© by Éditions Gallimard, 1938 © 2015 da tradução by Rita Braga Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite. EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Rua Nova Jerusalém, 345 — Bonsucesso — 21042-235 Rio de Janeiro — RJ — Brasil Tel.: (21) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-8212/8313 CIP-Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S261n Sartre, Jean-Paul, 1905-1980 A náusea / Jean-Paul Sartre ; tradução Rita Braga. — [Ed. especial] — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2015. (Coleção 50 anos) Tradução de: La Nausée ISBN 978-85-209-2276-7 1. Romance francês. I. Braga, Rita. II. Título. III. Série. CDD: 843 CDU: 821.133.1-3 Ao Castor “É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo.” L.-F. Céline L’Église Nota dos editores Esses cadernos foram encontrados entre os papéis de Antoine Roquentin, e estão sendo publicados sem nenhuma alteração. A primeira página não está datada, mas temos boas razões para supor que ela antecede de algumas semanas o início do diário propriamente dito. Teria então sido escrita, o mais tardar, por volta do início de janeiro de 1932. Nessa época, Antoine Roquentin, após haver viajado pela Europa central, África do Norte e Extremo Oriente, tinha se fixado havia três anos em Bouville para aí concluir suas pesquisas históricas sobre o marquês de Rollebon. Folha sem data O melhor seria anotar os acontecimentos dia a dia. Manter um diário para que possam ser percebidos com clareza. Não deixar escapar as nuanças, os pequenos fatos, ainda quando pareçam insignificantes, e sobretudo classificá-los. É preciso que diga como vejo esta mesa, a rua, as pessoas, meu pacote de fumo, já que foi isso que mudou. É preciso determinar exatamente a extensão e a natureza desta mudança. Por exemplo, eis aqui um estojo de papelão que contém meu frasco de tinta. Seria preciso tentar dizer como o via antes e como atualmente eu o .[1] Pois bem, é um paralelepípedo retangular, destaca-se sobre — é tolo, não há o que dizer a respeito. É isso que tem que ser evitado; é preciso não colocar estranheza onde não existe nada. Creio que é esse o perigo, quando se faz um diário: exagera-se tudo, vive-se à espreita, força-se constantemente a verdade. Por outro lado, é certo que posso, de um momento para o outro — e precisamente em relação a este estojo ou a qualquer outro objeto —, reencontrar a impressão de anteontem. Tenho que estar sempre pronto; do contrário, ela mais uma vez me [2] escorregaria por entre os dedos. É preciso nada mas anotar cuidadosamente, e com a maior minúcia, tudo o que ocorre. Naturalmente, já não posso escrever nada de preciso sobre aquelas histórias de sábado e de anteontem, já estou muito distanciado delas; só posso dizer que, tanto num caso como no outro, não houve nada do que se chama comumente um acontecimento. Sábado, os meninos brincavam com pedras, fazendo-as ricochetear, e eu queria imitá-los e jogar uma no mar. Nesse momento, detive-me, deixei cair a pedra e fui embora. É provável que eu parecesse perdido, já que os meninos riram quando lhes dei as costas. É isso, quanto ao exterior. O que ocorreu em mim não deixou vestígios claros. Havia algo que vi e que me desagradou, mas já não sei se estava olhando para o mar ou para o seixo. O seixo era achatado, seco de um lado, úmido e lamacento do outro. Eu o segurava pelas bordas, com os dedos muito afastados, para não me sujar. Anteontem foi muito mais complicado. E houve também essa sequência de coincidências, de quiproquós que não consigo entender. Mas não vou me distrair colocando tudo isso no papel. Enfim, é certo que tive medo ou algum sentimento do gênero. Se pelo menos soubesse do que tive medo, já teria dado um grande passo. O curioso é que absolutamente não me sinto inclinado a me considerar louco e vejo até, com toda evidência, que não estou louco: todas essas mudanças dizem respeito aos objetos. Pelo menos é disso que gostaria de ter certeza. Dez e meia[3] É bem possível, afinal, que se trate de uma pequena crise de loucura. Já não há vestígios dela. Meus estranhos sentimentos da outra semana me parecem hoje bastante ridículos: já não me identifico com eles. Essa noite, estou muito à vontade, burguesmente instalado no mundo. Esse é meu quarto, virado para o nordeste. Embaixo, a rua dos Mutilés e o canteiro de obras da nova estação. De minha janela, na esquina do bulevar Victor-Noir, vejo a flâmula vermelha e branca do Rendez-vous des Cheminots. O trem de Paris acaba de chegar. As pessoas saem da antiga estação e espalham-se pelas ruas. Ouço passos e vozes. Muita gente espera o último bonde. Devem formar um grupinho triste em torno do lampião de gás, bem embaixo de minha janela. Ainda terão que esperar alguns minutos: o bonde não passa antes das 22h45. Tomara que não cheguem caixeiros-viajantes essa noite: desejo tanto dormir e estou com o sono tão atrasado!... Com uma noite bem-dormida, uma só, todas essas histórias seriam varridas de minha cabeça. Quinze para as onze: nada mais a temer, eles já teriam chegado, se fosse o caso. A não ser que seja o dia do senhor de Rouen. Vem todas as semanas, reservam-lhe o quarto nº 2, no primeiro andar, o que tem um bidê. Ainda pode chegar: muitas vezes toma um chope no Rendez-vous des Cheminots antes de ir se deitar. Aliás, ele não faz muito barulho. É baixinho e muito asseado, com bigodes pretos encerados e uma peruca. Aí está ele. Pois bem, quando o ouvi subindo a escada, meu coração bateu mais forte, tal a tranquilidade que isso me proporcionava: o que se pode temer num mundo tão regular? Creio que estou curado. E eis o bonde 7, Abattoirs-Grands Bassins. Chega com a barulheira de suas ferragens. Torna a partir. Agora, carregado de malas e de crianças adormecidas, desaparece na escuridão do leste, em direção aos Grands Bassins, em direção às fábricas. É o penúltimo bonde; o último passará dentro de uma hora. Vou me deitar. Estou curado, desisto de escrever minhas impressões dia a dia, como as meninas, num bonito caderno novo. Somente num caso poderia ser interessante fazer um diário: seria se[4] Diário Segunda-feira, 25 de janeiro de 1932 Alguma coisa me aconteceu, já não posso mais duvidar. Isso veio como uma doença, não como uma certeza comum, não como uma evidência. Instalou-se pouco a pouco, sorrateiramente: senti-me um pouco estranho, um pouco incomodado, e foi tudo. Uma vez no lugar, não mais se mexeu, ficou quieto e consegui me persuadir de que não tinha nada, de que era um alarme falso. E eis que agora a coisa se expande. Não creio que a profissão de historiador incite à análise psicológica. Em nosso trabalho só lidamos com sentimentos inteiros, aos quais damos nomes genéricos como Ambição, Interesse. No entanto, se tivesse um mínimo de conhecimento de mim mesmo, seria esse o momento de utilizá-lo. Em minhas mãos, por exemplo, há algo de novo, uma determinada maneira de segurar meu cachimbo ou meu garfo. Ou então é o garfo que tem agora uma determinada maneira de ser segurado, não sei. Ainda há pouco, quando ia entrando em meu quarto, parei de repente, porque sentia em minha mão um objeto frio que retinha minha atenção através de uma espécie de personalidade. Abri a mão, olhei: estava segurando apenas o trinco da porta. Esta manhã, na biblioteca, quando o Autodidata[5] veio me cumprimentar, levei dez segundos para reconhecê-lo. Via um rosto desconhecido, apenas um rosto. E depois havia sua mão, como um grande verme branco, em minha mão. Soltei-a logo e o braço descaiu frouxamente. Também nas ruas há uma quantidade de ruídos estranhos que persistem. Portanto, ocorreu uma mudança durante essas últimas semanas. Mas onde? É uma mudança abstrata que não se fixa em nada. Fui eu que mudei? Se não fui eu, então foi esse quarto, essa cidade, essa natureza; é preciso decidir. *** Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. A mais desagradável também. Mas enfim tenho que reconhecer que sou sujeito a essas transformações súbitas. O que acontece é que penso muito raramente; então, uma infinidade de pequenas metamorfoses se acumulam em mim, sem que eu me dê conta, e aí, um belo dia, ocorre uma verdadeira revolução. Foi isso que deu à minha vida esse aspecto vacilante, incoerente. Quando deixei a França, por exemplo, houve muita gente que disse que minha partida era uma decisão irrefletida. E quando retornei bruscamente, após seis anos de viagem, novamente isso poderia ter sido considerado uma decisão irrefletida. Ainda me revejo, como Mercier, no escritório desse funcionário francês que se demitiu no ano passado em consequência do caso Pétrou. Mercier dirigia-se a Bengala com uma missão arqueológica. Eu sempre desejei ir a Bengala, e ele insistia que eu fosse com ele. Atualmente me pergunto por quê. Creio que ele não confiava em Portal e contava comigo para mantê-lo sob vigilância. Não via nenhum motivo para recusar. E ainda que tivesse pressentido, na ocasião, esse pequeno conluio com relação a Portal, seria mais uma razão para aceitar com entusiasmo. Pois bem, fiquei paralisado, não conseguia dizer uma palavra. Olhava para uma pequena estatueta khmeriana sobre um pano verde, junto a um telefone. Parecia-me que eu estava cheio de linfa ou de leite morno. Mercier me dizia, com uma paciência angelical que disfarçava uma ponta de irritação: — Tenho necessidade de uma definição oficial, não é? Sei que vai terminar dizendo que sim: seria melhor que aceitasse imediatamente. Ele tem uma barba preto-arruivada, muito perfumada. A cada movimento de sua cabeça, eu respirava uma onda de perfume. E depois, de repente, despertei de um sono de seis anos. A estátua me pareceu desagradável e estúpida, e senti que me entediava profundamente. Não conseguia entender por que estava na Indochina. O que fazia ali? Por que falava com aquelas pessoas? Por que estava vestido de maneira tão estranha? Minha paixão morrera. Durante anos, ela me submergira e me arrastara; agora, me sentia vazio. Mas isso não era o pior: diante de mim, instalada com uma espécie de indolência, havia uma ideia volumosa e insípida. Não sei bem o que era, mas não podia encará-la, de tal modo me repugnava. Tudo isso se confundia para mim com o perfume da barba de Mercier. Recompus-me, extremamente indignado com ele, respondi secamente: — Agradeço-lhe, mas creio que já viajei bastante: agora tenho que retornar à França. Dois dias depois tomava o navio para Marselha. Se não estou equivocado, se todos os indícios que se acumulam são precursores de uma nova reviravolta em minha vida, então tenho medo. Não que minha vida seja rica, nem preciosa. Mas sinto medo do que vai nascer, se apoderar de mim — e me arrastar para onde? Terei que partir novamente ou abandonar minhas pesquisas, meu livro? Despertarei, dentro de alguns meses, dentro de alguns anos, alquebrado, decepcionado, em meio a novas ruínas? Gostaria de me entender com exatidão antes que seja tarde demais. Terça-feira, 26 de janeiro Nada de novo. Trabalhei de nove à uma na biblioteca. Organizei o capítulo XII e tudo o que diz respeito à estada de Rollebon na Rússia, até a morte de Paulo I. É trabalho terminado: só terei que retomá-lo quando for passar a limpo. É uma e meia. Estou no café Mably comendo um sanduíche, tudo está mais ou menos normal. Aliás, nos cafés, tudo está sempre normal, particularmente no Mably, por causa do gerente, o sr. Fasquelle, que traz estampada no rosto uma expressão velhaca muito positiva e alentadora. Está quase na hora de sua sesta, e seus olhos já estão avermelhados, mas continua a se movimentar com vivacidade e decisão. Passeia entre as mesas e se aproxima dos fregueses com ar confidencial: — Está a seu gosto, senhor? Sorrio ao vê-lo tão vivaz: nas horas em que seu estabelecimento se esvazia, também sua cabeça se esvazia. De duas às quatro o café fica deserto; então o sr. Fasquelle dá alguns passos, como que idiotizado, os garçons apagam as luzes e ele mergulha na inconsciência: quando fica sozinho, esse homem dorme. Há ainda uns vinte fregueses, celibatários, modestos engenheiros, empregados de escritórios. Almoçam rapidamente em pensões familiares que chamam de suas cantinas e, como têm necessidade de um pouco de luxo, vêm aqui após a refeição, tomam um café e jogam pôquer; fazem um pouco de barulho, um barulho inconsistente que não me incomoda. Também eles, para existir, precisam estar reunidos. Quanto a mim, vivo sozinho, inteiramente só. Nunca falo com ninguém; não recebo nada, não dou nada. O Autodidata não conta. É verdade que existe Françoise, a dona do Rendez-vous des Cheminots. Mas falo com ela? Algumas vezes, após o jantar, quando me serve um chope, pergunto-lhe: — Dispõe de tempo essa noite? Ela nunca diz não e eu a sigo até um dos quartos grandes do primeiro andar, que ela aluga por hora ou por dia. Não lhe pago: fazemos amor au pair.[6] Ela sente prazer (necessita de um homem por dia e tem muitos outros além de mim) e me purgo assim de certas melancolias cuja causa conheço muito bem. Mas raramente conversamos alguma coisa. Para quê? Cada um por si; a seus olhos, aliás, continuo sendo, antes de mais nada, um freguês do café. Ela me diz, enquanto tira o vestido: — Diga-me uma coisa, você conhece um aperitivo chamado Bricot? Porque dois clientes pediram isso essa semana. A menina não sabia o que era, veio me avisar. Eram caixeiros-viajantes, devem ter bebido em Paris. Mas não gosto de comprar sem saber. Se não se incomoda, vou ficar de meias. Em outras épocas — até muito tempo depois de ela ter me deixado — pensei por Anny. Atualmente já não penso mais por ninguém; nem sequer me preocupo em procurar palavras. Isso flui em mim, mais depressa ou mais devagar, não fixo nada, deixo correr. A maioria das vezes, por não se ligarem a palavras, meus pensamentos permanecem nebulosos. Desenham formas vagas e agradáveis, submergem: esqueço-os imediatamente. Esses jovens me maravilham: bebendo seu café, contam histórias inteligíveis e verossímeis. Se lhes perguntamos o que fizeram ontem, não se perturbam: informam-nos em duas palavras. No lugar deles, eu gaguejaria. É verdade que faz já muito tempo que ninguém se preocupa com o que faço. Quando se vive sozinho, já nem mesmo se sabe o que é narrar: a verossimilhança desaparece junto com os amigos. Também os acontecimentos deixamos correr; vemos surgir bruscamente pessoas que falam e que se vão, mergulhamos em histórias sem pé nem cabeça: seríamos testemunhas execráveis. Em compensação, não nos escapa tudo o que é inverossímil, tudo a que não dariam crédito nos cafés. Sábado, por exemplo, por volta das quatro da tarde, na ponta da calçada, sobre a passagem de tábuas do canteiro de obras da estação, uma mulherzinha vestida de azul-celeste corria de costas, rindo e sacudindo um lenço. Ao mesmo tempo um negro, com uma capa creme, sapatos amarelos e um chapéu verde, dobrava a esquina, assobiando. A mulher, sempre de costas, chocou-se com ele sob um lampião pendurado na paliçada e que é aceso à noite. Havia então ali, ao mesmo tempo, essa paliçada com forte cheiro de madeira molhada, esse lampião, essa mulherzinha loura nos braços de um negro, sob um céu flamejante. Se fôssemos quatro ou cinco, creio que teríamos notado o choque, todas essas cores suaves, o bonito casaco azul que parecia um edredom, a capa clara, os vidros vermelhos do lampião; teríamos rido da estupefação que se estampava naqueles dois rostos de criança. Raramente um homem sozinho sente vontade de rir: a cena toda assumiu para mim um sentido muito forte e até violento, mas puro. Depois se dissolveu; só ficaram o lampião, a paliçada e o céu: ainda era bastante bonito. Uma hora depois o lampião estava aceso, soprava o vento, o céu estava escuro: já não restava mais nada. Nada disso é novo; nunca rejeitei essas emoções inofensivas; ao contrário. Para experimentá-las, basta que se esteja um pouco sozinho, o suficiente para se livrar, no momento adequado, da verossimilhança. Mas eu me mantinha bem perto das pessoas, na superfície da solidão, decidido, em caso de alarme, a me refugiar em meio a elas: no fundo, até aqui, eu era um amador. Agora, em toda parte, há coisas como este copo de cerveja aqui em cima da mesa. Quando o vejo, tenho vontade de dizer: “Alto lá, estou fora do jogo.” Sei perfeitamente que fui longe demais. Creio que não se pode “dar um espaço” para a solidão. Isso não significa que olhe embaixo da cama antes de me deitar, ou que tema ver a porta de meu quarto se abrir bruscamente no meio da noite. Simplesmente, mesmo assim, me sinto intranquilo: faz uma meia hora que evito olhar para esse copo de cerveja. Olho para cima, para baixo, para a direita, para a esquerda: mas ele — o copo — não quero ver. E sei muito bem que todos os celibatários que me rodeiam não podem me ajudar: é tarde demais, já não posso me refugiar entre eles. Bateriam no meu ombro, dizendo: “Então, o que é que há com esse copo de cerveja? É igual aos outros. É bisotado, tem uma asa, um pequeno escudo com uma pá onde se lê Spatenbräu.” Sei de tudo isso. Mas sei que há outra coisa. Quase nada. Mas não posso mais explicar o que vejo. A ninguém. É isso: deslizo suavemente para o fundo da água, para o medo. Estou só, em meio a essas vozes alegres e sensatas. Todos esses sujeitos passam o tempo se explicando, reconhecendo com satisfação que têm as mesmas opiniões. Deus meu, que importância dão a pensar todos juntos as mesmas coisas! Basta ver a cara que fazem quando passa por eles um desses homens com olhos de peixe que parecem olhar para dentro e com os quais não é mais possível, de forma alguma, se conciliar. Quando eu tinha oito anos e brincava no Luxembourg, havia um desses que vinha se sentar numa guarita junto à grade que ladeia a rua Auguste-Comte. Não falava, mas de quando em quando estendia a perna e olhava para o pé com ar apavorado. Nesse pé usava uma botina e, no outro, um chinelo. O guarda disse a meu tio que se tratava de um ex-inspetor de colégio. Fora aposentado porque comparecera às salas de aula, para ler as notas trimestrais, usando traje de acadêmico. Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos que era um homem sozinho. Um dia sorriu para Robert, estendendo-lhe os braços de longe: Robert quase desmaiou. Não era o aspecto miserável do sujeito que nos assustava, nem o tumor que tinha no pescoço e que roçava a beira de seu colarinho: mas sentíamos que ele formava em sua cabeça pensamentos de caranguejo ou de lagosta. E o fato de que alguém pudesse formar pensamentos de lagosta a respeito da guarita, de nossos arcos, das moitas de arbustos, nos aterrorizava. É isso então o que me espera? Pela primeira vez me incomoda estar só. Gostaria de falar com alguém sobre o que está me acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a assustar os garotinhos. Gostaria que Anny estivesse aqui. É curioso: acabo de escrever dez páginas e não disse a verdade — pelo menos não toda a verdade. Quando escrevia, sob a data, “Nada de novo”, fazia-o com a consciência pesada: na verdade, uma pequena história, que não é nem vergonhosa nem extraordinária, se recusava a sair. “Nada de novo.” Admira-me como se pode mentir racionalizando. Evidentemente se pode dizer que não ocorreu nada de novo: às 8h15, quando saía do hotel Printania para me dirigir à biblioteca, quis — e não pude — apanhar um papel caído no chão. Isso é tudo e sequer é um acontecimento. Sim; mas, para dizer toda a verdade, foi algo que me impressionou profundamente: pensei que já não era livre. Na biblioteca, tentei sem êxito me desvencilhar dessa ideia. Quis fugir dela no café Mably. Esperava que se dissipasse sob as luzes. Mas ela permaneceu em mim, pesada e dolorosa. Foi ela que me ditou as páginas precedentes. Por que não a mencionei? Deve ter sido por orgulho e também um pouco por desazo. Não tenho o hábito de contar para mim mesmo o que me acontece e então me escapa um pouco a sucessão dos acontecimentos, não distingo o que é importante. Mas agora acabou: reli o que escrevi no café Mably e senti vergonha; não quero segredos, nem estados de alma, nem coisas indizíveis; não sou nem virgem nem padre para brincar de vida interior. Não há muito o que dizer: não pude pegar o papel, isso é tudo. Gosto muito de apanhar do chão castanhas, velhos farrapos, sobretudo papéis. Sinto prazer em pegá-los, fechá-los em minhas mãos; por pouco não os levo à boca, como as crianças fazem. Anny se enfurecia quando eu pegava por uma ponta papéis pesados e suntuosos, mas provavelmente sujos de merda. Durante o verão ou no início do outono encontram-se nos jardins pedaços de jornais crestados pelo sol, ressecados e quebradiços como folhas mortas, tão amarelos que se poderia imaginar que tivessem sido mergulhados em ácido pícrico. No inverno outras folhas de papel mostram-se pisadas, maceradas, maculadas: retornam à terra. Outras ainda, muito novas e até brilhantes, muito brancas, palpitantes, estão pousadas como cisnes, mas por baixo a terra já as agarra. Torcem-se, arrancam-se da lama, mas só para cair um pouco mais adiante, definitivamente. Tudo isso é bom de pegar. Às vezes simplesmente as apalpo olhando-as bem de perto; outras vezes rasgo-as para ouvir sua longa crepitação, ou então, se estão muito úmidas, ateio-lhes fogo, o que não é fácil; depois limpo as palmas das mãos cheias de lama numa parede ou num tronco de árvore. Então hoje estava olhando para as botas fulvas de um oficial de cavalaria que vinha saindo do quartel. Acompanhando-as com o olhar, vi um papel que jazia ao lado de uma poça. Pensei que o oficial fosse enterrar o papel na lama com seu salto, mas não: numa só passada ele ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-me: era uma página pautada, certamente arrancada de um caderno escolar. A chuva a encharcara e retorcera, estava coberta de bolhas e de tumefações como uma mão queimada. O traço vermelho da margem desbotara, transformando-se numa umidade cor-de-rosa; a tinta escorrera em alguns lugares. A parte de baixo da página estava coberta por uma crosta de lama. Abaixei-me, sentindo já a satisfação de tocar naquela massa tenra e fresca que se enrolaria em bolinhas cinzentas entre meus dedos... Não pude. Permaneci curvado por um instante, li: “Ditado: a coruja branca”; depois me ergui, as mãos vazias. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero. Os objetos não deveriam tocar, já que não vivem. Utilizamo-los, colocamo-los em seus lugares, vivemos no meio deles: são úteis e nada mais. E a mim eles tocam — é insuportável. Tenho medo de entrar em contato com eles exatamente como se fossem animais vivos. Agora vejo; lembro-me melhor do que senti outro dia, junto ao mar, quando segurava aquela pedra. Era uma espécie de enjoo adocicado. Como era desagradável! E isso vinha da pedra, tenho certeza, passava da pedra para as minhas mãos. Sim, é isso, é exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos. Quinta-feira de manhã, na biblioteca Ainda agora, descendo a escada do hotel, ouvi Lucie fazendo pela centésima vez suas lamentações à patroa, enquanto encerava os degraus. A patroa falava com esforço e com frases curtas, porque ainda estava sem a sua dentadura; estava praticamente nua, de roupão rosa e babuchas. Lucie, como de hábito, estava suja; de quando em quando parava de esfregar e se endireitava sobre os joelhos para olhar para a patroa. Falava ininterruptamente, com ar sensato. — Preferia mil vezes que ele fosse mulherengo — dizia ela. — Isso me seria indiferente, desde que não lhe fizesse mal. Falava do marido: beirando os quarenta anos, essa mulher trigueira pescou, com suas economias, um rapagão, ajustador de peças nas fábricas Lecointe. É infeliz no casamento. O marido não bate nela, não a engana: bebe, volta para casa embriagado todas as noites. Está mal de saúde; em três meses vi-o amarelecer e definhar. Lucie pensa que é a bebida. Acho que está tuberculoso. — É preciso reagir — dizia Lucie. Tenho certeza de que isso a está corroendo, mas lenta, pacientemente: ela reage, não consegue nem se consolar, nem se entregar à sua infelicidade. Pensa nela um pouquinho de vez em quando, só um pouquinho, tira proveito dela. Sobretudo quando está com alguém, porque as pessoas a consolam e também porque o fato de falar a respeito, num tom ponderado, como quem dá conselhos, a alivia um pouco. Quando está sozinha nos quartos, ouço-a cantarolar para se impedir de pensar. Mas passa o dia todo morosa, fica logo cansada e emburrada. — É aqui — diz tocando na garganta, como se tivesse um nó. — Não desce. Sofre com avareza. Também deve ser avara em relação a seus prazeres. Pergunto-me se algumas vezes não deseja se libertar dessa dor monótona, desses resmungos que recomeçam tão logo para de cantar, se não deseja sofrer muito de uma vez por todas, se afogar no desespero. Mas, de qualquer maneira, não poderia fazêlo: está atada. Quinta-feira à tarde “O sr. de Rollebon era muito feio. A rainha Maria Antonieta chamava-o habitualmente de sua ‘querida macaquinha’. No entanto, ele possuía todas as mulheres da corte, e não por bufonear como Voisenon, o macaco: por um magnetismo que levava suas belas conquistas aos piores extremos da paixão. É maquinador, tem um papel bastante suspeito no caso do Colar e desaparece em 1790, depois de ter mantido um intercâmbio regular com MirabeauTonneau e Nerciat. Tornamos a encontrá-lo na Rússia, onde é um pouco responsável pelo assassinato de Paulo I, e de lá viaja para os países mais longínquos, para a Índia, para a China, para o Turquestão. Trafica, conspira, espiona. Em 1813 retorna a Paris. Em 1816 torna-se todo-poderoso: é o único confidente da duquesa de Angoulême. Essa velha caprichosa, obcecada por terríveis recordações de infância, tranquiliza-se e sorri quando o vê. Graças a ela Rollebon manda e desmanda na corte. Em março de 1820 ele desposa a srta. de Roquelaure, que tem 18 anos e é muito bonita. O sr. de Rollebon tem setenta; está no auge das honrarias, no apogeu da vida. Sete meses depois, acusado de traição, é preso, jogado numa masmorra, onde morre após cinco anos de cativeiro, sem que seu processo tenha sido instruído.” Reli com melancolia essa nota de Germain Berger.[7] Foi através dessas poucas linhas que vim a conhecer o sr. de Rollebon. Como me pareceu sedutor, e como gostei dele logo, só por essas poucas palavras! É por causa dele, desse homenzinho, que estou aqui. Quando voltei de viagem, poderia perfeitamente ter me instalado em Paris ou Marselha. Mas a maioria dos documentos referentes às longas permanências do marquês na França está na biblioteca municipal de Bouville. Rollebon era castelão de Marommes. Antes da guerra, ainda havia nesse burgo um descendente seu, um arquiteto chamado Rollebon-Campouyré e que, quando morreu, em 1912, deixou um importante legado para a biblioteca de Bouville: cartas do marquês, um fragmento de diário, papéis de toda espécie. Ainda não examinei tudo. Estou contente por haver encontrado essas notas. Faz dez anos que não as relia. Parece-me que minha caligrafia mudou: escrevia com letra mais apertada. Como gostei do sr. de Rollebon naquele ano! Lembro-me de uma noite — uma noite de terça-feira: tinha trabalhado o dia inteiro na biblioteca Mazarine; acabava de perceber, por sua correspondência de 1789-1790, a maneira magistral pela qual ele lograra Nerciat. Era de noite, eu descia a avenida do Maine e, na esquina da rua da Gaîté, comprei castanhas. Sentia-me feliz! Ria sozinho pensando na cara que Nerciat devia ter feito quando retornou da Alemanha. A figura do marquês é como essa tinta: esmaeceu desde que me ocupo dela. Em primeiro lugar, a partir de 1801 já não entendo seu comportamento. Não é por falta de documentos: cartas, fragmentos de memórias, relatórios secretos, arquivos de polícia. Ao contrário, tenho quase excesso disso. O que falta em todos esses testemunhos é firmeza, consistência. Eles não se contradizem, mas também não se conciliam; não parecem se referir à mesma pessoa. E no entanto os outros historiadores trabalham com informações do mesmo tipo. Como fazem? Serei mais escrupuloso ou menos inteligente? Aliás, colocada assim, a pergunta não me perturba. No fundo, o que procuro? Não tenho ideia. Durante muito tempo o homem Rollebon me interessou mais do que o livro por escrever. Mas agora o homem... o homem começa a me entediar. Estou preso ao livro, sinto uma necessidade cada vez mais intensa de escrevê-lo — à medida que envelheço, diriam. Evidentemente, é admissível que Rollebon tenha participado ativamente do assassinato de Paulo I, que a seguir tenha aceitado uma missão de alta espionagem no Oriente para o czar e que tenha traído constantemente Alexandre em benefício de Napoleão. Pode ao mesmo tempo ter mantido uma correspondência ativa com o conde de Artois e passado a ele informações pouco importantes, para convencê-lo de sua fidelidade: nada disso é inverossímil; na mesma época, Fouché representava uma comédia muito mais complexa e perigosa. Talvez o marquês fizesse por conta própria o tráfico de fuzis com os principados asiáticos. Muito bem: ele pode ter feito tudo isso, mas não há provas: começo a achar que nunca se pode provar nada. Trata-se de hipóteses honestas que explicam os fatos: mas sinto tão claramente que provêm de mim, que são simplesmente uma maneira de unificar meus conhecimentos!... Não vem lampejo algum da parte de Rollebon. Lentos, preguiçosos, enfadonhos, os fatos se acomodam ao rigor da ordem que quero lhes dar, mas lhes permanecem exteriores. Tenho a impressão de estar fazendo um trabalho puramente imaginativo. Além do mais, estou convencido de que personagens de romance pareceriam mais verdadeiros. Seriam pelo menos mais agradáveis. Sexta-feira Três horas. Três horas é sempre muito tarde ou muito cedo para o que se quer fazer. Um momento da tarde bastante peculiar. Hoje está intolerável. Um sol frio clareia a poeira das vidraças. Céu pálido, mesclado de branco. De manhã os córregos estavam congelados. Estou digerindo pesadamente, perto do calefator; sei de antemão que será um dia perdido. Não farei nada de bom, a não ser talvez ao cair da noite. É por causa do sol; ele doura vagamente umas brumas brancas sujas, suspensas no ar, por cima do canteiro de obras; penetra no meu quarto, muito louro, muito pálido, espalhando em minha mesa quatro reflexos baços e falsos. Meu cachimbo é revestido de um verniz dourado que de início atrai o olhar por uma aparência de alegria: quando se olha para ele, o verniz se desfaz e fica apenas um grande rastro esmaecido sobre um pedaço de madeira. E é tudo assim — tudo —, até minhas mãos. Quando faz um sol desses, o melhor seria ir me deitar. Mas dormi como uma pedra a noite passada e estou sem sono. Agradava-me tanto o céu de ontem, um céu estreito, negro de chuva, que se encostava nas vidraças como um rosto ridículo e comovente. O sol de hoje não é ridículo, muito pelo contrário. Sobre todas as coisas que amo, sobre a sucata do canteiro de obras, sobre as tábuas apodrecidas da paliçada, cai uma luz avara e moderada, semelhante ao olhar que damos, após uma noite sem dormir, às decisões tomadas no entusiasmo da véspera, às páginas que escrevemos sem rasuras e de um só fôlego. Os quatro cafés do bulevar Victor-Noir que resplandecem durante a noite lado a lado e que são muito mais do que cafés — aquários, navios, estrelas ou grandes olhos brancos — perderam sua graça ambígua. Um dia perfeito para a introspecção: essas frias claridades que o sol projeta, como um julgamento sem indulgência, sobre as criaturas, entram-me pelos olhos; estou iluminado por dentro por uma luz empobrecedora. Tenho certeza de que bastariam 15 minutos para que atingisse a suprema repugnância de mim mesmo. Muito obrigado. Não estou interessado nisso. Também não relerei o que escrevi ontem sobre a estada de Rollebon em São Petersburgo. Permaneço sentado, balançando os braços, ou então escrevo sem entusiasmo algumas palavras, bocejo, espero o cair da noite. Quando estiver escuro, os objetos e eu sairemos do limbo. Rollebon participou ou não do assassinato de Paulo I? É essa a pergunta do dia: cheguei a ela e não posso prosseguir sem ter decidido. Segundo Tcherkoff, ele era pago pelo conde Pahlen. A maioria dos conspiradores, diz Tcherkoff, se teria contentado em depor o czar e prendê-lo. (Alexandre, efetivamente, parece ter sido partidário dessa solução.) Mas Pahlen teria querido acabar de vez com Paulo. O sr. de Rollebon teria sido encarregado de pressionar individualmente os conspiradores para que se decidissem pelo assassinato. “Foi visitar cada um deles e fez, com força incomparável, uma representação da cena que ocorreria. Dessa maneira provocou ou desenvolveu neles a psicose do assassinato.” Mas não confio em Tcherkoff. Não é uma testemunha sensata, é um mago sádico e um semilouco: transforma tudo em demoníaco. Absolutamente não vejo o sr. de Rollebon nesse papel melodramático. Teria representado a cena do assassinato? Ora vamos! É um homem frio, normalmente não empolga: não faz ver, insinua; e seu método, pálido e sem cor, só pode ter êxito com homens de sua espécie, conspiradores sensíveis a ponderações, políticos. “Adhémar de Rollebon”, escreve a sra. de Charrières, “não representava quando falava, não fazia gestos, não mudava de entonação. Conservava os olhos semicerrados e mal se podia surpreender entre seus cílios a orla das pupilas cinzentas. Faz poucos anos que ouso confessar a mim mesma que ele me entediava ao extremo. Falava um pouco como o abade Mably escrevia”. E foi esse homem que, por seu talento para representar... Mas então como cativava as mulheres? E há também a história curiosa que Ségur relata e que me parece verdadeira: “Em 1787, num albergue perto de Moulins, estava à morte um velho, amigo de Diderot, formado pelos filósofos. Os padres das redondezas estavam extenuados: tinham tentado de tudo, inutilmente; o homenzinho se recusava a receber os últimos sacramentos, era panteísta. O sr. de Rollebon, que passava por ali e não acreditava em nada, apostou com o pároco de Moulins que não precisaria nem de duas horas para converter o doente aos sentimentos cristãos. O pároco aceitou a aposta e perdeu: entregue a ele às três da manhã, o doente se confessou às cinco e morreu às sete. ‘É tão forte assim na arte da argumentação?’, perguntou o pároco. ‘É melhor do que os nossos!’ O sr. de Rollebon respondeu: ‘Não argumentei: fiz com que sentisse medo do inferno.’” Mas terá ele tomado ou não parte ativa no assassinato? Aquela noite, por volta das oito horas, um oficial amigo seu acompanhou-o até a porta de casa. Se tornou a sair, como pôde atravessar São Petersburgo sem ser incomodado? Paulo, meio enlouquecido, ordenara que a partir das nove horas da noite fossem presos todos os transeuntes, exceto as parteiras e os médicos. Haveria que acreditar na lenda absurda segundo a qual Rollebon teria tido que se disfarçar de parteira para chegar até o palácio? Afinal, era capaz disso. De qualquer maneira, não estava em casa na noite do assassinato, isso parece provado. Alexandre devia suspeitar muito dele, já que um dos primeiros atos de seu reinado foi afastar o marquês sob o vago pretexto de uma missão no Extremo Oriente. O sr. de Rollebon me enfada. Levanto-me. Mexo-me sob essa luz pálida; vejo-a mudar em minhas mãos e nas mangas de meu casaco: é indizível a que ponto ela me desagrada. Bocejo. Acendo a lâmpada sobre a mesa: talvez a sua claridade possa combater a do dia. Mas não: a lâmpada faz apenas uma poça lamentável em torno de sua base. Apago-a; levanto-me. Na parede há um buraco branco, o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela. Aí está. A coisa cinzenta acaba de aparecer no espelho. Aproximo-me e olho para ela: já não posso mais ir. É o reflexo de meu rosto. Muitas vezes, nesses dias perdidos, fico a contemplá-lo. Não entendo nada desse rosto. Os dos outros têm um sentido. O meu, não. Sequer consigo decidir se é bonito ou feio. Acho que é feio, porque me disseram. Mas isso não me impressiona. No fundo, até me choca que se possam atribuir a ele qualidades desse gênero, como se chamassem de bonito ou feio um pedaço de terra ou um bloco de rocha. Ainda assim, há uma coisa que dá prazer ver, por cima das regiões flácidas das faces, por cima da testa: é a bela chama vermelha que doura meu crânio: são meus cabelos. Isso sim é agradável de olhar. É uma cor nítida pelo menos: gosto de ser ruivo. Está aí no espelho, faz-se ver, brilha. Ainda tenho sorte: se minha testa carregasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não conseguem se decidir entre o castanho e o louro, meu rosto se perderia no vago, me deixaria tonto. Meu olhar desce lentamente, com tédio, para essa testa, para essas faces: não encontra nada de firme, encalha. Evidentemente há um nariz, olhos, uma boca, mas nada disso tem sentido, nem mesmo expressão humana. No entanto, Anny e Vélines achavam que eu tinha um ar vivaz; é possível que eu esteja excessivamente habituado ao meu rosto. Quando era pequeno, minha tia Bigeois me dizia: “Se você se olhar demais no espelho, vai acabar vendo um macaco.” Devo ter me olhado ainda mais tempo: o que vejo está muito abaixo do macaco, na fronteira do mundo vegetal, no nível dos pólipos. Não digo que não tenha vida; mas não era a esse tipo de vida que Anny se referia: vejo uns leves estremecimentos, vejo uma carne insípida que se expande e palpita com abandono. Sobretudo os olhos, assim de muito perto, são horríveis. São algo vítreo, mole, cego, margeado de vermelho; pareceriam escamas de peixe. Apoio-me com todo meu peso no rebordo de faiança, aproximo meu rosto do espelho até encostar nele. Os olhos, o nariz e a boca desaparecem: não resta mais nada de humano. Rugas amarronzadas de cada lado da tumescência febril dos lábios, gretas, montículos. Uma penugem sedosa e branca cobre os grandes declives das faces, dois pelos saem das narinas: é um mapa geológico em relevo. E, apesar de tudo, esse mundo lunar me é familiar. Não posso dizer que reconheço seus detalhes. Mas o conjunto me deixa uma impressão de coisa já vista que me entorpece: mergulho suavemente no sono. Gostaria de recuperar o controle: uma sensação viva e abrupta me libertaria. Espalmo a mão esquerda em minha face, puxo a pele; faço uma careta para mim mesmo. Toda uma metade de meu rosto cede, a metade esquerda da boca se torce e aumenta de volume, deixando aparecer um dente, a órbita se abre sobre um globo branco, sobre uma carne rosa e sanguinolenta. Não é o que eu procurava: nada de forte, nada de novo; uma coisa suave, imprecisa, já vista. Vou adormecendo de olhos abertos; já o rosto cresce, cresce no espelho, é um imenso halo pálido que desliza na luz... O que me acorda bruscamente é o fato de perder o equilíbrio. Estou escarranchado numa cadeira, ainda estonteado. Será que os outros homens têm tanta dificuldade em avaliar seus rostos? Parece-me que vejo o meu como sinto o corpo, por uma sensação surda e orgânica. Mas e os outros? Rollebon, por exemplo? Adormecê-lo-ia também o fato de olhar nos espelhos o que a sra. de Genlis chama de “o seu rostinho enrugado, asseado, marcado de varíola, onde havia uma malícia singular, que saltava aos olhos, por mais esforço que fizesse para dissimulá-la. O marquês”, acrescenta ela, “cuidava muito de seu penteado e nunca o vi sem peruca. Mas as faces eram de um azul que puxava para o preto, porque a barba era espessa e ele gostava de se barbear pessoalmente, coisa que fazia muito mal. Tinha o hábito de se pintar com alvaiade à moda de Grimm. O sr. de Dangeville dizia que ele parecia, com todo esse branco e todo esse azul, um queijo Roquefort”. Acho que devia ser uma pessoa bem divertida. Mas afinal não era essa a impressão que ele dava à sra. de Charrières. Creio que ela o achava bastante apagado. Talvez seja impossível compreender o próprio rosto. Ou talvez seja porque sou um homem sozinho? As pessoas que vivem em sociedade aprenderam a se ver nos espelhos tal como aparecem a seus amigos. Não tenho amigos: será por isso que minha carne é tão nua? Dir-se-ia — sim, dir-se-ia a natureza sem os homens. Não sinto mais vontade de trabalhar; não posso fazer mais nada, a não ser esperar a noite. Cinco e meia As coisas não vão bem! Não vão bem de modo algum: estou com ela, com a sujeira, com a Náusea. E dessa vez é diferente: me veio num café. Até agora os cafés eram meu único refúgio, porque estão cheios de gente e são bem iluminados: já não haverá nem isso; quando me sentir encurralado em meu quarto, já não saberei aonde ir. Vinha para trepar, mas mal empurrara a porta e Madeleine, a empregada, gritou: — A patroa não está, foi à cidade fazer compras. Senti uma viva decepção no meu sexo, uma titilação longa e desagradável. Ao mesmo tempo sentia a camisa roçando em meus mamilos, e era envolto, tomado por um lento turbilhão colorido, um turbilhão de névoa, de luzes na fumaça, nos espelhos, com os bancos que brilhavam ao fundo, e não via nem por que aquilo estava ali, nem por que era assim. Estava no umbral da porta, hesitante, e depois houve um remoinho, passou uma sombra no teto e me senti empurrado para a frente. Flutuava atordoado pelas brumas luminosas que me penetravam de todos os lados ao mesmo tempo. Madeleine veio flutuando para tirar meu sobretudo e notei que puxara os cabelos para trás e colocara brincos: eu não a reconhecia. Olhava suas faces, que se estiravam cada vez mais em direção às orelhas. Sob as maçãs do rosto havia duas manchas cor-de-rosa isoladas que pareciam se entediar naquela carne pobre. As faces se estiravam, se estiravam em direção às orelhas, e Madeleine sorria. — O que vai tomar, sr. Antoine? Então fui acometido pela Náusea, me deixei cair no banco, já nem sabia onde estava; via as cores girando lentamente em torno de mim, sentia vontade de vomitar. E é isso: a partir daí a Náusea não me deixou, se apossou de mim. Paguei. Madeleine levou meu pires. Meu copo esmaga contra o mármore uma poça de cerveja amarela onde flutua uma bolha. O banco está quebrado no lugar em que me sentei e, para não escorregar, sou obrigado a apoiar com força as solas de meus sapatos no chão; faz frio. À direita, algumas pessoas jogam cartas sobre um pano de lã. Não as vi ao entrar; senti apenas que havia um pacote morno, meio sobre o banco, meio sobre a mesa do fundo, com pares de braços que se agitavam. Depois disso Madeleine trouxe-lhes os baralhos, o pano e as fichas numa tigela de madeira. São três ou cinco, não sei, não tenho coragem de olhálos. Estou como uma mola quebrada: posso mover os olhos, mas não a cabeça. A cabeça está mole, elástica: parece apenas pousada em meu pescoço; se a giro, deixo-a cair. Ainda assim, ouço uma respiração curta e vejo de quando em quando, com o canto do olho, um clarão rubro coberto de pelos brancos. É uma mão. Quando a patroa sai para as compras, é seu primo que a substitui no balcão. Chama-se Adolphe. Comecei a olhá-lo ao me sentar e continuei a fazê-lo, porque não podia virar a cabeça. Está em mangas de camisa, com suspensórios cor de malva; arregaçou as mangas da camisa até acima do cotovelo. Quase não se veem os suspensórios sobre a camisa azul, estão apagados, perdidos no azul, mas trata-se de uma humildade falsa: na verdade, não passam despercebidos, me irritam por sua obstinação de carneiros, como se, destinados a serem roxos, tivessem parado no meio do caminho sem abandonar suas pretensões. Dá vontade de lhes dizer: “Façam isso, tornem-se roxos, e assunto encerrado.” Mas não, eles permanecem em suspenso, obstinados em seu esforço incompleto. Às vezes o azul que os envolve os recobre inteiramente: fico um momento sem vê-los. Mas é apenas uma onda: logo o azul esmaece aqui e ali, e vejo reaparecer ilhotas de uma cor de malva hesitante, que aumentam de tamanho, se juntam e reconstituem os suspensórios. O primo Adolphe não tem olhos: suas pálpebras empapuçadas e levantadas deixam ver apenas um pouco do branco do olho. Sorri com ar sonolento; de quando em quando se sacode, gane e se agita um pouco, como um cachorro que sonha. Sua camisa de algodão azul sobressai alegremente contra a parede cor de chocolate. Também isso me dá a Náusea. Ou antes, é a Náusea. A Náusea não está em mim: sinto-a ali na parede, nos suspensórios, por todo lado ao redor de mim. Ela forma um todo com o café: sou eu que estou nela. À minha direita, o pacote morno começa a fazer barulho, agita seus pares de braços. “Pronto, aí está seu trunfo. — Qual é o trunfo?” Grande espinha preta curvada sobre o jogo: “Ha, ha! — O quê? Aí está o trunfo, ele acaba de jogá-lo. — Não sei, não vi... — Sim, agora, acabo de jogar o trunfo. — Ah, bem, então o trunfo é copas.” Cantarola: “Trunfo de copas, trunfo de copas.” Falando: “Como, senhor? Como? A vaza é minha!” Novamente o silêncio — o gosto de açúcar do ar no fundo da boca. Os odores. Os suspensórios. O primo se levantou, deu alguns passos, colocou as mãos atrás das costas, sorri, levanta a cabeça e se inclina para trás, na ponta dos calcanhares. Nessa posição ele dorme. Está ali, oscilando, sempre sorrindo, as bochechas tremendo. Vai cair. Inclina-se para trás, inclina-se, inclina-se, o rosto inteiramente virado para o teto; depois, no momento de cair, segura-se destramente na beira do balcão e recupera o equilíbrio. Em seguida, tudo se repete. Estou farto, chamo a garçonete: — Madeleine, ponha uma música no gramofone, por favor. Sabe, aquela de que eu gosto: “Some of these days.” — Sim, mas talvez incomode esses senhores; esses senhores não gostam de música quando estão jogando. Ah! Vou perguntar a eles. Faço um grande esforço e viro a cabeça. São quatro. Ela se debruça sobre um velho rubro que usa um lornhão com aro preto na ponta do nariz. Ele esconde seu jogo contra o peito e me olha por baixo das lentes. — À vontade, senhor. Sorrisos. Seus dentes são podres. A mão vermelha não é dele, mas do vizinho, um sujeito de bigode preto. Esse sujeito de bigode tem narinas imensas, que poderiam sorver ar para toda uma família e que lhe cobrem a metade do rosto, mas, apesar disso, ele respira pela boca, ofegando um pouco. Há também com eles um rapaz com cara de cachorro. Não consigo distinguir o quarto parceiro. As cartas rodopiam ao cair sobre o pano de lã. Depois, mãos cobertas de anéis as recolhem, arranhando o pano com suas unhas. As mãos formam manchas brancas sobre o pano, parecem poeirentas e inchadas. Continuam a cair outras cartas. As mãos vão e vêm. Que ocupação estranha: não parece um jogo, nem um rito, nem um hábito. Acho que fazem isso simplesmente para encher o tempo. Mas o tempo é muito longo, não se deixa encher. Tudo o que mergulha nele amolece e se estira. Por exemplo, esse gesto da mão vermelha que recolhe as cartas vacilando: é inteiramente frouxo. Seria preciso descosê-lo e cortar por dentro para reduzi-lo. Madeleine gira a manivela do gramofone. Espero que não tenha se enganado, que não tenha colocado, como no outro dia, a grande ária da Cavalleria Rusticana. Não, está certo, reconheço a melodia já nos primeiros compassos. É um antigo ragtime com estribilho cantado. Ouvi os soldados americanos assobiando-o em 1917, nas ruas de La Rochelle. Deve ser de antes da guerra. Mas a gravação é bem mais recente. Mesmo assim, é o disco mais antigo da coleção, um disco Pathé para agulha de safra. Logo virá o estribilho: é dele que mais gosto, e da maneira abrupta pela qual se lança como um penhasco para o mar. No momento é o jazz que toca; não há melodia, apenas notas, uma miríade de curtas sacudidelas. Elas não param, uma ordem inflexível as origina e as destrói, sem nunca permitir que se recomponham, que existam por si. Elas correm, se apressam, de passagem me dão um golpe seco e se obliteram. Gostaria muito de retê-las, mas sei que, se conseguisse deter uma, só me ficaria entre os dedos um som apagado e vulgar. Tenho que aceitar sua morte; tenho até que desejar essa morte: conheço poucas impressões mais ásperas ou mais fortes. Começo a me reanimar, a me sentir feliz. Ainda não é nada de extraordinário, é uma pequena felicidade de Náusea: ela se espalha no fundo da poça viscosa, no fundo de nosso tempo — o tempo dos suspensórios cor de malva e dos bancos quebrados —, é feita de instantes amplos e frouxos, que se alastram pelas bordas como uma mancha de azeite. Mal nasceu e já parece velha, tenho a impressão de conhecê-la há vinte anos. Há uma outra felicidade: fora há essa faixa de aço, a curta duração da música que atravessa nosso tempo de um lado ao outro, e o recusa e o dilacera com suas pontas secas e aguçadas; há um outro tempo. — O sr. Randu joga copas, você coloca o ás. A voz se insinua e desaparece. Nada morde a faixa de aço, nem a porta que se abre, nem a lufada de ar frio que passa por meus joelhos, nem a chegada do veterinário com sua neta: a música penetra essas formas vagas e as atravessa. Mal se sentou, a menina foi tomada por ela: fica rígida, os olhos totalmente abertos; escuta, esfregando o punho na mesa. Mais alguns segundos e a negra vai cantar. Isso parece inevitável, tão forte é a necessidade dessa música: nada pode interrompê-la, nada que venha desse tempo no qual o mundo despencou; ela cessará por si mesma no momento exato. Se amo essa bela voz é sobretudo por isso: não é nem por seu volume, nem por sua tristeza; é porque ela é o acontecimento que tantas notas prepararam, de tão longe, morrendo para que ela possa nascer. E no entanto estou intranquilo; bastaria muito pouco para que o disco parasse: uma mola que se quebrasse, um capricho do primo Adolphe. Como é estranho, como é comovente que essa rigidez seja tão frágil. Nada pode interrompê-la e tudo pode aniquilá-la. Extinguiu-se o último acorde. No breve silêncio que segue, sinto intensamente que houve algo, que alguma coisa aconteceu. Silêncio. Some of these days You’ll miss me honey! O que acaba de ocorrer é que a Náusea desapareceu. Quando a voz se elevou no silêncio, senti meu corpo se enrijecer e a Náusea se dissipou. Bruscamente: era quase doloroso se tornar assim todo rijo e rutilante. Ao mesmo tempo a duração da música se dilatava, se inflava como uma tromba. Enchia a sala com sua transparência metálica, esmagando contra as paredes nosso tempo miserável. Estou na música. Nos espelhos rolam globos de fogo; anéis de fumaça os cercam e giram, encobrindo e descobrindo o sorriso duro da luz. Meu copo de cerveja encolheu, se comprime sobre a mesa: sua aparência é densa, indispensável. Quero pegá-lo e sentir seu peso, estendo a mão... Meu Deus! Foi sobretudo isso que mudou: meus gestos. Esse movimento do meu braço se desenvolveu como um tema majestoso, deslizou ao longo do canto da negra; pareceume que estava dançando. O rosto de Adolphe está ali contra a parede chocolate; dá impressão de estar muito perto. No momento em que minha mão se fechava, vi sua cara; ela tinha a evidência, a necessidade de uma conclusão. Aperto meus dedos em torno do copo, olho para Adolphe: estou feliz. — Aí está! Uma voz se destaca de um rumor ao fundo. É meu vizinho que fala, o velho rubicundo. Suas faces formam uma mancha violeta no couro marrom do banco. Bate com uma carta na mesa. O ás de ouros. Mas o rapaz com cara de cachorro sorri. O jogador rubicundo, curvado sobre a mesa, espreita-o sorrateiramente, pronto para dar o bote. — Aí está! A mão do rapaz sai da sombra, plana um momento, branca, indolente, depois desce de súbito, como um milhafre, e pressiona uma carta contra o pano. O gordo rubicundo dá um salto: — Merda! Ele está cortando. A silhueta do rei de copas aparece entre os dedos crispados, depois é virada de cabeça para baixo e o jogo continua. Belo rei, vindo de tão longe, preparado por tantas combinações, por tantos gestos extintos. Ei-lo que desaparece por sua vez, para que nasçam outras combinações e outros gestos, ataques, réplicas, reviravoltas da sorte, uma quantidade de pequenas aventuras. Estou emocionado, sinto meu corpo como uma máquina de precisão em repouso. Posso dizer que tive verdadeiras aventuras. Não recordo detalhe nenhum, mas percebo o encadeamento rigoroso das circunstâncias. Atravessei os mares, deixei cidades para trás e subi rios, ou então me embrenhei em florestas, e sempre me dirigia a outras cidades. Tive mulheres, me meti em brigas; e nunca podia voltar atrás, da mesma maneira que um disco não pode girar ao contrário. E tudo isso me levava aonde? A esse minuto, a esse banco, a essa bolha de claridade zoante de música. And when you leave me Sim, eu que em Roma gostava tanto de me sentar às margens do Tibre; em Barcelona, à noite, de descer e subir cem vezes as Ramblas; eu que perto de Angkor, na ilhota do Baray de Prah-Kan, vi um baniano entrelaçar suas raízes em torno da capela dos nagas, estou aqui, vivo no mesmo segundo que esses jogadores, ouço uma negra cantar enquanto lá fora ronda a noite frágil. O disco parou. A noite entrou, melíflua, hesitante. Não se vê, mas está presente, encobre as luzes; respira-se no ar algo de espesso: é ela. Faz frio. Um dos jogadores empurra as cartas em desordem para um outro que as junta. Uma ficou de fora. Será que não a verão? É o nove de copas. Finalmente alguém a pega e a dá ao rapaz com cara de cachorro. — Ah! É o nove de copas! Bom, vou embora. O velho violáceo se inclina sobre uma folha de papel, chupando a ponta de um lápis. Madeleine o fita com um olhar claro e vazio. O rapaz vira e revira o nove de copas entre seus dedos. Meu Deus! Levanto-me com dificuldade; no espelho, por cima da cabeça do veterinário, vejo deslizar um rosto inumano. Daqui a pouco irei ao cinema. O ar me faz bem: não tem o gosto de açúcar nem o odor vinoso do vermute. Mas, Santo Deus, como faz frio. São sete e meia, estou sem fome, e o cinema só começa às nove: que farei? Tenho que caminhar rápido, para me esquentar. Hesito: o bulevar atrás de mim leva ao coração da cidade, aos grandes endereços famosos das ruas centrais, ao Palácio Paramount, ao Imperial, aos Grands Magasins Jahan. Nada disso me tenta: é a hora do aperitivo; as coisas vivas, os cachorros, os homens, todas as massas moles que se movem espontaneamente, nesse momento me fartam. Viro à esquerda, me enfio ali naquele buraco na extremidade da fileira dos lampiões de gás: vou seguir pelo bulevar Noir até a avenida Galvani. Sopra um vento glacial desse buraco: só há ali pedras e terra. As pedras são duras e não se movem. Há um trecho de caminho desagradável: na calçada da direita, uma massa gasosa, acinzentada, com rastos de fogo, faz um ruído semelhante ao de uma concha: é a antiga estação. Sua presença fecundou os cem primeiros metros do bulevar Noir — desde o bulevar da Redoute até a rua Paradis —, fez com que nascesse ali uma dezena de lampiões e, lado a lado, quatro cafés, o Rendezvous des Cheminots e três outros, que languescem o dia inteiro, mas que à noite se iluminam e projetam retângulos luminosos sobre o calçamento. Ainda tomo três banhos de luz amarela, vejo sair da mercearia-armarinho Rabache uma velha que coloca seu fichu na cabeça e se põe a correr: agora terminou. Estou na beira da calçada da rua Paradis, junto ao último lampião. A faixa de betume se interrompe de chofre. Do outro lado da rua tudo é escuridão e lama. Atravesso a rua Paradis. Enfio o pé direito numa poça d’água, minha meia se encharca; aqui começa o passeio. Não se mora nessa região do bulevar Noir. O clima é muito ingrato, o solo, muito árido para que a vida se fixe e se desenvolva nele. As três serrarias dos Irmãos Soleil (os Irmãos Soleil ofereceram a abóbada de lambris da igreja de Santa Cecília do Mar, que custou cem mil francos) abrem-se, a oeste, com todas as portas e todas as janelas, para a tranquila rua Jeanne-Berthe-Coeuroy, que invadem com o rom-rom de suas máquinas. No bulevar Victor-Noir as três dão as costas, que se encontram com paredões. Essas construções acompanham a calçada da esquerda por uns quatrocentos metros: nenhuma janela, sequer uma lucarna. Dessa vez meti os dois pés na água. Atravesso a rua: na outra calçada, um único lampião, como um farol numa ponta extrema de terra, ilumina uma paliçada desconjuntada, desmantelada em alguns lugares. Pedaços de cartazes ainda aderem às tábuas. Um belo rosto, cheio de ódio, faz careta sobre um fundo verde, rasgado em forma de estrela; sob seu nariz alguém desenhou uns bigodes de pontas retorcidas. Em outro fragmento ainda se pode decifrar a palavra purâtre, em caracteres brancos, da qual caem gotas vermelhas, talvez gotas de sangue. É possível que o rosto e a palavra tenham feito parte do mesmo cartaz. Agora o cartaz está lacerado, os laços simples e intencionais que os uniam desapareceram, mas uma outra unidade se estabeleceu por si mesma entre a boca retorcida, as gotas de sangue, as letras brancas, a desinência âtre; tem-se a impressão de que uma paixão criminosa e sem tréguas procura se exprimir através desses sinais misteriosos. Por entre as tábuas podem-se ver brilhar as luzes da via férrea. Uma parede comprida dá continuação à paliçada. Uma parede sem aberturas, sem portas, sem janelas, que se interrompe duzentos metros adiante, junto a uma casa. Ultrapassei o campo de ação do lampião; penetro no buraco escuro. Vendo minha sombra a meus pés se fundir nas trevas, tenho a impressão de estar mergulhando numa água gelada. À minha frente, bem no fundo, através de camadas de negrume, distingo um palor cor-de-rosa: é a avenida Galvani. Volto-me; por trás do lampião, muito ao longe, há uma vaga claridade: é a estação com os quatro cafés. Atrás de mim, à minha frente, há pessoas que bebem e jogam cartas nas brasseries. Aqui só há o negrume. O vento me traz intermitentemente uma campainha solitária que vem de longe. Os ruídos familiares, o ronco dos carros, os gritos, os latidos pouco se afastam do calor das ruas iluminadas. Mas essa campainha atravessa as trevas e chega até aqui: é mais dura, menos humana do que os outros ruídos. Paro para ouvi-la. Sinto frio, as orelhas me doem; devem estar vermelhas. Mas eu me sinto puro; estou tomado pela pureza que me cerca; nada vive; o vento sopra, linhas rígidas fogem na noite. O bulevar Noir não parece indecente como as ruas burguesas que seduzem os transeuntes. Ninguém se deu ao trabalho de enfeitá-lo: é apenas um reverso. O reverso da rua Jeanne-Berthe-Coeuroy, da avenida Galvani. Nas redondezas da estação, os habitantes de Bouville ainda cuidam um pouco dele; limpam-no de quando em quando, por causa dos viajantes. Mas logo depois o abandonam, e ele corre reto, cegamente, para ir esbarrar na avenida Galvani. A cidade o esqueceu. Às vezes um grande caminhão cor de terra o atravessa a toda velocidade, fazendo um barulho de trovoada. Aqui sequer se assassina, por falta de vítimas e de assassinos. O bulevar Noir nada tem de humano. É como um mineral. Como um triângulo. É uma sorte que exista um bulevar como esse em Bouville. Normalmente só os encontramos nas capitais, em Berlim, para os lados de Neukölln ou também de Friedrichshain — em Londres, atrás de Greenwich. Corredores retos e sujos, em plena corrente de ar, com amplas calçadas sem árvores. Situam-se quase sempre fora do perímetro urbano, nesses bairros estranhos onde se fabricam as cidades, perto das estações de cargas, das estações de bondes, dos matadouros, dos gasômetros. Dois dias após um aguaceiro, quando a cidade toda está úmida sob o sol, e irradia um calor também úmido, eles ainda estão frios, conservam sua lama e suas poças. Há até poças d’água que nunca secam, a não ser um mês por ano, em agosto. A Náusea ficou lá, na luz amarela. Estou feliz: esse frio é tão puro, tão pura essa noite; não sou eu mesmo uma onda de ar gelado? Não ter sangue, nem linfa, nem carne. Correr por esse longo canal em direção àquele palor. Não ser senão frio. Aí vem gente. Duas sombras. Que necessidade tinham de vir aqui? É uma mulherzinha que puxa um homem pela manga. Fala numa voz rápida e diminuta. Não entendo o que diz, por causa do vento. — Vai calar a boca? — diz o homem. Ela continua a falar. Bruscamente ele a empurra. Eles se olham, hesitantes, depois o homem enfia as mãos nos bolsos e vai embora sem se voltar. O homem desapareceu. Apenas três metros me separam agora da mulher. Subitamente sons roucos e graves a dilaceram, arrancam-se dela e invadem a rua toda com uma violência extraordinária: — Charles, por favor, sabe o que eu te disse? Charles, volta, não aguento mais, estou muito infeliz! Passo tão perto dela que poderia tocá-la. É... mas como acreditar que essa carne em fogo, esse rosto que irradia sofrimento?... No entanto reconheço o fichu, o casaco e o grande sinal vermelho que tem na mão direita; é ela, Lucie, a faxineira. Não ouso lhe oferecer ajuda, mas é preciso que ela possa solicitá-la se necessitar: passo lentamente em frente a ela, fitando-a. Seus olhos se fixam em mim, mas ela não parece me ver; dá a impressão de estar perdida em seu sofrimento. Dou alguns passos. Volto-me... Sim, é ela, é Lucie. Mas transfigurada, fora de si, sofrendo com louca generosidade. Invejo-a. Ali está ela, muito aprumada, os braços abertos como se à espera dos estigmas; abre a boca, sufoca. Tenho a impressão de que as paredes, de cada lado da rua, aumentaram de tamanho, se aproximando umas das outras, e de que ela está no fundo de um poço. Aguardo alguns instantes: tenho medo de que caia dura: é muito frágil para suportar essa dor insólita. Mas ela não se move, parece mineralizada como tudo o que a rodeia. Por um instante me pergunto se não me equivoquei a seu respeito, se não é sua verdadeira natureza que subitamente me é revelada... Lucie solta um pequeno gemido. Leva a mão à garganta, os olhos arregalados numa expressão de espanto. Não, não é em si própria que encontra forças para sofrer tanto. Isso lhe vem do exterior... é esse bulevar. Seria preciso tomá-la pelos ombros, levála para as luzes, para o meio das pessoas, para as ruas suaves e rosadas: lá não se pode sofrer tão intensamente; ela afrouxaria, recuperaria seu ar positivo e o nível usual de seus sofrimentos. Viro-lhe as costas. Afinal ela tem sorte. Quanto a mim, há três anos que estou excessivamente calmo. Já nada posso receber dessas solidões trágicas, a não ser um pouco de pureza inútil. Voume embora. Quinta-feira, onze e meia Trabalhei durante duas horas na sala de leitura. Desci ao pátio das Hipotecas para fumar um cachimbo. Praça calçada de pedras corde-rosa. Os habitantes de Bouville orgulham-se dela porque data do século XVIII. Na entrada da rua Chamade e da rua Suspédard velhas correntes impedem o acesso de carros. As senhoras de preto que vêm passear seus cachorros deslizam sob as arcadas, rente às paredes. Raramente avançam até a plena claridade, mas de soslaio dirigem olhares de mocinhas, furtivos e satisfeitos, à estátua de Gustave Impétraz. Não devem saber o nome desse gigante de bronze, mas percebem, por sua sobrecasaca e sua cartola, que foi alguém da alta sociedade. Ele segura o chapéu com a mão esquerda e está com a mão direita pousada sobre uma pilha de infólios, é um pouco como se seus avós estivessem ali, sobre esse soclo, moldados em bronze. Elas não têm necessidade de olhá-lo por muito tempo para compreender que ele pensava como elas, exatamente como elas, sobre todos os assuntos. Ele colocou sua autoridade e a imensa erudição adquirida nos in-fólios, que sua mão pesada comprime, a serviço das estreitas e sólidas ideiazinhas delas. As senhoras de preto se sentem aliviadas, podem se dedicar tranquilamente aos cuidados da casa, passear seus cachorros: já não têm a responsabilidade de defender as santas ideias, as boas ideias que seus pais lhes legaram; um homem de bronze se tornou o guardião delas. A Grande enciclopédia consagra algumas linhas a esse personagem; li-as no ano passado. Pousara o volume no parapeito de uma janela; através da vidraça podia ver o crânio verde de Impétraz. Fiquei sabendo que ele florescia por volta de 1890. Era inspetor de academia. Pintava frivolidades com requinte e escreveu três livros: De la popularité chez les grecs anciens (1887), La pédagogie de Rollin (1891) e um testamento poético, em 1899. Morreu em 1902, pranteado por seus subordinados e pelas pessoas de bom gosto. Encostei-me na fachada da biblioteca. Aspiro meu cachimbo que ameaça apagar. Vejo uma velha senhora saindo timidamente da galeria de arcadas e fitando Impétraz com ar sutil e obstinado. De repente toma coragem, atravessa o pátio o mais depressa que pode e para um momento em frente à estátua, movendo as mandíbulas. Depois vai embora, uma mancha preta sobre o calçamento rosa, e desaparece numa fenda da parede. Talvez essa praça tenha sido alegre por volta de 1800, com suas pedras cor-de-rosa e suas casas. Atualmente tem algo de seco e de mau, uma ponta discreta de horror. Isso vem desse sujeito lá em cima, sobre seu soclo. Ao modelarem esse universitário em bronze, transformaram-no num feiticeiro. Olho de frente para Impétraz. Não tem olhos, quase nada de nariz, uma barba devastada por essa lepra estranha que às vezes ataca, como uma epidemia, todas as estátuas de um bairro. Ele está cumprimentando; em seu colete, no lugar do coração, há uma grande mancha verde-clara. Sua aparência é doentia e má. Não está vivo, mas também não está inanimado. Emana dele uma força surda; é como um vento que me empurra: Impétraz gostaria de me expulsar do pátio das Hipotecas. Não irei antes de ter terminado esse cachimbo. Uma grande sombra magra surge bruscamente atrás de mim. Tenho um sobressalto. — Desculpe, senhor, não queria incomodá-lo. Vi que seus lábios se mexiam. Certamente estava repetindo frases de seu livro — dá um riso. — O senhor estava em busca dos alexandrinos. Olho estupefato para o Autodidata. Mas ele parece surpreso com minha surpresa. — Não é verdade, senhor, que os alexandrinos devem ser cuidadosamente evitados na prosa? Baixei ligeiramente em sua estima. Pergunto-lhe o que faz aqui a essa hora. Ele me explica que o patrão lhe deu folga e que veio diretamente para a biblioteca; que não vai almoçar, que vai ler até a hora de fechar. Já não o ouço, mas ele deve ter se desviado de seu tema inicial, porque escuto de repente: — ... ter como o senhor a felicidade de escrever um livro. Preciso dizer alguma coisa. — Felicidade... — repito com ar de dúvida. Ele interpreta erroneamente o sentido de minha resposta e corrige rapidamente: — Senhor, o que eu queria dizer é mérito. Subimos a escada. Não sinto vontade de trabalhar. Alguém deixou Eugénie Grandet sobre a mesa, o livro está aberto na página 27. Pego-o maquinalmente, começo a ler a página 27, depois a 28: não tenho ânimo para começar do início. O Autodidata se dirigiu para as prateleiras da parede com passo rápido; traz dois volumes que coloca sobre a mesa com ar de um cachorro que encontrou um osso. — O que está lendo? Parece que reluta em me dizer: hesita um pouco, gira os olhos esgazeados, depois me estende os livros com ar constrangido. São La tourbe et les tourbières, de Larbalétrier, e Hitopadésa ou l’instruction utile, de Lastex. E então? Não vejo o que o perturba: essas leituras me parecem bastante decentes. Por desencargo de consciência, folheio Hitopadésa e só vejo nele coisas elevadas. Três horas Abandonei Eugénie Grandet. Pus-me a trabalhar, mas sem entusiasmo. O Autodidata, que vê que estou escrevendo, me observa com uma concupiscência respeitosa. De quando em quando ergo um pouco a cabeça, vejo o imenso colarinho de onde sai seu pescoço de frango. Sua roupa está puída, mas a camisa é de uma brancura impecável. Acaba de pegar outro volume, na mesma prateleira, e consigo decifrar o título às avessas: La flèche de Caudebec, crônica normanda, de Julie Lavergne. As leituras do Autodidata sempre me desconcertam. De repente voltam à minha memória os nomes dos últimos autores cujas obras consultou: Lambert, Langlois, Larbalétrier, Lastex, Lavergne. É uma iluminação; entendi o método do Autodidata: instrui-se por ordem alfabética. Contemplo-o com uma espécie de admiração. Que vontade precisa ter para realizar lentamente, obstinadamente, um plano de envergadura tão vasta! Um dia, faz sete anos (ele me disse que estudava havia sete anos), entrou com grande pompa nesta sala. Percorreu com o olhar os inúmeros livros que cobrem as paredes e deve ter dito, mais ou menos como Rastignac: “Agora nós, Ciência Humana.” Depois foi pegar o primeiro livro, da primeira prateleira da extrema direita; abriu-o na primeira página, com um sentimento de respeito e terror, acompanhado de uma decisão inquebrantável. Atualmente está na letra L. K depois do J, L depois do K. Passou brutalmente do estudo dos coleópteros para o da teoria dos quanta, de uma obra sobre Tamerlão a um panfleto católico contra o darwinismo: em momento algum se desconcertou. Leu tudo; armazenou em sua cabeça a metade do que se sabe sobre a partenogênese, a metade dos argumentos contra a vivissecção. Atrás dele, diante dele, há um universo. E se aproxima o dia em que dirá, fechando o último volume da última prateleira da extrema esquerda: “E agora?” É a hora de seu lanche; come, com ar cândido, pão e uma barra de Gala Peter. Baixou as pálpebras e assim posso contemplar à vontade seus belos cílios recurvos — cílios de mulher. Exala um cheiro de tabaco velho, ao qual se mescla, quando expira, o perfume doce do chocolate. Sexta-feira, três horas Mais um pouco e eu caía na armadilha do espelho. Evito-o, mas é para cair na armadilha da vidraça: ocioso, balançando os braços, me aproximo da janela. O Canteiro de Obras, a Paliçada, a Estação Velha — a Estação Velha, a Paliçada, o Canteiro de Obras. Bocejo com tanta força que me vem uma lágrima aos olhos. Seguro meu cachimbo com a mão direita e o pacote de fumo com a mão esquerda. Teria que encher esse cachimbo. Mas não tenho ânimo de fazê-lo. Meus braços pendem, apoio a testa na vidraça. Aquela velha ali me irrita. Caminha a passos curtos, com obstinação, o olhar perdido. Às vezes para com ar assustado, como se um perigo invisível a tivesse tocado de leve. Ei-la sob minha janela; o vento gruda sua saia nos joelhos. Ela para, compõe o fichu. As mãos tremem. Recomeça a andar: agora vejo-a de costas. Velho bichode-conta! Imagino que vai dobrar à direita no bulevar Noir. Tem que percorrer ainda uns cem metros: no passo em que vai, levará bem uns dez minutos para isso, dez minutos durante os quais ficarei assim como estou, a olhá-la, a testa colada na vidraça. Ela vai parar vinte vezes, recomeçar a andar, parar... Vejo o futuro. Está ali, pousado na rua, um nadinha mais pálido do que o presente. Que necessidade tem de se realizar? Que vantagem lhe trará isso? A velha se afasta coxeando, para, ajeita uma mecha grisalha que escapou do fichu. Caminha, estava ali, agora está aqui... já me perdi: será que vejo seus gestos ou os prevejo? Já não distingo o presente do futuro e no entanto isso tem uma duração, realiza-se pouco a pouco; a velha avança na rua deserta; desloca seus sapatões de homem. É isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que vem lentamente à existência, que se faz esperar e, quando chega, nos sentimos enfastiados porque percebemos que já estava ali havia muito tempo. A velha se aproxima da esquina da rua, já é apenas um montinho de panos pretos. Pois bem, sim, admito, isso é novo: ela não estava ali ainda agora. Mas é um novo embaciado, sem viço, que nunca pode surpreender. Ela vai dobrar a esquina da rua, dobra — durante uma eternidade. Afasto-me da janela e percorro o quarto vacilante; fico preso no espelho, me olho, sinto repugnância: mais uma eternidade. Finalmente escapo à minha imagem e me atiro na cama. Olho para o teto; gostaria de dormir. Calmo. Calmo. Já não sinto o deslizar, o roçar do tempo. Vejo imagens no teto. Primeiro, círculos de luz, depois cruzes. Tudo isso borboleteia. Depois eis que se forma uma outra imagem; essa é no fundo de meus olhos. É um grande animal ajoelhado. Vejo suas patas da frente e sua albarda. O resto está impreciso. No entanto reconheço-o perfeitamente: é um camelo que vi em Marrakech, amarrado a uma pedra. Ajoelhara-se e levantara-se seis vezes seguidas; meninos riam e o excitavam com suas vozes. Há dois anos era maravilhoso: bastava-me fechar os olhos e imediatamente minha cabeça zumbia como uma colmeia; revia rostos, árvores, casas, uma japonesa de Kamaishi que se lavava nua numa tina, um russo morto e vazado por um grande ferimento hiante, todo seu sangue num charco ao lado. Recapturava o gosto do cuscuz, o cheiro de azeite que invade as ruas de Burgos ao meio-dia, o cheiro de funcho que flutua nas de Tetuan, os assobios dos pastores gregos; tudo isso me emocionava. Faz muito tempo que essa alegria se extinguiu. Renascerá hoje? Em minha cabeça, um sol tórrido desliza rigidamente, como uma chapa de lanterna mágica. Acompanha-o um fragmento de céu azul; depois de algumas sacudidelas ele se imobiliza: fico todo dourado por dentro. De que dia marroquino (ou argelino? ou sírio?) esse brilho se destacou subitamente? Deixo-me resvalar no passado. Meknès? Como era mesmo aquele montanhês que nos assustou numa ruela, entre a mesquita Berdaine e aquela praça encantadora sombreada por uma amoreira? Veio para cima de nós, Anny estava à minha direita. Ou à minha esquerda? Esse sol e esse céu azul eram puro engodo. É a centésima vez que me deixo enganar. Minhas lembranças são como as moedas da bolsa do diabo: quando a abriram só encontraram folhas secas. Do montanhês vejo apenas um grande olho vazado, leitoso. Esse olho é realmente dele? Também o médico que me expunha, em Baku, o princípio dos abortadouros oficiais era zarolho e, quando quero me lembrar de seu rosto, o que surge é também um globo esbranquiçado. Esses dois homens, como as Nornas, têm apenas um olho que trocam entre si alternadamente. No que se refere a essa praça de Meknès, onde no entanto eu ia diariamente, as coisas são ainda mais simples: já não a vejo mais. Ficam-me a vaga sensação de que era encantadora e essas cinco palavras indissoluvelmente ligadas: uma praça encantadora de Meknès. Certamente, se fecho os olhos ou se fixo vagamente o teto, posso reconstituir a cena: uma árvore ao longe, uma forma escura e atarracada correndo em minha direção. Mas tudo isso são invenções a que recorro. O marroquino era alto e seco, aliás só o vi quando nos esbarramos. Assim ainda sei que era grande e seco: algumas percepções abreviadas permanecem em minha memória. Mas já não vejo nada mais: por mais que vasculhe meu passado, só extraio dele fragmentos de imagens e não sei muito bem o que representam, nem se são recordações ou ficções. Aliás, muitas vezes, esses próprios fragmentos desapareceram: só restam palavras; poderia ainda contar as histórias, contá-las muito bem (em matéria de anedota, ninguém me ganha, a não ser os oficiais de marinha e os profissionais), mas já não passam de carcaças. Referem-se a um sujeito que faz isso ou aquilo, mas não sou eu, não tenho nada em comum com ele. Ele passeia por países sobre os quais sei tanto quanto se nunca tivesse estado lá. Às vezes, em meus relatos, ocorre que pronuncie esses nomes bonitos que se leem nos atlas: Aranjuez ou Canterbury. Provocam em mim imagens totalmente novas como as que formam, a partir de suas leituras, pessoas que nunca viajaram: construo sonhos a partir de palavras, isso é tudo. Entre cem histórias mortas, ainda assim permanecem uma ou duas histórias vivas. Essas são evocadas por mim com precaução, algumas vezes, não com muita frequência, por medo de desgastá-las. Pesco uma, revejo seus personagens, o cenário, as atitudes. De repente paro: senti uma deterioração, vi apontar uma palavra sob a trama das sensações. Posso adivinhar que essa palavra em breve tomará o lugar de várias imagens que amo. Paro imediatamente, penso rápido em outra coisa; não quero fatigar minhas recordações. É inútil; da próxima vez que as evocar, boa parte delas se terá congelado. Esboço um vago movimento para me levantar, para ir buscar minhas fotografias de Meknès na caixa que coloquei embaixo de minha mesa. Para quê? Esses afrodisíacos já não surtem efeito em minha memória. Outro dia encontrei sob um mata-borrão uma pequena foto amarelada. Uma mulher sorria junto a um laguinho. Durante um momento contemplei essa pessoa, sem reconhecê-la. Depois li no verso: “Anny. Portsmouth, 7 de abril de 27.” Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser alguém sem dimensões secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos superficiais que sobem dele como bolhas. Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim mesmo. Estão batendo à porta. É o Autodidata: tinha me esquecido dele. Havia prometido lhe mostrar minhas fotografias de viagem. Que vá para o diabo. Senta-se numa cadeira; suas nádegas tensas se encostam no espaldar e seu busto teso se inclina para a frente. Salto da cama, acendo a luz: — Mas por quê, senhor? Estávamos bem assim. — Não para ver fotografias... Não sabe o que fazer do chapéu: tomo-o de suas mãos. — É verdade, senhor? Quer realmente mostrá-las a mim? — Mas é claro. É de caso pensado: espero que se conserve calado enquanto as estiver vendo. Enfio-me sob a mesa, empurro a caixa para seus sapatos de verniz, coloco sobre seus joelhos um monte de cartõespostais e de fotografias: Espanha e Marrocos espanhol. Mas vejo bem, por seu aspecto sorridente e aberto, que me enganei redondamente pensando que o manteria em silêncio. Dá uma olhada para uma vista de San Sebastián, tirada do monte Igueldo, coloca-a com precaução sobre a mesa e fica um momento em silêncio. Depois suspira: — Ah, senhor! O senhor tem sorte. Se é verdade o que dizem, não há melhor escola do que as viagens. Está de acordo? Faço um gesto vago. Felizmente ele não terminou. — Deve ser uma reviravolta tão grande! Se alguma vez fizesse uma viagem, acho que, antes de partir, gostaria de anotar os menores traços de meu caráter para poder comparar, ao regressar, o que era antes com aquilo em que me transformei. Li que há viajantes que mudaram tanto, física e moralmente, que ao retornarem seus parentes mais próximos não os reconheciam. Mexe distraidamente num grande pacote de fotografias. Pega uma e a coloca sobre a mesa sem olhá-la; depois fixa intensamente a foto seguinte, que representa um São Jerônimo esculpido num púlpito da catedral de Burgos. — O senhor viu o Cristo de pele de animal que está em Burgos? Há um livro muito curioso sobre essas estátuas de pele de animal e até de pele humana. E a Virgem negra? Não está em Burgos, está em Zaragoza. Mas talvez haja uma em Burgos? Os peregrinos a beijam, não é? Quero dizer: a de Zaragoza. E há uma marca de seu pé numa laje? Que fica num buraco? Para o qual as mães empurram os filhos? Muito teso, empurra com as duas mãos uma criança imaginária. Parece estar recusando os presentes de Artaxerxes. — Ah! Os costumes são... coisa curiosa, senhor. Um pouco esbaforido, aponta em minha direção sua grande mandíbula de burro. Cheira a fumo e a água parada. Os belos olhos esgazeados brilham como bolas de fogo e os cabelos ralos nimbam seu crânio de névoa. Sob esse crânio, samoiedos, fueginos, malgaxes, niansnians celebram as solenidades mais estranhas, comem seus velhos pais, seus filhos, rodopiam ao som do tantã até perderem os sentidos, se entregam ao frenesi do amok, queimam seus mortos, expõem-nos nos telhados, abandonam-nos na correnteza, numa barca iluminada por um archote, se acasalam ao azar, mãe e filho, pai e filha, irmão e irmã, se mutilam, se castram, distendem os lábios com pratos, esculpem no corpo animais monstruosos. — Pode-se dizer, como Pascal, que o hábito é uma segunda natureza? Pregou seus olhos pretos nos meus, implora uma resposta. — Isso depende — digo. Ele respira aliviado. — É o que eu pensava também. Mas confio tão pouco em mim mesmo; era preciso ter lido tudo. Mas delira com a fotografia seguinte. Solta um grito de alegria. — Segóvia! Segóvia! Já li um livro sobre Segóvia. Acrescenta com uma certa nobreza: — Senhor, já não me lembro do nome do autor. Às vezes tenho lapsos. N... No... Nod... — Impossível — digo-lhe com vivacidade. — O senhor só chegou a Lavergne... Imediatamente lamento minha frase; afinal ele nunca me falou sobre esse método de leitura, deve se tratar de um delírio secreto. De fato ele fica confuso e seus lábios grossos se estendem numa expressão de choro. Depois baixa a cabeça e olha uns dez cartõespostais sem dizer palavra. Mas, ao fim de trinta segundos, percebo que um forte entusiasmo o invade e que vai estourar se não falar: — Quando terminar minha instrução (faltam ainda seis anos para isso), me juntarei, se me permitirem, aos estudantes e professores que fazem um cruzeiro anual ao Oriente Médio. Gostaria de tornar alguns conhecimentos mais exatos — diz com unção — e adoraria também que me acontecessem coisas inesperadas, coisas novas, aventuras, para ser verdadeiro. Baixa a cabeça e adquire um ar maroto. — Que espécie de aventuras? — pergunto-lhe, espantado. — Todas as espécies, senhor. Tomar o trem errado. Descer numa cidade desconhecida. Perder a carteira, ser preso por equívoco, passar a noite na cadeia. Senhor, pensei que se podia definir a aventura: um acontecimento que sai do ordinário sem ser necessariamente extraordinário. Fala-se da magia das aventuras. Essa expressão lhe parece adequada? Gostaria de lhe fazer uma pergunta. — O que é? Enrubesce e sorri. — Talvez seja indiscreta... — Faça-a assim mesmo. Inclina-se para mim e pergunta com os olhos semicerrados: — O senhor teve muitas aventuras? — Algumas — respondo maquinalmente, me inclinando para trás para evitar seu bafo pestilento. Sim, disse isso maquinalmente, sem pensar. Na verdade, normalmente me sinto orgulhoso por haver tido tantas aventuras. Mas hoje, mal pronunciei essas palavras, sou tomado de uma grande indignação contra mim mesmo: parece-me que estou mentindo, que em minha vida inteira não tive a menor aventura, ou antes, que já nem sei o que significa essa palavra. Ao mesmo tempo pesa sobre mim aquele mesmo desalento que senti em Hanói, há quase quatro anos, quando Mercier insistia que o acompanhasse e eu fixava, sem responder, uma estatueta khmeriana. E a ideia está aqui, essa grande massa branca que tanto me repugnara então: faz quatro anos que não a revia. — Poderia lhe pedir... — diz o Autodidata. Deus meu! Quer que lhe conte uma dessas famosas aventuras. Mas não quero dizer nem mais uma palavra sobre o assunto. — Aqui — digo, inclinado sobre seus ombros estreitos e colocando o dedo numa fotografia —, aqui é Santillana, a cidadezinha mais bonita da Espanha. — A Santillana de Gil Bras? Não pensava que existisse. Ah, senhor, como sua conversa é proveitosa! Bem se vê que viajou. Despachei o Autodidata após haver entulhado seus bolsos de cartões-postais, gravuras e fotografias. Ele se foi encantado e apaguei a luz. Agora estou sozinho. Não inteiramente sozinho. Há ainda aquela ideia diante de mim, à espera. Enroscou-se, fica ali como um gato gordo; não explica nada, não se mexe e se contenta em dizer não. Não, não tive aventuras. Encho meu cachimbo, acendo-o, me deito na cama com um casaco sobre as pernas. O que espanta é o fato de me sentir tão triste e tão cansado. Ainda que seja verdade que eu nunca tenha tido aventuras, que importância teria isso? Em primeiro lugar parece-me que é puramente uma questão de palavras. Aquele caso de Meknès, por exemplo, no qual estava pensando ainda agora: um marroquino avançou para mim e quis me ferir com um grande canivete. Mas lhe dei um soco que o atingiu embaixo de uma têmpora... Então ele começou a gritar em árabe e apareceu um bando de piolhentos que nos perseguiu até o bazar Attarin. Muito bem, pode-se dar ao caso o nome que se quiser, mas, de qualquer maneira, foi um fato que me aconteceu. Está inteiramente escuro e já não sei bem se meu cachimbo está aceso. Passa um bonde: clarão vermelho no teto. Depois é um veículo pesado que estremece a casa. Devem ser seis horas. Não tive aventuras. Aconteceram-me histórias, fatos, incidentes, tudo o que se quiser. Mas não aventuras. Não é uma questão de palavras; começo a entender. Há algo que eu prezava mais do que todo o resto, sem perceber muito bem. Não era o amor, Deus meu, nem a glória, nem a riqueza. Era... Enfim eu imaginara que em determinados momentos minha vida podia assumir uma qualidade rara e preciosa. Não eram necessárias circunstâncias extraordinárias: tudo o que eu pedia era um pouco de rigor. Minha vida atual nada tem de muito brilhante: mas de quando em quando, por exemplo quando tocavam música nos cafés, eu evocava o passado e me dizia: em outras épocas, em Londres, em Meknès, em Tóquio, vivi momentos admiráveis, tive aventuras. É isso que agora tiram de mim. Acabo de descobrir, com brusquidão e sem razão aparente, que menti a mim mesmo durante dez anos. As aventuras estão nos livros. E, naturalmente, tudo o que se conta nos livros pode realmente acontecer, mas não da mesma maneira. Era essa forma de acontecer que era tão importante para mim, que eu prezava tanto. Teria sido preciso inicialmente que os começos fossem verdadeiros começos. Pobre de mim! Vejo tão claramente agora o que eu quis. Verdadeiros começos surgindo como um toque de clarim, como as primeiras notas de uma melodia de jazz, bruscamente cortando o tédio, fortalecendo a duração; essas noites, em meio a outras noites, sobre as quais se diz mais tarde: “Estava passeando, era uma noite de maio.” Estamos passeando, a lua acaba de surgir, estamos ociosos, disponíveis, um pouco vazios. E de repente pensamos: “Algo aconteceu.” Seja o que for: um estalido nas sombras, um vulto rápido que atravessa a rua. Mas esse acontecimento diminuto não é igual aos outros: percebemos imediatamente que ele antecede uma grande forma cujo desenho se perde na bruma e nos dizemos também: “Alguma coisa está começando.” Alguma coisa começa para terminar: a aventura não se deixa prolongar; só tem sentido através de sua morte. Para essa morte, que será talvez também a minha, sou arrastado inexoravelmente. Cada instante só surge para trazer os que se lhe seguem. Apegome a cada instante com todo o meu coração: sei que é único; insubstituível — e no entanto não faria um gesto para impedi-lo de se aniquilar. Esse último minuto que passo — em Berlim, em Londres — nos braços de uma mulher que conheci na antevéspera — minuto que amo apaixonadamente, mulher que estou perto de amar — vai terminar, eu sei. Dentro em pouco partirei para outro país. Não tornarei a encontrar essa mulher, nem essa noite, nunca mais. Debruço-me sobre cada segundo, tento esgotá-lo; nada se passa que eu não capte, que não fixe para sempre em mim, nada, nem a ternura fugaz desses belos olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade titubeante do amanhecer: e no entanto o minuto se esgota e não o retenho, gosto que passe. E depois, subitamente, algo se quebra. A aventura terminou, o tempo retoma sua languidez quotidiana. Viro-me; atrás de mim aquela forma melódica mergulha inteira no passado. Diminui, contrai-se ao declinar, agora o fim se confunde com o começo. Acompanhando com o olhar esse ponto dourado, penso que aceitaria — ainda que tivesse estado ameaçado de morte, ou tivesse perdido um amigo, uma fortuna — reviver tudo, nas mesmas circunstâncias, de cabo a rabo. Mas uma aventura não recomeça, nem se prolonga. Sim, é isso que eu queria — ai de mim! É isso que quero ainda. Sinto tanta felicidade quando uma negra canta: que pináculos não atingiria, se minha própria vida constituísse a matéria da melodia! A Ideia continua ali, a inominável. Espera tranquilamente. No momento parece estar dizendo: — “Sim? É isso que você queria? Pois bem, é precisamente isso que você nunca teve (lembre-se: você se iludia com palavras, chamava de aventura ouropéis de viagem, amores de prostitutas, brigas, quinquilharias) e não terá jamais — nem você nem ninguém.” Mas por quê? POR QUÊ? Sábado, meio-dia O Autodidata não me viu entrar na sala de leitura. Estava sentado bem na ponta da mesa do fundo; colocara um livro à sua frente, mas não lia. Olhava com um sorriso para o vizinho da direita, um colegial de aspecto sujo que vem com frequência à biblioteca. Este se deixou contemplar um momento; depois, subitamente, lhe mostrou a língua, fazendo uma careta horrível. O Autodidata enrubesceu, enfiou precipitadamente o nariz no livro e ficou absorto na leitura. Voltei às minhas reflexões de ontem. Estava inteiramente frio: era-me indiferente que não houvesse aventuras. Simplesmente estava curioso em saber se não poderia haver. Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse. Mas é preciso escolher: viver ou narrar. Por exemplo, quando estava em Hamburgo, com aquela tal de Erna que tinha medo de mim e em quem eu não confiava, levava uma existência extravagante. Mas eu estava dentro dessa existência, não pensava nisso. E depois, uma noite, num café de San Pauli, Erna me deixou um momento para ir ao toalete. Fiquei sozinho, havia um gramofone tocando “Blue sky”. Comecei a narrar para mim mesmo o que ocorrera depois de meu desembarque. Disse-me: “Na terceira noite, ao entrar num dancing chamado Grotte Bleu, minha atenção foi despertada por uma mulher grandalhona, meio bêbada. E é essa a mulher que estou aguardando nesse momento, a ouvir “Blue sky”, e que vai voltar a se sentar à minha direita e me enlaçar o pescoço com seus braços.” Senti então com violência que vivia uma aventura. Mas Erna retornou, se sentou ao meu lado, me enlaçou o pescoço com seus braços e detestei-a sem saber bem por quê. Agora compreendo: é porque era preciso recomeçar a viver e a impressão de aventura acabava de se dissipar. Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. De quando em quando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos — raramente — avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo. Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926. Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: “Era uma bela noite de outono de 1922. Eu era escrevente de tabelião em Marommes.” E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um começo. “Estava passeando, saíra do vilarejo sem perceber, pensava em meus problemas de dinheiro.” Essas frases, tomadas simplesmente pelo que são, significam que o sujeito estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma aventura, exatamente nesse tipo de estado de espírito em que se deixam passar os acontecimentos sem vê-los. Mas o fim, que transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras. E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede: “Era noite, a rua estava deserta.” As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caímos no logro e as deixamos de lado: é uma informação cujo valor compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não escolhia. Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo. Domingo Essa manhã esqueci que era domingo. Saí e andei pelas ruas como de hábito. Levara comigo Eugénie Grandet. Depois, subitamente, ao empurrar o portão de ferro do jardim público, tive a impressão de que alguma coisa me fazia sinal. O jardim estava deserto e nu. Mas... como dizer? Não tinha seu aspecto habitual, sorria para mim. Fiquei um momento apoiado na grade e depois, bruscamente, compreendi que era domingo. Isso se via nas árvores, na relva, como um leve sorriso. Era algo que não se podia descrever, seria preciso pronunciar muito depressa: “Trata-se de um jardim público no inverno, numa manhã de domingo.” Soltei a grade, voltei-me para as casas e as ruas burguesas e disse a meia-voz: “É domingo.” É domingo: por trás das docas, junto ao mar, perto da estação de cargas, em volta da cidade, há depósitos vazios e máquinas paradas na escuridão. Em todas as casas homens se barbeiam por trás das janelas; inclinam a cabeça para trás, olham ora o espelho, ora o céu frio para saber se fará bom tempo. Os bordéis recebem seus primeiros fregueses: camponeses e soldados. Nas igrejas, à luz das velas, um homem bebe vinho diante de mulheres ajoelhadas. Em todos os subúrbios, entre os muros intermináveis das fábricas, longas filas negras se puseram em movimento, avançam lentamente para o centro da cidade. Para recebê-las, as ruas assumiram seu aspecto dos dias de tumulto: todas as lojas, exceto as da rua Tournebride, baixaram suas portas de ferro. Dentro em pouco, em silêncio, as colunas negras invadirão essas ruas que se fingem de mortas: virão primeiro os ferroviários de Tourville e suas mulheres que trabalham nas saboarias de Saint-Symphorin, depois os pequeno-burgueses de Jouxtebouville, depois os operários das Fiações Pinot, depois todos os biscateiros do bairro de Saint-Maxence; os homens de Thiérache serão os últimos a chegar, no bonde das 11 horas. Dentro em pouco vai surgir a multidão dos domingos, entre lojas aferrolhadas e portas fechadas. Um relógio bate dez e meia e me ponho a caminho: aos domingos, a essa hora, há em Bouville um espetáculo digno de ver, mas é preciso não chegar muito depois da saída da missa cantada. A ruazinha Joséphine-Soulary está deserta e cheira a adega. Mas, como todos os domingos, está invadida por um ruído suntuoso, um ruído de marulho. Dobro na rua do PrésidentChamart, cujas casas têm três andares com longas persianas brancas. Essa rua de tabeliões está inteiramente tomada pelo rumor volumoso do domingo. Na galeria Gillet, o ruído aumenta ainda mais e posso reconhecê-lo: é um ruído que os homens fazem. Depois, de repente, à minha esquerda, há como que uma explosão de luzes e sons. Cheguei: eis aqui a rua Tournebride, só tenho que tomar lugar entre meus semelhantes para ver os senhores distintos trocando cumprimentos com seus chapéus. Há apenas sessenta anos ninguém se atreveria a prever o miraculoso destino da rua Tournebride, que os habitantes de Bouville chamam hoje de Pequeno Prado. Vi um mapa datado de 1847 no qual ela sequer figurava. Devia ser nessa época uma passagem estreita, escura e malcheirosa, com uma vala por onde corriam, entre as pedras do calçamento, cabeças e entranhas de peixes. Mas, no final de 1873, a Assembleia Nacional declarou de utilidade pública a construção de uma igreja sobre a colina de Montmartre. Poucos meses depois a mulher do prefeito de Bouville teve uma visão: santa Cecília, sua santa padroeira, de quem lhe vinha o nome de batismo, vinha recriminá-la. Era admissível que a elite tivesse que se enlamear todos os domingos para ir a Saint-Ré ou a Saint-Claudien ouvir a missa com os lojistas? A Assembleia Nacional não dera o exemplo? Bouville tinha agora, graças à proteção do Céu, uma situação econômica de primeira ordem; não convinha construir uma igreja para dar graças ao Senhor? Tais argumentos foram acolhidos: o Conselho Municipal reuniuse numa sessão histórica e o bispo concordou em receber subscrições. Faltava escolher o local. As velhas famílias de comerciantes e armadores eram de opinião que se erguesse o edifício no cume do Coteau Vert, onde moravam, “para que santa Cecília velasse por Bouville como o Sagrado Coração de Jesus por Paris”. Os novos-ricos do bulevar Maritime, ainda pouco numerosos, mas bastante opulentos, resistiram: dariam o que fosse preciso, mas a igreja seria construída na praça Marignan; se pagavam por uma igreja, achavam que deveriam poder utilizá-la; agradava-lhes mostrar sua força a essa burguesia altaneira que os tratava como arrivistas. O bispo arquitetou uma solução conciliatória: a igreja foi construída a meio caminho do Coteau Vert e do bulevar Maritime, na praça da Halle-aux-Morues, que foi batizada de praça Santa Cecília do Mar. Esse edifício monstruoso, que ficou pronto em 1887, não custou menos de 14 milhões. A rua Tournebride, larga, mas suja e mal-afamada, teve que ser inteiramente reconstruída, e seus moradores foram energicamente rechaçados para trás da praça Santa Cecília; o Pequeno Prado tornou-se — sobretudo nas manhãs de domingo — o ponto de encontro das pessoas importantes e elegantes. Uma a uma, bonitas lojas foram inauguradas com a chegada da elite. Permanecem abertas na Páscoa, na noite de Natal, em todos os domingos até o meio-dia. Ao lado de Julien, o charcuteiro, cujos patês são famosos, o doceiro Foulon exibe suas especialidades renomadas, admiráveis petits-fours cônicos, de manteiga cor de malva, recobertos por uma violeta de açúcar. Na vitrine da livraria Dupaty, estão expostas as novidades da editora Plon, alguns livros técnicos, tais como uma teoria do navio ou um tratado do velame, uma grande história ilustrada de Bouville e edições de luxo elegantemente dispostas: Kœnigsmark, encadernado em couro azul; Le livre de mes fils, de Paul Doumer, encadernado em couro bege com flores púrpuras. Ghislaine, “Alta costura, modelos parisienses”, separa Piégeois, o florista, do antiquário Paquin. O cabeleireiro Gustave, que emprega quatro manicures, ocupa o primeiro andar de um prédio novo pintado de amarelo. Há dois anos, na esquina do beco Moulins-Gémeaux com a rua Tournebride, uma lojinha impudente ainda exibia um anúncio do Tupu-nez, um produto inseticida. Ela florescera no tempo em que se ouviam os pregões de bacalhau na praça Santa Cecília, e era centenária. Os vidros da fachada raramente eram lavados: era preciso fazer um esforço para distinguir, através da poeira e do embaçado, uma quantidade de pequenas figuras de cera vestindo gibões cor de fogo, que representavam ratos e camundongos. Esses animais desembarcavam de um navio de alto bordo apoiados em bengalas; mal pisavam em terra e uma camponesa, graciosamente vestida, mas lívida e negra de sujeira, punha-os em fuga, aspergindo-lhes Tu-pu-nez. Eu gostava muito dessa loja, tinha um ar cínico e obstinado, lembrava com insolência os direitos dos vermes e da sujeira, a dois passos da igreja mais cara da França. A velha herborista morreu ano passado e seu sobrinho vendeu a casa. Bastou derrubar algumas paredes: agora é uma pequena sala de conferências, a Bonbonnière. No ano passado, Henry Bordeaux fez aí uma palestra sobre o alpinismo. Na rua Tournebride não se pode ter pressa: as famílias caminham lentamente. Às vezes se avança uma fileira, porque uma família inteira entrou na loja de Foulon ou na de Piégeois. Mas em outros momentos é preciso parar e marcar passo, porque duas famílias, pertencentes uma à coluna que sobe, outra à coluna que desce, se encontraram e se agarraram firmemente pelas mãos. Avanço a passos curtos. Sobrelevo-me às duas colunas e vejo chapéus, um mar de chapéus. A maioria deles é preta e rígida. De quando em quando um voa na ponta de um braço, deixando aparecer o brilho suave de um crânio; em seguida, após alguns instantes de um voo desajeitado, torna a pousar. No número 16 da rua Tournebride, o chapeleiro Urbain, especialista em quepes, faz planar como um símbolo um imenso chapéu vermelho de arcebispo, cujas borlas de ouro pendem a dois metros do chão. Faz-se alto: acaba de se formar um grupo sob as borlas. Meu vizinho espera sem impaciência, balançando os braços: creio que esse velhinho pálido e frágil como uma porcelana é Coffier, o presidente da Câmara de Comércio. Ele parece intimidante, pois nunca diz nada. Mora no alto do Coteau Vert, numa grande casa de tijolo aparente, cujas janelas estão sempre escancaradas. Terminou: o grupo se desmanchou, recomeça-se a andar. Acaba de se formar outro, mas esse ocupa menos espaço: tão logo se formou, encostou-se na vitrine de Ghislaine. A coluna sequer para: faz apenas um ligeiro desvio; desfilamos diante de seis pessoas que se dão as mãos: “Bom dia, senhor, bom dia, meu caro senhor; como vai; mas ponha o chapéu, senhor, vai se resfriar; obrigado, senhora, realmente não faz calor. Minha querida, quero lhe apresentar o dr. Lefrançois; doutor, muito prazer em conhecê-lo, meu marido sempre me fala no dr. Lefrançois que o tratou tão eficazmente, mas ponha o chapéu, doutor, esse frio pode lhe fazer mal. Mas o doutor se curaria logo; não creia, senhora, os médicos são sempre os que menos se tratam; o doutor é um músico notável. Meu Deus, doutor, eu não sabia disso, toca violino? O doutor tem muito talento.” O velhinho ao meu lado é certamente Coffier; uma das mulheres do grupo, a morena, devora-o com os olhos, ao mesmo tempo em que sorri para o doutor. Parece estar pensando: “Lá está o sr. Coffier, o presidente da Câmara de Comércio; como seu aspecto é intimidante, dizem que é tão frio!” Mas o sr. Coffier não se dignou a ver nada: essas pessoas são do bulevar Maritime, não pertencem à sociedade. Com o tempo que venho a essa rua para ver os cumprimentos de chapéu aos domingos, aprendi a distinguir as pessoas do bulevar e as do Coteau. Quando um sujeito está usando um casaco novo em folha, chapéu de feltro flexível, camisa resplandecente, é muito espaçoso, não há o que errar: é alguém do bulevar Maritime. As pessoas do Coteau Vert se distinguem por um não sei quê de lastimável e deprimido. Têm os ombros estreitos e um ar de insolência nos rostos gastos. Juraria que o senhor grandalhão que está segurando uma criança pela mão é do Coteau: seu rosto é inteiramente cinza e ele dá o nó na gravata como se ela fosse um barbante. O senhor grandalhão se aproxima de nós: olha fixamente para o sr. Coffier. Mas, um pouco antes de cruzar com ele, desvia a cabeça e se põe a brincar paternalmente com seu garotinho. Dá mais alguns passos, inclinado para o filho, os olhos mergulhados nos dele, imbuído de seu papel de papai; depois, de repente, virando-se lentamente para nós, dirige um olhar vivo para o velhinho e faz um cumprimento amplo e seco, com um movimento circular de braço. O garotinho, desconcertado, não esboça um cumprimento: isso é coisa de gente grande. Na esquina da rua Basse-de-Vieille, nossa coluna esbarra com uma coluna de fiéis que estão saindo da missa: uma dezena de pessoas esbarram umas nas outras e se cumprimentam rodopiando, mas os cumprimentos de chapéus são muito rápidos para que eu possa detalhá-los; por cima dessa multidão gorda e pálida, a igreja consagrada a santa Cecília ergue sua monstruosa massa branca: um branco de giz sobre um céu escuro; por trás dessas paredes resplandecentes, ela retém em seus flancos um pouco do negrume da noite. Retoma-se a caminhada numa ordem ligeiramente modificada. O sr. Coffier foi empurrado para trás de mim. Uma senhora de azul-marinho colou-se a meu flanco esquerdo. Vem da missa. Pisca os olhos um pouco ofuscada ao se deparar com a luz da manhã. O senhor que caminha à frente dela, e cuja nuca é muito magra, é seu marido. Na outra calçada, um senhor que dá o braço à sua mulher acaba de lhe sussurrar algumas palavras ao ouvido e se pôs a sorrir. Imediatamente, ela elimina qualquer expressão do rosto cremoso e dá alguns passos como se fosse cega. Esses sinais não enganam: eles vão cumprimentar alguém. Efetivamente, um instante depois o senhor ergue a mão. Quando os dedos estão próximos de seu chapéu de feltro, hesitam um segundo antes de pousarem delicadamente na copa. Enquanto levanta lentamente o chapéu, baixando um pouco a cabeça para facilitar a remoção, a mulher dá um pulinho, inscrevendo no rosto um sorriso jovem. Uma sombra passa por eles, inclinando-se, mas seus dois sorrisos gêmeos não se apagam no ato: permanecem alguns instantes em seus lábios, por uma espécie de remanência. Quando o senhor e a senhora cruzam comigo, já retomaram sua impassibilidade, mas permanecelhes ainda um ar alegre ao redor da boca. Terminou: a multidão é menos densa, os cumprimentos de chapéu se tornam mais raros, as vitrines das lojas já não têm o mesmo encanto: estou no fim da rua Tournebride. Vou atravessar e subir a rua pela outra calçada? Acho que já me fartei, já vi o bastante desses crânios rosados, desses rostos miúdos, distintos, apagados. Vou atravessar a praça Marignan. No que estou me separando, com precaução, da coluna, uma cabeça de verdadeiro cavalheiro brota de um chapéu preto bem ao meu lado. É o marido da senhora de azul-marinho. Ah! Que belo e longo crânio de dolicocéfalo, coberto de cabelos curtos e bastos; que belo bigode à americana, semeado de fios prateados! E sobretudo o sorriso, o admirável sorriso cultivado. Há também um lornhão algures num nariz. Ele estava voltado para a mulher, dizendo-lhe: — É um novo desenhista da fábrica. Pergunto-me o que estará fazendo aqui. É um bom rapazinho, um tímido; me diverte. Junto à vitrine do charcuteiro Julien, o jovem desenhista que acaba de recolocar seu chapéu, ainda corado, os olhos baixos, o ar obstinado, conserva toda a aparência de uma intensa volúpia. Sem dúvida alguma é o primeiro domingo em que ousa atravessar a rua Tournebride. Seu aspecto é de alguém que está fazendo a primeira-comunhão. Cruzou as mãos atrás das costas e virou o rosto para a vitrine com um ar pudico positivamente excitante; olha, sem vê-las, quatro linguiças brilhantes em meio ao gelo e desabrochando em sua guarnição de salsas. Uma mulher sai da charcuteria e toma seu braço. É sua esposa. Ela é bastante jovem apesar da pele consumida. Por mais que ronde pelas imediações da rua Tournebride, ninguém a tomará por uma dama; ela é traída pelo fulgor cínico dos olhos, pelo ar sensato e previdente. As verdadeiras damas não sabem os preços das coisas, gostam das belas loucuras; os olhos delas são belas flores cândidas, flores de estufa. Ao dar uma hora, chego à Brasserie Vézelize. Lá estão os velhos, como de hábito. Dois deles já começaram sua refeição. Há quatro jogando manilha, tomando aperitivos. Os outros estão de pé e observam o jogo, enquanto esperam que lhes preparem uma mesa. O mais alto, que tem uma barba interminável, é corretor de valores. Outro é comissário aposentado da Capitania do Porto. Comem e bebem como se ainda tivessem vinte anos. Aos domingos o prato escolhido é chucrute. Os últimos a chegar interpelam os outros, que já estão comendo: — Então, o chucrute dominical, como sempre? Sentam-se e dão um suspiro satisfeito. — Mariette, minha querida, uma cerveja sem colarinho e um chucrute. Mariette é brejeira. No que me sento numa mesa do fundo, um velho escarlate começa a tossir furiosamente enquanto ela lhe serve um vermute. — Encha mais, ora essa — diz a tossir. Mas ela se zanga por sua vez: não tinha acabado de servir. — Mas me deixe servir; por acaso eu disse alguma coisa? O senhor se contraria por antecipação. Os outros começam a rir. — Touché! O corretor de valores, ao ir se sentar, segura Mariette pelos ombros: — É domingo, Mariette. Vai ao cinema essa tarde com seu namorado? — Ah, sim!... É a folga de Antoinette. Namorado, é verdade... Vou ter que aguentar o dia inteiro trabalhando! O corretor de valores sentou-se diante de um velho muito escanhoado, de ar infeliz. O velho escanhoado começa imediatamente um relato animado. O corretor de valores não ouve: faz caretas, puxa a barba. Eles nunca se ouvem. Reconheço meus vizinhos: são pequenos comerciantes dos arredores. Aos domingos dão folga à empregada. Então vêm aqui e se instalam sempre na mesma mesa. O marido está comendo uma bela côte-de-boeuf rosada. Examina-a de perto e de quando em quando a cheira. A mulher lambisca seu prato. É uma loura corpulenta de quarenta anos, as faces vermelhas e penugentas. Os seios, sob a blusa de cetim, são belos e rijos. Em cada refeição ela entorna, como um homem, sua garrafa de Bordeaux. Vou ler Eugénie Grandet. Não que isso me dê muito prazer: mas é preciso que faça alguma coisa. Abro o livro ao acaso: a mãe e a filha falam do amor que está nascendo em Eugénie: Eugénie beijou-lhe a mão dizendo: — Como é boa, minha querida mamãe! Essas palavras iluminaram o velho rosto materno, marcado por longas dores. — Tem boa impressão dele? — perguntou Eugénie. A sra. Grandet respondeu apenas com um sorriso; em seguida, após um momento de silêncio, disse em voz baixa: — Já o estaria amando então? Isso seria mau. — Mau — retorquiu Eugénie — por quê? Ele agrada à senhora, agrada a Nanon, por que não me agradaria? Olhe, mamãe, vamos botar a mesa para o almoço dele. Pôs de lado seu bordado, a mãe fez o mesmo, dizendo-lhe: — Você está louca! Mas se comprouve em justificar a loucura da filha, compartilhando-a. Eugénie chamou Nanon. — Que é? Que deseja ainda, senhorita? — Nanon, você terá o creme pronto para o meio-dia? — Ah! Para o meio-dia, sim — respondeu a velha empregada. — Muito bem, sirva-lhe café bem forte, ouvi o sr. de Grassins dizer que em Paris se fazia café muito forte. Ponha bastante. — E onde quer que o arranje? — Compre. — E se o patrão me encontra? — Ele está em seus pastos... Meus vizinhos haviam permanecido silenciosos desde minha chegada, mas de repente a voz do marido me arrancou da leitura. O marido, com ar divertido e misterioso: — Escute, você viu? A mulher estremece e olha para ele, saindo de um sonho. Ele come e bebe, depois continua com o mesmo ar malicioso: — Ha, ha! Um silêncio, a mulher voltou a mergulhar em seu sonho. De repente estremece e pergunta: — Que está dizendo? — Suzanne, ontem. — Ah, sim! — diz a mulher. — Ela tinha ido ver Victor. — Que é que eu tinha dito? A mulher empurra o prato, impaciente. — Não está bom. As beiradas do prato estão cheias de bolinhas de carne cinza que ela cuspiu de volta. O marido prossegue: — Aquela mulherzinha... Cala-se e dá um sorriso vago. Em frente a nós o velho corretor de valores acaricia o braço de Mariette, arfando um pouco. Daí a um momento: — Eu tinha dito a você outro dia. — Tinha dito o quê? — Que ela iria ver Victor. O que há — pergunta bruscamente, espantado —, não gostou? — Não está bom. — Já não é a mesma coisa — diz pomposamente —, já não é como no tempo de Hécart. Sabe por onde anda Hécart? — Está em Domrémy, não? — Sim, sim, quem lhe disse? — Você, no domingo. Ela come uma migalha de pão que ficara sobre a toalha de papel. Depois, alisando com a mão o papel sobre a borda da mesa, diz com hesitação: — Sabe, você está enganado; Suzanne é mais... — É possível, minha filha, é bem possível — responde ele distraidamente. Seu olhar procura Mariette; faz-lhe um sinal. — Está calor. Mariette se apoia com familiaridade na beira da mesa. — Oh, sim, faz calor! — diz a mulher gemendo. — Está sufocante aqui, e além do mais a carne não está boa, falarei com o patrão. Já não é a mesma coisa. Abra um pouco a janela, Mariette. O marido retoma seu ar divertido: — Diga, você não viu seus olhos? — Mas quando, meu lindo? Ele a arremeda com impaciência: — Mas quando, meu lindo? É bem você: no verão, quando neva. — Está querendo dizer ontem? Ah, bom! Ele ri, olha para longe, recita muito depressa, com uma certa aplicação: — Olhos de gato que caga na brasa. Está tão satisfeito que parece ter esquecido o que queria dizer. Ela ri por sua vez, sem maldade. — Ha, ha, seu maldoso. Ela lhe dá palmadinhas nos ombros. — Maldoso, maldoso. Ele repete com mais segurança: — De gato que caga na brasa. Mas ela já não ri: — Não, sem brincadeira, ela é séria. Ele se inclina, cochicha uma história comprida em seu ouvido. Ela o olha um momento, a boca aberta, o rosto um pouco tenso e risonho, como alguém que vai cair na gargalhada; depois, bruscamente se inclina para trás e arranha-lhe as mãos. — Isso não é verdade, não é verdade. Ele diz em tom sensato e ponderado: — Escute, minha querida, foi ele mesmo quem disse: se não fosse verdade, por que o diria? — Não, não. — Mas se foi ele mesmo quem disse: escute, imagine... Ela começa a rir. — Estou rindo porque pensei em René. — Sim. Ele também ri. Ela continua numa voz baixa e solene: — Então, é porque percebeu isso na terça-feira. — Quinta-feira. — Não, terça-feira, você sabe, por causa do... Desenha no ar uma espécie de elipse. Longo silêncio. O marido embebe miolo de pão no molho. Mariette troca os pratos e traz tortas. Daqui a pouco também vou aceitar uma torta. De repente a mulher, com ar um pouco pensativo, um sorriso orgulhoso e um pouco escandalizado nos lábios, pronuncia com voz arrastada: — Oh, não! Você sabe... Há tanta sensualidade em sua voz que ele se perturba e lhe acaricia a nuca com a mão gorda. — Charles, fique quieto, você me excita, meu querido — murmura ela, sorrindo, de boca cheia. Tento retomar minha leitura. — E onde quer que o arranje? — Compre. — E se o patrão me encontra? Mas ouço ainda a mulher dizendo: — Vou fazer Marthe rir, vou lhe contar... Meus vizinhos se calaram. Depois da torta Mariette serviu ameixas, e a mulher está muito ocupada em depositar graciosamente os caroços em sua colher. O marido, olhando para o teto, tamborila uma marcha na mesa. Dir-se-ia que o estado normal deles é o silêncio e a palavra uma pequena febre que às vezes os acomete. — E onde quer que o arranje? — Compre. Fecho o livro, vou dar um passeio. Quando saí da Brasserie Vézelize, eram quase três horas; senti a tarde em todo o meu corpo pesado. Não a minha tarde: a deles, a que cem mil habitantes de Bouville iam viver em comum. A essa mesma hora, após o longo e copioso almoço de domingo, eles se levantavam da mesa e, para eles, algo morrera. O domingo gastara sua leve juventude. Era preciso digerir a galinha e a torta, vestir-se para sair. A campainha do Cine Eldorado ressoava no ar límpido. É um ruído familiar do domingo essa campainha em pleno dia. Mais de cem pessoas faziam fila ao longo da parede verde. Aguardavam avidamente a hora das suaves trevas, do relaxamento, do abandono, a hora em que a tela, brilhante como uma pedra branca sob a água, falaria e sonharia por elas. Vão desejo: alguma coisa nelas permaneceria contraída; tinham muito medo que estragassem seu belo domingo. Daqui a pouco, como todos os domingos, ficariam decepcionadas: o filme seria idiota, a pessoa do lado fumaria cachimbo e cuspiria entre os joelhos, ou então Lucien se mostraria desagradável, não teria uma palavra amável, ou ainda, como se de propósito, justamente hoje, logo no dia em que iam ao cinema, aquela dor nas costas voltaria. Daqui a pouco, como todos os domingos, pequenas raivas surdas cresceriam na sala escura. Segui pela tranquila rua Bressan. O sol dissipara as nuvens, o tempo estava bonito. Uma família acabava de sair da villa La Vague. A filha abotoava as luvas na calçada. Devia ter mais ou menos trinta anos. A mãe, postada no primeiro degrau da escadaria, olhava fixamente para a frente, o ar seguro, respirando fundo. Do pai, eu via apenas as costas enormes. Inclinado sobre a fechadura, passava a chave na porta. A casa permaneceria vazia e escura até o regresso deles. Nas casas vizinhas, já desertas e com os ferrolhos passados, os móveis e os parquês estalavam suavemente. Antes de sair, haviam apagado o fogo na lareira da sala de jantar. O pai foi ter com as duas mulheres, e a família, sem dizer uma palavra, se pôs a caminho. Aonde iam? Aos domingos, vai-se ao cemitério ou visitamse parentes, ou ainda, quando se está inteiramente livre, passeia-se pelo quebra-mar. Eu estava livre: segui pela rua Bressan, que desemboca no quebra-mar Promenade. O céu estava azul-claro: algumas fumaças, alguns penachos; de vez em quando uma nuvem à deriva passava diante do sol. Via-se ao longe a balaustrada de cimento branco que corre ao longo do quebra-mar Promenade e o mar brilhando através das aberturas. A família virou à direita na rua Aumônier-Hilaire, que sobe para o Coteau Vert. Vi-os subir a passos lentos, formando três manchas negras no brilho do asfalto. Dobrei à esquerda e me misturei à multidão que desfilava à beira-mar. A mistura era maior do que pela manhã. Parecia que todos aqueles homens já não tinham força para manter a bela hierarquia social de que tanto se orgulhavam antes de almoçar. Os negociantes e funcionários caminhavam lado a lado; deixavam-se acotovelar, deixavam-se até empurrar ou desviar por modestos empregados de aparência pobre. As aristocracias, as elites, os agrupamentos profissionais tinham se fundido nessa multidão morna. Restavam apenas homens quase sós, que já não representavam mais. Uma poça de luz ao longe, este era o mar em maré baixa. Alguns escolhos, à flor da água, furavam essa superfície de claridade com suas pontas. Barcos de pesca jaziam na areia, perto dos viscosos blocos de pedra arremessados desordenadamente na base do quebra-mar, para protegê-lo das ondas e que deixam entre si buracos borbulhantes. Na entrada do anteporto, contra o céu embranquecido pelo sol, recortava-se a sombra de uma draga. Todas as noites, até meia-noite, ela uiva e geme, fazendo uma barulheira infernal. Mas aos domingos os operários passeiam em terra, ficando apenas um vigia a bordo: ela se cala. O sol estava claro e diáfano: um vinhozinho branco. Sua luz mal aflorava os corpos, não lhes dava sombras nem relevo: os rostos e as mãos formavam manchas de ouro claro. Todos aqueles homens de sobretudo pareciam flutuar suavemente a algumas polegadas do chão. De quando em quando o vento empurrava em nossa direção sombras que tremulavam como água; os rostos se apagavam por alguns instantes, ficavam cor de giz. Era domingo; encaixada entre a balaustrada e os portões dos chalés de recreio, a multidão se desfazia em pequenas vagas, para se perder em mil riachos por trás do grande prédio da Companhia Transatlântica. Quantas crianças! Crianças em carrinhos, no colo, levadas pela mão ou andando empertigadas em grupos de dois ou três, à frente de seus pais. Eu vira todos esses rostos, poucas horas antes, quase triunfantes no verdor de uma manhã de domingo. Agora, banhados de sol, exprimiam apenas a calma, o relaxamento, uma espécie de obstinação. Poucos gestos: ainda se trocavam alguns cumprimentos de chapéu, mas sem a amplidão, sem a alegria nervosa da manhã. Todas as pessoas se deixavam ficar um pouco para trás, a cabeça erguida, o olhar distante, entregues ao vento que as empurrava inflando os casacos. De quando em quando um riso seco, rapidamente abafado; o grito de uma mãe, Jeannot, Jeannot quer fazer o favor... Depois o silêncio. Leve cheiro de fumo suave: são os caixeiros fumando Salammbô, Aïcha, cigarros de domingo. Em alguns rostos, mais expressivos, tive a impressão de ler um pouco de tristeza: mas não, aquelas pessoas não estavam nem tristes nem alegres: repousavam. Os olhos arregalados e fixos refletiam passivamente o mar e o céu. Dentro em pouco iriam para casa, tomariam uma xícara de chá em família, na mesa da sala de jantar. No momento desejavam viver com o mínimo de dispêndio, economizar os gestos, as palavras, os pensamentos, boiar: só dispunham de um único dia para apagar as rugas, os pés de galinha, os vincos amargos que o trabalho da semana provoca. Um único dia. Sentiam os minutos a lhes escapar por entre os dedos; teriam tempo de acumular bastante juventude, para poder recomeçar tudo na segunda-feira de manhã? Respiravam a plenos pulmões, porque o ar do mar revigora: apenas sua respiração, regular e profunda como a de quem dorme, confirmava que estavam vivos. Eu caminhava furtivamente, não sabia o que fazer de meu corpo rijo e fresco, no meio dessa multidão trágica que repousava. O mar agora estava cor de ardósia; subia lentamente. À noite atingiria a maré cheia; essa noite o quebra-mar Promenade ficaria mais deserto do que o bulevar Victor-Noir. Adiante e à esquerda uma luz vermelha brilharia no canal. O sol descia lentamente sobre o mar. No caminho incendiava a janela de um chalé normando. Uma mulher, ofuscada, levou, com ar cansado, a mão aos olhos e sacudiu a cabeça. — Gaston, estou ofuscada — disse com um riso hesitante. — É um solzinho bom — disse o marido —, não aquece, mas mesmo assim é agradável. Ela disse ainda, voltando-se para o mar: — Pensava que pudéssemos vê-la. — Impossível — disse o homem —, ela está do lado do sol. Deviam estar falando da ilha Caillebotte, cuja ponta meridional deveria ser visível entre a draga e o cais do anteporto. A luz tornou-se mais suave. Nessa hora instável algo anunciava a noite. O domingo já tinha um passado. As villas e a balaustrada cinza pareciam recordações muito recentes. Um a um, os rostos perdiam o ar de lazer, vários se tornaram quase ternos. Uma jovem mulher grávida se apoiava num rapaz louro de aspecto bruto. — Ali, ali, ali, olhe — disse. — O quê? — Ali, as gaivotas. Ele sacudiu os ombros: não havia gaivotas. O céu se tornara quase puro, um pouco rosado no horizonte. — Ouvi-as. Escute, estão gritando. Ele respondeu: — Foi qualquer coisa que rangeu. Um lampião de gás brilhou. Julguei que o acendedor dos lampiões tivesse passado. As crianças o aguardam com impaciência, porque é ele que dá o sinal da hora de regressar. Mas era apenas um último reflexo do sol. Embora o céu ainda estivesse claro, a terra mergulhava na penumbra. A multidão escasseava, ouvia-se distintamente o estertor do mar. Uma mulher jovem, apoiada com as duas mãos na balaustrada, ergueu para o céu o rosto azulado riscado quase de preto pela pintura dos lábios. Perguntei-me por um momento se iria amar os homens. Mas afinal o domingo era deles, não meu. A primeira luz que se acendeu foi a do farol Caillebotte; um garotinho parou perto de mim e murmurou com ar extasiado: “Oh! O farol!” Então senti meu coração inflado por um grande sentimento de aventura. *** Dobro à esquerda e vou dar no Pequeno Prado pela rua dos Voiliers. Colocaram os taipais nas vitrines. A rua Tournebride está clara, mas deserta, perdeu sua glória efêmera da manhã; a essa hora nada a distingue das ruas vizinhas. Levantou-se um vento bastante forte. Ouço ranger o chapéu do arcebispo. Estou sozinho, a maioria das pessoas voltaram para seus lares; estão lendo o jornal da tarde e ouvindo rádio. O domingo que termina deixou-lhes um gosto de cinzas e seu pensamento se volta para a segunda-feira. Mas para mim não existem segunda-feira nem domingo: existem dias que se atropelam desordenadamente e, além disso, lampejos como esse. Nada mudou e no entanto tudo existe de uma outra maneira. Não consigo descrever; é como a Náusea e no entanto é exatamente o contrário: finalmente me acontece uma aventura e, quando me interrogo, vejo que me acontece que sou eu e que estou aqui; sou eu que fendo a noite, estou feliz como um herói de romance. Algo vai suceder: na obscuridade da rua Basse-de-Vieille há alguma coisa à minha espera, é ali, exatamente na esquina desta rua tranquila, que minha vida vai começar. Vejo-me avançar com o sentimento da fatalidade. Na esquina da rua há uma espécie de marco branco. De longe parecia todo preto, e, a cada passada, tende mais e mais para o branco. Esse corpo obscuro que se ilumina pouco a pouco me causa uma impressão extraordinária: quando estiver totalmente claro, totalmente branco, me deterei exatamente a seu lado e então começará a aventura. Esse farol branco que emerge das sombras está tão próximo agora que quase sinto medo: por um instante penso em dar meia-volta. Mas não é possível quebrar o encantamento. Avanço, estendo a mão, toco no marco. Eis a rua Basse-de-Vieille e a massa enorme da igreja de Santa Cecília escondida nas sombras e cujos vitrais brilham. O chapéu do arcebispo range. Não sei se o mundo se estreitou de repente ou se sou eu que ponho uma unidade tão forte entre os sons e as formas: nem sequer posso conceber que algo do que me rodeia seja diferente do que é. Paro um instante, espero, sinto meu coração bater; vasculho com o olhar a praça deserta. Não vejo nada. Levantou-se um vento bastante forte. Equivoquei-me, a rua Basse-de-Vieille era apenas uma escala: a coisa está à minha espera no fundo da praça Ducoton. Não tenho pressa de recomeçar a andar. Parece-me que atingi o cume de minha felicidade. Em Marselha, em Xangai, em Meknès, o que não fiz para obter um sentimento tão pleno? Hoje já não espero nada, volto para casa ao fim de um domingo vazio: ele está comigo. Torno a caminhar. O vento me traz o grito de uma sirene. Estou inteiramente sozinho, mas caminho como uma tropa que irrompe numa cidade. Neste momento, há navios ressonantes de música sobre o mar; luzes se acendem em todas as cidades da Europa; comunistas e nazistas trocam tiros nas ruas de Berlim; desempregados perambulam pelas ruas de Nova Iorque; num quarto aquecido, diante de suas penteadeiras, mulheres colocam rímel nos cílios. E eu estou aqui, nessa rua deserta, e cada tiro disparado de uma janela de Neukölln, cada soluço sangrento dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e diminuto das mulheres que se enfeitam corresponde a cada um de meus passos, a cada batida de meu coração. Diante da galeria Gillet já não sei o que fazer. Estarão à minha espera no fundo da galeria? Mas há também, na praça Ducoton, no fim da rua Tournebride, certa coisa que necessita de mim para nascer. Estou cheio de angústia: o menor gesto me compromete. Não posso adivinhar o que querem de mim. No entanto é preciso escolher: sacrifico a galeria Gillet, ignorarei para sempre o que ela me reservava. A praça Ducoton está vazia. Será que me enganei? Acho que não o suportaria. Será que não vai acontecer nada? Aproximo-me das luzes do café Mably. Estou desorientado, não sei se vou entrar: dou uma olhada através das grandes vidraças embaciadas. A sala está abarrotada. O ar está azulado por causa da fumaça dos cigarros e do vapor exalado pelas roupas úmidas. A empregada que se encarrega da caixa está em seu balcão. Conheço-a bem: é ruiva como eu; tem uma doença no ventre. Apodrece suavemente sob as saias, com um sorriso melancólico semelhante ao cheiro de violeta que às vezes exalam os corpos em decomposição. Arrepiome da cabeça aos pés: era... era ela que me esperava. Estava ali, erguendo o busto imóvel por cima do balcão, sorrindo. Do fundo desse café algo retrocede para os momentos esparsos desse domingo e solda-os uns aos outros, dá-lhes um sentido: atravessei todo esse dia para chegar a esse momento, a testa apoiada nessa vidraça, para contemplar esse rosto delicado que desabrocha sobre uma cortina grená. Tudo parou; minha vida parou: esse grande vidro, esse ar pesado, azul como a água, essa planta carnuda e branca no fundo da água e eu próprio formamos um todo imóvel e pleno: estou feliz. Quando estava no bulevar da Redoute só subsistia em mim um amargo pesar. Dizia-me: “Talvez não exista nada no mundo que seja tão importante para mim como esse sentimento de aventura. Mas ele vem quando quer; desaparece tão rapidamente! Como fico seco quando ele me deixa! Será que me faz essas curtas visitas irônicas para me mostrar que minha vida é um fracasso?” Atrás de mim, na cidade, nas grandes ruas retas, na claridade fria dos lampiões, um fantástico acontecimento social agonizava: era o fim do domingo. Segunda-feira Como pude escrever ontem essa frase absurda e pomposa: “Estava inteiramente sozinho mas caminhava como uma tropa que irrompe numa cidade.” Não preciso fazer frases. Escrevo para esclarecer certas circunstâncias. Há que ter cuidado com a literatura. É preciso escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras. No fundo o que me desagrada é ter sido sublime ontem à noite. Quando tinha vinte anos, me embriagava e depois explicava que era um sujeito no gênero de Descartes. Sentia perfeitamente que me inflava de heroísmo, mas não me continha: isso me agradava. Depois, no dia seguinte, me sentia tão enojado como se tivesse acordado numa cama cheia de vômito. Quando estou bêbado, não vomito — antes o fizesse. Ontem não tinha sequer a desculpa da embriaguez. Entusiasmei-me como um imbecil. Preciso me limpar com pensamentos abstratos, transparentes como a água. Esse sentimento de aventura decididamente não se origina dos acontecimentos: isso ficou provado. É antes a maneira pela qual os instantes se encadeiam. Eis, creio eu, o que ocorre: bruscamente se sente que o tempo se esgota, que cada instante leva a outro instante, esse a outro, e assim sucessivamente; que cada instante se aniquila, que é inútil tentar retê-lo etc. E então se atribui essa propriedade aos acontecimentos que nos surgem nos instantes; transportamos para o conteúdo o que pertence à forma. Em suma, fala-se muito dessa famosa passagem do tempo, mas não a vemos. Vemos uma mulher, pensamos que um dia será velha, mas não a vemos envelhecer. Mas por alguns momentos parece que a vemos envelhecer e que nos sentimos envelhecer com ela: é o sentimento de aventura. Se bem me lembro, chama-se isso de irreversibilidade do tempo. O sentimento da aventura seria simplesmente o da irreversibilidade do tempo. Mas por que não o temos permanentemente? É possível que o tempo não seja sempre irreversível? Há momentos em que temos a impressão de que podemos fazer o que queremos, avançar ou retroceder, que isso não tem importância; e outros em que diríamos que as malhas se apertaram; nesses casos não há que perder a chance, porque esta não voltaria a se apresentar. Anny fazia com que o tempo lhe desse tudo o que era possível. Na época em que estava em Djibouti, e eu em Aden, quando ia vê- la por 24 horas, ela utilizava todos os recursos para multiplicar os mal-entendidos entre nós, até o momento em que só faltavam exatamente sessenta minutos para minha partida; sessenta minutos, rigorosamente o tempo necessário para que se sintam passar os segundos um a um. Lembro-me de uma dessas noites terríveis. Eu tinha que partir à meia-noite. Tínhamos ido a um cinema ao ar livre; ambos estávamos desesperados. Só que quem dava as cartas era ela. Às 11 horas, quando ia começar o filme, ela segurou minha mão e apertou-a entre as suas sem uma palavra. Senti-me invadido por uma alegria amarga e compreendi, sem necessidade de olhar o relógio, que eram 11 horas. A partir desse instante começamos a sentir os minutos passarem. Daquela vez estávamos nos separando por três meses. Em dado momento foi projetada na tela uma imagem extremamente branca, a escuridão tornou-se menos intensa e vi que Anny estava chorando. Depois, à meia-noite, soltou minha mão, após havê-la apertado violentamente; levantei-me e saí sem lhe dizer uma única palavra. Era um trabalho bem-feito. Sete da noite Dia de trabalho. Não correu muito mal; escrevi seis páginas com certo prazer. Tanto mais que se tratava de considerações abstratas sobre o reinado de Paulo I. Depois da orgia de ontem passei o dia inteiro cuidadosamente abotoado. Não era indicado recorrer a meu coração. Mas me sentia muito à vontade desmontando as molas da autocracia russa. Só que esse Rollebon me irrita. Finge-se de misterioso nas mínimas coisas. Que terá ido fazer na Ucrânia no mês de agosto de 1804? Fala de sua viagem em termos velados: “A posteridade julgará se meus esforços, que o sucesso não podia recompensar, mereciam uma renegação brutal e as humilhações que tive que suportar em silêncio, quando dispunha de meios para calar os escarnecedores e amedrontá-los.” Caí na armadilha uma vez: ele se mostrava cheio de reticências pomposas a respeito de uma pequena viagem que fizera a Bouville em 1790. Perdi um mês investigando suas atividades. Afinal ele tinha engravidado a filha de um de seus rendeiros. Não se tratará simplesmente de um cabotino? Esse pretensiosozinho tão mentiroso me deixa irado; talvez seja por despeito: encantava-me que mentisse aos outros, mas teria gostado que abrisse uma exceção para mim; tinha imaginado que nós dois nos entenderíamos às mil maravilhas, fartos de todos esses mortos, e que a mim ele terminaria por dizer a verdade. Ele não disse nada, absolutamente nada; nada mais do que dizia a Alexandre ou a Luís XVIII, a quem enganava. É importante para mim que Rollebon tenha sido uma pessoa de valor. Velhaco certamente: quem não o é? Mas um grande velhaco ou um pequeno velhaco? Não aprecio suficientemente as pesquisas históricas para perder meu tempo com um morto cuja mão, se estivesse vivo, eu não me dignaria a apertar. O que sei dele? Não se pode imaginar vida mais bela do que a sua: mas a terá vivido realmente? Se pelo menos suas cartas não fossem tão afetadas... Ah! Teria sido preciso conhecer seu olhar, talvez tivesse uma maneira atraente de inclinar a cabeça sobre o ombro, ou de colocar, com ar astuto, o indicador ao lado do nariz, ou ainda, de deixar transparecer entre duas mentiras delicadas uma rápida violência que ele logo abafava. Mas ele morreu: o que sobra dele são apenas o Traité de stratégie e as Réflexions sur la vertu. Se me descontraísse, o imaginaria muito bem: sob sua ironia brilhante, e que fez tantas vítimas, trata-se de um simplório, quase um ingênuo. Pouco pensa, mas em todas as circunstâncias, por um dom profundo, faz exatamente o que deveria fazer. Sua velhacaria é cândida, espontânea, generosa, tão sincera quanto seu amor pela virtude. E quando traiu seus benfeitores e amigos, relembrou os acontecimentos com gravidade, para extrair deles uma moral. Nunca achou que tivesse o menor direito sobre os outros nem estes sobre ele: considera injustificadas e gratuitas as dádivas que a vida lhe propicia. Liga-se fortemente a tudo, mas se desvincula com facilidade. E suas cartas, suas obras, nunca foram escritas por ele: um escritor público[8] as redigiu. Mas se era para chegar a isso, mais valia que eu escrevesse um romance sobre o marquês de Rollebon. Onze da noite Jantei no Rendez-vous des Cheminots. Como a patroa estivesse lá, tive que trepar com ela, mas foi só por delicadeza. Ela me repugna um pouco: é muito branca e também cheira um pouco a recémnascido. Num arroubo de paixão, me apertava a cabeça contra seu peito: acha que isso é o que se deve fazer. Quanto a mim, manuseava distraidamente seu sexo sob as cobertas; depois meu braço ficou dormente. Estava pensando no marquês de Rollebon: afinal o que me impede de escrever um romance sobre sua vida? Deslizei meu braço pelo quadril da patroa e vi de repente um pequeno jardim com árvores baixas e tufadas de onde pendiam folhas imensas cobertas de pelos. Corriam por toda parte formigas, centopeias e traças. Havia bichos ainda mais horríveis: seus corpos eram feitos de uma fatia de pão tostado, como as que se servem como canapé, com pedaços de pombo; andavam de lado com patas de caranguejo. As folhas grandes estavam pretas de bichos. Por trás dos cactos e dos nopais, a Véleda do jardim público apontava para seu sexo com o dedo. “Esse jardim cheira a vômito”, gritei. — Não queria acordá-lo — disse a patroa —, mas você estava com uma dobra do lençol debaixo das nádegas e além disso tenho que descer por causa dos fregueses do trem de Paris. Terça-feira de carnaval Açoitei Maurice Barrès. Éramos três soldados e um de nós tinha um buraco no meio do rosto. Maurice Barrès se aproximou e nos disse: “Está bom!” E deu a cada um de nós um buquê de violetas. “Não sei onde enfiá-lo”, disse o soldado com a cara esburacada. Então Maurice Barrès falou: “Enfie-o no buraco que você tem no rosto.” O soldado respondeu: “Vou enfiá-lo no seu cu.” E pusemos Maurice Barrès de bruços e tiramos suas calças. Por baixo ele tinha uma veste vermelha de cardeal. Levantamos a veste e Maurice Barrès começou a gritar. “Cuidado, minhas calças são de presilhas.” Mas nós o açoitamos até que sangrasse e desenhamos em seu traseiro, com pétalas de violeta, a cara de Déroulède. De uns tempos para cá, lembro-me com frequência de meus sonhos. Aliás, devo me agitar muito durante o sono, porque todas as manhãs encontro minhas cobertas no chão. Hoje é terça-feira de carnaval, mas em Bouville isso pouco significa; quando muito há em toda a cidade umas cem pessoas que se fantasiam. No que descia a escada, a patroa me chamou: “Há uma carta para o senhor.” Uma carta: a última que recebi foi do administrador da biblioteca de Rouen no último mês de maio. A patroa me leva até seu escritório; estende-me um envelope amarelo comprido e grosso: Anny me escreveu. Há cinco anos não tinha notícias dela. A carta foi me procurar em meu antigo domicílio de Paris; a data do carimbo é 1º de fevereiro. Saio; estou com o envelope na mão, não me atrevo a abri-lo; Anny não mudou seu papel de cartas; pergunto-me se continua a comprá-lo na pequena papelaria de Piccadilly. Imagino que conserva o mesmo penteado, os bastos cabelos louros que não queria cortar. Deve lutar pacientemente diante dos espelhos para salvar seu rosto: não se trata de vaidade nem de medo de envelhecer; ela deseja se manter como é, exatamente como é. Talvez fosse isso o que eu preferia nela: essa fidelidade intensa e severa ao menor traço de sua imagem. A letra firme do endereço, escrita com tinta roxa (ela também não mudou de tinta), ainda brilha um pouco. Senhor Antoine Roquentin Como gosto de ler meu nome num envelope! Numa espécie de bruma revi um daqueles sorrisos, adivinhei seus olhos, sua cabeça inclinada: quando estava sentado, ela se postava à minha frente sorrindo, me tomava pelos ombros e me sacudia estendendo os braços. O envelope é pesado, deve conter pelo menos seis páginas. Por sobre essa letra bonita veem-se os garranchos de minha antiga porteira: Hotel Printania — Bouville. Essas letras não têm brilho. Quando abro a carta, minha desilusão me rejuvenesce seis anos: “Não sei como Anny consegue inflar assim seus envelopes: nunca há nada dentro.” Disse essa frase cem vezes na primavera de 1924, lutando, como hoje, para extrair do forro do envelope um pedaço de papel quadriculado. O forro é um esplendor: verde-escuro com estrelas de ouro; dir-se-ia um tecido pesado engomado. Por si só toma três quartos do peso do envelope. Anny escreveu a lápis: “Passarei por Paris dentro de alguns dias. Venha me ver no hotel d’Espagne, no dia 20 de fevereiro. Por favor (o ‘por favor’ foi acrescentado por cima da linha e juntado ao ‘me ver’ por uma curiosa espiral). Preciso vê-lo. Anny.” Em Meknès, em Tânger, quando voltava para casa à noite, encontrava às vezes um bilhete sobre minha cama: “Quero vê-lo imediatamente.” Ia ter com Anny correndo, ela abria a porta, as sobrancelhas levantadas num ar de espanto: não tinha mais nada a me dizer; ficava com um pouco de raiva de mim por ter vindo. Irei; ela talvez não queira me receber. Ou então me dirão na portaria do hotel: “Ninguém com esse nome se hospedou aqui.” Não creio que ela fizesse isso. Mas pode me escrever dentro de oito dias dizendo que mudou de ideia e que fica para outra vez. As pessoas estão em seu trabalho. Anuncia-se uma terça-feira de carnaval bem sem graça. A rua dos Mutilés está com um cheiro forte de madeira úmida, como todas as vezes que vai chover. Não gosto desses dias excepcionais: há matinês nos cinemas, é feriado para as crianças das escolas; há nas ruas um vago ar de festa que não cessa de solicitar a atenção e se dissipa tão logo atentamos nele. Sem dúvida reverei Anny, mas não posso dizer que essa ideia me torne exatamente alegre. Desde que recebi sua carta, me sinto ocioso. Felizmente é meio-dia; não estou com fome, mas vou comer para passar o tempo. Entro no Camille, na rua dos Horlogers. É um lugar muito tranquilo; serve-se, durante toda a noite, chucrute e cassoulet. À saída do teatro as pessoas vêm cear aqui; os policiais encaminham para cá os viajantes que chegam de noite e estão com fome. Oito mesas de mármore. Um banco de couro acompanha a parede. Dois espelhos carcomidos por manchas avermelhadas. As duas janelas e a porta são envidraçadas. O balcão fica numa reentrância. Há também um cômodo de um lado. Mas nunca entrei lá; é para os casais. — Traga-me uma omelete de presunto. A empregada, uma moça grandalhona de faces coradas, sempre ri quando fala com um homem. — Desculpe. Quer uma omelete de batatas? O presunto ainda não foi aberto: só quem o corta é o patrão. Peço um cassoulet. O patrão se chama Camille e é intratável. A empregada se vai. Fico sozinho na velha sala escura. Em minha carteira há uma carta de Anny. Uma falsa vergonha me impede de relê-la. Tento me lembrar das frases uma a uma. Meu querido Antoine Sorrio: claro que não, claro que Anny não escreveu “meu querido Antoine”. Há seis anos — acabávamos de nos separar de comum acordo — decidi partir para Tóquio. Escrevi-lhe um bilhete. Já não podia chamá-la de “meu amor querido”; comecei, muito inocentemente, por “minha querida Anny”. “Admira-me o seu desembaraço” — respondeu-me ela —; “nunca fui e não sou sua querida Anny. E quanto a você, peço-lhe que acredite que não é meu querido Antoine. Se não sabe como me chamar, seria melhor que não me chamasse de nada”. Pego sua carta em minha carteira. Ela não escreveu “meu querido Antoine”. No fim da carta não há também nenhuma fórmula de cortesia: “Preciso vê-lo. Anny.” Nada que possa me informar sobre seus sentimentos. Não posso me queixar: reconheço nisso seu amor pelo perfeito. Ela sempre queria realizar “momentos perfeitos”. Se o instante não se prestava para isso, se desinteressava de tudo, a vida desaparecia de seus olhos, ela se arrastava preguiçosamente como uma meninona na idade ingrata. Ou então provocava uma discussão: “Você se assoa como um burguês, solenemente, e tosse em seu lenço com satisfação.” Era preciso não responder, era preciso esperar: de repente, a algum sinal que me escapava, ela estremecia, endurecia suas belas feições lânguidas e começava seu trabalho de formiga. Tinha uma magia imperiosa e encantadora; cantarolava entre dentes olhando para todos os lados, depois se endireitava com um sorriso, vinha me sacudir os ombros, e, durante alguns instantes, parecia estar dando ordens aos objetos que a rodeavam. Explicava-me, em voz baixa e rápida, o que esperava de mim. “Escute, você está disposto a fazer um esforço, não é? Foi tão tolo da última vez. Vê como esse momento poderia ser belo? Olhe o céu, olhe a cor do sol no tapete. Botei justamente o vestido verde e não estou pintada, estou pálida. Chegue para trás, vá se sentar na sombra; entende o que tem que fazer? Então? Como você é tolo! Fale comigo.” Eu sentia que o êxito do que se empreendia estava em minhas mãos: o instante tinha um sentido obscuro que era preciso elucidar e completar: determinados gestos tinham que ser feitos, determinadas palavras pronunciadas: o peso de minha responsabilidade me esmagava, eu arregalava os olhos e não via nada, debatia-me em meio aos ritos que Anny inventava na hora e esgarçava-os com meus grandes braços como teias de aranha. Nesses momentos ela me odiava. Irei vê-la certamente. Estimo-a e ainda gosto dela do fundo do coração. Desejo que outro tenha tido mais sorte e mais habilidade no jogo dos momentos perfeitos. “Seus malditos cabelos estragam tudo”, dizia ela. “Que se pode fazer com um homem ruivo?” Ela sorria. Perdi primeiro a lembrança de seus olhos, depois a do seu corpo esguio. Guardei, o mais que pude, seu sorriso, e finalmente, há três anos, perdi-o também. Ainda agora, bruscamente, no que pegava a carta das mãos da patroa, ele retornou; julguei ver Anny sorrindo. Tento lembrá-lo novamente: preciso sentir toda a ternura que Anny me inspira; essa ternura está presente, está bem perto, pedindo para nascer. Mas o sorriso não retorna: terminou. Permaneço vazio e seco. Entrou um homem, friorento. — Bom dia a todos. Senta-se sem tirar o sobretudo esverdeado. Esfrega as mãos compridas entrelaçando os dedos. — O que vou lhe servir? Ele estremeceu, os olhos inquietos. — Hem? Traga-me um Byrrh com água. A empregada nem se mexe. Seu rosto no espelho parece dormir. Na verdade, os olhos estão abertos, mas são apenas duas fendas. Ela é assim, não tem pressa em servir os fregueses, fica sempre um momento como que abstraída, pensando no que pediram. Deve estar pensando na garrafa que vai pegar em cima do balcão, no rótulo branco com letras vermelhas, no espesso xarope preto que vai servir: é um pouco como se ela própria bebesse. Enfio a carta de Anny em minha carteira: ela me deu o que podia; não posso remontar à mulher que a teve nas mãos, dobrou-a, colocou-a no envelope. Será possível pensar em alguém no passado? Enquanto nos amamos, não permitimos que o mais ínfimo de nossos instantes, a mais leve de nossas dores se desligassem de nós e ficassem para trás. Os sons, os odores, os matizes do dia, até os pensamentos que não nos dissemos, tudo isso nos acompanhava e tudo permanecia vivo: não cessávamos de desfrutá-los ou de sofrer por eles no presente. Nenhuma lembrança; um amor implacável e tórrido, sem sombras, sem recuo, sem refúgio. Três anos presentes ao mesmo tempo. Foi por isso que nos separamos: já não tínhamos forças suficientes para suportar esse fardo. E então, quando Anny me deixou, de repente, de uma só vez, os três anos, como um todo, desmoronaram no passado. Sequer sofri: me sentia vazio. Depois o tempo recomeçou a passar e o vazio aumentou. A seguir, em Saigon, quando decidi regressar à França, tudo que ainda permanecia — rostos estranhos, praças, cais à beira de longos rios —, tudo se aniquilou. E aí está: meu passado é apenas um enorme buraco. Meu presente: essa empregada de corpete preto entregue a seus devaneios perto do balcão, esse homenzinho. Parece-me que tudo o que sei de minha vida foi aprendido nos livros. Os palácios de Benares, o terraço do Rei Leproso, os templos de Java com suas grandes escadarias quebradas, refletiram-se um instante em meus olhos, mas ficaram lá longe, onde estavam. O bonde que passa em frente ao hotel Printania não leva consigo à noite, no vidro de suas janelas, o reflexo do anúncio em néon; inflama-se um instante e se afasta com as vidraças negras. Esse homem não para de me olhar: me incomoda. Faz-se de muito importante para o tamanho que tem. A empregada se decide finalmente a servi-lo. Ergue preguiçosamente seu grande braço escuro, pega a garrafa e a traz com um copo. — Aqui está, senhor. — Sr. Achille — diz ele com civilidade. Ela serve sem responder; de repente ele retira rápido o dedo do nariz e espalma as duas mãos na mesa. Inclina a cabeça para trás e seus olhos brilham. Diz com voz fria: — Pobre moça. A empregada estremece e eu também: há nele uma expressão indefinível, talvez de espanto, como se fosse outra pessoa que tivesse acabado de falar. Os três estamos constrangidos. A empregada gorda é a primeira a recuperar a presença de espírito: não tem imaginação. Olha o sr. Achille de alto a baixo, com dignidade: ela sabe perfeitamente que com uma só mão poderia arrancá-lo de seu lugar e botá-lo para fora. — E por que seria eu uma pobre moça? Ele hesita. Olha para ela, embaraçado, depois ri. Seu rosto se franze em mil rugas, ele faz pequenos gestos com os punhos. — Isso a ofendeu. É algo que se diz por dizer. Diz-se: pobre moça. Não é por mal. Mas ela lhe vira as costas e vai para trás do balcão: está realmente ofendida. Ele ri novamente. — Ha, ha! Saiu sem querer. Está zangada? Ela está zangada — diz, dirigindo-se vagamente a mim. Desvio a cabeça. O homem ergue um pouco o copo, mas não se decide a beber: pisca os olhos com ar surpreso e intimidado; parece que está procurando se lembrar de algo. A empregada sentou-se na caixa; pega uma costura. Tudo retornou ao silêncio: mas já não é o mesmo silêncio. Começou a chover: a água bate de leve nas vidraças; se ainda houver crianças fantasiadas nas ruas, a chuva vai amolecer e borrar suas máscaras de papelão. A empregada acende a luz; são somente duas horas, mas o céu está inteiramente escuro e já não há claridade suficiente para costurar. Suave luz; as pessoas estão em casa, certamente também acenderam as suas. Leem, olham o céu através da janela. Para eles... é outra coisa. Envelheceram diferentemente. Vivem no meio de legados, de presentes, e cada um de seus móveis é uma recordação. Relógios de sala, medalhas, retratos, conchas, pesos de papel, biombos, xales. Têm armários cheios de garrafas, de tecidos, de velhas roupas, de jornais; guardaram tudo. O passado é um luxo de proprietários. Onde poderia eu conservar o meu? Não se pode colocar o passado no bolso; preciso ter uma casa, arrumá-lo nela. Só possuo meu corpo; um homem inteiramente sozinho, só com seu corpo, não pode reter as lembranças; elas passam através dele. Não deveria me queixar: tudo o que quis foi ser livre. O homenzinho se agita e suspira. Está enroscado em seu casaco, mas de quando em quando se endireita e assume um ar altivo. Tampouco tem ele um passado. Procurando bem, certamente se encontraria, em casa de primos que já não o frequentam, uma fotografa dele num casamento, com colarinho de pontas viradas, camisa de peitilho e bigodes esticados de rapaz. De mim creio que não resta nem isso. Ele ainda olha para mim. Dessa vez vai falar comigo, me sinto enrijecer. Não é simpatia o que há entre nós: somos parecidos, só isso. Ele está só como eu, porém mais enterrado na sua solidão do que eu. Deve estar à espera de sua Náusea ou algo no gênero. Há agora, portanto, pessoas que me reconhecem, que pensam, depois que me encararam: “Esse é dos nossos.” E então? O que ele quer? Deve saber que nada podemos fazer um pelo outro. As famílias estão em suas casas, em meio às suas recordações. E nós aqui, dois destroços sem memória. Se ele se levantasse de repente, se me dirigisse a palavra, eu daria um pulo. A porta se abre com estrépito: é o dr. Rogé. — Bom dia a todos. Entra, arisco e desconfiado, vacilando um pouco sobre as pernas compridas que mal conseguem sustentar seu torso. Vejo-o com frequência, aos domingos, na Brasserie Vézelize, mas ele não me conhece. Tem o físico dos antigos instrutores de Joinville: braços que parecem coxas, 110 centímetros de tórax, e não se aguenta em pé. — Jeanne! Jeanne! Caminha a passos miúdos e rápidos até o cabide para pendurar o chapelão de feltro. A empregada dobrou sua costura e vem sem pressa, dormindo, tirar o doutor de seu impermeável. — O que vai tomar, doutor? Ele a examina gravemente. Eis o que chamo um belo rosto de homem. Gasto, vincado pela vida e pelas paixões. Mas o doutor compreendeu a vida, dominou suas paixões. — Não tenho a menor ideia do que vou querer — diz com voz profunda. Deixou-se cair no banco em frente a mim; enxuga a testa. Quando já não está apoiado em suas pernas, sente-se mais à vontade. Seus olhos intimidam, uns grandes olhos pretos e imperiosos. — Vai ser... Vai ser, vai ser, vai ser... um Calvados, minha filha. A empregada, sem fazer um movimento, contempla aquele enorme rosto enrugado. Está pensativa. O homenzinho ergueu a cabeça com um sorriso aliviado. E é verdade: esse colosso nos libertou. Havia aqui algo de horrível que ia se apoderar de nós. Respiro com força: agora estamos entre homens. — Então, esse Calvados vem ou não vem? A empregada estremece e vai embora. Ele estendeu os braços grandes, agarrando a mesa pelas bordas. O sr. Achille está todo contente; ele gostaria de chamar a atenção do doutor. Mas, por mais que balance as pernas e pule no banco, é tão miúdo que não faz barulho. A empregada traz o Calvados. Com um movimento de cabeça mostra ao doutor seu vizinho. O dr. Rogé gira o busto com lentidão: não pode mexer o pescoço. — Ora vejam, é você, velho imundo — grita ele. — Então não morreu? Dirige-se à empregada: — Recebe isso em sua casa? Olha para o homenzinho com seus olhos ferozes. Um olhar direto, que põe as coisas em seu devido lugar. Explica: — Um velho maluco, é isso que ele é. Nem sequer se dá ao trabalho de mostrar que está brincando. Sabe que o velho maluco não se zangará, que vai sorrir. E é o que ocorre: o outro sorri com humildade. Um velho maluco: ele se descontrai, se sente protegido contra si próprio; nada lhe acontecerá hoje. O curioso é que também eu me tranquilizo. Um velho maluco: então era isso, era só isso. O doutor ri, me lança um olhar insinuante e cúmplice: certamente por causa de meu tamanho — e também porque estou com uma camisa limpa — consente em me associar à sua brincadeira. Não rio, não respondo às suas investidas: então, sem deixar de rir, ele dardeja sobre mim o fogo terrível de suas pupilas. Examinamo-nos em silêncio durante alguns segundos; ele me olha de alto a baixo, se fazendo de míope, me classifica. Na categoria dos malucos? Na dos vagabundos? Apesar de tudo, é ele quem desvia a cabeça: um pequeno fraquejo diante de um sujeito sozinho, sem importância social, nem merece ser comentado, se esquece logo. Enrola um cigarro e o acende, depois permanece imóvel com os olhos duros e fixos, como fazem os velhos. Que belas rugas! Ele as tem todas: os riscos transversais na testa, os pés de galinha, os vincos amargos de cada lado da boca, sem mencionar os cordões amarelos que pendem sob seu queixo. Eis um homem de sorte: mesmo vendo-o a distância, dizemo-nos que deve ter sofrido e que é alguém que viveu. Aliás, merece o rosto que tem, porque nem por um instante se iludiu quanto à maneira de reter e utilizar seu passado: simplesmente empalhou-o, converteu-o em experiência para uso das mulheres e dos jovens. O sr. Achille está feliz como certamente não deve ter se sentido há muito tempo. Está boquiaberto de admiração; bebe seu Byrrh em pequenos goles, inflando as bochechas. Muito bem, o doutor soube levá-lo. Não seria o doutor que se deixaria fascinar por um velho maluco, a ponto de ter sua crise; um bom empurrão, algumas palavras bruscas e fustigantes: é disso que precisam. O doutor tem experiência. É um profissional da experiência: os médicos, os padres, os magistrados e os oficiais conhecem o homem como se o tivessem feito. Sinto vergonha pelo sr. Achille. Somos da mesma espécie, deveríamos nos unir contra eles. Mas ele me abandonou, passou para o lado deles: acredita honestamente na Experiência. Não na sua, nem na minha. Na do dr. Rogé. Ainda agora o sr. Achille se sentia estranho, tinha a impressão de estar inteiramente sozinho; agora sabe que houve outros como ele, muitos outros: o dr. Rogé os conheceu, poderia contar ao sr. Achille a história de cada um deles e lhe dizer como terminou. O sr. Achille é simplesmente um caso — e que se deixa reduzir com facilidade a algumas noções comuns. Como gostaria de lhe dizer que o enganam, que ele faz o jogo dos importantes. Profissionais da experiência? Arrastaram suas vidas num torpor, meio adormecidos, se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos ao acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos casamentos, nos enterros. De quando em quando, apanhados num rodamoinho, se debateram sem compreender o que lhes acontecia. Tudo que ocorreu à sua volta começou e terminou fora de sua vista; longas formas obscuras, acontecimentos que vinham de longe roçaram-nos rapidamente e, quando eles quiseram olhar, tudo já terminara. E depois, por volta dos quarenta anos, batizam suas pequenas obstinações e alguns provérbios com o nome de experiência, começam a se fazer de distribuidores automáticos: dois níqueis na fenda da esquerda e eis que saem anedotas embrulhadas em papel prateado; dois níqueis na fenda da direita e recebem-se preciosos conselhos que grudam nos dentes como caramelos pegajosos. Também eu, por esse mesmo processo, poderia ser convidado pelas pessoas e estas se diriam, entre elas, que sou um grande viajante diante do Eterno. Sim: os muçulmanos mijam de cócoras; as parteiras hindus utilizam, à guisa de ergotina, vidro moído na bosta de vaca; em Bornéu, quando uma moça menstrua, passa três dias e três noites em cima do telhado da sua casa. Vi em Veneza enterros em gôndola, em Sevilha as festas da Semana Santa, vi a Paixão de Oberammergau. Naturalmente tudo isso é apenas uma pequena amostra de meu saber: poderia me recostar numa cadeira e começar entretidamente: — Conhece Jihlava, prezada senhora? É uma curiosa cidadezinha da Morávia onde passei uma temporada em 1924... E o presidente do tribunal que presenciou tantos casos tomaria a palavra no fim de minha história: — Como isso é verdadeiro, caro senhor, como é humano! Vi um caso semelhante no início de minha carreira. Foi em 1902. Eu era juiz-substituto em Limoges... Mas sucede que me aborreceram demais com esse tipo de coisa em minha juventude. No entanto eu não pertencia a uma família de profissionais. Mas existem também os amadores. São os secretários, os empregados de escritórios, os comerciantes, os que ouvem os outros no café: sentem-se inflados, ao se aproximar dos quarenta anos, por uma experiência a que não podem dar vazão. Felizmente fizeram filhos e obrigam-nos a consumi-la ali mesmo. Gostariam de nos fazer crer que o passado deles não se perdeu, que suas recordações se condensaram, convertendo-se suavemente em Sabedoria. Cômodo passado! Passado de bolso, livreto dourado cheio de belas máximas. “Acredite-me, estou falando por experiência, tudo o que sei foi a vida que me ensinou.” Teria a Vida se encarregado de pensar por eles? Explicam o novo pelo antigo — e o antigo, eles o explicaram pelos acontecimentos mais antigos ainda, como esses historiadores que fazem de Lenin um Robespierre russo e de Robespierre um Cromwell francês: no fim das contas, nunca entenderam nada de nada... Por trás de sua importância adivinha-se uma preguiça melancólica: veem desfilar aparências, bocejam, acham que não há nada de novo sob o sol. “Um velho maluco” — e o dr. Rogé pensava vagamente em outros velhos malucos, sem se lembrar de nenhum em particular. Agora, nada do que o sr. Achille fizesse nos surpreenderia: já que é um velho maluco! Não é um velho maluco: tem medo. De que tem medo? Quando queremos compreender alguma coisa, colocamo-nos diante dela, sozinhos, sem auxílio; todo o passado do mundo de nada adiantaria. E depois ela desaparece e o que pudemos compreender desaparece com ela. As ideias gerais são mais agradáveis. Depois os profissionais, e até os amadores, sempre acabam tendo razão. Sua sabedoria recomenda que chamemos o mínimo de atenção, que vivamos o mínimo possível, que nos deixemos esquecer. Suas melhores histórias se referem a imprudentes, a tipos originais que foram castigados. Pois muito bem: é assim que as coisas se passam e ninguém pode negá-lo. Talvez o sr. Achille não tenha a consciência muito tranquila. Talvez diga a si mesmo que não estaria como está se tivesse ouvido os conselhos de seu pai e de sua irmã mais velha. O doutor tem o direito de falar: não falhou na vida; soube se tornar útil. Sobreleva-se, calmo e poderoso, a esse pequeno destroço; é um rochedo. O dr. Rogé bebeu seu Calvados. Seu corpo grande relaxa e suas pálpebras caem pesadamente. Pela primeira vez vejo seu rosto sem os olhos: dir-se-ia uma máscara de papelão como as que se vendem hoje nas lojas. Suas faces têm uma terrível cor rosada... A verdade me surge bruscamente: esse homem vai morrer dentro em breve. Certamente sabe disso, basta que se tenha olhado num espelho: a cada dia se parece um pouco mais com o cadáver que se tornará. Eis o que é a experiência deles, eis por que disse a mim mesmo, tantas vezes, que ela cheira a morte: trata-se de sua última defesa. O doutor bem gostaria de acreditar nela, gostaria de esconder de si mesmo a realidade insustentável: que ele está sozinho, sem cabedal, sem passado, com uma inteligência que se embota, um corpo que se desfaz. Então ele construiu muito bem, arrumou muito bem, acolchoou muito bem seu pequeno delírio compensatório: diz a si mesmo que vai progredindo. Tem lapsos de pensamento, momentos em que sua cabeça fica oca? É que seu julgamento já não tem a precipitação da juventude. Já não compreende o que lê nos livros? É que está tão afastado dos livros agora. Já não pode fazer amor? Mas fez amor. Ter feito amor é muito melhor do que fazê-lo ainda: com a distância, julga-se, compara-se e reflete-se. E quanto a esse terrível rosto de cadáver, para poder suportar sua imagem nos espelhos, esforça-se para acreditar que as lições da experiência estão gravadas nele. O doutor vira um pouco a cabeça. Suas pálpebras se entreabrem, ele me olha com olhos avermelhados de sono. Sorriolhe. Gostaria que esse sorriso lhe revelasse tudo o que tenta esconder de si mesmo. Ele despertaria se se pudesse dizer: “Eis aí alguém que sabe que vou morrer!” Mas suas pálpebras tornam a baixar: ele adormece. Vou embora, deixo o sr. Achille a velar o sono do doutor. A chuva parou, está um ar agradável, o céu faz girar lentamente belas imagens negras: é mais do que o suficiente para o quadro de um momento perfeito; para refletir essas imagens, Anny faria com que surgissem em nossos corações pequenas marés sombrias. Mas não sei aproveitar a ocasião: vou ao acaso, vazio e calmo, sob esse céu inutilizado. Quarta-feira É preciso não sentir medo. Quinta-feira Escrevi quatro páginas. A seguir um longo momento de felicidade. Não refletir muito sobre o valor da História. Corre-se o risco de perder o gosto por ela. Não esquecer que o sr. de Rollebon representa hoje em dia a única justificativa de minha existência. Daqui a oito dias vou ver Anny. Sexta-feira O nevoeiro está tão denso no bulevar da Redoute que achei prudente caminhar rente aos muros do quartel; à minha direita, os faróis dos automóveis projetavam uma luz molhada e era impossível saber onde terminava a calçada. Havia gente à minha volta; ouvia o ruído de seus passos, ou às vezes o leve zumbido de suas palavras: mas não via ninguém. Uma vez um rosto de mulher se delineou à altura de meu ombro, mas logo a bruma o engoliu; outra vez alguém me roçou arfando muito. Eu não sabia para onde ia, estava muito absorto: era preciso avançar com precaução, tatear o chão com a ponta do pé e até estender as mãos para a frente. Esse exercício, aliás, não me proporcionava prazer algum. No entanto não pensava em voltar para casa, estava como que seduzido. Finalmente, depois de uma meia hora vislumbrei ao longe uma névoa azulada. Guiando-me por ela, alcancei logo a borda de um grande clarão: no centro deste, traspassando a bruma com suas luzes, reconheci o café Mably. O café Mably tem 12 lâmpadas elétricas; mas só duas estavam acesas, uma sobre a caixa, outra na luminária do teto. O único garçom me empurrou à força para um canto escuro. — Aqui não, senhor, estou limpando. Estava de casaco, sem colete nem colarinho postiço, com uma camisa branca de listras roxas. Bocejava e me olhava com ar aborrecido, passando os dedos pelo cabelo. — Um café e croissants. Esfregou os olhos sem responder e se afastou. Eu estava mergulhado até os olhos na sombra, uma desagradável sombra glacial. O radiador certamente não estava ligado. Não estava só. Em frente a mim estava sentada uma mulher de tez cor de cera que não parava de agitar as mãos, ora para alisar a blusa, ora para compor o chapéu preto. Estava acompanhada de um louro alto que comia um brioche sem dizer palavra. O silêncio me pareceu pesado. Sentia vontade de acender meu cachimbo, mas me seria desagradável chamar a atenção deles riscando um fósforo. O telefone tocou. As mãos se detiveram: ficaram agarradas na blusa. O garçom não se apressava. Acabou de varrer calmamente antes de levantar o fone. “Alô, é o sr. Georges? Bom dia, sr. Georges... Sim, sr. Georges... O patrão não está aqui... Sim, já devia ter descido... Ah! Com esse nevoeiro... Normalmente desce por volta das oito... Sim, sr. Georges, darei o recado. Até logo, sr. Georges.” O nevoeiro se adensava sobre os vidros como uma pesada cortina de veludo cinza. Um rosto colou-se por um instante na vidraça e desapareceu. A mulher disse com voz queixosa: — Amarre meu sapato. — Não está desamarrado — disse o homem sem olhar. Ela se enervou. Suas mãos percorriam sua blusa e seu pescoço como se fossem grandes aranhas. — Está sim, amarre meu sapato. Ele se abaixou com ar irritado e lhe tocou levemente no pé por baixo da mesa: — Pronto. Ela sorriu satisfeita. O homem chamou o garçom. — Garçom, quanto é? — Quantos brioches? — disse o garçom. Eu baixara os olhos para não parecer que estava observando-os. Após alguns instantes ouvi rangidos e vi surgir a fímbria de uma saia e duas botinhas maculadas de lama seca. Seguiram-se as do homem, envernizadas e bicudas. Avançaram para mim, se imobilizaram e deram meia-volta: ele estava colocando o sobretudo. Nesse momento, uma mão começou a descer ao longo da saia, uma mão na ponta de um braço rígido; hesitou um pouco, roçava a saia com as unhas. — Está pronta? — perguntou o homem. A mão se abriu, veio tocar uma grande estrela de lama na botinha direita, depois desapareceu. — Ufa! — disse o homem. Tinha pegado uma valise que estava perto do cabide de pé. Saíram, vi-os penetrar no nevoeiro. — São artistas — diz o garçom, trazendo meu café. — Foram eles que fizeram o número de entreato no Cine Palace. A mulher venda os olhos e lê o nome e a idade dos espectadores. Vão embora hoje, porque é sexta-feira e os programas mudam. Foi buscar um prato de croissants na mesa que os artistas tinham ocupado. — Não é preciso. Não tinha a menor vontade de comer aqueles croissants. — Tenho que apagar a luz. Duas lâmpadas para um único freguês às nove da manhã: o patrão brigaria comigo. A penumbra invadiu o café. Uma leve claridade, manchada de cinza e marrom, descia agora dos vidros altos. — Gostaria de falar com o sr. Fasquelle. Não vira entrar aquela velha. Uma lufada de ar gelado me arrepiou. — O sr. Fasquelle ainda não desceu. — Venho da parte da sra. Florent — retorquiu ela. — A sra. Florent não está passando bem. Não virá hoje. A sra. Florent é a empregada da caixa, a ruiva. — Esse tempo é ruim para a barriga dela — diz a velha. O garçom tomou um ar importante: — É o nevoeiro — responde —, é como o sr. Fasquelle; espantame que não tenha descido. Telefonaram para ele. Normalmente desce às oito horas. A velha olha maquinalmente para o teto. — Está lá em cima? — Sim, seu quarto é lá. A velha diz com voz arrastada, como se falasse consigo mesma: — E se tivesse morrido... — Essa agora — o rosto do garçom exprimiu a mais viva indignação. — Essa agora, muito obrigado! E se tivesse morrido... Esse pensamento me ocorrera. É bem o tipo de ideia que o tempo de nevoeiro estimula. A velha se foi. Deveria tê-la imitado: estava frio e escuro. O nevoeiro infiltrava-se por debaixo da porta, ia subir lentamente e afogar tudo. Na biblioteca municipal eu teria encontrado luz e calor. Novamente um rosto gruda no vidro; estava fazendo caretas. — Espere aí — diz o garçom furioso e sai correndo. O rosto desapareceu, fiquei sozinho. Arrependi-me amargamente de não ter ficado em meu quarto. Agora a bruma certamente o invadiu; sentiria medo de voltar para lá. Por trás da caixa, no escuro, algo estalou. Um ruído que vinha da escada particular; teria o patrão descido finalmente? Mas não: não apareceu ninguém; os degraus estalavam por si sós. O sr. Fasquelle ainda dormia. Ou então estava morto por cima de minha cabeça. Encontrado morto na cama, numa manhã de neblina. Subtítulo: No café os fregueses tomavam suas bebidas sem suspeitar de nada... Mas estaria ainda na cama? Não teria caído, levando consigo os lençóis e batendo com a cabeça no chão? Conheço muito bem o sr. Fasquelle; algumas vezes perguntou por minha saúde. É um gorducho alegre, com uma barba muito cuidada: se morreu, só pode ter sido de um ataque. Estará roxo, com a língua de fora. A barba eriçada; o pescoço violáceo sob os pelos encrespados. A escada particular se perdia na escuridão. Mal se distinguia o corrimão. Era preciso atravessar essa escuridão. A escada rangeria. Lá em cima encontraria a porta do quarto... O corpo ali está, por cima de minha cabeça. Acenderia a luz: tocaria aquela pele morna, para ver. Não aguento mais, levanto-me. Se o garçom me pega na escada, direi que ouvi um barulho. O garçom retornou bruscamente, esbaforido. — Sim, senhor! — gritou. Que imbecil! Dirige-se a mim. — São dois francos. — Ouvi barulho lá em cima — digo. — Não é tão cedo assim. — Sim, mas acho que há algo errado: como se fosse um estertor e depois um ruído surdo. Nessa sala escura, com o nevoeiro por trás das janelas, aquilo parecia muito natural. Nunca esquecerei seu olhar. — Deveria subir para ver — acrescentei maldosamente. — Ah, não — disse ele. E depois: — Ele pode me repreender. Que horas são? — Dez horas. — Se ele não tiver descido, irei lá às dez e meia. Fiz menção de ir embora. — O senhor já vai? Não fica mais um pouco? — Não. — Era realmente um estertor? — Não sei — digo-lhe já saindo —, talvez tenha sido imaginação minha. O nevoeiro se dissipara um pouco. Apressava-me em chegar à rua Tournebride: tinha necessidade de suas luzes. Foi uma decepção: havia luz realmente, banhando as vitrines das lojas. Mas já não era uma luz alegre: estava tudo branco por causa do nevoeiro e aquela luz nos caía sobre os ombros como uma ducha. Muita gente, sobretudo mulheres: empregadas, faxineiras, patroas também, daquelas que dizem: “Eu mesma faço as compras, é mais seguro.” Farejavam um pouco as vitrines e acabavam entrando. Parei em frente à Charcuteria Julien. De quando em quando, via através do vidro uma mão que apontava para as linguiças e os pés de porco trufados. Então uma moça loura e corpulenta se inclinava, o peito descoberto, e pegava com seus dedos o pedaço de carne morta. Em seu quarto, a cinco minutos dali, o sr. Fasquelle estava morto. Procurava ao meu redor um apoio sólido, uma defesa contra os meus pensamentos. Não havia nenhuma: pouco a pouco o nevoeiro se dissolvera, mas alguma coisa de inquietante permanecia na rua. Talvez não se tratasse de uma verdadeira ameaça: era algo apagado, transparente. Mas era exatamente isso que acabava dando medo. Apoiei minha testa na vitrine. Vi sobre a maionese de um ovo à russa uma gota de um vermelho escuro: era sangue. O vermelho sobre o amarelo me embrulhava o estômago. Bruscamente tive uma visão: alguém tinha caído de cara e sangrava sobre os pratos. O ovo rolara no sangue; a rodela de tomate que o coroava se soltara, caíra, vermelho sobre vermelho. A maionese escorrera um pouco: um charco de creme que dividia o rego de sangue em dois braços. — É tolo demais, tenho que reagir. Vou trabalhar na biblioteca. Trabalhar? Bem sabia que não escreveria uma linha. Mais um dia perdido. Ao atravessar o jardim público vi uma grande pelerine azul, imóvel, no banco em que me sento geralmente. Aí está um que não sente frio. Quando entrei na sala de leitura, o Autodidata estava saindo. Precipitou-se sobre mim. — Tenho que lhe agradecer, senhor. Suas fotografias me proporcionaram horas inesquecíveis. Ao vê-lo, tive um momento de esperança: a dois talvez fosse mais fácil atravessar o dia. Mas com o Autodidata só aparentemente se está a dois. Ele bateu num in-quarto. Era uma história das religiões. — Senhor, ninguém estava mais qualificado do que Nouçapié para tentar essa vasta síntese. Isso é verdade? Parecia cansado e suas mãos tremiam: — O senhor não está com bom aspecto — disse-lhe. — Ah, senhor, não é de admirar! É que me aconteceu uma coisa abominável. O guarda vinha em nossa direção: um corso baixinho, irascível, com bigodes de tambor-mor. Passeia horas inteiras entre as mesas, batendo os calcanhares. No inverno cospe nos lenços que depois põe para secar no calefator. O Autodidata se aproximou tanto que sentia em meu rosto o sopro de sua respiração: — Não lhe direi nada diante desse homem — disse em tom confidencial. — Se o senhor quisesse... — O quê? Enrubesceu e suas ancas ondularam graciosamente: — Ah, senhor! Estou me precipitando. Aceitaria almoçar comigo na quarta-feira? — Com muito prazer. Tinha tanta vontade de almoçar com ele quanto de me enforcar. — Fico muito feliz — disse o Autodidata. Acrescentou rapidamente: — Irei buscá-lo se quiser. E desapareceu, certamente com medo de que eu mudasse de opinião se me desse tempo. Eram onze e meia. Trabalhei até quinze para as duas. Trabalho medíocre: estava com um livro à minha frente, mas meus pensamentos voltavam incessantemente ao café Mably. O sr. Fasquelle já teria descido agora? No fundo, não estava muito convencido de sua morte e era precisamente isso que me irritava. Era uma ideia flutuante da qual não podia nem me convencer nem me libertar. Os sapatos do corso rangiam no assoalho. Várias vezes ele veio se postar à minha frente, com ar de querer falar comigo. Mas reconsiderava e se afastava. Por volta de uma hora os últimos leitores foram embora. Eu não estava com fome; sobretudo, não queria ir. Trabalhei ainda um pouco; depois tive um sobressalto: sentia-me sepultado no silêncio. Ergui a cabeça: estava sozinho. O corso certamente descera para ir ter com sua mulher, que é porteira da biblioteca; eu ansiava pelo ruído de seus passos. Ouvi apenas o do carvão caindo no calefator. O nevoeiro invadira a sala: não o verdadeiro nevoeiro que se dissipara fazia muito — o outro, o que ainda enchia as ruas, o que saía das paredes, do calçamento. Uma espécie de inconsistência das coisas. Os livros continuavam ali, arrumados nas prateleiras por ordem alfabética, com suas lombadas pretas ou marrons e suas etiquetas UP lf. 7996 (Uso público — literatura francesa) ou UP cn (Uso público — ciências naturais). Mas... como explicar? Normalmente, potentes e maciças, junto com o calefator, as lâmpadas verdes, as grandes janelas, as escadas — tudo isso forma um dique para conter o futuro. Enquanto permanecermos entre essas paredes, o que ocorrer ocorrerá à direita ou à esquerda do calefator. Se o próprio são Dionísio entrasse, trazendo sua chave nas mãos, teria que entrar pela direita, caminhar entre as prateleiras destinadas à literatura francesa e a mesa reservada às leitoras. E se não tocar no chão, se flutuar a vinte centímetros do assoalho, seu pescoço ensanguentado chegará exatamente à altura da terceira prateleira de livros. Assim, esses objetos servem pelo menos para fixar os limites do verossímil. Pois bem, hoje já não fixavam nada: parecia que até sua existência era discutível, que tinham a maior dificuldade em passar de um instante para o outro. Apertei com força em minhas mãos o volume que estava lendo: mas as sensações mais violentas estavam amortecidas. Nada parecia verdadeiro; eu me sentia rodeado por um cenário de papelão que podia ser bruscamente transplantado. O mundo esperava, retendo a respiração, encolhendo — aguardava sua crise, sua Náusea, como o sr. Achille outro dia. Levantei-me. Já não conseguia ficar quieto em meio àquelas coisas desvigoradas. Fui dar uma olhada pela janela para o crânio de Impétraz. Murmurei: Tudo pode se produzir, tudo pode acontecer. Evidentemente, não o gênero de horror que os homens inventaram; Impétraz não ia se pôr a dançar em seu soclo: seria outra coisa. Olhei com terror para aqueles seres instáveis que, dentro de uma hora, dentro de um minuto, talvez desabassem: isso mesmo; eu estava ali, vivia entre aqueles livros cheios de conhecimentos, alguns dos quais descreviam as formas imutáveis das espécies animais, outros explicavam que a quantidade de energia se conserva integralmente no universo; estava ali, de pé em frente a uma janela cujas vidraças tinham um índice de refração determinado. Mas que barreiras frágeis! Creio que é por preguiça que o mundo parece o mesmo de um dia para o outro. Hoje parecia querer mudar. E então tudo, tudo podia acontecer. Não tenho tempo a perder: na origem desse mal-estar há a história do café Mably. Tenho que voltar lá, tenho que ver o sr. Fasquelle vivo; se necessário, tenho que tocar em sua barba ou em suas mãos. Então talvez me liberte. Peguei meu sobretudo às pressas e joguei-o sobre os ombros sem enfiá-lo; estou fugindo. Ao atravessar o jardim público, encontrei no mesmo lugar o homenzinho da pelerine; seu rosto era enorme e lívido, entre duas orelhas escarlates de frio. O café Mably cintilava ao longe: dessa vez as 12 lâmpadas deviam estar acesas. Apressei o passo: era preciso acabar com aquilo. Dei primeiro uma olhadela pela janela envidraçada; a sala estava deserta. A empregada da caixa não estava lá, tampouco o garçom — nem o sr. Fasquelle. Tive que fazer um grande esforço para entrar; não me sentei. Gritei: “Garçom!” Ninguém respondeu. Uma xícara vazia numa mesa. Um torrão de açúcar no pires. — Há alguém aí? Um sobretudo estava pendurado num gancho. Numa mesinha revistas estavam empilhadas em caixas de papelão preto. Agucei os ouvidos para perceber o menor ruído, retendo a respiração. A escada particular rangeu levemente. Lá fora a sirene de um barco. Saí andando de costas, sem tirar os olhos da escada. Bem sei: às duas da tarde são raros os fregueses. O sr. Fasquelle estava gripado; certamente mandara o garçom em alguma incumbência — procurar um médico talvez. Sim, mas acontecia que eu precisava ver o sr. Fasquelle. No começo da rua Tournebride me voltei, contemplei com repugnância o café cintilante e deserto. No primeiro andar as persianas estavam baixadas. Fui tomado de verdadeiro pânico. Já não sabia aonde ia. Corri ao longo das docas, me enfiei pelas ruas desertas do bairro Beauvoisis: as casas me viam fugir com seus olhos apagados. Repetia para mim mesmo com angústia: aonde ir? Aonde ir? Tudo pode acontecer. De quando em quando, com o coração batendo, dava meia-volta bruscamente: o que estava acontecendo atrás de mim? Talvez aquilo começasse às minhas costas e quando eu me virasse de repente seria tarde demais. Enquanto pudesse fixar os objetos, nada aconteceria: olhava o máximo possível o calçamento, as casas, os lampiões de gás; meus olhos iam rapidamente de uns para outros, para poder surpreendê-los e detê-los no meio de sua metamorfose. Sua aparência não era inteiramente natural, mas eu me dizia com força: é um lampião de gás, é uma bica, e tentava, com a força de meu olhar, reduzi-los a seu aspecto quotidiano. Por várias vezes encontrei bares em meu caminho: o Café des Bretons, o Bar de la Marine. Parava, hesitava diante de suas cortinas de tule cor-de-rosa: talvez aqueles lugares bem fechados tivessem sido poupados, talvez ainda contivessem uma parcela do mundo de ontem, isolada, esquecida. Mas teria sido preciso empurrar a porta, entrar. Não ousava fazê-lo; prosseguia. As portas das casas, sobretudo, me assustavam. Temia que se abrissem sozinhas. Acabei andando pelo meio da rua. Desemboquei bruscamente no cais das Bassins du Nord. Barcos de pesca, pequenos iates. Apoiei o pé numa argola incrustada numa pedra. Aqui, longe das casas, longe das portas, me desafogaria por um momento. Uma rolha boiava sobre a água calma e salpicada de manchas pretas. “E debaixo da água? Não pensou no que pode haver debaixo da água?” Um animal? Uma grande carapaça meio enterrada na lama? Doze pares de patas revolvem lentamente o lodo. De quando em quando o animal se ergue um pouco. No fundo da água. Aproximeime, espreitando um remoinho, uma leve ondulação. A rolha permanecia imóvel entre as manchas pretas. Nesse momento ouvi vozes. Era tempo. Dei meia-volta e recomecei a correr. Alcancei os dois homens que falavam na rua Castiglione. Ao ruído dos meus passos, estremeceram violentamente e se voltaram ao mesmo tempo. Vi seus olhos inquietos se dirigindo para mim, depois para atrás de mim, para ver se vinha alguma outra coisa. Então estavam como eu, então sentiam medo? Quando passei por eles, nos olhamos: um pouco mais e nos teríamos falado. Mas de repente os olhares exprimiram desconfiança: num dia como esse não se fala com desconhecidos. Dei por mim na rua Boulibet, sem fôlego. Muito bem, a sorte estava lançada: retornaria à biblioteca, pegaria um romance, tentaria ler. Andando junto às grades do jardim público, vislumbrei o homenzinho da pelerine. Continuava ali, no jardim deserto; o nariz se tornara tão vermelho quanto as orelhas. Ia empurrar o portão, mas a expressão de seu rosto me paralisou: franzia os olhos, um meio sorriso de escárnio, um ar idiota e meloso. Mas ao mesmo tempo fixava à sua frente qualquer coisa que eu não via, com um olhar tão duro e de tal intensidade que me voltei bruscamente. Em frente a ele, um pé no ar, a boca entreaberta, uma menina de uns dez anos examinava-o, fascinada, puxando nervosamente seu fichu e avançando o rosto afilado. O homenzinho sorria consigo mesmo, como alguém que vai pregar uma boa peça. De repente se levantou, as mãos nos bolsos de sua pelerine que quase lhe chegava aos pés. Deu dois passos e seus olhos se reviraram. Pensei que ia cair. Mas continuava a sorrir, com ar sonolento. Subitamente entendi: a pelerine! Queria impedir aquilo. Bastava que tossisse ou empurrasse o portão. Mas estava fascinado, por minha vez, pelo rosto da menina. Suas feições estavam retesadas pelo medo, seu coração devia estar batendo horrivelmente: só que eu lia também, naquele focinho de rato, algo de potente e de mau. Não era curiosidade, era antes uma espécie de expectativa segura. Senti-me impotente: estava do lado de fora, à margem do jardim, à margem do pequeno drama deles; mas eles estavam pregados um ao outro pela força obscura de seus desejos, formavam um par. Contive a respiração, queria ver o que se estamparia naquele rosto de menina-velha quando o homenzinho, às minhas costas, afastasse as abas de sua pelerine. Mas, subitamente, liberada, a menina sacudiu a cabeça e se pôs a correr. O sujeito da pelerine me vira: fora isso que o detivera. Por um segundo permaneceu imóvel no meio da aleia, depois foi embora, as costas encurvadas. Sua pelerine batia-lhe na barriga da perna. Empurrei o portão e alcancei-o de um pulo. — Ei, você aí! — gritei. Ele começou a tremer. — Uma grande ameaça pesa sobre a cidade — disse delicadamente ao passar por ele. Entrei na sala de leitura e peguei A cartuxa de Parma que estava sobre uma mesa. Tentava me absorver na leitura, encontrar um refúgio na Itália luminosa de Stendhal. Conseguia-o por momentos, em breves alucinações, depois recaía nesse dia ameaçador, em frente a um velhinho que pigarreava, a um rapaz que devaneava reclinado em sua cadeira. As horas passavam, as vidraças tinham escurecido. Éramos quatro, sem contar o corso que carimbava em sua mesa as últimas aquisições da biblioteca. Estávamos ali aquele velhinho, o rapaz louro, uma jovem mulher que prepara sua licenciatura — e eu. De quando em quando um de nós erguia a cabeça, dava uma olhadela rápida e desconfiada para os outros três, como se tivesse medo deles. Em dado momento o velhinho começou a rir: vi a mulher estremecer da cabeça aos pés. Mas eu decifrara, de trás para diante, o título do livro que ele estava lendo: era um romance cômico. Dez para as sete. Pensei bruscamente que a biblioteca fechava às sete horas. Mais uma vez ia ser atirado na cidade. Aonde iria? O que faria? O velho terminara seu romance. Mas não ia embora. Tamborilava na mesa em pancadinhas secas e regulares. — Senhores, já vamos fechar — disse o corso. O rapaz estremeceu e me dirigiu um rápido olhar. A mulher se virara para o corso, depois tornou a pegar no livro parecendo mergulhar na leitura. — Está na hora — disse o corso cinco minutos depois. O velho sacudiu a cabeça com ar indeciso. A mulher afastou o livro, mas não se levantou. O corso estava surpreso. Deu alguns passos hesitantes, depois desligou um interruptor. As lâmpadas se apagaram nas mesas de leitura. Só o globo central permanecia aceso. — Temos que ir embora? — perguntou baixinho o velho. O rapaz se levantou lentamente, a contragosto. Cada qual levava mais tempo para enfiar seu sobretudo. Quando saí, a mulher ainda estava sentada com uma mão espalmada sobre seu livro. Embaixo, a porta de entrada se escancarava para a noite. O rapaz que ia na frente se voltou, desceu lentamente a escada, atravessou o vestíbulo; deteve-se um momento na soleira, depois se precipitou na noite e desapareceu. Ao chegar embaixo da escada, ergui a cabeça. Passado um momento, o velhinho deixou a sala de leitura, abotoando o sobretudo. Quando já tinha descido os três primeiros degraus, tomei impulso e mergulhei de olhos fechados. Senti em meu rosto uma leve carícia fresca. Ao longe alguém assoviava. Descerrei as pálpebras: chovia. Uma chuva calma e suave. A praça estava placidamente iluminada por seus quatro lampiões. Uma praça de interior sob a chuva. O rapaz se afastava a passos largos; era ele que estava assoviando: tive vontade de gritar para os outros dois, que ainda não sabiam, que podiam sair sem medo, que a ameaça passara. O velhinho apareceu na soleira. Coçou o rosto com ar embaraçado, depois deu um sorriso largo e abriu o guarda-chuva. Sábado de manhã Um sol deleitável, com uma leve bruma que promete um dia de tempo bom. Tomei meu café da manhã no Mably. A sra. Florent, a encarregada da caixa, me dirigiu um sorriso amável. Gritei de minha mesa: — O sr. Fasquelle está doente? — Sim, senhor; uma gripe muito forte: vai ter que ficar alguns dias de cama. A filha dele chegou esta manhã de Dunquerque. Vai ficar instalada aqui para cuidar dele. Pela primeira vez, desde que recebi a carta, me sinto francamente feliz por rever Anny. O que terá feito durante esses seis anos? Ficaremos constrangidos quando nos encontrarmos? Anny ignora o que seja constrangimento. Vai me receber como se eu a tivesse deixado ontem. Oxalá eu não me comporte como um tolo, não a descontente logo de cara. Lembrar bem de não lhe estender a mão ao chegar: ela detesta isso. Quantos dias permaneceremos juntos? Talvez a traga a Bouville. Bastaria que vivesse algumas horas aqui; que dormisse uma noite no hotel Printania. Depois tudo seria diferente; eu já não poderia sentir medo. De tarde No ano passado, quando visitei pela primeira vez o museu de Bouville, o retrato de Olivier-Blévigne me chamou a atenção. Falta de proporções? De perspectiva? Não saberia dizer, mas algo me incomodava: esse deputado não parecia estável em sua tela. Desde então vim vê-lo muitas vezes. Mas meu desagrado persistia. Não queria admitir que Bordurin, que recebera o prêmio de Roma, e era detentor de seis medalhas, tivesse cometido uma falha de desenho. Ora, esta tarde, folheando uma velha coleção do Satirique Bouvillois, jornal de chantagem, cujo proprietário foi acusado de alta traição durante a guerra, vislumbrei a verdade. Deixei a biblioteca imediatamente e fui dar uma volta pelo museu. Atravessei rapidamente a penumbra do vestíbulo. Meus passos não faziam o menor ruído sobre as lajes brancas e pretas. Ao meu redor, todo um povo de gesso torcia os braços. Ao passar por dois grandes arcos, entrevi vasos de esmalte craquelê, pratos, um sátiro azul e amarelo sobre um soclo. Era a sala Bernard-Palissy, consagrada à cerâmica e às artes menores. Mas a cerâmica não me atrai. Um senhor e uma senhora de luto contemplavam respeitosamente esses objetos cozidos. Sobre a entrada do grande salão — ou salão Bordurin-Renaudas — haviam pendurado, recentemente sem dúvida, uma grande tela que eu não conhecia. Estava assinada por Richard Séverand e chamava-se La mort du célibataire. Tratava-se de uma doação do Estado. Nu até a cintura, o torso um pouco esverdeado como condiz com os mortos, o celibatário jazia numa cama desfeita. Os lençóis e as cobertas desfeitas atestavam uma longa agonia. Sorri pensando no sr. Fasquelle. Esse não estava só: sua filha estava cuidando dele. Na tela, a empregada, uma governanta de fisionomia marcada pelo vício, tinha aberto a gaveta de uma cômoda e contava dinheiro. Uma porta aberta deixava ver na penumbra um homem de boné que aguardava, um cigarro grudado no lábio inferior. Junto à parede um gato bebia leite com indiferença. Aquele homem só vivera para si mesmo. Por um castigo severo e merecido, ninguém viera lhe fechar os olhos no leito de morte. Esse quadro me dava um último aviso: ainda era tempo, eu podia retroceder. Mas se prosseguisse, que atentasse bem para isto: no grande salão onde ia entrar, mais de 150 retratos estavam pendurados nas paredes; excetuando alguns jovens arrebatados prematuramente de suas famílias e a madre superiora de um orfanato, nenhum dos que ali estavam representados morrera celibatário, nenhum deles morrera sem filhos nem intestado, nenhum sem os últimos sacramentos. Quites com Deus e com o mundo, naquele dia como nos outros, aqueles homens tinham deslizado suavemente para a morte, para ir exigir a parte de vida eterna a que tinham direito. Pois tinham tido direito a tudo: à vida, ao trabalho, à riqueza, ao mando, ao respeito e, para terminar, à imortalidade. Recolhi-me por um instante e entrei. Um guarda dormia perto de uma janela. Uma luz amarelada que vinha das vidraças fazia manchas nos quadros. Nada de vivo na grande sala retangular, exceto um gato que se assustou com a minha entrada e fugiu. Mas senti sobre mim o olhar de 150 pares de olhos. Todos os que pertenceram à elite de Bouville entre 1875 e 1910 estavam ali, homens e mulheres, escrupulosamente pintados por Renaudas e Bordurin. Os homens construíram Santa Cecília do Mar. Fundaram em 1882 a Federação dos Armadores e dos Negociantes de Bouville, “para reunir num feixe poderoso todas as boas vontades, cooperar na obra do ressurgimento nacional e paralisar os partidos de desordem...”. Fizeram de Bouville o porto comercial francês mais bem aparelhado para o descarregamento de carvão e madeira. O prolongamento e alargamento dos cais foram obras deles. Deram toda a extensão desejável à estação marítima e aumentaram para 10,70m, através de dragagens perseverantes, a profundidade do ancoradouro em baixa-mar. Em vinte anos, graças a eles, a tonelagem dos barcos de pesca, que era de 5.000 tonéis em 1869, subiu para 18.000 tonéis. Não recuando ante qualquer sacrifício para facilitar a ascensão dos melhores representantes da classe operária, criaram, por iniciativa própria, diversos centros de ensino técnico e profissional que prosperaram sob sua proteção. Dominaram a famosa greve das docas em 1898 e deram seus filhos à pátria em 1914. As mulheres, dignas companheiras desses lutadores, fundaram a maioria dos patronatos, das creches, dos ouvroirs.[9] Mas, antes de mais nada, foram esposas e mães. Criaram belos filhos, ensinaramlhes seus deveres e seus direitos, a religião, o respeito pelas tradições que fizeram a França. De um modo geral a cor dos retratos puxava para o marromescuro. As cores vivas haviam sido banidas por uma preocupação com a decência. No entanto, nos retratos de Renaudas, que pintava preferencialmente velhos, a neve dos cabelos e das suíças sobressaíam de fundos pretos; ele era magnífico na representação de mãos. No que se refere a Bordurin, que tinha menos método, as mãos eram um pouco sacrificadas, mas os colarinhos reluziam como mármore branco. Fazia muito calor e o guarda ressonava suavemente. Dei uma olhada circular para as paredes: vi mãos e olhos; aqui e ali uma mancha de luz escondia um rosto. No que me dirigia para o retrato de Olivier Blévigne, algo me reteve: do cimácio, o negociante Pacôme deixava cair sobre mim um olhar claro. Ele estava de pé, a cabeça ligeiramente inclinada para trás, e segurava numa das mãos, contra as calças cinza-pérola, uma cartola e luvas. Não pude evitar uma certa admiração: não via nada de medíocre nele, nada que merecesse crítica: pés pequenos, mãos finas, ombros largos de lutador, elegância discreta com um toque de extravagância. Oferecia cortesmente aos visitantes a limpidez de seu rosto sem rugas; aflorava-lhe aos lábios a sombra de um sorriso. Mas seus olhos cinzentos não sorriam. Devia ter uns cinquenta anos: mantinha-se jovem e cheio de viço como aos trinta. Era bonito. Desisti de lhe descobrir alguma falha. Mas ele não me largou. Li em seus olhos um julgamento calmo e implacável. Compreendi então tudo que nos separava: o que eu podia pensar a seu respeito não o atingia; não passava de psicologia como a que se faz nos romances. Mas seu julgamento me trespassava como um gládio e questionava até meu direito de existir. E era verdade, sempre me apercebera disso: eu não tinha o direito de existir. Surgira por acaso, existia como uma pedra, uma planta, um micróbio. Minha vida se desenvolvia ao acaso e em todos os sentidos. Enviava-me às vezes sinais vagos; outras vezes eu percebia apenas um zumbido sem importância. Mas para aquele belo homem sem falhas, atualmente morto, para Jean Pacôme, filho do Pacôme da Defesa Nacional, tudo tinha sido diferente: as batidas de seu coração e os rumores surdos de seus órgãos chegavam-lhe sob a forma de pequenos direitos instantâneos e puros. Durante sessenta anos, infalivelmente, usara do direito de viver. Que magníficos olhos cinzentos! Nunca a menor dúvida os cruzara. Nunca também Pacôme se equivocara. Sempre cumprira seu dever, todo o seu dever, seu dever de filho, de esposo, de pai, de chefe. Também exigira seus direitos sem tibieza: quando criança, o direito de ser bem-criado, numa família unida, o de herdeiro de um nome sem mácula, de um negócio próspero; como marido, o direito de ser bem cuidado, cercado de terna afeição; como pai, o de ser venerado; como chefe, o direito de ser obedecido sem contestação. Porque um direito é sempre apenas o outro aspecto de um dever. Seu êxito extraordinário (os Pacômes são atualmente a família mais rica de Bouville) certamente nunca o surpreendeu. Nunca disse a si mesmo que era feliz e, quando se entregava a um prazer, fazia-o com moderação, dizendo: “Estou me distraindo.” Assim, o prazer, passando também para a categoria de direito, perdia sua futilidade agressiva. À esquerda, um pouco acima de seus cabelos de um cinza-azulado, vi alguns livros sobre uma prateleira. As encadernações eram bonitas; eram certamente clássicos. Pacôme, sem dúvida, relia à noite, antes de dormir, algumas páginas de “seu velho Montaigne” ou uma ode de Horácio no texto latino. Algumas vezes também devia ler uma obra contemporânea para se informar. Foi assim que conheceu Barrès e Bourget. Ao cabo de um momento largava o livro. Sorria. Seu olhar, perdendo sua admirável vigilância, se tornava quase sonhador. Ele dizia: “Como é mais simples e mais difícil cumprir o nosso dever!” Jamais refletira retrospectivamente sobre seus atos: era um chefe. Havia outros chefes pendurados nas paredes: aliás, era só o que havia. Aquele velho grande, cor de azinhavre, em sua poltrona, era um chefe. Seu colete branco era uma evocação feliz de seus cabelos prateados. (Esses retratos pintados sobretudo com fins de edificação moral e cuja exatidão tocava as raias do escrúpulo não excluíam a preocupação artística.) Sua mão fina e longa estava pousada na cabeça de um menininho. Um livro aberto repousava sobre os joelhos envoltos numa manta. Mas o olhar vagava ao longe. Ele via todas essas coisas que são invisíveis para os jovens. Seu nome fora escrito no losango de madeira dourada por baixo de seu retrato: devia chamar-se Pacôme ou Parrottin ou Chaigneau. Não me ocorreu ir ver: para os seus parentes, para aquela criança, para si mesmo era simplesmente o Avô; em breve, se achasse que era chegada a hora de fazer entrever ao neto a extensão de seus futuros deveres, falaria de si próprio na terceira pessoa. “Você vai prometer ao seu avô, meu querido, que será muito ajuizado, estudará com afinco no próximo ano. Talvez no próximo ano seu avô já não esteja aqui.” No ocaso da vida ele espargia sua indulgente bondade sobre cada um. Até eu, se ele me visse — mas eu era transparente ao seu olhar — cairia em suas graças: se lembraria de que também eu tinha tido avós outrora. Já não exigia nada: não se têm mais desejos nessa idade. Nada, exceto que se baixasse ligeiramente a voz quando ele entrava, exceto que houvesse à sua passagem uma nuança de ternura e de respeito nos sorrisos; nada, exceto que sua nora dissesse às vezes: “O pai é extraordinário; é mais jovem do que todos nós”; exceto ser o único capaz de acalmar as fúrias do neto colocando as mãos sobre sua cabeça, e poder dizer a seguir: “Grandes desgostos como esses é o avô que sabe consolar”; nada, exceto que o filho, várias vezes por ano, viesse solicitar seus conselhos sobre questões delicadas; nada, enfim, exceto se sentir sereno, em paz, infinitamente sábio. A mão do velho senhor mal pesava sobre os cachos do neto: era quase uma bênção. Em que estaria pensando? Em seu passado honrado que lhe conferia o direito de falar sobre tudo e de dar a última palavra sobre tudo. Eu não me estendera suficientemente o outro dia: a experiência era bem mais do que uma defesa contra a morte; era um direito: o direito dos velhos. O general Aubry, pendurado no cimácio com seu grande sabre, era um chefe. Um chefe também o presidente Hébert, fino letrado, amigo de Impétraz. Seu rosto era longo e simétrico, com um queixo interminável, pontuado, bem sob o lábio, por uma pera; avançava um pouco o maxilar, com ar divertido, como se estivesse fazendo um distinguo, meditando uma objeção de princípio, como um discreto arroto. Estava pensativo, segurando uma pena de pato para escrever: também ele tinha sua distração, que consistia em fazer versos. Mas tinha o olhar de águia dos chefes. E os soldados? Encontrava-me no centro da sala, ponto de mira de todos aqueles olhos graves. Não era um avô, nem um pai, nem sequer um marido. Não votava, mal pagava alguns impostos: não podia me vangloriar nem dos direitos do contribuinte, nem dos do eleitor, nem mesmo do humilde direito à honorabilidade que vinte anos de obediência conferem ao empregado. Minha existência começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples aparência? — Ei — disse a mim mesmo subitamente —, o soldado sou eu! Isso me fez rir, sem ressentimento. Um quinquagenário roliço me respondeu delicadamente com um bonito sorriso. Renaudas o pintara com amor, não havia tintas demasiado suaves para as orelhinhas carnudas e cinzeladas, para as mãos sobretudo. Longas, nervosas, com os dedos delgados, eram verdadeiras mãos de sábio ou de artista. Seu rosto me era desconhecido: certamente passara muitas vezes diante da tela sem reparar nela. Aproximei-me, li: “Rémy Parrottin, nascido em Bouville em 1849, professor da Escola de Medicina de Paris.” Parrottin: o dr. Wakefield me falara nele: “Encontrei uma vez na vida um grande homem. Foi Rémy Parrottin. Cursei suas aulas durante o inverno de 1904 (sabe que passei dois anos em Paris para estudar obstetrícia). Ele me fez compreender o que é um chefe. Tinha magnetismo, juro-lhe. Eletrizava-nos, com ele teríamos ido até os confins do mundo. E além disso era um gentleman: tinha uma fortuna imensa, boa parte da qual consagrava a ajudar os estudantes pobres.” Foi assim que esse príncipe da ciência me inspirou alguns sentimentos fortes da primeira vez que ouvi mencioná-lo. Agora estava diante dele e ele me sorria. Que inteligência e afabilidade em seu sorriso! Seu corpo rechonchudo repousava molemente numa grande poltrona de couro. O sábio despretensioso deixava imediatamente as pessoas à vontade. Poderia até ser tomado por um homenzinho qualquer, não fosse a espiritualidade de seu olhar. Não era preciso muito tempo para adivinhar a razão de seu prestígio: era amado porque compreendia tudo; podia dizer-se tudo a ele. Parecia-se um pouco com Renan, em suma, mas com mais distinção. Era desses que dizem: “Os socialistas? Muito bem, vou mais longe do que eles.” Quem o acompanhava por esse caminho perigoso logo tinha que abandonar, dominado pela emoção, a família, a pátria, o direito de propriedade, os valores mais sagrados. Duvidava-se até por um momento do direito de comandar da elite burguesa. Mais um passo e subitamente tudo era restabelecido, maravilhosamente fundamentado em sólidas razões, à antiga. Voltando-se, quem o acompanhava distinguia atrás de si os socialistas já longe, muito pequenos, agitando seus lenços e gritando: “Esperem-nos.” Eu aliás sabia, por Wakefield, que o Mestre gostava, como ele mesmo dizia com um sorriso, de “dar à luz as almas”. Tendo permanecido jovem, rodeava-se de juventude: recebia com frequência jovens de boa família que se destinavam à medicina. Wakefield almoçara várias vezes em sua casa. Terminada a refeição passava-se para o fumoir. O professor tratava como homens adultos aqueles estudantes que já não estavam muito longe de seus primeiros cigarros: oferecia-lhes charutos. Estirava-se num divã e falava demoradamente, os olhos semicerrados, rodeado pela multidão ávida de discípulos. Evocava recordações, contava anedotas, das quais extraía uma moralidade picante e profunda. E, se entre esses jovens bem-educados, surgia algum de caráter um pouco mais rebelde, Parrottin se interessava especialmente por ele. Fazia-o falar, ouvia-o atentamente, fornecia-lhe ideias, temas de meditação. Sucedia forçosamente que um dia o rapaz, transbordando de ideias generosas, excitado pela hostilidade dos seus, cansado de pensar sozinho e contra todos, pedia ao professor que o recebesse a sós; então, balbuciando de timidez, contava-lhe seus pensamentos mais íntimos, suas indignações, suas esperanças. Parrottin apertava-o contra o peito. Dizia: “Compreendo-o, compreendi-o desde o primeiro dia.” Conversavam, Parrottin ia mais longe, mais longe ainda — tão longe que o rapaz tinha dificuldade em acompanhá-lo. Com algumas conversas dessa espécie era possível constatar uma melhora sensível no jovem revoltado. Ele adquiria uma visão clara de si mesmo, aprendia a conhecer os vínculos profundos que o ligavam a sua família, a seu meio; compreendia, enfim, o admirável papel da elite. E para terminar, como por encanto, a ovelha desgarrada, que acompanhara Parrottin passo a passo, se encontrava de volta no redil, esclarecida, arrependida. “Ele curou mais almas”, concluía Wakefield, “do que eu curei corpos”. Rémy Parrottin me sorria afavelmente. Hesitava, procurava compreender minha posição, para modificá-la suavemente e me levar para o aprisco. Mas eu não sentia medo dele: eu não era uma ovelha. Olhei para sua bonita testa, tranquila e sem rugas, para seu pequeno ventre, para sua mão espalmada sobre o joelho. Devolvilhe o sorriso e deixei-o. Jean Parrottin, seu irmão, presidente da S.A.B., apoiava-se com as duas mãos na beira de uma mesa repleta de papéis; por toda a sua atitude, fazia sentir ao visitante que a audiência terminara. Seu olhar era extraordinário; era como que abstrato e brilhava de puro direito. Seus olhos deslumbrantes devoravam-lhe todo o rosto. Distingui sob esse fulgor dois lábios finos e apertados de místico. “É engraçado”, pensei, “ele se parece com Rémy Parrottin”. Virei-me para o professor: examinando-o à luz dessa parecença, fazia-se surgir bruscamente em seu rosto suave um não sei quê de árido e desolado, o ar da família. Voltei-me novamente para Jean Parrottin. Esse homem tinha a simplicidade de uma ideia. Só restavam nele ossos, carnes mortas e o Direito Puro. Um verdadeiro caso de possessão, pensei. Quando o direito se apodera de um homem, não há exorcismo capaz de expulsá-lo; Jean Parrottin dedicara toda a sua vida a conceber seu direito: nada mais. Em lugar da ligeira dor de cabeça que eu sentia despontar, como todas as vezes que visito um museu, ele teria sentido em suas têmporas o direito doloroso de ser bem tratado. Era preciso que não o fizessem pensar muito, que não chamassem sua atenção para realidades desagradáveis, para a possibilidade de sua morte, para os sofrimentos de outrem. Certamente, em seu leito de morte, naquela hora em que é de praxe, desde Sócrates, pronunciar algumas palavras elevadas, ele dissera à sua mulher, como um de meus tios à dele, que o velara durante 12 noites: “A você, Thérèse, não agradeço; só cumpriu seu dever.” Quando um homem chega a esse ponto, há que se lhe tirar o chapéu. Seus olhos, que eu fixava com assombro, me indicavam que era hora de me retirar. Não parti, fui resolutamente indiscreto. Sabia, por ter contemplado longamente um determinado retrato de Filipe II na biblioteca do Escorial, que, quando se olha de frente um rosto resplandecente de direito, passado um momento, esse resplendor se extingue, fica apenas um resíduo como que de cinzas: era esse resíduo que me interessava. Parrottin oferecia uma bela resistência. Mas de repente seu olhar se apagou, o quadro se tornou baço. Que restava? Dois olhos cegos, a boca fina como uma serpente morta e as faces. Bochechas pálidas e rechonchudas de criança: espalhavam-se na tela. Os empregados da S.A.B. nunca suspeitaram que existissem: não ficavam tempo bastante no escritório de Parrottin. Quando entravam, deparavam-se com esse olhar terrível, como se fosse um muro. Por trás deste, as bochechas estavam protegidas, brancas e flácidas. Ao fim de quantos anos sua mulher reparara nelas? Dois anos? Cinco anos? Um dia, imagino, quando o marido dormia ao seu lado e um raio de luar lhe acariciava o nariz, ou então, quando fazia a digestão com dificuldade, na hora do calor, reclinado numa poltrona, os olhos semicerrados, com uma poça de sol no queixo, ela ousara olhá-lo de frente: toda aquela carne aparecera sem defesa, balofa, babosa, vagamente obscena. A partir desse dia, certamente a sra. Parrottin assumira o comando. Dei alguns passos para trás, envolvi num só olhar todos aqueles grandes personagens: Pacôme, o presidente Hébert, os dois Parrottins, o general Aubry. Todos tinham usado cartolas; aos domingos encontravam na rua Tournebride a sra. Gratien, a mulher do prefeito, que viu santa Cecília em sonhos. Dirigiam-lhe grandes cumprimentos cerimoniosos cujo segredo se perdeu. Tinham sido pintados com grande exatidão; e no entanto, sob o pincel, seus rostos haviam perdido a misteriosa fragilidade dos rostos humanos. Suas faces, mesmo as menos vigorosas, eram nítidas como faianças: em vão eu procurava nelas qualquer parentesco com as árvores e os animais, com os pensamentos da terra ou da água. Sabia que em vida não tinham tido essa necessidade. Mas, no momento de passar para a posteridade, se tinham confiado a um pintor de renome para que este operasse discretamente em seus rostos aquelas dragagens, aquelas escavações, aquelas irrigações, através das quais, em torno de toda Bouville, eles haviam transformado o mar e os campos. Assim, com o concurso de Renaudas e de Bordurin, haviam subjugado toda a Natureza: fora deles e neles mesmos. O que aquelas telas escuras ofereciam a meus olhos era o homem repensado pelo homem, com a mais bela conquista do homem como único ornamento: o buquê dos Direitos do Homem e do Cidadão. Admirei sem reservas o reino humano. Tinham entrado um senhor e uma senhora. Estavam vestidos de preto e procuravam não chamar a atenção. Pararam extasiados na soleira da porta, e o senhor tirou o chapéu maquinalmente. — Oh! — disse a senhora, muito emocionada. O senhor recuperou mais depressa seu sangue-frio. Disse em tom respeitoso: — É toda uma época! — Sim — disse a senhora —, é a época de minha avó. Deram alguns passos e se depararam com o olhar de Jean Parrottin. A senhora continuava boquiaberta, mas o senhor parecia constrangido: tinha ares de humilde; devia conhecer bem esses olhares intimidantes e as audiências abreviadas. Puxou suavemente a mulher pelo braço: — Olhe este — disse. O sorriso de Rémy Parrottin sempre deixara os humildes à vontade. A mulher se aproximou e leu com atenção: “Retrato de Rémy Parrottin, nascido em Bouville em 1849, professor da Escola de Medicina de Paris, por Renaudas.” — Parrottin, da Academia de Ciências — disse o marido —, por Renaudas, do Instituto. Isso é História! A senhora sacudiu a cabeça, depois olhou para o professor. — Como é distinto! — disse. — E que ar inteligente! O marido fez um gesto amplo. — Foram todos esses que fizeram Bouville — disse com simplicidade. — Foi boa ideia terem reunido todos aqui — disse a senhora enternecida. Éramos três soldados em manobras na sala imensa. O marido que ria com respeito, silenciosamente, me lançou um olhar inquieto e parou bruscamente de rir. Virei-me para outro lado e fui me postar diante do retrato de Olivier Blévigne. Um suave prazer me invadiu: muito bem, eu tinha razão. Era realmente muito engraçado! A mulher se aproximara de mim. — Gaston — disse, subitamente ousada. — Venha cá! O marido veio em nossa direção. — Olhe — prosseguiu ela —, esse aí tem sua rua: Olivier Blévigne. Sabe qual é? Aquela ruazinha que sobe ao Coteau Vert, logo antes de chegar a Jouxtebouville. Acrescentou passado um momento: — Ele não devia ser muito ameno. — Não! Devia ser um bom interlocutor para os rezingões. A frase era dirigida a mim. O senhor me olhou de esguelha e começou a rir, um pouco ruidosamente dessa vez, com ar presumido e esmiuçador, como se fosse o próprio Olivier Blévigne. Olivier Blévigne não ria. Apontava seu maxilar contraído em nossa direção, e seu pomo de adão ressaltava. Houve um momento de silêncio e de êxtase. — Parece até que vai se mexer — disse a senhora. O marido explicou amavelmente: — Era um negociante atacadista de algodão. Depois fez política, foi deputado. Eu sabia disso. Há dois anos consultei a respeito dele o Pequeno dicionário dos grandes homens de Bouville, do abade Morellet. Copiei o artigo. “Blévigne Olivier-Martial, filho do precedente, nascido e falecido em Bouville (1849-1908), estudou direito em Paris e obteve o grau de licenciado em 1872. Profundamente impressionado pela insurreição da Comuna, que o obrigara, como a tantos parisienses, a se refugiar em Versalhes sob a proteção da Assembleia Nacional, jurou a si mesmo, na idade em que os jovens só pensam no prazer, ‘dedicar sua vida ao restabelecimento da Ordem’. Cumpriu a palavra: tão logo retornou à nossa cidade, fundou o famoso Clube da Ordem, que reuniu todas as noites, durante longos anos, os principais negociantes e armadores de Bouville. Esse círculo aristocrático, do qual se chegou a dizer, como pilhéria, que era mais fechado do que o Jockey, exerceu até 1908 uma influência salutar sobre os destinos de nosso grande porto comercial. Olivier Blévigne desposou em 1880 Marie-Louise Pacôme, filha caçula do negociante Charles Pacôme (ver esse nome) e fundou, por ocasião da morte deste, a casa Pacôme-Blévigne e Filhos. Pouco depois se voltou para a política ativa e se candidatou a deputado. “‘O país’ — disse num discurso célebre — ‘sofre da mais grave das doenças: a classe dirigente já não quer comandar. E quem então comandará, senhores, se aqueles cuja hereditariedade, cuja educação, cuja experiência tornaram mais aptos para o exercício do poder, se afastam deste por resignação ou lassidão? Já o disse muitas vezes: comandar não é um direito da elite; é seu principal dever. Senhores, eu vos conjuro: restauremos o princípio da autoridade!’. “Eleito no primeiro escrutínio a 4 de outubro de 1885, foi em seguida constantemente reeleito. De uma eloquência enérgica e rude, pronunciou inúmeros e brilhantes discursos. Encontrava-se em Paris em 1898, quando estourou a terrível greve. Transportou-se com urgência para Bouville, onde foi o incitador da resistência. Tomou a iniciativa de negociar com os grevistas. Essas negociações, animadas por um espírito de ampla conciliação, foram interrompidas pelos tumultos de Jouxtebouville. Sabe-se que uma intervenção discreta da tropa acalmou os ânimos. “A morte prematura de seu filho Octave, que entrara muito jovem para a Escola Politécnica e de quem ele pretendia ‘fazer um chefe’, foi um golpe terrível para Olivier Blévigne: não se recuperaria dele e morreu dois anos depois, em fevereiro de 1908. “Compilações de discursos: As forças morais (1894. Esgotado); O dever de punir (1900. Os discursos dessa compilação foram todos pronunciados a propósito do caso Dreyfus. Esgotado); Vontade (1902. Esgotado). Depois de sua morte foram reunidos seus últimos discursos e algumas cartas a seus íntimos sob o título Labor improbus (Ed. Plon, 1910). Iconografia: existe um excelente retrato seu, por Bordurin, no museu de Bouville.” Um excelente retrato, seja! Olivier Blévigne usava um bigodinho preto e seu rosto azeitonado se parecia um pouco com o de Maurice Barrès. Os dois homens certamente se haviam conhecido: ocupavam as mesmas bancadas. Mas o deputado de Bouville não tinha a mesma despreocupação que o presidente da Liga dos Patriotas. Era rígido como um pedaço de pau e parecia irromper da tela como no brinquedo em que um diabo de mola pula de sua caixa de surpresa. Seus olhos faiscavam: a pupila era preta, a córnea avermelhada. Franzia os pequenos lábios carnudos e apertava a mão direita contra o peito. Como esse retrato me obcecara! Algumas vezes Blévigne me parecera muito grande e outras muito pequeno. Mas hoje compreendia o porquê. Soube a verdade folheando o Satirique Bouvillois. O número de 6 de novembro de 1905 era inteiramente dedicado a Blévigne. Representavam-no na capa, minúsculo, agarrado à juba de Combes, com a legenda: O Piolho do Leão. E já na primeira página tudo se explicava: Olivier Blévigne media um metro e cinquenta e três. Escarneciam de sua pequena estatura e de sua voz coaxante que mais de uma vez fizera morrer de rir a Câmara inteira. Acusavam-no de introduzir saltos de borracha em suas botas. Em contraposição, a sra. Blévigne, Pacôme de solteira, era um cavalo. “É o caso de se dizer”, acrescentava o cronista, “que ele tem o dobro de si por cara-metade”. Um metro e cinquenta e três! Pois bem: Bordurin, com um cuidado meticuloso, o rodeara de objetos que não deixam sobressair a pequenez; um pufe, uma poltrona baixa, uma prateleira com alguns livros de formato in-doze, uma mesinha persa. Só que lhe dera o mesmo tamanho que o seu vizinho Jean Parrottin, e as duas telas tinham as mesmas dimensões. Daí resultava que a mesinha redonda de uma era quase tão grande quanto a imensa mesa da outra, e o pufe teria chegado ao ombro de Parrottin. O olhar fazia instintivamente a comparação entre os dois retratos: isso explicava meu mal-estar. Agora sentia vontade de rir: um metro e cinquenta e três! Se eu tivesse querido falar com Blévigne, teria sido obrigado a me inclinar ou a dobrar os joelhos. Já não me espantava que empinasse o nariz para o ar tão impetuosamente: o destino dos homens dessa estatura se decide sempre algumas polegadas acima de suas cabeças. Admirável poder da arte. Desse homenzinho de voz esganiçada, nada passaria para a posteridade, a não ser um rosto ameaçador, um gesto soberbo e olhos sanguinolentos de touro. O estudante aterrorizado pela Comuna, o deputado minúsculo e irascível, eis o que a morte levara. Mas, graças a Bordurin, o presidente do Clube da Ordem, o orador das Forças Morais, era imortal. — Oh! Coitadinho do Pipo![10] A senhora soltara um gemido abafado: sob o retrato de Octave Blévigne, “filho do precedente”, uma mão piedosa traçara estas palavras: “Morto na Politécnica em 1904.” — Morreu! Foi como o jovem Arondel. Parecia inteligente. Como sua mãe deve ter sentido. Também, eles têm que se esforçar demais nessas escolas superiores. O cérebro não para de trabalhar nem durante o sono. Gosto muito desses bicornes, são chiques. Chamam-se casuares, não é? — Não; os casuares são em Saint-Cyr. Contemplei por minha vez o retrato do estudante da Politécnica morto prematuramente. Sua tez amarelada e seu bigode convencional teriam bastado para sugerir a ideia de uma morte próxima. Aliás, ele previra seu destino: em seus olhos claros que viam longe lia-se uma certa resignação. Mas ao mesmo tempo tinha a cabeça erguida; com aquele uniforme ele representava o exército francês. Tu Marcellus eris! Manibus date lilia plenis... Uma rosa cortada, um estudante da Politécnica morto: que pode haver de mais triste? Segui lentamente pela longa galeria, cumprimentando ao passar, sem me deter, os rostos distintos que emergiam da penumbra: o sr. Bossoire, presidente do Tribunal de Comércio; o sr. Faby, presidente do Conselho de Administração do Porto Autônomo de Bouville; o sr. Boulange, negociante, com sua família; o sr. Rannequin, prefeito de Bouville; o sr. de Lucien, nascido em Bouville, embaixador da França nos Estados Unidos e poeta; um desconhecido em trajes de prefeito; a madre Sainte-Marie-Louise, superiora do Grande Orfanato; o sr. e sra. Théréson; o sr. Thiboust-Gouron, presidentegeral da Junta de Conciliação; o sr. Bobot, administrador da Capitania do Porto; os srs. Brion, Minette, Grelot, Lefèbvre; o dr. e sra. Pain; o próprio Bordurin pintado por seu filho Pierre Bordurin. Olhares claros e frios, traços delicados, bocas finas, o sr. Boulange era econômico e paciente, madre Sainte-Marie-Louise de uma devoção industriosa. O sr. Thiboust-Gouron era duro para consigo mesmo e para com os outros. A sra. Théréson lutava sem arrefecer contra um mal profundo. A boca infinitamente cansada indicava bem seu sofrimento. Mas nunca essa mulher devota dissera: “Estou sofrendo.” Reagia: organizava menus e presidia sociedades de beneficência. Às vezes, no meio de uma frase, baixava lentamente as pálpebras e seu rosto tornava-se sem vida. Tal fraqueza não durava mais do que um segundo; logo a sra. Théréson reabria os olhos, retomava sua frase. E as pessoas cochichavam: “Coitada da sra. Théréson! Nunca se queixa.” Eu percorrera o salão Bordurin-Renaudas de ponta a ponta. Voltei-me. Adeus, belos lírios tão delicados em seus pequenos santuários pintados; adeus, belos lírios, nosso orgulho e nossa razão de ser. Adeus, Salafrários. Segunda-feira Já não estou escrevendo meu livro sobre Rollebon; isso terminou, já não posso escrevê-lo. Que vou fazer de minha vida? Eram três horas. Estava sentado à minha mesa, tinha colocado ao meu lado a pilha de cartas que roubei em Moscou; escrevia: “Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais sinistros. O sr. de Rollebon deve ter sido vítima dessa manobra, já que escreveu a seu sobrinho, em carta de 13 de setembro, que acabava de redigir seu testamento.” O marquês estava presente: enquanto aguardava instalá-lo definitivamente na existência histórica, emprestava-lhe minha vida. Sentia-a como um leve calor na cavidade do estômago. De repente me apercebi de uma objeção que não deixariam de me fazer: Rollebon estava longe de ser franco com seu sobrinho, de quem queria se utilizar, se o golpe falhasse, como testemunha de defesa junto a Paulo I. Era bem possível que tivesse inventado a história do testamento para passar por ingênuo. Era uma pequena objeção sem importância; uma coisinha à toa. No entanto, foi suficiente para me mergulhar em devaneios soturnos. Subitamente revi a empregada corpulenta do Chez Camille, a cara esgazeada do sr. Achille, a sala onde eu sentira tão nitidamente que estava esquecido, abandonado no presente. Disseme com lassidão: — Como então, eu que não tive forças para reter meu próprio passado, posso esperar salvar o de outra pessoa? Peguei na caneta e tentei continuar a trabalhar; estava farto dessas reflexões sobre o passado, sobre o presente, sobre o mundo. Só pedia uma coisa: que me deixassem acabar meu livro em paz. Mas, quando meu olhar pousou sobre o bloco de folhas brancas, seu aspecto me impressionou e fiquei com a caneta no ar, contemplando aquele papel deslumbrante: como era duro e vistoso, como estava presente. Não havia nada nele que não fosse presente. As letras que acabava de traçar ali ainda não estavam secas e já não me pertenciam. “Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais sinistros...” Essa frase fora pensada por mim, fora primeiro um pouco de mim mesmo. Agora estava gravada no papel, fazia parte de uma coligação contra mim. Já não a reconhecia. Sequer podia repensála. Estava ali, na minha frente; inutilmente teria buscado nela uma marca de origem. Qualquer um poderia tê-la escrito. Mas eu, eu já não estava seguro de tê-la escrito. Agora as letras já não brilhavam, estavam secas. Isso também desaparecera: nada mais restava de seu brilho efêmero. Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o presente, nada além do presente. Móveis leves e sólidos, incrustados em seu presente, uma mesa, uma cama, um armário de espelho — e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe e tudo o que não era presente não existia. O passado não existia. De modo algum. Nem nas coisas, nem mesmo em meu pensamento. Por certo fazia muito tempo que eu compreendera que o meu me escapara. Mas até então pensava que simplesmente se retirara do meu alcance. Para mim o passado era apenas uma aposentadoria: era uma outra maneira de existir, um estado de férias e de inação; cada acontecimento, quando seu papel findava, se arrumava sensatamente, por si próprio, numa caixa e se tornava acontecimento honorário: é tão difícil imaginar o nada! Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem — e por trás delas... não existe nada. Esse pensamento me absorveu durante mais alguns minutos. Depois fiz um movimento de ombros violento para me libertar e puxei para mim o bloco de papel. “... que acabava de redigir seu testamento.” Uma imensa repugnância me invadiu subitamente e a caneta me caiu da mão cuspindo tinta. Que acontecera? Estava com a Náusea? Não, não era isso, o quarto estava com sua aparência protetora de todos os dias. A mesa quase não me parecia mais pesada, mais espessa, e minha caneta mais compacta. Só que o sr. de Rollebon acabava de morrer pela segunda vez. Ainda agora estava ali, em mim, tranquilo e quente, e de quando em quando o sentia mexer. Estava bem vivo, mais vivo para mim do que o Autodidata ou a dona do Rendez-vous des Cheminots. Tinha, sem dúvida, seus caprichos, era capaz de permanecer vários dias sem aparecer; mas muitas vezes, em misteriosos dias de sol, botava o nariz de fora como o capuchinho higrométrico, e eu distinguia seu rosto pálido e suas bochechas azuis. E mesmo quando não aparecia, sentia seu peso em meu coração e me sentia cheio. Agora não restava mais nada dele. Assim como não restava nos traços de tinta seca a lembrança de seu brilho recente. A culpa era minha: havia pronunciado as únicas palavras que não deviam ser ditas: dissera que o passado não existia. E, de repente, sem ruído, o sr. de Rollebon retornara ao seu nada. Peguei suas cartas, apalpei-as com uma espécie de desespero: — Foi ele — disse a mim mesmo —, no entanto foi ele que traçou esses sinais um por um. Apoiou-se sobre esse papel, colocou seu dedo nas folhas para impedir que girassem sob a caneta. Tarde demais: essas palavras já não tinham sentido. Nada mais existia a não ser um maço de folhas amarelas que eu apertava nas mãos. Havia na verdade aquela história complicada: o sobrinho de Rollebon assassinado em 1810 pela polícia do czar, seus papéis confiscados e transportados para os arquivos secretos; depois, 110 anos mais tarde, depositados pelos sovietes, que assumiram o poder na biblioteca do Estado de onde os roubo em 1923. Mas aquilo não parecia verdadeiro e, desse roubo que eu próprio cometi, não me ficara nenhuma verdadeira lembrança. Para explicar a presença desses papéis em meu quarto, não teria sido difícil encontrar cem outras histórias mais admissíveis: todas, diante dessas folhas enrugadas, pareceriam vazias e frágeis como bolhas. Ao invés de contar com elas para me comunicar com Rollebon, mais valia recorrer imediatamente às mesas que rodam.[11] Rollebon já não existia. Se ainda restavam dele alguns ossos, existiam por si próprios, totalmente independentes, já não passavam de um pouco de fosfato e de carbonato de cálcio com sais e água. Fiz uma última tentativa; repeti para mim mesmo as palavras da sra. de Genlis com as quais — geralmente — evoco o marquês: “Seu rostinho enrugado, asseado, marcado de varíola, onde havia uma malícia singular, que saltava aos olhos, por mais esforço que fizesse para dissimulá-la.” O rosto dele me apareceu docilmente, o nariz pontiagudo, as bochechas azuis, o sorriso. Conseguia formar suas feições à vontade, talvez até com mais facilidade do que antes. Só que já não era senão uma imagem em mim, uma ficção. Suspirei, deixei-me cair para trás contra o espaldar da cadeira, com a sensação de uma falta intolerável. Soam quatro horas. Faz uma hora que estou aqui, os braços caídos, em minha cadeira. Começa a escurecer. Afora isso, nada mudou nesse quarto: o papel branco continua na mesa, ao lado da caneta e do tinteiro... Mas nunca mais escreverei na folha começada. Nunca mais, seguindo pela rua dos Mutilés e pelo bulevar da Redoute, me dirigirei à biblioteca para consultar os arquivos. Sinto vontade de dar um salto e sair, de fazer qualquer coisa para me atordoar. Mas, se levanto um dedo, se não me mantiver absolutamente imóvel, sei bem o que vai me acontecer. Não quero que isso me aconteça ainda. Isso virá sempre cedo demais. Não me mexo; leio maquinalmente, na folha do bloco, o parágrafo que deixei inacabado: “Tinham sido cuidadosamente espalhados os boatos mais sinistros. O sr. de Rollebon deve ter sido vítima dessa manobra, já que escreveu a seu sobrinho, em carta de 13 de setembro, que acabava de redigir seu testamento.” O grande caso Rollebon terminou como uma grande paixão. Será necessário descobrir outra coisa. Há alguns anos, em Xangai, no escritório de Mercier, de repente saí de um sonho, acordei. Depois tive outro sonho, vivia na corte dos czares, em velhos palácios tão frios que no inverno se formavam estalactites de gelo por cima das portas. Hoje acordo diante de um bloco de papel branco. Desapareceram os archotes, as festas glaciais, os uniformes, os belos ombros tiritantes. Em seu lugar, algo permanece no quarto morno, algo que não quero ver. O sr. de Rollebon era meu sócio: precisava de mim para ser, e eu precisava dele para não sentir meu ser. Eu fornecia a matéria bruta, essa matéria que eu tinha para dar e vender, da qual não sabia o que fazer: a existência, minha existência. A parte dele consistia em representar. Ficava em frente a mim e se apoderara de minha vida para me representar a dele. Eu já não me apercebia de que existia, já não existia em mim, mas nele; era para ele que comia, para ele que respirava, cada um de meus movimentos tinha seu sentido fora de mim, ali, bem em frente de mim, nele; já não via minha mão que traçava as letras no papel, nem sequer a frase que escrevera — mas por trás, para além do papel, via o marquês, que solicitara esse gesto e cuja existência esse gesto prolongava, consolidava. Eu era apenas um meio de fazê-lo viver, ele era minha razão de ser, me libertara de mim mesmo. Que farei agora? Sobretudo não me mexer, não me mexer... Ah! Não pude impedir esse movimento de ombros... A coisa, que estava à espera, alertou-se, precipitou-se sobre mim, penetra em mim, estou pleno dela. — Não é nada: a Coisa sou eu. A existência, liberada, desprendida, reflui sobre mim. Existo. Existo. É suave, tão suave, tão lento. E leve: dir-se-ia que isso flutua no ar por si só. Mexe-se. São leves toques, por todo lado, toques que se dissolvem e se desvanecem. Suavemente, suavemente. Há uma água espumosa em minha boca. Engulo-a, ela desliza por minha garganta, me acaricia — e eis que renasce em minha boca, tenho perpetuamente na boca uma pequena poça de água esbranquiçada — discreta — que roça minha língua. E essa poça também sou eu. E a língua também, e a garganta, sou eu. Vejo minha mão que desabrocha sobre a mesa. Ela vive — sou eu. Abre-se, os dedos se estendem e apontam. Ela está pousada de costas. Mostra-me seu ventre gordo. Parece um animal de pernas para o ar. Os dedos são as patas. Divirto-me fazendo-os mexer muito rápido, como as patas de um caranguejo caído de costas. O caranguejo morreu: as patas se crispam, vêm para o ventre de minha mão. Vejo as unhas — a única coisa de mim que não vive. E mesmo assim... Minha mão se vira, estende-se de barriga para baixo, me oferece agora suas costas. Costas prateadas, um pouco brilhantes — dir-se-ia um peixe, se não houvesse os pelos ruivos no início das falanges. Sinto minha mão. Esses dois animais que se agitam na ponta de meus braços sou eu. Minha mão coça uma de suas patas com a unha de uma outra pata; sinto seu peso na mesa que não sou eu. Essa impressão de peso persiste, não passa, persiste. Não há razão para que passe. Com o tempo, isso se torna intolerável... Retiro minha mão, coloco-a em meu bolso. Mas sinto logo, através do tecido, o calor de minha coxa. Faço saltar imediatamente minha mão de meu bolso; deixo-a caída junto ao espaldar da cadeira. Agora sinto seu peso na ponta de meu braço. Ela puxa um pouco, muito pouco, mole, maciamente ela existe. Não insisto: onde quer que a ponha, ela continuará a existir e eu continuarei a sentir que ela existe; não posso suprimi-la, nem suprimir o resto de meu corpo, o calor úmido que suja minha camisa, nem toda essa gordura quente que se move preguiçosamente como se uma colher a remexesse, nem todas as sensações que passeiam lá dentro, que vão e vêm, sobem de meu flanco até minha axila, ou então vegetam silenciosamente, da manhã à noite, em seu canto habitual. Levanto-me de chofre: se pelo menos pudesse parar de pensar, já seria melhor. Os pensamentos são o que há de mais insípido. Mais insípido ainda do que a carne. Prolongam-se interminavelmente e deixam um gosto esquisito. E depois, dentro dos pensamentos, há as palavras, as palavras inacabadas, os esboços de frases que retornam constantemente: “Tenho que termi... Eu ex... Morr... O sr. de Roll morreu... Não estou... Eu ex...” E assim por diante... e não termina nunca. É pior que o resto, porque me sinto responsável e cúmplice. Por exemplo, essa espécie de ruminação dolorosa: existo — sou eu que a alimento. Eu. O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento, sou eu que o continuo, que o desenvolvo. Existo. Penso que existo. Oh! Que serpentina comprida esse sentimento de existir — e eu a desenrolo muito lentamente... Se pudesse me impedir de pensar! Tento, consigo: parece-me que minha cabeça se enche de fumaça... e eis que tudo recomeça: “Fumaça... não pensar... Não quero pensar... Penso que não quero pensar... Não devo pensar que não quero pensar. Porque isso também é um pensamento.” Será que não termina nunca? Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque penso... e não posso me impedir de pensar. Nesse exato momento — é terrível — se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras tantas maneiras de me fazer existir, de me embrenhar na existência. Os pensamentos nascem por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer atrás de minha cabeça... se eu cedo, virão para a frente, aqui entre meus olhos — e sempre cedo, o pensamento cresce, cresce e fica imenso, me enchendo por inteiro e renovando minha existência. Minha saliva está açucarada, meu corpo está morno; sinto-me insípido. Meu canivete está sobre a mesa. Abro-o. Por que não? De toda maneira seria uma mudança. Coloco minha mão esquerda sobre o bloco e me desfiro uma boa canivetada na palma. O gesto foi muito nervoso; a lâmina escorregou, a ferida é superficial. Sangra. E afinal? O que foi que mudou? De toda maneira olho com satisfação na folha branca, por entre as linhas que tracei há pouco, essa poçazinha de sangue que finalmente deixou de ser eu. Quatro linhas numa folha branca, uma mancha de sangue, é assim que se forma uma bela recordação. Terei de escrever embaixo: “Nesse dia desisti de fazer meu livro sobre o marquês de Rollebon.” Farei um curativo em minha mão? Hesito. Olho para o monótono veiozinho de sangue. Está exatamente começando a coagular. Terminou. Minha pele, em torno do corte, está como que enferrujada. Sob a pele resta apenas uma pequena sensação semelhante às outras, talvez ainda mais apagada. Soam cinco e meia. Levanto-me, minha camisa fria se cola à minha carne. Saio. Por quê? Bem, porque também não tenho razão alguma para não fazê-lo. Ainda que fique, ainda que me encolha em silêncio num canto, não me esquecerei de mim. Estarei aqui, pesarei sobre o assoalho. Eu sou. Compro um jornal no caminho. Sensacional. O corpo da pequena Lucienne foi encontrado! Cheiro de tinta, o papel se amarrota entre meus dedos. O ignóbil indivíduo fugiu. A criança foi violada. Encontraram seu corpo com os dedos crispados na lama. Faço uma bola com o jornal; meus dedos estão crispados no jornal; cheiro de tinta; Deus meu, como as coisas hoje existem com intensidade. A pequena Lucienne foi violada. Estrangulada. Seu corpo ainda existe, sua carne pisada. Ela já não existe. Suas mãos. Ela já não existe. As casas. Caminho entre as casas, estou entre as casas muito teso sobre o calçamento; o calçamento sob meus pés existe, as casas tornam a se fechar sobre mim, como a água se fecha sobre mim sobre o papel em forma de montanha de cisne, eu sou. Sou, existo, penso, logo sou: sou porque penso, por que penso? Já não quero pensar, sou porque penso que não quero ser, penso que eu... porque... bah! Fujo, o ignóbil indivíduo fugiu, seu corpo violado. Ela sentiu aquela outra carne que penetrava na sua. Eu... eis que eu... Violada. Um suave desejo sangrento de estupro que se apodera de mim por trás, muito suave, por trás das orelhas, as orelhas correm atrás de mim, os cabelos ruivos são ruivos em minha cabeça, uma relva molhada, uma relva ruiva, isso ainda sou eu? E esse jornal ainda sou eu? Segurar o jornal, existência contra existência, as coisas existem encostadas umas nas outras, solto esse jornal. A casa brota, ela existe; à minha frente passo rente ao muro, ao longo do longo muro, existo, em frente ao muro, um passo, o muro existe à minha frente, um, dois, atrás de mim, o muro está atrás de mim, um dedo que coça em minha calça, coça, coça e puxa o dedo da criança maculado de lama, a lama em meu dedo que saía do riacho lamacento e torna a cair suavemente, suavemente, amolecia, coçava com menos força que os dedos da menina que estrangulavam, ignóbil indivíduo, raspavam a lama, a terra com menos força, o dedo desliza suavemente, cai de cabeça e acaricia, rolo quente junto a minha coxa; a existência é mole e rola e se sacode, eu me sacudo entre as casas, eu sou, existo, penso, logo me sacudo, sou, a existência é uma queda caída, não cairá, cairá, o dedo raspa na lucarna, a existência é uma imperfeição. O senhor. O belo senhor existe. O senhor sente que existe. Não, o belo senhor que passa, altivo e suave como uma ipomeia, não sente que existe. Desabrochar; minha mão cortada dói, existe, existe, existe. O belo senhor existe, Legião de Honra, existe bigode, é só; como deve ser feliz quem é apenas uma Legião de Honra e um bigode e o resto ninguém vê, ele vê as duas pontas finas de seu bigode dos dois lados do nariz; não penso, logo sou um bigode. Não vê nem seu corpo magro nem seus pés grandes, vasculhando no fundo das calças se encontraria um par de borrachinhas cinzentas. Ele tem a Legião de Honra, os Salafrários têm o direito de existir. “Existo, porque isso é um direito meu.” Tenho o direito de existir, logo tenho o direito de não pensar: o dedo não se ergue. Será que vou... acariciar na plenitude dos lençóis brancos a carne branca plena que se inclina suave, tocar a umidade florida das axilas, os elixires e os licores e as florescências da carne, entrar na existência de outrem, nas mucosas vermelhas com o forte, doce, doce odor de existência, me sentir existir entre os suaves lábios molhados, os lábios vermelhos de sangue pálido, os lábios palpitantes que bocejam todos molhados de existência, todos molhados de pus claro, entre os lábios molhados açucarados que lacrimejam como olhos? Meu corpo de carne que vive, a carne que fervilha e mexe suavemente licores, que mexe creme, a carne que mexe, mexe, mexe, a água doce e açucarada de minha carne, o sangue de minha mão, dói-me, suave em minha carne pisada que mexe, anda, eu ando, fujo, sou um ignóbil indivíduo com a carne pisada, pisada de existência contra essas paredes. Sinto frio, dou um passo, sinto frio, um passo, viro à esquerda, ele vira à esquerda, ele pensa que vira à esquerda, louco, estou louco? Ele diz que tem medo de estar louco, a existência, você vê a existência? Ele para, o corpo para, ele pensa que para, de onde vem? Que faz? Recomeça a andar, sente medo, muito medo, o ignóbil indivíduo, o desejo como uma bruma, o desejo, o nojo, ele diz que está enojado de existir. Está enojado? Cansado e enojado de existir. Está correndo. Que espera? Corre para fugir de si mesmo, para se jogar no lago? Corre, o coração, o coração que bate é uma festa. O coração existe, as pernas existem, a respiração existe, eles existem correndo, respirando, batendo muito frouxo, muito lento, perde o fôlego, perco o fôlego, ele diz que perde o fôlego; a existência agarra meus pensamentos por trás e os desenvolve lentamente por trás; me agarram por trás, me forçam por trás a pensar, portanto a ser alguma coisa, atrás de mim, que respira em leves bolhas de existência, ele é bolha de bruma de desejo, no espelho é pálido como um morto, Rollebon morreu, Antoine Roquentin não morreu, desmaiar; ele disse que queria desmaiar, está correndo, o furão corre (por trás) por trás por trás, a pequena Lucienne atacada por trás, violada pela existência por trás, ele pede misericórdia, tem vergonha de pedir misericórdia, piedade, socorro, socorro logo existo, entra no Bar de la Marine, os espelhinhos do bordelzinho, está pálido nos espelhinhos do bordelzinho, o ruivo grandalhão e mole que se deixa cair no banco, o pick-up tocando existe, tudo gira, existe o pick-up, o coração bate: girem, girem licores da vida, girem gelatinas, xaropes de minha carne, doçuras... O pick-up. When the low moon begins to beam Every night I dream a little dream. A voz grave e rouca surge bruscamente e o mundo se desvanece, o mundo das existências. Uma mulher de carne teve essa voz, cantou diante de um disco, com sua roupa mais bonita, e gravaram sua voz. A mulher: ora! ela existia como eu, como Rollebon, não desejo conhecê-la. Mas há isso. Não se pode dizer que isso existe. O disco que gira existe, o ar atingido pela voz que vibra existe, a voz que se imprimiu no disco existiu. Eu, que escuto, existo. Tudo está cheio, existência por todo lado, densa e pesada e suave. Mas, para além de toda essa suavidade, inacessível, bem perto, tão longe, lamentavelmente, jovem, impiedoso e sereno, existe esse... esse rigor. Terça-feira Nada. Existido. Quarta-feira Há um círculo de sol sobre a toalha de papel. No círculo uma mosca se arrasta entorpecida, se aquece e esfrega uma na outra as patas dianteiras. Vou lhe fazer o favor de esmagá-la. Ela não vê surgir o indicador gigante, cujos pelos dourados brilham ao sol. — Não a mate, senhor! — exclama o Autodidata. A mosca rebenta, as tripinhas brancas emergem de seu ventre; libertei-a da existência. Digo secamente ao Autodidata: — Era um favor a prestar a ela. Por que estou aqui? E por que não estaria aqui? É meio-dia, estou à espera da hora de dormir. (Felizmente não perco o sono.) Dentro de quatro dias reverei Anny: no momento é essa a minha única razão de viver. E depois? Quando Anny me tiver deixado? Sei muito bem o que espero sorrateiramente: espero que ela nunca mais me deixe. No entanto deveria saber que Anny jamais aceitará envelhecer diante de mim. Sinto-me fraco e só, preciso dela. Teria gostado de revê-la em pleno vigor: Anny não tem piedade dos destroços. — O senhor está bem? Sente-se bem? O Autodidata me olha de soslaio com olhos sorridentes. Está um pouco ofegante, a boca aberta, como um cachorro esbaforido. Confesso: essa manhã me sentia quase feliz por revê-lo, tinha necessidade de falar. — É um grande prazer tê-lo à minha mesa — disse ele. — Se sente frio, podemos nos instalar perto do calefator. Aqueles senhores já estão para ir embora, pediram a conta. Alguém se preocupa comigo, pergunta se sinto frio; falo com outro homem: há anos que isso não me acontece. — Estão indo embora, quer que mudemos de lugar? Os dois senhores acenderam cigarros. Saem: ei-los no ar puro, ao sol. Passam pelas vitrines, segurando seus chapéus com as duas mãos. Riem; o vento enfuna seus sobretudos. Não, não quero mudar de lugar. Para quê? E depois, através dos vidros, por entre os tetos brancos das cabines de banho, vejo o mar, verde e compacto. O Autodidata tirou de sua carteira dois retângulos de papelão cor de violeta. Daqui a pouco vai entregá-los à caixa. Num deles decifro de trás para diante: Maison Bottanet, comida caseira. Almoço a preço fixo: 8 francos. Hors-d’œuvre variados, à escolha. Carne e guarnição. Queijo ou sobremesa. 20 cachets: 140 francos. Estou reconhecendo agora o sujeito que está comendo na mesa redonda perto da porta: fica muitas vezes no hotel Printania, é um caixeiro-viajante. De quando em quando seu olhar atento e sorridente pousa em mim; mas ele não me vê; está muito absorvido em examinar o que está comendo. Do outro lado da caixa, dois homens atarracados e sanguíneos saboreiam mexilhões, bebendo vinho branco. O mais baixo, que usa um bigode fino e amarelado, está contando uma história que o diverte. Faz uma pausa e ri, exibindo dentes brilhantes. O outro não ri; seus olhos são duros. Mas seguidamente faz que sim com a cabeça. Perto da janela, um homem magro e moreno, de feições finas e bonitos cabelos brancos puxados para trás, lê seu jornal com ar pensativo. No banco a seu lado colocou uma pasta de couro. Está bebendo água de Vichy. Dentro em pouco todas essas pessoas se irão, sentindo o peso da comida, acariciadas pela brisa, de sobretudo aberto, a cabeça um pouco quente, um pouco ressoante, caminharão junto à balaustrada, olhando para as crianças na praia e os barcos no mar; irão para seu trabalho. Eu não irei a parte alguma, não tenho trabalho. O Autodidata ri inocentemente e o sol brinca em seus cabelos ralos. — Quer escolher sua comida? Estende-me o cardápio: tenho direito a um hors-d’œuvre à escolha: cinco pedacinhos de salsichão ou de rabanetes ou de camarões miúdos ou um pratinho de aipo rémoulade. Os escargots de Bourgogne são extraordinários. — Traga-me um salsichão — digo à empregada. Ele me arranca das mãos o cardápio: — Não há nada melhor? Há escargots de Bourgogne. — É que não gosto muito de escargots. — Ah! Então, que tal ostras? — São mais quatro francos — diz a empregada. — Muito bem, ostras, senhorita, e rabanetes para mim. Explica-me enrubescendo: — Gosto muito de rabanetes. Eu também. — E depois? — pergunta. Percorro a lista das carnes. Uma carne estufada me tentaria. Mas sei de antemão que vou comer frango à caçadora, é o único prato de carne extraordinário. — Traga um frango à caçadora para o senhor — diz ele. — Para mim uma carne estufada, senhorita. Vira o cardápio: a lista de vinhos está no verso. — Vamos tomar vinho — diz com ar um pouco solene. — Deve ser um dia especial — diz a empregada. — O senhor nunca toma vinho. — Mas posso perfeitamente tolerar um copo de vinho de vez em quando. Senhorita, quer nos trazer uma garrafa de Rosé d’Anjou? O Autodidata larga o cardápio, pica o pão em pequenos pedaços e limpa os talheres com o guardanapo. Dá uma olhadela para o homem de cabelos brancos que lê o jornal, depois sorri para mim: — Habitualmente trago um livro para cá, embora um médico me tenha desaconselhado isso: come-se muito depressa, não se mastiga. Mas tenho um estômago de avestruz, posso engolir qualquer coisa. Durante o inverno de 1917, quando eu estava preso, a comida era tão ruim que todo mundo adoeceu. É claro que me fingi de doente como os outros: mas não tinha nada. Foi prisioneiro de guerra... É a primeira vez que me fala disso; custa-me acreditar: só posso imaginá-lo como um autodidata. — Onde esteve preso? Ele não responde. Pousou o garfo e me olha com uma intensidade prodigiosa. Vai me contar seus problemas: lembro-me agora que algo o aborrecia na biblioteca. Sou todo ouvidos: tudo o que quero é me compadecer com os problemas dos outros; isso representará uma mudança para mim. Não tenho problemas, tenho dinheiro, fruto de rendas, não tenho patrão, nem mulher, nem filhos; existo, é tudo. E esse tédio é tão vago, tão metafísico que me sinto envergonhado. O Autodidata não parece querer falar. É curioso o olhar que me lança: não é um olhar para ver, é mais de comunhão de almas. A alma do Autodidata subiu-lhe até os magníficos olhos de cego, onde aflora. Que a minha faça o mesmo, que venha grudar o nariz nas vidraças e ambas trocarão gentilezas. Não desejo comunhão de almas, não caí tão baixo. Recuo. Mas o Autodidata avança o busto por cima da mesa, sem tirar os olhos de mim. Felizmente chega a garçonete com seus rabanetes. Ele torna a descair sobre a cadeira, sua alma desaparece de seus olhos, ele começa a comer docilmente. — Resolveu seus problemas? Ele estremece: — Que problemas, senhor? — pergunta com ar assustado. — O senhor sabe muito bem, falou-me a esse respeito outro dia... Ele enrubesce violentamente. — Ah! — diz com voz seca. — Ah! Sim, outro dia. Pois é, é esse corso, senhor, esse corso da biblioteca. Hesita uma segunda vez, com ar teimoso de carneiro. — São mexericos, senhor. Não quero importuná-lo com isso. Não insisto. Embora não pareça, ele come com uma rapidez extraordinária. Já acabou seus rabanetes quando me trazem as ostras. Em seu prato resta apenas um feixe de talos verdes e um pouco de sal molhado. Lá fora dois jovens pararam em frente ao cardápio que um cozinheiro de papelão lhes apresenta com a mão esquerda (na direita segura uma frigideira). Hesitam. A mulher está com frio, encolhe o queixo na gola de pele. O rapaz é o primeiro a se decidir, abre a porta e se afasta para deixar passar a companheira. Ela entra. Olha em torno de si com ar amável e tem um pequeno arrepio: — Está quente — diz com voz grave. O rapaz torna a fechar a porta. — Bom dia a todos — diz ele. O Autodidata se vira e responde delicadamente: — Bom dia. Os outros fregueses não respondem, mas o senhor distinto baixa um pouco o jornal e examina os recém-chegados com um olhar profundo. — Obrigado, não perca seu tempo. Antes que a garçonete, que acorrera para ajudá-lo, pudesse ter tido tempo de esboçar um gesto, o rapaz se desembaraçou agilmente de seu impermeável. Em vez de casaco está usando um blusão de couro de fecho ecler. A garçonete, um pouco decepcionada, se volta para a moça. Mas ele se antecipa uma vez mais e com gestos suaves e precisos ajuda a acompanhante a tirar o casaco. Sentam-se perto de nós, encostados um no outro. Não dão a impressão de se conhecerem há muito tempo. A moça tem uma expressão cansada e pura, um pouco amuada. De repente tira o chapéu e sacode os cabelos pretos sorrindo. O Autodidata os contempla demoradamente, com bondade; depois se vira para mim e dá uma piscadela enternecida, como se quisesse dizer: “Como são belos!” Não são feios. Estão ambos calados, sentem-se felizes por estarem juntos, por serem vistos juntos. Às vezes, quando Anny e eu entrávamos num restaurante de Piccadilly, sentíamo-nos objeto de contemplações enternecidas. Anny se irritava com isso, mas confesso que eu sentia um certo orgulho. Sentia-me sobretudo surpreso: nunca tive a aparência cuidada que assenta tão bem nesse rapaz; nem mesmo se pode dizer que minha feiura seja comovente. Acontece que éramos jovens: agora atingi a idade em que nos enternecemos com a juventude dos outros. Não me enterneço. A mulher tem olhos escuros e doces; o rapaz, uma pele alaranjada, um pouco granulosa, e um queixinho voluntarioso encantador. Eles me tocam — é verdade —, mas também me desagradam um pouco. Sinto-os tão longe de mim: o calor os enlanguesce, em seus corações eles alimentam o mesmo sonho, tão doce, tão frágil. Estão à vontade, olham confiantes para as paredes amarelas, para as pessoas, acham que o mundo está bem como está, exatamente como é, e cada um deles provisoriamente colhe o sentido de sua vida na do outro. Dentro em breve constituirão uma só vida para ambos, uma vida lenta e morna que não terá qualquer sentido — mas eles não se aperceberão disso. Parecem se intimidar reciprocamente. Para terminar com isso, o rapaz, com ar desajeitado e decidido, agarra com a ponta dos dedos a mão de sua companheira. Ela respira fundo e ambos se põem a olhar o cardápio. Sim, estão felizes. Mas e depois? O Autodidata assume um ar divertido, um pouco misterioso: — Vi-o anteontem. — Onde? — Ha, ha! — diz com certa implicância respeitosa. Faz-me esperar um momento; depois: — O senhor estava saindo do museu. — Ah, sim — digo. — Não foi anteontem, foi sábado. Anteontem obviamente não estava com disposição para percorrer museus. — Viu a famosa reprodução em talha do atentado de Orsini? — Não a conheço. — Impossível! Está numa sala pequena, à direita de quem entra. É obra de um insurrecto da Comuna que viveu em Bouville até a anistia, escondido num sótão. Projetara embarcar para a América, mas aqui a polícia do porto é muito organizada. Um homem admirável. Utilizou seu ócio forçado para esculpir um grande painel em carvalho. Os únicos instrumentos de que dispunha eram seu canivete e uma lima de unhas. Fazia as partes mais delicadas — mãos, olhos — com a lima. O painel tem um metro e cinquenta de comprimento por um metro de largura; o trabalho todo é numa peça só; há setenta personagens, cada um deles do tamanho de minha mão, sem contar os dois cavalos que puxam a carruagem do imperador. E os rostos, senhor, aqueles rostos feitos com uma lima, todos têm uma fisionomia, um ar humano. Senhor, se posso tomar a liberdade, é uma obra que merece ser vista. Não quero me comprometer: — Minha intenção foi apenas rever os quadros de Bordurin. O Autodidata se entristece bruscamente: — Os retratos do salão? — diz com um sorriso trêmulo. — Eu não entendo nada de pintura. É claro que não ignoro que Bordurin é um grande pintor, vejo que sabe usar as cores, é habilidoso, tem boa mão, é assim que se diz? Mas o prazer, senhor, o prazer estético é algo que me escapa. Digo-lhe com simpatia: — Ocorre o mesmo comigo em relação à escultura. — Ah! Senhor! Comigo também. E igualmente com a música e com a dança. No entanto, tenho alguns conhecimentos. Pois bem, é inconcebível: vi jovens que não sabiam a metade do que sei e que, postados diante de um quadro, pareciam sentir prazer. — Deviam estar fingindo — digo para animá-lo. — Talvez... O Autodidata devaneia por um momento: — O que me desola não é tanto me sentir privado de uma determinada espécie de prazer, mas sim o fato de que todo um ramo da atividade humana me seja estranha... No entanto sou homem e esses quadros foram feitos por homens... Ele continua, alterando a voz de repente: — Senhor, uma vez ousei pensar que a beleza era apenas uma questão do gosto. Não existem regras diferentes para cada época? Dá licença, senhor? Surpreso, vejo-o tirar do bolso um caderninho preto. Folheia-o um instante: muitas páginas em branco e de longe em longe algumas linhas traçadas com tinta vermelha. Ficou inteiramente pálido. Colocou o caderninho na toalha e pousa a mão grande sobre a página aberta. Tosse, mostrando-se embaraçado: — Às vezes me vêm à mente... não ouso dizer pensamentos. E curioso: estou em algum lugar, lendo, e de repente, não sei de onde vem isso, me sinto como que iluminado. De início não dava atenção a isso, depois resolvi comprar um caderninho. Para e olha para mim: está à espera. — Ha, ha! — digo. — Senhor, naturalmente essas máximas são provisórias: minha instrução ainda não terminou. Pega o caderninho com as mãos trêmulas, está muito emocionado: — Eis exatamente algo sobre a pintura. Ficaria muito feliz se me permitisse que lesse para o senhor. — Com prazer — digo. Ele lê: “Ninguém mais acredita no que o século XVIII considerava verdadeiro. Por que se desejaria que ainda experimentássemos prazer com as obras que eles consideravam belas?” Olha-me com ar de súplica. — O que acha, senhor? Talvez seja um pouco paradoxal? É que me pareceu poder dar à minha ideia a forma de um dito espirituoso. — Bem, eu... acho isso muito interessante. — Já leu isso em algum lugar? — Não, claro que não. — De verdade, nunca, em parte alguma? Então, senhor — diz contristado —, é porque isso não é verdade. Se fosse verdade, alguém já o teria pensado. — Espere um pouco — digo. — Pensando melhor, acho que li algo no gênero. Seus olhos brilham; ele puxa seu lápis. — Em que autor? — pergunta-me em tom objetivo. — Em... em Renan. Ele está no céu. — Poderia ter a bondade de me citar a passagem exata? — diz, mordendo a ponta do lápis. — Sabe, li isso há muito tempo. — Oh! Isso não tem importância, isso não tem importância. Escreve o nome de Renan no caderninho, por baixo de sua máxima. — Encontrei-me com Renan! Escrevi o nome a lápis — explica em tom encantado —, mas essa noite vou passá-lo a tinta vermelha. Olha um momento para o caderninho, extasiado, fico aguardando que me leia outras máximas. Mas ele o fecha com precaução e enfia-o no bolso. Sem dúvida, acha que já é felicidade bastante para uma só vez. — Como é agradável — diz com ar íntimo — poder às vezes conversar assim, livremente. Essa observação, que cai como uma pedra, como era de supor, aniquila nossa conversa já pouco animada. Segue-se um longo silêncio. Desde que os dois jovens chegaram, a atmosfera do restaurante se transformou. Os dois homens rubros se calaram; examinam sem constrangimento os atrativos da moça. O senhor distinto pousou o jornal e olha para o casal com benevolência, quase com cumplicidade. Pensa que a velhice é sábia, que a juventude é bela, sacode a cabeça com ar levemente sedutor: bem sabe que ainda é bonito, admiravelmente conservado, que com sua tez morena e seu corpo delgado ainda pode atrair. Faz-se de paternal. Os sentimentos da empregada parecem mais simples: postou-se em frente aos jovens e contempla-os boquiaberta. Eles falam em voz baixa. Serviram-lhes hors-d’œuvre, mas nem provaram. Aguçando o ouvido, posso ouvir trechos de sua conversa. Percebo melhor o que diz a mulher com sua voz rica e velada. — Não, Jean, não. — Por quê? — murmura o rapaz com vivacidade apaixonada. — Já lhe disse. — Isso não é motivo. Algumas palavras me escapam, depois a jovem faz um gracioso gesto cansado: — Já tentei demais. Já passei da idade em que se pode recomeçar a vida. Estou velha, sabe... O rapaz ri com ironia. Ela continua: — Não toleraria uma... decepção. — Você tem que confiar — diz o rapaz. — Da maneira como está agora, você não está vivendo. Ela suspira: — Eu sei! — Pense em Jeannette. — Sim — diz ela com um muxoxo. — Pois bem, acho muito bonito o que ela fez. Ela teve coragem. — Sabe — diz a mulher —, acho que ela aproveitou a ocasião. Se quer saber, se eu tivesse querido, teria tido centenas de ocasiões desse tipo. Preferi esperar. — Fez bem — diz ele com ternura —, fez bem em esperar por mim. Ela ri por sua vez: — Pretensioso! Não foi isso que eu disse. Já não os ouço: me irritam. Vão dormir juntos. Sabem disso. Cada um dos dois sabe que o outro sabe. Mas, como são jovens, castos e decentes, como cada um deles quer manter sua autoestima e a do outro, como o amor é uma grande coisa poética que é preciso não chocar, eles vão várias vezes por semana aos bailes e aos restaurantes, para oferecer o espetáculo de suas dancinhas rituais e mecânicas... Afinal é preciso matar o tempo. São jovens, de boa compleição, ainda têm uns trinta anos pela frente. Então não se apressam, dão tempo ao tempo, e não estão errados nisso. Quando tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra coisa para encobrir o enorme absurdo de suas existências. Ainda assim... será absolutamente necessário mentir a si mesmos? Percorro a sala com os olhos. É uma farsa! Todas essas pessoas estão sentadas numa atitude séria; estão comendo. Não, não estão comendo: recobram suas forças para levar a bom termo a tarefa que lhes cabe. Cada uma delas tem sua pequena obstinação pessoal que as impede de perceber que existem; não há um só que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa. Não era o Autodidata que me dizia outro dia: “Ninguém estava mais qualificado do que Nouçapié para tentar essa vasta síntese”? Cada um deles faz uma coisinha e ninguém mais qualificado do que o próprio para fazê-la. Ninguém é mais qualificado do que aquele caixeiro-viajante que lá está, para vender a pasta dental Swan. Ninguém melhor qualificado do que esse rapaz interessante para introduzir a mão sob as saias de sua vizinha. E eu estou entre eles, e, se olham para mim, devem pensar que ninguém é melhor qualificado do que eu para fazer o que faço. Mas eu sei. Pareço insignificante, mas sei que existo e que eles existem. E se tivesse a arte da persuasão, iria me sentar perto do belo senhor de cabelos brancos e lhe explicaria o que é a existência. Caio na gargalhada, imaginando a cara que ele faria. O Autodidata me olha com ar surpreso. Gostaria de parar de rir, mas não consigo: choro de rir. — O senhor está alegre — diz o Autodidata com ar circunspecto. — É porque estou pensando — digo rindo — que aqui estamos, todos nós, comendo e bebendo, para conservar nossa preciosa existência, e que não há nada, nada, nenhuma razão para existir. O Autodidata assumiu um ar grave, se esforça para me compreender. Eu ri muito alto: vi várias cabeças se voltando para mim. E também lamento ter falado tanto. Afinal, ninguém tem nada com isso. Ele repete lentamente: — Nenhuma razão para existir... Certamente o senhor quer dizer que a vida não tem finalidade? Não é isso que chamam de pessimismo? Ele reflete ainda um momento, depois diz com afabilidade: — Li há alguns anos um livro de um autor americano que se chamava A vida vale a pena ser vivida? Não é essa a pergunta que o senhor se faz? Evidentemente não, não é esta a pergunta que me faço. Mas não quero explicar nada. — Ele concluía — diz o Autodidata em tom de consolo — optando pelo otimismo voluntário. A vida tem sentido, se quisermos lhe dar um. Em primeiro lugar é preciso agir, se lançar num empreendimento qualquer. Se em seguida refletirmos, a sorte está lançada, estamos comprometidos. Não sei o que é que o senhor pensa a esse respeito. — Nada — digo. Ou por outra, penso que é precisamente o tipo de mentira que utilizam para si mesmos, perpetuamente, os caixeiros-viajantes, os dois jovens e o senhor de cabelos brancos. O Autodidata sorri com um pouco de malícia e muita solenidade: — Também não sou dessa opinião. Acho que não temos que ir buscar tão longe o sentido de nossa vida. — Como? — Há uma finalidade, senhor, há uma finalidade... há os homens. É verdade: estava esquecendo que ele é um humanista. Permanece um momento em silêncio, o tempo de fazer desaparecer cuidadosamente, inexoravelmente, a metade de sua carne estufada e uma fatia inteira de pão. “Há os homens...” Esse homem sensível acaba de pintar um autorretrato. Sim, mas não sabe se expressar bem. É indiscutível que seus olhos transbordam de alma, mas a alma não basta. No passado frequentei humanistas parisienses, ouvi-os dizer mais de cem vezes: “há os homens”; e era diferente! Virgan era inigualável. Tirava os óculos, como para se mostrar nu em sua carne de homem, me encarava com seus olhos comoventes, com um olhar grave e fatigado, que parecia me despir para captar minha essência humana, depois murmurava melodiosamente: “Há os homens, meu velho, há os homens.” E dava ao há uma espécie de força canhestra, como se seu amor pelos homens, perpetuamente novo e admirado, se enredasse em suas asas gigantescas. A mímica do Autodidata não adquiriu esse aveludado; seu amor pelos homens é ingênuo e bárbaro: um humanista de província. — Os homens — digo-lhe —, os homens, de toda maneira, não parecem preocupá-lo tanto: o senhor está sempre sozinho, sempre enfiado num livro. O Autodidata bate palmas, começa a rir maliciosamente: — O senhor se equivoca. Ah! Permita que lhe diga: como se equivoca! Recolhe-se um momento e acaba de deglutir discretamente. Seu rosto está radioso como uma aurora. Atrás dele a jovem mulher dá uma risada. Seu companheiro se inclinou para ela e cochicha em seu ouvido. — Seu equívoco é muito natural — diz o Autodidata. — Há muito que devia ter lhe dito... Mas sou tão tímido, senhor: esperava uma ocasião. — Agora a encontrou — digo delicadamente. — Também acho. Também acho! O que vou lhe dizer, senhor... — Interrompe-se, enrubescendo. — Mas talvez o esteja importunando? Tranquilizo-o. Ele solta um suspiro de felicidade. — Não é todos os dias que se encontram homens como o senhor, em quem a largueza de vistas se alia à penetração da inteligência. Faz meses que queria lhe falar, lhe explicar o que fui, o que me tornei... Seu prato está vazio e limpo como se acabassem de trazê-lo. Descubro de repente, ao lado do meu, uma travessinha de metal, onde uma coxa de frango nada num molho escuro. Tenho que comer isso. — Ainda agora lhe falava de meu cativeiro na Alemanha. Foi lá que tudo começou. Antes da guerra eu estava só e não me dava conta disso; vivia com meus pais, que eram boas pessoas, mas não me entendia bem com eles. Quando penso naqueles anos... Como pude viver assim? Estava morto, senhor, e não percebia; tinha uma coleção de selos. Olha para mim e se interrompe: — O senhor está pálido, parece cansado. Não o estarei aborrecendo? — Estou muito interessado no que me diz. — Veio a guerra e me engajei sem saber por quê. Passei dois anos sem entender, porque a vida no front deixava pouco tempo para refletir e, além disso, os soldados eram muito rudes. No final de 1917 fui feito prisioneiro. Disseram-me mais tarde que muitos soldados no cativeiro recuperaram a fé de sua infância. Senhor — diz o Autodidata, baixando as pálpebras sobre as pupilas inflamadas —, não creio em Deus; sua existência é desmentida pela ciência. Mas no campo de concentração aprendi a acreditar nos homens. — Suportavam seu destino com coragem? — Sim — disse ele com ar grave —, também havia isso. Aliás, éramos bem tratados. Mas queria falar de outra coisa; nos últimos meses de guerra já quase não nos davam trabalho. Quando chovia, nos metiam num galpão de madeira onde cabíamos quase duzentos, nos apertando. Fechavam a porta, nos deixavam ali comprimidos uns contra os outros, numa escuridão quase total. Hesitou um momento. — Não saberia explicar, senhor. Todos aqueles homens estavam ali, mal se viam, mas os sentíamos encostados em nós, ouvíamos o ruído de sua respiração... Uma das primeiras vezes que nos fecharam nesse galpão, era tal o aperto que inicialmente pensei que ia sufocar; depois, subitamente, uma forte alegria surgiu em mim, quase desfaleci: senti então que amava aqueles homens como irmãos, gostaria de beijá-los a todos. Depois disso, cada vez que lá retornava, experimentava a mesma alegria. Tenho que comer meu frango que já deve estar frio. Há muito que o Autodidata terminou e a empregada está à espera para trocar os pratos. — Para mim aquele galpão revestira-se de um caráter sagrado. Algumas vezes consegui burlar a vigilância de nossos guardas, penetrei lá sozinho e, na escuridão, com a lembrança das alegrias que ali experimentei, caía numa espécie de êxtase. As horas passavam, mas eu não me dava conta. Houve momentos em que solucei. Devo estar doente: não há outra explicação para essa raiva intensa que acaba de me invadir. Sim, uma raiva de doente: minhas mãos tremiam, o sangue me subiu à cabeça e, para completar, também meus lábios começaram a tremer. Tudo isso simplesmente porque o frango estava frio. Aliás, eu também estava frio, e isso era o mais penoso: o que quero dizer é que o fundo permanecera como estava há 36 horas: absolutamente frio, gelado. A raiva me atravessou num turbilhão, era como um arrepio, um esforço de minha consciência para provocar uma reação, para lutar contra essa queda de temperatura. Esforço inútil: certamente teria sido capaz de espancar o Autodidata ou a garçonete, cobrindo-os de injúrias por um motivo fútil. Mas não teria entrado inteiramente nesse jogo. Minha raiva se debatia na superfície e durante um momento tive a impressão penosa de ser um bloco de gelo envolto em fogo — uma omelette-surprise. Essa agitação superficial se dissipou e ouvi o Autodidata dizendo: — Ia à missa todos os domingos. Nunca fui crente, senhor. Mas não se poderia dizer que o verdadeiro mistério da missa é a comunhão entre os homens? Um capelão francês, que só tinha um braço, celebrava. Tínhamos um órgão. Ouvíamos de pé, a cabeça descoberta, e, enquanto os sons do órgão me transportavam, sentia que formava um todo com os homens que me rodeavam. Ah! Senhor! Como gostava daquelas missas! Hoje em dia ainda, para recordá-las, vou às vezes à igreja no domingo de manhã. Temos um organista notável em Santa Cecília. — Deve ter sentido saudade dessa vida muitas vezes. — Sim, senhor, em 1919. Foi o ano de minha libertação. Passei meses muito sofridos. Não sabia o que fazer, definhava. Em toda parte, onde via homens reunidos, me enfiava no grupo. Cheguei até — acrescenta com um sorriso — a acompanhar o enterro de um desconhecido. Num dia de desespero atirei no fogo minha coleção de selos... Mas encontrei meu caminho. — É mesmo? — Alguém me aconselhou... Senhor, sei que posso confiar em sua discrição. Sou... Talvez o senhor não compartilhe essas ideias, mas tem uma mentalidade tão aberta... Sou um socialista. Baixou os olhos e seus longos cílios se agitaram. — Estou inscrito no partido socialista S.F.I.O. desde setembro de 1921. Era isso que queria lhe dizer. Está radiante de orgulho. Fitando-me, a cabeça inclinada para trás, os olhos semicerrados, a boca entreaberta, parece um mártir. — Isso é ótimo — digo. — Isso é muito bonito. — Senhor, sabia que teria sua aprovação. E como se poderia censurar alguém que vem confessar: dispus de minha vida de tal e tal maneira e agora me sinto perfeitamente feliz? Abriu os braços e me oferece as palmas da mão, os dedos apontando para o chão, como se fosse receber os estigmas. Seus olhos estão vidrados, vejo rolar em sua boca uma massa escura e rosada. — Bem — digo —, uma vez que está feliz... — Feliz? — Seu olhar é constrangedor; ele levantou as pálpebras e me olha com ar duro. — O senhor poderá julgar. Antes de tomar essa decisão, sentia uma solidão tão terrível que pensei em me suicidar. O que me reteve foi a ideia de que ninguém, absolutamente ninguém, se comoveria com minha morte, que eu estaria ainda mais só na morte do que na vida. Endireita-se, suas faces se inflam. — Já não estou só, senhor. Nunca mais estarei só. — Ah, conhece muita gente? — digo. Ele sorri e percebo imediatamente minha ingenuidade: — Quero dizer, senhor, que já não me sinto só. Mas naturalmente não é necessário para isso que esteja com alguém. — No entanto, na seção socialista... — Ah! Lá conheço todo mundo. Mas a maioria só de nome. Senhor — diz com uma certa malícia —, será que somos obrigados a escolher companheiros de maneira tão rígida? Meus amigos são todos os homens. Quando vou para o escritório pela manhã, há diante de mim, atrás de mim, outros homens que estão indo para o trabalho. Vejo-os; se me atrevesse, lhes sorriria, penso que sou socialista, que todos eles são a finalidade de minha vida, de meus esforços, e que ainda não sabem disso. É uma festa para mim, senhor. Interroga-me com os olhos: aprovo, abaixando a cabeça, mas sinto que está um pouco decepcionado, que desejaria mais entusiasmo. Que posso fazer? É culpa minha se em tudo o que ele diz reconheço incidentalmente citações, ideias alheias? Se vejo reaparecerem, enquanto fala, todos os humanistas que conheci? E conheci tantos! O humanista radical é particularmente amigo dos funcionários. O humanista dito “de esquerda” tem como principal preocupação conservar os valores humanos; não adere a nenhum partido, pois não quer trair o humano, mas suas simpatias se voltam para os humildes; é aos humildes que dedica sua maravilhosa cultura clássica. Geralmente é um viúvo de belos olhos sempre úmidos de lágrimas; chora nos aniversários. Gosta também dos gatos, dos cachorros, de todos os mamíferos superiores. O escritor comunista gosta dos homens, desde o segundo plano quinquenal: castiga porque ama. Pudico, como todos os fortes, sabe ocultar seus sentimentos, mas sabe também, através de um olhar, de uma inflexão de voz, fazer pressentir, por trás das palavras rudes de justiceiro, sua paixão agridoce por seus irmãos. O humanista católico, o retardatário, o benjamim, fala dos homens com ar embevecido. Que belo conto de fadas, diz ele, é a mais humilde das vidas, como a de um estivador londrino ou a de uma operária que pesponta botas! Escolheu o humanismo dos anjos; escreve, para edificação dos anjos, longos romances tristes e belos, que frequentemente recebem o prêmio Fémina. Esses são os grandes papéis principais. Mas há outros, enorme quantidade de outros: o filósofo humanista que vela por seus irmãos como um irmão mais velho e que tem o senso de suas responsabilidades; o humanista que ama os homens tais como são; o que os ama tais como deveriam ser; o que quer salvá-los com sua concordância e o que os salvará, quer queiram quer não; o que deseja criar novos mitos e o que se satisfaz com os antigos; o que ama no homem sua morte; o que ama no homem sua vida; o humanista alegre, que tem sempre uma coisa engraçada para dizer; o humanista sombrio que encontramos sobretudo nos velórios. Todos eles se odeiam entre si: como indivíduos, naturalmente — não como homens. Mas o Autodidata não sabe disso: fechou-os todos dentro de si mesmo como gatos num saco de couro e eles se entredilaceram sem que ele perceba. Ele me olha já com menos confiança. — O senhor não partilha meus sentimentos? — Deus meu... Diante de seu ar intranquilo, um pouco rancoroso, por um minuto lamento tê-lo decepcionado. Mas ele continua amavelmente: — Eu sei: o senhor tem suas pesquisas, seus livros, o senhor serve à causa de outra maneira. Meus livros, minhas pesquisas... Que imbecil! Não podia ter feito uma gafe maior. — Não é por isso que escrevo. No mesmo instante o rosto do Autodidata se transformou; dir-seia que farejou o inimigo. Nunca lhe tinha visto tal expressão. Entre nós algo morreu. Ele pergunta, fingindo surpresa: — Mas... se é que não estou sendo indiscreto, por que escreve então, senhor? — Bem... não sei: por nada, por escrever. Ele se permite sorrir, acha que me desconcertou: — Escreveria numa ilha deserta? Quem escreve, não o faz sempre para ser lido? Foi por hábito que deu à frase um tom interrogativo. Na realidade, está afirmando. Seu verniz de suavidade e de timidez se desfez; já não o reconheço. Seus traços deixam transparecer uma grande obstinação; é um muro de suficiência. Ainda não me refiz de minha surpresa e já o ouço dizer: — Que me digam: escrevo para uma determinada categoria social, para um grupo de amigos. Ótimo. Talvez o senhor escreva para a posteridade... Mas, querendo ou não, escreve para alguém. Aguarda uma resposta. Como esta não vem, sorri sem entusiasmo. — Talvez o senhor seja um misantropo? Sei bem o que esse falacioso esforço de conciliação dissimula. Em suma, ele me pede pouco: simplesmente que aceite um rótulo. Mas isso é uma armadilha: se consinto, o Autodidata triunfa, sou imediatamente contornado, recapturado, ultrapassado, porque o humanismo retoma e funde juntas todas as atitudes humanas. Se o enfrentamos, entramos em seu jogo; ele vive de seus adversários. Há uma raça de pessoas teimosas e limitadas, de desonestos, que perdem sempre contra ele: todas as violências, seus piores excessos, são digeridos por ele, transformados numa linfa branca e espumosa. Digeriu assim o anti-intelectualismo, o maniqueísmo, o misticismo, o pessimismo, o anarquismo, o egotismo; tudo isso já não passa de etapas, de pensamentos incompletos que só encontram sua justificação nele. Também a misantropia tem seu lugar nesse concerto: ela é apenas uma dissonância necessária à harmonia do todo. O misantropo é homem: portanto, em certa medida é preciso que o humanista seja misantropo. Mas é um misantropo científico, que soube dosar seu ódio, que só começou a odiar os homens para poder amá-los melhor depois. Não quero que me integrem, nem que meu belo sangue vermelho vá engordar esse animal linfático: não cometerei a tolice de me declarar “anti-humanista”. Eu não sou humanista, eis tudo. — Acho — digo ao Autodidata — que não se pode odiar nem amar os homens. O Autodidata me olha com ar protetor e distante. Murmura, como se não se desse conta de suas palavras: — É preciso amá-los, é preciso amá-los... — É preciso amar quem? As pessoas que estão aqui? — Também elas. Todos. Volta-se para o casal de radiosa juventude: eis o que é preciso amar. Contempla por um momento o senhor de cabelos brancos. Depois dirige novamente seu olhar para mim; leio em seu rosto uma interrogação muda. Faço que não com a cabeça. Ele parece sentir piedade de mim. — Também o senhor não os ama — digo irritado. — Realmente, senhor? Permite que discorde de sua opinião? Tornou-se outra vez respeitoso até a raiz dos cabelos, mas faz o olhar irônico de alguém que estivesse se divertindo enormemente. Odeia-me. Teria sido um erro me enternecer com esse maníaco. Interrogo-o por minha vez: — Então ama esses dois jovens que estão atrás do senhor? Olha-os novamente, reflete: — O senhor quer que eu diga — replica com desconfiança — que os amo sem conhecê-los. Pois bem, senhor, confesso que não os conheço... A não ser, justamente, que o amor seja o verdadeiro conhecimento — acrescenta com um riso presunçoso. — Mas o que é que o senhor ama? — Vejo que são jovens e é a juventude que amo neles. Entre outras coisas, senhor. Interrompeu-se e ficou à escuta. — Percebe o que dizem? Se percebo! Encorajado pela simpatia que o rodeia, o rapaz está descrevendo com voz cheia um jogo de futebol que seu time ganhou no ano passado jogando contra um time do Havre. — Ele está contando uma história — digo ao Autodidata. — Ah! Não ouço bem. Mas ouço as vozes, a voz suave, a voz grave: elas se alternam. É... é tão simpático. — Só que eu também ouço o que dizem, infelizmente. — E então? — E então estão fingindo, representando uma comédia. — Realmente? A comédia da juventude talvez? — pergunta com ironia. — Se me permite, senhor, acho-a muito proveitosa. Basta representá-la para retornar à idade deles? Ignoro sua ironia; prossigo: — O senhor está de costas para eles, o que estão dizendo lhe escapa... De que cor são os cabelos da jovem mulher? Ele se perturba: — Bem, eu... — olha de relance para os dois jovens e recupera a segurança. — Pretos! — O senhor bem vê! — Como? — Bem vê que não ama esses dois. Talvez nem os reconhecesse na rua. São apenas símbolos para o senhor. Não é absolutamente com eles que está se comovendo; comove-se com a Juventude do Homem, com o Amor do Homem e da Mulher, com a Voz Humana. — E então? Essas coisas não existem? — Claro que não, nada disso existe. Nem a Juventude, nem a Idade Madura, nem a Velhice, nem a Morte... O rosto do Autodidata, amarelo e duro como um marmelo, cristalizou-se num tétano reprovador. Apesar disso, prossigo: — É como o velho atrás do senhor, bebendo água de Vichy. Suponho que o que ama nele é o Homem Maduro; o Homem Maduro que caminha corajosamente para o seu declínio e que se veste com esmero porque não quer se abandonar? — Exatamente — diz em tom de desafio. — E não vê que é um salafrário? Ele ri, me acha estouvado, lança um olhar rápido para o belo rosto emoldurado de cabelos brancos: — Mas, senhor, admitindo que ele pareça o que o senhor diz, como pode julgar um homem por sua fisionomia? Um rosto em repouso não exprime nada. Cegos humanistas! Aquele rosto é tão eloquente, tão claro — mas nunca suas almas sensíveis e abstratas se deixaram tocar pelo sentido de um rosto. — Como pode — diz o Autodidata — limitar um homem, dizer que é isso ou aquilo? Quem pode esgotar um homem? Quem pode conhecer os recursos de um homem? Esgotar um homem! De passagem, cumprimento o humanismo católico do qual, sem sabê-lo, o Autodidata tirou essa frase. — Sei — digo-lhe —, sei que todos os homens são admiráveis. O senhor é admirável. Eu sou admirável. Enquanto criaturas de Deus, naturalmente. Ele me olha sem compreender, depois com um leve sorriso: — Certamente está brincando, senhor, mas é verdade que todos os homens têm direito à nossa admiração. É difícil, senhor, muito difícil ser um homem. Afastou-se, sem se dar conta, do amor dos homens em Cristo; sacode a cabeça e, por um curioso fenômeno de mimetismo, se parece com o pobre Guéhenno.[12] — Desculpe — digo-lhe —, mas então não estou muito certo de ser um homem: nunca tinha achado isso muito difícil. Parecia-me que bastava se deixar levar. O Autodidata ri francamente, mas seus olhos permanecem malignos. — É muito modesto, senhor. Para suportar sua condição, a condição humana, precisa de muita coragem, como todo mundo. O próximo instante pode ser o de sua morte, o senhor sabe disso e consegue sorrir: não é admirável? Na mais insignificante de suas ações — acrescenta com acrimônia — há uma imensidade de heroísmo. — O que vão querer de sobremesa? — diz a empregada. O Autodidata está branco, suas pálpebras semicerradas sobre olhos de pedra. Faz um pequeno gesto com a mão, como para me convidar a escolher. — Um queijo — digo com heroísmo. — E o senhor? Ele estremece. — Hem? Ah! sim: bem, não quero nada, já terminei. — Louise! Os dois homens corpulentos pagam e vão embora. Um deles manca. O patrão os leva até a porta: são fregueses importantes, serviram-lhes uma garrafa de vinho num balde de gelo. Contemplo o Autodidata com uma ponta de remorso: ele passou a semana inteira antegozando esse almoço, no qual poderia comunicar a outro homem seu amor pelos homens. É tão raro que tenha ocasião de falar! E vejam só: estraguei seu prazer. No fundo, é tão só quanto eu; ninguém se preocupa com ele. Apenas ele não percebe sua solidão. Sim, muito bem: mas não competia a mim lhe abrir os olhos. Sinto-me pouco à vontade: é verdade que estou furioso, mas não com ele, com os Virgans e os outros, todos aqueles que envenenaram esse pobre cérebro. Se pudesse tê-los aqui, diante de mim, teria tanta coisa a lhes dizer! Ao Autodidata não direi nada; só merece a minha simpatia: é uma pessoa do tipo do sr. Achille, alguém que estava do meu lado e que traiu por ignorância, por boa vontade! Uma risada do Autodidata me faz sair de meus devaneios sombrios: — Desculpe, mas quando penso na profundidade de meu amor pelos homens, na força dos impulsos que me aproximam deles e nos vejo aqui raciocinando, argumentando... sinto vontade de rir. Calo-me, sorrio constrangido. A empregada põe diante de mim um prato com um pedaço de camembert gredoso. Percorro a sala com o olhar e um asco violento me invade. Que estou fazendo aqui? Por que me meti a discutir sobre o humanismo? Por que estão aqui essas pessoas? Por que comem? É verdade que elas não sabem que existem. Sinto vontade de ir embora, de ir a algum lugar onde pudesse estar realmente em meu lugar, onde me encaixasse... Mas meu lugar não é em parte alguma; eu estou sobrando. O Autodidata se acalma. Receara uma resistência maior de minha parte. Está disposto a passar uma esponja sobre tudo o que eu disse. Inclina-se para mim com ar confidencial: — No fundo, o senhor os ama, ama-os como eu: estamos separados por palavras. Já não posso falar, inclino a cabeça. O rosto do Autodidata está bem perto do meu. Sorri com ar fátuo, bem perto de meu rosto, como nos pesadelos. Mastigo com dificuldade um pedaço de pão que não me decido a engolir. Os homens. É preciso amar os homens. Os homens são admiráveis. Sinto vontade de vomitar — e de repente aqui está ela: a Náusea. Uma bela crise: me sacode de alto a baixo. Há uma hora que a sentia se aproximar, só que não queria confessá-lo a mim mesmo. Esse gosto de queijo em minha boca... O Autodidata tagarela e sua voz é um zumbido suave em meus ouvidos. Mas já não tenho a mínima ideia do que diz. Aprovo maquinalmente com a cabeça. Minha mão está crispada no cabo da faca de sobremesa. Sinto o cabo de madeira preta. É minha mão que o segura. Minha mão. Pessoalmente estaria pronto a largar a faca: para que estar sempre tocando em alguma coisa? Os objetos não são feitos para que os toquemos. É preferível se esgueirar entre eles, evitando-os o mais possível. Às vezes seguramos um nas mãos e somos obrigados a soltá-lo depressa. A faca cai no prato. Com o barulho o senhor de cabelos brancos estremece e olha para mim. Torno a pegar a faca, apoio a lâmina na mesa e envergo-a. Então é isso a Náusea: essa evidência ofuscante? Como quebrei a cabeça! Como escrevi a respeito dela! Agora sei: Existo — o mundo existe — e sei que o mundo existe. Isso é tudo. Mas tanto faz para mim. É estranho que tudo me seja tão indiferente: isso me assusta. Foi a partir do famigerado dia em que quis fazer ricocheteios. Ia atirar o seixo, olhei para ele, foi então que tudo começou: senti que ele existia. E a seguir, depois disso, houve outras Náuseas; de quando em quando os objetos se põem a existir em nossa mão. Houve a Náusea do Rendez-vous des Cheminots e depois uma outra, antes, uma noite em que eu olhava pela janela; e depois mais outra no jardim público, um domingo, e depois outras. Mas nunca tinha sido tão forte como hoje. — ... da Roma antiga, senhor? Creio que o Autodidata está me fazendo uma pergunta. Viro-me para ele e lhe sorrio. Mas o que há? O que é que ele tem? Por que se encolhe na cadeira? Estarei assustando-o, agora? Tinha que acabar assim. Aliás, isso me é indiferente. Eles não estão inteiramente errados em sentir medo: sei que seria capaz de fazer qualquer coisa. Por exemplo, enfiar essa faca de queijo no olho do Autodidata. Depois disso todas essas pessoas me pisoteariam, quebrariam meus dentes com pontapés. Mas não é isso que me detém: não faz diferença, um gosto de sangue na boca em lugar desse gosto de queijo. Só que seria necessário fazer um gesto, dar origem a um acontecimento supérfluo: seria indesejável o grito que soltaria o Autodidata — e o sangue que escorreria em seu rosto e o sobressalto de todas essas pessoas. Já há coisas demais existindo sem isso. Todo mundo olha para mim; os dois representantes da juventude interromperam seu doce diálogo. A mulher está fazendo beicinho. No entanto deveriam perceber que sou inofensivo. Levanto-me. Está tudo girando em torno de mim. O Autodidata me olha com seus olhos arregalados que não furarei. — Já vai? — murmura. — Estou um pouco cansado. O senhor foi muito amável em me convidar. Até logo. Ao ir, percebo que conservei na mão esquerda a faca de sobremesa. Jogo-a em meu prato que se põe a tinir. Atravesso a sala em meio ao silêncio. Eles já não comem: olham para mim, perderam o apetite. Tenho certeza de que, se me dirigisse à mulher e fizesse “Hon!”, ela começaria a berrar. Não vale a pena. Ainda assim, antes de ir, me viro e lhes mostro meu rosto, para que possam gravá-lo na memória. — Até logo a todos. Não respondem. Vou embora. Agora as cores voltarão a seus rostos, começarão a tagarelar. Não sei aonde ir. Fico postado junto ao cozinheiro de papelão. Não tenho necessidade de me voltar para saber que estão me olhando através das vidraças: olham para as minhas costas com surpresa e asco; pensavam que eu era como eles, que eu era um homem, e os enganei. De repente perdi minha aparência de homem e eles viram um caranguejo que fugia, recuando, dessa sala tão humana. Agora o intruso desmascarado fugiu: a reunião continua. Irrita-me sentir em minhas costas todo esse formigamento de olhos e de pensamentos assustados. Atravesso a rua. A outra calçada acompanha a praia e as cabines de banho. Há muitas pessoas passeando à beira-mar, virando para o mar rostos primaveris, poéticos; é por causa do sol; estão em festa. Há mulheres em seus vestidos claros da última primavera; passam esguias e brancas como luvas de pelica; há também rapazotes que frequentam o liceu, a escola de comércio, velhos com condecorações. Eles não se conhecem, mas se olham com ar de conivência. Porque o dia está bonito e porque todos eles são homens. Os homens se abraçam, sem se conhecer, nos dias de declaração de guerra; sorriem-se a cada primavera. Um padre avança a passos lentos lendo o breviário. De quando em quando levanta a cabeça e olha para o mar com ar de aprovação: também o mar é um breviário, fala de Deus. Cores suaves, perfumes suaves, almas de primavera. “O dia está lindo, o mar está verde, prefiro esse frio seco à umidade.” Poetas! Se pegasse um pelas lapelas de seu casaco e lhe dissesse: “Ajude-me”, ele pensaria: “O que significa esse caranguejo?” e fugiria deixando seu casaco em minhas mãos. Viro-lhes as costas, me apoio com as duas mãos na balaustrada. O verdadeiro mar é frio e negro, cheio de animais; rasteja sob essa fina película verde que é feita para enganar as pessoas. Os silfos que me rodeiam caíram no logro: só veem a fina película, é ela que prova a existência de Deus. Vejo o que está por baixo! Os vernizes se dissolvem, as pelezinhas aveludadas e brilhantes, as pelezinhas de pêssego do bom Deus se rompem por todos os lados sob meu olhar, se fendem e se entreabrem. Lá está o bonde de Saint-Élémir, giro sobre mim mesmo e as coisas giram comigo, pálidas e verdes como ostras. Inútil, é inútil subir nesse bonde, já que não quero ir a parte alguma. Por trás das vidraças desfilam aos solavancos objetos azulados, muito rígidos e quebradiços. Pessoas, paredes; através das janelas abertas, uma casa me oferece seu coração negro; e vidraças empalidecem, tornam azulado tudo o que é negro, tornam azulado esse grande edifício de tijolos amarelos que avança hesitante, estremecendo, e que para de repente, e desce em picada. Sobe um senhor e se senta em frente a mim. O prédio amarelo se põe em movimento novamente, num salto se cola aos vidros, está tão perto que só se vê uma parte sua, escureceu. As vidraças estremecem. Ele se ergue, esmagador, muito mais alto do que se pode ver, com centenas de janelas abertas para corações negros; desliza ao longo da caixa, roça-a; fez-se noite entre as vidraças que estremecem. Desliza interminavelmente, amarelo como a lama, e as vidraças estão azul-celeste. E de repente já não está ali, ficou para trás, uma forte claridade cinzenta invade a caixa e se espalha por todo lado com uma justiça inexorável: é o céu; através dos vidros veem-se ainda camadas e camadas de céu porque se sobe a encosta de Éliphar e se vê claramente os dois lados, à direita até o mar, à esquerda até o campo de aviação. Proibido fumar até mesmo um Gitane. Apoio minha mão no banco, mas retiro-a precipitadamente: isso existe. Essa coisa na qual estou sentado, na qual apoiava minha mão chama-se banco. Fizeram-no especialmente para que possamos nos sentar, arranjaram couro, molas, tecido, se puseram a trabalhar, com a ideia de fazer um assento e, quando terminaram, era isso que tinham feito. Trouxeram isso para cá, para essa caixa, e a caixa agora anda e sacoleja, com suas vidraças trepidantes, e traz em seus flancos aquela coisa vermelha. Murmuro: é um banco, um pouco como se fosse um exorcismo. Mas a palavra permanece em meus lábios: se recusa a ir pousar na coisa. Ela continua sendo o que é, com sua pelúcia vermelha, milhares de patinhas vermelhas, para o ar, muito rígidas, patinhas mortas. Esse ventre enorme, de barriga para cima, sangrando, inchado — intumescido por todas essas patas mortas, ventre que flutua nessa caixa, nesse céu cinza, não é um banco. Podia perfeitamente ser um burro morto, por exemplo, inchado pela água e flutuando à deriva, de barriga para cima, num grande rio cinza, um rio de inundação; e eu estaria sentado num ventre de burro e meus pés mergulhariam na água clara. As coisas se libertaram de seus nomes. Estão ali, grotescas, obstinadas, gigantescas, e parece imbecil chamá-las de bancos ou dizer o que quer que seja a respeito delas: estou no meio das Coisas, das inomináveis. Sozinho, sem palavras, sem defesas, estou cercado por elas: por baixo de mim, por trás de mim, por cima de mim. Não exigem nada, não se impõem: estão ali. Sob a almofada do banco, junto à divisória de madeira, há uma pequena linha de sombra, uma pequena linha preta que corre ao longo do banco com ar misterioso e travesso, quase como se fosse um sorriso. Sei perfeitamente que não é um sorriso e no entanto é algo que existe, que corre sob as vidraças esbranquiçadas, sob a zoeira das vidraças, que persiste sob as imagens azuis que desfilam por trás das vidraças e param e recomeçam a se mover, que persiste como a lembrança imprecisa de um sorriso, como uma palavra meio esquecida da qual só lembramos a primeira sílaba, e o melhor a fazer é desviar os olhos e pensar em outra coisa, nesse homem meio deitado no banco à minha frente, ali. Sua cabeça de terracota com olhos azuis. Todo o lado direito de seu corpo descaiu, o braço direito está grudado no corpo, o lado direito vive com dificuldade, com dor, com avareza, como se estivesse paralisado. Mas em todo o lado esquerdo há uma pequena existência parasita que prolifera, um câncer: o braço começou a tremer e depois se ergueu, e a mão estava rígida em sua ponta. E depois também a mão começou a tremer e, quando atingiu a altura do crânio, um dedo se estendeu e se pôs a coçar o couro cabeludo com a unha. Uma espécie de careta voluptuosa se instalou no lado direito da boca, e o lado esquerdo permanecia morto. As vidraças tremem, o braço treme, a unha coça, coça, a boca sorri sob os olhos fixos e o homem suporta, sem perceber, essa pequena existência que intumesce seu lado direito, que se utilizou de seu braço direito e de sua face direita para se realizar. O condutor me barra o caminho. — Aguarde a parada. Mas empurro-o e salto do bonde. Não aguentava mais. Já não podia suportar que as coisas estivessem tão próximas. Empurro um portão de ferro, entro, existências leves se erguem de um salto e se empoleiram nos cimos. Agora me reconheço, sei onde estou: estou no jardim público. Deixo-me cair num banco entre os grandes troncos negros, entre as mãos negras e nodosas que se erguem para o céu. Uma árvore raspa a terra, sob meus pés, com uma unha preta. Gostaria tanto de me abandonar, de esquecer de mim mesmo, de dormir. Mas não posso, sufoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca... E subitamente, de uma só vez, o véu se rasga: compreendi, vi. Seis da tarde Não posso dizer que me sinta aliviado nem contente; ao contrário, me sinto esmagado. Só que meu objetivo foi atingido: sei o que desejava saber; compreendi tudo o que me aconteceu a partir do mês de janeiro. A Náusea não me abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou eu. Estava então, ainda agora, no jardim público. A raiz do castanheiro se enfiava na terra bem por baixo de meu banco. Já não me lembrava de que era uma raiz. As palavras se haviam dissipado e com elas o significado das coisas, seus modos de emprego, os frágeis pontos de referência que os homens traçaram em sua superfície. Estava sentado, um pouco curvado, a cabeça baixa, sozinho diante dessa massa negra e nodosa, inteiramente bruta e assustadora. E depois tive essa iluminação. Fiquei sem respiração. Nunca, antes desses últimos dias, tinha pressentido o que queria dizer “existir”. Era como os outros, como os que passeiam à beira-mar com suas roupas de primavera. Dizia como eles: o mar é verde; aquele ponto branco lá no alto é uma gaivota, mas eu não sentia que aquilo existisse, que a gaivota fosse uma “gaivota-existente”; em geral a existência se esconde. Está aqui, à nossa volta, em nós, ela somos nós, não podemos dizer duas palavras sem mencioná-la, e afinal não a tocamos. Quando julgava estar pensando nela, creio que não pensava em nada, tinha a cabeça vazia ou apenas uma palavra na cabeça, a palavra “ser”. Ou então pensava... como dizer? Pensava na pertinência, dizia a mim mesmo que o mar pertencia à classe dos objetos verdes ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. Mesmo quando olhava para as coisas, estava muito longe de sonhar que essas existiam: apareciam-me como um cenário. Tomava-as nas mãos, elas me serviam de utensílios, eu previa suas resistências. Mas tudo isso ocorria na superfície. Se me tivessem perguntado o que era a existência, teria respondido de boa-fé que não era nada, apenas uma forma vazia que vinha se juntar às coisas exteriormente, sem modificar em nada sua natureza. E depois foi isto: de repente, ali estava, claro como o dia: a existência subitamente se revelara. Perdera seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas, aquela raiz estava sovada em existência. Ou antes, a raiz, as grades do jardim, o banco, a relva rala do gramado, tudo se desvanecera; a diversidade das coisas, sua individualidade, eram apenas uma aparência, um verniz. Esse verniz se dissolvera, restavam massas monstruosas e moles, em desordem — nuas, de uma nudez apavorante e obscena. Abstinha-me de fazer o menor movimento, mas não precisava me mexer para ver por trás das árvores as colunas azuis e o lampadário do coreto de música, e a Véleda, no meio de uma moita de loureiros. Todos esses objetos... como dizer? Incomodavam-me; teria desejado que existissem com menos intensidade, de uma maneira mais seca, mais abstrata, com mais recato. O castanheiro me entrava pelos olhos. Uma ferrugem verde cobria-o até meia altura; a casca, preta e empolada, parecia de couro fervido. O ruído discreto da água da fonte Masqueret penetrava em meus ouvidos, fazia neles um ninho, enchia-os de suspiros; minhas narinas transbordavam de um odor verde e pútrido. Todas as coisas, suavemente, ternamente, se entregavam à existência como essas mulheres cansadas que se entregam ao riso e dizem com voz comovida: “É bom rir”; exibiam-se, umas em frente às outras, faziam-se a abjeta confidência de sua existência. Compreendi que não havia meio-termo entre a inexistência e aquela abundância extática. Existindo, era necessário existir até aquele ponto, até o bolor, a tumidez, a obscenidade. Num outro mundo os círculos, as melodias conservam suas linhas puras e rígidas. Mas a existência é uma vergadura. Árvores, pilares azulados, o estertor feliz de uma fonte, aromas vivos, pequenas névoas de calor que flutuavam no ar frio, um homem ruivo digerindo em seu banco: todas essas sonolências, todas essas digestões, consideradas em conjunto, ofereciam um aspecto vagamente cômico. Cômico... não: não chegava a esse ponto, nada do que existe pode ser cômico; era como uma analogia flutuante, quase inacessível, com certas situações de vaudeville. Éramos um amontoado de entes incômodos, estorvados por nós mesmos, não tínhamos a menor razão para estar ali, nem uns nem outros, cada ente confuso, vagamente inquieto, se sentia demais em relação aos outros. Demais: era a única relação que podia estabelecer entre aquelas árvores, aquelas grades, aquelas pedras. Tentava inutilmente contar os castanheiros e situá-los com relação à Véleda; tentava comparar sua altura com a dos plátanos: cada um deles escapava das relações em que procurava encerrá-los, isolava-se, extravasava. Eu sentia o arbitrário dessas relações (que me obstinava em manter para retardar o desabamento do mundo humano, das medidas, das quantidades, das direções); elas já não tinham como agir sobre as coisas. Demais, o castanheiro, ali em frente a mim um pouco à esquerda. Demais, a Véleda... E eu — fraco, lânguido, obsceno, digerindo, revolvendo pensamentos sombrios —, também eu era demais. Felizmente não o sentia, sobretudo não o compreendia, mas não estava à vontade, porque temia senti-lo (mesmo agora temo isso — temo que esse sentimento me agarre pela nuca e me erga súbita e violentamente como um maremoto). Pensava vagamente em me suprimir, para aniquilar pelo menos uma dessas existências supérfluas. Mas até mesmo minha morte teria sido demais. Demais, meu cadáver, meu sangue sobre aquelas pedras, entre aquelas plantas ao fundo daquele jardim risonho. E a carne corroída teria sido demais na terra que a recebesse, e meus ossos, finalmente, limpos, descarnados, asseados e imaculados como dentes, também teriam sido demais: eu era demais para a eternidade. A palavra “Absurdo” surge agora sob minha caneta; há pouco no jardim não a encontrei, mas também não a procurava, não precisava dela: pensava sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. O absurdo não era uma ideia em minha cabeça, nem um sopro de voz, mas sim aquela longa serpente morta aos meus pés, aquela serpente de lenho. Serpente ou garra, ou raiz, ou gafa de abutre, pouco importa. E sem formular nada claramente, compreendi que havia encontrado a chave da Existência, a chave de minhas Náuseas, de minha própria vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir liga-se a esse absurdo fundamental. Absurdo: ainda uma palavra; debato-me com as palavras; lá eu tocava a coisa. Mas desejaria fixar aqui o caráter absoluto desse absurdo. Um gesto, um acontecimento no pequeno mundo colorido dos homens não é jamais senão relativamente absurdo: em relação às circunstâncias que o acompanham. Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em relação à situação em que este se encontra, mas não em relação ao seu delírio. Mas eu, ainda agora, tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo. Aquela raiz — não havia nada em relação a ela que não fosse absurdo. Oh! Como poderei fixar isso com palavras? Absurdo: com relação às pedras, aos tufos de relva amarela, à lama seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes. Absurdo, irredutível; nada — nem mesmo um delírio profundo e secreto da natureza — podia explicá-lo. Evidentemente eu não sabia tudo, não assistira à germinação nem ao crescimento da árvore. Mas diante daquela grande pata rugosa, nem a ignorância nem o saber importavam: o mundo das explicações e das razões não é o da existência. Um círculo não é absurdo, é perfeitamente explicável pela rotação de um segmento de reta em torno de uma de suas extremidades. Mas também um círculo não existe. A raiz, ao contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la. Nodosa, inerte, sem nome, ela me fascinava, enchia-me os olhos, reconduzia-me constantemente para sua própria existência. Era inútil que repetisse: “É uma raiz” — isso não surtia efeito. Bem via que não era possível passar de sua função de raiz, de bomba aspirante, àquilo, àquela pele dura e compacta de foca, àquele aspecto oleoso, caloso, obstinado. A função nada explicava: possibilitava que se compreendesse grosso modo o que era uma raiz, mas não aquela raiz. Aquela, com sua cor, sua forma, seu movimento paralisado, estava... abaixo de qualquer explicação. Cada uma de suas qualidades escapava-lhe um pouco, escorria para fora dela, semissolidificava-se, tornava-se quase uma coisa; cada uma era demais na raiz e o cepo inteiro me dava agora a impressão de sair um pouco de si mesmo, de se negar, de se perder num estranho excesso. Raspei o salto do sapato naquela garra preta: gostaria de esfolá-la um pouco. Por nada, por desafio, para fazer surgir no couro curtido o rosa absurdo de uma escoriação: para brincar com o absurdo do mundo. Mas quando afastei meu pé, vi que a casca continuava preta. Preta? Senti que a palavra se esvaziava, perdia seu sentido com uma rapidez extraordinária. Preta? A raiz não era preta, o que havia naquele pedaço de lenho não era o preto — era... outra coisa: o preto, assim como o círculo, não existia. Eu olhava para a raiz: era mais que preta ou quase preta? Mas logo deixei de me interrogar, porque tinha a impressão de estar em terreno conhecido. Sim, já perscrutara com aquela inquietação inúmeros objetos, já tentara — inutilmente — pensar algo acerca deles: e já sentira suas qualidades frias e inertes se esquivando, escorregando entre meus dedos. Os suspensórios de Adolphe, outra noite, no Rendez-vous des Cheminots. Não eram roxos. Revi as duas manchas indefiníveis sobre a camisa. E o seixo, o famigerado seixo, a origem de toda essa história: não era... não me lembrava exatamente o que se recusava a ser. Mas não esquecera sua resistência passiva. E a mão do Autodidata; segurara-a e apertara-a um dia na biblioteca e depois me ficara a impressão de que não se tratava exatamente de uma mão. Lembrara-me um grande verme branco, mas também não era isso. E a transparência equívoca do copo de cerveja no café Mably. Equívocos: eis o que eram os sons, os perfumes, os sabores. Quando nos passavam rapidamente pelo nariz, como lebres assustadas e não lhes prestávamos muita atenção, se poderia acreditar que eram muito simples e tranquilizadores, se poderia acreditar que havia no mundo um verdadeiro azul, um verdadeiro vermelho, um verdadeiro odor de amêndoa ou de violeta. Mas tão logo os retínhamos um instante, esse sentimento de conforto e segurança era substituído por um profundo mal-estar: as cores, os sabores, os odores nunca eram verdadeiros, nunca eram simplesmente eles mesmos e nada mais do que eles mesmos. A qualidade mais simples, a mais indecomponível, encerrava um excesso em si mesma, em relação a si mesma, em seu âmago. Aquele preto, ali, junto ao meu pé, não parecia ser preto, mas o esforço confuso para imaginar o preto da parte de alguém que nunca tivesse visto a cor preta e que não tivesse sabido se deter, que tivesse imaginado um ser ambíguo para além das cores. Aquilo se assemelhava a uma cor, mas também... a uma equimose ou ainda a uma secreção, a uma suarda — e a outra coisa, um odor, por exemplo, aquilo se fundia em odor de terra molhada, de madeira morna e molhada, em odor preto espalhado como um verniz sobre aquela madeira nervosa, em sabor de fibra mascada, adocicada. Eu não me limitava a ver aquele preto: a visão é uma invenção abstrata, uma ideia esvaziada, simplificada, uma ideia de homem. Aquele preto, presença amorfa e tíbia, excedia de longe a visão, o olfato e o gosto. Mas essa riqueza se transformava em confusão e finalmente aquilo já não era nada porque era demais. Esse momento foi extraordinário. Eu estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio âmago desse êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não me formulava minhas descobertas. Mas creio que agora me seria fácil colocá-las em palavras. O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhado, e tudo se põe a flutuar como na outra noite no Rendezvous des Cheminots: é isso a Náusea; é isso que os Salafrários — os do Coteau Vert e os outros — tentam esconder de si mesmos com sua ideia de direito. Mas que mentira pobre: ninguém possui o direito; eles são inteiramente gratuitos, como os outros homens, não conseguem deixar de se sentir demais. E em si mesmos, secretamente, são demais, isto é, amorfos e vagos, tristes. Quanto tempo durou essa fascinação? Eu era a raiz de castanheiro. Ou antes, era por inteiro consciência de sua existência. Ainda separado dela — já que tinha consciência dela — e no entanto perdido nela, nada mais senão ela. Uma consciência pouco à vontade e que todavia se abandonava com todo o seu peso, numa situação instável, sobre aquele pedaço de lenho inerte. O tempo parara: uma pequena poça preta aos meus pés; era impossível que alguma coisa viesse após aquele momento. Teria desejado me subtrair àquele prazer atroz, mas sequer imaginava que isso fosse possível; eu estava dentro; o cepo preto não passava, permanecia ali em meus olhos, como um pedaço demasiado grande fica atravessado numa garganta. Não podia nem aceitá-lo nem recusálo. À custa de que esforço ergui os olhos? E realmente os ergui? Não me teria antes aniquilado durante um instante, para renascer no instante seguinte com a cabeça inclinada para trás e os olhos virados para cima? De fato, não tive consciência de uma transição. Mas de repente tornou-se impossível para mim conceber a existência da raiz. Ela se apagara, por mais que eu repetisse: ela existe, ainda está aí, sob o banco, junto de meu pé direito — isso já não significava nada mais. A existência não é algo que se deixe conceber de longe: tem que nos invadir bruscamente, tem que se deter sobre nós, pesar intensamente sobre nosso coração como um grande animal imóvel — do contrário não há absolutamente nada mais. Não havia nada mais, meus olhos estavam vazios, e minha libertação me encantava. E depois, subitamente, aquilo começou a se mexer diante de meus olhos, movimentos leves e incertos: o vento sacudia a copa da árvore. Não me desagradava ver algo se mover, isso me desviava de todas aquelas existências imóveis que me olhavam como olhos fixos. Dizia a mim mesmo, acompanhando o balanço dos galhos: os movimentos nunca existem inteiramente, são passagens, intermediações entre duas existências, tempos fracos. Preparavame para vê-los sair do nada, amadurecer progressivamente, desabrochar: ia finalmente surpreender existências no ato de nascer. Não foram necessários mais de três segundos para que todas as minhas esperanças fossem varridas. Não conseguia captar uma “passagem” à existência naqueles galhos hesitantes que tateavam como cegos. Essa ideia de passagem era também uma invenção dos homens. Uma ideia muito clara. Todas aquelas pequenas agitações se isolavam, se afirmavam por si mesmas. Excediam por todos os lados os galhos e ramos. Turbilhonavam em torno daquelas mãos secas, envolviam-nas em pequenos ciclones. É claro que um movimento era algo diferente de uma árvore. Mas ainda assim era um absoluto. Uma coisa. Meus olhos só encontravam plenitudes. Era um fervilhamento de existências, na ponta dos galhos, de existências que se renovavam permanentemente e que nunca nasciam. O vento existente vinha pousar na árvore como uma imensa mosca, e a árvore se arrepiava. Mas o arrepio não era uma qualidade nascente, uma passagem da potência ao ato; era uma coisa; uma coisa-arrepio que se introduzia na árvore, se apoderava dela, sacudia-a e subitamente a abandonava, ia rodopiar mais adiante. Tudo estava pleno, tudo em ato, não havia tempo fraco, tudo, até o mais imperceptível estremecimento, era feito com existência. E todos esses entes que se azafamavam em torno da árvore não vinham de parte alguma, não iam a parte alguma. De repente existiam e a seguir, bruscamente, já não existiam: a existência não tem memória; não conserva nada dos desaparecidos — sequer uma recordação. A existência em toda parte, ao infinito, demais, sempre e em toda parte; a existência — que nunca é limitada a não ser pela existência. Abandonava-me no banco, atordoado, afligido por essa profusão de seres sem origem: eclosões por todo lado, desabrochamentos; meus ouvidos zumbiam de existência, minha própria carne palpitava e se entreabria, se abandonava à germinação universal: era repugnante. “Mas por que”, pensei, “por que tantas existências, já que todas se parecem?” Para que tantas árvores, todas iguais? Tantas existências fracassadas e obstinadamente recomeçadas e novamente fracassadas — como os esforços desajeitados de um inseto caído de costas? (Eu era um desses esforços.) Aquela abundância não dava impressão de generosidade, ao contrário. Era melancólica, miserável, estorvada por si mesma. Aquelas árvores, aqueles grandes corpos canhestros... Comecei a rir, porque de repente me lembrei das primaveras fantásticas que se descrevem nos livros, cheias de crepitações, de explosões, de eclosões gigantescas. Havia imbecis que vinham me falar de vontade de poder e de luta pela vida. Então nunca tinham olhado para um animal ou uma árvore? Desejariam que eu tomasse aquele plátano, com suas placas de alopecia, aquele carvalho meio apodrecido, por forças jovens e ardentes se erguendo impetuosamente para o céu? E aquela raiz? Certamente seria preciso que me fosse representada como uma garra voraz, dilacerando a terra, arrancando-lhe seu alimento. Impossível ver as coisas dessa maneira. Molezas, fraquezas, sim. As árvores flutuavam. Um jorrar para o céu? Antes um desmoronamento; a cada instante esperava ver os troncos se encarquilharem como pênis cansados, se encolherem e desabarem no chão, formando um amontoado preto e mole, enrugado. Eles não desejavam existir, só que não podiam evitá-lo; era isso. Então realizavam suas pequenas funções, devagar, sem entusiasmo; a seiva subia lentamente pelos veios, a contragosto, e as raízes se enfiavam lentamente na terra. Mas a cada momento eles pareciam a ponto de abandonar tudo e se aniquilar. Cansados e velhos, continuavam a existir, de má vontade, simplesmente porque eram muito fracos para morrer, porque a morte só podia atingi-los do exterior; só as melodias trazem orgulhosamente a morte em si mesmas, como uma necessidade interna; apenas elas não existem. Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso. Inclinei-me para trás e fechei as pálpebras. Mas as imagens, imediatamente alertadas, de um salto vieram encher de existências meus olhos fechados: a existência é uma plenitude que o homem não pode abandonar. Estranhas imagens. Representam uma imensidão de coisas. Não coisas verdadeiras, outras que se lhes assemelham. Objetos de madeira que se assemelham a cadeiras, a tamancos, outros objetos que se assemelham a plantas. E depois dois rostos: era o casal que almoçava perto de mim outro domingo na Brasserie Vézelize. Gordos, quentes, sensuais, absurdos, com as orelhas vermelhas. Via os ombros e o busto da mulher. Existência nua. Aqueles dois — bruscamente isso me horrorizou —, aqueles dois continuavam a existir em algum lugar de Bouville; em algum lugar — em meio a que odores? — aquele busto suave continuava a se acariciar no contato de tecidos frescos, a se enroscar nas rendas, e a mulher continuava a sentir seu busto existir em seu corpete, a pensar: “meus peitinhos, meus belos frutos”, a sorrir misteriosamente, atenta ao desabrochar de seus seios que lhe faziam cócegas; e depois gritei e dei por mim de olhos arregalados. Essa enorme presença terá sido um sonho? Ela estava ali, pousada no jardim, desabada nas árvores, toda mole, lambuzando tudo, toda espessa, uma compota. E eu e todo o jardim estávamos dentro dela? Sentia medo, mas estava sobretudo com raiva, achava aquilo tão idiota, tão despropositado, odiava aquela geleia ignóbil. Era muita, muita! Subia até o céu, se espalhava por todo lado, enchia tudo com seu escorrer gelatinoso, e eu via profundidades e profundidades dela, muito mais longe do que os limites do jardim e as casas e Bouville, eu já não estava em Bouville, nem em lugar algum, flutuava. Não estava surpreso, bem sabia que aquilo era o Mundo, o Mundo inteiramente nu que se mostrava de repente, e sufocava de raiva desse ser grande e absurdo. Sequer se podia perguntar de onde saía aquilo, tudo aquilo, nem como era possível que existisse um mundo ao invés de coisa alguma. Aquilo não tinha sentido, o mundo estava presente em toda parte, à frente, atrás. Antes dele não houvera nada. Nada. Não houvera um momento em que ele pudesse não existir. Era isso que me irritava: obviamente não havia nenhuma razão para que aquela larva corrediça existisse. Mas não era possível que não existisse. Isso era impensável: para imaginar o nada, era preciso estar já ali, em pleno mundo, vivo e de olhos bem abertos; o nada era apenas uma ideia em minha cabeça, uma ideia existente flutuando naquela imensidão: esse nada não veio antes da existência, era uma existência como outra qualquer e surgida depois de muitas outras. Gritei “que imundície, que imundície!” e me sacudi para me livrar dessa imundície pegajosa, mas ela resistia e era tanta, toneladas e toneladas de existência, indefinidamente: eu sufocava no fundo desse tédio imenso. E depois, de repente, o jardim se esvaziou como que através de um grande buraco, o mundo desapareceu da mesma maneira que surgira, ou então eu acordei — de toda maneira não o vi mais; restava uma terra amarela ao meu redor, de onde saíam galhos mortos apontando para o alto. Levantei-me, saí. Chegando ao portão de ferro, voltei-me. Então o jardim sorriu para mim. Apoiei-me na grade e fitei-o longamente. O sorriso das árvores, da moita de loureiros, queria dizer alguma coisa; era isso o verdadeiro segredo da existência. Lembrei-me que num domingo, não há mais de três semanas, eu já percebera uma espécie de ar de cumplicidade nas coisas. Era a mim que se dirigia? Sentia, aborrecido, que não tinha nenhum meio de compreender. Nenhum meio. No entanto aquilo estava ali, à espera, parecia um olhar. Estava ali, no tronco do castanheiro... era o castanheiro. Parecia que as coisas eram pensamentos que paravam no caminho, que se esqueciam o que tinham querido pensar e que permaneciam assim, balouçantes, com um sentidozinho estranho que os ultrapassava. Esse sentidozinho me irritava: não podia compreendêlo, ainda que permanecesse 107 anos apoiado na grade; ficara sabendo sobre a existência tudo o que podia saber. Fui embora, voltei para o hotel, e escrevi. À noite Tomei uma decisão: já não tenho motivos para permanecer em Bouville, posto que desisti de escrever meu livro; vou morar em Paris. Sexta-feira, tomarei o trem das cinco horas, sábado verei Anny; creio que passaremos alguns dias juntos. Depois voltarei aqui para pôr algumas coisas em ordem e fazer minhas malas. Dia 1º de março, o mais tardar, estarei definitivamente instalado em Paris. Sexta-feira No Rendez-vous des Cheminots. Meu trem parte em vinte minutos. O gramofone. Forte impressão de aventura. Sábado Anny vem abrir, usando um vestido preto longo. Naturalmente não me estende a mão, não me cumprimenta. Conservei a mão direita no bolso de meu sobretudo. Ela diz em tom amuado e muito depressa, para se livrar das formalidades: — Entre e sente-se onde quiser, exceto na poltrona junto à janela. É ela, é bem ela. Está com os braços caídos, com a cara emburrada que antigamente lhe dava um ar de menina na idade ingrata. Mas agora ela já não parece uma menina. Está gorda, com os seios volumosos. Fecha a porta, diz para si mesma com ar meditativo: — Não sei se vou me sentar na cama... Finalmente se deixa cair numa espécie de arca coberta com um tapete. Seu andar já não é o mesmo: caminha com uma lentidão majestosa não desprovida de graça: parece embaraçada com sua gordura recente. No entanto, apesar de tudo, é bem ela, é Anny. Anny solta uma gargalhada. — Por que está rindo? Ela não responde imediatamente, como é seu hábito, assume um ar zombeteiro. — Diga, por quê? — É por causa desse largo sorriso que você ostenta desde que entrou. Parece um pai que acaba de casar a filha. Vamos, não fique de pé. Ponha seu casaco em qualquer lugar e sente-se. Sim, ali se quiser. Segue-se um silêncio que Anny não tenta romper. Como esse quarto é nu! Antigamente Anny levava em todas as suas viagens uma imensa mala cheia de xales, turbantes, mantilhas, máscaras japonesas, estampas. Mal chegava a um hotel — e ainda que só fosse passar uma noite nele — seu primeiro cuidado era abrir essa mala e tirar dela todos os seus tesouros, que pregava nas paredes, pendurava nas lâmpadas, estendia sobre as mesas ou no chão de acordo com uma ordem variável e complicada; em menos de meia hora, o quarto mais banal se revestia de uma personalidade marcante e sensual, quase intolerável. Talvez a mala se tenha perdido, talvez tenha ficado no depósito de bagagens... Esse cômodo frio, com a porta que se entreabre para o banheiro, tem algo de sinistro. Parece, sendo mais luxuoso e mais triste, com meu quarto de Bouville. Anny torna a rir. Reconheço perfeitamente esse risinho muito estridente e um pouco fanhoso. — Pois é, você não mudou. O que está procurando com esse ar aflito? Sorri, mas seus olhos me fitam com uma curiosidade quase hostil. — Estava apenas pensando que esse quarto não parece habitado por você. — Ah! Sim? — responde com ar vago. Novo silêncio. Agora está sentada na cama, muito pálida em seu vestido preto. Não cortou os cabelos. Continua a me fitar com ar calmo, erguendo um pouco as sobrancelhas. Não terá nada a me dizer? Por que me fez vir? Esse silêncio é insuportável. Digo subitamente, lamentavelmente: — Estou contente por ver você. A última palavra se estrangula em minha garganta: se era para isso, teria sido melhor que me calasse. Ela certamente vai se zangar. Bem me parecia que os primeiros 15 minutos seriam penosos. Antigamente, quando revia Anny, fosse após uma ausência de 24 horas, fosse de manhã ao acordar, nunca sabia encontrar as palavras que ela esperava, aquelas que combinavam com sua roupa, com o tempo, com as últimas palavras que tínhamos pronunciado na véspera. Mas o que quer ela? Não posso adivinhar. Levanto os olhos. Anny me fita com uma espécie de ternura. — Então você não mudou nada? Continua tão tolo como sempre? Seu rosto exprime satisfação. Mas como parece cansada! — Você é um marco — diz ela —, um marco à beira de uma estrada. Você explica imperturbavelmente, e explicará a vida inteira, que Melun fica a 27 quilômetros de distância e Montargis a 42. É por isso que preciso tanto de você. — Precisa de mim? Precisou de mim durante esses quatro anos em que não nos vimos? Pois bem, você foi de uma discrição a toda prova. Falei sorrindo: ela poderia pensar que estou ressentido. Sinto em meus lábios esse sorriso muito falso, estou pouco à vontade. — Como você é tolo! Naturalmente não preciso ver você, se é o que quer dizer. Sabe, você não tem nada de particularmente agradável à vista. Preciso que você exista e que não mude. Você é como esse metro de platina que é conservado em algum lugar, em Paris, ou nos arredores. Não creio que alguém tenha tido vontade de vê-lo algum dia. — É aí que você se engana. — Enfim, pouco importa. Eu nunca me interessei. Gosto de saber que ele existe, que mede exatamente a décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre. Penso nisso cada vez que tomam medidas num apartamento ou que me vendem um tecido a metro. — Ah, sim? — digo friamente. — Mas, sabe, eu poderia perfeitamente só pensar em você como numa virtude abstrata, uma espécie de limite. Você pode me agradecer que todas as vezes me lembre de seu rosto. Aí estão outra vez as discussões bizantinas que no passado era preciso suportar, quando meu coração tinha desejos simples e banais, como o de lhe dizer que a amava, como o de tomá-la em meus braços. Hoje não tenho nenhum desejo. A não ser talvez o de me calar e olhar para ela, realizar em silêncio toda a importância desse acontecimento extraordinário: a presença de Anny em frente a mim. E para ela será esse dia semelhante aos outros? As mãos dela não tremem. Ela devia ter algo a me dizer no dia em que me escreveu — ou talvez se tratasse simplesmente de um capricho. Agora há muito que isso não mais existe. Anny me sorri de repente, com uma ternura tão visível que me vêm lágrimas aos olhos. — Pensei em você com muito mais frequência do que no metro de platina. Não houve um só dia em que não tivesse pensado em você. E me lembrava distintamente de sua pessoa até o menor detalhe. Levanta-se e vem apoiar suas mãos em meus ombros: — Ouse dizer que você se lembrava de meu rosto, você que se queixa. — Isso não vale — digo. — Você bem sabe que tenho má memória. — Está confessando: você me esqueceu completamente. Teria me reconhecido na rua? — Naturalmente. Não se trata disso. — Lembrava-se pelo menos da cor de meus cabelos? — Claro que sim! São louros. Ela começa a rir. — Você diz isso orgulhosamente. Agora que os vê, não tem muito mérito. Passa a mão em meus cabelos. — E seus cabelos são ruivos — diz me imitando —; a primeira vez que o vi, você estava com um chapéu de feltro, nunca me esquecerei, um chapéu mole de um tom meio malva, que destoava atrozmente de seus cabelos ruivos. Era horrível de ver. Onde está seu chapéu? Quero ver se continua com o mesmo mau gosto. — Já não uso chapéu. Ela assobia baixinho, arregalando os olhos. — Você não chegou a isso sozinho. Não é? Pois bem, felicito-o. Naturalmente! Só que tinha que pensar nisso. Esses seus cabelos não toleram nada, destoam dos chapéus, das almofadas das poltronas, até da tapeçaria das paredes que lhes serve de fundo. Ou então seria preciso que você enterrasse o chapéu até as orelhas, como aquele de feltro inglês que comprou em Londres. Você botava as madeixas para dentro da copa e já nem se sabia se ainda tinha cabelos. Acrescenta no tom decidido com que se terminam velhas querelas: — Ele não ficava nada bem em você. Já não sei de que chapéu se trata. — Eu dizia que ficava? — Claro que dizia! Aliás, só falava nisso. E se olhava disfarçadamente nos espelhos, quando achava que eu não o estava vendo. Esse conhecimento do passado me oprime. Anny nem parece estar evocando lembranças, seu tom não tem o matiz enternecido e distante que convém a esse tipo de ocupação. Parece estar falando de hoje, no máximo de ontem; conservou bem vivas suas opiniões, suas teimosias, seus rancores de antigamente. Para mim, ao contrário, tudo mergulhou numa atmosfera poética; estou disposto a todas as concessões. Ela me diz bruscamente, numa voz sem entonação: — Você vê, engordei, envelheci, tenho que me cuidar. Sim. E como parece cansada! Quando vou falar, ela acrescenta rapidamente: — Fiz teatro em Londres. — Com Candler? — Não, com Candler não. Isso é bem você. Meteu na cabeça que eu faria teatro com Candler. Quantas vezes será preciso dizer que Candler é um maestro? Não, num teatrinho da Soho Square. Representamos Emperor Jones, peças de Sean O’Casey, de Synge, e Britannicus. — Britannicus? — digo surpreso. — Pois é, Britannicus. Foi por causa disso que me afastei. Fui eu que lhes dei a ideia de montar Britannicus; e eles quiseram que eu fizesse o papel de Junie. — Ah, sim? — Ora, naturalmente, eu só podia fazer o papel de Agrippine. — E agora, o que está fazendo? Fiz mal em perguntar isso. Seu rosto fica inteiramente sem vida. No entanto ela responde imediatamente: — Já não represento. Viajo. Tenho um sujeito que me sustenta. Sorri: — Oh! Não me olhe com essa solicitude, não é trágico. Sempre lhe disse que não me importaria de ser sustentada por algum homem. Aliás, é um sujeito velho, não me incomoda. — Inglês? — Mas que diferença faz? — diz com irritação. — Não vamos falar desse homenzinho. Ele não tem importância alguma, nem para você, nem para mim. Quer um chá? Entra no banheiro. Ouço-a andar de um lado para o outro, mexendo em caçarolas, falando sozinha; um murmúrio agudo e ininteligível. Na mesinha de cabeceira, ao lado de sua cama, há como sempre um volume da Histoire de France, de Michelet. Sobre a cama, noto agora que pendurou uma fotografia, só uma, uma reprodução do retrato de Emily Brontë pelo irmão. Anny retorna e me diz bruscamente: — Agora fale de você. Depois torna a desaparecer no banheiro. Disso me lembro, apesar de minha má memória: ela fazia perguntas diretas assim, que me constrangiam muito, porque sentia ao mesmo tempo um interesse sincero e o desejo de encerrar rapidamente o assunto. De toda maneira, depois dessa pergunta, já não posso ter dúvidas: ela deseja algo de mim. Por enquanto estamos apenas nas preliminares: ela já se livrou do que poderia incomodar; organiza definitivamente as perguntas secundárias: “Agora fale de você.” Daqui a pouco vai me falar dela. De repente já não sinto a menor vontade de lhe contar nada. Para quê? A Náusea, o medo, a existência... Mais vale que guarde tudo isso para mim. — Ande logo com isso — grita através da divisória. Retorna trazendo um bule de chá. — O que é que você faz? Mora em Paris? — Moro em Bouville. — Bouville? Por quê? Espero que não tenha casado. — Casado? — digo num sobressalto. Desagrada-me muito que Anny tenha podido pensar isso. Digolhe: — É absurdo. É exatamente o gênero de imaginações naturalistas que você me censurava antigamente. Lembra-se? Quando eu a imaginava viúva e mãe de dois meninos. E todas aquelas histórias que lhe contava sobre o que viria a nos acontecer. Você detestava isso. — E você adorava — responde ela sem se perturbar. — Você dizia tudo isso para se exibir. Aliás, você se indigna assim em conversa, mas é bastante traidor para ser capaz de se casar um dia às escondidas. Durante um ano você protestou com indignação que não iria ver Violetas imperiales. Depois, num dia em que eu estava doente, foi ver o filme sozinho num cineminha do bairro. — Estou em Bouville — digo com dignidade — porque estou escrevendo um livro sobre o sr. de Rollebon. Anny me olha com um interesse diligente. — O sr. de Rollebon? Viveu no século XVIII? — Sim. — De fato você me tinha falado a respeito — diz vagamente. — Então é um livro de história? — Sim. — Ha, ha! Se me fizer mais uma pergunta, conto-lhe tudo. Mas ela não pergunta mais nada. Aparentemente acha que já sabe o suficiente sobre mim. Anny sabe escutar muito bem, mas só quando quer. Olho para ela: baixou as pálpebras, está pensando no que vai me dizer, na maneira como começará. Devo interrogá-la por minha vez? Não creio que ela o deseje. Falará quando julgar que chegou a hora de fazê-lo. Meu coração bate com força. _ Ela diz bruscamente: — Eu mudei. Aí está o começo. Mas ela se cala agora. Serve o chá em xícaras de porcelana branca. Aguarda que eu fale: tenho que dizer alguma coisa. Não qualquer coisa, mas exatamente o que ela espera. É um suplício. Terá ela realmente mudado? Engordou, parece cansada: certamente não é a isso que se refere. — Não sei. Não acho. Já reconheci seu riso, sua maneira de se levantar e colocar as mãos em meus ombros, sua mania de falar sozinha. Você continua lendo a Histoire de Michelet. E uma porção de outras coisas... Esse interesse profundo que ela dedica à minha essência eterna e sua indiferença total por tudo o que pode me acontecer na vida — e depois esse preciosismo, ao mesmo tempo pedante e encantador — e também essa maneira de suprimir logo no primeiro contato todas as fórmulas mecânicas de cortesia, de amizade, tudo o que facilita as relações entre os homens, de obrigar seus interlocutores a uma perpétua invenção. Ela dá de ombros: — Mudei sim — diz secamente. — Mudei completamente. Já não sou a mesma pessoa. Pensava que você perceberia desde o primeiro olhar. E você vem me falar da Histoire de Michelet. Posta-se em frente a mim: — Vamos ver se esse homem é tão sagaz como pretende. Procure: em que foi que mudei? Hesito; ela bate com o pé no chão, ainda sorrindo, mas sinceramente irritada. — Há algo que era um suplício para você antigamente. Pelo menos era o que dizia. E agora isso terminou, desapareceu. Você deveria se dar conta. Não se sente mais à vontade? Não ouso lhe responder que não; estou, exatamente como no passado, sentado na ponta da cadeira, preocupado em evitar ciladas, em esconjurar iras inexplicáveis. Ela voltou a se sentar. — Pois bem — diz sacudindo a cabeça com convicção —, se você não compreende é porque esqueceu muitas coisas. Mais ainda do que eu imaginava. Vejamos, já não se lembra de suas faltas de antes? Você vinha, falava, ia embora: tudo inoportunamente. Imagine que nada tivesse mudado: você teria entrado, haveria máscaras e xales na parede, eu estaria sentada na cama e teria dito (joga a cabeça para trás, dilata as narinas e fala com voz teatral como que para caçoar de si própria): “Então? Que está esperando? Sente-se.” E naturalmente teria evitado cuidadosamente lhe dizer: “Exceto na poltrona junto à janela.” — Você me preparava armadilhas. — Não eram armadilhas... Então, naturalmente você teria ido se sentar diretamente ali. — E que me teria acontecido? — digo, virando-me e contemplando a poltrona com curiosidade. Tem uma aparência comum, um ar protetor e confortável. — Só coisas ruins — responde Anny concisamente. Não insisto: Anny sempre se rodeou de objetos tabus. — Creio — digo-lhe de repente — que estou adivinhando algo. Mas seria tão extraordinário. Espere, me deixe procurar: de fato esse quarto está inteiramente nu. Essa justiça você me fará: notei isso imediatamente. Bem, teria entrado, teria visto realmente aquelas máscaras nas paredes, e os xales, e tudo o mais. O hotel sempre acabava em sua porta. Seu quarto era outra coisa... Você não teria ido abrir a porta. Eu a teria vislumbrado encolhida num canto, talvez sentada no chão na moquette vermelha que sempre a acompanhava, me olhando sem indulgência, aguardando... Mal tivesse pronunciado uma palavra, feito um gesto, tomado fôlego, você teria começado a franzir as sobrancelhas e eu me teria sentido profundamente culpado sem saber por quê. Depois, de minuto em minuto teria acumulado as gafes, me teria enterrado em meu erro... — Quantas vezes isso aconteceu? — Cem vezes. — No mínimo! Você agora é mais habilidoso, mais aguçado? — Não! — Gosto que diga isso. Então! — Então, o que já não há... — Ha, ha! — exclama com voz teatral. — Mal se atreve a acreditar! Acrescenta com suavidade: — Pois bem, pode acreditar em mim: não há mais isso. — Acabaram-se os momentos perfeitos? — Sim. Estou estupefato. Insisto. — Enfim, você não... Acabaram aquelas... tragédias, aquelas tragédias instantâneas onde as máscaras, os xales, os móveis e eu próprio representávamos, cada um, nosso pequeno papel — e você um grande papel? Ela sorri. — Que ingrato! Dei-lhe algumas vezes papéis mais importantes do que o meu: mas não percebeu. Pois bem, sim: terminou. Você está surpreso? — Ah! Sim, estou surpreso! Pensava que isso fizesse parte de você mesma; que, se lhe tirassem isso, teria sido como se lhe tivessem arrancado o coração. — Eu também pensava — diz com ar de quem não sente saudade de nada. Acrescenta com uma espécie de ironia que me causa uma impressão muito desagradável: — Mas, como vê, posso viver sem isso. Cruzou os dedos e segura um dos joelhos com as mãos. Olha para o ar, com um vago sorriso que rejuvenesce todo o seu rosto. Parece uma menina gorda, misteriosa e satisfeita. — Sim, estou contente por você ter permanecido o mesmo. Se tivessem mudado você de lugar, repintado, enfiado na beira de uma outra estrada, eu não teria mais nada de fixo para me orientar. Você me é indispensável: eu mudo; quanto a você, está estabelecido que permanece imutável e eu meço minhas mudanças com referência a você. Ainda assim me sinto um pouco melindrado. — Pois bem, isso é bastante inexato — digo com vivacidade. — Pelo contrário, evoluí muito esses últimos tempos, no fundo, eu... — Oh! — diz com um desprezo esmagador. — Mudanças intelectuais! Eu mudei dos pés à cabeça. Dos pés à cabeça... O que foi então que me perturbou em sua voz? De toda maneira, bruscamente dei um salto! Deixo de procurar uma Anny desaparecida. É essa moça, essa moça gorda de aparência deteriorada que me toca e que eu amo. — Tenho uma espécie de certeza... física. Sinto que não há momentos perfeitos. Sinto isso até em minhas pernas quando caminho. Sinto isso permanentemente, até quando durmo. Não consigo esquecer. Nunca houve nada que fosse como uma revelação; não posso dizer: a partir de tal dia, de tal hora minha vida se transformou. Mas agora me sinto sempre um pouco como se isso me tivesse sido bruscamente revelado na véspera. Sinto-me deslumbrada, pouco à vontade, não me habituo. Diz essas palavras com voz calma onde permanece uma sombra de orgulho por haver mudado tanto. Balança o corpo na arca em que está sentada com uma graça extraordinária. Em momento algum, desde que entrei, se pareceu tanto à Anny do passado, a de Marselha. Reconquistou-me, mergulhei novamente em seu estranho universo, para além do ridículo, do preciosismo, da sutileza. Voltei a sentir até aquela pequena exaltação que sempre me agitava em sua presença e o gosto amargo no fundo de minha boca. Anny descruza as mãos e solta o joelho. Cala-se. É um silêncio planejado; como quando, na Opera, o palco permanece vazio durante exatamente sete compassos de orquestra. Bebe seu chá. Depois pousa a xícara e se mantém tesa, apoiando as mãos fechadas na beira da arca. Subitamente faz aparecer em suas faces o soberbo rosto de Medusa que eu amava tanto, totalmente intumescido de ódio, retorcido, venenoso. Anny não muda nada de expressão; muda de rosto; como os atores antigos mudavam de máscara: de repente. E cada uma dessas máscaras se destina a criar a atmosfera, a dar o tom do que se seguirá. Surge e se mantém, sem se modificar enquanto ela fala. Depois cai, se desliga dela. Ela me fixa sem parecer me ver. Vai falar. Espero um discurso trágico, alçado à dignidade de sua máscara, um canto fúnebre. Ela diz apenas uma frase: — Sobrevivo a mim mesma. O tom não corresponde absolutamente ao rosto. Este não é trágico, é... horrível: exprime um desespero seco, sem lágrimas, sem piedade. Sim, há nela algo de irremediavelmente dessecado. A máscara cai, ela sorri. — Absolutamente não estou triste. Muitas vezes isso me espantou, mas eu estava errada: por que ficaria triste? Antigamente era capaz de paixões de uma grande beleza. Odiei apaixonadamente minha mãe. Aliás, a você — diz num desafio — amei apaixonadamente. Aguarda uma réplica. Não digo nada. — Tudo isso terminou, é claro. — Como pode saber? — Eu sei. Sei que nunca mais encontrarei nada nem ninguém que me inspire uma paixão. Você sabe, não é tarefa fácil amar alguém. É preciso ter uma energia, uma generosidade, uma cegueira... Há até um momento, bem no início, em que é preciso saltar por cima de um precipício: se refletimos, não o fazemos. Sei que nunca mais saltarei. — Por quê? Ela me lança um olhar irônico e não responde. — Atualmente — diz — vivo rodeada por minhas paixões defuntas. Tento recuperar aquela bela fúria que me precipitou do terceiro andar, quando tinha 12 anos, um dia em que minha mãe me chicoteara. Acrescenta, sem ligação aparente, com ar distante: — Também não é bom que fixe os objetos durante muito tempo. Olho para eles para saber o que são, depois tenho que desviar rapidamente os olhos. — Mas por quê? — Eles me repugnam. Mas não pareceria que... De toda maneira, certamente há semelhanças. Já uma vez, em Londres, isso ocorreu, pensamos separadamente as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos, mais ou menos no mesmo momento. Gostaria tanto que... Mas o pensamento de Anny faz inúmeros desvios; nunca se tem certeza de havê-lo compreendido inteiramente. Preciso ter certeza. — Escute, gostaria de lhe dizer: você sabe que eu nunca soube exatamente o que eram os momentos perfeitos; você nunca me explicou. — Sim, eu sei, você não fazia nenhum esforço. Era uma estaca a meu lado. — Só eu sei o que isso me custou. — Bem mereceu tudo o que lhe aconteceu, você tinha muita culpa; me irritava com seu ar sólido. Parecia dizer: eu sou normal; e se dedicava a respirar saúde, você destilava saúde de espírito. — Ainda assim, lhe pedi mais de cem vezes que me explicasse o que era um... — Sim, mas em que tom — diz com raiva — você condescendia em se informar... É essa a verdade. Perguntava com uma amabilidade distraída, como as velhas senhoras que me perguntavam de que estava brincando, quando eu era pequena. No fundo — diz com ar pensativo — me pergunto se não foi você quem mais odiei. Faz um esforço para se dominar, controla-se e sorri, com as faces ainda inflamadas. Está muito bonita. — Quero muito lhe explicar o que é isso. Atualmente já tenho idade suficiente para falar, sem raiva, com as boas velhotas como você, sobre as brincadeiras de minha infância. Fale, o que quer saber? — O que era aquilo. — Falei com você sobre situações privilegiadas, não foi? — Acho que não. — Sim — diz com segurança. — Foi em Aix, naquela praça de cujo nome já não me lembro. Estávamos no jardim de um café, debaixo de guarda-sóis alaranjados, na hora do sol forte. Você não se lembra: estávamos tomando limonada e achei moscas mortas no açúcar. — Ah! Sim, talvez... — Pois bem, falei de tudo isso nesse café. Já o tinha mencionado a você a propósito da grande edição da Histoire de Michelet, a que eu tinha quando era pequena. Era muito maior do que essa aqui, e suas folhas eram de uma cor pálida, como o interior de um cogumelo, e também cheiravam a cogumelo. Quando meu pai morreu, meu tio Joseph se apossou dela e levou todos os volumes. Foi nesse dia que o chamei de velho porco e minha mãe me chicoteou e eu pulei pela janela. — Sim, sim... você deve ter me falado dessa Histoire de France... Você não a lia num sótão? Como vê, me lembro. Vê que estava sendo injusta ainda agora quando me acusava de ter esquecido tudo. — Cale-se. Então eu levava, como você se lembrou muito bem, aqueles livros enormes para o sótão. Tinham muito poucas figuras, talvez três ou quatro em cada volume. Mas cada uma delas ocupava sozinha uma página inteira, uma página cujo verso ficara em branco. Isso me impressionava ainda mais, porque nas outras folhas o texto fora disposto em duas colunas para ganhar espaço. Tinha um amor extraordinário por essas gravuras; conhecia todas de cor e, quando relia um livro de Michelet, já as aguardava com cinquenta páginas de antecedência; sempre me parecia um milagre tornar a encontrá-las. E depois havia um requinte: a cena que elas representavam nunca se referia ao texto das páginas imediatas, era preciso procurar o acontecimento umas trinta páginas adiante. — Suplico-lhe, fale-me dos momentos perfeitos. — Estou falando de situações privilegiadas. Eram as que estavam representadas nas gravuras. Fui eu que as chamei de privilegiadas, dizia-me que deviam ter uma importância bastante considerável para que tivessem consentido em utilizá-las como assunto daquelas imagens tão raras. Tinham sido escolhidas entre todas, entende? E no entanto havia muitos episódios que tinham um valor plástico maior, outros que tinham mais interesse histórico. Por exemplo, para todo o século XVI havia apenas três figuras: uma referente à morte de Henrique II, outra ao assassinato do duque de Guise, e uma à entrada de Henrique IV em Paris. Então imaginei que aqueles acontecimentos eram de uma natureza particular. Aliás, as gravuras confirmavam minha ideia: seu desenho era tosco, os braços e as pernas nunca estavam bem ligados aos troncos. Mas tinham uma imensa grandeza. Quando o duque de Guise é assassinado, por exemplo, os espectadores manifestam seu estupor e sua indignação, estendendo, todos eles, as palmas das mãos para a frente e desviando a cabeça; é muito bonito, parecia um coro. E não creia que tenham esquecido os detalhes engraçados ou anedóticos. Viam-se pajens caindo ao chão, cachorrinhos fugindo, bufões sentados nos degraus do trono. Mas todos esses detalhes eram tratados com tamanha grandeza e também tamanha falta de jeito, que se harmonizavam perfeitamente com o resto da figura: não me lembro de ter visto quadros que tivessem unidade tão rigorosa. Pois bem, foi daí que tudo se originou. — As situações privilegiadas? — Enfim, a ideia que fazia disso. Eram situações que tinham uma qualidade totalmente rara e preciosa, estilo, se preferir. Quando eu tinha oito anos, ser rei, por exemplo, me parecia uma situação privilegiada. Ou então morrer. Você ri, mas havia tantas pessoas desenhadas no momento da morte, e há tantas que pronunciaram palavras sublimes nesse momento, que eu acreditava de boa-fé... Enfim, pensava que entrando em agonia a pessoa era transportada mais acima de si mesma. Aliás, bastava estar no quarto de um morto: a morte era uma situação privilegiada, algo emanava dela e era comunicado a todas as pessoas presentes. Uma espécie de grandeza. Quando meu pai morreu, me fizeram subir a seu quarto para vê-lo pela última vez. Ao subir a escada, me sentia muito infeliz, mas estava como que embriagada por uma espécie de êxtase religioso; finalmente entrava numa situação privilegiada. Apoiei-me na parede, tentei fazer os gestos que se impunham. Mas lá estavam minha mãe e minha tia, ajoelhadas junto à cama, estragando tudo com seus soluços. Ela disse essas últimas palavras com azedume, como se a lembrança ainda fosse pungente. Interrompeu-se; o olhar fixo, as sobrancelhas erguidas, aproveita a ocasião para reviver a cena uma vez mais. — Mais tarde, ampliei tudo isso; acrescentei-lhe primeiro uma situação nova, o amor (refiro-me ao ato de fazer amor). Olhe, se nunca entendeu por que me recusava a... algumas de suas solicitações, agora é uma boa ocasião para entendê-lo: para mim havia algo que tinha que ser salvo. E depois, então, disse a mim mesma que devia haver muito mais situações privilegiadas do que eu poderia contar; finalmente admiti uma infinidade delas. — Sim, mas afinal de que se tratava? — Ora essa! Já lhe disse — diz com ar de espanto —, faz 15 minutos que estou lhe explicando. — Enfim, era preciso sobretudo que as pessoas estivessem muito apaixonadas, arrebatadas pelo ódio ou pelo amor, por exemplo; ou então o aspecto exterior do acontecimento tinha que ser grande, quero dizer, o que se pode ver dele... — As duas coisas... isso dependia — responde de má vontade. — E os momentos perfeitos? O que têm a ver com isso? — Eles vêm depois. Há primeiro sinais que os anunciam. Depois a situação privilegiada, lentamente, majestosamente entra na vida das pessoas. Então a pergunta que se coloca é de saber se queremos fazer disso um momento perfeito. — Sim — digo —, compreendi. Em cada uma das situações privilegiadas há certos atos que é preciso fazer, atitudes que é preciso tomar, palavras que é preciso dizer — e outras atitudes, outras palavras são estritamente proibidas. É isso? — Pode ser... — Em suma, a situação é a matéria: é algo que exige ser trabalhado. — É isso — diz ela. — Primeiro seria preciso estar mergulhado em algo de excepcional e sentir que se poderia organizar isso. Se todas as condições tivessem sido cumpridas, o momento teria sido perfeito. — Em suma, é uma espécie de obra de arte. — Você já me disse isso — diz com irritação. — Mas não: era... um dever... Era preciso transformar as situações privilegiadas em momentos perfeitos. Era uma questão de moral. Sim, pode rir à vontade: de moral. Absolutamente não estou rindo. — Ouça — digo espontaneamente —, também vou reconhecer meus erros. Nunca a entendi muito bem, nunca tentei sinceramente ajudá-la. Se tivesse sabido... — Obrigada, muito obrigada — diz com ironia. — Não espera que me sinta reconhecida por esses remorsos tardios. Aliás, não lhe quero mal; nunca lhe expliquei nada com clareza, estava atada, não podia falar a respeito com ninguém, nem mesmo com você — sobretudo com você. Sempre havia algo que soava falso naqueles momentos. Então eu ficava como que perdida. No entanto, tinha a impressão de estar fazendo tudo o que me era possível. — Mas o que era preciso fazer? Que ações? — Como você é tolo, não se pode dar exemplo, isso depende. — Mas me conte o que tentava fazer. — Não, não quero falar disso. Mas, se quiser, lhe conto uma história que me impressionou muito quando estava no colégio. Havia um rei que perdera uma batalha e tinha sido preso. Estava ali, num canto, no campo do vencedor. Vê passar seu filho e sua filha acorrentados. Não chorou, não disse nada. A seguir, vê passar, também acorrentado, um de seus servos. Então começou a gemer e a arrancar os cabelos. Você mesmo pode inventar exemplos. Está vendo: há casos em que não se deve chorar — ou então somos imundos. Mas se nos cai uma acha no pé, podemos fazer o que quisermos, gemer, soluçar, pular num pé só. O que seria tolo era ser o tempo todo estoico: ficaríamos esgotados por nada. Ela sorri: — Em outras ocasiões, seria preciso ser mais do que estoico. Naturalmente você não se lembra da primeira vez que o beijei? — Sim, muito bem — digo triunfalmente. — Foi nos jardins de Kew, às margens do Tâmisa. — Mas o que você nunca soube é que eu me sentara sobre umas urtigas: meu vestido estava levantado, minhas coxas estavam cobertas de picadas e, ao menor movimento, havia novas picadas. Pois bem, nesse caso, o estoicismo não teria bastado. Você absolutamente não me excitava, eu não sentia um desejo especial por seus lábios, o beijo que ia lhe dar era de uma importância muito maior, era um engajamento, um pacto. Então você compreenderá que aquela dor era impertinente, eu não podia pensar em minhas coxas num momento como aquele. Não bastava não demonstrar meu sofrimento: era preciso não sofrer. Ela me olha orgulhosamente, ainda muito surpresa com o que fez: — Durante mais de vinte minutos, durante todo o tempo em que você insistia para receber aquele beijo que eu estava decidida a lhe dar, todo o tempo que me fiz de rogada — porque era preciso dar o beijo segundo as regras —, consegui me anestesiar completamente. No entanto Deus sabe como minha pele é sensível: não senti nada até nos levantarmos. É isso, é exatamente isso. Não há aventuras — não há momentos perfeitos... Perdemos as mesmas ilusões, seguimos os mesmos caminhos. Adivinho o resto — posso até tomar a palavra em lugar dela e dizer eu mesmo o que ela ainda tem a dizer: — E então você se deu conta de que havia sempre mulherezinhas aos prantos, ou um sujeito ruivo, ou qualquer outra coisa para estragar seus efeitos? — Sim, naturalmente — diz sem entusiasmo. — Não é isso? — Oh! Sabe, a longo prazo eu talvez pudesse ter me conformado com as inadequações de um sujeito ruivo. Afinal me interessava pela maneira como os outros representavam seu papel... Não, é antes... — Que não há situações privilegiadas? — Aí está. Eu pensava que o ódio, o amor ou a morte se abatiam sobre nós como línguas de fogo da Sexta-feira Santa. Pensava que era possível resplandecer de ódio ou de morte. Que erro! Sim, eu realmente pensava que isso existisse — “o Ódio” —, que pousava nas pessoas e as erguia acima delas mesmas. Naturalmente só existo eu, eu que odeio, eu que amo. E então essa coisa, eu, é sempre a mesma coisa, uma massa que se estira, se estira... é uma coisa tão semelhante a si mesma que é de admirar que as pessoas tenham tido a ideia de inventar nomes, de fazer distinções. Pensa como eu. Parece-me que nunca a deixei. — Ouça bem — digo-lhe —, faz um momento que estou pensando numa coisa que me agrada muito mais do que o papel de marco que você generosamente me atribuiu: é que nós mudamos juntos e de maneira idêntica. Prefiro isso, sabe, do que ver você se afastar cada vez mais e eu ficar condenado a marcar eternamente seu ponto de partida. Eu vinha lhe contar tudo o que você me contou — com outras palavras, é verdade. Encontramo-nos na chegada. Não posso lhe dizer o quanto isso me dá prazer. — Sim? — diz baixinho, mas com ar obstinado. — Pois bem, de toda maneira eu preferiria que você não mudasse; era mais cômodo. Não sou como você, me desagrada saber que alguém pensou as mesmas coisas que eu. Aliás, você deve estar equivocado. Conto-lhe minhas aventuras, falo-lhe da existência, talvez me alongando demasiadamente. Ela ouve com atenção, os olhos muito abertos, as sobrancelhas levantadas. Quando termino, parece aliviada. — Pois é, mas você absolutamente não pensa as mesmas coisas que eu. Você se queixa porque as coisas não se dispõem ao seu redor como um buquê de flores, sem que você se dê ao trabalho de fazer nada. Mas eu nunca pedi tanto: queria agir. Lembra quando brincávamos de aventureiro e de aventureira? Você era aquele a quem as aventuras aconteciam, eu a que as fazia acontecer. Eu dizia: “Sou um homem de ação.” Lembra-se? Pois bem, agora digo apenas: não se pode ser um homem de ação. Aparentemente não pareço convencido, pois ela se entusiasma e continua com mais força: — E também há uma quantidade de coisas que não lhe disse, porque levaria muito tempo para explicar. Por exemplo, teria sido preciso que eu pudesse me dizer, no exato momento em que agia, que o que estava fazendo teria consequências... fatais. Não consigo explicar-lhe direito... — Mas isso é inteiramente inútil — digo com ar bastante pedante —, também eu pensei isso. Ela me olha com desconfiança. — A acreditar em você, teria pensado tudo da mesma maneira que eu: você me surpreende. Não posso convencê-la, só a irritarei se insistir. Calo-me. Sinto vontade de tomá-la em meus braços. De repente ela me olha com ar ansioso: — E então, se pensou tudo isso, que podemos fazer? Baixo a cabeça. — Eu me... eu me sobrevivo — repete pesadamente. Que posso lhe dizer? Sei de razões para viver? Não estou, como ela, desesperado, porque não esperava muito. Estou antes... surpreso, diante dessa vida que me é dada — dada por nada. Conservo a cabeça baixa, não quero ver o rosto de Anny nesse momento. — Viajo — prossegue com voz sombria —; estou voltando da Suécia. Fiquei oito dias em Berlim. Há esse sujeito que me sustenta... Tomá-la em meus braços... Para quê? Não posso fazer nada por ela. Está sozinha como eu. Anny diz com voz mais alegre: — O que é que está resmungando? Ergo os olhos. Ela me olha com ternura. — Nada. Estava apenas pensando em algo. — Ó personagem misterioso! Muito bem, fale ou cale-se, mas decida-se. Falo-lhe do Rendez-vous des Cheminots, do velho ragtime que ponho para tocar no gramofone, da estranha felicidade que me proporciona. — Perguntava-me se por esse lado não se poderia encontrar ou enfim procurar... Não responde nada, acho que não se interessou muito pelo que lhe disse. Ainda assim reata, passado um momento, e não sei se prossegue em seus pensamentos ou se é uma resposta ao que acabo de lhe dizer. — Os quadros, as estátuas, tudo isso é inutilizável: é belo em frente a mim. A música... — Mas no teatro... — No teatro o quê? Quer enumerar todas as belas-artes? — Antigamente você dizia que queria fazer teatro, porque no palco deviam se realizar momentos perfeitos! — Sim, realizei-os: para os outros. Ficava na poeira, na corrente de ar, sob as luzes cruas, entre armações de papelão. Em geral contracenava com Thorndyke. Creio que você o viu representar no Covent Garden. Sempre tinha medo de cair na gargalhada na cara dele. — Mas nunca se sentia arrebatada por seu papel? — Um pouco, por momentos: nunca muito intensamente. O essencial para todos nós era o buraco preto, bem à nossa frente, no fundo do qual havia pessoas que não víamos; a elas, evidentemente, era apresentado um momento perfeito. Mas, sabe, elas não viviam dentro dele: o momento se desenrolava diante delas. E pensa que nós, os atores, vivíamos dentro? Afinal ele não estava em parte alguma, nem de um lado nem do outro da ribalta, não existia; no entanto todo mundo pensava nele. Então, entende, meu querido — diz com voz arrastada e quase cínica —, mandei tudo passear. — Quanto a mim, tinha tentado escrever esse livro... Interrompe-me. — Vivo no passado. Recordo tudo o que me aconteceu e ordeno-o. Assim de longe não dói, e quase nos deixaríamos enganar. Toda a nossa história é bastante bela. Dou-lhe uns retoques e o que fica é uma sequência de momentos perfeitos. Então fecho os olhos e tento imaginar que ainda vivo dentro deles. Tenho outros personagens também. É preciso saber se concentrar. Sabe o que li? Os Exercícios espirituais de Loyola. Foi muito útil para mim. Há uma maneira de colocar primeiro o cenário, depois de fazer aparecer os personagens. Consegue-se ver — acrescentou com ar maníaco. — Pois bem, isso absolutamente não me satisfaria — digo. — E acha que a mim satisfaz? Ficamos um momento em silêncio. Cai a noite; mal distingo a mancha pálida de seu rosto. Sua roupa preta se confunde com a sombra que invade o quarto. Pego maquinalmente minha xícara na qual restou ainda um pouco de chá e levo-a aos lábios. O chá está frio. Sinto vontade de fumar, mas não me atrevo. Tenho a impressão dolorosa de que já não temos nada mais a nos dizer. Ainda ontem tinha tantas perguntas a lhe fazer: onde estivera, que fizera, quem encontrara? Mas isso só me interessava na medida em que Anny se tivesse dado inteiramente, de todo o coração. Agora não sinto curiosidade: todos esses países, todas essas cidades por onde passou, todos esses homens que a cortejaram e que ela talvez tenha amado, tudo isso era inconsistente para ela, tudo isso, no fundo, lhe era tão indiferente: pequenos clarões de sol na superfície de um mar sombrio e frio. Anny está diante de mim, há quatro anos que não nos víamos e não temos mais nada a nos dizer. — Agora — diz Anny de repente — você tem que ir embora. Estou esperando uma pessoa. — Está esperando... — Não, estou esperando um alemão, um pintor. Começa a rir. Esse riso soa estranho no quarto escuro. — Olhe, esse é um que não é como nós — ainda não é. Esse age, se esforça. Levanto-me a contragosto. — Quando a revejo? — Não sei, parto para Londres amanhã à noite. — Por Dieppe? — Sim, e creio que depois irei para o Egito. Talvez torne a passar por Paris no próximo inverno, lhe escreverei. — Amanhã estou livre o dia inteiro — digo timidamente. — Sim, mas eu tenho muito que fazer — responde com voz seca. — Não, não posso vê-lo. Escreverei do Egito. Basta que me dê seu endereço. — Sim. Rabisco meu endereço, na penumbra, num pedaço de envelope. Terei que dizer no hotel Printania que me remetam as minhas cartas quando deixar Bouville. No fundo, sei muito bem que ela não escreverá. Talvez a reveja dentro de dez anos. Talvez a esteja vendo pela última vez. Não estou apenas arrasado por deixá-la; sinto um medo pavoroso de voltar à minha solidão. Ela se levanta; na porta, me beija de leve na boca. — É para me lembrar de seus lábios — diz sorrindo. — Tenho que rejuvenescer minhas lembranças para os meus “exercícios espirituais”. Puxo-a pelo braço e aproximo-a de mim. Ela não resiste mas faz que não com a cabeça. — Não. Isso já não me interessa. Não se recomeça... E também, aliás, quanto ao que as pessoas servem, o primeiro rapaz atraente que se apresente vale tanto quanto você. — Mas então o que vai fazer? — Já lhe disse, vou para a Inglaterra. — Não, me refiro... — Ah! Sim, nada. Não soltei seus braços, digo-lhe baixinho: — Então tenho que me separar de você depois de havê-la reencontrado. Agora distingo nitidamente seu rosto. De repente torna-se lívido e consumido. Um rosto de velha, absolutamente pavoroso; esse, tenho certeza de que ela não conjurou: está ali sem que ela tenha consciência disso ou talvez contra a sua vontade. — Não — diz lentamente —, não. Você não me reencontrou. Liberta os braços. Abre a porta. O corredor está inundado de luz. Anny começa a rir. — Coitado! Não tem sorte. Pela primeira vez que representa bem seu papel, não recebe o menor reconhecimento. Vamos, vá embora. Ouço a porta se fechar atrás de mim. Domingo Esta manhã consultei o guia ferroviário: supondo que não me tenha mentido, ela partiria pelo trem de Dieppe às 5h38. Mas talvez o sujeito dela a levasse de automóvel? Perambulei a manhã toda pelas ruas de Ménilmontant e depois, à tarde, pelos cais. Alguns passos, alguns muros me separavam dela. Às 5h38 nosso encontro de ontem se transformaria numa lembrança, a mulher opulenta cujos lábios haviam roçado minha boca iria ter, no passado, com a menina magra de Meknès, de Londres. Mas nada ainda era passado, já que ela ainda estava ali, já que ainda era possível revêla, convencê-la, levá-la comigo para sempre. Ainda não me sentia sozinho. Queria desviar meu pensamento de Anny, porque, à força de imaginar seu corpo e seu rosto, caíra num extremo nervosismo: minhas mãos tremiam e arrepios gelados percorriam meu corpo. Pus-me a folhear livros nos mostruários de segunda mão, especialmente as publicações obscenas, pois, apesar de tudo, isso ocupa a mente. Quando soaram cinco horas no relógio da estação d’Orsay, eu estava olhando as gravuras de uma obra intitulada Le docteur au fouet. Eram pouco variadas: na maioria um grandalhão barbudo brandia uma chibata em monstruosos traseiros nus. Tão logo percebi que eram cinco horas, joguei o livro no meio dos outros e pulei num táxi que me levou à estação Saint-Lazare. Passeei pela plataforma durante uns vinte minutos, depois os vi. Anny estava com um pesado casaco de peles que lhe dava a aparência de uma senhora. E um chapéu com véu. O sujeito, com um sobretudo de pelo de camelo. Era bronzeado, jovem ainda, muito alto, muito bonito. Um estrangeiro certamente, mas não um inglês; talvez um egípcio. Subiram no trem sem me ver. Não se falavam. Depois o sujeito tornou a descer e comprou jornais. Anny abaixou o vidro de seu compartimento; viu-me. Olhou-me demoradamente, sem raiva, com olhos inexpressivos. Depois o sujeito voltou a subir no vagão e o trem partiu. Nesse momento vi nitidamente o restaurante de Piccadilly onde almoçávamos no passado; depois tudo ruiu. Caminhei. Quando me senti cansado, entrei nesse café e dormi. O garçom acaba de me acordar e estou escrevendo isso semiadormecido. Regressarei a Bouville amanhã pelo trem de meio-dia. Basta que fique dois dias lá: para fazer minhas malas e pôr em ordem os assuntos de banco. Creio que no hotel Printania vão querer que pague duas semanas a mais, porque não os preveni com antecedência. Também tenho que devolver à biblioteca os livros que me emprestaram. De toda maneira estarei de volta a Paris antes do fim da semana. O que lucrarei com a mudança? Continua a ser uma cidade: esta é cortada por um rio, a outra é margeada pelo mar; afora isso, parecem-se. Escolhe-se uma terra pelada, estéril, e empurram-se para lá grandes pedras ocas. Nessas pedras estão aprisionados odores, odores mais pesados do que o ar. Às vezes jogam-nos nas ruas, pelas janelas, e eles lá ficam até que os ventos os tenham dilacerado. Com tempo claro os ruídos entram por uma ponta da cidade e saem pela outra ponta, após terem atravessado todas as paredes; outras vezes rodopiam entre essas pedras que o sol cozinha e o gelo fende. Tenho medo das cidades. Mas é preciso não sair delas. Se nos aventuramos até muito longe, encontramos o círculo da Vegetação. A Vegetação rastejou durante quilômetros na direção das cidades. Está à espera. Quando a cidade tiver morrido, a Vegetação a invadirá, trepará nas pedras, irá encerrá-las, esquadrinhá-las, despedaçá-las com suas longas pinças pretas; cegará os buracos e deixará pender patas verdes por todo lado. É preciso permanecer nas cidades enquanto estão vivas, não se deve penetrar sozinho sob a grande cabeleira que está às suas portas: é preciso deixá-la ondular e estalar sem testemunhas. Nas cidades, se sabemos como fazer, se escolhemos as horas em que os animais digerem ou dormem em seus buracos, por trás dos amontoados de detritos orgânicos, quase só encontramos minerais, os menos apavorantes dos entes. Vou retornar a Bouville. A Vegetação cerca Bouville somente por três lados. No quarto lado há um grande buraco, cheio de água preta que se mexe sozinha. O vento assobia entre as casas. Os odores permanecem menos tempo do que em outros lugares: enxotados para o mar pelo vento, correm rente à água preta como pequenos nevoeiros doidivanas. Chove. Deixaram crescer plantas entre quatro grades. Plantas castradas, domesticadas, inofensivas, de tão carnudas que são. Têm enormes folhas esbranquiçadas que pendem como orelhas. Ao tato pareceria cartilagem. Tudo é gordo e branco em Bouville por causa de toda essa água que cai do céu. Vou retornar a Bouville. Que horror! Acordo sobressaltado. É meia-noite. Faz seis horas que Anny deixou Paris. O barco está no mar. Ela dorme numa cabine e, no tombadilho, o belo sujeito bronzeado fuma cigarros. Terça-feira em Bouville Será isso a liberdade? Por baixo de mim os jardins descem languidamente em direção à cidade e em cada jardim se ergue uma casa. Vejo o mar pesado, imóvel, vejo Bouville. O dia está bonito. Sou livre: já não me resta nenhuma razão para viver, todas as que tentei cederam e já não posso imaginar outras. Ainda sou bastante jovem, ainda tenho força bastante para recomeçar. Mas recomeçar o quê? Só agora compreendo o quanto, no auge de meus terrores, de minhas náuseas, tinha contado com Anny para me salvar. Meu passado está morto. O sr. de Rollebon está morto, Anny só retornou para me tirar toda esperança. Estou sozinho nessa rua branca guarnecida de jardins. Sozinho e livre. Mas essa liberdade se assemelha um pouco à morte. Hoje minha vida chega ao fim. Amanhã terei deixado essa cidade que se estende a meus pés, onde vivi durante tanto tempo. Ela passará a ser apenas um nome, atarracado, burguês, bem francês, um nome em minha memória, menos rico que os de Florença ou de Bagdá. Chegará uma época em que me perguntarei: “Mas, afinal, quando estava em Bouville, o que era mesmo que fazia durante o dia?” E desse sol, dessa tarde, não restará nada, nem mesmo uma lembrança. Toda a minha vida está atrás de mim. Vejo-a inteiramente, vejo sua forma e seus movimentos lentos que me trouxeram até aqui. Há pouco a dizer sobre ela: é uma partida perdida, eis tudo. Faz três anos que entrei solenemente em Bouville. Tinha perdido o primeiro jogo. Quis jogar o segundo e também perdi: perdi a partida. Concomitantemente aprendi que se perde sempre. Só os Salafrários pensam que ganham. Agora vou fazer como Anny, vou sobreviver a mim mesmo. Comer, dormir. Dormir, comer. Existir lentamente, suavemente, como essas árvores, como uma poça d’água, como o banco vermelho do bonde. A Náusea me concede uma trégua curta. Mas sei que voltará: é meu estado normal. Só que hoje meu corpo está muito extenuado para suportá-la. Também os doentes têm fraquezas bem-vindas que lhes tiram por algumas horas a consciência de seu mal. Entedio-me, isso é tudo. De quando em quando bocejo com tanta força que as lágrimas me escorrem pelo rosto. É um tédio profundo, profundo, o coração profundo da existência, a própria matéria de que sou feito. Não me desleixo, muito pelo contrário: essa manhã tomei banho, me barbeei. Só que, quando considero todos esses pequenos atos diligentes, não compreendo como pude fazê-los: são tão inúteis. Certamente foram os hábitos que os fizeram por mim. Estes não morreram, continuam a se azafamar, a tecer silenciosamente, insidiosamente, suas tramas; lavam-me, secam-me, vestem-me, como amas-secas. Também terão sido eles que me trouxeram a essa colina? Já não me lembro como vim. Certamente pela escadaria Dautry: terei realmente subido, um a um, esses 110 degraus? O que talvez seja ainda mais difícil de imaginar é que daqui a pouco vou descê-los. No entanto eu sei: dentro de um momento estarei no sopé do Coteau Vert, erguendo a cabeça poderei ver ao longe as janelas dessas casas que estão tão próximas se iluminarem. Ao longe. Por cima de minha cabeça; e esse instante, do qual não posso sair, que me prende e me limita por todos os lados, esse instante do qual sou feito já não será senão um sonho indistinto. Olho aos meus pés as cintilações cinzas de Bouville. Pareciam, sob o sol, montículos de conchas, de escamas, de esquírolas de ossos, de saibro. Perdidos entre esses destroços, minúsculos estilhaços de vidro ou de mica emitem intermitentemente leves lampejos. Os regos, as valas, os sulcos estreitos que correm entre as conchas, dentro de uma hora serão ruas, e caminharei por essas ruas entre paredes. Dentro de uma hora serei um daqueles homenzinhos pretos que distingo na rua Boulibet. Como me sinto longe deles, do alto dessa colina. Parece-me que pertenço a uma outra espécie. Eles estão saindo dos escritórios, depois de seu dia de trabalho, olham para as casas e para as praças com ar satisfeito, pensam que essa é a sua cidade, uma “bela urbe burguesa”. Não têm medo, sentem-se em casa. Nunca viram senão a água domada que corre das torneiras, a luz que jorra das lâmpadas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças, bastardas, sustentadas por espeques. Eles comprovam, cem vezes por dia, que tudo se faz por mecanismo, que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis. Os corpos abandonados no vazio caem todos na mesma velocidade, o jardim público é fechado todos os dias às 16 horas no inverno e às 18 horas no verão, o chumbo funde a 335°, o último bonde sai da prefeitura às 23h05. Eles são sossegados, um pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente num novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as manhãs. Só o enfeitam um pouco aos domingos. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou rever seus rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos. No entanto a grande natureza vaga penetrou em sua cidade, infiltrou-se por todo lado, em suas casas, em seus escritórios, neles próprios. Não se mexe, mantém-se quieta, e eles estão bem dentro dela, respiram-na e não a veem, imaginam que ela está lá fora, a vinte léguas da cidade. Mas eu vejo essa natureza, vejo-a... Sei que sua submissão é preguiça, que ela não tem leis: o que acreditam ser sua constância... Ela tem apenas hábitos e pode mudá-los amanhã. E se acontecesse alguma coisa? E se de repente ela começasse a palpitar? Então eles perceberiam que ela está ali e teriam a impressão de que seus corações iam se quebrar. Então de que lhes serviriam seus diques e suas muralhas e suas centrais elétricas e seus altos-fornos e seus martelos-pilões? Isso pode acontecer em qualquer momento, talvez imediatamente: os presságios aí estão. Por exemplo, um pai de família, passeando, verá vir em sua direção, através da rua, um trapo vermelho como que empurrado pelo vento. E quando o trapo estiver bem perto dele, verá que é um pedaço de carne podre maculada de poeira, que se arrasta saltitando, um pedaço de carne torturada que rola nos riachos projetando, por espasmos, jatos de sangue. Ou então uma mãe olhará para a face de seu filho e lhe perguntará: “O que você tem aí? É uma espinha?” e verá a carne empolar um pouco, fender-se, entreabrir-se e, no fundo da fenda, um terceiro olho, um olho risonho surgirá. Ou então sentirão suaves roçaduras por todo o corpo, como as carícias que nos rios os juncos fazem nos nadadores. E perceberão que suas roupas se transformaram em coisas vivas. Outro sentirá que há algo arranhando sua boca. E se aproximará de um espelho, abrirá a boca: e sua língua se terá tornado uma enorme centopeia viva, que baterá com as pernas e lhe arranhará o céu da boca. Tentará cuspir, mas a centopeia será uma parte dele mesmo e terá que arrancá-la com as mãos. E quantidades de coisas surgirão, para as quais será preciso encontrar novos nomes, o olho de pedra, o grande braço tricorne, o artelho-muleta, a aranha-maxilar. E quem estiver dormindo em sua boa cama, em seu tranquilo quarto quente, acordará inteiramente nu num chão azulado, numa floresta de pênis estrepitosos, vermelhos e brancos, erguidos para o céu como as chaminés de Jouxtebouville, com grandes testículos meio saídos da terra, peludos e bulbosos como cebolas. E pássaros esvoaçarão em torno desses pênis e os picarão com seus bicos e os farão sangrar. Escorrerá esperma desses ferimentos, lentamente, suavemente, esperma misturado com sangue, vítreo e morno, com pequenas bolhas. Ou então nada de tudo isso acontecerá, não ocorrerá nenhuma mudança apreciável, mas as pessoas, uma manhã, ao abrirem suas persianas, serão surpreendidas por uma espécie de sentido terrível, pesadamente pousado nas coisas e que parecerá estar à espera. Apenas isso: mas por pouco tempo que isso dure, haverá centenas de suicídios. Pois bem; sim! Só desejo que tudo isso mude um pouco, para ver em que dará. Ver-se-ão outros então mergulhados bruscamente na solidão. Homens inteiramente sós, sós com suas horríveis monstruosidades, correrão pelas ruas, passarão pesadamente diante de mim, os olhos fixos, fugindo de seus males e trazendo-os consigo, a boca aberta, com sua línguainseto batendo as asas. Então estourarei de rir, mesmo se meu corpo estiver coberto de nojentas crostas suspeitas, que se abrem em flores de carne, em violetas, em ranúnculos. Encostar-me-ei numa parede e lhes gritarei ao passarem: “Que fizeram de sua ciência? Que fizeram de seu humanismo? Onde está sua dignidade de caniço pensante?” Não sentirei medo — ou pelo menos não mais do que nesse momento. Não será tudo isso sempre existência, variações sobre a existência? Todos esses olhos que devorarão lentamente um rosto certamente serão demais, mas não mais do que os dois primeiros. É da existência que sinto medo. Cai a noite, acendem-se as primeiras luzes na cidade. Deus meu! Como a cidade parece natural, apesar de todas as suas geometrias; como parece esmagada pela noite. Isso é tão... evidente daqui; será possível que eu seja o único a percebê-lo? Não haverá em nenhum lugar nenhuma outra Cassandra no cume de uma colina, olhando a seus pés uma cidade submergida no fundo da natureza? Aliás, que me importa? Que poderia lhe dizer? Meu corpo lentamente se volta para o leste, oscila um pouco e se põe a caminho. Quarta-feira: meu último dia em Bouville Percorri a cidade inteira para encontrar o Autodidata. Certamente não voltou para casa. Deve estar perambulando por aí, arrasado de vergonha e de horror, esse pobre humanista que os homens já não aceitam. A bem dizer, não fiquei muito surpreendido quando a coisa aconteceu: há muito sentia que seu rosto suave e temeroso atraía o escândalo. Ele era tão pouco culpado: quase não se pode dizer que fosse sensualidade seu humilde amor contemplativo pelos rapazinhos — era antes uma forma de humanismo. Mas era preciso que um dia ele se encontrasse sozinho. Como o sr. Achille, como eu: ele é de minha raça, tem boa vontade. Agora entrou na solidão — e para sempre. De repente tudo desabou, seus sonhos de cultura, seus sonhos de compreensão com relação aos homens. Primeiro haverá o medo, o horror e as noites insones, e em seguida, depois disso, a longa sequência de dias de exílio. À noite ele voltará a perambular pelo pátio das Hipotecas; olhará de longe para as janelas cintilantes da biblioteca e se sentirá arrasado quando se lembrar das longas fileiras de livros, de suas encadernações de couro, do cheiro de suas páginas. Lamento não ter podido acompanhá-lo, mas ele não quis: foi ele quem me suplicou que o deixasse sozinho: estava começando o aprendizado da solidão. Estou escrevendo isso no café Mably. Entrei aqui cerimoniosamente, queria contemplar o gerente, a empregada da caixa e sentir intensamente que os via pela última vez. Mas não posso desviar meu pensamento do Autodidata, tenho permanentemente seu rosto desfeito diante dos olhos, seu rosto de reprovação e seu colarinho ensanguentado. Então pedi que me trouxessem papel e vou contar o que lhe aconteceu. Cheguei à biblioteca por volta das duas da tarde. Estava pensando: “A biblioteca. Entro aqui pela última vez.” A sala estava quase deserta. Custava-me reconhecê-la, porque sabia que nunca mais voltaria lá. Ela estava leve como uma névoa, quase irreal, toda avermelhada; o sol poente tingia de vermelho a mesa reservada às leitoras, a porta, as lombadas dos livros. Por um segundo tive a impressão agradável de penetrar num bosque cheio de folhas douradas; sorri. Pensei: “Há quanto tempo não sorrio!” O corso olhava pela janela com as mãos atrás das costas. O que via? O crânio de Impétraz? “Eu já não verei o crânio de Impétraz, nem sua cartola, nem sua sobrecasaca. Dentro de seis horas terei deixado Bouville.” Coloquei sobre a mesa do sub-bibliotecário os dois volumes que solicitara o mês passado. Ele rasgou uma ficha verde e me entregou seus pedaços: — Aí está, sr. Roquentin. — Obrigado. Pensei: “Agora não lhes devo mais nada. Não devo mais nada a ninguém daqui. Dentro em pouco irei me despedir da dona do Rendez-vous des Cheminots. Estou livre.” Hesitei alguns instantes: utilizaria esses últimos momentos dando um longo passeio por Bouville, revendo o bulevar Victor-Noir, a avenida Galvani, a rua Tournebride? Mas aquele bosque estava tão calmo, tão puro: parecia-me que quase não existia e que a Náusea o poupara. Fui me sentar perto do calefator. O Journal de Bouville fora deixado sobre a mesa. Estendi a mão, peguei-o. “Salvo por seu cachorro. “O sr. Dubosc, proprietário em Remiredon, regressava ontem à noite para casa, de bicicleta, vindo da feira de Naugis...” Uma senhora corpulenta veio se sentar à minha direita. Colocou o chapéu de feltro a seu lado. Seu nariz parecia enfado em seu rosto como uma faca numa maçã. Sob o nariz um buraquinho obsceno franzia-se desdenhosamente. Ela tirou da bolsa um livro encadernado, fincou os cotovelos na mesa, apoiando o rosto nas mãos gordas. Em frente a mim um senhor velho dormia. Eu o conhecia: estava na biblioteca no dia em que sentira tanto medo. Creio que também ele sentira medo. Pensei: “Como tudo isso ficou longe.” Às quatro e meia o Autodidata entrou. Teria gostado de lhe apertar a mão e me despedir dele. Mas, ao que parece, nosso último encontro lhe deixara uma recordação desagradável: dirigiume um cumprimento distante e foi depositar bastante longe de mim um pacotinho branco que devia conter, como de hábito, uma fatia de pão e uma barra de chocolate. Passado um momento, retornou com um livro ilustrado que pousou junto de seu embrulho. Pensei: “Vejoo pela última vez.” Amanhã à noite, depois de amanhã à noite, por todas as noites seguintes, ele tornaria a vir ler nessa mesa, comendo seu pão e seu chocolate, prosseguiria pacientemente suas roeduras de rato, leria as obras de Nabaud, Naudeau, Nodier, Nys, interrompendo-se de quando em quando para anotar uma máxima em seu caderninho. E eu caminharia por Paris, pelas ruas de Paris, veria rostos novos. Que me aconteceria, enquanto ele estivesse aqui, com a lâmpada a iluminar-lhe o grande rosto circunspecto? Senti a tempo que ia sucumbir novamente à miragem da aventura. Dei de ombros e retomei minha leitura. “Bouville e seus arredores. “Monistiers. “Atividade da brigada de gendarmaria durante o ano de 1931. O sargento de cavalaria, chefe Gaspard, comandando a brigada de Monistiers, e seus quatro gendarmes, srs. Lagoutte, Nizan, Pierpont e Ghil, não descansaram durante o ano de 1931. Efetivamente nossos gendarmes registraram sete crimes, 82 delitos, 159 contravenções, seis suicídios e 15 acidentes de automóvel, três dos quais mortais.” “Jouxtebouville “Grupo amistoso dos Trombeteiros de Jouxtebouville. “Hoje, ensaio-geral, entrega dos convites para o concerto anual.” “Compostel “Entrega da Legião de Honra ao prefeito.” “O turista bouvilês (Fundação Escoteira de Bouville 1924): “Hoje à noite, às 20h45, reunião mensal na sede social, à rua Ferdinand Byron, 10, sala A. Ordem do dia: leitura da última ata. Correspondência; banquete anual, contribuição de 1932, programa de excursões em março; assuntos diversos; adesões.” “Proteção dos animais (Sociedade de Bouville): “Na próxima quinta-feira, das 15h às 17h, sala C, na rua Ferdinand Byron, 10, Bouville, serviço público permanente. Dirigir a correspondência ao presidente, para a sede ou para a avenida Galvani, 154.” “Clube bouvilês do cão de guarda... Associação bouvilesa dos incapacitados de guerra... Sindicato dos proprietários de táxis... Comitê Bouvilês dos Amigos das Escolas Normais...” Entraram dois meninos com pastas. Alunos do liceu. O corso gosta muito dos alunos do liceu, porque pode exercer uma vigilância paternal sobre eles. Muitas vezes, por prazer deixa que conversem e se agitem em suas cadeiras, depois, de repente vai, na ponta dos pés, se colocar atrás deles e os repreende: “Isso são maneiras de garotos crescidos? Se não querem mudar de comportamento, o sr. bibliotecário está decidido a apresentar queixa ao sr. reitor.” E, se eles protestam, fita-os com seu olhar terrível: “Deem-me seus nomes.” Também controla suas leituras: na biblioteca determinados volumes estão marcados com uma cruz vermelha, é o Inferno: obras de Gide, Diderot, Baudelaire, tratados de medicina. Quando um aluno de liceu pede para consultar um desses livros, o corso lhe faz um sinal, leva-o para um canto e o interroga. Um momento depois explode e sua voz enche a sala de leitura: “No entanto há livros mais interessantes, quando se tem sua idade. Livros instrutivos. E em primeiro lugar terminou seus deveres? Em que ano está? No segundo? E não tem nada para fazer depois das quatro horas? Seu professor vem aqui com frequência e eu lhe falarei de você.” Os dois garotos permaneciam postados junto ao calefator. O mais jovem tinha bonitos cabelos castanhos, a pele quase que demasiadamente delicada e uma boca muito pequena, arrogante e dura. Seu colega, um grandalhão espadaúdo com uma sombra de bigode, cutucou-o e murmurou algumas palavras. O moreninho não respondeu, mas deu um sorriso imperceptível, cheio de soberba e presunção. Depois os dois displicentemente escolheram um dicionário numa das prateleiras e se aproximaram do Autodidata que os fitava com olhar cansado. Eles fingiam ignorar sua existência, mas sentaram-se bem ao seu lado, o moreninho à esquerda dele e o grandalhão espadaúdo à esquerda do moreninho. Começaram imediatamente a folhear o dicionário. O Autodidata deixou errar o olhar pela sala, depois retornou à sua leitura. Nunca uma sala de biblioteca ofereceu espetáculo mais tranquilizador: eu não ouvia um ruído, a não ser a respiração curta da senhora corpulenta, só via cabeças inclinadas sobre in-oitavos. No entanto, a partir desse momento, tive a impressão de que ia ocorrer um fato desagradável. Todas aquelas pessoas que baixavam os olhos com ar aplicado pareciam estar representando: poucos instantes antes eu sentira passar sobre nós como que um sopro de crueldade. Tinha terminado minha leitura, mas não me decidia a ir embora: estava à espera, fingindo ler meu jornal. O que aumentava minha curiosidade e meu mal-estar era que os outros também estavam à espera. Parecia-me que minha vizinha virava mais rapidamente as páginas de seu livro. Passaram-se alguns minutos, depois ouvi cochichos. Ergui prudentemente a cabeça. Os dois meninos tinham fechado o dicionário. O moreninho não falava, estava com o rosto voltado para a direita com uma expressão de deferência e interesse. Meio escondido por trás de seu ombro, o louro aguçava o ouvido e ria silenciosamente. “Mas quem está falando?”, pensei. Era o Autodidata. Estava inclinado para seu jovem vizinho, fitando-o nos olhos, sorrindo-lhe; via-o mexer os lábios e de quando em quando seus longos cílios estremeciam. Não lhe conhecia esse ar de juventude, ele estava quase atraente. Mas por momentos, se interrompia e lançava um olhar inquieto para atrás de si. O rapazinho parecia beber suas palavras. Essa pequena cena nada tinha de extraordinário e eu ia voltar à minha leitura, quando vi o rapazinho deslizar lentamente a mão por trás de suas costas pela beira da mesa. Assim, sem que os olhos do Autodidata pudessem vê-la, ela caminhou um instante e se pôs a tatear à sua volta; depois, tendo encontrado o braço do louro grandalhão, beliscou-o com força. O outro, muito absorvido em desfrutar silenciosamente as palavras do Autodidata, não a vira se aproximar. Deu um salto e sua boca se abriu desmesuradamente sob o efeito da surpresa e da admiração. O moreninho mantivera sua expressão de interesse respeitoso. Seria possível duvidar que aquela mão travessa lhe pertencesse. “O que vão lhe fazer?”, pensei. Percebia claramente que algo de ignóbil ia ocorrer, também via claramente que ainda havia tempo para impedir que aquilo ocorresse. Mas não conseguia adivinhar o que é que era preciso impedir. Por um segundo pensei em me levantar, ir bater no ombro do Autodidata e entabular uma conversa. Mas no mesmo momento ele surpreendeu meu olhar. Parou abruptamente de falar e franziu os lábios com ar irritado. Desencorajado, desviei rapidamente o olhar e peguei outra vez meu jornal, para disfarçar. No entanto a senhora corpulenta afastara seu livro e erguera a cabeça. Parecia fascinada. Senti claramente que o drama ia estourar: todos queriam que estourasse. Que podia fazer? Dei uma olhadela para o corso: ele já não estava olhando pela janela, estava meio virado para nós. Passaram-se 15 minutos. O Autodidata recomeçara seus cochichos. Já não me atrevia a olhá-lo, mas imaginava muito bem seu ar jovem e terno e aqueles olhares carregados que pesavam sobre ele sem que ele o soubesse. Em dado momento ouvi seu riso, um risinho esganiçado e pueril. Aquilo me deu um aperto no coração: parecia-me que uns meninos sórdidos iam afogar um gato. Depois, de repente os cochichos cessaram. Esse silêncio me pareceu trágico: era o fim, o golpe de morte. Eu baixava a cabeça para o meu jornal e fingia ler; mas não lia: erguia as sobrancelhas e levantava os olhos o mais alto que podia, para tentar surpreender o que estava sucedendo naquele silêncio à minha frente. Virando ligeiramente a cabeça, consegui distinguir algo com o rabo do olho: era uma mão, a mãozinha branca que pouco antes deslizara ao longo da mesa. Agora estava pousada de palma para cima, descontraída, suave e sensual, com a nudez indolente de uma banhista que se aquece ao sol. Um objeto escuro e peludo aproximou-se hesitantemente dela. Era um grande dedo amarelado pelo fumo; tinha, ao lado dessa mão, toda a desgraciosidade de um falo. Deteve-se um instante, rígido, apontando para a frágil palma, depois, de repente, timidamente, começou a acariciá-la. Eu não estava surpreso, estava sobretudo furioso com o Autodidata: então aquele imbecil não podia se conter? Então não percebia o perigo que corria? Só lhe restava uma possibilidade, uma pequena possibilidade: se pousasse as duas mãos na mesa, uma de cada lado de seu livro, se se mantivesse absolutamente quieto, talvez escapasse ao seu destino dessa vez. Mas eu sabia que ele ia perder sua oportunidade: o dedo passava suavemente, humildemente, pela carne inerte, mal a roçava, sem se atrever a fazer pressão sobre ela: parecia ter consciência de sua feiura. Ergui bruscamente a cabeça, já não podia suportar aquele pequeno vaivém obstinado: buscava os olhos do Autodidata e tossia com força para avisá-lo. Mas ele cerrara as pálpebras, sorria. Sua outra mão desaparecera sob a mesa. Os garotos já não riam, tinham ficado muito pálidos. O moreninho franzia os lábios, sentia medo, parecia ter perdido o controle da situação. No entanto não retirava sua mão, deixava-a sobre a mesa, imóvel, só um pouco crispada. Seu colega estava de boca aberta, com ar de estupefação e horror. Foi então que o corso começou a berrar. Sem que o ouvissem, ele viera se postar atrás da cadeira do Autodidata. Estava escarlate e tinha uma expressão de riso, mas seus olhos faiscavam. Dei um salto em minha cadeira, mas me senti quase aliviado: a espera fora muito penosa. Queria que aquilo terminasse o mais breve possível, que o pusessem na rua, se quisessem, mas que aquilo terminasse. Os dois meninos, brancos de susto, pegaram suas pastas num abrir e fechar de olhos e desapareceram. — Eu o vi — gritava o corso, louco de fúria —, dessa vez o vi, o senhor não poderá negar. Vai dizer que é mentira dessa vez? Pensa que não estava vendo sua manobra? Não sou cego, seu ingênuo. Paciência, dizia para comigo, paciência, quando o agarrar isso vai lhe custar caro. Oh! Sim, isso vai lhe custar caro. Sei seu nome, seu endereço, me informei, entende? Sei também quem é seu patrão, o sr. Chuillier. Ele é que vai ficar surpreso, amanhã de manhã, quando receber uma carta do sr. bibliotecário. Hem? Cale-se — disse-lhe revirando os olhos. — Em primeiro lugar não pense que isso vai parar aqui. Na França há tribunais para gente de sua espécie. O cavalheiro se instruía! O cavalheiro completava sua cultura! O cavalheiro me importunava o tempo todo pedindo informações sobre livros. Fique sabendo que nunca me enganou. O Autodidata não parecia surpreso. Certamente fazia anos que esperava por esse desenlace. Devia ter imaginado mais de cem vezes o que aconteceria no dia em que o corso se insinuasse, de mansinho, por trás dele e uma voz furiosa retumbasse de repente em seus ouvidos. E no entanto ele retornava todas as tardes, prosseguia febrilmente suas leituras e, vez por outra, como um ladrão, acariciava a mão branca ou talvez a perna de um menino. O que eu lia em seu rosto era antes resignação. — Não sei o que está querendo insinuar — balbuciou. — Há anos que venho aqui... Simulava indignação, surpresa, mas sem convicção. Bem sabia que o fato lá estava e que nada mais poderia detê-lo, que era preciso vivê-lo minuto por minuto. — Não lhe dê ouvidos, eu vi — disse minha vizinha. Ela se levantara com dificuldade. — Ah! Não. Não é a primeira vez que o vejo; ainda na segunda-feira passada vi o que ele fazia e não quis dizer nada porque não acreditava em meus olhos, e não podia imaginar que numa biblioteca, um lugar sério, onde as pessoas vêm para se instruir, ocorressem coisas de fazer corar. Eu não tenho filhos, mas me compadeço das mães que mandam os seus estudar aqui e que pensam que estão sossegados, protegidos, enquanto há monstros que não respeitam nada e os impedem de fazer seus deveres. O corso se aproximou do Autodidata: — Está ouvindo o que diz a senhora? — gritou-lhe no rosto. — Inútil fingir. Viram-no, seu porco! — Senhor, exijo que seja mais delicado — disse o Autodidata com dignidade. Isso fazia parte de seu papel. Talvez tivesse querido confessar, fugir, mas tinha que representar seu papel até o fim. Não olhava para o corso: seus olhos estavam quase fechados. Tinha os braços caídos; estava terrivelmente pálido. E então, de repente uma onda de sangue lhe subiu ao rosto. O corso sufocava de furor. — Delicado? Seu porco! Talvez pense que não o vi. Já lhe disse que estava à espreita. Há meses que o espreitava. O Autodidata sacudiu os ombros e fingiu mergulhar novamente na leitura. Escarlate, os olhos cheios de lágrimas, assumira um ar de profundo interesse e olhava atentamente para uma reprodução de um mosaico bizantino. — Ele continua a ler, tem topete — disse a senhora olhando para o corso. Este estava indeciso. Ao mesmo tempo o sub-bibliotecário, um rapaz tímido e respeitável, a quem o corso aterrorizava, levantara-se lentamente de sua mesa e gritava: “Paoli, o que foi?” Houve um segundo de hesitação e tive esperança de que o caso acabasse ali. Mas o corso deve ter examinado rapidamente a sua conduta e deve ter se sentido ridículo. Nervoso, já não sabendo o que dizer à sua vítima muda, se endireitou todo e deu um soco no ar. O Autodidata se virou apavorado. Olhava para o corso, boquiaberto: havia em seus olhos um medo horrível. — Se me bater, darei queixa — disse com dificuldade —; quero ir embora voluntariamente. Eu me levantara por minha vez, mas era tarde demais: o corso soltou um pequeno gemido voluptuoso e subitamente deu um murro no nariz do Autodidata. Por um segundo vi apenas os olhos deste, seus magníficos olhos arregalados de dor e vergonha, por cima de uma manga e de um punho escuro. Quando o corso retirou o punho, o nariz do Autodidata começava a espirrar sangue. Ele quis levar as mãos ao rosto, mas o corso bateu-lhe de novo no canto dos lábios. O Autodidata se deixou cair na cadeira e olhou para a frente com seus olhos tímidos e doces. O sangue lhe escorria do nariz sobre a roupa. Ele tateou com a mão direita para encontrar seu embrulho, enquanto a mão esquerda tentava obstinadamente enxugar suas narinas, de onde o sangue não parava de escorrer. — Vou embora — disse como que para si mesmo. A mulher ao meu lado estava pálida e seus olhos brilhavam. — Bem feito, seu porco — disse. Eu tremia de raiva. Dei a volta à mesa, peguei o corso pelo pescoço e ergui-o no ar, a espernear: poderia tê-lo arrebentado contra a mesa. Ele ficara roxo e se debatia, tentava me arranhar; mas seus braços curtos não chegavam até meu rosto. Eu não dizia palavra, mas queria esmurrar seu nariz, desfigurá-lo. Ele percebeu, levantou o cotovelo para proteger o rosto: sentia-me contente porque via que ele estava com medo. De repente começou a gaguejar: — Solte-me, seu bruto! Também é maricas? Ainda me pergunto por que o soltei. Terei tido medo de complicações? Esses anos de ócio em Bouville me terão enferrujado? Se fosse antigamente, não o teria soltado sem lhe haver quebrado os dentes. Virei-me para o Autodidata, que finalmente se levantara. Mas ele evitava meu olhar; cabisbaixo foi tirar o casaco do cabide. Passava constantemente a mão esquerda pelo nariz, como que para estancar o sangue. Mas o sangue continuava a esguichar e eu temia que ele se sentisse mal. Ouvi-o murmurar sem olhar para ninguém: — Faz anos que venho aqui... Mas, mal se libertara, o homenzinho voltara a se achar dono da situação... — Rua! — disse para o Autodidata. — E não volte a pôr os pés aqui, porque senão chamo a polícia para expulsá-lo. Alcancei o Autodidata no fim da escada. Sentia-me constrangido, envergonhado por sua vergonha, não sabia o que lhe dizer. Ele não pareceu perceber minha presença. Finalmente tirara seu lenço e cuspia algo. Seu nariz sangrava um pouco menos. — Venha comigo até a farmácia — disse-lhe desajeitadamente. Ele não respondeu. Chegava até nós um grande burburinho da sala de leitura. Toda aquela gente devia estar falando ali ao mesmo tempo. A mulher soltou uma gargalhada estridente. — Nunca mais poderei voltar aqui — disse o Autodidata. Virou-se e olhou com ar perplexo para a escadaria de entrada da sala de leitura. Esse movimento fez que escorresse sangue entre seu colarinho e seu pescoço. Sua boca e suas faces estavam sujas de sangue. — Venha — disse-lhe, segurando seu braço. Ele estremeceu e se soltou com violência. — Deixe-me! — Mas não pode ficar sozinho. É preciso que lhe lavem o rosto, que o tratem. Ele repetia: — Deixe-me, por favor, senhor, deixe-me. Estava à beira de uma crise de nervos; deixei-o afastar-se. O sol poente iluminou-lhe um momento as costas encurvadas, depois ele desapareceu. Na soleira da porta havia uma mancha de sangue em forma de estrela. Uma hora depois O céu está cinza, o sol se põe; dentro de duas horas parte o trem. Atravessei pela última vez o jardim público e estou passeando pela rua Boulibet. Sei que é a rua Boulibet, mas não a reconheço. Geralmente, quando entrava nela, tinha a impressão de estar atravessando uma profunda espessura de bom senso: pesada e sólida, a rua Boulibet se parecia, com sua seriedade tão desgraciosa, seu calçamento arqueado e asfaltado, às rodovias nacionais, quando estas atravessam os povoados ricos e são ladeadas, em mais de um quilômetro, por grandes casas de dois andares; eu a chamava uma rua de camponeses e ela me encantava porque era tão deslocada e tão paradoxal num porto comercial. Hoje as casas continuam ali, mas perderam seu aspecto rural: são apenas prédios. No jardim público tive ainda agora uma impressão do mesmo gênero: as plantas, os gramados, a fonte de Olivier Masqueret tinham um ar obstinado, tão inexpressivos eram. Compreendo: é a cidade que toma a iniciativa de me abandonar. Ainda não deixei Bouville e já não estou aqui. Bouville se cala. Acho estranho ter que permanecer ainda duas horas nessa cidade que, sem se preocupar mais comigo, arruma seus móveis e os cobre com capas para poder descobri-los em toda a sua frescura, essa noite, amanhã, para pessoas recém-chegadas. Sinto-me mais esquecido do que nunca. Dou alguns passos e paro. Saboreio esse esquecimento total em que caí. Estou entre duas cidades, uma me ignora, a outra já não me conhece. Quem se lembra de mim? Talvez uma mulher pesada e jovem, em Londres. E mesmo essa, será realmente em mim que ela pensa? Aliás, há esse sujeito, esse egípcio. Talvez tenha acabado de entrar em seu quarto, talvez a tenha tomado em seus braços. Não sinto ciúmes; sei perfeitamente que ela sobrevive a si mesma. Ainda que o amasse de todo o coração, seria um amor de morta. Eu tive seu último amor vivo. Mas ainda assim há algo que ele pode lhe dar: o prazer. E se ela agora está desfalecendo e sucumbindo à emoção do desejo, então não há nada mais nela que a prenda a mim. Ela goza, e para ela existo tanto como se nunca a tivesse encontrado; esvaziou-se de mim de vez, e todas as outras consciências do mundo estão também vazias de mim. Isso é esquisito. No entanto sei perfeitamente que existo, que eu estou aqui. Agora, quando digo “eu”, isso me parece oco. Já não consigo muito bem me sentir, de tal modo estou esquecido. Tudo o que resta de real em mim é existência que se sente existir. Bocejo silenciosamente, demoradamente. Ninguém. Antoine Roquentin não existe para ninguém. Isso me diverte. E o que é exatamente Antoine Roquentin? É algo de abstrato. Uma pálida lembrança de mim vacila em minha consciência. Antoine Roquentin... E de repente o Eu esmaece, esmaece e, pronto, se apaga. Lúcida, imóvel, deserta, a consciência se encontra entre as paredes; perpetua-se. Já ninguém a habita. Ainda agora alguém dizia eu, dizia minha consciência. Quem? Exteriormente havia ruas falantes, com cores e odores conhecidos. Restam paredes anônimas, uma consciência anônima. Eis o que há: paredes, e entre as paredes, uma pequena transparência viva e impessoal. A consciência existe como uma árvore, como um fragmento de relva. Está sonolenta, entedia-se. Pequenas existências fugitivas a povoam como pássaros em galhos. Povoam-na e desaparecem. Consciência esquecida, abandonada entre essas paredes, sob esse céu cinza. E eis aqui o sentido de sua existência: é que ela é consciência de ser demais. Dilui-se, dispersa-se, procura se perder na parede escura, junto ao lampião ou lá no nevoeiro da noite. Mas nunca se esquece de si mesma; é consciência de ser uma consciência que se esquece de si mesma. Este é o seu quinhão. Há uma voz abafada que diz: “O trem parte daqui a duas horas”, e há consciência dessa voz. E há também consciência de um rosto. Ele passa lentamente, cheio de sangue, manchado, e seus grandes olhos lacrimejam. Ele não está entre as paredes, não está em parte alguma. Desvanece-se, um corpo encurvado o substitui com uma cabeça ensanguentada, afasta-se a passos lentos, a cada passo parece parar, não para nunca. Há consciência desse corpo que caminha lentamente por uma rua escura. Ele caminha, mas não se afasta. A rua escura não termina, perde-se no nada. Não está entre as paredes, não está em parte alguma. E há consciência de uma voz abafada que diz: “O Autodidata perambula pela cidade.” Não, não na mesma cidade, entre essas paredes átonas: o Autodidata caminha por uma cidade feroz, que não o esquece. Há pessoas que pensam nele, o corso, a senhora corpulenta; talvez todo mundo na cidade. Ele ainda não perdeu, não pode perder seu eu, esse eu que sangra, esse eu supliciado que eles não quiseram acabar de matar. Doem-lhe os lábios, as narinas, ele pensa: “Estou sofrendo.” Caminha, tem que caminhar. Se parasse, ainda que por um instante, as paredes altas da biblioteca se ergueriam bruscamente à sua volta, encerrá-lo-iam; o corso surgiria ao seu lado e a cena recomeçaria exatamente igual em todos os seus pormenores, e a mulher diria com desprezo: “Essas imundícies deviam ser condenadas a trabalhos forçados.” Ele caminha, não quer voltar para casa: o corso o espera em seu quarto, com a mulher e os dois jovens: “É inútil negar, eu o vi.” E a cena recomeçaria. Ele pensa: “Meu Deus, se não tivesse feito aquilo, se pudesse não ter feito aquilo, se tudo pudesse não ser verdade!” O rosto atormentado passa e repassa diante da consciência: “Talvez vá se matar.” Mas não: essa alma suave e acossada não pode pensar na morte. Há conhecimento da consciência. Ela se vê de um lado ao outro, tranquila e vazia entre as paredes, libertada do homem que a habitava, monstruosa, porque não é ninguém. A voz diz: “As malas foram despachadas, o trem parte daqui a duas horas.” As paredes deslizam à direita e à esquerda. Há consciência do macadame, consciência da loja de ferragens, das seteiras do quartel e a voz diz: “Pela última vez.” Consciência de Anny, de Anny a gorda, da velha Anny, em seu quarto de hotel, há consciência do sofrimento, o sofrimento é consciente entre as compridas paredes que se vão e jamais retornarão: “Então isso não acaba nunca?”; a voz canta entre as paredes uma melodia de jazz, “Some of these days”; isso não acaba nunca? E a melodia volta suavemente, por trás, insidiosamente, retoma a voz e a voz canta sem poder parar e o corpo caminha e há consciência de tudo isso e consciência, Deus meu, da consciência. Mas não há ninguém para sofrer e contorcer as mãos e sentir piedade de si mesmo. Ninguém. É um puro sofrimento de encruzilhadas, um sofrimento esquecido — que não pode se esquecer de si mesmo. E a voz diz: “Eis o Rendez-vous des Cheminots”, e o Eu brota na consciência, sou eu, Antoine Roquentin, parto para Paris daqui a pouco; venho me despedir da patroa. — Venho me despedir. — Está de partida, sr. Antoine? — Vou me instalar em Paris, para mudar um pouco. — Felizardo! Como pude premir meus lábios sobre esse rosto amplo? Seu corpo já não me pertence. Ainda ontem teria sabido adivinhá-lo sob o vestido de lã preta. Hoje o vestido se tornou impenetrável. Esse corpo branco com veias à flor da pele teria sido um sonho? — Vamos sentir falta do senhor — diz a patroa. — Não quer tomar alguma coisa? É oferta minha. Sentamo-nos, brindamos. Ela baixa um pouco a voz. — Eu tinha me habituado ao senhor — diz lastimando polidamente. — Entendíamo-nos bem. — Virei vê-la. — Venha, sr. Antoine. Quando passar por Bouville, venha nos fazer uma visitinha. Dirá com os seus botões: “Vou cumprimentar a sra. Jeanne, isso a deixará contente.” É verdade, gostamos de saber o que é feito das pessoas. Aliás, aqui as pessoas voltam sempre. Temos marujos, empregados da Transat: às vezes fico dois anos sem revê-los, ora estão no Brasil, ora em Nova Iorque, ou então estão trabalhando em Bordéus num cargueiro. E depois, um belo dia, revejo-os. “Como está, sra. Jeanne?” Bebemos alguma coisa juntos. Acredite se quiser: lembro-me do que costumam tomar. E isso passados dois anos! Digo a Madeleine: “Sirva um vermute seco ao sr. Pierre, um Noilly-Cinzano ao sr. Léon.” Eles me dizem: “Como se lembra disso?” E eu lhes digo: “É a minha profissão.” No fundo da sala há um homem grandalhão que se deita com ela de pouco tempo para cá. Chama-a: — Patroazinha! Ela se levanta: — Com licença, sr. Antoine. A empregada se aproxima de mim: — Então vai nos deixar? — Vou para Paris. — Morei em Paris — diz com orgulho. — Dois anos. Trabalhava na Casa Siméon. Mas sentia falta daqui. Hesita um segundo, depois percebe que não tem nada mais a me dizer: — Então, até a vista, sr. Antoine. Enxuga a mão em seu avental e estende-a. — Até a vista, Madeleine. Vai embora. Puxo para mim o Journal de Bouville e depois o afasto: ainda há pouco na biblioteca li-o da primeira à última linha. A patroa não retorna: abandona ao amigo suas mãos rechonchudas, que ele aperta com paixão. O trem parte daqui a 45 minutos. Faço minhas contas para me distrair. Mil e duzentos francos por mês não é grande quantia. No entanto, se me restringir um pouco, deverá ser suficiente. Um quarto por trezentos francos, quinze francos por dia para alimentação: sobrarão quatrocentos e cinquenta francos para lavagem de roupa, pequenas despesas e cinema. Por muito tempo não precisarei de roupa. Meus dois ternos estão apresentáveis, embora um pouco lustrosos nos cotovelos: durarão ainda três ou quatro anos se for cuidadoso. Deus meu! Sou eu que vou levar essa existência de cogumelo? Que farei de meus dias? Passearei, irei me sentar nas Tulherias numa cadeira de ferro — ou antes, num banco, por economia. Irei ler nas bibliotecas. E depois? Uma vez por semana o cinema. E depois? Irei me permitir um charuto Voltigeur aos domingos? Irei jogar croqué com os aposentados do Luxembourg? Aos trinta anos! Tenho pena de mim. Há momentos em que me pergunto se não seria melhor que gastasse num ano os trezentos mil francos que me restam — e depois... Mas o que me proporcionaria isso? Roupas novas? Mulheres? Viagens? Tive tudo isso e agora terminou, são coisas que já não invejo: considerando-se o que ficaria disso tudo... Em um ano me encontraria novamente tão vazio quanto hoje, sem uma lembrança sequer e acovardado diante da morte. Trinta anos! E 14.400 francos de renda. Cupons a receber todos os meses. No entanto não sou um velho! Que me deem alguma coisa para fazer, qualquer coisa... Melhor seria que pensasse em outra coisa, porque nesse momento estou representando para mim mesmo. Sei muito bem que não quero fazer nada: fazer alguma coisa é criar existência — e já há existência suficiente sem isso. A verdade é que não posso soltar minha caneta: acho que vou ter a Náusea e tenho a impressão de retardá-la enquanto escrevo. Então escrevo o que me passa pela cabeça. Madeleine, que quer ser amável comigo, grita de longe, mostrando um disco: — Seu disco, sr. Antoine, aquele de que o senhor gosta, quer ouvido pela última vez? — Sim, por favor. Disse isso por delicadeza, mas não me sinto em boa disposição para ouvir uma melodia de jazz. De toda maneira vou prestar atenção, porque, como diz Madeleine, ouço esse disco pela última vez: é muito velho; demasiadamente velho, até para uma cidade do interior; será inútil procurá-lo em Paris. Madeleine vai colocá-lo no prato do gramofone, ele vai girar; a agulha de aço vai começar a saltar e a ranger em suas ranhuras e depois, quando a tiverem guiado em espiral até o centro do disco, estará terminado, a voz rouca que canta “Some of these days” se calará para sempre. Está começando. Pensar que há imbecis que tiram consolo das belas-artes. Como minha tia Bigeois: “Os Prelúdios de Chopin representaram uma tal ajuda para mim na morte de seu pobre tio.” E as salas de concerto transbordam de humilhados, de ofendidos que, com os olhos fechados, procuram transformar seus rostos pálidos em antenas receptoras. Imaginam que os sons captados correm neles, suaves e nutrientes, e que seus sofrimentos se transformam em música, como os do jovem Werther; pensam que a beleza é compassiva para com eles. Imbecis. Gostaria que me dissessem se acham essa música compassiva. Ainda agora estava certamente muito longe de nadar na beatitude. Na superfície fazia minhas contas mecanicamente. Por baixo disso se estagnavam todos aqueles pensamentos desagradáveis que assumiram a forma de interrogações não formuladas, de espantos mudos e que já não me abandonam dia e noite. Pensamentos sobre Anny, sobre minha vida estragada. E depois, mais embaixo ainda, a Náusea, tímida como uma aurora. Mas naquele momento não havia música, eu estava melancólico e sossegado. Todos os objetos que me rodeavam eram feitos da mesma matéria que eu, de uma espécie de sofrimento lastimoso. O mundo era tão feio fora de mim, tão feios aqueles copos sujos em cima das mesas, e as manchas escuras no espelho, e o avental de Madeleine, e o ar amável do amante gordo da patroa, tão feia a própria existência do mundo, que eu me sentia à vontade, em família. Agora há essa melodia de saxofone. E sinto vergonha. Acaba de nascer um sofrimentozinho glorioso, um sofrimento-modelo. Quatro notas de saxofone. Vão e vêm, parecem dizer: “É preciso fazer como nós, sofrer em compasso.” Muito bem, sim! Naturalmente eu gostaria muito de sofrer dessa maneira, em compasso, sem complacência, sem pena de mim mesmo, com uma pureza árida. Mas é culpa minha se a cerveja está morna no fundo de meu copo, se há manchas escuras no espelho, se estou sobrando, se o mais sincero de meus sofrimentos, o mais seco se arrasta e se entorpece, com excesso de carne e a pele muito larga ao mesmo tempo, como a vaca-marinha, com grandes olhos úmidos e comovedores, mas tão feios? Não, certamente não se pode dizer que essa dorzinha de diamante, que gira sobre o disco e me deslumbra, seja compassiva. Nem sequer irônica: ela gira alegremente, toda ocupada consigo mesma; cortou como uma foice a insossa intimidade do mundo e agora gira, e todos nós, Madeleine, o homem grandalhão, a patroa, eu mesmo e as mesas, os bancos, o espelho manchado, os copos, todos nós que nos abandonávamos à existência, porque estávamos entre nós, somente entre nós, fomos surpreendidos por ela no desalinho, no relaxamento quotidiano: tenho vergonha por mim e pelo que existe diante dela. Ela não existe. É até irritante; se me levantasse, se arrancasse esse disco do prato que o sustenta e o quebrasse em dois, ela não seria atingida por mim. Ela está para além — sempre para além de alguma coisa, de uma voz, de uma nota de violino. Revela-se, delgada e firme, através de espessuras e espessuras de existência e, quando queremos captá-la, encontramos apenas entes, esbarramos em entes desprovidos de sentido. Ela está por trás deles: sequer a ouço, ouço sons, vibrações do ar que a revelam. Ela não existe, posto que nela nada é demais: é todo o resto que é demais em relação a ela. Ela é. E também eu quis ser. Aliás, só quis isso; eis a chave de minha vida: no fundo de todas essas tentativas que parecem desvinculadas, encontro o mesmo desejo: expulsar a existência para fora de mim, esvaziar os instantes de sua gordura, torcê-los, secá-los, me purificar, endurecer, para produzir finalmente o som claro e preciso de uma nota de saxofone. Isso poderia até constituir um apólogo: era uma vez um pobre sujeito que se enganou de mundo. Existia, como as outras pessoas, no mundo dos jardins públicos, dos bistrôs, das cidades comerciais, e queria se persuadir de que vivia alhures, atrás da tela dos quadros, com os doges de Tintoretto, com os dignos florentinos de Gozzoli, atrás das páginas dos livros, com Fabrice del Dongo e Julien Sorel, atrás dos discos de gramofone, com os lamentos longos e secos do jazz. E depois, após ter se comportado muito tempo como um imbecil, compreendeu, abriu os olhos e viu que havia um mal-entendido: ele estava num bistrô, exatamente, diante de um copo de cerveja morna. Ficou prostrado no banco; pensou: sou um imbecil. E nesse exato momento, do outro lado da existência, nesse outro mundo que se pode ver de longe, mas sem nunca se aproximar dele, uma pequena melodia começou a dançar, a cantar: “É preciso ser como eu; e preciso sofrer em compasso.” A voz canta: Some of these days You’ll miss me honey Devem ter arranhado o disco nesse lugar, pois há um barulho estranho. E há algo que deixa o coração apertado: é que a melodia absolutamente não é afetada por essa tossezinha da agulha sobre o disco. Ela está tão longe — tão lá atrás. Também isso eu compreendo: o disco se arranha e se gasta, a cantora talvez esteja morta; eu vou embora, vou tomar meu trem. Mas por trás do ente que cai de um presente para o outro, sem passado, sem futuro, por trás desses sons que dia a dia se decompõem, se lascam e deslizam para a morte, a melodia permanece a mesma, jovem e firme, como uma testemunha implacável. A voz se calou. O disco arranha um pouco, depois para. Libertado de um sonho importuno, o café rumina, remastiga o prazer de existir. A patroa está rubra, estapeia as faces gordas e brancas de seu novo amante, mas sem conseguir colori-las. Faces de morto. Quanto a mim apodreço, semiadormeço. Daqui a 15 minutos estarei no trem, mas não penso nisso. Penso num americano escanhoado, de espessas sobrancelhas pretas, que sufoca de calor no vigésimo andar de um prédio de Nova Iorque. O céu arde por cima de Nova Iorque, o azul do céu se infamou, enormes chamas amarelas vêm lamber os telhados: os meninos do Brooklyn, de calção de banho, se colocam debaixo dos jatos das mangueiras. O quarto escuro no vigésimo andar está uma fornalha. O americano de sobrancelhas pretas suspira, ofega, e o suor lhe escorre pelas faces. Está sentado em mangas de camisa diante do piano; está com gosto de fumo na boca e, vagamente, vagamente, um fantasma de melodia na cabeça. “Some of these days.” Dentro de uma hora, Tom vai chegar daqui a uma hora com sua garrafa de bolso sobre a nádega; então ambos afundarão nas poltronas de couro e beberão grandes tragos de álcool e o fogo do céu virá flamejar em suas gargantas, eles sentirão o peso de um imenso sono tórrido. Mas primeiro é preciso anotar essa música. “Some of these days.” A mão úmida agarra o lápis no piano. “Some of these days, you’ll miss me honey.” Foi assim que aconteceu. Assim ou de outra maneira, mas pouco importa. Foi assim que ela nasceu. Foi o corpo gasto desse judeu de sobrancelhas de carvão que ela escolheu para nascer. Ele segurava o lápis molemente, e gotas de suor caíam de seus dedos cobertos de anéis sobre o papel. E por que não eu? Por que era preciso exatamente aquele bezerro gordo, cheio de cerveja imunda e de álcool, para que esse milagre se produzisse? — Madeleine, quer tornar a botar o disco? Só uma vez, antes que eu me vá. Madeleine começa a rir. Gira a manivela e a música recomeça. Mas já não estou pensando em mim. Penso naquele sujeito lá longe que compôs essa melodia, num dia de julho, no calor negro de seu quarto. Tento pensar nele através da melodia, através dos sons brancos e acidulados de um saxofone. Ele fez isso. Tinha problemas, as coisas não lhe corriam como deveriam: contas para pagar — e também devia haver em algum lugar uma mulher que não pensava nele da maneira que ele teria desejado —, e havia também essa terrível onda de calor que transformava os homens em charcos de banha se derretendo. Tudo isso nada tem de muito bonito ou de muito glorioso. Mas, quando ouço a canção e penso que foi aquele sujeito que a fez, acho seu sofrimento e sua transpiração... comoventes. Ele teve sorte. Aliás, não deve ter percebido isso. Deve ter pensado: com um pouco de sorte esse negócio poderá me render uns cinquenta dólares! Pois muito bem, é a primeira vez, há anos, que um homem me parece comovente. Gostaria de saber alguma coisa sobre esse sujeito. Teria interesse em conhecer o tipo de problema que tinha, se tinha uma mulher ou se vivia sozinho. Absolutamente não por humanismo: ao contrário. Mas porque ele fez isso. Não sinto desejo de conhecê-lo — aliás ele talvez já tenha morrido. Apenas obter algumas informações sobre ele e poder pensar nele de quando em quando, ouvindo esse disco. Acho que para ele não faria diferença se alguém lhe dissesse que na sétima cidade da França, nas imediações da estação, há alguém que pensa nele. Mas eu me sentiria feliz se estivesse em seu lugar; invejo-o. Tenho que ir embora. Levanto-me, hesito por um momento; gostaria de ouvir a negra cantar. Pela última vez. Ela canta. Eis dois que se salvaram: o judeu e a negra. Salvos. Talvez se tenham julgado perdidos de todo, afogados na existência. E no entanto ninguém poderia pensar em mim como penso neles, com essa doçura. Ninguém, nem mesmo Anny. Eles são um pouco como mortos para mim, um pouco como heróis de romance; purificaram-se do pecado de existir. Não completamente, é claro — mas na medida em que um homem pode fazê-lo. Essa ideia me perturba de repente, porque já não esperava nem isso. Sinto que algo me roça timidamente, e não ouso me mexer porque temo que isso se vá. Algo que já não conheço: uma espécie de alegria. A negra canta. Então pode-se justificar sua existência? Só um pouquinho? Sinto-me extraordinariamente intimidado. Não é que tenha muita esperança. Mas estou como um sujeito completamente gelado após uma viagem na neve que estivesse entrando de repente num quarto aquecido. Creio que permaneceria imóvel perto da porta, ainda frio, e que arrepios lentos percorreriam seu corpo todo. Some of these days You’ll miss me honey Será que poderia tentar... Naturalmente não se trataria de uma música... mas será que não poderia, num outro gênero? Teria que ser um livro: não sei fazer outra coisa. Mas não um livro de história, isso fala do que existiu — jamais um ente pode justificar a existência de outro ente. Meu erro foi querer ressuscitar o sr. de Rollebon. Outro tipo de livro. Não sei bem qual — mas seria preciso que se adivinhasse, por trás das palavras impressas, por trás das páginas, algo que não existisse, que estaria acima da existência. Uma história, por exemplo, como as que não podem acontecer, uma aventura. Seria preciso que fosse bela e dura como aço e que fizesse com que as pessoas se envergonhassem de sua existência. Vou embora, sinto-me vago. Não me atrevo a tomar uma decisão. Se tivesse certeza de ter talento... Mas nunca — nunca escrevi nada nesse gênero; artigos históricos sim — e mesmo assim... Um livro. Um romance. E haveria pessoas que leriam esse romance e diriam: “Foi Antoine Roquentin que o escreveu, era um sujeito ruivo que estava sempre nos cafés.” E pensariam em minha vida, como eu penso na dessa preta: como em algo precioso e meio lendário. Um livro. Naturalmente, no início seria um trabalho tedioso e cansativo; não me impediria de existir nem de sentir que existo. Mas chegaria o momento em que o livro estaria escrito, estaria atrás de mim, e creio que um pouco de claridade iluminaria meu passado. Então, talvez através dele eu pudesse evocar minha vida sem repugnância. Talvez um dia, pensando exatamente nesse momento, nessa hora sombria em que aguardo, as costas encurvadas, o momento de subir no trem, talvez sentisse meu coração batendo mais rápido e dissesse a mim mesmo: “Foi naquele dia, naquela hora, que tudo começou.” E conseguiria — no passado, somente no passado — me aceitar. Cai a noite. No primeiro andar do hotel Printania duas janelas acabam de se iluminar. O canteiro de obras da Nova Estação cheira intensamente a madeira úmida: amanhã choverá em Bouville. JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980) nasceu em Paris e formou-se em filosofia pela prestigiada Escola Normal Superior, em 1928. Sartre inspirou-se em filósofos como Husserl, Heidegger e Kierkegaard para elaborar a sua teoria existencialista. Na Escola Normal, conheceu a escritora Simone de Beauvoir, sua companheira por toda a vida. Quando a França entrou na Segunda Guerra Mundial, em 1939, Sartre foi convocado e, um ano depois, se tornou prisioneiro dos alemães. Ao escapar do campo de concentração de Trier, na Alemanha, no ano seguinte, fundou o movimento Socialismo e Liberdade, que atuava na Resistência. O ser e o nada, publicado em 1943, é obra fundamental e representa singular contribuição para o pensamento filosófico ocidental. Em 1964, o escritor ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, mas recusou a honraria. DIREÇÃO EDITORIAL Daniele Cajueiro EDITORA RESPONSÁVEL Maria Cristina Antonio Jeronimo PRODUÇÃO EDITORIAL Adriana Torres Mônica Surrage REVISÃO Frederico Hartje DIAGRAMAÇÃO Filigrana Capa: Sérgio Campante Imagens de capa: Tobias Titz / Getty Images e Alexey Kazakov / EyeEm / Getty Images [1] Uma palavra deixada em branco. [2] Uma palavra está rasurada (talvez “forçar” ou “forjar”); uma outra, escrita por cima, está ilegível. [3] Da noite, evidentemente. O parágrafo seguinte é muito posterior aos precedentes. Estamos inclinados a crer que foi escrito, no mínimo, no dia seguinte. [4] O texto da folha sem data interrompe-se aqui. [5] Ogier P..., que será citado com frequência neste diário. Era um escrevente de oficial de justiça. Roquentin o conheceu em 1930 na biblioteca de Bouville. [6] Trabalho que se faz em troca de casa e comida, sem salário. (N.T.) [7] Germain Berger: Mirabeau-Tonneau et ses amis, página 406, nota 2. Champion, 1906. (N.E.) [8] Écrivain public: pessoa que redige textos (cartas, etc.) para quem não sabe escrever. (N.T.) [9] Ateliês de caridade onde se costura para indigentes. (N.T.) [10] Em gíria estudantil, a Escola Politécnica ou quem a cursa. (N.T.) [11] Na manifestação de fenômenos ditos ocultos, tais como a comunicação com o espírito dos mortos. (N.T.) [12] Trata-se do escritor francês Jean Guéhenno. (N.T.)