões de Hitler e de Mussolini para trans­ portar as suas tropas de assalto, a Legião Estrangeira e o Exército de África até à metrópole, atravessando o Estreito de Gibraltar, tempora­ riamente bloqueado pela marinha republicana, que se tinha amotinado contra os comandantes pró-rebelião. Neste primeiro acto de interven­ ção internacional, que também constituiu o primeiro transporte aéreo de tropas na história bélica moderna, as potências fascistas europeias forneceram aos rebeldes espanhóis o exército de que estes nec�ssita­ vam, permitindo-lhes lançar uma guerra em larga escala contra a repú­ blica. Hitler e Mussolini concordaram em intervir simultaneamente, mas as suas decisões foram independentes. Nenhum dos ditadores tinha intenções de se envolver numa guerra a longo prazo: ambos dis­ ponibilizaram aviões com vista ao que pensavam poder ser uma rápida vitória dos rebeldes, passível de assegurar uma Espanha aliada e de, consequentemente, servir os seus interesses estratégicos. Porém, as coisas não correram de acordo com o planeado, sobre­ tudo devido à resistência republicana, um fenómeno significativa­ mente impulsionado pelo desejo que as populações alimentavam de salvaguardar os progressos sociais e económicos associados à repú­ blica. Frequentemente, verificava-se também um desejo de fazer com que esses progressos evoluíssem no sentido de uma nova ordem revolucionária. Tal foi possível, pelo menos durante algum tempo, nos cerca de dois terços de Espanha que se mantiveram leais à república, precisamente porque o golpe tinha induzido o colapso do regime. REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO {43} Soldad�s rebeldes entram numapequena cidade do sul de Espanha, no início;;;­ Guerra Civil As crianças que sejuntaram àprocissão transportam uma imagem do Sagrado Coração deJesus - um símbolo religioso tradicionalque agora serve de suporte a uma novaforma conservadora de mobilização de massas. A autoridade do governo não se impunha para além de Madrid. As funções normais de governo estavam em suspenso; a paralisia da polícia e do exército também conferiram um enorme ímpeto ao loca­ lismo. Dificil mente podia ter sido de outro modo num país ainda tão heterogéneo com um desenvolvimento económico desequili­ brado, e onde os lealismos se resumiam à própria comunidade (patria chica) enquanto unidade de experiência vivencial. Houve regiões em que cada aldeia fez a sua revolução e organizou a vida quotidiana de forma independente. Quando rebentou a guerra, a escritora norte­ -americana Gamel Woolseyvivia numa aldeia do sul, perto de Málaga. No seu diário observou como o isolamento se adequava àquelas pes­ soas, que desconfiavam de todos os «estrangeiros», isto é, de todos os espanhóis que não fossem naturais da aldeia, e a quem até mesmo Málaga parecia, do ponto de vista social e cultural, tão distante como Madrid ou Barcelona. Também para muitos dos elementos das milícias de trabalha­ dores - tanto em Málaga como em Madrid ou Barcelona - esta expl osão centrífuga constituiu um desenvolvimento positivo. Para as classes trabalhadoras rurais e urbanas, e para os espanhóis mais BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA desfavorecidos em geral, o estado ainda tinha uma conotação for­ temente negativa: serviço militar obrigatório, impostos indirectos e perseguições diárias - em particular aos sindicalizados. Por isso, para muitos trabaJhadores espanhóis, a resistência aos militares rebel­ des era inicialmente dirigida «contra o estado» e estava empenhada na construção de uma nova ordem social e política, muitas vezes de contornos económicos anticapitalistas (frequentemente, o dinheiro era abolido). Nas zonas rurais e urbanas do nordeste de Espanha (B ar­ celona e Aragão) e nas regiões republicanas do sul rural, a indústria e a agricultura foram colectivizadas, e os comités dos sindicatos e dos partidos organizaram a defesa de emergência, ao encontro das neces­ sidades do seu bairro ou da sua aldeia. Contudo, fora das maiores vilas e cidades, o sectarismo político entre as organizações de esquerda ainda não era muito evidente. De outro modo, teria sido inconcebível que, em 1936, um membro da CNT oriundo de uma aldeia em Valên­ cia pudesse ter dado à sua filha o nome de Estaline. Esta ausência de sectarismo indica que no início da guerra a presença das organizações de esquerda fora dos principais centros urbanos pouco se fazia sentir. Porém, mesmo à medida que a situação se alterava ao longo da guerra, o aparecimento de cisões sectárias continuou, frequentemente, a resultar da colagem de novos rótulos em antigas disputas políticas locais ou, em alternativa, de tensões específicas produzidas pelas difi­ culdades materiais da guerra, mais do que de questões estritamente ideológicas. As novas estruturas colectivas e cooperativas que apare­ ceram no Verão de 1936 constituíram, não obstante, uma tentativa de resolução dos principais conflitos políticos e sociais do período repu­ blicano anterior à guerra (1931-36), alterando o equilíbrio do poder social, económico e político em muitas comunidades. Essa alteração foi também produzida, de forma bem mais som­ bria, por uma onda de violência. A inexistência de uma força policial ou judicial que operasse em território republicano nas primeiras sema­ nas após o golpe, associada às amnistias que esvaziaram as prisões, tornou possíveis todos os tipos de ajustes de contas pessoais, além de permitir que fossem cometidos actos francamente criminosos sob a égide da justiça revolucionária. À medida que a guerra subia de tom, durante os primeiros oito meses, alguns actos de violência na Espanha REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO republicana também foram desencadeados pela experiência aterro­ rizadora dos bombardeamentos aéreos, bem como pelos rumores de fuzilamentos em massa e outras atrocidades em território rebelde. No entanto, os actos de violência cometidos pela população em território republicano imediatamente após o golpe militar tinham uma dimensão política claramente discernível. Tais acções eram desencadeadas pela ira em relação àquilo que consideravam como uma tentativa, por parte dos rebeldes, de atrasar o relógio à força e de regressar à ordem do antigo regime. A violência vingadora era dirigida contra as origens e os representantes do antigo poder - quer mate­ riais (destruindo registos de propriedade e cadastros de terrenos), quer humanos (o assassínio ou agressão de padres, guardas civis, polí­ cias, patrões e intendentes). Havia, portanto, uma clara ligação entre a violência posterior ao golpe e os conflitos anteriores à guerra: por exemplo, em relação ao bloqueio das leis de reforma agrária e laboral, aos despedimentos de trabaJhadores na sequência das greves gerais de 1934 ou aos antagonismos (mais uma vez, relacionados com a não implementação de reformas sociais e laborais) no rescaldo das elei­ ções de Fevereiro de 1936. As formas que esta violência assumia eram, muitas vezes, alta­ mente teatrais - ritualistas, até -, o que aponta para outros aspectos. Primeiro, e mais importante, havia uma carga simbólica: as pessoas não se limitavam a matar ou a humilhar outros seres humanos, seus inimi­ gos, como também atacavam fontes temíveis ou opressivas de poder e autoridade às quais associavam cada vítima em particular. Isto explica, em parte, o facto de os patrões «benevolentes» ou os padres «bondosos» se terem tornado alvos. De facto, o exemplo mais conhecido, embora longe de ser o único, de morticínio simbólico na Espanha republicana foi o exercício de violência anticlerical a uma escala sem precedentes, que ceifou as vidas de quase sete mil religiosos (sobretudo homens). Padres e monges eram mortos porque eram vistos como representan­ tes de uma igreja opressiva, historicamente associada aos ricos e pode­ rosos, e cuja hierarquia apoiara a revolta militar. Por vezes, também os leigos eram tragados por esta fúria anticlerical. Como nos recorda um testemunho oral, o cantor de igreja e o tocador do sino faziam parte de um mundo antigo que tinha de ser aniquilado. Contudo, o paradoxo BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA de uma componente religiosa inerente à violência anticlerical não foi menos efectivo em Espanha do que em qualquer outro lugar. O pró­ prio acto de dessacralização - igrejas destruídas e aproveitadas para usos profanos, cadáveres de religiosos roubados às sepulturas - é elo­ quentemente elucidativo quanto ao poder investido na religião e na igreja pelos próprios profanadores. Em retrospectiva, resta pouco que explicar sobre o impulso das pessoas para a violência em território republicano. Mas o facto de essa violência ter ocorrido prejudicou a credibilidade da república no exterior, precisamente no momento em que esta mais precisava de apoio externo para fazer frente ao crescente desafio militar colocado pelos rebeldes. Para os líderes republicanos e socialistas que baliza­ vam a legitimidade da república na defesa dos meios constitucionais e do predomínio da lei, a consciência de que tinham sido impotentes para evitar assassínios extrajudiciais era devastadora (apesar de ter havido muitos líderes políticos que, a título individual, intervieram para salvar vidas). Foi a sua determinação em pôr fim à violência des­ controlada que proporcionou um poderoso ímpeto ético ao desígnio de repor a autoridade do governo central republicano face à fragmen­ tação induzida pelo golpe. Pela parte que lhes tocava, os rebeldes justificaram publicamente o golpe como um empreendimento para prevenir uma revolução vio­ lenta de esquerda. No entanto mais uma vez em retrospectiva, verifi­ camos que foi a própria revolta militar que criou condições para uma violência a tal escala - e não apenas em território republicano. Nos dias e semanas que se seguiram ao golpe deJulho, as elites locais profe­ riram, nos territórios rebeldes, várias declarações públicas - líderes da Falange fascista, pessoas associadas ao partido católico de massas, a CEDA (Confederación Espafiola de Derechas Autónomas), lati­ fundiários monárquicos, homens de negócios, padres. Essas declara­ ções foram proferidas de forma independente umas das outras, assim como das autoridades militares, embora tenham sido notavelmente semelhantes. A mensagem principal era que Espanha precisava de ser purgada ou purificada. Por vezes, falavam até da necessidade de um sacrifício de sangue. Este tipo de sentimentos desencadeou uma repressão selvática que, desde logo, se fez sentir por toda a Espanha REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO rebelde, inclusive em muitas áreas controladas à partida pelos milita­ res revoltosos, onde não havia qualquer resistência armada ou polí­ tica, nem «frente», nem avanço ou retirada de tropas - em suma, onde não havia «guerra» no sentido convencional do termo. O que havia, no entanto, era uma guerra de culturas que os agressores tra­ ziam presente. O golpe tinha punido o rebentamento dessa guerra, abrindo assim caminho ao assassínio em massa. O impulso para matar era accionado, de forma ainda mais clara do que em território republicano, por uma mentalidade maniqueísta historicamente associada a algumas formas de cultura e prática católi­ cas. Os agressores do lado rebelde terão considerado que as suas moti­ vações eram completamente diferentes das do «inimigo» republicano, mas em ambos os casos a força motriz da violência era a aniquilação do outro. Enquanto em território republicano o objectivo de alguns indivíduos era milenário - matar como meio de alcançar tabu/a rasa e, com ela, um admirável mundo novo - , nas zonas rebeldes o assassí­ nio era amplamente entendido como um acto purificador, concebido para livrar a comunidade das fontes de «poluição» e dos perigos que estas acarretavam. Pessoas de todas as idades e condições foram vítimas desta «lim­ peza». O que tinham em comum era o facto de serem vistas como representantes das mudanças trazidas pela república. A violência não afectava apenas os indivíduos politicamente activos - embora os parlamentares e autarcas republicanos fossem alvos primordiais de liquidação - ou os que tinham beneficiado, em termos materiais, das reformas redistributivas da república - apesar de terem sido mor­ tos trabalhadores citadinos, pequenos proprietários e trabalhadores agrícolas aos milhares. A «limpeza» também implicava pessoas que simbolizavam a mudança cultural e que, por isso, constituíam uma ameaça às antigas maneiras de ser e de pensar: professores progressis­ tas, intelectuais, trabalhadores autodidactas, a «nova» mulher. A vio­ lência dos rebeldes era dirigida contra todos aqueles que eram social, cultural e sexualmente diferentes. Em Zamora, assistiu-se à morte da mulher do romancista repu­ blicano Ramón Sender, Amparo Barayón, cujo espírito independente era considerado «pecaminoso» face às normas de género tradicionais; BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Amparo Barayón, aquifotografada ao estilo dos anos 20,foi vítima de execução extrajudicial na zona rebelde. Asforças de Franco viam a guerra como uma cruzada contra a mudança social e cultural em Granada, à do poeta Federico G arcía Lorca - morto quer devido às suas convicções políticas quer à sua sexualidade. Assistiu-se tam­ bém ao assassínio de muitos milhares de espanhóis menos conhe­ cidos, como Pilar Espinosa, de Candeleda, em Ávila, que foi levada por um esquadrão da morte falangista por ter lido o jornal do partido socialista e por «tener ideas», numa altura em que o livre pensamento era duplamente repreensível entre as mulheres. Durante os primeiros meses, quem perpetrava os assassínios na Espanha rebelde eram sobretudo os vigilantes. O que aconteceu foi um massacre de civis por outros civis, em que os esquadrões da morte sequestravam as pessoas das suas casas ou, em alternativa, as levavam da prisão. Na maioria dos casos, os assassinos estavam estreitamente ligados a organizações de direita que tinham apoiado o golpe, em especial à Falange fascista. As autoridades milit ares nada faziam para controlar este terror. Na verdade, os assassinos agiam fre­ quentemente com a conivência das autoridades. De outro modo, os REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO esquadrões da morte que foram buscar Amparo B arayón e milhares de compatriotas seus jamais teriam podido levar as vítimas da prisão com tanto à-vontade. Este aspecto aponta para a assimetria fundamental entre a vio­ lência que ocorria nas zonas republicanas e a que ocorria nas zonas rebeldes. As autoridades militares dispunham de recursos para deter a violência, uma vez que não houve colapso da polícia ou da ordem pública nas áreas rebeldes. Porém, escolhiam não o fazer. A razão por que não o faziam diz muito sobre a dinâmica política que estava a ganhar forma na Espanha rebelde. Os militares sentiam-se obvia­ mente despreocupados em relação à inconstitucionalidade dos assassínios extrajudiciais per se. Para quem se tinha revoltado con­ tra a república, a política liberal, o constitucionalismo e a lingua­ gem dos direitos eram entendidos como o problema, não a solução. Além do mais, as pessoas que eram eliminadas pelos esquadrões da morte faziam parte do «problema», uma vez que também os milita­ res usavam a linguagem da purificação. Os vínculos locais, os laços de amizade - ocasionalmente, até os de família - também ligavam os militares aos vigilantes. Mas, acima de tudo, o terror era considerado a primeira etapa na crucial reposição da «ordem». Em primeiro lugar, tinha como objectivo ensinar àqueles que tinham acreditado na repú­ blica enquanto veículo de mudança que o preço a pagar pelas suas aspirações seria demasiado elevado. Assim, a violência era um modo de abalar a sociedade e, ao mesmo tempo, arredar a redistribuição do poder económico proclamada pela república. Em segundo lugar - embora esta não fosse necessariamente uma intenção consciente -, gerou-se uma cumplicidade crucial entre as autoridades rebeldes e os sectores da população que participavam ou eram coniventes com a repressão dos seus amigos, vizinhos e famili ares. Esta cumplicidade começou a fixar os alicerces de um novo estado e de uma nova ordem social rebeldes. Igualmente vital para o alargamento do controlo militar foi a forma como a repressão aniquilou a ideia do «lar» enquanto espaço seguro. Quando ocorreu o golpe, as pessoas que se sentiam ameaça­ das partilhavam a convicção de que, se conseguissem voltar para o seu lugar de origem, a sua aldeia, a suapatria chica, est ariam a salvo dos BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA terríveis perigos das cisões políticas no país. Por isso, muitas das víti­ mas de assassínio extrajudicial em território rebelde - quer famosas quer anónimas - morreram precisamente por terem ido para casa. Só quando lá chegavam é que descobriam que já não havia «lar»: a vio­ lência originada pelo golpe militar significava precisamente que nada podia existir para além do binómio político feroz que o golpe tinha imposto. A natureza do projecto dos rebeldes tornou-se absolutamente clara a partir do momento em que o Exército de África aterrou no sul de Espanha, no final de Julho de 1936. Este exército, liderado pelo general Francisco Franco, era constituído pelos soldados profissionais da Legião Estrangeira e por uma força de mercenários marroquinos, comandada por oficiais de carreira espanhóis (africanistas). Os traba­ lhadores e a resistência civil em geral não dispunham de meios para lhe fazer frente. Durante os meses de Agosto e Setembro de 1936, as forças de Franco irromperam pelo sul de Espanha em direcção ao cen­ tro, à capital, Madrid. Entretanto, a repressão alastrava, à medida que o exército chacinava e aterrorizava estrategicamente as populações pró-republicanas, especialmente os camponeses sem terra. Esta fase inicial da guerra civil, no sul, também fazia parte da «solução» para os conflitos que a antecederam. Foi uma guerra de contra-reforma agrária que transformou a Andaluzia e a Extremadura em campos de morte. Os latifundiários das vastas propriedades que cobriam grande parte da metade sul de Espanha alinharam com o Exército de África para reclamar pela força as terras onde a república tinha instalado os sem-terra. Muitos trabalhadores rurais eram mortos aí mesmo. Nas aldeias do sul dominadas pelos rebeldes, houve brutalidade e tortura sistemáticas, foram violadas mulheres, a outras foi rapado o cabelo, homens e mulheres foram assassinados em massa no res­ caldo das conquistas. Às vezes, aldeias inteiras eram completamente varridas do mapa pela repressão. Fazia-se a guerra como se fosse uma campanha colonial contra povos indígenas insurrectos. A aristocra­ cia fundiária espanhola, em que se incluíam muitos pais e irmãos de oficiais africanistas do exército, via os sem-terra do sul como autênti­ cos escravos, sem quaisquer direitos ou humanidade. Apesar das suas origens modestas de província, no norte de Espanha, Franco tinha REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO passado, ele próprio, uma década e meia nos territórios do norte de África, onde fizera carreira militar na desumana guerra colonial. Muito antes de a Itália ter feito o mesmo na Etiópia (talvez antes até de a Inglaterra o ter feito na Mesopotâmia), Espanha usara gás venenoso, fabricado na Alemanha, contra as populações coloniais em Marrocos. Os pedidos frequentes de armas químicas que Franco diri­ giu à Itália entre 1936 e 1937, independentemente de a sua utilização ter sido impedida por razões de ordem estratégica, reflectem as expe­ riências anteriores do general no norte de África. Mais tarde, Franco haveria de declarar que a sua experiência em África lhe tinha possibilitado «salvan> Espanha em 1936: «Sem África, não consigo explicar-me a mim mesmo ou aos meus camaradas de armas. » Numa carta que escreveu, a II de Agosto de 1936, ao general Mola, comandante das forças rebeldes do norte, sublinhou a necessi­ dade de aniquilar toda a resistência nas «zonas ocupadas». Este comen­ tário revela as convicções políticas não apenas de Franco mas também de toda uma corte de oficiais conservadores: o país tinha sido «ocu­ pado» por ideias políticas e formas de organização social alienígenas que ameaçavam a unidade, a hierarquia e a homogeneidade cultural da «Espanha», valores em que acreditavam e que se sentiam na incumbên­ cia de defender. A 27 de Julho, Franco foi entrevistado pelo jornalista norte-americano Jay Allen, cujo testemunho do massacre de resis­ tentes republicanos em Badajoz catapultaria, três semanas depois, a guerra de Espanha para as manchetes dos jornais europeus e ameri­ canos. Nessa entrevista de Julho, Franco contornou as perguntas do jornalista sobre o elevado nível de resistência que os rebeldes tinham encontrado, declarando: «Salvarei a Espanha do marxismo, custe o que custar. » Quando Allen lhe perguntou «e se isso implicar abater metade de Espanha? », Franco respondeu: «Como disse, custe o que custar. » O desdém dos rebeldes pelas políticas constitucionais e a sua disponibili­ dade para recorrer às execuções em massa e ao terror durante a guerra significavam que, ao contrário dos republicanos, nunca tinham consi­ derado a possibilidade de lidar verdadeiramente com o inimigo. Ainda assim, os rebeldes não foram tratados de forma muito negativa pela imprensa mainstream estrangeira. Entre as razões para tal havia uma extremamente forte: a legitimação do golpe pela igreja católica. {52} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA A convicção inabalável dos rebeldes de que era necessário livrar a sociedade dos «poluentes» políticos e culturais reforçou, à partida, o apoio público manifestado aos revoltosos pela igreja espanhola. Isso conduziu rapidamente à apresentação do seu esforço de guerra como uma cruzada. Ao manifestar-se pela primeira vez numa carta pastoral, no fim de Setembro de 1936, a igreja branqueou o golpe aos olhos das estruturas conservadoras europeias, tornando-se assim um meio de propaganda extremamente valioso que, todavia, não deixou de levantar alguns problemas aos rebeldes, nomeadamente a enorme e evidente contradição de uma cruzada católica contem­ porânea cuja linha da frente era constituída por mercenários islâ­ micos. Tanto os porta-vozes militares como os eclesiásticos poliam com lirismos os serviços de limpeza oferecidos pelos soldados afri­ canos - escondendo o seu racismo sob a imagem daquelas tropas enquanto parte de uma grande empresa colonial «essencialmente» cristã. Isto motivou alguns malabarismos verbais entre os relatos dos jornalistas que acompanharam o exército colonial ao longo da sua marcha pelo sul: {... } na hora do levantamento {do cerco à da guarnição de Toledo, em Setembro de 1936}, as mulheres de Castela receberam de mãos africanas um pão tão branco como o da comunhão... {a guerra} foi uma empresa mudéjar contra as hordas asiáticas. No entanto, no decurso da guerra, a questão da raça e do racismo permaneceria fora do quadro político. A esquerda espanhola nunca tinha desenvolvido um discurso anticolonialista. A sua oposição à guerra no norte de África tinha-se sempre baseado na defesa dos direi­ tos dos trabalhadores espanhóis (enquanto soldados que morriam nessas campanhas), mais do que nos males da colonização. De facto, a atitude dos republicanos em relação aos soldados norte-africanos de Franco, os quais naturalmente temiam, era bem menos racista do que a dos próprios rebeldes. Todavia, durante a Guerra Civil, os republicanos nunca foram capazes de desenvolver efectivamente um anticolonialismo estratégico. Uma qualquer expressão de sim­ patia política pelo embrionário nacionalismo marroquino podia ter REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO { 5 3} ajudado a estrangular o fornecimento de tropas a Franco, mas nunca nenhuma iniciativa desse tipo foi seriamente contemplada, devido ao receio de importunar a Grã-Bretanha e a França, ambas potências coloniais maiores em cujo apoio os republicanos espanhóis deposita­ vam as suas esperanças - especialmente depois de se terem tornado evidentes as proporções do apoio prestado aos rebeldes pela Alema­ nha e pela Itália fascistas. Esta ajuda - em particular sob a forma de aviões e tanques facilitava o avanço do Exército de África pelo sul. Era este cenário - o apoio técnico fascista, uma força de combate profissional e as vitórias daí resultantes - que explicava a crescente proeminência do próprio Franco. Ao general Emilio Mola, líder titular da revolta, fal­ tava o abono da vitória. As mortes de outros conspiradores militares de proa também afastaram alguns possíveis rivais. Porém, nesta altura, mais do que líder destacado, Franco era o primeiro entre iguais. A sua ascensão subsequente foi, como veremos, fruto do planeamento cui­ dadoso dos seus conselheiros, que tiraram partido do faro do próprio general para aproveitar oportunidades políticas estratégicas. Mas o que permitiu que Franco tirasse partido dessas oportunidades foi o seu avanço espectacular no sul. O Exército de África parecia imparável, o que não deve surpreen­ der-nos, se tivermos em conta que não enfrentava uma força «mili­ ciana», como frequentemente se diz, mas uma população civil armada com aquilo a que conseguia deitar mãos e que enfrentava, em terreno aberto, tropas, artilharia e bombardeamentos aéreos alemães e italia­ nos. Sempre que o exército rebelde tomava um centro populacional, eram cometidas atrocidades. Corpos de vítimas eram deixados nas ruas durante dias, para aterrorizar a população, e depois empilhados no cemitério e queimados sem quaisquer rituais funerários. À medida que aumentavam os relatos sobre esses acontecimentos, até o simples rumor da ameaça de serem flanqueados era suficiente para fazer os republicanos debandar, abandonando as suas armas na correria. A 3 de Setembro, os rebeldes tomaram Talavera de la Reina, a última cidade importante a separá-los de Madrid. Em apenas um mês, tinham avan­ çado quase 500 quilómetros. Uma grande vaga de refugiados rumou ao norte, fugindo ao exército de Franco. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA No sul republicano e no resto do país, milhares de trabalhadores espanhóis tinham empenhado as suas energias e, em muitos casos, sacrificado as suas vidas, para alcançar a mudança social pela colec­ tivização. Contudo, essas iniciativas radicais mantinham um âmbito local e altamente fragmentado. Enquanto os inimigos permaneceram «locais» - isto é, os soldados da guarnição de província ou a polícia local -, isso não teve importância. Mas quando a intervenção alemã e italiana transformou a natureza do conflito, ao transportar um exér­ cito milit ar para Espanha, os republicanos foram obrigados a repen­ sar a sua estratégia de resistência. Essa lição foi paga com o sangue dos milhares de homens e mulheres que morreram no sul. Para a república conseguir sobreviver à investida da tecnologia de guerra moderna e mecanizada dos rebeldes, cortesia da ajuda alemã e italiana, teria de colocar um exército em campo e mobilizar toda a sua população para a guerra - uma operação sem precedentes na história espanhola. A energia revolucionária da classe trabalhadora organizada e politi­ camente consciente já não era suficiente como havia sido durante o período das lutas de rua contra as guarnições rebeldes. Agora, para organizar um esforço de guerra moderno, todos tinham de ser trazi­ dos para o mesmo barco - sectores da população não mobilizados politicamente, sectores de classe média e, em especial, o eleitorado feminino. De outro modo, a república não sobreviveria. 3. Mobilizar e sobreviver: a república em guerra A nossa modestafunção é a de organizar o Apocalipse. ANDRÉ MALRAux,AEsperança A RÁPIDA mobilização dos recursos internos da república - huma­ Gofíi, r936/r937. .1"1.nos e materiais - tornou-se duplamente decisiva face ao seu isolamento internacional. Quando ocorreu o golpe, o governo repu­ blicano tentara imediatamente (a 19 de Julho), assegurar auxílio mili­ tar por parte das democracias ocidentais - Grã-Bretanha e França. Porém, deparou-se com a hostilidade britânica e a relutância francesa (após uma oferta inicial de ajuda). Em vez disso, as duas democracias planearam e estabeleceram, em Agosto de 1936, um tratado de não intervenção que coibia as iniciativas públicas e privadas dos países signatários de fornecer material de guerra à Espanha. A Alemanha e a Itália assinaram o tratado, apesar de terem continuado a auxiliar os militares rebeldes. Desse modo, a não intervenção funcionou apenas contra a república, e assim continuaria a ser durante toda a guerra. Quando os responsáveis políticos britânicos tiveram conheci­ mento do golpe, a sua preferência inclinou-se para uma vitória rápida dos rebeldes, uma vez que tal serviria os seus dois principais objec­ tivos. O primeiro consistia em evitar que uma guerra em Espanha evoluísse para um conflito europeu generalizado. Este cenário podia obrigar a Grã-Bretanha a envolver-se numa guerra em três frentes simultâneas para defender os seus interesses imperiais - contra a Alemanha, a Itália e o Japão -, algo que estava muito para além dos seus recursos militares e que, por isso, tinha de ser evitado a todo o custo. Em segundo lugar, uma vitória rebelde era tida como a melhor {58} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA forma de defender o capital e a propriedade privada em Espanha, nomeadamente o investimento britânico, que era considerável. O fervor popular após a vitória da coligação pró-reforma nas eleições de Fevereiro de 1936 levou alguns ministros e diplomatas britânicos (de um governo predominantemente conservador) a comparar o governo republicano espanhol ao de Kerensky, na Rússia, nas véspe­ ras da revolução bolchevique de Fevereiro de 1917. Contudo, as duas situações não eram estruturalmente comparáveis, pelo que os receios de uma revolução social iminente em Espanha (e, especialmente, da nacionalização dos activos britânicos) eram infundados. Na verdade, a hostilidade do estab!ishment britânico em relação à segunda república remontava ao nascimento desta, em Abril de 1931, muito antes da Pri­ mavera «quente» de 1936. A elite governante britânica estava ligada à Espanha conservadora por laços de classe, política, comércio e ami­ zade. A sua antipatia em relação à agenda de reformas sociais da repú­ blica era sentida no menosprezo pedante com que tratavam a nova classe política espanhola. Não tardou muito até que esta hostilidade pudesse ser publicamente justificada através de referências à violên­ cia anticlerical que eclodiu em algumas áreas do território republi­ cano no rescaldo do golpe. Os preconceitos de índole política e social levaram os analistas oficiais britânicos a ignorar um facto óbvio: se não tivesse havido revolta militar, também não teria havido assassí­ nios extrajudiciais - de natureza anticlerical ou outra - , uma vez que foi o próprio golpe militar que causou o colapso temporário da ordem pública em Espanha. Ao mesmo tempo, as autoridades britâni­ cas conseguiram associar um rótulo bastante diferente aos assassínios em território rebelde: tanto quanto se apercebiam, tratava-se de uma infeliz contrariedade que, não obstante, podia ter efeitos eugénicos, permitindo que Franco, o «general gentil», repusesse a «ordem». Na semana seguinte ao golpe, a Grã-Bretanha obstruiu as defesas da república, ao recusar à sua marinha o direito de se reabastecer de combustível em Gibraltar ou Tânger. Simultaneamente, os britânicos também fecharam os olhos à intervenção inicial dos alemães e dos italianos. A sua atitude foi decisiva, uma vez que Hitler e Mussolini tinham os olhos firmemente centrados na reacção da Grã-Bretanha. Se esta tivesse reagido negativamente ao envolvimento inicial dos MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA dois ditadores, é evidente que estes não teriam intervindo tão profu­ samente - na verdade, podiam até ter cessado a sua intervenção - , visto que nenhum deles estava preparado para um confronto com a Grã-Bretanha. A partir do momento em que o governo britânico decidiu manter­ -se à margem, também a França voltou atrás com a promessa de enviar material de gu erra para a república de Espanha. A sensação de vul­ nerabilidade, agravada pelo facto de ter agora duas das suas fron­ teiras coladas a potências fascistas, levou a que a França receasse isolar-se diplomaticamente da Grã-Bretanha. Para mais, o primeiro­ -ministro francês, o socialista Léon Bium, tinha plena consciência de que a hostilidade dos sectores mais conservadores do seu recente governo em relação à Espanha republicana podia, caso ele decidisse puxar o assunto da ajuda militar, afundar as suas hipóteses de produ­ zir reformas sociais em França. Dadas as dificuldades da França e a impassibilidade da Grã-Bretanha, a república de Espanha não teve outra alternativa senão angariar armamento através de agentes de venda ad hoc - um processo tão terrivelmente caro e ruinoso como ineficiente. Graças à ajuda dos governos alemão e italiano, os militares rebel­ des não enfrentavam tais dificuldades. A prodigalidade de Hitler e de Mussolini era, acima de tudo, motivada por razões de ordem estraté­ gica: ao apoiarem os rebeldes, procuravam destruir a república e, com isso, afastar o perigo de um bloco liberal de esquerda franco-espanhol que pudesse criar obstáculos aos objectivos da sua política externa expansionista. A ideologia também desempenhou, aqui, o seu papel. No entanto, o discurso anticomunista usado pelos ditares fascistas para justificar a sua intervenção em Espanha assumia uma importante função estratégica, ao permitir neutralizar a oposição britânica ao seu crescente envolvimento. O grau de sucesso desta estratégia ao longo da guerra haveria de surpreender os próprios líderes nazis e fascistas, que não conseguiam compreender por que razão haviam os britânicos decidido não reagir à sua jogada implícita: enfraquecer a Grã-Bretanha e a França enquanto potências imperiais dominantes. Porque, antes de mais, Hitler e Mussolini viam a sua intervenção em Espanha como uma forma eficaz de alterar o equihbrio de poder na Europa. {60} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA No final de Outubro de 1936, as forças rebeldes do sul estavam às portas de Madrid. A sua aproximação tinha sido adiada devido a um desvio, na última semana de Setembro, para reforçar o cerco à guar­ nição de Toledo. Isto valeu a Franco o estatuto de supremo coman­ dante militar e político (Generalísimo) da Espanha rebelde. Franco transformou a tomada de Toledo num valioso golpe publicitário, reencenando-a para as câmaras de filmar que mostraram aos espec­ tadores de cinema de todo o mundo as imagens do Generalísimo vito­ rioso em passeio sobre o entulho. Além disso, Toledo era também um local de enorme importância simbólica para a direita espanhola. Na Idade Média, fora, em toda a Península Ibérica, a primeira cidade sob domínio árabe a ser conquistada pelas forças cristãs, facto que con­ feriu uma ressonância acrescida à decisão de para lá divergir. Assim, a decisão tomada por Franco resultou claramente de considerações políticas, já que é difícil discernir a sua relevância militar. De facto, ao adiar o avanço sobre Madrid, Franco ofereceu aos republicanos um tempo precioso para organizarem a defesa da capital. Nesse aspecto, o apoio militar deúltimahora oferecido pela União Soviética foi crucial. Uma vez obtida a concordância de Estaline, em meados de Setembro, o material de guerra chegou à frente madri­ lena mesmo a tempo de ser empregue nos combates de Novembro. Até então, a União Soviética tinha-se mantido impassível. Moscovo ignorou um pedido inicial de ajuda feito pelo governo republicano em Julho, assim que Madrid se apercebera de que a França estava prestes a voltar com a palavra atrás. Mesmo assim, o apelo fora feito mais em desespero de causa do que com quaisquer expectativas de sucesso, já que não havia propriamente canais diplomáticos através dos quais o pedido de ajuda pudesse ser encaminhado. Apesar de a república ter reconhecido a União Soviética emJunho de 1933 - foi o primeiro governo espanhol a fazê-lo - , ainda não tinha havido qualquer inter­ câmbio de representantes diplomáticos quando os militares se suble­ varam, emJulho de 1936. Quando aconteceu o golpe, a União Soviética apressou-se a apoiar a política de não intervenção preconizada pela Grã-Bretanha e pela França. Dadas as enormes convulsões económicas, sociais e polí­ ticas no interior da União Soviética, Estaline estava, à semelhança dos MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA {61} decisores políticos britânicos, pouco preocupado com a manutenção de um cenário internacional estável. Além do mais, tendo em conta que o seu maior receio era uma Alemanha nazi expansionista, tam­ bém não tinha vontade alguma de alienar a Grã-Bretanha ao apoiar a república de Espanha. Pelo contrário, em 1936 os soviéticos já procu­ ravam activamente uma aliança de defesa mútua com a Grã-Bretanha e a França, uma política a que Estaline chamava de «segurança colec­ tiva», convencido de que as potências imperiais teriam, em breve, de compreender que a maior e mais premente ameaça aos seus interesses não residia no comunismo russo mas antes nas ambições territoriais da Alemanha nazi. Durante algum tempo, as chefias soviéticas tam­ bém pensaram que a não intervenção, caso funcionasse, poderia ser a hipótese mais favorável à república. Estaline sabia que, a verificar-se uma escalada da guerra em Espanha, seria muito difícil a república resistir a longo prazo, mesmo se conseguisse obter armamento estran­ geiro, uma vez que defrontava forças rebeldes apoiadas directamente pelos regimes da Itália fascista e da Alemanha nazi, que usufruíam da estrutura militar e industrial mais sofisticada daquela época. No entanto, rapidamente se tornou óbvia a ineficácia da não intervenção, e Estaline percebeu que, a não ser que se fizesse alguma coisa, a república ia sucumbir ao embate. Se isso acontecesse, o poder de fogo nazi podia ser canalizado para leste - em direcção às vulne­ ráveis fronteiras soviéticas. Para o evitar, Estaline correu o risco de desagradar aos britânicos e enviou alguma ajuda militar. Todavia, na tentativa proteger o acalentado objectivo de uma aliança defensiva com a Grã-Bretanha e a França, a ajuda militar soviética à república, ao contrário da humanitária, nunca foi confessada. O silêncio da imprensa soviética a este respeito era contrastante com a atitude das suas congéneres alemã e italiana; a imprensa italiana, em particular, foi inundada com notícias sobre a «viril» actuação fascista em Espanha. A ajuda da União Soviética salvou a república espanhola de uma derrota militar quase certa em Novembro de 1936. Os seus tanques e condutores, assim como a pequena corte de técnicos e conselhei­ ros militares, prestaram um serviço valioso, mas o mais importante foram os aviões e os experientes pilotos soviéticos, que conferiram à república a superioridade em meios aéreos durante a disputa de {62} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Anónimo espanhol, r937. Madrid, repercutida ao longo do Inverno de 1936. O poderio aéreo rapidamente se tornou vital, tendo permitido que, nas ocasiões em que caía em vantagem, a república conseguisse alcançar algumas raras MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA vitórias - como a de]arama, nas imediações de Madrid, em Fevereiro de 1937, ou a de Guadalajara, 50 quilómetros a nordeste da capital, em Março. Como consequência dessas batalhas, a capital conseguiu resis­ tir aos exércitos de Franco. Os rebeldes sofreram uma grande derrota, que transformou Madrid num símbolo internacional de resistência antifascista. De toda a Europa, e não só, chegavam artistas e escrito­ res, para participar na mobilização cultural que constituía uma parte importantíssima do esforço de guerra republicano. Todos eles com­ preendiam que se tratava da linha da frente de uma guerra cultural mais vasta: se o fascismo triunfasse, extinguir-se-ia a possibilidade de produzir cultura de forma livre. Muitos antifascistas também se dirigiam a Espanha para lutar. A disputa de Madrid envolveu combates intensos e muitas baixas, sobretudo entre as Brigadas Internacionais, que eram atiradas para a frente à medida que os exércitos rebeldes chegavam à capital. As Bri­ gadas eram constituídas por soldados voluntários de esquerda. Mais de 35 mil lutaram pela república espanhola entre 1936 e 1939 - com o número médio de efectivos a rondar os 12 a 16 mil (este último valor apenas se registou no auge do recrutamento, na Primavera de 1937). Os voluntários chegavam de todo o mundo, mas a maior parte era de origem europeia. Até mesmo nos dois contingentes da América do Norte - Estados Unidos e Canadá, com 3000 e 1600 efectivos, res­ pectivamente - , a maioria eram emigrados europeus ou descenden­ tes de emigrados. Uma grande parte daqueles que foram combater pela república de Espanha (viessem ou não da Europa) eram exilados políticos. Muitos vinham não só da Alemanha, Itália e Áustria, mas também de muitos outros países europeus igualmente dominados por ditaduras nacio­ nalistas de direita, monarquias autocráticas ou pela direita radical (fascista) - incluindo a Hungria, a Jugoslávia, a Roménia, a Polónia e a Finlândia. De facto, é impossível compreender as Brigadas Inter­ nacionais enquanto fenómeno histórico sem ter em conta as suas ori­ gens na diáspora europeia. Os elementos das Brigadas faziam parte de uma massa migratória de pessoas - sobretudo de classes trabalha­ doras urbanas - que já tinham abandonado os seus países de origem algures após a Primeira Guerra Mundial, quer por razões económicas, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA quer para fugir à repressão política (frequentemente por ambas as razões). Entre os voluntários canadianos, por exemplo, havia muitos finlandeses que tinham fugido à repressão desencadeada pelo líder nacionalista Mannerheim após a guerra civil de 1918. Houve mesmo um canadiano de origem finlandesa que declarou ter ido combater para vingar a sua irmã, que tinha sido morta pelos brancos (nacionalis­ tas) durante essa guerra. Ao lutarem contra o fascismo em Espanha, esses exilados e emi­ grados estavam, então, a acertar velhas contas que remontavam à guerra de 1914-18, cujas sequelas tinham endurecido a esfera política, conduzindo ao advento dos nacionalismos antidemocráticos que os arredaram pela força. O internacionalismo de esquerda era também um modelo político consolidado, de forma assaz natural, pela vivência em diáspora dos próprios exilados, além de representar um poderoso antídoto contra os modelos políticos assassinos (no sentido literal) que haviam tomado conta dos seus países. Com a crise económica dos anos 30, as posições extremaram-se. Ao parecerem anunciar o colapso de uma economia capitalista insustentável que a direita ainda defendia, o desemprego em massa e as privações - especialmente nas zonas urbanas - aceleraram a polarização política. Os membros das Brigadas sentiam que, ao combater os militares rebeldes e os seus apoiantes fascistas em Espanha, estavam também a desferir um golpe contra a opressão económica em todo o continente. Tinham, por isso, bast ante consciência de si próprios enquanto soldados políticos de uma guerra civil em curso na Europa. Esta guerra civil europeia era também, à semelhança da espa­ nhola, uma guerra de culturas. Tal como os militares rebeldes, tam­ bém a direita radical no resto da Europa dirigia a sua violência contra os indivíduos social, cultural e sexualmente diferentes. Esta forma de fazer política emergia de um choque profundo de valores e de modos de vida - rural contra urbano; tradição contra modernidade; hierar­ quia social vincada contra modelos políticos mais brandos e igualitá­ rios - as mesmas tensões que agora despontavam em Espanha. Por ser uma guerra civil europeia entre culturas, esta era também uma guerra entre raças. Não se tratava apenas do nazismo alemão; muitos dos regimes a que os elementos das Brigadas tinham fugido MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA {65} depois de 1918 desenvolveram modelos políticos baseados na segre­ gação étnica e na «purificação» - contra minorias raciais e não só. Havia muitos voluntários judeus nas Brigadas - cerca de um quarto do total, incluindo uma grande quantidade de elementos oriundos da Polónia. No interior do batalhão polaco foi formada uma compa­ nhia exclusivamente judia, com assinalável adesão internacional. Esta companhia recebeu o nome de um jovem comunista judeu, Naftali Botwin, morto na Polónia em 1925, e alguns dos seus membros viriam, mais tarde, a combater ao lado da Resistência Francesa. A sua ban­ deira ostentava a frase «pela nossa liberdade e pela vossa», em iídiche e polaco na face da frente, e em espanhol na face de trás. Contudo, a maioria dos judeus que combateram em Espanha fizeram-no nou­ tras unidades, e muitos consideravam o antifascismo como um traço de identidade pessoal mais importante do que a origem judaica. Ao lutarem contra o fascismo em Espanha, os elementos das Brigadas estavam a resistir simultaneamente a muitas formas violentas de exclusão social e política. Do mesmo modo, aqueles que foram perse­ guidos e encarcerados nos primeiros campos de concentração nazis, instituídos em 1933, eram alemães dissidentes, diferentes, marginais - política, social, cultural ou sexualmente. Os voluntários alemães das Brigadas Internacionais levaram para Espanha pelo menos uma canção - Die Moorsoldaten (Os Soldados do Pântano}, escrita por um recluso dos primeiros campos nazis. Assim, a heterogeneidade das Brigadas, quer em temos raciais quer culturais, transformou-as numa forma viva de oposição às ideias de purificação e de brutal categorização advogadas pelo fascismo e, sobretudo, pelo nazismo. Mas não se tratava apenas de um confronto com demónios europeus. A Brigada Abraham Lincoln, na qual combateram 90 soldados afro-americanos, foi a primeira unidade americana não segregativa de sempre - embora o exército dos Estados Unidos tenha continuado a praticar o segregacionismo durante toda a Segunda Guerra Mundial. Segundo esta óptica, as Brigadas Internacionais simbolizaram um certo espírito de possibilidade futura, e foram, embora com muitas imperfeições e de modo não consciente, o exército da modernidade cultural cosmopolita. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA {66} Oliver Law, o comandante afro-americano da BrigadaAbraham Lincoln,foi morto em combate durante a Batalha de Brunete, em Julho de 1937- Foi oprimeiro comandante militar na história dos Estados Unidos a liderar uma unidade de tropas onde não havia segregação racial Estas aspirações igualitárias dariam consistência à ideia do com­ bate republicano durante a guerra civil como «última grande causa», como linha da frente na luta por um modelo político mais justo e inclusivo, dentro e fora da Europa. A sobrevivência desta ideia para além da derrota republicana tornou-se possível, quanto mais não seja pela extraordinária camaradagem e solidariedade que muitos dos voluntários estrangeiros - entre soldados e pessoal médico - expe­ riment aram em Espanha e levaram consigo, sob a forma de recorda­ ção inflamada e transformadora. O poeta Edwin Rolfe, que integrara a Brigada Lincoln em Espanha recordou a Guerra Civil, quando se preparava para combater na Segunda Guerra Mundial: Estou ansioso por participar, ansioso por pôr-lhe fim. Talvez esta venha a ser a última. {...} Porém, o meu coração está para sempre cativo daquela outra guerra que me ensinou, pela primeira vez, o significado da paz e da camaradagem e penso sempre no meu amigo que, por entre a aparição das bombas, viu no lírico lago o cândido e perfeito cisne. «First Love», 1943 Precisamente devido ao facto de terem servido como tropas de choque da república, as Brigadas sofreram muitas baixas, em especial nas etapas iniciais da guerra. O contingente britânico foi dizimado na Batalha de ]arama, em Fevereiro de 1937, na qual os Lincolns sofre­ ram igualmente perdas brutais. Por outro lado, também não havia em Espanha, no início, muita experiência em lidar a uma tal escala com MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA as mortes e os ferimentos no campo de batalha. A aprendizagem fez­ -se quase em paralelo. A ajuda do pessoal médico voluntário foi cru­ cial - médicos e enfermeiras cujo apoio e angariação de fundos para material terapêutico e humanitário fez parte integrante da solidarie­ dade progressista de esquerda para com a república em guerra. No entanto, os benefícios foram mais do que recíprocos: desta colabo­ ração resultaram avanços no tratamento de emergência dos feridos em combate - particularmente ao nível da triagem e das transfusões de sangue - , que viriam a ser extremamente úteis durante a guerra mundial que se seguiu. Também se registaram outros progressos, embora de carácter mais ambíguo. Salaria Kea, uma enfermeira do departamento médico americano, e T hyra Edwards, uma voluntária que prestava apoio às colónias de crianças refugiadas montadas pelo governo republicano, eram mulheres afro-americanas que prest aram serviço em Espanha - as duas únicas a fazê-lo. Porém, quando se candidatou ao lugar de condutora de ambulâncias, uma outra jovem - Evelyn Hutchins - deparou-se com a força do preconceito. Apesar de disposta a esti­ mular a equidade racial, a esquerda só conseguia conceber a ideia de recrutar mulheres para Espanha como enfermeiras ou pessoal de apoio. Geralmente, as mulheres não eram chamadas a prestar ser­ viço voluntário na república de Espanha, a não ser para desempenhar funções tidas como adequadas à luz das normas de género comuns - e, por isso, socialmente conservadoras - daquela época. Depois de 1945, a recordação desta experiência levaria as mulheres afectas ao movimento comunista norte-americano a desafiar a postura do par­ tido em relação às questões de género. Isso contribuiu para um debate mais al argado que, por sua vez, conduziu, nos anos 60, ao movimento da Nova Esquerda, que era culturalmente mais consciencioso. Assim, a «boa luta», como os elementos da brigada americana designavam o esforço para salvar a república espanhola, implicou mais do que um tipo de combate. O eixo organizacional das Brigadas Internacionais foi, desde o início, fornecido pelo movimento comunista europeu. Nos anos 30, este movimento era, de longe, a frente mais activa e dinâmica de oposição organizada ao fascismo, aliciando, por isso, grandes fatias {68] BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA J Espert / Biones, 1937. do eleitorado esquerdista e liberal. Em nenhum outro aspecto isto foi tão evidente como em relação à solidariedade para com a república de Espanha. As organizações comunistas estiveram na vanguarda da campanha pelo levantamento da não intervenção. Aqui, a sua proe­ minência também derivou da posição ambígua da social-democracia europeia, cujos partidos políticos e sindicatos ainda eram bastante influenciados por correntes de sentimento pacifistas e antiguerra resultantes da experiência de 1914-18. Inicialmente, isto levou a que muitos apoiassem a política de não intervenção. Mesmo depois de MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA terem percebido que tal política era prejudicial à república, as lide­ ranças socialistas europeias mantiveram-se relutantes em desafiar os seus governos quanto à legalidade da não intervenção. A matéria-prima humana para as Brigadas foi rapidamente cana­ lizada pelo Comintern (Internacional Comunista), sobretudo sob os auspícios do Partido Comunista Francês (PCF), que também dis­ ponibilizou o maior de todos os contingentes nacionais às Brigadas - mais de 9000 voluntários ao longo de toda a guerra. O aconteci­ mento que galvanizou as acções de recrutamento do Comintern foi, sem dúvida, a decisão tomada pela União Soviética, em Setembro de 1936, no sentido de fornecer alguma ajuda militar à república. Assim, as Brigadas Internacionais foram uma das componentes do planeamento reactivo de emergência de Estaline. A Internacio­ nal Comunista proporcionou os meios organizacionais indispensá­ veis que possibilitariam canalizar sistematicamente para Espanha os meios técnicos e militares da esquerda internacional, de modo a impe­ dir a derrota da república no Outono de 1936. Apesar da arriscada situação militar que a república atravessava naquela altura, o governo foi um interlocutor difícil durante as negociações que deram origem às Brigadas Internacionais, em Outubro de 1936. O comando militar republicano e muitos dos oficiais do exército ao serviço da república eram hostis às Brigadas, quer por chauvinismo, quer por orgulho profissional. Em 1937, à medida que a reconstrução de um exército republicano integrado ia avançando, começou a gerar-se uma força indelével de atracção, que levou a que estas fossem integradas nas suas fileiras, no Outono desse ano. Esse processo também significava que as Brigadas, apesar de manterem a sua identificação numérica, se estavam a tornar cada vez menos «estrangeiras» à medida que a guerra evoluía. Isto porque havia uma política concertada, no sentido de as manter sob comando de conscritos espanhóis - um processo que se acelerou quando a angariação de novos elementos entrou em declí­ nio, depois do pico registado nos primeiros meses de 1937. Por todas estas razões, é um erro reduzir o complexo fenómeno histórico das Brigadas Internacionais à fórmula simplista de um exér­ cito do Comintern. Estaline não podia mandar cidadãos europeus combater pela república de Espanha da mesma maneira que Hitler BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA e Mussolini podiam recrutar (e recrutara m) alemães e italianos. O s e a urgência em organizar de fesas civis começaram a forjar um novo eleme ntos das Brigadas que foram par a Espanha eram voluntários, sentido comunitário repu blican o face à adversidade. Em 1936, este e, co mo sugere o contexto histórico e sociológico atrás resumido, os fenómeno circunscrevia-se à região de Madrid; ao longo dos dois anos seus motivos eram tão complexos e enraizados na exp eriência pessoal seguintes, a guerra haveria de chegar, sucessivamente, a outras partes como os daqu eles que primeiro se voluntariaram pela república (em do território republicano. Foi assim que, gradualmente, as várias for­ Julho e Agosto de 1936), que tinham ido para Espanha por iniciativa individual. Uma vez chegados, todos os voluntários eram submetidos à disciplina militar. S e assim não fosse, teriam sido completamente inúteis à república, embora para alg uns - mesmo no interior das Bri­ gadas - essa disciplina se tornasse exasperante, precisamente pelo facto de se terem alistado como voluntários. S em dúvida que este sen­ timento de desilusão resultava em parte da perturbadora tomada de consciência de quão mal preparados estavam para enfrentar as duras co ndiçõ es de co mb ate e m Espanha - especialme nte por causa do armamento antiquado que eram obrigados a usar, graças à política da não intervenção. Uma vez que a principal função dos quadro s da Internacional Co munista era a de impor disciplina nas Brigadas, havia muitas ques­ tões materiais que provocavam desentendimentos, para não falar da cultura organizacional e política excessivamente rígida e doutrinária que funcionava no interior do C omintern. Esta rigidez haveria de agudizar-se ao lo ngo da guerra, em parte como reacção à capacidade inev itavelme nte muito limitada da Internacio nal para influe nciar os resultados militares em Espanha. Por outras palavras, o zelo oti a postura «politicamente correcta» de muitos relatores do Comintern era m, fr e que ntem ente , um a de fe sa co ntra poss íveis acusaçõ es de incompetência técnica ou organizacional levantadas pelo seu próprio corp o execut ivo ou pelas chefias soviéticas. Em suma, a ri gidez era um sintoma de fraqueza, não de força. No O utono e no Inverno de 1936, a guerra não entrou apenas no espaço físico de Madrid e nas mentes dos soldados - espanhóis ou não - que combatiam na frente principal, mas também na consciência da população civil da cidade. Isto verificou-se pela primeira vez durante a exp eriência dos bombardeamentos aéreos. Foi a 28 de Agosto que a população de Madrid sofreu os primeiros raides aéreos - na verdade os primeiros a terem lu gar na Euro pa. O próprio bomb ardeamento mas de identidade republicana se começaram a aglomerar, em resul­ tado da própria guerra - quer esta fosse vivida às portas de casa ou na frente de combate. As mortes violentas ocasionadas pelo conflito , especialmente as que ocorriam em co mbate , também moldaram o «si gnificado » da guerra para ambos os lados. As identidades franquistas puderam ser mais facilmente consolidadas a partir de 1939, ao passo que as republi­ canas, estilhaçadas pela derrota, foram, consequentemente, confina­ das a espaços privados e subterrâneos. A grande compressão temporal na emergência das identidades republicanas durante a guerra confere­ -lhes uma aparência fortuita, subjectiva e frágil, embora isso não nos permita considerá-las menos reais do que as outras formas de identi­ dade nacional. A guerra também trouxe consigo muitos refugiados - primeiro para Madrid, depois para outras localidades. A primeira grande vaga veio do sul, no Verão de 1936, em fuga ao exército africano de Franco. Primeiro, no O utono, passou por Madrid e depois, acrescida de mais re fugiados da ca pit al sit iada , av a nç ou para B arcelo n a e Val ên cia - cidades onde a guerra era ainda um rumor distante. O s refugiados foram responsáveis por um êxodo populacional acelerado, prota go­ nizando, por conseguinte, uma forma de mudança social. Além dos traumas específicos do desalojamento em tempo de guerra, a súbita mudança das populaçõ es pobres do sul para os meios económica e culturalmente mais desenvolvidos do nordeste de Espanha produ ziu um grande cho que cultural. Apesar de os mais atingidos terem sido os re fugiados, este cho que afec tou todas as partes, co mo demo ns ­ tram os relatórios das missõ es humanitárias dos quakers em Barcelona e Valência. Um deles, escrito em Maio de 1937, descreve os refugia­ dos do sul como «selva gens», «meio-mouros » e apreensivos e m rela­ ção a «listas», com medo do que a sua identificação pelas autoridades públicas ou do estado pudesse implicar. [72} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Montra de uma loja na Espanha republicana (Valência, Outubro de 1937), que mostra como alguns símbolos políticos-chave - a encarnação da segunda república como umajovem e bela mulher (la nina bonita} - efiguras icóni­ cas como o líder anarquista Buenaventura Durruti, morto em 1936 nafrente madrilena,foram incorporados na cultura popular. À medida que o exército rebelde se entrincheirava para cercar o perímetro de Madrid, o conflito transformava-se numa longa guerra de desgaste contra a república. Hitler e Mussolini reconheceram a Espanha rebelde em Novembro de 1936. No entanto, as batalhas épi­ cas em redor de Madrid mostravam-lhes - em particular a Mussolini - que só um crescimento massivo do apoio alemão e italiano poderia garantir a vitória de Franco. Hitler incentivou Mussolini a tomar a ini­ ciativa. E fê-lo até ao ponto de comprometer a eficácia militar italiana na Guerra Mundial. A ajuda alemã a Franco também aumentou, mas centrou-se qualitativamente na tecnologia de armamento, nos equi­ pamentos e no poderio aéreo. A proporção do apoio de Mussolini, em termos de armamento e de forças de combate (75 mil homens), foi tal MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA [73} que pode dizer-se que, a partir de Março de 1937, a Itália entrou em guerra contra a república de Espanha. A escalada da guerra e a manifesta vantagem militar e diplomática rapidamente conferida aos rebeldes também produziu transforma­ ções políticas profundas no interior da república espanhola. Come­ çara a corrida para a construção do estado e de uma máquina de guerra moderna - a única forma pela qual a república seria agora capaz de resistir ao inimigo militar. O maior desafio era reconstruir o exército. O golpe tinha desfeito a unidade do exército e o comando republicano teve de ser praticamente começado de raiz. A deficiente distribuição e escassez de material eram aflitivas, agravadas pelo impacto da não intervenção. A oposição, de carácter político, à militarização entre os combatentes das milícias não era uma questão particularmente rele­ vante nas regiões onde estes já tinham participado na luta contra as forças de Franco, nomeadamente nas frentes principais em redor de Madrid. Muito mais séria era a permanente desconfiança dos milicia­ nos em relação aos militares profissionais do exército - em si mesma pouco surpreendente à luz do golpe. Esta desconfiança tornou crucial o novo cargo de comissário político. Os comissários eram nomeados por todas as organizações políticas republicanas, e o seu trabalho consistia em explicar o fundamento lógico das ordens militares, em assegurar, na prática, o bem-estar das suas tropas e em recordá-las da razão de ser da guerra. Os oficiais que permaneceram fiéis à república eram, amiúde (embora nem sempre), desdenhosos da inexperiência das milícias, e esta mentalidade rígida e fechada fez com que, nos pri­ meiros meses, tenham sido muitas vezes incapazes de tirar o melhor partido delas. No Inverno de 1936, também se perdeu algum tempo vital para a reorganização militar pelo facto de os responsáveis políticos da repú­ blica não se terem apercebido suficientemente depressa da natureza da guerra que eram chamados a travar. As tensões políticas entre o centro e a periferia causaram mais alguns impasses, numa altura em que isso era um luxo a que ninguém se podia dar. Até mesmo as tímidas tentativas de promover a centralização do controlo dos recursos e do planeamento de guerra deram origem a conflitos debilitantes entre o governo central republicano e a emergente autoridade regional basca, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA no norte, controlada pelo Partido Nacionalista Basco (PNV), que ambicionava direitos de soberania e se opunha a todas as tentativas de sujeitar a indústria ou as unidades militarizadas de combate bas­ cas ao controlo central republicano. Quando apareceu um governo republicano mais duro e disposto a forçar o assunto, a frente basca já estava sob fortes ataques das forças de Franco. Acabaria por cair no Verão de 1937, privando a república de recursos vitais para a indústria pesada e reduzindo significativamente as suas hipóteses de, no ime­ diato, vencer a guerra em termos militares. O colapso da frente basca ocorreu precisamente quando a reor­ ganização militar republicana estava a começar a confluir. A Batalha de Brunete, nas imediações de Madrid, emJulho de 1937 - prova­ velmente a batalha mais sangrenta de toda a guerra - , assinalou o momento da definição: o advento do poder de fogo da república. Mesmo assim, o seu grau de eficácia era constantemente limitado devido ao facto de o material de guerra ficar retido na fronteira fran- MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA EI coróder fundomentol de lo Conferencio lnternocionol de Mujeres fué lo de lo lucho con'tro lo guerro imperiolido · y en favor de lo poz. " ') iPASO a LA MUJER! Anónimo, 1937. A mobilização política dosjovens na Espanha republicana tambémfez parte de um processo mais amplo de mudança social e cultural cesa, em resultado da política de não intervenção. No final do Verão, já se encontravam bastante adiantados os esforços de constituição de um corpo do exército republicano inteiramente dedicado a formas inovadoras de guerrilha para lá das linhas rebeldes. Apesar de este ser maioritariamente composto por soldados espanhóis, houve também um contingente das Brigadas Internacionais a participar na guerrilha desde o seu começo, no início de 1937. Muitos desses elementos eram de origem finlandesa, incluindo canadianos e um norte-americano, Bill Aalto. Este jovem de 22 anos, oriundo das classes trabalhadoras do Bronx, tornou-se capitão da guerrilha e, mais tarde, em 1938, par­ ticipou num importante raide dos comandos, que constituiu a única operação do género alguma vez realizada pelo exército espanhol (ver capítulo 5). Alguns anos depois, Irv Goff, camarada de armas de Aalto e interveniente nessa acção dos comandos, viria a ter a oportunidade de aplicar as tácticas aprendidas em Espanha, quando, no decurso da Segunda Guerra Mundial, foi lançado de pára-quedas pelos serviços BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA {77} mática. Houve algumas mulheres a combater nas milícias e a participar em formas sub-reptícias de luta, inclusive na guerrilha - geralmente em funções de ligação extremamente perigosas. No entanto, a maior parte das fotografias de mulheres milicianas de que dispomos não tes­ temunha nenhuma destas duras realidades: foram quase todas tiradas na fase inicial do confüto e deixam transparecer o rótulo inconfundível da guerra enquantofiesta. São imagens altamente coreografadas, con­ cebidas para maximizar o efeito decorativo dos sujeitos femininos. À semelhança dos famosos cartazes de milicianas, eram sobretudo diri- ,, Miliciana em M.adrid, no início da guerra. especiais norte-americanos sobre a Europa ocupada, juntando-se às forças de resistência por detrás das linhas do inimigo - o único tipo de serviço para o qual o governo americano não discriminava acti­ vamente cidadãos que tivessem combatido ao lado da república de Espanha. O imperativo da guerra também acelerou o processo de mobili­ zação de massas - especialmente de mulheres e jovens - na frente republicana, iniciado no período pré-guerra. Esse processo, por sua vez, constituiu uma forma de modernização social e política. Foram recrutadas mulheres em larga escala para trabalharem na indústria de guerra, o que envolveu formação prática e melhorou o seu nível de instrução, além de permitir uma exposição a alternativas cultu­ rais que trazia consigo um potencial transformador das relações de género - um dos muitos potenciais culturais que se perderam com a derrota republicana. A trabalhadora de guerra republicana foi a expressão real da «nova mulher» na Espanha dos anos 30.Já a imagem mais familiar - que se tornou mesmo um clichê - da miliciana vestida de azul é mais proble- Trabalhadora republicana durante a guerra. Uma aula de alfabetização para soldados republicanos. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA gidas a um público masculino (no caso dos cartazes, tratava-se de um mecanismo de recrutamento activamente pensado para persuadir esse público a voluntariar-se para o serviço militar). A mobilização republicana, como qualquer outra forma moderna de mobilização para a gu erra, assentava sobretudo no alistamento prático e psicológico, funcionando, assim, como um agente impor­ tante de mudança social e cultural. Por volta do final de 1937, era já bem sentido o impacto da conscrição. Com vista à construção do exército republicano, muitos jovens foram levados dos meios rurais para receberem treino, o que também envolvia campanhas de alfabetização e de sensibilização para a saúde pública. Num país como Espanha, com níveis de instrução muito bai­ xos entre a maioria da população rural, estes foram aspectos cruciais no processo construtivo da nação. Mais uma vez, o papel dos comis­ sários políticos foi fundamental. Da intensa experiência da linha da frente - combate, camaradagem e sofrimento comum - haveria de emergir uma consciência especificamente republicana entre muitos combatentes que nunca tinham partilhado afinidades políticas antes da guerra. R.A., 1937- RiveroGil MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA Outro factor importante para o sucesso da república em chegar às pessoas foi o seu impressionante repertório de técnicas de propa­ ganda inovadoras. Note-se, em particular, a forma como a mobiliza­ ção cultural republicana assistiu ao aparecimento da fotomontagem como arma de gu erra. O material era fornecido por figuras cimei­ ras da vangu arda europeia - como o artista alemão exilado John Heartfield, autor da famosa montagem Eles Não Passarão, que mos­ tra abutres fascistas e nazis sobre o horizonte de Madrid, mantidos à distância pelas baionetas antifascistas. Contudo, havia também muitos espanhóis autores de uma inovadora arte de guerra, inclusive com uma forte componente de fotomontagem modernista - como, por exemplo, o artista valenciano Josep Renau, nos seus cartazes e colagens (durante a guerra, Renau foi também director de belas-artes, um cargo importante que lhe conferia a responsabilidade de prote­ ger os tesouros artísticos nacionais de danos causados pelos bombar­ deamentos). A fotomontagem é um formato que distingue claramente a arte de guerra republicana da que era produzida em território fran­ quista. Ambos os lados dispunham de artistas e propagandistas que trabalhavam de acordo com tradições figurativas, e ambos recorre­ ram a imagens mecanizadas e modernistas para evocar admiráveis ordens novas (o soldado heróico no famoso cartaz republicano sobre alfabetização - ver pág. 168 - bem podia ser uma imagem fascista, embora a legenda clarifique que não é). Todavia, a fotomontagem era uma técnica que a produção franquista não podia incorporar, uma vez que tinha fortes conotações internacionalistas e cosmopolitas. Os seus impetuosos contrastes quebravam as regras de composição formal e transformavam o imediatismo e a contingência em virtudes. Enquanto suporte, a fotomontagem também se prestava à reprodu­ ção mecânica. Era exactamente isso que a direita tinha em mente quando falava em «degenerescência» e «bolchevismo cultural». Porém, apesar dos valores culturais e das ideologias políticas substancialmente diferentes em que se ancoravam a Espanha republi­ cana e a Espanha franquista, assistiu-se, durante a guerra, à progres­ são e aceleração comuns de um processo de mudança social. A grande expansão da Falange (fascista) e do Partido Comunista Espanhol exerceu funções comparáveis nos dois lados, ao incorporar sectores {80} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA -.. ,- ;,... .. ··:. .. �.· .··':�'.... . -�� �-;. ,: 1;,/_./. .. .:> .. Comboio de propaganda republicano com insígnias antifascistas. Poema mural em Madrid, no Outono de r937, cele­ brando asforças republicanas no norte (Astúrias). anteriormente desmobilizados da população (em especial mulheres e jovens) no esforço de guerra e, consequentemente, no estado e no espaço público. Na Espanha republicana, um dos factores da atracção que o movimento comunista espanhol exercia, durante a guerra, sobre MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA {81} grupos sociais tão díspares era a popularidade acrescida da União Soviética, que, por ter sido o único grande país a quebrar o isolamento internacional que asfixiava a república, havia proporcionado um poderoso estímulo ao moral das populações. Reinava um sentimento generalizado de optimismo, segundo o qual ali estava um país pode­ roso cujo apoio diligente podia permitir que os republicanos vences­ sem a guerra. Foi por isso que, durante algum tempo, as cerimónias comemorativas, a retórica e a iconografia que celebravam a solidarie­ dade soviética para com a república conquistaram a adesão popular. A União Soviética tornou-se a moda daquela estação. No Inverno de 1936-37, instalou-se em Madrid a febre dos chapéus russos e das insíg­ nias de todos os tipos. As revistas femininas falavam da moda e dos penteados russos como sendo o último grito em elegância. No entanto, esta atracção generalizada e a envolvente decorativa que a acompanhava tinham pouco a ver com marxismo-leninismo, ou até mesmo com ideologia política de qualquer espécie. Por isso, parece não fazer sentido falar, como alguns comentadores têm feito, de sovie­ tização da política e da sociedade republicanas. É mais exacto afirmar que o sentimento popular em relação à União Soviética era de uma natureza bem diferente, na medida em que esta era encarada como um ícone de modernidade. Este fenómeno tivera uma certa precedência na Espanha dos anos 20, quando alguns eleitorados urbanos progres­ sistas, embora não necessariamente com intencionalidade política, já associavam a União Soviética à modernidade tecnológica e cultural - o que não difere muito da forma como, na Espanha do pós-guerra, muitos grupos sociais viriam a projectar nas imagens e nos produtos norte-americanos a suas aspirações ao progresso e ao desenvolvimento (como documenta o filme Bienvenido Mr. Marshall, realizado por Luis G. Berlanga em 1953). Ao leitor ocidental do século XXI, a comparação pode parecer contra-intuitiva, mas a percepção dos espanhóis dos anos 20 e 30 não passou, obviamente, pelo filtro da Guerra Fria. A constru­ ção da imagem da União Soviética e dos Estados Unidos apresentou um elemento comum: a falta de modelos nacionais, isto é, espanhóis, aos quais as pessoas se pudessem agarrar, embora, precisamente devido à derrota republicana, tal carência fosse muito mais acentuada nas décadas de 50 e 60 do que nos anos 20 e 30. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Durante a guerra, a corrida para construir o estado republicano também produziu no governo central uma dinâmica contrária a todas as manifestações de localismo que tinham emergido no rescaldo do golpe - desde os comités de aldeia aos conselhos regionais (como o famoso Conselho de Aragão), passando pelo próprio governo regional da Catalunha. Em parte, essa dinâmica também era contrária aos secto­ res da esquerda radical que havi am advogado os modelos colectivizados e cooperativos de que tinham proliferado na ressaca do golpe. Quem se alinhou contra a esquerda radical não foram apenas os comunistas mas também muitos sectores do partido socialista parlamentar e do res­ pectivo sindicato, diversos partidos republicanos e até mesmo alguns ramos da anarco-sindicalista CNT É óbvio que não estavam apenas em questão as entidades políticas propriamente ditas, mas a globalidade dos eleitorados republicanos que elas representavam. Esta aliança era uma forma de tentar restabelecer a coligação ampla, reformadora, libe­ ral e democrática de sectores operários e de classe média originalmente criada com o nascimento da república, em 1931, depois restabelecida após a vitória eleitoral de Fevereiro de 1936 e finalmente desintegrada pelo golpe, emJulho do mesmo ano. A vitória desta ampla aliança ficou simbolicamente selada em Maio de 1937, quando a lei e ordem republi­ cana triunfou sobre os protestos dos trabalhadores radicalizados e das classes urbanas desfavorecidas nas ruas de Barcelona. Esses foram os famosos Dias de Maio, em resultado dos quais tomou posse um novo governo de guerra, liderado pelo parlamentar socialistaJuan Negrín. Havia muitas razões para que a violência nas ruas tivesse eclodido em Barcelona, muitas mais, na verdade, do que as que foram obser­ vadas pelo seu cronista mais famoso, George Orwell, que, devemos ter em conta, não sabia ler castelhano nem catalão. Em Homenagem à Catalunha, Orwell associa de imediato os combates a modelos antagó­ nicos de organização da sociedade e da política republicanas. Porém, incorre em exagero quanto ao papel desempenhado pelos comunistas catalães e espanhóis. Também infundada é a sua teoria da conspira­ ção, segundo a qual os Dias de Maio teriam sido, de alguma maneira, deliberadamente provocados. Na realidade, as tensões sociais e polí­ ticas já estavam em crescendo naquela cidade desde o início de 1937. O governo catalão, do qual os comunistas (em reduzida proporção) MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA {83} LA MODA EN MOSCU \.'u1ido combiiudo ,. ttd� (Jl.ttr6oo con uupo ta ulpt dt <hiu .a U• yu de colofo rtmr�. a,nwilto ' bli.etO. Modtlo dlboj,do flO' o tOt1 <hdno dt ur.aa bho,u, y .nul duo -, c'"1u1Gn •zul .-coro J1tooj.aJo p,.lt Moullun Vntido ,Ir .-ruMI fl\ 1otd.a bbnrJ, con <h,h (O ro;o ,·il·o u1 cifJK Jt chin..t, r 1u.att1idonu 1ojo o«uro ulpic�u 1n'bb1uo. ""'" mo&lo dibuj-4o pot Saodd,I· •1""- Alta costura moscovita:página de uma revistafeminina madrilena durante a guerra faziam parte, tinha vindo a reassumir, de forma gradual, os poderes executivos que havia perdido para os comités de trabalhadores e sin­ dicatos no rescaldo do golpe militar. Como parte deste processo, o governo reintroduziu forças de mercado no abastecimento de bens alimentares à cidade, cujo efeito prático foi a penalização das classes urbanas desfavorecidas, das pes­ soas que estavam na corda bamba desde 1931 por causa da contenção orçamental e das políticas de ordem pública republicanas (ver capí­ tulo 1). A sua frágil condição económica foi também a mais afectada pelos efeitos da guerra - que, em particular na Catalunha, acarretou BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA NINISTliDID iiffi:íuiiMW DIR!CCIDKi!!! ãrnfüifü �s iMILI IAN OS 1 NO DESPEROICIEIS MUNI CIO N E S. VIVERES ERG IAS índices extremos de desemprego sectorial. Os mais pobres não dispu­ nham de meios para recorrer ao mercado negro nem tinham acesso à crescente economia de troca de géneros, por serem, muitas vezes, migrantes de outras regiões de Espanha e não terem, por isso, contac­ tos nas zonas rurais da Catalunha. Com a reintrodução do mercado livre, perderam a rede de segurança dos comités de abastecimento da CNT, que tinham sido a principal via de subsistência das classes des­ favorecidas de Barcelona durante os primeiros meses de guerra. Além disso, e apesar das políticas governamentais de controlo de preços, a inflação era galopante. MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA {85} No final de 1936, havia perto de 350 mil refugiados na Catalunha, sem contar com os milhares de pessoas deslocadas não incluídos nos números oficiais. No conjunto, a população catalã aumentara mais de dez por cento. A pressão adicional sobre os custos da habitação e dos bens alimentares foi maior nas zonas mais pobres dos centros das cidades, onde os desajustamentos de um sistema rudimentar de racionamento criaram uma crise de subsistência que motivou pro­ testos de rua nos primeiros meses de 1937 - nem mesmo as latas de comida enlatada que George Orwell descobriu em montras de mer­ cearia refutam isto. Esses eram produtos de luxo que nunca podiam contribuir para mitigar a escassez de comida - quanto mais não fosse devido ao reforço governamental das regras de mercado livre. Tal como antes da guerra, registavam-se cenas bem familiares, com a polícia a dispersar protestos e a proteger estabelecimentos comerciais das multidões famintas. Além desta instabilidade económica, havia também a interven­ ção política hostil do governo catalão. Se a esta combinação proble­ mática juntarmos as tradições radicais de acção directa prevalecentes entre os eleitorados da «vermelha» Barcelona, historicamente articu­ lados pela CNT, a explosão de violência nas ruas, em Maio de 1937, torna-se inteiramente explicável. O que ateou a explosão foi a inicia­ tiva policial para expulsar o comité de trabalhadores das instalações da central telefónica de Barcelona. Todavia, a força do impacto deri­ vou das acções que a polícia empreendia um pouco por toda a cidade, com o objectivo de recuperar o controlo da ordem pública através do desarmamento das patrulhas de trabalhadores que tjnham sido cria­ das logo após o golpe militar. Depois da explosão de violência nas ruas, registaram-se muitos combates políticos sectários, com consequências desastrosas: os comunistas espanhóis e catalães envolveram-se em confrontos com representantes do Comintern, o mais célebre dos quais foi o assassí­ nio de Andreu Nin, líder do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), um partido comunista dissidente sedeado na Catalunha. Nin, que tinha vivido em Moscovo nos anos 20, fazia parte do círculo interno bolchevique e chegara a ser secretário de Trotski. O líder do POUM foi detido numa prisão clandestina. As prisões ilegais, {86} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA ou checas , apareceram pela primeira ve z em território re publicano durante o período caótico que se seguiu à revolta militar de Julho de 1936. Confr ontados com o colapso da ordem pública, o� part�dos políticos, sindicatos e comités milicianos de esquerda haviam �nado os seus próprios centros de detenção. No entanto , as checas tmham sido erradicadas à me dida que as au toridades re publicanas recu pe­ ravam O controlo pol ítico ; na ver dade , a sua erradicação tinha sido crucial para a credibilidade constitucional do governo. Por isso , o seu reaparecimento , em 1936, constituiu um s ério revés. O escândalo das detençõ es ilegais e dos assassínios , como o de Nin, intensificaram a já considerável inquietação relativamente à ordem pública, motivada pela violê ncia nas ruas. Tudo isto contribuiu para o aume�to d� � res­ são sobre O governo, no sentido de serem feitas remodelaçoes mm1ste­ riais e tomadas medidas de vigilância e de segurança mais rigorosas. O facto de tamb ém ter havido elementos dos serviços secretos sovi éticos envolvidos em actividades clandestinas durante os D ias de Maio tem levado alguns comentadores a exagerar o grau de influência política exercido pela União S oviética em território republicano. Por isso , vale a pena recordar que durante a guerra ha via , nas pr incipais cidades es panholas , a gentes secretos de todas as grandes potê ncias - 0 que não constitui grande surpresa, tendo em conta que a Guerra Civil de Espanha era universalmente considerada o centro nevrálgico da política e da diplomacia internacionais. A actividade dos serviços secretos soviéticos era claramente ins­ tigada por uma boa dose de desconfiança - quanto mais não fo sse devido ao clima de medo gerado pela turbulê ncia política interna da União S ov iética, mas tamb ém porque o seu corpo de funcioná rios tendia a projectar os receios herdados da Guerra Civil Russa na situa­ ção espanhola e via sabotadores e inimigos internos em todo o lado. Todavia, esses receios nem sempre fo ram infundados - o conflito espanhol era, afinal de contas , uma guerra civil - e os serviços secre­ tos republicanos chegaram a desmantelar uma rede de informadores franquistas em Barcelona, aquando dos D ias de Maio. Por outro lado, a U nião S ovi ética não era a única potê ncia envolvida em assass ínios políticos em Espanha. A polícia secreta italiana - a OVRA (Opera per la Vigilanza e la Repressione Antifascista) de Mussolini - fo i MOBILIZAR E SOBREVIVE R: A REPÚBLICA EM GUE RRA quase de certeza responsável pela mor te do líder anarquista italiano Camillo Berneri e do seu secretário, Francesco Barbieri, durante os acontecimentos de Maio em Barcelona. Um mê s dep ois , a OVRA também matou outros dois líderes an tifascistas italianos exilados em França - os irmãos C ario e Nello Rosselli. E no entanto , nunca ninguém sugeriu que, p or ser cap az de concretiz ar esses assassínios ' o regime italiano tinha algu ma influê ncia indevida sobre O gov erno francês. Nem toda a violência sectária regista da durante os D ias de Maio resultou das tensõ es no movimento comunista internacional, e nem toda fo i p erpetrada p elos comunistas esp anhóis. Na repú blic a do pré-guerra, muitos dos conflitos entre organizações de esquerd a aca­ baram em violência. A ch egada da guerra não dissi pou a memória des­ sas disp utas. D e facto , p or estarem sobretudo e m causa questões de influê ncia p olítica, clien telismos e rivalidades entre membro s, a situa­ ção de guerra intensi ficou esses con flitos na Esp anha rep ublicana. Qua��o a violê ncia eclodiu em Barce l na, o derramamento de sangue prec1p1tou-se em todas as direcções � . A medida que os fantasmas de décadas de guerras laborais e contend as políticas assomavam à s ruas e aos pontos de encontro da cidade, ocorreram confrontos ent re mem­ b ros da CNT e elementos do sindica to liderado pelos socialistas , a UGT (Unión General de Trabaj ador es); entre socialistas e co munis ­ tas; entre sectores rivais do comunis mo catalão. No rescaldo de Maio, o governo rep ublicano também p rend eu muitos membros da CNT e do POUM na Catalunha, com o obj ectivo de restaurar a disciplina de guerra e garantir que nunca mais p udes­ sem ocorrer acontecim entos do mesm o tip o. O s líderes do POUM fo ram p resos p or de fenderem p ubl icamente , em artig os d e j ornal , a ueles que se tinham revoltado nas ruas. É m � ui to significativo que � tais d�tençoes tenham sido efectuadas em Junho, ao mesmo tempo que Bilbau, o motor industrial do norte, capitulava perant e as fo rças de Franco. Os líderes do POUM fo ram acusados de insurrei ção e trai­ ção ao governo de guerra, e ficara m a aguardar julgamento na prisão. Mas o des fecho da crise de Maio e a nom ea ção de um no vo governo não se limitaram a disci plinar a esquerda radical e colecti­ vista. O que distin iu o execut ivo de Negrín dos anterio gu res fo i a sua {88} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA percepção da política e da diplomacia internacionais, e também o seu entendimento de que a resolução da guerra a favor da república dependeria de um esforço activo para alterar a postura da França e da Grã-Bretanha. Ao longo dos 18 meses seguintes, Negrín haveria de chamar a si a responsabilidade pela diplomacia republicana, numa tentativa desesperada para inverter a situação internacional. Entre­ tanto, a república preparou-se para a resistência militar total. FRONT POPULAR DE CATALUNYA VOLUNTARIJ' 'f ) ii. Anónimo espanhol, 1938. ai G ')l 4. A construção da Espanha rebelde Podeis vencer, masjamais ireis convencer. Esta será a vitória dos piores, de um tipo de cristianismo que não é cristão e de um militarismo paranóico engendrado nas campanhas coloniais. MIGUEL DE UNAMUNO H \ � DOS COMPAffl IHSEPARABLES COHUHISHE i HISERIA Anónimo espanhol, r932. ABITUALMENTE, quem escreve sobre a Guerra Civil de Espa­ nha estabelece um contraste vincado entre a unidade polí­ tica dos rebeldes sob a liderança de Franco e a fragmentação e as discórdias dos republicanos, embora raramente as razões para tal sejam bem explicadas. É certo que existiu um grau muito mais ele­ vado de comunhão ideológica entre os apoiantes dos rebeldes: o grande receio sentido por todos os sectores pró-franquistas, que estava na base da ira em relação a tudo o que era «republicano», constituiu uma poderosa força de coesão política e psicológica. Porém, a desunião na Espanha republicana teve muito menos que ver com ideologia e política interna do que com o crescente impacto negativo (material e psicológico) da não intervenção, da derrota militar e do rápido agravamento da posição internacional da república. Se durante a guerra os exércitos de Franco não tivessem avançado consistentemente e alcançado sucessivas vitórias graças ao apoio dos alemães e dos italianos, também teria havido muito mais perturbações e tensões políticas entre as forças franquistas. A ética democrática subjacente ao regime republicano - mesmo se truncada em função de imperativos de guerra - implicava que as divergências e divisões políticas também se tornassem muito mais visíveis, ao passo que a união dos rebeldes, forjada a par­ tir das fracturas de Julho de 1936, era, pelo menos em parte, uma fachada de unidade produzida por técnicas ditatoriais. O capítulo 4 irá incidir sobre a forma como a Espanha rebelde foi construída BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Francisco Franco. - do «topo para as bases» e das «bases para o topo» - e, ao mesmo tempo, analisar a progressiva dimensão internacional da guerra. No título deste capítulo utiliza-se a expressão «Espanha rebelde» em vez de «Espanha franquista», não porque possa haver qualquer controvérsia quanto à rápida ascensão política e militar do general Francisco Franco, mas para nos recordar que essa ascensão não foi um processo consumado do dia para a noite. Franco esforçou-se muito para, com o auxfüo dos apoiantes mais chegados, consolidar e aumen­ tar O seu poder pessoal. Numa fase posterior, parte desse esforço haveria de envolver a elaboração de propaganda que apresentava o líder como «o homem providencial», divinamente predestinado ao poder. Franco parece ter acreditado no seu próprio mito, mas nós não temos razão nenhuma para o fazer. Embora não tenha sido inevitável, a ascensão de Franco foi bas­ tante facilitada por umas quantas mortes fortuitas (acidentais ou perpetradas pelos republicanos), que afastaram alguns dos seus mais A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE {93} sérios rivais. Mas a principal vantagem de Franco no começo da guerra era o controlo que exercia sobre o Exército de África. Para­ lelamente, contava-se também o facto de ter sido sobretudo a sua iniciativa pessoal a galvanizar a actuação de Hitler e de Mussolini em prol dos rebeldes. Até aí, os alemães e os italianos viam a direita espanhola como um conjunto de pequenos grupos mal coordenados, sem qualquer visão estratégica e em permanente conspiração. Além disso, também não ficaram muito impressionados, pelo menos de início, com o general Mola, o líder da revolta - em parte porque o seu pedido de ajuda ao estrangeiro fora modesto, e em parte porque o fizera por intermédio de representantes monárquicos, que se con­ tavam entre os grupos menos eficientes. Porém, em Franco, Hitler e Mussolini viram um executante competente, munido de um plano estratégico, o que rapidamente contribuiu para que o seu nome fosse considerado como «o tal». No dia do golpe militar, a imprensa britâ­ nica fez referência ao irmão do conhecido aviador Ramón Franco. Apenas uma semana depois, tanto Londres como Roma já identi­ ficavam os rebeldes como «as forças de Franco». À partida,. Franco dispunha de vantagens substanciais, mas a verdade é que se esforçou ao máximo para delas tirar proveito. Assim que ocorreu o golpe, o general constituiu o seu próprio gabinete de imprensa - facto bas­ tante revelador do seu nível de ambição e de autoconfiança. Este gabinete também permitiu que Franco conseguisse extrair a máxima propaganda e vantagem política do resgate da guarnição de Toledo, no final de Setembro (ver capítulo 3). Quando saiu vitorioso da campanha no sul, Franco já tinha ascen­ dido a supremo comandante militar e político das forças rebeldes. Através de outros generais que tinham ligações aos monárquicos e à Falange fascista, conseguira persuadir ambos os grupos de que promoveria os seus objectivos. Na verdade, o facto de Franco não se identificar com nenhuma organização política em especial tornava-o uma escolha atractiva aos olhos da direita civil e militar. Na reunião da junta militar que decorreu em Salamanca a 21 de Setembro de 1936, apenas um dos camaradas de Franco, o general veterano Miguel Caba­ nellas, se opôs à sua nomeação. Além de ser o presidente simbólico da junta militar, Cabanellas era também africanista e chegara, em tempos, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA a comandar Franco. Naquela reunião, afirmou profeticamente que, se Espanha ficasse entregue a Franco, este iria pensar que o país era seu e, uma vez conseguido o poder absoluto, jamais lhe renunciaria. Apesar de Franco não ter uma filiação política específica - ainda que se lhe reconhecesse uma forma pouco definida de monarquismo que era comum à maioria dos oficiais -, tornou-se evidente desde o início que os seus objectivos de guerra eram de ordem fundamental­ mente política. Como já vimos no capítulo 2, Franco delineou uma estratégia militar cuja missão era «salvar Espanha» - ou, mais exacta­ mente, preservar um certo tipo de ordem política e social dentro do espaço geográfico do país. Muitas das perspectivas que Franco tinha de si próprio em relação ao mundo derivavam da sua experiência nas campanhas coloniais do norte de África. A sua inabalável autocon­ fiança e teimosia - tanto do ponto de vista militar como político - devia bastante à tenacidade territorial dos oficiais africanistas em geral. Cabanellas não foi o único a aperceber-se disso. Mais tarde, um oficial veterano da república, também ele em tempos africanista, haveria de afirmar o mesmo: A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE Cerca de 15 mil crianças foram retiradas e afastadas das áreas bombardeadas. Foram enviadas para vários destinos, incluindo a Grã­ -Bretanha, que mantinha laços históricos e comerciais com o País Basco; cinco mil crianças partiram para a Bélgica e outras três mil para a União Soviética. Mas, para muitos, aquilo que deveria ter sido um afastamento temporário acabou por se tornar na odisseia de uma vida; mesmo aqueles que conseguiram regressar haveriam de experi­ mentar a perpétua alienação cultural e identitária de quem passa pela experiência do exílio. A maioria dos grandes centros populacionais republicanos foi bombardeada. Barcelona, com as suas parcas defesas aéreas, sofreu ataques sucessivos de raides entreJaneiro e Maio de 1938. Mas apesar de os raides aéreos causarem pânico e deixarem para trás muito sofri­ mento e destruição, a reacção que desencadeavam tendia a ser mais de ódio e de ressentimento do que de medo. Ainda que numa pers­ pectiva negativa, os bombardeamentos de Franco também exerceram É-nos dito: «leva tantos homens, ocupa esta e aquela posições, e não te mexas de lá até receberes novas ordens. » A posição ocupada por Franco é a nação, e ele, como não tem oficiais superiores, não arredará pé. Seguro nas suas convicções, Franco não duvidava de que o recurso ao terror sobre a população civil se justificava, e expôs cidades e vilas a bombardeamentos aéreos em massa. Os bombardeamentos foram consumados graças ao apoio alemão e italiano, mas era impensável que acontecessem sem a sua aprovação explícita. Depois de Madrid e Durango, veio o ataque a Guernica, sede simbólica do naciona­ lismo basco. A cidade, que não possuía quaisquer defesas antiaéreas, foi aniquilada a 26 de Abril de 1937, ao longo de três horas de bom­ bardeamentos intensivos levados a cabo pela Legião Condor alemã e pela Aviazone Legionaria italiana. O principal alvo estratégico do ataque não era nenhuma posição militar, mas antes o moral dos civis. Pressupunha-se que Guernica poria fim à apetência dos bascos para resistir, e, num certo sentido, isso aconteceu. Cartaz depropaganda antialemã produ zido pela CNT anarco-sindicalista, no qual são mostrados os efeitos dos bombar­ deamentos em massa nas cidades republi­ canas (neste caso, Madrid). O recurso irónico à palavra «jkultur!» constitui uma réplica implícita ao argu­ mento de Franco, que dizia lutar em defesa da civilização. BAROARIE FASCISTA EN COMITÉ NACIONAL 1socc1on Proete9enda) MAORIO BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Anónimo espanhol, 1939-40. o seu papel na criação de um novo sentido de identidade republicana entre vastos sectores da população urbana espanhola. Para os observadores externos, aquilo que ainda hoje se afigura como particularmente chocante nos raides aéreos é o facto de terem ocorrido no contexto de uma guerra civil - Franco fez o que fez ao seu «próprio» povo. Contudo, não era essa, obviamente, a percepção do Generalísimo, nem a dos seus camaradas de armas mais próximos. Para eles, o objectivo era nobre: tratava-se de purificar a «Espanha». Alcançar esse propósito exigia uma gu erra colonial não só contra a insubordinação dos pobres do sul como também contra as cidades industriais, que eram vistas como grandes focos de poluição moral. O general Mola, que até ter perecido num acidente de aviação em Junho de 1937 fora ainda mais veemente do que Franco em relação a A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE isto, falara mesmo em arrasar a indústria de Bilbau e Barcelona - só assim é que Espanha poderia ser purgada daquilo que mais a envene­ nava. Por outras palavras, a saúde da «nação» exigia a eliminação do proletariado industrial. Não obstante a tremenda violência dos bombardeamentos aéreos em massa, assistiu-se, no Verão de 1937, a uma inversão da estratégia de guerra franquista. Depois do rápido avanço de colunas de milicianos durante os primeiros meses, o conflito transformou-se numa guerra de desgaste. Franco não era um estratega imaginativo ou inovador, mas, dado o tipo de guerra que se lhe afigurava, também não precisava de o ser. Mais do que qualquer outro comandante rebelde, cedo compreendeu que a guerra teria de ser longa e árdua e agiu acti­ vamente para que assim acontecesse, já que de outro modo correria o risco de o seu objectivo fundamental - prostrar o inimigo político - não ser atingido. O conflito transformou-se, assim, numa guerra em que se disputava o controlo das pessoas e não apenas do territó­ rio. Foi o próprio Franco quem o disse: em Abril de 1937, explicava ao embaixador italiano, Roberto Cantalupo, que a estratégia de uma rápida conquista militar, preferida pelos italianos, constituiria um erro crasso numa guerra civil, uma vez que não resolveria a questão principal de como «redimir» o território conquistado: O trabalho de pacificação e de redenção moral tem, necessariamente, de ser empreendido de forma lenta e metódica, sob pena de a ocupação militar não servir de nada. Para atingir esse objectivo específico, Franco estava disposto a sofrer grandes baixas entre as suas tropas - baixas essas que um tipo diferente de guerra poderia ter evitado. Daí um oficial do exército espanhol ter lembrado que o próprio Franco fora responsável pela morte de mais franquistas do que qualquer outra pessoa - devido à sua opção por uma estratégia de desgaste. Franco estava totalmente convicto de que o exército tinha todo o direito de impor a sua vontade à sociedade espanhola e de que a organização militar era a melhor forma de estruturar essa sociedade. À semelhança de muitos dos oficiais que tinham arquitectado o golpe, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA perfilhava a ideia de uma corte de soldados responsáveis por «salvar a civilização», mas compreendia também a necessidade de fazer o que os seus colaboradores mais chegados aconselhavam. Para que a vitó­ ria tivesse sustentabilidade política, como Franco pretendia, o «estado campamental» do início tinha de evoluir para algo mais. O cérebro por detrás da criação de uma estrutura formal de estado e de um movi­ mento de massas franquista foi Ramón Serrano Sufier, advogado bri­ lhante e activista no movimento juvenil quase fascista da CEDA, o partido popular católico espanhol. Sufier era também amigo de infân­ cia de José Antonio Primo de Rivera, o líder da Falange assassinado numa prisão republicana, em Novembro de 1936, além de ter outra grande vantagem: era cunhado do Generalísimo Franco, facto que, em pouco tempo, levaria algumas línguas politicamente mais aguçadas a lhe atribuírem a alcunha de cuiiadísimo. O arquitecto do novo estado franquista, que viria a ser, em breve, a figura mais poderosa da Espanha rebelde (logo a segu ir a Franco), escapara por pouco aos assassínios extrajudiciais em território repu­ blicano, à conta dos quais perdera os seus dois irmãos. Por isso, a hostilidade política de Serrano Sufier em relação à democracia repu­ blicana era reforçada por uma forte componente pessoal (mais tarde, em 1940, Sufier seria um dos principais responsáveis políticos pela decisão de enviar republicanos espanhóis para campos de concen­ tração nazis). Não foram apenas as incontestáveis capacidades inte­ lectuais de Serrano Sufier que o tornaram recomendável aos olhos de Franco, mas também o facto de carecer de uma base pessoal de poder - o que significava que jamais poderia desafiar o Generalísimo. Sufier trabalhava juntamente com o irmão e secretário de Franco, Nicolás. Juntos, puseram em marcha, em Abril de 1937, a unificação da Falange e dos carlistas monárquicos, cujas milícias compunham os dois ele­ mentos mais numerosos do novo exército de massas que estava então a ser constituído. Essa unificação funcionou como casamento de conveniência em benefício de Franco, que assim adquiriu uma burocracia e uma base de apoio político, ao mesmo tempo que colocou os seus maiores rivais sob controlo directo. Alguns falangistas da velha guarda («camisas velhas») que se opuseram à unificação por razões ideológicas foram excluídos A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE �­ --.=.-· • UC•�N­ Pedrero. da nova organização, que passou a ser conhecida como «e!Movimiento». Todavia, não faltaram novos recrutas. Os «camisas novas» aderiam ao Movimiento na perspectiva de obterem os empregos e as oportunida­ des de carreira que este oferecia, mais ou menos da mesma maneira que muitas pessoas tinham aderido ao partido fascista italiano depois de Mussolini chegar ao poder. O clientelismo de Franco ajudou-o a consolidar o seu próprio poder, diluindo, se não mesmo neutralizando completamente, a oposição da velha guarda. Esta oposição haveria de emergir novamente depois da guerra - como haveriam de reemergir {Ioo} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA as tensões entre a Falange, os monárquicos e as redes organizacionais da igreja católica, todos eles elementos antagonistas na base de poder do Generalísimo. Muitos «camisas velhas» foram integrados na Divisão Azul, que Franco enviou para a frente oriental para apoiar os exérci­ tos alemães, em 1941 - assim se libertando de uma potencial fonte de oposição interna. No pós-guerra, verificar-se-iam igualmente con­ flitos entre a Falange e a cúpula militar. Contudo, a Falange nunca foi suficientemente forte para representar um desafio sério: durante a guerra, Franco, sempre cauteloso, tomara as devidas precauções para que nenhuma unidade militar politicamente homogénea pudesse congregar-se no interior do seu novo exército de massas; depois da guerra, seriam bloqueadas todas as tentativas da Falange para exercer controlo através de secções específicas do exército, como a divisão de pára-quedistas, e os generaispolíticos que estivessem em escalões mais elevados do poder e se tivessem envolvido em tais enredos seriam severamente disciplinados por Franco. No entanto, aqueles que viram goradas as suas ambições políticas no seio do campo franquista, ou que de alguma forma se tinham mos­ trado críticos, refrearam prudentemente o seu desagrado durante a guerra. O facto de os exércitos de Franco vencerem quase sempre constituiu, neste aspecto, uma grande ajuda. O mesmo se pode dizer do forte sentimento de partilha de um objectivo comum - proteger o bem-amado mundo de ordem «natural» e hierarquia, erradicando o repto político e cultural de uma «modernidade desordenada» com que a república ameaçava a sociedade. Porém, a assinalável evolução social e cultural na zona rebelde aponta para uma dinâmica mais complexa e ambígua do que aquela que a visão binária e idealizada, tão cara a muitos franquistas, sugere. Em nenhum aspecto foi isto mais evidente do que nas mudanças ocorridas na vida de muitas mulheres - mudanças essas em muito similares às que ocorriam na zona republicana. As mulheres da zona franquista não eram recrutadas para o trabalho na indústria de guerra, graças à ajuda alemã e italiana. Contudo, tal como na zona republi­ cana, foram mobilizadas em massa para dar resposta a uma série de necessidades geradas pela guerra nos domínios da saúde e da assistên­ cia social - em particular ao nível dos serviços médicos, orfanatos e A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE {101} centros de ajuda alimentar de emergência. Na Espanha franquista, as mulheres das classes médias urbanas e de província foram as que mais participaram nesta mobilização. Muitas delas aderiram à secção feminina da Falange («Sección Femenina», ou «SF»), uma organização que viria a desempenhar um papel importante nos primeiros anos do pós-guerra, ao combinar a prestação de serviços básicos de saúde e de assistência social com a vigilância e a imposição da disciplina entre as famílias republicanas. Os franquistas (incluindo os falangistas) sublinhavam o facto de, ao contrário dos republicanos «contranatura», mobilizarem as mulheres para serviços de assistência, ou seja, para serviços que se coadunavam com o seu papel tradicional. Apesar desta retórica política, a verdade é que a SF proporcionava um novo papel público a muitas mulheres, seriamente empenhadas na iniciativa patriótica de construir uma nova ordem em Espanha. A menor das contradições da SF não terá sido o facto de esta instituição constituir um exército de mulheres oficiais solteiras e economicamente independentes que pregavam o sermão da domesticidade e da subserviência à sua clientela feminina. Apesar de, obviamente, o fenómeno da SF no pós-guerra ser em parte explicado por factores demográficos relacionados com o conflito, certo é que, com o tempo, a SF desempenhou um papel significativo na fractura das relações de género e na dinamização da mudança social e cultural. Em ambas as zonas, a guerra exerceu um efeito dinâmico sobre a cultura - entendida quer como um processo através do qual a mudança é mediada quer, num sentido mais estreito, como um con­ junto específico de objectos de consumo: canções, filmes, peças de teatro, obras de arte. Tal como os republicanos, os franquistas criaram novos produtos culturais, concebidos especificamente como veículos de propaganda: programas de rádio (o meio preferido para difundir propaganda de guerra), obras de arte, filmes ou cinejornais. Contudo, também se verificaram elementos de continuidade. Tanto nas zonas franquistas como nas republicanas, subsistia uma próspera cultura de massas, boa parte da qual não era abertamente politizada ou propagan­ dística. Durante a guerra, a vertente cultural não politizada tornou-se particularmente importante do ponto de vista social, precisamente {rn2} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Mulheres da instituição Auxilio Social distribuem alimentos na zona rebelde. Mulheres da alta sociedade saúdam a bandeira na Espanha rebelde. porque, ao fornecer às pessoas um espaço no qual podiam sonhar, lhes oferecia uma fuga à dor dos seus problemas imediatos. Em ambas as zonas, este tipo de cultura incluía as canções populares, o cabaré e os espectáculos de variedades - todos eles perduraram, apesar das cam­ panhas de ordem moral no território de Franco e da reprovação (mais efémera) dos revolucionários eruditos da Espanha republicana. A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE {rn3} A mais importante de todas essas formas de cultura popular era, provavelmente, o cinema comercial. O nascimento da república, em 1931, coincidira com a chegada a Espanha dos filmes sonoros; nos cinco anos subsequentes, a indústria cinematográfica local cresceria signifi­ cativamente. Para uma população de cerca de 24 milhões de habitan­ tes, havia mais de três mil salas. As produções de Hollywood, nos seus vários géneros (romântico, musical e cómico), eram uma componente importante deste cinema popular, e continuaram a sê-lo durante a guerra, em ambas as zonas - apesar de as autoridades franquistas desaprovarem, em geral, a «decadência» de tais filmes e de os sujei­ tarem a uma cuidadosa censura. Na zona franquista, também eram exibidos muitos filmes alemães e italianos, uma vez que a produção cinematográfica interna - quer a de carácter popular quer a de cariz político - era dificultada pelo facto de a maioria das infra-estruturas de produção ter ficado em mãos republicanas. Consequentemente, tanto os propagandistas como os produtores comerciais iam fazer os seus filmes nos estúdios de Roma e de Berlim. Já em território espanhol, acelerou-se um outro tipo de apoio tecnológico, mais decisivo, por parte dos alemães e italianos, quando, no início de 1937, Hitler e Mussolini concluíram que só um grande acréscimo da sua ajuda militar permitiria a rápida vitória dos rebeldes. O desejo de impulsionar a vitória a curto prazo por parte dos ditadores entrava em colisão com a deliberada desaceleração do avanço militar franquista contra a república, o que causou consideráveis tensões polí­ ticas. Fartos da lentidão de Franco, Hitler e Mussolini começaram a pôr em causa a sua competência militar, e obrigaram-no a aceitar italianos e alemães nos seu estado-maior - algo que era pouco mais proveitoso aos seus oficiais do que a presença de conselheiros militares soviéticos o era aos profissionais do exército republicano. Além disso, Franco tam­ bém teve de tolerar a existência de unidades italianas a operar com um grau de autonomia de que as Brigadas Internacionais nunca gozaram. Tal situação derivava da absoluta dependência de Franco em relação ao armamento e à tecnologia militar de Itália, país que desde Janeiro de 1937 também lhe fornecia uma quantidade substancial de tropas. A implementação de um sistema de conscrição eficiente no inte­ rior da zona franquista aliviaria esta dependência. Mas, mesmo assim, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA a necessidade recrutar tropas treinadas implicou que os inimigos cap­ turados na frente militar recebessem um tratamento diferente daquele que era aplicado aos prisioneiros civis capturados para lá das linhas franquistas. Os soldados republicanos detidos eram, na sua maioria, reciclados - mais ou menos da mesma maneira que os franquistas o eram pela república. Aqueles que haviam sido recrutados à força pelo exército republicano eram os primeiros a ser reciclados, embora isso não os tenha isentado de investigações políticas, de encarceramen­ tos prolongados ou mesmo de condenações à morte depois da guerra - o que torna bastante mais problemática a perspectiva do exército franquista enquanto veículo de construção da nação. Aqueles que se tinham alistado de forma voluntária no exército republicano eram rigorosamente interrogados antes da sua inclusão nas fileiras fran­ quistas. Os oficiais republicanos eram sempre submetidos a inter­ rogatórios severos que, por vezes, acabavam em execução. Quando identificados, os comissários políticos recebiam o tratamento mais brutal de todos e, por norma, eram assassinados. Todos os elementos das Brigadas Internacionais, enquanto estrangeiros e «mercenários», eram colocados sob a mesma categoria e, muitas vezes, executados; a sua execução era quase certa caso se tratassem de oficiais ou comis­ sários políticos. Ao fazê-lo, Franco estava a violar as convenções de Genebra no que respeita ao tratamento dos prisioneiros - apesar de mais tarde, em 1937, o número de execuções ter diminuído devido à necessidade de trocar os presos estrangeiros por tropas italianos cap­ turados pela república. Além de tropas, Franco também precisava cada vez mais do poderio aéreo, que só a Alemanha e a Itália lhe podiam fornecer e que viria a conceder superioridade às suas forças ao longo de toda a guerra, excepto em três ocasiões (a batalha pela conquista de Madrid, no final de 1936; a Batalha de]arama, em Fevereiro de 1937; e a de Guadalajara, em Março, na qual os italianos foram destroçados). O preço a pagar por esta superioridade era uma dependência cada vez maior em rela­ ção aos apoiantes alemães e italianos. Franco precisou de hipotecar os recursos económicos de Espanha para levar por diante a sua guerra de aniquilação. Mas, contrariamente às frequentes alegações quanto à dependência política da república em relação à União Soviética, os A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE analistas nunca ou raramente sugerem que a Espanha de Franco era uma colónia nazi ou fascista - nem sequer durante o período imedia­ tamente a seguir à guerra, apesar de haver provas substanciais quanto ao seu estatuto de colónia «informal» da Alemanha (ver capítulo 6). Fosse como fosse, uma vitória franquista na guerra civil iria sempre redundar numa Espanha apologética do expansionismo territorial agressivo da Itália e da Alemanha, dado que Franco, como toda a direita espanhola, estava obcecado com a recuperação do império perdido no século x1x; a desintegração do status quo internacional pela Alemanha era considerada a melhor forma de o conseguir, por entre o turbilhão da vitória fascista. Assim, tendo em conta o importante posicionamento estraté­ gico de Espanha nos canais de comunicação com colónias de França e da Grã-Bretanha, a vitória de Franco na guerra civil iria, no mínimo, potenciar a ameaça aos interesses imperiais destes países. Mas ape­ sar de a intensificação do apoio alemão e italiano a Franco a partir de 1937 ter causado preocupação em alguns círculos britânicos, ela não foi suficiente para que se pusesse em causa a política de não inter­ venção. É muitas vezes referido que os políticos britânicos tinham uma impressão exagerada das proporções do rearmamento alemão e que terá sido essa a razão para excluírem qualquer possibilidade de confronto com Hitler a propósito de Espanha. Contudo, este racio­ cínio implica um dilema que nunca existiu de facto. Apesar de a Grã­ -Bretanha ter passado toda a gu erra civil a tentar, em vão, separar a Itália da Alemanha, quase ninguém no governo britânico acreditava que uma vitória franquista, mesmo que conseguida às custas do apoio fascista, constituísse uma ameaça efectiva aos seus interesses. Grande parte das elites governantes britânicas parecia encarar Franco, o «gentleman cristão», como um antídoto para o perigo. Pro­ vavelmente, estariam também convencidos de que, no pós-gu erra, as exigências da reconstrução - comércio e apoios - obrigariam Franco a acomodar-se à Grã-Bretanha, quanto mais não fosse por precisar de contrair empréstimos que só Londres poderia conceder. Se tudo o resto fracassasse, a Marinha Real poderia sempre bloquear Espanha. Em todas estas extrapolações, subentende-se que os britâ­ nicos pressupunham que a velha ordem mundial da política e do capi- {106} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA tal não seria afectada pelas ambições imperiais do Terceiro Reich e pelo seu projecto de conquista da Europa, ou até do mundo. As vozes que se levantaram contra esta complacência mortífera eram escassas e isoladas. Anthony Eden· demitir-se-ia em Fevereiro de 1938, o que não teve quaisquer repercussões na política britânica. Mais tarde, já no final de 1938, Winston Churchill insurgir-se-ia contra a política de apaziguamento da Alemanha e da Itália através da não interven­ ção em Espanha. Na sua argumentação contra aquela que era ainda a perspectiva dominante no Partido Conservador, Churchill acabava por sugerir que, ao procurar a conciliação, a Grã-Bretanha estava na realidade a permitir que os seus interesses de classe se sobrepusessem aos interesses estratégicos da nação. As simpatias fascistas de Franco e a criação de um partido único - fascista, pelo menos em nome - também arriscavam alienar a entidade da qual estava mais dependente a segurança política do Generalísimo: a igreja católica. Tanto a igreja espanhola como o Vati­ cano continuavam a sentir-se desconfortáveis em relação aos aspec­ tos radicais do fascismo, especialmente em relação à forma como este exultava o estado, que tanto ameaçava o seu próprio controlo sobre os fiéis. A igreja católica também se opunha ao nazismo por causa da sua dimensão ateísta: daí a condenação pública do racismo nazi, Mit brennender Sorge [ Com Ardente PreocupaçãoJ, emitida pelo Vaticano em meados de Março de 1937 - a pior altura possível para Franco, cuja campanha no País Basco decorria há duas semanas, com o apoio vital da aviação alemã. Como não podia correr o risco de alienar as chefias militares nazis, o Generalísimo impediu a publicação do documento em território rebelde, ao mesmo tempo que as autoridades rebeldes fechavam os olhos ao facto de a Falange difundir as réplicas dos ale­ mães ao texto da encíclica. Não obstante, a hierarquia católica espanhola continuou a identificar-se inequivocamente com Franco. A hostilidade que parti- • Anth ony Eden (1897-1977) detinha, por esta altura, a pasta dos Negócios Estrangeiros no govern o de Arthur Neville Chamberlain. Em 1955, viria a suceder a Winston Churchill no cargo de primeiro-ministro. O nome de Eden ficou sobretudo associado à desastrosa actuação do governo britânico na fam osa crise do Suez, em 1956 (n. do t.). A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE lhavam em relação ao racionalismo, à maçonaria, ao liberalismo, ao socialismo e ao comunismo significava que havia demasiadas afinida­ des ideológicas para que fosse de outro modo. A memória da violên­ cia anticlerical em território republicano tinha reforçado, na igreja espanhola, a influência dos eclesiásticos conservadores, que estavam determinados a pôr fim à república liberal e secular, uma vez que esta desafiara o seu poder político e os seus valores culturais. Franco dava­ -lhes a possibilidade de conseguir isso. Embora possa, à superfície, ter-se parecido com as variantes «trono e altar» de outros tempos, a aliança entre a igreja e a ditadura constituiu algo de novo, ao oferecer à igreja uma séria oportunidade para aumentar a sua influência atra­ vés de novas funções disciplinadoras, exercidas em nome do estado franquista. Não se trata simplesmente das previsíveis áreas do con­ trolo educacional e da censura: a igreja exerceria também um papel fundamental na gestão de prisões, reformatórios e outras instituições de correcção. Contrariamente à igreja católica espanhola, o Vaticano teve de ser bastante mais cauteloso. As suas simpatias iam para a causa fran­ quista, mas também tinha de ter em conta o destino dos católicos na Espanha republicana. Ainda mais importantes para a estratégia do Vaticano eram os potenciais danos à credibilidade do próprio cato­ licismo, caso a sua força em Espanha viesse a ser entendida como resultado da conquista militar franquista. «Podeis vencer, mas jamais ireis convencer»: eis as palavras que traduzem o dilema do Vaticano, e que foram proferidas pelo filósofo católico Miguel de Unamuno em Outubro de 1936 como desafio ao exultante grito de guerra dos rebel­ des «Viva a morte!», uns escassos dois meses antes de morrer, sob pri­ são domiciliária, em Salamanca, capital da Espanha rebelde. O dilema também se manifestou na complexa diplomacia do Vaticano durante a guerra. As relações com a república não foram formalmente corta­ das - na verdade, foram mesmo restabelecidas na etapa final do con­ flito (ver capítulo 5). Para além disso, em 1937, o Vaticano tomou várias e infrutíferas inicativas para mediar um acordo de paz com Franco, em nome dos bascos. Mais revelador ainda: só na Primavera de 1938, quando a vitória dos rebeldes já parecia iminente, é que o Vaticano estabeleceu relações diplomáticas plenas com a Espanha de Franco. {108} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Franco e os seus conselheiros esforçaram-se bastante por inte­ grar os elementos tradicionais da sua base de poder com os modernos. Nas ocasiões cerimoniais, isto tornava-se evidente na junção dos sím­ bolos fascistas e do passado imperial, autoritário e católico de Espa­ nha. Muitos defendem que o importante papel desempenhado pela igreja católica indica que a melhor definição para o franquismo é a de uma ditadura antiquada, uma vez que ele aboliu a democracia de massas sem recorrer a quaisquer meios inéditos ou modernos. É certo que a autoproclamada Falange fascista se manteve sempre como um elemento subalterno (ainda que importante) do regime. Todavia, há outras formas de abordar o franquismo. Todas as forças políticas que compunham o franquismo rejeita­ vam explicitamente a democracia parlamentar e a supremacia da lei constitucional como sintomas infames da época liberal. Porém, ao contrário dos conservadores tradicionais, os franquistas não encara­ vam esses sintomas como formatos políticos externos que pudessem ser banidos, mas antes como algo que já tinha sido incorporado por uma grande parte da população espanhola, «infectando-a». A ques­ tão já não era o corpo político, mas o corpo biológico da «nação» e a necessidade de o controlar totalmente. Era esse o cerne da estratégia militar de Franco: a colonização interna da metrópole, com vista ao aniquilamento da «alienígena» nação/cultura republicana que nela habitava. O regime franquista construiu as suas práticas políticas e as suas metas à luz desta convicção essencial: a necessidade de uma «puri­ ficação» - algo que, por definição, significava ser necessário ir muito além do autoritarismo à moda antiga para remediar o «problema». É através do tratamento atribuído aos vencidos que podemos compreender em que medida o franquismo foi «mais além». Há uma uniformidade assustadora no aviltamento e desumanização de cente­ nas de milhares de prisioneiros republicanos após o final do conflito militar (ver capítulo 6). Particularmente significativa era a premente necessidade que os captores tinham de vergar o corpo e a mente dos republicanos antes de os matarem, ou, quando não os matavam, de os deixar como que psicologicamente «reconfigurados» pela experiência da prisão, dos trabalhos forçados, do reformatório juvenil e de uma miríade de outras formas de repressão jurídica, cívica ou económica. A CONSTRUÇÃO DA ESPANHA REBELDE Para o regime, este gigantesco processo de produção de uma antipá­ tria, uma «anti-Espanha» dos excluídos - que, durante mais de uma década após o fim das hostilidades militares, continuou a consumir boa parte da energia e dos recursos do país - constituiu, paradoxal­ mente, um dos aspectos cruciais da construção (entendida por mui­ tos franquistas como «reconstrução») de uma Espanha homogénea e hierarquizada. A própria guerra civil foi parte integrante da construção dessa pátria. Até certo ponto, a mobilização tinha transformado em reali­ dade a «Espanha ideal» projectada pela propaganda franquista: uma comunidade nacional monolítica, pronta para o auto-sacrifício. O sofrimento e a perda suportados pelos sectores conservadores da sociedade espanhola durante a gu erra ajudaram a gerar uma identi­ dade franquista, tal como outras formas de sofrimento e de perda cria­ ram, como é evidente, uma identidade republicana no campo oposto. No entanto, a particularidade do franquismo residiu na forma brutal como essa experiência de perda foi assimilada pelo regime com fins políticos específicos - principalmente para sua própria legitimação. Neste aspecto, o omnipresente mecanismo de delação implantado por Franco após a vitória militar de Ide Abril de 1939 revelar-se-ia cru­ cial. Os espanhóis eram exortados a denunciar os seus vizinhos aos tribunais militares e civis. Este amplo processo, que será analisado no capítulo 6, converteu milhões de «espanhóis comuns» em cúmplices da repressão. Em Fevereiro de 1939, Franco acordou secretamente juntar-se à Alemanha, ao Japão e à Itália no Pacto Anti-Comintern. Assinou-o no mês seguinte e anunciou publicamente a adesão da Espanha logo depois de ter alcançado a vitória na guerra civil. Tanto a ideologia como os interesses estratégicos influenciaram o claro alinhamento político de Franco com as potências fascistas. O seu entusiasmo em relação à nova ordem nazi na Europa não era, segu ramente, motivado apenas pela procura de novas colónias para Espanha. Todavia, a questão do catolicismo tornava problemática a pro­ ximidade entre a Espanha franquista e a Alemanha nazi. A grande novidade do nazismo residia precisamente no facto de as suas chefias mais radicais procurarem conduzir uma sociedade alemã (e europeia) {no} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA «purificada» à margem de compromissos com as igrejas - católicas ou outras - e, em última instância, à margem da ética fundadora da própria religião judaico-cristã. Contudo, a igreja católica era a princi­ pal aliada do franquismo no que se refere ao trabalho de «purificação», à disciplina dos corpos e das mentes. Nenhum grupo - nem mesmo o sector mais pró-nazi da Falange - alguma vez sonhou deixar a religião para trás. Mas esta constatação não deve levar-nos a supor que o fran­ quismo foi, simplesmente, uma forma tradicional de autoritarismo. O franquismo tomou medidas radicais contra os sectores fun­ diários abastados que, na década de 30, tinham adaptado posições políticas mais ou menos liberais, e aprovou legislação que permitiu, pela força, a transferência maciça de riqueza e propriedades para a posse do estado - isto quando tal não tinha já ocorrido por vias de facto, através do direito de «conquista». Apesar de integrar membros das elites do pré-guerra, a ordem criada depois de 1939 pela igreja e pelo estado era inteiramente nova. Era também tão selvaticamente hierarquizada e discriminatória como o nazismo, embora o modelo espanhol não fosse baseado no racismo. Todo o projecto franquista decorreu de uma necessidade «moderna»: a necessidade de lidar bru­ talmente com a conflituosa mudança social. O regime foi também moderno no modo como integrou massiva e activamente os espa­ nhóis, através do mecanismo da denúncia. Finalmente, o franquismo revelar-se-ia igualmente moderno na medida em que muitos aspec­ tos dos processos de mudança social e económica que tinham estado na sua origem acabariam por fugir à capacidade administrativa do regime, independentemente da violência utilizada. 5. A república sitiada Uma sociedade em luta pelo progresso é reduzida, por agressão externa, a níveis de miséria e de mera sobrevivência que o agressor depois aduz como prova da impossibilidade do progresso social EDUARDO GALEANO Continuar a lutar por não haver outra hipótese, mesmo que a vitória nãofosse possível, ao menos para salvar o que conseguíssemos - no mínimo dos mínimos o respeito por nós próprios... Para quê continuar a resistir.? Muito simplesmente por sabermos o que significaria a capitulação. JuANNEGRÍN E Aníba!Tejada, 1936. M meados de 1937, a república enfrentava um inimigo cada vez mais bem equipado, que era abastecido, de forma regular e eficiente, com o material de guerra de melhor qualidade, vindo directamente das fábricas alemãs e italianas. A não intervenção nada fez para impedir ou abrandar esse afluxo de material de guerra, que muitas vezes chegava em navios fretados e pagos pela Alemanha nazi, os quais navegavam com bandeiras de conveniência, assim escapando à fiscalização do Comité de Não Intervenção. Em virtude da proximidade com Espa­ nha, a Itália utilizava a sua própria frota mercante, protegida pela força aérea italiana ou pelos seus próprios navios de guerra, que ninguém, muito menos a marinha britânica, estava preparado para desafiar. Isto garantia a Franco um fornecimento rápido e praticamente ininterrupto (a oportunidade das entregas era, frequentemente, um factor muito mais importante do que a sua dimensão). Os fornecimentos alemães e italianos também eram descarregados em portos portugueses, com a cumplicidade das autoridades. Uma vez que o auxílio da Alemanha e da Itália provinha directamente do governo, o apoio técnico integrado e o suporte logístico faziam parte do acordo. Perante isto, o auxílio gran­ jeado pela União Soviética não era suficiente para compensar a repú­ blica, nem quantitativa nem qualitativamente - o máximo que podia permitir-lhe era uma frágil sobrevivência. Estaline não queria nem podia enviar para Espanha a preciosa produção das fábricas soviéticas em quantidades que permitissem à BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA república combater em igualdade de circunstâncias após a aceleração do apoio alemão e italiano a Franco, no final de 1936. Em 1937, a pro­ dução industrial soviética ainda enfrentava uma turbulenta reorgani­ zação, agravada pelas purgas, o que levou a que, ao longo da Guerra Civil de Espanha, os níveis reais da produção soviética se mantives­ sem até 50 por cento abaixo dos números oficiais. Tendo em conta esta situação, chega a ser surpreendente que Estaline tenha enviado tanto material soviético à república espanhola. Esse material era de alta qualidade - sobretudo os aviões e os tanques - e, como já vimos, foi vital para a sobrevivência republicana, especialmente no início. Todavia, muito do «auxílio soviético» que manteve a república em movimento não provinha sequer das fábricas soviéticas: era obtido no exterior, com a União Soviética a servir de intermediária. A república precisava dos préstimos da União Soviética porque a não intervenção a impedia de adquirir material de guerra por si mesma no mercado livre - um embargo que impedia um governo democrati­ camente eleito de comprar armas para se defender, e que era provavel­ mente contrário ao direito internacional. Em consequência da lógica partidária da não intervenção, também não havia, como o governo republicano veio a descobrir, canais seguros no sistema bancário oci­ dental que lhe permitissem mobilizar os seus recursos financeiros para a guerra. O ouro e a prata republicanos que estavam depositados num banco francês foram congelados pelas autoridades, ao passo que um dos principais bancos ingleses reteve fundos que os republicanos iam aplicar na compra de armas - isto apesar de a banca inglesa não ter imposto quaisquer constrangimentos aos agentes de Franco. Foram estas as razões que estiveram na base da decisão tomada pelo execu­ tivo republicano, em articulação com o Banco de Espanha, no sentido de transferir as reservas de ouro para fora do país - para que pudes­ sem ser mobilizadas, sem impedimentos, para financiar o esforço de guerra (devemos notar que este executivo era inteiramente composto por ministros dos partidos republicanos de Espanha - nem o Partido Socialista nem o Partido Comunista faziam ainda parte do governo de guerra). Os primeiros carregamentos de ouro saíram da capital sitiada em meados de Setembro, com destino ao porto de Cartagena, a sudeste. A partir do momento em que se tornou claro que a União A REPÚBLICA SITIADA {n5} Soviética estava determinada a oferecer apoio militar, as autoridades republicanas concordaram em transferir o ouro para lá, em Outubro de 1936. Além da União Soviética, o México foi o único país disponível para ajudar a república, servindo de intermediário. Contudo, embora essa ajuda tenha sido valiosa e relativamente desinteressada, a União Soviética gozava de muito mais recursos e peso internacional do que o México, desempenhando por isso um papel claramente mais útil à república. Além do material que chegava directamente da União Soviética, a maior parte do armamento que a república procurava através de inter­ mediários vinha da Europa de leste e, na prática, sobretudo da Polónia. À primeira vista, isto é surpreendente, uma vez que a ditadura militar polaca, além de signatária do acordo de não intervenção, era também politicamente solidária com Franco. Porém, a venda de armamento à república representava uma oportunidade demasiado lucrativa para ser desperdiçada - especialmente porque, desse modo, a Polónia podia livrar-se de material obsoleto e defeituoso, e ao mesmo tempo aumentar as receitas que poderiam equilibrar a balança deficitária do país e financiar o seu próprio programa de rearmamento. A não intervenção implicava que a república pagasse sempre muito mais do que o preço justo pelo material que recebia. A posi­ ção vulnerável do comprador, associada a uma oferta insuficiente, gerava desonestidade, corrupção e preços extremamente inflaciona­ dos, criando um mercado negro de armamento ao qual a república, e apenas a república, tinha forçosamente de recorrer para subsistir. Também era difícil aos republicanos encontrar pessoas capazes de circular nas águas turvas do tráfico de armas internacional (a maioria dessas pessoas estava, tendencialmente, ao lado de Franco). Os agen­ tes republicanos eram frequentemente burlados por intermediários e por toda a espécie de oportunistas (não raramente, funcionários de estado), desejosos de deitar mãos ao ouro da república. Isto porque, ao contrário do apoio alemão e italiano a Franco, que funcionou sem­ pre à base de crédito, os republicanos tinham de pagar a pronto, inde­ pendentemente de o armamento ser comprado a traficantes, a outros intermediários ou à União Soviética - que também ganhou o mais que pôde com a república. {n6J BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA e· Santiago Santana Diaz. O facto de a república ter sido obrigada a recorrer a um conjunto heterogéneo de fontes para conseguir armamento conduziu a situa­ ções que, não fosse a natureza desesperante das circunstâncias, pode­ riam ser consideradas cómicas: armas que vinham com munições incompatíveis ou instruções em línguas estranhas e material que che­ gava sem qualquer apoio técnico ou logístico, ou que, de tão antigo, estaria melhor num museu do que na frente de combate. A REPÚBLICA SITIADA Mas os problemas da república em matéria de armas não se limi­ tavam ao fornecimento: as entregas eram outro pesadelo. À república faltavam navios mercantes e a longínqua União Soviética, por ser uma potência eminentemente terrestre, não podia compensar essa escas­ sez, mostrando-se relutante em sujeitar a sua exígua marinha mercante a longas e perigosas viagens até Espanha. Assim, após o afundamento do Komsomol, em Dezembro de 1936, os soviéticos exigiram que a república assegurasse o transporte de todo o material de guerra por eles fornecido ou angariado. Mas a república, confrontada com dívi­ das astronómicas de armamento e cada vez mais população para ali­ mentar, não possuía recursos para fretar navios em número suficiente - como os alemães faziam a Franco. Desde o início da guerra que os alemães e italianos atacavam navios que se dirigissem aos portos republicanos, apesar de não gozarem de qualquer autoridade para o fazer. Pior ainda: a partir do final do Verão de 1937, o seu apoio permitiu que Franco bloque­ asse os portos da costa mediterrânica de Espanha, impedindo que a república tivesse acesso directo ao abastecimento de armas. A partir daí, toda a ajuda militar tinha de chegar através da fronteira terres­ tre com França. Teoricamente, isto deveria ter representado o fim da república, uma vez que a França era signatária da não interven­ ção. Todavia, o receio de um cerco fascista levou o governo francês a adoptar uma política mais ambígu a e a afrouxar a política de não intervenção. Isto significa que a fronteira entre França e Espanha se tornou permeável - embora de uma maneira imprevisível. A ajuda chegava mas podia ser definitivamente confiscada ou retida durante longos períodos de tempo. O abrandamento da não intervenção permitiu que a república sobrevivesse ao bloqueio do Mediterrâ­ neo, mas tornou impossível a continuidade das suas ofensivas, uma vez que nunca podia assegu rar-se da qualidade ou da consistência dos abastecimentos de material militar. Em suma, estas não eram as condições ideais para fazer a guerra, e isso teve as suas consequências no que se refere à capacidade de combate do exército republicano - incluindo ao nível da tensão psicológica que o conflito infligia - , especialmente entre os comandantes, que eram assombrados pela constante noção da falta de recursos. • [n8} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Durante o Verão de 1937, com o objectivo de aliviar a pressão nos restantes territórios do norte após a queda do País Basco, em Junho, os republicanos lançaram uma ofensiva de diversão no nordeste de Espanha, na frente aragonesa, que até então estivera inactiva. Com a vantagem da surpresa, progrediram rapidamente. Por essa altura, o exército republicano era uma força de combate competente: tinha oficiais talentosos, embora em número insuficiente, e era liderado pelo coronel (mais tarde general) Vicente Rojo, o chefe de estado­ -maior republicano, que, ao contrário de Franco, era um estratega imaginativo e inovador. Rojo, que já era militar profissional antes da guerra, era também conservador e católico praticante, mas o seu compromisso com república, além de firme e isento de ambiguidades, fora galvanizado pela experiência de resistência em Madrid. A chave da escolha que Rojo fez - pela República e contra Franco - reside, provavelmente, no facto de nunca ter feito carreira no Exército de África e por isso se ter mantido à margem da ética que lhe era carac­ terística. A reputação que conservou dos seus tempos de professor na Academia Militar era a de uma daquelas raras criaturas na cultura militar espanhola - um modernizador e inovador, do ponto de vista técnico. A própria construção do novo exército republicano envolveu inovação e improvisação. Ainda que os seus comandantes e oficiais recebessem uma ajuda importante por parte dos conselheiros sovié­ ticos, estes eram um recurso escasso - entre 600 a 800 pessoas em permanência no território republicano (durante toda guerra, cerca de três mil quadros soviéticos prestaram serviço em Espanha). O auxílio precioso, em termos qualitativos, destes engenheiros militares, técni­ cos, estrategas e especialistas em técnicas de guerrilha não nos deve impedir de reconhecer o papel dos republicanos espanhóis no que se refere à construção de uma nova força de combate. Inevitavelmente, as circunstâncias em que essa nova força foi criada e a necessária rapidez da sua construção implicaram alguns defeitos estruturais - especial­ mente a falta de oficiais de patente média (o grupo que mais apoiava Franco) e a insuficiente articulação interna e entre os seus agrupamen­ tos regionais. Como afirmou o próprio coronel Rojo, «temos cinco exércitos e não um». As sucessivas derrotas sofridas durante o segundo A REPÚBLICA SITIADA semestre de 1937 haveriam de desgastar ainda mais o quadro de oficiais republicano e intensificar a sua desarticulação interna. Contudo, este exército manteve o moral notavelmente elevado ao longo da guerra, apesar das derrotas. Contrariamente à fadiga e à desmoralização que se fazia sentir na frente interna republicana em 1938, o ânimo do exército conservou-se relativamente intacto e as deserções, embora acontecessem, eram um fenómeno restrito. Até certo ponto, este fenómeno tinha a ver com a intensa experiência de camaradagem e de solidariedade na frente de combate, e também, por associação, com o papel dos comissários políticos (analisado no capítulo 3). Em parte, também reflectia a prioridade que o governo republicano atribuía ao aprovisionamento do exército em detrimento da população civil. Comparativamente a outras gu erras modernas, sabemos relativamente pouco acerca dos sentimentos e dos valores dos recrutas do exército republicano, mas não há razões para duvi­ dar da força do processo de socialização que ocorreu através da expe­ riência do combate e da mobilização - apesar da falta de ânimo, esse processo também se verificou na frente interna, inculcando um forte sentido de identidade republicana em muitos dos que, até aí, lhe tinham sido indiferentes. Podemos depreender isto mesmo a partir do facto de, entre as centenas de milhares de pessoas que rumaram ao exfüo em 1939, ter havido muita gente sem um historial de militância política anterior à guerra. Mas a coragem e o engenho dos republicanos na frente aragonesa não foram suficientes para que se mantivessem muito tempo na mó de cima. Ao mesmo tempo que ocorriam batalhas desesperadas em Quinto e Belchite, o armamento destinado à república permanecia nos postos de controlo fronteiriço franceses, retido pelos vagares de uma não intervenção «afrouxada». Além disso, a república também não dispunha de tropas de reserva adequadamente treinadas. Se a não intervenção já dificultava o adequado apetrechamento do exército republicano, tornava ainda mais impossível equipar adequadamente as tropas de reserva. Pelo final do Verão de 1937, era óbvio que a ofen­ siva republicana era insustentável e que não podia impedir Franco de conquistar o norte. A capitulação das Astúrias (Avilés e Gijón) acon­ teceu em Outubro de 1937 e implicou a perda da indústria do carvão {120} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA e a dos exércitos republicanos do norte - cerca de 200 mil soldados. Em ambos os aspectos, foi uma perda de sangue que pôs fim à possibi­ lidade de a república alcançar uma vitória militar imediata na guerra civil. O que aconteceu em Teruel no doloroso Inverno de 1937-8 tor­ nou evidente essa impossibilidade. A Batalha de Teruel, capital da mais árida das províncias de Ara­ gão, foi outra das manobras de diversão de Rojo. O objectivo era reverter a renovada convergência de Franco para Madrid. O Genera­ lísimo ignorou os seus conselheiros - alemães, italianos e espanhóis - e desviou tropas para Teruel. Franco ansiava não perder um centí­ metro de território e ansiava ainda mais pela oportunidade de aniqui­ lar um grande número de inimigos - incluindo algumas das melhores unidades do exército republicano. Isto porque, ao contrário dos repu­ blicanos, Franco não tinha de se preocupar com o uso de reservas, já que estas podiam ser pronta e facilmente substituídas. A Batalha de Teruel teve lugar em pleno Inverno de 1937-8, um dos mais rigorosos que Espanha alguma vez conheceu. Os nevões impediram que Franco usasse transportes mecanizados e aviões. Morriam soldados devido à exposição ao frio, enquanto outros sofriam amputações de mem­ bros que ficavam congelados com a neve. Os republicanos tomaram a cidade emJaneiro de 1938, mas foram incapazes de resistir à contra­ -ofensiva de Franco. Teruel tornou-se o ponto de viragem na guerra, ao confirmar de uma vez por todas que a superioridade material das forças de Franco não podia ser contrariada pela coragem ou pela audá­ cia táctica dos republicanos. O general Rojo tinha uma genialidade estratégica que faltava a Franco, mas, ao contrário deste, nunca foi capaz de implementar a sua estratégia. Em última análise, a vulnera­ bilidade republicana derivava do facto de todas as ofensivas de Rojo terem sido estratégias de reacção e diversões. Em Teruel, após mais uma defesa onerosa e escassos progressos, os republicanos foram obrigados a retirar. No final de Fevereiro, a cidade já tinha sido reconquistada pelas forças de Franco, que fizeram mais de 15 mil prisioneiros e apreende­ ram grandes quantidades de equipamento militar. Em 1938, as perdas acumuladas pela república no que respeita a tropas treinadas - após o colapso da frente norte e a capitulação de Teruel - forçavam-na A REPÚBLICA SITIADA {121} a recrutar contingentes cada vez mais novos e mais velhos. Neste aspecto, as necessidades da república eram muito maiores do que as de Franco. Porém, os recrutas inexperientes não eram substitutos à altura das tropas bem preparadas que a república tinha perdido. Uma tal erosão, sempre constante, teve o seu preço, constituindo mais um factor condicionante da prestação do exército republicano. O desfecho da Batalha de Teruel exigiu que o primeiro-ministro republicano,Juan Negrín, ajustasse a sua maneira de pensar. Depois de ter chegado ao governo, em Maio de 1937, Negrín adoptou uma estratégia dúplice de resistência militar e diplomacia internacional, concebida para obter o levantamento da não intervenção ou, pelo menos, assegurar os direitos beligerantes da república. As mudanças ocorridas no executivo, em Maio, foram cruciais, ao representarem a chegada ao poder de líderes políticos (apoiados pelo presidente da república) que compreendiam que o desfecho da guerra se decidi­ ria, em última análise, nas chancelarias da Europa, onde a república tinha imperiosamente de conquistar apoios através de uma diplo­ macia muito mais proactiva. Nesse aspecto,Juan Negrín era o «líder necessário». Nascido no mesmo ano que Franco (1892), no seio de uma das mais abastadas famílias de Las Palmas, no arquipélago das Canárias, Negrín foi educado sobretudo no estrangeiro, tendo obtido o diploma de medicina na Alemanha, onde também realizou inves­ tigação nessa área. Com apenas 30 anos, foi nomeado para a cátedra de Fisiologia na Universidade de Madrid. Apoiou a república em pre­ juízo do status quo monárquico porque era um liberal constitucional e, como muitos na sua geração, aderiu ao Partido Socialista Espanhol, que via como o melhor instrumento para modernizar Espanha e abri-la à Europa. Negrín era formidavelmente inteligente - quer do ponto de vista político quer académico - e um observador astuto da política europeia e mundial. Urbano, cosmopolita e poliglota, tinha excelentes contactos no exterior e, assim, ao contrário do seu ante­ cessor, podia movimentar-se com à-vontade no mundo da diplomacia internacional. Inicialmente, os esforços diplomáticos de Negrín para assegu­ rar os direitos beligerantes da república concentraram-se na França, cujo sentimento de vulnerabilidade tinha aumentado por causa das {r22} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA concessões britânicas à Itália. Esses direitos não teriam resolvido o problema de fundo, uma vez que a Grã-Bretanha haveria de continuar a fazer o possível para bloquear a venda de armas à república. Todavia, a garantia dos direitos beligerantes teria pelo menos permitido que a república, além de comprar armas abertamente, pudesse defender o material de guerra que rumava a Espanha - uma vez que poderia reunir navios de guerra para servirem de escolta nas águas do Medi­ terrâneo, e, muito importante, localizar navios «neutrais» (sobretudo italianos), impedindo dessa forma o abastecimento de armas a Franco. A REPÚBLICA SITIADA O que aconteceu em Teruel não alterou visivelmente a estratégia de Negrín, mas fez com que esta começasse a ser reconfigurada interna­ mente. A perda do norte industrial, associada ao desgaste constante do exército republicano e ao bloqueio dos portos mediterrânicos por Franco, obrigou Negrín a procurar meios de levar o Generalísimo a sentar-se à mesa das negociações. Contudo, Negrín compreendia que não havia a mínima hipótese de o conseguir, a menos que a resistência militar da república se mantivesse resoluta e efectiva. Mas a situação militar republicana estava prestes a tornar-se crí­ tica. Depois de reconquistarem Teruel, as tropas de Franco ficaram bem posicionadas para varrer Aragão. Os republicanos pouco podiam fazer para as impedir - apesar de a França, temendo as consequên­ cias da ocupação da Áustria por Hitler (Anschluss), a 12 de Março de 1938, ter aberto as suas fronteiras para permitir a passagem de armas sem impedimentos. Mas era demasiado tarde. Franco tinha uma van­ tagem de 20 por cento no que respeitava a homens, e uma vantagem avassaladora em termos de aviação, artilharia e outros equipamentos. Em meados de Março, contrariando as suas habituais cautelas, Franco lançou contra o exército republicano, que ainda não tinha recuperado do embate em Teruel, a Blitzkrieg (guerra relâmpago) tão frequente­ mente advogada pelos seus conselheiros alemães e italianos. Barce­ lona foi bombardeada por aviões italianos, numa tentativa de quebrar o moral dos civis. Protegidos por uma cortina de fogo assegurada por mais de mil aeronaves alemãs e italianas, carros blindados e tanques, mais de cem mil soldados, encabeçados por forças de elite marroqui­ nas e italianas, subiram o Rio Ebro. Nos primeiros dias de Abril de 1938, a ala norte da frente que avan­ çava sobreAragão tomou a cidade de Lérida e, em seguida, a importante central eléctrica de Tremp, isolando temporariamente Barcelona e de então em diante reduzindo a sua produção industrial. Entretanto, as unidades centrais dos franquistas desceram o vale do Ebro em direcção à costa de Castellón e Valência.A 15 de Abril, tomaram a pequena cidade costeira de Vinaroz, alcançaram o Mediterrâneo e dividiram a república em dois: Catalunha e centro-sul (ver mapa da página seguinte). No dia seguinte, a Grã-Bretanha assinou o acordo anglo-italiano e continuou a pressionar a França para fechar a fronteira - apesar de BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA '7orrnLnttra J!has Balurts A divisão do território espanhol emJulho de 1938. os próprios navios mercantes britânicos continuarem a ser afunda­ dos pela Itália. A república dividida enfrentava uma crise tremenda - quer na frente militar, quer na frente interna. Em termos militares, a gu erra podia mesmo ter acabado aqui. No período imediatamente a seguir à divisão da república, as suas defesas encontravam-se mais vulneráveis do que alguma vez estariam em etapas posteriores da gu erra. O seu exército desalinhara-se e a frente ficara quebrada entre Vinaroz e Barcelona. Se Franco tivesse seguido directamente para Barcelona, já nada teria conseguido detê­ -lo. Com a Catalunha em seu poder e a fronteira francesa encerrada, a guerra teria acabado muito mais depressa. Mas, em vez disso, Franco, para espanto dos líderes políticos republicanos, do seu próprio alto comando militar e até de alguns oficiais franquistas de alta patente, desviou as tropas para sul, com vista a um ataque de grande escala em Valência. Em parte, fê-lo com receio de que um ataque directo à Cata­ lunha amedrontasse a França, levando-a a intervir militarmente em defesa da república. Retrospectivamente, é improvável que tal tivesse acontecido, mas após a reacção francesa àAnschluss, Franco não estava A REPÚBLICA SITIADA disposto a correr o risco de provocar ainda mais o governo de Paris. Mais importante: lançar nessa altura uma ofensiva contra a Catalu­ nha teria deixado uma significativa presença militar republicana na região centro-sul. Ao afastar-se da Catalunha na Primavera de 1938, prolongando desse modo o conflito, Franco tinha por objectivo maxi­ mizar a destruição e a desmoralização infligida aos recursos humanos da república. Essa opção foi, por isso, coerente com os objectivos de guerra fundamentais que Franco havia traçado. A partir de Abril de 1938, a sobrevivência da república passou a depender da rápida reorganização dos seus exércitos e da galvaniza­ ção política da sua frente interna. A continuidade da resistência mili­ tar era vista por Negrín como um meio fundamental para aumentar a pressão diplomática sobre a Grã-Bretanha e a França. Estes dois países temiam que quanto mais prolongado fosse o conflito espanhol mais provável seria que se transformasse numa conflagração europeia, para a qual seriam inexoravelmente arrastados. Esses receios, associa­ dos ao desagrado dos britânicos em relação a tudo o que tivesse a ver com a república, levou-os a oporem-se, com sucesso, à tentativa que Negrín fez junto da Sociedade das Nações, em Maio de 1938, no sen­ tido de conseguir o levantamento da não intervenção. Em público, o primeiro-ministro republicano continuava a afirmar a validez do seu compromisso em resistir até ao fim. Mas, na esperança de reverter os receios da França e da Grã-Bretanha a favor da república, Negrín empenhou-se, durante o segu ndo semestre de 1938, numa intensa ronda de diplomacia pessoal, com o objectivo de persuadir as grandes potências a assegurarem mediação internacional, como forma de pôr fim ao conflito em Espanha. Porém, esta hipótese tornara-se muito pouco provável, uma vez que a divisão do território republicano reve­ lava fraqueza em vez de vigor, e Franco não estaria disposto a negociar algo que acreditava poder conseguir à força. A sobrevivência da resistência republicana dependia ainda do acesso ao fornecimento externo de armas - por mais precário que fosse. Mas a situação na fronteira francesa era agora extremamente delicada. Em meados de Junho, a fronteira, que tinha sido aberta no rescaldo da Anschluss, foi novamente fechada. O novo governo de França, de cariz mais conservador, estava menos inclinado a tolerar [126} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA POPULAIRE Anónimofrancês, r938. uma fronteira permeável, além do que congelou os activos financei­ ros republicanos domiciliados nos bancos franceses. Foi este o preço que Franco exigiu para aprovar a exportação de pirite para França. A pirite, de extrema importância para o programa de rearmamento francês, era mais abundante no norte de Espanha do que em qualquer outra região da Europa. Em meados de 1938, as reservas de ouro republicanas estavam quase esgotadas. Negrín sempre tinha deixado claro que a guerra aca­ baria no dia em que se gastasse a última peseta de ouro. De facto, ele tinha razão ao constatar que a república não podia aceder a grandes A REPÚBLICA SITIADA fontes de crédito da mesma maneira que Franco. No entanto, a repú­ blica conseguiu prolongar a sua defesa para além do Verão de 1938, graças ao crédito de 60 milhões de dólares concedido pela União Soviética. Na verdade, desde a eclosão da guerra sino-japonesa, em Julho, a Espanha tinha perdido relevo na política externa soviética. Os conselheiros técnicos soviéticos foram reencaminhados durante o Verão. Estaline também concordou com a retirada das Brigadas Internacionais (de qualquer maneira, em 1938 estas Brigadas já eram constituídas sobretudo por espanhóis, pelo que a importância da pre­ sença de voluntários estrangeiros na república espanhola era pouco mais do que simbólica). Estaline já não acreditava que a república pudesse triunfar face ao bloqueio franquista e à inflexibilidade bri­ tânica - algo que também tinha tornado impossível a sua pretensão de estabelecer um acordo de segurança colectiva com a Grã-Bretanha e a França contra o expansionismo da Alemanha nazi. Ainda assim, quanto mais a república continuasse a resistir, mais absorveria os recursos alemães e melhor seria para as defesas soviéticas. Por isso, embora se acreditasse que o crédito concedido à república era irrecu­ perável, o dinheiro foi, para todos os efeitos, considerado bem gasto. Uma vez que o apoio soviético era vital para que a república con­ tinuasse a resistir, Negrín tinha de manter totalmente em segredo os seus esforços para conseguir mediação internacional. Isto explica, em parte, a sua insistência para se encarregar pessoalmente da diplomacia. Embora sob outros pretextos, Negrín realizou algumas viagens para fora do país em 1938, durante as quais estabeleceu contactos discretos e informais com representantes franquistas e com alguns políticos da Alemanha nazi. Até mesmo os ministros do seu próprio governo eram excluídos deste circuito de informações secretas, o que, com o passar do tempo, acabaria por produzir mal-entendidos e criar desconten­ tamentos. Contudo, Negrín era inflexível no que respeitava ao secre­ tismo, porque se apercebia de que o conhecimento dos objectivos da sua estratégia diplomática poria em causa a disponibilidade do exér­ cito republicano para combater e a dos civis para suportar a fome e as privações. O próprio Negrín estava absolutamente convencido da importância de uma resistência estratégica que visasse impor condi­ ções de paz a Franco. A principal preocupação do primeiro-ministro {128} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA republicano era garantir que não se exerceriam represálias contra os vencidos, embora também quisesse salvaguardar a integridade cons­ titucional e territorial de Espanha, que julgava comprometida pelas ambições políticas e económicas da Itália e da Alemanha, países a quem Franco ficaria a dever muito quando a guerra acabasse. Negrín acreditava piamente que a capacidade de resistência da república dependia, de forma decisiva, do estado psicológico dos seus soldados e civis. Tudo tinha, então, de ser engrenado de modo a melhorar, ou pelo menos manter, o moral republicano. Na frente militar, isto fez com que, em Maio de 1938, as unidades de guerrilha do exército republicano se envolvessem num inovador comando operacional, libertando várias centenas de soldados que tinham sido detidos numa prisão fortificada na costa do sul de Carchuna (Motril) - para lá das linhas republicanas - durante a queda da frente norte, no Outono de 1937. Esta acção não só elevou o moral nos dias atrozes que se seguiram à longa retirada de Aragão, como também forneceu uma fonte extremamente necessária de soldados treinados, depois das perdas acumuladas durante o Outono e o Inverno anteriores. Na «fuga da prisão» de Carchuna também participaram dois elementos norte-americanos das Brigadas Internacionais, Irv Goff e Bill Aalto, que combatiam na guerrilha desde o início de 1937. A convicção de Negrín quanto à importância vital do estado de espírito das tropas esteve na base da decisão, tomada no início de Abril de 1938, de demitir do cargo de ministro da Guerra o seu grande amigo Indalecio Prieto, o político mais importante da república do pré-guerra. Inteligente e enérgico, Prieto notabilizou-se por assumir em público o seu pessimismo em relação à gu erra. A situação ultra­ passou todas as marcas quando, no preciso momento em que Negrín dava o seu máximo para assegurar que a fronteira francesa se man­ tinha aberta no rescaldo de Teruel, Prieto anunciou ao embaixador francês que a república estava condenada. A diferença entre Negrín e Prieto não residia no seu entendimento da conjuntura da república, mas antes nas suas reacções subjectivas. O primeiro-ministro tirava partido da adversidade, enquanto Prieto parecia desistir antes do tempo. Negrín canalizava as suas energias para um aspecto específico e concentrava-se apenas no assunto que tinha em mãos: como manter A REPÚBLICA SITIADA um exército no campo de batalha, abastecido e alimentado. Porém, ao demitir Prieto, Negrín deixou a descoberto as crescentes divisões no seio da classe política republicana. Ao longo de 1938, agravaram-se as cisões políticas na república, em proporção directa com as derrotas militares e diplomáticas que lhe eram infligidas. Inevitavelmente, as enormes pressões externas - as carências impostas pela não intervenção, o bloqueio dos portos republicanos e um horizonte diplomático internacional cada vez mais negro - começaram a evidenciar as diferenças políticas internas, muitas das quais eram anteriores à guerra. Uma das diferenças mais subtilmente destrutivas era a inimizade entre o governo central republicano e o governo regional da Catalunha, a Genera!itat. A principal consequência dos Dias de Maio de 1937, em Barcelona, tinha sido a centralização do poder executivo. A Generalitat perdera o controlo da ordem pública na Catalunha - que tinha sido a jóia da coroa do seu estatuto de autonomia, concedido pela república em 1932. Então, em Outubro de 1937, Negrín transferiu o governo central republicano para Barcelona e assumiu o controlo directo da indústria de guerra catalã, uma fonte indispensável de armamento após a queda do norte industrial (cujo colapso também se devera, em parte, às tensões entre centro e periferia). O moral da Catalunha foi forte­ mente afectado, visto tratar-se, de longe, da região com tradições polí­ ticas e culturais mais profundas em toda a Espanha. No entanto, para o governo central republicano, composto por republicanos com uma mentalidade altamente centralista, socialistas e comunistas, a lição dos Dias de Maio foi a de que nada poderia alguma vez mais ameaçar a pro­ dução de armamento ou a resistência militar. As relações entre os dois governos começaram a ser cada vez mais dificultadas por esgotantes disputas jurisdicionais. As fontes de fricção eram inúmeras, e iam desde os protestos contra a «impor­ tação» para a Catalunha de gestores fabris e polícias «estrangeiros» (castelhanos) até às disputas, comparativamente menos importantes - ainda que amargas - , sobre qual dos dois governos podia ocupar gabinetes nos edifícios mais prestigiados da cidade. No Verão de 1938 houve também um sério embate por causa da decisão tomada pelo primeiro-ministro no sentido de militarizar a justiça, o que implicou {130} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA uma centralização ainda maior do poder, além de, em última instân­ cia, ter influenciado a saída dos representantes catalães (e bascos) do executivo republicano, em Agosto. Não restam dúvidas de que, durante a guerra, Negrín se mostrou insensível ao nacionalismo político catalão, sobretudo porque o via empenhado em quezílias provincianas e mesquinhas enquanto Roma - neste caso, Espanha - ardia. Provavelmente, as inclinações de Negrín, na tradição do centralismo clássico do republicanismo pro­ gressista, também o tornavam hostil ao catalanismo per se. Algumas das suas declarações eram desnecessariamente inflamatórias. Mas a principal acusação que lhe era dirigida pelos nacionalistas catalães - a de que o seu constitucionalismo liberal era um embuste - não resiste ao escrutínio. A partir do momento em que começou a fazer política, Negrín defendeu medidas para fortalecer a ordem consti­ tucional espanhola (foi também por esta razão que, em 1932, ficou Juan Negrín. A REPÚBLICA SITIADA {131} praticamente isolado ao argumentar que a pena de morte devia ser aplicada ao general Sanjurjo, líder da primeira revolta militar contra a democracia republicana). Negrín abominava o anticonstituciona­ lismo dos comités revolucionários populares que abundavam na zona republicana em 1936, da mesma maneira que não era solidário para com o colectivismo - defendia uma economia de mercado liberal, e muitas das medidas que tomou durante a guerra (Negrín chegara a ministro do Tesouro em Setembro de 1936) foram concebidas para reforçar este modelo, em detrimento do colectivismo e do anticapi­ talismo. Ao contrário de Franco, que castigava cidadãos espanhóis devido às suas convicções e aos seus actos de omissão (isto é, por não apoiarem activamente a revolta militar), enquanto primeiro-ministro, Negrín pôs em marcha vários mecanismos judiciais para devolver as propriedades expropriadas a todos os cidadãos espanhóis, indepen­ dentemente da sua cor política (desde que não tivessem estado direc­ tamente envolvidos no golpe militar), além de ter supervisionado a implementação de medidas - por exemplo, nos serviços prisionais - que visavam profissionalizar (e, consequentemente, despolitizar) os critérios de contratação de funcionários. A declaração com os 13 objectivos de guerra da república, que Negrín tornou pública em Maio de 1938 como base para a mediação da paz, reflectia um modelo de constitucionalismo liberal. Assumindo especial destaque entre os 13 pontos, contava-se a afirmação da liberdade de consciência. Não se tratava meramente de uma declaração de boas intenções para consumo externo. Para Negrín, a normalização da posição da igreja católica constituía um teste de fogo à constitucionalidade republicana. Embora fosse um racionalista secular, Negrín não era anticlerical - na verdade, o seu próprio irmão tinha recebido as ordens sagradas. Por volta do Verão de 1937, o culto privado do catolicismo já era permitido, mas o passo para a reabertura das igrejas era necessariamente mais lento. Não era, decerto, por falta de vontade da parte de Negrín - como testemu­ nharam os democratas-cristãos catalães. Todavia, o apoio expresso da hierarquia da igreja católica espanhola ao golpe de Franco tinha criado um ambiente denso e carregado que não podia ser revertido do dia para a noite. O primeiro-ministro agiu com cautela e discrição: BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA em meados de 1938, os seus esforços estavam a começar a dar frutos e, em Outubro, com o apoio tácito do Vaticano, Negrín criou uma enti­ dade específica para supervisionar a reintrodução do culto público. Primeiro, a iniciativa foi posta em prática na Catalunha e estava já bem encaminhada quando essa região capitulou, no início de 1939. O segundo grande foco de tensão na vida política da república durante a guerra era a crescente fractura entre socialistas e comu­ nistas - os dois movimentos de massas que sustinham o esforço de guerra. Esse conflito tinha as suas raízes em antigas rivalidades orga­ nizacionais e pessoais, que foram grandemente intensificadas pela guerra. Em 1938, as rivalidades estavam a enredar-se fatalmente com as disputas na cúpula socialista e com a alienação de uma série de líde­ res do partido em relação a Negrín, sobretudo após a saída de Prieto do executivo. Em última análise, esses conflitos que tiveram lugar durante a guerra foram fortemente impulsionados pela crescente desmoralização e pelo desespero de muitos líderes socialistas que se confrontavam com as dificuldades resultantes do isolamento da repú­ blica. Apesar de não terem alternativas para propor, esses líderes cri­ ticavam a estratégia de resistência de Negrín, que consideravam cada vez mais irresponsável. Em parte, faziam-no por não estarem a par do seu compromisso fundamental (intenso mas, obviamente, secreto) com a diplomacia. Além do mais, também estavam ressentidos com o facto de Negrín contar cada vez mais com quadros comunistas espa­ nhóis, em detrimento dos membros do seu próprio partido. O que interessava a Negrín não era a ideologia comunista (de facto, muitos comunistas pós-golpe militar eram relativamente fle­ xíveis em relação a este aspecto, embora inflexíveis no que se refere ao modo como encaravam o seu movimento partidário enquanto comunidade de eleitos). Similarmente, Negrín tinha consciência de que a agenda do partido diferia da sua em matérias importantes. No entanto, necessitava, no imediato, da disciplina inabalável dos comu­ nistas e, acima de tudo, do seu compromisso inquestionável com uma política de resistência. Desse modo, a disciplina dos comunistas tornou-se numa ferramenta para Negrín. A disciplina partidária também reflectia, é certo, a política do Comintern, apesar de os líderes comunistas espanhóis não serem A REPÚBLICA SITIADA meros porta-vozes da Internacional. Numa guerra em rápida progres­ são, tinham sido obrigados a construir uma liderança capaz de dar resposta ao grande número de tarefas que o conflito exigia ao partido. Além disso, os dirigentes comunistas espanhóis nem sempre estavam de acordo com o Comintern. No Verão de 1937, quando a Internacio­ nal propôs que o partido defendesse novas eleições para o parlamento republicano, os líderes espanhóis convergiram com as restantes for­ ças políticas republicanas na ideia de que tal seria contraproducente. A proposta não avançou. Em 1938, os líderes do partido espanhol tam­ bém resistiram, com sucesso, às orientações do Comintern no sentido de acabar com a representação ministerial comunista no executivo de Negrín - como forma de tentar quebrar o impasse diplomático inter­ nacional. No fim, o Partido Comunista Espanhol haveria de pagar um preço elevado pela sua associação à resistência militar total. À medida que o cansaço de guerra ia aumentando e as pessoas começavam a per­ der a esperança perante o impasse diplomático, boa parte daqueles que tinham aderido a organizações comunistas em 1936 começaram a des­ carregar a sua frustração e o seu desespero no partido. A raiva também corroía a esperança. Na Primavera de 1938, a república já era manifestamente incapaz de dar resposta às neces­ sidades quotidianas mais básicas da sua população civil, até porque se deparava com vagas constantes de refugiados que chegavam dos territórios conquistados pelos rebeldes: depois do colapso de Aragão, vieram mais 25 mil refugiados, o que significa que, no final da guerra, havia cerca de 600 mil refugiados na Espanha republicana, incluindo 200 mil crianças. As principais regiões produtoras de cereais perten­ ciam ao território franquista e a república nunca tinha conseguido importar comida suficiente para responder às carências - por causa da falta de fundos que resultava dos preços exorbitantes que tinha de pagar pelo armamento, graças à não intervenção. Agora, a situação era mais grave. O bloqueio franquista da costa mediterrânica implicava que a região republicana do centro-sul não tivesse acesso a provisões. A Catalunha também precisava urgentemente de comida. Porém, a comunicação entre as duas zonas republicanas era extrema­ mente acidentada (até mesmo os contactos por rádio eram incertos e intermitentes). Os submarinos alemães e italianos torpedeavam o BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA tráfego marítimo, tornando Barcelona inacessível a partir de Valên­ cia, excepto por via aérea. Mas os aviões tinham uma capacidade de carga mais limitada e também estavam sujeitos a ataques inimigos. A comida de que a Catalunha precisava tinha de vir de França, mas as políticas de fronteira cada vez mais restritivas tornavam-na uma fonte precária, para além do que, de qualquer das maneiras, a quan­ tidade de comida que chegava a território catalão não era suficiente, nem de perto nem de longe, para satisfazer as necessidades. A Cata­ lunha, com o seu número exorbitante de refugiados, sofreu enormes carências. Por todo o território republicano, as privações e a degradação das condições materiais conduziram a uma forte sensação de vulnerabili­ dade, isolamento e perigo. A legitimidade política da república ia-se desgastando derrota após derrota e a crise de subsistência intensificou­ -se. Escassez de alimentos, inflação, êxodo populacional, prenúncios de fome e de epidemias: todos estes factores tornaram impossível que a república tivesse credibilidade para firmar (em termos de reforma da previdência e de outros benefícios sociais) um contrato social com aqueles que se sacrificavam por ela. A república já não conseguia per­ sonificar a visão de um futuro positivo e de progresso. Sob esta pres­ são tão intensa, com o moral em baixo e cercada por todas os lados, a zona republicana tornava-se, inevitavelmente, cada vez mais militari­ zada - ainda que isso debilitasse a sua essência democrática. A guerra - e, mais especificamente, a tentativa desesperada de manter viva a resistência - consumia tudo. Por volta de 1938, face à desesperante escassez de tropas, as auto­ ridades republicanas não tinham outra alternativa senão acelerar o processo de conscrição e utilizar métodos cada vez mais agressivos e intrusivos para o conseguir. Esta foi uma das principais funções dos serviços de informações militares, cujos quadros procuravam encorajar a denúncia daqueles que tentavam fugir ao serviço militar obrigatório - os familiares apanhados a ajudá-los ou a encobri-los podiam ser severamente punidos, ao abrigo da lei republicana. Isto suscitava medo e ressentimento no seio de comunidades que eram frequentemente muito pequenas, e teve efeitos bastante nefastos, na medida em que gerou hostilidade em relação à república sitiada. A REPÚBLICA SITIADA Menino vendedor de rua na Espanha republicana. Também nas áreas rurais, as tensões sociais aumentaram, em con­ sequência do facto de os soldados sobreviverem da terra. A política do exército republicano proibia as «requisições» não oficiais, mas na verdade elas acabavam por acontecer, especialmente em alturas de grande stress e perturbação. Por exemplo, durante a grande retirada de Aragão, após o desmembramento do território republicano em Abril de 1938, foram cometidos vários actos de violência contra civis - inclusive contra funcionários republicanos, como o polícia que foi morto quando tentava impedir que os soldados em retirada roubas­ sem pão da padaria de uma aldeia. O desânimo cada vez maior da população também forneceu um terreno fértil à quinta coluna, cuja confiança e níveis de actividade tinham sido impulsionados pelos sucessivos avanços territoriais das forças de Franco e pelo conhecimento do estado de asfixia em que o isolamento diplomático mantinha a república. À parte das BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA actividades isoladas de partidários franquistas, que disseminavam rumores e informações erradas, todas as principais cidades republi­ canas tinham organizado redes de espiões e sabotadores que repre­ sentavam uma ameaça bem mais séria. Os serviços de informações republicanos haviam desmantelado algumas dessas redes. Contudo, lidar com o «inimigo interno» envolvia técnicas de vigilância e de interrogatório que violavam o compromisso republicano para com as garantias constitucionais e a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Este conflito entre os imperativos de guerra e a obrigação de preservar as liberdades civis pelas quais se luta é algo que, ainda hoje, afecta democracias bem mais consolidadas e em melhores condições do que a república de Espanha. Este é, obviamente, um dilema com o qual Franco nunca se confrontou: quer durante, quer após a guerra, o Generalísimo reduziu o sistema judicial a um ramo do terror estatal. Pelo contrário, a república comportou-se, durante o conflito, como uma democracia em guerra. Os direitos constitucionais foram atro­ pelados quando Negrín criou tribunais especiais para julgar casos de espionagem e de traição, mas, ainda assim, a república manteve um enquadramento constitucional - feito particularmente admi­ rável, tendo em conta a insipiência da democracia republicana e a sua condição de sitiada. A justiça investigava abusos cometidos pela polícia e pelos serviços prisionais - que incluíam maus tratos aos detidos e assassínios à margem da lei penal. O simples facto de essas acções serem definidas como abusos é bastante revelador. Na zona franquista, que nunca esteve cercada, a desumanização, a tortura e a matança do inimigo não eram considerados abusos, mas antes um profilático administrado pelo poder. Nem mesmo quando a república se encontrava em luta pela sobrevivência na derradeira e gigantesca Batalha do Ebro, entreJulho e Novembro de 1938, as imensas pressões da guerra se sobrepuse­ ram às garantias constitucionais. Em Outubro de 1938, os líderes do POUM foram levados a tribunal e condenados por terem apoiado, em tempo de guerra, uma rebelião ilegal (a de Maio de 1937, em Bar­ celona) contra o estado republicano. Levá-los a tribunal nesta etapa tardia do conflito implicava fazer deles um exemplo, com o objectivo A REPÚBLICA SITIADA {137} de disciplinar a frente interna numa altura em que a sua desagregação estava iminente. Mas o julgamento dos líderes do POUM não foi um acontecimento de fachada. Apesar de todos os esforços do Partido Comunista Espanhol no sentido de influenciar os procedimentos e rebaixar os seus rivais - incluindo uma violenta campanha publici­ tária - o julgamento seguiu todos os trâmites constitucionais. Con­ tra todas as expectativas, a cultura política republicana manteve-se democrática. A ofensiva do Ebro, sem a qual o julgamento do POUM não pode ser devidamente compreendido, foi também a última cartada da república e teve três objectivos: impedir a tomada de Valência pelos franquistas (primeiro tentada pelas forças italianas); restabelecer o contacto com a Catalunha, o que permitiria reunir as duas zonas repu­ blicanas; e, em terceiro lugar, mostrar à comunidade internacional a resiliência do exército republicano e a sua capacidade para planear e implementar ofensivas. Um parecer dos Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, elaborado no final de 1938, assinala que«a cam­ panha do Ebro foi, sem dúvida, uma grande vitória do governo [repu­ blicano}», e sublinha também que Franco estava mais dependente do que nunca da Itália e da Alemanha, o que era especialmente verdade em termos de aviação. Durante a Batalha do Ebro, houve combates aéreos a uma escala sem precedentes na história bélica, a que só se voltaria a assistir durante a Batalha de Inglaterra, na fase inicial da Segunda Guerra Mundial. Para garantir a superioridade da sua aviação, Franco pagou à Alemanha em direitos de exploração mineira. Por mais que, em 1936, tivesse assegurado aos diplomatas britânicos que tal não acon­ teceria, em 1938 o Generalísimo precisava desesperadamente de mais meios aéreos para vencer a guerra, o que implicava que estivesse dis­ posto a ceder em questões relativamente às quais se havia mostrado renitente. O produto dessas valiosas concessões mineiras exerceu um papel fundamental no programa de rearmamento alemão. Mas a vantagem militar que Franco conquistou trouxe-lhe grandes dividendos no curto prazo. As vias de comunicação republicanas foram exaustivamente bombardeadas e, segundo o testemunho de muitos elementos das Brigadas Internacionais, as suas tropas eram BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA empurradas para as encostas desabrigadas e rochosas pela força incendiária das bombas. Em termos militares, todas as potências participantes apro­ veitaram a oportunidade que a Guerra Civil de Espanha lhes ofe­ receu para ensaiarem estratégias e equipamento num cenário real e prolongado de combate - embora esses benefícios fossem cola­ terais e não tivessem estado na origem da sua intervenção inicial. A Alemanha e a União Soviética viam com agrado a oportunidade de testarem novas tecnologias - sobretudo uma contra a outra, já que se consideravam mutuamente como eventuais oponentes «terri­ toriais». Por isso, foi em Espanha que apareceram pela primeira vez elementos daquilo que viria a ser a Blitzkrieg, ao passo que a União Soviética beneficiou especialmente do facto de ter testado os seus tanques e carros blindados. Mas foi a guerra aérea - em que parti­ ciparam quase três mil aviões - que marcou o conflito espanhol em termos de inovação técnica e militar (por exemplo, o bombardea­ mento cirúrgico de alvos específicos ou as novas técnicas para lidar com a artilharia antiaérea). No final, em Novembro de 1938, a forças republicanas tiveram de recuar pelo Rio Ebro, que em Julho haviam atravessado com grande ingenuidade técnica, improvisação e tenacidade. Apesar de a escassez de armamento e provisões ter colocado os problemas do costume, houve, na Batalha do Ebro, uma diferença fundamental. Desta vez, a retirada não aconteceu em função de uma derrota militar (a república tinha sido capaz de deter o ataque de Franco a Valência), mas antes por causa de uma derrota política absolutamente devastadora que ocorreu a muitos quilómetros de Espanha. No final de Setembro de 1938, em Munique, a Grã-Bretanha e a França assinaram um acordo com as ditaduras alemã e italiana' acordo esse que deu efectivamente luz verde a Hitler para invadir e desmembrar a Checoslováquia, a única democracia ainda em funcio­ namento na Europa central e de leste. Ao ditarem por escrito o fim da independência checa, as democracias ocidentais também mataram a república espanhola, porque o acordo de Munique demonstrou o seu compromisso aparentemente inquebrável com a conciliação das potências fascistas. O impasse diplomático daí resultante enfraque- A REPÚBLICA SITIADA ceu a estratégia de resistência e a credibilidade de Negrín aos olhos de muitos dos seus compatriotas, abatidos e desesperados com a guerra. O acordo de Munique também foi, quase certamente, determinante para a reconfiguração da política externa soviética que haveria, a seu tempo, de conduzir ao pacto de não agressão assinado pela Alemanha e pela União Soviética em Agosto de 1939. A desmoralização induzida pelo sombrio horizonte interna­ cional explica, em parte, a rápida capitulação da Catalunha, em Fevereiro de 1939. Aquilo que os bombardeamentos de Franco não haviam conseguido alcançar era agora proporcionado pelos efei­ tos cumulativos da não intervenção e do isolamento diplomático quase total da república. Como recorda uma testemunha, as pes­ soas começaram a ansiar pelo fim: «deixem simplesmente que isto acabe - não importa como vai acabar, mas que acabe já». Enquanto as tropas de Franco apertavam o cerco à Catalunha, em Fevereiro, milhares de foragidos dirigiram-se para a fronteira, em direcção aos campos de refugiados franceses. Após a queda da Catalunha, Negrín planeava defender pelo menos uma parte da zona centro-sul, como forma de aguentar indefinidamente a situação até ao desbloqueamento da conjuntura internacional - uma estratégia que, no mínimo, teria permitido um processo de retirada controlada e a evacuação de todos aqueles que corriam maior risco, à medida que fosse necessário. Negrín compre­ endeu algo que muito poucos líderes republicanos compreenderam: que só uma resistência residual continuada podia abrir uma brecha de negociação com Franco e os seus apoiantes. Assim que os repu­ blicanos baixassem as armas, Franco recusaria negociar o que quer que fosse. De acordo com os seus objectivos políticos de guerra, o Gene­ ralísimo estava interessado numa única via para a paz: a rendição incondicional dos republicanos. Em 1939, promulgou os termos da aterradora (e retroactiva) Lei das Responsabilidades Políticas, que viria a permitir que o regime instaurasse uma repressão generalizada e cuja publicação constituía, em si mesma, um acto de guerra. Acima de tudo, essa lei constituiu uma resposta rotundamente negativa de Franco à derradeira condição não negociável imposta por Negrín para BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA o cessar-fogo: a garantia de que não se exerceriam represálias contra a população republicana derrotada. De facto, após a assinatura do acordo de Munique, esta tinha sido a única condição não negociável imposta por Negrín para pôr fim à guerra. Mas as implicações de Munique espicaçaram outros líderes repu­ blicanos e socialistas que, tolhidos pelo desespero, ainda acreditavam, contra todas as evidências, na quimera de uma paz negociada com Franco. Em Março de 1939, as suas movimentações, combinadas com a extrema saturação causada pela guerra em território republicano, causaram uma complexa rebelião política e social em Madrid, contra o governo de Madrid e o Partido Comunista Espanhol, as forças que simbolizavam a resistência continuada. Foi então que a heterogenei­ dade da mobilização comunista se transformou num calcanhar de Aquiles, com os oficiais do exército da zona centro que eram mem­ bros do partido a recusarem obedecer às ordens para continuarem a resistir. Assim, foi a implosão política da república, mais do que a sua derrota militar, que assegurou a vitória das forças de Franco na guerra. Esta implosão política revela, uma vez mais, quão fantasiosas eram as alegações sobre a «sovietização» da república. Seja como for, tais observações derivam de uma leitura profundamente anacrónica da história - nomeadamente a de que a União Soviética que inter­ veio em Espanha em 1936 era já a superpotência política e económica do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Mesmo depois de 1945, a satelização continuou a depender de alguns pré-requisitos: a proximidade geográfica, a existência de um exército vermelho e, de preferência, uma cultura política minimamente compatível. Nenhum destes requisitos se cumpria em Espanha. Não obstante a expansão do movimento comunista espanhol durante a guerra, continuou a haver, entre a classe política republicana e a cúpula soviética, um verdadeiro abismo que nenhum intercâmbio diplomático ou político podia col­ matar. Além disso, o próprio movimento comunista era atipicamente heterogéneo e, acima de tudo, como já vimos, não havia em Espanha nada que equivalesse a um «exército vermelho». A populosa e extensa zona republicana do centro-sul, que tinha Madrid como capital, nunca fora militarmente tomada por Franco, A REPÚBLICA SITIADA tendo-lhe sido entregu e pelos oficiais de comando dos exércitos de defesa durante o impasse político e diplomático de finais de Março de 1939. O papel aí desempenhado pelas forças de uma quinta coluna bem organizada, que, como veio a ser apurado, mantivera excelen­ tes comunicações com os franquistas, levanta questões que conti­ nuam por responder quanto ao seu peso na rebelião anti-Negrín, que desestabilizou a resistência republicana. No meio do pânico e da confusão, a armada republicana partiu de Cartagena, atracando em Bizerta, no norte de África, onde foi retida pelas autoridades francesas para ser entregue a Franco. As centenas de refugiados republicanos aglomerados em Valência, Alicante, Gandía e outros portos no leste da costa espanhola tinham perdido os seus únicos meios viáveis de fuga a partir da zona centro-sul, rodeada de territó­ rio hostil e de mar. Uma pequena parte dos refugiados fugiu noutros navios - sobretudo os que tinham dinheiro para pagar uma passa­ gem. Entre a maioria deixada para trás, alguns cometeram suicídio. Os restantes foram conduzidos para os campos de concentração montados pelas forças franquistas conquistadoras. Com a derrota da república de Espanha, o poder de fogo nazi estava agora liberto para outras iniciativas coloniais na Europa. No princípio deJaneiro de 1937, quando Gõring se encontrou com Mussolini em Roma, o líder alemão comentou que tudo teria de ficar decidido no prazo máximo de três semanas. Se a Itália e a Alemanha não conseguissem assegurar a vitória de Franco dentro desse prazo, tudo estaria acabado, uma vez que, findo esse tempo, os britânicos haveriam de despertar e impedi-los. Negrín nunca perdeu a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, a Grã-Bretanha e a França teriam de acordar e enfrentar a Alemanha e a Itália, se quisessem manter a sua vantagem imperial, nem que fosse por instinto de sobrevivência. Quando tal acontecesse, até mesmo o cenário menos favorável impli­ caria que os apoiantes de Franco deixariam de poder continuar a coo­ perar, obrigando o Generalísimo a negociar com a república. Foi por isso que Negrín continuou a resistir. Se a Inglaterra e a França lhe tivessem dado ouvidos, então todo o curso da história europeia poderia ter sido diferente: Anschluss, Munique, até mesmo a Segunda Guerra Mundial. Mas os historiadores não lidam com especulações contrafactuais, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA por mais aprazíveis que se assemelhem. O facto demonstrável é que Franco prestou um enorme serviço a Hitler ao alterar o equilíbrio de poder europeu a favor do eixo germânico-italiano. Por sua vez, apesar da política britânica, a resistência republicana espanhola conseguiu, durante aproximadamente três anos, adiar outras formas de agressão nazi na Europa e, ao fazê-lo, ofereceu à própria Grã-Bretanha um valioso intervalo de tempo para se rearmar. Lienas, 1936. 6. Vitória e derrota: as guerras depois da guerra A VITÓRIA de Franco na gu erra civil representou o início de uma ..ll..tentativa de modernização económica de Espanha que, no entanto, dispensou alguns dos traços característicos da modernidade: a democracia política plena e o pluralismo cultural, simbolizados pelos republicanos. Mais de 400 mil espanhóis procuraram protec­ ção no exílio. Alguns alcançaram relativa segurança no México e nas Américas, mas milhares de outros foram sugados para o turbilhão de guerra e aniquilação que atingiu a Europa. As OUTRAS FRENTES DA ESPANHA REPUBLICANA {...} um soldado solitário, ostentando a bandeira de um país que não é o seu, de Morei/, 1939. um país que é todos os países e que apenas existe porque esse soldado ergue a sua bandeira abolida [...} emfarrapos, empoeirado e anónimo, uma pequenafigura naquele mar resplandecente de areia sem fim, caminhando em frente{...} sem saber muito bem para onde vai, nem com quem, nem por quê, sem se importar muito com isso, desde que seja emfrente, emfrente, sempre emfrente. ]AVIER CERCAS, Soldados de Salamina Os civis e soldados republicanos que atravessavam a fronteira da Catalunha para França em Fevereiro de 1939 eram imediatamente detidos pelas autoridades hostis em campos de detenção onde a falta BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA . VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA serviço militar obrigatório confinado), ou ser destacado para brigadas de trabalho semimilitarizadas. Dos 60 mil que deixaram os campos (mais de cem mil ficaram), a maioria escolheu estas brigadas, e, entre estes, a maior parte foi enviada para reforçar a Linha Maginot, no nor­ deste de França. Aí, os republicanos das brigadas de trabalho lutaram contra a invasão alemã entre Maio e Junho de 1940, e foi ao longo destas linhas de retirada que levaram a cabo os primeiros actos de resistência contra as forças de ocupação. Alguns republicanos passaram directamente para diversas for­ mas de resistência clandestina. Outros juntaram-se-lhes mais tarde, depois de fugirem dos campos onde tinham sido novamente detidos. A situação tornou-se mais difícil no Inverno de 1940, altura em que muitos veteranos republicanos (incluindo combatentes estrangei­ ros) foram submetidos ao duro regime dos campos penais de Gurs e Vernet d'Ariege, de onde vários foram mandados para campos de concentração no norte de África. Outros foram detidos em campos para prisioneiros de guerra (stalags), nos quais os nazis inicialmente confinavam os espanhóis republicanos que capturavam a combater no Marcha vitoriosa de Franco em Madrid de condições de saneamento básico e de abrigo provocaram a mor­ tandade entre os prisioneiros, já de si enfraquecidos pelas privações da guerra. Juntamente com os espanhóis republicanos foram detidos outros combatentes estrangeiros impossibilitados de regressar aos países de origem. Aqueles que puderam, fugiram. Enquanto refu­ giados políticos, as opções, tanto para os republicanos como para os outros combatentes, eram sombrias e brutais. A Frente Popular fora extinta em França, como em Espanha, e os republicanos eram vistos pelo governo de Daladier com desconfiança e desdém. Foi feito um grande esforço para o repatriamento voluntário dos refugiados espa­ nhóis, uma opção escolhida por cerca de 70 mil, em Março de 1939. Ao fim de alguns meses, e com as mulheres e crianças colocadas noutros locais, foi dada à população masculina que permanecia em campos franceses a possibilidade de escolher entre permanecer em detenção, integrar a Legião Estrangeira, os Bataillons de marche (uma espécie de - - ... - � __,. ' - Campo de refugiados republicano no sudoeste de Franca, em Março de I939 (houve vários; o que aparece nafotografia é o de Argeles-sur-Mer ou o de Le Barcares). BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA exército francês. Os espanhóis utilizados como trabalhadores estran­ geiros nos destacamentos de Vichy, em trabalhos rurais ou florestais, depressa se envolveram em actos de sabotagem. Para muitos refugia­ dos republicanos, o caminho para a resistência começava logo com a necessidade de sobrevivência quotidiana. Constituíam uma percen­ tagem significativa de uma classe que um historiador da Resistência classificou como «civis irregulares». Desesperados para evitar a deten­ ção ou o repatriamento, os republicanos mantinham a sua existência confinada às margens sociais e económicas da sociedade, fazendo o possível por passar despercebidos junto dos oficiais de Vichy e das forças de ocupação. Num espírito de entreajuda pela sobrevivência, criaram redes de solidariedade que, com o tempo, se transformaram em redes de resistência. A precariedade da vida dos refugiados levou a que os republicanos aprendessem à custa da experiência que nem sem­ pre existia uma linha divisória clara entre sobrevivência e resistência. Mas, entre os que se envolviam activamente na resistência, havia uma forte consciência de que, ao defender a tradição republicana francesa, davam continuidade à luta colectiva que tinham deixado para trás em Espanha, em Fevereiro de 1939. O maquis, na sua fase inicial de 1941, no sudeste de França, cresceu a partir dos conhecimentos militares práticos, técnicas e experiência dos veteranos espanhóis republicanos. Eram eles quem conhecia as técnicas de sabotagem - como produzir bombas a partir de restos, fazer emboscadas ou desviar um comboio sem utilizar explosivos. As mulheres também se envolviam nas operações, cabendo-lhes fre­ quentemente o perigoso e crucial trabalho de ligação. Os republica­ nos integravam ainda as redes clandestinas que apoiavam os serviços de contra-informação aliada e organizavam operações de fuga entre França e Espanha. Estas funcionavam nas duas direcções, mobili­ zando pessoal militar aliado e civis em perigo, bem como recolhendo agentes aliados e refugiados republicanos em risco de detenção (ou pior) pelo regime de Franco. Uma das mulheres envolvidas no traba­ lho de ligação foi Neus Catalã, filha de agricultores de Tarragona e membro do Partido Comunista Catalão. Em Fevereiro de 1944, foi deportada para Ravensbrück no maior comboio de mulheres alguma vez enviado de França, e do qual fizeram parte 27 espanholas republi- VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA Anónimo espanhol, 1937. canas. Catalã sobreviveu e, depois da guerra, recolheu testemunhos de outras resistentes republicanas e deportadas. Mas foram precisos 40 anos - até ao fim do franquismo - para que o seu livro fosse publicado em Espanha. A partir do final de 1942, as consequências da ocupação nazi, e em especial a política de trabalhos forçados, estimularam a resistência em larga escala na Europa. Nessa linha, o maquis republicano espanhol tornou-se parte do movimento multiforme e em expansão da resis­ tência rural e urbana em França. Os espanhóis que lutavam no maquis em França levavam a cabo o mesmo tipo de guerrilha de sabotagem, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA propaganda e sobrevivência que os seus compatriotas republic anos que tinham ficado em Espanha e que actuavam como uma guerrilha local contra as forças de segurança de Franco. Tenha permanecido por escolha ou necessidade, o maquis republicano em Espanha entendia a sua própria luta como outra frente na guerra de resistência que emer­ giu na Europa em 1943 contra a discriminação racial, étnica e social defendida pelos nazis e seus colaboradores. Em nenhum outro sít io a nova ordem de Hitler foi tão br ut al como na frente oriental. Também ali se encontravam espanhóis repu­ blicanos a combater o exército alemão. Ironicamente, muitos deles tinham sido afastados, ainda jovens, da devastação da guerra no norte de Espanha, em 1937, e enviados para a União Soviética (entre outros dest inos) como fo rma de p rotecção cont ra os bombardeamentos aéreos em massa inflig idos às cidades republic an as pelos apoiantes nazis e fascistas de Franco. Havia cerca de três mil crianças refugia­ das na União Soviética provenientes da Espanha republicana. Cerca de dois mil adultos chegaram mais tarde, essencialmente durante a diáspo ra de 1939. E ram sobretudo militares e quadros políticos liga­ dos ao movimento comunista espanhol. Todos, sem excepção, foram forçados a integrar o vasto e duro esforço de mobilização da União Soviética para a guerra, na sequência da invasão alemã de 1941. Estes republicanos que ser viram como combatentes integravam essencial­ mente unidades de guerrilha: alguns eram pilotos, e vários homens e mulheres serviram como soldados e enfermeiras na defesa de Lenine­ grado e de Moscovo. Também eles combateram e morreram em Esta­ linegrado. Dos cerca de 700 republicanos que combateram na frente orient al, ap roximadamente 300 foram mortos, incluindo os filhos únicos de duas importantes políticas republicanas: Rubén, de 22 anos, filho da famosa Dolores Ibárruri (Pasionaria), morreu em Est aline­ grado em Setembro de 1942; Santiago, também de 22 anos, filho de Margarita Nelken, a deputada que mais defendeu o direito dos pobres sem terra, morreu em combate na Ucrânia, emJaneiro de 1944. A lut a permanente pela democracia republic ana espanhola era evidente em todas as frentes, incluindo em África. Quando se deu a queda de França em Junho de 1940, mais de dois mil veteranos espa­ nhóis republicanos viram-se espalhados pelas várias forças francesas VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA p resentes nas colónias e territó rios dependentes, desde a Síria ao Ma g rebe. Cerc a de 300 desses republic anos eram já vete ranos da missão levada a cabo por forças anglo-francesas, em Abril, em Nar­ vik (Noruega), na qual a 13. ª Semibrigada (composta na totalidade por espanhóis) da Legião Estrangeira Francesa tinha actuado como tropa de choque, sofrendo elevadas baixas em consequênc ia do confronto. Quando a maioria das auto rid ades fr ancesas no Mag rebe aceitou a auto ridade de Vichy; os veteranos republic anos que puderam fazê-lo juntaram-se às forças francesas de De Gaulle. Para muitos, isso impli­ cou a t ravessia do deserto do Sara desde Marrocos e Algéria até ao Chade, na África equatorial francesa, para se alistarem na 22. ª Divisão Armada do general Leclerc. Esta força lutou na Líbia e noutros locais do norte de África em conjunto com a 8. ª Armada Britânica. A divisão de Leclerc, que integrou o desembarque na Normandia, foi o primeiro contingente aliado a ent rar em Paris, em Agosto de 1944. Os republicanos que lut aram nas forças de Leclerc baptizaram os seus t anques como «Guadalajara», «Brunete», «Belchite», «Ebro» e «M ad rid», de acordo com as bat alhas e lug ares da Guerra Civ il de Espanha, para onde esperavam voltar quando reg ressassem do exílio. Consideravam-se afortunados por pode rem combate r, já que mu i­ tos dos seus camaradas tinham padecido ou morrido nos campos de concentração de Vichy; no norte de África. Muitos t inham ainda de suport ar as condições desesperantes nas brig adas de t rabalho for­ çado, inclusive os que est avam a ser usados como força de t rabalho na construção da linha férrea t rans-sariana. Aí trabalhavam também out ros refug iados eu ropeus do fasc ismo que se t inham alist ado na Legião Estrangeira, tal como os espanhóis republicanos, como forma de luta contra a nova ordem nazi. {...} com outros cinco homens da Legião Estrangeira{...} Miralles {...} o{espanhol republicano} veterano de todas as guerras{...} fez parte do ataque ao oásis italiano de Murzak, no sudeste da Líbia{emJaneiro de 1941}.{ ...}«Imagine-se{...}» disse Bolafio{...} como se ele próprio esti­ vesse a descobrir a história, ou o significado da história, à medida que a contava.«Toda a Europa controlada pelos nazis e, no meio do nada, sem que ninguém soubesse, lá estavam eles - quatro norte-africanos, um {!52} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA tipo preto e aquele raio daquele espanhol [...} erguendo a bandeira da liberdade pela primeira vez em muitos meses.» A heterogénea composição étnica das forças livres francesas, sublinhada aqui por]avier Cercas no seu romance de época, Soldados de Salamina, assume uma importância central para o significado da guerra. Miralles, o «veterano de todas as guerras» e personagem ficcio­ nal de Cercas que participa na odisseia dos espanhóis republicanos no deserto do Magrebe (via Chade) até à Líbia, é um dos soldados mesti­ ços de Hitler e Franco que, com o seu anti-heroísmo, salvam a Europa do ideal fascista de pureza racial e virtude marcial. No romance, estes soldados «voluntariam-se» para combater em Murzak, tirando à sorte e perdendo. A sua própria «virtude» nasce do pragmatismo e das con­ tingências, e surge apenas por oposição à pureza mortífera e à cate­ gorização brutal contra as quais eles lutam. Neste processo, como Cercas sublinha, foram eles, e não os seus oponentes que citavam Spengler, os soldados que salvaram a civilização no último minuto. Também na metrópole francesa, a energia dos espanhóis «ver­ melhos», como lhes chamavam os nazis e os franquistas, constituía um forte incentivo aos movimentos de resistência no sul e no norte. O XIV Corpo do Exército Republicano Espanhol exercia grande influência no sul de França. Durante a guerra civil, tinha levado a cabo formas de combate de guerrilha e de comando inovadoras, a uma escala da qual só agora, através da pesquisa dos arquivos, se está a tomar consciência. No Outono de 1943, o XIV Corpo foi mais ou menos assimilado pelos Franc-tireurs etpartisans (FTP), um dos pilares centrais da Resistência Francesa. Um aliado próximo do FTP era 0 movimento urbano MOI (Main d'oeuvre immigrée), cujo cosmopoli­ tismo cultural, heterogeneidade racial e radicalismo político se trans­ formou na antítese viva da nova ordem de Hitler. O MOI foi buscar as suas origens aos veteranos das Brigadas Internacionais - que, na sua maioria, tinham fugido dos campos de prisioneiros de Gurs - e à tradição do internacionalismo de esquerda que tinha estado na base do seu envolvimento na Guerra Civil de Espanha. Além de combatentes republicanos franceses e espanhóis, o MOI incluía italianos, romenos, arménios, polacos, austríacos, VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA {153} checos e húngaros. Tal como nas Brigadas Internacionais, muitos elementos do MOI, provavelmente mais de metade, eram judeus. Com este perfil, o MOI sofreu uma pressão psicológica maior do que qualquer outra organização de resistência. Não só os riscos eram mais elevados no ambiente urbano, como a maioria dos seus elementos fazia parte da lista dos mais procurados, devido a três razões cumula­ tivas: por serem de esquerda, estrangeiros e judeus. A execução de 22 combatentes do MOI - muitos dos quais tinham lutado em Espanha -, em Fevereiro de 1944, após esta organização ter infligido sérias perdas às forças de ocupação emParis, deu origem ao famoso «cartaz vermelho» que os nazis colaram às centenas nas paredes da cidade. O 23.º membro do MOI condenado à morte era uma mulher romena, Olga Bancic, que foi executada na Alemanha alguns meses depois. A tentativa de, com este cartaz, deslegitimar a resistência ape­ lando ao chauvinismo francês documenta algo de substancialmente diferente: que a guerra contra a nova ordem era uma guerra civil den­ tro e entre os países europeus, cujo significado tomava corpo nas for­ ças multi-étnicas e cosmopolitas dos resistentes. A partir de 1943, o FTP em Paris era também dirigido por dois espanhóis veteranos, e incluía o combatente francês Henri Rol-Tanguy; cujo nome de guerra, Rol, advinha do segundo apelido que tinha adoptado em 1938, em memória de um camarada morto na Batalha do Ebro. Ofamoso «cartaz vermelho» produzido pelos nazis mostra os rostos de ro dos 22 combatentes da resis­ tência FTP-MOI capturados e executados em Paris, em Fevereiro de 1944. Muitos dosfundadores do MOI eram republicanos ou membros das Brigadas Internacionais que se tinham evadido do campo prisio­ nal de Gurs. Três dos dez elementos aquifotografados tinham combatido em Espanha ao lado da república: Celestino Afonso, Shloime Grzywacz e Francisc Wolf, cujo nome de guerra era Joseph Boczo. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Foi também a uma unidade espanhola republicana que o gene­ ral Leclerc atribuiu a honra de assumir uma posição de vanguarda na libertação de Paris. Foi em parte pelo reconhecimento do contributo espanhol para a Resistência - mais de dez mil combatentes, em 1944 - mas também porque «Paris» era uma antecâmara simbólica para a libertação de Madrid, onde, esperavam fervorosamente os exilados, os aliados iriam concluir a tarefa começada pela guerrilha. Mas, em menos de um ano, os republicanos perderiam definitivamente a bata­ lha por Madrid. Afinal, a libertação da Europa pelos aliados terminou nos Pirenéus. No Outono de 1944, os veteranos republicanos foram deixados sozinhos a atravessar a fronteira, tendo sido novamente expulsos pelas forças de Franco e forçados a regressar a França, desta vez para um exílio definitivo. Hitler foi derrotado em 1945, mas Franco estava bem encaminhado para ganhar a Segunda Guerra Mundial. O seu regime ditatorial foi deixado intacto pelas potências ocidentais, cada vez mais preocupadas com as cisões da Guerra Fria e dispostas a fechar os olhos aos assassínios em massa e à repressão em Espanha, em troca do compromisso reiterado de Franco no que se refere ao combate ao comunismo. Este fechar de olhos aconteceu apesar do importante papel desem­ penhado por Espanha no apoio ao Eixo durante praticamente toda a Segunda Guerra Mundial, contrariando o seu estatuto formal de estado não beligerante. De facto, a sua importância advinha precisa­ mente desse estatuto. Franco, que só pôs fim às relações diplomáticas com o Terceiro Reich no dia da vitória, a 8 de Maio de 1945, fornecia a Hitler matérias-primas estratégicas, alimentos e trabalho. Permitia ainda o reabastecimento e os fornecimentos dos submarinos, autori­ zava o acesso dos alemães aos radares, ao reconhecimento aéreo e às instalações de espionagem espanholas, além de lhes dar acesso aos serviços de propaganda espanhóis na América Latina. Este auxílio nas­ ceu da profunda afinidade ideológica entre o franquismo espanhol e o nazismo alemão. A afinidade tornava-se patente na forte influência que a Gestapo exercia sobre o aparelho policial espanhol e na forma como a imprensa falangista divulgava os materiais de propaganda nazis como se fossem notícias. Mas a consequência mais conhecida desta afinidade foi o envio, em 1941, da Divisão Azul falangista, que levou VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA cerca de 47 mil soldados espanhóis a combater ao lado do exército do Terceiro Reich na frente oriental. A consequência menos conhecida foi a complacência de Franco, que autorizou os nazis a anularem o estatuto de prisioneiros de guerra a milhares de prisioneiros espanhóis republi­ canos que tinham em seu poder, permitindo desta forma que fossem transferidos dos stalags para campos de concentração. Foi a recusa do regime de Franco em reconhecer a nacionalidade aos prisioneiros espanhóis que abriu a porta às deportações. De facto, as autoridades nazis anunciaram esta sua política a 25 de Setembro de 1940, durante uma visita à Alemanha do número dois de Franco, Ramón Serrano Suiier, ministro do Interior (e também dos Negócios Estrangeiros, a partir de Outubro de 1940), e que era ainda o líder da Falange, o partido fascista (e único). Na sequência desta política, os republicanos espanhóis foram detidos em diversos campos de con­ centração: Dachau, Oranienburg, Buchenwald, Flossenburg, Ravens­ brück, Auschwitz, Bergen-Belsen, Neuengamme, e sobretudo, em Mauthausen. Muitos dos prisioneiros republicanos ostentavam na farda o triângu lo azul atribuído aos que não tinham nacionalidade. Mas alguns tinham também o triângulo vermelho atribuído aos depor­ tados políticos, sendo classificados pela burocracia nazi como Nacht und Nebel: prisioneiros cujas actividades antifascistas os condenavam ao esquecimento deliberado, como parecia indicar a alusão wagne­ riana «noite e nevoeiro», a partir da qual tinham sido classificados. Cerca de dez mil republicanos espanhóis morreram em campos de concentração nazis - um número que é igual ou mesmo superior ao dos que morreram em combate na Segunda Guerra Mundial (este número é difícil de calcular com rigor, mas as estimativas - que têm em conta os combatentes com uniforme e os de guerrilha - apontam para cerca de seis a dez mil). Algu ns deles, como Diego Morales, outro veterano de várias gu erras, sobreviveram às dificuldades de Buchenwald, para morrer «estupidamente» de disenteria depois de o campo ser libertado. A história de Morales é conhecida porque ele é recordado no comovente livro de memórias A Escrita ou a Vida, do seu camarada de resistência e colega de deportação,Jorge Semprún. Filho de um diplomata republicano espanhol, Semprún sobreviveu à deportação, para se tornar num dos líderes da resistência clandestina {156} BREVE HIS TÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA a Franco na década de 50 e no início da de 60, e, muito tempo depois, ministro da Cultura de Espanha, no governo social-democrata. Na sua obra, especialmente em A Escrita ou a Vida, Semprún deixou-nos alguns dos mais notáveis textos sob re o significado dos campos de concentração na cultura e memória europeias. Semprún optou po r escrever em francês, já que o castelhano se tinha transformado, para ele, num símbolo da ocupação política e cultural do inimigo. De todos os campos de concentração, Mauthausen era o mais ter­ rível para os republicanos: 7200 foram aqui encarcerados; destes, cinco mil morreram - o que representa metade de todos os espanhóis que morreram em campos nazis. O campo de Mauthausen deixou-nos um importante acervo de documentação visual, constituído por fotografias tiradas sobretudo pelas suas autoridades. Quando se tornou evidente a inexorável derrota da Alemanha, ordenou-se a destruição dessas foto­ grafias, mas uma quantidade considerável foi posta a salvo por um grupo de prisioneiros republicanos, incluindo dois catalães, Antonio García e Francisco Boix. O jovem Boix, que em 1936, aos 16 anos, tinha fotogra­ fado em Barcelona a energia e a mobilização cheia de esperança da juven­ tude socialista e comunista à qual pertencia, conseguiu, no início de 1945, graças à rede de solidariedade existente dentro do campo, enviar para o exterior uma grande quantidade de fotografias através de um grupo de jovens espanhóis, também prisioneiros, que tinham sido contratados para trabalhar numa pedreira privada na vila de Mauthausen. As fotografias fo ram então escondidas po r uma mulhe r, Anna Pointne r, que estava ligada ao movimento socialista austríaco. As traseiras do seu jardim davam para a pedreira. Quando o campo foi libertado em Maio, Boix recuperou as fotografias no caminho para Paris. São p rovas únicas tanto em quantidade como em qualidade, e fo ram mais tarde usadas nos julgamentos de Nuremberga, onde o próprio Boix testemunhou. Das fotografias inicialmente preservadas pelos prisioneiros do campo, restam ainda hoje cerca de mil. Depois da guerra, Boix trabalhou como repórter fotográfico em França, mas, com a saúde arr uinada pela detenção no campo, foi assolado po r doenças. Morreu aos 30 anos, em 1951, depois de os seus rins deixarem de funcionar - mais uma entre muitas mortes «estúpidas», como as classifica cruamente Semprún. VI TÓRIA E DERRO T A: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA .� Francisco Boix, o adolescente que em 1937 tinha levado consigo para afrente espanhola uma máquina fotográfica,foi deportado, em 1941, de um stalagpara o campo de concentração de Mauthausen, ondefoi nomeadofotógrafo oficial ' do campo. Boixfora capturado • de brigada juntamente com uma trabalhofrancesa da qual vários amigos tinham tentado, em vão, libertá-lo. Ü VOLKSGEMEINSCHAFT DE FRANCO Aqui a centelha do espírito humano é uma vaga recordação, uma história perdida. AGUSTÍ BARTRA, Tercera elegia Neste lugar, nada vos pertence. 1942 Guarda prisional da prisão de Les Corts, Barcelona, Os campos e a «guerra sem limites» também existiam dentro de Espanha, onde o p róp rio pai de Francisco Boix morreu como preso político, em 1942. Tal como na nova ordem nazi à qual aspirava per­ tencer, também a Espanha franquista estava a ser construída como BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA uma sociedade monolítica, através da exclusão brutal de determina­ das categorias de pessoas. Os excluídos, em termos genéricos, representavam eleitorados republic anos derrotados que não podiam abandonar Espanha: eram trabalhadores urbanos, camponeses sem terra, regionalistas nac io­ nalist as, profissionais liberais e represent antes da «nova» mulher - grupos que tinham desafiado a ordem cultural, política e econó­ mica estabelecida. Para o regime de Franco, eram todos «vermelhos» e, estando fo ra do sistema, não lhes eram reconhecidos quaisquer direitos. Dezenas de milhares de pessoas fo ram execut adas - assassi­ nadas por ordem judicial depois de julgamentos militares sumários. Centenas de milhares de out ros homens, mulheres e crianças pas­ saram por aquilo a que os historiadores hoje chamam «o un iverso penal» do franquismo: refo rmatórios e prisões, campos de concen­ tração e batalhões de trabalhos forçados, nos quais as forças milita­ res dest ac adas para os org an izar se refe riam a si próprias como «o exército de ocupação». Os detidos eram alvo de esfo rços brutais e continuados para que mudassem a suas consciências e valores. Com esta finalidade, dezenas de milhares fo ram coagidos, maltratados e humilhados numa base diária. Às vezes, a pressão aplicada era ainda maior. Matilde Landa, uma proeminente activista política cuja con­ denação à morte fo i comutada para prisão perpétua em 1939, usou a experiênc ia que t inha da lei para c riar um dos primeiros ser viços legais de apoio aos prisioneiros. Em parte devido à sua fama, e tam­ bém pelo facto de ser uma mulher com educação nascida em «bom berço», e por isso considerada recuperável segundo a doutrina do regime, teve direito a repet idos esfo rços para que repudiasse as suas ideias polític as e aceitasse o baptismo e a confissão. Foi-lhe até pro­ metida a liberdade c aso fizesse uma retract ação públic a. Quando tudo isto falhou, Landa fo i encarcerada repet idamente em solitá­ rias por períodos c ada vez mais longos. Transferida de Madrid para a prisão de mulheres de Palm a de Maiorc a, aí continuou o regime de coerção, até que, a 26 de Setembro de 1942, Matilde Landa caiu para a morte de uma janela no interior da prisão, possivelmente num acto de suicídio. VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA Prisioneiros políticos republicanos num estabelecimento prisional espanhol, em 1952 (peíí.al de Ocaíía). Entre as outras vítimas da visão franquista do mundo contaram­ -se também as «crianças perdidas». Destas faziam parte os bebés ou crianças que, depois de serem retirados às mães quando estas eram detidas, viam os seus nomes alterados para serem adoptadas por famílias do regime. Milhares de crianças da classe trabalhadora foram também enviadas para instituições, após as suas famílias terem sido consideradas pelas autoridades como inapt as para as educarem. O regime de Franco falava em «protecção de menores». Todavia, a ideia de protecção estava intimamente ligada aos discursos de cast igo e purific ação. Em teoria, a pun ição era para os pais, a «redenção» ou «reabilit ação» para as c rianças. Mas, na realidade, como as crian­ ças republic anas sent iram na pele, a ideia de que deviam expiar os «pecados dos pais» estava profundamente enraizada na mente dos funcionários do estado (em especial, mas não só, na dos religiosos). Ao mesmo tempo, era repetidamente dito às crianças que também elas eram irrecuperáveis. Assim sendo, tornavam-se muitas vezes alvo de segregação por parte de colegas nas instituições estatais, além de sofrerem outras fo rmas de maus-tratos físicos e psicológicos. Um a das c rianças que passou po r um c ampo de concentração nazi e t ambém por um refo rmatório fr anquista em B arcelon a nos anos 40 esc reveu sobre as semelhanç as ent re as duas inst ituições, {I6oJ BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA considerando-as fábricas de desumanização. Outra «criança perdida» que passou pelas instituições franquistas afi rmou, em entrevista para um documentário televisivo nos anos 70, que o seu «verdadeiro eu» tinha morrido quando estivera sob detenção nos anos 40. A sua decla­ ração faz lembrar a ideia de revenant dos c ampos de concentração. Como notou Jorge Semprún, não se «regressava» dos campos, a não ser como fantasma. Também o trabalho era apresentado, na Espanha dos anos 40, como uma forma de redenção dos pecadores. Os prisioneiros republi­ canos foram usados como mão-de-obra escrava: 20 mil trabalharam na construção da basílica do Vale dos Caídos, o monumento que Franco consagrou à vitória das suas fo rças na guerra civil. Os batalhões de tra­ balho republicanos fo ram também usados no exército e em empresas privadas. A agência estatal responsável pela sua supervisão era o cha­ mado comité para a redenção das penas de prisão através do trabalho. As noções católicas de penitência e expiação através do sofrimento permitiam esta exploração económica extrema. Os alvos mais atingidos pela disciplina penal do regime fo ram, como se ria de espe rar, os t rab alh adores u rbanos - o eleitorado republicano por excelência, agora prost rado pela derrota. Os histo­ riado res podem inte rrogar-se se, caso tivessem saído vitoriosos, os republicanos te ri am conseguido manter o apoio dos trabalhadores, tendo em conta as pesadas consequências económicas resultantes da reconst r ução do p aís. Ce rto é que o regime de F ranco nunca enfrentou este problema, tendo excluído abertamente um elevado número de t rabalhadores urbanos e rurais da sua definição de comu­ nidade nacional, e conferindo uma justificação ideológica à explo­ ração económic a feit a em nome do « renascimento nacion al». Os salários abaixo do nível de subsistência assim justificados ajudaram à acumul ação acele rad a dos luc ros dos bancos, da indúst ria e dos grandes proprietários ao longo d a década de 40. A repressão tam­ bém exerceu um papel importante no crescimento económico dos anos 60, ao garantir a «estabilidade» que tornava a Espanha at ractiva aos olhos dos investido res est rangeiros. A exclusão social no regime de Franco não tinha como alvo uma classe específica. Houve várias purgas entre o funcionalismo público, {I6I} em especial entre professores das universidades e das escolas, levando a que um grande número de profissionais espanhóis de classe média se juntasse ao grupo dos excluídos. A repressão cultural foi particu­ larmente sentida no País B asco e sobretudo na Catalunha, onde os movimentos políticos populares tinham des afi ado o conceito de um estado castelhano ultracentralizado. Durante algum tempo, foi banido o uso das línguas basca e catalã. Em toda a Espanha, um quarto dos professores perdeu o direito a exercer a sua profissão. Os republi­ canos eram também fo rçados ao exílio interno e os seus filhos excluí­ dos das universidades. Foi o caso de Magdalena Maes, que pertencia a uma família influente da classe média de Zamora, mas que, por ser sobrinha de Amparo B arayón (cujo assassínio extrajudicial já foi refe­ rido no capítulo 2), não pôde prosseguir os estudos nem a carreira de jornalista que tinha escolhido. Para os civis, a guerra i ria continuar ao longo dos anos 40, at ra­ vés de dive rsas fo rmas de repressão institucionaliz ada e de discri­ minação a partir das quais o regime foi construído. Nenhuma esfera est av a imune à mobiliz ação ideológic a fr anquist a : o emp rego e a educação, como já se viu, mas também o direito, a economia, a cul­ tura e a próp ria organiz ação da vida quotidiana e do espaço público. Através de todos estes canais, o regime estava empenhado na cons­ t rução de uma divisão maniqueísta dos espanhóis entre vitoriosos e vencidos. A própria história ser viu de instrumento nesta tarefa de exclu­ são. Franco legitimou a sua violenta nova o rdem tendo como refe­ rência uma leitu ra ult raconse r v ado ra d a histó ri a - que tinha sido significativamente desafiada durante o regime republicano. O Gene­ ralísimo erigiu um mito de nação repressivo a partir de uma Espanha monolítica nascida no século xv com os Reis Católicos, na qual a hierarquia e a homogeneidade cultural, garantida pelo catolicismo, ge rav am uma grandez a impe rial. Embora o império já tivesse aca­ bado, sob o regime de Franco Espanha seri a de novo impo rt ante, como que uma fo rt alez a cont ra os «pecados» da modernidade per­ sonificados pela república: o pensamento livre e esclarecido, a acei­ tação da mudança igualitária, a tole rância em relação às diferenças culturais e à heterogeneidade. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA O regime instituiu a Causa General, uma espécie de comissão da não verdade e da não reconciliação em cujos tribunais, por toda a Espanha, se convidava à denúncia de «crimes vermelhos». Os que testemunhavam, tendo perdido entes queridos - inclusive nos assas­ sínios extrajudicias que se seguiram ao golpe militar de Julho de 1936 - retiravam provavelmente algum conforto e consolo destes proce­ dimentos. Mas a falta de abonação das provas (que incluía por vezes a fabricação primária de provas) e a ênfase colocada nas denúncias sen­ sacionalistas sublinhavam o objectivo principal destes procedimentos enquanto legitimação e estabilização do regime através da criação de uma narrativa maniqueísta da guerra civil. A mensagem principal da Causa General era a afirmação de que todas as atrocidades tinham sido cometidas pelos republicanos e sofridas pelos apoiantes de Franco. Aqueles que eram alvo das denúncias seriam objecto - caso fossem capturados - de processos judiciais, num sistema em que a própria lei servia como instrumento de repressão. Até 1963, todos os arguidos sobre os quais recaía a suspeita de serem opositores à ordem franquista responderam perante tribu­ nais militares. O sistema civil de justiça continuava a existir e exer­ cia um papel complementar na repressão. Mas, para os tribunais, eram nomeados magistrados militares, além de que a sua jurisdição se tornou ainda mais limitada após a criação de várias secções espe­ ciais cujo objectivo era predominantemente repressivo. Os exemplos mais famosos foram o Tribunal para a Erradicação da Maçonaria e do Comunismo (1940) e a Lei das Responsabilidades Políticas (1939), uma legislação onde cabia tudo e que tinha efeitos retroactivos (podia ser aplicada a actos que remontassem até Outubro de 1934), consti­ tuindo, desse modo, um exemplo de má prática legal e da dinâmica vingativa do regime de Franco. A lei autorizava o pagamento de com­ pensações financeiras a título de multas ou de expropriações dos arguidos e respectivas famílias. Os que eram condenados pelos tribu­ nais militares eram automaticamente enviados para os tribunais de Responsabilidades Políticas. Quem respondia perante estes tribunais não era julgado pelo que tinha feito, mas por actos de omissão, ou seja, por não ter apoiado activamente a revolta militar. Pelo menos 500 mil pessoas foram submetidas aos procedimentos legais destes tribunais VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA entre 1939 e 1945. Embora dezenas de milhares de processos nunca tenham chegado à fase final - devido, muitas vezes, aos atrasos buro­ cráticos e à falta de pessoal do estado -, os efeitos repressivos sobre aqueles que eram apresentados em tribunal acabavam, mesmo assim, por ser pouco mitigados. As decisões legais franquistas dispunham ainda de outros recur­ sos para destruir vidas. Um dos mais traumatizantes, embora pouco comentado, foi a anulação da legislação republicana relativa ao divórcio e ao casamento (o que também gerou muitos filhos ilegíti­ mos). Não só os divórcios eram declarados nulos retroactivamente, como aqueles que tinham casado em cerimónias civis eram obriga­ dos a casar novamente para verem o seu estatuto reconhecido. No entanto, os padres recusavam-se muitas vezes a realizar esses casa­ mentos - caso estivessem em desacordo com as ideias políticas ou com os valores de qualquer um dos consortes. Desta forma, mas também de outras, os clérigos funcionavam como agentes impor­ tantes da disciplina social na Espanha do pós-guerra, reflectindo a aliança institucional entre igreja e estado, um elemento crucial para a legitimação política do franquismo. Um dos termos deste acordo passava pela obrigação de os padres informarem as autoridades polí­ ticas sobre os paroquianos, denunciando os «vermelhos» aos tribu­ nais do estado. A denúncia era um dos mecanismos mais importantes para a detenção e o julgamento de republicanos na Espanha do pós-guerra. Mas os padres não eram os únicos denunciantes. Dezenas de milhares de espanhóis também respondiam de forma activa ao encorajamento do regime - por convicção política, preconceitos sociais, oportu­ nismo ou medo. Denunciavam vizinhos, conhecidos, e até familiares - denúncias em relação às quais não eram exigidos quaisquer nm­ damentos. Embora o sistema fosse instigado pelo regime, teve como resultado a criação de uma densa rede de cumplicidades e de colabo­ ração. Por outras palavras, o trabalho de legitimação do franquismo e a construção da sua comunidade brutal tinha lugar no próprio seio da sociedade espanhola. Acontecia de várias formas - através da humi­ lhação diária a que os derrotados eram submetidos para que apren­ dessem as lições do poder e o significado da sua derrota. Acontecia, BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA por exemplo, quando um pai «vermelho» era obrigado a ir, de chapéu na mão, pedir ajuda para um filho doente aos vizinhos bem relaciona­ dos com o regime. Estes momentos de interacção foram cruciais para reconstruir o poder e as hierarquias locais (e nacionais). No período imediatamente a seguir à gu erra, Espanha manteve uma estrita separação entre os diferentes mundos sociais. Ao lado da mais miserável pobreza e do terror generalizado, existiam redutos de facilidade, segurança e ordem. Enquanto as mulheres republicanas eram humilhadas pelos «vitoriosos» das suas aldeias - que lhes rapavam o cabelo e aplicavam óleo de castor -, transportadas com os filhos por toda a Espanha em camiões de gado, ou violadas nas estações de polícia, as mulheres dos aristocratas latifundiários do sul ou das famílias de classe média mais abastadas da Espanha conservadora celebravam a recuperação da esfera familiar e alegravam-se com o ressurgimento dos valores católi­ cos. Como afirmou, décadas depois, uma mulher próxima do partido conservador católico CEDA: Havia uma ausência de liberdade, mas, logicamente, nós, que tínhamos vidas bem estruturadas, que éramos profissionais e olhávamos para as coisas somente a partir do ponto de vista pessoal, sentíamo-nos bas­ tante à vontade e felizes. No entanto, para os que tinham sido derrotados, regressar à intimidade da vida privada era muitas vezes impossível. Além da insegurança existente no espaço público - os falangistas obrigavam os transeuntes considerados «duvidosos» a fazer a saudação fascista -, havia também a insegurança e a fragilidade do «lar». A maior parte do tempo, as casas encontravam-se vazias, uma vez que as mulheres tinham de trabalhar muitas horas, visitar familiares detidos ou pro­ curar meios de subsistência - como a comida era escassa, recorriam muitas vezes ao mercado negro, cujo funcionamento penalizava ainda mais as classes desfavorecidas das cidades. E mesmo quando era possível estar no «lar», esse espaço era cada vez mais invadido pelas agências estatais - em especial pelas secções femininas do partido único, a Falange -, que ofereciam serviços de apoio social em troca VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA do direito de exercer uma supervisão moral e uma monitorização da «penitência» dos derrotados. A brutal comunidade nacional espanhola não seria derrubada tão depressa. É certo que em 1945 o frenesi dos assassínios tinha diminuído. Depois da derrota do Eixo,Franco deve ter sentido neces­ sidade de se tornar mais cauteloso. Mas o mais importante, o investi­ mento no terror, já se tinha concretizado. Além disso, a forma como os aliados decidiram punir o regime de Franco pela sua aliança com o Eixo - excluindo Espanha das ajudas do Plano Marshall destinadas à reconstrução da Europa - teve como efeito prático um prejuízo ainda maior para os vencidos da Guerra Civil. Como notou inteligen­ temente e com uma perspectiva de longo alcance o primeiro-ministro republicano no exílio,Juan Negrín, a inclusão de Espanha no Plano Marshall poderia ter mitigado ou mesmo minado os efeitos punitivos do projecto disciplinador de Franco. Os acontecimentos posteriores vieram confirmar esta teoria. Foi a mobilidade laboral gerada nos anos 50, quando a economia espanhola foi impulsionada em conse­ quência dos acordos comerciais e de ajuda com os EUA - os quais funcionaram como uma espécie de Plano Marshall privado de Espa­ nha -, que permitiu aos eleitorados «vermelhos»/vencidos uma fuga às rígidas hierarquias e à memória rancorosa das aldeias e cidades de província, frequentemente através dos seus filhos e filhas, que ruma­ vam às cidades em crescimento para se transformarem na nova força de trabalho do sector industrial burguês. Durante estes anos, o êxodo dos pobres das zonas rurais do sul «resolveu» finalmente o problema estrutural do excesso de camponeses sem terra, que, na década de 30, tinha estado no centro dos conflitos sociais em Espanha - problema esse a que os republicanos tinham tentado responder de uma forma manifestamente mais igualitária. No final dos anos 50 e no início dos anos 60, a cidade permitia um relativo grau de anonimato e, consequentemente, alguma liber­ dade - ainda que não fosse possível fugir à exploração económica. Mas nem as cidades, nem as vilas e aldeias da Espanha profunda pertenceriam aos vencidos, pelo menos enquanto durasse o regime de Franco, que não permitia qualquer símbolo nacional ou discurso público que reflectisse as suas experiências. Dos vencidos não havia {166} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA qualquer sinal. Nenhum espaço público lhes pertencia. Enquanto os franquistas que morriam tinham direito a memoriais de guerra e a ver os nomes gravados nas igrejas - «caídos por Díos y por Espaiía» - , os mortos republicanos não podiam ser velados publicamente. Os derrotados tinham de anuir a esta negação. As mulheres escondiam dos filhos a morte violenta dos maridos e pais para os proteger física e psicologicamente. Nas aldeias de toda a Espanha, muitas pessoas guardavam secretamente listas de mortos. Havia irmãs que traçavam mentalmente a localização dos seus irmãos mortos, mas que nunca falavam disso. Em Espanha, o conhecimento silencioso das sepulturas produziu necessariamente uma forte divisão entre memória pública e privada. Essa divisão haveria de permanecer viva, mesmo após o fim do regime de Franco. Anónimo espanhol, r937/r940. 7. Os usos da história {...} sópodemos esquecer aquilo quejá soubemos. Aprimeira coisa afazer, então, é saber: PEDRO LAÍN ENTRALGO Nunca mais uma história será contada como sefosse a única. JOHN BERGER P Wila. ARA os espanhóis, a Guerra Civil continua a ser um marco polí­ tico de grande importância devido, precisamente, à utilização ideológica que dela foi feita pela ditadura de Franco. O regime engen­ drou uma versão monolítica e altamente partidarizada da guerra - referindo-se-lhe como uma «cruzada» ou uma «guerra de libertação nacional», e nunca como guerra civil. Em 1963, quando as praias espanholas se começaram a encher de turistas europeus, o regime - que ainda executava pessoas por «crimes de guerra» - celebrava os seus «Vinte e Cinco Anos de Paz». O cerimonial público e os milhões de cartazes colados nas paredes das cidades e vilas de norte a sul do país retratavam a guerra como uma luta contra as hordas de espanhóis antinacionalistas ao serviço da conspira­ ção judaica, marxista e maçónica, uma guerra pela unidade nacional e contra os separatistas, da moralidade contra a iniquidade. Mesmo em meados dos anos 60, o que era celebrado não era a «paz», mas a «vitória». Com esta atitude, o regime procurava evitar qualquer forma de aggior­ namento cultural ou social. Neste processo, a história contemporânea - e, acima de tudo, a história da Guerra Civil - via-se reduzida a um ramo da propaganda do estado: apologias e enaltecimentos, escritos por polícias do regime, oficiais do exército e funcionários públicos, já que só estes tinham acesso aos arquivos e aos meios para publicar. É precisamente por este facto que as obras históricas anglo­ -americanas sobre a Guerra Civil adquirem uma grande influência {170} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA na década de 60 e no início da de 70. Tais obras abrangiam estudos diplomáticos, políticos e económicos e centravam-se na rápida inter­ nacionalização da guerra e nas suas implicações na política das gran­ des potências dos anos 30. Analítica e intelectualmente rigorosos, esses trabalhos funcionaram como um antídoto contra a produção tendenciosa do regime de Franco, embora estivessem, por definição, afastados da base empírica que os arquivos espanhóis constituíam. No final dos anos 70 e no início dos anos 80, novos trabalhos começaram a surgir - incluindo de espanhóis - à medida que se verificava a lenta transição do regime ditatorial de Franco para um sis­ tema democrático liberal. Essas obras analisavam o desenvolvimento político interno das duas partes beligerantes e a sua relação com a polarização ocorrida na Europa dos anos 30. Entre elas encontravam­ -se as primeiras análises sobre o franquismo e os fascismos europeus, bem como pesquisas sobre os combatentes estrangeiros que lutaram pela república - este último é um trabalho ainda em curso e que tem recolhido novos elementos desde a abertura dos arquivos de Moscovo. Tal como os trabalhos antecedentes, também estas obras diferiam dos escritos franquistas ideologicamente acríticos. Mesmo assim, a ideologia ainda era apresentada de forma por vezes excessivamente esquemática e bidimensional. A abertura política em Espanha em finais de 70 e inícios de 80 conduziu às primeiras tentativas de produção de escritos com base nos arquivos históricos da Guerra Civil - a maioria destes trabalhos foi desenvolvida por uma nova geração de espanhóis. Porém, ironica­ mente, essas tentativas foram bastante restringidas pela própria polí­ tica do regime de transição. O regresso à democracia tinha sido feito com a concordância das elites franquistas, em troca de uma amnistia política de facto, o chamado «pacto de silêncio». Ninguém seria cha­ mado a prestar contas, nem haveria qualquer equivalente à comissão de verdade e reconciliação. Embora esta amnistia não abrangesse especificamente a forma como a história deveria ser escrita, na prática, teve implicações. O mesmo tipo de receio social face à possibilidade de um recrudescimento da guerra civil, repetidamente recordado e manipulado pela ditadura e ainda patente no poder de fogo do exér­ cito e dos civis de extrema-direita nos anos 70 e no início da década de OS USOS DA HISTÓRIA 80, levava os espanhóis a manterem a autocensura no que se refere ao que podiam ou não dizer em público acerca da guerra. Mas o pacto de silêncio resultava também da cumplicidade dos «espanhóis comuns» durante a repressão, como vimos no capítulo 6. Reinava um sentimento de culpa entre os herdeiros dos denunciantes ou assassinos, a que se juntava o receio das famílias que tinham sido vítimas de repressão. Sentia-se um receio generalizado em relação às consequências que poderiam advir da reabertura das velhas feridas que o regime de Franco evitara sarar, década após década. A desvan­ tagem deste modus vivendi da transição democrática, por mais neces­ sário que fosse noutros domínios, era a de manter em silêncio aqueles que durante 40 anos a isso tinham sido obrigados, privando-os do reconhecimento público do seu passado e das suas memórias. No entanto, uma das características mais notáveis do final dos anos 80 em Espanha foi a proliferação de obras de historiografia empí­ rica muito detalhadas, que reconstituíam minuto a minuto a repres­ são exercida por Franco em cada uma das províncias espanholas. No início do novo milénio, cerca de 60 por cento das províncias tinha sido investigada, pelo menos até certo ponto. Neste caso, os histo­ riadores viram-se muitas vezes obrigados a desenterrar dos arquivos locais material há muito esquecido para recriar episódios em relação aos quais as fontes do estado central já não possuíam elementos. Ape­ sar da proclamada virtude moral do regime de Franco, o facto é que, no início dos anos 70, ele tratou de localizar e destruir boa parte da documentação conservada em arquivos policiais, judiciais e militares que provava a existência de repressão. (Também significativa neste aspecto, embora esse segmento de informação não possa ser colma­ tado através de outras fontes locais, foi a delapidação dos arquivos do Ministério do Negócios Estrangeiros espanhol relativos ao período da aliança entre Franco e Hitler, na década de 40.) Esta tarefa contínua dos historiadores faz parte do necessário trabalho de restituição da memória colectiva, no sentido de contar os vários episódios complexos que foram silenciados pela «verdade» monolítica apresentada pela ditadura, exemplificada na Causa Gene­ ral, de que já falámos no capítulo 6. Mais importante do que isso, o trabalho dos historiadores significa o reconhecimento público de {172} BREVE HISTÓRIA DA GUE R RA CIVIL DE ESPANHA todas as histórias que não podiam ser tornadas públicas devido às circunstâncias especiais e precárias da transição democrática. Esta nova história da repressão, descrita com nomes reais e com a conta­ bilidade dos mortos feita a partir dos registos municipais e das listas dos cemitérios, correspondeu, na realidade, a um memorial de guerra para aqueles que nunca o tinham tido e para todos os que não tinham alcançado a liberdade em 1945. Se no regime de Franco a história tinha sido usada como instrumento de repressão, agora o trabalho de histo­ riadores independentes - tanto amadores como profissionais - era uma parte fundamental na reparação dos direitos perdidos e, como tal, um acto de democracia e de cidadania constitucional. MEMÓRIAS ANTIGAS, NOVAS HISTÓRIAS Felizmente para ti, meu filho, há muito tempo que deixámos de ter medo em Espanha. PEDRO ALMODÓVAR, Em Carne Viva, 1997 Para que tudo pudesse ser recordado tal como tinha acontecido, houve que ultrapassar medos. Desde o começo do novo milénio, tem-se assistido a uma explosão da memória republicana com o aparecimento de grupos de pressão civis, sendo um dos mais conhecidos a Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH). Esta associação fez petições para a exumação dos restos mortais dos que foram assassi­ nados extrajudicialmente pelas forças do regime e enterrados em valas comuns, com o objectivo de identificar os corpos e de permitir que os familiares e amigos os enterrassem devidamente. Estima-se que os desa­ parecidos rondem um total de 30 mil, mas apenas uma pequena parte - na ordem das centenas e não dos milhares - será provavelmente alvo de exumação. De entre os que já o foram, contam-se Pilar Espinosa, de Candeleda, em Ávila, cujo assassínio extrajudicial foi descrito no capítulo 2. Desde 1936 que os seus restos mortais estavam enterrados juntamente com outras duas mulheres mortas ao mesmo tempo, numa sepultura aparentemente anónima mas que tinha sido discretamente assinalada com uma pequena e simples pedra por habitantes da aldeia. OS USOS DA HISTÓRIA {173} A própria ARMH cresceu a partir da pesquisa que um dos mem­ bros fundadores, Emílio Silva, realizou sobre o seu próprio avô, morto em Outubro de 1936 por vigilantes do regime, em Priaranza dei Bierzo, León, no noroeste de Espanha. A avó de Silva, embora tivesse plena consciência do destino do marido, nunca disse aos seus seis filhos o que tinha acontecido. No caso de Silva, como em muitos outros, seria a geração seguinte a colocar as questões - estimulada pela sensação quase inconsciente de vacuidade mental, angústia e falta de capacidade de ligação aos mais velhos. O «olhar perdido dos netos», como lhe chamou um destacado historiador espanhol, foi determinante para que se desse mais atenção ao passado de Espanha. A singela sepultura em Priaranza que continha os restos mortais do avô de Silva e de outras 13 vítimas tornou-se uma bandeira na luta da ARMH, e o caso foi levado ao alto comissário das Nações Unidas para os Direitos do Homem. Como resultado, a sepultura foi aberta em Outubro de 2000 e, em Maio de 2003, o avô de Emilio Silva (que também se chamava Emílio Silva) foi a primeira vítima da Guerra Civil de Espanha a ter a sua identidade confirmada através de um teste de ADN. Para a família Silva, o ciclo violentamente aberto em Outubro de 1936 ficou finalmente encerrado a 18 de Outubro de 2003, quando Emílio Silva e os «13 de Priaranza» foram transladados e enterrados na sua terra, em cemitérios locais e com direito a cerimónias privadas. Existe uma importante carga simbólica no regresso dos mortos à terra de ori­ gem, já que das memórias que os mais velhos guardavam dos efeitos devastadores do golpe militar de Julho de 1936 fazia parte justamente a memória da aniquilação do «lar» enquanto espaço de segurança. Um livro em particular, que dá conta desta aniquilação, catapultou para a esfera pública essas memórias sobre a repressão física e psico­ lógica. Esse livro chama-se A Death in Zamora (Uma Morte em Zamora) e foi escrito pelo filho de Amparo Barayón (cuja história é contada no capítulo 2), que foi criado nos Estados Unidos e nada soube da mãe até ter regressado a Espanha, no final dos anos 80, para então desco­ brir a verdade sobre a sua detenção e assassínio extrajudicial. O livro narra de forma detalhada uma extraordinária odisseia pelo tempo, pelo espaço e pela memória, além de mostrar de que forma a dinâmica BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA que emergiu da sociedade civil possibilitou a celebração verificada em Espanha nos primeiros anos do século xxi. Além da publicação de trabalhos históricos sobre a repressão, tem­ -se assistido também a uma grande produção jornalística (incluindo filmes e documentários) sobre as prisões, os batalhões de trabalho e a guerrilha antifranquista de 1940, que, como já vimos, se encarava a si própria não como entidade isolada mas como uma componente da guerra europeia de resistência contra a nova ordem nazi. Mais recen­ temente, em 2003, um documentário sobre o comovente tema das «crianças perdidas» que foram retiradas às suas famílias republicanas (Los ninosperdidos deifranquismo) alcançou grandes audiências em todo o país. Esta proliferação de memórias republicanas é uma maneira de libertar informação - antes que as gerações que passaram por tudo aquilo desapareçam de vez. Para as vítimas, hoje idosas, que foram submetidas a trabalhos forçados ou a prisão prolongada por motivos políticos, o objectivo é que seja dado conhecimento público do que lhes foi feito antes que morram. Nesse sentido, a comparação que se deve fazer é com a memória do Holocausto no seu sentido mais amplo. Num caso como no outro, um dos principais motores é o fim da memória biológica e o tremendo sentimento de tristeza, de perda e de perigo que isso gera. Também para as gerações subsequentes, estes motivos são, em parte, válidos. Ao contrário da geração dos pais, a dos netos, que foi a que colocou as questões de forma predominante, sentiu que o podia fazer, uma vez que se sentia segura - visto estar suficientemente afas­ tada do trauma directo que atingiu as suas famílias e do contexto social e político que lhe tinha dado origem. Esta é uma primeira explicação para o «olhar perdido dos netos». Mas é apenas parte da explicação, porque não justifica que a recuperação destes acontecimentos doloro­ sos tenha tido tanta importância para pessoas para quem tais eventos são, essencialmente, uma memória posterior, do pós-guerra - já que não viveram directamente estes momentos nem as suas consequên­ cias imediatas. Provavelmente, esta é uma questão que sai do âmbito deste livro, uma vez que coloca a Espanha num contexto europeu mais alargado de imponderáveis relacionados com o aumento exponencial de memórias e celebrações nos nossos dias. Mas, em Espanha como OS USOS DA HISTÓRIA noutros sítios, esta quase obsessão tem certamente mais a ver com uma tomada de consciência subliminar de tudo o que se perdeu para sempre - através da «purificação», do genocídio e da diáspora - nas guerras que atingiram a Europa em meados do século xx. A «memó­ ria» pode, então, servir também como forma de consolo, numa altura em que já não acreditamos em determinado tipo de progressos mas em que ainda estamos firmemente presos a uma concepção linear do tempo. Encarado de um ponto de vista mais positivo, o trabalho de recuperação dos fragmentos da história é uma forma de solidariedade. «Tantos amigos que não cheguei a conhecer desapareceram em 1945, no ano em que nasci», escreveu Patrick Modiano na sua busca por um dos desaparecidos, que se transformaria num memorial a todos os que desapareceram. Apesar do seu significado civil e cultural, as comemorações em Espanha, como noutros locais da Europa, também têm algo a ver com a política dos dias de hoje. E em Espanha a complexa dinâmica centro­ -periferia faz-se sentir na política de comemorações, como em tudo o resto. Enquanto o conservador e centralista Partido Popular (PP), no governo de Março de 1996 até Março de 2004, se mostrou relutante em apoiar qualquer iniciativa - civil ou política - que pudesse pôr em causa a legitimidade do regime de Franco, já os políticos catalães perceberam o potencial que residia no apoio à celebração da república. Em particular, isto permitiu que os nacionalistas catalães questionas­ sem a autenticidade da conversão do PP a uma forma esclarecida de «patriotismo constitucional». De facto, a posição do PP no que diz respeito à actual «guerra de arquivos» poderia sugerir a sua adesão a uma concepção de patriotismo à moda antiga, tendo por base uma concepção mais agressiva e chauvinista do centralismo castelhano. Esta «guerra de arquivos» está a ser travada em relação a material que começou por fazer parte dos despojos de guerra de Franco e que agora integra o Arquivo Nacional da Guerra Civil em Salamanca (cidade que foi uma das capitais de Franco durante a guerra e que perma­ nece como centro da Espanha católica, centralista e conservadora). Enquanto esteve no poder, o PP opôs-se a qualquer tentativa do governo regional catalão para recuperar dos arquivos a documenta­ ção original catalã, que tinha sido levada pelos exércitos franquistas BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA durante a guerra e guardada em Salamanca, de forma a poder ser utili­ zada para incriminar e condenar os opositores republicanos. A igreja católica espanhola também ainda não resolveu a questão do seu envolvimento na repressão franquista. Em 1971, proferiu uma declaração pública que, embora de forma cautelosa, pedia desculpa pelo papel desempenhado pela igreja na Guerra Civil e nos aconteci­ mentos posteriores. Inferia-se que representava também um pedido de desculpas no que diz respeito ao contributo crucial que a igreja tinha dado à legitimação da ditadura aos olhos dos poderes políticos ocidentais - ditadura essa que, durante mais de três décadas, violara diariamente o respeito pelos direitos humanos mais básicos dos espa­ nhóis. Apesar de tudo isto, ainda hoje, em pleno século xx1, histo­ riadores independentes que tentam consultar fontes da igreja sobre a década de 40 vêem-se frequentemente impedidos de o fazer. São, de facto, os arquivos católicos eclesiásticos e laicos, mais do que os mili­ tares, que constituem a última barreira à documentação da Guerra Civil e dos anos de paz artificial que se lhe seguiram. A Guerra Civil de Espanha é ainda um passado rodeado de controvérsia, como se pode verificar através de vários sintomas con­ temporâneos, embora nenhum tão evidente como a ausência de um grande museu dedicado à guerra - especialmente em Madrid. É mais provável encontrar obras sobre a Guerra Civil fora da capital - noto­ riamente em Guernica, no País Basco, que possui aquilo que mais se aproxima a uma exposição contemporânea sobre a guerra - ou, numa escala mais reduzida, em exposições locais e temporárias. Em 2003, começaram a surgir algumas excepções, sob a forma de peque­ nas exposições, normalmente na vizinhança de locais onde ocorre­ ram batalhas importantes, como por exemplo na aldeia de Morata de Tajufia (Madrid), onde se comemorou a Batalha de]arama. Mas é sin­ tomático que estes exemplos partam da iniciativa privada. O mesmo se aplica à Catalunha, onde, apesar de tudo, estas iniciativas acabaram por granjear o apoio do governo regional. O regresso ao franquismo surgiu entretanto sob a forma de um popular livro de história, Los Mitos de la Guerra Civil [ Os Mitos da Guerra Civi[J, de Pio Moa, publicado em 2003. A sua propaganda ana­ crónica do franquismo é totalmente desacreditada face toda a inves- OS USOS DA HISTÓRIA [177} tigação histórica espanhola e internacional realizada nos últimos 25 anos. Mas, ao contrário da maioria das publicações espanholas que derivaram dessa pesquisa, Mitos está escrito de forma clara e acessível, e tem como objectivo chegar ao público em geral. O livro obteve um sucesso comercial extraordinário em Espanha, particularmente entre o público jovem, mais vulnerável, uma vez que a abordagem dos anos 30 e 40 nos programas escolares de história é ainda inconstante ou inexistente. A pobreza do trabalho de Moa, a sua incapacidade para transmitir a complexidade e as diversas vertentes da verdade histó­ rica procurada por muitos leitores, tornam esta obra deslocada no tempo, numa altura em que a recuperação da memória republicana assinala a maturidade da cultura democrática espanhola. Mas talvez o fenómeno Moa faça parte deste processo - apesar da (e não por causa da) falta de substância do seu trabalho. A polémica em torno de Moa também ocorre no seio da própria sociedade civil - a mesma entidade que a cruzada franquista procu­ rou aniquilar. Moa conta com apoios poderosos nos meios de comu­ nicação social espanhóis, mas a sua desconstrução do franquismo já não conta com o apoio que advém do poder de um estado repressivo. A sociedade civil espanhola tornou-se mais forte e complexa à medida que as memórias republicanas e as valas comuns foram discutidas. Além disso, o livro de Moa viu-se ultrapassado em vendas pela obra de ]avier Cercas, Soldados de Salamina, um romance sobre a Guerra Civil que, de forma subtil e humana, ridiculariza os valores vazios dos «respeitáveis soldados» que deram início ao golpe militar. E, afinal de contas, até mesmo a falta de fundos que tem impedido o progresso dos trabalhos da Associação para a Recuperação da Memória Histó­ rica pode ser um preço que vale a pena pagar para garantir a sua inde­ pendência. Porque quando a tarefa de promover a memória pública cabe aos governos e estados - mesmo que sejam democracias libe­ rais - altera-se o significado e o valor dessa memória. O processo de recuperação da memória através da sociedade civil é mais reparador e mais útil para a construção de uma cultura democrática. Como refere o antropologista Michael Taussig, esse processo «permite que os poderes morais e mágicos dos mortos que não tiveram descanso fluam para a esfera pública». BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Então que papel desempenham as actuais agendas de comemora­ ções e as políticas contemporâneas, e a complexa mistura de ambas, para os historiadores que investigam a longa Guerra Civil de Espanha? Vimos como, desde o início dos anos 90, o trabalho de uma nova gera­ ção de historiadores em Espanha tem vindo a enfatizar a guerra como um conflito que envolveu a sociedade no seu todo. Começou por dei­ tar por terra os mitos do regime franquista e foi bem-sucedido, apesar do trabalho de Moa. E estão agora a aparecer novas obras, construídas com base numa nova metodologia histórico-sociológica desenvolvida por profissionais europeus. Há ainda alguns tópicos importantes que têm de ser verificados - por exemplo o papel do serviço mili­ tar obrigatório e do exército na construção da nação, em especial na república de Espanha. Assim como vários historiadores europeus se têm voltado para o estudo da íntima relação entre a mobilização polí­ tica das massas, as mudanças culturais e a identidade/subjectividade individual nos anos 30, também em Espanha precisamos de olhar com mais atenção para a revolução geracional que estava em curso, não só nas ruas mas também na cabeça das pessoas, e que atingiu o auge durante a Guerra Civil. Quaisquer que sejam os temas específicos, o que há de comum em todo este trabalho é o facto de ele poder ajudar­ -nos a compreender melhor a complexidade e as contradições das mudanças sociais e culturais em curso durante o período de guerra em Espanha. Para quem não é espanhol, a ideia do esforço de guerra repu­ blicano como «última grande causa» exerce ainda uma grande atrac­ ção. É este o legado que perdura da esquerda europeia e americana. Afirma-se com frequência que a derrota da república em Espanha foi um momento clarificador para os progressistas. Depois da derrota em Espanha, não poderia voltar a existir outra «narrativa grandiosa», nem a crença na história enquanto motor para a mudança humanís­ tica esclarecida. Por isso, é paradoxal que a «última grande causa» tenha parecido, ela própria, imune durante tanto tempo às implica­ ções desta concepção. Nos anos 30 esta ideia fazia-se sentir no com­ promisso assumido de forma emocionalmente intensa por muitos europeus, e não só, com a causa política da república democrática em guerra, tendo, assim, servido como importante grito mobilizador OS USOS DA HISTÓRIA de auxílio prático. Em ambos os sentidos, temos de compreender «a última grande causa» como um fenómeno histórico de pleno direito, embora também tenhamos de nos precaver para não o utilizar como esquema interpretativo para escrever a história da guerra. De facto, de certo modo, esta«última grande causa» tornou-se, tal como outras fórmulas simplificadas que têm perdurado ao longo dos tempos (como«revolução versus guerra), numa espécie de consolo que ajuda a mitigar o peso da derrota. Simultaneamente, também realça a visão binária do mundo que fazia parte da cultura da velha esquerda, mas também da cultura dos seus opositores - tanto da de Franco, em Espanha, como da de Joseph McCarthy, nos Estados Unidos. Bill Aalto, o rapaz americano (de origem finlandesa) do Bronx que integrou as Brigadas Internacionais e que lutou na guerrilha republicana, não era apenas um herói da classe trabalhadora, mas era também homos­ sexual. Foi por esta razão que, ao contrário do que aconteceu com lrv Goff, que esteve com ele na guerrilha, Aalto foi impedido (pelos pró­ prios camaradas) de se juntar aos Lincolns para lutar na força especial americana que combatia ao lado da resistência na Europa ocupada. A experiência de Aalto depois da Guerra Civil de Espanha e as ques­ tões que ele colocou relativamente às políticas dos funcionários e às esferas pública e privada tal como eram entendidas nos anos 40 e 50, indicavam o surgimento de uma nova esquerda que constituía, ela própria, uma crítica ao carácter monolítico da velha esquerda e à sua recusa em ter em conta as implicações da subjectividade. O fascínio da «última grande causa» residia, acima de tudo, na sua simplicidade emocional, embora também perpetuasse a noção errada de equiparação da simplicidade à virtude moral. O facto de a segunda república espanhola ter sido um projecto político e cultural eticamente superior àquele representado pelo franquismo nada tem a ver com a «simplicidade» das suas causas, e muito menos com a sua perfeição. Os voluntários internacionais que combateram para salvar a democracia republicana espanhola eram homens e mulheres do seu tempo e, no que respeita às condições da época, os anos 30 e início dos 40 foram mais difíceis, dolorosos e«imperfeitos» do que a maioria das épocas. Muitos combatentes envolveram-se em mais do que uma {I8o} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA guerra, como aconteceu com os espanhóis republicanos - que nem sequer se podiam consolar com as certezas fáceis do patriotismo, nem mesmo com a segurança mínima de uma terra-mãe. Até nisso foram um exemplo típico do seu tempo. Porque a guerra civil europeia de meados do século xx assistiu à implosão de todos os países e nações. O período de 1939-45 foi o final sangrento de um processo de violentos conflitos internos que durou anos - tanto em termos sociais e culturais como políticos. Tratou-se de uma guerra travada contra a brutal categorização que estava no âmago da nova ordem nazi, em relação à qual havia resistentes, espectadores e cola­ boradores em praticamente todos os países do continente europeu. O facto de a memória popular não «recordar» a guerra desta forma durante as décadas subsequentes (o que, em muitos casos, ainda acon­ tece) mostra bem a forma eficaz como o passado foi reconfigurado em função das necessidades políticas do pós-guerra - facto reforçado, sem dúvida, pelo enorme desejo que as populações atingidas pela guerra tinham de o esquecer. Mas, se olharmos para a história e não para a memória que temos desta época, poderemos perceber até que ponto é irrazoável e injusta a invocação do argumento espúrio de que a «Espanha» não entrou como «nação» beligerante na Segunda Guerra Mundial para impedir que os veteranos republicanos espanhóis que participaram no desembarque do Dia D participem nas comemora­ ções - como aconteceu em 2004, a última em que existiu uma liga­ ção viva com os eventos celebrados. O passado é um país distante. Mas fazer história é, por definição, um diálogo sem fim entre o presente e o passado. Muito do que estava em causa em Espanha faz parte dos dilemas dos dias de hoje e tem no seu âmago questões raciais, religiosas, de género e outras formas de guerra de culturas que nos desafiam a não usar violência política, ou qualquer outra, para as resolver. Em resumo, como se exorta no início deste livro, não devemos mitificar os nossos medos nem usá-los como arma contra aqueles que são diferentes. A Guerra Civil de Espanha e todas as guerras civis que ocorreram na Europa em meados do século xx foram, em grande parte, configura­ das a partir desta mitologia do medo e a partir do ódio pela diferença. O grande desafio do século xx1 é, então, não fazer o mesmo. Esta é OS USOS DA HISTÓRIA uma exortação com especial relevo para a própria Espanha que, pela primeira vez na sua história, se transformou num país de emigração. Mas não é menos apropriada para o resto dos europeus. Porque os campos de concentração ainda existem entre nós - e, infelizmente, não apenas enquanto memória histórica. O poeta húngaro Miklós Radnóti evocou a república de Espanha e os amigos que nela tinham morrido em combate como símbolos daquilo que fazia com que a luta valesse a pena. Radnóti estava detido num campo de trabalho contro­ lado pelos alemães, perto de Bor, na Sérvia, e acabou por ser morto por guardas húngaros durante uma marcha forçada de prisioneiros, na sequência da retirada do exército alemão. Em Julho de 1944, este poeta escreveu: Entre rumores falsos e vermes, vivemos aqui com franceses, polacos, Italianos barulhentos, sérvios heréticos, judeus nostálgicos, nas montanhas. Este corpo febril, desmembrado mas ainda com vida, espera Por boas notícias, pelas palavras doces das mulheres, por uma vida livre e humana{ ...} A Guerra Civil de Espanha, enquanto gu erra de culturas, per­ manece como uma parábola dos nossos dias (tanto quanto o foi para Radnóti), enquanto procuramos a tal «vida de liberdade e de humani­ dade» que nos escapa. A parábola permanece, ainda que a nossa falta de humanidade para com os outros assuma configurações diferentes em cada época. ANEXOS Lista iconográfica Todos os cartazes e fotografias não mencionados abaixo: Ministério da Cultura, Archivo General de la Guerra Civil Espafiola, Espanha {40} A divisão de Espanha a 22 de Julho de 1936 © Cambridge University Press {43} Soldados rebeldes entram em cidade do sul Archivo Serrano, Hemeroteca Municipal de Sevilla, Espanha {48} Amparo Barayón Colecção privada, cortesia de Ramón Sender Barayón {66} Oliver Law Colecção privada, cortesia do falecido Harry Fisher {?2} Iconografia em montra de loja Colecção Kati Horna, Ministério da Cultura, Archivo General de Ia Guerra Civil Espaiíola, Espanha {74} Mobilização de jovens republicanos Colecção privada, cortesia deAntonina Rodrigo {76} Miliciana Instituto de Espafia, Londres [77} Trabalhadora republicana durante a guerra Ministério da Cultura,Archivo General de laAdministración, Espanha [77} Aula de alfabetização Biblioteca Nacional, Madrid {80} Comboio de propaganda Fotografia: Antoni Campaiíá, reproduzida por cortesia da família Campaiíá [80} Poema mural Cortesia de Cary Nelson [rn2} Mulheres em zona rebelde, trabalho de guerra Biblioteca Nacional, Madrid {188} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA {102} Mulheres em zona rebelde saudando a bandeira Ministério da Cultura, Archivo General de la Administración, Espanha {124} A divisão do território espanhol emJulho de 1938 © Cambridge University Press {135} Menino vendedor de rua na Espanha republicana Colecção Kati Horna, Ministério da Cultura, Archivo General de la Guerra Civil Espafi.ola,Espanha {146} Marcha vitoriosa de Franco Actualidad Espafi.ola {147} Campo de refugiados republicanos numa praia francesa Fotografia: Robert Capa,© Magnum Photos {153} Cartaz vermelho Bibliotheque de Documentation Internationale Contemporaine (BDI C) et Musée d'Histoire Contemporaine, Paris {157} Francisco Boix Cortesia de Benito Bermejo {159} Presos políticos Agenda EFE, Madrid Oeditoreoautorpedemdesculpaporquaisquererrosouomissõesnalistaacima. Se contactados, terão todo o prazer em rectificá-la na primeira oportunidade. Notas 1. As ORIGENS DA GUERRA C1v1L DE ESPANHA A epígrafe «Vivam aqueles que nos trazem a supremacia da lei» foi a saudação com que os partidários republicanos foram recebidos numa aldeia, pouco antes da declaração da segunda república. De acordo com o termos do Tratado de Cartagena (!907), as grandes potên­ cias tinham atribuído a Espanha - que já controlava os enclaves norte-africa­ nos de Ceuta e Melilla - a tarefa de policiar o norte de Marrocos. O texto da declaração difundida por Franco a partir do território espa­ nhol em Marrocos aquando da insurreição militar pode ser consultado em F. Díaz-Plaja, La gu,erra de Espafia en susdocumentos (Barcelona: Ediciones G.P., 1969), PP· n-3. 2. REBELIÃO, REVOLUÇÃO E REPRESSÃO Entrevista do jornalista americanoJay Allen a Franco em The News Chronicle, 29 de Julho, 1 de Agosto de 1936. A citação de um dos jornalistas espanhóis que acompanhavam o exército sulista de Franco encontra-se em M. Sanchéz del Arco, E! surde Espafia en la reconquistade Madrid (Sevilha: Editorial Sevillana, 1937), p. 205- 3. MOBILIZAR E SOBREVIVER: A REPÚBLICA EM GUERRA A hostilidade das elites britânicas em relação à república de Espanha não diminuiu ao longo da Guerra Civil. Em 1938, um correspondente do Minis­ tério dos Negócios Estrangeiros britânico descreveu o ministro daJustiça B REVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ES PANHA republicano, o parlamentar socialista e líder mineiroRamón González Pena, como um «latoeiro [das Astúrias}» C:W 13853/29/41 F.O. General Correspon­ dence: Spain, PublicRecords Office). 5. A REPÚBLICA SITIADA O estudo mais recente sobre a forma como a República conseguiu armar­ -se foi realizado por Gerald Howson e intitula-se Arms for Spain (Londres: John Murray, 1995). Ainda há demasiadas divergências entre os académicos para que se possa falar em consensos relativamente às razões pelas quais a república perdeu a guerra. Porém, face às evidências empíricas, poucos especialistas defenderão que a república esteve em pé de igualdade com os franquistas no que se refere à quantidade ou à qualidade da ajuda militar recebida. NO TAS 7. Os usos DA HISTÓRIA Relativamente à memória, à perda e ao nosso encontro com a conturbada história europeia de meados do século xx, consultar WG. Sebald, Os Emi­ grantes (Lisboa: Teorema, 2005). Sobre a recuperação da memória histórica enquanto acto de solidariedade para com os mortos, ver Patrick Modiano, Dora Bruder(Porto: Asa,1998)(edição francesa original, Paris: Editions Galli­ mard, 1997). A citação provém da edição norte-americana, p. 81. A história de Bill Aalto é contada em «Fighting the war, breaking the mould: Bil1Aalto(1915-1958)», inR. Baxell, H. Graham e P. Preston (coord.),More than One Kind ofFight: New Histories of the International Brigades in Spain (Londres: Routledge/Caiíada Blanch, 2006). Há um resumo da vida de Aalto em P. Car­ roll, T he Odyssey of the Abraham Lincoln Brigade. Americans in the Spanish Civil Wfzr(Stanford, Ca.: Stanford University Press, 1994), pp. 118, 167f., 254-8. Para estimativas actualizadas relativamente à ajuda soviética, ver G. Howson, Armsfor Spain,Apêndice 3, pp. 278-303, e, sobretudo, a lista de material, nas PP· 302-3. G. Agamben, «T he Camp as a Biopolitical Paradigm of the Modem», Homo Sacer. Sovereign Power and Bare Life (Stanford, Ca.: Stanford University Press, 1998). Ver também A. Weiner, Landscaping the Human Garden (Stanford, Ca.: Stanford University Press, 2003). 6. VITÓRIA E DERROTA: AS GUERRAS DEPOIS DA GUERRA MiklósRadnóti, «Sétima Écloga, Lager Heideman, nas montanhas acima de Zagubica»,Julho de 1944. A citação que descreve o ataque a Murzak foi retirada de]. Cercas, Soldados de Salamina (Barcelona: Tusquets Editores, 2001), p. 158. Tradução portugue­ sa: Soldados de Salamina (Porto: Asa, 2002). A criança que viveu a experiência quer de um campo de concentração nazi quer de um reformatório franquista foi Michel de Castillo, Tanguy, Histoire d'un enfant d'aujourd'hui (Paris: Gallimard, 1957). Tradução portuguesa: Tan­ guy (Lisboa: Presença, 1961). A apoiante da CEDA que comentou a ausência de liberdade na Espanha de Franco foi Petra Román de Bondia, em entrevista dada no último programa da série A Guerra Civil Espanhola, produzida pela Granada Television no iní­ cio dos anos 80. Outras leituras ALPERT, M., A New International History of the Spanish Civil Wár, 2.ª ed., Basingstoke, Macmillan Palgrave, 2003 BALFOUR, S., Abrazo Mortal, De la Guerra Colonial a la Guerra Civil em Espafia y Marruecos (1909-1939), Barcelona, Península, 2002 BAREA, A., The Forging of a Rebel (trilogia autobiográfica), Londres, Fontana, 1984 BAXELL, R., British Volunteers in the Spanish Civil Wár. The British Battalion in the International Brigades, 1936-1939, Londres, Routledge/Canada Blanch, 2004 BAXELL, R., GRAHAM, H. e PRESTON, P. (coord.), More than One Kind of Fight: New Histories of the International Brigades in Spain, Londres, Routledge/Canada Blanch, 2006 BEEVOR, ANTONY, La Guerra Civil Espafíola, Barcelona, Crítica, 2005 BENASSAR, BARTOLOME, El Infierno Fuimos Nosotros: La Guerra Civil Espafíola (1936-1942), Madrid, Taurus, 2005 BLINKHORN, M., Democracy and Civil Wár in Spain 1931-1939, 2: ed., Londres, Routledge, 1992 BoLLOTEN, BuRNETT, La Guerra Civil Espafiola: Revolución y Contrarrevolución, Madrid, Alianza, 1989 BoRKENAU, F., The Spanish Cockpit, Londres, Pluto Press, 1986 BRENAN, G., The Spanish Labyrinth, Cambridge, Cambridge University Press, 1990 CARR, R., The Spanish Tragedy, Londres, Weidenfeld and Nicolson, 1986 CARR, R., Espafía 1808-1975, Barcelona, Ariel, 1998 CARROLL, P.N., The Odyssey of the Abraham Lincoln Brigade, Stanford, Stanford University Press, 1994 CASANOVA, ]., «Civil Wars, Revolutions and Counterrevolutions in Finland, Spain and Greece (1918-1949), a Comparative Analysis», International Journal ofPolitics, Culture and Society, vol. 13, n.º 3 (2000) CASANOVA, ]., Anarchism, the Republic and Civil Wár in Spain 1931-1939, Londres, Routledge/Canada Blanch Studies, 2005 BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA CERVERA, ]AVIER, Madrid en Guerra: La Cuidad Clandestina, r936-r939, Madrid, Alianza, 2006 CoLLUM, D.D. (coord.), AfricanAmericans in the Spanish Civil Wor: This ain't Ethiopia but it'II do, Nova Iorque, G. K. Hall, 1992 CRuz, RAFAEL, En el Nombre dei Pueblo. Republica, Rebelión y Guerra en la Espaiía de r936, Madrid, Siglo XXI, 2006 DEÁK, lsTvÁN, GRoss, JAN T. e JuDT, ToNY (coord.), The Politics of Retribution in Europe: World Wor II and itsAftermath, Princeton, Princeton University Press, 2000 EALHAM, C., Class, Culture and Conftict in Barcelona, r898-r937, Londres, Routledge/ Canada Blanch, 2004 ELLWOOD, S., The Spanish Civil Wor, Oxford, Blackwell/Historical Association Studies, 1991 FORREST, A., The Spanish Civil Wor, Londres, Routledge, 2000 FRASER, R., Blood of Spain: The Experience of Civil Wor, r936-39, 3." ed., Londres, Penguin Books, 1988 GoDICHEAU, F., La Guerre d'Espagne. Republique et Révolution en Catalogne (r936-r939), Paris, OdileJacob, 2004 GOMEZ, HIPÓLITO DE LA TORRE, La Relación Peninsular en laAntecâmara de la Guerra Civil de Espaiia, UNED, Mérida, s.d. GRAHAM, H. e LABANYI,J. (coord.), Spanish Cultural Studies:An Introduction, Oxford, Oxford University Press, 1995 GRAHAM, H., «Spain's Memory Wars», History Today, 2004 GRAHAM, H., The Spanish Republic at Wor r936-39, Cambridge, Cambridge University Press, 2002 HARRISON, G., Night Train to Granada: From Sydney} Bohemia to Franco} Spain An Ofjbeat Memoir, Annandale, New South Wales, Austrália, Pluto Press, 2002 HEIBERG, M., e PELT, M., Los Negócios de la Guerra. Armas Nazis para la República Espaiiola, Barcelona, Crítica, 2005 HEIBERG, M., Emperadores deiMediterrâneo. Franco, Mussolini y la Guerra Civil Espaiiola, Barcelona, Crítica, 2003 OUTRAS LEITURAS JACKSON, GABRIEL,A República Espanhola e a Guerra Civil - r9p-39, Lisboa, Europa­ -América, 2 vols., 1973 JuuÁ, S., República y Guerra Civil, tomo XL de Historia de Espafia Menéndez Pidal, dirigida porJosé MaríaJover Zamora, Madrid, Espasa-Calpe, 2004 LANNON, F., Privilege, Persecution and Prophecy: The Catholic Church in Spain, r875-r975, Oxford, Clarendon Press, 1987 LANNON, F., The Spanish Civil Wor, Oxford, Osprey Essential Histories, 2002 LEITZ, C. e DuNTHORN, D.]. (coord.), Spain in an International Context r936-r959, Oxford/Nova Iorque, Berghahn Books, 1999 Low, M. e BREÁ,]., Red Spanish Notebook, São Francisco, City Lights Books, 1979 MAzowER, MARK, Dark Continent: Europú Twentieth Century, Harmondsworth, Penguin, 1998 MENDONZA, ALFONSO BuLLÓN DE, e DIEGO, ÁLVARO DE, Historias Orales de la Guerra Civil, Barcelona, Ariel, 2000 MoRADIELLOs, E., «Appeasement and Non-lntervention, British Policy during the Spanish Civil War», in P Catterall and C.J. MoRADIELLOS, E., «British Political Strategy in the Face of the Military Rising of 1936 in Spain», Contemporary European History, 1, 2 (1992) MORRIS (coord.), Britain and the Threat to Stability in Europe r9r8-45, Leicester, Leicester University Press, 1993 NASH, MARY, Rojas: Las mujeres Republicanas en la Guer ra Civil, Madrid, Santillana, 2000 PAYNE, STANLEY,A Guerra Civil de Espanha, a União Soviética e o Comunismo, Lisboa, Ulisseia, 2006 PAYNE, STANLEY, EI Colapso de la Republica - Los Origines de la Guerra Civil (r933-r936), Madrid, Esfera de los Libros, 2005 PIKE, D.W., Spaniards in the Holocaust: Mauthausen, the Horror on the Danube, Londres, Routledge/Caiiada Blanch, 2000) PRESTON, P, Las Três Espaiias dei 36, Madrid, Plaza &Janes, 1998 PRESTON, P e MAcKENZIE, A. (coord.), The Republic Besieged: Civil Wor in Spain r936-r939, Edimburgo, Edinburgh University Press, 1996 HowsoN, G.,Armas para Espaiía, Barcelona, Península, 2000 PRESTON, P (coord.), Revolution and Wor in Spain r93r-r939, Londres, Routledge, HowsoN, G., The Flamencos of Cadiz Bay, 2.ª ed., Westport, CT, The Bold Strummer, 1995 PRESTON, P, A Concise History of the Spanish Civil Wor, Londres, Fontana, 1996. 1994 JACKSON, A., British Women and the Spanish Civil Wor, Londres, Routledge/Caiiada Blanch, 2002 PRESTON, P, Doves ofWor: Four Women of Spain, Londres, Harp er Collins, 2002 PRESTON, P, Franco, Londres, Harper Collins, 1993 BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA PRESTON, P., iComrades! Portraits from the Spanish Civil%,; Londres, Harper Collins, 1999 PRESTON, P., «The Great Civil War 1914-1945», in T.C.W. Blanning (coord.),The Oxford History of Modern Europe, Oxford, Oxford University Press, 2000 PRESTON, P., La Gue"a Civil Espafíola, Editorial Debate, 2006 RAGUER, H., The Catholic Church and the Spanish Civil Wár, Londres, Routledge/ Canada Blanch Studies, 2006 R1CHARDS, M., A Time of Silence: Civil Wár and the Culture of Repression in Franco} Spain, 1936-194 5, Cambridge, Cambridge University Press, 1998 SEMPRÚN,J., Literature or Life, Londres, Viking (Penguin), 1997 SENDER BARAYÓN, R., A Death in Zamora, Albuquerque, University of New Mexico Press, 1989; 2." ed., Calm Unity Press, 2003 SKOUTELSKY, R., Novedad en el Frente. Las Brigadas Internacionales en la Gue"a Civil Espafíola, Madrid, Temas de Hoy; 2006 STEIN, L., Beyond Death and Exile: The Spanish Republicam in France, 1939-1955 Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1979 OUTRAS LEITURAS A GUERRA CIVIL DE ESPANHA NA LITERATURA: AuB, MAx, Campo Fechado, Porto, Campo das Letras, 2004 CERCAS, ]AVIER, Soldados de Salamina, Porto, Edições Asa, 2002 CttACON, DuLCE,A VozAdormecida, Lisboa, Difel, 2004 Fox, RALPH, Portugal Now, Lisboa, tinta-da-china, 2006 G1RONELLA,JosE MARIA, Los Cipreses Creen en Dios, Madrid, Editorial Planeta, 2003 HEMINGWAY, ERNEST, Por �em os Sinos Dobram, Lisboa, Livros do Brasil, 2001 LLAMAZARES,JuLio, Luna de Lobos, Editorial Planeta, Editorial Seix Barral, 2001 MALRAUX, ANDRÉ,A Esperança, Livros do Brasil, 2006 MENDEZ, ALBERTO, Los Girasoles Ciegos, Editorial Anagrama, 2004 M oNTALBÁN, MANUEL VASQUEZ, Autobiografia do General Franco, Lisboa, Caminho, 1996 ORWELL, GEORGE, Recordando a Gue"a Espanhola, Lisboa, Antígona, 2006 ORWELL, GEORGE, Homenagem à Catalunha, Lisboa, Livros do Brasil, 1984 R1vAs, MANUEL, O Lápis do Carpinteiro, Lisboa, Dom Quixote, 2000 UMBRAL, FRANCISCO, Madrid 1940, Porto, Campo das Letras, 1994 THOMAS, HuGH,A Gue"a Civil de Espanha, Lisboa, Ulisseia, s.d. TREMLETT, GILES, Ghosts of Spain, Londres, Faber and Faber, 2006 VAQUERO PELAEZ, ANGELES, Creer, Obedecer, Combatir y Morir: Fascistas Italianos en la Gue"a Civil Espafiola, Zaragoza, Institucion Fernando e! Católico, 2006 WEBSITES: www.gue"acivil.org VIDAL, CESAR, Las Brigadas Internacionales, Espasa-Calpe, 2006 www.brigadasinternacionales.org V1NAS, A., Franco, Hitler y el Estallido de la Gue"a Civil. Antecedentes y Consecuencias, www.alba-valb.org Madrid, Alianza, 2001 WooLSEY, GAMEL, DeatM Other Kingdom, Londres, Longmans, Green and Co., 1939 www.alba-valb.org/cu"iculumlindex.php?module=1 www.alba-valb.org/cu"iculumlindex.php?module=2 www.alba-valb.org/curriculumlindex.php?module=3 www.alba-valb.org/cu"iculumlindex.php?module=4 PORTUGAL E A GUERRA CIVIL DE ESPANHA: www.nyu.edu/librarylbobstlresearchltam/collections.html#alba DELGADO, IvA, Portugal e a Gue"a Civil de Espanha, Lisboa, Europa-América, s.d. www.memoriahistorica.org OLIVEIRA, CÉSAR, O Salazarismo e a Gue"a Civil de Espanha, Lisboa, OJornal, 1988 www.international-brigades.org.uk OLIVEIRA, CÉSAR, Portugal e a II República de Espanha: 1931-1936, Perspectivas e Realidades, Lisboa, s.d. RosAs, FERNANDO (coord.), Portugal e a Gue"a Civil de Espanha, Lisboa, Colibri, 1998 RosAs, FERNANDO, O Estado Novo nosAnos Trinta (1928-38), Lisboa, Estampa, 1986 Cronologia JULHO 17-18 Tem início a insurreição militar nos territórios espanhóis do norte de África, que alastra a várias guarnições em Espanha. 18-20 A rebelião é derrotada em Madrid e Barcelona. 24-25 O executivo francês, liderado pelo socialista Léon Blum, volta atrás com a sua oferta inicial de ajuda militar à república de Espanha. 28 Hitler e Mussolini decidem, cada um por si, fornecer apoio militar aos rebeldes. Os primeiros aviões chegam a Marrocos para transportar o Exército de África (comandado por Franco) para Espanha (Sevilha). AGOSTO O Exército de África desdobra-se a partir de Sevilha e dá início à sua marcha sangrenta pelo sul, em direcção a Madrid. 2 A França anuncia a sua anuência a uma política de não intervenção. 14 Assassínios em massa em Badajoz, depois de as tropas de Franco terem tomado a cidade. 15 O governo britânico proíbe a exportação de armamento para Espanha. 18 Federico García Lorca é executado em Granada. 22 A prisão de Modelo, em Madrid, é invadida e são executados presos políticos. 24 Chega a Madrid o primeiro embaixador da União Soviética em Espanha. 27-28 Começam os bombardeamentos aéreos sobre Madrid. SETEMBRO 3 O Exército de África toma Talavera, o último grande centro urbano a separá­ -lo de Madrid. 9 Primeiro encontro do Comité de Não Intervenção, em Londres. {200} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA 18 O executivo do Comintern aprova medidas de solidariedade para com a república espanhola, incluindo o recrutamento de combatentes voluntários internacionais. CRONOLOGIA {201} 1937 JANEIRO 24 A CNT anarco-sindicalista junta-se ao governo regional catalão. Mussolini aumenta exponencialmente o fornecimento de armas e tropas a 25 Os rebeldes emitem um decreto que proíbe a actividade política e sindical. Franco. 28 As forças de Franco fazem um desvio para reforçar o cerco à guarnição de Toledo. 29 A União Soviética aceita enviar armamento à república. A junta militar nomeia Franco como supremo comandante político e militar da zona rebelde. 2 O governo britânico faz um «acordo de cavalheiros» com a Itália, para preser­ var o status quo no Mediterrâneo. 6 Os Estados Unidos estabelecem um embargo legal à exportação de armas para Espanha. 30 O bispo de Salamanca, Plá y Deniel, emite uma carta pastoral (intitulada «As Duas Cidades») em defesa os militares rebeldes, na qual, pela primeira vez, a FEVEREIRO palavra «cruzada» é empregue para descrever a guerra civil. O governo republi­ 6-27 Batalha de Jurema, na frente sudeste de Madrid. A Brigada Abraham Lincoln cano emite um decreto em que assinala a sua intenção de substituir as forças entra pela primeira vez em combate. As forças republicanas, com a ajuda da milicianas por um exército popular sujeito à disciplina militar. aviação e dos tanques soviéticos, fazem frente à ofensiva rebelde que ameaça­ va cortar a auto-estrada Madrid-Valência. OUTUBRO Começam a chegar os voluntários das Brigadas Internacionais. 7 Málaga é tomada pelos rebeldes, com o auxílio dos italianos. Os refugiados que fugiam rumo a Almeria são alvo de fortes bombardeamentos. 1 O parlamento republicano aprova a autonomia basca. 7 Constituição de um governo basco autónomo, liderado pelo PNY. 11 Amparo Barayón é executada em Zamora. MARÇO 8-18 Batalha de Guadalajara, na frente nordeste de Madrid. As tropas de Mussolini sofrem a primeira derrota, em confronto com a Brigada Garibaldi, também ela ita­ NOVEMBRO 6 O governo republicano muda-se para Valência. 7 Começa a disputa de Madrid. liana. O empate técnico em redor de Madrid há-de manter-se até ao final da guerra. 30 O general Mola dá início à ofensiva rebelde na frente norte (Biscaia) e a Legião Condor alemã bombardeia Durango. 16 Para auxiliar Franco, Hitler envia-lhe a Legião Condor, uma força especial equipada com tanques e com os mais recentes aviões bombardeiros e de com­ bate alemães. 18 A Alemanha e a Itália reconhecem Franco. ABRIL 19 Franco decreta a unificação da Falange com os carlistas num único partido liderado por si. Estabelecimento de uma efémera patrulha marítima do Comi­ té de Não Intervenção. DEZEMBRO 6 Mussolini aceita enviar uma força expedicionária, o Corpo di Truppeh 26 A capital basca, Guernica, é destuída por intensos bombardeamentos alemães e italianos. Voluntarie (CTV), para auxiliar Franco. 29 Pilar Espinosa é executada em Candeleda (Ávila). MAIO 3-7 Combates de rua e protestos populares em Barcelona (Dias de Maio). 17 O parlamentar socialista Juan Negrín torna-se primeiro-ministro de um novo executivo republicano. {202} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA CRONOLOGIA 31 A Alemanha e a Itália retiram-se da patrulha marítima do Comité de Não {203} DEZEMBRO Raides aéreos sobre Barcelona. Intervenção. 15 As forças republicanas dão início à ofensiva em Teruel (Aragão). JUNHO 24 Franco inicia a contra-ofensiva na frente de Teruel. 3 Morte do general Mola num acidente de aviação. 16 Em Barcelona, são detidos os líderes do POUM. 19 Capitulação de Bilbau perante as tropas de Franco. 21 Em França, o executivo de Blum demite-se. 30 Portugal retira-se do acordo de patrulhamento marítimo da não intervenção. JANEIRO 7 As forças republicanas tomam a cidade de Teruel. JULHO 1 Carta colectiva dos bispos espanhóis aprova o regime de Franco. 6-26 Batalha de Brunete, na frente oeste de Madrid. FEVEREIRO 22 AGOSTO As cerimónias religiosas privadas voltam a ser permitidas na Espanha repu­ MARÇO 10 24 12 portos republicanos. 26 As tropas de Franco tomam Santander. Franco revoga a lei republicana relativa ao casamento civil. Hitler ocupa a Áustria. Ofensiva militar republicana na frente nordeste (Aragão). Começa a haver ataques de proveniência desconhecida a navios neutrais que se dirigem aos Franco lança uma nova ofensiva em Aragão, com o objectivo de alcançar a costa mediterrânica e dividir a zona republicana em dois. blicana. Franco implementa um bloqueio naval ao portos da república no Mediterrâneo. As forças de Franco recuperam Teruel. 13 Blum forma um novo executivo, e Negrín vai a Paris para discutir a reabertura da fronteira com França. 16-18 Aviões italianos descolam de Maiorca e bombardeiam Barcelona de forma ininterrupta. SETEMBRO 10 17 O governo francês reabre a fronteira com Espanha. Conferência de Nyon, na qual as principais potências europeias discutem os ataques de submarinos «desconhecidos» aos navios neutrais no Mediterrâneo. ABRIL A Itália, tida por muitos como responsável pelos ataques, e a Alemanha não 3 As forças de Franco tomam Lérida. comparecem. 8 Em França, dá-se a queda do governo de Blum, que é substituído por um exe­ cutivo mais conservador, liderado por Edouard Daladier. ÜUTUBRO 21 15 As forças de Franco conseguem chegar ao Mediterrâneo, em Vinaroz, e divi­ dem a república em dois. Queda do norte republicano (Gijón e Avilés). 29 Transferência do governo republicano de Valência para Barcelona. 16 Acordo anglo-italiano, entendido em grande parte dos círculos diplomáticos internacionais como um sinal de que a Grã-Bretanha aceitaria, implicitamen­ te, a permanência de tropas italianas em Espanha até ao final da Guerra Civil. NOVEMBRO 6 A Itália junta-se à Alemanha e aoJapão no Pacto Anti-Comintern. 21 Franco dá início à ofensiva contra Valência. BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA MAIO 1 Negrín publica o programa de objectivos de guerra da república, constituído por 13 pontos. 4 O Vaticano aceita estabelecer relações diplomáticas plenas com Franco. CRONOLOGIA 8 Com o apoio tácito do Vaticano, Negrín cria uma comissão para supervisionar a reintrodução do culto público na Catalunha. 24 Começa o julgamento dos líderes do POUM. 29 Parada de despedida das Brigadas Internacionais, em Barcelona. n A república de Espanha pede à Sociedade das Nações o fim da não interven­ ção, sem sucesso. NOVEMBRO 23 O 14.º batalhão do exército republicano (guerrilha) leva a cabo um inovador 16 Chega ao fim a Batalha do Ebro: as fo rças republicanas entram em retirada raide de coman dos, libertando soldados republic anos aprisionados na fortale­ pelo rio. Mais do que de uma derrota militar, trata-se uma derrota pol ítica, za costeira de Carchuna (Motril, Granada), para lá das linhas rebeldes. determinada pelo desfecho da Conferência de Munique. 24 Franco recebe fo rmalmente o primeiro núncio apostólico (representante 29 Ataques aé reos sobre Barcelona e Valência. papal). DEZEMBRO ]UNHO 13 O governo francês fecha a fronteira com Espanha. 19 A Alemanha assume o controlo de várias operações de colocação de minas em Espanha. 23 Franco começa a sua ofensiva contra a Catalunha. jULHO 5 O Comité de Não Intervenção aprova um plano para retirar de Espanha os voluntários internacionais. 1939 25 O exército republicano lança a ofensiva do Ebro, que viria a ser a maior batalha da guerra; o seu objectivo consiste em aliviar a pressão militar de Franco sobre Valência, mas também em inverter a tendência diplomática internacional. AGOSTO JANEIRO 23 Negrín instaura a lei marcial na zona republicana. 26 As tropas de Franco tomam Barcelona. Migração em massa de refugiados para a fronteira com França. 17 Negrín militariza as fábricas de armamento da Catalunha, com o propósito de as manter sob controlo do governo central. Os seus ministros catalães e bascos demitem-se, em protesto. 18 Franco recusa todas as iniciativas de paz. FEVEREIRO 1 O parlamento republicano reúne pela última vez em solo espanhol, no Castelo de Figueras. 9 Franco promulga a Lei de Responsabilidades Políticas, que criminaliza, com SETEMBRO 29 Conferência de Munique, entre a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e a Itália. A França e a Grã-Bretanha aceitam a anexação da Sudetenland checa por Hitler. efeitos retroactivos, a actividade política republicana. 10 Capitulação da Catalunha. Franco fecha a fronteira com França. Negrín insta­ la-se na zona republicana do centro-sul. 27 A Grã-Bretanha e a França reconhecem Franco. ÜUTUBRO P rossegue a Batalha do Ebro. 4 A república retira das suas linhas os voluntários internacionais, em cumpri­ mento do plano do Comité de Não Intervenção. MARÇO 4-6 Uma revolta descoo rdenada na base naval republicana de Cartagena leva a armada a fazer-se ao mar. Esta é retida pelos franceses no norte de África, {206} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA para ser entregue a Franco. A república perde, assim, os meios necessários para transportar milhares de refugiados que temem pelas suas vidas. Glossário 5 O comandante republicano na frente madrilena, coronel Segismundo Casado, rebela-se contra Negrín, com base na convicção errónea de que, enquanto ofi­ cial do exército, será capaz de negociar com Franco uma «paz com garantias». 6-13 Combates de rua em Madrid entre as forças pró e anti-Casado. Em toda a res­ tante zona centro-sul, o exército republicano mantém-se à margem. 26-28 As forças de Casado triunfam em Madrid, mas Franco recusa-se a negociar. Casado não tem outra alternativa senão ordenar a rendição da força aérea e do CEDA (CoNFEDERACIÓN EsPANOLA DE DERECHAS AuTÓNOMAS): partido católico exército republicanos. de massas com projecção nacional, foi fundado em 1933 e dependia fortemente das 27 As tropas de Franco ocupam Madrid. Migração maciça de refugiados; muitos redes organizacionais da igreja. refugiados republicanos afluem aos portos mediterrânicos, principalmente a Alicante, mas relativamente poucos conseguem fugir, dada a escassez de bar­ CNT (CoNFEDERACIÓN NACIONAL DEL T RABAJO): união de trabalhadores anarco­ cos. Franco assina o Pacto Anti-Comintern. -sindicalista fundada em 1910. ABRIL CoMINTERN: Internacional Comunista (ou Terceira Internacional), criada por Leni­ 1 Franco emite o seu último comunicado de guerra, anunciando o fim das hosti­ lidades militares. Os Estados Unidos reconhecem o regime de Franco. ne em 1919 com o objectivo de ser uma organização congregante de todos os partidos comunistas. 6 Franco torna pública a adesão espanhola ao Pacto Anti-Comintern. FALANGE: Partido fascista espanhol fundado em 1933 por José Antonio Primo de Rivera, cujo pai fora o ditador militar de Espanha entre 1923 e 1930. PCE (PARTIDO COMUNISTA DE EsPANA): partido comunista oficial em Espanha, fun­ dado em 1921 e afecto à Internacional Comunista (Comintern). PNV (PARTIDO NACIONALISTA VAsco): partido nacionalista basco, fundado em 1895. O PNV era fortemente católico e socialmente conservador, mas opunha-se ao ultra­ centalismo da direita espanhola. POUM (PARTIDO 0BRERO DE UNIFICACIÓN MARXISTA): partido comunista dissi­ dente (isto é, não alinhado com o Comintern), formado em Setembro de 1935. A zona de influência do POUM era, sobretudo, a Catalunha. PSOE (PARTIDO SOCIALISTA 0BRERO EsPANOL): partido socialista espanhol, funda­ do em 1879. {208} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA UGT (UNIÓN GENERAL DE TRABAJADORES): sindicato liderado pelos socialistas, foi fundado em 1888 e era tradicionalmente mais forte em Madrid e nas zonas industriais Indice Remissivo do norte de Espanha, como as minas de carvão das Astúrias ou a indústria pesada de Biscaia (País Basco). AALTO, BrLL:75,128,179 Barbieri,Francesco:87 Afonso XIII:22 Barcelona: 21, 22, 32, 43, 44, 7 1, 82, 85, Agricultura:19,44 87, 95, 96, 123, 124, 129, 134, 136, Alemanha:17,51,53,57,61,63,104,105, 156,157,159 106, 109, 110, 113, 121, 127, 128, 137, Belchite:119,151 138, 139, 141, 153, 155, 156, 196, 198, Bélgica:95 199,201 Berlanga,Luis G.:81 Alfabetização:77,78,79,183 Berneri, Camillo: 87 Alicante:141,202 Bilbau:87,96 Allen,Jay:51 Blitzkrieg: 123,138 Blum,León:59 Boix,Francisco:156,157 Botwin,Naftali:65 Brigadas Internacionais:63,65,66,67, 69, 75, 1 03, 104, 127, 128, 137, 152, 154,179 Brunete,Batalha de:65,74 Buchenwald:155 Almodóvar, Pedro:172 Alonso,Celestino:154 Anarco-sindicalista:22,29,82,95 Andaluzia:32,50 Anschluss: 123,125,126,141 Anticlerical:45,46,58,107,131 Aragão:44,82,120,123,128,133,135 Assassínios extrajudiciais: 46, 49, 50, 58,98,161-2,172-3 Associação para a Recuperação da Memória Histórica:172,173,177 Astúrias:33,34,80,119 Áustria:63,123 Avilés:119 CABANELLAS, GENERAL MIGUEL: 93, 94 Campos de concentração: 65, 98,141, 147,15 1,155,156,158,160,181 Cantalupo,Roberto:97 Carchuna (Motril):128 BADAJOZ:51 Carlistas:27,41,98 Bangic, Olga:153 Cartagena: 114,141 Barayón,Amparo:47,48,49,161,173 Casamento:98,163 {2IO} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA {2n} ÍNDICE REMISSIVO Catalã,Neus:148 Etiópia:51 Goff, lrv:75,128,179 Komsomol:117 Catalunha: 26, 40, 82, 84, 85, 86, 8 7, 123, 124, 125, 129, 132, 133, 134, 137, Exército rebelde/franquista: 53, 72, Gõring,Hermann:141 Grã-Bretanha:53,57,58,59,60,61,88, 95, 105, 106,1 21, 123, 125, 1 27, 138, LANDA,MATILDE:158 139,145,161,176 104 Exército republicano:69, 75, 7 8, 103, Catolicismo:18,20,107,no,131,161 104,117,118,119,120,1 21,122,123, Causa General: 161,162,17 1 127,128,135,137 Cercas,Javier:145,152,177 Extremadura: 50 Checas:86 Churchill,Winston:106 Cinema:60,103 Comunistas:68,82,83,85,87,129,132, 133 Contra-reforma agrária:50 141,142 10 1,107,108,110,155,164 Legião Condor: 94 Guadalajara,Batalha de:63,104,151 Lei das Responsabilidades Políticas: Guerra Civil Finlandesa:64 Fome: 21,127,134, França:53,57,59,60,61,87,88,105,117, DALADIER,EDOUARD:146 121,123,125,126,127,134,138,141,145, De Gaulle,Charles:151 146,147,148,149,150,152,153,156 Denúncia:no,134,161,163 Franco,general Francisco:13,19,25,33, Desemprego:31,32,64,84 48, 50,51,52,53,54,5 8,60,63,7 1, DiaD:180 72,73,74,87,91,92,93,94,95,96, HEARTFIELD,]OHN: 79 Hitler, Adolf: 17,42,58,59,70,72,93, 103,105,123,138 ,1 41,150,152,1 53, 154,17 1 Hutchins,Evelyn:67 foÁRRURI,DOLORES: 150 Igreja católica:23,24,27,28,45,46,52, Dias de Maio:82,83,86,87,129 97,98,99,100,102,103,104,105, 100,106,107,108,no,131,163,176 Diplomacia: 13, 86, 88, 107, 121 , 125, 106,107,108,109,113,114,115,117, Império Espanhol:18,19,25,105,161 Indústria: 1 9, 20, 42, 44, 74, 76, 96, 127,132 118,119,120,121,122,123,124,125, Divisão Azul:100,154 126, 127, 128, 131, 135, 136, 137, 138, Divórcio:163 139,140,141,145,146,148,149,150, Durango:94 152,153,154,155,1 57,1 58, 159,160, Durruti,Buenaventura:72 161,162,164,165,166,169,170,17 1, 172,175,179 EBRO,BATALHA DO:136 Franco,Nicolás:98 Eden, Anthony:106 Franquismo:13,108,109,no,149,154, 158,163,170,174,176,177,179 Educação:23,32,7 8,158,161 Edwards,Thyra:67 139,162 Lei Marcial: 162 Guerra Fria:81,153 Fascismo:25,36,63,64,65,68,106,151 Federalismo:20 Leclerc,general Philippe:151,153 Grzywacz,Shloime:154 Guernica:94,176 FALANGE:25,46,48,80,93,98,99,100, Law, Oliver:65 100,103,119,129,160 Internacional Comunista (Comintern): 69, 70, 85, 109,132, 133 Itália: 17, 51, 53,57,61,63, 73, 103,104, 105,106,109,113,1 21,123,128,137, MAÇONARIA:107 Madrid: 29,33,39,42,43,50,53,60,62, 63, 70, 7 1, 72, 73, 74, 76, 79,80,81, 94,95,104,118,120,121,140,146, 151,153,158,176 Maes,Magdalena:161 Málaga:43 Mannerheim,Carl Gustav:64 Maquis: 148,149,150 Marrocos:25,26,33,39,51,151 Mauthausen:155,156,157 McCarthy, Joseph:179 México:115,145 Migrações:12 Miliciana:53,76 Mobilização rebelde/franquista: 27, 28,33,41,43,100-101,108,161,17 8 Mobilização republicana:33,35,57,63, 74-79,119,140,150,156,17 8 Moa,Pio:176,177,17 8 Modiano,Patrick:175 Espinosa,Pilar:48,172 GALIZA:41 JAPÃO:57,109 Jarama,Batalha de:63,66,104,176 Espionagem:136,154 Gandía:141 Juventude:33,156 Monarquia:20,23 Estados Unidos:63,65,66,81,173,179 García,Antonio:156 Morales,Diego:155 Mulheres:28,48,50,67,76,77,80,100, Estaline:44,60,61,69,113,114,127 García Lorca,Federico:48 KEA, SALARIA:67 Estalinegrado: 150 Gijón:119 Kerensky, Alexander: 58 Mola,general Emílio: 51,53,93,96 101,148,150,164,165,172 {212} BREVE HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL DE ESPANHA Munique,Acordo de:138,139 Primeira República:24 Mussolini,Benito:17,42,58,59,70, 72, Primo deRivera,JoséAntonio:25,98 87, 93, 99, 103,141 Primo de Rivera, general Miguel: 22, 24 NACHTUNDNEBEL: 155 Nações Unidas:173 Propaganda:52,79,92,93,95,101,109, 149,154,169,176 73, 75, 91, 105, 106, 113, 114, 115,117, 119,121,125,129,133,139 Sevilha:19,40 Silva,Emílio:173 Socialistas:23, 24,26, 29, 32, 34, 35,46, 69,87,129,132,140 Sociedade das Nações:125 Spengler, Oswald: 25 Stalags: 147,155 Não intervenção:57,60,61,68,69,70, Narvik (Noruega):150 União Soviética: 60, 61, 69, 81, 86, 87, 95, 1 05, 113, 114, 115, 117, 1 27, 138, 139,140,150 VALE DOS CAÍDOS:160 Valência:20,40,44,7 1,72,123,125,134, 137,138,141 Vaticano:106,107,108,132 QuEIPO D E L L A N O, G ENE R A L GoNzAL0:40 {213} ÍNDICE REMISSIVO TALAVERA DE LAREINA:53 Vigo:41 Taussig,Michael:177 Vinaroz:123,124 Nazismo:64,66,106,110,154 RACISMO: 52,106,110 Teruel:120,121,122,1 23,128 Negrín,Juan: 82, 88, 113, 121, 122, 123, Radnóti,Miklós:181 Toledo:52,60,93 WOLF, FRANCISC:154 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, Ravensbrück:148,155 Transição democrática:17 1,172 Woolsey, Gamei:43 133,136,138,139,141,165 Reforma agrária:23,28,45,50 Trotski,Leão:86 Nelken,Margarita:150 Nin,Andreu:86 Nuremberga:156 139,141,146,147,148,15 1 Renau,Josep:79 Resistência Francesa:65,152 ÜRWELL, GEORGE:82,85 Revolução:17,21,23 Ouro:42,114,115,126 Revolução Russa:17,21 OVRA:87 Rivas,Manuel:41 Rojo,general Vicente:118,120 PACTOANT1-COMINTERN:109 Rol-Tanguy, Henri:153 Partido Comunista Francês (PCF):69 Rolfe,Edwin:66 Partido Nacionalista Basco (PNV):74 Rosselli,Cario:87 Partido Popular (PP):175 Rosselli,Nello:87 Plano Marshall:165 Poderio aéreo:62,72,104 SALAMANCA:93,107,175,176 Pointner,Anna:156 Sanjurjo,general José:131 Polónia:63,65,115 Saragoça:19,25,26 Portugal:113 Secção feminina da Falange:101 POUM:86,87,136,137 Segunda Guerra Mundial:11,13,66,75, Presos políticos:87,104,108,120,146, 147,152,155,156,158,160,181 ZONA FRANQUISTA/REBELDE: 48, 100, Refugiados: 12, 36, 53, 7 1, 85, 133, 134, 137,140,141,153,154,155,1 80 Semprún,Jorge:155,156,160 Prieto, lndalecio:128 Sender,Ramón:14,47 Primeira Guerra Mundial: 12,17,21,63 Serrano Sufier,Ràmón:98,155 «ÚLTIMA GRANDE CAUSA»:66,178,179 Unamuno,Miguel:91,107 102,103, 104,136 Zona republicana:100,131, 134,140