Uploaded by Marta Pereira

A study about dopamine

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DADOS DE ODINRIGHT
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Sumário
1. Capa
1. Rosto
2. Créditos
3. Dedicatória
4. Sumário
5. Introdução – O Problema
2. PARTE I – A busca do prazer
1. Capítulo 1 – Nossas máquinas masturbatórias
2. Capítulo 2 – Fugindo do sofrimento
3. Capítulo 3 – O equilíbrio prazer-sofrimento
3. PARTE II – Autocomprometimento
1. Capítulo 4 – Jejum de dopamina
2. Capítulo 5 – Espaço, tempo e significado
3. Capítulo 6 – Uma balança quebrada?
4. PARTE III – A busca do sofrimento
1. Capítulo 7 – Pressionando o lado do sofrimento
2. Capítulo 8 – Honestidade radical
3. Capítulo 9 – Vergonha pró-social
5. Conclusão – Lições do equilíbrio
1. Nota da autora
2. Agradecimentos
3. Notas
Copyright © 2021 Anna Lembke
Título original: Dopamine Nation: Finding Balance in the Age of Indulgence
Esta edição é publicada mediante acordo com Dutton, um selo do Penguin
Publishing Group, uma divisão de Penguin Random House LLC.
DIREÇÃO EDITORIAL
Arnaud Vin
EDITORA RESPONSÁVEL
Bia Nunes de Sousa
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Bia Nunes de Sousa
REVISÃO
Claudia Vilas Gomes
Julia Sousa
CAPA
Pete Garceau
(sobre fotografia de Steve Fisch)
ADAPTAÇÃO DE CAPA
Diogo Droschi
DIAGRAMAÇÃO
Guilherme Fagundes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Lembke, Anna
Nação dopamina : por que o excesso de prazer está nos deixando
infelizes e o que podemos fazer para mudar / Anna Lembke ; tradução Elisa
Nazarian. — 1. ed. — São Paulo : Vestígio, 2022.
Título original: Dopamine Nation : Finding Balance in the Age of
Indulgence
ISBN 978-65-86551-71-6
1. Abuso de substâncias 2. Autoajuda 3. Autoconhecimento 4.
Comportamento compulsivo 5. Dor 6. Prazer 7. Internet - Aspectos sociais I.
Título.
21-95504
CDD-152.4
Índices para catálogo sistemático:
1. Prazer e dor : Equilíbrio : Psicologia 152.4
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
Embora a autora tenha feito todo esforço para fornecer, com precisão, números
de telefone, endereços de internet e outras informações de contato à época da
publicação, nem a editora nem a autora assumem qualquer responsabilidade
por erros ou mudanças que ocorram após a publicação. Além disso, a editora
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ou de terceiros, nem pelo seu conteúdo.
Nem a editora nem a autora têm a intenção de oferecer conselho ou serviço
profissional para o leitor individual. As ideias, os procedimentos e as sugestões
contidas neste livro não têm a pretensão de ser um substituto para a consulta
com o seu médico. Todos os assuntos referentes a sua saúde exigem supervisão
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Para Mary, James, Elizabeth,
Peter e o pequeno Lucas.
Sumário
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Créditos
4. Dedicatória
5. Sumário
6. Introdução – O Problema
7. PARTE I – A busca do prazer
1. Capítulo 1 – Nossas máquinas masturbatórias
2. Capítulo 2 – Fugindo do sofrimento
3. Capítulo 3 – O equilíbrio prazer-sofrimento
8. PARTE II – Autocomprometimento
1. Capítulo 4 – Jejum de dopamina
2. Capítulo 5 – Espaço, tempo e significado
3. Capítulo 6 – Uma balança quebrada?
9. PARTE III – A busca do sofrimento
1. Capítulo 7 – Pressionando o lado do sofrimento
2. Capítulo 8 – Honestidade radical
3. Capítulo 9 – Vergonha pró-social
10. Conclusão – Lições do equilíbrio
11. Nota da autora
12. Agradecimentos
13. Notas
14. Índice remissivo
INTRODUÇÃO
O Problema
Sentir-se bem, sentir-se bem, todo dinheiro do mundo gasto
para se sentir bem.
Levon Helm
ESTE É UM LIVRO SOBRE PRAZER. Também sobre sofrimento. Acima
de tudo, é um livro sobre a relação entre o prazer e o
sofrimento, e como entender essa relação tornou-se
essencial para uma vida bem vivida.
Por quê?
Porque transformamos o mundo de um lugar de
escassez em um lugar de imensa abundância: drogas,
comida, notícias, jogos, compras, jogos de azar, mensagens
de texto, de sexo, do Facebook, do Instagram, do YouTube,
do Twitter… Os números crescentes, a grande variedade e o
imenso potencial de estímulos altamente compensatórios
são atordoantes. O smartphone é a agulha hipodérmica dos
tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina
digital para uma geração plugada. Se você ainda não
descobriu sua droga preferida, ela logo estará em um site
perto de você.
Os cientistas consideram a dopamina como uma
espécie de moeda corrente universal para a avaliação do
potencial adictivo de qualquer experiência. Quanto mais
dopamina no sistema de recompensa do cérebro, mais
adictiva é a experiência.
Além da descoberta da dopamina, uma das
constatações neurocientíficas mais extraordinárias do
século passado é que o cérebro processa prazer e
sofrimento no mesmo lugar. Ou seja, o prazer e o sofrimento
funcionam como dois lados de uma balança.
Todos nós vivenciamos aquele momento de desejar
mais um pedaço de chocolate, ou de querer que um bom
livro, um bom filme ou video game durasse para sempre.
Esse momento de desejo é a balança do prazer do cérebro
inclinada para o lado do sofrimento.
Este livro tem como objetivo analisar a neurociência da
recompensa e, ao fazê-lo, capacitar-nos a encontrar um
equilíbrio melhor e mais saudável entre prazer e sofrimento.
Mas a neurociência não basta. Também precisamos da
experiência vivida pelos seres humanos. Quem melhor para
nos ensinar a superar o consumo desenfreado do que os
que lhe são mais vulneráveis: pessoas com adicção.
Este livro baseia-se em histórias reais dos meus
pacientes que se viram vítimas de dependência e
encontraram maneiras de se livrar dela. Eles me deram
permissão para contar suas histórias, para que você possa
se beneficiar do discernimento que tiveram, como
aconteceu comigo. Talvez você ache algumas dessas
histórias chocantes, mas para mim elas são apenas versões
extremas do que nós somos capazes. Como o filósofo e
teólogo Kent Dunnington escreveu: “Pessoas com
dependências graves estão entre aqueles profetas
contemporâneos que ignoramos até a morte, porque nos
mostram quem realmente somos”.1
Sejam doces ou compras, voyeurismo ou cigarro
eletrônico, seja feed de mídia social ou fofoca de WhatsApp,
todos nós nos dedicamos a comportamentos que não
queríamos ter, ou que até certo ponto lamentamos. Este
livro oferece soluções práticas para lidar com o consumo
compulsivo desenfreado num mundo onde o consumo
tornou-se o motivo abrangente da nossa vida.
Em essência, o segredo para encontrar o equilíbrio é a
combinação da ciência do desejo com a sabedoria da
recuperação.
Este livro oferece soluções
práticas
para
lidar
com
o
consumo
compulsivo
desenfreado
num
mundo
onde o consumo tornou-se o
motivo
abrangente da nossa vida.
CAPÍTULO 1
Nossas máquinas
masturbatórias
Primeira impressão?
Simpático. Tinha 60 e poucos anos, nem gordo, nem magro,
rosto suave, mas bonito… envelhecendo muito bem. Usava
o uniforme padrão do Vale do Silício: calça cáqui e camisa
esporte. Parecia um tipo comum, não alguém que tivesse
segredos.
Conforme Jacob me acompanhou pelo curto labirinto de
corredores, pude sentir sua ansiedade como ondas rolando
às minhas costas. Lembrei-me de quando costumava ficar
ansiosa ao levar os pacientes para a minha sala. Estou
andando rápido demais? Estou balançando o quadril? Minha
bunda é engraçada?
Isto parece muito distante, agora. Reconheço que sou
uma versão calejada do meu antigo eu, mais estoica,
provavelmente mais indiferente. Eu era uma médica melhor
naquela época, quando sabia menos e sentia mais?
Chegamos à minha sala, e fechei a porta depois de
entrarmos. Gentilmente, ofereci-lhe uma das duas cadeiras
idênticas, da mesma altura, com almofadas verdes, próprias
para terapia, a meio metro uma da outra. Ele se sentou. Eu
também. Seus olhos percorreram a sala.
Minha sala tem 3 por 4 metros, duas janelas, uma mesa
com computador, um aparador cheio de livros e uma mesa
FUI
RECEBER
JACOB
NA
SALA
DE
ESPERA.
baixa entre as cadeiras. A mesa, o aparador e a mesa baixa
são todos feitos com uma madeira marrom-avermelhada. A
mesa é de segunda mão, herança do meu antigo chefe de
departamento. Está rachada no meio, pelo lado de dentro,
onde ninguém mais pode ver, uma metáfora adequada ao
trabalho que faço.
Em cima da mesa há dez pilhas separadas de papel,
perfeitamente alinhadas, como um acordeão. Disseram-me
que isto dá uma aparência de eficiência e organização.
A decoração da parede é uma miscelânea. Os diplomas
necessários, a maioria sem moldura. Preguiça demais. Um
desenho de um gato que achei no lixo do meu vizinho,
peguei por causa da moldura, mas mantive por causa do
gato. Uma tapeçaria multicolorida de crianças brincando
dentro e em volta de templos, relíquia do tempo em que
ensinava inglês na China, nos meus 20 anos. A tapeçaria
tem uma mancha de café, mas só é visível se você souber o
que está procurando, como um Rorschach.
Há um tanto de bugigangas expostas, em geral
presentes de pacientes e alunos. São livros, poemas,
ensaios, objetos de arte, cartões-postais, cartões de Natal,
cartas, caricaturas.
Um paciente, artista e músico talentoso, me deu uma
fotografia que tirou da Golden Gate, sobreposta com notas
musicais feitas por ele a mão. Quando fez isso, já não era
um suicida, mas é uma imagem triste, toda em cinza e
preto. Outro paciente, uma bela jovem constrangida por
rugas que só ela via e que nenhuma quantidade de Botox
conseguia apagar, deu-me uma jarra de barro para água,
grande o bastante para servir dez pessoas.
À esquerda do meu computador, tenho uma pequena
gravura de Albrecht Dürer, Melencolia. No desenho, a
Melancolia, personificada como uma mulher, está sentada
em um banco, curvada, cercada pelas ferramentas
negligenciadas da indústria e do tempo: um paquímetro,
uma balança, uma ampulheta, um martelo. Seu cachorro
faminto, com as costelas destacando-se em seu corpo
esquálido, espera pacientemente, e em vão, que ela se
erga.
À direita do meu computador, um anjo de barro de 12
centímetros, com asas forjadas em arame estica os braços
para o céu. A palavra “coragem” está gravada em seus pés.
Foi presente de uma colega que estava esvaziando seu
consultório. Um anjo de sobra. Vou levar.
Sou grata por esta minha sala. Aqui, fico suspensa no
tempo, existindo em um mundo de segredos e sonhos. Mas
o espaço também é impregnado de tristeza e anseio.
Quando os pacientes abandonam meu consultório, meus
limites profissionais proíbem que eu os procure.
Por mais real que seja o nosso relacionamento dentro da
minha sala, ele não pode existir fora deste espaço. Se
encontro meus pacientes no supermercado, hesito até em
cumprimentá-los, por medo de me declarar um ser humano,
com necessidades próprias. Imagina! Comer para quê?
Anos atrás, quando fazia residência em psiquiatria, vi
meu supervisor de psicoterapia fora da sua sala pela
primeira vez. Ele saiu de uma loja, usando uma capa e um
chapéu fedora estilo Indiana Jones. Era como se tivesse
acabado de sair da capa de um catálogo da J. Peterman. A
experiência foi chocante.
Tinha compartilhado com ele muitos detalhes íntimos da
minha vida, e ele me aconselhara, como faria com um
paciente. Nunca havia pensado nele como alguém que
usasse chapéu. Para mim, isso sugeria uma preocupação
com a aparência pessoal, o que discordava da versão
idealizada que tinha dele. Mas, acima de tudo, deixou-me
atenta para o quanto poderia ser desconcertante meus
próprios pacientes me verem fora da minha sala.
Virei-me para Jacob e comecei:
– Em que posso ajudar?
Outros começos que desenvolvi com o tempo incluem:
“Me diga por que está aqui”, “O que te fez vir aqui hoje?” e
até “Comece do começo, onde quer que ele tenha início
para você”.
Jacob olhou-me demoradamente.
– Esperava que você fosse homem – disse com seu
encorpado sotaque leste-europeu.
Naquele momento, soube que o assunto seria sexo.
– Por quê? – perguntei, fingindo ignorância.
– Porque pode ser difícil para você, mulher, escutar
meus problemas.
– Posso garantir que já escutei quase tudo que há para
escutar.
– Veja – ele hesitou, olhando timidamente para mim –,
tenho dependência de sexo.
Assenti com a cabeça e me acomodei na cadeira.
– Continue.
Todo paciente é um pacote fechado, um romance não
lido, uma terra inexplorada. Certa vez, um paciente
descreveu a sensação de escalar uma rocha: quando ele
está na parede, nada existe a não ser uma infinita superfície
rochosa justaposta à decisão limitada de onde colocar a
seguir cada dedo do pé e da mão. A prática da psicoterapia
não é diferente de escalar uma rocha. Mergulho na história,
na narrativa e na repetição da narrativa, e o restante
desaparece.
Escutei muitas variações nas histórias do sofrimento
humano, mas a história de Jacob me chocou. O que mais me
perturbou foi o que ela sugeria sobre o mundo em que
vivemos agora, o mundo onde nossos filhos estão vivendo.
Jacob começou logo com uma lembrança de infância.
Sem preâmbulos. Freud teria se orgulhado.
– A primeira vez que me masturbei, eu tinha 2 ou 3 anos
– disse. A lembrança era viva para ele; dava para perceber
em seu rosto.
– Eu estou na lua – ele prosseguiu –, mas não é
realmente na lua. Existe uma pessoa como um deus… e eu
tenho uma experiência sexual que não reconheço…
Infiro que lua signifique algo como o abismo, nenhum
lugar e todos os lugares simultaneamente. Mas e quanto a
Deus? Nós não estamos todos almejando algo além de nós
mesmos?
Em sua fase escolar, ainda criança, Jacob era um
sonhador: botões da roupa fora de ordem, mãos e mangas
sujos de giz, o primeiro a olhar pela janela durante as aulas,
o último a sair da classe para ir embora. Aos 8 anos, ele se
masturbava regularmente. Às vezes sozinho, às vezes com
o melhor amigo. Eles ainda não tinham aprendido a sentir
vergonha.
Mas, depois da primeira comunhão, ele despertou para
a ideia de masturbação como um “pecado mortal”. Dali por
diante, só se masturbava sozinho e visitava o padre da
igreja católica local todas as sextas-feiras para se confessar.
– Eu me masturbo – cochichava pela abertura de treliça
do confessionário.
– Quantas vezes? – perguntava o padre.
– Todos os dias.
Pausa.
– Não faça mais isto.
Jacob parou de falar e olhou para mim. Trocamos um
leve sorriso de entendimento. Se tais conselhos diretos
resolvessem o problema, eu estaria desempregada.
Jacob, o menino, estava determinado a obedecer, a ser
“bom”, então fechava os punhos e não se tocava ali. Mas
sua decisão só durava dois ou três dias.
– Este foi o começo da minha vida dupla – ele disse.
O termo “vida dupla” é tão familiar para mim quanto
“elevação do segmento ST” para o cardiologista, “estágio
IV” para o oncologista e “hemoglobina A1C” para o
endocrinologista. Ele se refere ao envolvimento secreto de
um dependente com as drogas, o álcool, ou outros
comportamentos compulsivos, escondidos da vista dos
outros e até, em alguns casos, deles mesmos.
Ao longo da adolescência, Jacob voltava da escola, ia
para o sótão e se masturbava perante um desenho da
deusa grega Afrodite que tinha copiado de um livro didático
e escondido entre as tábuas do assoalho. Mais tarde, olharia
para este período da sua vida como uma época de
inocência.
Aos 18 anos, foi morar na cidade com a irmã mais
velha, para estudar física e engenharia na universidade
local. A irmã passava grande parte do dia trabalhando e,
pela primeira vez na vida, ele ficava sozinho por longos
períodos. Sentia-se solitário.
– Então, decidi fazer uma máquina…
– Uma máquina? – perguntei, sentando-me um pouco
mais reta.
– Uma máquina de masturbação.
Hesitei.
– Entendo. Como ela funcionava?
– Conecto um bastão de metal a um toca-discos. A outra
ponta conecto a uma mola de metal, que envolvo com um
pano macio. – Ele fez um desenho para me mostrar.
– Coloco o pano e a bobina em volta do meu pênis –
disse, pronunciando pênis como se fossem duas palavras:
pen, como “caneta” em inglês, e ness, como o Monstro do
Lago Ness.
Senti vontade de rir mas, depois de um momento de
reflexão, percebi que essa vontade era um disfarce para
algo mais: eu estava com medo. Tive medo de que, depois
de convidá-lo a se abrir comigo, não fosse capaz de ajudálo.
– Conforme o toca-discos vai girando – ele disse –, a
mola sobe e desce. Ajusto a velocidade da mola, ajustando
a velocidade do toca-discos. Tenho três velocidades
diferentes. Assim chego ao limite… muitas vezes sem
ultrapassá-lo. Também aprendo que fumar um cigarro ao
mesmo tempo me traz de volta do limite, então uso este
truque.
Através desse método de microajustes, Jacob conseguia
se manter num estado de pré-orgasmo durante horas.
– Isso – ele disse, confirmando com a cabeça –, muito
viciante.
Jacob masturbava-se várias horas por dia, usando sua
máquina. Para ele, o prazer era inigualável. Jurava que iria
parar. Escondia a máquina no alto de um armário, ou
desmontava-a completamente, jogando fora as peças. Mas
um ou dois dias depois, pegava as peças no armário, ou as
tirava da lata de lixo, remontava-as e recomeçava.
Talvez você sinta repulsa pela máquina de masturbação
de Jacob, como senti na primeira vez em que ouvi falar nela.
Talvez você a considere uma espécie de perversão extrema,
além da experiência cotidiana, com pouca ou nenhuma
relevância para você e a sua vida.
Mas se fizermos isso, você e eu, perderemos a
oportunidade de apreciar algo crucial sobre a maneira como
vivemos agora. De certa maneira, estamos todos envolvidos
em nossas próprias máquinas masturbatórias.
Quando eu tinha uns 40 anos, desenvolvi uma ligação
insalubre com romances baratos. A porta de entrada para
essa droga foi Crepúsculo, um romance paranormal sobre
vampiros adolescentes. Me sentia bem constrangida por
estar lendo aquilo, mais ainda por admitir que estava
fascinada pelo livro.
Crepúsculo bate naquele ponto entre uma história de
amor, suspense e fantasia, a escapatória perfeita para mim,
que fazia a curva para a meia-idade. Eu não estava só.
Milhões de mulheres da minha idade estavam lendo e se
entusiasmando com Crepúsculo. Não havia nada incomum
no fato em si de eu estar envolvida com um livro. Toda a
minha vida, fui leitora. O diferente foi o que aconteceu a
seguir. Algo que eu não podia justificar com base em
propensões passadas ou circunstâncias de vida.
Quando terminei Crepúsculo, devorei todos os romances
de vampiros em que pus a mão, e depois passei para
lobisomens, fadas, bruxas, necromantes, viajantes no
tempo, videntes, leitores de mentes, manipuladores de
fogo, cartomantes, mestres das pedras… você entendeu. A
certa altura, as histórias de amor dócil já não satisfaziam,
então saí em busca de versões cada vez mais gráficas e
eróticas da clássica fantasia de um amor romântico.
Lembro-me de ter me chocado com a facilidade de
achar cenas ilustradas de sexo logo ali, nas prateleiras de
ficção em geral, na biblioteca do meu bairro. Fiquei
preocupada de que meus filhos tivessem acesso àqueles
livros. A coisa mais ousada na biblioteca local, quando era
criança no Meio-Oeste, era Are You There, God? It’s Me,
Margaret*.
As coisas tomaram maiores proporções quando,
incentivada por minha amiga adepta da tecnologia, comprei
um Kindle. Não era mais preciso esperar a entrega de livros
vindos de outra sucursal da biblioteca, ou esconder capas
de livros eróticos atrás de publicações médicas,
principalmente quando meu marido e meus filhos estavam
por perto. Agora, com dois toques e um clique, eu tinha
qualquer livro que quisesse de imediato, em qualquer lugar,
a qualquer hora: no metrô, no avião, esperando que
cortassem o meu cabelo. Podia percorrer, com a mesma
facilidade, Febre negra, de Karen Marie Moning, e Crime e
castigo, de Dostoiévski.
Em resumo, tornei-me uma leitora inveterada de
romances estereotipados do gênero erótico. Assim que
terminava um e-book, passava para o próximo: lia em vez
de socializar, lia em vez de cozinhar, lia em vez de dormir,
lia em vez de prestar atenção no meu marido e nos meus
filhos. Tenho vergonha de admitir que uma vez levei meu
Kindle para o trabalho e li entre as sessões com meus
pacientes.
Procurava opções cada vez mais baratas, até chegar às
gratuitas. Como todo traficante, a Amazon sabe o valor de
uma amostra grátis. De vez em quando, eu descobria um
livro de boa qualidade que acontecia de estar barato, mas,
na maioria das vezes, eram realmente horrorosos, baseados
em estratagemas velhos para os enredos e personagens
sem vida, cheios de erros tipográficos e gramaticais. Mas eu
os lia mesmo assim, porque procurava, continuamente, um
tipo de experiência muito específico. Como conseguir isso
tinha cada vez menos importância.
Queria satisfazer aquele momento de tensão sexual
crescente que finalmente se resolve quando o herói e a
heroína se atracam. Já não me importava com sintaxe,
estilo, cena ou personagem. Só queria minha dose, e
aqueles livros, escritos segundo uma fórmula, eram feitos
para me fisgar.
Cada capítulo terminava com um clima de suspense, e
os próprios capítulos eram projetados em direção a um
clímax. Comecei a disparar pela primeira parte do livro, até
chegar ao clímax, e não me preocupava em ler o resto
depois que passava. Agora, estou tristemente de posse do
conhecimento de que, se você abrir qualquer romance
barato passados uns três quartos do seu conteúdo, chega
ao ponto crucial.
Depois de cerca de um ano nessa minha nova obsessão
com romances baratos, vi-me acordada às duas da manhã,
num dia de semana, lendo Cinquenta tons de cinza.
Racionalizei ser uma versão moderna de Orgulho e
preconceito, até chegar à parte de “plugues anais”, e tive
um breve insight de que ler sobre brinquedos sexuais
sadomasoquistas de madrugada não era a maneira como
queria passar o meu tempo.
A definição genérica de adicção é o consumo contínuo e
compulsivo de uma substância ou um comportamento
(jogos, video game, sexo), apesar do mal que fazem para a
pessoa e para os outros.
O que aconteceu comigo é trivial se comparado à vida
daqueles com dependências ultrapoderosas, mas revela o
crescente problema do consumo compulsivo desenfreado
com que nos deparamos hoje, mesmo quando temos uma
vida boa. Meu marido é gentil e amoroso, tenho filhos
ótimos, um trabalho relevante, liberdade, autonomia e certa
riqueza, sem traumas, deslocamento social, pobreza,
desemprego, ou outros fatores de risco para a dependência.
Ainda assim, fui compulsivamente me recolhendo cada vez
mais em um mundo de fantasia.
▸ O lado sombrio do capitalismo
Aos 23 anos, Jacob conheceu e se casou com sua
esposa. Os dois se mudaram para o apartamento de três
cômodos onde ela vivia com os pais, e ele abandonou sua
máquina, esperando que fosse para sempre. Ele e a esposa
inscreveram-se para conseguir um apartamento próprio,
mas souberam que a espera seria de 25 anos. Na década de
1980, isto era comum no país do Leste Europeu onde
viviam.
Em vez de se submeterem a décadas morando com os
pais dela, eles decidiram ganhar um dinheiro extra e
separá-lo para comprar seu próprio canto mais cedo.
Começaram um negócio por computador, importando
máquinas de Taiwan, juntando-se à crescente economia
informal.
O negócio prosperou, e logo eles ficaram ricos pelos
padrões locais. Adquiriram uma casa e um pedaço de terra.
Tiveram dois filhos, um menino e uma menina.
Sua trajetória ascendente parecia garantida, quando
Jacob recebeu uma oferta para trabalhar como cientista na
Alemanha. Eles se atiraram à chance de se mudar para o
Ocidente, de ele progredir em sua carreira, de proporcionar
às crianças todas as oportunidades que a Europa Ocidental
podia oferecer. A mudança trouxe-lhes oportunidades, com
certeza, mas nem todas boas.
– Depois que nos mudamos para a Alemanha, descubro
a pornografia, filme pornôs, shows ao vivo. A cidade onde
moro é conhecida por isto, e não consigo resistir. Mas dar
um jeito. Dar um jeito durante dez anos. Trabalho como
cientista, trabalho duro, mas em 1995 tudo muda.
– O que mudou? – perguntei, já adivinhando a resposta.
– A internet. Eu ter 42 anos e estar indo bem, mas com
internet, minha vida começa a despencar. Certa vez, em
1999, eu estar no mesmo quarto de hotel que já havia
estado talvez cinquenta vezes. Eu ter grande conferência,
fala importante no dia seguinte. Mas fico acordado a noite
toda assistindo pornô, em vez de preparar minha fala.
Chego na conferência sem dormir e sem palestra. Faço
discurso muito ruim. Quase perco emprego. – Ele abaixou os
olhos e sacudiu a cabeça, lembrando-se.
– Depois daquilo, começo um novo ritual – ele disse. –
Sempre que vou a um quarto de hotel, coloco notas
adesivas por toda parte, no espelho do banheiro, na TV, no
controle remoto, dizendo “Não faça isto”. Não faço até um
último dia.
Fiquei chocada com o quanto os quartos do hotel são
como uma caixa de Skinner* moderna: uma cama, uma TV,
um minibar. Nada para fazer senão pressionar a alavanca
para receber a droga.
Ele tornou a baixar os olhos e o silêncio alongou-se. Deilhe tempo.
– Foi então que pensei, pela primeira vez, em acabar
com a minha vida. Acho que o mundo não vai sentir a minha
falta, e talvez fique melhor sem mim. Fui até a sacada e
olhei para baixo. Quatro andares… Seria o suficiente.
Um dos maiores fatores de risco para se tornar
dependente de qualquer droga é o fácil acesso a ela.
Quando a obtenção da droga é mais fácil, nossa
probabilidade de experimentá-la aumenta. Depois de
experimentá-la, ficamos mais propensos a nos tornarmos
dependentes dela.
A atual epidemia de opioides nos Estados Unidos é um
exemplo trágico e irrefutável deste fato.1 A quadruplicação
de opioides prescritos nos Estados Unidos (oxicodona,
hidrocodona, fentanil) entre 1999 e 2012, aliada à sua
ampla distribuição em cada canto da América, levou a taxas
crescentes de dependência de opioides e de mortes
relacionadas.
Uma força-tarefa designada pela Associação de Escolas
e Programas de Saúde Pública (Association of Schools and
Programs of Public Health, ASPPH) publicou um relatório em
1º de novembro de 2019 concluindo que: “A tremenda
expansão do suprimento de fortes opioides vendidos sob
receita médica (de alta potência, bem como de efeito
prolongado) levou ao aumento em escala da dependência
desses opioides e à transição de muitos para opioides
ilícitos, incluindo fentanil e seus análogos, o que levou a um
aumento exponencial de overdoses”.2 O relatório também
afirmou que o transtorno do uso de opioides “é causado
pelas repetidas exposições a opioides”.3
Da mesma maneira, a diminuição do fornecimento de
substâncias adictivas diminui a exposição e o risco de
dependência e males relacionados. Um experimento natural
no século passado, para testar e provar esta hipótese, foi a
Lei Seca, um banimento constitucional de alcance nacional
sobre a produção, a importação, o transporte e a venda de
bebidas alcoólicas nos Estados Unidos de 1920 a 1933.
A Lei Seca levou a uma redução acentuada do número
de consumidores e potenciais dependentes do álcool.4 As
taxas de embriaguez pública e de incidência de doenças
hepáticas relacionadas ao álcool caíram pela metade
durante esse período, na ausência de novos remédios para
tratar dependência.
Claro, houve consequências imprevistas,5 como a
criação de um grande mercado clandestino a cargo de
gangues criminosas, mas o impacto positivo da Lei Seca no
consumo de álcool e a morbidez a ele relacionada é
amplamente subestimado.
Os reduzidos efeitos da bebida, resultantes da Lei Seca,
persistiram nos trinta anos subsequentes. Na década de
1950, à medida que o álcool passou a ser, novamente, mais
acessível, seu consumo aumentou progressivamente.
Na década de 1990, a porcentagem de estadunidenses
que bebiam álcool aumentou quase 50%, enquanto a
bebedeira de alto risco aumentou 15%. Entre 2002 e 2013,
a dependência alcoólica diagnosticável subiu 50% nos
adultos mais velhos (acima de 65 anos) e 84% nas
mulheres, dois grupos demográficos que antes eram
relativamente imunes a esse problema.6
Sem dúvida, o acesso mais amplo não é o único risco
para dependência. O risco aumenta se temos pai, mãe, avô
ou avó biológicos adictos, mesmo quando somos criados
fora do lar dos dependentes. A doença mental é um fator de
risco, embora a relação entre ela e a adicção não esteja
clara.7 A doença mental leva ao uso de drogas, o uso de
drogas causa ou revela a doença mental, ou a coisa está
entre uma e outra?
O trauma, a revolta social e a pobreza contribuem para
o risco da dependência; as drogas passam a ser um meio de
lidar e conduzir a mudanças epigenéticas – mudanças
transmissíveis às cadeias de DNA fora dos pares básicos
herdados –, afetando a expressão genética tanto no
indivíduo quanto em sua prole.
Apesar desses fatores de risco, o maior acesso a
substâncias adictivas pode ser o fator de risco mais
importante para as pessoas modernas. O suprimento criou
demanda, uma vez que todos nós caímos presas do vórtice
de um uso compulsivo desenfreado.
Nossa economia de dopamina, o que o históriador David
Courtwright chamou de “capitalismo límbico”,8 está
conduzindo esta mudança, auxiliada pela tecnologia
transformadora que aumentou não apenas o acesso, como
também o número, a variedade e a potência das drogas.
A máquina de enrolar cigarros, por exemplo, inventada
em 1880, tornou possível passar de quatro cigarros
enrolados por minuto para o impressionante número de 20
mil.9 Atualmente, são vendidos no mundo 6,5 trilhões de
cigarros por ano, traduzidos para aproximadamente 18
bilhões de cigarros consumidos por dia, responsáveis por
um número estimado de 6 milhões de mortes no mundo.
Em 1805, o alemão Friedrich Sertürner, enquanto
trabalhava como aprendiz de farmácia, descobriu o
analgésico morfina – um opioide alcaloide dez vezes mais
potente do que seu precursor, o ópio. Em 1853, o médico
escocês Alexander Wood inventou a seringa hipodérmica.
Essas duas invenções contribuíram para centenas de
registros, em publicações médicas do final do século 19, de
casos iatrogênicos (iniciados pelo médico), de dependência
à morfina.10
Numa tentativa de encontrar um analgésico opioide
menos adictivo em substituição à morfina, os químicos
vieram com um composto totalmente novo, a que
denominaram “heroína”, de heroisch, palavra alemã para
“corajoso”. A heroína revelou-se de duas a cinco vezes mais
potente do que a morfina e abriu caminho para a
narcomania do início dos anos 1900.
Hoje em dia, os potentes opioides de categoria
farmacêutica, tais como a oxicodona, a hidrocodona e a
hidromorfona estão disponíveis em todas as formas
imagináveis: pílulas, injeções, adesivos, spray nasal. Em
2014, um paciente de meia-idade veio ao meu consultório
chupando um pirulito de fentanil vermelho-vivo. O fentanil,
um opioide sintético, é de cinquenta a cem vezes mais
potente do que a morfina.
Além dos opioides, hoje muitas outras drogas são
também mais potentes do que no passado. Os cigarros
eletrônicos – chiques, discretos, sem cheiro, com sistemas
de disponibilização de nicotina recarregável – leva a taxas
mais altas de nicotina no sangue em períodos mais curtos
de consumo do que os cigarros tradicionais. Eles também
vêm em inúmeros sabores destinados a atrair adolescentes.
A maconha de hoje é de cinco a dez vezes mais potente
do que a da década de 1960 e é encontrada em biscoitos,
bolos, brownies, gummy bears, pot tarts*, pastilhas, óleos
aromáticos, tinturas, chás… a lista é infinita.
Em todo o mundo a comida é manipulada por técnicos.
Após a Primeira Guerra Mundial, a automação das linhas de
produção de salgadinhos e frituras levou à criação das
batatas fritas embaladas.11 Em 2014, os estadunidenses
consumiram 51 quilos de batatas por pessoa, sendo 15
quilos de batatas frescas e os 36 quilos restantes de batatas
processadas. Quantidades imensas de açúcar, sal e gordura
são acrescidas a grande parte dos alimentos que comemos,
bem como milhares de sabores artificiais são incluídos para
satisfazer nosso apetite moderno por coisas como sorvete
de rabanada e bisque tailandesa de coco e tomate.12
Com acesso e potência crescentes, o polifármaco – ou
seja, o uso de múltiplas drogas simultaneamente ou com
grande proximidade – passou a ser a norma. Meu paciente
Max achou mais fácil me mostrar um cronograma do seu
uso de drogas do que explicá-lo para mim.
Como se pode ver na ilustração a seguir, ele começou
aos 17 anos com álcool, cigarros e maconha (“Maria
Joana”). Aos 18, cheirava cocaína. Aos 19, mudou para
oxicodona e alprazolam. Ao longo dos seus 20 anos, usou
Percocet, fentanil, cetamina, LSD, PCP, DXM e MXE,
chegando à oximorfona, um opioide de classificação
farmacêutica que o levou à heroína, que ele usou até me
procurar, aos 30 anos. No total, ele passou por catorze
drogas diferentes em pouco mais de uma década.
LINHA DO TEMPO DO USO DE DROGAS
O mundo de hoje oferece um vasto complemento de
drogas digitais que antes não existiam, ou, se existiam,
agora estão acessíveis em plataformas que aumentaram
exponencialmente sua potência e disponibilidade. Isto inclui
pornografia online, jogos de azar e video games, só para
citar alguns.
Além disso, a própria tecnologia é adictiva, com suas
luzes pulsantes, seu estardalhaço musical, seu conteúdo
ilimitado e a promessa, com uma participação contínua, de
recompensas cada vez maiores.
Minha própria progressão, de um romance açucarado de
um vampiro relativamente domesticado para o que equivale
à pornografia socialmente sancionada para mulheres, pode
ser atribuída ao advento do leitor eletrônico.
O ato de consumo por si só se tornou uma droga. Meu
paciente Chi, um imigrante vietnamita, viu-se fisgado no
ciclo de busca e compra de produtos online. Para ele, a
euforia começava com a decisão do que comprar,
continuava com a antecipação da entrega e culminava no
momento em que ele abria o pacote.
Infelizmente, a euforia não durava muito além do tempo
que ele levava para arrancar a fita adesiva da Amazon e ver
o que havia dentro. Seus cômodos estavam cheios de bens
de consumo baratos e ele devia dezenas de milhares de
dólares. Mesmo assim, não conseguia parar. Para manter o
ciclo funcionando, passou a encomendar produtos ainda
mais baratos – chaveiros, canecas, óculos escuros de
plástico –, devolvendo-os imediatamente após a entrega.
▸ A internet e o contágio social
Jacob decidiu não dar um fim a sua vida naquele dia, no
hotel. Justamente na semana seguinte, sua esposa recebeu
o diagnóstico de câncer cerebral. Eles voltaram à sua terra
natal, e ele passou os três anos seguintes cuidando dela até
ela morrer.
Em 2001, aos 49 anos, ele se reaproximou da sua
namorada dos tempos de escola e eles se casaram.
– Eu contar a ela antes de a gente se casar sobre meu
problema. Mas talvez eu tenha minimizado quando contar
para ela.
Jacob e sua nova esposa compraram uma casa juntos,
em Seattle. Jacob viajava para trabalhar como cientista no
Vale do Silício. Quanto mais tempo ele passava longe da
esposa, mais retomava seus velhos padrões de pornografia
e masturbação compulsiva.
– Eu nunca vejo pornografia quando estamos juntos,
mas quando estou no Vale do Silício ou viajando, e ela não
estar comigo, aí eu vejo.
Jacob fez uma pausa. Para ele, era claramente difícil
abordar o assunto a seguir.
– Às vezes, quando mexo com eletricidade, no meu
trabalho, sinto alguma coisa nas mãos. Fico curioso. Começo
a imaginar qual seria a sensação de tocar meu pênis com
uma corrente elétrica. Então começo a pesquisar online e
descubro toda uma comunidade de pessoas que usa
estímulo elétrico.
“Ligo eletrodos e fios ao meu sistema estéreo. Tento
uma corrente alternada, usando a voltagem do sistema
estéreo. Então, em vez de um simples fio, conecto eletrodos
feitos de algodão embebido em água salgada. Quanto mais
alto o volume do estéreo, mais alta a corrente. Com volume
baixo, não sinto nada. Com volume mais alto, é doloroso. No
meio termo, a sensação pode me levar ao orgasmo.”
Arregalei os olhos. Não consegui evitar.
– Mas isto muito perigoso – ele prosseguiu. – Percebo
que se acontece uma queda de energia, poderia ocorrer
uma sobrecarga e eu poderia me machucar. Morreram
pessoas fazendo isto. Online, fico sabendo que posso
comprar um kit médico, como um… como vocês chamam
aquilo, aquelas máquinas para tratar dor…
– Uma unidade TENS?*
– É, uma unidade TENS, por 600 dólares, ou eu mesmo
posso fazer uma por 20 dólares. Decido fazer a minha.
Compro o material. Faço a máquina. Ela funciona. Funciona
bem. – Ele faz uma pausa. – Mas aí, a verdadeira
descoberta, posso programar ela. Posso criar rotinas
personalizadas e sincronizar a música com a sensação.
– Que tipo de rotinas?
– Punheta, boquete, pode escolher. E então descubro
não só as minhas rotinas. Vou online e baixo a rotina de
outras pessoas, e compartilho a minha. Algumas pessoas
escrevem programas para sincronizar com vídeos pornôs,
então você sente o que está assistindo, como uma realidade
virtual. O prazer vem da sensação, é claro, mas também de
construir o aparelho e antecipar o que fará, experimentar
maneiras de melhorar e compartilhar com as pessoas.
Ele sorriu ao se lembrar, pouco antes de o seu rosto
despencar, antecipando o que veio depois. Olhando-me
atentamente, percebi que ele estava avaliando se eu
conseguiria aguentar aquilo. Preparei-me e acenei com a
cabeça para que continuasse.
– A coisa piora. Há salas de bate-papo onde você pode
assistir as pessoas se dando prazer, ao vivo. Você assiste de
graça, mas tem opção para comprar fichas. Eu dar fichas
para boa apresentação. Eu me filmo e coloco online. Só
minhas partes íntimas. Nenhuma outra parte minha. No
começo é empolgante ter estranhos me olhando. Mas
também me sinto culpado de que olhar daria a ideia a
outras pessoas, e elas poderiam ficar dependentes.
Em 2018, atuei como testemunha médica especializada
no caso de um homem que avançou com seu caminhão
sobre dois adolescentes, matando ambos. Ele dirigia sob o
efeito de drogas. Como parte daquele processo, passei um
tempo conversando com o detetive Vince Dutto,
investigador criminal chefe em Placer County, Califórnia,
onde houve o julgamento.
Curiosa sobre o seu trabalho, perguntei se havia notado
alguma mudança de padrões nos últimos vinte anos. Ele me
contou sobre o caso trágico de um menino de 6 anos que
sodomizava o irmão mais novo, de 4 anos.
– Em geral, quando recebemos esses chamados – ele
disse –, é porque algum adulto, com quem a criança tem
contato, está abusando sexualmente dela, e então a criança
reconstitui isto com outra criança, como seu irmãozinho.
Mas fizemos uma investigação completa e não havia
evidência de que o irmão mais velho estivesse sofrendo
abusos. Seus pais eram divorciados e trabalhavam muito,
então as crianças meio que se criavam por conta própria,
mas não estava acontecendo nenhum abuso sexual ativo.
“O que acabou vindo à tona neste caso foi que o irmão
mais velho andava assistindo a desenhos animados na
internet e se deparou com alguns animes japoneses
mostrando todos os tipos de atos sexuais. A criança tinha o
próprio iPad, e ninguém vigiava o que o menino andava
fazendo. Depois de assistir a um monte desses desenhos,
ele decidiu tentar aquilo no irmãozinho. Olha, em mais de
vinte anos de trabalho na polícia, nunca tinha visto esse tipo
de coisa.”
A
internet
estimula
um
consumo
compulsivo
desenfreado, não apenas fornecendo maior acesso a drogas
velhas e novas, mas também sugerindo comportamentos
que, de outro modo, poderiam nunca nos ter ocorrido. Os
vídeos não se tornam apenas “virais”. Eles são literalmente
contagiosos, daí o surgimento do meme.
Os seres humanos são animais sociais. Quando vemos
outras pessoas comportando-se de certa maneira online,
esses
comportamentos
parecem
“normais”
porque
pertencem a outras pessoas. O Twitter (em tradução literal,
“gorjeio”) é um nome adequado para a plataforma de
mensagens de mídia social, popular tanto entre
especialistas quanto entre presidentes. Somos como bandos
de pássaros. Assim que um de nós levanta voo, todo nosso
bando eleva-se no ar.
Jacob abaixou os olhos para as mãos. Não conseguia me
encarar.
– Então, conheço uma moça no bate-papo. Ela gosta de
dominar homens. Apresento a ela a coisa elétrica e depois
lhe passo a habilidade de controlar a eletricidade
remotamente: frequência, volume, estrutura das vibrações.
Ela gosta de me levar até o limite, depois não me deixa
continuar. Faz isto dez vezes, e outras pessoas assistem e
comentam. Ficamos amigos, essa moça e eu. Ela nunca
quer mostrar o rosto. Mas eu vi ela uma vez, por acidente,
quando a câmera dela caiu por um momento.
– Que idade ela tinha? – perguntei.
– Acho que estava na casa dos quarenta…
Quis perguntar sobre sua aparência, mas percebi nisso
minha própria curiosidade lasciva em ação, e não as
necessidades terapêuticas dele, então me contive.
Jacob continuou:
– Minha esposa descobre tudo e diz que vai me largar.
Prometo parar. Digo a minha amiga online que estou fora.
Minha amiga muito brava. Minha esposa muito brava. Eu me
odeio então. Paro por um tempo. Talvez um mês. Mas aí
começo de novo. Só eu e a minha máquina, não os batepapos. Minto para minha esposa, mas ela acaba
descobrindo. A terapeuta dela diz para ela me deixar. Então
minha esposa me deixa. Ela vai para nossa casa em Seattle,
e agora estou sozinho.
Sacudindo a cabeça, ele diz:
– Nunca é tão bom quanto eu imagino. A realidade é
sempre menos. Eu digo a mim mesmo, nunca mais, destruo
a máquina e jogo ela fora. Mas às 4 da manhã do dia
seguinte, estou pegando do lixo para reconstruir.
Jacob olha para mim com um olhar suplicante.
– Quero parar. Quero mesmo. Não quero morrer
dependente.
Não sei ao certo o que dizer. Imagino-o ligado por seus
órgãos genitais, através da internet, a uma sala cheia de
estranhos. Sinto horror, compaixão e uma sensação vaga e
inquietante de que poderia ter sido eu.
Da mesma maneira que Jacob, todos nós corremos o
risco de nos excitar até a morte.
No mundo, 70% das mortes são atribuídas a fatores de
risco
comportamentais
modificáveis,
como
fumar,
inatividade física e dieta. Os principais riscos globais para
mortalidade são pressão alta (13%), consumo de tabaco
(9%), nível elevado de açúcar no sangue (6%), inatividade
física (6%) e obesidade (5%).13 Em 2013, estimou-se que
2,1 bilhões de adultos estavam acima do peso, em
comparação a 857 milhões em 1980. Atualmente, há mais
pessoas obesas no mundo do que abaixo do peso, com
exceção de algumas regiões subsaarianas da África e partes
da Ásia.14
As taxas de adicção estão crescendo em todo o planeta.
No mundo, a incidência de doenças atribuídas ao álcool e a
drogas ilícitas é de 1,5%, e mais de 5% nos Estados Unidos.
Esses dados excluem o consumo de tabaco. A droga de
preferência varia: os Estados Unidos estão dominados por
drogas ilícitas; na Rússia e no Leste Europeu prevalece a
dependência ao álcool.
As mortes globais por dependência cresceram em todas
as faixas etárias entre 1990 e 2017, com mais de metade
das mortes ocorrendo em pessoas abaixo dos 50 anos.15
Os pobres e pouco instruídos, em especial os que
moram em países ricos, são mais suscetíveis ao problema
de hiperconsumo compulsivo. Eles têm fácil acesso a drogas
altamente compensatórias, de alta potência e grande
novidade, ao mesmo tempo em que lhes falta acesso a um
trabalho significativo, moradia segura, educação de
qualidade, assistência médica acessível e igualdade de raça
e classe perante a lei. Isto cria uma correlação perigosa de
risco de dependência.
Os economistas de Princeton Anne Case e Angus Deaton
demonstraram que os estadunidenses brancos, de meiaidade e sem diploma universitário estão morrendo mais
jovens do que seus pais, avós e bisavós. As três causas
principais de morte nesse grupo são overdose por droga,
doença hepática relacionada a álcool e suicídio. Case e
Deaton chamam esse fenômeno de “mortes por
desespero”.16
O hiperconsumo compulsivo é um risco não apenas à
nossa vida, mas à vida do planeta. Os recursos naturais
estão diminuindo rapidamente.17 Economistas estimam que,
em 2040, o capital natural do mundo (terras, florestas, vida
aquática e combustíveis) estará 21% menor em países de
alta renda e 17% menor em países mais pobres do que hoje.
Enquanto isso, a emissão de carbono crescerá 7% em
países de alta renda, e 44% no resto do mundo.
Estamos nos devorando. ■
* A autora faz referência a um livro de Judy Blume, em que uma menina
tenta se adaptar em sua nova cidade, mas choca as amigas por,
supostamente, não ter religião. Ao longo do livro, são abordados problemas
comuns de uma adolescente. (N. T.)
* Caixa de Skinner ou câmara de condicionamento operante é um espaço
fechado para o estudo do comportamento de animais, geralmente ratos,
mediante o acionamento de uma chave ou alavanca para receber
determinada “recompensa”. (N. T.)
* Aqui a autora faz alusão a pop tart, uma espécie de massa recheada com
fruta ou chocolate, servida no café da manhã depois de esquentada, muito
popular entre as crianças nos Estados Unidos. A pot tart é o equivalente, só
que contendo maconha, e é vendida legalmente nas localidades onde a
maconha foi liberada. (N. T.)
* Aparelho de estimulação nervosa elétrica transcutânea, também
chamado de unidade TNS, usado para diminuir a perceção de dor aguda ou
crônica. (N. T.)
CAPÍTULO 2
Fugindo do sofrimento
CONHECI DAVID EM 2018. Ele era um tipo comum: branco, porte
médio, cabelo castanho. Tinha um clima de insegurança que
fazia com que parecesse mais novo do que os 35 anos que
constavam no registro médico. Peguei-me pensando: Ele
não vai durar. Vai voltar à clínica uma ou duas vezes, e
nunca mais vou vê-lo.
Mas aprendi que meus poderes para fazer prognósticos
não são confiáveis. Atendi pacientes que eu tinha certeza
de poder ajudar e se revelaram intratáveis, e outros que
considerei desanimadores e foram surpreendentemente
resilientes. Por isto, agora, quando atendo novos pacientes,
tento acalmar aquela voz incrédula e me lembrar de que
todos têm uma chance de recuperação.
– Conte-me o que te traz aqui.
Os problemas de David começaram na faculdade, mais
precisamente no dia em que ele entrou na sala do serviço
de saúde mental para estudantes. Ele era um aluno de 20
anos, estava no segundo ano em uma universidade no norte
do estado de Nova York e procurava ajuda para lidar com a
ansiedade e o baixo desempenho escolar.
Sua ansiedade era desencadeada pela interação com
estranhos, ou com qualquer um que ele não conhecesse
bem. Seu rosto ficava afogueado, o peito e as costas
ficavam úmidos, e seus pensamentos se atrapalhavam.
Evitava aulas nas quais teria que falar na frente dos outros.
Desistiu duas vezes de um seminário obrigatório de oratória
e comunicação, acabando por cumprir a exigência cursando
uma aula equivalente na faculdade comunitária.
– Do que você tinha medo? – perguntei.
– Tinha medo de fracassar. Tinha medo de me expor
como uma farsa. Tinha medo de pedir ajuda.
Depois de uma consulta de 45 minutos e um teste com
papel e lápis que levou menos de cinco minutos para ser
feito, chegaram ao diagnóstico de transtorno do déficit de
atenção (TDA) e transtorno de ansiedade generalizado
(TAG). O psicólogo que administrou o teste recomendou que
ele desse continuidade com um psiquiatra para receitar um
ansiolítico e, David disse, um “estimulante para o déficit de
atenção”. Não lhe ofereceram psicoterapia nem qualquer
modificação comportamental não medicamentosa.
David procurou um psiquiatra, que prescreveu
paroxetina, um inibidor seletivo de reabsorção de serotonina
para o tratamento de depressão e ansiedade, e um
medicamento à base de anfetamina, um estimulante para o
tratamento do transtorno de déficit de atenção.
– Então, como foi para você? Estou me referindo aos
remédios.
– No começo, a paroxetina ajudou um pouco com a
ansiedade. Diminuiu alguns dos piores suadouros, mas não
curou. Terminei mudando minha especialização de
engenharia da computação para ciência da computação,
achando que ajudaria. Requeria menos interação.
“Mas como não conseguia me manifestar e dizer que
não tinha entendido a matéria, fui mal num exame. Depois,
fui mal no próximo. Então interrompi o curso por um
semestre para não ser prejudicado na minha média de
notas. Acabei largando a escola de engenharia, o que foi
bem triste, porque era o que eu amava e queria mesmo
fazer. Tornei-me historiador. As turmas eram menores,
apenas vinte pessoas, e eu podia me safar sendo menos
interativo. Podia levar o livro de testes para casa e trabalhar
sozinho.”
– E o que aconteceu com a anfetamina? – perguntei.
– Eu tomava 10 mg de manhã cedo, antes da aula. Me
ajudou a ter mais concentração. Mas, olhando agora, acho
que eu só tinha maus hábitos para estudar. A anfetamina
me ajudou a remediar isso, mas também me estimulou a
deixar tudo para depois. Se havia uma prova e não tinha
estudado, eu tomava direto, o dia todo e a noite toda, para
estudar para o exame. Então, chegou o momento em que
não conseguia estudar sem isso. Aí, comecei a precisar de
mais.
Eu me perguntava se teria sido difícil conseguir
comprimidos adicionais. – Foi difícil conseguir mais?
– Na verdade, não – ele respondeu. – Sempre sabia
quando seria preciso repor. Ligava para o psiquiatra alguns
dias antes. Não uma porção de dias antes, apenas um ou
dois dias, para não levantar suspeita. Na verdade, já tinha
acabado uns… dez dias antes, mas se telefonasse só alguns
dias antes, eles repunham na mesma hora. Também aprendi
que era melhor falar com os assistentes do médico. Eles
eram mais propensos a repor sem fazer muitas perguntas.
Às vezes, eu inventava desculpas, como dizer que tinha
havido um problema com a remessa da farmácia. Mas na
maioria das vezes não era preciso.
– É como se os comprimidos não estivessem ajudando
de fato.
David fez uma pausa.
– No fim, acabou sendo um conforto. Era mais fácil
tomar o comprimido do que sentir a dor.
Em 2016, fiz uma apresentação sobre problemas com
drogas e álcool para o corpo docente e os funcionários da
clínica de saúde mental para estudantes de Stanford. Fazia
alguns meses que havia estado naquela parte do campus.
Cheguei cedo, e, enquanto esperava no saguão principal
para encontrar meu contato, minha atenção foi atraída para
uma parede de folhetos em exposição.
Havia quatro tipos de folhetos, cada um com alguma
variação da palavra “felicidade” no título: O hábito da
felicidade, Felicidade sem esforço, Felicidade ao alcance e
Seja mais feliz em 7 dias. Dentro de cada folheto havia
receitas para se obter felicidade: “Enumere cinquenta
coisas que o deixam feliz”, “Olhe-se no espelho e liste em
seu diário coisas que você ama em si mesmo” e “Produza
uma corrente de emoções positivas”.
E, talvez, o mais revelador de todos: “Otimize o timing e
a variedade de estratégias de felicidade. Seja intencional
quanto a onde e com que frequência. Para atos de
generosidade: faça a experiência de verificar o que é mais
eficiente para você: realizar várias boas ações em um dia ou
uma ação a cada dia”.
Esses folhetos ilustram como a busca da felicidade
pessoal tornou-se uma máxima moderna, acabando com
outras definições da “boa vida”. Até atos de generosidade
em relação a outras pessoas são enquadrados como
estratégia para uma felicidade pessoal. O altruísmo não é
mais um bem em si mesmo, passou a ser um veículo para
nosso próprio “bem-estar”.
Philip Rieff, psicólogo e filósofo de meados do século 20,
previu essa tendência em The Triumph of the Therapeutic:
Uses of Faith After Freud [O triunfo da terapêutica]: “O
homem religioso nasceu para ser salvo; o homem
psicológico nasceu para ser satisfeito”.1
Mensagens que nos incentivam a buscar a felicidade
não se limitam ao reino da psicologia. A religião moderna
também promove uma teologia da autoconsciência, da
autoexpressão e da autorrealização como o bem supremo.
Em seu livro Bad Religion [Religião ruim], o escritor e
erudito religioso Ross Douthat descreve a teologia God
Within* da Nova Era como “uma fé que é, ao mesmo tempo,
cosmopolita e reconfortante, prometendo todos os prazeres
do exotismo… sem nenhum sofrimento… um panteísmo
místico, no qual Deus é uma experiência e não uma
pessoa… É impressionante como existe pouca exortação
moral nas páginas da literatura Deus Interior. Existem
frequentes chamados à ‘compaixão’ e à ‘generosidade’,
mas pouca orientação para pessoas que enfrentam dilemas
reais. E o que existe de orientação equivale a ‘se te fizer
bem, faça’”.2
Em 2018, meu paciente Kevin, de 19 anos, foi trazido
pelos pais, preocupados com o seguinte: ele não
frequentava a escola, não conseguia parar num emprego e
não seguia nenhuma regra da casa.
Seus pais eram tão imperfeitos quanto qualquer um de
nós, mas estavam se esforçando para ajudá-lo. Não havia
evidência de abuso ou negligência. O problema era que eles
pareciam incapazes de impor qualquer limite para ele.
Preocupavam-se de que, fazendo exigências, iriam
“estressá-lo” ou “traumatizá-lo”.
Considerar as crianças como psicologicamente frágeis é
um conceito tipicamente moderno. Nos velhos tempos, as
crianças eram consideradas adultos em miniatura,
totalmente formadas desde o nascimento. Para a maioria da
civilização ocidental, as crianças eram encaradas como
maldosas de nascença. A função dos pais e cuidadores era
impor uma disciplina extrema a fim de socializá-las para
viver no mundo. Era perfeitamente aceitável usar castigos
corporais e táticas de amedrontamento para fazer uma
criança se comportar. Não mais.
Hoje, muitos pais que atendo se sentem aterrorizados
de fazer ou dizer alguma coisa que deixará o filho ou a filha
com uma cicatriz emocional, criando, assim, condições,
segundo o pensamento corrente, para que eles tenham
mais tarde um sofrimento emocional e até mesmo uma
doença mental.
Essa noção pode ser atribuída a Freud, cuja contribuição
psicanalítica inovadora era que as experiências na primeira
infância, até as esquecidas por um bom tempo, ou fora do
conhecimento consciente, podem causar danos psicológicos
duradouros. Infelizmente, a visão de Freud, de que um
trauma
na
primeira
infância
pode
influenciar
a
psicopatologia adulta, transformou-se na convicção de que
toda e qualquer experiência desafiadora nos prepara para o
sofá da psicoterapia.
Nossos esforços para poupar os filhos de experiências
psicológicas adversas acontecem não apenas em casa, mas
também na escola. Nos Estados Unidos, as crianças de
escola primária recebem algo equivalente ao prêmio
“Estrela da Semana”, não por uma conquista em especial; a
cada semana, um aluno recebe a estrela, em ordem
alfabética. Toda criança aprende a ficar atenta aos
valentões, para não se tornarem espectadores, em vez de
defensores. Na universidade, o corpo docente e os
estudantes conversam sobre gatilhos e espaços seguros.
O fato da parentalidade e da educação terem
conhecimento da psicologia do desenvolvimento é uma
evolução positiva. Deveríamos reconhecer o valor de cada
pessoa, independentemente do seu desempenho; parar
com a brutalidade física e emocional no pátio escolar e em
todos os outros lugares, e criar espaços seguros para pensar
aprender e discutir.
Mas temo que tenhamos higienizado demais e
patologizado demais a infância, criando nossos filhos no
equivalente a uma cela acolchoada, sem possibilidade de se
machucarem, mas também sem meios para se preparar
para o mundo.
Ao proteger nossas crianças da adversidade, será que
fizemos com que morressem de medo dela? Ao reforçar a
autoestima delas com elogios falsos, sem ensinar as
consequências do mundo real, será que não as tornamos
menos tolerantes, mais cheias de direitos, e ignorantes dos
próprios defeitos de caráter? Ao ceder a cada desejo delas,
será que não estaremos incentivando uma nova era de
hedonismo?
Em uma de nossas sessões, Kevin compartilhou sua
filosofia de vida. Devo admitir que fiquei horrorizada.
– Faço o que quero, quando quero. Se quero ficar na
cama, fico na cama. Se quero jogar video games, jogo video
games. Se quero cheirar uma carreira de coca, mando uma
mensagem para meu fornecedor, ele me entrega, e cheiro
uma carreira de coca. Se quero fazer sexo, entro online,
descubro alguém, encontro a pessoa e faço sexo.
– Como isso está funcionando para você, Kevin? –
perguntei.
– Não muito bem. – Só por um momento, ele pareceu
envergonhado.
Nas três últimas décadas, vi números crescentes de
pacientes como David e Kevin, que parecem ter todas as
vantagens na vida – família solidária, educação de
qualidade, estabilidade financeira, boa saúde –, mas
desenvolvem ansiedade debilitante, depressão e sofrimento
físico. Não apenas eles não estão funcionando em todo o
seu potencial, como mal conseguem sair da cama de
manhã.
Da mesma maneira, a prática da medicina tem se
transformado por conta do nosso esforço em prol de um
mundo sem sofrimento.
Antes dos anos 1900, os médicos acreditavam que
algum grau de dor era saudável.3 Cirurgiões importantes
dos anos 1800 relutavam em adotar anestesia geral durante
a cirurgia, por acreditar que a dor acionava a resposta
imunológica e cardiovascular, apressando a recuperação.
Embora eu não conheça evidência comprovando que a dor,
de fato, acelere a recuperação do tecido, existe uma
evidência emergente de que tomar opioides durante a
cirurgia retarda essa recuperação.4
O famoso médico do século 17 Thomas Sydenham disse
o seguinte a respeito da dor: “Considero cada… esforço
totalmente calculado para diminuir a dor e a inflamação
extremamente perigoso… Com certeza, um grau moderado
de dor e inflamação nas extremidades são os instrumentos
a que a natureza recorre para os propósitos mais
acertados”.5
Em contraste, espera-se que os médicos de hoje
eliminem toda dor para não fracassar em sua função como
curandeiros compassivos. Qualquer forma de dor é
considerada perigosa, não apenas porque machuca, mas
também porque se acredita que incite o cérebro para uma
dor futura, deixando uma ferida neurológica que nunca
sara.
A mudança de paradigma em torno da dor traduziu-se
numa prescrição maciça de comprimidos de bem-estar.6
Atualmente, mais de um a cada quatro americanos adultos,
e mais de uma em cada vinte crianças estadunidenses,
ingere medicamento psiquiátrico diariamente.7
O uso de antidepressivos, como paroxetina, fluoxetina e
citalopram, está crescendo em países do mundo todo,8 e os
Estados Unidos encabeçam a lista. Mais de um a cada dez
americanos (110 pessoas em 1.000) toma antidepressivos,
seguidos pela Islândia (106/1.000), Austrália (89/1.000),
Canadá
(86/1.000),
Dinamarca
(85/1.000),
Suécia
(79/1.000), e Portugal (78/1.000). Entre 25 países, a Coreia
vem por último (13/1.000).
O uso de antidepressivo cresceu 46% na Alemanha em
apenas quatro anos e 20% na Espanha e Portugal durante o
mesmo período. Embora dados de outros países asiáticos,
incluindo a China, não estejam disponíveis, podemos inferir
um uso crescente de antidepressivos ao olhar as tendências
de venda. Na China, as vendas de antidepressivos
chegaram a 2,61 bilhões de dólares em 2011, 19,5% a mais
do que no ano anterior.
A
prescrição
de
estimulantes
(anfetaminas,
metilfenidatos) nos Estados Unidos dobrou entre 2006 e
2016, inclusive em crianças abaixo dos 5 anos.9 Em 2011,
foi prescrito um estimulante a dois terços das crianças
estadunidenses diagnosticadas com transtorno do déficit de
atenção.
Prescrições para medicamentos sedativos, como
benzodiazepínicos (alprazolam, clonazepam, diazepam),
também adictivos, estão crescendo,10 talvez para
compensar todos aqueles estimulantes que estamos
tomando. Nos Estados Unidos, entre 1996 e 2013, o número
de adultos com o uso prescrito de benzodiazepínicos
aumentou 67%, de 8,1 milhões para 13,5 milhões de
pessoas.
Em 2012, foram prescritos opioides em número
suficiente para cada estadunidense ter um frasco de
comprimidos, e as overdoses por opioide mataram mais
pessoas nos Estados Unidos do que armas ou acidentes de
carro.
É de se surpreender, então, que David tenha deduzido
que deveria se entorpecer com comprimidos?
Além de exemplos extremos de fuga do sofrimento,
perdemos a capacidade de tolerar até formas menores de
desconforto. Constantemente, procuramos nos distrair do
momento presente, nos entreter.
Como Aldous Huxley disse em Admirável mundo novo
revisitado: “O desenvolvimento de uma vasta indústria de
comunicação de massa dizia respeito, em grande parte, não
ao verdadeiro ou ao falso, mas ao irreal, o mais ou menos
totalmente irrelevante… falhou em levar em conta o apetite
quase infinito do homem por distrações”.11
De maneira semelhante, Neil Postman, autor do clássico
da década de 1980 Amusing Ourselves to Death
[Entretendo-se até morrer], escreveu: “Os americanos já
não conversam uns com os outros, eles entretêm uns aos
outros. Não trocam ideias, trocam imagens. Não
argumentam com propostas, argumentam com boas
aparências, celebridades e comerciais”.12
Minha paciente Sophie, uma estudante de Stanford
vinda da Coreia do Sul, me procurou em busca de ajuda
para depressão e ansiedade. Entre as várias coisas sobre as
quais conversamos, ela contou que passa a maior parte do
tempo em que fica acordada ligada em algum tipo de
dispositivo: no Instagram, no YouTube, escutando podcasts e
playlists.
Numa das nossas sessões, sugeri que ela tentasse ir a
pé para a aula sem escutar nada, só deixando seus próprios
pensamentos virem à tona.
Ela me olhou incrédula e temerosa.
– Por que eu faria isto? – perguntou, de boca aberta.
– Bom, é uma maneira de se familiarizar com você
mesma – arrisquei. – De deixar sua experiência se revelar,
sem tentar controlá-la ou fugir dela. Toda essa sua distração
com dispositivos pode estar contribuindo para a depressão
e a ansiedade. É muito exaustivo se evitar o tempo todo. Me
pergunto se a experiência de vivenciar a si mesma de
maneira diferente pode lhe abrir caminho a novos
pensamentos e sensações e ajudá-la a se sentir mais
conectada com você mesma, com os outros e com o mundo.
Ela pensou nisso por um momento.
– Mas é tão chato! – disse.
– É verdade – concordei. – Mas a chatice não é só chata.
Também pode ser apavorante. Ela nos força a encarar
questões maiores de significado e propósito. A chatice
também é uma oportunidade para descobertas e invenções.
Ela cria o espaço necessário para a formação de um novo
pensamento, sem o qual estamos continuamente reagindo a
estímulos à nossa volta, não nos permitindo conviver com
nossa experiência de vida.
Na semana seguinte, Sophie experimentou caminhar
para a aula sem estar plugada.
– No começo foi difícil – ela disse. – Mas depois me
acostumei e até meio que gostei disso. Comecei a reparar
nas árvores.
▸ Falta de autocuidado ou doença
mental?
Voltemos a David que estava, segundo as próprias
palavras, “tomando anfetamina 24 horas por dia”. Depois
de se formar na faculdade, em 2005, ele foi morar de novo
com os pais. Pensou em cursar Direito, prestou o vestibular
e até se saiu bem, mas, quando chegou a hora de se
inscrever, perdeu a vontade.
– Ficava a maior parte do tempo sentado no sofá e
desenvolvi muita raiva e ressentimento, contra mim mesmo
e contra o mundo.
– Você sentia raiva do quê?
– Sentia como se tivesse desperdiçado meu tempo na
faculdade. Não estudei o que realmente queria estudar.
Minha namorada ainda estava estudando, se saindo bem,
partindo para um mestrado. Eu estava largado em casa,
sem fazer nada.
Depois que a namorada de David se formou, ela
arrumou um emprego em Palo Alto. Ele foi com ela para lá,
e em 2008 eles se casaram. David conseguiu um trabalho
em uma start-up de tecnologia, onde interagiu com
engenheiros jovens, inteligentes, generosos com o tempo
de que dispunham.
Ele voltou a codificar e aprendeu tudo o que deveria ter
estudado na faculdade, mas tinha medo demais para
aprender em uma sala cheia de alunos. Foi promovido como
desenvolvedor de software, trabalhava quinze horas por dia
e corria cinquenta quilômetros por semana em seu tempo
livre.
– Mas para que tudo isso acontecesse – ele explicou –,
estava tomando mais anfetamina, não apenas de manhã,
mas o dia todo. Acordava e tomava um. Chegava em casa,
jantava, tomava mais outro. Os comprimidos tornaram-se
meu novo normal. Também tomava enormes quantidades
de cafeína. Então, chegava o fim da noite, quando precisava
dormir, e pensava: Tá, o que faço agora? Aí, voltava para a
psiquiatra e a convencia a me receitar zolpidem. Fingia não
saber o que era, mas minha mãe tinha tomado essa droga
por muito tempo, e dois dos meus tios também. Também a
convenci a me receitar lorazepam de forma limitada, para a
ansiedade antes das apresentações. De 2008 a 2018, eu
estava tomando por dia 30 mg de Adderall, 50 mg de
Ambien e de 3 a 6 mg de Ativan. Pensava: Tenho ansiedade
e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, preciso
disto para funcionar.
David atribuía o cansaço e a dispersão a uma doença
mental, e não à falta de sono e à estimulação excessiva,
lógica que usava para justificar o uso contínuo dos
comprimidos. Ao longo dos anos, tenho visto um paradoxo
semelhante em muitos dos meus pacientes: eles usam
drogas, prescritas ou não, para compensar uma falta básica
de autocuidado, depois atribuem os custos a uma doença
mental, implicando, assim, na necessidade de mais drogas.
Desta maneira, venenos passam a ser vitaminas.
– Você estava suplementando sua vitamina A: Adderall,
Ambien e Ativan – brinquei.
– É, acho que sim – ele sorriu.
– Sua esposa ou alguém mais sabia o que estava
acontecendo com você?
– Não, ninguém. Minha esposa não fazia ideia. Às vezes,
eu bebia álcool quando ficava sem zolpidem, ou ficava
irritado e gritava com ela quando tomava anfetamina em
excesso. Mas fora isso, escondi tudo muito bem.
– Então, o que aconteceu?
– Me cansei. Cansei de tomar estimulantes e relaxantes
dia e noite. Comecei a pensar em acabar com a minha vida.
Pensei que me sentiria melhor, e outras pessoas se
sentiriam melhor. Mas minha esposa estava grávida, então
sabia que precisava mudar. Contei a ela que precisava de
ajuda. Pedi que me levasse ao hospital.
– Como ela reagiu?
– Ela me levou ao pronto-atendimento e, quando tudo
foi revelado, ficou chocada.
– O que a deixou chocada?
– Os comprimidos. Todos os comprimidos que eu estava
tomando. Meu estoque enorme e o quanto eu andara
escondendo dela.
David foi internado na ala psiquiátrica e recebeu o
diagnóstico de dependência de estimulantes e sedativos.
Ficou no hospital até a retirada da anfetamina, do zolpidem
e do lorazepam, e até deixar de ser um suicida. Levou duas
semanas. Foi liberado para voltar para casa, para sua
esposa grávida.
Todos nós fugimos do sofrimento. Alguns tomam
comprimidos. Alguns se estendem no sofá, maratonando
Netflix.
Outros
leem
romances
baratos.
Fazemos
praticamente qualquer coisa para nos distrair de nós
mesmos. No entanto, parece que toda essa tentativa de nos
isolarmos do sofrimento apenas torna nosso sofrimento pior.
Segundo o Relatório de Felicidade Mundial, que
classifica 156 países segundo a extensão de felicidade que
seus cidadãos consideram ter, os residentes nos Estados
Unidos declararam estar menos felizes em 2018 do que em
2008.13 Outros países com nível semelhante de riqueza,
assistência social e expectativa de vida viram um declínio
semelhante em pontuações autodeclaradas de felicidade,
incluindo Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Japão, Nova
Zelândia e Itália.*
Os pesquisadores entrevistaram quase 150 mil pessoas
em 26 países para determinar a prevalência de transtorno
de ansiedade generalizada, definida como preocupação
excessiva e descontrolada, afetando a vida delas
negativamente. Eles descobriram que os países mais ricos
tinham taxas de ansiedade mais altas do que os países
pobres: “O transtorno predomina mais significativamente e
com maior comprometimento nos países de alta renda do
que nos países de baixa ou média renda”.14
Entre 1990 e 2017, o número de novos casos de
depressão cresceu 50% mundialmente.15 Os maiores
aumentos de novos casos foram vistos em regiões com o
indicador sociodemográfico (renda) mais alto, em especial a
América do Norte.
A dor física também está aumentando.16 No decorrer da
minha carreira, tenho atendido mais pacientes, inclusive
jovens que muito embora sejam saudáveis, apresentam dor
em todo o corpo, ainda que não tenha sido identificada
nenhuma doença, nem lesão de tecido. Os números e tipos
de síndrome de dor física inexplicável cresceram: síndrome
complexa de dor regional, fibromialgia, cistite intersticial,
síndrome da dor miofascial, síndrome da dor pélvica, e por
aí vai.
Os pesquisadores fizeram a seguinte pergunta a
pessoas em trinta países ao redor do mundo: “Durante as
últimas quatro semanas, com que frequência você teve
dores ou desconfortos físicos? Nunca; raramente; às vezes;
frequentemente; ou muito frequentemente?”. Descobriram
que os estadunidenses relataram mais dores do que
qualquer outro país: 34% disseram que sentiam dor
“frequentemente”
ou
“muito
frequentemente”,
em
comparação a 19% das pessoas que vivem na China, 18%
das pessoas que vivem no Japão, 13% das pessoas que
vivem na Suíça, e 11% das pessoas que vivem na África do
Sul.
A pergunta é: por que, numa época sem precedentes de
prosperidade, liberdade, progresso tecnológico e avanço
médico,17 parecemos estar mais infelizes e com mais dores
do que nunca?
Talvez o motivo de estarmos todos tão infelizes seja
porque estamos dando duro para evitar sermos infelizes. ■
* Em tradução livre “Deus Interior”. God Within significaria “entusiasmo”
ou “enthusiasm” em inglês, derivando das palavras gregas “en” (interior) e
“theos” (deus). (N. T.)
* Na edição 2021 do Relatório de Felicidade Mundial, o Brasil ficou em 41º
lugar, caindo mais de dez posições em comparação ao período 2017-2019,
quando estava na 29ª posição. (N. E.)
CAPÍTULO 3
O equilíbrio
prazer-sofrimento
OS AVANÇOS NEUROCIENTÍFICOS nos últimos cinquenta a cem anos,
incluindo avanços em bioquímica, novas técnicas de
imagem e o surgimento da biologia computacional, jogaram
luz nos processos fundamentais de gratificação. Para
entender melhor os mecanismos que governam sofrimento
e prazer, podemos conseguir um novo insight sobre por que
e como o prazer em excesso leva ao sofrimento.
▸ Dopamina
As principais células funcionais do cérebro chamam-se
neurônios. Elas se comunicam entre si por sinapses via
sinais elétricos e neurotransmissores.
Os neurotransmissores são como futebol. O artilheiro é
o neurônio pré-sináptico. O goleiro é o neurônio póssináptico. O espaço entre o artilheiro e o goleiro é a fenda
sináptica. Assim como a bola é jogada entre o artilheiro e o
goleiro, os neurotransmissores conectam a distância entre
os neurônios: mensageiros químicos regulando sinais
elétricos no cérebro.
Existem muitos neurotransmissores importantes, mas
vamos focar na dopamina.
NEUROTRANSMISSOR
A dopamina foi identificada pela primeira vez como um
neurotransmissor no cérebro humano em 1957, por dois
cientistas que trabalhavam de modo independente: Arvid
Carlsson e sua equipe em Lund, Suécia, e Kathleen
Montagu, sediada próximo a Londres.1 Carlsson acabou
ganhando o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina.*
A dopamina não é o único neurotransmissor envolvido
no processo de gratificação, mas a maioria dos
neurocientistas concorda que é um dos mais importantes. A
dopamina pode desempenhar uma função maior na
motivação para se conseguir uma gratificação do que o
prazer da própria gratificação. Querer mais do que gostar.2
Camundongos geneticamente modificados, incapazes de
produzir dopamina, não buscarão alimento e morrerão de
fome, mesmo quando a comida é colocada a centímetros da
sua boca.3 No entanto, se a comida for colocada
diretamente na boca, os camundongos mastigarão e
comerão, parecendo sentir prazer.
A despeito de discussões sobre as diferenças entre
motivação e prazer, a dopamina é usada para avaliar o
potencial adictivo de qualquer comportamento ou droga.
Quanto mais dopamina uma droga libera no caminho de
gratificação do cérebro (um circuito cerebral que liga a área
tegmental ventral, o núcleo accumbens, e o córtex préfrontal), e quanto mais rápido ela libera dopamina, mais
adictiva é a droga.
CIRCUITO DE GRATIFICAÇÃO DA DOPAMINA NO CÉREBRO
Isso não quer dizer que as substâncias de alta dopamina
contenham literalmente dopamina. Em vez disso, elas
disparam a liberação de dopamina em nosso circuito de
recompensa do cérebro.
Para um rato confinado, o chocolate aumenta em 55% a
liberação basal de dopamina no cérebro;4 o sexo em 100%,5
a nicotina em 150%,6 e a cocaína em 225%. A anfetamina,
ingrediente ativo em drogas ilícitas como speed, ice e
shabu, bem como em medicamentos usados para tratar
transtorno do déficit de atenção, aumenta em 1.000% a
liberação de dopamina. Por esse cálculo, a dose de um
cachimbo de metanfetamina equivale a dez orgasmos.
▸ O prazer e o sofrimento são
colocalizados
Somando-se
à
descoberta
da
dopamina,
os
neurocientistas verificaram que o prazer e o sofrimento são
processados em regiões sobrepostas do cérebro e
trabalham via um mecanismo de processo oponente.7 Outra
maneira de dizer isso é que o prazer e o sofrimento
funcionam como uma balança.
Imagine que nosso cérebro contenha uma balança com
um ponto de apoio no centro. Quando não há nada na
balança, ela fica nivelada com o chão. Quando sentimos
prazer, a dopamina é liberada em nosso circuito de
recompensa, e a balança inclina-se para o lado do prazer.
Quanto mais ela se inclina, e quanto mais rápido, mais
prazer sentimos.
Mas aqui está o importante sobre a balança: ela quer
permanecer nivelada, ou seja, em equilíbrio. Ela não quer
ficar inclinada por muito tempo para um lado ou outro.
Sendo assim, sempre que a balança se inclina em direção
ao prazer, mecanismos autorreguladores poderosos entram
em ação para nivelá-la novamente. Esses mecanismos
autorreguladores não exigem um pensamento consciente
nem um ato de vontade. Eles simplesmente acontecem,
como um reflexo.
Tendo a imaginar esse sistema autorregulador como
pequenos gremlins pulando no lado do sofrimento da
balança, para compensar o peso no lado do prazer. Os
gremlins representam o trabalho da homeostase: a
tendência de qualquer sistema vivo a manter uma
estabilidade fisiológica.
Depois que a balança está nivelada, ela continua a se
inclinar numa força igual e oposta para o lado do
sofrimento.
Na década de 1970, os cientistas sociais Richard
Solomon e John Corbit chamaram essa relação recíproca
entre prazer e sofrimento de teoria do processo oponente:
“Qualquer afastamento prolongado ou repetido de
neutralidade hedonista ou afetiva… tem um custo”.8 Esse
custo é uma “reação posterior”, com valor oposto ao
estímulo. Ou, como dizia o velho ditado: Tudo que sobe tem
que descer.
Acontece que muitos processos fisiológicos do corpo são
governados por sistemas autorreguladores semelhantes. Por
exemplo: Johann Wolfgang von Goethe, Ewald Hering e
outros demonstraram como a percepção da cor é regida por
um sistema de processo oponente. Olhar de perto uma cor
por um período contínuo produz espontaneamente nos
olhos do observador uma imagem da sua cor “oposta”. Olhe
fixo para uma imagem verde contra um fundo branco
durante um tempo, e depois olhe para uma página em
branco, e perceberá que seu cérebro cria uma pós-imagem
vermelha. A percepção do verde dá lugar, em sequência, à
percepção do vermelho. Quando o verde está ativado, o
vermelho não pode estar, e vice-versa.
▸ Tolerância (neuroadaptação)
Todos nós experienciamos o desejo na sequência do
prazer. Seja buscar um segundo pacote de batata frita, seja
clicar no link para mais uma rodada de video games, é
natural querer recriar aquelas boas sensações, ou tentar não
deixar que sumam. A solução simples é continuar comendo,
ou jogando, ou assistindo, ou lendo. Mas existe um problema
nisso.
Com a repetida exposição ao mesmo estímulo ao prazer,
ou a um estímulo semelhante, o desvio inicial para o lado do
prazer fica mais fraco e mais curto, e a resposta posterior
para o lado do sofrimento fica mais forte e mais demorada,
um processo chamado pelos cientistas de neuroadaptação.
Ou seja, com a repetição, nossos gremlins ficam maiores,
mais rápidos e mais numerosos, e precisamos de uma maior
quantidade da droga de nossa escolha para obter o mesmo
efeito.
Precisar mais de uma substância para sentir prazer, ou
sentir menos prazer com uma determinada dose, é chamado
de tolerância. A tolerância é um fator importante no
desenvolvimento da dependência.
Para mim, ler a saga Crepúsculo pela segunda vez foi
agradável, mas não tanto quanto na primeira vez. Na quarta
vez em que a li (sim, li quatro vezes a saga completa), meu
prazer foi significativamente menor. A releitura nunca se
igualou àquele primeiro ciclo. Além disso, a cada vez que a
li, passei a ter uma sensação maior de insatisfação, e um
desejo mais forte de recuperar a sensação que tive ao lê-la
pela primeira vez. Conforme fiquei “tolerante” a Crepúsculo,
fui forçada a procurar formas novas e mais potentes da
mesma droga para tentar recuperar aquela sensação inicial.
Com o uso prolongado de drogas mais fortes, o equilíbrio
entre o prazer e o sofrimento acaba pesando para o lado do
sofrimento. Nosso ponto de ajuste hedônico (prazer) muda,
conforme nossa capacidade de vivenciar prazer diminui e
nossa vulnerabilidade ao sofrimento sobe. Imagine os
gremlins acampados no lado do sofrimento da balança, com
barracas, colchões infláveis e churrasqueiras portáteis a
reboque.
Fiquei bem mais atenta a esse efeito das substâncias
adictivas de alta dopamina no caminho de recompensa do
cérebro no início dos anos 2000, quando comecei a atender
mais pacientes que vinham ao consultório sob um
tratamento, a longo prazo, de altas doses de opioide (pense
em oxicodona, hidrocodona, morfina, fentanil) para dor
crônica. Apesar da alta dosagem desses medicamentos e do
uso prolongado, a dor dos pacientes só tinha piorado com o
tempo. Por quê? Porque a exposição a opioides tinha feito
com que o cérebro reprogramasse o equilíbrio prazersofrimento para o lado do sofrimento. Agora, sua dor original
estava pior, e eles tinham novas dores em partes do corpo
que não costumavam doer.
Esse fenômeno, amplamente observado e verificado em
estudos de animais, passou a ser chamado de hiperalgesia
induzida por opioides.9 Algesia, do grego algesis, significa
sensibilidade à dor. Além disso, quando esses pacientes
diminuíam gradativamente os opioides, muitos deles
experimentavam melhora na dor.10
A neurocientista Nora Volkow e seus colegas
demonstraram que o consumo pesado e prolongado de
substâncias de alta dopamina acaba levando a um estado de
déficit de dopamina.
Volkow analisou a transmissão de dopamina nos
cérebros de controle saudáveis em comparação com pessoas
dependentes de uma variedade de drogas, duas semanas
depois de terem parado de usá-las. As imagens do cérebro
são chocantes. Nas imagens dos cérebros de controle
saudáveis, uma área com o formato de feijão, associada no
cérebro à recompensa e motivação, aparece em vermelho
vivo, indicando altos níveis de atividade neurotransmissora
de dopamina. Nas imagens de pessoas com dependência,
que pararam de usar droga duas semanas antes, a mesma
região do cérebro em formato de feijão contém pouco ou
nenhum
vermelho,
indicando
pouca
ou
nenhuma
transmissão de dopamina.
Como a Dra. Volkow e seus colegas escreveram: “A
diminuição de receptores DA D2 nos dependentes de droga,
acoplada à diminuição da liberação de DA, resultaria numa
sensibilidade reduzida de circuitos compensatórios para a
estimulação de recompensas naturais”.11 Uma vez que isto
acontece, nada continua parecendo bom.
Colocando de outra maneira, os jogadores do Time
Dopamina pegam suas bolas, suas chuteiras e vão para
casa.
EFEITOS DA ADICÇÃO NOS RECEPTORES DE DOPAMINA
Nos
cerca
de
dois
anos
em
que
consumi
compulsivamente romances baratos, acabei chegando a um
ponto em que não conseguia achar um livro de que
gostasse. Era como se eu tivesse esgotado meu centro de
prazer na leitura de romances, e nenhum livro conseguisse
revivê-lo.
O paradoxo é que o hedonismo, a busca pelo prazer por
si só, leva à anedonia, a incapacidade de desfrutar qualquer
tipo de prazer. Ler sempre tinha sido minha principal fonte
de prazer e fuga, então foi um choque e uma tristeza quando
isso parou de funcionar. Mesmo assim, foi difícil parar.
Meus pacientes com dependência descrevem que
chegam a um ponto em que a droga deixa de fazer efeito. Já
não conseguem ficar surtados. Ainda assim, se não tomam a
droga, sentem-se miseráveis. Os sintomas universais de
retirada de qualquer substância que cause dependência são
ansiedade, irritabilidade, insônia e disforia.
Uma balança de prazer-sofrimento inclinada para o lado
do sofrimento é o que leva as pessoas a terem recaídas,
mesmo depois de terem mantido períodos de abstinência.
Quando nossa balança está inclinada para o lado do
sofrimento, desejamos nossa droga só para nos sentirmos
normais (uma balança nivelada).
O neurocientista George Koob chama esse fenômeno de
“recaída levada pela disforia”,12 no qual a retomada do uso é
levada não pela busca do prazer, mas pelo desejo de aliviar
o sofrimento físico e psicológico de uma retirada prolongada.
Agora, a boa notícia. Se esperarmos tempo suficiente,
nosso cérebro (geralmente) se readapta à ausência da
droga, e restabelecemos nossa homeostase basal. Uma vez
que nossa balança esteja nivelada, somos novamente
capazes de obter prazer das recompensas simples e
cotidianas: sair para uma caminhada, ver o sol nascer,
aproveitar uma refeição com amigos.
▸ Pessoas, lugares e coisas
A balança prazer-sofrimento é acionada não apenas
pela reexposição à droga em si, mas também pela
exposição a sugestões associadas ao uso da droga. Nos
Alcoólicos Anônimos, o lema para descrever esse fenômeno
é pessoas, lugares e coisas. No mundo da neurociência, isto
se chama aprendizagem dependente de sugestões, também
conhecida como condicionamento clássico (pavloviano).
Ivan Pavlov, que ganhou o Prêmio Nobel em Fisiologia
ou Medicina em 1904, demonstrou que os cachorros salivam
por reflexo quando lhes é apresentado um pedaço de carne.
Quando a apresentação da carne é consistentemente
acompanhada pelo som de uma campainha, os cachorros
salivam ao ouvir a campainha, mesmo que nenhuma carne
esteja imediatamente acessível. A interpretação é de que os
cachorros aprenderam a associar o pedaço de carne, uma
recompensa natural, à campainha, uma sugestão
condicionada. E no cérebro, o que está acontecendo?
Com a inserção de uma sonda de detecção no cérebro
de um rato, os neurocientistas demonstraram que a
dopamina é liberada no cérebro em reação à sugestão
condicionada (como uma campainha, um metrônomo, um
facho de luz) bem antes de a própria recompensa ser
ingerida (por exemplo, uma carreira de cocaína). O pico de
dopamina pré-recompensa, em resposta à sugestão
condicionada, explica o prazer antecipado que sentimos
quando sabemos que virão coisas boas.
NÍVEIS DE DOPAMINA: ANTECIPAÇÃO E DESEJO
Logo depois da sugestão condicionada, a descarga de
dopamina no cérebro diminui, não apenas para níveis
básicos (o cérebro tem um nível tônico de disparo de
dopamina mesmo na ausência de recompensas), mas
abaixo do nível básico. Esse estado transitório de déficit
mínimo de dopamina é o que nos motiva a buscar nossa
gratificação. Os níveis de dopamina abaixo da linha de base
levam ao anseio. O anseio resulta numa atividade
intencional para obtenção da droga.
Meu colega Rob Malenka, um neurocientista muito
respeitado, me disse uma vez que “a medida do quanto um
animal de laboratório está dependente resume-se a quanto
aquele animal está disposto a se esforçar para obter sua
droga, pressionando uma alavanca, andando por um
labirinto, subindo uma rampa”. Descobri que o mesmo se
aplica aos seres humanos. Sem mencionar que todo ciclo de
antecipação e desejo pode ocorrer fora do limite do estado
consciente.
Depois que conseguimos a recompensa esperada, a
descarga de dopamina no cérebro aumenta bem acima da
linha básica tônica. Mas se a recompensa que esperamos
não se materializa, os níveis de dopamina caem bem abaixo
da linha básica. O que equivale a dizer, se conseguimos a
recompensa esperada, podemos conseguir um pico ainda
maior; se não conseguimos a recompensa esperada,
vivenciamos uma queda ainda maior.
NÍVEIS DE DOPAMINA: ANTECIPAÇÃO E DESEJO
Todos nós vivenciamos a decepção de expectativas não
cumpridas. Para começo de conversa, uma recompensa
esperada que não se materializa é pior do que uma
recompensa nunca prevista.
Como é que o desejo induzido pela sugestão se traduz
em nossa balança prazer-sofrimento? A balança inclina-se
para o lado do prazer (um minipico de dopamina) em
antecipação a uma recompensa futura, imediatamente
seguida por uma inclinação para o lado do sofrimento (um
minidéficit de dopamina) após a sugestão. O déficit de
dopamina é um anseio e leva ao comportamento que busca
a droga.
Na década passada, foram feitos avanços significativos
no entendimento da causa biológica do jogo de azar
patológico, levando à reclassificação dos seus transtornos
na 5ª edição do Manual de diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais (DSM-5) como transtornos de
dependência.
Estudos indicam que a liberação de dopamina
resultante dos jogos de azar se vincula à imprevisibilidade
da entrega de recompensa, tanto quanto à própria
recompensa final (frequentemente monetária). A motivação
para jogar baseia-se amplamente na impossibilidade de se
prever a ocorrência de gratificação, mais do que no ganho
financeiro.
Num estudo de 2010, Jakob Linnet e seus colegas
mediram a liberação de dopamina em pessoas dependentes
de jogos de azar e nas que tinham controles saudáveis ao
ganhar e perder dinheiro.13 Não houve diferenças distintas
entre os dois grupos quando ganhavam dinheiro; no
entanto, em comparação ao grupo controle, os jogadores
patológicos apresentaram um marcante aumento nos níveis
de dopamina quando perdiam dinheiro. A quantidade de
dopamina liberada no caminho da recompensa estava no
seu mais alto grau quando a probabilidade de perder e
ganhar era quase idêntica (50%), representando uma
incerteza máxima.
O transtorno dos jogos de azar evidencia a distinção
sutil entre antecipação de recompensa (liberação de
dopamina antes da recompensa) e reação à recompensa
(liberação de dopamina depois ou durante a recompensa).
Meus pacientes com dependência a jogos de azar contam
que, enquanto jogam, uma parte deles quer perder. Quanto
mais eles perdem, mais forte a necessidade de continuar
jogando, e mais forte a adrenalina quando ganham –
fenômeno descrito como “perseguição da perda”.
Desconfio que algo semelhante acontece com os
aplicativos de redes sociais, onde a reação dos outros é tão
caprichosa e imprevisível que a incerteza de ganhar “like”
ou algo equivalente é tão reforçadora quando o próprio
“like”.
O cérebro codifica memórias de longo prazo de
recompensa e as sugestões que lhe estão associadas,
mudando o formato e o tamanho dos neurônios que
produzem
dopamina.
Por
exemplo,
os
dendritos,
prolongamentos do neurônio, tornam-se mais compridos e
mais numerosos em resposta a recompensas de alta
dopamina. Esse processo é chamado de plasticidade
dependente da experiência.14 Essas mudanças no cérebro
podem durar uma vida e persistem muito tempo depois de
a droga já não estar disponível.
Pesquisadores exploraram os efeitos da exposição à
cocaína em ratos, injetando neles a mesma quantidade de
cocaína em dias seguidos, durante uma semana, e
dimensionando o quanto eles corriam em resposta a cada
injeção. Um rato injetado com cocaína correrá pelo meio da
gaiola, em vez de se manter à margem, como fazem os
ratos normais. A quantidade de corridas pode ser
mensurada pelo uso de fachos de luz projetados através da
gaiola. Quanto mais vezes o rato cruza o facho de luz, mais
ele está correndo.
Os cientistas descobriram que, a cada dia sucessivo de
exposição à cocaína, os ratos progrediram de uma corrida
animada no primeiro dia para uma disparada direta e
frenética no último, mostrando uma sensibilização
cumulativa nos efeitos da droga.
Uma vez que os pesquisadores pararam de administrar
cocaína, os ratos pararam de correr. Um ano depois – uma
verdadeira eternidade para um rato –, os cientistas
reinjetaram os ratos com cocaína uma vez, e eles saíram
correndo imediatamente, como tinha acontecido no último
dia do experimento original.
Quando os cientistas examinaram os cérebros dos ratos,
viram mudanças induzidas pela cocaína nos caminhos de
recompensa dos ratos, consistentes com a sensibilização
persistente a cocaína. Essas descobertas mostram que uma
droga como a cocaína pode alterar o cérebro para sempre.
Descobertas semelhantes foram demonstradas com outras
substâncias adictivas, do álcool a opioides e maconha.
Em meu trabalho clínico, vejo pessoas que lutam com
dependência severa voltando diretamente ao uso
compulsivo com uma única exposição, mesmo após anos de
abstinência. Isso pode acontecer por causa da sensibilização
persistente à droga de escolha, os ecos distantes do uso
anterior da droga.
Aprender também aumenta o disparo de dopamina no
cérebro. Ratazanas abrigadas por três meses em um
ambiente diverso, novo e estimulante apresentam uma
proliferação de sinapses ricas em dopamina, no caminho de
recompensa do cérebro, em comparação com ratos
abrigados em gaiolas padrão de laboratório. As mudanças
cerebrais que acontecem em resposta a um ambiente novo
e estimulante assemelham-se àquelas vistas em drogas de
alta dopamina (adictivas).
Mas se as mesmas ratazanas são previamente tratadas
com um estimulante tal como a metanfetamina, droga
altamente adictiva, antes de entrar no ambiente
enriquecido, elas não apresentam as mudanças sinápticas
vistas na exposição ao ambiente enriquecido. Essas
descobertas sugerem que a metanfetamina limita a
capacidade de aprendizagem em um rato.15
Agora, algumas boas notícias. Meu colega Edie Sullivan,
especialista mundial em efeitos do álcool no cérebro,
estudou o processo de recuperação da dependência e
descobriu que, embora algumas mudanças cerebrais
devidas à dependência sejam irreversíveis, é possível se
desviar dessas áreas danificadas e criar novas redes
neurais. Isso significa que, embora as mudanças cerebrais
sejam permanentes, podemos descobrir novos caminhos
sinápticos para criar comportamentos saudáveis.16
Enquanto
isto,
o
futuro
contém
tentadoras
possibilidades de reverter as cicatrizes da dependência.
Vincent Pascoli e seus colegas injetaram cocaína em ratos, o
que demonstrou as mudanças comportamentais esperadas
(corridas frenéticas); em seguida, usaram a optogenética –
técnica biológica que envolve o uso de luz para controlar
neurônios – para reverter as mudanças sinápticas cerebrais
causadas pela cocaína.17 Talvez, um dia, seja possível o uso
da optogenética em cérebros humanos.
▸ A balança é apenas uma metáfora
Na vida real, o prazer e o sofrimento são mais
complexos do que o funcionamento de uma balança.
O que é agradável para uma pessoa pode não ser para
outra. Cada pessoa tem sua “droga de escolha”.
O
prazer
e
o
sofrimento
podem
ocorrer
simultaneamente. Por exemplo, podemos sentir tanto um
quanto outro ao comer um prato apimentado.
Nem todos começam com uma balança nivelada. Quem
tem depressão, ansiedade e dor crônica começa com a
balança inclinada para o lado do sofrimento, o que pode
explicar por que as pessoas com transtornos psiquiátricos
são mais vulneráveis à dependência.
Nossa percepção sensória do sofrimento (e do prazer) é
muito influenciada pelo significado que conferimos a isso.
Henry Knowles Beecher (1904-1976) serviu como
médico militar durante a Segunda Guerra Mundial no norte
da África, na Itália e na França. Observou 225 soldados com
graves ferimentos ocorridos em batalha e fez um relatório a
respeito.
Beecher foi rígido com os critérios de inclusão no seu
estudo, avaliando apenas homens que “tinham um de cinco
tipos
de
ferimentos
graves,
escolhidos
como
representativos: lesão extensa de tecido mole periférico,
fratura exposta de um osso longo, bala alojada na cabeça,
no peito ou no abdômen… estavam mentalmente lúcidos
e… não estavam em choque no momento das perguntas”.
Sua descoberta foi impressionante: 75% desses
soldados com ferimentos graves relataram pouca ou
nenhuma dor imediatamente após serem feridos, apesar de
serem ferimentos com risco de morte.
Sua conclusão foi que a dor física era contrabalançada
pelo alívio emocional de escapar “de um ambiente
extremamente perigoso, cheio de cansaço, desconforto,
ansiedade, medo e real ameaça de morte”. A dor deles, por
pior que fosse, dava-lhes “passe livre para a segurança do
hospital”.18
Por outro lado, um relato no British Medical Journal,
publicado em 1995, detalha o caso de um operário de
construção de 29 anos que entrou no pronto-atendimento,
depois de cair de pé sobre um prego de 15 centímetros,19
que apontava para fora da parte de cima da sua bota,
depois de penetrar o couro, a carne e os ossos. “O menor
movimento do prego era doloroso [e] ele foi sedado com
fentanil e midazolam”, poderosos opioides e sedativos.
Mas quando o prego foi puxado para fora, por debaixo, e
a bota removida, ficou claro que “o prego tinha penetrado
entre os dedos, o pé estava totalmente incólume”.
A ciência nos ensina que todo prazer exige um preço, e
o sofrimento que se segue dura mais tempo e é mais
intenso do que o prazer do qual ele se originou.
Com exposição prolongada e repetitiva a estímulos
prazerosos, nossa capacidade de tolerância à dor diminui, e
nosso limite para experienciar prazer aumenta. Ao gravar
uma memória instantânea e permanente, somos incapazes
de esquecer as lições de prazer e sofrimento, mesmo se
quisermos; o hipocampo tatua para durar a vida toda.
O maquinário neurológico para o processamento de
prazer e sofrimento (superantigo do ponto de vista
filogenético) permaneceu intacto ao longo da evolução e
através das espécies. Ele está perfeitamente adaptado a um
mundo de escassez. Sem prazer, não comeríamos,
beberíamos, nem nos reproduziríamos. Sem dor, não nos
protegeríamos de ferimentos e morte. Ao elevar nosso
ponto de ajuste neural com repetidos prazeres, tornamo-nos
eternos batalhadores, nunca satisfeitos com o que temos,
sempre buscando mais.
Mas aqui está o problema. Os seres humanos,
buscadores por excelência, reagiram bem demais ao desafio
da busca do prazer e da evasiva da dor. O resultado é que
transformamos o mundo de um lugar de escassez em um
lugar de abundância excessiva.
Nossos cérebros não evoluíram para esse mundo de
fartura. Como disse o Dr. Tom Finucane, que estuda diabetes
no contexto da alimentação sedentária crônica, “somos
cactos em uma floresta tropical”.20 E como cactos
adaptados a um clima árido, estamos nos afogando em
dopamina.
O efeito bruto é que agora precisamos de mais
recompensa para sentir prazer e suportamos menos danos
para sentir dor. Esta recalibração ocorre não apenas no nível
individual, mas também no nível das nações. O que pede o
questionamento: como sobreviver e nos desenvolver nesse
novo ecossistema? Como educar as crianças? Que novas
maneiras de pensar e agir serão necessárias para nós,
cidadãos do século 21?
Ninguém melhor para nos ensinar como evitar o
hiperconsumo compulsivo do que os mais vulneráveis a ele:
os que lutam com a dependência. Evitados há milênios
através das culturas, como réprobos, parasitas e
propagadores de depravação moral, os dependentes
desenvolveram um conhecimento perfeitamente adequado
à época em que vivemos.
O que se segue são lições de recuperação para um
mundo saturado de recompensas. ■
* Kathleen Montagu publicou suas descobertas sobre a dopamina na
revista Nature em agosto de 1957; Arvid Carlsson e seus colegas, alguns
meses depois, em novembro de 1957, na mesma revista. (N. E.)
CAPÍTULO 4
Jejum de dopamina
– Delilah disse
naquela voz mal-humorada típica de qualquer adolescente.
– Tudo bem – eu disse. – Por que seus pais querem que
você venha aqui?
– Eles acham que estou fumando maconha demais, mas
meu problema é ansiedade. Fumo porque sou ansiosa, e, se
você puder dar um jeito nisso, eu não precisaria mais da
erva.
Por um momento, fui tomada por uma tristeza
avassaladora. Não por não saber o que recomendar, mas
por temer que ela não seguisse o meu conselho.
– Tá, vamos começar por aí. Conte-me sobre a sua
ansiedade.
Ela dobrou as pernas longas e graciosas debaixo dela.
– Começou no final do ensino fundamental e tem
piorado com os anos. Quando acordo de manhã, a primeira
coisa que sinto é ansiedade. A única coisa que me tira da
cama é minha wax pen.
– Sua wax pen?
– É, agora eu vaporizo. Eu costumava usar blunts* e
bongs, Sativa de dia, para dar energia, e Indica antes de
dormir, para relaxar. Mas agora parti para os
concentrados… wax, óleo, budder, shatter, scissor, dust,
QWISO. Uso, principalmente uma caneta vaporizadora, mas
– ESTOU AQUI PORQUE MEUS PAIS ME OBRIGARAM
às vezes uso um vaporizador Vulcano… Não gosto de
comestíveis, mas uso-os nos intervalos, ou numa
emergência, quando não dá pra fumar.
▸ D significa dados
Ao pedir que ela contasse mais sobre sua wax pen,
convidei Delilah a mergulhar nos mínimos detalhes do seu
uso diário. Minha conversa com ela foi guiada por uma
estrutura que desenvolvi ao longo dos anos para conversar
com os pacientes sobre o problema do hiperconsumo
compulsivo.
Essa estrutura é facilmente lembrada pelo acrônimo
DOPAMINA (em inglês DOPAMINE), que se aplica não apenas a
drogas convencionais, como álcool e nicotina, mas também
a qualquer substância, ou comportamento, de alta
dopamina que ingerimos em demasia por muito tempo, ou
simplesmente com o qual queríamos ter uma relação um
pouco menos torturante. Embora tenha sido, a princípio,
desenvolvida para minha prática profissional, também a
apliquei em mim mesma e a meus próprios hábitos
inadequados de consumo.
O D significa dados. Começo reunindo os fatos simples
de consumo. No caso de Delilah, averiguei o que ela estava
usando, quanto e com que frequência.
Em se tratando de cannabis, a lista atordoante de
produtos e de mecanismos de oferta descritos por Delilah é
comum para meus pacientes atuais. Muitos deles, quando
me procuram, têm o equivalente a um doutorado em
maconha. Em contraste com a década de 1960, quando o
costume era usar apenas nos fins de semana de lazer, meus
pacientes começam a fumar logo que acordam e se
mantêm assim o dia todo, até voltar para a cama. Isso é
preocupante em muitos níveis, ainda mais que o uso diário
tem sido associado a dependência.
Em meu próprio caso, comecei a desconfiar que estava
oscilando para a zona de perigo, quando ler romances
baratos começou a ocupar várias horas do dia, vários dias
seguidos.
▸ O significa objetivos
– O que fumar provoca em você? – perguntei a Delilah. –
Ajuda em que sentido?
– É a única coisa que funciona para a minha ansiedade –
ela respondeu. – Sem isso, eu seria inútil… Quero dizer,
ainda mais inútil do que sou agora.
Ao pedir a Delilah que me contasse como a cannabis a
ajudava, eu validava que a droga vinha fazendo algo
positivo, ou ela não a estaria usando.
A letra O significa objetivos de uso. Mesmo um
comportamento aparentemente irracional provém de
alguma lógica pessoal. As pessoas usam substâncias e
comportamentos com alta dopamina por diversos motivos:
para se divertir, se adaptar, aliviar o tédio, lidar com o
medo, a raiva, a ansiedade, a insônia, a depressão, a
desatenção, a dor, a fobia social… a lista não para.
Eu usava o romance barato para escapar do que, para
mim, era uma transição dolorosa de deixar de ser mãe de
crianças pequenas para ser mãe de adolescentes, tarefa
para a qual me sentia bem menos capacitada. Também
estava amenizando meu pesar de nunca mais ter outro
bebê, algo que eu queria, mas meu marido não, e que criou
uma tensão em nosso casamento e em nossa vida sexual,
que antes não existia.
▸ P significa problemas
– Algum aspecto negativo por fumar? Consequências
involuntárias?
– A única coisa ruim em fumar é que meus pais não
largam do meu pé – respondeu Delilah. – Se me deixassem
em paz, não haveria nenhum aspecto negativo.
Observei o sol reluzindo em seu cabelo. Ela era o retrato
da saúde, apesar do fato de estar ingerindo mais de 1
grama de cannabis por dia. Pensei: A juventude compensa
muita coisa.
O P tem a ver com problemas relacionados ao uso.
Drogas de alta dopamina sempre levam a problemas.
Problemas de saúde, problemas de relacionamento,
problemas morais. Se não imediatamente, então mais tarde.
O fato de Delilah não conseguir ver aspectos negativos, a
não ser o conflito crescente entre ela e os pais, é típico dos
adolescentes… mas não apenas dos adolescentes. Essa
desconexão ocorre por vários motivos.
Em primeiro lugar, a maioria de nós não consegue ver
toda a extensão das consequências do uso da droga,
enquanto
ainda
estamos
usando.
Substâncias
e
comportamentos de alta dopamina turvam nossa
capacidade de avaliar com precisão causa e efeito.
O neurocientista Daniel Friedman, que estuda as
práticas de busca de alimentos das formigas vermelhas
ceifeiras, observou certa vez: “O mundo é sensoriamente
rico e pobre na relação de causalidade”. O que quer dizer
que sabemos que um bolo de chocolate é gostoso na hora,
mas estamos menos atentos ao fato de que comer uma
fatia diariamente, durante um mês, acrescenta dois quilos à
nossa cintura.
Em segundo lugar, os jovens, até mesmo os usuários
pesados, são mais imunes às consequências negativas de
uso. Um professor do ensino médio me disse certa vez:
“Alguns dos meus melhores alunos fumam maconha todos
os dias”.
No entanto, à medida que envelhecemos, as
consequências involuntárias do uso crônico se multiplicam.
A maioria dos meus pacientes que vem se tratar
voluntariamente é de meia-idade. Eles me procuram por
terem chegado a um ponto crítico em que as desvantagens
do uso superam as vantagens. Como dizem no AA, estão
doentes e cansados de estarem doentes e cansados. Por
outro lado, meus pacientes adolescentes não estão doentes
nem cansados.
Mesmo assim, conseguir que os adolescentes vejam
algumas consequências negativas em seu uso, enquanto
ainda estão usando, mesmo que seja apenas o fato de
outras pessoas não gostarem disso, pode servir de alguma
influência para que eles parem. E parando, ainda que seja
só por um período, é essencial para levá-los a enxergar a
verdadeira relação de causa e efeito.
▸ A significa abstinência
– Tenho uma ideia do que poderia ajudar você – disse a
Delilah –, mas será preciso que você faça uma coisa
realmente difícil.
– O quê?
– Gostaria que você fizesse uma experiência.
– Uma experiência? – Ela inclinou a cabeça de lado.
– Gostaria que você parasse de usar cannabis durante
um mês.
Seu rosto ficou impassível.
– Vou explicar. Em primeiro lugar, os tratamentos para
ansiedade provavelmente não funcionarão se você estiver
fumando essa quantidade de cannabis. Em segundo lugar, e
mais importante, existe uma nítida possibilidade de que, se
você parar de fumar durante um mês inteiro, sua ansiedade
melhorará por conta própria. É claro que no começo você
vai se sentir pior por causa da abstinência. Mas se conseguir
atravessar as duas primeiras semanas, existe uma boa
chance de que nas duas semanas seguintes você começará
a se sentir melhor.
Ela permaneceu quieta, então continuei. Expliquei que
qualquer droga que estimule nosso circuito de recompensa,
da maneira que a cannabis faz, tem o potencial de mudar o
patamar de ansiedade do nosso cérebro. O que parece ser a
cannabis tratando a ansiedade pode, na verdade, ser a
cannabis aliviando a abstinência da nossa última dose. A
cannabis torna-se a causa da nossa ansiedade, e não a
cura. A única maneira de ter certeza disto é largar por um
mês.
– Pode ser uma semana? – ela perguntou. – Eu já fiz isso
antes.
– Uma semana seria bom, mas, pela minha experiência,
um mês é o tempo mínimo que leva para reconfigurar o
circuito de recompensa do cérebro. Se você não se sentir
melhor depois de quatro semanas de abstinência, também
será um dado útil. Significa que a cannabis não está
provocando a ansiedade, e precisaremos pensar no que
mais possa ser. Então, o que você acha? Acha que
conseguiria e estaria disposta a parar a cannabis por um
mês?
– Huuum… Não acho que esteja pronta para tentar
largar agora, mas talvez mais tarde. Com certeza, não vou
ficar fumando desse jeito pelo resto da vida.
– Você quer continuar usando cannabis assim daqui a
dez anos?
– Não, nem pensar. Com certeza não. – Ela sacudiu a
cabeça com energia.
– E daqui a cinco anos?
– Não, nem daqui a cinco anos.
– Que tal daqui a um ano?
Ela deu uma risadinha.
– Acho que você me pegou. Se não quiser continuar
usando deste jeito daqui a um ano, deveria pensar em parar
agora, né? – Olhou para mim e sorriu. – Tudo bem, eu topo.
Ao pedir a Delilah que refletisse sobre seu
comportamento atual, à luz da sua situação futura, eu
esperava que largar de fumar assumiria uma nova urgência.
Pareceu que tinha funcionado.
A significa abstinência.
A abstinência é necessária para restaurar a
homeostase, e com ela nossa capacidade de obter prazer
de recompensas menos potentes, bem como ver a
verdadeira causa e efeito entre nosso uso de substância e a
maneira como nos sentimos. Colocando em termos da
balança prazer-sofrimento, o jejum de dopamina permite-
nos um tempo suficiente para que os gremlins se afastem
da balança, e ela retorne à posição nivelada.
A questão é: de quanto tempo as pessoas precisam se
abster para experimentar os benefícios do cérebro por ter
parado?
Relembre o estudo de imagens da neurocientista Nora
Volkow, em que a transmissão de dopamina continua abaixo
do normal depois de duas semanas sem as drogas.1 O
estudo dela é consistente com minha experiência clínica de
que duas semanas de abstinência não bastam. Em geral,
depois de duas semanas os pacientes ainda estão
vivenciando a supressão. Eles ainda estão num estado de
déficit de dopamina.
Por outro lado, quatro semanas são suficientes. Marc
Schuckit e seus colegas estudaram um grupo de homens
que bebiam álcool diariamente em grandes quantidades e
correspondiam ao critério para depressão clínica, ou o que é
chamado de transtorno depressivo maior.
Schuckit, professor de psicologia experimental na
Universidade Estadual de San Diego, é mais conhecido por
demonstrar que os filhos biológicos de alcoólicos têm um
risco genético maior de desenvolver um transtorno por uso
de álcool, em comparação com aqueles sem essa carga
genética. Tive o prazer de aprender com Marc, um professor
talentoso, em uma série de conferências sobre dependência
no início dos anos 2000.
Os homens depressivos do estudo de Schuckit
internaram-se no hospital por quatro semanas, durante as
quais não receberam tratamento para depressão, a não ser
parar com o álcool. Depois de um mês sem beber, 80%
deles já não atendiam aos critérios para depressão clínica.2
Esta descoberta indica que, para a maioria, a depressão
clínica resultava de uma bebedeira excessiva, e não de um
transtorno depressivo concomitante. É claro que existem
outras explicações para esses resultados: o meio
terapêutico do ambiente hospitalar, uma remissão
espontânea, a natureza episódica da depressão, que pode
vir e ir independentemente de fatores externos. Mas as
descobertas robustas são notáveis, considerando que os
tratamentos
padrão
para
depressão,
seja
com
medicamentos, seja com psicoterapia, têm um índice de
resposta de 50%.3
É claro, já atendi pacientes que precisaram de menos de
quatro semanas para reconfigurar seu circuito de
recompensa, e outros que precisaram de muito mais tempo.
Aqueles que usam drogas mais potentes em quantidades
maiores por um prazo maior normalmente precisarão de
mais tempo. Pessoas mais jovens se recalibram mais rápido
do que as mais velhas, porque seu cérebro é mais plástico.
Além disso, a abstinência física varia de droga para droga.
Pode ser menor para algumas drogas, como video games,
mas potencialmente um risco de vida para outras, como
álcool e benzodiazepínicos.
O que nos traz para uma importante ressalva: nunca
sugiro um jejum de dopamina para indivíduos que poderiam
correr risco de sofrer abstinência potencialmente fatal caso
largassem tudo de uma vez, como no caso da dependência
severa de álcool, benzodiazepínicos (Xanax, Valium ou
Klonopin/Rivotril), ou opioides e sua retirada. Para esses
pacientes, é necessária uma redução gradual com
monitoramento médico.
Às vezes, os pacientes perguntam se podem trocar uma
droga por outra: cannabis por nicotina, video games por
pornografia. Raramente, é uma estratégia efetiva a longo
prazo.
Qualquer recompensa que seja potente o suficiente
para superar os gremlins e inclinar a balança na direção do
prazer pode ser, por si mesma, adictiva, resultando, assim,
em trocar uma dependência por outra (dependência
cruzada). Qualquer recompensa que não seja potente não
parecerá uma recompensa, motivo pelo qual, quando
estamos consumindo recompensas de alta dopamina,
perdemos a capacidade de extrair alegria de prazeres
comuns.
Uma minoria de pacientes (cerca de 20%) não se sente
bem depois do jejum de dopamina. Este também é um dado
importante, porque me diz que a droga não era o principal
acionador do sintoma psiquiátrico, e que é provável que o
paciente tenha um transtorno psiquiátrico concomitante,
que exigirá um tratamento próprio.
Mesmo quando o jejum de dopamina é benéfico, um
transtorno psiquiátrico concomitante deveria ser tratado
concomitantemente. Cuidar da dependência sem também
abordar outros transtornos psiquiátricos normalmente leva a
maus resultados para ambos os casos.
Todavia, para avaliar a relação entre o uso de
substância e os sintomas psiquiátricos, é preciso observar o
paciente por um período razoável, sem as recompensas de
alta dopamina.
▸ M significa mindfulness
– Quero que você esteja preparada para se sentir pior
antes de se sentir melhor – expliquei para Delilah. – Quero
dizer com isso que, quando parar a cannabis pela primeira
vez, sua ansiedade vai piorar. Mas lembre-se, não é a
ansiedade com a qual você terá que conviver sem a
maconha. É a ansiedade mediada pela retirada. Quanto
mais tempo você ficar sem usar, mais rápido chegará ao
ponto em que se sentirá melhor. Em geral, os pacientes
relatam uma virada depois de duas semanas.
– Tudo bem. O que devo fazer enquanto isso? Você tem
algum comprimido que possa me dar?
– Não há nada que eu possa te dar para acabar com o
sofrimento que também não provoque dependência. Como
não queremos trocar uma dependência por outra, o que
estou te pedindo é para tolerar a dor.
Ela engoliu em seco.
– É, eu sei. É puxado. Mas é também uma oportunidade.
Uma chance para você se observar em separado dos seus
pensamentos, das suas emoções e sensações, inclusive do
sofrimento. Esta prática é, às vezes, chamada de
mindfulness.
M significa mindfulness, ou atenção plena.
Mindfulness é um termo tão banalizado agora que
perdeu um pouco do seu significado. Desenvolvido na
tradição espiritual budista de meditação, foi adotado e
adaptado pelo Ocidente como uma prática de bem-estar em
muitas disciplinas diferentes. Penetrou tão profundamente
na consciência ocidental que agora virou rotina ensinar essa
técnica nas escolas de ensino infantil dos Estados Unidos.
Mas o que é de fato mindfulness?
Mindfulness é simplesmente a capacidade de observar o
que nosso cérebro está fazendo, enquanto estiver fazendo,
sem julgamento. E é mais difícil do que parece. O órgão que
usamos para observar o cérebro é o próprio cérebro.
Esquisito, não é?
Quando olho para a Via Láctea, no céu noturno, fico
sempre admirada com o mistério de ser parte de algo que
parece tão distante e separado. Praticar mindfulness é como
observar a Via Láctea: exige que enxerguemos nossos
pensamentos e nossas emoções separados de nós e, no
entanto, ao mesmo temspo, parte de nós.
Além disso, o cérebro pode fazer algumas coisas bem
esquisitas, algumas das quais são constrangedoras, daí a
necessidade de ser sem julgamento. Excluir julgamento é
importante para a prática de mindfulness porque assim que
começamos a condenar o que nosso cérebro está fazendo –
Eita! Por que eu pensaria isso? Sou um caso perdido, uma
loucura – deixamos de ser capazes de observar. Ficar na
posição de observador é essencial para conhecer nosso
cérebro e nós mesmos de uma maneira nova.
Eu me lembro de estar parada na cozinha, em 2001,
segurando nos braços minha bebê recém-nascida, quando
me veio a imagem intrusiva de esmagar a cabeça dela
contra a geladeira, ou o balcão da cozinha, vendo-a explodir
como um melão maduro. A imagem foi fugidia, mas vívida,
e se eu não fosse uma praticante regular de mindfulness,
teria feito o possível para ignorá-la.
De início, fiquei horrorizada. Como psiquiatra, tinha
tratado mães que, como resultado de sua doença mental,
achavam que tinham de matar os filhos para salvar o
mundo. Uma delas de fato fez isso, um desenlace do qual
me lembro com tristeza e lamento até hoje. Então, quando
vivenciei a imagem de machucar minha própria filha, me
perguntei se estaria ingressando naquele grupo.
Mas, lembrando-me de observar sem julgamento,
acompanhei a imagem e o sentimento até onde eles
levavam e descobri que não queria esmagar a cabeça da
minha bebê; eu tinha era muito medo de fazer isso. O medo
tinha se manifestado como imagem.
Em vez de me condenar, consegui ter compaixão por
mim mesma. Eu estava penando com a enormidade das
minhas responsabilidades como mãe de primeira viagem e
com o que significava cuidar de uma criatura tão indefesa,
tão dependente de mim para protegê-la.
As práticas de mindfulness são especialmente
importantes nos primeiros dias de abstinência. Muitos de
nós usam substâncias e comportamentos de alta dopamina
para se distrair de seus próprios pensamentos. Quando
acabamos de largar o uso da dopamina como fuga, esses
pensamentos, emoções e sensações dolorosos vêm para
cima da gente.
O truque é parar de fugir das emoções dolorosas e, em
vez disso, se permitir tolerá-las. Quando conseguimos fazer
isto, nossa experiência assume uma textura nova,
inesperadamente rica. A dor continua lá, mas de certo modo
transformada; parece abarcar uma vasta paisagem de
sofrimento comum, mais do que ser totalmente só nosso.
Quando larguei meu hábito de leitura, fui tomada, nas
primeiras semanas, por um terror existencial. Deitava-me
no sofá à noite, hora em que recorreria a um livro ou algum
outro método de distração, as mãos dobradas sobre o
estômago, tentando relaxar, mas me sentindo cheia de
medo. Fiquei chocada que uma mudança aparentemente
tão pequena na minha rotina diária pudesse me encher de
tanta ansiedade.
Então, com o passar dos dias, e com a continuidade da
prática, vivenciei um relaxamento gradual dos meus limites
mentais, e uma expansão da minha consciência. Comecei a
ver que não precisava me distrair continuamente do
momento presente. Que poderia vivê-lo e tolerá-lo, e talvez
até fazer mais.
▸ I significa insight
Delilah concordou com um mês de abstinência. Quando
voltou, sua pele reluzia, os ombros já não estavam caídos, e
sua atitude mal-humorada tinha sido substituída por um
sorriso radiante. Entrou pisando firme na minha sala e
ocupou uma cadeira.
– Bom, consegui! E você não vai acreditar, mas minha
ansiedade sumiu, sumiu!
– Me conte o que aconteceu.
– Os primeiros dias foram pesados. Eu me senti horrível.
Vomitei no segundo dia. Insano! Eu nunca vomito. Me sentia
bem enjoada. Foi aí que percebi que estava largando, e isso
me motivou a continuar com a abstinência.
– Por que isso te motivou?
– Porque foi a primeira prova que tive de que eu era
mesmo dependente.
– E aí, como foi depois disso? Como você se sente
agora?
– Cara. Muito melhor. Uau. Menos ansiedade. Sem
dúvida, essa palavra ansiedade nem vem na minha cabeça.
Ela costumava governar o meu dia. Tô lúcida. Não preciso
me preocupar com os meus pais sentindo o cheiro e ficando
putos. Não fico mais ansiosa na escola. A paranoia, a
desconfiança… Isso acabou. Passava muito tempo e
dedicava muito esforço mental organizando minha próxima
“viagem”, correndo pra ficar chapada. É um baita alívio não
ter mais que fazer isso. Estou economizando dinheiro.
Descobri acontecimentos de que gosto mais quando estou
sóbria… tipo os encontros de família.
“Estou te contando a verdade. Eu não via a erva como
um problema. Não via mesmo. Mas agora que deixei de
fumar, percebo o quanto fumar causava ansiedade em vez
de curar. Fumei durante cinco anos sem parar e não via o
que estava fazendo comigo. Sinceramente, estou meio que
chocada.”
I significa insight.
Tenho visto repetidas vezes em tratamento clínico, e na
minha própria vida, como o simples exercício de se abster
da nossa droga de escolha por pelo menos quatro semanas
dá um insight esclarecedor sobre nosso comportamento.
Um insight que simplesmente não é possível enquanto
continuamos usando.
▸ N significa novos passos
Quando meu encontro com Delilah chegou ao fim,
perguntei-lhe sobre os objetivos para o próximo mês.
– Então, o que você acha? Quer continuar a abstenção
pelo próximo mês, ou quer voltar a usar?
– Ficar sóbria – respondeu Delilah. – Estou na minha
melhor versão.
Saboreei o momento.
– Mas ainda gosto mesmo de erva, e sinto falta da
sensação criativa que ela me dava, e da fuga. Não quero
parar de usar. Gostaria de voltar a usar, mas não como
antes – ela explicou.
N significa novos passos.
É então que pergunto a meus pacientes o que eles
querem fazer depois do seu mês de abstinência. A grande
maioria deles, dos que conseguem se abster por um mês e
vivenciam os benefícios da abstinência, mesmo assim quer
voltar a usar sua droga. Mas querem usá-la de um jeito
diferente do que usavam antes. O tema onipresente é que
querem usar menos.
Uma conversa constante no campo da medicina de
dependência é se as pessoas que usaram droga de maneira
adictiva podem se acostumar a um uso moderado e sem
risco. Por décadas, o conhecimento dos Alcoólicos Anônimos
ditava que a abstinência é a única opção para pessoas com
dependência.
Mas uma evidência emergente sugere que algumas
pessoas que preencheram os critérios para dependência no
passado, especialmente as com formas menos severas de
dependência, podem voltar a usar sua droga de escolha de
maneira controlada.4 Em minha experiência clínica, isso tem
sido verdade.
▸ E significa experimento
A letra final de dopamine (dopamina, em inglês)
significa experimento.
É o que ocorre quando os pacientes voltam para o
mundo armados com um novo ponto de ajuste de dopamina
(uma balança equilibrada de prazer-sofrimento) e um plano
de como mantê-la equilibrada. Quer o objetivo seja
continuar com a abstinência, quer seja a moderação, como
no caso de Delilah, planejamos juntos como consegui-lo.
Através de um processo gradual de tentativa e erro,
deduzimos o que funciona e o que não funciona.
Eu seria negligente se não observasse que o objetivo da
moderação, em especial para pessoas com dependência
severa, pode ser um tiro pela culatra, contribuindo para
uma intensificação precipitada de uso depois de um período
de abstinência, às vezes citada como efeito de violação da
abstinência.5
Após um período de duas a quatro semanas de
abstinência, ratos que demonstram uma propensão
genética a se tornarem dependentes de álcool vão cair na
bebedeira assim que tiverem acesso à bebida e continuarão
a consumi-la pesadamente dali em diante, como se nunca
tivessem passado pela abstinência.6 Um fenômeno
semelhante tem sido observado em ratos fissurados em
alimentos de altas calorias. O efeito é atenuado em ratos e
camundongos menos predispostos geneticamente a
consumo compulsivo.
O que não fica claro nos estudos com animais é se esse
fenômeno compulsivo pós-abstinência é limitado a drogas
calóricas, como alimentos e álcool, e não percebido em
drogas não calóricas, como cocaína; ou se o verdadeiro
indutor é a predisposição genética dos próprios ratos.
Mesmo quando a moderação é possível, muitos dos
meus pacientes relatam que é exaustivo demais continuar e
acabam optando pela abstinência por um longo tempo.
Mas e os pacientes dependentes de comida? Ou de
smartphones? Drogas que não podem ser totalmente
largadas?
A questão de como moderar está se tornando cada vez
mais importante na vida de hoje, por causa da absoluta
onipresença de bens de alta dopamina, tornando-nos todos
mais vulneráveis a um hiperconsumo compulsivo, mesmo
quando não correspondemos aos critérios clínicos para
dependência.
Além disso, como as drogas digitais, tais como os
smartphones, passaram a se integrar a tantos aspectos da
nossa vida, imaginar como moderar seu consumo, para nós
mesmos e para nossos filhos, tem se tornado uma questão
de urgência. Com essa finalidade, apresento nas próximas
páginas
uma
classificação
de
estratégias
de
autocomprometimento.
Mas, antes de falarmos sobre autocomprometimento,
vamos rever os passos do jejum de dopamina, cuja principal
finalidade é restaurar o equilíbrio (homeostase) e renovar
nossa capacidade de experienciar prazer em muitas formas
diferentes. ■
* Maconha colocada dentro de embalagens de charutos após a remoção do
tabaco. (N. T.)
CAPÍTULO 5
Espaço, tempo e significado
NO FINAL DE 2017,
depois de um ano de abstinência de
comportamentos sexuais compulsivos, Jacob teve uma
recaída. Estava com 65 anos.
O gatilho foi uma viagem ao Leste Europeu para visitar
a família, complicada pelos atritos entre sua mulher atual e
os filhos do primeiro casamento – problemas de dinheiro e
quem ganha o quê, um velho refrão.
Com duas semanas de viagem, os filhos estavam bravos
porque ele não havia lhes dado o dinheiro que tinham
pedido. A esposa estava brava porque ele estava pensando
em dar dinheiro a eles. Ele estava com medo de
decepcionar um ou outro e por isso corria o risco de
decepcionar a todos.
Ele me mandou um email do exterior para me contar
que estava se esforçando. Ainda não tinha tido nenhuma
recaída, mas estava por pouco. Dei algumas orientações por
telefone e lhe disse para vir me ver assim que voltasse para
casa. Ela entrou na sala uma semana depois de voltar, mas
era tarde demais.
– Foi a TV no quarto do hotel que começou a me deixar
novamente com desejo – ele me contou. – Quero assistir US
Open. Deito ali zapeando os canais, me sentindo deprimido,
pensando na minha família, na minha mulher, e que todo
mundo está zangado comigo. Vejo mulher nua na TV. Até
ver a TV, eu estar muito bem. Não ter impulsos. O maior
erro é quando ligo a TV, começo pensar em voltar a meus
velhos hábitos e não consigo parar os pensamentos.
– Então, o que aconteceu?
– Na terça-feira, eu vou pra casa. Não vou pro trabalho.
Fico em casa assistindo YouTube. Vejo pintura corporal…
pessoas pintando corpos nus uns dos outros. Acho que é um
tipo de arte. Na quarta-feira, não consigo resistir mais. Saio
e compro as peças para fazer de novo a minha máquina.
– Sua máquina de estimulação elétrica?
– É – ele disse, com tristeza, mal me encarando. – O
problema é quando você começa, você fica em êxtase por
bastante tempo. É como estar em transe. E é um grande
alívio. Não penso em mais nada. Passo vinte horas sem
parar. Passo toda a quarta-feira, e noite adentro. Na quinta
de manhã, jogo partes da máquina no lixo e volto a
trabalhar. Na sexta-feira de manhã, torno a tirar as peças do
lixo, conserto e uso o dia todo. Na sexta-feira à noite, ligo
para o meu padrinho e no sábado vou a uma reunião dos
Sexaholics Anonymous*. No domingo, tiro as peças do lixo e
uso de novo. E na segunda-feira a mesma coisa. Quero
parar, mas não consigo. O que faço?
– Embale a máquina e qualquer peça sobressalente e
jogue tudo no lixo – digo para ele. – Em seguida, entregue o
lixo para o caminhão ou leve para qualquer outro lugar em
que seja impossível recuperá-lo. – Ele assentiu,
concordando. – Depois, a qualquer hora em que você tenha
a ideia, o impulso, o desejo de usar a máquina, ajoelhe-se e
reze. Só reze. Peça ajuda a Deus, mas reze de joelhos. Isso é
importante.
Convergi o mundano e o metafísico. Segundo minha
ponderação, nada era gople baixo demais. Logicamente,
dizer a ele para rezar era quebrar regras não escritas.
Médicos não falam em Deus, mas acredito em acreditar, e
meus instintos me diziam que isso ressoaria em Jacob,
criado como católico.
Dizer a ele para cair de joelhos era também uma
maneira de inserir alguma fisicalidade na coisa, qualquer
coisa que quebrasse a compulsão mental que o estava
compelindo a usar. Ou, talvez, eu reconhecesse uma
necessidade mais profunda de que ele tivesse que encenar
sua submissão.
– Depois de rezar, levante-se e ligue para seu padrinho –
continuei. Ele voltou a acenar a cabeça, concordando. – Ah,
e perdoe a você mesmo, Jacob. Você não é um homem ruim.
Você tem problemas, assim como todos nós.
Autocomprometimento1 é o termo para descrever o ato
de Jacob jogar fora sua máquina. É a maneira de criar, de
forma intencional e espontânea, barreiras entre a gente e
nossa droga de escolha, para mitigar o hiperconsumo
compulsivo. O autocomprometimento não é, sobretudo, um
ato de vontade, embora a ação pessoal tenha alguma
participação. Pelo contrário, o autocomprometimento
reconhece abertamente as limitações da vontade.
A chave para criar um autocomprometimento efetivo é,
em
primeiro
lugar,
reconhecermos
a
perda
de
voluntariedade que ocorre quando estamos sob o fascínio
de uma forte compulsão, e nos comprometermos enquanto
ainda temos a capacidade de uma escolha voluntária.
Se esperarmos até sentir a compulsão de usar, será
quase impossível resistir ao impulso reflexivo de procurar
prazer e/ou evitar sofrimento. Na agonia do desejo, não há
escolha. Mas, ao criar barreiras tangíveis entre nós mesmos
e nossa droga de escolha, pressionamos o botão de pausa
entre desejo e ação.
Além disso, o autocomprometimento tem se tornado
uma necessidade moderna. Regras e sanções externas,
como impostos sobre cigarros, restrições de idade para
álcool e leis proibindo a posse de cocaína, embora
necessárias, nunca serão suficientes em um mundo onde o
acesso a uma variedade sempre crescente de produtos de
alta dopamina é praticamente infinito.
Há anos, meus pacientes vêm me contando sobre suas
estratégias de autocomprometimento. A certa altura,
comecei a anotá-las. Reaproveito estratégias que aprendo
com uns para aconselhar outros, como fiz com Jacob,
quando lhe disse para se livrar da máquina num lugar
distante, que não lhe permitiria recuperá-la mais tarde.
Pergunto a meus pacientes: “Que tipo de barreiras você
pode colocar em prática para dificultar o fácil acesso à sua
droga de escolha?”. Já usei autocomprometimento em
minha própria vida para lidar com problemas de
hiperconsumo compulsivo.
O autocomprometimento pode ser classificado em três
amplas categorias: estratégias físicas (espaço), estratégias
cronológicas (tempo) e estratégias categóricas (significado).
Como você verá a seguir, o autocomprometimento não
é isento de falhas, particularmente para aqueles com
dependência severa. Ele também pode ser vítima de
autoengano, má-fé, e ciência imperfeita.
Mas é um ponto de partida bom e necessário.
▸ Autocomprometimento físico
Na Odisseia, de Homero, entre os inúmeros perigos que
esperavam Ulisses em sua viagem de volta para casa
depois da guerra de Troia, o pior eram as sirenas*, criaturas
metade-mulher, metade-pássaro, cujas canções encantadas
atraíam marinheiros para a morte nos penhascos rochosos
de ilhas próximas.
A única maneira de um marinheiro passar incólume
pelas sereias era não as ouvir cantar. Ulisses ordenou que
sua tripulação pusesse cera de abelha nos ouvidos e o
amarrassem ao mastro do veleiro, prendendo-o ainda com
mais força se ele implorasse para ser solto, ou tentasse se
livrar.
Assim como ilustra este famoso mito grego, uma forma
de autocomprometimento é criar barreiras físicas literais
e/ou distância geográfica entre nós mesmos e nossa droga
de escolha. Aqui estão alguns exemplos compartilhados por
meus pacientes: “Tirei a TV da tomada e guardei-a no
armário”, “Levei meu video game para a garagem”, “Não
uso cartão de crédito, só dinheiro”, “Ligo antes para os
hotéis e peço para tirarem o minibar”, “Ligo antes para os
hotéis e peço para tirarem o minibar e a televisão”,
“Coloquei meu iPad num cofre de banco”.
Meu paciente Oscar, um homem gorducho no final dos
seus 70 anos, com uma mente acadêmica, um vozeirão e
uma queda para falar em solilóquios, tanto que arrumou
confusão num grupo de terapia e teve que sair, tinha o
hábito de beber em excesso enquanto trabalhava em seu
escritório, mexia em sua garagem e zanzava pelo jardim.
Por tentativa e erro, ele aprendeu que para impedir esse
comportamento, tinha que tirar todo o álcool de casa.
Qualquer álcool trazido para dentro de casa precisava ser
trancado num armário, do qual só sua esposa tinha a chave.
Usando este método, Oscar conseguiu se abster do álcool
com sucesso durante anos.
Mas aviso que o autocomprometimento não é uma
garantia. Às vezes, a própria barreira passa a ser um
convite a um desafio. Resolver o enigma de como conseguir
nossa droga de escolha torna-se parte da atração.
Um dia, a esposa de Oscar, ao sair da cidade, trancou
uma garrafa cara de vinho em uma gaveta e levou as
chaves com ela. Na primeira noite em que ela estava fora,
Oscar começou a pensar na garrafa, que ele sabia onde
estava. O pensamento invadiu sua consciência como uma
presença física. Não era dolorosa, apenas incômoda. Se eu
for só dar uma olhada para ter certeza de que está
trancada, vou parar de pensar nisso, disse consigo mesmo.
Foi até o escritório da esposa e puxou a gaveta. Para
sua surpresa, ela abriu um pouquinho, e ele pôde ver a
garrafa em pé, entre as pastas. Não dava para tirá-la, mas
era o bastante para ver a rolha, tentadoramente fora do
alcance.
Ficou ali parado, olhando dentro da gaveta escura por
um minuto, contemplando a garrafa. Em parte, queria
fechar a gaveta, em parte não conseguia deixar de olhar
para ela. Então, algo estalou em seu cérebro e ele decidiu –
ou talvez tenha parado de tentar não decidir. Pôs-se em
ação.
Correu para pegar sua caixa de ferramentas na
garagem. Acomodando-se para trabalhar, usou uma ampla
variedade de ferramentas para tentar desmontar a
fechadura e abrir a gaveta. Trabalhou totalmente
concentrado e determinado, mas não conseguiu abrir a
gaveta. Nenhuma das suas ferramentas entrou na
fechadura.
Então, a resposta lhe veio como um nó que
repentinamente se desfaz sob os dedos. Claro. Por que não
pensei nisso antes? É tão óbvio!
Ele se sentou. Não precisava mais correr. Seu objetivo
estava próximo. Calmamente, guardou as ferramentas,
menos uma, seu alicate de bico longo. Abriu a rolha da
garrafa com o alicate, deixou a rolha e o alicate
cuidadosamente sobre a mesa, e foi até a cozinha pegar a
única ferramenta que faltava: um longo canudo.
Onde a gaveta de Oscar fracassou, novos dispositivos
poderiam ter funcionado. Nos Estados Unidos, alguns cofres
de cozinha têm mais ou menos o tamanho de uma caixa de
sapatos e são feitos de um plástico transparente
impenetrável. Acomodam tudo, de biscoitos a iPhones e
medicamentos opioides. Uma girada do timer tranca a
fechadura do cofre. Depois que o timer é acionado, não dá
para abrir a fechadura até a hora marcada.
O autocomprometimento físico agora está disponível em
sua farmácia local. Em vez de trancar nossas drogas em
uma gaveta, temos a opção de impor fechaduras no nível
celular.
O medicamento naltrexona, usado para o tratamento do
alcoolismo e da dependência de opioide, também está
sendo usado para uma variedade de outras dependências,
de jogos de azar a comida e compras em excesso. A
naltrexona bloqueia o receptor opioide, o que, por sua vez,
diminui os efeitos de reforço de diferentes tipos de
comportamento compensatório.
Tive pacientes que, com a naltrexona, relataram uma
interrupção parcial ou completa do desejo por álcool. Para
pacientes que vêm lutando há décadas com esse problema,
a capacidade de não beber de jeito nenhum ou de beber
com moderação como “pessoas normais” surge como uma
revelação.
Como a naltrexona bloqueia nosso sistema opioide
endógeno, as pessoas se perguntaram, com razão, se
poderia induzir à depressão. Não há evidência confiável a
este respeito, mas ocasionalmente recebo pacientes que
relatam uma diminuição do prazer com a naltrexona.
Um paciente me disse: “A naltrexona me ajuda a não
beber álcool, mas não gosto tanto de bacon quanto
costumava, nem de duchas quentes, e não consigo ter
aquela euforia depois de correr”. Trabalhamos nisto,
fazendo-o tomar naltrexona meia hora antes de entrar
numa situação onde haja risco de beber,2 tal como uma
happy hour. Usar a naltrexona conforme a necessidade
permitiu-lhe beber com moderação, e também voltar a
gostar de bacon.
Em meados de 2014, um dos meus alunos e eu fomos
para a China entrevistar pessoas que buscavam tratamento
para dependência de heroína no New Hospital, um hospital
de tratamento voluntário para dependência, sem verba
governamental, em Beijing.3
Conversamos com um homem de 38 anos, que
descreveu que, antes de ir para o New Hospital para
tratamento, tinha recebido a “cirurgia para dependência”. A
cirurgia para dependência consistia na inserção de um
implante de longo efeito de naltrexona, para bloquear os
efeitos da heroína.
– Em 2007 – ele contou – fui para a província de Wuhan
para a cirurgia. Meus pais me obrigaram a ir e pagaram por
ela. Não sei ao certo o que os cirurgiões fizeram, mas posso
dizer que não funcionou. Depois da cirurgia, fiquei injetando
heroína. Não conseguia mais ter a sensação, mas
continuava injetando do mesmo jeito porque era o meu
costume. Pelos seis meses seguintes, eu me injetei todos os
dias, sem sentir nada. Não pensei em parar porque ainda
tinha dinheiro para comprá-la. Passados seis meses, a
sensação voltou. Então, cá estou, agora, esperando que eles
tenham algo novo e melhor para mim.
Esta história demonstra ser improvável que apenas a
farmacoterapia, sem insight, compreensão e vontade de
mudar o comportamento, funcione.
Outro medicamento usado para tratar a dependência
alcoólica é o dissulfiram. Ele interrompe o metabolismo
alcoólico, levando ao acúmulo de acetaldeído que, por sua
vez, causa uma severa reação de vermelhidão, náusea,
vômito, pressão sanguínea elevada e uma sensação geral
de mal-estar.
Tomar dissulfiram diariamente é um eficiente meio de
dissuasão para aqueles que estão tentando evitar o álcool,
especialmente
pessoas
que
acordam
de
manhã
determinadas a não beber, mas à noite já perderam sua
determinação. Acontece que a força de vontade não é um
recurso humano infinito. É mais como exercitar um músculo,
que pode ficar cansado se o usamos demais. Como disse
um paciente: “Com o dissulfiram, só preciso decidir não
beber uma vez por dia. Não tenho que ficar decidindo o dia
todo”.
Algumas pessoas, mais comumente as do Leste
Asiático, têm uma mutação genética que as leva a ter uma
reação ao álcool como a provocada pelo dissulfiram, sem a
droga.4
Historicamente,
esses
indivíduos
tiveram
porcentagens menores de dependência alcoólica.
É digno de nota que, em décadas recentes, o aumento
de consumo alcoólico nos países do Leste Asiático levou a
índices maiores de dependência alcoólica, mesmo nesse
grupo previamente protegido. Agora, os cientistas estão
descobrindo que quem tem a mutação e bebe mesmo assim
tem um risco maior de cânceres relacionados ao álcool.
Como em todas as formas de autocomprometimento, o
dissulfiram é falível. Meu paciente Arnold bebeu
pesadamente durante décadas, problema que só piorou
depois de ele ter sofrido um sério acidente vascular cerebral
e perdido um pouco da função do lóbulo frontal. Seu
cardiologista disse-lhe que ele tinha que parar de beber ou
morreria. Os riscos eram altos.
Prescrevi dissulfiram e disse a Arnold que a droga o
deixaria enjoado, caso ele bebesse enquanto estivesse sob
tratamento. Para garantir que Arnold a tomasse, sua esposa
lhe dava o comprimido toda manhã e depois pedia que
abrisse a boca, para ter certeza de que ele havia engolido.
Um dia, enquanto a esposa estava fora, Arnold foi até
um bar, comprou uma dose de uísque e bebeu. Quando a
esposa chegou em casa e o encontrou bêbado, o que mais a
intrigou foi o dissulfiram não ter deixado Arnold enjoado. Ele
estava intoxicado, mas não doente.
Um dia depois, ele confessou. Durante os três dias
anteriores, ele não tinha engolido o comprimido. Em vez
disto, enfiava-o no vão deixado na falta de um dente.
Outras formas modernas de autocomprometimento
físico envolvem mudanças anatômicas no corpo, por
exemplo, cirurgias para perda de peso, tal como a banda
gástrica, a gastrectomia tubular e o bypass gástrico.
Essas cirurgias realmente criam um estômago menor
e/ou desviam a parte do estômago que absorve calorias. A
banda gástrica coloca um anel físico em volta do estômago,
deixando-o menor, sem remover qualquer parte dele ou do
intestino delgado. A gastrectomia tubular remove
cirurgicamente parte do estômago para deixá-lo menor. A
cirurgia do bypass gástrico redireciona o intestino delgado
ao redor do estômago e do duodeno, onde os nutrientes são
absorvidos.
Minha paciente Emily fez uma cirurgia de bypass
gástrico em 2014 e, em um ano, conseguiu ir de 113 quilos
para 52 quilos. Nenhuma outra intervenção, e ela tinha
tentado todas, havia possibilitado que ela perdesse peso.
Emily não está só.
As cirurgias para perda de peso têm se revelado uma
intervenção efetiva para obesidade, especialmente quando
outros remédios fracassaram. Mas elas não são desprovidas
de consequências imprevistas.
Um em quatro destinatários de cirurgia de bypass
gástrico desenvolve um novo problema com dependência
alcoólica.5 Em seguida à cirurgia, Emily também ficou
dependente de álcool. Os motivos são muitos.
A maioria dos obesos tem uma dependência subjacente
à comida, que não é tratada adequadamente apenas com
cirurgia. Poucas pessoas que se submetem a essas cirurgias
recebem as intervenções comportamentais e psicológicas
necessárias para ajudá-las a mudar seus hábitos
alimentares. Sendo assim, muitas delas voltam a comer de
maneira não saudável, expandem seus estômagos agora
menores e acabam com complicações médicas e a
necessidade de repetidas cirurgias. Quando a comida deixa
de ser uma opção, muitas mudam da comida para outra
droga, como o álcool.
Além do mais, a cirurgia altera a maneira como o álcool
é metabolizado, aumentando a taxa de absorção. A
ausência de um estômago de tamanho normal significa que
o álcool é absorvido na corrente sanguínea quase
instantaneamente, pulando o metabolismo de primeira
passagem, que normalmente acontece no estômago. O
resultado é que os pacientes ficam intoxicados mais rápido
e permanecem intoxicados por mais tempo com menos
álcool, como se recebessem a bebida direto na veia.
Podemos e devemos celebrar uma intervenção médica
que consiga melhorar a saúde de tantas pessoas, mas o
fato de termos que recorrer à remoção e remodelação de
órgãos internos para acomodar nossa quantidade de comida
assinala uma reviravolta na história do consumo humano.
De cofres que limitam nosso acesso a medicamentos
que bloqueiam nossos receptores de opioides a cirurgias
que encolhem nosso estômago, o autocomprometimento
físico está por toda parte na vida moderna, ilustrando nossa
crescente necessidade de brecar a dopamina.
Quanto a mim, quando havia livros a um estalo de
distância, estava propensa a me estender em fantasia por
mais tempo do que queria, ou que fosse bom para mim.
Livrei-me do meu Kindle e do fácil acesso a um fluxo
constante de livros eróticos prontos para serem baixados. O
resultado foi que ficou mais fácil moderar minha tendência
em ceder à ficção açucarada. O simples ato de ter que ir até
a biblioteca ou a uma livraria criou uma barreira útil entre
mim e minha droga de escolha.
▸ Autocomprometimento cronológico
Outra forma de autocomprometimento é o uso de
limites de tempo e metas.
Ao restringir o consumo a certas horas do dia, da
semana, do mês ou do ano, estreitamos nossa janela de
consumo e assim limitamos nosso uso. Por exemplo,
podemos dizer para nós mesmos que consumiremos apenas
nas férias, nos fins de semana, nunca antes de quinta-feira,
nunca antes das cinco da tarde, e assim por diante.
Às vezes, em vez de tempo propriamente dito,
comprometemo- nos com base em marcos ou realizações.
Esperaremos até nosso aniversário, ou assim que
completarmos uma tarefa, depois de conseguirmos nosso
diploma, ou assim que formos promovidos. Quando o tempo
se esgota, ou alcançamos uma meta autodesignada, a
droga é nossa recompensa.
Os neurocientistas S. H. Ahmed e George Koob
demonstraram que ratos com acesso ilimitado à cocaína
durante seis horas por dia gradualmente aumentam a
pressão na alavanca ao longo do tempo, chegando à
exaustão física e até a morte. Um aumento na
autoadministração, sob condições ampliadas de acesso
(seis horas), também foi observado com metanfetamina,6
nicotina,7 heroína8 e álcool.9
No entanto, ratos com acesso a cocaína apenas uma
hora por dia usam quantidades regulares da droga por
muitos dias consecutivos.10 Ou seja, eles não pressionam a
alavanca para obter mais droga por unidade de tempo, a
cada dia consecutivo.
Este estudo sugere que, ao restringir o consumo de
droga a uma janela estreita de tempo, podemos conseguir
moderar nosso uso e evitar o consumo compulsivo e
ascendente que advém com o acesso ilimitado.
Monitorar quanto tempo passamos consumindo
determinada coisa – por exemplo, cronometrar o uso do
smartphone – é uma maneira de ficar atento e, assim,
diminuir o consumo. Quando temos conhecimento de fatos
objetivos, como a quantidade de tempo que estamos
usando, ficamos menos capazes de negá-los, e assim em
melhor situação para agir.
No entanto, isso pode ficar muito difícil com muita
rapidez. O tempo tem uma maneira curiosa de escapar de
nós quando estamos buscando dopamina.
Um paciente me contou que, quando usava
metanfetamina, convenceu-se de que o tempo não
importava. Sentia-se como se pudesse costurá-lo de volta
mais tarde, sem que ninguém percebesse que faltava um
pedaço. Imaginei-o flutuando no céu noturno, grande como
uma constelação, costurando uma fenda no universo.
Os produtos de alta dopamina confundem nossa
capacidade de adiar gratificação, fenômeno chamado
desvalorização por atraso. A desvalorização pelo atraso
refere-se ao fato de que o valor de uma recompensa diminui
à medida que temos que esperar mais tempo por ela. A
maioria de nós preferiria conseguir 20 dólares agora a daqui
a um ano.
Nossa tendência em supervalorizar recompensas a curto
prazo, em detrimento das de longo prazo, pode ser
influenciada por muitos fatores. Um deles é o consumo de
drogas e comportamentos adictivos.
A economista comportamental Anne Line BrettevilleJensen e seus colegas investigaram a desvalorização em
usuários ativos de heroína e anfetamina comparados a exusuários e com controles correspondentes (indivíduos
igualados em gênero, idade, educação, classe social etc.).
Os
pesquisadores
pediram
que
os
participantes
imaginassem que tinham um bilhete premiado de loteria no
valor de 100 mil coroas norueguesas [pouco mais de 60 mil
reais].11
Depois, perguntaram aos participantes se prefeririam
ter menos dinheiro imediatamente (menos de 100 mil
coroas norueguesas) ou a quantia toda daqui a uma
semana. Dos usuários ativos de droga, 20% disseram querer
o dinheiro imediatamente e estariam dispostos a receber
menos. Apenas 4% dos usuários antigos e 2% dos controles
correspondentes aceitariam a perda.
Fumantes de cigarro são mais propensos do que
controles correspondentes a descontar recompensas
monetárias (ou seja, eles as valorizam menos se tiverem
que esperar por elas). Quanto mais fumam, e quanto mais
nicotina
consomem,
mais
descontam
recompensas
futuras.12 Essas descobertas se confirmam tanto para um
dinheiro hipotético, quando para dinheiro real.
O estudioso de dependentes Warren K. Bickel e seus
colegas pediram a pessoas dependentes de opioides e
controles saudáveis para completar uma história que
começava com a frase: “Depois de acordar, Bill começou a
pensar no seu futuro. Em geral, ele esperava…”.
Os dependentes de opioides participantes do estudo
referiram-se a um futuro que era, em média, de nove dias.
Os controles saudáveis referiram-se a um futuro que era,
em média, de 4,7 anos. Essa diferença impressionante
ilustra como os “horizontes temporais” se encolhem quando
estamos sob a influência de uma droga adictiva.13
Por outro lado, quando pergunto a meus pacientes qual
foi o momento decisivo para eles tentarem entrar em
recuperação, eles dirão algo que expressa uma longa visão
de tempo. Como um paciente que usara heroína no ano
anterior: “Percebi, de repente, que estava usando heroína
havia um ano e pensei comigo mesmo, se eu não parar
agora, pode ser que faça isso pelo resto da vida”.
Refletir sobre a trajetória de toda uma vida, e não
apenas sobre o momento presente, permitiu àquele rapaz
fazer um apanhado mais preciso das suas atitudes no dia a
dia. O mesmo se deu com Delilah, que ficou disposta a se
abster da cannabis por quatro semanas só depois de se
imaginar fumando ainda por mais dez anos.
No atual ecossistema rico em dopamina, todos nós nos
tornamos prontos para uma gratificação imediata.
Queremos comprar alguma coisa, e no dia seguinte ela
aparece à nossa porta. Queremos saber alguma coisa, e no
segundo seguinte a resposta aparece na nossa tela.
Estamos perdendo a habilidade de descobrir coisas, ficando
frustrados enquanto buscamos a resposta ou temos que
esperar pelas coisas que queremos?
O neurocientista Samuel McClure e seus colegas
examinaram quais partes do cérebro estão envolvidas em
recompensas imediatas em comparação a recompensas
adiadas.14 Descobriram que, quando os participantes
escolhiam recompensas imediatas, partes do cérebro que
processam emoção e recompensa se acendiam. Quando os
participantes adiavam sua recompensa, o córtex pré-frontal
– a parte do cérebro envolvida em planejamento e
pensamento abstrato – tornava-se ativo.
A implicação aqui é que agora estamos todos
vulneráveis a uma atrofia cortical pré-frontal, uma vez que
nosso circuito de recompensa se tornou o condutor
dominante da nossa vida.
A ingestão de produtos de alta dopamina não é a única
variável a influenciar uma desvalorização por atraso.
Por exemplo, quem cresce em ambiente pobre de
recursos, e é informado sobre indícios de mortalidade, está
mais propenso a valorizar recompensas imediatas a
recompensas adiadas, em comparação àqueles que são
similarmente informados e crescem em ambientes ricos em
recursos. Jovens brasileiros que vivem em favelas
descontam recompensas futuras com mais frequência do
que estudantes universitários da mesma idade.15
É de se estranhar que a pobreza seja um fator de risco
para dependência, especialmente em um mundo de fácil
acesso a dopamina barata?
Outra variável que contribui para o problema de
hiperconsumo compulsivo é o aumento crescente de tempo
de lazer de que dispomos hoje, e o consequente tédio.
A mecanização da agricultura, da manufatura, dos
trabalhos domésticos, e muitas outras tarefas que
anteriormente consumiam tempo e mão de obra intensiva
reduziram o número de horas diárias que as pessoas
passam trabalhando, deixando mais tempo para o lazer.
Um dia típico para um trabalhador médio nos Estados
Unidos, pouco antes da Guerra Civil (1861-1865), seja na
agricultura, seja na indústria, consistia em trabalhar de dez
a doze horas diárias, seis dias e meio por semana, 51
semanas por ano, com não mais de duas horas diárias
gastas em atividade de lazer. Alguns trabalhadores,
frequentemente mulheres imigrantes, trabalhavam treze
horas por dia, seis dias por semana. Outros trabalhavam em
regime de escravidão.
Em contraste, hoje, a quantidade de tempo de lazer nos
Estados Unidos aumentou em 5,1 horas por semana entre
1965 e 2003, um adicional de 270 horas de lazer por ano.
Estima-se que, em 2040, o número de horas de lazer num
dia típico nos Estados Unidos será de 7,2 horas, com apenas
3,8 horas de trabalho diário.16 Os números para outros
países de alta renda são semelhantes.17
O tempo de lazer nos Estados Unidos difere segundo a
educação e a situação socioeconômica,18 mas não da
maneira que você poderia pensar.
Em 1965, nos Estados Unidos, tanto os com menos
formação
quanto
os
mais
educados
desfrutavam
praticamente a mesma quantidade de tempo de lazer.
Atualmente, os adultos que vivem nos Estados Unidos sem
diploma de segundo grau têm 42% mais tempo de lazer do
que os adultos com diploma de bacharelado ou melhor
formação, sendo que as maiores diferenças em tempo de
lazer ocorrem nas horas dos dias da semana. Isto, em
grande parte, se deve ao subemprego entre aqueles que
não possuem diploma universitário.
O consumo de dopamina não é apenas uma maneira de
preencher as horas que não são gastas trabalhando. Ele
também se tornou um motivo para as pessoas não
participarem da força de trabalho.
O economista Mark Aguiar e seus colegas escreveram
um artigo apropriadamente intitulado “Leisure, Luxuries,
and the Labor Supply of Young Men” [Lazer, Luxos, e a
Oferta de Trabalho dos Homens Jovens]: “Os homens mais
jovens, entre 21 e 30 anos, demonstraram um declínio
maior em horas de trabalho nos últimos quinze anos do que
os homens e mulheres mais velhos. Desde 2004, os dados
de consumo do tempo mostram que os homens mais jovens
claramente mudaram seu lazer para jogar video games e
outras atividades recreativas em computador”.19
O escritor Eric. J. Iannelli referiu-se brevemente a sua
própria história de dependência da seguinte maneira:
Anos atrás, no que agora parece uma outra vida, um amigo me disse:
“Toda a sua existência pode ser reduzida a um ciclo de três partes.
Primeira: Se foder. Segunda: Foder. Terceira: Controlar os danos”. Não
nos conhecíamos havia muito tempo, provavelmente no máximo dois
meses e, no entanto, ele já tinha testemunhado o suficiente dos meus
costumeiros apagões de bebedeira, só uma das mais óbvias
manifestações do rodamoinho de autoperpetuação da dependência,
para entender como eu era. Com um sorriso enviesado, ele passou a
elaborar hipóteses mais gerais – e desconfio que apenas numa
semibrincadeira – de que os dependentes são solucionadores de
problemas entediados ou frustrados, que instintivamente inventam
situações como Houdini, das quais precisam se desembaraçar,
quando não acontece de aparecer algum outro desafio. A droga passa
a ser a recompensa quando eles têm êxito, e o prêmio de consolação
quando fracassam.20
Quando conheci Muhammad, ele era um jorro de
palavras. Sua língua mal conseguia acompanhar o cérebro,
que fervilhava de ideias.
– Acho possível que eu tenha um pequeno problema de
dependência – ele disse. Gostei dele na mesma hora.
Num inglês impecável, com um leve sotaque do Oriente
Médio, ele me contou sua história.
Em 2007, veio do Oriente Médio para os Estados Unidos,
para cursar matemática e engenharia. Em seu país, o
consumo de qualquer tipo de droga era passível de uma
punição dura.
Quando chegou aos Estados Unidos, foi libertador poder
consumir drogas por prazer, sem medo. No começo,
restringiu o consumo de drogas e álcool aos fins de semana,
mas no prazo de um ano fumava cannabis diariamente, e o
resultado foi constatar que suas notas e suas amizades
sofreram com isso.
Disse consigo mesmo: Não vou voltar a fumar até
terminar minha graduação, ser aceito no mestrado e
conseguir uma bolsa para o doutorado.
Fiel a sua promessa, ele não voltou a fumar até
completar um programa de mestrado em engenharia
mecânica em Stanford e conseguir financiamento para o
doutorado. Quando voltou a fumar, jurou que se limitaria
apenas aos fins de semana.
Depois de um ano no doutorado, fumava diariamente,
mas, no final dos segundo ano, estabeleceu novas regras
para si mesmo: 10 mg de maconha enquanto estiver
trabalhando, 30 mg de maconha quando não estiver
trabalhando e 300 mg de maconha apenas em ocasiões
especiais… para ficar realmente doidão.
Muhammad não passou no exame de qualificação, o
ponto alto dos seus estudos de doutorado. Tentou uma
segunda vez e tornou a fracassar. Estava prestes a ser
eliminado do programa, mas conseguiu convencer seus
professores a lhe darem uma última chance.
Em meados de 2015, Muhammad comprometeu-se a se
abster até passar no exame de qualificação, por mais tempo
que isso levasse. No ano seguinte, ele largou a cannabis e
trabalhou mais do que nunca. Seu último relatório tinha
mais de cem páginas.
– Foi um dos anos mais positivos e produtivos da minha
vida – ele me contou.
Naquele ano, ele passou nos exames de qualificação, e,
na noite após o exame, um amigo trouxe cannabis para
ajudá-lo a comemorar. De início, Muhammad recusou, mas o
amigo disse: “Não tem como alguém inteligente como você
ser adicto”.
Só desta vez, Muhammad disse consigo mesmo, e
depois não mais até a formatura.
Na segunda-feira, o não mais até a formatura tornou-se
nada de maconha nos dias de aula, que se tornou nada de
maconha nos dias em que tenho aulas puxadas, que se
tornou nada de maconha nos dias de exame, que se tornou
nada de maconha antes das nove da manhã.
Muhammad era inteligente. Então, por que não
conseguia entender que, toda vez que fumasse, não
conseguiria ser fiel aos limites de tempo autoimpostos?
Porque uma vez que ele começou a usar cannabis, não
estava governado pela razão; estava governado pela
balança prazer-sofrimento. Até um baseado criava um
estado de necessidade não facilmente influenciado pela
lógica. Sob a influência da droga, ele já não podia avaliar
com objetividade as recompensas imediatas de fumar face
às suas contrapartidas a longo prazo. Seu mundo era regido
pela desvalorização por atraso.
No caso de Muhammad, o autocomprometimento
cronológico foi até certo ponto, e a moderação da cannabis
foi sempre uma opção improvável. Ele teria que encontrar
outra maneira, o que acabou acontecendo.
▸ Autocomprometimento categórico
Jacob veio me ver novamente uma semana depois de
sua recaída. Não tinha feito uso durante toda a semana.
Colocou seu aparelho numa lata de lixo que sabia que seria
levada no mesmo dia. Também pôs de lado seu laptop e seu
tablet. Foi à igreja pela primeira vez em anos e rezou por
sua família.
– Não pensar em mim mesmo e nos meus problemas foi
uma boa mudança. Também parei de sentir vergonha.
Minha história é triste, mas posso fazer alguma coisa a
respeito. – Ele fez uma pausa. – Mas não estou me sentindo
bem. Vejo você às segundas-feiras, e às sextas penso em
me matar, mas sei que não vou fazer isto.
– É o revés do uso – expliquei. – Deixe seus sentimentos
cobrirem você como uma onda. Tenha paciência e com o
tempo você se sentirá melhor.
Nas semanas e meses seguintes, Jacob conseguiu
manter abstinência limitando não apenas o acesso à
pornografia, aos chats e às unidades TENS, mas também a
“qualquer forma de luxúria”.
Parou de ver televisão, cinema, YouTube, competições
femininas de vôlei, quase tudo que lhe oferecesse uma
imagem sexualmente provocante. Pulava certos tipos de
reportagem, por exemplo, matérias sobre Stormy Daniels, a
stripper que supostamente teve um caso com Donald
Trump. Vestia short antes de se barbear em frente ao
espelho, de manhã. Ver sua própria nudez era, por si só, um
gatilho.
– Brinquei com meu próprio corpo por um bom tempo.
Não posso mais fazer isto – ele disse. – Preciso evitar
qualquer coisa que poderia entreter minha mente
dependente.
O autocomprometimento categórico limita o consumo
classificando a dopamina em diferentes categorias: aqueles
subtipos que nos permitimos consumir, e aqueles que não.
Este método nos ajuda a evitar não apenas nossa droga
de escolha, mas também o gatilho que leva ao desejo por
nossa droga. Esta estratégia é especialmente útil para
substâncias que não podemos eliminar completamente,
mas que estamos tentando consumir de maneira mais
saudável, como comida, sexo e smartphones.
Meu paciente Mitch era dependente de apostas em
esportes. Aos 40 anos, tinha perdido 1 milhão de dólares
jogando. Participar dos Jogadores Anônimos foi uma parte
importante em sua recuperação. Através do envolvimento
com o grupo, ele aprendeu que não precisava evitar só as
apostas em esportes; também tinha que se abster de
assistir a esportes na TV, ler páginas de esportes no jornal,
surfar sites relacionados a esportes na internet e escutar
transmissões esportivas pelo rádio. Ele telefonou para todos
os cassinos da região e se fez colocar na lista de “não
admitidos”. Ao evitar substâncias e comportamentos além
da droga de sua escolha, Mitch conseguiu usar um
comprometimento categórico para mitigar o risco de recair
nas apostas em esportes.
Existe algo de trágico e comovente em ter que banir a si
próprio.
Quanto a Jacob, esconder o corpo nu – o dele e o dos
outros – foi uma parte importante em sua recuperação.
Esconder o corpo como uma maneira de minimizar o risco
de se envolver em relação sexual proibida tem sido há
muito tempo parte de muitas tradições culturais,
perdurando até hoje. O Alcorão diz da modéstia feminina: “E
diga às mulheres crentes que abaixem seus olhares e
guardem suas partes privadas e não exponham seus
adornos… e que envolvam seus peitos com [uma porção de]
seus lenços de cabeça, e não exponham seus adornos”.21
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias
emitiu declarações oficiais sobre vestimenta modesta para
seus membros, tais como desencorajar “shorts e saias
curtas, camisetas que não cubram a barriga, e roupas que
não cubram os ombros ou sejam decotadas na frente ou
atrás”.22
O autocomprometimento categórico falha quando
incluímos, inadvertidamente, um gatilho em nossa lista de
atividades aceitáveis. Podemos corrigir erros deste tipo
passando um pente fino mental, baseado em experiência.
Mas e quando a própria categoria muda?
A já gasta tradição de fazer dieta – vegetariana, vegana,
crudívora, sem glúten, Atkins, cetogência, paleolítica – é um
exemplo de autocomprometimento categórico. Vamos atrás
dessas dietas por motivos variados: médico, ético, religioso.
Mas seja qual for a razão, o efeito prático é diminuir o
acesso a grandes categorias de alimentos, o que, por sua
vez, limita o consumo.
Mas as dietas como forma de autocomprometimento
categórioa ficam ameaçadas quando a categoria muda com
o tempo, resultante de forças mercadológicas.
Mais de 15% de casas nos Estados Unidos usam
produtos sem glúten. Algumas pessoas não consomem
glúten por terem doença celíaca, uma condição autoimune
em que a ingestão de glúten prejudica o intestino delgado.
Mas um número crescente de pessoas não consome glúten
porque ajuda a limitar o consumo de carboidratos altamente
calóricos e com baixo poder nutritivo. O problema?
De 2008 a 2010, cerca de 3 mil novos petiscos sem
glúten foram introduzidos nos Estados Unidos,23 e
atualmente os produtos de panificação são a categoria
absoluta de maior lucro de produtos embalados no mercado
sem glúten. Em 2020, o valor dos produtos sem glúten, só
nos Estados Unidos, foi estimado em 10,3 bilhões de
dólares.
Uma dieta sem glúten, que anteriormente tinha de fato
limitado o consumo de alimentos processados altamente
calóricos, tais como biscoitos, bolachas, cereais, macarrões
e pizzas, agora não limita mais. Para quem adotava esse
tipo de dieta para evitar o glúten, poderia ser uma boa
notícia. Mas para aqueles que estavam se beneficiando da
exclusão do glúten como uma forma de limitar o consumo
de pães e bolos, já não serve mais.
A evolução da dieta sem glúten ilustra como tentativas
de controlar consumo são rapidamente contra-atacadas por
modernas forças mercadológicas, e é apenas mais um
exemplo dos desafios inerentes em nossa economia de
dopamina.
Há muitos outros exemplos modernos de drogas que já
foram tabu e foram transformadas em mercadorias
socialmente
aceitáveis,
em
geral
disfarçadas
de
medicamentos. Os cigarros transformaram-se em cigarros
eletrônicos e bolsas de nicotina Zyn. A heroína passou a ser
oxicodona, a maconha tornou-se medicinal. Mal tínhamos
nos comprometido com a abstinência e nossa velha droga
reaparece, lindamente embalada como um novo produto, a
preço acessível, dizendo: “Ei, sem problemas. Agora faço
bem para você”.
Divinizar
o
demonizado
é
outra
forma
de
autocomprometimento categórico.
Desde os tempos pré-históricos, os seres humanos
elevaram as drogas que alteram a mente a categorias
sagradas a serem usadas durante cerimônias religiosas e
ritos de passagem, ou como medicamentos. Nesse
contexto, apenas aos padres, xamãs ou outros iniciados que
receberam formação especial, ou foram investidos de
autoridade especial, é permitida a administração dessas
drogas.
Por mais de 7 mil anos, os alucinógenos, também
conhecidos como psicodélicos (cogumelos mágicos,
ayahuasca, peiote), tiveram usos sacramentais através de
diversas culturas. No entanto, quando os alucinógenos se
tornaram populares e amplamente disponíveis como drogas
recreativas, no movimento da contracultura na década de
1960, os danos multiplicaram-se, levando a considerarem o
LSD ilegal na maioria dos países.
Atualmente, existe um movimento para que os
alucinógenos e outros psicodélicos voltem a ser usados,
mas apenas no contexto pseudossagrado da psicoterapia
com apoio psicodélico. Agora, psiquiatras e psicólogos
especialmente treinados estão administrando alucinógenos
e outros agentes psicotrópicos potentes (psilocibina,
cetamina, ecstasy) como remédios para saúde mental.
Administrar doses limitadas (de uma a três) de psicodélicos,
intercaladas
com
sessões
múltiplas
de
terapia
conversacional por muitas semanas, tem se tornado o
equivalente moderno do xamanismo.
A esperança é que, limitando o acesso a essas drogas, e
transformando os psiquiatras em guardiões, as propriedades
místicas desses produtos químicos – uma sensação de
unicidade, transcendência de tempo, clima positivo e
reverência – possam ser alavancadas sem levar ao uso
indevido, ao abuso e à dependência.
Algumas pessoas não precisam de xamãs, nem de
psiquiatras para impregnar a droga de escolha com o
sagrado. Num agora famoso experimento do marshmallow
de Stanford, pelo menos uma criança no experimento
manejou o sagrado totalmente sozinha.
O experimento do marshmallow foi uma série de
estudos conduzidos no final de década de 1960, na
Universidade de Stanford, pelo psicólogo Walter Mischel,
para analisar a recompensa adiada.24
Nesses estudos, eram oferecidas a crianças entre 3 e 6
anos uma escolha entre uma pequena recompensa
entregue imediatamente (um marshmallow), ou duas
pequenas recompensas (dois marshmallows) se a criança
pudesse esperar por quinze minutos, sem comer o primeiro
marshmallow.
Durante esse tempo, o pesquisador deixava a sala, e
depois voltava. O marshmallow era colocado em um prato
sobre a mesa, numa sala sem nenhuma outra distração:
nenhum brinquedo, nenhuma outra criança. O propósito do
estudo era determinar em que momento a gratificação
adiada se desenvolve nas crianças. Estudos subsequentes
analisaram que tipos de consequências na vida real são
associados à capacidade, ou falta dela, de adiar
gratificação.
Os pesquisadores descobriram que, de cerca de cem
crianças, um terço esperou o suficiente para conseguir o
segundo marshmallow. A idade foi um determinante
importante: quanto mais velha a criança, mais capacitada a
adiar. Em estudos complementares, crianças que
conseguiram esperar pelo segundo marshmallow tenderam
a ter melhores notas nos testes de aptidão escolar, melhor
capacidade educacional e em geral foram adolescentes
mais bem ajustados social e cognitivamente.
Um detalhe menos conhecido do experimento é o que
as crianças faziam durante os quinze minutos de esforço
para não comer o primeiro marshmallow.
As observações dos pesquisadores revelaram uma
concretização literal de autocomprometimento: as crianças
“cobrem os olhos com as mãos, ou viram de costas para
não ver o prato… começam a chutar a mesa, puxam suas
marias-chiquinhas, ou afagam o marshmallow como se ele
fosse um animalzinho de pelúcia”.25
Cobrir
os
olhos
e
virar
de
costas
lembra
autocomprometimento físico. Puxar as marias-chiquinhas
sugere o uso da dor física como distração, algo sobre o qual
me estenderei adiante. Mas… afagar o marshmallow? Essa
criança, em vez de virar as costas para o objeto desejado,
fez dele uma mascote, precioso demais para comer ou, no
mínimo, para comer impulsivamente.
Minha paciente Jasmine veio me pedir ajuda para o
consumo excessivo de álcool; ela ingeria até dez cervejas
todos os dias. Como parte do tratamento, aconselhei-a a
remover todo álcool de casa, uma estratégia de
autocomprometimento. Em grande parte, ela seguiu meu
conselho, com uma deturpação. Retirou todo álcool, menos
uma cerveja, que deixou na geladeira. Chamou-a de sua
“cerveja totêmica”, à qual olhava como o símbolo de sua
escolha de não beber, uma representação da sua vontade e
autonomia. Disse consigo mesma que só precisava se
concentrar em não beber aquela cerveja específica, mais do
que na tarefa mais assustadora de não beber nenhuma
cerveja da vasta quantidade disponível no mundo.
Esse passe de mágica metacognitivo, transformando um
objeto de tentação num símbolo de controle, ajudou Jasmine
a se abster.
Seis meses depois de sua segunda tentativa de
recuperação, encontrei Jacob na sala de espera. Fazia muito
tempo que não o via.
Assim que pus os olhos nele, soube que estava se
saindo bem, pela maneira como suas roupas assentavam, a
maneira como envolviam seu corpo. Mas não foram apenas
as roupas. Sua pele também assentava nele, da maneira
que acontece quando uma pessoa se sente conectada
consigo mesma e com o mundo.
Não que você vá achar isso em algum manual
psiquiátrico. É só uma coisa que notei depois de anos
atendendo pacientes. Quando as pessoas melhoram, tudo
tem uma coesão e um acerto. Naquele dia, Jacob tinha uma
exatidão nele.
– Minha mulher voltou para mim – ele disse, assim que
entramos na minha sala. – Ainda estamos vivendo
separados, mas fui a Seattle e passamos dois dias
maravilhosos. Vamos passar o Natal juntos.
– Fico feliz, Jacob.
– Estou livre da minha obsessão. Não estou compelido a
me comportar de certa maneira. Estou livre para voltar a
tomar decisões sobre o que vou fazer. Já faz quase seis
meses que tive a minha recaída. Se apenas continuar
fazendo o que estou fazendo, acho que vou ficar bem. Mais
do que bem.
Ele olhou para mim e sorriu. Sorri de volta.
A jornada extraordinária que Jacob percorreu para evitar
qualquer coisa possível de incitar o desejo sexual parece
francamente medieval para nossa sensibilidade moderna, a
um passo de uma camisa de força.
No entanto, longe de se sentir limitado por seu novo
modo de vida, ele se sentiu liberado. Livre das garras do
hiperconsumo compulsivo, viu-se novamente apto a
interagir com outras pessoas e com o mundo, com alegria,
curiosidade e espontaneidade. Sentiu certa dignidade.
Como Immanuel Kant escreveu em A metafísica dos
costumes: “Quando percebemos que somos capazes desta
legislação interior, o homem (natural) se sente compelido a
reverenciar o homem moral em sua própria pessoa”.26
O autocomprometimento é uma maneira de ser livre. ■
* No Brasil, Dependentes de Amor e Sexo Anônimos – D.A.S.A. (N. T.)
* No original, siren. Em inglês, existem duas palavras para “sereia”, siren e
mermaid. Embora ambas sejam criaturas aquáticas, a primeira é metade
humana, metade pássaro, e seria quem atrai os marinheiros para a morte
com seu maravilhoso canto. Também temos em português a palavra
sirena, embora seja pouco usada, inclusive nas referências a Ulisses.
Mermaid, por sua vez, é a nossa conhecida sereia, metade mulher, metade
peixe, que vive pacificamente nas profundezas do mar, longe do contato
com humanos. (N. T.).
CAPÍTULO 6
Uma balança quebrada?
– ESPERO QUE VOCÊ CONTINUE COM A MINHA BUPRENORFINA – Chris disse,
sentado na minha sala, acertando sua mochila, empurrando
para trás o cabelo que tinha caído sobre os olhos,
balançando o joelho (nos anos que se seguiram, eu
perceberia que ele estava sempre em movimento). – Ela
tem ajudado. Na verdade, isto é um eufemismo. Não tenho
certeza de que estaria vivo sem ela, e preciso achar alguém
que possa me fazer uma receita.
A buprenorfina é um opioide semissintético derivado da
tebaína, destilado da papoula-dormideira. Assim como
outros opioides, ela se liga ao receptor mu-opioide,
proporcionando alívio imediato da dor e do desejo por
opioide. Em termos bem simples, ela funciona devolvendo a
balança prazer-sofrimento a uma posição nivelada, de modo
que alguém como Chris possa parar de combater o desejo e
retomar sua vida. Existe uma comprovação sólida de que a
buprenorfina diminui o uso ilícito de opioide,1 reduz o risco
de overdose e melhora a qualidade de vida.
Mas não existe comentário sobre o fato de que a
buprenorfina é um opioide que pode ser mal usado,
desviado e vendido na rua. Para quem não é dependente de
opioides mais fortes, ela pode criar um surto eufórico.
Pessoas que tomam buprenorfina sentem a abstinência de
opioide e desejo quando param ou diminuem a dosagem.
Na verdade, alguns pacientes me contam que a retirada da
buprenorfina é muito pior do que as que eles vivenciaram
com heroína ou oxicodona.
– Por que você não me conta a sua história – propus a
Chris – e então eu te digo o que acho.
Chris chegou em Stanford em 2003. Foi seu padrasto
quem o trouxe, desde o Arkansas, em um velho Chevy
Suburban emprestado. O SUV, lotado de pertences de Chris,
destacava-se entre os BMWs e os Lexus reluzentes e novos
que lotavam a entrada do alojamento de estudantes.
Chris não perdeu tempo. Organizou seu quarto com uma
precisão meticulosa, começando com sua coleção de CDs,
que arrumou em ordem alfabética. Analisou o catálogo do
curso e optou por Escrita Criativa, Filosofia Grega e Mito e
Modernidade na Cultura Germânica. Sonhava em se tornar
compositor, diretor de cinema, escritor. Seus planos, como
os de seus colegas, eram grandiosos. Aquele seria seu
nobre começo em Stanford.
Uma vez que as aulas começaram, Chris saiu-se bem
em tudo que era esperado. Estudava muito. Tinha notas
excelentes. Mas em outro nível, ele não prosperava:
frequentava as aulas sozinho, estudava em seu quarto ou
na biblioteca sozinho, tocava piano na sala comum do seu
dormitório sozinho. Aquela palavra favorita murmurada no
campus, comunidade, esquivava-se dele.
A maioria de nós, revendo nossos primeiros dias na
faculdade, vai se lembrar do esforço para encontrar a nossa
gente. Chris penou mais. Até hoje é difícil dizer por quê. É
um rapaz bonito, atencioso, afável, louco para agradar.
Talvez tivesse algo a ver com ser aquele pobre moleque do
Arkansas.
Sua existência solitária continuou no segundo ano, até
encontrar uma garota no seu trabalho de meio período no
campus. Suas feições esculpidas, o cabelo castanho e
macio, e a constituição musculosa e rija sempre atraíram
atenção. Ele e a menina, uma colega no curso de
graduação, se beijaram, e Chris apaixonou-se na hora.
Quando ela contou que tinha um namorado, ele decidiu que
aquilo não importava. Queria estar com ela e a procurava
insistentemente, sem desistir. Ela o acusou de assédio e o
denunciou ao chefe dos dois. Como consequência, ele
perdeu o emprego e foi repreendido pela administração da
faculdade. Sem trabalho e sem namorada, decidiu que só
havia uma solução: se matar.
Chris escreveu um email de despedida para a mãe:
“Mãe, usei roupa de baixo limpa”. Pediu uma faca
emprestada, pegou seu toca- CD e um CD escolhido com
cuidado, e foi para o parque Roble Field. Anoitecia, e seu
plano era engolir um vidro de comprimidos, cortar os pulsos
e sincronizar sua morte com o pôr do sol.
A música era importante para Chris, e ele escolheu com
cuidado a de despedida: “PDA”, do Interpol, uma banda
indie post-punk revival. É uma música rítmica e pulsante. A
letra é difícil de entender. A última estrofe diz: “Sleep
tonight, sleep tonight, sleep tonight, sleep tonight.
Something to say, something to do, nothing to say, there’s
nothing to do”*. Chris esperou até o finalzinho da música, e
então puxou a lâmina afiada da faca sobre cada pulso.
Tentar se matar cortando os pulsos num espaço aberto
acabou não sendo uma estratégia muito eficiente. Meia
hora depois, o sangue dos seus pulsos tinha congelado, e
ele estava sentado no escuro, vendo as pessoas passarem.
Voltou para seu quarto, obrigou-se a vomitar os
comprimidos e chamou a emergência. Os paramédicos
vieram e levaram-no ao Stanford Hospital, onde ele foi
internado na ala psiquiátrica.
O primeiro a visitá-lo foi seu padrasto. Sua mãe também
planejava ir, mas não conseguiu entrar no avião. Tinha um
medo antigo de voar. Seu pai biológico, a quem só via
algumas vezes por ano, também apareceu. O pai pareceu
chocado ao ver as incisões salientes e vermelhas nos pulsos
de Christopher.
Chris ficou na ala psiquiátrica por duas semanas;
durante esse tempo, sentiu-se, acima de tudo, aliviado por
estar num ambiente confinado, controlado e previsível.
Um representante de Stanford foi visitá-lo no hospital e
informou-o que, considerando as circunstâncias, ele seria
forçado a tirar uma licença médica das aulas até se
recuperar suficientemente para poder voltar, segundo
determinação e critério da universidade.
Chris voltou para o Arkanksas para viver com a mãe e o
padrasto. Arrumou um trabalho de garçom. Descobriu as
drogas.
Em 2007, voltou a Stanford. Antes de poder se inscrever
para o trimestre do outono, precisava se encontrar com o
chefe de saúde mental estudantil e seu decano residencial
para pô-los a par do seu progresso e apresentar um
argumento convincente para se reinscrever.
Um dia antes da reunião, ele ficou com uma menina que
tinha conhecido em Stanford. Não a conhecia bem, mas ela
também era “problemática”, então Chris sentiu-se mais
confortável em perguntar se poderia dormir no quarto dela
por uma ou duas noites, enquanto se resolvia com a
universidade.
Na noite anterior à entrevista, ficou acordado, cheirando
cocaína e lendo O mal-estar da civilização, de Freud. Pela
manhã, concluiu que estava muito zoado para se encontrar
com um bando de administradores universitários. Voou para
casa no mesmo dia.
Chris passou o ano seguinte cavando terra, espalhando
adubo e cortando grama, num calor de quase 40 graus,
para a Universidade de Arkansas. Gostava da fisicalidade
daquilo, de como mover o corpo o distraía dos seus
pensamentos. Foi promovido a arborista, que em grande
parte consistia em enfiar troncos e galhos de árvores num
triturador.
Quando não estava trabalhando, compunha música,
partitura por partitura, enquanto fumava maconha, que
passara a lhe ser indispensável.
Em agosto do ano seguinte, Chris voltou mais uma vez a
Stanford. Dessa vez, não foi exigida nenhuma reunião
presencial. Apresentou-se em seu dormitório no estilo Jack
Reacher*, com nada além de uma escova de dente no bolso
e um laptop na mão. Dormia sobre o colchão, de roupa, sem
lençóis.
Ele tinha vontade de se estruturar, algo que reconhecia
ser necessário para ser bem-sucedido. Como parte do seu
novo estado de espírito, mudou sua especialidade. Agora,
estudaria química.
Também jurou deixar de fumar maconha, mas sua
decisão durou apenas três dias, antes de voltar a fumar
diariamente, escondendo-a em seu quarto, tentando
restringi-la a quando seu companheiro de quarto, de quem
se lembrava apenas como “um cara da Índia”, não estivesse
por perto.
No período de provas, Chris concluiu que, já que tinha
passado a maior parte do tempo estudando chapado,
também deveria ficar chapado para as provas. Como na
“aprendizagem estado-dependente”, sobre a qual tinha lido
em sua aula de psicologia. Chegou à segunda questão até
perceber que não sabia a matéria e era incapaz de
completar a prova. Levantou-se e saiu, jogando sua prova
no lixo.
No dia seguinte, estava num avião para casa.
Deixar Stanford pela terceira vez foi diferente para
Chris. Tinha um tom de desânimo. Ao chegar em casa, não
tinha qualquer ambição, nem mesmo de continuar
compondo música. Começou a beber muito, além de fumar
maconha. Depois, experimentou opioides pela primeira vez,
o que era fácil em Arkansas em 2009, quando os fabricantes
e distribuidores de opioides despejavam no estado milhões
de comprimidos analgésicos opioides. Naquele mesmo ano,
médicos em Arkansas forneceram 116 receitas de opioides
para cada 100 pessoas que moravam no estado.2
Enquanto tomava opioides, tudo que Chris achava que
andara buscando, subitamente lhe pareceu ao alcance. Sim,
sentia-se eufórico, mas isto não era o principal. O principal
era que se sentia conectado.
Começou a ligar para parentes e conhecidos, falando,
compartilhando, confidenciando. As conexões pareciam
verdadeiras,
desde
que
estivesse
dopado,
mas
desapareciam assim que os opioides deixavam de fazer
efeito. Aprendeu que a intimidade fabricada pela droga não
durava muito.
Um padrão intermitente de uso de opioide acompanhou
Chris em sua próxima tentativa de se matricular em
Stanford. Quando voltou, em agosto de 2009, em sua agora
quarta tentativa, estava cronológica e geograficamente
marginalizado de seus colegas de graduação. Era cinco anos
mais velho do que a média dos alunos do segundo ano.
Foi colocado em um alojamento de estudantes de
graduação, onde dividia um apartamento de dois quartos
com um estudante de física de partículas. Eles tinham
pouco em comum e se esforçavam para um não atrapalhar
outro.
Chris desenvolveu uma rotina que girava em torno de
estudar e se drogar. Desistira da ideia de tentar largar.
Passou a pensar em si mesmo como um “dependente de
drogas” assumido.
Fumava maconha sozinho em seu quarto, todos os dias.
Toda sexta-feira à noite, ia a São Francisco, sozinho, buscar
heroína. Uma única dose, na rua, custava 15 dólares, para
um pico de adrenalina que durava de cinco a quinze
segundos e um bem-estar que persistia por horas. Fumava
mais maconha para facilitar o revés. Na metade do quarto
trimestre, ele vendeu seu laptop para comprar mais
heroína. Depois vendeu seu casaco. Lembrava-se de sentir
frio enquanto vagava pelas ruas da cidade.
Uma vez, tentou ficar amigo de dois estudantes
britânicos, na aula de idiomas. Contou a eles que queria
fazer um filme, e queria que eles participassem. Tinha
começado a se interessar por fotografia, e às vezes
perambulava pelo campus tirando fotos. No começo, os dois
pareceram interessados, mas, quando contou a ideia –
filmá-los falando com sotaque americano enquanto comiam
–, eles relutaram e passaram a evitá-lo.
– Acho que sempre fui esquisito desse jeito. Ideias
esquisitas. É por isso que jamais quero contar às pessoas o
que estou pensando.
Em meio a tudo isso, Chris ia para a aula e só tirava A,
com exceção de um B na Base Interpessoal de
Comportamento Anormal. Foi para casa no Natal e não
voltou.
Em agosto de 2010, Chris fez uma última tentativa de
se matricular em Stanford. Alugou um quarto fora do
campus, em Menlo Park, e anunciou ainda um novo curso:
biologia humana. Depois de alguns dias, roubou
comprimidos da sua senhoria e conseguiu uma receita para
zolpidem, que esmagava e injetava. Fez isto durante cinco
meses, depois deixou Stanford, desta vez com esperança de
nunca mais voltar.
De volta a Arkansas, na casa dos pais, Chris passava os
dias se drogando. Injetava pela manhã e, quando o efeito
acabava horas depois, deitava-se na cama, querendo que o
tempo passasse. O ciclo parecia infindável e inescapável.
Em março de 2011, Chris foi pego pela polícia roubando
sorvete, enquanto estava drogado. Ofereceram-lhe cadeia
ou reabilitação. Escolheu reabilitação. Em 1º de abril de
2011, na reabilitação, Chris começou a tomar buprenorfina.
Chris atribui ao medicamento a salvação da sua vida.
Após dois anos de estabilidade com a buprenorfina,
Chris decidiu fazer uma última tentativa de volta a Stanford.
Em 2013, alugou uma cama em um trailer, de um idoso
chinês. Não podia pagar por nada além disso. No primeiro
mês no campus, procurou-me pedindo ajuda.
É claro que concordei em receitar buprenorfina para
Chris.
Três anos depois, ele se formou com louvor e seguiu
para o doutorado. Aconteceu que todas suas ideias
“esquisitas” se encaixavam bem no laboratório.
Em 2017, ele se casou com a namorada. Ela conhecia
seu passado e entendia por que ele tomava buprenorfina.
Às vezes lamentava a “falta de emoção robótica”, em
especial sua aparente falta de raiva, quando ela sentia que
a raiva era justificada.
Mas, basicamente, a vida era boa. Chris já não estava
sufocado pelo desejo, pela raiva e outras emoções
intoleráveis. Passava os dias no laboratório e corria para
casa depois do trabalho, para ver a esposa. Logo esperavam
o primeiro filho.
Um dia, em 2019, eu disse a Chris, durante uma de
nossas sessões mensais:
– Você está indo tão bem, e já faz um bom tempo; já
pensou em tentar largar a buprenorfina?
Sua resposta foi definitiva:
– Nunca quero largar a buprenorfina. Foi quase como
um interruptor para mim. Ela não apenas me impediu de
usar heroína, ela deu ao meu corpo algo de que eu
precisava e não conseguia achar em nenhum outro lugar.
▸ Medicamentos para restaurar um
equilíbrio?
Pensei com frequência no que Chris me disse naquele
dia, sobre a buprenorfina lhe dar algo que ele não conseguia
achar em nenhum outro lugar.
Será que o uso prolongado de drogas tinha quebrado
seu equilíbrio prazer-sofrimento a tal ponto que ele
precisaria de opioides pelo resto da vida, só para se sentir
normal? Talvez o cérebro de algumas pessoas perca a
plasticidade necessária para restaurar a homeostase,
mesmo depois de uma abstinência prolongada. Talvez
mesmo depois do desmonte dos gremlins, a balança dessas
pessoas mantenha-se permanentemente inclinada para o
lado do sofrimento.
Ou será que Chris estava dizendo que os opioides
corrigiram um desequilíbrio químico que ele tinha de
nascença?
Quando cursei a faculdade de medicina e fiz residência,
na década de 1990, aprendi que pessoas com depressão,
ansiedade, déficit de atenção, distorções cognitivas,
problemas de sono e daí por diante têm cérebros que não
funcionam da maneira que deveriam, exatamente como
pessoas com diabetes têm um pâncreas que não produz
insulina suficiente. Meu trabalho, segundo a teoria, é repor
a substância química que falta, para que as pessoas possam
funcionar “normalmente”. Essa mensagem foi amplamente
disseminada, e agressivamente promovida pela indústria
farmacêutica, encontrando um público receptivo tanto em
médicos quanto em pacientes.
Ou talvez Chris quisesse dizer algo ainda diferente.
Talvez estivesse dizendo que a buprenorfina compensou um
déficit não no seu cérebro, mas no mundo. Talvez o mundo
deixasse Chris deprimido, e a buprenorfina foi a melhor
maneira que ele encontrou para se adaptar.
Quer o problema estivesse no cérebro de Chris ou no
mundo, quer fosse causado pelo uso prolongado de droga
ou por um problema de nascença, aqui estão algumas
coisas que me preocupam no uso de medicamentos para
pressionar o lado do prazer da balança.
Em primeiro lugar, qualquer droga que pressione o lado
do prazer tem potencial para criar dependência.
David, o colega de faculdade que ficou dependente de
estimulantes com receita, é a prova viva de que tomar
estimulantes prescritos por um médico não confere
imunidade para os problemas de dependência e adicção.
Estimulantes prescritos são o equivalente molecular da
metanfetamina ilegal (ice, speed, crank, christina, no doz,
scooby snax). Eles provocam um surto de dopamina no
circuito de recompensa do cérebro e “têm um alto potencial
para abuso”, citação direta do aviso da Food and Drug
Administration (FDA, agência de regulação de alimentos e
remédios
dos
Estados
Unidos)
para
o
Adderall
[medicamento à base de anfetamina proibido no Brasil].
Em segundo lugar: e se essas drogas de fato não agirem
da maneira que deveriam ou, pior ainda, piorarem os
sintomas psiquiátricos a longo prazo? Embora a
buprenorfina estivesse funcionando para Chris, a
comprovação para medicamentos psicotrópicos, de forma
geral, não é sólida,3 em especial quando tomados por longo
tempo.
Apesar do substancioso aumento de financiamento em
quatro países de altos recursos (Austrália, Canadá,
Inglaterra e Estados Unidos), para medicamentos
psiquiátricos, como antidepressivos (fluoxetina), ansiolíticos
(alprazolam) e hipnóticos (zolpidem),4 a prevalência de
sintomas de transtorno de humor e ansiedade nesses países
não diminuiu (1990 a 2015). Esses resultados persistem
mesmo no controle para aumento de fatores de risco para
doenças mentais, tais como pobreza e trauma, e mesmo
quando se analisam doenças mentais severas, tais como
esquizofrenia.
Pacientes com ansiedade e insônia, que tomam
diariamente benzodiazepínicos (alprazolam e clonazepam) e
outros hipnóticos sedativos, por mais de um mês, podem
sentir uma piora na ansiedade e na insônia.
Pacientes com dor, que tomam opioides diariamente por
mais de um mês, têm mais risco não apenas de
dependência por opioide, como também para a piora da dor.
Como já foi mencionado, este é um processo chamado
hiperalgesia induzida pelo ópio,5 ou seja, opioides piorando
a dor com a repetição de doses.
Medicamentos como Adderall (anfetamina) e Ritalina
(metilfenidato), prescritos para transtorno do déficit de
atenção, promovem memória e atenção de curto prazo, mas
existe pouca ou nenhuma evidência para um aumento na
cognição complexa de longo prazo, melhora no
conhecimento, ou notas melhores.
Conforme a psicóloga de saúde pública Gretchen
LeFever Watson e seus coautores escreveram no artigo
intitulado “The ADHD Drug Abuse Crisis on American
College Campuses” [A crise do abuso de medicamentos
para TDAH nos campi universitários estadunidenses], “nova
comprovação convincente indica que o tratamento de TDAH
com medicamentos está associado à deterioração do
funcionamento acadêmico e socioemocional”.6
Dados recentes mostram que até os antidepressivos,
previamente considerados como não sendo “formadores de
hábito”, podem levar à tolerância e dependência, e
possivelmente até piorar a depressão a longo prazo,
fenômeno chamado disforia tardia.7
Além do problema da dependência, e da questão sobre
se essas drogas ajudam ou não, tenho me atormentado com
uma questão mais profunda: E se o fato de tomar
medicamentos psicotrópicos estiver nos levando a perder
algum aspecto essencial da nossa humanidade?
Em 1993, o psiquiatra Dr. Peter Kramer publicou seu
livro revolucionário Ouvindo o Prozac, no qual argumenta
que os antidepressivos deixam as pessoas “melhores do
que bem”.8 Mas e se Kramer entendeu mal? E se em vez de
nos deixar mais do que bem, as drogas psicotrópicas nos
tornem diferentes de bem?
Ao longo dos anos, tive muitos pacientes que me
contaram que seus medicamentos psiquiátricos, embora
oferecessem alívio a curto prazo para suas emoções
dolorosas, também limitavam sua capacidade de
experienciar uma série de emoções, especialmente as mais
fortes, como luto e maravilhamento.
Uma paciente, que parecia estar se dando bem com
antidepressivos, disse que já não chorava nos comerciais
das Olimpíadas. Contou isso rindo, privando-se com alegria
do lado sentimental da sua personalidade, pelo alívio da
depressão e ansiedade. Mas quando não conseguiu chorar
nem no enterro da própria mãe, sua balança tinha se
inclinado. Largou os antidepressivos e pouco tempo depois
vivenciou uma amplitude emocional maior, inclusive mais
depressão e ansiedade. Decidiu que os baixos valiam a
pena para se sentir humana.
Outra paciente minha, que diminuiu gradativamente a
alta dosagem de oxicodona que tinha tomado por mais de
uma década para dor crônica, veio me ver meses depois,
com o marido. Era a primeira vez que eu o via. Ele tinha se
cansado de tantos médicos ao longo de tantos anos.
– Por causa da oxi, minha esposa parou de ouvir música.
Agora, sem aquela coisa, ela voltou a gostar de música.
Para mim, é como se eu tivesse de volta a pessoa com
quem me casei – disse ele.
Tive minhas próprias experiências com medicamentos
psicotrópicos.
Inquieta e irritadiça desde a infância, fui, para a minha
mãe, uma criança difícil de lidar. Ela lutou para me ajudar a
controlar meu humor, e no processo sentia-se mal em sua
atuação como mãe, ou pelo menos é assim que interpreto o
passado. Ela admite que preferia o meu irmão, dócil e
obediente. Eu também o preferia, e ele de fato me criou
quando minha mãe jogou a toalha, frustrada.
Nos meus 20 anos, comecei a tomar fluoxetina para
uma irritabilidade e ansiedade de baixo teor, diagnosticada
como “depressão atípica”. Na mesma hora, me senti
melhor. Acima de tudo, parei de fazer as grandes perguntas:
Qual é nosso propósito? Eu tenho livre-arbítrio? Por que
sofremos? Existe um Deus? Em vez disso, meio que fui
seguindo em frente.
Além disso, pela primeira vez na vida, minha mãe e eu
nos demos bem. Ela achou agradável ficar comigo, e eu
gostei de ser mais agradável. Adaptei-me melhor a ela.
Quando larguei a fluoxetina alguns anos depois,
antecipando a tentativa de ficar grávida, voltei ao meu
antigo jeito: mal-humorada, questionadora, inquieta. Quase
imediatamente, minha mãe e eu estávamos de novo em
conflito. O próprio ar da sala parecia pesar quando nós duas
estávamos juntas.
Décadas depois, nosso relacionamento está um pouco
melhor. Reagimos melhor quando interagimos menos. Isto
me deixa triste porque amo a minha mãe, e sei que ela me
ama.
Mas não me arrependo de ter largado a fluoxetina.
Minha personalidade sem ela, embora não se adeque bem à
minha mãe, permitiu-me fazer coisas que, caso contrário,
jamais teria feito.
Hoje, fiz as pazes com o fato de ser um tanto ansiosa,
ligeiramente cético-deprimida. Sou uma pessoa que precisa
de atrito, desafio, algo pelo que trabalhar ou contra o que
lutar. Não vou me diminuir para me adequar ao mundo.
Algum de nós deveria?
Ao nos medicarmos para nos adaptar ao mundo, a que
tipo de mundo estamos nos ajustando? Sob o disfarce de
tratar dor e doença mental, estaremos tornando grandes
segmentos da população bioquimicamente indiferentes a
circunstâncias intoleráveis? Pior ainda, os medicamentos
psicotrópicos tornaram-se um meio de controle social, em
especial dos pobres, desempregados e marginalizados?
As drogas psiquiátricas são receitadas com mais
frequência, e em maiores quantidades, para pessoas
pobres, especialmente crianças pobres.
Segundo os dados de 2011 da Pesquisa Nacional de
Entrevista de Saúde, do Centro Nacional para Estatística de
Saúde, no Centro para Controle e Prevenção de Doenças,
7,5% das crianças estadunidenses entre 6 e 17 anos
tomavam um medicamento prescrito para “dificuldades
emocionais
e
comportamentais”.9
Havia
maior
probabilidade de crianças pobres tomarem medicamentos
psiquiátricos do que as que não viviam na pobreza (9,2%
contra 6,6%). Os meninos tinham mais probabilidade de
serem medicados do que as meninas. Brancos não latinos
tinham mais probabilidade de serem medicados do que as
pessoas pretas ou pardas.
Baseado na extrapolação dos dados do Medicaid do
estado da Geórgia para o restante dos Estados Unidos,
cerca de 10 mil crianças de colo podem estar tomando
medicamentos psicoestimulantes como metilfenidato.10
O psiquiatra Ed Levin escreveu a respeito do problema
do sobrediagnóstico e do excesso de medicação da
juventude estadunidense, em especial entre os mais pobres:
“Embora a tendência à raiva deva, assim como todo
comportamento, envolver alguma biologia, ela pode, mais
significativamente, refletir uma reação do paciente a
tratamento adverso e desumano”.11
Este fenômeno não se limita aos Estados Unidos.
Na Suécia, um estudo nacional analisou proporções de
prescrição para diferentes drogas psiquiátricas, baseado em
índices do que chamaram de “privação da área” (índice de
educação, renda, desemprego e assistência social). Para
cada classe de medicamento psiquiátrico, foi descoberto
que a prescrição aumentava conforme a situação
socioeconômica da região caía. A conclusão a que
chegaram: “Essas descobertas sugerem que a carência da
região está associada à prescrição de medicamentos
psiquiátricos”.12
Os opioides também são receitados de forma
desproporcional para os mais pobres.
Segundo o Departamento de Saúde e Serviços Humanos
dos Estados Unidos, “a pobreza, as taxas de desemprego e
a
proporção
emprego-população
estão
altamente
correlacionadas com a prevalência da prescrição de
opioides e com o grau do uso de substâncias. Na média,
distritos com piores perspectivas econômicas são mais
propensos a terem taxas mais altas de prescrição de
opioides, hospitalização relacionada a opioides e mortes por
overdose de drogas”.13
As pessoas que dependem do Medicaid, seguro-saúde
para os mais pobres e mais vulneráveis financiado pelo
governo federal dos Estados Unidos, recebem duas vezes
mais prescrições de analgésicos opioides do que pacientes
fora do seguro. Os beneficiários do Medicaid morrem de
opioides de três a seis vezes mais do que os outros
pacientes.14
Mesmo o tratamento de manutenção com a
buprenorfina (BMT) que eu estava receitando a Chris para
tratar uma dependência de opioide pode constituir um tipo
de “abandono clínico” se os determinantes psicossociais de
saúde não forem igualmente abordados. Segundo
Alexandrea Hatcher e seus colegas, no periódico Substance
Use and Misuse, “sem atenção para as necessidades
básicas dos pacientes sem privilégio de raça e classe, a BMT
como único medicamento, em vez de ser libertadora, pode
se transformar em uma forma de negligência institucional e
mesmo de violência estrutural, na medida em que for
considerada adequada para a recuperação desses
pacientes”.15
O filme de ficção científica Serenity – A luta pelo
amanhã, dirigido por Joss Whedon, imagina um mundo
futuro em que líderes nacionais conduzem um grande
experimento: eles inoculam toda a população de um planeta
contra ambição, tristeza, ansiedade, raiva e desespero, na
esperança de conseguir uma civilização de paz e harmonia.
Um piloto renegado chamado Mal – o herói do filme e
capitão da nave espacial Serenity – viaja com sua tripulação
até o planeta para explorá-lo. Em vez de se ver no paraíso,
ele encontra cadáveres sem uma explicação para as
mortes. Todo o planeta está morto, em repouso, as pessoas
deitadas na cama, relaxando no sofá, tombadas sobre a
escrivaninha. Mal e sua tripulação acabam resolvendo o
enigma: a mutação genética privou-os de qualquer tipo de
fome.
Como os ratos na vida real, privados de dopamina, que
morrem de fome em vez de andar alguns centímetros para
obter comida, esses humanos morreram por falta de desejo.
Por favor, não me entenda mal. Esses medicamentos
podem ser ferramentas que salvam vidas, e sou grata por
contar com eles na prática médica. Mas existe um custo ao
medicar todo tipo de sofrimento humano e, como veremos,
existe um caminho alternativo que pode funcionar ainda
melhor: aceitar o sofrimento. ■
* Em tradução literal: “Dormir esta noite, dormir esta noite, dormir esta
noite, dormir esta noite. Algo a dizer, algo a fazer, nada a dizer, não há
nada a fazer”. (N. T.)
* Personagem de Tom Cruise num filme policial de 2012, baseado numa
obra de Lee Child. Jack Reacher era um investigador militar. (N. T.)
CAPÍTULO 7
Pressionando o lado
do sofrimento
MICHAEL SENTOU-SE À MINHA FRENTE, parecendo relaxado, de jeans
e camiseta. Um homem com beleza de garotão e uma
simpatia espontânea, seu encanto natural lhe era tanto uma
dádiva quanto um fardo.
– Eu chamo muita atenção – ele disse. – Qualquer amigo
meu pode confirmar.
A vida de Michael tinha sido, em certa época, um conto
de fadas do Vale do Silício. Depois de se formar na
faculdade, ele ganhou milhões no mercado imobiliário. Aos
35 anos, era fabulosamente rico, bonito de dar inveja, e
estava feliz, casado com a mulher que amava.
Mas ele tinha outra vida que logo iria desfazer tudo pelo
que havia se esforçado.
– Sempre fui um cara com energia, procurando qualquer
coisa que me estimulasse. A cocaína era a mais óbvia, mas
o álcool também tinha esse efeito… Desde a primeira vez
que experimentei, me deixou eufórico e com montanhas de
energia. Pensei comigo mesmo que seria o cara que poderia
usar cocaína de vez em quando e não me meter em
confusão. Na época, acreditava mesmo nisto. – Ele fez uma
pausa e sorriu. – Eu já devia imaginar. Quando minha
esposa me disse que a única maneira de salvar nosso
casamento seria enfrentar a minha dependência, nem
hesitei. Queria ficar com ela. Queria o casamento. A única
possibilidade era a reabilitação.
Para Michael, o difícil não foi largar a cocaína; foi
imaginar o que fazer a seguir. Depois de largar, ele foi
tomado por todas as emoções negativas que andara
mascarando com drogas. Quando não estava se sentindo
triste, zangado e envergonhado, não sentia nada de nada, o
que, possivelmente, era pior. Então, ele se deparou com
algo que lhe deu esperança.
– Na primeira vez que aconteceu, foi por acaso – ele me
contou. – Eu vinha fazendo aulas de tênis de manhã bem
cedinho, uma maneira de me distrair nos primeiros dias de
abstinência. Mas uma hora depois da prática e da
chuveirada, eu ainda ficava suando. Comentei com meu
professor de tênis, e ele sugeriu tentar uma chuveirada fria.
Foi um pouco dolorosa, mas apenas por alguns segundos,
até meu corpo se acostumar. Quando saí, me senti
surpreendentemente bem, como se tivesse tomado uma
boa xícara de café.
“Nas duas semanas seguintes, comecei a notar que
meu humor melhorava depois de uma ducha fria. Pesquisei
sobre terapia de água fria na internet e encontrei uma
comunidade de pessoas que tomam banho gelado. Pareceu
meio louco, mas eu estava desesperado. Seguindo as
orientações delas, passei de chuveiradas frias a encher a
banheira com água fria e me enfiar dentro. Isso funcionou
ainda melhor, então acrescentei gelo à água da banheira,
para abaixar ainda mais a temperatura, por volta de 12 °C.
“Entrei numa rotina de me enfiar na água gelada por
cinco a dez minutos toda manhã e novamente logo antes de
ir para a cama. Fiz isto diariamente pelos três anos
seguintes. Foi fundamental para a minha recuperação.”
– Qual é a sensação de se enfiar na água fria? –
perguntei. Tenho aversão por água fria e não poderia tolerar
aquelas temperaturas nem por alguns segundos.
– Nos primeiros cinco a dez segundos, meu corpo fica
gritando: Pare, você está se matando. É doloroso a esse
ponto.
– Posso imaginar.
– Mas penso que é um tempo limitado, e vale a pena.
Depois do choque inicial, minha pele fica entorpecida. Assim
que saio, sinto-me eufórico. É exatamente como tomar uma
droga por diversão, por exemplo ecstasy ou analgésicos.
Incrível. Me sinto ótimo durante horas.
Durante a maior parte da história humana, as pessoas
se banharam em água fria. Só os que viviam perto de uma
fonte natural quente podiam, regularmente, desfrutar um
banho quente. Não é de se estranhar que as pessoas, então,
ficassem mais sujas.
Os antigos gregos desenvolveram um sistema de
aquecimento para banhos públicos, mas continuaram a
defender o uso de água fria para tratar diversas
enfermidades. Na década de 1920, um fazendeiro alemão
chamado Vincenz Priessnitz incentivou o uso da água
gelada para curar todo tipo de problemas físicos e
psicológicos. Chegou a ponto de transformar sua casa em
um sanatório para tratamento com água gelada.
Desde o aparecimento do encanamento e do
aquecimento modernos, os banhos e as duchas quentes
tornaram-se a norma, mas ultimamente a imersão em água
gelada voltou a ficar popular.
Atletas de endurance afirmam que a água gelada
acelera a recuperação muscular. O scottish shower, também
chamada de “chuveirada James Bond” por ser um hábito do
agente 007 nos romances de Ian Fleming, está novamente
popular e consiste em terminar uma ducha quente com, no
mínimo, um minuto de ducha fria.
Gurus que imergem em água gelada, como o holandês
Wim Hof, tornaram-se celebridades pela capacidade de
permanecer por horas seguidas em temperaturas quase
congelantes.
Cientistas da Universidade Carolina, em Praga,
publicaram no European Journal of Applied Pshysiology um
experimento no qual dez homens foram voluntários para
submergir (com a cabeça para fora) em água gelada (14 °C)
durante uma hora.1
Usando amostras de sangue, os pesquisadores
mostraram que as concentrações de dopamina no plasma
(sangue) aumentaram 250%, e que as concentrações de
norepinefrina aumentaram 530%, como resultado da
imersão em água gelada.
A dopamina aumentou gradual e progressivamente
durante o banho gelado e permaneceu elevada por uma
hora depois do seu término. A norepinefrina aumentou
precipitadamente nos primeiros trinta minutos, estabilizouse nos trinta minutos finais e caiu para um terço na hora
seguinte, mas permaneceu elevada bem acima do patamar
mesmo na segunda hora depois do banho. Os níveis de
dopamina e de norepinefrina resistiram bem além do
próprio estímulo doloroso, o que corrobora a declaração de
Michael: “Logo depois que saio, me sinto ótimo durante
horas”.
Outros estudos que examinaram os efeitos cerebrais da
imersão em água gelada em humanos e animais mostram
elevações
semelhantes
em
neurotransmissores
de
monoaminas (dopamina, norepinefrina, serotonina), os
mesmos neurotransmissores que regulam o prazer, a
motivação, o humor, o apetite, o sono e a prontidão.
Além dos neurotransmissores, demonstrou-se que o frio
extremo em animais promove crescimento neuronal, o que
é ainda mais notável, uma vez que se sabe que os
neurônios alteram sua microestrutura em reação a apenas
um pequeno conjunto de circunstâncias.
Christina G. von der Ohe e seus colegas estudaram os
cérebros de esquilos terrestres hibernados.2 Durante a
hibernação, tanto a temperatura corporal quanto a do
cérebro caem de 0,5 °C a 3 °C. Em temperaturas
congelantes, os neurônios de esquilos terrestres hibernados
parecem árvores espigadas com poucos galhos (dendritos)
e ainda menos folhas (microdendritos).
No entanto, conforme o esquilo terrestre hibernado é
aquecido, os neurônios mostram um notável recrescimento,
como uma floresta transitória no auge da primavera. Esse
recrescimento ocorre rapidamente, rivalizando com o tipo
de plasticidade neuronal visto apenas no desenvolvimento
embrionário.
Os autores do estudo escreveram o seguinte sobre suas
descobertas: “As mudanças estruturais que observamos no
cérebro do animal que hiberna estão entre as mais
dramáticas encontradas na natureza… Considerando que o
alongamento dendrítico pode chegar a 114 micrômetros por
dia no hipocampo do embrião em desenvolvimento do
macaco rhesus, os animais que hibernam apresentam
mudanças semelhantes em apenas duas horas”.
A descoberta acidental de Michael sobre os benefícios
da imersão em água gelada é um exemplo de como a
pressão no lado do sofrimento da balança pode levar a seu
oposto, o prazer. Ao contrário da pressão no lado do prazer,
a dopamina decorrente da dor é indireta e potencialmente
mais duradoura. Então, como ela funciona?
A dor leva ao prazer com a ativação dos próprios
mecanismos regulatórios homeostáticos do organismo.
Neste caso, o estímulo inicial da dor é seguido por gremlins
pulando no lado do prazer da balança.
O prazer que sentimos é a resposta fisiológica natural e
reflexiva do nosso corpo à dor. A mortificação da carne de
Martinho Lutero por meio do jejum e do autoflagelo deve têlo deixado um pouquinho eufórico, ainda que fosse por
motivos religiosos.
Com intermitente exposição à dor, nosso ponto natural
de ajuste hedônico pesa para o lado do prazer, tanto que,
com o tempo, ficamos menos vulneráveis à dor e mais
aptos a sentir prazer.
No final da década de 1960, cientistas conduziram uma
série de experimentos em cachorros,3 que, devido à óbvia
crueldade dos experimentos, não seriam permitidos hoje,
mas mesmo assim proporcionaram importantes informações
sobre homeostase cerebral (ou o equilíbrio da balança).
Depois de ligar as patas traseiras do cachorro a uma
corrente elétrica, os pesquisadores observaram: “O cachorro
pareceu apavorado nos primeiros choques. Guinchava e se
debatia, suas pupilas dilataram, os olhos saltaram, o pelo
arrepiou-se, as orelhas deitaram-se para trás, o rabo
enrolou-se entre as pernas. Foram vistas defecação e
urinação expulsivas, juntamente com muitos outros
sintomas de intensa atividade do sistema nervoso
autônomo”.
Depois do primeiro choque, quando o cachorro foi
liberado das correias, “ele se moveu lentamente pela sala,
parecendo furtivo, hesitante e arredio”. Durante o primeiro
choque, a frequência cardíaca do cachorro subiu para 150
batidas por minuto acima do patamar de repouso. Quando o
choque terminou, a frequência cardíaca caiu para 30
batidas abaixo da linha básica durante um minuto completo.
Com os choques elétricos subsequentes, “seu
comportamento mudou gradualmente. Durante os choques,
os sinais de terror desapareceram. Em vez disto, o cachorro
pareceu dolorido, incomodado ou ansioso, mas não
apavorado. Por exemplo, ele gania, em vez de gritar, e não
urinou mais, nem defecou ou se debateu. Depois, quando
solto repentinamente ao final da sessão, o cachorro correu
por ali, pulou nas pessoas, abanou o rabo, no que
chamamos, no momento, ‘um ataque de alegria’”.
Com os choques subsequentes, a frequência cardíaca
do cachorro subiu apenas levemente acima do patamar de
repouso, e apenas por alguns segundos. Terminado o
choque, a frequência cardíaca diminuiu fortemente para
sessenta batidas por minuto abaixo do patamar de repouso,
o dobro da primeira vez. Levou cinco minutos completos
para que a frequência cardíaca voltasse ao patamar de
repouso.
Com repetidas exposições a estímulos dolorosos, o
humor do cachorro e a frequência cardíaca adaptaram-se
igualmente. A reação inicial (dor) ficou mais curta e mais
fraca. A reação posterior (prazer) ficou mais longa e mais
forte. Dor transformada em hipervigilância transformada em
um “ataque de alegria”. Uma frequência cardíaca elevada,
consistente com uma reação de luta ou fuga, transformouse numa elevação mínima da frequência cardíaca, seguida
por prolongada bradicardia (frequência cardíaca reduzida,
vista em estados de relaxamento profundo).
Não é possível ler esse experimento sem sentir pena do
animal submetido a essa tortura. No entanto, o chamado
“ataque de alegria” sugere uma possibilidade tentadora: ao
pressionar o lado da balança para a dor, poderíamos
conseguir uma fonte mais duradoura de prazer?
Não é uma ideia nova. Antigos filósofos observaram um
fenômeno semelhante. Sócrates (como foi registrado por
Platão em “Razões de Sócrates para não temer a morte”)
refletiu sobre a relação entre sofrimento e prazer, mais de
dois mil anos atrás:
Como parece estranha essa coisa que os homens chamam prazer! E
como, curiosamente, está relacionada com o que é pensado como
seu oposto, o sofrimento! Os dois nunca serão encontrados juntos em
um homem e, no entanto, se buscar um deles e o obtiver, está quase
fadado a sempre receber também o outro, exatamente como se
ambos estivessem ligados a uma mesma cabeça… Onde quer que um
se encontre, o outro segue atrás. Assim, no meu caso, já que senti
dor na minha perna por causa dos grilhões, parece que o prazer veio
em seu encalço.4
Em 1969, a cardiologista estadunidense Helen Taussig
publicou um artigo na revista American Scientist em que
descreveu as experiências de pessoas atingidas por raios e
que sobreviveram para contar a respeito:5 “O filho do meu
vizinho foi atingido por um raio quando estava voltando de
um campo de golfe. Foi atirado no chão. Seu short ficou em
trapos, e ele teve queimadura nas coxas. Quando seu amigo
o levantou, ele gritou: ‘Estou morto, estou morto’. Suas
pernas estavam entorpecidas e azuis, e ele não conseguia
se mexer. Quando chegou ao hospital mais próximo, estava
eufórico. Sua pulsação estava muito baixa.” Esse relato
lembra o “ataque de alegria” do cachorro, incluindo a
pulsação reduzida.
Todos nós experienciamos alguma versão de dor dando
lugar ao prazer. Talvez, como Sócrates, você tenha notado
uma melhora de humor depois de um período doente, ou
sentido uma euforia de corredor, depois de se exercitar, ou
tido inexplicável prazer num filme de terror. Assim como a
dor é o preço que pagamos pelo prazer, o prazer também é
nossa recompensa pela dor.
▸ A ciência da hormese
A hormese é um ramo da ciência que estuda os efeitos
benéficos da administração de pequenas a moderadas
doses de estímulos tóxicos e/ou dolorosos, tais como frio,
calor,
mudanças
gravitacionais,
radiação,
restrição
alimentar e exercício. Hormese vem do grego antigo
hormáein: colocar em movimento, impelir, incitar.
Edward J. Calabrese, toxicologista estadunidense e um
líder no campo da hormese, descreve esse fenômeno como
as “respostas adaptativas dos sistemas biológicos a
moderados desafios ambientais ou autoimpostos, pelos
quais o sistema aprimora sua funcionalidade e/ou tolerância
para desafios mais severos”.6
Minhocas expostas a temperaturas acima dos seus
preferidos 20 °C (35 °C durante duas horas) viveram 25%
de tempo a mais e tiveram 25% a mais de probabilidade de
sobreviver a temperaturas altas subsequentes do que as
minhocas não expostas.7 Mas o calor em excesso não foi
bom. Quatro horas em oposição a duas horas de exposição
ao calor reduziram a tolerância subsequente ao calor e
diminuíram em um quarto o período de vida.
Drosófilas colocadas em uma centrífuga girando por um
prazo de duas a quatro semanas não apenas sobreviveram
às que ficaram de fora como também ficaram mais ágeis
quando mais velhas, capazes de voar mais alto e por mais
tempo do que suas semelhantes. Mas as drosófilas deixadas
na centrífuga por mais tempo não prosperaram.8
Entre os cidadãos japoneses que moravam fora do
epicentro do ataque nuclear de 1945, aqueles com
exposição à baixa dosagem de radiação podem ter
apresentado um tempo de vida levemente maior e
reduzidas porcentagens de câncer, em comparação com os
indivíduos não irradiados. Dos que viviam diretamente na
vizinhança da explosão atômica, aproximadamente 200 mil
morreram no ato.
Os autores teorizaram que “um estímulo em baixa
dosagem de reparo de danos no DNA, a remoção de células
anômalas via apoptose [morte celular] e eliminação das
células cancerosas via imunidade estimulada anticâncer”9
estão no cerne dos efeitos benéficos da radiação hormese.
Observe que essas descobertas são controversas,
contestadas por um ensaio subsequente, publicado na
prestigiosa revista Lancet.10
Um jejum intermitente e restrição calórica estendeu o
tempo de vida e aumentou a resistência a doenças
relacionadas à idade em roedores e macacos, bem como
reduziu a pressão sanguínea e aumentou a variabilidade da
frequência cardíaca.11
O jejum intermitente tornou-se um tanto popular como
maneira de perder peso e aumentar o bem-estar. Algoritmos
de jejum incluem jejum em dias alternados, jejum uma vez
por semana, jejum de até 9 horas, jejum de uma refeição
diária, jejum 16 por 8 (jejuar 16 horas por dia e fazer toda a
alimentação dentro da outra janela de 8 horas) e daí por
diante.
Jimmy Kimmel, famoso apresentador de programa de
entrevistas, pratica o jejum intermitente. “Algo que venho
fazendo há uns dois anos é passar fome dois dias por
semana…12 Às segundas e quintas-feiras, como menos de
500 calorias por dia, depois nos outros cinco dias como feito
um porco. Você ‘surpreende’ o corpo, deixa ele pensando.”
Não faz muito tempo, esse tipo de comportamento
poderia ser considerado um transtorno alimentar.
Pouquíssimas calorias é algo prejudicial por motivos óbvios.
Mas hoje, em alguns círculos, jejuar é considerado normal e
até saudável.
E quanto a exercícios?
O exercício é imediatamente tóxico para as células,
causando aumento de temperatura, presença de oxidantes
nocivos e falta de oxigênio e glicose. No entanto, a
evidência esmagadora é de que o exercício faz bem para a
saúde, e que a falta de exercício, principalmente combinada
com uma alimentação sedentária crônica – comer demais o
dia todo –, é mortal.
O exercício aumenta muitos dos neurotransmissores
envolvidos na regulação de um humor positivo: dopamina,
serotonina, norepinefrina, epinefrina, endocanabinoides e
peptídeos opioides endógenos (endorfinas).13 O exercício
contribui para o nascimento de novos neurônios e de células
gliais de suporte. O exercício até reduz a probabilidade do
uso de drogas e de se tornar dependente.
Quando os ratos tinham acesso a uma roda de corrida
seis semanas antes de ganhar livre acesso a cocaína, eles
se autoadministravam a cocaína mais tarde e com menos
frequência
do
que
os
ratos
que
não
tinham
antecipadamente se exercitado na roda. A descoberta tem
sido replicada com heroína, metanfetamina e álcool.
Quando o exercício não é voluntário, e sim forçado no
animal, ainda resulta num consumo voluntário reduzido da
droga.
Em seres humanos, grandes quantidades de atividade
física no final do ensino fundamental, durante o ensino
médio e no começo da vida adulta preveem níveis mais
baixos de uso de drogas. Já foi demonstrado também que o
exercício ajuda quem já é dependente a parar ou reduzir.
A importância da dopamina para os circuitos motores
tem sido registrada em cada filo animal em que tem sido
investigada. O nematoide C. elegans, verme que é um dos
mais simples animais de laboratório, libera dopamina em
resposta a estímulos ambientais que sinalizam abundância
local de alimento. O conhecido papel da dopamina no
movimento físico está relacionado à motivação: para obter o
objeto do nosso desejo, precisamos buscá-lo.14
É claro que o fácil acesso atual à dopamina não exige
que deixemos o sofá. Segundo relatórios de pesquisa, o
estadunidense típico de hoje passa sentado metade do
tempo em que fica acordado,15 50% a mais do que
cinquenta anos atrás. Dados de outras nações ricas do
globo são comparáveis. Quando pensamos que, antes,
percorríamos dezenas de quilômetros diariamente para
competir por um suprimento de comida limitado,16 os
efeitos adversos de nosso estilo de vida moderno e
sedentário são devastadores.
Às vezes me pergunto se nossa moderna predileção por
nos tornamos adictos é, em parte, impulsionada pela
maneira como as drogas nos lembram que ainda temos
corpo. Os video games mais populares apresentam avatares
que correm, pulam, escalam, arremessam e voam. O
smartphone requer que percorramos páginas e toquemos
em telas, explorando sabiamente antigos hábitos de
movimento repetitivo, possivelmente adquiridos através de
séculos moendo trigo e colhendo frutos silvestres. Nossa
preocupação contemporânea com sexo pode se justificar
por ser a última atividade física ainda amplamente
praticada.
Uma solução para o bem-estar é sairmos do sofá e
movimentarmos nossos corpos reais, não os virtuais. Como
digo a meus pacientes, caminhar pelo bairro, nem que seja
apenas trinta minutos por dia, pode fazer diferença. Isso
porque a evidência é incontestável: o exercício tem um
efeito mais positivo, profundo e contínuo no humor, na
ansiedade, na cognição, na energia e no sono do que
qualquer comprimido que eu possa receitar.17
Mas a busca do sofrimento é mais difícil do que a busca
do prazer, porque vai contra o nosso reflexo inato de evitar
sofrimento e buscar prazer. Fora que exige a nossa
capacidade cognitiva, ou seja, temos que nos lembrar de
que sentiremos prazer depois do sofrimento e somos
consideravelmente amnésicos quanto a esse tipo de coisa.
Sei que tenho que reaprender as lições de sofrimento toda
manhã, enquanto me obrigo a sair da cama e fazer
exercício.
Buscar sofrimento em vez de prazer é também
contracultural, indo de encontro a todas as mensagens de
“bem-estar” que permeiam tantos aspectos da vida
moderna. Buda ensinou sobre encontrar o Caminho do Meio
entre sofrimento e prazer, mas mesmo o Caminho do Meio
tem sido adulterado pela “tirania da conveniência”.18
Sendo assim, temos que procurar o sofrimento e
convidá-lo a fazer parte da nossa vida.
▸ Dor para tratar dor
A administração intencional de dor para tratar dor
existe, no mínimo, desde os tempos de Hipócrates, que
escreveu em seus Aforismos em 400 a.C.: “De duas dores
que ocorram juntas, não na mesma parte do corpo, a mais
forte enfraquece a outra”.19
A história da medicina está repleta de exemplos do uso
de estímulos dolorosos ou nocivos para tratar estados
dolorosos de doenças. Às vezes chamados de “terapias
heroicas” – ventosas, bolhas, cauterização, moxabustão –,
tratamentos dolorosos eram amplamente administrados
antes de 1900. A popularidade das terapias heroicas
começou a declinar no século 20, quando os médicos
descobriram a terapia com drogas.
Com o advento da farmacoterapia, a dor no tratamento
da dor começou a ser vista como uma espécie de
charlatanismo. Mas conforme as limitações e malefícios da
farmacoterapia passaram para primeiro plano nas décadas
recentes, tem havido um ressurgimento de interesse em
terapias não farmacológicas, incluindo tratamentos
dolorosos.
Em 2011, em um artigo num importante periódico
médico, Christian Sprenger e seus colegas da Alemanha
apresentaram um apoio empírico às antigas ideias de
Hipócrates sobre dor.20 Eles usaram neuroimagens (imagens
do cérebro em tempo real) para estudar os efeitos do calor
e de outros estímulos dolorosos, aplicados nos braços e nas
pernas de vinte homens jovens e saudáveis.
Descobriram que a experiência subjetiva de dor,
causada por um estímulo inicial doloroso, era diminuída com
a aplicação de um segundo estímulo doloroso. Além disso, a
naloxona, um bloqueador de receptor de opioide, impediu
esse fenômeno, sugerindo que a aplicação de dor dispara os
opioides endógenos (aqueles produzidos pelo próprio
organismo).
Liu Xiang, professor na Academia de Medicina
Tradicional Chinesa, em Beijing, publicou um estudo em
2001 no Chinese Science Bulletin, revisitando a centenária
prática de acupuntura e recorrendo à ciência moderna para
explicar como ela funciona. Argumentou que a eficácia da
acupuntura é mediada através da dor, com a inserção de
agulha como principal procedimento: “O agulhamento, que
pode danificar o tecido, é uma estimulação nociva que induz
dor… inibindo uma grande dor com uma dor menor!”.21
O bloqueador de receptor de opioide naltrexona está
sendo explorado, atualmente, como tratamento médico
para dor crônica. A ideia é que, bloqueando os efeitos de
opioides, inclusive daqueles que produzimos (endorfinas),
enganamos nosso corpo para que ele produza mais opioides
como resposta adaptativa.
Em um estudo, 28 mulheres com fibromialgia ingeriram
um comprimido diário de baixa dosagem de naltrexona (4,5
mg) durante doze semanas e um comprimido de açúcar
(placebo) durante quatro semanas. A fibromialgia é um
estado de dor crônica de etiologia desconhecida, com a
possibilidade de estar relacionada a um patamar inato mais
baixo do indivíduo na tolerância da dor.
O estudo foi duplo-cego, ou seja, nem as mulheres
participantes do estudo nem a equipe médica sabiam que
comprimido elas estavam tomando. Cada mulher recebeu
um computador portátil para registrar sua dor, seu cansaço
e outros sintomas diariamente, e elas continuaram a
registrar seus sintomas durante quatro semanas após terem
parado de ingerir as cápsulas.
Os autores do estudo relataram que “participantes
experimentaram uma redução significativamente maior em
seus níveis de dor, enquanto estavam tomando o LDN
[baixa dosagem de naltrexona], em comparação com o
placebo. Elas também relataram uma melhora geral de
satisfação com a vida e melhora de humor, enquanto
tomavam LDN”.22
Desde o começo dos 1900, tem se aplicado eletricidade
no cérebro para o tratamento de doença mental. Em abril
de 1938, Ugo Cerletti e Lucino Bini realizaram o primeiro
tratamento de eletroconvulsoterapia (ECT) num paciente de
40 anos, que descreveram da seguinte maneira: “Ele se
expressava
exclusivamente
num
palavreado
incompreensível, composto de neologismos esquisitos e,
desde sua chegada de Milão por trem, sem passagem, não
se conseguiu determinar nada sobre a sua identidade”.23
Quando Cerletti e Bini aplicaram eletricidade no cérebro
do paciente pela primeira vez, observaram um “pulo súbito
do paciente em sua cama, com um enrijecimento bem curto
de todos os músculos; depois, imediatamente desabou na
cama, sem perder a consciência. O paciente logo começou a
cantar bem alto, depois se calou. Ficou evidente por nossa
experiência com cães que a voltagem tinha sido baixa
demais”.
Cerletti e Bini questionaram se deveriam aplicar mais
um choque, numa voltagem maior. Enquanto conversavam,
o paciente gritou: “Non uma seconda! Mortífera!” [De novo
não! Vai me matar!]. Apesar dos protestos, eles aplicaram
um segundo choque, como se fosse uma advertência para,
da próxima vez, pensar duas vezes antes de chegar em
Milão sem uma passagem de trem ou “uma identidade
verificável” – o ano era 1938.
Depois de o “paciente” ter se recuperado do segundo
choque, Cerletti e Bini observaram-no “sentar-se por conta
própria, olhar ao redor calmamente com um sorriso vago,
como se perguntasse o que era esperado dele. Pergunteilhe ‘O que anda acontecendo com você?’. Ele respondeu
sem usar o palavreado sem nexo: ‘Não sei, vai ver que
andei dormindo’. O primeiro paciente recebeu mais treze
tratamentos de ECT num prazo de dois meses e foi,
segundo relato, dispensado em completa recuperação”.
O ECT ainda é realizado hoje com bons resultados,
embora de maneira muito mais humana. Relaxantes e
paralisantes musculares impedem contrações dolorosas.
Anestésicos permitem que os pacientes permaneçam
dormindo e inconscientes durante a maior parte do
procedimento. Então, não se pode dizer, atualmente, que a
dor, por si, seja o fator mediador.
Não obstante, o ECT proporciona um choque hormético
no cérebro, que por sua vez estimula uma ampla resposta
compensatória para reafirmar a homeostase: “O ECT
provoca várias mudanças neurofisiológicas, bem como
neuroquímicas no contexto macro e micro do cérebro.
Diversas mudanças envolvendo expressões de genes,
conectividade funcional, neuroquímicos, permeabilidade da
barreira hematoencefálica e alteração no sistema imune
têm sido sugeridas como responsáveis pelos efeitos
terapêuticos do ECT”.24
Você se lembra de David, o entusiasta de computadores
que acabou no hospital depois de ficar dependente de
estimulantes vendidos sob receita médica, certo?
Depois que recebeu alta, ele começou a fazer
semanalmente uma terapia de exposição com uma
terapeuta jovem e talentosa da nossa equipe. Os princípios
básicos da terapia de exposição é expor as pessoas em
intervalos progressivos à própria coisa que provoca a
emoção incômoda que elas estão tentando evitar – estar em
meio a multidões, dirigir por cima de pontes, voar de avião
etc.–, e ao fazer isto, aumentar sua capacidade de
tolerância para aquela atividade. Com o tempo, elas até
podem vir a gostar daquilo.
Como a famosa frase dita pelo filósofo Friedrich
Nietzsche, sentimento ecoado por muitos antes e depois ao
longo do tempo: “O que não me mata me fortalece”.
Considerando que o maior medo de David era conversar
com estranhos, sua primeira tarefa foi se forçar a bater
papo com colegas de trabalho.
– Minha lição de casa da terapia – ele me contou meses
depois – foi ir até a copa, ou a sala de descanso, ou ao café,
no trabalho, e conversar com pessoas ao acaso. Eu tinha um
roteiro: “Oi, meu nome é David. Trabalho em
desenvolvimento de software. O que você faz?”. Defini um
esquema: antes do almoço, na hora do almoço e depois do
almoço. Então, eu avaliava meu incômodo antes, durante e
depois, numa escala de 1 a 100, sendo que 100 seria o pior
que eu pudesse imaginar.
Num mundo em que estamos crescentemente nos
contabilizando – passos, respiração, frequência cardíaca –
atribuir um número a alguma coisa tornou-se uma maneira
de controlar e descrever experiências. Para mim, quantificar
coisas não é muito natural, mas aprendi a me adaptar, uma
vez que esse método de autoconhecimento parece ecoar
bem para os entusiastas da engenharia de computação
voltada para a ciência, que existem com tanta abundância
aqui no Vale do Silício.
– Como você se sentiu antes da interação? Em que
número você estava? – perguntei.
– No começo, estava no 100. Me sentia muito
apavorado. Meu rosto ficava todo vermelho. Eu suava.
– O que você tinha medo que acontecesse?
– Tinha medo de as outras pessoas olharem para mim e
rirem. Ou de chamarem os Recursos Humanos ou a
segurança, por eu parecer maluco.
– Como foi?
– Nenhuma das coisas que eu tinha medo aconteceu.
Ninguém chamou o RH, nem a segurança. Fiquei ali o maior
tempo possível, simplesmente deixando minha ansiedade
passar, enquanto também era respeitoso com o tempo
deles. As interações duraram, talvez, quatro minutos.
– Como você se sentiu depois?
– Depois eu estava mais ou menos em 40. Bem menos
ansioso. Então, fiz isso três vezes por dia, durante semanas,
e com o tempo foi ficando mais fácil. Aí, me pus à prova
com pessoas fora do trabalho.
– Me conte.
– Na Starbucks, bati papo de propósito com o barista.
Nunca teria feito isto no passado. Sempre pedia pelo
aplicativo para evitar interagir com alguém. Mas dessa vez
fui até o balcão e pedi meu café. Meu maior medo era dizer
ou fazer alguma coisa idiota. Eu estava indo bem até
derrubar um pouquinho de café no balcão. Fiquei muito
constrangido. Quando contei para a minha terapeuta, ela
me disse para fazer aquilo de novo, derrubar o café, só que
de propósito. Na próxima vez em que eu fui à Starbucks,
derrubei meu café de propósito. Fiquei ansioso, mas me
acostumei.
– Por que você está sorrindo?
– Quase não consigo acreditar em como a minha vida
está diferente agora. Estou menos na defensiva. Não tenho
que planejar antecipadamente para evitar interagir com as
pessoas. Consigo entrar no metrô lotado e não chegar
atrasado ao trabalho por ter esperado o próximo, e o outro
depois daquele. Realmente gosto de encontrar pessoas que
nunca mais vou ver.
Em um exame de imagem do cérebro, descobriu-se que
Alex Honnold (alpinista famoso por escalar sem cordas o
paredão do El Capitán, no Parque Nacional de Yosemite, na
Califórnia) tem ativação da amígdala abaixo do normal. Para
a maioria de nós, a amígdala é uma área do cérebro que se
acende em um aparelho de ressonância magnética
funcional, quando olhamos para imagens assustadoras.
Os analistas que estudaram o cérebro de Honnold
especularam que ele teria nascido com menos medo inato
do que outras pessoas, o que, por sua vez, permitiu-lhe,
segundo suposições, realizar feitos sobre-humanos em
escaladas.
Mas o próprio Honnold discordou dessa interpretação:
“Fiz muitas escaladas sozinho e trabalhei tanto na minha
capacidade de escalar, que minha zona de conforto é bem
ampla. Então, essas coisas que faço e parecem bem
extraordinárias, para mim parecem normais”.25
A explicação mais provável para as diferenças cerebrais
de Honnold é o desenvolvimento de tolerância ao medo
através de uma neuroadaptação. Meu palpite é que o
cérebro dele não era diferente do cérebro médio, em termos
de sensibilidade ao medo. A diferença é que, ao longo dos
anos de escalada, Honnold treinou o cérebro a não reagir a
estímulos temerosos. É preciso muito mais para assustá-lo
do que para a pessoa comum, porque ele progressivamente
se expôs a atividades que desafiavam a morte.
Destaque-se que Honnold quase teve um ataque de
pânico ao entrar num aparelho de ressonância magnética
funcional, para obter imagens do seu “cérebro destemido”,
o que também nos diz que a tolerância ao medo não se
verifica, necessariamente, em todas as experiências.
Alex Honnold e meu paciente David vêm escalando
diferentes trechos da mesma montanha do medo. Assim
como o cérebro de Honnold adaptou-se a escalar a face
rochosa sem cordas, David desenvolveu as calosidades
mentais que o capacitaram a tolerar ansiedade e ganhou
uma sensação de confiança e competência em relação a si
mesmo e sua habilidade de viver no mundo.
Dor no tratamento de dor. Ansiedade no tratamento de
ansiedade. Essa abordagem é contraintuitiva e exatamente
oposta ao que nos ensinaram nos últimos 150 anos sobre
como lidar com doença, aflição e desconforto.
▸ Dependente da dor
– Com o tempo, percebi que quanto mais dor sentia com
o choque inicial da água fria, maior a euforia depois – disse
Michael. Então, comecei a encontrar meios de aumentar o
desafio. Comprei um freezer horizontal, que nada mais é do
que um contêiner com uma tampa e resistências internas
de resfriamento, e enchia-o com água toda noite. De
manhã, havia uma fina camada de gelo na superfície, e a
temperatura era próxima de 0 °C. Antes de entrar,
precisava quebrar o gelo.
“Então, li que o corpo aquece a água depois de alguns
minutos a não ser que a água esteja em movimento, como
um rodamoinho. Comprei um motor para pôr dentro do
banho de gelo. Assim, poderia manter temperaturas quase
congelantes, enquanto estivesse dentro. Também comprei
um protetor de colchão hidroelétrico para a minha cama,
que eu mantinha nas temperaturas mais baixas, cerca de
13 °C.”
Michael parou de falar abruptamente e olhou para mim
com um sorriso torto:
– Uau! Enquanto estou contando, percebi que… soa
como uma dependência.
Em abril de 2019, o professor Alan Rosenwasser da
Universidade do Maine me mandou um email, procurando
uma cópia de um capítulo que eu e uma colega tínhamos
publicado recentemente sobre a função do exercício no
tratamento da dependência. Eu e ele nunca tínhamos nos
encontrado. Depois de obter permissão com o editor, envieilhe o capítulo.
Cerca de uma semana depois, ele voltou a escrever,
desta vez com o seguinte:
Agradeço por compartilhar. Notei que você não abordou a questão de
se a roda de corrida em camundongos e ratos é um modelo para
exercício voluntário ou exercício patológico (dependência de
exercício). Alguns animais alojados em rodas exibem o que poderia
ser considerado níveis excessivos de corrida, e um estudo
demonstrou que roedores silvestres usarão uma roda de corrida
deixada ao ar livre no meio ambiente.
Fiquei fascinada e escrevi de volta imediatamente.
Seguiu-se uma série de conversas em que o Dr.
Rosenwasser, que passou os últimos quarenta anos
estudando ciclos circadianos*, ensinou-me sobre rodas de
corrida.
– Quando esse trabalho começou a ser feito –
Rosenwasser me contou –, deduziu-se, erradamente, que as
rodas de corrida eram uma maneira de monitorar a
atividade espontânea dos animais, repouso versus
movimento. Em algum momento, as pessoas se deram
conta de que as rodas de corrida não são inertes. São
interessantes por si só. Um dos pontapés foi a neurogênese
hipocampal adulta.
Isto se refere à descoberta, algumas décadas atrás, de
que, ao contrário do que se ensinou anteriormente, os seres
humanos podem gerar novos neurônios no cérebro durante
a maturidade e a velhice.
– Depois que as pessoas aceitaram o fato de que
nascem novos neurônios e que eles se integram ao circuito
neural – Rosenwasser continuou –, uma das maneiras mais
fáceis de estimular neurogênese foi com uma roda de
corrida, mais potente do que ambientes estimulantes
[labirintos complexos, por exemplo]. Isso levou a toda uma
era de pesquisa das rodas de corrida. Acontece que as
rodas de corrida são regidas pelos mesmos circuitos endoopioides e endocanabinoides de dopamina que acionam o
uso compulsivo de droga. É importante saber que as rodas
de corrida não são necessariamente um modelo para um
estilo de vida saudável.
Em resumo, as rodas de corrida são uma droga.
Camundongos dentro de um labirinto complexo, com
230 metros de túneis, incluindo água, comida, material de
escavação e ninhos – em outras palavras, uma grande área
com muitas coisas interessantes para fazer –, bem como
uma roda de corrida, passarão grande parte do tempo na
roda, e deixarão inexplorados grandes segmentos do
labirinto.
Depois que os roedores começam a usar a roda de
corrida, é difícil pararem. Os roedores correm distâncias
muito maiores em uma roda de corrida do que em uma
esteira plana, ou em um labirinto, e também muito mais do
que fariam durante a locomoção normal em ambientes
naturais.
Roedores engaiolados com acesso a uma roda de
corrida correrão até seus rabos ficarem permanentemente
curvados para cima e em direção à cabeça, adquirindo o
formato da roda: quanto menor a roda, mais fechada a
curva do rabo. Em alguns casos, os ratos correm até
morrer.26
A localização, a novidade e a complexidade da roda de
corrida influenciam seu uso.
Camundongos silvestres preferem rodas quadradas às
circulares, e rodas com obstáculos a rodas sem obstáculos.
Eles exibem uma quantidade notável de coordenação e
habilidade acrobática nas rodas de corrida. Assim como os
adolescentes num parque de skate, eles “são levados
repetidamente até quase o topo, rodando para frente ou
para trás, correndo do lado de fora da roda na parte
superior, ou ‘em cima’ da parte externa da roda, enquanto
usam o rabo para se equilibrar”.
C. M. Sherwin, em sua pesquisa de 1997 sobre rodas de
corrida, especulou sobre as propriedades intrínsecas de
reforço dessas rodas:
A qualidade tridimensional da roda de corrida pode ser um reforço
para os animais. Enquanto corre na roda, um animal experienciará
rápidas mudanças na velocidade e na direção do movimento, em
parte por causa de forças exógenas, como impulso e inércia da roda.
Esta experiência pode servir de reforço, semelhante ao que acontece
com (alguns!) humanos que gostam de atrações no parque de
diversão, especialmente as de movimento no plano vertical… tais
mudanças no movimento do animal são improváveis de serem
vivenciadas em circunstâncias “naturais”.
Johanna Meijer e Yuri Robbers do Centro Médico da
Universidade Leiden, na Holanda, colocaram uma roda de
corrida numa área urbana, onde vivem camundongos
silvestres, e outra numa duna não acessível ao público. Em
cada um desses lugares, colocaram também uma câmera
de vídeo para registrar todo animal que visitasse as gaiolas
no prazo de dois anos.
O resultado foram centenas de casos de animais usando
as rodas de corrida: “A observação mostrou que
camundongos silvestres correm nas rodas o ano todo; na
área verde urbana, aumentam o uso gradualmente no final
da primavera e chegam ao pico no verão; já nas dunas,
aumentam o uso do meio para o final do verão, alcançando
um pico no final do outono”.27
O uso das rodas não se limitou aos camundongos
silvestres. Também musaranhos, ratos, caramujos, lesmas e
sapos se aproveitaram do aparelho, e a maioria deles
demonstrou um envolvimento intencional e proposital com a
roda.
Os autores concluíram que “a roda de corrida pode ser
experienciada como gratificação, mesmo sem a associação
de recompensa de comida, sugerindo a importância dos
sistemas de motivação que não têm relação com
alimentos”.
Esportes extremos – paraquedismo em queda livre
(skydiving), kitesurf, asa-delta, corrida de trenó, esqui
alpino, snowboard, caiaque em cachoeira, escalada no gelo,
ciclismo cross-country, bungee jump, base jump, voo com
wingsuit – atuam intensamente e com rapidez no lado do
sofrimento
da
balança
prazer-sofrimento.
Um
sofrimento/medo intenso, combinado com uma descarga de
adrenalina, cria uma droga potente.
Cientistas mostraram que o estresse por si só pode
aumentar a liberação de dopamina no circuito de
recompensa do cérebro,28 levando às mesmas mudanças
cerebrais vistas com drogas adictivas, como a cocaína e a
metanfetamina.
Assim como nos tornamos tolerantes a estímulos de
prazer com exposição repetitiva, também podemos nos
tornar tolerantes a estímulos dolorosos, reconfigurando
nosso cérebro para o lado da dor.
Um estudo de skydivers comparado a um grupo de
controle (remadores) descobriu que skydivers recorrentes
tinham mais probabilidade de experienciar anedonia, uma
falta de prazer, em outros aspectos da vida.
Os autores escreveram que “o paraquedismo em queda
livre se assemelha a comportamentos adictivos, e que a
frequente exposição a experiências de ‘euforia natural’ tem
relação com anedonia”.29 Dificilmente eu chamaria pular de
um avião a 13 mil pés de altura de “euforia natural”, mas
concordo com a conclusão geral dos autores: o
paraquedismo em queda livre pode ser adictivo e pode levar
a uma persistente disforia, se realizado repetidamente.
A tecnologia permitiu-nos empurrar os limites da dor
humana.
Em 12 de julho de 2015, o ultramaratonista Scott Jurek
quebrou o recorde de velocidade ao correr a Trilha dos
Apalaches. Ele correu do estado da Geórgia até o estado do
Maine, nos Estados Unidos – uma distância de 3.523
quilômetros – em 46 dias, 8 horas e 7 minutos. Para realizar
esse feito, apoiou-se na seguinte tecnologia e dispositivos:
roupas leves, impermeáveis e resistentes ao calor; tênis de
corrida “air-mesh”; um localizador GPS, um relógio GPS, um
iPhone, sistemas de hidratação, comprimidos de eletrólitos,
bastões para trekking de alumínio dobrável, “vaporizadores
industriais de água para estimular nebulização”, “um cooler
para resfriar minhas entranhas”,30 uma dieta de 6 mil a 7
mil calorias diárias, e um aparelho pneumático de
compressão para massagear as pernas, alimentado por
painéis solares no alto da van de apoio, dirigida por sua
esposa e equipe.
Em novembro de 2017, Lewis Pugh nadou um
quilômetro em águas a -3 °C, perto da Antártida, com nada
além do seu traje de banho. Chegar até lá exigiu viajar de
avião e por mar desde sua casa na África do Sul até as ilhas
Geórgia do Sul, um território britânico ultramarino. Assim
que Pugh terminou de nadar, sua equipe levou-o
rapidamente para um navio próximo, onde ele foi imerso em
água quente e lá ficou por cinquenta minutos, para trazer
sua temperatura corporal interna de volta ao normal. Sem
essa intervenção, com certeza ele teria morrido.
A escalada do El Capitán por Alex Honnold parece a
realização humana definitiva, sem o uso de tecnologia, sem
cordas, sem equipamento. Apenas uma pessoa enfrentando
a gravidade, numa demonstração de coragem e maestria no
desafio da morte. Mas, por todos os relatos, o feito de
Honnold não teria sido possível sem as “centenas de horas
na Freerider [a rota que ele pegou], ligado a cordas,
planejando uma coreografia precisamente ensaiada para
cada trecho, memorizando milhares de sequências
intrincadas de mãos e pés”.31
A subida de Honnold foi filmada por uma equipe
profissional de cinema e transformada em um filme
assistido por milhões de pessoas, o que assegurou a ele um
número massivo de seguidores nas redes sociais e fama
mundial. Riqueza e celebridade, outra dimensão de nossa
economia da dopamina, contribuem para o potencial
adictivo desses esportes extremos.
A síndrome do overtraining é uma condição bem
descrita, mas mal compreendida entre atletas de
resistência, que treinam tanto que chegam a um ponto em
que o exercício já não produz as endorfinas antes tão
abundantes.32 Em vez disso, o exercício faz com que se
sintam esgotados e disfóricos, como se a balança de
recompensa tivesse chegado ao limite e deixado de
funcionar, semelhante ao que vimos com meu paciente
Chris e os opioides.
Não estou sugerindo que todos que se dedicam a
esportes extremos e/ou de resistência sejam adictos, mas
quero frisar que o risco da dependência a qualquer
substância
ou
comportamento
aumenta
com
a
intensificação da potência, da quantidade e da duração.
Pessoas que se apoiam demais e por muito tempo no lado
sofrimento da balança também podem acabar num estado
de déficit persistente de dopamina.
Excesso de dor, ou uma dor potente demais, pode
aumentar o risco de se tornar dependente da dor, algo que
presenciei na prática médica. Uma paciente minha correu
tanto que desenvolveu fraturas nos ossos da perna, e
mesmo assim não parou de correr. Outra paciente cortava a
parte interna dos antebraços e das coxas com uma lâmina
de barbear, para sentir adrenalina e acalmar as ruminações
constantes da mente. Ela não conseguia parar de se cortar,
mesmo com o risco de grave cicatrização e infecção.
Quando conceitualizo esses comportamentos como
adicções e os trato como trataria qualquer paciente com
dependência, eles melhoram.
▸ Dependente do trabalho
Ser workaholic é um comportamento estimulado pela
sociedade. Talvez em nenhum outro lugar isso seja mais
verdadeiro do que aqui, no Vale do Silício, onde a norma é
100 horas de trabalho por semana, e disponibilidade 24
horas, sete dias por semana.
Em 2019, após três anos de viagens mensais a trabalho,
decidi limitá-las, num esforço para colocar o trabalho e a
vida pessoal de volta a um equilíbrio. No começo, falava
abertamente sobre o motivo: queria mais tempo com a
minha família. As pessoas pareceram tanto contrariadas
quanto ofendidas que eu declinasse seus convites por um
motivo tão prosaico quanto “tempo com a família”. Acabei
recorrendo a dizer que já tinha outro compromisso,
justificativa que encontrou menos resistência. Ao que
parecia, trabalhar em outro lugar era mais aceitável.
Incentivos invisíveis são agora entremeados no tecido
do trabalho corporativo, desde a perspectiva de bônus e a
opção de ações até a promessa de promoção. Mesmo em
áreas como medicina, profissionais de saúde veem mais
pacientes, prescrevem mais receitas e realizam mais
procedimentos por serem incentivados a fazer isto. Recebo
um relatório mensal sobre a minha produtividade, com a
avaliação de quanto faturei em prol da minha instituição.
Por outro lado, os trabalhos braçais estão cada vez mais
mecanizados e desligados do significado do próprio
trabalho. Trabalhar a serviço de beneficiários distantes traz
uma limitação de autonomia, um modesto ganho financeiro
e pouca sensação de um objetivo comum. O trabalho
segmentado de linha de montagem fragmenta a sensação
de realização e minimiza o contato com o consumidor do
produto final, ambos básicos para uma motivação interna. O
resultado é uma mentalidade “work hard, play hard”*, na
qual o hiperconsumo compulsivo torna-se a recompensa no
final de um dia de trabalho maçante.
Assim, não é de se surpreender que aqueles que não
completaram o ensino médio e têm empregos que pagam
mal estejam trabalhando menos do que nunca, enquanto os
assalariados
com
alto
nível
educacional
estejam
33
trabalhando mais.
Em 2002, os 20% dos trabalhadores mais bem pagos
tinham o dobro de probabilidade de trabalhar até tarde do
que os 20% mais mal pagos, e essa tendência continua. Os
economistas especulam que a mudança se deve às
gratificações mais altas para aqueles que estão no topo da
cadeia econômica produtiva.
Às vezes, quando estou engatada num trabalho, acho
difícil parar. O “fluxo” de concentração profunda é uma
droga em si mesmo, liberando dopamina e criando sua
própria euforia. Este tipo de foco obsessivo, embora
altamente recompensado nas nações modernas ricas, pode
ser uma armadilha quando nos impede de conexões íntimas
com amigos e família pelo resto da vida.
▸ O veredicto da dor
Como se respondesse à sua própria pergunta sobre ter
se tornado dependente da imersão em água fria, Michael
comentou:
– Nunca perdi o controle. Por dois ou três anos, tomei
um banho gelado de dez minutos toda manhã. Agora já não
estou tão nessa quanto costumava. Faço isto, em média,
três vezes por semana. O que realmente é incrível é que
passou a ser uma atividade familiar, e uma coisa que
fazemos com amigos. Tomar drogas sempre foi um ato
social. Na faculdade, uma porção de pessoas caía pesado.
Era sempre todos sentados juntos, em roda, bebendo ou
cheirando cocaína.
“Não faço mais isso. Agora, um casal de amigos nossos
vem em casa… Eles também têm filhos, e a gente faz uma
reunião em água gelada. Tenho um contêiner ajustado por
volta de 7 °C, e todo mundo se reveza, entrando e saindo,
alternando com uma banheira quente. Temos um timer e
nos incentivamos a entrar, inclusive as crianças. A
tendência também se espalhou entre nossos amigos. Esse
grupo só de mulheres, no nosso grupo de amigos, vai até a
Baía de São Francisco uma vez por semana e entra na água.
Elas afundam até o pescoço. A água está entre 10 °C e 15
°C.”
– E depois?
– Sei lá – ele riu. – Provavelmente elas saem e
comemoram.
Nós dois sorrimos.
– Você disse várias vezes que faz isso para se sentir
vivo. Dá para explicar?
– Realmente não gosto da sensação de estar vivo. As
drogas e a bebida eram uma maneira de gostar. Agora não
posso mais recorrer a elas. Quando vejo pessoas na farra,
ainda sinto um pouco de inveja da fuga que estão
conseguindo. Percebo que elas encontram uma trégua. A
água fria me lembra que estar vivo pode ser uma sensação
boa.
Quando consumimos um excesso de dor, ou uma dor
muito potente, corremos o risco de um hiperconsumo
compulsivo destrutivo.
Mas se consumirmos exatamente a quantidade certa,
“inibindo uma grande dor com uma dor menor”,
descobrimos o caminho para uma cura hormética, e talvez
até um ocasional “ataque de alegria”. ■
* Ciclo ou ritmo circadiano é a maneira como nosso corpo se regula nas 24
horas do dia, que determina uma série de comportamentos e influencia
várias funções do nosso organismo. (N. T.)
* Em português, seria “dê duro e divirta-se à beça. (N. T.)
CAPÍTULO 8
Honestidade radical
mais
relevantes incluíram a honestidade como base de seus
ensinamentos morais. Todos os meus pacientes que
conseguiram uma recuperação de longo prazo invocaram o
fato de dizer a verdade como essencial para a manutenção
de sua saúde física e mental. Também me convenci de que
a honestidade radical não apenas é útil para limitar o
hiperconsumo compulsivo, mas também o cerne de uma
vida bem vivida.
A questão é: de que forma contar a verdade melhora a
nossa vida?
Vamos primeiro estabelecer que contar a verdade é
doloroso. Desde a mais tenra idade estamos ligados à
mentira, e todos nós mentimos, admitamos ou não.
As crianças começam mentindo já aos 2 anos. Quanto
mais esperta, mais probabilidade ela tem de mentir, e
melhor ela se sai mentindo. A mentira tende a diminuir
entre os 3 e os 14 anos, provavelmente porque as crianças
se tornam mais conscientes de que mentir magoa as
pessoas. Por outro lado, os adultos são capazes de mentiras
antissociais mais sofisticadas do que as crianças, uma vez
que a habilidade de planejar e de se lembrar torna-se mais
evoluída.
Em média, o adulto conta de 0,59 a 1,56 mentiras
diariamente.1 A mentira tem pernas curtas. Todos nós
TODAS AS RELIGIÕES MAIS DESTACADAS E OS CÓDIGOS DE ÉTICA
temos alguma mentirinha escondida.
Os seres humanos não são os únicos animais com
capacidade para enganar. O reino animal está cheio de
exemplos de dissimulação, como arma e como escudo. O
escaravelho Lomechusa pubicollis, por exemplo, é capaz de
penetrar nos formigueiros fingindo ser uma das formigas,
algo que consegue soltando uma substância química que
faz com que tenha o cheiro delas. Uma vez lá dentro, ele se
alimenta dos ovos e das larvas.
Mas nenhum outro animal se iguala ao ser humano na
capacidade de mentir.
Os
biólogos
evolucionistas
especulam
que
o
desenvolvimento da linguagem humana explica nossa
tendência e habilidade superior para mentir. A história é a
seguinte: a evolução do Homo sapiens culminou com a
formação de grandes grupos sociais, o que só foi possível
por causa do desenvolvimento de formas sofisticadas de
comunicação, permitindo uma cooperação mútua avançada.
Palavras usadas para cooperar também podem ser usadas
para enganar e despistar. Quanto mais avançada a língua,
mais sofisticadas as mentiras.
Pode-se dizer que as mentiras têm alguma vantagem
adaptativa quando se trata de competir por recursos
escassos, mas mentir em um mundo de fartura implica em
risco de isolamento, sofreguidão e hiperconsumo patológico.
Deixe-me explicar.
– Você parece bem – eu disse a Maria, quando nos
sentamos uma em frente à outra em abril de 2019. Seu
cabelo castanho-escuro estava penteado num estilo
profissional que lhe favorecia. Vestia uma camisa simples de
botão e calça comprida. Sorria, atenta, muito elegante,
como nos cinco anos anteriores em que esteve sob meu
tratamento.
Maria estivera em remissão contínua do seu transtorno
de uso de álcool durante todo o tempo em que convivi com
ela. Chegou ao consultório já em recuperação, graças a sua
frequência às reuniões dos Alcoólicos Anônimos e ao apoio
de seu padrinho do AA. Ela me procurava de vez em quando
para consultas de rotina e para renovar seus medicamentos.
Tenho total convicção de que aprendi mais com ela do que
ela comigo. Uma coisa que ela me ensinou foi que contar a
verdade era fundamental para sua recuperação.
Na infância, ela tinha aprendido o oposto. Sua mãe
bebia, inclusive a ponto de perder a consciência enquanto
dirigia com Maria no carro. O pai deixou a família por vários
anos e foi para um lugar que ninguém nunca mencionava e
que, mesmo agora, ela preferia não revelar por respeito à
privacidade dele. Sobrou para Maria cuidar dos irmãos
menores, enquanto fingia para o mundo externo que estava
tudo bem em casa. Quando sua própria dependência de
álcool começou, aos 20 e poucos anos, ela já tinha prática
em misturar diferentes versões da realidade.
Para ilustrar a importância da honestidade em sua nova
vida sóbria, ela me contou a seguinte história:
– Cheguei em casa, depois do trabalho, e encontrei um
pacote da Amazon esperando por Mario.
Mario é o irmão mais novo de Maria. Ela e seu marido,
Diego, estavam morando com Mario para dar um apoio uns
aos outros, e economizar no aluguel no mercado imobiliário
de alto padrão do Vale do Silício.
– Decidi abri-lo, mesmo não sendo para mim. Em parte
sabia que não deveria. Das outras vezes que abri os
pacotes, Mario ficou muito bravo. Mas eu sabia que poderia
usar a mesma desculpa da última vez, dizer que tinha
confundido o nome dele com o meu, já que são tão
parecidos. Pensei que merecia um pequeno prazer depois
de um longo dia de trabalho duro. Não me lembro, agora, o
que tinha dentro.
“Depois de abrir o pacote, voltei a fechá-lo e deixei-o
com o restante da correspondência. Para dizer a verdade,
me esqueci do assunto. Mario chegou em casa algumas
horas depois, e imediatamente me acusou de abrir o
pacote. Menti e disse que não tinha. Ele tornou a perguntar
e eu tornei a mentir. Ele ficava dizendo: ‘Parece que alguém
abriu’. E eu ficava dizendo: ‘Não fui eu’. Então, ele ficou
realmente furioso e levou sua correspondência e o pacote
para o quarto e bateu a porta.
“Naquela noite, dormi muito mal. Na manhã seguinte,
sabia o que precisava fazer. Entrei na cozinha, onde Mário e
Diego tomavam café e disse: Mario, abri mesmo o seu
pacote. Sabia que era seu, mas abri mesmo assim. Depois,
tentei disfarçar. Depois menti. Sinto muito. Por favor, me
perdoe.”
– Me diga por que a honestidade é uma parte tão
importante na sua recuperação – pedi.
– Se fosse no tempo em que eu bebia, jamais teria
admitido a verdade. Naquela época, eu mentia a respeito de
tudo e nunca assumia responsabilidade pelas coisas que
fazia. Havia uma quantidade enorme de mentiras, e metade
delas nem chegava a fazer sentido.
O marido de Maria, Diego, contou-me uma vez que
Maria costumava se esconder no banheiro para beber,
ligando o chuveiro para ele não ouvir o som das garrafas de
cerveja sendo abertas, sem se dar conta de que ele podia
ouvir o tinir do abridor de garrafa quando ela o tirava do
esconderijo atrás da porta do banheiro. Ele descreveu que
ela costumava beber, de uma vez só, um pacote de seis
cervejas, e depois encher as garrafas com água e colar a
tampa de volta.
– Será que ela achava mesmo que eu não sentiria o
cheiro da cola ou que não perceberia a diferença entre o
gosto da água e do álcool?
Maria contou:
– Eu mentia para esconder minha bebedeira, mas
também mentia sobre outras coisas, coisas que nem tinham
importância: onde eu estava indo, quando voltaria, por que
tinha me atrasado, o que comi no café da manhã.
Maria tinha desenvolvido o Hábito de Mentir. O que
começou como uma maneira de encobrir a bebedeira da
mãe e a ausência do pai, e por fim sua própria adicção,
transformou-se em mentira pela mentira.
É incrivelmente fácil cair no Hábito de Mentir. Nós todos
nos dedicamos a mentir regularmente, na maioria das vezes
sem perceber. Nossas mentiras são tão pequenas e
imperceptíveis que nos convencemos de estar contando a
verdade, ou de que não tem importância, mesmo sabendo
que estamos mentindo.
– Naquele dia, quando contei a verdade ao Mario,
mesmo sabendo que ele ficaria furioso, percebi que algo
realmente havia mudado em mim, na minha vida. Sabia que
estava comprometida a viver a vida de maneira diferente,
de uma maneira melhor. Estava cansada de todas aquelas
mentirinhas enchendo o fundo da minha mente, me fazendo
sentir culpada e com medo… culpada por mentir e com
medo de que alguém descobrisse. Percebi que, desde que
eu diga a verdade, não preciso me preocupar com nada
disso. Estou livre. Depois de ter contado ao meu irmão a
verdade sobre o pacote, aquilo foi um trampolim para nossa
relação ficar mais próxima.
A honestidade radical – dizer a verdade tanto sobre
coisas importantes quanto sobre as irrelevantes, em
especial quando isso expõe nossas fraquezas e acarreta
consequências – é essencial não apenas para se recuperar
da dependência, mas para todos nós que tentamos viver
uma vida mais equilibrada em nosso ecossistema saturado
de recompensas. Isso funciona em muitos níveis.
Em primeiro lugar, a honestidade radical estimula uma
consciência das nossas ações. Em segundo, cria conexões
humanas próximas. Em terceiro, leva a uma autobiografia
verdadeira, o que nos mantém responsáveis não apenas
pela nossa identidade atual, mas também por nossas
futuras identidades. Além disso, contar a verdade é
contagioso,
e
poderia
até
mesmo
impedir
o
desenvolvimento de uma futura adicção.
▸ Conscientização
Anteriormente, descrevi o mito grego de Ulisses para
ilustrar o autocomprometimento físico. O epílogo dessa
história é pouco conhecido, mas bastante relevante aqui.
Lembra que Ulisses pediu à tripulação que o amarrasse
no mastro do veleiro para evitar a sedução das sereias? Mas
pense bem: ele poderia simplesmente ter colocado cera de
abelha nos ouvidos, como mandou o restante da tripulação
fazer, e se livrar do sofrimento. Ulisses não era ávido por
castigo. Ocorre que as sereias só poderiam ser mortas se
quem as ouvisse vivesse para depois contar a história.
Então, Ulisses venceu as sereias ao narrar a sua viagem
quase mortal. A matança estava na narrativa.
O mito de Ulisses destaca uma característica importante
da mudança de comportamento: compartilhar nossas
experiências nos dá domínio sobre elas. Seja no contexto da
psicoterapia, conversando com um padrinho do AA,
confessando a um padre, confidenciando a um amigo, seja
escrevendo em um diário, nossa revelação honesta põe em
destaque nosso comportamento, permitindo-nos, em alguns
casos, percebê-lo pela primeira vez. Isto é especialmente
verdade nos comportamentos que envolvem um nível de
automatismo fora da conscientização deliberada.
Quando eu lia romances baratos compulsivamente, só
uma parte minha tinha consciência de estar fazendo isto.
Ou seja, eu estava ciente do comportamento, ao mesmo
tempo em que não estava. É um fenômeno bem
reconhecido da adicção, um tipo de estado semiconsciente
parecido com um devaneio, frequentemente chamado de
negação.
A negação é provavelmente mediada por uma
desconexão entre a parte do cérebro onde está o circuito da
recompensa e as regiões corticais mais altas, que nos
permitem narrar os acontecimentos da vida, avaliar
consequências e planejar o futuro. Muitas formas de
tratamento para dependência envolvem reforçar e renovar
conexões entre essas partes.
O neurocientista Christian Ruff e seus colegas
estudaram
os
mecanismos
neurobiológicos
da
honestidade.2 Em um experimento, convidaram 145
participantes para jogar um jogo em que rolavam um dado
a dinheiro, usando uma interface de computador. Antes de
cada jogada, uma tela do computador indicava que
resultados produziriam o ganho monetário, até 90 francos
suíços (cerca de 100 dólares).
Diferentemente de jogar em um cassino, os
participantes poderiam mentir sobre os resultados da
jogada de dados para aumentar seus ganhos. Os
pesquisadores conseguiam determinar o grau de fraude,
comparando a porcentagem média do relatado sucesso dos
jogos de dados com os 50% de referência, implícitos num
relato totalmente honesto. Como era de se esperar, os
participantes mentiram com frequência. Comparados com a
referência de honestidade de 50%, os participantes
relataram que 68% das suas jogadas de dados tiveram o
resultado desejado.
Então, os pesquisadores usaram eletricidade para
realçar a excitabilidade neuronal no córtex pré-frontal dos
participantes,
usando
uma
ferramenta
chamada
estimulação transcraniana por corrente direta (tDCS). O
córtex pré-frontal é a parte do nosso cérebro mais à frente,
logo atrás da testa, e está envolvido na tomada de
decisões, regulação emocional e planejamento futuro, entre
muitos outros processos complexos. É também uma área
fundamental associada à narrativa.
Os pesquisadores descobriram que as mentiras se
reduziam pela metade quando a excitabilidade neural no
córtex pré-frontal aumentava. Além disso, o aumento de
honestidade “não podia ser explicado por mudanças de
autointeresse material ou convicções morais e estava
dissociado da impulsividade dos participantes, da sua
disposição de correr riscos e do humor”.
Eles concluíram que a honestidade pode ser reforçada
com o estímulo do córtex pré-frontal, consistente com a
ideia de que o “cérebro humano tem mecanismos
desenvolvidos dedicados a controlar comportamentos
sociais complexos”.
Esse experimento levou-me a especular se a prática da
honestidade pode estimular a ativação cortical pré-frontal.
Mandei um email a Christian Ruff, na Suíça, para perguntar
o que ele achava dessa ideia.
“Se o estímulo do córtex pré-frontal leva as pessoas a
serem mais honestas, é também possível que ser mais
honesto estimule o córtex pré-frontal? A prática de dizer a
verdade poderia reforçar a atividade e a excitabilidade nas
partes do cérebro que usamos para planejamento futuro,
regulação de emoção e gratificação adiada?”, perguntei.
Ele respondeu: “Sua pergunta faz sentido. Não tenho
uma resposta definitiva para ela, mas compartilho sua
intuição de que um processo neural dedicado (como o
processo pré-frontal envolvido em honestidade) deveria ser
reforçado com o uso repetitivo. É isso que acontece durante
a maioria dos tipos de aprendizagem, segundo o antigo
mantra de Donald Hebb: ‘what fires together wires
together’*”.
Gostei dessa resposta por sugerir que a prática da
honestidade radical pode reforçar circuitos neurais
específicos, da mesma maneira que aprender uma segunda
língua, tocar piano ou dominar sudoku reforça outros
circuitos.
Consistente com a experiência vivida por pessoas em
recuperação, contar a verdade pode mudar o cérebro,
permitindo-nos estar mais atentos a nossa balança prazersofrimento e aos processos mentais que dirigem nosso
hiperconsumo
compulsivo,
e
assim
mudar
nosso
comportamento.
O próprio aflorar da conscientização do meu problema
com romances baratos ocorreu em 2011, quando eu
ensinava a um grupo de residentes em psiquiatria na San
Mateo
como
conversar
com
pacientes
sobre
comportamentos dependentes. A ironia não me passa
despercebida.
Eu estava numa sala de aula do primeiro andar do
Centro Médico San Mateo, fazendo uma preleção para nove
psiquiatras residentes, sobre como estabelecer uma
conversa, geralmente difícil, com pacientes a respeito do
consumo de drogas e álcool. Interrompi parcialmente a
palestra para convidar os alunos a participar de um
exercício de aprendizagem:
– Escolham um colega para discutir um hábito que
vocês queiram mudar e discutam alguns passos que
poderiam tomar para fazer essa mudança.
Exemplos comuns do que os estudantes falam nesse
exercício incluem: “Quero fazer mais exercícios”, ou “Quero
comer menos açúcar”. Em outras palavras, tópicos mais
seguros. Dependências sérias, se eles as têm, normalmente
não são mencionadas. Ainda assim, falando sobre qualquer
comportamento com o qual não estão satisfeitos e que
querem mudar, os alunos conseguem vislumbrar como seria
conversar com os pacientes a esse respeito, na qualidade
de profissionais de saúde. Também sempre existe a chance
de, no processo, eles descobrirem algo sobre si mesmos.
Percebi que, com um número ímpar de estudantes, eu
teria que fazer dupla com um deles. Juntei-me a um rapaz
de voz suave, cuidadoso, que estivera escutando
atentamente toda a palestra. Assumi o papel de paciente,
para que ele pudesse praticar suas habilidades. Depois,
inverteríamos.
Ele me perguntou que comportamento eu queria mudar.
Sua atitude delicada predispunha uma revelação. Para
minha surpresa, comecei a lhe contar uma versão
abrandada da minha leitura de romances até tarde da noite.
Não especifiquei o que estava lendo, nem a extensão do
problema:
– Fico acordada até muito tarde à noite, lendo, e está
interferindo no meu sono. Gostaria de mudar – falei.
Eu sabia que era tudo verdade, tanto o fato de ficar
acordada até muito tarde lendo, quanto a vontade de mudar
esse comportamento. Mas, até aquele momento, eu não
estava, de fato, ciente de nenhuma dessas coisas.
– Por que você quer mudar isso? – ele perguntou,
usando uma pergunta padrão da entrevista motivacional,
uma abordagem terapêutica desenvolvida pelos psicólogos
clínicos William R. Miller e Stephen Rollnick para explorar
motivações internas e determinar ambivalência.
– Está interferindo na minha capacidade de ser eficiente
como eu gostaria, no trabalho e com meus filhos.
– Parecem ser boas razões – ele assentiu.
Ele estava certo. Eram boas razões. Ao dizê-las em voz
alta, percebi, pela primeira vez, o quanto meu
comportamento estava impactando negativamente a minha
vida e a das pessoas de quem eu gostava. Ele então
perguntou:
– Do que você estaria abrindo mão, se desse um fim a
esse comportamento?
– Eu abriria mão do prazer que sinto lendo. Adoro a fuga
– respondi na mesma hora. – Mas essa sensação não é tão
importante para mim quanto a minha família e o meu
trabalho.
Novamente, ao dizer em voz alta, percebi que era
verdade: valorizo a minha família e o meu trabalho acima
do meu próprio prazer, e para viver segundo os meus
valores, precisava parar a leitura compulsiva e escapista.
– Que passo você pode dar para mudar esse
comportamento?
– Posso me livrar do meu leitor eletrônico. O acesso fácil
a leituras baratas abastece essas leituras até tarde da noite.
– Parece uma boa ideia – ele disse e sorriu. Tínhamos
terminado minha vez de ser a paciente.
No dia seguinte, fiquei pensando sobre nossa conversa.
Decidi dar uma pausa nos romances baratos até o mês
seguinte. A primeira coisa que fiz foi me livrar do meu ereader. Nas primeiras duas semanas, passei por uma
abstinência de baixo impacto, incluindo ansiedade e insônia,
especialmente à noite, pouco antes de ir para a cama, hora
em que eu costumava ler as histórias. Tinha perdido a arte
de adormecer por conta própria.
No final do mês, sentia-me melhor, e me permiti voltar a
ler um romance, planejando ler com mais moderação.
Em vez disto, acabei me esbaldando com literatura
erótica, ficando acordada até tarde durante duas noites
seguidas, me sentindo exausta nos dias seguintes. Mas
agora eu via meu comportamento como ele realmente era,
um padrão compulsivo e autodestrutivo que tirou o prazer
da coisa em si. Senti uma determinação crescente de parar
com aquele comportamento para sempre. Meu sonho
acordada estava chegando a um fim.
▸ A honestidade favorece conexões
humanas íntimas
Dizer a verdade atrai as pessoas, especialmente quando
nos vemos dispostos a expor nossas vulnerabilidades. Isto é
contraintuitivo porque presumimos que, expondo nossos
aspectos menos desejáveis, afastaremos as pessoas.
Logicamente faz sentido que as pessoas se distanciassem
ao saber das falhas e transgressões do nosso caráter.
Na verdade, acontece o oposto. As pessoas se
aproximam. Em nossa desconstrução, elas veem sua própria
vulnerabilidade e humanidade; asseguram-se de que não
estão sós em suas dúvidas, seus medos e suas fraquezas.
Jacob e eu voltamos a nos encontrar de tempos em
tempos nos meses e anos que se seguiram à sua recaída na
masturbação compulsiva. Naquela época, ele continuou a se
abster dos comportamentos adictivos. A prática da
honestidade radical, sobretudo com sua esposa, foi o
alicerce da sua contínua recuperação. Em um dos nossos
encontros, ele compartilhou uma história que aconteceu
logo depois de ele e a esposa voltarem a morar juntos.
Ela estava saindo do banheiro, um dia depois de estar
de volta à casa deles, quando notou que faltava uma das
argolas da cortina do banheiro. Perguntou a Jacob se ele
sabia o que tinha acontecido.
– Gelei – Jacob me contou. – Sei perfeitamente o que
aconteceu com a argola, mas não querer contar. Ter muitas
boas razões. Foi há muito tempo. Ela ficar nervosa se eu
contar. Agora está tudo ótimo entre nós. Isso vai bagunçar.
Mas então se lembrou do quanto mentir e dissimular
tinha sido corrosivo para o relacionamento deles. Antes de
ela voltar para casa, ele prometera ser honesto, custasse o
que custasse.
– Então eu digo: “Usei para construir uma das minhas
máquinas, quase um ano atrás, depois que você foi embora.
Não é nada recente. Mas prometi ser honesto com você,
então estou contando”.
– E ela? – perguntei.
– Achei que ela vai dizer que chega, que está indo
embora de novo. Mas em vez disso, ela não grita comigo.
Não vai embora. Coloca a mão no meu ombro e diz:
“Obrigada por me dizer a verdade”. E depois me abraça.
A intimidade é em si uma fonte de dopamina. A
oxitocina, um hormônio muito envolvido com o ato de se
apaixonar, com o vínculo entre mãe e filho e a união
monogâmica de vida inteira de parceiros sexuais, conectase a receptores nos neurônios secretores de dopamina no
circuito de recompensa do cérebro e aumenta a descarga do
trato do circuito de recompensa. Em outras palavras, a
oxitocina leva a um aumento da dopamina no cérebro, uma
descoberta recente feita pelos neurocientistas de Stanford
Lin Hung, Rob Malenka e seus colegas.3
Depois de sua revelação honesta para a esposa, que
demonstrou carinho e empatia, é provável que Jacob tenha
experimentado um pico de oxitocina e dopamina em seu
circuito de recompensa, encorajando-o a repetir aquilo.
Enquanto contar a verdade favorece um vínculo
humano, o hiperconsumo compulsivo de produtos ricos em
dopamina é a antítese desse vínculo. Consumir leva ao
isolamento e à indiferença, uma vez que a droga vem
substituir a gratificação obtida no relacionamento com os
outros.
Experimentos demonstram que um rato livre trabalhará
instintivamente para libertar outro rato preso dentro de uma
garrafa plástica.4 Mas uma vez que o rato livre possa se
autoadministrar heroína, ele perde o interesse em ajudar o
rato preso, presumivelmente envolvido demais numa bruma
opioide para se importar com um colega da sua espécie.
Qualquer comportamento que leve a um aumento de
dopamina tem o potencial para ser explorado. Estou me
referindo a um tipo de “divulgação pornô”, que se tornou
prevalente na cultura moderna, em que a revelação de
aspectos íntimos da nossa vida passa a ser uma maneira de
manipular outras pessoas para certo tipo de gratificação
egoísta, em vez de incentivar intimidade em um momento
de humanidade comum.
Em uma conferência médica sobre adicção, em 2018,
sentei- me ao lado de um homem que disse que estava
havia um bom tempo em recuperação de dependência.
Estava ali para contar para a plateia a história dessa
recuperação. Pouco antes de subir ao palco, ele se virou
para mim e disse: “Prepare-se para chorar”. Fiquei
desconcertada com o comentário. Incomodou-me o fato de
ele antecipar como eu reagiria a sua história.
De fato, ele contou uma história angustiante sobre
dependência e recuperação, mas não fui às lágrimas, o que
me surpreendeu, porque em geral fico profundamente
comovida com histórias de sofrimento e redenção. Nesse
caso, a história dele pareceu falsa por mais que fosse
factualmente correta. As palavras não correspondiam às
emoções encobertas por elas. Em vez de sentir que ele
estava nos concedendo acesso privilegiado a uma época
dolorosa da sua vida, parecia que ele estava ostentando e
manipulando essa dor. Talvez seja porque ele já tinha
contado aquilo muitas vezes. Com a repetição, a história
pode ter ficado rançosa. Seja qual for o motivo, ela não me
estimulou.
Existe um fenômeno bem conhecido nos grupos de AA
dos Estados Unidos chamado “drunkalogues”*, referindo-se
a façanhas realizadas sob o efeito do álcool que são
compartilhadas apenas para entreter e se exibir, e não para
ensinar e aprender. Os drunkalogues tendem a provocar
desejo, e não a promover recuperação. A linha entre uma
confissão honesta e um drunkalogue manipulador é tênue,
incluindo diferenças sutis de conteúdo, tom, cadência e
emoção, mas você percebe quando vê.
Espero que as confissões partilhadas aqui, tanto as
minhas próprias quanto as que meus pacientes deram
permissão para relatar, nunca se desviem para o lado
errado dessa linha.
▸ Autobiografias sinceras criam
responsabilização
Verdades simples e individuais sobre nossa vida diária
são como elos em uma corrente que forma narrativas
autobiográficas verídicas. As narrativas autobiográficas são
um parâmetro essencial do tempo vivido. As histórias que
contamos sobre nossa vida não apenas servem de medida
do nosso passado, mas também podem moldar o
comportamento futuro.
Em mais de vinte anos como psiquiatra, ouvindo
dezenas de milhares de histórias de pacientes, fiquei
convencida de que a maneira como contamos nossas
histórias pessoais é um sinalizador e um indicador de saúde
mental.
Pacientes que contam histórias em que, na maioria das
vezes, são a vítima e quase nunca assumem a
responsabilidade por resultados nocivos com frequência não
estão bem e permanecem assim. Estão concentrados
demais em culpar os outros para ir direto ao assunto da sua
própria recuperação. Por outro lado, quando meus pacientes
começam a contar histórias que retratam em detalhes sua
responsabilidade, sei que estão melhorando.
A narrativa da vítima reflete uma tendência social mais
ampla em que estamos inclinados a nos ver como vítima
das
circunstâncias,
merecendo
compensação
ou
recompensa por nosso sofrimento. Mesmo quando as
pessoas foram vitimadas, se a narrativa nunca for além da
vitimização, é difícil haver cura.
Uma das funções da boa psicoterapia é ajudar as
pessoas a contar histórias de recuperação. Se a narrativa
autobiográfica fosse um rio, a psicoterapia seria o meio pelo
qual esse rio é mapeado e, em alguns casos, redirecionado.
Histórias
de
recuperação
estão
ligadas
aos
acontecimentos da vida real. Procurar e descobrir a
verdade, ou chegar o mais próximo possível disso com os
dados disponíveis, proporciona a oportunidade para uma
verdadeira revelação e compreensão, o que, por sua vez,
nos permite fazer escolhas mais bem fundamentadas.
Como já citei, a prática moderna da psicoterapia às
vezes não alcança esse objetivo ambicioso. Como
profissionais da saúde mental, nós ficamos tão ocupados na
prática da empatia, que perdemos de vista o fato de que a
empatia sem responsabilização é uma tentativa acanhada
de aliviar sofrimento. Se o terapeuta e o paciente recriam
uma história em que o paciente é a eterna vítima de forças
além do seu controle, existe uma boa chance de que ele
continue vitimado.
Mas se o terapeuta puder ajudar o paciente a assumir
responsabilidade, se não pelo próprio acontecimento, então
por como reage ao evento no aqui e agora, esse paciente
está empoderado para seguir em frente com sua vida.
Fiquei profundamente impressionada com a filosofia e
os ensinamentos do AA nesse aspecto.5 Um dos seus lemas
preponderantes, com frequência impresso em letras
destacadas em seus folhetos, é “Sou responsável”.
Além da responsabilidade, os Alcóolicos Anônimos
enfatizam a “honestidade rigorosa” como um preceito
central da sua filosofia, e essas ideias caminham juntas. O
quarto passo do AA exige que os membros façam um
“inventário moral minucioso e corajoso”, em que o indivíduo
pondera sobre seus defeitos de caráter e como eles
contribuem para o problema. O quinto passo é o “passo da
confissão”, quando os membros do AA “admitem para Deus,
para nós mesmos e para outro ser humano a natureza exata
do nosso erro”. Essa prática direta e essa abordagem
sistemática podem ter um impacto poderoso e
transformador.
Pessoalmente, vivenciei isto nos meus 30 anos, durante
minha residência em psiquiatria em Stanford.
Meu supervisor e mentor em psicoterapia, aquele que
usava chapéu fedora, mencionado logo no começo do livro,
sugeriu que eu tentasse os 12 Passos como uma maneira de
trabalhar meus ressentimentos em relação a minha mãe.
Ele percebeu, bem antes de mim, que estava me agarrando
à minha raiva de maneira adictiva e ruminativa. Eu passara
anos
na
psicoterapia,
tentando
entender
meu
relacionamento com ela, e o resultado apenas pareceu ter
insuflado minha raiva, por ela não ser a mãe que eu queria
que fosse, a mãe que eu achava de que precisava.
Em um ato de generosa autorrevelação, meu supervisor
contou que havia décadas estava em recuperação de uma
dependência alcoólica, e que o AA e os 12 Passos tinham-no
ajudado nisso. Embora meu problema não fosse de
dependência propriamente dita, ele teve uma sensação
instintiva de que os 12 Passos me ajudariam e concordou
em me acompanhar nisso.
Trabalhei os passos com ele, e a experiência foi, de fato,
transformadora, especialmente os passos 4 e 5. Pela
primeira vez na vida, em vez de focar nos aspectos em que,
a meu ver, minha mãe tinha falhado comigo, refleti sobre no
que eu havia contribuído para tensionar a nossa relação.
Concentrei-me em interações recentes, e não em
acontecimentos da infância, uma vez que minha
responsabilidade quando criança era menor.
No começo foi difícil enxergar em que aspectos eu teria
contribuído para o problema. Eu me via, sinceramente,
como a vítima indefesa em todos os sentidos. Estava fixada
na relutância dela em me visitar em casa, ou cultivar um
relacionamento com meu marido e meus filhos, em
contraste com sua relação mais próxima com meus irmãos e
os filhos deles. Eu me ressentia do que considerava sua
incapacidade de me aceitar como sou, e a sensação de que
ela queria que eu fosse uma pessoa diferente, mais
calorosa, mais flexível, mais despretensiosa, menos
autossuficiente, mais divertida.
Mas, então, comecei a enfrentar o doloroso processo de
anotar – sim, anotar no papel e assim fazer a coisa ficar de
fato muito real – meus defeitos de caráter e a maneira como
eles haviam contribuído para nossa relação tensa. Como
disse Ésquilo, “Precisamos sofrer, a verdade exige
sofrimento”.
A verdade é: sou ansiosa e medrosa, embora sejam
poucos os que imaginariam isto de mim. Mantenho um
cronograma rígido, uma rotina previsível e uma fidelidade
servil à minha lista de obrigações, como um jeito de lidar
com a minha ansiedade. Isso significa que os outros
constantemente são forçados a se curvar à minha vontade e
às exigências dos meus objetivos.
A maternidade, embora seja a experiência mais
gratificante da minha vida, também tem sido a maior causa
de ansiedade. Sendo assim, minhas defesas e maneiras de
lidar atingiram novos patamares quando meus filhos eram
pequenos. Olhando em retrospecto, percebi que, naquela
época, não poderia ter sido agradável para ninguém visitar
a nossa casa, incluindo a minha própria mãe. Eu era linhadura na administração doméstica, e ficava muito ansiosa
quando percebia coisas desorganizadas. Trabalhava sem
parar, tendo pouco ou nenhum tempo para mim mesma,
amigos, família ou para me divertir. A verdade é que eu não
era muito divertida naquele tempo, a não ser, espero, com
os meus filhos.
Quanto ao meu ressentimento em relação a minha mãe,
por ela querer que eu fosse diferente do que sou, percebi,
com uma clareza súbita e chocante, que eu era culpada da
mesma coisa em relação a ela. Recusava-me a aceitá-la
como ela era, querendo, em vez disso, que fosse um tipo de
Madre Teresa, que desceria sobre a nossa casa e cuidaria de
todos nós, inclusive do meu marido e dos meus filhos,
exatamente da maneira que precisávamos ser cuidados.
Ao pleitear que ela vivesse de acordo com a visão
idealizada do que eu achava que uma mãe e uma avó
deveriam ser, só conseguia ver as falhas dela, e nenhuma
de suas boas qualidades, que são muitas. Ela é uma artista
talentosa, é encantadora, pode ser divertida e cômica. Tem
um coração bom e uma natureza generosa, desde que não
se sinta julgada ou abandonada.
Depois de trabalhar os passos, consegui ver a verdade
disso com mais clareza, e assim meu ressentimento sumiu.
Fiquei livre do fardo pesado da minha raiva em relação a
minha mãe. Que alívio!
Minha própria cura contribuiu para melhorar meu
relacionamento com ela. Fiquei menos exigente, mais
indulgente e menos crítica em relação a ela. Também tomei
consciência das muitas coisas positivas resultantes do nosso
atrito, a saber, que sou resiliente e autossuficiente em
aspectos que eu poderia não ser se nós duas fôssemos mais
compatíveis.
Agora, em todos meus relacionamentos, continuo
tentando praticar dizer a verdade. Nem sempre sou bemsucedida, e instintivamente tento pôr a culpa nos outros,
mas quando estou disciplinada e diligente, percebo que
também sou responsável. Quando consigo chegar a esse
ponto e recontar a versão verdadeira para mim mesma e
para outros, tenho uma sensação de justiça e correção que
dá ao mundo a ordem pela qual anseio.
Uma narrativa autobiográfica verdadeira, além disso,
permite que sejamos mais autênticos, espontâneos e livres
naquele momento.
O psicanalista Donald Winnicott apresentou o conceito
do “falso self” na década de 1960.6 Segundo ele, o falso self
é uma persona autoconstruída em defesa contra exigências
e estressores externos intoleráveis. Winnicott postulou que
a criação do falso self pode levar a sentimentos de um
profundo vazio. Um eu impalpável.
A mídia social contribuiu para o problema do falso self
ao tornar muito mais fácil para nós, e até nos incentivando,
a seleção de narrativas da nossa vida que estão longe da
realidade.
Em sua vida online, meu paciente Tony, um rapaz na
faixa dos 20 anos, corria toda manhã para aproveitar o
nascer do sol, passava o dia entretido em atividades
artísticas construtivas e ambiciosas e era ganhador de
inúmeros prêmios. Na vida real, ele mal conseguia se
levantar
da
cama,
olhava
pornografia
online
compulsivamente, lutava para encontrar um trabalho
remunerado, era solitário, deprimido e suicida. Pouco da sua
vida cotidiana real transparecia na página do Facebook.
Quando nossa experiência vivida diverge da nossa
imagem projetada, estamos propensos a nos sentir
descolados e irreais, tão falsos quanto as imagens falsas
que criamos. Os psiquiatras chamam essa sensação de
desrealização e despersonalização. É uma sensação
apavorante, que normalmente contribui para ideias de
suicídio. Afinal de contas, se não nos sentimos reais, dar fim
à vida parece inconsequente.
O antídoto para esse falso self é o verdadeiro self. A
honestidade radical é uma maneira de chegar a isso. Ela
nos amarra a nossa existência e faz com que nos sintamos
reais no mundo. Ela também diminui a carga cognitiva
exigida para a manutenção de todas aquelas mentiras,
liberando energia mental para viver o momento com mais
espontaneidade.
Quando não estamos mais trabalhando para apresentar
um falso self, ficamos mais abertos para nós mesmos e para
os outros. Como o psiquiatra Mark Epstein escreveu em seu
livro Going on Being [A caminho de ser], sobre sua própria
jornada para a autenticidade: “Sem mais me esforçar para
manipular meu meio, comecei a me sentir revigorado, a
encontrar um equilíbrio, a me permitir uma sensação de
vínculo com a espontaneidade do mundo natural, e com
minha própria natureza interior”.7
▸ Dizer a verdade é contagioso…
mentir também
Em 2013, minha paciente Maria estava no auge do seu
problema com bebida. Frequentemente ia parar no prontoatendimento local com um nível de álcool no sangue quatro
vezes acima do limite legal. Diego, seu marido, tinha
assumido o peso de cuidar dela.
Enquanto isto, ele lutava com sua própria dependência
de comida. Com 1,55 metro de altura, pesava 152 quilos. Só
quando Maria parou de beber foi que Diego ficou motivado
para enfrentar sua dependência de comida.
– Ver Maria entrar em recuperação, me motivou a fazer
mudanças em minha própria vida – ele disse. – Quando ela
bebia, eu me safava de muita coisa. Sabia que estava
enveredando para uma situação ruim. Não me sentia seguro
no meu próprio corpo. Mas foi ela ficar sóbria que me fez
agir. Sentia que ela ia se sair bem, e não queria ficar para
trás.
“Então, arrumei um Fitbit*, comecei a frequentar a
academia, a contar calorias… Só de contar as calorias,
percebi o quanto estava comendo. Então, comecei uma
dieta cetogênica e um jejum intermitente. Não me permitia
comer tarde da noite, nem de manhã até ter me exercitado.
Corri. Levantei peso. Percebi que a fome é uma informação
que posso ignorar. Neste ano [2019], estou pesando 88
quilos. Pela primeira vez em muito tempo, minha pressão
está normal.”
Na minha prática médica, vejo com frequência um
membro de uma família entrar em recuperação de alguma
dependência, seguido rapidamente por outro membro da
família que faz a mesma coisa. Vi maridos que param de
beber seguidos por esposas que param de ter casos; vi pais
que param de fumar, seguidos por filhos que fazem o
mesmo.
Mencionei o experimento de marshmallow de Stanford,
de 1968, que estudou a capacidade de crianças de 3 a 6
anos de adiar gratificação. Elas eram deixadas sozinhas
numa sala vazia, com um marshmallow em um prato, e lhes
diziam que, se conseguissem passar quinze minutos sem
comer o marshmallow, ganhariam aquele e mais um. Ou
seja, receberiam a recompensa em dobro se, simplesmente,
esperassem por ela.
Em 2012, pesquisadores da Universidade de Rochester,
no estado de Nova York, alteraram o experimento de 1968
de Stanford em um aspecto crucial.8 Antes de começar o
teste do marshmallow, os pesquisadores saíram da sala e
disseram que voltariam quando a criança tocasse a
campainha, mas não voltaram. A mesma coisa foi dita a
outro grupo de crianças, e, quando a campainha foi tocada,
o pesquisador voltou.
As crianças do último grupo, em que o pesquisador
voltou, mostraram-se quatro vezes mais dispostas (vinte
minutos) a esperar por um segundo marshmallow do que as
crianças do grupo em que a promessa foi quebrada.
Como podemos entender por que o fato de Maria entrar
em recuperação da dependência alcoólica inspirou Diego a
enfrentar o problema com comida; ou por que, quando os
adultos mantêm sua promessa às crianças, elas são mais
capazes de controlar seus impulsos?
A meu ver, trata-se do que chamo de mentalidade de
fartura versus mentalidade de escassez. Contar a verdade
gera uma mentalidade de fartura. Mentir gera uma
mentalidade de escassez. Vou explicar.
Quando as pessoas à nossa volta são confiáveis e dizem
a verdade, inclusive mantendo as promessas que fazem,
sentimo-nos mais confiantes em relação ao mundo e ao
nosso próprio futuro. Sentimos que podemos não apenas
contar com elas, mas também com que o mundo seja um
lugar organizado, previsível e seguro. Até em meio à
escassez, sentimo-nos confiantes de que as coisas
terminarão bem. Esta é uma mentalidade de fartura.
Quando as pessoas à nossa volta mentem e não
mantêm suas promessas, sentimo-nos menos confiantes em
relação ao futuro. O mundo passa a ser um lugar perigoso,
onde não se pode contar que seja organizado, previsível ou
seguro. Entramos em modo competitivo de sobrevivência e
privilegiamos ganhos a curto prazo aos de longo prazo,
independentemente da verdadeira riqueza material. Esta é
uma mentalidade de escassez.
Um experimento feito pelo neurocientista Warren Bickel
e seus colegas focou no impacto da tendência dos
participantes no estudo em adiar a gratificação em troca de
uma recompensa monetária, depois de terem lido uma
passagem narrativa que projetava um estado de fartura
versus um estado de escassez.9
A narrativa de fartura dizia: “Você foi promovido no seu
trabalho. Você terá oportunidade de se mudar para uma
cidade onde sempre quis viver OU pode escolher ficar onde
está. De qualquer modo, a empresa lhe dará uma grande
soma de dinheiro para cobrir as despesas com mudança, e
você pode ficar com o que não gastar. Você vai ganhar
100% a mais do que ganhava”.
A narrativa de escassez dizia: “Você acabou de ser
despedido. Agora terá que ir morar com um parente que
vive em uma cidade de que você não gosta e terá que
gastar todas as suas economias para se mudar para lá. Você
não tem direito a seguro-desemprego, portanto, não
receberá nada até achar outro emprego”.
Os pesquisadores descobriram, o que não foi surpresa,
que os participantes que leram a narrativa de escassez
estavam menos dispostos a esperar por um pagamento no
futuro distante e mais propensos a querer a recompensa de
imediato. Os que leram a narrativa de fartura estavam mais
dispostos a esperar por sua recompensa.
Faz um sentido intuitivo que, quando os recursos são
escassos, as pessoas estejam mais interessadas em ganhos
imediatos e menos confiantes de que aquelas recompensas
ainda estarão acessíveis em algum futuro distante.
A questão é: por que pessoas que vivem em países
ricos, com recursos materiais abundantes, ainda assim
operam em sua vida cotidiana com uma mentalidade de
escassez?
Como vimos, ter excesso de riqueza material pode ser
tão ruim quanto a falta dela. A sobrecarga de dopamina
prejudica nossa capacidade de adiar gratificação. O exagero
da mídia social e a política da pós-verdade (vamos dar
nome aos bois: mentira) amplifica nossa sensação de
escassez. O resultado é que, mesmo em meio à fartura,
sentimo-nos empobrecidos.
Assim como é possível ter uma mentalidade de
escassez em meio à fartura, também é possível ter uma
mentalidade de fartura em meio à escassez. A sensação de
plenitude tem origem além do mundo material. Acreditar
em, ou trabalhar para, alguma coisa fora de nós mesmos, e
adotar uma vida rica em relações humanas e significado,
pode funcionar como um agregador social, dando-nos uma
mentalidade de fartura até em meio à pobreza abjeta.
Encontrar conectividade e sentido exige honestidade
radical.
▸ Contar a verdade como prevenção
– Primeiro, deixe-me explicar minha função – falei a
Drake, um médico que nosso comitê profissional de bemestar tinha me pedido para avaliar. – Estou aqui para
determinar se você pode ter uma doença mental que
impacte negativamente sua capacidade para exercer a
medicina e se são necessárias algumas adaptações
razoáveis para que você exerça seu trabalho. Mas espero
que você também me veja como um recurso além da
avaliação de hoje, caso precise de tratamento de saúde
mental ou um apoio emocional mais abrangente.
– Obrigado por isso – ele disse, parecendo relaxado.
– Consta que você foi pego na lei seca?
Nos Estados Unidos, dirigir embriagado é uma infração
penal. Para os motoristas com 21 anos ou mais, dirigir com
uma concentração de álcool no sangue de 0,08% ou mais é
ilegal.*
– Sim, mais de dez anos atrás, quando eu estava na
faculdade de medicina.
– Hum. Não entendo. Por que está me procurando
agora? Normalmente, sou chamada para avaliar médicos
atuantes logo depois de receberem uma multa dessas.
– Sou novo no corpo docente daqui. Declarei esse fato
na minha inscrição. Acho que eles [o comitê do bem-estar]
só queriam ter certeza de que está tudo bem.
– Acho que faz sentido – concordei. – Bom, conte-me a
sua história.
Em 2007, Drake estava no primeiro semestre do seu
primeiro ano na faculdade de medicina. Ele tinha ido para a
Costa Leste, oriundo da Califórina, trocando as planícies
ensolaradas da costa do Pacífico pelas suaves colinas
embebidas de cor da Nova Inglaterra, em toda a glória
outonal.
Decidira tardiamente pela medicina, algum tempo
depois de terminar seus estudos preliminares na Califórnia,
onde tinha se formado, na prática, em surf, e passado um
semestre morando no bosque atrás do campus,
“escrevendo poesia ruim”.
Depois do primeiro exame, alguns colegas de faculdade
deram uma festa na casa que tinham no campo. O plano
era um amigo dirigir, mas no último minuto o amigo teve
um problema com o carro, e Drake acabou dirigindo.
– Eu me lembro que era um lindo dia de começo de
outono, em setembro. A casa ficava numa estrada rural, não
longe de onde eu morava.
A festa acabou se revelando mais divertida do que
Drake esperava. Era a primeira vez que ele se descontraía,
desde que estava na faculdade de medicina. Começou
bebendo algumas cervejas, depois passou para o uísque. Às
23h30, quando os policiais chegaram por causa da
reclamação de barulho feita por um vizinho, Drake estava
bêbado. Seu amigo também.
– Meu amigo e eu percebemos que estávamos bêbados
demais para dirigir. Então, ficamos na casa. Eu dormi. Os
policiais e a maioria dos outros convidados foram embora.
Achei um sofá e tentei curar a bebedeira. Às 2h30, me
levantei. Ainda estava um pouco bêbado, mas não me senti
alterado. Era uma linha reta por uma estrada rural vazia até
a minha casa. De três a cinco quilômetros no máximo.
Arriscamos.
Assim que Drake e o amigo entraram na estrada rural,
viram um carro de polícia esperando no acostamento. A
polícia foi atrás deles e começou a segui-los, como se
tivessem esperado por eles o tempo todo. Eles chegaram a
um cruzamento onde havia um semáforo pendurado em um
fio. Ventava e ele se agitava e girava no vento.
– Achei que estivesse amarelo para mim e vermelho
para os outros, mas era difícil dizer com o semáforo
balançando daquele jeito. Além disso, eu estava nervoso
com a polícia bem atrás de mim. Passei pelo cruzamento
devagar, e nada aconteceu, então imaginei que estivesse
certo quanto à luz amarela e continuei indo. Só mais um
cruzamento e uma virada à esquerda para a minha casa.
Virei, mas me esqueci de dar sinal, e foi quando o policial
me mandou parar.
O policial era jovem, mais ou menos da mesma idade de
Drake.
– Ele parecia novo na função, quase como se sentisse
mal por me parar, mas tinha que fazer isto.
Ele fez um teste de sobriedade em Drake e um de
bafômetro. Ele soprou 0,10%, pouco acima do limite legal. O
policial levou Drake para a delegacia, onde ele preencheu
uma papelada e soube que sua licença estava
temporariamente suspensa por dirigir alcoolizado. Alguém
da delegacia levou-o para casa.
– No dia seguinte, me lembrei da história de um amigo
de infância que tinha sido pego na lei seca durante sua
residência em medicina de emergência. Era uma pessoa
que eu respeitava muito. Tinha sido nosso presidente de
classe. Liguei para ele.
“Faça o que fizer”, meu amigo me disse quando falei
com ele, “você não pode ficar com isso no seu prontuário,
principalmente como médico. Arranje um advogado
imediatamente, e ele vai arrumar um jeito de transformar
em condução perigosa ou de anulá-la completamente. Foi o
que fiz.”
Drake arrumou um advogado local e pagou-lhe 5 mil
dólares adiantados, dinheiro retirado do empréstimo
estudantil. O advogado disse a ele: “Eles vão marcar uma
audiência para você. Vista-se bem. Seja simpático. O juiz vai
perguntar como você se declara, e você vai dizer ‘Não
culpado’. É só. Você só tem que fazer isto. Duas palavras.
‘Não culpado.’ A gente partirá daí”.
No dia da sua audiência, Drake vestiu-se bem, como lhe
havia sido dito. Ele morava a algumas quadras do fórum e,
enquanto ia para lá, começou a pensar. Pensou no primo em
Nevada, que estava dirigindo bêbado e bateu de frente com
uma menina de 18 anos que vinha em sentido contrário. Os
dois morreram. Pessoas que viram seu primo pouco antes
num bar disseram que ele bebia como se quisesse morrer.
– No fórum, vi um monte de outros homens mais ou
menos da minha idade. Pareciam menos privilegiados do
que eu. Fiquei pensando que, provavelmente, eles não
tinham um advogado como eu. Comecei a me sentir um
pouco sórdido.
Depois de entrar no fórum, esperando ser chamado,
Drake ficou revendo o plano em sua cabeça, exatamente
como o advogado havia dito: O juiz vai perguntar como
você se declara, e você vai dizer “Não culpado”. É só. Você
só tem que fazer isto. Duas palavras. “Não culpado.”
O juiz chamou Drake ao banco das testemunhas. Drake
sentou-se no banco duro de madeira, logo abaixo e à direita
do banco do juiz. Pediram-lhe para erguer a mão direita e
prometer dizer a verdade. Ele prometeu.
Ele olhou para as pessoas na sala. Olhou para o juiz. O
juiz virou-se para ele e perguntou: “Como você se declara?”.
Drake sabia o que deveria dizer. Planejava dizer. Duas
palavras. Não culpado. As palavras estavam quase nos seus
lábios. Muito perto.
– Mas aí comecei a pensar na época em que tinha 5
anos e pedi um sorvete para o meu pai, e ele disse que eu
teria que esperar até depois do almoço. Eu retruquei: “Já
almocei. Fui no vizinho, na casa do Michael, e ele me deu
um cachorro-quente”. Mas a verdade é que eu não tinha ido
à casa de Michael. Ele e eu não éramos realmente amigos, e
meu pai sabia. Bom, meu pai não perdeu tempo. Pegou o
telefone na mesma hora e perguntou ao Michael: “Você deu
um cachorro-quente pro Drake?”. Aí meu pai me sentou,
absolutamente calmo, e disse que era sempre pior mentir.
Disse que mentir nunca valia as consequências. Aquele
momento me causou uma baita impressão.
“O tempo todo eu estava planejando alegar ‘não
culpado’, exatamente como o advogado havia me dito. Não
é que eu tenha tomado outra decisão antes de ocupar o
banco. Mas, no momento em que o juiz me perguntou, não
consegui dizer as palavras. Simplesmente não deu. Eu sabia
que era culpado, eu tinha dirigido depois de beber.
“‘Culpado’, eu disse. O juiz sobressaltou-se na cadeira,
como se acordasse pela primeira vez naquela manhã. Girou
a cabeça lentamente. Olhou para mim com os olhos
semicerrados. ‘Tem certeza de que é sua última alegação?
Percebe as consequências? Porque você não pode voltar
atrás.’”
– Nunca vou me esquecer da maneira como ele virou a
cabeça e olhou para mim – Drake disse. – Achei meio
esquisito ele estar me perguntando aquilo. Por um milésimo
de segundo, fiquei na dúvida se estava cometendo um erro.
Então, disse a ele que tinha certeza.
Depois disso, Drake ligou para o advogado e contou o
que tinha acontecido. Ele ficou totalmente surpreso.
“Respeito sua honestidade. Normalmente, não faço isto,
mas vou te devolver os 5 mil dólares.” E devolveu.
Reembolso total.
Drake passou o ano seguinte frequentando aulas de
reabilitação obrigatórias. As aulas eram em lugares
distantes. Como ele não podia dirigir, tinha que pegar o
ônibus, o que podia levar horas. Nos encontros obrigatórios,
sentava-se em um círculo com pessoas com quem,
normalmente, não teria relação, “pessoas muito diferentes
daquelas com quem eu me relacionava na faculdade de
medicina”. As outras pessoas da classe, segundo sua
lembrança, eram, em sua maioria, homens brancos mais
velhos, com diversas infrações por embriaguez ao volante.
Depois de pagar mil dólares em multas e passar dez
horas em aulas obrigatórias, Drake recebeu sua habilitação
de volta. Acontece que isso foi só o começo.
Ele terminou a faculdade de medicina e se candidatou
para residência, relatando a condenação em todas as suas
inscrições. Quando solicitou sua licença médica para
exercer a profissão, teve que fazer a mesma coisa. E
novamente quando solicitou o certificado de especialidade.
No final de tudo isso, quando assumiu uma residência na
área da Baía de São Francisco, soube que nenhuma das
aulas de reabilitação que ele fizera em Vermont eram
válidas na Califórnia, então teve que fazer tudo de novo.
– Eu trabalhava todas aquelas horas, até de noite,
depois corria do hospital para chegar àqueles encontros de
ônibus. Se eu chegasse um minuto atrasado, tinha que
pagar uma taxa. Houve um momento, então, em que me
perguntei se teria sido melhor mentir. Mas agora, revendo,
fico satisfeito por ter contado a verdade.
“Meus pais tinham problemas com bebida, quando eu
era criança. Meu pai ainda tem. Ele pode passar semanas
seguidas sem beber, mas, quando bebe, não é bom. Agora
minha mãe está há dez anos em recuperação, mas o tempo
todo da minha infância ela bebeu, embora eu não soubesse
disso e nunca a visse bêbada. Mas mesmo com os
problemas deles, meus pais eram bons em me fazer sentir
que eu podia ser aberto e honesto com eles.
“Eles sempre pareciam ter amor e orgulho por mim,
mesmo quando eu me comportava mal. Eles não eram
condescendentes comigo. Nunca me deram dinheiro para
pagar minhas taxas legais, por exemplo, embora tivessem
algum guardado. Mas, ao mesmo tempo, eles nunca me
julgaram. Acho que criaram um espaço acolhedor e seguro
na minha infância e adolescência. Isso me permitiu ser
aberto e honesto.
“Hoje em dia, eu raramente bebo. Tenho tendência a
fazer coisas em excesso e gosto de correr riscos, então, com
certeza, poderia ter me perdido por aí. Mas acho que dizer a
verdade naquele momento crucial da minha vida deve ter
me colocado em outro caminho. Talvez o fato de ser honesto
ao longo dos anos tenha me ajudado a estar mais à vontade
comigo mesmo. Não tenho segredos.”
Dizer a verdade e sofrer consequências intensas pode
ter mudado a trajetória da vida de Drake. Ele parecia ter
essa impressão. O respeito agudo por honestidade, instilado
nele pelo pai numa tenra idade, pareceu ter um impacto até
maior do que sua considerável carga genética para adicção.
A honestidade radical poderia ser uma medida preventiva?
A experiência de Drake não leva em conta o quanto a
honestidade radical poderia dar para trás em um sistema
corrupto e disfuncional, ou como os privilégios da sua raça e
classe social contribuíram para sua capacidade de superar
as consideráveis repercussões. Caso ele fosse pobre e/ou
uma pessoa preta ou parda, o resultado poderia ser bem
diferente.
Não obstante, sua história convenceu-me, como mãe,
de que posso e devo enfatizar a honestidade como um valor
fundamental na educação dos meus filhos.
Meus pacientes me ensinaram que a honestidade
aumenta a conscientização, cria relacionamentos mais
satisfatórios, nos torna responsáveis por uma narrativa mais
autêntica e reforça nossa capacidade de adiar gratificação.
E pode até impedir o desenvolvimento futuro de
dependência.
Para mim, a honestidade é uma luta diária. Sempre tem
uma parte minha que quer enfeitar a história nos mínimos
detalhes, me fazer parecer melhor, ou arrumar uma
desculpa para um mau comportamento. Agora, me
empenho para combater essa vontade.
Embora difícil na prática, esta ferramentazinha acessível
– dizer a verdade – está incrivelmente ao nosso alcance.
Qualquer pessoa pode acordar num determinado dia e
decidir: “Hoje não vou mentir sobre nada”. E, ao fazer isso,
não apenas mudar sua vida para melhor, como também
mudar o mundo. ■
* Em português literal: “O que é disparado ao mesmo tempo fica
conectado”. No caso da frase de Hebb, a interpretação seria: “Se dois ou
mais neurônios são ativados ao mesmo tempo, as sinapses entre esses
neurônios ficam reforçadas”. (N. T.)
* No AA brasileiro, uma expressão que corresponda a esta, poderia ser
“passar o pano”, quando o frequentador está ali apenas socialmente, para
espantar a solidão, e não exatamente para se recuperar. Outra, não
inerente ao AA, mas também usada por eles, seria “conversa de
botequim”, algo que não leva a nada. (N. T.)
* Aparelho a ser usado no pulso, que além de funcionar como relógio,
monitora seus exercícios físicos, os batimentos cardíacos etc. (N. T.)
* No Brasil, dirigir embriagado é crime passível de detenção de seis meses
a três anos, multa e proibição de dirigir. (N. E.)
CAPÍTULO 9
Vergonha pró-social
EM SE TRATANDO DE HIPERCONSUMO COMPULSIVO,
a vergonha é um
conceito inerentemente ardiloso. Pode tanto ser o veículo de
perpetuação do comportamento, bem como o ímpeto para
interrompê-lo. Então, como conciliamos esse paradoxo?
Em primeiro lugar, vamos falar sobre o que é a
vergonha.
Atualmente, a literatura psicológica identifica a
vergonha como uma emoção distinta da culpa. A ideia é a
seguinte: a vergonha faz a gente se sentir mal consigo
mesmo como pessoa, ao passo que a culpa faz a gente se
sentir mal por causa das nossas ações, preservando uma
autoestima positiva. A vergonha é uma emoção
inadequada. A culpa é uma emoção adequada.
Meu problema com a dicotomia vergonha-culpa é que,
na prática, a vergonha e a culpa são idênticas. Do ponto de
vista racional, compreendo a autodepreciação de “ser uma
boa pessoa que fez uma coisa errada”, mas, no momento
em que sentimos vergonha-culpa – essa emoção em forma
de soco no estômago –, a sensação é idêntica:
arrependimento misturado com medo de punição e com o
terror do abandono. O arrependimento surge quando a
atitude é descoberta e pode ou não incluir arrependimento
pelo ato em si. O terror do abandono, uma punição em si
mesmo, é muito potente. É o terror do banimento, da
rejeição, de não fazer mais parte do rebanho.
No entanto, a dicotomia vergonha-culpa tira proveito de
algo real. Acredito que a diferença não está em como
vivenciamos a emoção, mas em como os outros reagem à
nossa transgressão.
Se os outros respondem nos rejeitando, condenando, ou
afastando, entramos no ciclo do que chamo de vergonha
destrutiva. A vergonha destrutiva aprofunda a experiência
emocional da vergonha e nos leva a perpetuar o
comportamento que originou a vergonha. No entanto, se os
outros reagem com acolhimento e uma orientação clara
para a redenção e/ou recuperação, entramos no ciclo da
vergonha pró-social. A vergonha pró-social atenua a
experiência emocional da vergonha e nos ajuda a
interromper ou a reduzir o comportamento vergonhoso.
Com isso em mente, vamos falar primeiro sobre quando
a vergonha dá errado (ou seja, vergonha destrutiva), como
um prelúdio da conversa sobre quando a vergonha dá certo
(ou seja, vergonha pró-social).
▸ Vergonha destrutiva
Um dos meus colegas psiquiatras me disse uma vez:
“Se não gostamos dos nossos pacientes, não podemos
ajudá-los”.
Assim que conheci Lori, não gostei dela.
Ela era toda executiva, louca para me dizer que estava
ali só porque o clínico geral tinha mandado e que era
totalmente desnecessário porque ela nunca tinha tido
nenhum tipo de dependência, nem qualquer problema de
saúde mental, só precisava que eu dissesse isso para ela
voltar a seu “verdadeiro médico” e conseguir seus
remédios.
– Fiz uma cirurgia de bypass gástrico – ela começou,
como se pudesse ser explicação suficiente para as doses
perigosamente altas de remédios controlados que estava
tomando. Como aquelas professoras das antigas, falava
como se passasse um sermão em uma aluna pouco
talentosa. – Costumava pesar mais de 90 quilos e agora
não. Então, é claro que tenho um transtorno de má
absorção pelo desvio do meu intestino, razão pela qual
preciso de 120 mg de escitalopram, só para chegar aos
níveis sanguíneos de uma pessoa normal. Você, doutora,
mais que qualquer um, vai entender.
O escitalopram é um antidepressivo que modula o
neurotransmissor seratonina. A dose média diária é de 10 a
20 mg, o que faz com que a dosagem de Lori seja, no
mínimo, seis vezes acima do normal. Em geral, os
antidepressivos não são erroneamente usados para dar
barato, mas já vi casos assim ao longo dos anos. Embora
seja verdade que a cirurgia em Y de Roux, feita em Lori para
perder peso, possa levar a problemas de absorção de
alimentos e medicamentos, seria muito incomum a
necessidade de doses tão altas. Algo mais estava
acontecendo.
– Você está usando algum outro medicamento, ou
alguma outra substância?
– Eu tomo gabapentina e maconha medicinal para dor.
Tomo zolpidem para dormir. Meus remédios são esses.
Preciso deles para tratar meus problemas de saúde. Não sei
o que há de errado nisso.
– Que problemas de saúde você está tratando?
É claro que já tinha lido o prontuário dela e sabia o que
dizia, mas sempre gosto de escutar o entendimento do
paciente quanto a seu diagnóstico médico e tratamento.
– Tenho depressão e dor no pé por causa de uma lesão
antiga.
– Tudo bem. Faz sentido. Mas as doses são altas. Me
pergunto se alguma vez você teve problemas por tomar
uma dose a mais de alguma substância do que você
planejava, ou de usar comida ou drogas para lidar com
emoções dolorosas.
Ela se enrijeceu, as costas retas, as mãos apertadas no
colo, os tornozelos fortemente cruzados. Parecia que ia
pular da cadeira e sair correndo da sala.
– Já falei, doutora, não tenho esse problema. – Apertou
os lábios e desviou o olhar.
Suspirei.
– Vamos mudar de assunto – eu disse, esperando
consertar nosso começo acidentado. – Por que não me conta
sobre a sua vida, como se fosse uma miniautobiografia:
onde você nasceu, quem te criou, como você era quando
criança, os marcos mais importantes da sua vida, até
chegar ao presente.
Depois que conheço o histórico de um paciente, as
forças que o moldaram para criar a pessoa que vejo à minha
frente, a animosidade evapora no calor da empatia.
Entender realmente uma pessoa é se preocupar com ela,
motivo pelo qual sempre ensino meus alunos e residentes
de medicina, ávidos por processar experiência dentro de
caixas discretas –, como “histórico da doença presente”,
“exame da situação mental”, e “revisão dos sistemas”,
como foram ensinados a fazer –, a focar no histórico. O
histórico recupera não apenas a humanidade do paciente,
como a nossa própria.
Lori cresceu na década de 1970, em uma fazenda no
estado de Wyoming, a mais nova de três irmãos criados por
pai e mãe. Ela lembra que desde pequena sentia que era
diferente.
– Alguma coisa não estava certa comigo. Eu não me
sentia parte daquele lugar. Me sentia esquisita e deslocada.
Tinha um problema de fala, a língua presa. A vida toda me
senti estúpida.
Lori era, claramente, muito inteligente, mas as opiniões
que temos de nós mesmos no início de vida são tão fortes
que eliminam toda evidência do contrário.
Ela se lembrou de ter medo do pai. Ele tinha tendência
à raiva, mas a maior ameaça na casa deles era o espectro
de um Deus punitivo.
– Na infância, conheci um Deus ameaçador. Se você não
fosse perfeito, ia para o inferno. – Como resultado, dizer a si
mesma que era perfeita, ou pelo menos mais perfeita do
que os outros, passou a ser um tema importante ao longo
da sua vida.
Lori foi uma aluna normal e uma atleta acima da média.
Estabeleceu o recorde de 100 metros na corrida de
obstáculos durante o ensino fundamental e começou a
sonhar com as Olimpíadas. Mas, em seu primeiro ano do
ensino médio, ela quebrou o tornozelo correndo. Precisou de
cirurgia e sua incipiente carreira como corredora teve um
fim definitivo.
– Tiraram de mim a única coisa em que eu era boa. Foi
então que comecei a comer. A gente parava no McDonald’s
e eu conseguia comer dois Big Macs. Sentia orgulho disso.
Quando entrei na faculdade, já não ligava mais para a
minha aparência. No meu primeiro ano, eu pesava 56
quilos. Quando me formei e fui fazer biomédicas, pesava 81
quilos. Também comecei a experimentar drogas: álcool,
maconha, pílulas… principalmente hidrocodona. Mas minha
droga preferida sempre foi comida.
Os quinze anos seguintes foram marcados por uma vida
nômade, de cidade em cidade, de trabalho em trabalho, de
namorado em namorado. Como biomédica, era fácil para
Lori arrumar trabalho em quase todo lugar. A única
constante em sua vida era frequentar a igreja todos os
domingos, não importava onde morasse.
Durante esse tempo, usou comida, comprimidos, álcool,
maconha e o que mais pudesse encontrar para escapar de
si mesma. Num dia típico, tomava um pote de sorvete no
café da manhã, comia salgadinhos durante o expediente no
trabalho e engolia um zolpidem assim que chegasse em
casa. No jantar, tomava outro pote de sorvete, comia um
Big Mac, uma porção grande de fritas e uma Diet Coke,
seguidos por mais dois comprimidos de zolpidem e uma
grande fatia de bolo de sobremesa. Às vezes, ela tomava o
zolpidem já no final do turno, para adiantar as coisas e já
estar chapada quando chegasse em casa.
– Se conseguisse não dormir depois de tomar zolpidem,
eu ficava loucona. Então, depois de duas horas, tomava
mais dois e ficava mais louca. Eufórica. Quase tão bom
quanto opioides.
Ela repetia esse ciclo, ou um bem parecido, dia após
dia. Nas férias, misturava comprimidos para dormir com
remédio para tosse para ficar surtada, ou ficava bêbada e
tinha um comportamento sexual de risco.
Quando Lori estava com 30 e poucos anos, morava
sozinha em uma casa no estado de Iowa e passava o tempo
de folga drogada, escutando o radialista americano e
teórico da conspiração Glenn Beck.
– Fiquei convencida de que o fim do mundo estava
próximo. Armagedom, muçulmanos, uma invasão iraniana.
Comprei um monte de galões de gasolina. Guardei-os no
quarto de despejo. Depois, levei-os para o quintal, debaixo
de uma lona. Comprei um rifle calibre 22. Aí, me dei conta
de que eu poderia explodir, então comecei a abastecer o
carro com a gasolina dos galões, até acabar.
Em certo nível, Lori sabia que precisava de ajuda, mas
tinha pavor de pedir. Tinha medo de que, se admitisse não
ser a “cristã perfeita”, as pessoas se afastariam dela.
Algumas vezes, deu pistas de seus problemas a alguns
companheiros da igreja, mas acabou entendendo, por
mensagens sutis, que certas questões não deveriam ser
compartilhadas. Àquela altura, ela pesava 113 quilos, tinha
uma depressão acachapante e começou a se perguntar se
não estaria melhor morta.
– Lori, quando olhamos para o todo, seja comida,
maconha, álcool ou comprimidos tarja preta, um dos
problemas persistentes parece ser o hiperconsumo
compulsivo autodestrutivo. Faz sentido isso que estou
dizendo?
Ela olhou para mim e não disse nada. Depois, começou
a chorar. Quando conseguiu falar, disse:
– Sei que é verdade, mas não quero acreditar. Não
quero ouvir. Tenho um trabalho. Tenho um carro. Vou à igreja
todo domingo. Achei que fazer a cirurgia de bypass gástrico
resolveria tudo. Achei que perder peso mudaria a minha
vida. Mesmo quando perdi peso, eu ainda queria morrer.
Sugeri vários caminhos diferentes que Lori poderia
tomar para ficar melhor, inclusive frequentar o AA.
– Não preciso disso – ela disse, sem hesitação. – Tenho a
minha igreja.
Um mês depois, Lori voltou, como estava agendado.
– Tive uma reunião com os decanos da igreja.
– O que aconteceu?
Ela desviou o olhar.
– Eu me abri de uma maneira que nunca tinha feito
antes… a não ser com você. Contei tudo a eles… ou quase
tudo. Simplesmente escancarei tudo.
– E aí?
– Foi esquisito. Eles pareceram… confusos. Ansiosos.
Como se de fato não soubessem o que fazer comigo. Me
disseram para rezar. Disseram que rezariam por mim.
Também me incentivaram a não discutir meus problemas
com outros membros da igreja. Foi só.
– Como você se sentiu?
– Naquele momento, senti aquele Deus condenatório,
que humilha. Consigo citar a Escritura, mas não sinto
ligação com o Deus amoroso da Escritura. Não consigo viver
à altura dessa expectativa. Não sou tão boa. Então, parei de
ir à igreja. Faz um mês. E sabe, parece que ninguém deu
bola. Ninguém telefonou. Ninguém entrou em contato
comigo. Ninguém.
Lori foi pega no ciclo da vergonha destrutiva. Ao tentar
ser honesta com os membros da igreja, foi desencorajada a
compartilhar aquele aspecto da sua vida, numa declaração
implícita de que seria rejeitada, ou se sentiria mais
envergonhada se revelasse suas dificuldades. Ela não podia
arriscar perder o pouco daquela sua pequena comunidade.
Mas manter seu comportamento escondido também
perpetuava sua vergonha, contribuindo ainda mais para o
isolamento, o que por sua vez fomentava seu consumo
contínuo de drogas.
Estudos
demonstram
que
pessoas
ativamente
envolvidas em organizações religiosas em média têm taxas
mais baixas de mau uso de drogas e álcool.1 Mas quando
organizações que se baseiam na fé acabam no lado errado
da equação vergonha, afastando transgressores e/ou
incentivando uma rede de segredos e mentiras, contribuem
para o ciclo da vergonha destrutiva.
A
vergonha
destrutiva
tem
este
aspecto:
o
hiperconsumo leva à vergonha, que leva ao banimento do
grupo ou a mentir para o grupo para evitar banimento, o
que nos dois casos resulta em maior isolamento,
contribuindo para a continuidade do consumo, e assim o
ciclo se perpetua.
O antídoto para a vergonha destrutiva é a vergonha prósocial. Vejamos como isto poderia funcionar.
▸ O AA como um modelo para
vergonha pró-social
Meu mentor falou uma vez sobre o que o motivou a
parar de ingerir álcool. Relembro com frequência essa
história porque ilustra a faca de dois gumes da vergonha.
Ele já estava com 40 e tantos anos e bebia em segredo
todas as noites, depois que a esposa e os filhos iam dormir.
Fez isto por muito tempo, mesmo depois de ter jurado à
esposa que tinha parado. Todas as mentirinhas que contava
para encobrir que bebia e o próprio fato de beber
acumularam-se e pesaram em sua consciência, o que, por
sua vez, levou-o a beber mais. Bebia por vergonha.
Um dia, sua esposa descobriu. “Seu olhar de
desapontamento e traição me levou a jurar que nunca mais
eu beberia”, ele contou.
A vergonha que ele sentiu naquele momento e o desejo
de recuperar a confiança e a aprovação da esposa
impeliram-no a sua primeira tentativa séria de recuperação.
Começou a frequentar as reuniões do Alcoólicos Anônimos.
Para ele, o principal benefício do AA foi um “processo de
desenvergonhamento”: “Percebi que não era o único. Havia
outras pessoas exatamente como eu. Havia outros médicos
que lutavam com a dependência alcoólica. Saber que eu
tinha um lugar onde poderia ser completamente honesto, e
ainda assim ser aceito, foi incrivelmente importante. Criou o
espaço psicológico de que eu precisava para me perdoar e
fazer mudanças. Para seguir em frente na minha vida”.
A vergonha pró-social baseia-se na ideia de que a
vergonha é útil e importante para comunidades prósperas.
Sem a vergonha, a sociedade despencaria no caos. Assim,
sentir vergonha por comportamentos transgressivos é
adequado e bom.
Além disso, a vergonha pró-social é baseada na ideia de
que somos todos falhos, passíveis de cometer erros e
necessitados de perdão. A chave para encorajar adesão a
normas grupais, sem banir todo mundo que se
desencaminha, é ter uma lista de coisas a fazer pósvergonha, que ofereça etapas específicas para se corrigir. É
o que o AA faz com seus 12 Passos.
O ciclo da vergonha pró-social é o seguinte: o
hiperconsumo leva à vergonha, que exige uma honestidade
radical que conduz não ao banimento, como vimos na
vergonha destrutiva, mas à aceitação e à empatia, agregada
a um conjunto de ações exigidas para se corrigir. O resultado
é um aumento de pertencimento e uma diminuição de
consumo.
Meu paciente Todd, um jovem cirurgião em recuperação
por dependência alcoólica, contou-me que o AA “foi o
primeiro lugar seguro para expressar vulnerabilidade”. Logo
na primeira reunião, ele chorou tanto que não conseguiu
dizer seu nome.
– Depois, todo mundo veio, me dando o número de
telefone, me dizendo para ligar. Era a comunidade que eu
sempre quis, mas nunca tive. Nunca poderia ter me aberto
daquele jeito com meus companheiros de escalada ou com
outros cirurgiões.
Após cinco anos em persistente recuperação, Todd
confessou que, para ele, o mais importante dos 12 Passos foi
o Passo 10 (“Continuamos fazendo o inventário pessoal e,
quando estávamos errados, admitíamos prontamente”).
– Todos os dias, faço uma checagem de mim mesmo.
Vamos lá, estou perturbado? Se sim, como posso mudar?
Tenho que me corrigir? Como posso me corrigir? Por
exemplo, noutro dia, eu estava lidando com um residente
que não me deu uma informação correta sobre um paciente.
Comecei a ficar frustrado. Por que isto não está sendo feito?
Quando sinto essa frustração, digo comigo mesmo: OK,
Todd, pare. Pense. Esta pessoa tem quase dez anos a menos
de experiência do que você. Provavelmente está com medo.
Em vez de ficar frustrado, como pode ajudá-la a conseguir o
que precisa? Não é algo que faria antes de entrar em
recuperação.
“Uns dois anos atrás, cerca de três anos já em
recuperação, estava supervisionando um estudante de
medicina que era muito ruim. Sério, realmente horrível. Eu
não deixava que cuidasse dos pacientes. Quando chegou a
época da avaliação de meio de período, sentei-me com ele e
resolvi ser honesto: ‘Olha, você não vai passar neste estágio
a não ser que faça grandes mudanças’.
“Depois do meu feedback, ele decidiu recomeçar e de
fato tentou melhorar seu desempenho. Conseguiu e acabou
passando no estágio. O caso é o seguinte: nos meus tempos
de bebedeira, eu não teria sido honesto com ele.
Simplesmente deixaria que fosse em frente e bombasse no
estágio, ou deixaria o problema para outro resolver.”
Uma autoavaliação sincera leva não apenas a um melhor
entendimento de nossas próprias deficiências, como
também nos permite avaliar e reagir às falhas dos outros
com mais objetividade. Quando somos responsáveis por nós
mesmos, conseguimos tornar os outros responsáveis.
Podemos utilizar a vergonha sem envergonhar.
O segredo aqui é responsabilidade com compaixão.
Essas lições aplicam-se a todos nós, dependentes ou não, e
se traduzem para todo tipo de relacionamento na nossa vida
diária.
O Alcoólicos Anônimos é uma organização modelo para
vergonha pró-social. A vergonha pró-social no AA
potencializa a adesão às normas do grupo. Não existe
vergonha em ser um “alcoólico”, consistente com a frase “O
AA é um espaço livre de vergonhas”, mas há vergonha na
busca sem convicção da “sobriedade”. Pacientes me
contaram que a vergonha antecipada de ter que admitir ao
grupo que tiveram uma recaída funciona como um
importante impeditivo contra a recaída e promove mais
comprometimento com as normas do grupo.
Importante: quando membros do AA têm uma recaída,
isso funciona como um “bem de clube”. Os economistas
comportamentais referem-se às recompensas de pertencer a
um clube como “bens de clube”. Quanto mais robustos os
bens de clube, maior a probabilidade de o grupo conseguir
manter seus membros atuais e atrair novos membros. O
conceito de bens de clube pode ser aplicado a qualquer
grupo de seres humanos, desde famílias até grupos de
amigos e congregações religiosas.
E o economista comportamental Laurence Iannaccone
escreveu, referindo-se a bens de clube em organizações
baseadas na fé: “O prazer que tiro do culto de domingo
depende não apenas dos meus próprios aportes, como
também dos aportes de outros: quantos comparecem, com
que cordialidade eles me recebem, o quanto eles cantam
bem, com que entusiasmo leem e rezam”.2 Os bens de clube
são reforçados pela participação ativa em atividades e
encontros do grupo e pela adesão às regras e normas do
grupo.
A revelação honesta de uma recaída para a irmandade
do AA aumenta os bens de clube, ao criar a oportunidade
para outros membros do grupo oferecerem empatia,
altruísmo e, vamos ser sinceros, algum grau de
schadenfreude* ao pensarem coisas como “Poderia ter sido
comigo e com certeza estou feliz de que não foi” ou “Lá vou
eu, mas só pela graça de Deus”.
Os bens de clube são ameaçados quando oportunistas
tentam se beneficiar do grupo sem uma participação efetiva
naquela comunidade, semelhante aos termos mais
coloquiais aproveitadores ou sanguessugas. Quando se trata
das regras e normas do grupo, os oportunistas ameaçam os
bens de clube ao não aderir, mentir e/ou não fazer qualquer
esforço para mudar sua atitude. Seu comportamento
individual não faz nada para reforçar os bens de clube,
embora estejam se beneficiando de serem membros do
grupo e tenham as vantagens do pertencimento.
Iannaconne notou que é difícil, senão impossível, medir
aderência aos princípios do grupo que cria os bens de clube,
especialmente quando as exigências envolvem hábitos
pessoais e não tangíveis, fenômenos subjetivos, como contar
a verdade.
A teoria do sacrifício e do estigma de Iannaconne postula
que uma maneira indireta de “medir” a participação do
grupo é pela obrigatoriedade de adotar comportamentos
estigmatizados, o que reduz a participação em outros
contextos, e pela exigência do sacrifício de recursos do
indivíduo para a exclusão de outras atividades.3 Assim, os
oportunistas são desmascarados.
Em outras palavras, as atitudes exigidas por certas
instituições religiosas que parecem excessivas, gratuitas ou
mesmo irracionais – tais como usar certo tipo de penteado
ou certas roupas, se abster de vários alimentos ou formas de
tecnologia moderna, ou recusar certos tratamentos médicos
– são racionais quando compreendidas como um custo
individual em prol da redução ou exclusão de aproveitadores
dentro do grupo.
Você poderia pensar que organizações religiosas e outros
grupos sociais mais descontraídos, com menos regras e
restrições, atrairiam um maior número de seguidores. Não é
o que acontece. As “igrejas mais rigorosas” conquistam mais
seguidores e, em geral, são mais bem-sucedidas do que as
liberais porque desmascaram os oportunistas e oferecem
bens de clube mais robustos.
Jacob juntou-se ao grupo dos 12 Passos do Sexaholics
Anonymous (SA) logo no início do seu processo de
recuperação e aumentou seu envolvimento a cada recaída.
Seu comprometimento foi admirável. Frequentava reuniões
de grupo todos os dias, por celular ou pessoalmente. Com
frequência, fazia oito ou mais telefonemas diários a
companheiros da irmandade.
O AA e outros grupos dos 12 Passos têm sido difamados
como “cultos”, ou organizações em que as pessoas trocam
sua dependência por álcool e/ou drogas por uma
dependência ao grupo. Essas críticas não levam em
consideração que a rigidez da organização e sua estrutura
de culto podem ser a própria causa da sua eficácia.
Os oportunistas nos grupos dos 12 Passos podem
assumir várias formas, mas entre os mais perigosos estão
aqueles membros que não admitem quando reincidem, não
se reafirmam como iniciantes e não refazem os passos. Eles
privam o grupo do bem de clube da vergonha pró-social,
sem falar na rede social sóbria, crucial para a recuperação.
Para manter os bens de clube, o AA precisa assumir medidas
firmes, e às vezes aparentemente irracionais, contra este
tipo de oportunismo.
Joan conseguiu parar de beber frequentando o AA. Ela
também foi a reuniões regulares, teve um padrinho e ela
mesma amadrinhou outras pessoas. Fazia quatro anos que
estava no AA em abstinência alcoólica, e era minha paciente
havia dez, então pude observar e avaliar todas as mudanças
positivas que o AA fez em sua vida.
Joan teve um episódio no início dos anos 2000, quando
usou álcool involuntariamente. Viajava pela Itália, onde não
falava a língua, e acidentalmente pediu e consumiu uma
bebida que continha uma porcentagem muito pequena de
álcool, comparável à das cervejas sem álcool vendidas nos
Estados Unidos. Só depois ela percebeu o que tinha
acontecido, não por se sentir alterada, mas por ter lido o
rótulo.
Ao voltar da viagem e contar a seu padrinho o que havia
acontecido, ele insistiu que ela havia recaído e a incentivou
a contar ao grupo e redefinir sua data de sobriedade. Fiquei
surpresa que o padrinho de Joan assumisse uma postura tão
rígida. Afinal de contas, ela havia consumido uma
quantidade de álcool tão insignificante que a maioria das
pessoas nem considera que tal bebida seja “alcoólica”. Mas
Joan concordou, embora às lágrimas. Até hoje, ela mantém
sua recuperação e sua presença no AA.
A insistência do padrinho de Joan em que ela redefinisse
sua data de sobriedade me pareceu excessiva à época, mas
agora eu a entendo tanto como uma prevenção, para que
um pouquinho de álcool não levasse a um monte de álcool –
o terreno perigoso –, quanto como uma “maximização da
utilidade” para o bem maior do grupo. A disposição de Joan
em se conformar com uma interpretação muito rigorosa de
recaída reforçou seus vínculos com o grupo, o que, a longo
prazo, também se revelou positivo para ela.
Além disso, Joan observou:
– Talvez em parte eu soubesse que havia álcool na
bebida e quisesse usar o fato de estar num país estrangeiro
como desculpa. – Nesse sentido, o grupo funciona como uma
consciência estendida.
É claro que estratégias de pensamento de grupo podem
ser usadas para fins execráveis, por exemplo, quando os
custos de pertencer ao grupo excedem os benefícios e os
membros são prejudicados. O NXIVM se autodescrevia como
um programa executivo de sucesso, mas seus líderes foram
presos e indiciados em 2018 sob acusações de tráfico sexual
e extorsão. Da mesma forma, existem situações em que os
membros de um grupo obtêm benefícios às custas de
prejudicar quem está fora do grupo, tais como várias
entidades hoje que usam a mídia social para espalhar
falsidades.
Alguns meses depois de deixar de frequentar a igreja,
Lori foi à sua primeira reunião do AA, onde recebeu o
companheirismo solidário que estava procurando, mas não
tinha conseguido encontrar na igreja. Em 20 de dezembro de
2014, ela largou todas as substâncias e desde então tem
mantido sua recuperação.
– Não sei dizer exatamente o que aconteceu, nem
quando – Lori disse, revendo anos depois a sua própria
recuperação, que atribui à sua participação no AA. – Escutar
as histórias das pessoas, o alívio que senti ao me livrar dos
segredos mais profundos e sombrios, ver a esperança nos
olhos dos recém-chegados. Eu estava tão isolada antes!
Lembro-me de só querer morrer. Ficava acordada à noite, me
flagelando por todas as coisas que havia feito. No AA,
aprendi a me aceitar e a aceitar os outros pelo que são.
Agora tenho relacionamentos verdadeiros com as pessoas.
Pertenço a esse grupo. Eles conhecem meu verdadeiro eu.
▸ Vergonha pró-social e parentalidade
Sendo uma mãe que se preocupa com o bem-estar dos
filhos em um mundo inundado pela dopamina, tentei
incorporar os princípios da vergonha pró-social na vida da
nossa família.
Em primeiro lugar, estabelecemos a honestidade radical
como um valor familiar intrínseco. Eu me esforço, nem
sempre com sucesso, em moldar a honestidade radical no
meu próprio comportamento. Às vezes, como pais,
pensamos que, ao esconder dos filhos nossos erros e
imperfeições e só revelar nossa melhor parte, ensinaremos
a eles o que é certo. Mas isso pode ter o efeito oposto,
levando as crianças a sentirem que precisam ser perfeitas
para serem amadas.
Em vez disso, se formos abertos e honestos sobre
nossas dificuldades, criamos um espaço para os filhos
serem abertos e honestos em relação às deles. Dessa
forma, precisamos também estar preparados e dispostos a
admitir quando tivermos errado em nossas interações com
eles e com outros. Precisamos aceitar nossa própria
vergonha e estarmos prontos para nos corrigir.
Cerca de cinco anos atrás, quando meus filhos ainda
estavam no ensino fundamental, dei a cada um deles um
coelhinho de chocolate na Páscoa. Eram de chocolate ao
leite cremoso, feitos por um chocolatier especial. As
crianças comeram um pouco e guardaram o resto na
despensa, para mais tarde.
Nas duas semanas seguintes, mordisquei cá e lá um
tantinho dos coelhinhos, achando que não era o bastante
para alguém notar. Quando meus filhos se lembraram dos
chocolates, eu tinha comido quase tudo. Sabendo da minha
predileção por chocolate, eles me acusaram de imediato.
– Não fui eu – eu disse. A mentira veio naturalmente.
Continuei mentindo nos três dias seguintes. Eles
persistiram no ceticismo de que eu estivesse dizendo a
verdade, mas depois começaram a acusar um ao outro. Eu
sabia que tinha que consertar as coisas. Como vou ensinar
honestidade aos meus filhos se eu mesma não sou honesta?
E que coisa mais idiota, mais estúpida, mentir sobre isso!
Levei três dias para criar coragem de contar a verdade.
Estava muito envergonhada.
Eles se viram vingados e ficaram horrorizados ao saber
a verdade. Vingados porque sua primeira suspeita estava
certa. Horrorizados de que sua própria mãe mentisse para
eles. Para mim e para eles foi instrutivo em vários aspectos.
Lembrei a mim mesma, e sinalizei a eles, o quanto eu
era imperfeita. Também serviu de modelo de que, quando
cometo erros, pelo menos posso assumir minha
responsabilidade. Meus filhos me perdoaram e até hoje
adoram contar a história de como eu “roubei” o chocolate
deles e “menti” a respeito. A provocação deles é minha
penitência e a recebo de bom grado. Juntos, reafirmamos
que na nossa família as pessoas cometerão erros, mas não
serão permanentemente condenadas ou banidas. Estamos
aprendendo e crescendo juntos.
Assim como meu paciente Todd, quando nos
empenhamos numa reavaliação enérgica e honesta de nós
mesmos, somos mais capazes e ficamos mais dispostos a
dar um feedback honesto a outras pessoas, no espírito de
ajudá-las a entender suas potencialidades e limitações.
Esse tipo de honestidade radical sem causar vergonha é
também importante para ensinar as crianças suas
qualidades e fraquezas.
Nossa filha mais velha começou a ter aulas de piano aos
5 anos. Fui criada numa família musical e estava ansiosa
para compartilhar música com os meus filhos. O que
aconteceu foi que minha filha não tinha noção de ritmo e
mal conseguia distinguir sons graves de agudos. No
entanto, nós duas persistimos teimosamente com seus
estudos diários, eu sentada ao seu lado, tentando incentivála, enquanto disfarçava meu horror perante sua total falta
de aptidão. A verdade é que nenhuma de nós gostava
daquilo.
As aulas já aconteciam havia cerca de um ano, quando
assistimos ao filme Happy Feet, sobre um pinguim, Mumble,
que tem um grande problema, não consegue cantar uma
única nota, num mundo onde é preciso uma música
comovente para atrair uma alma gêmea. Nossa filha me
olhou na metade do filme e perguntou:
– Mamãe, eu sou como o Mumble?
Na hora, me vi em dúvida como mãe. O que digo? Conto
a verdade a ela e me arrisco a prejudicar sua autoestima,
ou minto e tento usar a mentira para estimular um amor
pela música?
– É, você é muito parecida com o Mumble – arrisquei.
Minha filha abriu um grande sorriso, que interpretei
como validação. Soube, então, que tinha feito a escolha
certa.
Ao validar o que ela já sabia ser verdade – sua falta de
talento musical –, encorajei sua capacidade de uma
autoavaliação precisa, capacidade que ela demonstra até
hoje. Também levei-a a perceber que não podemos ser bons
em tudo e que é importante saber no que somos bons e no
que não somos, para podermos tomar decisões sensatas.
Depois de um ano, ela decidiu largar as aulas de piano,
para alívio de todos, e gosta de música até hoje. Canta
junto com o rádio, completamente desafinada e nem um
pouco constrangida por isso.
A honestidade mútua exclui a vergonha e prenuncia
uma explosão de intimidade, um ímpeto de calor emocional
que vem de nos sentirmos em conexão profunda com os
outros, de nos sentirmos aceitos apesar das nossas falhas.
O que cria a intimidade que desejamos não é a nossa
perfeição, mas a disposição de trabalharmos juntos para
remediar nossos erros.
É quase certo que esse tipo de explosão de intimidade
venha acompanhado pela liberação da própria dopamina
endógena do nosso cérebro. Mas ao contrário da descarga
de dopamina que conseguimos com prazeres baratos, a
descarga que obtemos com a intimidade verdadeira é
adaptativa, rejuvenescedora e estimula a saúde.
Através de sacrifício e estigma, meu marido e eu
tentamos fortalecer nossos bens de clube familiar.
Não deixamos nossos filhos terem o próprio celular até
entrarem no ensino médio. Isto fez deles uma aberração
entre seus colegas, especialmente no fim do ensino
fundamental. No começo, eles pediram e adularam para ter
um celular próprio, mas depois de um tempo passaram a
ver essa diferença como parte fundamental da sua
identidade, juntamente com nossa insistência a nos
locomovermos de bicicleta sempre que possível, em vez de
usar o carro, e passarmos um tempo juntos em família, sem
dispositivos eletrônicos.
Estou convencida de que o treinador de natação dos
nossos filhos tem um doutorado secreto em economia
comportamental.
Ele
utiliza
sacrifício
e
estigma
regularmente para reforçar os bens de clube.
Em primeiro lugar, há o prodigioso compromisso com o
tempo, até quatro horas por dia de natação para alunos do
ensino médio, e a vergonha dissimulada que acontece
quando eles faltam ao treino. Existe reconhecimento e
recompensas para bom comparecimento (não muito
diferente das fichas do AA para trinta comparecimentos em
trinta dias), inclusive a oportunidade de participar de
viagens para competições. Existem as regras rígidas sobre o
que usar nesses encontros: somente camiseta vermelha de
proteção solar às sextas- feiras, camisetas cinza de
proteção solar aos sábados, equipamento com o logo do
time (toucas, trajes, óculos de proteção). Isto distingue bem
os membros do time das outras crianças.
Muitas dessas regras parecem excessivas e gratuitas,
mas quando vistas pelas lentes dos princípios de
maximização da utilidade para fortalecer a participação,
reduzir o oportunismo e aumentar os bens de clube, elas
fazem sentido. E as crianças afluem para esse time em
particular, parecendo amar a rigidez, mesmo quando
reclamam dela.
Tendemos a pensar na vergonha de forma negativa,
especialmente numa época em que envergonhar – causar
vergonha em alguém por ser gordo, por seu comportamento
sexual, por ter um corpo “fora dos padrões” e assim por
diante – é uma palavra tão carregada e (acertadamente)
associada com intimidação. Em nosso mundo cada vez mais
digital, a vergonha promovida pela mídia social e sua
correlata “cultura do cancelamento” passou a ser uma
forma de banimento, uma adaptação moderna aos mais
destrutivos aspectos da vergonha.
Mesmo quando ninguém mais está apontando o dedo
para nós, estamos todos muito preparados para apontá-lo
para nós mesmos.
A mídia social impele nossa tendência para a
autovergonha, provocando muitas distinções deploráveis.
Agora, nos comparamos não apenas a nossos colegas de
escola, vizinhos e colegas de trabalho, mas ao mundo todo,
tornando fácil demais nos convencermos de que deveríamos
ter feito mais, ou conseguido mais, ou apenas viver de outro
modo.
Hoje em dia, para considerarmos nossa vida “bemsucedida”, precisamos alcançar os patamares míticos de
Steve Jobs e Mark Zuckerberg ou, como Elizabeth Holmes,
da corporação Theranos, um Ícaro recente, despencar em
chamas em meio às tentativas.*
Mas a experiência vivida pelos meus pacientes sugere
que a vergonha pró-social pode ter efeitos positivos e
saudáveis, aplainando um pouco as bordas mais ásperas do
narcisismo, vinculando-nos mais intimamente a nossas
redes sociais solidárias e refreando nossas tendências
adictivas. ■
* Termo alemão que significa a satisfação, velada ou não, perante a
desgraça do outro. (N. T.)
* Elizabeth Holmes foi fundadora, em 2014, de uma companhia que dizia
ser revolucionária na área de exames laboratoriais, a Theranos. Segundo
ela, com uma única gota de sangue seria possível detectar inúmeras
doenças, dispensando a coleta com agulha. A empresa recebeu inúmeros
investimentos de pessoas de renome, até ser posta em dúvida pelo Wall
Street Journal e ser dissolvida em 2018, sob acusação de fraude. (N. T.)
CONCLUSÃO
Lições do equilíbrio
TODOS NÓS DESEJAMOS UM RESPIRO DO MUNDO,
uma pausa dos
padrões impossíveis que com frequência estabelecemos
para nós mesmos e para outros. É natural que
procurássemos um alívio de nossas próprias ruminações
incansáveis: Por que fiz isso? Por que não posso fazer isto?
Olha o que me fizeram. Como pude fazer isso para eles?
Então, somos atraídos para qualquer uma das formas
agradáveis de fuga, que agora estão disponíveis para nós:
coquetéis da moda, a câmara de ressonância da mídia
social, maratona de reality shows, uma noite de pornô pela
internet, batatas fritas e fast food, video games
envolventes, romances baratos de vampiro… A lista
realmente não acaba. Drogas e comportamentos adictivos
oferecem esse respiro, mas, com o tempo, contribuem para
nossos problemas.
E se, em vez de tentar escapar do mundo para
esquecer, corrermos em direção a ele? E se, em vez de
deixar o mundo para trás, mergulharmos de cabeça nele?
Muhammad, você vai se lembrar, foi meu paciente que
tentou várias formas de autocomprometimento para limitar
seu consumo de maconha, mas acabava voltando
exatamente ao ponto em que começou, progredindo da
moderação para o consumo excessivo e para dependência
em um ritmo ainda mais rápido.
Quando tentava mais uma vez controlar seu consumo
de maconha, ele foi caminhar em Point Reys, uma trilha ao
norte de São Francisco, na esperança de encontrar refúgio
em uma atividade que um dia já lhe dera prazer.
Mas cada curva trazia-lhe lembranças de fumar erva –
no passado, as caminhadas quase sempre aconteciam num
estado de semi-intoxicação –, e então, em vez de ser uma
escapatória, a caminhada transformou-se em uma agonia
de desejo e uma reminiscência dolorosa de perda. Ele se
desesperou com a ideia de nunca conseguir controlar seu
problema com a maconha.
Então, teve um momento de revelação. Em um
determinado local com vista, onde tinha memórias
explícitas de fumar um baseado com amigos, levou a
câmera aos olhos e apontou para uma planta próxima. Viu
um inseto em uma folha e focou mais a câmera, dando um
zoom na carapaça vermelha brilhante do besouro, nas
antenas estriadas e nas pernas peludas. Ficou hipnotizado.
Sua atenção ficou enredada pela criatura em sua lente.
Tirou uma série de fotos, depois mudou o ângulo e
fotografou mais. Pelo resto da caminhada, parou para tirar
fotografias extremamente próximas de besouros. Assim que
fez isto, seu desejo por maconha diminuiu.
– Tive que me obrigar a ficar bem quieto – ele me
contou em uma das nossas sessões, em 2017. – Tive que
conseguir uma imobilidade perfeita para tirar uma
fotografia bem nítida. Esse processo me aterrou e me
centrou. Descobri um mundo estranho, surreal e irresistível
do outro lado da câmera, que rivalizava com o mundo para
onde eu escapava com as drogas. Mas aquilo era melhor
porque as drogas não eram necessárias.
Muitos meses depois, percebi que o caminho de
Muhammad para a recuperação era semelhante ao meu.
Tomei uma decisão consciente de voltar a mergulhar
nos cuidados com os pacientes, focando nos aspectos do
meu trabalho que sempre foram gratificantes: desenvolver
um relacionamento com meus pacientes com o passar do
tempo, e mergulhar em uma narrativa como maneira de
organizar o mundo. Fazendo isto, consegui largar a leitura
compulsiva de romances baratos, para me voltar para uma
carreira mais gratificante e significativa. Também me saí
melhor em meu trabalho, mas meu sucesso foi um
subproduto inesperado, não o que eu estava buscando.
Incentivo você a procurar uma maneira de mergulhar a
fundo na vida que lhe foi dada; a parar de fugir do que quer
que esteja querendo escapar e, em vez disso, parar e
encarar seja lá o que for.
Então, eu desafio você a andar nessa direção. Assim, o
mundo pode se revelar a você como algo mágico e
inspirador, do qual não é necessário fugir. Em vez disso, o
mundo pode se tornar algo em que vale a pena prestar
atenção.
Os ganhos de encontrar e manter equilíbrio não são
imediatos nem permanentes. Exigem paciência e
manutenção. Temos que estar dispostos a seguir em frente,
apesar da incerteza do que nos espera. Temos que ter fé de
que as atitudes de hoje, que parecem não ter impacto no
momento presente, estão, de fato, se acumulando em uma
direção positiva que nos será revelada apenas em um
momento desconhecido, no futuro. Práticas saudáveis
acontecem dia a dia.
Minha paciente Maria me disse:
– A recuperação é como aquela cena do Harry Potter,
quando Dumbledore desce por uma viela escura,
acendendo postes de iluminação ao longo do caminho. Só
quando ele chega ao fim da viela e olha para trás é que vê
tudo iluminado, enxerga a luz do seu progresso.
Estamos aqui no final, mas poderia ser apenas o
começo de uma nova maneira de abordar o mundo
hipermedicado, hiperestimulado, saturado de prazeres dos
nossos dias. Pratique as lições do equilíbrio, para olhar em
retrospecto e enxergar a luz do seu progresso. ■
▸ Lições do equilíbrio
A busca incessante do prazer (e a fuga do
sofrimento) leva ao sofrimento.
A recuperação começa com a abstinência.
A abstinência reconfigura o circuito de
gratificação do cérebro e, com ele, nossa
capacidade de sentir alegria nos prazeres mais
simples.
O autocomprometimento cria espaço literal e
metacognitivo entre o desejo e o consumo, uma
necessidade moderna em nosso mundo
saturado de dopamina.
Os medicamentos podem restaurar a
homeostase, mas pense no que perdemos ao
eliminar nosso sofrimento com remédios.
Pender um pouco para o lado do sofrimento
reconfigura nosso equilíbrio para o lado do
prazer.
É preciso estar atento para não se tornar
dependente do sofrimento.
A honestidade radical impulsiona a
conscientização, amplia a intimidade e favorece
uma mentalidade farta.
A vergonha pró-social
pertencemos à tribo humana.
confirma
que
Em vez de fugir do mundo, podemos
encontrar escapatória ao mergulhar nele.
NOTA DA AUTORA
AS CONVERSAS ÍNTIMAS E HISTÓRIAS DESTE LIVRO foram incluídas com
o consentimento dos entrevistados. Para proteger a
privacidade deles, apaguei e mudei nomes e outros
detalhes demográficos, mesmo quando os participantes
estavam dispostos a incluí-los sem mudanças. O processo
de obtenção do consentimento incluiu a concordância dos
participantes com o seguinte: “É provável que alguém que
o/a conheça bem e leia a sua história aqui o/a reconheça,
mesmo que eu tenha mudado seu nome. Tudo bem para
você?”. E “Se houver algum detalhe que você não queira
compartilhar, me avise e eu o excluirei”. ■
AGRADECIMENTOS
GOSTARIA DE AGRADECER A MEUS PACIENTES,
que compartilharam
suas experiências e reflexões comigo, no processo de
escrever este livro. Sua disponibilidade em se doar não
apenas para mim, mas para os leitores ocultos e
desconhecidos, é um ato de coragem e generosidade. Este
livro é nosso.
Também gostaria de agradecer àqueles que não são
meus pacientes e concordaram em ser entrevistados neste
livro. Suas percepções sobre dependência e recuperação
foram um enorme acréscimo às minhas.
Tenho a sorte de me ver cercada por muitas pessoas
ponderadas e criativas, cujas ideias colaboraram com este
livro através de nossas conversas. Seria impossível
enumerar todas, mas quero fazer um agradecimento
especial a Kent Dunnington, Keith Humphreys, E. J. Iannelli,
Rob Malenka, Matthew Prekupec, John Ruark e Daniel Saal.
Agradeço também a Robin Coleman por me fazer voltar
a escrever, Bonnie Solow por acreditar no projeto, Deb
McCarroll por fazer as ilustrações, e Stephen Morrow e
Hannah Feeney por torná-lo realidade.
Por fim, nada seria possível sem o apoio do meu querido
marido, Andrew. ■
NOTAS
▸ Introdução
1
Kent Dunnington, Addiction and Virtue: Beyond the Models of Disease
and Choice (Downers Grove, IL: InterVasity Press Academic, 2011). Este é
um maravilhoso tratado teológico e filosófico sobre adicção e fé.
▸ Capítulo 1: Nossas máquinas
masturbatórias
1
Anna Lembke, Drug Dealer, MD: How Doctors Were Duped, Patients Got
Hooked, and Why It’s So Hard to Stop, 1ª ed. (Baltimore: John Hopkins
University Press, 2016.) Existem muitos livros excelentes sobre este
assunto, incluindo Pain Killer: An Empire of Deceit and the Origin of
America’s Opioid Epidemic, de Barry Meier; Dreamland: The True Tale of
America’s Opiate Epidemic, de Sam Quinones; e Dopesick: Dealers,
Doctors and the Drug Company That Addicted America, de Beth Macy.
Cada um desses livros, inclusive o meu, explora as origens da epidemia de
opioides por lentes ligeiramente diferentes.
2
ASPPH Task Force on Public Health Initiatives to Address the Opioid Crisis,
Bringing Science to Bear on Opioids: Report and Recommendations,
Novembro de 2019.
3
ASPPH Task Force on Public Health Initiatives to Address the Opioid Crisis,
Bringing Science to Bear on Opioids: Report and Recommendations,
Novembro de 2019.
4
“Wayne Hall, What Are the Policy Lessons of National Alcohol Prohibition
in the United States, 1920-1933?”, Addiction, 105, n. 7 (2010): 1164-73,
https://doi.org/10.1111/j.1360-0443.2010.02926.x.
5
Robert MacCoun, “Drugs and the Law: A Psychological Analysis of Drug
Prohibition”, Psychological Bulletin, 113(3) (1º de junho de 1993): 497-512,
https://doi.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2F0033-2909.113.3.497.
Existe uma considerável controvérsia e debate sobre o impacto da
proibição da descriminalização e legalização das drogas psicoativas. A obra
de Rob MacCoun sobre este tópico mescla economia, psicologia e filosofia
política para um aprofundamento.
6
Bridget F. Grant, S. Patricia Chou, Tulshi D. Saha, Roger P. Pickering,
Bradley T, Kerridge, W. June Ruan, Boji Huang e outros “Prevalence of 12Month Alcohol Use, High-Risk Drinking, and DSM-IV Alcohol Use Disorder in
the United States, 2001-2002 to 2012-2013: Results from the National
Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions”, JAMA Psychiatry
74,
n.
9
(1º
de
setembro
de
2017):
911-23,
https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2017.2161.
7
Anna Lembke, “Time to Abandon the Self-Medication Hypothesis in
Patients with Psychiatric Disorders”, The American Journal of Drug and
Alcohol,
Abuse,
38,
n.
6
(2012):
524-29,
https://doi.org/10.3109/00952990.2012.694532.
8
David T. Courtwright, The Age of Addiction: How Bad Habits Became Big
Business
(Cambridge,
MA:
Belknap
Press,
2019),
https://doi.org/10.4159/9780674239241. Este é um olhar profundo e
erudito sobre a maneira como o crescente acesso a produtos e
comportamentos adictivos através do tempo e das culturas contribuiu para
o aumento de consumo.
9
Matthew Kohrman, Gan Quan, Liu Wennan e Robert N. Proctor, editores,
Poisonous Pandas: Chinese Cigarette Manufacturing in Critical Historical
Perspectives (Stanford, CA: Stanford University Press, 2018).
10
David T. Courtwright, “Addiction to Opium and Morphine”, em Dark
Paradise: A History of Opiate Addiction in America (Cambridge, MA:
Harvard University Press, 2009), https://www.hup.harvard.edu/catalog.php?
isbn=9780674005853&content=toc7. Este é outro livro fantástico do
historiador David Courtwright, que traça as origens da epidemia de opioide
através da história, incluindo o final dos 1800, quando os médicos
prescreviam rotineiramente morfina para as donas de casa vitorianas,
entre outros.
11
National Potato Council, Potato Statistical Yearbook 2016, acessado em
18 de abril de 2020, https://potatoassociation.org/wp-content/uploads/
2018/01/2016-NPC-1.pdf.
12
Annie Gasparro e Jessie Newman, “The New Science of Taste: 1,000
Banana Flavors”, The Wall Street Journal, 31 de outubro de 2014. Veja
também The Age of Addiction: How Bad Habits Became Big Business, de
David T. Courtwright, para uma excelente discussão ampliada sobre as
mudanças na indústria alimentícia.
13
Shanthi Mendis, Tim Armstrong, Douglas Bettcher, Francesco Branca,
Jeremy Lauer, Cecile Mace, Vladimir Poznyak, Leanne Riley, Vera da Costa
e Silva, e Gretchen Stevens, Global Status Report on Noncommunicable
Diseases
2014
(World
Health
Organization,
2014),
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/148114/9789241564854_
eng.pdf.
14
Marie Ng, Tom Fleming, Margaret Robinson, Blake Thomson, Nicholas
Graetz, Christopher Margono, Erin C. Mullany e outros, “Global, Regional,
and National Prevalence of Overweight and Obesity in Children and Adults
during 1980-2013: A Systematic Analysis for the Global Burden of Disease
Study 2013”, The Lancet, 384, n. 9945 (agosto de 2014): 766-81,
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(14)60460-8.
15
Hannah Ritchie e Max Roser, “Drug Use”, Our World in Data, dezembro
de 2019, https://ourworldindata.org/drug-use.
16
Anne Case e Angus Deaton, Deaths of Despair and the Future of
Capitalism
(Princeton,
NJ:
Princeton
University
Press,
2020),
https://www.jstor.org/stable/j.ctvpr7rb2.
17
“Capital Pains”, Economist, 18 de julho de 2020. Para fontes originais,
veja https://www.unep.org/resources/inclusive-wealth-report-2018.
▸ Capítulo 2: Fugindo do sofrimento
1
Philip Rieff, The Triumph of the Therapeutic: Uses of Faith after Freud
(Nova York: Harper and Row, 1966) [ed. bras. O triunfo da terapêutica. São
Paulo: Brasiliense, 1990].
2
Ross Douthat, Bad Religion: How We Became a Nation of Heretics (Nova
York: Free Press, 2013).
3
Marcia L. Meldrum, “A Capsule History of Pain Management”, JAMA, 290,
n. 18 (2003): 2470-75, https://doi.org/10.1001/jama.290.18.2470.
4
Victoria K. Shanmugam, Kara S. Couch, Sean McNish e Richard L. Amdur,
“Relationship between Opioid Treatment and Rate of Healing in Chronic
Wounds”, Wound Repair and Regeneration, 25, n. 1 (2017): 120-30,
https://doi.org/10.1111/wrr.12496.
5
Thomas Sydenham, “A Treatise of the Gout and Dropsy” em The Works of
Thomas Sydenham, M.D., on Acute and Chronic Diseases (Londres, 1783),
254,
https://books.google.com/books?
id=iSxsAAAAMAAJ&printsec=frontcover&source=gbs_ge_summary_r&cad=
o#v=onepage&q&f=false.
6
Substance Abuse and Mental Health Services Administration, U.S
Department of Health and Human Services, “Behavioral Health, United
States,
2012”,
HHS
Publication,
n.
(SMA)
13-4797,
2013,
http://www.samhsa.gov/data/sites/default/files/2012-BHUS.pdf.
7
Bruce S. Jonas, Qiuping Gu e Juan R. Albertorio-Diaz, “Psychotropic
Medication Use among Adolescents: United States, 2005-2010”, NCHS Data
Brief, n. 135 (dezembro 2013): 1–8.
8
OECD,
“OECD
Health
Statistics”,
julho
de
2020,
http://www.oecd.org/els/health-systems/health-data.htm. Laura A. Pratt,
Debra J. Brody, Qiuping Gu, “Antidepressant Use in Persons Aged 12 and
Over: United States, 2005-2008”, NCHS Data Brief, n. 76, outubro de 2011,
https://www.cdc.gov/nchs/products/databriefs/db76.htm.
9
Brian J. Piper, Christy L. Ogden, Olapeju M. Simoyan, Daniel Y. Chung,
James F. Caggiano, Stephanie D. Nichols e Kenneth L. McCall, “Trends in
Use of Prescription Stimulants in the United States and Territories, 2006 to
2016”,
PLOS
ONE,
13,
n.
11
(2018),
https://doi.org/10.1371/journal.pone.0206100.
10
Marcus A. Bachhuber, Sean Hennessy, Chinazo O. Cunningham e Joanna
L. Starrels, “Increasing Benzodiazepine Prescriptions and Overdose
Mortality in the United States, 1996-2013”, American Journal of Public
Health,
106,
n.
4
(2016):
686-88,
https://doi.org/10.2105/AJPH.2016.303061.
11
Aldous Huxley, Brave New World Revisited (New York: HarperCollins,
2004) [ed. bras. Retorno ao admirável mundo novo. Rio de Janeiro:
Biblioteca Azul/Globo, 2021].
12
Neil Postman, Amusing Ourselves in Death: Public Discourse in the Age
of Show Business (Nova York: Penguin Books, 1986).
13
John F. Helliwell, Haifang Huang e Shun Wang, “Chapter 2 – Changing
World Happiness”, World Happiness Report 2019, 20 de março de 2019,
10-46.
14
Ayelet Meron Ruscio, Lauren S. Hallion, Carmen C. W. Lim, Sergio AguilarGaxiola, Ali Al-Hamzawi, Jordi Alonso, Laura Helena Andrade e outros,
“Cross-Sectional Comparison of the Epidemiology of DSM-5 Generalized
Anxiety Disorder across the Globe”, JAMA Psychiatry, 74, n. 5 (2017): 46575, https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2017.0056.
15
Qingqing Liu, Hairong He, Jin Yang, Xiaojie Feng, Fanfan Zhao e Jun Lyu,
“Changes in the Global Burden of Depression from 1990 to 2017: Findings
from the Global Burden of Disease Study”, Journal of Psychiatric Research,
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13
Jakob Linnet, Ericka Peterson, Doris J. Doudet, Albert Gjedde e Arne
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15
Bryan Kolb, Grazyna Gorny, Yilin Li, Anne Noël Samaha e Terry E.
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Sandra Chanraud, Anne-Lise Pitel, Eva M. MÜller-Oehring, Adolf
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17
Vincent Pascoli, Marc Turiault e Christian Lüscher, “Reversal of CocaineEvoked Synaptic Potentiation Resets Drug-Induced Adaptive Behaviour”,
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Henry Beecher, “Pain in Men Wounded in Battle”, Anesthesia &
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19
J. P. Fisher, D. T. Hassan, e N. O’Connor, “Case Report on Pain”, British
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(1995):
70,
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2548478/pdf/bmj005740074.pdf.
20
O Dr. Tom Finucane é professor de medicina no John Hopkins, em
Baltimore. Conheci seu trabalho quando lecionava ali como professora
visitante. Foi durante um jantar com alguns dos seus alunos que escutei
pela primeira vez esta frase e sabia que tinha que arrumar um jeito de
incluí-la neste livro.
▸ Capítulo 4: Jejum de dopamina
1
Nora D. Volkow, Joanna S. Fowler, Gene-Jack Wang e James M. Swanson,
“Dopamine in Drug Abuse and Addiction: Results from Imaging Studies and
Treatment Implications”, Molecular Psychiatry, 9, n. 6 (junho de 2004): 55769, https://doi.org/10.1038/sj.mp.4001507.
2
Sandra A. Brown e Marc A. Schuckit, “Changes in Depression among
Abstinent Alcoholics”, Journal of Studies on Alcohol and Drugs, 49, n. 5
(1988), 412-17, https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/3216643/.
3
Kenneth B. Wells, Roland Sturm, Cathy D. Sherbourne e Lisa S. Meredith,
Caring for Depression (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1996).
4
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Important Was the Great Debate?”, Addiction, 90, n. 9 (1995): 1149-53.
Linda C. Sobell, John A. Cunningham e Mark B. Sobell, “Recovery from
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Surveys”, American Journal of Public Health, 86, n. 7 (1996): 966-72.
5
Roelof Eikelboom e Randelle Hewitt, “Intermittent Access to a Sucrose
Solution for Rats Causes Long-Term Increases in Consumption”, Physiology
&
Behavior,
165
(2016):
77-85,
https://doi.org/10.1016/j.physbeh.2016.07.002.
6
Valentina Vengeliene, Ainhoa Bilbao e Rainer Spanagel, “The Alcohol
Deprivation Effect Model for Studying Relapse Behavior: A Comparison
between Rats and Mice”, Alcohol, 48, n. 3 (2014): 313-20,
https://doi.org/10.1016/j.alcohol.2014.03.002.
▸ Capítulo 5: Espaço, tempo e
significado
1
A primeira vez em que me deparei com o termo autocomprometimento
foi neste artigo de Sally Satel e Scott O. Lilienfeld. Sally Satel e Scott O.
Lillienfeld, “Addiction and the Brain-Disease Fallacy”, Frontiers in
Psychiatry,
4
(março
de
2014):
1-11,
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2013.00141. Já era fã do trabalho de Satel
havia algum tempo, e ali estava ela usando autocomprometimento para
enfatizar “o amplo papel da atuação pessoal na perpetuação do ciclo de
uso e recaída”. Mas discordo da premissa básica deste artigo, que
argumenta que nossa capacidade para se autocomprometer refuta o
modelo de doença da adicção. Para mim, nossa necessidade de se
autocomprometer conversa com a forte atração da adicção e com as
mudanças cerebrais que a acompanham, consistentes com o modelo de
doença. O economista Thomas Schelling também aborda o conceito de
autocomprometimento, mas chama-o de “autogerenciamento” e
“autocomando”: “Self-Command in Practice, in Policy, and in a Theory of
Rational Choice”, American Economic Review, 74, n. 2 (1984): 1-11,
https://econpapers.repec.org/article/aeaaecrev/v_3a74_3ay_3a1984_3ai_3a
2_3ap_3a1-11.htm.
2
John David Sinclair, “Evidence about the Use of Naltrexone and for
Differente Ways of Using It in the Treatment of Alcoholism”, Alcohol and
Alcoholism, 36, n. 1 (2001): 2-10, https://doi.org/10.1093/alcalc/36.1.2.
3
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4
Jeffrey S. Chang, Jenn-Ren Hsiao e Che-Hong Chen, “ALDH2 Polymorphism
and Alcohol-Related Cancers in Asians: A Public Health Perspective”,
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5
Magdalena Plecka Östlund, Olof Backman, Richard Marsk, Dag Stockeld,
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Restrictive Bariatric Surgery”, JAMA Surgery, 148 n. 4 (2013): 374-77,
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6
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Methamphetamine Self-Administration Enhances Reinstatement of Drug
Seeking
and
Impairs
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7
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Nicotine Self-Administration Leads do Dependence: Circadian Mesures,
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https://doi.org/10.1124/jpet.106.105270.
8
Scott A. Chen, Laura E. O’Dell, Michael E. Hoefer, Thomas N. Greenwell,
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15
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16
Robert William Fogel, The Fourth Great Awakening and the Future of
Egalitarianism (Chicago: University of Chicago Press, 2000). Esses dados
sobre lazer e trabalho nos Estados Unidos vêm do livro de Fogel, uma
análise inspiradora da transformação econômica, social e espiritual nos
Estados Unidos nos últimos quatrocentos anos.
17
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19
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20
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21
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22
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1
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3
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7
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8
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15
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▸ Capítulo 7: Pressionando o lado do
sofrimento
1
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2
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3
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H. Katcher, Richard L. Solomon, Lucille H. Turner, Vincent LoLordo, J. Bruce
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to Signaled and Unsignaled Shocks: Effects of Cardiac Sympathectomy”,
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Motivation”, The American Economic Review, 68, n. 6 (1978): 12-24.
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5
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6
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7
James R. Cypser, Pat Tedesco e Thomas E. Johnson, “Hormesis and Aging
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8
Nadège Minois, “The Hormetic Effects of Hypergravity on Longevity and
Aging”, Dose-Response, 4, n. 2 (2006), https://doi.org/10.2203/doseresponse.05-008.minois. Quando li este estudo, imaginei passar de duas a
quatro semanas num Gravitron, no meu parque de diversões local, aquele
grande barril vertical que gira 33 rotações por minuto, criando um efeito
centrífugo equivalente a quase 3G antes que o chão suma. Considerando
que a média de vida da drosófila é de 50 dias, isto equivale a mais de 50
anos humanos no Gravitron. Coitadinhas!
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A oxitocina também provoca liberação de serotonina (5HT) no principal
destino da dopamina – o núcleo accumbens –, e essa liberação de
serotonina no nucleus accumbens é mais importante do que a liberação de
dopamina para o estímulo de comportamentos “pró-sociais”. No entanto,
provavelmente a simultânea liberação de dopamina é o que torna os
comportamentos pró-sociais potencialmente adictivos. Lin W. Hung, Sophie
Neuner, Jai S. Polepalli, Kevin T. Beier, Matthew Wright, Jessica J. Walsh,
Eastman M. Lewis e outros “Gating of Social Reward by Oxytocin in the
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▸ Capítulo 9: Vergonha pró-social
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