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WS Capítulo Sistemas Filosofia e Ensino vol.1 2018 (1)

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Eduardo Chagas Oliveira
Ivana Libertadoira Borges Carneiro
(Org.)
PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES
ISBN 978-85-7395-292-6
9
788573
952926
>
EM FILOSOFIA E ENSINO
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
Reitor: Evandro do Nascimento Silva
Vice-Reitora: Norma Lúcia Fernandes de Almeida
ISBN 978-85-7395-292-6
Departamento de Ciências Humanas e Filosofia:
Adriana Dantas Reis (Diretora)
Alessandra de Oliveira Teles (Vice-Diretora)
Organizadores
Eduardo Chagas Oliveira (UEFS)
Ivana Libertadoira Boges Carneiro (UNEB)
Conselho Editorial
Alfredo Eurico Rodrigues Matta (UNEB)
Antonio Ianni Segatto (UNESP)
Arturo Fatturi (UFFS)
Daniela Chagas Oliveira (IFBA)
Diogo de França Gurgel (UFF)
Edileuza Fernandes da Silva (UnB)
Geovana da Paz Monteiro (UFRB)
João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)
Jorge Freire Póvoas (UCSal / Faculdade Baiana de Direito)
Mario Ariel Gonzalez Porta (PUC-SP)
Olival Freire Júnior (UFBA)
Wagner Telles de Oliveira (UEFS)
Comissão de Revisão de Linguagens e Normas Técnicas
Ilza Carla Reis de Oliveira
Helionardo Oliveira de Carvalho
Rebeca Nascimento
Tâmara Andreucci Dias de Oliveira
PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES EM
Filosofia e Ensino
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
Volume 1
Textos Organizados por
Eduardo Chagas Oliveira
Universidade Estadual de Feira de Santana
Ivana Libertadoira borges carneiro
Universidade do Estado da Bahia
Supervisão: Profa. Dra. Suani de Almeida Vasconcelos
Composição de Capa
Grupo de Estudos em “Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento”
Designed by new7ducks/Freepik (adapted) CC0 Creative Commons/Uso Autorizado
Fotogafia: Dr. Georg Wietschorke - Bremen/Deutschland
In: Pixabay / CC0 Creative Commons / Uso Comercial Autorizado
Universidade Estadual de Feira de Santana
Avenida Transnordestina, s/n - Novo Horizonte
CEP 44.036-900 - Feira de Santana - Bahia
Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia
Feira de Santana
UEFS
2018
ISBN 978-85-7395-292-6
PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES EM
Filosofia e Ensino
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
Os textos publicados neste livro são de inteira responsabilidade de seus autores. A
reprodução parcial é permitida, desde que seja citada a fonte.
Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado – UEFS
P553
Perspectivas interdisciplinares em filosofia e ensino / Eduardo Chagas Oliveira,
Ivana Libertadoira Borges Carneiro [organizadores]. – Feira de Santana : Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia / Universidade Estadual
de Feira de Santana, 2018.
165 p. : il. – (Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do
Conhecimento ; v. 1).
Ebook
ISBN: 978-85-7395-292-6
1. Filosofia – Ensino. I. Oliveira, Eduardo Chagas Oliveira, org. II. Carneiro,
Ivana Libertadoira Borges, org. III. Universidade Estadual de Feira de Santana.
IV. Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia.
CDU: 1:37
Elaboração: Luis Ricardo Andrade da Silva – Bibliotecário – CRB-5/1790
Textos Organizados por
Eduardo Chagas Oliveira
Universidade Estadual de Feira de Santana
Ivana Libertadoira borges carneiro
Universidade do Estado da Bahia
PERSPECTIVAS INTERDISCIPLINARES EM
Filosofia e Ensino
SUMÁRIO
Apresentação
09
Pensando Currículo: Cultura e Subjetividades
Afonso Henrique Magalhães de Campos
Roberto Leon Ponczek
13
Ser professor: formação e caminhos a seguir
Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana
27
Musicologia e processos inter e transdisciplinares:
identidades sonoras, música, educação e ética
Dante Augusto Galeffi
41
Didática:
com a palavra, os professores da educação básica.
Liliane Campos Machado
Ilma Passos Alencastro Veiga
67
O Silêncio das Vozes nos Currículos: uma Reflexão
sobre o Formal e o Real, na Práxis Pedagógica.
Silvana Ferreira da Silva
Eduardo Chagas Oliveira
81
Construções, leituras e perspectivas de realidades:
uma teoria de sistemas
Wilson Nascimento Santos
95
Jovens em desvantagem social e a autoformação
Ilzimar Oliveira
111
Recôncavo Baiano:
Formação, Evolução Territorial, Econômica e Populacional do Município de Cachoeira (BA)
Gleidson Sena Dias
Nacelice Barbosa Freitas
133
Além da “Linha da Decência”: Linguagem Afetiva e
(In)Sensibilidades Educativas nas tessituras amorosas.
O Caso de amor Ágaba e Sady
(Cidade da Parahyba, 1923)
Iranilson Buriti
153
APRESENTAÇÃO
O presente volume da Coleção de Ensaios em
Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento resgata
uma predisposição natural dos pesquisadores do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia (NEF)
da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS): o
desenvolvimento do trabalho de matiz interdisciplinar. Seja
por meio da Revista Ideação – espécie de “cartão de visitas” do
núcleo supra – ou consoante as demais publicações alinhadas
à sua proposta, sempre houve uma inquietude favorável
à publicação de materiais reconhecidamente transversais.
Após a nossa aproximação com o DMMDC – Doutorado
Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do
Conhecimento – e com a retomada das atividades do grupo
de pesquisas homônimo à coleção, procuramos estreitar laços
de cooperação acadêmica com docentes e pesquisadores de
instituições de ensino que compartilham desse espírito de
articulação em rede, com o fito de promover a produção
e a difusão de saberes múltiplos – para além das fronteiras
do universo acadêmico.
Nessa esfera dos saberes e conhecimentos – formais
e não-formais – de natureza acadêmica e não-acadêmica,
que promovem uma ampliação de horizontes e criam um
amálgama cognoscitivo, sob o amparo de um pensamento
polilógico, buscamos mecanismos capazes de favorecer
maior visibilidade às múltiplas formas de pensar sobre
temas caros à sociedade. Para tanto, propusemos volumes
dotados de independência de tratamento, mas capazes de
conceder unidade ao conjunto da proposta. Para viabilizar
o nosso intento, encontramos na habitual generosidade da
Prof.ª. Dr.ª Ivana Libertadoira Borges Carneiro, o amparo
que necessitávamos para atrair uma das instituições que
formam a rede de cooperação do DMMDC. Docente
da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por já ter
integrado os quadros da UEFS e permanecer colaboradora
do NEF, conhece as idiossincrasias das instituições e abraçou
imediatamente a proposta que culmina nessa parceria de
atividades voltadas à publicação desta coleção.
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
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11
Precisamos reconhecer que a apreensão do espírito
contido no projeto do DMMDC foi decisiva para sustentar
uma base epistemológica mínima, que nos serviu de força
motriz, uma vez que ele se edifica a partir da necessidade de
se pensar criticamente – sob uma abordagem interdisciplinar
e multirreferencial – os modos de investigação dos processos
de geração e difusão do conhecimento. Por esta razão, o
volume inaugural da coleção, consagrado às articulações entre
Filosofia e Ensino conta com a colaboração de docentes e
pesquisadores do quadro do programa. Nesse cenário um nome
se destaca: Dante Galeffi. Pensador refinado, ser humano
de uma generosidade intelectual sem precedentes, não se
furtou a colaborar nesse empreendimento com um capítulo
sobre Musicologia e processos inter e transdisciplinares.
Sistematizando elementos que – à primeira vista – não se
mostram muito próximos entre si, Galeffi articula Identidades
sonoras, música, educação e ética tomando como ponto
de partida aquilo que ele designa ser uma “questão crucial
para os que lidam com a interpretação do mundo em sua
epifania fenomenológica”: por que haveria no princípio o
verbo e não o silêncio?
Os professores Afonso Campos e Roberto Ponczek
trazem a discussão para o campo das (inter-)subjetividades
e da cultura, com o objetivo de provocar o leitor à uma
reflexão sobre currículo. Ao pensar a educação enquanto
processo formativo da cidadania, sustentam a necessidade
de se (re)conhecer filosoficamente a condição humana e
suas implicações nas interações entre os sujeitos. Dentro do
mesmo escopo de investigação, propusemos uma reflexão
sobre o formal e o real, na práxis pedagógica, com a
pretensão de desvelar o Silêncio das Vozes nos Currículos.
A partir de uma proposição da professora Silvana Ferreira
enfrentamos o desafio de pensar as tipologias e teorias
curriculares e suas limitações na crueza do real.
Para incrementar a discussão acerca de uma das
questões mais críticas da educação na atualidade – a
formação de professores da educação básica – contamos com
a colaboração das professoras Ilma Veiga e Liliane Machado,
que sugerem uma observação atenta acerca da valorização
do ensino-aprendizagem na formação docente. A partir de
narrativas das(os) professoras(es) no seu ambiente laboral,
as autoras discutem a importância da didática na prática
docente, tomando como ponto de partida a realidade social
e as experiências individuais e coletivas nas quais esses
profissionais estão imersos. Acompanhando a relevância da
temática, Cleide Quixadá Viana analisa a formação e o fazer
docente considerando as influências e os valores que esse
profissional apreende no decurso da sua trajetória pessoal
e problematizando a questão de como esses elementos são
determinantes para a construção da sua identidade e na
adoção dos seus posicionamentos. Dentro de uma abordagem
análoga, mas reconduzindo as discussões para o plano do
perscrutar filosófico, Wilson Santos propõe uma reflexão
sobre construções, leituras e perspectivas de realidades. O
autor edifica a sua argumentação conforme aquilo que ele
sustenta como uma premissa fundamental da discussão: a
ideia de que o grande anseio do ser humano é conhecer e
dominar a realidade.
Não obstante, contamos, ainda, com textos exemplares
e complementares às discussões. Ilzimar Oliveira sugere
uma reflexão acerca dos Jovens em desvantagem social e a
autoformação destacando a relevância da mobilização de
recursos – objetivos e subjetivos – necessários à inserção
desses sujeitos nos espaços sociais. Com esse objetivo
concede destaque à importância da escolarização e da
formação profissional dos indivíduos durante a construção
da sua identidade. Gleidson Dias Sena e Nacelice Freitas,
por outro lado, nos conduzem ao Recôncavo da Bahia –
mais especificamente ao município de Cachoeira – com o
propósito de nos inserir em uma análise sobre a formação
territorial e econômica do Brasil, a partir daquela região.
Com isso fomentam uma discussão que margeia a própria
formação identitária do povo brasileiro, a partir de uma
problematização híbrida, que resgata elementos históricos
e geográficos para a fundamentação da proposta. Por fim,
contamos com a sutileza de Iranilson Buriti, que tece uma
análise sobre a Linguagem Afetiva e as (In)Sensibilidades
Educativas nas tessituras amorosas. Com rigor depurado, o
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino - Apresentação
Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
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autor se debruça sobre O Caso de amor Ágaba e Sady, na
Cidade da Parahyba (1923), para verificar aquilo que poderia
ser identificado como um passo Além da “linha da decência”.
Em síntese, trata-se de um trabalho plural, em sentido
amplo, sem deixar de ser singular em suas especificidades.
O presente trabalho se constitui enquanto um convite à
reflexão – nos domínios da Filosofia, em sua interface
com os demais campos das Humanidades – a partir de
múltiplos modos de olhar para o horizonte que se nos abre
ao entendimento.
Pensando Currículo: Cultura e Subjetividades.
Afonso Henrique Magalhães de Campos 1
Roberto Leon Ponczek 2
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Pensando currículo: as partes
e o todo 3. O nó da cultura: o currículo multifacetado
4. O nó da subjetividade: construindo identidades 5.
Considerações Finais 6. Referências
Eduardo Chagas Oliveira
1. Introdução
A educação, aqui entendida enquanto processo formativo
da cidadania, constitui-se e dirige-se para o indivíduo e a
coletividade e estabelece-se através das relações políticas,
ou seja, na própria sociedade. Neste sentido, é preciso (re)
conhecer filosoficamente a condição humana (o que é o
homem?) e, no âmbito das ciências humanas, os modos em
que as interações entre os sujeitos acontecem.
Não é possível, assim, construir currículos – os selecionar através de saberes socialmente relevantes (o que
ensinar?) e de que maneira eles serão abordados no processo de ensino-aprendizagem (como ensinar?) –, sem se
ter uma compreensão das especificidades do ser humano
e das sociedades.
Por certo, não é uma tarefa trivial. As transformações
sociais, econômicas, políticas e culturais acontecem em
ritmo acelerado, ditadas pelo processo de atualização constante dos saberes científicos e tecnológicos e exigem que os
princípios pedagógicos norteadores do currículo estejam, de
preferência, à frente de seu tempo: sair da zona de conforto
1
___________
Afonso Campos é professor do Instituto Federal da Bahia e doutorando em
Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia.
2
Roberto Leon Ponczek é Professor da Universidade do Estado da Bahia e
orientador no Doutorado Multidisciplinar e Multi-Institucional em Difusão
do Conhecimento da UFBA.
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino - Apresentação
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do já conhecido e exercitado, para pensar e experimentar
o que ainda está por vir.
Discutir currículo, dessa maneira, significa pensar
mudanças no modelo de educação (visando o desenvolvimento do ser humano); mudanças de concepções, crenças
e posturas do professor e mudanças de posturas e atitudes
dos educandos, instituições e família. Um currículo, por
depender das interações existentes entre os atores envolvidos,
também gravita em torno de interesses que estão constantemente em jogo no processo de ensino-aprendizagem. É
possível perceber, na história recente do Brasil, uma postura
comum – poderíamos considerá-la “cidadã” – em relação
aos assuntos que dizem respeito aos rumos da nação, e aos
temas mais corriqueiros da vida em sociedade. O empoderamento dos indivíduos e dos grupos sociais, no contexto
da história recente brasileira, revela mudanças estruturais e
conjunturais nas formas pelas quais o cidadão percebe e se
percebe na complexa teia política do país. Antes, restritas
ao que se convencionou chamar de elites econômicas e
intelectuais, as decisões políticas na atualidade têm efeito
quase imediato no conjunto da sociedade, em virtude da
velocidade de divulgação e disseminação da informação
via televisão e, principalmente, via internet. Num sentido
inverso, a repercussão social de tais decisões também pode
ser sentida pelas lideranças políticas de forma imediata,
não sendo mais possível desprezar o poder dos meios de
comunicação.
De igual modo, também na educação, são perceptíveis
as mudanças no modo pelo qual as decisões acerca dos processos formativos são definidas. Os debates, implicados na
construção do currículo, antes conduzidos às portas fechadas
dos gabinetes dos gestores da educação, aos poucos vão se
tornando de domínio público. É possível que o currículo
tenha ficado tempo demais como objeto de uso pessoal dos
gestores das políticas públicas para a educação, excluindo
sujeitos diretamente implicados nas suas ações (professores,
alunos, família, sociedade), e que isto tenha determinado
interpretações e concepções de currículo distanciadas da
realidade das escolas. No entanto, as demandas sociais
nunca saíram de cena, e faz-se necessária uma abordagem
responsável.
Neste processo de empoderamento e protagonismo do
currículo e dos sujeitos implicados, na sua construção e
viabilização no interior das escolas, pelo menos dois entraves
fazem-se sentir, de início: a saída da zona de conforto em
que professores e gestores da educação se acostumaram e
o consequente aumento do trabalho de pensar o currículo,
sem tê-lo “pronto”, vindo diretamente de gabinetes; em
seguida, e mais grave, a precariedade epistemológica de
pensar currículo, fruto do distanciamento de tais sujeitos
que compõem o cenário da educação. Fórmulas prontas,
produzidas por tecnocratas, tendem a encantar pela facilidade com que são resolvidos os problemas da educação,
não sendo claro perceber as falácias em que se sustentam.
Como consequência, torna-se difícil para os educadores
resistirem aos “modismos intelectuais”, que a todo o momento emergem no âmbito pedagógico.
Na atualidade, devemos ainda compreender o currículo
como “um dos artefatos educacionais dos mais iluministas,
autoritário e excludente” (MACEDO, 2011, p. 15) e nos
mantermos firmes nos caminhos possíveis para torná-lo um
instrumento de emancipação política e social. Para tanto,
pensamos na formação de sujeitos críticos-criativos, capazes de radicalizar, indo até as raízes, na compreensão do
currículo e fazê-lo instrumento comum de transformação
nas escolas.
2. Pensando currículo: as partes e o todo.
Por se tratar de um campo de disputas políticas, a complexidade das variáveis implicadas (econômicas, culturais,
políticas, históricas, entre outras) determina uma rede
cujos nós 3 estão em constante mudança. Neste sentido, é
impossível construir um currículo universal, válido para
toda e qualquer realidade, ou mesmo um currículo que não
3
___________
Temos aqui uma dupla metáfora: os nós, enquanto pontos de ligação entre
os interesses econômicos, culturais, políticos, etc.; e os nós, entendido como
subjetividade, maneiras possíveis de interpretação e compreensão do todo e das
partes que compõem o currículo. ___________
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Pensando Currículo: Cultura e Subjetividades
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comporte mudanças ou ajustes constantes. Em outras palavras, um currículo ideal deve ser fluido e multifacetado.
Temos assim, uma primeira aproximação para o entendimento e a construção de um currículo contemporâneo.
Por estar inserido em uma determinada cultura e por buscar
afirmar uma identidade própria aos sujeitos que nela compartilham valores comuns, faz-se necessário compreendê-lo
em suas partes constitutivas, sem perder a perspectiva da
totalidade implicada. Cultura e identidade devem estar em
consonância com a natureza de qualquer currículo. Uma
base comum, onde são instaurados sujeitos singulares e
suas identidades.
Do ponto de vista filosófico, tomando-se como base o
pensamento de M. Heidegger, a fórmula A=A é apresentada
como princípio de identidade. Ela não expressa que um
elemento se assemelha ao outro, mas que cada “A” é, ele
mesmo, o mesmo. Em latim, o “idêntico” (idem) é designado
por “to auto”, que significa “o mesmo”. Em cada identidade,
reside uma relação “com” e, portanto, existe uma mediação,
uma ligação, uma síntese: a união numa unidade. O princípio de identidade diz como todo e qualquer ente é ele
mesmo, consigo mesmo, o mesmo (HEIDEGGER, 1977).
Em outras palavras, o princípio de identidade fala do ser,
do ente, e como princípio do pensamento, vale somente
na medida em que é um princípio do ser, cujo teor é: de
cada ente, enquanto tal, faz parte a identidade, a unidade
consigo mesmo (HEIDEGGER, 1977).
Em qualquer situação, sempre que mantivermos algum
tipo de relação com qualquer ente, seremos interpelados
pela identidade, e, se não acontecesse desta maneira, o ente
não poderia jamais manisfestar seu ser como fenômeno.
Se não lhe fosse garantida previamente, e em cada caso,
a “mesmidade” de seu objeto, a ciência não poderia ser o
que é (HEIDEGGER, 1977).
Já do ponto de vista social, conforme Silva (2012), a
possibilidade de definir identidades e marcar diferenças
não pode ser separada das relações de poder, estabelecendo
fronteiras demarcatórias e classificatórias, onde é possível
incluir ou não incluir o outro. Assim, a identidade e a di-
ferença são construídas levando-se em consideração valores
subjetivos, que são criados (expressos) por meio de atos
linguagem. Através da linguagem, a normalidade é o natural,
desejável (a identidade), ainda que sejam indeterminada
e instável. Culturalmente, a maioria dos indivíduos quer
preservar sua identidade (isto é, não ser diferente), mas
essa identidade deve, contudo, ser única ou personalizada
(SILVA, 2012).
Contudo, outra problematização que aqui se coloca é
saber em qual perspectiva se deve compreender a cultura
no contexto do currículo, para que ela possa se tornar
um fundamento das subjetividades. É relevante destacar
que não se trata de hierarquizar culturas possíveis, como
menos ou mais apropriadas à produção de subjetividades,
mas de como compreender a cultura como substrato do
currículo, isto é, de modo a abarcar as demandas sociais
que as identidades revelam.
O ponto de referência que se deve ter é a heterogeneidade
da sociedade, que se faz sentir no microcosmo da sala de
aula, ainda que, infelizmente, esta ainda se encontre organizada conforme um modelo fordista-taylorista, a despeito
das tentativas de mudanças nas concepções de educação.
Tal configuração acentua o descompasso entre a teoria e a
realidade da sala de aula, evidenciando relações assimétricas
de poder decisório e a manutenção do status quo de uma
elite dirigente pouco afeita às mudanças.
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Pensando Currículo: Cultura e Subjetividades
O desafio contemporâneo que se impõe é pensar o
currículo a partir da totalidade – representada pela multiplicidade das culturas – em consonância com suas partes
– na construção de subjetividades ou individualidades que
acolham a existência do outro como diferente.
3. O nó da cultura: o currículo multifacetado
A orientação fundamental da escola contemporânea,
“formar indivíduos críticos, sujeitos de sua história” (PLATT,
2009, p. 29), estabelece uma fronteira cujo interior circunscreve um ideal de ser humano – ao menos para nossa
conjuntura histórica –; mas cuja realização plena se torna
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
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problemática em virtude de sua própria constituição interior: “o que caracteriza o homem é a riqueza e sutileza, a
variedade e a versatilidade de sua natureza” (CASSIRER,
1994, p. 25).
Antecipando um pouco nossas análises sobre subjetividade, rejeitamos o sentido usualmente atribuído ao
conceito de formação. Compreendemos “formação” como
construção de si mesmo, tal como pensado por Sartre em
sua filosofia existencialista (SARTRE, 2005); o que implica na autonomia e liberdade dos sujeitos que escolhem e
decidem sobre tudo que lhes dizem respeito.
A formação é compreendida como um processo dinâmico, cuja finalidade não seria meramente técnica, mas,
antes, denotaria uma experiência constante de evolução e
aperfeiçoamento interior. É importante ressaltar, conforme
observação de Gadamer, que a formação não pode ser um
fim em sim mesmo:
formativo em favor do caráter instrumental operativo das
coisas: “a técnica e em geral todo ‘tecnicismo’ tem a inocência do instrumento” (RICOUER, 1968, p. 108). Na
formação, as coisas não se constituem em um fim, mas
num meio para se atingir um fim mais elevado: o retorno
a si mesmo.
Declara-se que o homem é a criatura que está em constante busca de si mesmo – uma criatura que, em todos os
momentos de sua existência, deve examinar e escrutinar,
as condições de sua existência. Nesse escrutínio, nessa
atitude crítica para com a vida humana, consiste o real
valor da vida humana. “Uma vida que não é examinada”, diz Sócrates em sua Apologia, “não vale ser vivida”
(CASSIRER, 1994, p. 12).
A formação é uma necessidade humana, quando considerada a ruptura que se opera entre o homem e a natureza
a partir da razão. O desenvolvimento das aptidões racionais,
elevando-as do imediatismo do mundo natural, exige do
indivíduo mais do que a simples satisfação de suas necessidades comuns. Na formação, o indivíduo deve reconhecer
o estranho no que lhe é familiar, apropriando-se do sentido
das coisas. A formação se dá numa espécie de movimento
pendular entre si mesmo e o outro. No sentido técnico de
aquisição de conhecimentos específicos, aperfeiçoamento
de aptidões e habilidades, a formação perde seu caráter
Liberdade e autonomia não são sinônimas, ainda que,
do ponto de vista ético racionalista, o exercício da autonomia tenha como uma de suas precondições a liberdade. O
conceito de liberdade é mais amplo em termos existenciais,
sendo uma condição humana, conforme o pensamento
de Sartre. Segundo ele, não há para nós, seres humanos,
como “escapar”, fugir ou recusar a liberdade. Ela é nossa
“condenação”. Mas, em que sentido essa afirmação pode
ser compreendida?
No contexto do pensamento sartreano, nós estamos
absolutamente à sós (ausência de Deus), não existindo
nada que nos determine. Aquilo que somos ou seremos é
sempre resultado de todas as nossas experiências de vida:
“o homem não é mais que o que ele faz” (SARTRE, 2005).
Isso não significa, como já afirmado anteriormente, que
haja alguma forma de “determinismo”, agindo sobre os indivíduos, mas em como nós respondemos às circunstâncias
da vida cotidiana: “o importante não é aquilo que fazem
de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros
fizeram de nós” (SARTRE, 2005).
É uma condição humana da qual não há como escapar. Não atribuir a si mesmo a responsabilidade por tais
escolhas, ainda conforme Sartre, é agir de má-fé. Assim, a
formação que a escola pode propiciar é a disponibilização
para os indivíduos de uma série de opções (conhecimentos
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Pensando Currículo: Cultura e Subjetividades
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
No fundo, formação não pode ser um objetivo, não pode
ser desejada, a não ser na temática reflexiva do educador.
É justamente nisso que o conceito de formação supera o
mero cultivo de aptidões pré-existentes, do qual deriva. O
cultivo de uma aptidão é o desenvolvimento de algo dado,
de modo que seu exercício e cultivo são um mero meio
para o fim. Assim, o material de ensino de um manual
de linguagem é um meio e não um fim. Sua apropriação
serve apenas para o domínio da linguagem. Na formação,
ao contrário, é possível apropriar-se totalmente daquilo
em que e através do que alguém é instruído (GADAMER,
1997, p. 47).
20
21
organizados e a possibilidade de criticá-los criativamente),
mas cabe apenas a estes indivíduos, em última instância,
realizar a decisão sobre qual opção seguir. Assim, neste
ponto de vista, o currículo deve ser compreendido não
como possibilitador de uma formação que na prática não
acontece, mas como instrumento que pode enriquecer ou
empobrecer o campo pelo qual os sujeitos irão construir
experiências de vida. A cultura, então, se torna o elemento
vital dessas experiências.
As pesquisas desenvolvidas por Homi Bhabha (2011) no
campo da cultura nos dão a orientação que pretendemos
aqui desenvolver para o estudo de currículo. Para este autor,
a diversidade cultural deve ser compreendida não apenas
como muitas culturas locais isoladas, mas também como
produto dos choques inevitáveis entre elas, resultando no
que ele denominou de “hibridismo cultural”.
Para Bhabha (2011), as identidades teriam como características a fluidez e a transitoriedade, sendo que, quanto
mais a tradição é transfigurada pelas novas gerações, mais as
diferenças aí presentes seriam redefinidas a partir de novas
relações constitutivas. Esta percepção renovada das diferenças poderia naturalizar nos sujeitos a prática do hibridismo
cultural. Este acolheria a diferença sem estabelecer hierarquias de valores (BHABHA, 2011). Desta forma, a busca
por reconhecimento, que marcaria a percepção identitária,
seria mais performática e estratégica do que essencialista.
Não significa o abandono, mas uma re-significação dos
discursos identitários anteriores, próprio da transitoriedade
e hibridez do presente. Tais relações seriam derivadas da
subalternização econômica que alguns povos imprimem
sobre outros (BHABHA, 2011). Neste sentido, o espaço e
a história, nos quais os indivíduos estão localizados, devem
ser compreendidos numa perspectiva ampliada que está
muito além da sala de aula.
Para a realidade brasileira atual, construída inicialmente
a partir de uma condição colonial portuguesa, e, posteriormente, já como estado independente, no conflito de
pelo menos duas grandes culturas hegemônicas: a europeia
e a africana (ainda que de forma bastante assimétrica);
compreender cultura no âmbito do currículo se torna uma
tarefa complexa. A multiplicidade das culturas existentes,
que marcariam a riqueza da diversidade, torna-se motivo de estranhamento da diferença, de lutas políticas, de
negações e afirmações, de fronteiras obscuras de práticas
ideológicas,
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Pensando Currículo: Cultura e Subjetividades
[...] mas é precisamente nessas banalidades que o estranho
se movimenta, quando a violência de uma sociedade racializada se volta de modo mais resistente para os detalhes
da vida: onde você pode ou não sentar, como você pode
ou não viver, o que você pode ou não aprender, quem
você pode ou não amar (BHABHA, 2005, p. 37).
Mas essas “banalidades” se tornam, no currículo (seja
ele o idealizado, o real ou o oculto), o lugar privilegiado
para a manutenção velada dos esquemas autoritários de
uma tradição ideológica dominante, sem direito à uma
negociação política. A continuidade de tais esquemas e a
impossibilidade de outras vozes ecoarem, torna-se um modo
de operar a vigilância e a negação do outro. Reivindicar
experiências educativas que privilegiem a diversidade cultural e sua expressão deve ser prioridade de um currículo
multifacetado, capaz de estabelecer a integração dos valores
de distintas culturas, a capacidade de aprender e adaptarse, a autonomia, liberdade e responsabilidade, entre outros
(MUZÁS, s.d., p. 43).
Um caminho possível é o currículo interdisciplinar,
possibilitado pelo diálogo entre várias formas e origens
do conhecimento, que foge da lógica “disciplinar” e hierárquica, rumando para uma nova forma de organização,
mais orgânica e integrada. Com a interdisciplinaridade,
estabelece-se a flexibilização das atividades desenvolvidas
com maior criatividade e cooperação.
4. O nó da subjetividade: construindo identidades
Pensar múltiplas culturas e suas interações possíveis, na
sociedade e no currículo, exige, antes, pensar o indivíduo,
tanto no âmbito da subjetividade, quanto no da identidade.
O primeiro conceito sugere a compreensão que possuímos
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23
do nosso “eu” e envolve, nesse processo, sentimentos e
pensamentos pessoais conscientes e inconscientes (WOODWARD, 2012, p. 55).
O filósofo afirma ainda que “o homem não pode tomar
consciência de sua individualidade, a não ser através do
meio da vida social” (1994, p. 363).
As identidades são construídas dentro de um contexto
social em que a subjetividade (o “eu”) está inserida e em
constante negociação com outras subjetividades, estabelecendo desta forma as relações sociais. Ao constituir uma
identidade, o indivíduo torna-se então um “sujeito”. As práticas e o processo simbólico da cultura, de forma consciente
(e mesmo inconsciente), dão ao indivíduo significados no
interior de um sistema simbólico. Segundo Cassirer, “não
estando mais num universo meramente físico, o homem
vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a
arte e a religião são partes desse universo.” (CASSIRER,
1994, p. 48).
É neste universo simbólico que o currículo deve refletirse. A percepção e a compreensão do universo simbólico,
atrelado ao contexto histórico, exige um novo fazer pedagógico, reestruturado para incorporar, no currículo,
paradigmas e premissas adequadas ao novo contexto das
sociedades pós-modernas, sem recair nos antigos modelos
que requerem tão somente a produção otimizada, em larga
escala, de tudo que o mercado consumidor exige.
A formação, portanto, deve estar sempre articulada
com as exigências práticas do cotidiano, sejam elas de
caráter político, econômico, cultural e mesmo tecnológico, sem perder a perspectiva crítica de seus fundamentos.
Em outras palavras, uma formação crítica (no sentido
teórico-filosófico), descolada do mundo cotidiano, perde
seu sentido e significado.
Em seu texto “Entre o passado e o futuro”, Hannah
Arendt nos adverte para o sentido do que ela nomeia de
“crise na educação”, tomando esta crise não num sentido
negativo, mas apontando para o seu caráter possibilitador
do novo, sem rejeitar as tradições.
Esta concepção, no entanto, não pode ser compreendida
numa perspectiva positiva da história, em que os fatos vão
se sucedendo e o resultado é necessariamente o progresso. É preciso levar em consideração elementos subjetivos
Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um
contexto social no qual a linguagem e a cultura dão
significado à experiência que temos de nós mesmos e o
qual adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os
conjuntos de significados construídos pelos discursos, eles
só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos
(WOODWARD, 2012, p. 56).
Em outros termos, o ser humano procura interpretar
a si mesmo e ao mundo em que vive, atribuindo-lhes significados. No entanto, o homem não basta a si mesmo.
É preciso, além dos modos intrínsecos ao homem, da
compreensão das coisas que o cercam, o estabelecimento
de relações com outros indivíduos, através da linguagem,
para que essa compreensão, seja ela racional ou intuitiva,
se constitua enquanto tal.
[...] até certo ponto, existimos graças ao reconhecimento
alheio, que nos valoriza, nos aprova ou nos desaprova e
nos devolve a imagem de nosso próprio valor; a constituição dos sujeitos humanos é uma constituição mútua
por opinião, estima e reconhecimento; o outro me confere
sentido, devolvendo-me a trêmula imagem de mim mesmo
(RICOEUR, 1968, p. 120-121).
Ao considerarmos a relação do indivíduo com o outro
e a consequente formação das imagens incorporadas socialmente; o indivíduo absorvido na cultura, se compõe
na dinâmica e condições desta própria cultura, explicitando seus valores. As convenções compartilhadas tornam
possíveis as sociedades, condicionando-as e formando um
mundo próprio nas diversas estruturas e conexões culturais.
Cassirer (1994) pondera,
[...] não há outra maneira de conhecer o homem senão pela
compreensão de sua vida e conduta. Mas o que encontramos
aqui desafia a toda tentativa de inclusão de uma fórmula
simples e única. A contradição é o próprio elemento da
existência humana.” (CASSIRER, 1994, p. 27)
___________
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presentes nas relações políticas, econômicas e culturais de
qualquer sociedade.
Conforme Freire, “(...) não podemos esquecer de que
o que somos guarda algo que foi e que nos chega pela
continuidade histórica de que não podemos escapar, mas
sobre o que podemos trabalhar, e pelas marcas culturais
que herdamos” (FREIRE, 2001, p. 23).
As recentes transformações sociais, políticas, econômicas
e culturais exigem, por parte das instituições educativas,
um currículo que deve incluir algumas competências e habilidades específicas para o século XXI. São elas: a tomada
de decisões eficazes, baseadas em critérios racionais, especialmente nos momentos em que se exige maior responsabilidade (incluem-se aí as decisões pessoais, interpessoais,
de grupo e organizacionais); desenvolvimento e realização
do potencial criativo pessoal através da reavaliação crítica
de crenças e valores, fazendo valer o despertar e o fluir de
novas ideias; enfrentamento coerente dos desafios cotidianos
nas esferas pessoal e social, tanto presentes quanto futuros; relacionamento apropriado com os demais membros
da sociedade, reconhecendo a diversidade e a pluralidade;
defesa da democracia, enquanto exercício do poder e da
responsabilidade cívica por todos os cidadãos; desenvolvimento de atitudes críticas e propositivas, acentuando o
diálogo como meio de obtenção de consenso social.
A escola, nesta perspectiva, não pode ser apenas um
espaço para aquisição de conhecimento livresco. É imprescindível a transformação da prática docente e dos demais
sujeitos implicados nos processos educativos (gestores,
estudantes, família etc.).
samente ligado entre si.
As novas relações, estabelecidas entre a educação e as
identidades culturais, devem ser o princípio orientador do
processo de ensino-aprendizagem. Uma formação docente, crítica em seus fundamentos, permite construir, com
os sujeitos, um tipo de autonomia em que os problemas
práticos podem ser abordados a partir de um ângulo crítico e criativo, e, por isso, com melhores possibilidades de
resultados mais eficientes.
Na perspectiva de construção do currículo, conforme
anteriormente descrito, é preciso rejeitar o mero acúmulo de
informações, produzidas de forma massificada pelos meios
de comunicação; em favor do conhecimento construído
de forma crítica nos ambientes formais e não formais de
educação, visando a formação humanística e cidadã dos
sujeitos.
A estrutura curricular, ainda vigente em diversas escolas, na qual as disciplinas não dialogam entre si, resulta
na perpetuação de uma formação que, se por um lado, é
de interesse dos setores produtivos da economia, de outro, dificulta a construção da criticidade e da perspectiva
emancipatória.
Entendemos que as demandas do fazer educativo contemporâneo exigem mentes sensíveis para compreender as
transformações sociais e pôr a educação em consonância
com as novas fronteiras culturais. Não existe a última palavra. Os discursos oscilantes, que evidenciam ideologias
ou concepções, pesquisas e empreendimentos em educação,
necessitam fluir de maneira aberta, não para resgatar algo
que evidentemente não se perdeu – a educação e a formação humana existirão enquanto existir a humanidade –,
mas para conduzir a própria educação como prática social
formativa, criativa e inovadora.
Considerações finais
A escola da contemporaneidade deve defender, por
intermédio de seu currículo, a consciência e o respeito
pela cidadania, de modo a abranger não apenas seu entorno próximo, mas também fazer com que se estabeleçam
vínculos com a diversidade e a pluralidade das culturas,
formando indivíduos que definam responsavelmente sua
existência, num contexto ___________
de mundo globalizado e inten-
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Referências
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e Futuro. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
BHABHA, Homi K. O Lugar da Cultura. Belo Horizonte:
EDUFMG, 2005.
CASSIRER, Ernest. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma
filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
FREIRE, Paulo. Política e Educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 2001.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997.
MACEDO, Roberto Sidnei. Currículo: campo, conceito e pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2011.
MUZÁS, Maria Dolores; BLANCHARD, Mercedes; SANDÍN,
Maria Teresa. Adaptación del Currículo al Contexto y al Aula:
respuesta educativa em las Cuevas de Guadix. Madrid: Narcea,
s.d.
PLATT, Adreana Dulcina (Org.). Currículo e Formação Humana: princípios, saberes e gestão. Curitiba: CRV, 2009.
RICOEUR, Paul. Verdade e história. Rio de Janeiro: Forense,
1968.
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: ensaios de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2005.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A Produção Social da Identidade e da
Diferença. In. SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2012.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.).
Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis: Vozes, 2012.
Ser professor: formação e caminhos a seguir1
Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana 2
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Um pouco da história para
entender o contexto 3. O professor como pesquisador 4.
Como fazer? 5. Referências
1. Introdução
O presente texto propõe uma reflexão sobre a formação e o fazer docente. A abordagem do tema nos remete
às seguintes reflexões: quais influências o professor recebe
na construção da sua identidade? Que políticas educacionais são determinantes no fazer docente? De que forma o
professor se prepara para o exercício do magistério? Esta
preparação acompanha o seu dia a dia? O que é realmente
importante para a construção de tal identidade?
A história nos ensina que, desde a Antiguidade, na
Grécia Antiga, por exemplo, existiram filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles que concebiam e repassavam seus
ensinamentos e seus métodos e, assim, “faziam escola”.
Sócrates, filósofo grego, nascido em Ática em 470 a.C.
e falecido em Atenas em 399 a.C., que se apresentava
como “aquele que nada sabe”, definia um método que
ficou conhecido como “ironia socrática”, não se tratando
de “zombaria”, mas de uma “interrogação”. Apesar do filósofo não ter deixado escritos de suas ideias, estas ficaram
registradas por meio dos “diálogos” de Platão, como forma
de protesto contra a condenação à morte de seu mestre
(JULIA, 1969).
Por sua vez, Platão, cujo nome verdadeiro é Arístocles,
filósofo grego nascido em Atenas a 428 e falecido entre
1
___________
Texto reestruturado com base em um texto da autora publicado em 2004 pela
EDUECE com o título: “A identidade do professor e o papel da pesquisa no fazer docente. IN: QUIXADÁ VIANA, Cleide Maria et al. Didática. Fortaleza:
Ed.UECE, 2004. p.33-42.
2
Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília
(UnB). E-mail: cleidequixada@gmail.com
___________
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348-347 a.C., procedente de família aristocrática, foi aluno
de Crátilo e discípulo de Heráclito, antes de ser discípulo
de Sócrates. Devido a sua teoria racionalista dos conhecimentos e por sua teoria moral da salvação é considerado o
pai de toda a filosofia ocidental. Por meio do método de
interrogação, ou “maiêutica”, quer mostrar ao interlocutor
que ele próprio é capaz de “tirar de si mesmo o verdadeiro
conhecimento”. Procura através da “ironia socrática” fazer
o interlocutor se colocar em contradição consigo mesmo e
mostrar aos políticos, aos poetas e ao povo, que eles não
têm conhecimento sobre a essência da poesia e da política
(JULIA, 1969).
Aristóteles, também filósofo grego, nascido em 384
a.C., em Estagira, na Macedônia, e falecido em 322 a.C.,
na Eubéia, foi discípulo de Platão por vinte anos. Fundador da escola peripatética, foi o autor das definições
de “dedução e de inclusão”, e desenvolveu as noções de
“conceito”, de “juízo” e de “raciocínio”, tal como a utilizamos na atualidade. Vale destacar que o desenvolvimento
da filosofia da Idade Média aconteceu por conta da sua
doutrina, devendo-se mais especificamente à sua lógica e
à sua teoria do conhecimento (JULIA, 1969).
No que pese a influência das ideias e métodos de grandes
filósofos e pensadores ao longo da história da humanidade,
no decorrer da história da Educação, esta nos ensina que
durante muitos e muitos anos predominou o perfil do
professor que reproduzia (ensinava) o saber acumulado,
apresentado em livros de alguns poucos que se dedicavam
a produzi-los e, com raras exceções, a propagarem suas
ideias. Esta é uma prática antiga que, de certa forma, ainda
se perpetua na atualidade. E por que predominou e ainda
existe esta prática reprodutora no fazer do professor? A
quem interessa a perpetuação desta prática?
Durante séculos tivemos no País a predominância de um
modelo de educação sob a égide da igreja católica e desse plano. O professor era reconhecido como o “dono do
saber”, da verdade absoluta, responsável pela propagação
de um conhecimento incontestável e inquestionável. O
aluno, por sua vez, era um ser passivo que devia assimilar o conhecimento repassado pelo mestre. Vale destacar,
ainda, a influência do positivismo, do enciclopedismo e
do humanismo nesse modelo que se convencionou chamar
entre os estudiosos da Educação de liberal tradicional, o
qual influenciou a forma de ensinar, o perfil do professor
e do aluno. No que pese a evolução dos modelos que se
sucederam na educação brasileira, é possível constatar ainda
hoje a influência desse modelo tradicional nos diferentes
níveis de ensino.
No Brasil contemporâneo, após o movimento desencadeado
pela tendência educacional que ficou conhecida como
Escolanovismo que veio contrapor-se ao modelo tradicional de
educação, embora mantendo o mesmo compromisso de apoio
ao status quo; seguindo-se a influência do modelo tecnicista,
aclamado no período de três décadas de ditadura militar;
nos anos de 1980, com a “abertura política”, o movimento
de educadores até então sufocado pelo regime em vigor,
emergiu na maioria dos estados do País, desencadeando uma
onda de Congressos, Fóruns e Encontros comprometidos
com a discussão sobre os rumos da Educação.
O cenário que se abria ao novo estimulou a produção
intelectual dos nossos educadores, inspirados em boa medida,
pela pedagogia conscientizadora de Paulo Freire. Dentre os
autores que se tornaram conhecidos nacionalmente podemos
citar na área da Didática, disciplina que tem como objeto
o estudo do processo de ensino e, consequentemente, do
fazer docente, Dermeval Saviani, mentor da tendência
pedagógica denominada pedagogia histórico-crítica e José
Carlos Libâneo, autor da tendência que ficou conhecida
como crítico-social dos conteúdos.
Embora estas duas tendências tenham origens comuns,
vale destacar que, ao longo das últimas décadas, Libâneo
distanciou-se progressivamente das influências e posições de
2. Um pouco de história para entender o contexto
Como sabemos, os jesuítas foram os principais responsáveis pela implantação da Educação no Brasil, respaldados
por um plano e organização
de estudos, o Rátio Studiorum.
___________
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Saviani, aderindo ao paradigma que aposta na emergência
de uma sociedade pós-moderna, na qual a centralidade do
trabalho teria dado lugar à centralidade do conhecimento
e da comunicação, ao contrário de Saviani, que, permanecendo no campo do marxismo, reconhece que a sociedade capitalista contemporânea, não obstante o progresso
científico-tecnológico que a caracteriza, continua centrada
nos relações entre capital e trabalho cindida, portanto, em
classes sociais.
Tais tendências se tornaram referência no cenário educacional nacional, passando a exercerem influência significativa no fazer de muitos professores e, por que não dizer,
no repensar de sua prática.
Esta concepção crítica de educação passou a exigir um
“outro tipo” de professor e, consequentemente, uma prática
diferente da prática reprodutivista, ainda hoje presente na
escola brasileira, diga-se de passagem.
Entretanto, a citada “abertura política” no Brasil aconteceu em um período de emergência da crise estrutural do
capitalismo contemporâneo. Entre os caminhos apontados para a superação dessa crise, economistas do tesouro
americano, representantes do Banco Mundial e do FMI
apresentaram ao mundo um decálogo de medidas elaborado em 1989, que se convencionou chamar Consenso de
Washington. Estava posta a agenda neoliberal para que,
principalmente os países devedores de organismos financeiros internacionais promovessem uma reestruturação no
modo de produção, para tornar possível um ajuste capaz
de responder e garantir o pagamento das dívidas de países
devedores aos países credores. Entre os ajustes necessários
a essa “nova” ordem, tivemos uma reforma educacional no
Brasil, na qual a política educacional passou a ser regulada
e atrelada à ótica do mercado, calcada na privatização e
no aligeiramento do ensino e na formação do professor,
tratando o ensino como mercadoria.
Assim, na contramão do debate e da preocupação com
este novo horizonte que se delineava, a política educacional
no País retomou com mais ênfase a influência do que Freitas
(1992) considerou o estabelecimento de um neotecnicismo,
que se apresentou com contornos mais refinados do que
o da década de 1970.
Nesse contexto, a formação do educador, sua identidade, seu
fazer, o ensino e o perfil do aluno que se quer formar incorporamse, definitivamente, à lógica da produção de mercadorias.
É importante destacar que para o entendimento desta
lógica, temos a considerar
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___________
que o trabalho, por se confundir com a própria história de vida e sobrevivência do homem, constitui-se no
princípio educativo por excelência, na medida em que
está na ligação do trabalho produtivo com a instrução,
o meio de transformar a sociedade hodierna. O trabalho
como princípio educativo não se coloca acima, mas não
se submete aos ditames da produção (QUIXADÁ VIANA,
2004, p. 35).
O entendimento do trabalho como princípio educativo
justifica-se, ainda, não só pelo fato de se ter tornado, não só
meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital,
como nos alerta Marx (1985, p.17).
Nesse sentido, há de se considerar para o entendimento
das exigências do contexto social, a dupla face do trabalho,
em sua dimensão eminentemente antagônica revelada, por
um lado, como possibilidade de realização, emancipação e
libertação humana e, por outro lado, como cerceamento da
liberdade, subserviência ao jugo do capital e dos interesses
do mercado, alienação – ou estranhamento – através do qual
o homem vê o seu suor objetivado em mercadoria, servindo
exclusivamente para garantir a reprodução e acumulação
da riqueza privada.
Para Marx (1993), a propriedade privada, alicerce de
uma sociedade de classes, é responsável pela divisão do
trabalho, sendo a divisão do trabalho, ao mesmo tempo,
manifestação da propriedade privada. Assim, como bem
avalia Manacorda (1991, p.67),
a divisão do trabalho condiciona a divisão da sociedade
de classes e, com ela, a divisão do homem, e como esta
se torna verdadeiramente tal apenas quando se apresenta
como divisão entre trabalho manual e trabalho mental,
assim como as duas dimensões do homem dividido,
cada uma das quais unilateral, são essencialmente as do
trabalhador manual
operário e do intelectual.
___________
32
33
Tal divisão, presente no modo de produção capitalista
que garante aos proprietários a posse da técnica, do trabalho intelectual, o controle da organização de trabalho e a
alienação do trabalhador, se faz refletir na organização do
trabalho na escola, que, por sua vez, reflete os interesses e
contradições da sociedade capitalista.
No sistema educacional, as relações sociais se perpetuam através da dicotomia escola da burguesia X escola
do trabalhador, na qual a primeira prepara o aluno para
exercer funções de mando e a segunda, para obedecer com
subserviência.
Jimenez (2003, p.3) atenta para o fato de que na reestruturação do capitalismo, a atividade educacional, sob
o domínio das relações mercantis, é solicitada a tomar parte
no processo de reprodução da força de trabalho e criação de
valores.
Nesse sentido, de acordo com a nova (des)ordem do capital, reforçada pelo que Mészáros considera uma crise de
acumulação do capital, aprofunda-se o fosso da degradação
do trabalho para que se garanta a acumulação do capital, em
oposição à concepção de trabalho como elemento fundante
da sociabilidade humana, tão consistentemente defendida
pela doutrina marxista.
O modelo de educação concebido a partir das exigências
do projeto neoliberal e de quem o determina, os organismos
internacionais capitaneados pelo Banco Mundial, estabeleceu um perfil de trabalhador, professor e aluno baseado
em velhos conceitos apresentados na década de 1990 sob
uma nova maquiagem, utilizando-se de termos amplamente
divulgados nos diferentes meios de comunicação, no discurso
oficial e patronal e nas produções acadêmicas, como flexibilidade, polivalência, espírito de equipe, tomada de decisão,
qualidade total, competência, habilidades, competitividade,
dentre outros, apresentando o que Frigotto (1995) considerou uma reedição da teoria do capital humano.
No quadro dessas mudanças, a identidade do professor
foi sendo influenciada pelo conceito de professor reflexivo,
em seguida pelo de professor crítico reflexivo ou intelectual
crítico reflexivo.
O conceito de professor reflexivo foi difundido no meio
educacional pelo norte-americano Donald Schön, na década
de 1980. O citado autor retomou a ideia de experiência e
reflexão na experiência de John Dewey e de conhecimento
tácito, que é considerado como o conhecimento na ação, de
Luria e Polanyi.
Schön defende, então, que a formação profissional deve
desenvolver-se a partir de uma epistemologia 3 da prática
que considera a prática do professor como um momento
de construção de conhecimento por meio da reflexão, da
análise e da sua problematização. Assim, o conhecimento
prático acontece na reflexão da ação, considerando um
problema concreto.
A partir de Schön desenvolveu-se a produção acadêmica
sobre o conceito de professor reflexivo, necessitando, entretanto, ser essa produção criteriosamente analisada para
que não se assuma mais uma vez sem a devida clareza, mais
um dos sazonais modismos educacionais.
Pimenta (2002) aponta os desdobramentos conceituais e a posição crítica de vários autores sobre o assunto.
Vejamos:
- Liston e Zeichner, por exemplo, criticam o reducionismo
do conceito de Schön ao considerar a prática reflexiva de
forma individual e não levar em conta o contexto institucional, defendendo uma posição pragmático-reducionista
do ensino como atividade crítica, em que a reflexão na
prática visa à reconstrução social.
- Giroux apresenta a ideia de professor como intelectual
crítico por considerar limitada a proposta de Schön. Para
Giroux, a reflexão desse intelectual crítico deve ser coletiva e realizar a análise do contexto escolar considerando o
contexto mais amplo e assumindo um compromisso com a
emancipação e transformação das desigualdades sociais.
- Em relação à Giroux, Contreras critica o fato de apesar
de Giroux definir com clareza o conteúdo da sua prática,
omitir-se de mencionar como é possível se tornar um intelectual crítico e transformador, superando a condição de
___________
3
Epistemologia: estudo dos métodos de conhecimento que são praticados
nas ciências.
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técnico reprodutor e até reflexivo individualmente.
- Contreras critica a prática do professor que limita sua
ação e reflexão ao contexto da sala de aula, sem considerar
os condicionantes estruturais do seu fazer.
Vale destacar que a discussão sobre o professor reflexivo,
que ocupou o cenário educacional na década de 1990, recebeu adeptos e críticas de muitos estudiosos do assunto.
No meio de todas as colocações sobre o conceito de professor
crítico-reflexivo em contraposição ao conceito de professor tradicional, é oportuno fazer algumas considerações:
Qual seria a interpretação dessa frase? Na vida de um
professor, ela já é ou poderá vir a ser uma realidade em
sua prática pedagógica? O que é preciso fazer para tê-la
como princípio didático? O professor pode ser docente e
pesquisador ao mesmo tempo?
Valorizar a pesquisa como eixo norteador da prática do
professor é viver e compartilhar o dia-a-dia com outros
professores e alunos e colocar a pesquisa como prioridade
na sua formação continuada. Também é importante que o
aluno se sinta contaminado pela curiosidade e o prazer de
descobrir por meio da pesquisa.
1. a princípio, é importante a reflexão do seu fazer por
parte do professor. Entretanto, é fundamental que o professor
saiba sobre o que e para que ele está refletindo, e que este
fazer refletido seja encarado com referência à totalidade em
que se insere (a sociedade do capital) e se coloque a serviço
do rompimento de todas as formas de alienação do homem;
2. a reflexão deve ser um caminho para a defesa de um
projeto político-social que considere a realidade da luta de
classes na luta pela transformação radical da sociedade;
3. a reflexão deve considerar sua intervenção no contexto
sócio-político-econômico e histórico no qual se situa e seu
compromisso com as classes populares;
4. por fim, é preciso ter clareza de que a reflexão, do
ponto de vista do fazer docente, não irá alterar a realidade se
esse professor não conquistar, por meio da luta coletiva, o poder de intervenção na base do sistema para ser possível mudar
radicalmente os rumos da política educacional vigente e, mais
do que isso, as eternas desigualdades sociais se perpetuarão,
apesar da reflexão, enquanto perdurar o sistema capitalista.
Como fazer?
Paulo Freire menciona em seu livro Pedagogia da autonomia (1996, p.32) que não há ensino sem pesquisa e
pesquisa sem ensino.
Não é necessário nenhum temor ou preocupação em
fazer pesquisa. Aos poucos, o professor descobre que a
pesquisa faz parte do seu cotidiano, da sua prática pedagógica, embora ele não se dê conta e não a tenha sistematizada. Pesquisar não é coisa só para cientista. O processo
de aprendizagem constitui-se em atividades de indagação,
informação, reflexão, busca e desafio para a descoberta de
soluções e novos caminhos.
Em “O papel mediador da pesquisa no ensino de didática”, André (1997) comenta os tipos de pesquisa utilizados
na área da Educação e da Didática, para que o professor
investigue a sua prática. A citada autora estabelece uma
distinção entre pesquisa científica e pesquisa didática.
Para ela, a primeira tem o objetivo de produzir novos
conhecimentos, satisfazendo critérios específicos de objetividade, originalidade, validade e de legitimidade perante a
comunidade científica (ANDRÉ, 1997, p.20). Já a pesquisa
didática deve proporcionar o acesso aos conhecimentos científicos; levar o aluno-professor a assumir um papel ativo no
seu próprio processo de formação, e mais, a incorporar uma
postura investigativa que acompanhe continuamente sua
prática profissional (ANDRÉ, 1997, p.20).
Na perspectiva da pesquisa didática, dentre as três formas
de pesquisa apontadas por André, temos: a metodologia
de pesquisa; a pesquisa do tipo etnográfico e a pesquisa
como paradigma de uma prática refletida, a pesquisa-ação.
___________
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De todo modo, a superação do conceito de professor
tradicional, aquele que simplesmente reproduz o conhecimento - o qual, bem entendido, não deve jamais ser desconsiderado ou aligeirado - implica em uma nova postura
de professor, na qual este passa a ser um pesquisador do
conhecimento e da sua própria prática.
3. O professor como pesquisador
36
37
A metodologia da investigação, que tem como ponto de
partida um problema a ser solucionado, uma questão que
precisa de resposta ou um projeto a ser executado.
O objetivo da metodologia de pesquisa é o de levar o
aluno a aprender como observar, como elaborar hipóteses
(ou questões), a escolher instrumentos para responder
suas hipóteses (ou questões) de trabalho e a saber expor
suas conclusões. Dessa forma, o aluno desenvolve a sua
autonomia, pois o ensino deixa de ser considerado como
transmissão de conteúdo pronto.
Outra forma de pesquisa é a do tipo etnográfico, usada
para expor e analisar situações didáticas relatadas em pesquisas pelos professores, bem próximas de sua realidade,
possibilitando a articulação entre teoria e prática. A pesquisa etnográfica presta-se segundo ANDRÉ (1997, p.27),
a servir de texto gerador de um novo texto, a ser produzido
pelo grupo de alunos.
Uma última forma de se trabalhar com pesquisa, segundo
André, seria a pesquisa como paradigma de uma prática
refletida. A esse respeito, Perrenoud (1993, p.129) considera que a pesquisa tem um importante papel na adoção
de uma prática refletida do professor.
A pesquisa como paradigma de uma prática refletida
desenvolvida através da pesquisa-ação, que se utiliza também da metodologia investigativa e da pesquisa etnográfica,
caracteriza-se, segundo André (1997, p.28), pelo acompanhamento sistemático e controlado de uma ação realizada por
um indivíduo ou grupo.
Durante a formação inicial do aluno-professor, pode-se
trabalhar com a metodologia da análise crítica da memória
educativa. Utilizando-se da memória, o aluno-professor é
estimulado a refazer o percurso da construção do seu saber
no contexto do seu processo de formação, a interpretar a
sua história considerando o contexto sócio-histórico que
a determinou, visando com isso, repensar o seu projeto de
prática docente.
Nessa etapa, é interessante a utilização da metodologia
investigativa para se discutir a prática docente, através de
projetos coletivos que venham a contribuir para a reflexão
sobre a prática de cada um.
Em relação aos programas de aperfeiçoamento docente
e a formação em serviço, a pesquisa-ação apresenta-se como
uma proposta de formar o hábito da análise e reflexão
sistemática sobre a própria prática do professor.
Para este tipo de trabalho é importante que os papéis
dos participantes sejam claramente definidos, como também as formas de trabalho com a investigação, o tipo de
pesquisa, para que se tenha clareza do objetivo que estamos
nos propondo a atingir.
Torna-se oportuno destacar, aqui, a nossa posição crítica quanto
à investigação e à pesquisa que não toma a análise do seu objeto,
considerando o contexto histórico em que este se efetiva e a totalidade em que o mesmo se materializa, como forma de garantir
que esta totalidade seja devidamente considerada no processo de
investigação da particularidade investigada.
Esta preocupação justifica-se a partir da compreensão
de que o arcabouço teórico e as categorias de análise se
tecem em um processo histórico e os momentos investigados devem manter uma íntima relação com a totalidade do
sistema e a análise das novas relações que se estabelecem
no modo de produção.
Ao discorrer sobre a dialética 4, Frigotto (1991, p.75)
chama a atenção para o fato de que “o reflexo não é toda
a realidade, mas constitui-se na apreensão subjetiva da realidade objetiva, ou seja, o reflexo implica a subjetividade”.
Refere-se o autor, vale destacar, ao conceito de reflexo em
uma dimensão genética, sociológica ou gnosiológica 5.
Assim, torna-se necessário que a apreensão da realidade
seja considerada na sua dimensão histórica e dialética, marcada por antagonismos e conflitos, mas, segundo Frigotto
(1991, p.79), marcada por um tríplice movimento: de crítica,
de construção do conhecimento novo, e da nova síntese no
plano do conhecimento e da ação, pois, para esse autor, o
que é verdadeiramente importante no processo dialético é
a crítica e o conhecimento crítico para uma prática que altere
e transforme a realidade anterior no plano do conhecimento
___________
4
5
Dialética: arte do diálogo ou da discussão.
Gnosiologia: teoria do conhecimento,
de suas origens e formas.
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38
e no plano histórico-social.
Esta é a justificativa da nossa opção como professora
e educadora pelo referencial teórico-metodológico de pesquisa, que não poderia ser outro que não o materialismo
histórico-dialético, concebido de forma mais enfática por
Marx, na Ideologia Alemã.
Nessa perspectiva, tal metodologia só poderá operar-se
em um movimento de mão dupla, na relação das partes entre
si de forma articulada com o todo, em que uma categoria
por si só há que ser considerada insuficiente e inadequada
para uma análise do ser social.
Na interpretação de Suchodolski (1976, p. 41, v.I),
é no materialismo histórico-dialético que “se atinge uma
total solução materialista, através das concepções da emancipação do homem e a superação da alienação”. É por esta
razão que o materialismo histórico-dialético toma por base
para a produção e reprodução da vida social, a estrutura
econômica tecida na totalidade das relações de produção,
vislumbrando a possibilidade da construção de um conhecimento não mais alienado, como condição sine qua non 6
para a intervenção da práxis 7 humana na construção de um
projeto histórico socialista.
Assim, pesquisar a prática do professor, prática essa
determinada pela correlação de forças presentes no sistema
capitalista, só fará sentido se as análises forem tecidas a
partir de uma relação íntima com a totalidade do sistema
social e das determinações impostas pelo modo de produção
capitalista, refletidas dialeticamente no contexto de uma
sociedade de classes.
Face ao que foi exposto até aqui, nos resta afirmar
que:
• a compreensão de que as políticas educacionais
na atualidade regulam-se pela ótica do mercado, da
privatização, no aligeiramento do ensino e na formação
do professor, formação esta tratada como mercadoria no
6
Sine qua non: sem a qual
Práxis: no marxismo, o conjunto das atividades humanas tendentes a criar as
condições indispensáveis à existência da sociedade e, particularmente, à atividade material, à produção.
___________
7
contexto da agenda neoliberal.
• A escola por sua vez, reflete a dupla face do
trabalho, em sua dimensão eminentemente antagônica
revelada por um lado como possibilidade de realização,
emancipação e libertação humana e, por outro lado,
como cerceamento da liberdade, como cerceamento
da liberdade, alienação, subserviência aos interesses do
mercado.
Por fim, fica a pergunta para quem é ou se propõe a
ser professor: qual é o seu compromisso diante do cenário
que se apresenta? Qual caminho a trilhar?
Referências
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da pesquisa no ensino de Didática. In: ANDRÉ, Marli Eliza
Dalmazo Afonso de; OLIVEIRA, Maria Rita Neto Sales (Orgs.).
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1997.
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real. São Paulo: Cortez, 1995.
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histórica na pesquisa educacional. In: FAZENDA, Ivani (Org.).
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Paulo: Cortez, 1991.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários
à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
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e fazer. 7. ed. São Paulo: Cortez, 1992. p. 89-102.
JIMENEZ, Maria Susana Vasconcelos. Formação e prática
docente no contexto das relações entre trabalho e educação:
um exame crítico das teorizações e propostas dominantes no
campo da formação do professor. Projeto de Pesquisa. Fortaleza,
2003. (mimeo).
___________
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40
JULIA, Didier. Dicionário de Filosofia. Rio de Janeiro: Larousse
do Brasil, 1969.
MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna.
Musicologia e processos inter e transdisciplinares: Identidades sonoras, música, edu1
cação e ética
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. In: Obras Escolhidas. Lisboa: Avante, 1985, t.III.
Dante Augusto Galeffi
São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991.
2
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosófico. Lisboa: Edições 70, LDA, 1993.
SUMÁRIO: 1. O Princípio 2. Musicologia e processos
inter e transdisciplinares 3. Identidades sonoras – Ecologias sonoras 4. Música 5. Educação 6. Ética 7. Tudo
reunido: Polifonia resoluta 8. Referências
PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom
Quixote, 1993.
PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São
Paulo: Cortez, 2002.
QUIXADÁ VIANA, Cleide Maria Quevedo. A identidade do
professor e o papel da pesquisa no fazer docente. In: QUIXADÁ VIANA, Cleide Maria Quevedo et al. Didática. Fortaleza:
EdUECE, 2004. p. 33-42.
SUCHODOLSKI, Bogdan. Teoria marxista da Educação. Trad.
Maria Carlota de Melo. Lisboa: Estampa, 1976. (v. 1)
1. O Princípio
Por que haveria no princípio o verbo e não o silêncio?
Eis uma das questões metafísicas tradicionais já incapazes
de despertar inquietação criadora nos espíritos contemporâneos ávidos por conhecimentos manuseáveis e rentáveis.
Mas esta é uma questão crucial para os que lidam com a
interpretação do mundo em sua epifania fenomenológica.
Pressupor que no princípio é o verbo significa a assunção
de um metaponto de vista articulador do sentido primário
da ação como criação originária. O verbo é a ação engendradora do tempo e das temporalidades e suas derivações
infindáveis e pontuais. Em sua circularidade ontológica, o
verbo não se reduz a um efeito sonoro e nem a uma palavra
pronunciada. Mas, como verbo, ele também é um som e
uma palavra. É simultaneamente o som ensurdecedor do
momento inicial do universo e a palavra moduladora das
1
___________
Texto escrito da palestra proferida na abertura do III Simpósio Nacional
de Musicologia e do V Encontro de Musicologia Histórica, patrocinado pela
Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e pelo Centro de Estudos de Musicologia e Educação Musical da UFRJ, em Pirenópolis - GO, em 2013.
2
Professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Docente-pesquisador do Doutorado Multi- institucional e Multidisciplinar em Difusão do
Conhecimento (DMMDC), responsável pelo Grupo de Pesquisas “Epistemologia do Educar e Práticas Pedagógicas”
(CNPq). E-mail: dgaleffi@uol.com.br
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formas e reformas de todos os instantes do tempo, ambos
os acontecimentos apenas imaginados e idealizados pela
mente humana. Porque para que exista o acontecimento
sonoro é preciso existir o órgão receptor dos sons, um ouvido ou aparelho similar. E no início nada havia e muito
menos órgãos de captura e ressonâncias sonoras. Mesmo
assim, somos capazes de representar o momento inicial como
uma grande explosão acompanhada de um estrondoso som
que rasga a quietude do silêncio. Algo similar aos efeitos
de uma tempestade elétrica em uma cidade rodeada de
montanhas. Assim, pela imaginação sonora, projetamos uma
imagem do ato inaugural (Big-Bang) como se fora uma
grande tempestade elétrica perpassada por uma espécie
de grito primal. A imaginação humana permite acolher a
imagem do princípio como verbo: som e palavra em sua
originária potência criadora.
Haveria, pela compreensão do verbo como princípio
de tudo, uma primazia do sentido auditivo sobre os outros
sentidos perceptivos? Inicio o movimento da minha exposição com uma questão metafísica insolúvel e incontornável.
Será o pano de fundo de todo o processo expressivo aqui
realizado.
Qualquer palavra que termine com logia refere-se ao
logos grego. O Logos grego é o correspondente à Ratio
latina e também se associa ao Verbum. Traduz-se, em geral,
o Lógos por teoria, ciência, conhecimento racional. Toda
palavra que tem essa terminação quer dizer sempre o mesmo. Musicologia não é uma exceção: teoria, conhecimento,
ciência da música. Entretanto, toda teoria ou ciência tem
sempre planos de constituição subjacentes que modulam
os efeitos de visão de mundo produzidos discursivamente. Seguindo-se séries coerentes e concatenadas de ideias
claras e princípios axiomáticos.
São tais planos de constituição que definem os posicionamentos teóricos sobre o fenômeno musical, a começar pela definição do que é música e o que a diferencia
das demais formas de expressão do ser humano. Como
teoria que tem como seu objeto os fenômenos musicais,
a musicologia segue o desenvolvimento da discursividade
epistemológica própria de toda ciência de rigor. É inevitável
em toda teoria um posicionamento radical em relação ao
setor da atividade do qual se deseja extrair os princípios conceituais fundantes do fenômeno investigado.
Há, assim, em toda atividade teórica a necessidade de se
alcançar conceitualmente e operativamente os princípios
imanentes do campo investigado. Algo que sempre toca o
incontornável, o indescritível, o inominável.
Entretanto, no decorrer do processo histórico das
várias teorizações humanas, o sentido de macro unidade
e metarreferência da teoria fragmentaram-se nas diversas
áreas do conhecimento, produzindo o conhecido efeito da
disciplinarização e especialização moderna do conhecimento.
Perdeu-se de vista a Teoria como visão de totalidade que a
tudo reúne no mesmo TUDO-UM (Panta-Hén). Perdeu-se
a ideia de unidade do conhecimento que se encontrava
na origem do pensamento grego e da qual derivou a
atividade de teorização batizada de philosophia, considerada
a mãe de todas as ciências históricas ocidentais.
A racionalidade moderna desenvolveu-se na linha da
especialização e da consequente fragmentação. Esse fenômeno pode ser observado em qualquer das teorias que foram
sendo construídas a partir da iniciativa de pesquisadores e
cientistas e suas escolas de formação. No contrapasso da
fragmentação e da especialização insular das diversas áreas
do conhecimento, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade aparecem no século XX como projetos de superação dos fossos comunicativos desenvolvidos pelo efeito
da especialização instituída, também pela necessidade das
ciências de avançarem em seus processos de construção
dos conhecimentos.
Assim, quando se fala em musicologia e processos inter
e transdisciplinares há de se fazer as contas com as viradas epistemológicas do nosso tempo contemporâneo com
todas as consequências que daí derivam, sobretudo uma
acentuada mudança de visão de mundo e uma inevitável
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2.
Musicologia e processos inter e transdisciplinares
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___________
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reformulação dos pontos de vista tradicionais das teorias
produzidas.
Como a musicologia lida, por exemplo, com os processos inter e transdisciplinares do conhecimento humano
emergente? Não tenho como responder a essa pergunta
de forma linear e unilateral, mas posso destacar alguns
processos ligados à teoria da música que já incorporam
uma abordagem epistemológica inter e transdisciplinar
em seus discursos. O caso da musicoterapia é inegavelmente interdisciplinar, como também os casos dos teóricos
da música que lidam com matrizes filosóficas dialéticas e
críticas, fenomenológicas e hermenêuticas.
Entretanto, o que é que estamos entendendo por interdisciplinaridade e transdisciplinaridade? Como é que
tais operadores epistemológicos são hoje incorporados no
campo discursivo musicológico?
É preciso de imediato ter presente a diferença entre
a inter e a transdisciplinaridade. Para ser breve, e apenas
como início de conversa, entre a inter e a trans há uma
diferença de natureza e não apenas de grau, apesar de ambas
as palavras conterem a “disciplinaridade”.
Tomemos como referência a escala da disciplinaridade.
Antepondo os prefixos multi, pluri, inter e trans à palavra
temos sua escala completa: disciplinaridade, multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade
e transdisciplinaridade. A disciplinaridade é o elemento
definidor da escala, é a estrutura molar de suas possíveis
degradações ou gradações. Pressupõe um regime paradigmático fundado na unidade e na identidade, na relação
hierárquica entre as partes de um suposto todo. Sendo
algo semelhante ao núcleo duro da estrutura atômica, a
disciplinaridade impõe a ordem sobre o caos, a harmonia
sobre a desarmonia através de uma geometrização das
formas de comportamento corporal. É sempre um procedimento formalizado epistemologicamente. Toda disciplina
é uma pragmática formalizada racionalmente, por isso
pode se tornar o modelo para a plasmação de cópias. É o
que em geral acontece nos regimes disciplinares: a comunicação do conhecimento sedimentado não é dialógica
e sim monológica. Uma relação dicotômica e polarizada
entre o saber e o não-saber. Enfim, uma série de formatos
moduladores que se assemelham aos dispositivos usados
para montar e fazer funcionar um autômato e não um ser
humano autônomo dentro de suas condições concretas e
suas circunstâncias.
E é clara a eficácia da disciplinaridade na história da
formação humana. O disciplinar está na origem de toda
a evolução do conhecimento técnico hoje disponível e
dominante. Por sua própria força nuclear forte, a disciplinaridade se multiplica em sua eficácia modeladora.
Sua multiplicação é a variedade do mesmo. Por isso a
disciplinaridade é paradigmática: a ela corresponde um
único modelo para todos os casos da série. É quando o
disciplinar se faz multidisciplinar: são muitas as disciplinas de um currículo formativo, mas, sem exceção, todas
são igualmente disciplinas normativas. Em toda disciplina
prevalece a mesma modelagem paradigmática. Assim, o que
na disciplina Física se estuda como som não é o mesmo som
da disciplina Música, mas ambas disciplinam os chamados
conteúdos da aprendizagem. Quer dizer, ambas repetem
o paradigma monológico. Entre as muitas disciplinas de
um currículo qualquer não há necessariamente nenhuma
conexão entre elas. A expansão da modelagem disciplinar
produziu o efeito da multidisciplinaridade: cada área do
conhecimento com a sua especificidade, mas todas regidas
pela mesma axiologia fundante, pela mesma monológica,
mas cada uma com seu objeto específico.
O grau seguinte é a pluridisciplinaridade. Curiosamente, a etimologia do prefixo multi encontra conexão
de sentido em pluri (plur(i)-), elemento de composição,
antepositivo, do lat. plus, plúris, que significa “mais,
maior”, semanticamente conexo com miri(a/o)-, mult(i)-,
pleto- e poli-). Entretanto se tem usado o prefixo pluri
para indicar graus de interação entre as disciplinas que
podem variar de intensidade, mas indicam relações de
interesse recíproco entre áreas distintas do conhecimento.
No rol da produção disciplinar moderna, a perspectiva
pluridisciplinar representa uma mudança significativa de
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grau, introduzindo a relação de reciprocidade de sentidos
específicos pela aprendizagem das diferentes formas de
tratar um mesmo objeto de conhecimento. Por exemplo,
um professor de música dialogando com um professor de
física sobre as propriedades sonoras, sendo necessário
que cada um deles aprenda com o outro a compreender o mesmo objeto de maneira plural e não apenas
múltipla. Quer dizer, o professor de música aprendendo a
identificar a onda sonora como fenômeno físico e o físico
aprendendo a apreciar o som esteticamente, artisticamente.
Mais ou menos isso.
Chegando à interdisciplinaridade alcançamos o topo do
projeto disciplinar. A interdisciplinaridade necessariamente
pressupõe a interação discursiva entre áreas diferentes do
conhecimento, em que é possível ver a fusão metodológica
em alguns casos e o aparecimento de novas áreas disciplinares em outros (como a bioquímica, a biofísica, a
astrofísica, a neurociência, a etnomusicologia, a informática
etc.). Quer dizer, a inter possibilita a interação progressiva
entre diversas disciplinas através de operadores pragmáticos mais complexos, com maior grau de variabilidade,
mais flexível ao processo ininterrupto de transformação
do conhecimento e sua mudança paradigmática. A interdisciplinaridade amplia o círculo do trabalho colaborativo
em um universo/mundo cada vez mais complexo, na perspectiva humana intencionalmente cognitiva.
Em relação à transdisciplinaridade observamos um salto
de natureza: não é mais apenas um grau de complexidade
superior da escala disciplinar e sim uma efetiva mudança
paradigmática. Como assim?
A preposição latina trans quer dizer além de, para lá de,
depois de, o que significa atravessar, ultrapassar, transpor.
A transdisciplinaridade transpassa, ultrapassa, vai além
da disciplina. Mas não nega a disciplina e nem a subsume dialeticamente. Trata-se de um salto de natureza e
não apenas de grau porque muda o plano de referência e
consequentemente a modelagem paradigmática. Veja-se
a síntese diagramática a seguir como imagem visual da
escala da disciplinaridade.
47
Diagrama 1 — Escala da disciplinaridade e a transdisciplinaridade como salto de natureza.
Elaborado pelo autor
A perspectiva transdisciplinar repropõe uma nova Ciência da Natureza que se projeta como metaponto de
vista articulador de outra unidade de referência. Unidade
complexa que, entretanto, não mais se ilude com os sonhos
metafísicos de alcance absoluto e totalizador do Real em
suas atualidades e virtualidades. A partir desse ponto de
articulação, qualquer teoria da totalidade é uma perspectiva
sustentada por condições concretas e finitas, portanto, por
uma espécie de consciência da consciência e da inconsciência
e de um conhecimento do conhecimento e do desconhecimento. É a perspectiva humana fazendo as pazes com sua
concretude (finitude, limitação). A Ciência da Natureza
inclui agora a subjetividade humana como a mediação de
todo sentido e significado, de toda interpretação do que
quer que seja.
A partir da criação da palavra em 1970 por Jean Piaget,
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a transdisciplinaridade alcança a sua formulação paradigmática com Basarab Nicolescu (2002, 1999, 2006, 1995) na
última década do século XX, tendo como pano de fundo o
grande salto de natureza dado pela física quântica, provocando uma necessária ampliação do campo dos fenômenos
observáveis e passíveis de descrições condizentes e previsões estatísticas. A surpresa é que há fenômenos que não
podem ser compreendidos por meio de uma única lógica, o
que não nega a tendência por descrições certas e universais.
Os fenômenos mentais, por exemplo, se forem capturados
do ponto de vista de sua mera frequência de ocorrências
esconderão toda a gama de planos que constituem a concretude dos atos vividos subjetivamente. Os esquemas, as
escrituras, as descrições são simplesmente meios semióticos
dos processos de comunicação humana.
Inspirada na complexidade crescente dos fenômenos
observáveis, a epistemologia transdisciplinar formulada
por Nicolescu postula três grandes eixos metodológicos
em sua formulação paradigmática:
tecido da ciência contemporânea? Em outra oportunidade
esta questão pode ser objeto de uma elucidação ainda
necessária, mas a abrangência do tema tratado requisita
uma linha de desenvolvimento propositivo e não ainda de
todo justificado de modo mais profundo. Assim, remeto o
desenvolvimento da questão à investigação do paradigma
da complexidade emergente, sobretudo a partir das obras
de Edgar Morin (2007, 2005a, 2005b, 2005c, 2005d,
2002, 2000), Lupasco (1994) e Basarab Nicolescu, o que
permite compreender a grande diferença entre uma ciência monológica e uma ciência polilógica, transdisciplinar
e complexa.
1) Há na Natureza e no nosso conhecimento da Natureza, diferentes níveis de Realidade e, correspondentemente,
diferentes níveis de percepção.
2) A passagem de um nível de Realidade para outro é
assegurada pela lógica do terceiro incluído.” A intercomunicação entre os diferentes níveis de Realidade e de percepção se dá pela Lógica do Terceiro Incluído, formulada
por Stéphane Lupasco;
3) A estrutura da totalidade dos níveis de Realidade
ou percepção é uma estrutura complexa; cada nível é o
que é porque todos os níveis existem ao mesmo tempo.
(NICOLESCU, 2001, p. 66)
Assim, os diferentes níveis de Realidade e de percepção,
a lógica do terceiro incluído e a complexidade configuram
o paradigma da transdisciplinaridade.
Entretanto, o que toda essa pragmática metodológica
tem a ver com um efetivo salto de natureza em relação ao
paradigma da racionalidade monológica? Quais são, portanto,
as efetivas mudanças que a___________
transdisciplinaridade opera no
3. Identidades sonoras – Ecologias sonoras
Tratar o tema das “identidades sonoras” vai requisitar
a abordagem prévia da percepção como campo corporal/
mental das experiências possíveis. Tudo o que se sabe e o
que se tem memória é expressão da percepção corporal/
mental configurada na maioria humana pelos cinco sentidos comuns. O corpo percebe tatilmente, visualmente,
auditivamente, olfativamente, gustativamente. O corpo
humano é um perceptômetro complexo através do cérebro e
da mente. Um corpo sem cérebro nada percebe. Um corpo
morto nada mais sente. A percepção, assim, é o meio
sensível e inteligente de conexão do corpo vivente/mental
com o ambiente vital.
No ser humano a percepção tem o seu espectro próprio
diferenciando-se dos infindáveis entes naturais, mas mantendo relações de semelhança e funcionalidade com tudo o
que vive. Tudo o que é percebido é percebido por um corpo
próprio capaz de conhecer (reter a experiência, memorizar,
imaginar). No ser humano a percepção é a capacidade de
compreensão generalizada dos fenômenos, compreendendo
por fenômeno aquilo que aparece para quem percebe. Todo
fenômeno é a rigor um acontecimento perceptivo: não há
fenômeno sem percepção corporal/mental operada por
indivíduos concretos.
A palavra percepção deriva do latim perceptìo, ónis,
___________
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que significa compreensão, faculdade de perceber, tem sua
origem no verbo capìo, is, cépi, captum, capère, tomar, agarrar, pegar, apanhar, apossar-se, apoderar-se; sofrer, padecer;
ser impedido; ganhar, cativar, chamar a si, seduzir, enganar,
iludir; escolher, eleger; conter, encerrar, levar; admitir, comportar; conceber, entender; ganhar, alcançar; chegar a, obter
etc. (HOUAISS, 2001).
A riqueza das variações do verbo capère permite um
aprofundamento significativo da palavra/conceito percepção, pois indica em traços gerais a escala afetiva do
perceber humano. Assim, perceber é tanto uma atividade/
reatividade como uma passividade/submissão mostrandose em registros afetivos distintos, todos contidos nos
significados de percepção.
Os estratos indicados (agarrar, pegar, apanhar, apossarse, etc.) compreendem a percepção em seu espectro global,
servindo igualmente para indicar a atividade ou passividade
de um sentido específico, como a visão e a audição.
Ora, perceber pressupõe igualmente memória, retenção,
imaginação e antecipação. Pressupõe a temporalidade do ser
capaz de perceber. A memória retém o vivido, a imaginação
projeta o vivido no vivente, a antecipação assegura a continuidade do vivente. A memória é o que permite identificar
e distinguir os infindáveis acontecimentos singulares. Sem
memória nada pode ser identificado, separado, distinguido.
A memória é o registro das experiências vividas, mesmo
aquelas subliminares, inconscientes.
Toda identidade e identificação é um registro da memória: só o que pode ser memorado pode ser reconhecido
em sua mesmidade. Toda identidade é um conjunto
perceptual complexo e variado, mas depende de uma
permanência perceptiva. Há uma relação constitutiva
da percepção com os seus “objetos”. Toda percepção é
percepção de algo: um fenômeno – um aparecer e uma
aparência. Toda percepção é percepção de formas (eidos), é
percepção enformada modulada, sensível, afetiva, encarnada.
É percepção de formatos visuais, táteis, olfativos, gustativos,
auditivos. Pode-se traduzir “forma” por “ideia”, porque é
sempre um ideado perceptivo pressupondo toda a estrutura
da percepção subjacente a todo perceber. Eis indicado um
caminho para a fenomenologia dos afetos.
Como ser perceptivo, o humano aprende a reconhecer
e identificar as coisas nomeando-as. A nomeação é um
registro cognitivo fundamental para que o ser humano
alcance a identificação distinta dos acontecimentos externos e internos ao seu corpo próprio. Mas é claro que há
um perceber primal além das palavras, como ocorre com
toda experiência estética intensiva e criadora, ou com as
experiências místicas.
As identidades sonoras como perceptos memoriais fazem
parte do acervo existencial de todo ser humano vivente.
Assim como as outras identidades: visuais, táteis, olfativas, gustativas. Todos os seres humanos viventes possuem
memória auditiva em graus mais ou menos acentuados,
como possuem memórias visuais mais ou menos minuciosas etc.
Um exemplo. Qualquer um pode reconhecer os sons de
sua paisagem/ecologia sonora pela memória do vivido. Qualquer som novo que irrompa na paisagem sonora chamará
a atenção por sua estranheza: a memória não encontrará
nenhum registro semelhante. Pode- se dizer que um som
que não se reconhece não tem identidade sonora. Porque
a identidade é a repetição do vivido. É na repetição memorial que as identidades sonoras são reconhecidas. Para
quem não tem a experiência vivida de um determinado
som como reconhecê-lo no contínuo fluxo temporal do
corpo/mente?
Há, pois, conjuntos infindáveis de identidades sonoras
distintas e singulares, sobretudo porque uma identidade é
uma mesmidade, uma repetição, uma retroação, uma memória do vivido: auditiva, tátil, olfativa, gustativa, visual
– corporal/mental.
A audição, o ouvir tem a sua força no complexo perceptivo de todo Dasein (HEIDEGGER, 2009). O próprio
pensar é primordialmente um ouvir: ouvir o Lógos – segundo
Heráclito (COSTA, 2000) é uma homologia entre o ser e
o pensar, uma correspondência na escuta. Será o Lógos de
Heráclito também museal, ou melhor, musical?
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Musicologia e processos inter e transdisciplinares: identidades sonoras, música, educação e ética
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O som das palavras cantadas, a música das palavras
comuns, cotidianas: a poesia dos sons da língua falada.
Será música? Música cuja memória precipitou-se no esquecimento do aberto?
O espectro de possibilidades que se pode divisar
como “identidades sonoras” é assustador pela sua extensão
e intensidade. Porque a percepção é um complexo corporal/mental, a identificação dos diversos níveis perceptivos
sonoros requer uma educação apropriada. O fato de todos
possuírem um amplo acervo de identidades sonoras não
significa dizer que todos vão se tornar especialistas do som
e da música.
O tema das identidades sonoras tem uma fecundidade
enorme, mas no momento vou me manter em um desenho
sintético e propositivo. Mas todas as idiossincrasias aí se
justificam. Há tipos diferentes de percepção humana e
nem todos desejam ouvir o mundo, alguns se contentam
em vê-lo. Mas sempre quando se ouve se vê também. E
quando se vê, exceto para quem é surdo, também algo
se ouve. Há estilos diferentes de paisagens/ecologias
sonoras que formam as diversas subjetividades humanas,
sempre relacionadas coletivamente. Isso se pode estudar
na perspectiva étnica. A etnomusicologia tem motivos de
sobra para trabalhar com as Identidades Sonoras dos grupos
sociais estudados. Inclusive se pode descrever como o nosso
universo sonoro modificou-se de modo decisivo a partir
da Revolução Industrial, como assinala Schafer (2011a,
2011b). A própria noção de música sofreu também uma
revolução significativa a partir da erupção nas cidades dos
sons maquínicos e da composição musical se desprendendo
das formas clássicas tonais e modais. Um paralelo das revoluções ocorridas em todas as outras artes, com temporalidades
distintas e resultados fora da métrica racional e geométrica
ideal. O caos das cores e o caos sonoro se tornam matéria
prima para obras de arte construídas intencionalmente.
As identidades sonoras são infinitamente variadas como
construções societárias, dizem respeito a ambientes culturais específicos, a modos de vida com seus padrões estéticos
próprios, seus ritos e mitos, suas crenças e dispositivos
vitais de sua perpetuação. Mas toda “identidade sonora”
é igualmente uma diferença sonora.
Cada um participa, querendo ou não, de paisagens/
ecologias sonoras com suas identidades próprias. Cada
identidade é uma diferença, uma singularidade, algo igual
apenas a si mesmo enquanto forma formada: o abajur
diante de mim persiste na memória como o mesmo; o
logossom da Rede Globo se repete a cada intervalo: plim,
plim!! É sempre o mesmo som aprisionado à sua identidade
empresarial: o som que cumpre a função de um desligar e
religar, remetendo de volta ao fluxo de um acontecimento
que vive de sua audiência. O uso da automação perceptiva em sua estrutura sensível. O cérebro está acostumado
ao ambiente sonoro familiar e todo estímulo acústico/
sonoro terá uma resposta perceptiva imediata. Portanto,
pode-se programar o uso do som para fins variados, o que
só se pode compreender pela analítica densa da percepção
e suas relações simbióticas com as subjetividades sociais e
seu acervo imagético. Simbolicamente, um hino nacional
é uma identidade sonora deliberada vinculando o ouvinte/
cantante ao pathos forjado de um Estado moderno. E funciona em sua ação simbólica memorial e produz muitas
vezes a emoção intencionada como sentimento de pertença
à nação.
Mas também é preciso distinguir os sons naturais daqueles produzidos pelo ser humano. Há paisagens/ecologias
sonoras naturais e paisagens/ecologias sonoras produzidas
pela ação humana. Mesmo com todos os avanços tecnológicos, os sons produzidos pela natureza são marcantes na
configuração existencial dos seres humanos. As identidades sonoras são ecologias sonoras: são partes de um todo
sensível e inteligente que não para de reinventar-se na
deriva temporal longa. Os sons já nascem musicais e podem
se tornar música na nomeação humana de sua atividade
produtiva e fruitiva intencional.
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4. Música
Em relação à música estamos diante de um fenômeno
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complexo e multirreferencial, como, aliás, é tudo o que nos
conforma, sendo a sua corriqueira definição insuficiente
para cobrir a gama de suas possibilidades: A música é a obra
sonora feita pela intenção humana de expressar artisticamente
sentimentos estéticos. Todo som não produzido pelo ser humano intencionando a expressão artística não se poderia
chamar de música, então? E a dita música dos pássaros, a
música das esferas de Pitágoras, a música das montanhas e
aquela dos vales, e a música do mar e dos rios? É somente
por um uso transladado que se atribui a fenômenos naturais
um qualificativo artístico e intencional? Ou haveria também música extra-humana, música sem a intencionalidade
humana de fazer obras de arte?
Na cultura ocidental a Música aparece como uma atividade originariamente extraordinária. A relação amorosa
entre Mnemósine, a deusa da Memória, e Zeus, o supremo
deus do Olimpo, teria gerado o nascimento de nove Musas.
O termo música deriva daí e tem direta relação com o florescimento dos poetas-cantores ou aedos gregos: a tradição
museal da poesia cantada. Significa que todo poeta é devoto
das Musas, que foram criadas somente para dançar e cantar
em honra aos deuses do Olimpo e aos Bem-Aventurados
protetores da humanidade. As nove musas inicialmente
formavam um coro feminino mavioso, associado ao som
das várias fontes de água que escorriam pelo monte Olimpo
vale abaixo.
A música tem sua origem mítica como uma atividade
memorial em louvor dos Bem- Aventurados protetores das
criaturas viventes. A tabela 1 a seguir apresenta as nove
musas e seus atributos.
As nove musas
Musa
Significado do nome
Calíope
Καλλιόπη
“a de bela voz”
Bela voz – A de bela voz
A primeira entre as irmãs. Foi
amada por Apolo, com quem teve
dois filhos: Himeneu e Iálemo. E
também por Eagro, que desposou
e de quem teve Orfeu, o célebre
cantor da Trácia.
Arte ou
Ciência
Eloquência
Representação
(Atributo)
Tabuleta e buril
___________
Significado do nome
Arte ou
Ciência
Representação
(Atributo)
A Proclamadora - A que celebra
A que confere fama - Aos seus
atributos acrescentam-se ainda o
globo terrestre sobre o qual ela
descansa, e o tempo que se vê
ao seu lado, para mostrar que a
história alcança todos os lugares e
todas as épocas.
História
Pergaminho
parcialmente
aberto
Érato
Ερατώ
“amorosa”
Amável - Amorosa
A que desperta desejo
A musa do verso erótico.
Poesia Lírica
Pequena Lira
Euterpe
Ευτέρπη
“deleite”
A doadora de prazeres - Deleite A
que dá júbilo
A musa da poesia lírica tinha por
símbolo a flauta, sua invenção.
Por estes atributos, os gregos
quiseram exprimir o quanto as
letras encantam àqueles que as
cultivam.
Música
Flauta
Melpômene
Μελπομένη
“cantar”
A poetisa - A cantora - Cantar
A musa da tragédia; usava máscara trágica e folhas de videira.
Empunhava a maça de Hércules e
era oposto de Tália. O seu aspecto
é grave e sério, sempre está
ricamente vestida e calçada com
coturnos.
Tragédia
Uma máscara
trágica, uma
grinalda e uma
clava
Polímnia
Polyhymnia
Πολυμνία
“muitos hinos”
A de muitos hinos
A musa dos hinos sagrados e da
narração de histórias.
Música Cerimonial (sacra)
Figura velada
Tália
Thaleia
Θάλλεω
“florescer”
A que faz brotar flores - Florescer
A festiva
A musa da comédia que vestia
uma máscara cômica e portava
ramos de hera. Muitas de suas
estátuas têm um clarim ou portavoz, instrumentos que serviam
para sustentar a voz dos autores
na comédia antiga.
Comédia
Máscara cômica
e coroa de hera
ou um bastão
Terpsícore
Τερψιχόρη
“deleite da
dança”
A rodopiante
A que adora dançar - A musa da
dança. Também regia o canto
coral e portava a cítara ou lira.
Alguns autores fazem-na mãe das
Sereias.
Dança
Lira e plectro
Urânia
Ουρανία
“celestial”
A celestial
A musa da astronomia, tendo por
símbolos um globo celeste e um
compasso. Urânia era a entidade
a que os astrônomos/astrólogos
pediam inspiração.
Astronomia e
Astrologia
Globo celestial e
compasso
Musa
Clio
Kleio
Κλειώ
“a que celebra”
Tabela 1 - Apresentação das nove musas e seus atributos - composição do autor
a partir de http://pt.wikipedia.org/wiki/Musa
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Por qual motivo retomar essa estória mítica sobre a
origem das artes musicais (museais)? Pela necessidade de
retomar o sentido extraordinário da música como atividade
humana. Mas qual sentido extraordinário?
O extraordinário da estesia sonora como experiência
corporal/mental única e singular e a antecipação memorial
do gozo supremo dos sentidos pelo êxtase incorporado,
vivido. Uma memória corporal do gozo como som.
Foi em sentido paralelo que Nietzsche (1992) concebeu
os dois impulsos primordiais da Vida em todas as suas
variantes: o impulso dionisíaco e o princípio apolíneo: a
música e a plástica. A apolinização do princípio dionisíaco
teria gerado o predomínio da visualidade, da plasticidade
sobre as formas sonoras que mais imediatamente suscitam
a ligação com o fluxo vivente como conexão cerebral de
um ser humano concreto em uma despersonalização de
seus perceptos.
Há, assim, um mito muito fecundo que afirma que
a música é a mãe das artes e de todas as ciências produzidas pelos humanos. Como arte do supremo deleite
estético, a atividade musical incorporada teria criado as
condições para o surgimento de uma atitude investigativa
na tipologia da espécie humana, não tendo as emoções
mais nenhum vínculo com experiências de temor, tremor e
terror que submetem a psicologia dos sujeitos concretos aos
pavores patológicos da experiência ilusória dos sentidos.
A arte musical em sua origem mítica já nasce liberta de
toda escravatura psicológica que implica no medo de
sentir-se invadido pelo som das Musas. Desde sua origem
mítica a música não tem por finalidade servir a outro fim
além daquele do qual nasceram as Musas só para dançar e
cantar em louvor aos Bem-Aventurados.
Que linhas discursivas se podem tirar dessa imagem extraordinária da música e do fazer musical em plena época
em que nada mais importa além do lucro, do cálculo, da
previsibilidade, do controle total progressivo? Penso que se
pode também extrair daí a compreensão da grande complexidade da criação artística em todas as suas modalidades
de expressão.
Não se pode negar para a audição uma primazia sobre
os outros sentidos corporais humanos. Não se pode negar
que alguns seres humanos são músicos, outros dançarinos,
outros pintores, escritores e tantos outros modos de fazer.
Mas ser músico, dançarino ou escritor é inegavelmente
uma construção sócio-histórica e não uma naturalidade
geneticamente definida. Geneticamente a capacidade de
ouvir sons deve fazer parte do desenho ontológico da
espécie humana, mas a criação artística humana é também
um ato que acrescenta algo que não existia no acervo préexistente que nos definiu como espécie.
A Música é sim uma arte humana, mas uma arte que
aproxima os mortais do sentimento de pleno gozo que é
próprio dos deuses imortais. Mas é claro que ela também
é esforço e trabalho. É uma arte de gênios ou demônios
porque nela parece encobrir-se toda a claridade do gozo
divino. Só alguns possuídos ou divergentes podem romper
a inércia da inexpressão com seus vultos voluntariosos
e altivos, vultos de quem quer construir mundos feitos
de matérias e energias dançantes e cantantes, falantes e
desprendidos de todo vínculo calculador, controlador,
mensurador.
Hoje, com a parafernália tecnológica disponível, toda
memória mítica, toda metáfora poética, todo pensamento
divergente parece não fazer sentido algum. Houve o tão propalado “desencantamento do mundo” de marca Weberiana.
Como seria possível o resgate da Memória atemporal do
tempo forte instante? Como assim? E para que resgatar algo
que não existe em nenhum ponto passado e em nenhum
futuro finalista.
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5. Educação
Poderia a educação reencantar musicalmente a ecologia
humana? Que relações podem ser estabelecidas entre o
reencantamento do mundo e a arte musical em sua forma
liberta do utensílio e da utilidade maquínica? Será esta
aspiração uma desventura musical?
Penso a educação pela virada epistemológica da com-
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59
plexidade. Uma educação que começa pelos sentidos e
acaba nos sentidos. Uma recriação do educar como transdisciplinar: além e entre as disciplinas.
A educação dos sentidos é o primeiro plano do educar
transdisciplinar, predominando agora o verbo e não mais
o substantivo, mas sem aboli-lo, pois há também nos processos cognitivos relações substantivas que podem ser tanto
referente a acontecimentos presentes como às imaginações
abstrativas. O ser humano também vive de imagens em
movimento: o seu pensar é movimento sem trajetória e
sem localidade, mas sempre se localiza entre os entes do
seu ambiente vital e suas memórias vividas. A localidade
não é uma substância fixa, mas o resultado de interações
dinâmicas estabelecidas.
Mas, como educar os sentidos? Quais sentidos? Os
sentidos corporais/mentais? Em que sentido educar os sentidos? Não somos seres racionais, para quê sentidos? Como
educar os sentidos? Como se deve educar uma criança? Qual
é o método certo para fazê-la aprender a andar, a ouvir, a
falar, a escrever?
Os sentidos são educados com o uso deles. A educação dos sentidos não é uma formação aristocrática, sofisticada, elitista. É uma educação fundamental para todos.
O que aconteceria se as pessoas desenvolvessem formas
de expressão seguindo o fluxo de suas emoções e de sua
inteligência/sensibilidade? O que impede de fazer isso?
Educação é uma palavra carregada de historicidade
disciplinar. Mas a modelagem disciplinar não dá mais
conta do que é preciso potenciar na formação humana,
pois é irresponsável produzir crias humanas e não lhes dar
formação para o cuidado poliético, não lhes oferecer um
horizonte de existência que as torne libertas de toda infelicidade e crueldade. Quem será, entretanto, o curador do
curador? Como formar o educador de educadores? Como
transformar o espaço escolar em ambiente físico, social,
mental e cibernético de aprendizagem criadora?
O que é preciso fazer para transformar os processos
educativos disciplinares em processos inter e transdisciplinares?
A educação necessária requisita educadores criadores. A
educação dos sentidos apontada requer educadores transdisciplinares muito bem formados. Mas, bem formados em
quê? Qual é a propriedade pragmática de uma educação
transdisciplinar?
A propriedade pragmática da educação transdisciplinar
é o cuidado e acompanhamento diferenciado de cada ser
humano em formação, do início ao fim, no ciclo completo
de sua vida, seu nascimento, crescimento, florescimento e
encolhimento vital. Pois o que transdisciplina multiplica e
transvalora as metanarrativas homogeneizantes, produzindo
miríades e miríades de efeitos singulares e únicos de sersendo. Cada caso é um caso único. Mas cada caso único é
sempre o mesmo caso de todos os infindáveis casos únicos
existentes. Tudo parece se repetir em sua diferença recorrente. Mas cada repetição na diferença é o recomeçar
cíclico de tudo o que é vivo. No ser humano concreto,
seu projeto ontológico encontra-se sempre aberto ao
mundo sobredeterminado pelos que o antecederam, sendo
necessário um longo tempo de maturação de sua ruptura
com a sobredeterminação, sem perder de vista que todos
respondem a princípios sobredeterminados além da racionalidade humana, como parte de uma natureza complexa e
polilogicamente criadora. O traço de reconhecimento de um
educar transdisciplinar encontra-se na atitude aprendente
radical, tendo em vista o desejo de poder-ser-sendo,
poder-se-mais-vida: potência criadora.
Coloco uma questão: como o educador pode ter clareza de que a sua atitude é ou não é transdisciplinar ou
também ora é, ora não é, ora está ligado, ora desligado? O
que caracteriza a atitude transdisciplinar e a consequente
educação transdisciplinar?
O que caracteriza a atitude transdisciplinar é a disposição para aprender a ser-sendo um curador de si mesmo,
do mundo e dos outros, sem perder de vista que cada um
é sempre uma multidão de tantos outros e mais ainda os
tantos e tantos que ainda não são, mas podem vir a ser
nas evoluções temporais dos desejos viventes. A educação
transdisciplinar começa e encerra nos sentidos. É uma
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educação dos sentidos: aprender a ver, aprender a ouvir,
aprender a falar, a sentir, a pensar, a fazer, aprender a ser,
aprender a fazer, aprender a viver junto. Uma educação
polilógica: do sentir, do agir, do pensar, do viver conjuntamente, do fazer. Há também aqui uma apropriação do
documento “Educação. Um tesouro a descobrir. Relatório
para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação
para o século XXI”, organizado por Jaques Delors (2004).
Outra inspiração apropriada é a concepção de Humberto
Maturana da emoção e da linguagem na educação e na política (2002), o que desenha uma educação humana fundada
na coesão do amor. Há também contribuições importantes que concebem a educação transdisciplinar a partir do
movimento de autoconhecimento inspirado no pensador
Jiddu Krishnamurti, como se pode encontrar na obra
de Noemi Salgado Soares (2007), que tive o privilégio de
prefaciar.
O fato de existir uma teoria do ethos não a torna uma
explicação do comportamento ético e sim o lugar teórico
de reconhecimento do agir humano a partir de seu acervo
afetivo e sua afetividade vivente conectada ao mundo e
aos outros. A ética, assim, não é um receituário moral
do comportamento padrão esperado para os seres humanos
e nem muito menos uma teoria vazia. E não é vazia porque
meditar sobre o comportamento desejante e volitivo é parte
do modo de ser que se projeta em ações autopoéticas,
repetindo-se como organismo vivente. Assim, a teoria não
antecede à ação ética, que é sempre primeira, mas a sucede
como dobra reflexiva: uma meditação do vivido.
Dessa forma, a Ética é a dimensão pensante da ação
desejante e volitiva e não a formulação racional do correto
modo de agir segundo preceitos morais. Isso significa que
o ato ético é rigorosamente aquele que realiza o sentido
da vida: a plenitude vivente? Como assim?
Bem, prestando atenção aos nossos atos éticos cotidianos, aqueles voluntários e aqueles involuntários, os
que se tornam pensados, pausados, pesados, examinados e
aqueles que são mecânicos e automatizados, como nosso
ciclo digestivo permanente e nossa respiração.
O que quero enfatizar é que cada ser humano é ético
antes de ter consciência disso e de formular teorias sobre
o ser ou não ser ético. A ética é o modo concreto e vivo
como cada um existe, independentemente de suas crenças e
grau de evolução afetiva e cognitiva. E o ser ético é o que
realiza o seu desejo de ser pela vontade de poder-ser. E
cada um tem o seu modo único de habitar e de transcorrer
seus dias. Cada um é ético quando realiza o seu desejo de
ser na vontade de poder-ser.
A Ética pressupõe a abertura ontológica para a liberdade de ser e partilhar, uma liberdade sempre condicional ao conjunto de sistemas de sistemas, organismos de
organismos que conformam a existência fática dos seres
vivos e do ser humano em sua diferença ontológica. Com
o seu modo de percepção raciocinante, que pode alcançar a
consciente da consciência e da inconsciência, o ser humano
tem a potência de ser criador na sua finitude vivente,
6. Ética
Como mora o ser humano? Como namora? O que faz
ao longo dos seus dias viventes? O que faz ele quando canta, quando dorme, quando anda? O que descobre? O que
desperta? O que inventa? O que faz ele quando compõe
música? O que faz ele quando pinta? Qual é o sentido da
vida?
O âmbito da ética é o da ação humana em seus afetos e afecções, em seus hábitos e modos de habitar, seus
costumes. A palavra Ética significa a Filosofia do ethos, a
investigação acerca da estrutura do comportamento afetivo,
desejante, volitivo, inteligente e poético. O que dá sentido
à existência humana? Por que existe primeiro o sofrimento
e não a felicidade? O que é ser ético?
A Ética como teoria do ethos articula o campo do
acontecimento do ser humano em sua existência fática,
procurando investigar sua fenomenologia ecológica: sua
ética ambiental, social, mental e cibernética – seu ambiente vital, seu corpo social e suas subjetivações e produções
simbólicas maquínicas.
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partilhando do ato eterno que deixa ser o vivente musicalmente enamorado fugar para a “infinita” vida no desejo
do que vive. A Ética, assim, é a prática viva da inteligência encarnada e sensível do ser que aprende a tornarse acontecimento apropriador em sua existência fática,
caminhando para o acontecimento do sempre mais-vida
que acresce de potência a própria natureza dada. A Ética
é ato criador de conjuntura, de inter-relação e de partilha
incondicional do cuidado poliético — uma expressão que
indica para o conceito de teoriação polilógica. Uma das
inspirações da poliética vem de Felix Guattari (1990), que
concebeu uma triecologia, que corresponde às três éticas
necessárias ao pleno desenvolvimento humano para o cuidado sustentável. Acrescentei uma quarta ecologia/ética
que denominei de cibernética, necessariamente entrelaçada
ao plano da ecologia/ética mental. Considero a ecologia/
ética cibernética como o grande desafio da humanidade
presente- futura, porque a máquina já não é mais um
acessório externo aos indivíduos sociais e sim o modo de
ser que funde ser humano e máquina em um só desenho
ontológico, cujos efeitos são desconhecidos e imprevisíveis.
A Ética reclama a atenção e o cuidado por todos os afetos,
sentimentos, ações e pensamentos, porque tudo o que
existe, só existe para o ser que se encontra afetado no
âmbito do mundo da vida.
redes de comunidades epistêmicas. Estas redes são construtoras de modos de ser como existência fática em que se
não há uma língua universal que sintetize tudo de todos
os povos e culturas, há o acontecimento musical que ao
seu modo é a língua universal que reúne a humanidade em
torno da celebração e da criação artística. Em assembleia,
reunidos tocam, cantam e dançam em louvor aos passados,
aos presentes e aos futuros criadores de ecologias sonoras
inusitadas, nunca antes escutadas.
O diagrama síntese a seguir quer brincar com as possibilidades de apresentação espacial do que só acontece como
fenômeno temporal, como a música. Mas o próprio tempo
da música já carrega o seu espaço próprio e sua ecologia
sonora correspondente, pois sem o espaço nenhum som
pode se propagar e ressoar nos corpos que afeta e atravessa
em ondas sonoras. Uma imagem-pensamento para apresentar o acontecimento da reunião de vozes distintas. Vozes
que quando reunidas geram a mais bela polifonia e o
mais intrigante polilogismo universal: a comunhão das
heterogêneses ontológicas dispersas, a partir da comumresponsabilidade diante do mundo da vida em sua unidade
material-vital-mental-cibernético incontornável. A música
é, em sua universalidade irredutível, a matriz intensiva
capaz de reunir os antagonismos poliecológicos e poliéticos
porque alcança a todos diretamente sem a mediação prévia
de signos da comunicação corriqueira das línguas faladas
e escritas. É por potência um campo transdisciplinar por
excelência. A música, afinal, não cabe em disciplinas e em
partições curriculares de nenhuma espécie.
7. Tudo reunido: Polifonia resoluta
Em toda palavra há sempre o silêncio como espera e
continuidade. Tudo reunido significa ouvir tudo com o
foco na totalidade sonora: uma polifonia que pulsa em
suas evoluções entre silêncios e palavras, ausências e presenças. Uma celebração afetiva, encarnada: resolutamente
aberta ao inesperado e feliz encontro com o des-velamento
de si, do outro, do mundo. Desvelamento poliético: ambiental, social, mental e cibernético. Uma projeção para
campos de potência que libertam o ser humano da
fragmentação epistemológica moderna. E isto pela via da
aprendizagem do conhecimento colaborativo conectado às
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Musicologia e processos inter e transdisciplinares: identidades sonoras, música, educação e ética
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MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. O Método 1 – A
natureza da natureza. 2 ed. Porto Alegre: Sulinas, 2005a.
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. O Método 2 – A
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MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. O Método 4 –
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MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. O Método 6 – Ética.
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Diagrama 1 - Tudo reunido - polifonia resoluta
Elaborado pelo autor
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A Religação dos
Saberes. O desafio do século XXI. 6 a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
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de Aprender. A pedagogia do autoconhecimento para o desenvolvimento humano. 2ª Ed. ___________
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Musicologia e processos inter e transdisciplinares: identidades sonoras, música, educação e ética
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
Didática: com a palavra, os professores da
educação básica.
Liliane Campos Machado 1
Ilma Passos Alencastro Veiga 2
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Para nos situarmos... 3.
O caminho percorrido 4. A Didática nas narrativas dos
professores da educação básica 5. Considerações provisórias 6. Referências
1. Introdução
Enfatizamos a tendência de valorizar a relação ensinoaprendizagem na formação do professor para a educação
básica, no sentido de construir conceitos que tenham
relevância sociopolítica e histórica para a escolarização e
possibilitem a participação colaborativa dos docentes em
exercício nesse nível de ensino para apreensão e a construção dos conhecimentos didáticos.
Esse texto se situa nessa perspectiva, pois trazemos para
reflexão a análise das narrativas dos professores atuantes na
educação básica. Sendo assim, esses educadores falaram da
importância da didática em sua atuação docente, a partir
de sua realidade social e das experiências individuais e
coletivas.
A partir de suas práticas pedagógicas, Machado (20142015) insere elementos à configuração da Didática, ao
dar a esta visibilidade e incentivar as práticas de registro
das narrativas das produções dos professores por alunos
da licenciatura da Universidade de Brasília ao longo do
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Universidade de Brasília (UnB)
Universidade de Brasilia (UnB) / UNICEUB
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processo de ensinar, aprender, pesquisar e avaliar, na disciplina de Didática Fundamental, como desdobramentos
de análises mais amplas acerca do campo dessa instrução
na formação docente.
Este trabalho tem como objetivo geral: analisar os conhecimentos didáticos anunciados por professores da escola
básica, bem como discutir a contribuição da didática no
que se refere às convergências e divergências encontradas
em suas práticas docentes.
O texto está estruturado em três categorias que emergiram da análise das narrativas. São elas: concepção e
fundamentos da didática sob a perspectiva das narrativas,
o papel da didática na formação do professor e aspectos
convergentes e divergências em relação à fundamentação
da didática.
constitutivos e substantivos do ensino como objeto da
Didática, tais como: finalidades e objetivos, conteúdos,
metodologias e técnicas de ensino, recursos didáticos e
tecnológicos, avaliação e relação pedagógica.
Entendemos ser necessária uma conceituação/fundamentação a respeito de didática e, para isso, recorremos
aos pesquisadores da área. Para Libâneo (1990), ela é uma
área da Pedagogia e uma das matérias fundamentais na formação dos professores. O autor a denomina como “teoria
do ensino” por investigar os fundamentos, as condições e
as formas de realização do ensino. Ele evidencia que cabe
à didática converter objetivos sociopolíticos e pedagógicos
em objetivos de ensino; selecionar conteúdos e métodos
em função desses objetivos; e estabelecer os vínculos entre
ensino e aprendizagem, tendo em vista o desenvolvimento
das capacidades mentais dos alunos [...] trata-se da teoria
geral do ensino. Libâneo compreende que a apropriação
do conhecimento está intimamente articulada à forma de
constituição de saberes e à relação do aluno com o objeto
do conhecimento.
Martins e Romanowski (2008) contribuem apresentando um conceito de didática que vai além de compreender
o processo de ensino em suas múltiplas determinações.
Elas afirmam que é preciso intervir nele e reorientá-lo na
direção política pretendida; ela vai expressar a ação prática dos professores, sendo uma forma de abrir caminhos
possíveis para novas ações. A proposta de Martins (1989)
é a sistematização coletiva do conhecimento que permite
ao professor assumir o importante papel de mediador entre
o saber sistematizado, a própria prática social e a de seus
alunos, a quais são valorizadas e as dificuldades decorrentes
delas também. Assim sendo, a sistematização coletiva do
conhecimento, segundo a autora, permite:
2. Para nos situamos...
A Didática, como disciplina curricular do campo da
Pedagogia, é obrigatória nos cursos de licenciatura com
o intuito de desenvolver o conhecimento didático, bem
como um campo de pesquisa e produção de conhecimento
do domínio dos professores das diversas licenciaturas. O
conhecimento didático escolar-acadêmico produzido no
espaço tempo das instituições formadoras e da educação
básica é visto como capaz de colaborar com o processo formativo do licenciando agregando as representações sociais
desenvolvidas pela vivência de professores e estudantes na
relação universidade e escola de educação básica.
Em decorrência, é preciso planejar o ensino da Didática
com a delimitação de objetivos de ensino para todos os
cursos de licenciatura, organizados por eixos epistemológicos
temáticos. O primeiro eixo aborda educação e sociedade
e as relações entre Pedagogia e Didática; o segundo, os
movimentos evolutivos da história da Didática no bojo
das tendências pedagógicas; o terceiro está voltado para
a Didática e suas relações nos diferentes níveis de planejamento: projeto político-pedagógico, plano de ensino e
plano de aula; e o quarto eixo diz respeito aos elementos
[...] aos alunos que passem da condição de receptores
passivos de informações sistematizadas, absolutistas e
transmitidas numa relação vertical (de cima para baixo)
para a condição de sujeitos que vivenciam um trabalho
coletivo, um processo para obter a sistematização. Assim, eles passam a dominar o processo e o resultado.
(MARTINS,1989, p.104)
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Trata-se de uma didática sistematizada que parte do
pressuposto de que a reconstrução do conhecimento da
área não vai ocorrer por meio de teorias, mas emerge das
contradições estabelecidas nos contextos social e histórico,
de forma que expresse a prática dos professores que estão
desenvolvendo o processo.
Para Pimenta e Anastasiou (2002), a didática consiste
em saber ensinar, ou seja, mediar o conteúdo para que
ele possa ser somado e entendido pelo aluno. As autoras
explicitam que o ensino enquanto padrão social é um
fenômeno complexo. É uma situação em movimento e
diversa conforme os sujeitos, os lugares e os contextos
onde ocorre. As autoras apontam novas demandas para a
didática: as práticas interdisciplinares e multiculturais, a
epistemologia da prática e as novas formas de organização
escolar, entre outras.
Veiga (1993), por sua vez, diz que a Didática busca
superar o intelectualismo formal do enfoque tradicional;
evitar os efeitos do espontaneísmo escolanovista; combater
a orientação desmobilizadora do tecnicismo; e recuperar as
tarefas especialmente pedagógicas, desprestigiadas a partir
do discurso reprodutivista. Ela procura, ainda, compreender e analisar a realidade social onde está inserida a escola.
A formação didática dos professores se alinha, então, aos
desafios históricos e sociais, assim como a própria educação brasileira. A didática é locus privilegiado de discussão
do ensinar, aprender, pesquisar e avaliar. Essa disciplina
contribui para a operacionalização de outros campos do
conhecimento e está relacionada ao saber fazer pedagógico,
com as práticas e o estágio supervisionado.
a definição das categorias analíticas, conforme explicitado
na introdução.
Turato (2005) evidencia que as pesquisas que utilizam
a perspectiva qualitativa devem trabalhar com valores,
crenças, representações, hábitos, atitudes e opiniões. Elas
não têm qualquer utilidade na mensuração de fenômenos
em grandes grupos e são basicamente úteis para quem
busca entender o contexto onde algum fenômeno ocorre.
Escolhemos a narrativa como um procedimento de coleta
de dados, por ela ser um caminho inovador para chegar
ao objetivo proposto, dando a palavra ao professor da
educação básica.
Apropriando da concepção de Benjamin (1985: 205), “a
narrativa [...] é ela própria, num certo sentido, uma forma
artesanal de comunicação. Ela mergulha a coisa na vida
do narrador para em seguida retirá-la dele”. Isso significa
que a narrativa, em vez de ser uma lembrança acabada de
uma experiência, se reconstrói à medida em que é relatada.
Narrar algo consiste na “faculdade de intercambiar experiências”, configurando-se naquilo que Eco (1993) chama
de obra aberta.
Frente ao exposto, partimos, portanto, para a análise
das narrativas de professores da educação básica, atividade
de pesquisa solicitada aos licenciandos de diferentes cursos,
matriculados na disciplina de Didática Fundamental da
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Isso
ocorreu a partir do critério, qualitativo e representativo,
qual seja: narrativas nas quais encontramos fundamentação/conhecimento mais elaborada/o a respeito da didática.
Tínhamos disponíveis 45 (quarenta e cinco) trabalhos com
os relatos e, destes, foram selecionados vinte que serviram
de base para a elaboração do presente texto. Algumas dessas
pesquisas tinham o registro de histórias de dois ou mais
professores, então, analisamos as narrativas de 40 docentes
contidas nos vinte trabalhos escolhidos, a partir do critério
da clareza da narrativa e da coerência das respostas ao que
foi solicitado. Para a análise e o registro das narrativas, utilizamos nomes fictícios para os educadores, com o intuito
de manter o anonimato dos colaboradores.
3. O caminho percorrido
Com o objetivo de analisar as narrativas dos professores da educação básica, destacamos o perfil identitário
dos interlocutores, composto pelos seguintes itens: nomes
fictícios; gênero; etapa de ensino; experiência profissional
e dependência administrativa da escola em que atuam.
Em seguida, realizamos a leitura integral das narrativas e
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Com relação ao perfil profissional dos interlocutores,
evidenciamos que a maioria é do gênero feminino, o que
nos permite inferir que existe entre os pesquisados uma
tendência de feminização do Magistério, uma vez que
predomina na análise narrativas de mulheres. Acerca disso,
lembramos Fontana:
em um processo de consolidação de um repertório pedagógico,
criando, assim, um sentimento de competência e pertença a um
corpo profissional. Na fase de diversificação ou questionamentos,
que compreende dos sete aos vinte e cinco anos, temos, dentre os
interlocutores, dezessete e eles estão no estágio de experimentação,
motivação, busca de novos desafios e/ou no momento de questionamentos e reflexão acerca da carreira. A fase de serenidade e
distanciamento afetivo e/ou conservadorismo e lamentações pode
levar ao conformismo ou ao ativismo, ela vai dos 25 aos 35 anos:
temos um professor entre os entrevistados. Por fim, existe a fase de
desinvestimento, recuo e interiorização (35 a 40 anos), que pode
ser sereno ou amargo: não tivemos nenhum entrevistado nessa fase.
Segundo o autor (1992), essas etapas não se constituem formas estáticas mas, sim, um processo dinâmico e bem peculiar ao percurso
pessoal de cada professor. Das quarenta narrativas, trinta e sete são
de professores que atuam na educação básica na segunda fase do
ensino fundamental e no ensino médio.
[...] As diferenças de gênero fazem diferença no processo
de construção de nossa subjetividade (os sujeitos são
sexuados) e na constituição do nosso ser e fazer profissional. Elas imprimem especificidades e nuances a esses
processos, do mesmo modo que a escola, sendo hoje um
local de trabalho feminino, mediatiza os modos como nós,
mulheres, e os homens, nossos parceiros vivenciamos a
condição feminina e a difundimos. [...] Em seu conjunto,
os estudos que elegerem o gênero como categoria de análise
nas pesquisas sobre a atividade docente, ainda que tenham
enveredado por caminhos distintos, evidenciaram que a
história vem produzindo e sendo produzida por homens
e mulheres e que essa distinção não é apenas natural e
biológica, mas também histórica e cultural. (FONTANA,
2003, p. 35).
No que se refere à experiência profissional, os quarenta
professores estão assim distribuídos: cinco não informaram
o tempo de serviço; doze têm até três anos de experiência;
seis estão entre quatro e seis anos de trabalho; dezessete
têm entre sete e vinte e cinco anos de experiência; e um
docente tem entre vinte e cinco e trinta e cinco anos de
trabalho.
Huberman (1992, p. 39) traça uma descrição de tendências a
respeito do desenvolvimento da carreira docente, que nos permite
identificar como se caracteriza “o ciclo de vida dos professores”.
Em seus estudos, o autor encontrou sequências-tipo no desenvolvimento da carreira do professor e as classificou em etapas básicas,
de acordo com os anos de carreira, lembrando que estas não devem
ser tomadas como fases lineares, mas concebidas por meio de uma
relação dialética. A primeira fase é a de início na carreira (um a
três anos de docência): encontramos entre os pesquisadores doze
professores nessa fase, vivenciando a descoberta, a exploração e a
sobrevivência do começo da carreira. A segunda é a de sobrevivência,
estabilização, e ela compreende o período de quatro a seis anos de
trabalho: foram entrevistados seis professores nessa fase, e eles estão
4. A Didática nas narrativas dos professores da educação básica
___________
Nesse item consideramos importante trazer a categoria
“concepção e fundamentos da didática destacados das narrativas”. Para evidenciar a perspectiva instrumentalista em
cada narrativa, destacamos alguns termos em itálico. Mara
esclarece que a didática é uma disciplina que ensina como
adotar métodos e técnicas que serão úteis à aprendizagem do
aluno uma disciplina que ensina a adoção de métodos.
Para o Joel, trata-se de um caminho escolhido para ensinar todo o conhecimento ao aluno. Isso nos faz rememorar
o propósito de Comenius (1966) de ensinar tudo a todos a
partir da Didática Magna. Bela corrobora essa ideia, pois
concebe a didática como um manual de como se portar em
sala de aula.
A professora Sônia evidencia, em sua concepção de didática, a compreensão do processo ensino/aprendizagem, o
ato de planejar/direcionar melhor a aula a partir de modelos,
métodos e técnicas.
Nas narrativas de Rose ___________
e Paulo, observamos que a didá-
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tica é a forma de mediação do trabalho do professor. Paulo
ainda enfatiza ser uma disciplina em que a teoria considera
a experiência ou a experimentação.
Clovis contribui com a sua narrativa afirmando que a
didática é um mecanismo utilizado para se dar aulas interessantes. De forma objetiva, Felícia define-a como o modo
de dar aula.
O professor Geraldo a compreende como um instrumento
utilizado a favor do processo de ensino-aprendizagem.
Para os interlocutores João, Adão, Carla, Cleide e Rita,
a didática pode ser conceituada como ensinar; técnica usada
para atingir os objetivos; facilitador da aprendizagem; técnica de ensinar e orientar a aprendizagem; e serve de auxílio
para o professor.
Inferimos que as concepções explicitadas nas narrativas estão correlacionadas com os princípios/objetivos da
didática instrumental compreendida como um conjunto
de procedimentos que o professor utiliza para promover
o ensino eficiente. Isso tem como centralidade fórmulas
mágicas e receitas fragmentadas acerca dos conhecimentos
didáticos, negando as dimensões humanas, políticas do
processo didático nos atos de ensinar, aprender, pesquisar
e avaliar. Nesse sentido a centralidade recai na dimensão
exclusivamente técnica.
Percebe-se que essas narrativas discutem a possibilidade
convergente de tornar as salas de aula espaços dinâmicos de
sistematização de conhecimentos. Não são oponentes entre
si, nem conflitantes, pois visam a objetivos convergentes
ao da didática instrumental.
A didática instrumental possui um significado puramente
técnico e desatualizado, pois ela estuda os princípios, as
normas e as técnicas que regulam qualquer tipo de ensino,
para qualquer tipo de aluno. Para Candau (2000), essa é
uma visão ultrapassada, pois uma ação geral para qualquer
aluno não é cabível para as classes heterogêneas com as quais
nossas escolas trabalham. Embora considerada como arcaica,
essa concepção está viva nos dias atuais nas narrativas de
alguns dos professores, conforme se pôde constatar. Corroborando com Candau (2000), torna-se urgente a revisão
da concepção de didática, em algumas práticas docentes,
os quais precisam considerar aspectos diversos demandados
pela sociedade educacional atual e pelas questões/problemas que emergem do contexto da escola e da sala de aula
vinculados ao processo de ensino.
Nesse sentido, as perspectivas ligadas à dimensão meramente técnica são articuladas a um projeto globalizante
para formar professores tecnólogos do ensino. Ao se formar o tecnólogo, o docente reproduz conhecimentos, na
formação e nas relações sociais, na direção do que afirma
Tardif (et al, 2001, p. 38): “sua ação situa-se no plano dos
meios e estratégias de ensino; procura o desempenho e a
eficácia na consecução dos objetivos escolares”.
Nesse sentido, os processos de ensinar e aprender são
orientados por preocupações de padronização, uniformidade,
controle burocrático; e essa forma de trabalhar a didática
fortalece a distância entre os conhecimentos teóricos e
os práticos e contribui para que a disciplina seja tratada
apenas no campo imaginário. A formação didática desenvolvida no curso de licenciatura nessa concepção tem como
consequência o exercício técnico profissional da docência,
com ênfase no “saber fazer” e isso confere ao trabalho e ao
professor caráter de atividade artesanal, como afirma Veiga
(2002) e foi percebido nas narrativas apresentadas.
Desse modo, o professor não é concebido como um
profissional que problematiza, questiona, compreende e
sistematiza conhecimentos, porque sua prática pedagógica
se limita ao espaço da sala, da aula e não se articula com
o que propõem as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Formação de Professores da Educação Básica (2015).
Essas orientações fortalecem a ideia da pluralidade de
conhecimentos teóricos e práticos, fundamentando-se em
princípios de interdisciplinaridade, contextualização e
relevância social.
No tocante à segunda categoria, qual seja, o papel da
didática na formação do professor, encontramos nas narrativas ponderações significativas a respeito da importância e
da necessidade da didática, sempre associadas ao processo
formativo.
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Na narrativa do professor Lucas, está evidente que a
didática é uma disciplina imprescindível, pois o que ele
estudou (bibliografia) em didática em seu processo formativo coincide com a realidade atual (seu contexto como
professor).
A professora Luzia reforça que a didática utilizada por
ela e por colegas de trabalho é o reflexo do que foi estudado
na universidade; assim sendo, ela entende que a didática
se faz essencial, tornando-se um elemento facilitador para
o professor. Ela também defende a atualização constante
do docente.
Ângelo, outro interlocutor, entende que a didática prepara o professor para o exercício em sala de aula. Para ele,
a didática foi fundamental para que ele definisse as suas
estratégias pedagógicas e compreendesse os fundamentos da
sua profissão, além das razões de se estar em uma sala de
aula.
Recorremos, também, a ponderações feitas pelo professor Roque e delas abstraímos que a didática, para esse
professor, é a possibilidade de diálogo com o aluno, com
autoridade, mas sem autoritarismos ou imposições.
Quando nos aproximamos das narrativas dos professores, todos concordam, em maior ou menor grau, com
as implicações positivas da Didática em suas formações.
Por outro lado, se refletirmos acerca dessas implicações na
prática docente, fica evidente, ainda que de forma fragmentada, que é necessário se repensar a articulação entre
as concepções da didática e as ações desta realizadas no
cotidiano institucional, o que significaria redirecionar os
estudos para a construção de um “saber didático mais denso
e orgânico”, tal como afirma Oliveira (1997) no contexto
do processo formativo na universidade.
As narrativas apresentadas mostram algumas nuances
de como a disciplina de Didática Fundamental nos cursos
de licenciatura pode e deve ser possibilitada ao futuro
professor na compreensão de seu papel como agente social,
protagonista e interlocutor das práticas pedagógicas bem
como seus estudantes, posteriores docentes na escola de
educação básica. Isso é explicado por Sacristán (1999, p.
77
90), ao afirmar categoricamente:
[...] os motivos e as necessidade dos sujeitos não ocorrem no vazio, mas dentro de uma sociedade e em um
momento determinado de sua histórica, o componente
dinâmico da ação dos sujeitos em suas coincidências e
em suas divergências vincula-se com o aspecto simétrico
no plano cultural, sendo possível falar das relações entre
projetos individuais e projetos compartilhados socialmente
(grifo do autor).
___________
No tocante à terceira categoria, “aspectos convergentes
e divergentes em relação à fundamentação da didática”,
contamos com a contribuição de cinco professores interlocutores, como se pode constatar a seguir.
O professor Davi não apresentou uma resposta coerente,
demostrou desânimo com o ensino e, por consequência, com
a didática. Não mostrando desânimo, o professor Flávio
afirma que a didática é um elemento-chave para o trabalho
do professor, sobretudo porque isso é cobrado nos requisitos da profissão.
A professora Meire aponta uma divergência significativa em sua narrativa, quando afirma que, em seu curso de
graduação, mesmo sendo de licenciatura, pouco se dedicou
a discussões em torno da didática. Segundo ela, quando
começou a lecionar, não tinha nenhum preparo ou conhecimento para assumir uma turma. Frente a essa situação,
ela recorreu à irmã que já era professora com muitos anos
de experiência.
Em uma situação com alguma semelhança à narrada pela
Meire, o professor Jorge reconhece que cursou a disciplina
de didática no primeiro semestre apenas por ela ser obrigatória. Mesmo nessa condição, quando começou a atuar como
docente, percebeu/reconheceu a importância da disciplina
para sua formação. Em síntese, só reconheceu a necessidade
e a importância da disciplina no contexto prático da sala
de aula. O Professor Wesley, em sua fala, entente que a
didática é uma disciplina chata e monótona.
O fazer didático é um processo, um movimento, uma
trajetória. É uma elaboração que se dá de forma individual
e coletiva e ocorre nos cursos de formação ou dentro do
espaço escolar, onde contracenam
alunos e professores nas
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condições históricas em que ambos estão inseridos. Dessa
forma, os professores são autores e produtores de uma
trajetória individual e coletiva e não meros espectadores e
consumidores de estoques de técnicas de última geração.
Assim, deveriam ser sempre sujeitos criativos, reflexivos e
políticos.
Considerando os propósitos da formação de professores,
técnicos, humanos ou sociopolíticos, precisamos repensar a
instrução oferecida na disciplina de didática com o objetivo
de superar divergências/equívocos como os mencionados nas
narrativas dessa pesquisa. Precisamos aproximar/construir
uma perspectiva de didática fundamental, de modo que
se fortaleçam o diálogo e o trabalho coletivo, se assuma a
multidimensionalidade do processo didático e se articule
as dimensões técnicas, humanas e políticas. Enfatizamos,
ainda, a necessidade de relação de unicidade entre teoria e
prática, forma e conteúdo, professor e estudante, finalidades e objetivos, entre outras carências, partindo da análise
da prática pedagógica concreta e de seus determinantes
sociais (CANDEAU, 2000). Dessa forma, reiteramos que
a Didática Fundamental é imprescindível na formação do
professor, uma vez que tem um corpo de conhecimento
próprio que não é importado de outros campos científicos, embora deva manter uma relação interdisciplinar.
De acordo com Candau (2008), a disciplina não deve ser
“invadida” por diferentes campos do conhecimento perca
sua especificidade.
• os interlocutores evidenciam uma prática docente
descontextualizada e acrítica e expressam a incompreensão
de alguns professores interlocutores em relação ao papel e
à importância da didática em sua prática profissional, isso
em função de uma formação didática mecanicista;
• a disciplina de Didática não é reconfigurada e
redimensionada com ênfase na investigação e na relação teoria
e prática, bem como não é significativa para o professor, pois
dá destaque ao desenvolvimento da perspectiva fragmentada
que precisa ser superada. Ela fortalece a racionalidade técnica
e não considera a dialogicidade e a interatividade; e
• as narrativas evidenciam também a importância
e a imprescindibilidade da Didática, mesmo tendo os
professores sido formados em uma perspectiva instrumental
e mecanicista.
Considerações provisórias
A análise das narrativas possibilitou perceber a prevalência do tratamento da didática na concepção teórico-instrumental. A partir dessas reflexões, sistematizamos algumas
ideias, provenientes da leitura analítico-interpretativa das
narrativas enunciadas a seguir:
• o estudo didático constitui-se um movimento privilegiado de experiências para o estudante de licenciatura
que supera a mera obrigação curricular e assume papel de
destaque no processo de formação
inicial;
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É preciso envidar esforços para restituir à Didática o seu
papel de mediadora entre conhecimentos técnico-científicos
e pedagógicos para possibilitar a relação teoria-prática,
inerente ao trabalho docente e explicitar com maior clareza os elementos teórico-didáticos que subjazem à prática
pedagógica desenvolvida em sala de aula.
Por fim, foi pretensão nossa contribuir para a compreensão da Didática na formação do professor para a educação
básica e do estudante de licenciatura, procurando ampliar
e aprofundar as discussões acerca da temática proposta.
Diante das reflexões apresentadas, reiteramos que a
área de Didática, no uso de sua autonomia, institua uma
proposta coletiva, coerente com base nos elementos constitutivos da elaboração do conhecimento didático de forma
a manter uma unicidade de discurso e de prática, o que
consequentemente levará à práxis formativa.
Sugerimos para tanto a necessidade de fortalecer um
diálogo mais didático- pedagógico entre as licenciaturas
no contexto universitário. Outro aspecto a ser destacado
diz respeito à unicidade dos planos de ensino para, que a
equipe de professores possa de fato atuar de forma coletiva,
desde o ponto de partida até o ponto de chegada.
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Referências
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ed.Petropólis:Vozes, 2008
CANDAU, Vera Maria F. (org.). Rumo a uma nova didática. 8ª ed.
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O Silêncio das Vozes nos Currículos:
Uma Reflexão sobre o Formal e o Real, na
Práxis Pedagógica.
Silvana Ferreira da Silva 1
Eduardo Chagas Oliveira 2
COMÉNIO, João Amós. Didáctica Magna. Tratado da arte universal
de ensinar tudo a todos. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1966. p. 5-41.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. O currículo 3. Currículos:
Tipologias e Atualidade 4. Teorias Curriculares 5. Considerações Conclusivas 6. Referências
FONTANA, R. A. C. Como nos tornamos professoras? 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica. 2003.
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para além do confronto. São Paulo: Loyola, 1989.
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M. E. D. A.; OLIVEIRA, M. R. N. S. (Org.). Alternativas no ensino
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superior. São Paulo: Cortez, 2002.
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ensino ou agente social. In: VEIGA, I.P.A.; AMARAL, A. L. (orgs).
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TARDIF, M.; LESSARD, C; GAUTHIER, C; Formação de professores
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VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Didática: uma retrospectiva histórica. In Veiga, I.P. A. Repensando a Didática. 8ª ed. Campinas (SP):
Papirus, 1993.
1. Introdução
Ao nascer, em virtude da adesão a um determinado
perfil familiar, o indivíduo se encontra previamente condicionado à distinções que são determinadas pelos capitais
social, cultural e econômico da sociedade em que vive. Não
obstante, essas diferenças sociais tendem a ser reproduzidas
pela escola, em seu microssistema, uma vez que o indivíduo passa a integrar um conjunto complexo de relações
e interações com outras pessoas, constituindo um sistema
inacabado do qual ninguém escapa: a educação. Aprendemos e ensinamos em múltiplos espaços – em casa, na rua,
na igreja ou na escola – pois se trata de uma condição
imanente do ser humano. Afinal, parafraseando Charlot
(2011), precisamos refletir acerca do fato que o homem
é o único que tem a capacidade – enquanto condição de
possibilidade – de aprender; logo, caso se negue a fazê-lo,
1
Silvana Ferreira da Silva é professora da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB).
2
Eduardo Chagas Oliveira é Professor Titular da Universidade Estadual de
Feira de Santana (UEFS), Docente-pesquisador do Doutorado Multidisciplinar e Multi-Institucional em Difusão do Conhecimento (DMMDC) e
do Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências
(UFBA/UEFS).
___________
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Didática: com a palavra, os professores da educação básica
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
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83
precisa rever sua condição humana.
A educação, enquanto um processo que se concretiza
em sociedade, é um elemento constitutivo da experiência
humana. A escolarização, por sua vez, é um dos recortes do
processo educativo destinado à Escola que, enquanto espaço
social emancipatório (libertador) ou opressor (castrador),
também pode ser um vetor à mudança (transformação) ou
à reprodução e manutenção social.
Atrelado à Escola, enquanto elemento constitutivo do
ambiente social, o currículo representa uma projeção política e ideológica vivida pelos atores do processo educativo,
porque as histórias de vida dos estudantes e professores
integram o substrato cultural do cenário escolar e social.
Outrossim, o currículo evidencia territórios de identidade
do trabalho pedagógico vivido nas escolas. Trata-se de
uma construção social, na acepção de estar inteiramente
vinculado a um momento histórico, a uma determinada
sociedade e às relações estabelecidas entre o conhecimento
e os sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, conforme determinado contexto sócio-político. Nesse
sentido, a educação e o currículo estão interligados no
percurso cultural e ideológico da construção de identidades
locais e nacionais. Assim, ao pensarmos no homem como
um ser histórico, também idealizamos um currículo que
atenderá a diferentes interesses, num determinado espaço
e tempo históricos.
Cumpre destacar, no entanto, que não se deve confundir currículo e matriz curricular, pois conceitualmente existe uma sutil
distinção entre eles. O primeiro é o conjunto de ações pedagógicas, políticas e ideológicas vividas dentro do contexto Escola e o
segundo é a relação de disciplinas e conteúdos que serão ensinados
na Escola e que plasma uma concepção de currículo. As discussões
sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, debates
sobre os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos,
as relações sociais, os valores e as identidades dos professores. Há
várias formas de composição das disciplinas na matriz curricular,
mas nenhuma delas deve ser uma lista de conteúdos retirada dos
livros didáticos ou manuais de Ensino, sem o crivo reflexivo do
professor acerca da realidade social dos estudantes e sua maturidade cognitiva. Do contrário, o ensino se transformaria numa mera
transmissão de saberes escolares, conforme um entendimento
meramente enciclopédico de conhecimento.
O currículo é instituído na relação social e pedagógica, por
meio das interlocuções intelectuais e socioafetivas vividas por todos
os atores sociais da Escola. De acordo com Tomaz Tadeu da Silva
(1995, p.194),
2. O Currículo
O Currículo é social e culturalmente definido, sendo desprovido de qualquer assepsia conceitual ou ideológica. Por sua vez,
expressa uma concepção de mundo, de sociedade e de educação,
motivo pelo qual implica relações de poder e se constitui enquanto
centro da ação educativa. O seu entendimento reflete o fazer pedagógico e político dos docentes, ao realizar as atividades educativas
intencionalmente planejadas e desenvolvidas pela equipe escolar
da Instituição. Trata-se de um instrumento político vinculado à
estrutura social, à cultura e ao poder. Enquanto a cultura é o conteúdo da educação - sua essência e defesa - o currículo é a opção
político-ideológica realizada dentro
dessa cultura.
___________
quando pensamos no currículo como uma coisa, como uma
listagem de conteúdos, por exemplo, ele acaba sendo, fundamentalmente, aquilo que fazemos com essa coisa, pois, mesmo uma
lista de conteúdos não teria propriamente existência e sentido,
se não se fizesse nada com ela. Nesse sentido, o currículo não
se restringe apenas a ideias e abstrações, mas a experiências e
práticas concretas, construídas por sujeitos concretos, imersos
em relações de poder. O currículo pode ser considerado uma
atividade produtiva e possui um aspecto político que pode ser
visto em dois sentidos: em suas ações (aquilo que fazemos) e em
seus efeitos (o que ele nos faz).
O processo de ensino e de aprendizagem pode ser espelho e lâmpada do currículo. É espelho quando, a partir
e através dele, se configura a experiência educacional, na
soma das programações formais – os planos de estudo;
dos planos de trabalho dos professores, e da ação, ou seja,
como este ocorre na prática educativa. É lâmpada quando
possibilita que a ação pedagógica seja fruto da reflexão-ação
dos sujeitos envolvidos no currículo, possibilitando sua
reconstrução didático-pedagógica com o amálgama das ex___________
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O Silêncio das Vozes nos Currículos: uma Reflexão sobre o Formal e o Real, na Práxis Pedagógica
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84
periências desses atores, vivenciadas no chão da Escola.
De modo análogo, Moreira e Silva (2001, p. 28) entendem que “o currículo é um terreno de produção e de
política cultural, no qual os materiais existentes funcionam
como matéria-prima de criação e recriação e, sobretudo, de
contestação e transgressão”. O currículo escolar tem ação
direta ou indireta na formação e desenvolvimento pessoal
e acadêmico do estudante. Assim, é possível perceber que a
ideologia, cultura e poder - nele configurados - são determinantes para o processo educativo, especialmente quando
refletidos nos procedimentos didáticos e administrativos
que orientam a prática curricular da Escola.
É premente compreender que o professor é um curriculista, à medida que efetiva em sala de aula o ideário
subjacente e explícito na proposta curricular adotada
pela instituição de ensino. Sua efetivação acontece num
processo dialético, intrínseco a cada Escola, onde estão
imersos fatores técnicos, epistemológicos e intelectuais,
além de determinantes sociais como o poder, interesses,
conflitos simbólicos e culturais, enquanto propósitos de
dominação influenciados por intervenientes ligados à classe
social, etnia e gênero. Como todo trabalho pedagógico se
fundamenta em pressupostos de natureza filosófica, a escola e o professor desvelam suas respectivas cosmovisões,
assumindo posturas mais tradicionais ou emancipadoras na
implantação e implementação do currículo.
Responsável por viabilizar o processo de ensino e de
aprendizagem, o currículo se constitui como o elemento
central do projeto pedagógico, entendimento ratificado
por Sacristán (1999, p. 61) ao sustentar que
85
indissociavelmente ligada à sua visão de mundo.
3. Currículos: Tipologias e Atualidade.
___________
O Currículo Formal - prescrito ou oficial - refere-se ao
currículo estabelecido pelos sistemas de ensino; expresso
em diretrizes curriculares, objetivos e conteúdos das áreas
do conhecimento ou disciplinas. Este prescreve institucionalmente os conteúdos e disciplinas e a concepção de
Escola e de currículo da equipe gestora e está plasmado
no Projeto Político Pedagógico (PPP) das Escolas. Não
obstante, o Currículo Real - ou vivido - implica naquele
que se efetiva dentro da sala de aula, com professores e
alunos, em decorrência ou não do que está prescrito no
projeto pedagógico e nos planos de ensino construídos
pelos docentes. O Currículo Oculto, por sua vez, consiste
no termo utilizado para denominar as ações - conscientes
ou não - que ocorrem no interior da sala de aula e interferem de forma - implícita ou explícita - na aprendizagem
dos alunos. O currículo oculto representa tudo o que os
alunos aprendem diariamente em meio às várias práticas,
atitudes, comportamentos, gestos e percepções, que vigoram
no meio social e escolar. Nele se manifestam as relações de
poder da escola e dos professores sobre os alunos e entre
os mesmos, as ideologias e as ações discriminatórias. Para
Sacristan (2000, p. 91) “o currículo oculto é a escola e o
ambiente que se cria sob suas condições”. Esta é uma separação que se faz teoricamente, uma vez que, na prática,
o currículo é o produto de todas essas tipologias como
processo; é aquilo que se efetiva na práxis pedagógica.
Por estar imbricado em relações de poder e ser expressão
do equilíbrio de interesses e forças que atuam no sistema
educativo - consoante um dado momento histórico - com
forma e conteúdo determinados por um meio cultural,
social, político e econômico, o currículo não é um elemento neutro de transmissão do conhecimento social. Sendo
assim, ele se diferencia segundo as ações de quem o pensa
e o experiencia. Essa ação dialética - vivida no contexto
educativo - é delineada pelos interesses dos sujeitos que
o configuram, planejam, adotam
e avaliam, bem como os
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o currículo é a ligação entre a cultura e a sociedade
exterior à escola e à educação; entre o conhecimento e
cultura herdados e a aprendizagem dos alunos; entre a
teoria (ideias, suposições e aspirações) e a prática possível,
dadas determinadas condições.
A partir das décadas de 1960 e 1970, teóricos da
educação passaram a defender a existência dos currículos
formal, real e oculto na prática educativa. Essa tipologia
curricular, em tese, reflete a concepção política do professor,
86
87
que o efetivam e os que o controlam. Esses atores sociais
experienciam um currículo segundo seus critérios pessoais
e ideológicos. Nesse sentido,
O currículo oculto é o mais difícil de ser revelado,
porque se relaciona às atitudes e valores transmitidos subliminarmente nas relações sociais e educativas, vividas
no cotidiano da escola. Atribui-se ao currículo oculto os
rituais e práticas, as relações de poder, regras de conduta
e procedimentos, hierarquias, a linguagem dos professores
e dos livros didáticos.
Em muitas escolas, as propostas curriculares são construídas de forma top down, ou seja, sempre verticalizadas,
sem participação da comunidade escolar. A cada ano letivo
novas propostas surgem e, por vezes, burocratizam mais o
processo de ensino. Por esse motivo, não se pode perder
de vista que
o conhecimento e o currículo corporificam relações
sociais. Isso significa não apenas ressaltar seu caráter de
produção, de criação, mas, sobretudo, seu caráter social.
Eles são produzidos e criados através de relações sociais
particulares entre grupos sociais interessados. Como tal,
eles trazem a marca dessas relações e desses interesses.
(SILVA, 2002, p.65).
O currículo é orientado não somente pelas ações de
quem o está configurando, mas também pelos determinantes
dessas ações: questões culturais e relações de poder, assim
como fatores históricos que envolvem a educação. Nesse
universo se incluem a atualização ou reprodução das metodologias de ensino, o uso de novas tecnologias, as políticas
educacionais, a escola e o regimento escolar, a infraestrutura
dos espaços escolares, os métodos de avaliação, a formação
dos professores, as condições de trabalho, o contexto social
em que se inserem e a própria finalidade do trabalho educativo. Por conseguinte, “a educação e o currículo, como
instituições, não podem ser desligadas de suas conexões
com relações de classe, de gênero, de raça e com relações
globais entre nações” (SILVA, op. cit., p.65).
Atualmente, ainda é possível verificar na prática educativa de muitas escolas um currículo que se resume na
seleção dos conteúdos e na sua transmissão aos estudantes.
Infelizmente, mesmo com o avanço tecnológico e metodológico, o currículo escolar ainda não é concebido “como
as experiências escolares que se desdobram, em torno do
conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem
para a construção das identidades de nossos estudantes”
(MOREIRA; CANDAU, 2007, p.18). Em algumas instituições escolares não identificamos a existência de um
tipo de currículo, mas múltiplos currículos que precisam
ser desvelados pelos atores sociais. O currículo não pode
ser construído a partir de ideologias homogeneizadoras,
produzidas por um grupo dominante, mas deve respeitar
as idiossincrasias e o capital cultural dos estudantes e de
suas famílias.
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O currículo é, em outras palavras, o coração da escola,
o espaço central em que todos atuamos o que nos torna,
nos diferentes níveis do processo educacional, responsáveis
por sua elaboração. O papel do educador no processo
curricular é, assim, fundamental. Ele é um dos grandes
artífices, queira ou não, da construção dos currículos
construídos que sistematizam nas escolas e nas salas de
aula (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 19).
Se não houver o protagonismo docente na escola, o
professor será apenas um reprodutor de um currículo
descontextualizado, que contribui para a proliferação de
desigualdades sociais e escolares, sustentada pela visão
iluminista e etnocêntrica. Inicialmente, as principais questões das chamadas teorias do currículo perpassavam pelo
tipo de conhecimento que deveria ser ensinado ou que o
aluno deveria saber, o qual era escolhido a partir da sua
importância ou validade, passando a compor o currículo
desejado. Atualmente, as teorias curriculares diferenciam-se
pela importância que atribuem a conceitos como aprendizagem, inclusão, conhecimento, dimensão humana, ética
e estética, etnia, diversidade cultural ou sociedade, dentre
outros.
4. Teorias Curriculares
Entre as teorias do currículo temos a teoria tradicional
- considerada neutra, científica e objetiva – e as teorias
___________
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88
89
críticas e pós‐críticas, que se fundam na premissa de que
não há neutralidade na ação educativa e que estão abarcadas pelas relações de poder e nas interconexões entre saber,
identidade e poder.
A teoria tradicional foi marcada pela ideia de neutralidade, tendo como principais focos (I) identificar os objetivos
da educação escolarizada, (II) formar o trabalhador especializado ou (III) promover uma educação propedêutica.
Preconizava que o currículo era uma questão de organização
dos conteúdos, realizada de forma mecânica e burocrática.
A tarefa dos professores especialistas consistia em fazer um
levantamento dos objetivos educacionais, para que estes
fossem cumpridos ao final de cada unidade de ensino.
Depois, planejar e elaborar instrumentos de medição para
verificar com precisão se esses objetivos foram alcançados.
Essas ideias influenciaram de forma determinante, por
quase quatrocentos e trinta anos, o currículo escolar e a
educação no Brasil.
Essa teoria curricular foi matizada pelos princípios do
Taylorismo (a escola vista como fábrica), que visava a padronização do processo pedagógico, enquanto os estudantes
eram considerados produtos de fábrica. A escola transmitia
conhecimentos acumulados ao longo da história, como
verdade(s) absoluta(s). Os saberes eram compartilhados
de forma ordenada, numa sequência lógica e a avaliação
era um meio de aferir se os alunos conseguiram memorizar esses conteúdos. O professor era o centro do processo
educativo e deveria ser respeitado com regras e disciplina
rígidas. Assim, o estudante era considerado um ser submisso
e adstrito à reprodução das ideias alheias: do professor ou
do autor do livro didático.
Todavia as teorias curriculares críticas surgiram, em
meados dos anos 1960, com os movimentos sociais e culturais que questionavam as desigualdades no sistema de
ensino. A visão crítica do currículo confronta com o saber
capitalista, concebido como um código indecifrável - para
o qual, só a elite burguesa tinha acesso. A ruptura da visão
tradicional do currículo constrói uma conexão políticoeducacional entre docentes e discentes, na qual - através
de um código cultural - podem examinar de forma crítica
os conteúdos escolares e sua relação com o cotidiano do
discente, funcionando como instrumento de emancipação
e libertação.
Por meio do currículo escolar os estudantes vivenciam
práticas democráticas. No processo educacional, eles participam e discutem questões educativas envoltas por práticas
sociais, políticas e econômicas. Seguindo esse entendimento,
apresentam-se aptos a ter atitudes de emancipação e libertação. Os professores, por sua vez, possuem responsabilidade
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Na concepção crítica, não existe uma cultura da sociedade, unitária, homogênea e universalmente aceita e
praticada e, por isso, digna de ser transmitida às futuras
gerações através do currículo. Em vez disso, a cultura é
vista menos como uma coisa e mais como um campo e
terreno de luta. Nessa visão, a cultura é o terreno em
que se enfrentam diferentes e conflitantes concepções de
vida social, é aquilo pelo qual se luta e não aquilo que
recebemos. (MOREIRA; SILVA, 2001, p. 27).
A ênfase conceitual das teorias críticas estava no significado
subjetivo dado às experiências pedagógicas e curriculares
de cada discente. Isso significava observar as experiências
cotidianas que estudantes e docentes experienciavam seus
próprios significados sobre o conhecimento, por meio de
processos de negociação. Nelas, o professor propõe uma
interação entre o conteúdo e a realidade concreta, sendo
o mediador da construção do saber do aluno.
Acreditava-se que a teoria tradicional, ao se pautar em
critérios de eficiência e racionalidade burocrática, deixava de levar em consideração o caráter histórico, ético e
político das ações humanas e sociais e do conhecimento,
contribuindo, assim, para a reprodução das desigualdades
e das injustiças sociais. Todavia, não se pode olvidar que o
currículo deve ser dispositivo pedagógico de emancipação
e libertação porque
É através de um processo pedagógico que permita às
pessoas se tornarem conscientes do papel de controle e
poder exercido pelas instituições e pelas estruturas sociais
que elas podem se tornar emancipadas ou libertadas de
seu poder e controle. (SILVA, 2007, p.54).
___________
90
91
no processo educativo, permitindo e instigando o estudante
a participar e questionar, propondo-lhe questões políticas
e sociais para reflexão dos conteúdos.
Quando, no século XXI, surgem as teorias curriculares
pós-críticas as bases curriculares são direcionadas para um
contexto no qual se vincula conhecimento, identidade e
poder com temas como gênero, raça, etnia, sexualidade,
subjetividade, multiculturalismo, entre outros. Essa concepção de currículo tem uma linguagem de significados,
imagens e falas, que revelam histórias esquecidas, vozes
silenciadas e códigos distintos.
Quanto às perspectivas críticas e pós‐críticas, o currículo se tornaria mais complexo na medida em que essas
perspectivas passaram a concebê‐lo como um campo ético e
moral. Essas, em contraste, argumentam que nenhuma teoria
é neutra, científica ou desinteressada, porque implica(m)
relações de saber, identidade e poder.
Contrariamente às teorias críticas, as teorias pós‐críticas
do currículo não acreditam que exista um núcleo de subjetividade a ser libertado da alienação causada pelo capitalismo.
Para essas teorias, poder e conhecimento não se opõem,
mas são mutuamente dependentes. Ambas partilham uma
mesma preocupação com questões de poder, sendo que a
concepção nas teorias pós‐críticas é menos estruturalista.
São as conexões entre significação, identidade e poder
que passam, então, a ser enfatizadas. Para as teorias pós‐
críticas, o currículo está irremediavelmente envolvido nos
processos de formação pelos quais os docentes vivenciam
os seus percursos formativos. O currículo, nessa concepção,
é uma questão de identidade e poder.
Todas as finalidades - de socialização, de formação, de
segregação ou de integração social, dentre outras - que se
atribuem e são destinadas à instituição escolar acabam, necessariamente, tendo um reflexo nos saberes que orientam e
norteiam o currículo. Assim, para determinar os conteúdos
e os códigos pedagógicos dos currículos, é fundamental
verificar o papel social, político e ideológico - do professor
e da escola - no processo pedagógico.
Um entendimento sobre as teorias do currículo se faz
necessário para se compreender a história e os interesses
que envolvem a construção da proposta curricular, a fim
de que percebamos com olhar mais crítico dos atores - na
promoção, perpetuação ou transformação das desigualdades
sociais - para que a Escola não seja um lugar que favoreça
os favorecidos e desfavoreça os desfavorecidos e reproduza os
valores e interesses unilaterais.
Considerações Conclusivas
Pudemos refletir que o currículo é delineado pela
força política e pedagógica dos atores sociais da Escola,
especialmente quando este se constitui como território que
visibiliza diferentes identidades. Inúmeros são os estudos
e discussões que envolvem o currículo nos tempos atuais
- considerados por muitos teóricos, especialmente aqueles
das Ciências Sociais - como um estágio de verdadeira
“violência simbólica neoliberal”, que se traduze nos efeitos
letais, refletidos no processo de “globalização excludente”,
no aumento das desigualdades sociais, no silenciamento
das vozes e pela desconsideração da história dos atores na
construção do currículo escolar.
Deparamo-nos com um contexto marcado por grandes
problemas sociais, por uma história de fracasso e evasão
escolar, com práticas escolares descontextualizadas e fragmentadas, afastadas das práticas sociais dos estudantes,
reproduzindo velhas “pautas pedagógicas”. Os próprios
professores reconhecem que a escola tem um currículo
desconectado da vida dos alunos [...] o que acontece é que,
muitas vezes, quando esse aluno chega na escola, ele não
consegue relacionar seu mundo ao da escola [..] é como
se tivesse dando um grito ao vento”.
O desespero de alguns profissionais da educação, juntamente com a incansável jornada de muitos professores e,
em algumas situações, a própria negação do conhecimento
escolar para o aluno - que, para Young (2007), deve ser
“conhecimento poderoso”-, considerando-o como incapaz,
contribuem de forma incisiva na configuração do currículo
na escola.
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Diante do exposto, somos compelidos a corroborar com
Sacristán (1998, p. 136-137), ao questionar qual “[...]país se
arriscaria a pôr em seu currículo oficial aquilo que realmente
se faz nas escolas? [...] . Vale ressaltar que a escola deve
ter um compromisso com a construção e implementação
de um currículo a serviço da emancipação dos estudantes.
As nossas reflexões e considerações tramitam nessa direção, seja no que se refere à proposta curricular - com base
fundante na teoria pós crítica - seja quanto à função dos
profissionais, do papel da escola etc. Assim, falar sobre a
educação e procurar modos de intervir na ação educativa,
implica considerar dimensões da justiça social (SANTOMÉ,
1997). Com isso, aponta-se para a necessidade da inclusão
de propostas que também sejam favoráveis aos alunos das
camadas populares, contemplando uma escola pública de
qualidade; indica-se um currículo mais humano, que valorize
seus atores sociais, sejam eles os estudantes, professores,
gestores e colaboradores ou mesmo as famílias
Afinal, para tornar qualquer caminho possível é necessário uma escola e um currículo, que se pautem em
paradigmas voltados para o ideal de justiça social, que
considere as culturas e não apenas uma ou duas delas, mas
grupos sociais diversos. Daí poderá emergir uma proposta
curricular aberta ao diálogo multirreferencial e poliparadigmático. Fundamental se faz, também, que os educadores
trabalhem no sentido de reverter essa tendência curricular
tradicional, historicamente presente nas escolas, sugerindo
a construção de um projeto pedagógico que expresse e dê
sentido à diversidade cultural.
Enfim, é indispensável que a escola amplie os seus horizontes e se torne capaz de acolher – em sentido amplo
– a comunidade escolar, permitindo uma reflexão sobre a
realidade educativa. Essas ações convergem em prol de uma
(re-)avaliação curricular, uma vez que esta pode ser utilizada
como um instrumento de reflexão do projeto político pedagógico (PPP) e do processo de ensino e aprendizagem.
Contudo, para que isto de fato aconteça, existe um
longo caminho a ser percorrido por professores e escola(s).
Como força motriz, se mostra imperativo que os educadores
utilizem a avaliação como instrumento reflexivo, para tornar
o processo de ensino e de aprendizagem mais inclusivo e
capaz de atender à diversidade e à pluralidade, presentes
na sociedade atual.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 35 ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 27 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
GADOTTI, Moacir. Educação e poder: introdução à pedagogia do
conflito. 9 ed. São Paulo: Cortez, 1989.
GADOTTI, Moacir. Currículo e Diversidade Cultural. In.: SILVA,
Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antônio Flávio (Org.). Territórios
Contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.).
Currículo, Cultura e Sociedade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
MOREIRA, Antônio Flávio; CANDAU, Vera Maria (Org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2007.
SACRISTAN, J. Gimeno. Poderes instáveis em educação. Tradução
de Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artmed, 1999.
SACRISTAN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática.
3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.
SANTOMÉ, J. T. Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula. Rio de Janeiro: Revista Brasileira
de Educação. n.4, jan./fev./mar./abr., 1997.
SILVA, T. T. da. Descolonizar o Currículo: estratégias para uma
pedagogia crítica. Dois ou três comentários sobre o texto de Michael
Apple. In: COSTA, M. V. (Org.). Escola básica na virada do século:
cultura, política e currículo. 3. ed. São Paulo: Cortez,2002.
SILVA, T. T. da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias
do currículo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
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Construções, leituras e perspectivas de
realidades: uma teoria de sistemas
Wilson Nascimento Santos 1
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Verdade e Realidade 3. Filosofia e o Filosofar 4. Sistema, Ideologia e Conhecimento
5. Articulações e Considerações Finais 6. Referências
A fugacidade das realidades e o sonho da
razão vigilante.
(Wilson Santos)
1. Introdução
Um grande anseio do ser humano: conhecer e dominar a
realidade. Nos diferentes discursos: místicos, míticos, filosóficos, teológicos, científicos modernos, e outros, a pretensão de
se alcançar esse objetivo. A própria construção da tipologia do
conhecimento moderno mostra isso. Uma impressão de que paira
no ar e contamina, como um vírus, a ideia de realidade: uma
pandemia do real 2. A afirmativa sobre o que é real, concreto,
parece indubitável; absoluta. Existe uma realidade plena, universal, ou os seres humanos constroem realidades? No percurso
deste texto, propõe-se considerar esses pontos por meio de uma
teoria de sistemas.
Para tanto, inicialmente, pretende-se uma aproximação sobre
questões conceituais que envolvem os termos verdade e realidade, no intuito de, por meio de noções sobre universalidade
e relatividade, para o primeiro, e objetividade e subjetividade,
para o segundo, tensionar esses termos. Logo após, uma reflexão
sobre Filosofia e o filosofar, assunto tão extenso e controverso
que precisa, minimamente, de um olhar que permita avançar no
1
Graduado em Filosofia, Doutor em Educação, Professor da Faculdade de
Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA). E-mail: wilsons@ufba.br
2
Expressão alegórica, apenas para enfatizar
a ideia de realidade absoluta.
___________
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96
97
processo de construção conceitual de uma teoria de sistemas.
Em seguida, uma interligação entre as noções de sistema,
ideologia e conhecimento, através do reconhecimento de possibilidades sistêmicas básicas, com destaque para dois olhares
acerca da ideologia, nas perspectivas do coletivo 3 e do sujeito 4,
e um questionamento sobre o que é conhecimento, passando
pela tipologia do conhecimento moderno e desdobramentos
contemporâneos, além de uma proposta de construção conceitual
sobre esse ponto. O conjunto resulta em um olhar ampliado
sobre sistema.
Por fim, a apresentação da configuração resultante do percurso
filosófico percorrido e das articulações de noções conceituais
trabalhadas nos tópicos. Um olhar sobre sistemas que possa
contemplar construções, leituras e perspectivas de realidades;
ou seja, uma teoria de sistemas, enquanto síntese do ensaio, que
possa cooperar na trajetória existencial de cada sujeito.
várias provocações decorrentes da expressão supramencionada,
as questões acima são tomadas como associadas às ideias gerais
de conhecimento, domínio e controle de tudo.
Definir verdade e realidade enquanto termos precisos que
podem ser tratados de tal ponto que a humanidade tenha o
domínio de si, do outro e do mundo, é um pressuposto ousado
perseguido por diversas teorias sobre a questão do conhecimento. Longe de apresentar uma única solução, as diferentes
teorias carregam consigo soluções que atendem, a depender da
força dos ajustes internos argumentativos e seus fundamentos,
determinados grupos de pessoas. A capacidade de expansão e
impacto de cada teoria está diretamente associada à aceitação
dos fundamentos observados em cada discurso.
Para tanto, em geral, o termo verdade apresenta duas vertentes básicas: 1. Universalidade, ou seja, a verdade admitida
como universal, que não depende de oscilações decorrentes da
subjetividade humana, da temporalidade ou da espacialidade.
2. Relatividade, ou seja, a verdade admitida como relativa, que
depende da subjetividade humana, do contexto, da utilidade e
dos costumes humanos. A primeira vertente marcou a construção da Filosofia chamada Clássica, principalmente da metafísica
filosófica, na consideração de ideias ou categorias absolutas
apreendidas pela razão para explicação da realidade. Também
caracterizou o início do discurso científico moderno 8, no pressuposto de absolutos físicos passíveis de descoberta pela razão
moderna. A segunda vertente caracterizou o tensionamento da
metafísica filosófica clássica pela leitura dos contextos e dos
limites humanos associados a concepções de realidades locais,
promovendo ainda uma reconstrução constante dessas realidades
e dos conhecimentos de cada sociedade. Essas vertentes, todavia,
não resolvem o problema acerca da verdade, no sentido mais
amplo, pois sustentam teorias diversas tanto metafísicas quanto
físicas, ou contextuais, admitidas soluções a partir da aceitação
de uma dessas teorias, em detrimento das demais, o que afeta,
simultaneamente, a definição de realidade.
Reconhecida como fato, concreto, que existe, a realidade
parece ser algo passível de total apreensão; ledo engano. Na
antiguidade filosófica já se questionava o que é real, com ênfase
para a razão e as verdades universais. Das várias leituras, o fa-
2. Verdade e Realidade
O que é verdade? O que é realidade? Dentre os dizeres
populares, uma afirmativa curiosa e, ao mesmo tempo, trágica
e cômica: “quem souber, morre!”. Situações históricas, desde a
simples não compreensão sobre algo até a noção de se eliminar
uma prova, dados ou uma pessoa que sabe sobre algo, são associadas à expressão. Provocativamente, ela remete a uma grande
inquietação humana: dominar o absoluto, o pleno, o ilimitado,
o incontestável; chegar à Pedra Filosofal 5 da Alquimia ou de
Harry Potter 6, ou ao Santo Graal 7. Para este trabalho, apesar das
3
O termo coletivo utilizado neste trabalho remete à noção geral de grupo ou
conjunto de pessoas.
4
Admitido o termo sujeito, em perspectiva contemporânea, tão somente
como ser, pessoa, consciente e capaz de conhecer.
5
Pedra Filosofal: algo que seria capaz de, dentre outras coisas, manipular diferentes metais e transformá-los em ouro, além de prolongar a vida. Sobre esse
assunto, para maior compreensão, ou simplesmente curiosidade, interessante
desenvolver leitura a respeito dos alquimistas e dos textos de Nicolas Flamel.
6
Série de livros de romance, aventura e fantasia da autora J. K. Rowling,
adaptados para o cinema, sendo um deles intitulado Harry Potter e a Pedra
Filosofal.
7
Santo Graal: no contexto cristão, apesar da questão referente à origem
ser celta e ou cristã, o cálice utilizado por Jesus Cristo na última ceia e que
conteria o sangue do mesmo, recolhido por José de Arimatéia. Esse cálice teria
poderes sagrados e misteriosos, inclusive
o de cura.
___________
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Construções, leituras e perspectivas de realidades: uma teoria de sistemas
8
Denominado aqui de discurso científico moderno por se considerar que ciência não é uma prerrogativa da chamada modernidade ocidental, mas uma
característica da trajetória filosofante humana, em diferentes épocas, contextos
e culturas.
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98
99
moso dilema entre Heráclito e Parmênides 9: real é o mundo em
que se apresentam os seres humanos, dos sentidos, ou o mundo
de identidades, imutável? Devir de tudo ou essências? Outras
leituras de realidade admitiram a junção dessas 10. Mesmo assim,
persiste a pergunta: o que é realidade?
Novamente, para sintetizar a discussão, duas vertentes básicas: 1. Realidade objetiva, ou seja, realidade que se apresenta
no mundo empírico, das experiências. 2. Realidade subjetiva,
ou seja, que se apresenta no campo das ideias, da construção
racional. No primeiro caso, a realidade é observada como condição a posteriori. A razão depende da experiência para conhecer
e ou construir verdades que contemplem a realidade posta. No
segundo caso, a realidade é observada como condição a priori.
A razão intui a realidade ao considerar um conjunto de verdades que possam tratar da realidade apresentada 11. Em ambos os
casos, a dimensão da realidade está relacionada diretamente à
dimensão da verdade, sendo elementos que estão contidos nas
diferentes estruturas sistêmicas que se propõem definidoras do
cosmos e que representam uma pluralidade de olhares: múltiplas
verdades, múltiplas realidades e múltiplas concepções cósmicas.
São dimensões provocadoras do filosofar.
admitir que, nas inquietações sobre o que vem a ser Filosofia,
surgem, em geral, duas questões: 1. O que é Filosofia? 2. Para
que serve a Filosofia? À primeira pergunta, algumas respostas
são possíveis:
Resposta 1a. Apenas se pode tratar sobre o termo Filosofia e
sua constituição elementar, não cabendo uma definição. O termo
Filosofia, classicamente, tem sua origem associada a Pitágoras de
Samos, que, ao ser tomado como um sábio, teria respondido não
ser um sábio, mas uma pessoa que ama e almeja a sabedoria. A
raiz do termo está vinculada à junção de Philos 12, amor fraternal,
e Sophía 13, sabedoria. Filosofia então compreendida como amor
à sabedoria, amizade pela sabedoria, gosto pelo saber, desejo de
saber e outras expressões similares. Nesse contexto, a sabedoria
estaria para além da condição humana, metafísica, cabendo ao
ser humano, inquieto a respeito de tudo, sua busca.
Resposta 1b. A Filosofia não pode ser definida por também
ser um problema filosófico. A Filosofia clássica busca um dar
conta do mundo; tentar atender às questões universais: origem,
existência e finalidade, ou, em linguagem mais simplificada:
de onde eu vim? Quem sou eu? Para onde vou? Tais questões
incluem a própria Filosofia, visto ser o sujeito filosofante parte
do problema filosófico e da dinâmica do mundo. Isso implica
que se a Filosofia for definida universalmente deixará de ser
Filosofia para ser o sistema filosófico absoluto que resolveu as
questões universais. Tal situação significa o fim das incertezas,
a eliminação de qualquer outro sistema filosófico; o fim da
História, da Sociologia, da Psicologia, das Humanidades e de
toda e qualquer leitura que tenha como referência a dinâmica
da existência, a temporalidade e a espacialidade. Ou seja, o
estabelecimento do mundo estático, perfeito e único.
Resposta 1c. A Filosofia pode ser definida dentro de um
sistema filosófico. Nesse caso, admitida a multiplicidade de
sistemas filosóficos, é possível se definir o que é Filosofia tão
somente para determinada corrente de pensamento ou pensador
em particular. Essa resposta, em especial, permite a compreensão
3. Filosofia e o Filosofar
Apesar do desejo existente em muitas pessoas de um dicionário que defina Filosofia, a caminhada filosófica não é tão
simples de se apresentar. Para contribuir nesse processo, pode-se
9
Heráclito de Éfeso, considerado precursor da lógica dialética, admite como
realidade o mundo que se apresenta aos sentidos humanos e que pode ser compreendido pela razão. Parmênides de Eléia, precursor da lógica formal, admite
como realidade o mundo de essências apenas alcançado pela razão. Para maior
maturação, indicada, como acréscimo, a realização de leitura sobre os pensadores do período denominado pré-socrático.
10
Por não ser objetivo do presente texto, apenas a título de expansão de conteúdo, indicado o estudo das teorias de Platão e de Aristóteles sobre o conhecimento, onde desenvolvem sistemas em que associam, por diferentes perspectivas as concepções de Heráclito e de Parmênides, além de articularem trabalhos
de outros pré-socráticos.
11
Classicamente, a discussão perpassa o empirismo e o racionalismo, correntes
filosóficas da modernidade, tendo o criticismo promovido a associação dessas
correntes, com modalizadores pela razão. Indicada a leitura posterior dessas
correntes de pensamento para aprofundamento sobre os dilemas da razão moderna.
___________
12
No contexto grego existem diferentes termos para amor. Desses, basicamente
três são mais populares e, apesar dos significados sofrerem oscilações na temporalidade dos registros, podem ser apresentados, em certa medida, como: 1.
Ágape: amor incondicional, afetivo, perfeito, metafísico e vertical por excelência. 2. Eros: amor apaixonado, descomedido; atração intensa e descontrolada.
3. Philos: amor fraternal, horizontal; amizade.
13
Sophía é um termo clássico grego que está diretamente associado às ideias
de ciência, conhecimento e sabedoria.
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de limites sistêmicos em decorrência das próprias limitações
humanas frente às questões universais.
Resposta 1d. É melhor tratar sobre outro assunto para se
evitar problema. Parece ser essa a resposta mais cômoda. Todavia, esse conforto aparente apenas esconderia do ser humano
sua condição de inquietude frente a si mesmo, ao outro e ao
mundo onde está inserido. Em muitos momentos da vida, a
anestesia existencial 14 de um mundo posto e acabado acalma as
pessoas. Porém, a qualquer momento, uma simples curiosidade
pode provocar o despertar filosofante.
Para a segunda pergunta, uma resposta popular chama a
atenção: “a Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o
mundo permanece tal e qual”, ou seja, da inutilidade da Filosofia. Essa resposta parece a mais conhecida; um senso comum
que atravessa a temporalidade histórica humana. Considerando
o questionamento como uma das principais características da
Filosofia, cabe perguntar sobre o que significa utilidade em cada
contexto. A resposta para cada momento permite ponderações
sobre a utilidade ou não da Filosofia. Em todo caso, a simples
redução do termo utilidade para serventia imediata ou objetiva
pode acabar por esvaziar a compreensão de utilidade filosófica.
O que pode ser respondido, em linhas gerais, é que a Filosofia
serve, em grande medida, para tensionar todo e qualquer sentido
de utilidade que tente seu enquadramento.
Dessas considerações sobre Filosofia pode-se extrair que,
apesar das tensões conceituais sobre sua possível, ou não, definição e utilidade, as provocações, por si sós, representam o estado
básico do ser filosofante: o filosofar. Compreendido como ato,
exercício, processo, arte ou simplesmente como característica
marcante de cada ser humano ao deparar-se e interagir consigo
mesmo, com o outro e com o mundo, o filosofar é tomado como
ponto de partida de toda e qualquer Filosofia.
A admiração, a curiosidade, a dúvida, o espanto, a inquietação, a perplexidade, o questionamento, são termos diretamente
associados ao filosofar. Esses termos assumem determinadas
definições a depender do sistema filosófico a que estejam relacionados, produzindo como resultado variadas interpretações e
especificidades 15. Todavia, mesmo em meio a tantas opções conceituais, é possível, em certa medida e de um modo geral, tratar
do filosofar como um intenso desejo de conhecer sobre algo que,
por algum motivo singular, despertou a atenção, interesse, de
uma dada pessoa, que passa a se debruçar, estudar, sobre aquilo
que lhe atraiu. A dimensão de conhecimento resultante desse
processo pode tanto atender tão somente à demanda do sujeito
filosofante quanto estender-se até o extremo da construção de
um sistema filosófico.
4. Sistema, Ideologia e Conhecimento
É comum se atribuir características como: objetivo, ordem,
relação mecânica de causa e efeito, sentido, e outras tantas para
os sistemas. Essas características nada mais são que o exercício
da razão humana moderna no afã de compreender, controlar e
definir tudo; um perseguir a consciência 16 que se aproxime da
onisciência. Nessa leitura, conceitos e conhecimento parecem
já postos e absolutos. Delírios a parte e para aproximação preliminar, um sistema pode ser apresentado simplesmente como
um conjunto de elementos harmonicamente 17 associados.
Observadas as limitações humanas, pode-se considerar a
existência de infinitos sistemas, do micro ao macro cosmos. Em
seu arranjo e para facilitar uma aproximação com base no grau
de consciência humana presente em um sistema, é possível, em
certa medida, o desdobramento da concepção acima em três
vertentes sistêmicas básicas: 1. Sistemas naturais: são aqueles
que não possuem interferência direta do ser humano; que não
possuem grau de consciência em seu arranjo. Deixado de lado o
atual poder de interferência humana e apenas observado o sistema
em sua condição inicial posta, os diversos sistemas que compõem
boa parte do ecossistema, como os sistemas das formigas, das
abelhas e dos cupins, ou o sistema respiratório humano, ou,
ainda, o sistema solar, são exemplos dessa condição. 2. Sistemas
15
Expressão alegórica, apenas para enfatizar a ideia de um não questionamento sobre a existência, pelo absoluto ___________
pressuposto de que tudo está definido.
Importante enfatizar que não é proposta deste ensaio a elaboração de um
tratado de História da Filosofia ou do filosofar, mas tão somente uma aproximação sobre Filosofia e o filosofar para construção de uma teoria de sistemas.
16
Consciência é um termo com muitos significados. No presente trabalho,
esse termo é tomado, de forma abrangente, como compreensão, percepção,
conhecimento e ou reconhecimento sobre algo.
17
Harmonia como aquilo que garante a combinação de elementos, mesmo que
sejam opostos, de um sistema, favorecendo sua dinâmica relacional interna,
sem o risco de desfazimento.
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artificiais: são aqueles que possuem interferência do ser humano
em sua construção inicial, com certo grau de consciência em
seu arranjo. Os sistemas computacional, hidrelétrico, residencial, são exemplos dessa condição. 3. Sistemas conscientes: são
aqueles compostos por seres humanos, que possuem, desse modo,
interferência direta dos sujeitos, elementos desses sistemas, e
alto grau de consciência em seu arranjo. Os sistemas políticos,
culturais e éticos são exemplos dessa condição.
Os sistemas conscientes são povoados por conceitos, palavras
objetivamente definidas sobre tudo, de tal maneira que o cosmos
pareça já posto. Os conceitos são alimentados e fortalecidos,
sustentando as relações internas e a organização de cada sistema,
por pré-conceitos 18, ideias, conceitos prévios, que compõem a
base pré-conceitual sistêmica. Os pré-conceitos são fundamentos
sistêmicos que, em geral, não são sequer percebidos ou questionados pelas pessoas. As noções de ética, estética e política
são exemplos de ideias que compõem a base pré-conceitual de
um sistema. Essa estrutura faz com que os elementos humanos
de cada sistema tenham a nítida impressão de que a realidade é
evidente e, na grande maioria dos sistemas, única. Mesmo assim,
importante acrescentar que, por existir uma dinâmica relacional
decorrente da subjetividade humana dos sistemas conscientes,
conceitos podem sofrer ajustes contextuais num dado sistema
e, a depender da intensidade, provocar, inclusive, alterações
pré-conceituais.
Admitidas as possibilidades de sistemas supradestacadas e,
agora, as múltiplas relações que podem ser estabelecidas entre
as mesmas, visto que, desde a modernidade, em especial, o ser
humano tem afetado diversos sistemas, além da compreensão
de que todo sistema é composto por outros sistemas e compõe
outros sistemas, numa rede ao infinito, é factível, em grande
medida e a partir da condição humana racional e consciente,
compreender um pouco de que forma estão interligadas as noções de sistema, ideologia e conhecimento. Para tanto, basta
considerar, como ponto de referência, a perspectiva número 3,
acima, de sistemas conscientes.
Todavia, falta uma mínima caracterização sobre ideologia
para que a interligação mencionada possa ser devidamente
apresentada. Afirmar que ideologia é um conjunto de ideias,
não coopera tanto, provavelmente quase nada, para uma melhor
aproximação sobre o termo. Se o pensar sobre o mundo é valorar
o mundo, o pensar sobre sistemas também é valorar sistemas.
Nesse sentido e considerando que valorar é uma característica
tipicamente humana, o ser que tudo valora, a ideologia também
se associa a uma concepção de valores dentre as tantas possibilidades axiológicas 19
de valoração: ética, estética, política,
econômica, afetiva, quantitativa, qualitativa e outras. Contudo,
como a existência de diversos sistemas filosóficos implica na
existência de configurações diversas sobre ideologia e valores,
parece pertinente destacar ao menos dois olhares que cooperem
na percepção da condição humana em sociedade e nas singularidades e que, simultaneamente, possam favorecer a maturação
proposta de uma macroleitura sobre sistemas.
Um primeiro destaque: Marx 20. Em sua leitura de mundo, o
desenvolvimento da humanidade pode ser apreendido por meio
do materialismo histórico dialético. Compreender as condições
matérias efetivas da existência humana e os conflitos decorrentes
da exploração do ser humano pelo próprio ser humano, significa
compreender o percurso histórico e os necessários conflitos de
classes de cada contexto, que poderão resultar, em um futuro
ainda distante, na sociedade do bem comum.
Para o pensador, a sociedade moderna está estruturada no
referencial econômico. A organização social decorrente da economia
configura dois grupos bem definidos: os dominantes, pequeno
grupo detentor das condições necessárias para produção; e os
dominados, grande grupo detentor da força de trabalho humana,
da mão de obra, que vendem como forma de subsistência. O
19
O termo pré-conceito aqui apresentado é o elemento fundante de conceitos e
não se refere ao termo preconceito associado a uma opinião sem fundamentação, sem conhecimento, ou atitude pejorativa, de discriminação, contra algo ou
alguém; apesar de, em alguma medida,
permitir um pensar sobre essa noção.
___________
Dada a amplitude filosófica, somente a título de informação, cabe lembrar
que axiologia é, em dada medida, uma área do conhecimento que estuda as
diferentes noções e ou conceitos sobre valor. No presente texto, restrita a um
olhar sobre o processo de valoração ideológico humano nas configurações dos
sistemas em geral. Caso haja maior interesse sobre esse assunto, indicada uma
leitura filosófica mais temática, que perpasse alguns filósofos que tratam dessa
problemática de forma mais detalhada, a exemplo de Kant e Nietzsche.
20
Para maior aprofundamento do pensamento de Marx, indicada a leitura de
suas obras, em especial, A Ideologia Alemã e Manifesto do Partido Comunista;
não deixando de sugerir, ainda, como extenso e intenso acréscimo, sua densa
compreensão do sistema capitalista e seu modo de produção, presente no conjunto de livros sob o título O Capital: crítica da economia política, organizado
em volumes: Livro 1, v.1-2: o processo de produção do capital; Livro 2, v.3: o
processo de circulação do capital; Livro 3, v.4-5-6: o processo global de produção capitalista.
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problema está na exploração da mão de obra exercida por meio
de reconhecimento e pagamento a menor que o real valor; o
que resulta em diferença denominada mais-valia. Tal diferença
enriquece os donos dos meios de produção, os dominantes, em
detrimento dos executores da atividade laboral, os dominados.
Marx considera que o processo dialético de ruptura da exploração exercida sobre os dominados passa pela quebra da alienação 21: estado em que os trabalhadores, dominados, acreditam
que o mundo é da forma que é, realidade absoluta e imutável, o
que fragiliza o poder de reação desse grupo, subjugando-o, pelas
ideias, às condições estabelecidas pelos dominantes. A ruptura
dessa organização depende do despertar da classe dominada,
que percebendo sua condição de explorada, entra em conflito
contra a classe dominante, projetando-se daí, como ocorrido em
outros momentos da história, segundo o filósofo, uma ruptura
da ordem ideológica vigente e o estabelecimento de uma nova
organização social.
Como a ideologia, em Marx, é moldada por uma classe, a
dominante, de forma a favorecer a mesma, uma mudança ideológica desse sentido explorador precisa da tensão provocada por
outra classe, a que pela primeira é explorada, os dominados.
Esta classe, por meio da compreensão e superação do processo
de alienação a que estava submetida e a fazia crer que a única
realidade era a apresentada pela ideologia da classe dominante,
desenvolve um processo de consciência de classe trabalhadora,
subjugada e manipulada; um despertar do grupo dominado, que
implica em conflito de classes para a realização de mudanças;
reconfigurações ideológicas do sistema socioeconômico vigente
em dado contexto.
Um segundo destaque: Sartre 22, que considera ser a liberdade
absoluta, à qual todas as pessoas estão condenadas, o fundamento
da existência humana. Não há forma de se fugir ou desistir da
liberdade. Cada pessoa é plenamente livre, logo, plenamente
responsável por suas ações, opções, por si e por tudo. A tomada
de consciência da liberdade é, também, tomada de consciência
e controle da própria existência, enquanto projeto de vida. A
essência de cada sujeito nada mais é que um construto de sua
existência. É resultado do assumir o controle de sua caminhada
existencial. Sua singularidade atinge o universal. Essa caminhada
apresenta, a todo instante, a necessidade de tomada de decisão;
de escolha. A cada passo existencial uma escolha precisa ser feita
e cada escolha o afeta e, por sua plena liberdade, afeta toda humanidade. Cada sujeito carrega o peso da responsabilidade por
toda a humanidade. O resultado dessa tensão existencial, nesses
termos: cada escolha implica em significativa angústia.
Dada a intensidade do problema da angústia decorrente da
consciência que o sujeito tem de sua responsabilidade frente às
escolhas, existe o risco de se recorrer à má-fé: o sujeito busca
evitar escolher, delegando suas opções a fatores externos, como
divindades, outras pessoas e situacionais, na ilusão de fugir daquilo que não consegue escapar: sua liberdade. A tentativa de
negação da liberdade nada mais é que a tentativa de negação do
próprio projeto de vida. Não escolher ou creditar escolhas a terceiros é escolher. A má-fé é um remédio que pode até anestesiar
a existência por alguns segundos, mas não consegue eliminar
o projeto de vida do sujeito, sua consciência de liberdade, que
teima em apresentar-se, questionando sobre o próximo passo.
Cada pessoa, nessa perspectiva, carrega uma ideologia própria,
uma ideologia do sujeito, que tem em sua assinatura, seu projeto
de vida, suas escolhas, e que atinge a tudo e a todos. Além disso,
os sujeitos passam por conflitos à medida que o projeto de vida
de um colide com o projeto de vida do outro. Contudo, essas
tensões que podem prejudicar o projeto de vida de cada pessoa
servem, segundo o filósofo, para auxiliar a consciência de cada
um sobre si, por meio do olhar do outro, que, semelhante a
um espelho, revela, para o sujeito observado, características que
favorecem um melhor conhecer a si próprio.
Os destaques acima referentes à ideologia possibilitam compreender, de forma simplificada, duas leituras: 1. Ideologia do
21
Alienação é um termo com muitos significados. Para a compreensão no presente texto, esse termo é tomado, inicialmente, dentro do sistema filosófico de
Marx, como coisificação do ser humano, para atender, enquanto mera engrenagem, os objetivos de produção e consumo do sistema capitalista vigente, sendo
interessante, a título de sugestão, assistir ao filme Tempos Modernos, de Charles
Chaplin, para maturação dessa noção. Em seguida, de forma mais ampla, o
termo alienação é tomado como não percepção do sujeito enquanto sujeito,
não consciência de sua existência e condição no mundo; leitura que atravessa
diversas construções sistêmicas.
22
Para maior aprofundamento do pensamento de Sartre, indicada a leitura
de suas obras, em especial, O Ser e o Nada e, observadas algumas ressalvas do
próprio pensador, O Existencialismo___________
é um Humanismo.
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coletivo 23: que constrói, norteia e movimenta grupos sociais, definindo realidades, papéis, comportamentos e relações sistêmicas
internas entre as pessoas dos grupos e entre os grupos. Permite
pensar, a partir de Marx, em outras ideologias de coletivos e
nas relações sistêmicas externas, que colocam em dúvida construções distintas de realidades, na tentativa de estabelecimento
de uma realidade universal, normalmente definida pelo sistema
com maior poder de afirmação ou imposição. 2. Ideologia do
sujeito: que se fundamenta na liberdade absoluta do sujeito e
na consciência de sua singularidade existencial no mundo, enquanto microssistema e ponto de partida das relações sociais.
Envolve a construção e o controle do projeto de vida de cada
sujeito exclusivamente por ele, todavia, ao mesmo tempo, atingindo toda a humanidade. Permite pensar, a partir de Sartre, na
ideologia do sujeito, ser consciente da necessária configuração
de sua caminhada, bem como na compreensão da convivência
de múltiplas realidades singulares que se apresentam e, em certa
medida, entram em conflito, nas interações entre sujeitos e com
o mundo. Essas leituras, de ideologia do coletivo e ideologia
do sujeito, compõem os sistemas conscientes, destacados anteriormente, com oscilações de intensidade e proporcionalidade,
conforme cada sistema, que afetam diretamente as construções
internas sistêmicas das relações eu-outro-mundo 24.
Por fim, para associar sistema, ideologia e conhecimento,
um questionamento: o que é conhecimento? De início, tratar
sobre esse assunto pode remeter à tipologia do conhecimento
moderno, a saber: 1. Senso comum: sustentado na tradição e
confiança dos povos e nos saberes construídos pelas gerações
anteriores. 2. Teológico: sustentado, em princípio, na fé mística
e na utilização da razão clássica para confirmá-lo. 3. Filosófico:
sustentado na razão clássica e na busca de certeza de leitura e
compreensão do cosmos pelo exercício de aproximação e respostas às questões universais, originando uma diversidade de
sistemas em meio aos limites humanos. 4. Científico moderno:
sustentado na razão moderna, primazia do ser humano frente
ao cosmos, e na convicção de leitura do mundo físico e certeza
da descoberta das verdades que o sustentam.
Entretanto, essa tipificação, inicialmente, buscou uma estratificação e supervalorização do discurso científico moderno,
ao considerar que apenas esse discurso, por ter o compromisso
metódico de testar exaustivamente até, acredita-se, confirmar as
verdades descobertas, pode dar conta do conhecimento. Contudo,
os desdobramentos contemporâneos, nas concepções de múltiplos
tipos de conhecimento, não mais limitados aos quatro vistos
anteriormente, e na quebra de uma hierarquia de conhecimentos
através de uma rede mundial de articulação dos mesmos, conforme infinitas possibilidades de conexões, têm provocado, em
grande medida, a revisão da tipificação estabelecida. A leitura
moderna, nesse contexto, passa a representar uma perspectiva
hierárquica, uma forma de abordagem da humanidade sobre o
conhecimento, dentre outras.
Respeitando-se a dimensão do assunto e a existência de
inúmeras perspectivas, para tratar desse ponto, faz-se necessária
uma leitura conceitual que permita atender à demanda proposta
para o presente trabalho. Nesse sentido, uma construção conceitual pode ser estabelecida através da simples consideração e
definição dos seguintes termos: 1. Dados: elementos iniciais que
permitem uma primeira aproximação sobre algo, todavia sem a
possibilidade de se inferir a respeito. 2. Informação: articulação de dados sobre algo, que permite se inferir a respeito. Dos
pontos destacados, para atender ao questionamento: o que é
conhecimento? Pode ser respondido: um conjunto de informações
devidamente maturadas, apreendidas pelo sujeito, que permite
falar e explicar sobre algo ou determinado assunto.
É possível, ainda, ampliar a resposta acima a partir da observação de uma noção sobre sabedoria: conjunto de conhecimentos
que permite falar e explicar sobre diversos assuntos. A sabedoria
tanto pode ser decorrente do acúmulo de conhecimentos, fruto
da trajetória de estudos do sujeito, como de conhecimentos
tácitos, intuitivos, que têm como referência o reconhecimento
dos povos, comunidades, a que estão diretamente relacionados.
Isso permite uma expansão da noção conhecimento, para: um
conjunto de informações devidamente maturadas, apreendidas
23
No sistema filosófico de Marx o termo coletivo está associado ao trabalho
de um grupo de indivíduos no processo de produção industrial capitalista, no
intuito de aumentar a exploração e, por consequência, a mais-valia. Contudo,
considerando que existem vários sistemas, importante reforçar nota anterior
sobre o uso do termo coletivo, neste ensaio, como noção geral de grupo ou
conjunto de pessoas, para promover uma melhor compreensão a respeito da
diversidade sistêmica.
24
A expressão eu-outro-mundo costuma ser utilizada em discussões filosóficas
contemporâneas. Trata, de forma simplificada, da necessária articulação do que
constitui a existência: a singularidade do sujeito e a relação de si para consigo
mesmo; as relações entre os sujeitos; e as relações entre sujeitos e o mundo em
que estão envolvidos. A dinâmica da___________
imprescindível convivência.
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pelo sujeito, ou tácitas e intuídas pelo sujeito, que permite falar
e explicar sobre algo ou determinado assunto.
A partir da noção sobre sistemas, em especial dos sistemas
conscientes e seus conceitos e pré-conceitos, apresentada, bem
como das noções sobre ideologia e suas perspectivas de valores
e sobre conhecimento, também apresentadas, finalmente uma
interligação entre esses termos, para ampliação da compreensão
preliminar sobre sistema, estabelecida no início desse tópico,
pode ser apresentada. Um sistema é um conjunto de elementos
harmonicamente associados, conectados entre si por uma liga
ideológica e que interagem por meio de conceitos, enquanto
colunas sustentadas em uma base pré-conceitual, que possibilita,
internamente, tratar das relações eu-outro-mundo e dar conta do
conhecimento. Esse novo olhar é mais um passo dado para uma
maturação sobre sistema.
alvo, já será gratificante todo esforço em elaborá-lo e torná-lo
público. Uma teoria que possa cooperar na trajetória existencial
de cada sujeito; ser filosofante.
Articulações e Considerações Finais
Referências
ABBAGNANO, Nicolla. História da Filosofia. Tradução de
Conceição Jardim, Eduardo Nogueira e Nuno Valadas. 4. ed.
Lisboa: Presença, 1993. XIV v.
ABBAGNANO, Nicolla. Dicionário de Filosofia. Tradução
da 1ª edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi;
revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho
Benedetti. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BORNHEIM, Gerd A. (Org.). Os filósofos pré-socráticos. São
Paulo: Cultrix, 1994.
Dos tópicos trabalhados: verdade e realidade; Filosofia e o
filosofar; sistema, ideologia e conhecimento, etapas de uma construção conceitual sobre sistema foram apresentadas. As articulações desses tópicos permitiram a ampliação dessa construção, por
meio do esforço filosófico desenvolvido em sentido mais amplo,
onde, na soma de noções, se procurou contemplar construções,
leituras e perspectivas de realidades e de conhecimentos.
O percurso filosófico percorrido, enfim, tornou possível a
construção da seguinte síntese: um sistema é um conjunto de
elementos harmonicamente associados, conectados entre si por
uma liga ideológica e que interagem por meio de conceitos,
enquanto colunas sustentadas em uma base pré-conceitual, que
possibilita, internamente, tratar das relações eu-outro-mundo;
afirmar o que é conhecimento, o que é verdade e o que é realidade; e estabelecer uma organização de valores internos que
são projetados para além de seus limites. Eis uma perspectiva
de um edifício sistêmico; uma teoria de sistemas.
Evidentemente, a construção aqui realizada não deixa de
apresentar uma perspectiva de realidade; uma teoria de sistemas
possível. Contudo, é um olhar que permite a abertura do pensar sobre sistemas, do promover e provocar em cada sujeito um
maior cuidado reflexivo sobre o que compreende como realidade
e que, em muitos casos, procura impor, às vezes sem sequer o
perceber, para outras pessoas, desconsiderando-se a possibilidade
de outras realidades. Se o presente
texto alcançar esse ousado
___________
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de João
Gama. Lisboa: Edições 70, 2000. Introdução e notas de Étienne
Gilson (Coleção Textos Filosóficos, 9).
Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
Construções, leituras e perspectivas de realidades: uma teoria de sistemas
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução
de Reginaldo Lemos de Sant’Anna. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 6v. (Coleção Perspectivas do Homem,
38).
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução
de Luis Claudio de Castro e Costa. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. (Coleção Clássicos).
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Tradução de Álvaro Pina. 9. ed. São Paulo: Global,
1993. (Série Universidade Popular, 1).
PENSADORES, Os (Coleção). São Paulo: Nova Cultural,
1988.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 5. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1997.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo.
Tradução de João Batista Kreuch. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013.
___________
Jovens em desvantagem social
e a autoformação
Ilzimar Oliveira 1
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. A autoformação e o futuro
do sujeito: esboço de vida e identidade como projeto 3.
Identidade como projeto 4. Recursos da autoformação
5. Trabalho remunerado como recurso 6. A construção
identitária e de perspectivas de futuro: a qualificação em
projetos alternativos à escolarização formal 7. Considerações Finais 8. Referências
1. Introdução
A inserção de jovens no mercado de trabalho e sua
participação nas outras esferas da vida social, na cultura,
na política, deve ser prioridade da União e dos governos
Estadual e Municipal. Tal inserção requer tantos recursos
objetivos, possibilidades concretas social e politicamente
estruturadas, quanto recursos subjetivos, ou seja, aqueles
mobilizados internamente pelos sujeitos nos processos
essenciais de sua vida, sobretudo os processos formativos.
A escolarização e a formação profissional dos jovens são
consideradas recursos que podem ser decisivos para a construção de uma futura vida digna na idade adulta. Por outro
lado, um processo formativo requer também a participação
pessoal, ou seja, a auto atividade, a mobilização do próprio sujeito, o que, por sua vez, exige a utilização de seus
recursos subjetivos. A ideia de autoformação está inserida
nessa dinâmica e diz respeito a um processo educativo, no
qual o sujeito educa-se a si mesmo, no qual ele constrói
suas alternativas, dirige seu próprio processo, conduzindo-o
àquilo que foi desejado. Para Josso (2007), a autoformação
é um processo pedagógico, no qual emerge uma consciência de si mesmo, através das trocas de significados com os
1
Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: ilzi2204@
outlook.com
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outros, consigo mesmo e com o mundo.
A minha proposta de tratamento deste tema multidimensional tem por base as discussões apresentadas em minha tese de doutoramento, intitulada Caminhos biográficos
em instituições não-formais: jovens em desvantagem social a
caminho da autoconstrução 2. Tomo por base deste artigo
alguns dos dados que coletei em entrevistas narrativas
biográficas com doze jovens (entre dezessete e vinte e três
anos de idade) no Subúrbio Ferroviário de Salvador no
ano de 2010 para a tese. Nestas entrevistas, eles e elas me
falaram de suas vidas, de suas aspirações e as formas como
solucionam problemas de toda espécie, como superam a
infância em situação de precariedade e buscam, através da
formação profissional, construir possibilidades de inserção
no mercado formal de trabalho e realização de seus esboços
e projetos identitários.
tidade futura.
Keupp et al. (2008) fazem distinção entre esboço
identitário e projeto identitário: o esboço, como já dito,
pertence ao plano do imaginário; o projeto, por sua vez,
tem caráter de decisão, tem como regra a precondição que
um processo de reflexão sobre a existência dos recursos
disponíveis e necessários já aconteceu. Por exemplo, uma
pessoa que pensa em “ser veterinário” pode imaginar-se
desempenhando esta função (esboço). Concluir o nível
médio num determinado ano e fazer o exame ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio - para cursar a graduação
correspondente, entretanto, exige uma tomada de decisão.
“Ser veterinário” adquire, então, caráter de projeto e requer
a autoatividade para mobilização dos recursos através das
decisões. Sempre que o projeto é trabalhado, o sujeito
posiciona-se a si mesmo renovadamente e avalia a relação
entre a autorrepresentação e a representação cognitiva do
projeto. Este processo significa para Keupp et al. (2008) a
trajetória das etapas do desenvolvimento esboço-projetorealização, a qual está estritamente ligada às experiências
passadas e às construções prospectivas.
Um esboço de vida emerge das autotematizações, ou
seja, de fazer de si mesmo um tema de reflexão; no caso da
pesquisa em questão, os esboços apresentam-se nas narrações biográficas. Hurrelmann e Quenzel (2012) entendem
o esboço de vida em relação ao conceito de condução da
vida, no qual a organização para a ação e a formatação (no
sentido de dar forma) da vida cotidiana acontecem. Tratase da construção individual da vida cotidiana em relação
a uma ordem institucionalizada com objetivos e sentido
colocados pelo próprio sujeito, para estabelecer uma medida mínima de estabilidade e identidade numa situação de
insegurança e inconsistência. Os jovens se tornam, desta
forma, instâncias de planejamento da sua própria vida, para
as quais são necessários um desempenho de orientação, a
construção de sentido e da perspectiva de futuro. Mesmo as
imaginações de futuro que não são explicitamente formuladas funcionam como motores da ação. Através da ação,
motivada, intencional e com sentido, os sujeitos constroem
2. A autoformação e o futuro do sujeito: esboço de vida
e identidade como projeto
O esboço de vida e de identidade estão entrelaçados
um com o outro. Como estrutura dinâmica, a identidade
é direcionada ao futuro. Esboços de identidade e projetos
de identidade emergem quando a imaginação de futuro e
as ponderações do sujeito sobre quem ele quer ser e para
onde seu desenvolvimento o conduzirá acontecem. Para
Keupp et al. (2008), este processo de imaginar, ponderar,
já é conteúdo formativo do trabalho identitário. O trabalho identitário é um desempenho cotidiano do sujeito
para a preservação de sua capacidade de ação e negociação, no qual o posicionamento no mundo e a articulação
das diferentes experiências e suas diferentes dimensões,
(temporal, social, autorreferenciada) são realizadas. Ou
seja, a identidade é processual, cotidianamente construída
e mantida em movimento. Os esboços de vida aparecem
aí, no plano do imaginário, relativamente distanciados da
realidade, utópicos. Todavia, são estas imagens dinâmicas,
estes sonhos que energizam os projetos concretos de iden2
Tese defendida em janeiro de 2016,
na Universidade de Viena - Áustria.
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a realidade e dão sentido ao mundo.
A ampliação da perspectiva de futuro na juventude\adolescência está articulada com a conscientização crescente das
contingências e das obrigações sociais. Para Kraus (2000),
as pessoas constroem objetivos, constroem um direcionamento, e daí uma orientação numa perspectiva temporal. O
projeto tem por conteúdo as expectativas, as antecipações
e os objetivos a serem realizados. A perspectiva de futuro
é uma visão geral de um futuro subjetivo. A abertura interior para opções alternativas pode tornar-se, em tempos
de crise, uma estratégia identitária de grande valor.
Para Abels (2006), a identidade, como atualmente
concebida, é o resultado de um passado individual e um
ponto de partida de um futuro individual. Para ele, a
identidade tem a ver com o que está ainda diante de nós
e como queremos nos posicionar diante deste futuro. A
identidade é concebida como uma articulação ou estrutura de significados transitória, portanto, aberta e flexível,
e simplificada da pessoa; na articulação com processos
formativos\educativos, a identidade torna-se motor destes
e estes, em contrapartida, influem na construção identitária, num processo de influência recíproca. A identidade
não é um dado empírico, mas deixa rastros que podem
ser empiricamente percebidos, por exemplo, na narração
biográfica, onde trabalhamos com o conceito de identidade
narrativa, i.e. perceptível nos processos, transformações e
autodesignações discursivamente apresentados na história
de vida (ver LUCIUS-HOENNE; DEPPERMANN, 2006;
STRAUB; RENN, 2002; KEUPP; HOHL, 2006).
As versões sobre o futuro possível dependem do desenvolvimento do sujeito. A experiência simbólica do futuro só
é possível para os que, em sua própria dinâmica de atividades, conseguem se transportar para além de sua situação
presente. Dito de forma geral, o futuro só se desenvolve
na medida em que nós imaginamos um futuro realizável.
Isso está também articulado com o que a sociedade nos
oferece como perspectivas, e se estas são percebidas como
tal e utilizadas na construção do esboço ou projeto. Para
entendermos, portanto, estes futuros autorreferenciados
temos que encaixá-los no contexto social. Os jovens em
situação de múltiplas exclusões pagam o preço da falta
de recursos e de uma política social pouco efetiva, o que
impede ou obstaculiza a construção de perspectivas de
futuro. Exatamente para eles é extremamente significativo
transcender reflexivamente o presente, porque o risco da
falta de perspectivas é iminente e pode desembocar na exclusão perpétua e suas consequências desastrosas. O esboço
de futuro precisa ser dinamizado em projeto, i.e. deverá
se tornar uma decisão realizável. Para isso, uma postura
em relação ao futuro é necessária: a perspectiva de futuro
depende da capacidade de se desprender do presente e de
criar uma outra ideia de si mesmo ou, como nas palavras
de Sennett (2002), uma outra versão de si mesmo.
O futuro necessita do desejo de mudança ligado ao
conhecimento sobre a possibilidade de sua realização, o
que nos leva à consideração dos recursos. Sem isso não há
futuro (KRAUS, 2000). O desejo necessita de uma constituição social, de um nome social, de uma forma social.
A perspectiva de futuro é, neste sentido, formatada social
e individualmente, é também, mas não apenas, resultado
de trabalho individual.
___________
3. Identidade como projeto.
O conceito de projeto remonta ao de imaginação de
futuro como um esboço complexo de si mesmo; trata-se
de projeções de áreas importantes da vida e da experiência
com o trabalho, a família, o círculo de amizades. A ideia
de projeto caracteriza uma ação situada no futuro intencionado: o projeto dá uma determinação ao presente e ao
passado, dá novas leituras do presente e do passado. Essa
imaginação-intenção exige do sujeito um certo grau de autonomia em relação ao envolvimento em conflitos: em que
medida essa autonomia é real e qual é a sua amplitude são
motivos de avaliação complexa pelo próprio sujeito (auto
avaliação). Também os motivos e intenções são avaliados
e redimensionados neste processo. Não se trata, portanto,
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de um mero objetivo a ser alcançado, mas de se ser capaz
de criar para si mesmo uma outra versão de si, baseada na
reflexão e nas ponderações sobre as possibilidades de realização. O projeto é desenvolvido sobre o pano de fundo
dessa imaginação de futuro, a qual, por sua vez, também
é influenciada pelo próprio projeto.
No curso da realização, os objetivos, os meios e a relação com o objeto-projeto são continuamente avaliados
com referência ao presente, passado biográfico e ao futuro.
A reflexão tem por base o valor atual do projeto para si
mesmo no presente e sua validade no próprio futuro. Por
outro lado, o conceito de projeto de identidade refere-se
a algo que ainda não existe e à singularidade do sujeito; o
projeto situa-se num horizonte de possibilidades e exclui
aquilo que não é desejado. O projeto também minimiza a
necessidade permanente de tomada de decisões e reconcilia
algumas contradições e experiências de incongruências e
incoerências vividas (KRAUS, 2000). A ação é o “ser” do
projeto, o qual é materializado através da linguagem como
a representação operativa de um futuro possível, e por isso,
um ponto de referência discursivo.
O conceito de projeto caracteriza a transitoriedade
da identidade e a relação entre identidade e futuro. Ele
aponta para o desempenho do sujeito, como a capacidade
para reflexividade, para orientação, para escolhas e determinações do desejado. Um projeto não obedece nenhuma
lógica de desenvolvimento, ao contrário, se trata de um
reducionismo, que deve afastar a insegurança e a difusão.
Enfim, um projeto de futuro está ligado a um mundo
discursivo: o que o indivíduo projeta e como esse projeto
é discursivamente constituído se refere sempre a um espaço social de discurso (ver KRAUS, 2000; KEUPP et al.
2008). Na realização do projeto, os recursos materiais e
simbólicos são também continuamente reavaliados, tantos
os recursos existentes quanto aqueles que ainda precisam
ser apropriados para o projeto.
4. Recursos da autoformação
Concluir a escolarização e posteriormente buscar e adquirir um emprego são tarefas desenvolvimentais dos\das
jovens: para atender a essas exigências sociais e desafios
pessoais, eles e elas precisam dispor de diferentes recursos.
O conceito de recurso (ressource) foi tratado pelo sociólogo
estudioso da medicina, o israelita-americano Aaron Antonovsky 3 nos anos de 1980, no que ele chamou de perspectiva
da salutogênese. O termo tem origem no latim, na palavra
salus, saúde, bem-estar e do grego genesis, nascimento,
surgimento. Saúde, ou bem-estar não é visto como estado,
mas como processo. Outros autores trabalham também
na perspectiva dos diferentes capitais de Pierre Bourdieu,
dos anos 1970. Tanto os recursos como os capitais são os
aportes materiais e simbólicos para as ações dos sujeitos
na vida social.
A perspectiva das teorias salutogenéticas considera a
capacidade do sujeito de mobilizar os elementos disponíveis,
a ele acessíveis, e aplicá-los na solução de problemas (ver
ANTONOVSKY, 1997\1981, FRÖHLICH-GILDHOFF;
RÖNAU-BÖSE, 2011, DLUGOSCH 2010). Tanto as
instituições, os indivíduos, disposições físicas, disposições
subjetivas, como p.ex. força interior, como também bens
simbólicos e materiais servem como recursos e podem ser
mobilizados pelos sujeitos quando necessários. Os recursos
podem ser divididos em sociais e pessoais. Como recursos
pessoais podemos citar as capacidades inatas, como compleições corporais e atratividade; a disposição e o potencial de
talentos também contam. Os recursos sociais compreendem
a rede social e a qualidade dos relacionamentos sociais.
Através da utilização de recursos na solução de problemas
e na condução da vida cotidiana, os jovens experimentam
sua capacidade de poder influenciar uma situação através
da sua atuação. A sensação de segurança, de poder supe3
___________
ver Antonovsky, Aaron. Salutogenese. Zur Entmystifizierung der Gesundheit. Tübingen: DGVT-Verlag, 1997 e Health, Stress and Coping. London\
San Francisco: Jossey-Bass Publishers, 1981. Estes aportes teóricos vêm sendo
amplamente utilizados pelas ciências biomédicas e pelas ciências sociais, dentre elas a pedagogia social.
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rar situações com as quais não têm familiaridade emerge
do fato de já se ter, no passado, aplicado os recursos com
sucesso e no presente se poder aplicá-los em combinação
com outros recursos disponíveis. Quando esta sensação de
segurança não emerge, o sujeito vai tentar evitar os desafios
que aparecerem. A esta sensação de segurança Antonovsky
chamou de “senso de coerência” (sense of coherence). Hurrelmann e Quenzel (2007) chamaram essa capacidade de
auto-efetividade e comentam que uma expectativa realista,
entretanto, é o pré-requisito para se poder proceder uma
intervenção com sucesso em uma dada situação.
A outra noção de recursos refere-se à conceituação de
Bourdieu (1998) dos tipos diferentes de capital: o capital
econômico, o capital cultural (institucionalizado, incorporado e objetivado) e o capital social. A teoria dos capitais
nos coloca diante da distribuição desigual dos recursos no
espaço social como um fenômeno socioeconômico. O capital
econômico é um recurso estratégico central. Ele abrange
todas as posses materais institucionalizadas na forma de
propriedade, que podem ser convertidas em dinheiro. Este
tipo de capital é estratégico, na medida em que permite a
acumulação de outros recursos.
O capital social compreende a rede perene de relações
institucionalizadas de reconhecimento mútuo. Segundo
Keupp at al. (2008) a dimensão do capital social que o
sujeito possui depende da amplitude da rede de relações
que ele pode mobilizar, como também da amplitude dos
outros tipos de capital que os outros da rede possuem,
com os quais ele se relaciona. Os indicadores da qualidade
dos contatos são: proximidade, ligação, empatia, respeito
e entendimento. A posse deste tipo de capital exige investimento constante nas relações, trocas e reconhecimemto
mútuo (KEUPP at al., 2008, p. 200-201).
O capital cultural pode ser disponibilizado em três formas:
institucionalizada, objetivada e incorporada. A forma institucionalizada do capital corresponde aos diplomas e títulos
reconhecidos formalmente, cuja posse, via de regra, liberta
o detentor de comprovações posteriores do capital cultural
de fato adquirido. O capital culutral incorporado, por sua
vez, diz respeito às habilidades, posturas, internalizadas,
corporificadas pelo sujeito. A incorporação requer tempo
e energia, requer exercício e, como tal, é um investimento
pessoal do sujeito. Já o capital cultural objetivado é também
material, mas exige, para sua apropriação, a mesma energia
que o capital culural incorporado. Compreendem os livros,
obras de arte, CDs entre outros objetos culturais.
Os recursos, quer pensemos como capitais ou como
ressourcen, são estruturados, localizados e fixados dentro da
sociedade, na qual a origem social e a herança de riqueza
ou pobreza dos sujeitos desempenham um papel importante
na sua acessibilidade. O mundo social nunca é, portanto,
um universo de “possibilidades iguais“ para todos, mas os
indivíduos se movimentam dentro de uma área social já
estruturada. Bourdieu refere-se às estruturas sociais e os seus
mecanismos para manter o status quo, que co-determinam a
vida, i.e. co-determinam as possibilidades de inserção dos
sujeitos nas diferentes esferas da vida social.
Susanne Lang (2007) nos apresenta os recursos subjetivos
como um outro tipo de capital (baseada nas discussões de
Catherine Delcroix), como uma ampliação da teoria dos
capitais de Bourdieu. Para as autoras, os recursos subjetivos são as capacidades morais disponíveis, como coragem
e perseverança, mas também a capacidade intelectual para
a reflexão, análise e planejamento estratégico, assim como
competências psicológicas comunicativas, como, por exemplo, a capacidade de compreender o outro. (LANG, 2007,
p. 163). Hurrelmann e Quenzel (2007) também chamam
a atenção para o papel da capacidade de improvisação:
ela é no mínimo tão importante quanto as aprendizagens
rotinizadas, as quais são, possivelmente, pouco provedoras
de potencial de adaptação diante de novos desafios. Não
podemos compreender esses recursos subjetivos através das
condições objetivas e culturais colocadas por Bourdieu, mas
eles se mostram como contribuições conceituais importantes, na medida em que podem iluminar as experiências de
sucesso de jovens em desvantagem social e condições de
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vida precárias, principalmente em questões de aprendizagem e apropriação de conhecimentos ou construção de
alternativas. A perspectiva da salutogênese, por sua vez,
vem contribuindo para o debate acerca das questões que
dizem respeito às relações entre a autoformação do sujeito,
suas condições de existência e a mobilização de recursos,
sobretudo, os subjetivos.
As relações sociais e emocionais (capital social\recurso
social) podem funcionar como recursos para estes jovens.
Neste sentido, emergem como pontos de apoio em situação de crise: o grupo da mesma faixa etária, os amigos e
os outros significativos da família. Ecarius et al. (2011)
apontam para o lugar importante da família: ela apoia,
aconselha, dá orientações, socializa. Sobretudo as pesquisas empíricas atuais apresentam resultados que mostram a
importância dos acontecimentos na família para o desenvolvimento da identidade pessoal do jovem (ECARIUS et
al., 2011, p. 73).
Como sistema dinâmico, a família é compreendida como
lugar da socialização e transmissão das condições sociais
e culturais, de formas da vida coletiva e de definição de
relações. Entretanto, a família tem, por vezes, um papel
ambíguo na biografia dos jovens: de um lado, eles buscam
sua autonomia e, desta forma, libertar-se da proteção ou
das amarras familiares, mas de outro lado, os pais servem,
por vezes, de modelos de superação das situações novas
(BÖHNISCH; LENZ; SCHRÖER, 2009). As experiências
contraditórias no cotidiano são esclarecidas na família, da
mesma forma que a capacidade para uma vida em comum
emerge dos confrontos e atritos dentro da família, como
instância primária e mediadora dos elementos da cultura
abstrata. Os atritos na família propiciam o desenvolvimento
e a assimilação de um habitus 4 familiar, o qual se desenvolve, todavia, apenas na separação da família, como recurso
biográfico do indivíduo já autônomo (op.cit.).
Mudar-se da casa dos pais, como satisfação de uma necessidade cotidiana e subjetiva, é decisivo para o desenvolvimento do jovem; trata-se de uma etapa biográfica central que
tem uma função de estabilização no contexto da superação
individual de fases da vida (DEINET; ICKING, 2009). A
separação dos pais é, portanto, um processo complexo, o
qual exige diferentes estratégias, negociações e formas de
agir. Segundo Böhnisch; Lenz; Schröer (2009), fala-se em
independência dos pais e junto aos pais. Num contexto de
dependência material e emocional dos pais, como se encontra a maioria dos jovens pobres, essa separação da família
vem sendo postergada. A falta de inserção no mercado de
trabalho, o prolongamento da qualificação profissional ou
as rupturas no processo de escolarização implicam para os
jovens e seus pais uma situação que deverá ser negociada.
Os jovens se encontram entre o desejo da libertação dos
pais e o desejo ou necessidade de permanecer com eles.
Diante das expectativas sociais para com o grupo familiar e diante das mudanças sociais, a família é colocada
sob a pressão de ser capaz de se adaptar e zelar pelos seus
filhos e filhas, e de garantir para eles e elas condições de
desenvolvimento. O entendimento social da família é como
lugar de aconchego, amor e segurança dos seus membros,
sobretudo de proteção contra ameaças do mundo exterior.
Esta imagem está, contudo, por vezes, em contradição
com a realidade. A família é também um lugar de relações
ambíguas, no qual conflitos difíceis e violência de diversos
tipos estão presentes.
Violência na família é um fator que exerce forte influência
no trabalho identitário dos jovens. Segundo Lamnek et al.
(2006), crianças, mulheres e homens são frequentemente
mais maltratados por seus entes mais próximos do que por
quaisquer outras pessoas: as vítimas mais frequentes são as
crianças e a maioria dos atos de violência são cometidos
pelos parentes; para esses mesmos autores, a sociedade é
mais tolerante com a violência que acontece na família do
que em qualquer outro grupo social. Uma outra questão é o
4
Bourdieu (2015) define habitus como um princípio estruturante incorporado
pelo sujeito, gerador de práticas sociais e ao mesmo tempo, um sistema de
classificação destas práticas; o habitus organiza as práticas e a percepção classificatória destas, ou seja, do próprio mundo social. A incorporação advém da
pertença do sujeito a determinada classe
social.
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uso da violência como elemento de educação e socialização
familiar, onde ainda existe o entendimento de que a dor
física pode ser utilizada como meio de assustar e coibir
comportamentos não desejados. Para Braaksma (1995) essa
educação desonrosa não pode ser mais aceita: não se pode
mais subestimar os efeitos negativos de atos de violência
sobre a pessoa e seu desenvolvimento, especialmente sobre
a compreensão que tem de si mesmo.
Ao lado das pesquisas sobre experiências de violência
na infância (ver AZEVEDO; GUERRA, 2011) são também
investigados fatores protetivos e estratégias das crianças
no lidar com e para a superação de situações adversas,
sobretudo as pesquisas na perspectiva da salutogênese.
Dlugosch (2010, p. 67) menciona alguns destes fatores:
bom desempenho escolar, inteligência, boa saúde, modelos
positivos no mundo real ou na ficção, a saúde psicológica
da mãe (via de regra, o outro significativo mais presente),
e para jovens de faixa etária avançada, um posto de trabalho interessante. A ligação entre mãe e filho\a e a relação
com uma pessoa estável de referência funcionam como
fatores protetivos e para o desenvolvimento de estratégias
de superação na infância. Neste sentido, trabalha-se com o
conceito de resiliência, como capacidade de minimizar ou
compensar riscos de desenvolvimento, superar influências
negativas externas, e de se apropriar de competências que
impulsionem o estado saudável (op.cit.).
Família é, desta forma, um território multifacetado,
que exige uma perspectiva multidimensional para seu tratamento. Ela pode, de um lado contribuir como recurso
para o desenvolvimento identitário do jovem, mas pode
também, de outro lado, como já mencionado, prejudicar
este desenvolvimento. Para se ter uma compreensão destes processos, da constelação estrutural familiar e destas
ambivalências, é necessário uma contextualização e sua
articulação com processos sociais mais amplos. Ou seja,
não estamos aqui separando a família do contexto social e
econômico no qual estas dinâmicas familiares acontecem,
muito menos podemos negligenciar as formas pelas quais
as famílias são afetadas por questões socioestruturais. Na
pesquisa sobre jovens e construção de perspectivas é importante observar, todavia, como os aspectos da resolução de
conflitos dentro da família são negociados, como o poder
é distribuído e exercido, e como as tensões entre os desejos
individuais, ambições individuais e orientações familiares
são negociadas.
Também a rede social fora do ambiente familiar pode
ser fator impulsionador da saúde do sujeito, em termos
gerais. A escola é para muitas crianças, não apenas refúgio,
como também lugar de experiências positivas em relação ao
caos familiar, o que também contribui para o desenvolvimento de resiliência. Segundo a perspectiva salutogenética,
são recursos de resistência: conhecimento, inteligência,
estratégias marcadas pela racionalidade, flexibilidade e
pré-visão, identidade, além de recursos macroestruturais
de resistência, como estabilidade cultural e religião. Eles
ajudam na superação das tensões e situações difíceis, e podem ser ativados e utilizados. Quanto mais destes recursos
forem mobilizados, tanto mais conseguir-se-á superar com
sucesso os acontecimentos atuais estressantes na vida, ou
seja, desenvolver um management (administração) adequado
daquelas tensões.
A mera existência de recursos ou capitais, entretanto,
não é nenhuma garantia para um trabalho identitário bemsucedido, no sentido de uma construção da relação positiva
consigo mesmo e de uma perspectiva futura. A questão
central aí é como acontece o processo de transferência do
recurso para a construção da identidade. Keupp et al. (2008)
identificam duas dinâmicas principais: 1. a transformação
de um tipo de capital em outro, p.ex. capital social (relações) em recursos materiais e culturais; 2. a transformação
de um recurso externo em recurso interno. A rede social
(o conjunto de relações) funciona na administração de situações de crise e nela há também um aspecto essencial de
fomento identitário, que é a negociação do reconhecimento
mútuo. Para estes fins, a rede social funciona como ponto
de orientação nas situações de tensões internas e rupturas
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externas dando apoio emocional (amor, reconhecimento,
sentimento de pertença).
Mais importante que a existência de recursos é, todavia, a percepção destes pelos jovens e sua utilização como
tal. É na percepção e utilização dos recursos que reside a
possibilidade para a realização de esboços de identidade e
de projetos de vida. Para Keupp et al. (2008) também a
ausência de recursos pode, paradoxalmente, desencadear
processos identitários, o que nos leva a corroborar a hipótese de que a existência de muitos recursos em si não é
garantia de trabalho identitário “positivo”, mas a percepção
e mobilização destes.
Dentre os recursos materiais e objetivos, o trabalho
adquiriu na minha pesquisa um lugar de proeminência,
uma vez que esteve presente em todas as biografias. Com
efeito, o trabalho remunerado não é apenas garantia de
previdência de bens e de satisfação de necessidades básicas
como veremos a seguir.
A estagnação do mercado de trabalho atua na contramão
deste desenvolvimento: traz insegurança para uma gama de
jovens que se encontram na transição escola-mercado de
trabalho. Nestas condições permanece para eles o perigo de
um longo período de desemprego. Uma vez que os jovens
não têm muitas alternativas, acabam aceitando trabalhos em
setores de insegurança social, que exigem grande capacidade
de improvisação e auto-organização, mas não possibilitam
a construção de uma independência material. Os jovens
têm que cuidar, eles mesmos, de sua integração, uma vez
que não podem contar com um trabalho seguro, mesmo
depois da profissionalização.
Para aqueles que não têm uma qualificação profissional
a situação se agrava, uma vez que não existe, para eles,
praticamente nenhuma chance no mercado formal de trabalho. Os jovens sem qualificação profissional se veem na
situação de emergência de “pegar o que achar”. Não existe
um espaço para experimentações prévias, o que também
conduz a inseguranças neste processo de transição. “A transição para a profissão, neste sentido, é mais arriscada do
que para as gerações anteriores, ela exige alta competência
social organizacional e coloca em desvantagem aqueles que
dispõem de pouca capacidade de auto-organização, e só alcançaram níveis baixos de escolarização” (HURRELMANN;
QUENZEL, 2007, p. 92).
Partindo das condições do mercado de trabalho, podemos entender que estes jovens estão estruturalmente em
situação de desvantagem. Sob estas condições encontram-se
em situação dramática aqueles que têm uma qualificação
insuficiente por conta de rupturas na trajetória da formação ou porque não dispõem de conhecimentos suficientes
para uma inserção inicial no mercado formal (por conta de
uma alfabetização precária, de analfabetismo funcional). Os
jovens em desvantagem social começam a trabalhar muito
cedo (na pesquisa encontramos jovens que trabalham desde
os treze anos de idade), a maioria em condições de trabalho
precárias, sem proteção social, no mercado informal, por
vezes em micro negócios de parentes e conhecidos. Para
5. Trabalho remunerado como recurso
O trabalho é ainda relevante como fonte de produção
de sentido por diferentes razões: é para muitos jovens a
única fonte para aquisição de meios materiais de existência,
possibilita reconhecimento social, autorrealização e inserção social; o trabalho viabiliza, ainda, esboços de ações e
por isso, tem um sentido de instituidor identitário. Neste
sentido, a tarefa do sujeito seria realizar, nas condições
de trabalho, um direcionamento que vise a ampliação de
suas possibilidades de autorrealização. O trabalho significa
para o jovem, portanto, a possiblidade de participar efetivamente da vida social. Como oferta de reconhecimento
que a sociedade lhe concede, o trabalho abre o acesso aos
bens sociais produzidos e serve também como símbolo de
distinção, além de possibilitar a realização de esboços e
projetos de identidade. O trabalho é a condição essencial
para autodeterminação, para a autonomia e independência
material.
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
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Jovens em desvantagem social e a autoformação
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parte destes jovens a realidade mostra que, mesmo quando
a escolarização não tem rupturas, eles enfrentam longos
períodos de desemprego. A trajetória da ocupação remunerada não tem para eles uma linearidade do tipo “trabalho
informal-formação profissional-trabalho formal“. Apenas
alguns deles encontram trabalho depois da conclusão do
nível médio. As descontinuidades na escolarização trazem
consequências desastrosas para a trajetória de profissionalização; mais difícil ainda é para aqueles que rompem
definitivamente a escolarização. Desta forma, muitos jovens
em situação de desvantagem social podem acabar formando
a “reserva” para atividades criminosas e são eles mesmos
que acabam se tornando as vítimas de atos diferenciados
de violência, inclusive daqueles cometidos pelos aparelhos
de Estado.
6. A construção identitária e de perspectivas de futuro:
a qualificação em projetos alternativos à escolarização
formal
Tantos os jovens que não concluíram a escolarização
quanto aqueles que concluíram o nível médio, mas não têm
trabalho, se veem na urgência de ampliar suas chances de
inserção laboral e social. A existência de projetos sociais
de organizações não-governamentais vem contribuindo,
desde finais da década de oitenta, com a formação destes,
oferecendo possibilidades de profissionalização, inclusive
sem custos, através de cursos de curta duração. Mesmo
quando as dimensões da qualificação se limita a auxiliares
técnicos, estes projetos são vistos como recursos objetivos
pelos jovens em desvantagem social que participaram da
pesquisa. Nesta perspectiva, entrevistei jovens que frequentavam dois cursos de formação em duas ONGs do Subúrbio
Ferroviário de Salvador: um curso de pedreiro auxiliar da
construção civil e outro para auxiliar de escritório. Através das narrações das entrevistas procuramos reconstruir
como as ações atuais se direcionam para o futuro e como
os sujeitos trabalham seus projetos de vida. André, um dos
entrevistados, conta:
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Jovens em desvantagem social e a autoformação
127
A: com esses com esses aprendizados eu espero que futuramente eu seja o o-, pessoal importante nessa área,
não pegue aro-, pegue cargos insuperior-, superior a
qualquer outo quero crescer, um pouquinho mais com
isso tudo minha-, aí com com teno um bom cargo com
bons condições eu eu tente crescer futuramente (entrv.
n.7, outubro, 2010)
André descreve suas expectativas em relação aos seus
esforços de formação: o aprendido é o capital\recurso que
poderá ser trocado por uma posição melhor; este se articula com um esboço de identidade “crescer futuramente“,
que para ele significa alcançar um patamar profissional
superior, tornar-se “pessoal importante“ (sic) na sua
área. Suas ideias estão voltadas para o futuro e seu esboço
de si mesmo está relacionado a um status elevado através
da ampliação da competência profissional. Seu esboço de
si traz, portanto, o resultado do seu esforço: crescimento
individiual e reconhecimento social através do sucesso profissional. O desenvolvimento de competências tem para ele
a função de viabilzar mobilidade social através de chances
de ascensão profissional.
Em termos gerais, no que diz respeito à construção de
esboços e projetos, encontramos nas biografias a conclusão
da escolarização do nível médio e “encontrar trabalho“ como
aspectos essenciais. Vemos aí uma busca pela continuidade
da escolarização que se desenvolve até a profissionalização.
Os esboços e projetos apresentados pelos jovens vão desde
a construção de uma autonomia profissional em áreas tradicionais de ocupação (negócio próprio, como uma oficina
de serralheria, trabalhar por conta própria) até o tornar-se
uma força de trabalho flexível, diversificada para empresas
de um mercado em constante transformação. Uma formação
universitária também foi mencionada. Estes esboços de si e
projetos identitários incluem autonomia, desenvolvimento
de capacidades intelectuais, sociais e comunicativas, ampliação e diversificação de conhecimento e reconhecimento
social. A sua realização exige a mobilização de recursos. Os
recursos são meios, que no trabalho identitário cotidiano
são percebidos, mobilizados e utilizados pelos jovens entrevistados, como já colocado, que auxiliam e dão suporte
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
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na superação das exigências e desafios sociais.
Os recursos subjetivos têm a função principal de servirem como fatores protetivos. Os dados das entrevistas
apontam como recursos subjetivos: a) a capacidade de
reflexividade - que possibilita a construção renovada de relações socioemocionais e a ponderação sobre a própria vida,
quando momentos de tomada de decisões são vivenciados;
b) a capacidade de decidir - uma força interior das mais
importantes, através da qual o foco recai sobre a própria
vida e a retomada da escolarização nesta etapa da vida; c) a
auto-atividade – como a capacidade de construir alternativas;
d) a capacidade de resistência – que ajuda na superação
de crises; e) a disposição para aquisição de competências e
novas habilidades – ligadas à apropriação de conhecimentos
e informações. Os recursos objetivos mencionados foram:
o trabalho formal, a família, como acima exposto, a escola
e os projetos sociopedagógicos de profissionalização que
eles frequentam. Além do desenvolvimento de habilidades
e competências escolares, as instituições de ensino formais
e alternativas são percebidas pelos jovens como recursos
e têm relevância biográfica: através das relações com os
outros significativos nestas instituições, acesso a outros
recursos, apropriação de conhecimentos, autotransformação
e mudança de aspectos do habitus através da incorporação
de um “perfil de trabalhador”, cujo objetivo maior é a
realização de um projeto de vida baseado na autonomia
material. Os jovens entrevistados se mostram centrados nos
objetivos e direcionamentos que estão dando a suas vidas e
conseguem, no plano discursivo, articular uma construção
de perspectivas de futuro para si.
Nas condições de desvantagem social, os recursos subjetivos são pré-requisitos importantes na manutenção da
capacidade de ação e da autoefetividade. A ausência ou
insuficiência de recursos materiais e de políticas instituídas de apoio fazem daqueles recursos a condição sine qua
non da superação de processos importantes: a passagem de
status jovem-adulto e a condução, por si próprio, da vida.
Os esboços e projetos demonstram o direcionamento da
identidade para o futuro, através dos quais os objetivos
colocados se mostram alcançáveis, significando um terreno
dinâmico de possibilidades.
Considerações finais
Na pesquisa qualitativa sobre jovens e com jovens, as
teorias salutogenéticas e a teoria dos capitais se complementam. Com efeito, ambas vêm se revelando como importantes
aportes para a compreensão das trajetórias dos sujeitos,
das suas ações individuais e das articulações destas com
as estruturas sociais e seus mecanismos de manutenção do
status quo. Neste terreno situam-se as questões relativas
à continuidade da vida social dos sujeitos, e dentro desta,
os processos de formação e autoformação.
A autoformação tem implicações sobre a construção
identitária e vice-versa. A formação e a identidade necessitam da imaginação de um futuro possível, da tomada de
decisões e de que o sujeito se coloque a caminho de um
futuro, de que vá ao encontro dos outros. Em situação
de precariedade de vida este não é um processo livre de
contradições e muitos jovens podem fracassar. Todavia, são
esses jovens em situação precária os que mais precisam de
se colocar frente a frente consigo mesmo, com o outro e
com o mundo. Neste sentido, podemos compreender que o
papel da pedagogia social reside também numa intervenção
construtiva neste processo. Seu fazer cotidiano remete ao
trabalho com os jovens para a construção de esboços e projetos de si mesmos e na busca de possibilidades de realização.
Compreendemos que a educabilidade ou formabilidade não
é potência nata, mas é uma resposta dada aos desafios, é
um resultado de relações pedagógicas e de expectativas,
como também resulta de ofertas e tarefas culturais.
Podemos compreender também que as instituições de
ensino, tanto as formais quanto as alternativas a estas, têm
papel essencial na trajetória dos jovens que se encontram
em desvantagem social. Elas podem significar a inclusão
e a participação em condições favoráveis na vida social ao
proporcionar a apropriação de conhecimento, o desenvol-
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Jovens em desvantagem social e a autoformação
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
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vimento de habilidades instrumentais, mas, sobretudo, o
desenvolvimento da competência para a ação. Assim sendo,
finalizo este artigo colocando a importância e urgência da
construção de uma política social de formação de jovens
e de possibilidades de inserção adequada no mercado de
trabalho para aqueles em situação de desvantagem social,
uma vez que a autoformação e uma condução autônoma
da vida exigem recursos efetivos (objetivos e subjetivos) e
opções sociais elegíveis.
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Jovens em desvantagem social e a autoformação
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
Recôncavo Baiano:
Formação, Evolução Territorial, Econômica e
Populacional do Município de Cachoeira (BA)1
Gleidson Sena Dias2
Nacelice Barbosa Freitas3
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Importância do município de Cachoeira na ocupação do território baiano e brasileiro 3. Formação territorial de Cachoeira 4. Disputas territoriais: nativos versus portugueses 5. Formação dos Aspectos Sociodemográficos
de Cachoeira 6. Considerações Conclusivas 7. Referências
1. Introdução
A formação territorial e econômica brasileira tem sua gênese
no território baiano, principalmente no atual município de Cachoeira. Destarte, analisar e entender a formação territorial de
Cachoeira é aprofundar os conhecimentos acerca da ocupação
das terras da Bahia que se encontravam mais afastadas do litoral,
tendo em vista que a conexão e o acesso entre este e o sertão era
feita por meio do transporte marítimo realizado através do rio
Paraguaçu.
Invadir e ocupar terras significa expansão do território, que é
caracterizado por e a partir das relações de poder. Com esse entendimento os invasores portugueses investiram forças e recursos na
efetivação da ocupação das terras indígenas no Recôncavo baiano,
1
Texto retirado da dissertação de mestrado “Alijados da Terra: (des)territorialização e (des)caminhos da Comunidade Quilombola de Santiago do Iguape
em Cachoeira-BA” defendida no Programa de Mestrado Profissional em Planejamento Territorial da Universidade Estadual de Feira de Santana em 2017.
2
Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana,
e Mestre pelo Programa de Mestrado Profissional em Planejamento Territorial (PLANTERR) da mesma instituição. E-mail: gleidsoncachoeira@hotmail.
com
3
Profª. Drª. do curso de Geografia da Universidade Estadual de Feira de Santana e do Programa de Mestrado Profissional em Planejamento Territorial
(PLANTERR- UEFS). E-mail: nacegeografic@hotmail.com
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pois era um grande passo no processo de expansão territorial lusitana. Para isso utilizaram os rios como via de acesso, a exemplo
do Paraguaçu, que ligava o litoral até a antiga Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, tendo em vista que a
vila apresentava rotas de acesso para terras localizadas no interior
do continente.
As plantações de cana-de açúcar, com a presença de numerosos engenhos que proporcionavam a produção do açúcar (valorizado no mercado internacional), eram a força motriz da economia
do Brasil nos primeiros séculos da ocupação lusitana, e projetou
Cachoeira como um importante centro econômico e entreposto
para o comércio do Brasil colônia.
Nesse sentido, este texto discute a formação territorial, econômica e populacional do município de Cachoeira no Recôncavo
Baiano, demonstrando a sua importância na formação do território e na economia do Brasil nos primeiros séculos de ocupação
portuguesa.
Brejo, Cabonha, Capoeiruçu, Calembá, Caonge, Calolé, Caibongo, Campinas, Carapinha, Desterro, Dendê, Engenho Velho da
Ponte, Faleira, Fazenda Bastos, Formiga, Granja, Guaíba, Imbiara de Cima, Imbiara de Baixo, Maria Preta, Moinho, Murutuba,
Opalma, Pinguela, Povoado de Alves, Rio do Corte, Saco,
São Francisco do Paraguaçu, Tupim, Tibiri, Terra Vermelha,
Tabuleiro da Vitória, e Tombo.
O município é tangenciado pela BR-101, que em Conceição
da Feira cruza com a BA-502, conectando-se à Feira de Santana,
e BR-324, que permite o acesso a Salvador. A BA-420, no sentido
leste, permite a circulação entre Cachoeira e Santo Amaro, e, no
sentido oeste, com São Felix.
MAPA 1 – LOCALIZAÇÃO DE CACHOEIRA NO RECÔNCAVO
2. Importância do município de Cachoeira na ocupação do
território baiano e brasileiro
O Recôncavo situa-se na Baía de Todos os Santos, e recebe
esse nome devido ao seu formato côncavo, que ocupa um raio
de aproximadamente 100km. Durante o Brasil colônia foi área
de intensa movimentação econômica, pois abrigava importantes
engenhos, que tinham vultuosas produções de açúcar. Os municípios que estão em sua área de abrangência compõem o Território
de Identidade Recôncavo Baiano, uma unidade de planejamento
da Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia (SEPLAN),
formada por: Cabaceiras do Paraguaçu, Cachoeira, Castro Alves,
Conceição do Almeida, Cruz das Almas, Dom Macedo Costa,
Governador Mangabeira, Maragogipe, Muniz Ferreira, Muritiba,
Nazaré, Santo Amaro, Santo Antônio de Jesus, São Felipe, São
Felix, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Sapeaçu,
Saubara, Varzedo.(MAPA 1). Cachoeira localiza-se no Recôncavo, na parte leste do Estado da Bahia, a 110km, em distância
rodoviária, de Salvador e aproximadamente 66km em linha reta.
É formada por dois distritos - Santiago do Iguape e Belém de
Cachoeira - e 36 povoados: Alecrim, Alto do Camelo, Boa Vista,
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Recôncavo Baiano: Formação, Evolução Territorial, Econômica e Populacional do Município de Cachoeira (BA)
Fundada em 1531, Cachoeira abrange uma área de aproximadamente 395,223 km², situada a uma altitude média de 38m,
na Zona da Mata; integra a Mesorregião Geográfica Metropolitana de Salvador e a Microrregião Geográfica de Santo Antônio
de Jesus; limita-se com São Gonçalo dos Campos e Conceição
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da Feira ao norte, com Governador Mangabeira a noroeste, com
Muritiba e São Felix ao oeste, com Maragogipe e Saubara ao sul e
ao sudoeste, e com Santo Amaro ao leste. A noroeste, encontra-se
o Lago de Pedra do Cavalo, e em toda porção oeste, sudoeste e sul
é banhada pelo rio Paraguaçu, que tem foz a aproximadamente 45
km de distância dos limites territoriais do município.
Sobre a importância do rio Paraguaçu, Freitas (2013, p. 75)
afirma que o “Paraguaçu se destacava como via de penetração e
escoamento da produção. Foi intensamente utilizado pelos latifundiários do gado e do açúcar, como ligação entre o local da
produção ao porto da cidade do Salvador”. Além disso, se caracterizava por fornecer alimentos para as populações, pois contava
com significativa quantidade de pescados e mariscos, além de oferecer a possibilidade de utilização da água para irrigar as pequenas
lavouras de subsistência.
O mar grande que corta o território no sentido oeste-leste,
oferecia condições privilegiadas para a exploração e ocupação das
terras do sertão. Neves (2008, p.13) afirma que:
Suas águas abrem caminho desde o sertão até o litoral, servindo
de divisor das terras do Recôncavo e as dos sertões, que passaram
a ser identificadas como sertão de Baixo – as terras localizadas
abaixo da margem do Paraguaçu – e o de Cima – ao norte do
mesmo rio.
Vale ressaltar que, com a construção da Barragem e Hidrelétrica de Pedra do Cavalo, houve a redução do fluxo de água doce no
trecho do Rio Paraguaçu entre Cachoeira e a foz, fazendo com o
que a calha do rio fosse invadida em sua totalidade pela água salgada do mar, transformando o rio Paraguaçu em um rio de água
salgada, o que ocasionou diversos impactos ambientais, que serão
discutidos em outra oportunidade.
Entre os séculos XVII e XIX, era possível se deslocar do porto
da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira para
diferentes destinos no continente, pois os caminhos, que se iniciavam em Cachoeira, permitiam aos exploradores e viajantes opções
de acesso que outras vilas não ofereciam. A esse respeito, Vilhena
(1969, p.483) expõe que:
Saem da vila da Cachoeira diferentes estradas, o que concorre
muito para fazê-la famosa, pois que de tôdas as minas, e sertões
se vem dar àquele pôrto; há muitos pastos em que se refazem as
137
cavalgaduras, que pisam aquelas estradas, e os viajantes ali vão
deixar uma grande parte do seu dinheiro. A estrada que sai por
S. Pedro da Muritiba estende-se até Minas Novas, Rio de Contas, Sêrro do Frio, e todas as minas gerais, até que circulando vai
sair ao Rio de Janeiro; sai outra que passando pela de Água Fria,
passa às minas de Jacobina, corta parte do Piauí, e conduz até o
Maranhão; e além destas saem outras de menos conta, e menor
distância.
A importância da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto
da Cachoeira não residia apenas no fato de ser o último ponto
de parada das embarcações que velejavam da Baía de Todos os
Santos rumo ao sertão, pelo rio Paraguaçu, mas também, entre
outros fatores, a existência de estradas e pastagens, que favoreciam
o descanso dos animais, o que também possibilitou a formação de
pequenas feiras para a comercialização de mercadorias, principalmente entre os séculos XVII e XIX. A foto 10 remonta o período
áureo da navegação do rio Paraguaçu, ao retratar a chagada do
Navio da Companhia de Navegação Baiana que realizava a travessia entre o porto de Salvador e o cais de Cachoeira, e a intensa
circulação de pessoas que constantemente se deslocavam entre o
sertão e o litoral.
Cachoeira é um município conhecido nacionalmente devido
à importante participação na luta pela independência da Bahia
e do Brasil, onde, no dia 25 de junho de 1822, deu-se início a
batalha contra as tropas portuguesas que durou três dias, com
embarcações ancoradas no rio Paraguaçu e canhoneiras voltadas
para a região da atual praça 25 de junho. Por desconhecerem a
dinâmica da maré, que adentrava a calha do rio na maré baixa, os
navios lusitanos encalharam e as canhoneiras perderam seus alvos,
ficando vulneráveis aos ataques das tropas de Cachoeira. Esse fator
foi preponderante para a vitória dos Cachoeiranos. Após as lutas,
a sede do Governo foi transferida para o município, por meio da
constituição do Conselho Interino de Governo, que substituía a
Junta Militar de Governo, localizada na capital baiana e sob o domínio português. Em decorrência desse fato histórico, foi denominada pela lei nº 43, de 13 de março de 1837, de heroica cidade
de Cachoeira.
___________
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Recôncavo Baiano: Formação, Evolução Territorial, Econômica e Populacional do Município de Cachoeira (BA)
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
138
A Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira foi criada em 1674, elevada à condição de Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira do Paraguaçu em 1698,
e em 13 de março de 1837 passa à categoria de cidade, por meio
da Lei Provincial Nº 44/1837, com o nome de Cachoeira. Devido
ao valioso conjunto arquitetônico, com casarios e Igrejas do estilo
Barroco, estruturas que se assemelham ao Pelourinho em Salvador
e Ouro Preto em Minas Gerais, foi reconhecida e tombada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
como Cidade Monumento Nacional. Em 2007, é promulgada a
Lei Estadual nº10 695/07, que institui o município como a capital da Bahia em todo 25 de junho, data em que a sede do governo
e os atos administrativos do Estado são deslocados para o município em reconhecimento da importância do mesmo na luta pela
independência.
CACHOEIRA: FORMAÇÃO TERRITORIAL
(QUADRO 1)
ANO
SITUAÇÃO ADMINISTRATIVA
1674
Elevação a Freguesia de Nossa Senhora do Rosário
1698
Elevação a condição de Vila de Nossa Senhora do Rosário do
Porto da Cachoeira do Paraguaçu
25 de junho de 1822
Sede do Governo Provisório do Brasil durante a guerra da Independência
13 de março de 1837
A vila foi elevada à categoria de cidade de Cachoeira pelo
decreto imperial (Lei Provincial 44); Sede do Governo Provisório
do Brasil pela segunda vez, durante o levante da Sabinada; denominada pela lei nº 43, de 13 de março de 1837 como Heroica
Cidade de Cachoeira.
1971
Considerada Cidade Monumento Nacional pelo Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (IPHAN)
2007
Lei Estadual nº10 695/07instituí o município como a capital da
Bahia todo os dias 25 de junho
Fonte: http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico.
Elaboração: DIAS, Gleidson Sena.
No percurso da formação territorial, Cachoeira perdeu parte significativa do território, dando origem a outros municípios,
perdendo população e, consequentemente, a sua importância socioeconômica no Estado.
139
3. Formação territorial de Cachoeira
Analisar a formação territorial de Cachoeira requer um passeio pelos tempos de outrora, aqueles da chegada dos portugueses
trazidos pelas naus que flutuavam sobre o oceano, que refletia o
azul do céu. Embarcações que deslizavam sobre aquela imensidão,
cujas lendas assustavam até os guerreiros mais valentes, e assim
chegaram à terra desconhecida, embora o Tratado de Tordesilhas,
de 07 de junho de 1494, já determinasse a posse entre Portugal e
Espanha das terras habitadas pelos povos pré-cabralinos, denominados de índios pelos colonizadores
Em 1500 aportaram em Porto Seguro. O português Manuel
Pinheiro, em missão exploratória no litoral, no sentido sul-norte, deparou-se com o encontro entre as águas do rio Paraguaçu e
Oceano Atlântico, uma baía, que viria a ser denominada de Todos
os Santos. Ao velejar até seu interior notou a existência de uma via
de acesso para a parte mais interna das novas terras, denominada
pelos nativos de rio Paraguaçu ou Peruaçu (VILHENA, 1969).
Durante o processo de chegada, reconhecimento e exploração, o contato dos portugueses com os povos Tupinambás, que
habitavam as terras que se estendiam desde o litoral de Sergipe até
Ilhéus, foi pacífico, devido a influência de Diogo Alvares, Caramuru. Eles estabeleceram com os povos nativos relações de trocas
de mercadorias sem a utilização de moeda, escambo de madeiras,
alimentos e mão de obra por roupas e ferramentas. No entanto,
com a tentativa de escravização das populações indígenas, houve
resistência e o contato, antes pacífico, passou a ser permeado por
diversos conflitos, como analisa Freitas (2013, p. 69) ao descrever
a “chegada ao litoral que combina violência, força e destruição
como instrumentos estruturantes do poder condizente com o delineamento das novas fronteiras e limites”.
O choque entre os dois povos desenhava-se no território como
disputa pela territorialidade, pois de acordo com Sack (1986, p.
2-3)
A Territorialidade nos humanos supostamente ser um controle
sobre uma área ou espaço que deve ser concebida e comunicada
(...). A Territorialidade nos humanos é melhor entendida como
uma estratégia espacial para afetar, influenciar ou controlar fontes e pessoas, controlando área; e, como uma estratégia, a Territorialidade pode ser ligada e desligada.
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Na disputa pela manutenção do controle e da posse do território, em diversos momentos, os nativos sacaram arcos e flechas,
partindo para o enfrentamento contra os invasores que responderam com seus paus cuspidores de fogo movido à pólvora. Não
obstante, a recusa à subjugação aos mandos e desmandes dos invasores, levou ao quase extermínio da população que habitava as
terras, desativando, mesmo que parcialmente, a territorialidade
dos nativos.
Com a posse territorial e na busca por defender, explorar e
ocupar efetivamente as novas terras, a coroa portuguesa optou por
dividi-la em capitanias hereditárias, faixas territoriais que se estendiam latitudinalmente do litoral até a linha do Tratado de Tordesilhas. A Bahia foi dividida em cinco capitanias, a saber: Porto
Seguro, Baía de Todos os Santos, Ilhéus, Itaparica e Paraguaçu
(FONSECA, 2006).
O atual território de Cachoeira situa-se na área que correspondia a Capitania do Paraguaçu; em 1553, esta foi doada a D. Álvaro da Costa, filho de D. Duarte da Costa, segundo Governador
Geral do Brasil. Ao tomar posse das terras, D. Álvaro repartiu-a
em sesmarias, cabendo a porção territorial que hoje corresponde a
Cachoeira, ao genovês Paulo Dias Adorno (FREITAS, 2013).
Para empreender a colonização e a ocupação do território, o
genovês fixou residência nas mediações dos riachos Caquende e
Pitanga, local onde funda seu engenho, pois as condições pedoclimáticas eram propícias para cultivo da cana-de-açúcar. Ergue na
nova terra um dos maiores símbolos da dominação portuguesa,
uma das marcas do catolicismo, a atual Capela de Nossa Senhora
D’Ajuda, antes denominada Capela de Nossa Senhora do Rosário.
A Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira
desempenhou papel primaz no processo de ocupação do interior
da Bahia e do Brasil, servindo de elo, e entreposto, entre a primeira
capital da Colônia Salvador e as terras à oeste do litoral, ou como
denomina Freitas (2013, p. 69), “terras d’além Paraguaçu”. Tal
importância deve-se ao fato da vila localizar-se à margem esquerda
do rio Paraguaçu, fundamental para a circulação fluvial, permitindo que as embarcações adentrassem o território para além do
litoral e, de acordo com Freitas (2013, p. 69) o povoamento da
Bahia se deu “espraiando-se em direção aos rios mais próximos do
litoral e em direção ao interior”.
É imperativo salientar que, nos primeiros séculos de ocupação, o transporte hidroviário se constituía em importante forma
de transportar mercadorias, mantimentos e pessoas. É nessa conjuntura que se processa o início da formação territorial de Cachoeira.
A criação da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da
Cachoeira se dá em meio a empecilhos que dificultavam a administração da Colônia, dentre eles as ameaças constantes dos holandeses, que já se faziam presentes em algumas partes do território,
a exemplo de Pernambuco. Soma-se a isso a busca por formas
viáveis e eficazes que pudessem garantir a posse da terra já conquistada, para então continuar o processo de exploração pelas matas que escondiam tesouros, mas ao mesmo tempo dificultavam o
acesso ao interior.
No século XVII, o então governador geral D. João de Lencastro ordena, por meio de Carta Régia, a criação de vilas e povoados.
Segundo Fonseca (2006, p. 209)
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No século XVII, foi grande o esforço da Coroa Portuguesa para
ocupar o território, ao assumir novas direções para o sertão e
para o sul, no que foi prejudicada, inicialmente, pela invasão holandesa, em 1624. (...) buscando atender às necessidades de povoamento das terras, D. João de Lencastro, o trigésimo segundo
governador, em carta régia datada de 1693, ordenou a criação de
vilas e povoados. Como consequência dessa medida foi criada a
Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, em
29 de janeiro de 1698.
O atual município de Cachoeira se estendia por uma área que
hoje corresponde a aproximadamente 35 municípios do Estado
da Bahia, a exemplo de São Felix, Feira de Santana, Baixa Grande
e São Gonçalo dos Campos. Os limites, segundo Fonseca (2006)
iam desde o rio Subaúma até o rio Inhambupe, perpassando pela
praia até o rio Real. Os marcos limítrofes podem ser desenhados atualmente da seguinte forma: os rios Subaúma e Ihambupe
localizam-se próximo à Entre Rios, Esplanada e Cardeal da Silva;
o rio Real faz divisa entre os Estados de Sergipe e a Bahia nas intermediações de Ribeira do Amparo, Itapicuru e Rio Real.
No processo desmembramento territorial, a Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira tem as terras partilhadas,
dando origem a 27 novos municípios baianos. Observa-se que a
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143
primeira freguesia a ser desmembrada da então Vila foi Feira de
Santana, em 1833, seguida pela Vila de Curralinho – atual Castro
Alves – em 1880, depois por São Gonçalo dos Campos da Cachoeira em 1884 e São Felix em 1889. Na primeira metade do século
XX, especificamente no ano de 1921, ocorre a separação de Santo
Estevão do Jacuípe, atual município de Santo Estevão, e em 1926
deu-se o desmembramento do município de Conceição da Feira.
O territorio da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto
da Cachoeira deu origem, além dos seis municipios mencionados, a mais outros vinte e um: Ipecaetá, Muritiba, Cabaceiras do
Paraguaçu, Governador Mangabeira, Cruz das Almas, Sapeaçu,
Antonio Cardoso, Rafael Jambeiro, Santa Barbara, Anguera Tanquinho, Ipirá, Pintadas, Serra Preta, Baixa Grande, Macajuba, Itaberaba, Boa Vista do Tupim, Ibiquera, Ruy Barbosa e Lajedinho.
Com o processo de esfacelamento territorial, Cachoeira aos
poucos vai perdendo sua hegemonia territorial. No limiar desse
processo, freguesias como a de Santana dos Olhos d’Água (1833),
atual Feira de Santana, surgem e passam a assumir funções que
outrora eram exercida por Nossa Senhora do Rosário do Porto da
Cachoeira, decorrente, dentro outros fatores, da importância das
feiras de gado (FREITAS, 2013).
Com a diminuição do tamanho territorial, o município de
Cachoeira atualmente goza da memória do seu passado glorioso que emergiu em longo período de recessão, até a estagnação
econômica (segunda metade do século XX até início do século
XXI). A perda de parte do território de Cachoeira tem a sua gênese não apenas no fato já mencionando, mas também no declínio
das lavouras de cana-de-açúcar e de fumo, que movimentavam a
economia do Recôncavo. Outro aspecto responsável pelo processo
é a evolução dos meios de transporte na segunda metade do século
XIX, e a formação de novos centros regionais, em decorrência da
importância econômica, como Feira de Santana, Ilhéus e Vitória
da Conquista. A esse respeito, Santos (1998, p. 85) escreve que
“Cachoeira e Santo Amaro, portos debruçados sobre a água, viam
restringir-se sua zona de influência e desciam da posição de capital
regional para a de centro local”.
Não há como dissociar as modificações territoriais das urbanas
que ocorreram no município, em que as velhas estruturas econômicas – casarios coloniais, que a priori foram construídos para
desempenharem funções relacionadas à importância que a cidade
exercia no âmbito regional e nacional – passam a desempenhar
novos papéis, adequando-se às novas necessidades do espaço urbano, como afirma Santos (2008, p. 74/75) “Uma vez criada e usada
na execução da função que lhe foi designada, a forma frequentemente permanece aguardando o próximo movimento dinâmico
da sociedade, quando terá a probabilidade de ser chamada a cumprir uma nova função”.
Diante destas mudanças, Henrique (2009, p. 2), fazendo
uma releitura dos escritos de Milton Santos, salienta que “lugares sofrem com adaptações, desaparecimento ou diminuição das
atividades chamadas ‘tradicionais’, devido à quebra de seu papel
central”, ou seja, o espaço onde está localizada a cidade de Cachoeira sofreu um forte e perverso processo de recessão econômica,
principalmente a partir da metade do século passado, o que pode
ser constatado através de observações das velhas estruturas.
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4. Disputas territoriais: nativos versus portugueses
Ao fazer a divisão das terras e ilhas localizadas a ocidente, mais
especificamente no hemisfério sul, achadas ou por achar, entre
a coroa espanhola e portuguesa, a igreja católica desconsiderou/
negligenciou a possibilidade de já as encontrar habitadas. Dessa forma, as investidas das expansões territoriais alcançadas pelos
portugueses implicavam na possibilidade de aumento do poder
papal, através da conversão dos subjugados ao catolicismo, pois o
denominado descobrimento/invasão do Brasil foi a última grande
Cruzada de Portugal.
Pesquisas mostram que a população que existia nas Américas
era maior que a do continente europeu. A esse respeito, Santos
(2010, p. 41) escreve que:
Os estudos contemporâneos de história, antropologia e etnologia têm posto à prova muitas das certezas de que se cercou a
abordagem convencional da América pré-conquista. Uma primeira e surpreendente constatação é a de que em 1492 o continente
seria mais populoso do que a Europa, assim considerado o espaço
compreendido entre o Atlântico Norte e os Urais. Pesquisas recentes indicam que a população das três Américas seria, no final do
século XV, de 60 a 100 milhões, dos quais 8,5 milhões estariam
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nas terras baixas da América do Sul. No mesmo momento, a população europeia estaria entre 60 e 80 milhões de pessoas.
Analisando a Bula Inter Coetera conjuntamente com as afirmações supra, é possível inferir que a igreja e os colonizadores
detinham conhecimento acerca do chamado Novo Mundo e das
populações que aqui habitavam, ratificando a assertiva acerca do
processo de negligenciamento para com os povos que viviam nessas terras. Destarte, observando a história da ocupação portuguesa
do território brasileiro, nota-se que foi, deveras, sangrenta e dizimadora.
A busca por ocupar novos espaços, culmina com a expansão
territorial, que significa aumento do poder Estado. A esse respeito,
Freitas (2013, p. 56), baseando-se nos escritos Ratzel, discorre que
a “base da formação do Estado (...) ao ampliar os seus limites, não
se expande apenas territorialmente, mas igualmente a sua força,
riqueza e poder e, enfim, a sua permanência e existência”. Nessa
perspectiva, observa-se que, no início da segunda metade do século XVII, mais precisamente entre os anos de 1651 e 1656, houve
várias guerras (disputas territoriais) entre portugueses e índios da
etnia tapuias. Os nativos, que resistiram às incursões e investidas
usurpadoras de domínio e expansão territorial em prol dos interesses capitalista mercantilista, eram vistos como empecilhos, ameaça
a ser neutralizada. Santos (2010, p. 67), tomando como referência
as explicações de Sierra, ratifica a questão quando explica:
Lugares como Cairu, Camamu, Ilhéus, Jaguaripe e Cachoeira
eram indispensáveis no abastecimento alimentar e no provimento
de materiais, tais como lenha, formas, tijolos, telhas e caixões, para
o funcionamento de engenhos. (...) Os ataques indígenas tinham
tido o “efeito que pôs a contingência de pararem os engenhos e,
parados eles, cessava o comércio e com eles, os pagamentos, crescendo a fome em público e geral dano”. As investidas indígenas,
portanto, não só provocavam danos civis à população afetada, aspecto que é comumente mais ressaltado nos documentos oficiais,
mas tinham também forte impacto econômico sobre o núcleo do
sistema produtivo colonial.
Ao dominar a população nativa, seja por força ou utilizandose de outros meios como a catequização, os invasores introduziram a língua, a cultura, ou seja, passam a exercer poder sobre o
povo, e consecutivamente sobre território. Nessa perspectiva, de
acordo com Haesbaert (1997, p. 42)
O território envolve sempre, ao mesmo tempo (...), uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial
atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma
forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter
político-disciplinar [e político-econômico] a apropriação e ordenação de espaços como forma de domínio e disciplinarização dos
indivíduos.
A introdução de outros símbolos religiosos, de outra cultura e
de outra língua eram, e ainda são, formas de dominação territorial,
pois é parte do processo de destituição identitária de um povo,
ou seja, o processo de (des)territorialização faz parte da estratégia
de dominação do invasor. Santos (2010), fazendo uma releitura
dos escritos de Hemming, critica o silenciamento, a tentativa de
apagar da história os registros que faziam referência às lutas contadas pelos indígenas. Havia e há uma intencionalidade em não
registrar a história de luta desse povo, em transformá-los em povos
sem história, subjugados aos colonizadores, que introduziram sua
língua, cultura, leis e costumes.
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5. Formação dos Aspectos Sociodemográficos de Cachoeira
No que concerne ao contingente populacional do município de Cachoeira, baseando-se nos dados do censo demográfico
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2010), o
município conta com uma população de 32.026 mil habitantes,
e densidade demográfica de 81,3 hab/km², com taxa de urbanização de 51,2%. Comparando a população de Cachoeira com a
população dos demais municípios do Estado, a mesma ocupa a
81ª posição no ranking populacional (IBGE – 2010).
Na tabela 1 estão dispostos dados sobre população total, urbana, rural, taxa de urbanização e de crescimento da população de
Cachoeira entre 1872 até 2010.
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TABELA 1 - CACHOEIRA: POPULAÇÃO TOTAL, URBANA, RURAL, TAXA
DE URBANIZAÇÃO E TAXA DE CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO URBANA
(1872-2010)
cesso de desmembramento do seu território, que acontece entre o
século XIX e a primeira metade do século XX, com perdas territoriais que deram origem a outros municípios (como já foi discutido
no tópico anterior), refletindo diretamente na variação populacional do mesmo, impondo uma redução de aproximadamente 37%
do número de habitantes de Cachoeira no decurso de 68 anos.
A taxa de urbanização, que em 1920 era de 16,70%, passa
para 57,68 em 1950: um aumento de 40,98% no decurso de 30
anos. É preciso considerar que nesse período houve o desmembramento dos atuais municípios de Santo Estevão e Conceição
da Feira. Em 1960, a taxa de urbanização começa a diminuir alcançando o nível mais baixo na década de 1980, com 49.24%,
voltando a aumentar em 1991 para 50,20%. Em 2001, a variação
é de 1,80%, passando de 50,20% para 52%, no entanto em 2010
apresenta uma leve queda, de 52% para 51,20%.
Comparando os dados referentes ao crescimento populacional
do Brasil com Bahia e Cachoeira, percebe-se que há uma progressão no número de habitantes em nível nacional, pois em 1872 o
Brasil conta com 9.930.478 de habitantes, já em 1892 a população era de 14.333.915 de pessoas, enquanto na década de 1900
esse número passa para 17.438.434. No ano de 1920 o país conta
com 30.635.605, em 1940 a população era de 41.236.315, em
1960 o contingente populacional passa para 70.992.343. Já na
década de 1980 os números alcançam as cifras de 121.150.573,
enquanto que em 2000 chega a 169.590.693, e em 2010 vai para
190.755.799 de habitantes.
POPULAÇÃO RESIDENTE
ANO
TOTAL
URBANA
RURAL
TAXA DE
URBANIZAÇÃO
%
TAXA DE
CRESCIMENTO
DA POPULAÇÃO
URBANA
1872
72.834
-
-
-
-
1892
-
-
-
-
-
1900
45.199
-
-
-
-
1920*
50.370
8.414
41.956
16,70
-
1940
26.966
15.355
11.611
56,94
3,05
1950
26.979
15.562
11.417
57,68
0,13
1960
28.869
16.225
12.644
56,20
0,42
1970
27.382
13.613
13.769
49,72
-1,74
1980
27.946
13.762
14.184
49,24
0.11
1991
28.290
14.193
14.097
50,20
0.28
2000
30.416
15.831
14.585
52,00
1.22
2010
32.026
16.387
15.639
51,20
0.25
Fonte: Censos Demográficos do instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE – 1872 a 2010).
Elaboração DIAS, Gleidson Sena.
Quanto ao crescimento da população total é possível notar
que no decorrer de 28 anos (1872-1900) o município apresenta
decréscimo de aproximadamente 38% no número de habitantes. Durante as décadas compreendidas ente 1900 e 1920 houve
aumento populacional de 11,44%, já no período seguinte, entre
1920 e 1940, apresenta redução de 46,46%. Entre 1940 a 1950 o
decréscimo no número de habitantes é inferior a 1%, e no período de 1950 e 1960 a população cresceu aproximadamente 6,7%.
Entre 1960 e 1970, a diminuição do contingente populacional é
de 5,1%. No período que corresponde as décadas de 1970 a 1980
e 1980 a 1991, observa-se um aumento de 2% do tamanho da população. De 1991 a 2001 o crescimento chega a 7,5%, enquanto
no período de 2001 a 2010 a população apresenta aumento de
5,2%.
A variação observada no tamanho da população total de Cachoeira no decorrer de 68 anos___________
(1827-1940) é explicada pelo proPerspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
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TABELA 2– BRASIL, BAHIA, CACHOEIRA: POPULAÇÃO TOTAL,
1872-2010
POPULAÇÃO TOTAL
ANOS
BRASIL
BAHIA
CACHOEIRA
1872
9.930.478
1.379.616
72.834
1892
14.333.915
1.919.802
-
1900
17.438.434
2.117.956
45.199
1920
30.635.605
3.334.465
50.370
1940
41.236.315
3.918.112
26.966
1950
51.944.397
4.834.575
26.979
1960
70.992.343
5.990.605
28.869
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BRASIL
BAHIA
CACHOEIRA
1970
94.508.583
7.583.140
27.382
1980
121.150.573
9.597.393
27.946
1991
146.917.459
11.855.157
28.290
2000
169.590.693
13.066.910
30.416
2010
190.755.799
14.016.906
32.026
Fonte: Censos Demográficos do instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE – 1872 a 2010). Elaboração DIAS, Gleidson Sena
Na escala estadual, observa-se que em 1872 a população era
de 1.379.616 de habitantes, em 1892 esse número corresponde
a 1.919.802, no ano de 1900 passa a 2.117.956, e na década de
1920 esse quantitativo alcança 3.334.465 de pessoas, enquanto
em 1940 a população era de 3.918.112, e em 1960, 5.990.605.
Na década de 1980 observa-se que o número de habitantes
chega a 9.597.393, enquanto que em 2000 a população era de
13.066.910, e no censo demográfico do IBGE de 2010 esse quantitativo apresenta 14.016.960 pessoas.
A análise dos dados municipais mostra que em 1872 o primeiro censo contabilizou 72.834 habitantes, enquanto que em
1900 esse contingente decai para 45.199. Em 1920 observa-se
que a população é 50.370 habitantes, em 1940 o número de pessoas corresponde a 26.966, em 1960 tem- se 28.869 habitantes,
já 1980 apresenta contingente população é de 27.946, enquanto
em 2000 chega a 30.416, e em 2010 esse número compreende
32.026 habitantes.
Comparando os dados da escala municipal com os da nacional e estadual observa-se que, enquanto a população em nível nacional e estadual apresenta crescimento progressivo ao longo do
tempo, a população de Cachoeira apresenta períodos de evolução
e regressão no contingente populacional.
A leitura dos dados da tabela 3 e gráfico 1 permite afirmar que
a taxa de urbanização em nível nacional em 1940 era de 31,24%,
passando para 45,08% em 1960, já em 1980 apresenta taxa de
67,70%. Na década de 2000 esse índice alcança 81,23%, e em
2010 chega até a 84,36%.
Na escala estadual, em 1940 a taxa era de 23,93%, em 1960
era de 34,78%, enquanto que em 1980 chegou a 49,44%. Na
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década de 2000 a taxa alcançou 67,05%, e em 2010, 72,07%.
Quanto ao município de Cachoeira, observa-se que em 1940
a taxa de urbanização era de 56,94%, ao passo que em 1960 foi
para 56,20% e em 1980 era de 49.24%. No entanto os dados do
censo demográfico de 2000 demonstram a taxa de urbanização de
52.0% enquanto em 2010 apresentou cifras iguais a 51.2%. Nota-se que as taxas do município apresentam decréscimo ao longo
dos anos, enquanto no Estado da Bahia e no Brasil o movimento
é inverso, elas aumentam progressivamente.
GRÁFICO 1- EVOLUÇÃO DA TAXA DE URBANIZAÇÃO DO BRASIL,
BAHIA E CACHOEIRA – 1940-2010
TAXA DE URBANIZAÇÃO %
ANOS
90,00%
80,00%
70,00%
60,00%
50,00%
40,00%
30,00%
20,00%
10,00%
0,00%
1940
ANO
1950
1960
1970
1980
TAXA DE URBANIZA
TAXA DE URBANIZA
TAXA DE URBANIZA
1990
2000
2010
2020
O BRASIL ANO
O BAHIA ANO
O CACHOEIRA ANO
Fonte: Elaboração DIAS, Gleidson Sena.
A taxa de crescimento da população urbana brasileira em 1950
corresponde a 3,47%, em 1960 esse número passa para 5,85%,
na década de 1980 esse valor alcança 4,48%. Os dados do censo
demográfico de 2000 indicam que há um decréscimo em termos
percentuais para 2,44%, e em 2010 a taxa situa-se em torno de
1,57%.
Os números referentes ao estado da Bahia indicam que em
1950 foi de 3,68%, enquanto em 1960 corresponde a 4,47%, em
1980 esse valor compreende 4,21%. Na década de 2000, a taxa de
crescimento da população urbana apresentou valor igual a 2,51%,
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150
151
e em 2010 1,43%.
No que concerne ao município de Cachoeira, observa-se que
em 1950 é igual a 0,13%, em 1960 o número atinge as cifras de
0,42%, em 1980 esse valor é igual a 0,11%, no ano de 2000 temse 1,22% e em 2010 os dados indicam 0,25%. (GRÁFICO 2).
nativa que habitava aquela porção do espaço.
Nesse sentido, a gênese da formação e expansão do território
de Cachoeira encontra-se intrinsecamente atrelada ao processo de
invasão portuguesa, em que a Vila de Nossa Senhora do Rosário
do Porto da Cachoeira desempenhou papel primaz na ocupação
das terras indígenas do Recôncavo e do Sertão da Bahia, pois o rio
Paraguaçu lhe concedia posição estratégica, por ser o último porto na rota das pessoas, mercadorias e animais que se deslocavam
entre sertão e litoral, facilitando a formação de feiras e comércios
nas pequenas vilas mais interioranas. Nota-se que quando discutimos a formação territorial, econômica e populacional de Cachoeira implicitamente retratamos o processo de formação territorial
e econômica do Brasil, pois foi na Bahia o início do processo da
constituição do território brasileiro.
Na contramão dos conhecimentos historicamente produzidos
e solidificados no âmbito das ciências, pensar a formação territorial de Cachoeira é também contribuir com o debate acerca da
gênese territorial brasileira sob uma perspectiva contra-hegemônica, descontruindo as narrativas que pacificam as lutas dos povos
subjugados.
GRÁFICO 2- EVOLUÇÃO DA TAXA DE CRESCIMENTO URBANO
DO BRASIL, BAHIA E CACHOEIRA – 1940-2010
7
6
5
4
3
2
1
0
-1
-2
ANO
TAXA DE CRESCIMETO DA POPULAÇÃO URBANA BRASIL
TAXA DE CRESCIMETO DA POPULAÇÃO URBANA BAHIA TAXA
DE CRESCIMETO DA POPULAÇÃO URBANA CACHOEIRA
Fonte: Elaboração DIAS, Gleidson Sena.
A descrição dos dados permite afirmar que a taxa de crescimento da população urbana, em nível nacional e estadual apresenta índices crescentes desde 1950 até 1970, e entre 1980 e 2010
os valores decrescem. Na escala municipal esse crescimento indica
oscilações ao logo do tempo, ou seja, apresenta crescimento, após
decréscimo, seguido de progressão e depois de regressão.
6. Considerações Conclusivas
O território é definido e delimitado tomando como base as
relações de poder, sejam elas de qualquer tipo, e tais relações são
conflituosas, algumas vezes ensejando guerras. Assim, observa- se
que durante todo processo de ocupação/invasão pelos portugueses
do território que hoje é conhecido como brasileiro, que era pertencente aos povos pré-cabralinos, o objetivo foi a expansão territorial lusitana, fato que ensejou guerras e dizimação da população
Referências
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– Brasil. Tese de Doutorado em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional. Faculdade de Geografia e História, Universidade de
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a território, o vazio no processo da valorização do espaço. Tese de
doutorado apresentada ao programa de Pesquisa Pós-graduação. Núcleo
de Pós-graduação em Geografia. (NPGEO) da Universidade Federal de
Sergipe. Aracaju – Se, 2013.
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no Nordeste. Niterói: EDUF, 1997.
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do Recôncavo da Bahia: uma análise sobre Cachoeira. 12º Encontro de
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Recôncavo Baiano: Formação, Evolução Territorial, Econômica e Populacional do Município de Cachoeira (BA)
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– 1678. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia – Curso de Mestrado em História Social, Recife, 2008.
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transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; Universidade da Bahia, 1998.
Além da “Linha da Decência”: Linguagem Afetiva e (In)
Sensibilidades Educativas nas tessituras amorosas.
O Caso de amor Ágaba e Sady.
(Cidade da Parahyba, 1923)
Iranilson Buriti1
... sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos
passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os
desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de
repente se exprimem, mas nele também eles se desatam,
entram na luta, se apagam uns aos outros e continuam
seu insuperável conflito (FOUCAULT, 1993)
______. Espaço e método. 5ª ed. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2008.
SANTOS, M. R. A. As fronteiras do sertão baiano: 1640-1750. Tese
apresentada ao programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.
SACK, R. D. Territorialidade Humana: sua teoria e história. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
VILHENA, L. S. Bahia no século XVIII. Salvador: Editora Itapuã,
1969. (Coleção Baiana, v.II)
Parahyba, tarde de 22 de setembro de 1923. Era um
sábado, dia letivo nas escolas paraibanas. As aulas transcorriam normalmente tanto no Lyceu Paraibano quanto
na Escola Normal da Paraíba, principais escolas da capital
e, também, do Estado, ambas situadas na praça Comendador Felizardo, hoje denominada Praça João Pessoa. O
contexto histórico local estava marcado pela remodelação
arquitetônica do centro da cidade e pela ampliação do
número de grupos escolares 2, fruto dos projetos políticos
do governador da Paraíba, Solon de Lucena (1920-1924),
a exemplo da inauguração dos grupos escolares Thomaz
1
___________
Doutor em História. Professor de História da Universidade Federal de Campina Grande-PB. Pesquisador do CNPq. Email: iburiti@yahoo.com.br
2
Na Mensagem presidencialde 1909, a lei nº 313, de 18 de outubro de 1909, autorizou o poder executivo a instituir grupos escolares nos municípios paraibanos. Na Mensagem de 1910, está escrito: “Como fiz sentir
com meu relatorio anterior, a instituição dos grupos escolares, embora com
organização modesta, conformadas ás condições financeiras do Estado, será de
maior utilidade para o ensino popular do que as escolas isoladas. Nesses institutos em que terão de funccionar três ou mais escolas com um só prédio, conforme a população escolar da localidade, os respectivos professores serão mais
estimulados no desempenho de seus deveres, pelo contacto interino em que se
acham. A direcção e fiscalização serão mais fáceis e efficazes, assim aggrupadas
todas as escolas”.
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Recôncavo Baiano: Formação, Evolução Territorial, Econômica e Populacional do Município de Cachoeira (BA)
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155
Mindello (1916), Epitácio Pessoa (1918), na capital, e do
Solon de Lucena (1924), em Campina Grande.
Em cada uma dessas escolas, os alunos aprendiam suas
lições, resolviam os exercícios propostos pelos docentes,
escutavam os professores, faziam anotações, eram normatizados pelos códigos ditos e/ou interditos. Na capital da
Parahyba ou nas cidadezinhas do interior, alunos e mestres
apresentavam-se cotidianamente nos espaços escolares, munidos de livros, canetas, atlas, tinteiros, ideais. Os alunos
mais pobres simplificavam seu arsenal escolar e levavam,
quando muito, papel e tinteiro. Nesse cenário de letras,
de fórmulas, de linguagens afetivas e de cantos orfeônicos,
de corpos pedagogizados para os ideais nacionalistas, dois
jovens declaravam juras de amor um para o outro na capital.
Alunos de escolares diferentes (Lyceu Paraibano e Escola
Normal) que fariam parte de um enredo que envolveu
paixão, letras, transgressão de códigos morais, afetividade,
sangue e veneno. Ágaba Gonçalves de Medeiros 3 e Sady
Castor Correia Lima 4. Estudantes das principais escolas da
capital, corpos protagonistas de uma das histórias e tragédias de amor mais comentadas na década de 20 do século
passado. As juras de amor deram lugar a cenas de violência
e de morte dos dois estudantes. Estudar as histórias desses
jovens é provocar a ressurreição do corpo morto, dar-lhe
fôlego, vida, tendões, carne, espírito, nervos e músculos.
Assim, olhando para as histórias de Ágaba e de Sady
Castor, nasceu este texto, fruto de muitos olhares. Olhares
meus, mas também de outros. Afinal, como leitor e como
escrevente, meus lugares de fala são produtos de leituras
diversas, de (in)compreensões possíveis, de problematizações diversas. As fontes da época sobre a tragédia são
muito repetitivas e não exploram outras leituras sobre o
caso, resumindo-se a uma narrativa, às vezes linear, dos
episódios. Portanto, quero situar meu olhar em relação
aos objetivos propostos, a saber, questionar os modos de
ler as histórias cruzadas de Ágaba e de Sady Castor. Neste
artigo, procuro apresentar uma leitura, dentre tantas outras
possíveis, sobre o relacionamento amoroso de Ágaba e Sady.
Meu desejo é narrar não apenas a relação de amor de dois
jovens no contexto escolar dos anos 20, mas problematizálos como corpos marcados pelos discursos socioeducativos
que circularam no referido contexto e que contribuíram
para formar identidades e gerar identificações. Relacionamento marcado por uma certa cultura escolar e por códigos
normativos sociais, que punham homens e mulheres em
espaços diferenciados, às vezes rivais. Homens e mulheres,
alunos e alunas em espaços de disputas ou em disputas por
espaços. Não foi tão somente um episódio fatídico, mas as
representações das relações de gênero marcadas por lugares
demarcadas para o masculino e para o feminino.
Apresento ao leitor cenários de um novo século, de
uma nova década, de um novo tempo, no entanto, cruzo
esses cenários com os velhos padrões de comportamento,
com os antigos códigos de honra, pelo culto a um certo
jeito de se comportar, de andar, de expressar e viver o seu
corpo, de ensinar e de aprender. O corpo feminino, seja o
de Ágaba, das alunas da Escola Normal, aparecia no discurso
de seu diretor, o Monsenhor João Batista Milanez, como
uma superfície de pulverização, um território de conflitos,
de inscrição de acontecimentos, de repressão, de incitamentos, de pelejas, de duelos, alvo de políticas familiares
de proteção à honra. Diz Foucault (1993, p.22),
3
Ágaba Medeiros era filha do Coronel José Peregrino de Medeiros.
Sady Castor Correia de Araújo, natural de Soledade-PB, era filho do Major
Emiliano Castor de Araújo.
___________
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Além da “Linha da Decência”: Linguagem Afetiva e (In)Sensibilidades Educativas nas tessituras amorosas.
O corpo – e tudo que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo – é o lugar da Herkunft: sobre o
corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados
do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de
repente se exprimem, mas nele também eles se desatam,
entram na luta, se apagam uns aos outros e continuam
seu insuperável conflito.
O cenário no qual foi inscrita esta tragédia romântica foi a
Praça Felizardo Leite, uma área considerada nobre da capital que
testemunhou um evento que marcou negativamente a sociedade
local na época. Ágaba Medeiros (1907-1923) era uma jovem estudante da Escola Normal da Parahyba, namorada de Sady Castor
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157
(1898-1923), reservista do exército e aluno preparatório do Lyceu
Paraibano, colégio fundado em 1836, “uma instituição escolar tradicionalmente destinada à formação da elite paraibana masculina”
(PINHEIRO, 2006, p.2). As escolas, à época, situavam-se bem
próximas. A Escola Normal, criada em 18855, funcionava no prédio
do atual Tribunal da Justiça e o Lyceu Paraibano no prédio da antiga
Faculdade de Direito, ao lado do Palácio da Redenção. Entre elas,
uma praça e uma linha imaginária estabelecida pelo então diretor
da Escola Normal, Monsenhor João Batista Milanez, demarcava
não somente os códigos de honra e moralidade, mas também os
preceitos e interdições escolares. Fronteiras que apontavam para os
modos de ler e as formas de escrever a decência, a amizade entre
pessoas de sexo diferente, as relações de gênero, as vivências da
sexualidade de meninos e meninas.
Corpos tatuados pelas normatizações e pelas interdições que
objetivavam criar sujeitos feminino e masculino educados para a
obediência e para a submissão, atendendo um ideal de nacionalismo
que ganhará maior visibilidade durante a Era Vargas (1930-1945).
No início do século XX, as antigas forças de solidariedade e dependência e o poder do homem como mantenedor do poder patriarcal
começam a ser abalados e fragilizados, sendo urgente a emergência
de intervenções diretas do Estado burguês para tutelar as mulheres
e proteger a família brasileira. Ágaba é um exemplo dessas mulheres
tuteladas pelo Estado, protegida pelo olhar pedagógico do diretor
da Escola Normal, defendida pelo discurso que a vê como frágil e
vítima dos encantos e meneios dos jovens sedutores da Cidade da
Parahyba, a exemplo de Sady Castor.
As duas escolas situavam-se em um espaço urbano
rodeado por praças e outros edifícios públicos, a exemplo
do Palácio do Governo. Em meio a essa circularidade de
pessoas, de transeuntes que iam trabalhar, passear, comprar
no comércio próximo às escolas, o Diretor da Escola Normal,
com o objetivo de manter a ordem estabelecida, solicitou ao
chefe da Polícia, Demócrito de Almeida, autorização para
policiar o local que, de imediato, foi atendido, vindo com
a função de vigiar a “honra das meninas” o guarda civil
Antônio Carlos de Menezes, conhecido como “Guarda 33”:
“E, a partir daquele instante, Antonio Carlos de Menezes,
ou simplesmente, o ‘guarda 33’, passou a exercer a função
de guardião da honra das moças”, inspecionando-as, procurando protegê-las dos olhares dos rapazes e dos espaços
de perdição (SILVA, 2009, p.2).
O Monsenhor Milanez, figura conhecida do clero
e da sociedade paraibanos, considerava um insulto e um
desrespeito à moralidade e aos bons costumes da família
paraibana as conversas e namoro dos estudantes. Isso deveria acabar, pelo menos para as meninas que estudavam
na Escola Normal. Dessa forma, em 1922 estabeleceu uma
“linha de decência”, um marco imaginário para que os rapazes não atravessassem sob o risco de serem punidos pela
Instituição na qual estudavam, já que, até então, a praça
era frequentemente visitada pelos alunos e alunas que conversavam ou namoravam. Mas, na opinião do Diretor da
Escola Normal, as meninas, honradas e devotas, deveriam
se entregar a Deus e aos estudos e não conversarem com
o sexo oposto nos intervalos das lições.
Além da “linha da decência”, outros modos de ler a
juventude paraibana dos anos 20 se encontram. São linhas,
fronteiras, receituários. Na encruzilhada das palavras e da
“linha de decência”, encontram-se as acusações, as defesas,
as exaltações, a elaboração de um corpo feminino alvo dos
comentários, a defesa de uma honra que pertence muito
mais à família do que às vítimas. Visto como frágil, vulnerável, fraquinho, o corpo feminino torna-se uma história
cercada pelo desejo da sociedade em demarcar e reproduzir
uma imagem calcada no tempo, em outros tempos: a da
mulher vitimada, destronada de seu lugar de honra e posta
num outro lugar: o da violação e dos comentários. Emerge
do processo-crime em análise a figura de uma jovem fragilizada, adocicada pelos códigos prescritos e, de tão frágil,
acaba sucumbindo.
Assim sendo, a intervenção, tutelamento e estabe-
5
A Escola Normal Paraibano, ou viveiro de preceptores, conforme expressão
cunhada pelo gestor José Ayres do Nascimento, foi oficialmente instalada no
dia 7 de abril de 1885, durante a gestão do presidente da Província Antônio
Sabino do Monte, e teve seu regulamento publicado em 14 de janeiro de 1886.
As disciplinas ofertadas eram: Gramática e Língua Nacional, Língua Latina,
Aritmética, Álgebra e Geometria, Língua Francesa, Língua Inglesa, História e
Geografia, Retórica e Poética, Filosofia
e Pedagogia (ARAÚJO, 2010, p. 189)
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lecimento de novos códigos pelo Estado, de “linhas de
decências”, de fronteiras divisórias entre o masculino e o
feminino, de gradis morais, transformam casos de amor em
processos-crime, amizade entre jovens em morte, tragédia
e sofrimento. Sobre os corpos de Ágaba e Sady encontramse os discursos que os construíram como vítimas ou como
participantes ativos dos “crimes de amor”. Sady, a primeira
vítima, é muito mais réu aos olhos das testemunhas da
moralidade, dos que aplaudem os interditos e as balizas
de decência. Porém, como a imagem de fragilidade do
corpo feminino ainda era recorrente, Ágaba continuou a
ser vítima, menina indefesa, tão frágil a ponto de tirar a
própria vida.
O corpo das alunas da Escola Normal, como um
espaço de circunscrições várias, de definições e de redefinições ao longo do tempo histórico, era um lugar de investimento pedagógico por parte do Monsenhor Milanez;
lugar privilegiado de investimento sobre a vida; “lugar de
convergência de um poder controlador que individualiza
o seu desempenho, ao mesmo tempo em que o regula em
favor da espécie humana” (FRAGA, 2000, p.18). Cercadas
de códigos disciplinares, as mulheres tinham as identidades culturais tatuadas em seu corpo; eram celebradas ou
repudiadas, benditas ou malditas, santas ou profanas de
acordo com a postura adotada em seu cotidiano.
As alunas da Escola Normal da Parahyba, portanto, são
policiadas em suas atitudes por uma rede de saberes e por fios de
poderes, dentre os quais situa-se o pensamento de base católica
(cujo representante maior era o Monsenhor Milanez), que ordena
a mulher, controlando seus gestos, seus desejos, suas emoções
através de fórmulas “sagradas”. Santuário, altar e púlpito são metáforas utilizadas para amedrontar o “sexo frágil” e alertá-lo do
perigo da desterritorialização, vista como desagregador de lares.
São micropolíticas que agem sobre os corpos e sobre as mentes dos
integrantes do “santuário familiar”, investindo em temas como a
sexualidade, a monogamia conjugal e a virgindade, ordenando as
mulheres a cultuar o lar, exaltar a moralidade e reprimir sexualmente
as crianças, baseadas em leituras de encíclicas e de bulas papais. É
um trabalho pedagógico que atua de forma a produzir uma sub-
jetividade modelizada a partir dos discursos normativos. Quando
isso acontece, os indivíduos reproduzem os modelos e padrões de
referências e não criam saídas para os processos de singularização
(GUATTARI; ROLNIK, 2008).
Baseado em preceitos biologizantes e naturalizantes, o código
civil republicano de 1916 inscreve os gêneros numa ética “canônica”, circunscrevendo posturas sexuais e comportamentos sociais
que reforçam a divisão biológica do sexo e responde a um projeto
político-cristão de regenerar moralmente as famílias brasileiras.
Esses discursos, portanto, constroem a imagem de uma família
normatizada e civilizada, havendo a transferência do poder de
julgamento da Igreja para o Estado burguês. Essa lógica jurídica,
mas também de viés religioso, circunscreve o corpo das mulheres
dentro dos ditames da castidade, da honestidade, da virtude e da
submissão. Por meio de um discurso normativo, deveria a mulher
preservar a espécie, repetindo, por sua vez, o discurso ditado pelo
catolicismo que dava visibilidade à mulher frutífera, repetidora do
discurso “corpo-objeto”, “cama-mesa-banho”. Para Maritza Maffei
da Silva, “o direito por meio das normas jurídicas determina o que
é legal na utilização do nosso corpo, diz o que devemos fazer com
ele, como ele deve ser empregado como fator de produção, como
devem ser mediadas suas relações com outros corpos, e como ele
deve ser remunerado” (1995, p. 113).
Assim, por causa de narrativas de interdição e de espaços
gradeados pela moral familiar da época, o amor entre dois jovens
da classe média paraibana tornou-se um dos mais tristes episódios
afetivos que a Paraíba conheceu, uma história que se aproxima do
drama amoroso de Romeu e Julieta, escrito por Shakespeare ,em
1595. Ágaba, a Julieta paraibana, e Sady, o Romeu que se sacrificou
em nome da paixão, do amor e da valentia. Mas como tudo isso
aconteceu? Como na Escola Normal só estudavam meninas, Sady
foi proibido de frequentar as imediações da mesma para encontrarse com Ágaba. Os encontros furtivos eram cada vez mais perigosos,
pois a vigilância ao sexo feminino era norma e prescrição escolar.
Dessa forma, não apenas Sady, mas qualquer outro rapaz não poderia frequentar nem se aproximar dos portões da escola normalista,
muito menos cruzar a linha imaginária criada pelo Monsenhor. Mas
Sady ousou, se aproximou e ultrapassou o marco divisório.
Nessa aproximação, um dos “guardiões das virgens norma-
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listas” o descobre. Os “ouvidos” do Monsenhor Milanez estão a
postos. Imediatamente Sady foi advertido por Antônio Carlos de
Menezes. Reincidente, o rapaz repetiu o ato para falar com sua
amada e, novamente, foi surpreendido pelo guardador da virtude
das moçoilas normalistas. Travou uma ríspida discussão com o
Guarda 33, que, de forma inesperada, atirou no peito do rapaz
que, sem resistir aos ferimentos, morreu em poucas horas na residência de Francisco Nóbrega, situada na Avenida General Osório,
na capital do estado. Nessa residência, recebeu cuidados médicos
dos doutores Adhemar Londres e Newton de Lacerda. O socorro
médico, porem, foi em vão. Sady morreu por volta das 16 horas.
Uma tragédia que mobilizou a sociedade civil e política da Paraíba,
deixando atordoado o diretor da Escola Normal, alunos do Lyceu e
as meninas normalistas: “A comoção logo tomou conta da cidade,
despertando uma onda de manifestações açuladas pela oposição
àquele governo, chegando, inclusive, a abalar a vida administrativa
e social da província no governo Solon de Lucena” (SILVA, 2009,
p.2). O crime teve graves repercussões imediatas na sociedade local
e junto ao governo estadual. Foi uma tarde em que Shakespeare
“visitou” a capital da Paraíba.
Imediatamente, a notícia do assassinato se espalhou e comoveu a população. Os colegas e amigos de Sady juntaram-se aos
estudantes do Lyceu Paraibano que, unidos, se aglomeraram na
frente da escola e passaram a hostilizar a direção e a sede da guarda civil com palavras de ordem e pedidos de renúncia do Diretor
da Escola Normal. Para piorar a situação, os familiares de Sady
decidiram que o corpo do jovem seria velado no próprio Lyceu.
Durante a noite do dia 22 de setembro, os discursos inflamados
de alunos, professores e familiares despertaram mais ainda a raiva
contra o diretor e contra o atirador. O corpo de Sady, mesmo morto,
emitia sons, palavras às vezes indizíveis, às vezes agressivas demais.
Corpo-discurso, representante de posturas de uma certa elite local
preocupada com as linhas e fronteiras de decência.
O corpo de Sady, vivo ou morto, é um objeto da história.
Nas narrativas do processo-crime ou dos articulistas de jornais,
ele foi construído, elaborado, perfurado e mutilado pelos diversos
saberes (religioso, escolar, político, moral). É no espaço-corpo onde
tropeçam as palavras, as adjetivações, as classificações que ajudam
o outro construir uma imagem do sujeito. Escutemos o corpo e,
provavelmente, seja “impossível” nos apoderar de todos os seus
sons, porque a linguagem, nascida dos desejos com os quais inflam
o corpo, existe para criar uma distância que possa conter e tornar
pensáveis os pedidos do corpo.
No dia seguinte, o enterro. Carregado pelos professores e
alunos do Lyceu, o féretro é conduzido até o Cemitério da Boa
Sentença. Celebração e pesar eram acompanhados por lágrimas.
Discursos em honra ao morto feitos pelo empresário e professor
Miguel Santa Cruz, pelo discente Cézar de Oliveira Lima e pelo
coronel José Peregrino de Medeiros, pai de Ágaba, trouxeram ainda mais comoção aos presentes. Lágrimas-discursos. No meio dos
assistentes do féretro estava a jovem Ágaba, cabisbaixa e chorosa.
A multidão se aglomerou para ver o reservista, o aluno, o amante,
o corpo frio, os sons do seu corpo, o seu corpo em sons. Notas de
uma tragédia, notas de interdições sóciomorais.
Após o velório, muitos voltaram para casa, dentre eles, Ágaba
e sua família. Enquanto uns se dirigiam aos seus lares, um grupo de
estudantes e amigos da vítima saiu em manifestação pelas ruas da
capital, destruindo os exemplares do jornal “A União” que encontravam pela frente, finalizando a manifestação com o enterro simbólico do Monsenhor Milanez, às portas do Seminário Diocesano
(O CASO DO ESTUDANTE CASTOR. A União, Terça-feira,
25 de Setembro de 1923, n° 200):
___________
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Além da “Linha da Decência”: Linguagem Afetiva e (In)Sensibilidades Educativas nas tessituras amorosas.
O ato de desagravo foi duramente censurado pelo governo de
Sólon de Lucena que, para evitar novas manifestações, teve de
tomar medidas rigorosas, usando da força policial para coibir
qualquer aglomeração de estudantes na frente da Escola Normal.
A polícia também fez distribuir um boletim avisando de sua ação
em caso de desordem, pois constava desde domingo, plano de
vaia ao monsenhor Milanez (SILVA, 2009, p.3)
Entre as palavras de ordem, destacavam-se: “Monsenhor Milanês, um irresponsável!”, “Abaixo o governo de Sólon de Lucena!”;
“Fora o Chefe de Polícia e seu comparsa, o Guarda 33”! ; “Cadeia
para os assassinos!” “Prisão para o assassino!”; “Morte para o Guarda
33!”; e “O Jornal A União esconde a verdade!”. Tais agitações, que
também se espalharam por outras cidades do Estado, provocaram a
saída do Diretor da Escola Normal e ameaçou o governo de Solon
de Lucena. Uma das medidas foi o fechamento das escolas até que
os ânimos se acalmassem: “Para evitar desdobramentos negativos
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
162
163
que abalassem a credibilidade política do Governo, ambas as escolas são fechadas por 15 dias e o diretor monsenhor João Milanez
é substituído, interinamente, pelo cônego Pedro Anísio” (SILVA,
2009, p.4). Ainda sobre esse assunto, Silva complementa:
dentre as quais duas ficaram desconhecidas do público e somente
a endereçada a sua sogra foi notificada.
Ao finalizar cada uma das correspondências, o corpo de Ágaba
já sentia muitas agonias. Próximo do entardecer do dia 6 de outubro
de 1923, no seio de seus familiares em pranto, Ágaba falece. Mais
uma vez, a sociedade se comove. Em seu enterro, movido por forte
emoção, o vigário da catedral ministrou a bênção nupcial sobre os
dois amantes perante os túmulos no cemitério da Boa Esperança,
na capital paraibana. Houve muito choro e emotividade no local.
Em sua lápide, foi escrito o seguinte epitáfio: “Ágaba Gonçalves de
Medeiros aqui jaz – Viandantes do destino, orai por ela, a vítima
do amor e da dedicação”.
Despedindo-se da família e dos amigos, uma carta é escrita
por Ágaba, explicando seus motivos, tentando consolar aqueles que
ficaram abalados com a tragédia. Ágaba e Sady Castor. Um caso
de amor na Paraíba que Shakespeare escreveu com outros nomes:
Romeu e Julieta.
O estopim que “incendiou” os estudantes foi dado, aparentemente, pelo órgão oficial de imprensa, o jornal A União, responsável
por veicular as primeiras informações sobre o referido crime,
ainda na manhã do domingo. De algum modo, os estudantes
entenderam que o jornal A União havia sido parcial ao noticiar a
história, isentando o estado e a Igreja de quaisquer responsabilidades pelo incidente. No entanto, o jornal A tarde, de tendência
política oposta ao governo, e sobre o comando do líder da oposição estadual, o Desembargador Heráclito Cavalcanti, tratou
de defender os estudantes e “alfinetar” o governo, veiculando
notícias que a “situação” estaria acobertando os responsáveis pelo
ato criminoso (2009, p.9).
Depois dos primeiros cinco dias, os embates diminuíram,
principalmente após o presidente da República, Arthur Bernardes, prestar solidariedade ao governador da Paraíba, acalmando os
ânimos dos opositores políticos de Solon de Lucena, que desde o
dia 24 vinham o acusando de ser responsável pela morte de Sady.
Trancada em sua casa, Ágaba continuava sentindo as dores da perda,
a solidão, a tristeza, a falta do corpo vivo do seu amado. Não tinha
ânimo para voltar à Escola, não tinha forças para voltar aos seus
afazeres cotidianos. Faltavam-lhe forças, faltava-lhe Sady, o castor.
Sobravam saudades e angústias.
Duas semanas se passaram. O caso Sady estava pouco comentado entre a oposição. Embora os jornais locais diminuíssem com
as matérias sobre o caso, as faixas de luto nas casas dos familiares
de Sady ainda continuavam. O coração da família do jovem assassinado parecia não acreditar em tamanha tragédia. Ágaba continua
introspectiva, com poucas conversas com os pais e com as amigas
que lhe visitavam de vez em quando. Visivelmente estava abatida e
fragilizada. Após enfrentar uma crise de depressão, Ágaba Medeiros,
com 16 anos, ingere uma forte dose de veneno arsênico que havia
subtraído de um depósito de drogas que seu pai, José Peregrino,
possuía. Depois, caminha lentamente aos seus aposentos. Sente as
primeiras náuseas, os sintomas da morte são cada vez mais intensos,
porém, Ágaba precisa deixar registradas algumas explicações para a
família e para os amigos. Pega caneta e papel e escreve três cartas,
Box – Carta de Ágaba para a mãe de Sady
“Parahyba, 6 de outubro de 1923.
Minha mãezinha.
___________
Peço-vos desculpas de assim vos tratar, mas os laços que me
prendiam ao vosso filhinho, permitem que assim vos trate.
É lamentável dizer-vos o estado em que me acho desde o
desaparecimento de meu inesquecido mui amado Sady.
Peço-vos perdão de minha ousadia, mas venho, por meio desta,
dizer-vos que comungo convosco da mesma dor.
Ah! se não fosse ferir o vosso e o meu coração relataria o
modo, os sentimentos daquele que tão cedo foi arrebatado
do meio honrado em que vivia. Não sei por onde se acha a
mala daquele que espero que Deus tenha em sua companhia;
queria que vos interessásseis em mandar buscar.
Resta-nos confiar na justiça da terra? Não, confiarei na Divina,
pois que aquela falha e esta não falhará jamais.
Confiando no vosso coração, espero não se zangará quando
esta receber.
Peço-vos que abençoeis aquela que amanhã irá fazer companhia
àquele que soube honrar e fazer-se honrar.
Abraçai as maninhas pela desventurada.
Ágaba Medeiros”
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Perspectivas Interdisciplinares em Filosofia e Ensino
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Além da “Linha da Decência”: Linguagem Afetiva e (In)Sensibilidades Educativas nas tessituras amorosas.
Coleção de Ensaios em Direito, Linguagem e Produção do Conhecimento
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Considerações Finais
Referências Bibliográficas
Estudar o caso de Ágaba e Sady nos faz questionar os modos
de ler a sociedade e as práticas socioculturais do contexto paraibano
dos anos 20 (século XX), marcado pelas rígidas divisões binárias
entre os sexos, pela normalização das ações, pela normatização dos
corpos. As famílias da elite paraibanas buscavam, através do casamento, especialmente das filhas virgens, o fortalecimento político
e econômico, bem como a pureza de sangue que, por conseguinte,
significavam elementos fundamentais e determinantes da condição
social ocupada por esse grupo na sociedade. Puro sentimento de
egoísmo individual ou uma forma de manutenção das diferenças
sociais? A criação de um lugar moral para a mulher ou o sequestro
social de seus corpos?
ARAÚJO, Rose Mary. Escola Normal da Parahyba do Norte:
movimento e constituição de professores no século XIX. Tese
(Doutorado em Educação). João Pessoa: UFPB, 2000.
CASO LAMENTÁVEL: um guarda civil mata um estudante do
Lyceu. Jornal A união, 24 de setembro de 1923.
CRIME BÁRBARO. Jornal A Imprensa. Parahyba. 28 de setembro de 1923.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 11 ed., Rio: Graal,
1993.
GUATTARI, Felix; ROLNIK, Sueli. Micropolíticas: cartografias
do desejo. 12 ed., Petrópolis: Vozes, 2008.
SILVA, M. M. Mulher, identidade fragmentada.In: ROMERO,
E. Mulher, corpo e sociedade. São Paulo: Papirus, 1995.
O CASO DO ESTUDANTE CASTOR. A União, Terça-feira,
25 de Setembro de 1923, n° 200.
PINHEIRO, Antônio Carlos. As “Peculiaridades” da Instrução Pública e Particular Na Província Da Parahyba Do Norte
(1860 A 1889). Disponível em: <http://www2.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/506AntonioCarlosPinheiro.pdf> Acesso
em 04.jul.2014.
SILVA, Favianni da. O caso Sady e Ágaba: desdobramentos
discursivos de uma tragédia paraibana. Anais do II Seminário
Nacional de Gênero e Práticas Culturais: Culturas, leituras e
representações. João Pessoa: UFPB, 2009.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Estado da Parahyba.
Petição de Habeas-corpus preventiva da Comarca da Capital. 26
de setembro de 1923. Caixa 5, Arquivo do Tribunal de Justiça
da Paraíba.
VARANDAS, Edival Toscano. Promessa de amor além-túmulo.
Disponível em: www.eliezergomes.com/. Acessado em 18 ago.
2011.
VASCONCELOS, Amaury. Apologia do Amor: Sady e Ágaba.
João Pessoa. Unipê Editora, 2008.
VASCONCELOS, Antônio Benvindo. O drama de Ágaba. 2.ed.
Natal: Empresa Jornalística, 1987.
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