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Alice do Lado Errado do Espelho - Pedro Rodrigues

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“
Tive um sonho horrível.
Então?
Sonhei que era uma princesa,
e precisava de ser salva.
alice do lado errado do espelho
alice do lado errado do espelho
pedro rodrigues
uma marca
info@culturaeditora.pt I www.culturaeditora.pt
–
© Pedro Rodrigues e Cultura Editora
Por vontade expressa do autor, a presente edição não segue a grafia do
novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Título: Alice do Lado Errado do Espelho – Contos de fadas virados do
avesso
Autor: Pedro Rodrigues
Revisão: Isabel Garcia Pereira
Paginação: Ana Gaspar Pinto
Capa: WeBlogYou
Ilustrações: WeBlogYou
Fotografia do autor: Pedro Agostinho Cruz.
Edição em papel: dezembro de 2020
Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida,
nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico,
mecânico, fotocópia, fotográfico, gravação ou outros, nem ser introduzida
numa base de dados, difundida ou de qualquer forma copiada para uso
público ou privado, sem prévia autorização por escrito do Editor.
Há-de vir o calor, para matar este bicho desgraçado!
Avó Alice, 91 anos
«Há sempre alguém mais prisioneiro que eu — essa era a frase que resumia a
única esperança possível.»
Albert Camus
«já sem a noção das horas
muito arrumada do vodka
Cinderela perdeu uma havaiana
quando saiu do bar da praia
às quatro da manhã.»
José Carlos Barros
As páginas que se seguem começaram a ser escritas durante o
confinamento, quando a vida aparentava ser um GIF e por todo o lado
proliferavam notícias sobre o vírus, gráficos sobre o vírus, teorias sobre o
vírus, o vírus, o vírus — raios partam o vírus! — e, portanto, esse é o ponto
de convergência de todas estas histórias. Qualquer semelhança das
personagens com gente de carne e osso não é coincidência. Se as virem num
bairro, na baixa da cidade, numa vila ou aldeia, cumprimentem-nas —
cumprindo as normas impostas pela DGS.
Alice do Lado Errado do Espelho
quando disseram a Alice
que nos dias de hoje
quanto maior
a distância
maior
o amor
ela julgou estar
do lado
errado
do espelho
Alice estava diante do espelho. Olhava o seu reflexo. A mocidade está
perdida. Mas a vida não se per deu. O primeiro amor passou. O segundo amor
passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. — trauteava as
palavras de Drummond como se fossem uma música da rádio.
Naquele dia, no pináculo da sua existência — que é como quem diz os
trinta e cinco anos —, olhava as raízes dos cabelos por pintar. Enfiou um
chapéu na cabeça para as esconder e suspirou enquanto o coração continuava
a sua vigília. Era solteira e boa rapariga, mas não por opção sua: durante anos
acumulara relações frustradas, paixões que se acendiam e apagavam como —
ou com — a iluminação da cidade, e isso magoava-a na mesma medida que
lhe dava alento, pois era dos destroços que julgava reerguer-se ou, pelo
menos, era isso que lhe diziam no curso de Desenvolvimento Pessoal.
Alice adorava fazer de conta e, portanto, sempre que ficava diante do
espelho construía um mundo onde a sua vida era o contrário desta: onde a
frustração dava lugar à satisfação, as tristezas se tornavam alegrias (o que era
bom, pois a sua bagagem tinha mais lágrimas que sorrisos), onde o mundo
era um lugar bonito e a humanidade um orgulho para a entidade criadora.
Alice! Alice! Onde estás?
O chamamento fê-la quebrar o transe. As ideias esboroaram-se e, por
momentos, sentiu a imagem do mundo para lá do espelho transformar-se
numa névoa branca. Abanou a cabeça. Retirou o chapéu e pendurou-o num
dos cabides do pequeno compartimento.
Aqui!, gritou ela.
Aqui estás! Que fazes?
Estou a experimentar um chapéu. Mas não sei se gosto de me ver com
ele… Pareço aquela velha do anúncio.
Não digas isso; mostra!
Lucas Louco, chapeleiro de profissão há mais de quinze anos e melhor
amigo de Alice, olhava-a entusiasmado, os enormes olhos verdes brilhando,
aguardando que ela novamente poisasse o chapéu azul-celeste sobre os
cabelos, escondendo todo aquele aparato de cores capilares dissonantes. O
movimento pareceu durar uma eternidade, pois Alice assim o quis (uma certa
vergonha a tomava de assalto), mas culminou com uma salva de palmas e
gargalhadas estridentes do Chapeleiro Louco.
Estás lindíssima!
Alice soltou um sorriso amarelo.
Achas mesmo?
Sim! Tens de o levar. Insisto. É a minha prenda de aniversário. Fez uma
pausa e retirou um saquinho de plástico do bolso. Bem… Tecnicamente é a
minha outra prenda de aniversário, já que a primeira é esta… disse ele,
abanando o saquinho, com dois comprimidos cor-de-rosa dentro, à frente
dos olhos dela.
O que é isso?
Isto é a porta para o País das Maravilhas… Não me olhes assim, é
verdade. Bem, pelo menos foi o que o rapaz que mos vendeu disse. Soltou
uma nova gargalhada enquanto ela o olhava atónita, sem saber que dizer.
Vamos?
Estás louco!, respondeu Alice, o corpo ricocheteando no sentido inverso
ao das palavras, as costas batendo contra o espelho de parede.
Ajeitou o chapéu.
Lucas Louco continuou a sorrir. Era daí — desse aparente estado de
júbilo perene — que a sua alcunha e o seu nome se haviam tornado siameses:
Lucas Louco, o Chapeleiro, sempre com a sua cartola de mágico na cabeça e
as roupas extravagantes.
O que tens a perder, Alice? Tens trinta e cinco anos, não tens filhos,
marido, ou namorado… Nem animais de estimação… Alice pigarreou,
interrompendo-o, mas isso não o demoveu; continuou: O gato vadio que
alimentas não conta como animal de estimação. Trancamo-nos aqui e
tomamos isto; não precisamos de ir a lado nenhum.
Drummond estava on repeat dentro da cabeça dela: A mocidade está
perdida. Mas quem ditava que assim fosse? O tempo? De facto, sentia-se,
com trinta e cinco anos, uma septuagenária. A sua vida cheirava a mofo; se o
gato vadio fosse seu, certamente cheiraria a mijo de gato — o cheiro das
velhas solteironas. Nunca havia feito nada digno de registo, nada que fugisse
à normalidade. Pensava sempre em tudo, nas consequências de tudo, e por
isso parava, definhava, aguardando que os anos passassem, multiplicados por
dois. Talvez por esse motivo tenha fechado os olhos e feito de conta que era
uma mulher corajosa, uma mulher capaz de dar o último passo antes do
abismo, de atravessar o espelho e dizer, por impulso, toda acção, nenhuma
razão:
Vamos!
E foi.
Minutos depois — quiçá, pois o tempo é coisa relativa, especialmente sob
o efeito de drogas psicadélicas — estavam ambos, Alice e o Chapeleiro,
sentados no pequeno compartimento: ela encostada ao espelho, sentindo o
frio a dilacerar o tecido, entrando na carne; ele à sua frente, a cartola de
mágico pendendo para o lado esquerdo, o fato carmim, de veludo,
condizendo com a cortina que separava o provador do resto da loja.
Estás a sentir?, perguntou ele.
Ela sorriu, antes de responder, ainda não notava o efeito do comprimido.
Sinto muito. Acho que esse é o problema. Gostava de deixar de sentir um
pouco.
Relaxa, estas merdas tendem a exagerar o que somos. Ou o contrário.
O contrário…, suspirou Alice.
Puta que pariu! Viste aquilo?
Vi o quê?
Caralho, acho que está a bater, disse ele.
Alice começou a sentir o corpo leve, como se levitasse, como se as suas
moléculas, átomos, ou o que quer que fosse, se fundissem com o próprio ar e
ela estivesse por todo o lado, pairando e pairando, leve, leve, leve.
WOW!, gritou, e com isto soltou uma gargalhada (não fosse estar
narcotizada e talvez sentisse um rasgão nos músculos da face). Olhou para as
mãos, para as pontas dos dedos, que se mexiam num gesto lento; de pupilas
dilatadas, os olhos devoravam os limites, como se estivesse a redescobrir o
seu corpo, muito espantada; como se o tempo tivesse regredido e novamente
fosse criança.
Lucas Louco gargalhava, observando-a.
Levantaram-se, olhos nos olhos. Após o deslumbre inicial, chegara a
euforia. Alice sentia agora uma espécie de fogo-de-artifício explodindo
dentro de si. Julgou, por momentos, ver o enorme gato vadio, que costumava
alimentar, flutuando sobre a cartola do Chapeleiro Louco. Também o animal
se tinha transformado numa criatura de fumo e, estranhamente, parecia ter
absorvido o enorme sorriso de Lucas. Ela sorriu-lhe de volta, não por
empatia, ou por vontade de o fazer, mas porque não conseguia controlar o
próprio corpo. Retirou o chapéu, mas Lucas, agindo por instinto, voltou a
enterrá-lo na sua cabeça.
Não o tires…, pediu calmamente.
Porquê?
Porque é assim que os sonhos escapam. E com isto percorreu a aba da
sua cartola, com um movimento convexo da mão direita.
Alice condescendeu.
É um mundo muito louco, não é, Alice? It’s a mad, mad, world, disse, a
rir, o Chapeleiro.
Lucas? Nunca pensaste como seria bom se o mundo não fosse o que é,
mas o seu simétrico? Se toda a maldade fosse bondade; se, onde há fome,
houvesse fartura; se onde uma mãe chora de tristeza a morte de um filho, a
criança estivesse a nascer e as lágrimas fossem de alegria. Já pensaste
nisso? E se ao olharmos o fim estivéssemos a olhar o começo? Alice
arrastava a voz, as mãos dançavam no ar desenhando pequenas curvas.
Passada a euforia, chegara o momento de introspecção.
E não estamos? O mundo é o que é, minha querida Alice. Por cada flor
que pisas, haverá outra a nascer. Mas tu só vês o que esmagas… Suspirou,
olhou os pés, levantou o direito, depois o esquerdo. Tu só vês o que esmagas,
mas por baixo, onde não chega o olhar, estão as raízes, e essas, Alice, minha
querida Alice, são fundas, podem percorrer quilómetros e fazer nascer, do
outro lado do mundo, uma nova flor…
Alice pensou naquilo. Lucas tinha razão: o simétrico do mundo seria
sempre o mundo e, portanto, estaria sujeito às mesmas regras, às mesmas leis,
procurando um equilíbrio, o ponto zero em que as forças que divergem e as
que convergem se encontram e anulam: a constância que mantém tudo como
é. Riu, pois pensou que se dividisse o planeta ao meio e dissesse adeus do
hemisfério norte com a mão direita, no hemisfério sul o seu reflexo
responder-lhe-ia com a mão esquerda. Um pensamento absurdo que, se não
estivesse sob o efeito do comprimido, tomaria como inconsequente, sem
reagir, mas que, naquele momento, lhe deu vontade de rir.
Sabes, não era suposto estarmos juntos, hoje. Estamos a quebrar as
regras da quarentena.
Eu sei…, respondeu Alice. Mas precisava de estar com alguém. Estou
farta de estar sozinha.
Dizem que nos dias de hoje a solidão é um acto de amor. Quanto maior a
distância, maior o amor. É o que dizem…
Alice olhou o seu reflexo. Acenou-lhe com a mão direita.
Tens mesmo a certeza de que não estamos do lado errado do espelho?
Lucas respondeu, perguntando:
Mas há um lado certo?
A Bela e o Monstro
diagnosticada com Síndrome de Estocolmo
após anos de terapia
e dando conta de um possível
fim do mundo
a Bela decidiu deixar
o Monstro
Diz-se que quando ouvimos cascos a bater no chão atrás de nós, não
devemos esperar que sejam de uma zebra.
O destino de Anabela galopava como um cavalo, mas era algo mais
exótico. O casamento estava marcado. Havia sido combinado numa noite de
copos e cartas, em que as coisas haviam dado para o torto. A Celestino, pai
de Anabela e talhante da vila, restavam duas opções: ou dar um rim, ou a mão
de uma das filhas. De entre dois rins, ou seis mãos, a escolha pareceu-lhe
evidente. Mas isso não invalidou que se prostrasse, à saída da enorme Casa
no Alto, num choro copioso e em prantos desmedidos.
Que fiz eu à puta da minha vida? Ai que fodi a puta da minha vida…
Ao chegar a casa, vencido pelo álcool e pelas cartas, Celestino deitou-se
no sofá, sem forças para subir para o seu quarto, sem coragem para contar à
mulher que havia hipotecado a vida de uma das suas meninas.
O dia seguinte acordou como sempre acordam os dias: a luz sucedendo-se
ao breu. Ao descerem para tomar o pequeno-almoço, as quatro mulheres da
casa deram com o homem deitado no sofá de barriga para cima. Ressonava
feito locomotiva, atropelando o silêncio. A esposa bufou e avançou até à
cozinha. As filhas mais velhas riram. Anabela, ao contrário das outras,
preocupada, correu até ao seu quarto e buscou uma manta. Desceu pouco
depois e pousou-a sobre a enorme protuberância abdominal do pai, que
fungou, se aconchegou e voltou para a direita, virando-lhe as costas.
Havia um mito qualquer na vila que dizia que na Casa no Alto os objectos
eram mágicos: as refeições cozinhavam-se sozinhas, os móveis aspiravam o
pó que neles se depositava, os lençóis de linho branco dançavam ao sol
depois de se banharem nos tanques, volvendo depois às camas a que
pertenciam. Mas tudo isso não passava de uma narrativa perpetuada pelos
velhos, que sorriam ao contar estes exageros às crianças que os escutavam de
olhos muito arregalados. Na verdade, as tarefas da casa eram geridas por uma
dezena de empregados. O dono, esse, todos conheciam: menino herdeiro da
Casa e de mais de metade da vila, com pinhais até sabe Deus onde e imóveis
no litoral. O que a fortuna lhe havia dado em dinheiro e bens materiais havialhe retirado em beleza, pelo que, na vila, as alcoviteiras o tratavam por
Monstro.
Todos ali o temiam. Não que ele fosse mau. Não. No fundo — e pelo
contrário —, ele era um bom homem, mas o seu jeito de ser, excessivamente
recto, assustava os habitantes, que temiam todo e qualquer desvio do caminho
a direito da vida. E foi por isso que, naquela noite, Celestino se viu tão aflito
quando ele lhe apresentou as cartas — o mundo pode ruir com um póquer de
ases.
Ao acordar estremunhado, a meio da manhã, quedou-se no sofá, com as
mãos em concha sobre cara.
Que fiz eu à puta da minha vida…, suspirou.
Pai? Estás bem? Anabela aproximou-se, ajoelhando-se à sua frente,
inquieta com as palavras. Por momentos, julgou ser da ressaca, mas a
agonia espelhada no rosto escondido atrás da parede de dedos parecia ter
razões mais excêntricas, com cascos e listras.
Fodi a puta da minha vida…
O que se passou pai? Estás a deixar-me preocupada.
Os lábios do homem fremiam, as lágrimas escorriam, abrindo caminho
entre as rugas.
Perdi a jogar às cartas…
E o que tem isso, pai? Umas vezes ganhamos, outras perdemos. Mas
perdeste dinheiro, foi?
Dinheiro… E… A dignidade…
Os olhos de Anabela agigantaram-se de espanto; não sabia o que o pai
queria dizer com aquilo, mas coisa boa não seria. Calaram-se por instantes.
Celestino sentou-se. O seu pé direito palmeava, agora, freneticamente, o
chão. Continuou:
Uma de vocês terá de se casar com o Monstro. Ou isso, ou tenho de lhe
dar um rim.
Uma massa densa de silêncio voltou a encher o espaço entre ambos.
Apenas o som do pé de Celestino a bater contra o soalho se ouvia: tá-tá-tá-tátá. Foi nesse momento que Anabela ouviu o galope do destino a chegar.
Eu caso com ele, pai. Não chores. As palavras haviam-lhe saído
naturalmente.
Sempre fora assim: se alguém precisava de ajuda, agia por instinto dando
a mão, não se importando com as consequências. As irmãs achavam-na uma
parva, e muitas vezes abusavam da sua bondade — que confundiam com
ingenuidade — passando-lhe a perna. Desta vez não precisavam sequer de
fazer fosse o que fosse, pois Anabela havia saltado com o corpo todo para
cima da granada atirada à família. Salvá-los-ia a todos.
Nesse mesmo dia, ao jantar, Celestino ergueu o copo de vinho,
anunciando uma boa nova. Embora por dentro se sentisse a definhar de
vergonha, não podia dar parte fraca.
A nossa Bela vai casar-se com o Monstro!, disse, com toda a pompa,
sorrindo largamente, e bebeu o copo de uma vez.
As irmãs de Anabela olharam uma para a outra, atónitas; a mãe, que
mastigava um pedaço de carne, quase se engasgou. Anabela sorriu,
timidamente.
Ninguém diz nada?, perguntou o pai.
Com o Monstro?, perguntou uma das irmãs.
Mas ele é tão feio…, respondeu a outra.
É um bom homem! Feio por fora, mas bonito por dentro, disse o pai,
rematando a conversa.
A minha menina… disse a mãe, abraçando Anabela, que continuava a
sorrir, sem nada dizer. Como é que isto foi acontecer?
O pai tossiu, encheu novamente o copo e bebeu um gole, antes de
disparar: Ora, ora… Que interessa isso agora? O que importa é que a nossa
Anabela seja feliz. Viva!
Alheia à aparente felicidade, escutando ainda os cascos do destino,
Anabela sorria absorta, dançando com a colher dentro do prato da sopa.
Sonhava casar-se um dia, claro, mas julgava poder escolher com quem o
faria: talvez um moço da cidade, com jeitos mais sofisticados, instruído, e
que preferisse o sushi ao chouriço. Mas como Deus se ri dos planos feitos,
sobrou-lhe o Monstro. Continuou a sorrir. A mãe ainda de braços amarrados
em volta do seu pescoço, chorava agora lágrimas pesadas de felicidade, que
se despenhavam na coxa direita de Anabela: tá-tá-tá-tá-tá.
Ao chegar à Casa no Alto, sem armas, mas com bagagem, Anabela foi
recebida pelos criados, que a cumprimentaram. Conhecia-os a todos, pois
viviam na vila e eram fregueses do pai. Nenhum deles pareceu espantado
com a sua chegada, ou a natureza daquele inusitado arranjo, e isso deixou-a
inquieta, por momentos, até a aproximação do Monstro lhe ocupar todo o
espaço reservado à razão e à emoção. Ao ver o homem descer aquela enorme
escadaria encaracolada, o seu coração começou a revoltar-se contra as
costelas; dentro do perímetro craniano os pensamentos atropelavam-se (é
alto, tem o nariz torto, pelo menos dizem que é um homem bom e justo, que
posso querer mais? Que é aquilo? Um sinal? É mesmo alto, pelo menos tem
os olhos bonitos, e tristes, tem uns olhos tristes, baços…).
O Monstro aproximou-se de Anabela, pegou-lhe na mão e beijou-lhe o
metacarpo.
Mário. Muito gosto.
Anabela.
O nome faz-lhe jus. Não é muito normal um nome combinar com a carne
a que o prenderam.
Anabela não sabia que dizer, e por isso manteve-se em silêncio.
E o seu pai?
Deixou-me aqui e foi-se embora. Tinha clientes à espera.
E a sua mãe, e irmãs?
A minha mãe disse que não conseguia vir… Anabela suspirou, olhou
para as pontas dos pés, antes de continuar: Disse que lhe custava muito. As
minhas irmãs, não sei, mas também não tem mal… Estamos a uns minutos de
distância. Não me mudei para o outro lado do mundo… Posso ir visitá-las
entretanto…
O Monstro soltou um estalido.
Não sei se o seu pai a informou do nosso acordo.
Sim… Quer dizer… Ele disse-me que temos de nos casar.
Sim, correcto. Mas primeiro quero que viva uns tempos comigo, que
perceba o funcionamento das coisas… Encare este período como um teste,
uma experiência, para vermos se realmente há algo entre nós. Mário
Monstro virou costas, olhou o piso superior, a balaustrada da varanda em
madeira envernizada, os quadros com rostos pintados a óleo. Sabe, estou há
muito tempo sozinho. A solidão… A solidão tem sido uma amante cruel. Há
muitos espaços vazios nesta casa. Muitos. Preciso de alguém que os
preencha. Compreende?
Anabela fez que sim com a cabeça. Também se sentira sozinha a vida
toda, apesar de viver numa casa cheia de gente. Sempre achou que a solidão
fosse normal nas famílias numerosas. Ainda por cima tendo sido ela a última
a chegar, a fazer parte daquele ecossistema que já existia muito antes de si.
Nunca se sentiu rejeitada, ou coisa que lhe valesse. Nunca amaldiçoou fosse
o que fosse, ou fosse quem fosse, por ter chegado fora do tempo. Os pais não
tinham culpa, as irmãs não tinham culpa, ninguém tinha culpa. Era o que era,
e cabia-lhe aceitar.
O homem olhou-a longamente. A tristeza nos olhos dele fascinava-a. De
onde viria? Subitamente sentiu algo diferente naquele arranjo mal-amanhado:
um entusiasmo que ainda não havia experimentado. Tentaria descobrir o
porquê da tristeza nos olhos do Monstro: seria uma espécie de caça ao
tesouro.
Você é, de facto, muito bela, disse o Monstro, interrompendo a linha de
pensamento de Anabela. E, nisto, virou costas e retirou-se.
Passaram-se meses até finalmente a Bela e o Monstro se casarem. A vila
foi toda convidada. E todos brindaram à abundância e à felicidade. As irmãs
de Bela desdenhavam de tudo: dos empregados aos copos de cristal, ao
vestido de noiva simplório, à fronha horrível de Mário Monstro. Riam e
cochichavam à socapa, enquanto a mãe chorava o estranho destino da sua
mais nova. O pai erguia o copo a uns e outros, gargalhava alto — a barriga
quase enxotando os botões da camisa —, gabava a sorte da filha e a fortuna
do genro. Bela estava feliz pela companhia, por ver outros rostos que não os
que via desde o dia em que ali chegara, mas a inevitável solidão abatia-se
sobre ela.
Mário Monstro, depois de cumprimentar e falar com alguns dos
convidados, aproximou-se de Bela
Como se sente? Está feliz?
Eis a pergunta milionária. As palavras que ofuscavam a opulência do
evento: Estarei feliz?
Não sei que dizer…
Mas diga. É minha esposa, pode dizer-me tudo.
Estou feliz por ver os meus pais.
Compreendo. Pegou-lhe na mão direita, ensanduichando-a entre as suas
enormes mãos. Mas não está feliz com o casamento? Com a festa? Sabe que
fiz isto tudo por si.
Anabela condescendeu com a cabeça. Cabia-lhe aceitar. Como não? O
mínimo que podia fazer era ficar feliz. Pela primeira vez na vida alguém a
havia posto em primeiro lugar, alguém havia feito algo em sua honra.
Lembrou-se das palavras dele, dias antes: Quero que se sinta o centro do
universo. Recordou como a sua cara enrubesceu. Nunca havia sido o centro
de nada. Até ali. Forçou um sorriso que lhe apresentou e ao qual ele
condescendeu com a sua boca torta. Voltou a olhá-lo nos olhos: lá estava ela,
a tristeza, a boiar como um pedaço de esferovite num mar negro.
Posso perguntar-te uma coisa?
O que quiser…
De onde vem essa tristeza que não te sai dos olhos?
Tristeza?
Sim, tristeza.
O homem suspirou.
Talvez seja uma conversa para mais tarde. Agora está muito barulho.
Depois do sofrível ritual de acasalamento, típico das noites de núpcias,
Anabela e Mário Monstro ficaram ambos a contemplar o tecto, em silêncio.
Apesar dos centímetros que fisicamente os separavam, as suas mentes
percorriam diferentes geografias: Bela recordava a alegria do dia, o fogo-deartifício depois do bolo; Mário recordava o momento triunfal em que mostrou
o seu póquer de ases ao, agora, sogro.
Sorriram.
Já me podes dizer de onde vem essa tristeza?, disse a rapariga, ainda
olhando uma mancha teimosa na tinta branca por cima de si.
Mário suspirou, antes de responder. Não havia fuga possível. Fechou os
olhos, coçou os pêlos do peito com as unhas.
Você já olhou bem para mim? Digo: já viu como a natureza foi cruel
comigo? Claro que sim. Claro que já viu. E creio que já se deve ter
perguntado o que faz aqui. Uma mulher bonita como você, com um homem
feio como eu. Suspirou, antes de continuar, como se arrastasse uma pedra
muito pesada para que as palavras pudessem sair da gruta onde se
escondiam. Eu sei como me chamam na vila. Não me tome por ingénuo. Seio. E aceito-o. Tenho um aspecto execrável. Mas apesar de estar em paz com
a minha fealdade, não quer dizer que isso não seja um peso, uma mágoa que
carrego. Porquê? Porquê eu? Será uma espécie de jogo perverso do
universo? Uma forma de equilibrar as coisas? Sendo rico, não posso ser
bonito? O que você vê não é tristeza, minha querida. O que vê é angústia… A
angústia de alguém que se resignou, mas que todos os dias é lembrado
daquilo que é: um monstro.
Anabela rolou o corpo para o lado do esposo. Olhou a silhueta do seu
nariz enorme e torto, a anarquia dos pêlos do peito. Aproximou-se e beijoulhe o ombro.
Tu não és um monstro, disse, ainda com os lábios encostados à pele
quente.
Habituada à clausura dentro dos limites da enorme propriedade da Casa
no Alto, tomando-a como normal, Bela levava os dias entre a criadagem. Do
lado de fora chegavam notícias de um bicho maldoso que queria aniquilar a
raça humana sem apelo nem agravo. As gentes assustadas atravessavam os
muros com histórias de parentes que viviam na cidade e haviam sucumbido
às mãos do medo, fechando-se em casa. Nas notícias na televisão e na
Internet dava-se conta de um apocalipse. Agora era a sério, não como aqueles
simulacros de anos anteriores, e as fantochadas do calendário Maia. Não.
Agora era a sério. Nos telefonemas diários, o pai e a mãe contavam-lhe que
as irmãs, agora cidadãs do litoral, andavam muito assustadas. Até de máscara
andam, tu vê lá. Tu é que estás bem aí dentro. Pelo menos aí o bicho não te
pega. Anabela assumiu as palavras como certas, mas o facto é que desde que
se casara poucas haviam sido as vezes que havia transposto aqueles muros
altos, e sempre que o fizera fora acompanhada pelo marido. Desde que ali
entrara, nunca mais havia saído sozinha, nem para ir a casa dos pais. Sempre
encarara tal facto com naturalidade. Não precisava de sair, a verdade era essa.
Tinha ali dentro tudo o que precisava. Mas, agora, constatando o inevitável
fim do mundo, julgou que seria bom sair uma última vez sozinha, sem
ninguém a acompanhá-la, e sentir a leveza da liberdade, o afrouxar das
correntes.
Fê-lo.
Para lá do imponente portão de ferro o mundo parecia-lhe
admiravelmente novo. Respirou fundo o aroma floral da Primavera.
Recordou os sonhos de há muitos anos que haviam sido mutilados: primeiro
pela imposição do destino de um jogo de cartas, depois pelo fascínio da
descoberta, e depois, ainda, pela resignação da condição de mulher casada;
nunca experimentara o amor. Como seria? Sentiu uma estranha energia a
descer-lhe o corpo até às pernas e pés. Uma vontade que parecera — também
— ter estado enclausurada durante aquele tempo todo. Começou a correr
desenfreadamente, desajeitada, como uma criança que acabara de descobrir o
ponto de equilíbrio para se manter de pé e avançar. À medida que a energia
cinética aumentava, as memórias dos dias começavam a desenrolar-se como
um filme dentro da sua cabeça. Viu-se como sempre fora desde que ali
chegara: uma prisioneira que simpatizara com o seu carcereiro. Correu o mais
que pôde até lhe faltar o ar. Quando parou, prostrada na berma da estrada,
quase vomitando, um carro interrompeu a sua marcha ao seu lado. Um moço
de traços finos e jeitos sofisticados fitou-a, preocupado.
Está bem?
Sim, estou. Só um pouco cansada. Há muito tempo que não corria.
O rapaz riu, mostrando os dentes brancos e muito direitos.
Quer que a leve a algum lugar?
Bela olhou para trás. Devia voltar, pensou, mas as palavras saíram-lhe da
boca com um sentido contrário:
Para longe daqui, pode ser? O mais longe possível…
O jovem debruçou-se, abrindo-lhe a porta do pendura. Ela entrou no carro
e, ao sentir o coice do motor no arranque, sorriu, julgando, pela primeira vez
na vida, ser verdadeiramente livre.
Capuchinho Vermelho
de modo a respeitar
as regras da quarentena
a Capuchinho Vermelho
encomendou a comida
para a avó
pela Uber Eats
mal sabia ela
que o entregador
era o Lobo Mau
Eu não nasci bandido. Nasci pobre , era sempre assim que Lobo
começava a história da sua vida. Naquele dia não foi diferente. Principiou
como sempre principiava: pelo infortúnio do destino que o havia depositado
no meio da pobreza, num bairro sem condições, com uma mãe solteira que
lutava, dia após dia, pelo pedaço de pão que consigo partilhava. Ela diziame sempre: somos pobres, mas somos dignos. Podem tirar-nos o dinheiro,
mas não nos tiram a dignidade; podem tirar-nos a vida, mas vamos daqui de
cabeça erguida. Uma parvoíce, digo-te já. Ninguém sai daqui de cabeça
erguida. Vamos todos com os cornos para baixo, a comer a terra. Não há
Deus que nos valha. Não me olhes assim. Deixa-me continuar. Onde é que eu
ia? Ah! Estavas a perguntar-me como é que isto aconteceu. Como é que a
velha apareceu assim morta… Ora bem, como te disse, eu não nasci bandido.
Tenho cadastro, é um facto. Uns delitos menores: furtos, posse de droga…
Uns gramas disto e daquilo, nada do outro mundo. Mas sim, tenho cadastro.
Lá se foi a dignidade com o caralho. Ah! Ah! Eh pá! Que cara sisuda é essa?
Não me julgues. Sabes o que é viver num bairro social? Sabes? Atravessares
aquela fronteira, que nem é bem uma fronteira, é uma estrada, um bocado de
asfalto, e do outro lado é só putos com altas roupas, tudo de marca e o
caralho; um gajo ali a jogar com bolas descascadas, no cimento, descalço, e
os cabrões com bolas novas, com couro macio e sapatilhas à jogador
profissional. Estas coisas, quando um gajo é puto, custam. Quer dizer…
Ainda hoje custam. Então, mas quê? Uns são filhos e outros são enteados?
Bem, mas isso não importa, agora…
O inspector Abílio apontava no seu modesto caderno as palavras de Lobo.
Não todas. Apenas as que achava pertinentes e que poderiam ter alguma
relevância para a resolução do caso. Na esquadra era conhecido como o
Caçador; alcunha que havia ganhado pela sua mestria a apanhar bandidos. A
cena era macabra. A velha estava toda retalhada, na cama; havia sangue por
todo o lado. Algo ali lhe cheirava a esturro. Não sabia bem o quê, ainda. Mas
haveria de saber.
Lobo continuou a sua história: Então, eu ‘tava-te a dizer que tenho
cadastro, sim, mas não fui eu que fiz esta merda. O pedido chegou à Uber, e
calhou-me a mim vir cá entregar a comida. Isto agora com esta merda da
pandemia parece o Texas. É só pedidos, e o caralho. Nós é que temos de
andar. Uns e outros sentados no sofá, e nós aqui. Somos carne para canhão, é
o que é. Pelo menos não está tanto trânsito. Um gajo de bicicleta nesta cidade
é o caralho. Os condutores não nos respeitam. Alguns, se pudessem, acho que
nos faziam a folha. Olha, aponta aí que devia haver uma lei que protegesse a
malta das bicicletas. Especialmente quem anda a vergar a mola. Quer dizer,
há leis para tudo, mas para o que importa, para a malta trabalhadora, malta do
bem, não há. Ando na linha há algum tempo. Não tenho culpa que estas
merdas me persigam. Eu bem pedalo…
Abílio retirara os olhos de Lobo. Fechara o caderno. Por entre o aparato
de médicos legistas e fitas e fotografias, movimentava-se devagar. Juntava as
peças dentro da cabeça, tentando recriar o filme, mas nada lhe parecia bater
certo. Voltou-se novamente para a única testemunha que podia interrogar —
em silêncio —, reabriu o caderno, sacou da caneta e, como um maestro,
brandiu-a, para que o outro recomeçasse a debitar.
É como te digo: estas coisas perseguem-me. Um gajo anda na linha, a
ganhar o seu dinheiro honestamente e, de um momento para o outro, pimba!
Lá acontece uma merda destas… Cheguei e a porta estava aberta. Bati.
Chamei. Nada. Ainda pensei em virar costas e ir-me embora. Era o melhor
que tinha feito. Mas não. Empurrei a porta, voltei a gritar lá para dentro.
Nada. Só silêncio. Achei estranho. Um gajo fareja estas merdas. Quando
algo não ‘tá bem, ‘tás a ver? Talvez por ter crescido onde cresci e ter visto o
que vi, sei lá. Então entrei, sempre a chamar. Foi quando cheguei aqui ao
quarto e vi esta cena. Parecia um filme de terror. Já vi muita merda; nunca
vi nada assim. Isto é uma coisa à Estripador. A velha toda cortada, só
sangue e o caralho. Porra! Digo-te já que quem fez isto estava mesmo
chateado. É a pandemia. Anda a deixar tudo maluco. Não viste as notícias?
Aquilo do papel higiénico? Quê? Mas o bicho dá caganeira? Anda tudo
maluco. É nestas que se vê como a malta é egoísta. Imagina se tivessem de
viver com pouco, a contar os trocos, as migalhas do pão, como eu vivi. Como
ainda vive a malta lá do bairro. Nisso a minha mãe tem razão: a pobreza
traz-nos dignidade. O pouco que temos, partilhamos. Se alguém precisa,
ajudamos. Mas esta gente está habituada ao muito, e quando lhes cheira a
pouco até olhos arrancam, se for preciso. E nós, os pobres, é que somos
vistos como os bandidos, porque vivemos nos bairros e somos todos
drogados e ladrões. Quê? Os ricos não roubam? E os gajos dos bancos? Os
políticos e essa gente? Roubam aos milhões! É uma questão de
oportunidade. Nós até nisso temos azar. Se quisermos roubar, só roubamos
tostões, já viste? Até para roubarmos a balança está desequilibrada. Não
roubam… Não roubam é pouco! Cambada de hipócritas! Não arregales os
olhos. Também sei palavras caras. A cultura não é um resort para os
abastados, olha que caralho. Bem, mas isto tudo para te dizer que não matei
a velha. Não sou eu o Lobo Mau. Quando cá cheguei já ela estava assim.
Abílio parou de apontar no caderno. Estava claro que não havia sido
aquele homem o autor do crime. Pediu-lhe, no entanto, o nome e o número de
telemóvel, para contactá-lo caso fosse necessário. Enquanto Lobo pegava na
bolsa térmica e a metia às costas, Abílio fez-lhe uma última pergunta: Quem
efectuou o pedido?
Aqui nos registos diz que foi uma tal de Capuchinho Vermelho. Esta
malta e as alcunhas. Há com cada uma. Ah! Ah! Se quiseres mais dados tens
de pedir aos tipos da Uber. Bem, vou fazer-me ao piso.
Não vá para longe, disse-lhe o inspector Abílio, olhando as manchas de
sangue que tingiam a parede branca.
Para longe? Eu bem pedalo, pá, mas parece que não saio da cepa torta.
Cinderela e o Copo de Cristal
impedida de ir ao baile
a Cinderela
vestiu o fato de treino
abriu uma boa
garrafa de vinho
e bebeu-a
sozinha
num copo de cristal
Cinderela desenhava oitos no soalho enquanto o limpava de joelhos.
Gostava de o fazer assim, como se estivesse a pagar por uma penitência que o
divino lhe havia depositado sobre os ombros e, sempre que o fazia, cantava,
sozinha, perdida entre os labirintos de tabique e betão da cidade — esses
enormes palácios de solidão onde as patroas ricas organizavam festas
opulentas.
Naquele dia, não sabendo porquê, sentiu uma certa urgência em ligar o
rádio a pilhas desprezado num canto da bancada da cozinha. Ao pressionar o
botão que daria vida ao objecto, um ruído disforme tomou conta da casa. A
rapariga fez uma careta e apressou-se a sintonizar numa estação onde pudesse
distinguir algo. Rodou para a esquerda e para a direita, dançando entre
frequências, até encontrar o ponto certo:
Então
Bate, bate coração
Louco, louco de ilusão
A idade assim não tem valor
A voz masculina vibrava limpa e Cinderela acompanhava as palavras de
mão fechada junto à boca, como se segurasse um microfone, deslizando no
chão molhado de água e detergente, perpetuando um dueto que a fazia sentirse menos só.
Após a morte do pai, começou o calvário de Cinderela. A madrasta,
mulher vil, alcoólica assumida e viciada em jogos de azar, infernizava
amiúde a vida da rapariga, condenando-a às lides domésticas. Sempre que
chegava a casa, tombada pelo grau, descarregava nela todas as suas
frustrações, batendo-lhe de mão aberta e chamando-lhe nomes, amaldiçoando
o dia do casamento.
Eu que era uma mulher tão cobiçada. Os homens faziam fila. Fila! Logo
tinha de me calhar aquele frouxo. Porque é que as mulheres se apaixonam
sempre pelos frouxos? Deve ser por pena. A morte dele foi uma bênção, estás
a ouvir? Uma bênção! É bom que a comida já esteja na mesa…
Depois de servir o jantar e de lavar a loiça, no seu quarto, no sótão da
casa, Cinderela chorava à socapa, deitada de borco, abafando os gemidos na
fronha da almofada.
Este ciclo infernal perdurou durante dois anos — sempre igual — até ao
dia em que, num acesso de raiva, a madrasta bateu na rapariga com um pouco
mais de força, causando a sua ida ao hospital. Enquanto era suturada pela
médica, procurava em si razões para continuar a sujeitar-se a tudo aquilo.
Não encontrava nenhuma. Tudo lhe parecia um pesadelo repetido
sadicamente. A médica olhava-a com pena e ela olhava-a de volta
adivinhando essa mesma pena. Foi nesse momento que dentro de si algo
desabrochou, uma flor mirrada, escondida do sol que, através de uma fissura,
aberta naquele momento, recebia os primeiros raios. Sentiu-a a crescer e
crescer e crescer, até tomar conta de tudo e se tornar num enorme sorriso.
Já está!, disse a médica. Agora deve evitar fazer esforços. Muito cuidado,
para não rebentar os pontos. Não me quer mesmo explicar de onde vêm esses
hematomas?
Sou bastante descuidada, respondeu Cinderela.
Não me parecem hematomas de gente descuidada.
Mas são. Não se preocupe. Daqui para a frente terei mais cuidado.
E foi assim que, nesse mesmo dia, Cinderela fez as malas e partiu.
Às vezes, e porque tudo parece repetir-se, num eterno retorno, saímos de
uma prisão para entrar noutra.
Parece que fomos condenados por Deus a uma pena perpétua.
Enquanto Cinderela lavava a loiça do jantar, a sua companheira de casa
enrolava um charro e debitava teorias sobre a vida. Era uma rapariga
estranha, que passava a vida narcotizada.
Não sei como consegues viver assim…
Assim como?, perguntou Cinderela.
Assim sóbria. O mundo é um sítio tão feio.
Não sei que dizer…
A tua madrasta não te batia?, perguntou a colega, acendendo o canudo
de papel vegetal.
Sim.
E como aguentavas? Não sentias vontade de fugir?
E fugi… Cinderela varria agora o chão. A colega, alheia a tudo aquilo,
parecia muito pouco impressionada com a sua resposta.
Disseste que ela te obrigava a limpar a casa, a fazer o almoço e o
jantar… No fundo, nunca fugiste. Pareces condenada a fazer o que fazias.
Continuas a limpar casas.
Sim, tens razão. Levanta os pés, por favor. Mas agora sou paga para o
fazer.
Não deixa de ser uma prisão.
Mas não tenho um carrasco. O trabalho nunca me assustou. E eu gosto
de limpar, gosto de cozinhar.
A colega bufou, soltando o fumo com enfado.
Isso parece-me a definição clássica de mulher aos olhos do patriarcado.
Faço-o por gosto. Sou feliz ao fazê-lo. Devo renunciar à minha felicidade
para não ser um cliché? Não faço o que faço por imposição. Mesmo quando
vivia com ela, não fazia o que fazia por medo. Fazia-o por gosto. E tudo o
que queria era que, depois de tudo aquilo, me chegasse um sorriso, do outro
lado, e não uma mão. Tudo o que queria era sentir algum carinho. Não
procurava a gratidão, nada disso. Queria carinho, amor, um sorriso. Às
vezes, basta um sorriso. Nisto arrumou a vassoura junto à parede e sentiu as
lágrimas a quererem fugir dos olhos. Forçou-as a ficarem onde estavam.
Chorá-las-ia mais tarde, como sempre fazia, na almofada, em silêncio e
antes de adormecer.
A música na rádio cessou. A voz grave anunciava agora uma notícia de
última hora: uma pandemia que punha o mundo em xeque. Cinderela parou
de esfregar o chão. Ergueu-se. Correu a aumentar o volume do aparelho.
Aparentemente, os países teriam de tomar medidas drásticas para parar o
bicho que há semanas parecia multiplicar-se por todo o lado; afinal, não era
apenas uma gripe, como apregoavam os velhos nos transportes públicos,
mostrando-se descansados pela toma da vacina em Novembro passado.
Afinal, talvez as teorias da conspiração estivessem certas e aquela coisa
tivesse mesmo sido criada num laboratório como uma arma pronta a aniquilar
a espécie humana. Cinderela abanou a cabeça, sacudiu as ideias.
Que estupidez, murmurou.
Depois de terminada a faxina, perto das seis da tarde, Cinderela fechou a
enorme porta de madeira talhada. Rodou duas vezes a chave e certificou-se,
com um encosto de ombro, de que estava tudo bem trancado. Seguiu caminho
até à paragem, como sempre fazia, vendo as pessoas que sempre via: nada
parecia ter mudado. A notícia não causara o pânico. O mundo continuava
igual, alheio a essa declaração de guerra entre as espécies.
Entre a saída do autocarro apinhado de gente e a entrada no T2 onde
vivia, reparou numa promoção de copos de cristal numa das lojinhas do
bairro. A enorme cartolina magenta anunciava em letras garrafais escritas à
mão uma promoção de quatro copos por vinte euros. O negócio interessoulhe e por isso apressou-se a entrar — não fossem as velhas já ter rapinado
tudo e ela ter sido deixada com nada. Felizmente, a sorte sorriu-lhe e
continuou caminho equilibrando com cuidado a recente aquisição debaixo do
braço e um sorriso de vitória no rosto.
Já em casa, retirou os copos da caixa de cartão e lavou-os com esmero,
pousando-os depois sobre um pano, na mesa da cozinha, de cabeça para
baixo. Sentou-se e deixou-se ficar a contemplar os pingos a escorrerem e
despenharem-se, como lágrimas. Comoveu-se com a analogia feita na sua
cabeça entre a água que choramos e a água que nos lava. Estranhamente, não
lacrimejou. Apenas sentiu um tremor junto ao peito.
Nisto, a colega de quarto entrou cozinha adentro.
Há alguma coisa para comer?, perguntou.
Ainda não fiz o jantar, respondeu Cinderela.
Estou esganada de fome.
Vou tratar do jantar, então.
A colega encolheu os ombros, abriu o frigorífico e retirou uma fatia de
queijo que enfiou inteira na boca. Ainda a mastigar, disse:
Há um baile funk aqui no bairro para a semana. Queres vir? Não é muito
a minha onda, mas é melhor do que ficarmos trancadas em casa. Ouviste as
notícias?
Ouvi. Parece que isto é mesmo um assunto sério.
Sério… bufou a outra. Isto foi apenas uma maneira engenhosa que os
governos arranjaram para nos oprimirem; para nos condicionarem. É
engenharia social. Apresentam um problema, potenciam o problema e,
quando damos por ela, já perdemos metade dos nossos direitos. Não te
deixes enganar!
Mas está a morrer gente.
Conheces alguém que não morra?
Não creio que seja essa a questão. Há pessoas a morrerem por causa do
vírus.
Não sejas ingénua! Os vírus sempre existiram. Sempre mataram. Bem,
mas isso agora não interessa. Queres vir ao baile, ou não?
Sim, vou.
Óptimo! E estes copos?
Comprei-os para uma ocasião especial.
Devido ao aumento exponencial de casos, uma nova ordem tomou conta
dos dias. A anarquia e a irracionalidade invadiram alguns espaços. Por todo o
lado a palavra proliferava à boleia das notícias e do medo generalizado. Nas
ruas vazias da cidade cinzenta, Cinderela vagueava como um dos últimos
exemplares da sua espécie.
Ao chegar à paragem habitual, onde apanhava o autocarro, Cinderela deu
por si a olhar para uma flor amarela entre as pedras da calçada. Talvez devido
ao movimento constante, à energia cinética dos dias, nunca tivera tempo para
parar e reparar naquela frágil estrutura. No entanto, naquele dia, na cidade
deserta e aparentemente em pausa, conjecturou a possibilidade de o fazer. A
inusitada beleza de tudo aquilo fê-la perder a carreira das seis e um quarto,
mas isso pouco ou nada importava. Esperaria pela próxima, a das seis e meia,
que talvez viesse ainda mais vazia que a anterior. Deixou-se ficar a
contemplar aquela metáfora feita de pétalas e calcário. Deu por si imbuída
naquela imagem: as pedras pesadas: a vida; a flor amarela: ela, Cinderela. E
pensou que, por mais vergastadas que a vida lhe tivesse dado, por mais
pesadas que tivessem sido as pedras no seu caminho, também ela havia
medrado. Ali estava ela, Cinderela, mulher feita e feliz, alheia aos caprichos
do mundo. Ali estava ela, Cinderela, a trilhar o caminho, a crescer e crescer e
crescer em direcção ao céu. Ali estava ela, Cinderela: bela e amarela.
Eram já sete menos quatro minutos quando Cinderela abriu a porta de
casa. A colega, ao ouvir o ribombar da porta a fechar, apressou-se a correr
para lhe contar as (não tão) boas novas.
O baile foi cancelado. Um absurdo! Já não podemos sair de casa.
Estamos presos. É tudo uma grande negociata dos donos do mundo. Ouve o
que te digo!
Cinderela, ainda a pensar na flor amarela, encolheu os ombros. A outra
continuou:
O que é o jantar?
Cinderela voltou a encolher os ombros.
Não vais fazer o jantar?
Hoje não. E, ao dizê-lo, seguiu até ao quarto, despiu as roupas que trazia
vestidas e vestiu um fato de treino. Já confortável, avançou até à cozinha,
abriu uma garrafa de vinho tinto e despejou um pouco do conteúdo num dos
copos de cristal. A colega olhava-a incrédula.
O que estás a fazer?, perguntou.
O que te parece?, respondeu Cinderela.
Não tinhas dito que os copos eram para uma ocasião especial?
Estou viva e feliz. Cinderela fez uma pausa e bebeu um gole, antes de
continuar: Queres ocasião mais especial do que esta?
Rapunzel Cortou o Cabelo
para evitar
o contacto
social
Rapunzel
cortou
o cabelo
Isabel Rapunzel tinha o cabelo mais bonito do bairro. Mesmo com oitenta
anos continuava a escová-lo diariamente, à janela do seu terceiro andar, e a
cantar, encantando os transeuntes que amiúde cessavam a marcha e se
deixavam ficar a contemplar aquele espectáculo digno da Broadway.
O rosto no espelho já não era o mesmo de há sessenta anos, mas Isabel
ainda conseguia desmontar as rugas e ver para lá da imagem que lhe chegava:
o perímetro exacto dos olhos, a firmeza dos lábios, os milímetros a menos do
nariz agora ligeiramente adunco. Recordava com saudosismo, mas sem
rancor, essa mocidade perdida no tempo, esses anos áureos em que os
homens paravam à entrada do prédio, cantando serenatas para o alto, na
esperança de um sorriso, ou de um beijo disparado na sua direcção.
Recordava especialmente um: Sebastião, homem de ombros largos e cabelos
loiros, com uma voz de anjo.
Sempre que Sebastião parava junto à porta do prédio de Rapunzel, o
bairro vinha à janela.
É o Sebastião. Olha, vai cantar. Vai chamar a tua mãe, rápido! É o
Sebastião.
De boca em boca, de casa em casa, o anúncio do espectáculo sucedia-se e
as cabeças multiplicavam-se, curiosas, espreitando para a entrada do número
noventa e nove.
No passeio, o homem pigarreava, limpando da garganta as impurezas,
preparando-se para o início da canção:
Tu, nessa torre, não tens ideia
de como o meu coração anseia
que olhes para mim
Que deslindes o novelo
e me lances o cabelo
para chegar até ti
Rapunzel lançava os seus longos cabelos loiros para lá do parapeito,
ficando estes a pender sobre a janela do segundo andar, dançando ao sabor do
vento. Continuava então de onde Sebastião havia parado, à laia de um dueto
entre amantes:
Tu, nesse chão, não tens noção
de como é viver nesta solidão
Nesta torre perto da Lua
onde os pássaros fazem ninho
o coração sente-se sozinho
e a tristeza não mingua
Ao cessarem a cantoria, a rua enchia-se de urros e palmas Bravo! Lindo!
Fadistas! ao que ambos os cantores agradeciam com vénias e sorrisos largos.
Depois da euforia, e com os ânimos mais silenciados, Sebastião voltava-se
para cima, para a figura do seu amor, e perguntava:
Quando nos casamos?
Quando o meu cabelo chegar até ti, respondia Rapunzel, puxando
novamente os seus longos cabelos para dentro de casa.
Mas isso vai demorar uma vida toda. Não temos assim tanto tempo.
Demora o tempo que demorar. O amor, como Roma e Pavia, não se
constrói num dia.
E assim continuaram, ano após ano, após ano, até Sebastião se cansar de
esperar e se casar com uma moça roliça de outra freguesia. A Rapunzel
sobrou-lhe a solidão e o dom da adivinhação. Tornou-se vidente e era
procurada por pessoas de longe que viam os seus anúncios nos jornais. Não
sabia se era sorte, ou outra coisa qualquer, mas o facto é que muitas das vezes
as suas previsões acertavam no centro do alvo do destino. Duma coisa tinha a
certeza: se querer saber o futuro era coisa de gente louca, ela era a directora
do manicómio. Nas sessões que levava a cabo no seu terceiro andar bafiento,
pedia que as pessoas se sentassem à sua frente, sem grandes cerimónias.
Depois de pagos os honorários, começava todo o teatro.
Diga-me: você acredita no destino?
O homem olhava-a como um animal assustado, encolhendo-se ao
máximo na cadeira de madeira onde se sentava.
Se não acredita, de nada vale estarmos aqui, continuou Rapunzel. E não
precisa de ter medo. O destino não morde; pode ser cruel, mas não morde.
Do outro lado, um gesto afirmativo com a cabeça deu o mote para que a
mulher continuasse. Rapunzel desenrolou o farto novelo de cabelo que trazia
amarrado. Este desceu as suas costas como uma capa.
O problema, meu caro, é que a vida é um labirinto. Nós não sabemos
chegar ao seu centro. Sabemos onde entrámos, sabemos de onde viemos, mas
não sabemos para onde vamos. Às vezes, viramos à esquerda, encontramos
uma parede, e percebemos que devíamos ter virado à direita. Está
familiarizado com a história de Teseu e de Ariadne? Pois bem, Ariadne deu
um fio vermelho a Teseu para que pudesse sair do labirinto. É isso que
também eu lhe ofereço: um fio; uma forma de se guiar pelos caminhos
tortuosos da vida. De chegar ao centro e depois regressar… Rapunzel
acompanhava as palavras com gestos, mexendo nos seus longos cabelos.
Aqui, neste meu cabelo, estão muitas vidas. Todas ligadas. Vejamos se
encontro a sua… Entrando numa espécie de transe ensaiado durante muitos
anos, a mulher remexeu no enorme manto capilar que se estendia desde a
cabeça até ao chão. Fechou os olhos e começou a murmurar palavras numa
língua morta, tremendo.
O homem, assustado, ajeitava os óculos e limpava as gotas de suor que
agora ganhavam forma na sua testa luzidia.
Vejo uma casa na periferia. Um filho… Não! Dois! Vejo uma mulher.
É a minha Helena?, perguntou o homem, ansioso.
Tem cabelos loiros.
Não são bem loiros, são mais para o castanho, mas sim, sim! Vou ficar
com ela? Vamos ser felizes?
Não sem antes serem tristes. E mesmo depois serão tristes. A felicidade é
o que acontece no meio.
Então, vamos ser felizes e ter filhos.
Sim! E um cão! Vejo outro animal… Um pássaro?
Bem, ela tem um gato.
Isso mesmo! Um gato!
Muito obrigado! Muito obrigado!
Depois de fechar a porta, Rapunzel sentia-se sempre um pouco mais
infeliz que dantes. Sentia-se uma trapaceira, que dizia apenas o que as
pessoas queriam ouvir e jogava com as probabilidades. Tudo o que debitava
eram coisas simples, lógicas, ou então apenas o eco daquilo que as pessoas já
diziam a si mesmas — ela somente as repetia em voz alta; o desespero do
outro lado fazia o resto. Era, no fundo, uma grafonola, tocando a música que
os seus clientes queriam ouvir.
Naquele dia, já depois de jantada, ligou a televisão. O locutor apontava
para um mapa. Dilacerava gráficos com o dedo, e urdia teorias: a coisa estava
preta para a espécie humana. Um bicho estranho, uma coisa supostamente
insignificante, com alguns micrómetros de tamanho, tinha-se rebelado contra
a humanidade. O vírus, invisível e aparentemente nada elitista, espalhara-se
pelo mundo afectando ricos e pobres, feios e bonitos, velhos e novos.
Rapunzel tinha a agenda cheia para a semana. Mas um certo receio tomou
conta das suas mãos. Levantou-se do sofá de pele castanha e avançou até ao
espelho. Os longos cabelos limpavam o chão como um véu de noiva. Olhou o
seu reflexo: oitenta anos e mais de quatro metros de cabelos brancos.
Principiou a canção
Tu, nesse chão, não tens noção
de como é viver nesta solidão
e reparou na enorme tesoura pousada sobre o toucador. Nenhum príncipe
ou trovador a havia salvado. Não que precisasse, mas teria sido bom sentir o
calor de outro corpo nas noites frias de Inverno; teria sido bom ter alguém
com quem deslindar o novelo; alguém com quem partilhar a vergonha de
enganar as pessoas com previsões amplas do futuro. Uma vida depois da
mocidade perdida, chorou. Não de tristeza, mas de raiva. Aquela torre havia
sido o seu refúgio e a sua prisão, aquele cabelo a sua maldição. Foi então que
num gesto irreflectido pegou no objecto metálico e principiou o golpe. A
cabeleira começou a cair, vencida, formando um enorme lago branco atrás de
Rapunzel, que agora secava as lágrimas com as costas da mão: o enguiço
estava quebrado.
Avançou até à cozinha e trouxe um enorme saco preto onde depositou os
espólios da batalha. Deu-lhe um nó e desceu até à rua.
Ao abrir o caixote, uma vizinha cusca aproximou-se. Reparando quem
era, a mulher levou uma mão à boca.
Oh vizinha! O que fez ao seu cabelo?!
Cortei-o.
Então, e agora?!
E agora o quê?
O futuro…
Oh mulher, seja o que Deus quiser! E nisto virou costas e regressou ao
seu apartamento, subindo, a custo, as escadas. Novamente sentada no sofá
deu por si a sorrir. Principiou a velha canção, mas com uma ligeira
alteração:
Tu, nesse chão, não tens noção
de como é bom viver nesta solidão
Neste tempo de pandemia
todo o cuidado é pouco
o bicho mata como um louco
e não escolhe quem avia
Branca de Neve e a Maçã
desta vez, o espelho
disse à Bruxa Má
que a beleza física
é uma característica sobrevalorizada
evitando assim uma série
de eventos catastróficos
que levariam a
Branca de Neve
aos cuidados intensivos
(ou não)
Primeiro, esticou o braço, como Eva, para chegar à maçã, depois,
escapou-se-lhe o chão. Sentiu-se a pairar no vazio — uma pequena partícula
de poeira dançando na solidão do espaço sideral —, desligada de todas as
emoções. O que quer que lhe tivesse acontecido havia sido grave. Não
conseguia perceber se era um sonho; não devia ser: não havia cornucópias,
seres místicos, explosões, fugas, afogamentos, portas, quedas, situações
embaraçosas, medos, ansiedades, frustrações, nada, enfim, nada. Era apenas
ela, destituída de tudo o que a fazia ser ela.
Lembrava-se apenas da maçã: de a trincar: do sabor acre da casca,
contrastando com o doce da polpa. Mas depois disso vinha o nada em que se
encontrava. A escuridão densa que ocupava tudo em volta.
Fez força.
Pensa: como é que isto tudo começou?
Julgou sentir a testa a franzir, os olhos a fecharem-se, os músculos acima
do lábio superior a contraírem-se.
Tudo começou como é suposto começar: chegamos do nada, de um sítio
como agora, estarei morta? Bem, não importa, continuando: chegamos do
nada e, com o tempo, vamos ganhando consciência do imbróglio em que nos
metemos. É assim a vida.
Lembro-me das brincadeiras com a minha mãe, antes de ela morrer. Do
calor do abraço; de como era bom estar ali. Lembro-me do sorriso do meu
pai. Éramos felizes. Mas a vida encarrega-se de fazer o que faz melhor:
morrer. E foi isso que aconteceu à minha mãe: morreu. Foi levada para esse
sítio de onde nunca mais me chegaram abraços ou cartas.
O meu pai chorou bastante. Recordo bem o peso das lágrimas. Os
lamentos. Ele era um homem muito bom, bonito e trabalhador. Portanto, não
tardou muito até as mulheres do bairro, solteiras ou viúvas, começarem a
aparecer à porta de nossa casa com promessas de lombos assados com
batatas aos fins-de-semana, limpezas e gestão das tarefas domésticas, e
outras coisas, que na altura não percebia por ser ainda muito nova,
segredadas ao ouvido. As investidas sucediam-se dia após dia, após dia, até
que uma, a mais bonita de todas, conseguiu convencer o meu pai a não
esquecer a minha mãe, mas a guardá-la num compartimento escuro da sua
mente, com outras velharias da memória, onde a pudesse visitar de quando
em vez. Ele assim o fez, e aquela mulher tornou-se na minha madrasta.
Também recordo o dia em que ela se mudou. De como arrancou a nossa
fotografia — eu ao centro, o pai à direita, a minha falecida mãe à esquerda
— e pendurou o velho espelho que trazia consigo. Aquela coisa sempre me
provocou arrepios. Não sei porquê. Ainda hoje não consigo explicar. O que
sei é que ela passava horas a olhar a imagem que o espelho reflectia,
ajeitando os contornos do rosto com as mãos, esticando a pele em volta dos
olhos com o indicador. Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais belo
que eu? Talvez ele lhe respondesse. Há quem fale para o céu, quem procure
respostas nas borras do café, quem veja a tempestade no voo dos pássaros.
Ela falava com o espelho… E tinha razões para isso. De facto era, mesmo,
muito bonita: enormes olhos negros, a boca de lábios fartos, as maçãs do
rosto… A maçã! Será que foi a maçã? Que barulho é este? Que peso no peito
é este?
Branca acordou do sono profundo. Sentia-se confusa. Aos poucos o corpo
começou a despertar da dormência em que se encontrava. Descobriu de novo
a sensação de ter dedos nos pés. Mexeu-os. Depois o indicador da mão direita
e todos os outros. O cheiro a éter empestou-lhe as narinas. Olhou até onde lhe
era possível olhar, sem mexer a cabeça. Um homem de bata branca, que
assumiu como médico, aproximou-se de si. Não lhe conseguia ver a boca,
mas adivinhou-lhe o sorriso.
Como se sente?, perguntou o médico.
Confusa, respondeu ela, quase num sopro.
É natural. Tivemos de lhe induzir o coma. Branca mostrou-se confusa e o
médico continuou: Você deu entrada nas urgências muito debilitada, com um
princípio de pneumonia. O vírus já tinha montado acampamento nos seus
pulmões. Felizmente, conseguimos combatê-lo e, aparentemente, está livre de
perigo.
Não me lembro de nada…
Não se preocupe. Aos poucos recuperará a memória. Descanse.
De olhos fechados sentiu-se novamente a cair no breu espesso,
novamente a pairar sabe-se lá por que céu do seu subconsciente.
Viu-se a esticar o braço, como Eva, não para a árvore do conhecimento,
mas para um galho de carne velha e rugosa; o rosto da mulher sorria ao
solicitar-lhe que pegasse na maçã e a trincasse.
Prova!
E sem o lavar, sem sequer o limpar com a manga da camisola, Branca
trincou o fruto lustroso.
Que saudades de ter uma pele lisa como a tua… Como o tempo é cruel.
Era a mais bela do bairro, sabes? E olhando-se ao espelho a madrasta
sorriu. Mas tu sempre me superaste. Sempre conseguiste ser mil vezes mais
bonita que eu. E olha agora para ti… E olha agora para mim. Meu Deus!
Como é triste a velhice. O calvário das rugas e dos cabelos brancos. Mas tu
não sabes nada disso. Não fazes ideia. Olha bem para ti…
O que vinha depois, Branca não sabia dizer. Por mais voltas que desse, a
história acabava sempre ali: ela e a madrasta e o espelho e a maçã vermelha.
A Bela Adormecida: Aqui Não Há Princesas
internada numa unidade
de cuidados intensivos
a Bela Adormecida
sonhava com
a chegada do príncipe
vestido de branco
ao acordar
do
coma induzido
– dias
depois –
não sentiu
o suave toque
dos lábios dele
nos seus,
mas
o frio diafragma
do estetoscópio Littman
auscultando-lhe o coração
Passava já do meio-dia quando Alva saiu da Conservatória. A luz do sol
fulminava-lhe os olhos, sem piedade. Semicerrou-os; a mão fazendo de aba
sobre as sobrancelhas, dava a ideia de olhar para longe, para uma nova terra
que se adivinhava no firmamento, mas não. Alva olhava apenas um horizonte
próximo: o outro lado da estrada. A cidade continuava a ser o que era: um
aglomerado de betão, asfalto, ossos, carne, solidão. Nada havia mudado,
aparentemente. Desfez num movimento brusco aquele beiral de dedos.
Suspirou. O seu velho nome havia ficado para trás. Meia dúzia de
burocracias, papel, tinta, e já estava. Anos que se haviam alicerçado num
nome dado pelo seu pai, o Rei, desmoronavam agora, dando início a uma
nova edificação.
Alva havia nascido Aurora, num dia de Verão que se adivinhava quente
pela neblina densa da manhã. O pai — o Rei, como lhe chamavam na aldeia
— havia mandado tocar o sino da igreja sete vezes: uma por cada hora de
parto da mulher. Alva, ainda Aurora, nasceu princesa, frágil e bela, com
olhos que fitavam o futuro risonho que o pai proclamava na tasca, entre
copos de tinto. À prosperidade, viva!, gritou ele antes de adormecer com a
cabeça sobre o antebraço, vencido pelos sonhos e pelo grau. A prosperidade,
essa, estava garantida e haveria de raiar como o nome da pequena, e medrar,
e medrar, e medrar, diziam as velhas sábias da aldeia, que haviam sido
convidadas para o banquete do dia seguinte.
Ao longo da mesa comprida, onde cabiam todos da aldeia, passava-se o
pão e erguiam-se os copos. Nos braços da mãe a menina dormia, ainda muito
pouco ciente das responsabilidades que a sua recente vida lhe trazia; as velhas
revezavam-se para lhe deixar bons augúrios, pois achavam que a tal
prosperidade proclamada pelo Rei era coisa para fazer bem a todos os dali e
por isso era melhor garantir já, junto da fortuna, que aquela era uma aposta
vencedora.
À minha Aurora!, gritava o Rei de copo ao alto, os seus bíceps
desenvolvidos revelavam-se para lá dos limites da camisa de manga curta, o
boné, como coroa — que tirava apenas para dormir —, pousado no
cocuruto, mostrava os restos de cabelo que ainda lhe sobravam.
À nossa!, respondiam todos os outros, como súbditos obedientes.
A comoção estendia-se aldeia acima, aldeia abaixo, entre os acordes da
concertina e os cantos populares. As luzes principiavam o seu momento de
glória, prevendo a chegada do breu da noite e das estrelas mais lá no alto.
Na última casa, junto ao pinhal, a velha, a quem todos chamavam Bruxa
Má, mostrava-se farta de toda aquela pompa. A felicidade alheia causava-lhe
fastio, pois toda a vida o destino parecera conspirar a seu desfavor, levandolhe todos os que amava; deixando-a só e a definhar naquele sítio gelado.
Para a puta que os pariu mais o barulho!, gritou ela, arrastando os pés
pela casa vazia.
Calçou umas chinelas pretas, meteu o xaile, também preto, pela cabeça —
escondendo os cabelos brancos — e avançou à máxima velocidade que as
pernas lhe permitiam, seguindo a música que se encorpava ao aproximar-se
dos demais.
Ao verem-na, as pessoas da aldeia começaram a adivinhar o que por ali
vinha e a cochichar umas com as outras num tom de voz que ainda deixava
escapar algumas palavras — Lá vem a velha; Já vai dar raia; Caralho da velha
já vem estragar a festa — a que ela não ligava pois todo o seu ódio se
concentrava numa figura: o Rei, altivo e desrespeitoso.
Lá por ser presidente da Junta, resmungava ela.
As outras velhas, que criavam uma espécie de muralha em volta da
menina, mudaram a direcção dos seus olhares. A figura malsã da Bruxa Má
agigantou-se como uma sombra. Elas tentaram perceber ao que vinha,
demovê-la de qualquer malvadeza que pudesse azedar a alegria daquele
momento, ou desfazer o tecido do destino que haviam urdido até então.
Oh vizinha, o que faz aqui? Junte-se a nós!, disse uma.
Julgámos que não viesse… Você não gosta nada destas coisas… atirou
outra.
Mas ela continuou, alheia aos comentários, a tudo, dissecando o caminho
até chegar perto do Rei e, com o dedo em riste, feito navalha afiada pronta a
amanhar a presa, espetou-o no meio do peito do homem, mesmo entre o
espaço deixado pelos dois botões abertos da camisa suada, onde a penugem
prosperava feito um matagal piloso.
Lá por você ser o presidente da Junta, não quer dizer que possa fazer o
que lhe apetece. Aviso-o já de que isto não é o da Joana!, vociferou ela, até
os pulmões a levarem de vencida e ter de parar por momentos para
recuperar o fôlego.
O Rei riu, coçou o nariz, ajeitou a coroa, levantou-se da cadeira, muito
senhor de si, tentando por tudo que o vinho não lhe passasse a perna. Detevese de frente para a mulher, aquela velha ranzinza, sempre a mesma, sempre
ela, puta da velha, pensou para si, puta da velha, voltou a pensar, antes de
deixar escapar um ligeiro sorriso de autarca compadecendo das dores dos
seus eleitores.
Sente-se connosco! Temos imensa comida e bebida. Não se acanhe,
mulher! É um dia feliz! A minha menina nasceu saudável; é um bom
prenúncio, acredite no que lhe digo. Melhores dias virão. Com a minha
Aurora nasce uma nova era. Uma era de prosperidade.
A velha pigarreou antes de começar a falar.
Não seja ingénuo. Prosperidade. Pfff… Tudo o que nasce hoje, amanhã
há-de morrer. Prosperidade…, bufou, o cinismo a adivinhar-se-lhe na face
enrugada. Sabe o que lhe digo? E isto não é uma profecia, é o que é: um dia,
a sua filha há-de cair como todos os outros, adormecer num sono tão
profundo como todos os outros. E de nada lhe valerá a si chorar, nem à sua
mulher, nem a nenhum destes pelintras que aqui estão hoje a rir e a cantar…
É o que lhe digo, e não me olhe assim que não me mete medo, ou respeito, ou
o caralho. Passe bem! E com isto a Bruxa Má voltou costas, seguindo até à
sua casa vazia.
A música tinha cessado e as outras velhas desdobravam-se em prantos e
súplicas para que tudo o que ela havia dito não tivesse sido ouvido pelas
orelhas da sorte. Pois se aquilo não era uma profecia, parecia. O Rei, esse,
pegou num copo de tinto e bebeu-o de uma vez, bateu com o cu de vidro na
mesa de madeira e gritou:
Pararam porquê? Hoje é dia de festa!
Aurora saiu da aldeia quando fez dezoito anos, farta da pequenez, farta da
imposição do pai para que estudasse Ciências Políticas na cidade, farta de ter
de ser a menina perfeita, a menina que todos olhavam como a salvadora
daquele lugar esquecido pelo mundo.
Aurora tinha gostos que mais ninguém tinha, visões que mais ninguém
partilhava. As velhas atiravam-lhe pretendentes para os pés, como quem atira
o milho às galinhas e esperavam que ela escolhesse o neto, ou o filho viúvo,
ou alguém da sua linhagem com quem faria, por certo, filhos bastante
bonitos.
Uma mulher precisa de um homem que a ampare, que a sustente, menina.
Isto não há nada como ter um homem bom e forte. Uma casa não se ergue
sem a trave mestra, dizia uma das velhas ao vender-lhe o neto pastor, moço
de cabelo farto e buço mal-amanhado, com cheiro a gado e flores do campo,
forte como um toiro.
Aurora sorria por fora, mas sentia-se a definhar por dentro. Tudo o que
ela queria era sair dali; queria a aventura de um lugar onde as pessoas fossem
o que quisessem; não precisava de homem nenhum que a salvasse, ou
amparasse. Era bem capaz de o fazer por si. O pai, apesar de a amar e
glorificar, também não a compreendia. Impunha-lhe muito pouco, ou quase
nada, sendo apenas intransigente na escolha do curso do ensino superior:
Ciências Políticas e não se fala mais nisso. As gentes da aldeia precisam
de alguém que as guie, e não posso ser eu a fazê-lo para sempre. E daqui à
Assembleia da República é um tirinho.
Aurora fazia que sim com a cabeça, mas por hábito e amor. Sabia no seu
âmago não ser aquilo que queria para si. Desenhava vestidos e cosia à socapa,
inventando trajes futuristas ou, pelo menos, fora do tempo em que a aldeia
vivia. Havia descoberto uma edição antiga da revista Vogue na biblioteca da
Junta de Freguesia e cedo se apaixonou pelas imagens daquelas mulheres, tão
fora da apatia em que vivia, tão desligadas daquela realidade bucólica que a
sufocava.
Chegado o dia da partida, juntaram-se algumas pessoas perto da casa do
Rei para se despedirem dela. Muitas foram as lágrimas e as palavras de
incentivo, enquanto o carro arrancava em direcção à nova vida, atulhado com
pertences da menina que, depois do primeiro metro, não mais olhou para trás.
Ao chegar, a cidade havia-se revelado tudo aquilo com que sonhara:
pessoas sofisticadas lotavam os passeios, o cheiro pesado a carbono,
misturado com a limpidez dos sais marítimos, impregnava o ar, as luzes de
néon cegavam os olhos, as buzinas e os gritos e os barulhos dos aviões
compunham a banda sonora. Aurora sentia finalmente o sonho a tornar-se
realidade; as imagens da velha Vogue podiam agora converter-se, a qualquer
momento, em carne e desfilar pelas passadeiras de um passeio ao outro.
Aurora sorria ao pensar nessa possibilidade. Havia chegado, finalmente, a sua
hora.
Matriculada em Ciências Políticas, poucas ou nenhumas vezes entrou
naqueles auditórios aborrecidos no primeiro e único ano em que lá esteve.
Arranjou emprego na lojinha da costureira do bairro onde vivia, na periferia,
e cedo demonstrou uma inusitada destreza a manusear os tecidos e as linhas.
No segundo ano, enganando o pai — não por maldade, mas por amor — usou
o dinheiro da matrícula para entrar num curso de Design de Moda. A par dos
seus cabelos loiros, as suas incríveis capacidades como modista deixavam os
seus colegas cobertos de inveja. Foi durante os três anos de curso a melhor
aluna da turma e da escola, tendo sido recrutada para uma das melhores
empresas do mundo da moda.
Ao lá chegar, no entanto, alguém das hierarquias superiores fez-lhe um
pequeno reparo:
Aurora? Um nome, como direi… Um nome muito pouco citadino, está a
ver? Muito campestre, saloio, não acha, querida? Devia mudar. Se quer ser
alguém neste mundo, mude de nome… Escolha algo mais sofisticado.
Aurora nunca tinha pensado nisso. Talvez o nome fosse a única coisa que
ainda a ligava à aldeia, tudo o resto nela se havia adaptado à cidade: a
maneira de falar, de vestir, de ser. Pensou, durante dias, naquilo, julgando,
por um lado, que não devia renegar as suas raízes, não devia ceder a
imposições sociais, ou estaria a cair no erro de que fugira, no erro de fazer o
que os outros queriam que ela fizesse, de ser o que os outros queriam que
fosse, mas por outro lado a mudança de nome podia ser o golpe final, a
destruição de todo o empreendimento erguido lá longe, nas terras de
ninguém, pelo Rei, seu pai; talvez fosse o momento de se reinventar, de se
reconstruir. Por certo o pai entenderia, embora agora já quase com ele não
falasse e quando o fazia uma mágoa miudinha percorresse as léguas que os
separavam, aninhando-se no seu ouvido, como um animal domesticado e
vencido pelo hábito.
Passava, portanto, do meio-dia, quando Aurora — agora Alva — saiu da
Conservatória. O mundo distendia-se como sempre fizera, afastando as casas,
as pessoas, e tudo o resto, imune àquela ligeira mudança. Atravessou a
estrada na passadeira e, ao chegar ao outro lado, parou e olhou para trás, para
o passado que havia ficado soterrado dentro daquelas paredes, entre papéis
amarelados e pastas mofadas. Suspirou. Não sabia dizer se o havia feito por
alívio, ou tristeza. O sol cravava-se na pele, causando um certo desconforto e
gotículas de suor. Procurou uma sombra. Era hora de almoço e havia trazido
a marmita consigo; iria sentar-se a comer, ali, no meio da cidade que agora
era completamente sua — tanto quanto ela era dela. Sentou-se na relva sem
se preocupar se sujaria a roupa, teve apenas o cuidado de ver se nenhum dono
preguiçoso se esquecera do presente do seu cão por ali, e abriu o tupperware
com uma salada de rúcula, nozes, queijo fresco e ovo.
A meio de uma garfada ouviu alguém na rua dizer a palavra pandemia.
Não ligou. O medo perpetuava-se há dias pela televisão, mas ainda era uma
coisa muito sem jeito, exacerbada pelo sensacionalismo dos meios de
comunicação e o provincianismo de algumas pessoas que gostam das
desgraças porque lhes dão um motivo para falarem, para criticarem isto e
aquilo e assim se sentirem menos sós, menos pequenas. A palavra voltou a
ser repetida uma e outra vez pelos transeuntes. Alva inquietou-se, curiosa.
Foi ao bolso, retirou o telemóvel, procurou as notícias.
No dia seguinte, sentada no metro, numa das carruagens do meio, todas as
conversas pareciam ter sido infectadas pela palavra. Uma ou outra pessoa
usava máscara, mas tudo parecia igual: os transportes continuavam lotados,
as ruas infestadas de turistas curiosos; havia beijos, abraços, cumprimentos
vários, algumas pessoas continuavam a escarrar para o chão, outras mexiam
nisto e naquilo sem cuidado, levando posteriormente as mãos ao rosto.
Ninguém se parecia importar fosse com o que fosse. Alva era uma dessas
pessoas. Ao chegar ao trabalho, foi à casa de banho para pintar os lábios com
um batom que havia comprado no dia anterior. Fê-lo com todo o cuidado,
ajeitando a pasta carmim no canto dos lábios com a ponta do dedo mindinho.
E foi nesse momento que bem lá longe, na aldeia, o Rei sentiu uma pontada
no peito, e as palavras da velha Bruxa, que já há muito dava de comer aos
vermes da terra, montaram o baile dentro da sua cabeça, dançando como
espíritos negros de um outro tempo:
E isto não é uma profecia, é o que é: um dia a sua filha há-de cair como
todos os outros, adormecer num sono tão profundo como todos os outros. E
de nada lhe valerá a si chorar, nem à sua mulher, nem a nenhum destes
pelintras que aqui estão hoje a rir e a cantar…
Nesse dia, mais tarde, o pai ligou a Alva.
Estás bem, filha? perguntou ele. A voz trazia consigo uma melancolia que
Alva tomou como sendo ainda consequência das mudanças nos desígnios do
seu destino.
Respondeu-lhe que sim, que a vida lhe corria bem e a sorte havia sido
generosa consigo, apesar dos pesares. O pai descansou. Apascentou os
espíritos velhos e o seu. Deitou a cabeça na almofada, virada para o lugar
vazio deixado pela mãe de Alva há uns anos, pousando-lhe a mão por cima
na procura de um abraço, algum calor, o que quer que fosse. Nada. Fechou os
olhos e dormiu.
Ao sétimo dia o Senhor descansou. E isso parece ter sido claro, pois foi
ao sétimo dia que a febre tomou conta de Alva. Os ossos doíam-lhe, as
vísceras ardiam, a cabeça, se não ia explodir, parecia. Procurou um
analgésico na gaveta dos medicamentos, algo que lhe aliviasse as dores.
Encontrou. Tomou-o com um copo de água e voltou a deitar-se, cobrindo-se
com dois edredões e um cobertor até à cabeça.
Era domingo, felizmente, e portanto não teria de ir trabalhar; caso fosse
segunda-feira, não conseguiria ir, na mesma, e teria de ligar para dizer que
não reunia condições para se deslocar até ao escritório. Por aqueles dias, já
havia um certo alvoroço de máscaras nas ruas, uma loucura que levara ao
açambarcamento de bens nos supermercados; agora, o bicho, o que quer que
ele fosse, havia tomado de assalto o país e a cidade, dominando as vidas de
todos.
Não quis acreditar ser o vírus. Era outra coisa qualquer, consequência do
ar condicionado do trabalho, ou assim. O analgésico e algum descanso,
certamente, resolveriam o que quer que aquilo fosse. Adormeceu. E durante o
sono sonhou e sonhou: um príncipe vestido de branco a salvaria de uma
terrível maleita; não o conhecia, pois este não tinha rosto, ou ela não o
conseguia ver, sabia-o porém vestido de branco — isso era evidente. Mas um
príncipe? Um filho da puta de um príncipe? Não preciso de ninguém que me
salve, e com estas palavras acordou delirante, ainda febril, transpirando como
se tivesse corrido uma maratona. Levantou-se devagar. Ao avançar até à casa
de banho, teve de se agarrar ao que pôde; parecia uma criança a aprender a
andar e isso, vá-se lá saber porquê, irritou-a. Tomou um banho e a sua
temperatura corporal pareceu baixar; alegrou-se. Comeu algo, viu as horas e
decidiu esperar mais um pouco até tomar uma nova dose do medicamento. Os
ossos ainda se aparentavam moídos, como se tivesse sido atropelada, mas a
cabeça já não lhe doía.
No dia seguinte as coisas não haviam melhorado. Alva ligou para o
trabalho e logo lhe disseram do outro lado para não se preocupar, que estando
assim mais valia não ir, aliás, era imperativo não ir, pois podia estar
contaminada e poderia contaminar os outros. Sentiu-se uma leprosa, mas não
tinha forças para que isso lhe causasse reacção alguma. A febre havia tomado
conta de tudo, até das emoções.
Os dias sucediam-se iguais, sem melhorias. Desesperada, Alva ligou para
a linha de apoio que o governo tinha disponibilizado para os doentes. Tentou
uma vez, em vão; duas, em vão; três, quatro, cinco… A linha estava entupida.
Desesperada, começou a chorar, as lágrimas quentes desciam pelo rosto e
despenhavam-se no soalho de madeira
Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende
Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende
Atende Atende Atende Atende Atende Atende Atende, Por favor, Atende.
Atenderam. Do outro lado perguntaram-lhe os sintomas e explicaram-lhe,
meticulosamente, o que haveria de fazer. Alva seguiu para o hospital que lhe
haviam indicado; lá, fizeram-lhe o teste, com um enorme cotonete nariz
acima, que acabara por vir positivo. Depois disso, tentaram fazer associações
para perceberem e conseguirem desenhar a cadeia de transmissão. Alva
tentou repetir todos os passos, mas a memória e a febre atraiçoavam-na. Já
vencida pelo cansaço, dores e indisposição, reuniu forças para mandar a todos
para o outro lado: não sabia como tinha contraído o vírus, nem onde. O que
sabia, havia dito. E tentou, com todas as forças, buscar o ar que alguém lhe
parecia sugar dos pulmões.
Ajudem-me! Ajudem-me!, disse, ou julgou ter dito, e depois disso: nada.
Alva está deitada numa cama dos cuidados intensivos do hospital,
entubada e em coma induzido.
Sonha:
No reino corre a lenda de uma bela princesa adormecida. Um dia, um
príncipe vestido de branco beijará a princesa, quebrando a maldição e
acordando-a desse sono eterno: salvando-a, e a todos os que ama.
Meia dúzia de horas depois, parece ouvir ao longe o som do leitor de
códigos de barras do supermercado. É o único som que consegue distinguir,
repetindo-se até à exaustão. Alva sente algo frio junto ao peito, o corpo
parece acordar de uma longa noite de sono; abre os olhos. Um médico de bata
branca ausculta-a; o frio que sente é do diafragma do estetoscópio Littmann.
O médico sorri, mas ela não vê. O homem tem dois terços da cara tapados
pela máscara.
Como está?, pergunta ele.
Tive um sonho horrível.
Então?
Sonhei que era uma princesa, e precisava de ser salva.
Agradecimentos
À minha família. Aos meus amigos. Ao José Carlos Barros que, com os
seus poemas à máquina, — e sem saber — me meteu na cabeça a imagem da
Rapunzel, de tesoura na mão, a cortar os seus longos cabelos. A todos os
outros escritores, vivos e mortos, que me ajudaram a desligar deste mundo,
naqueles dias em que tudo era peste, peste, peste e mais peste. Ao Rui Rocha
que me incentivou a escrever mais um Conto Infantil em Tempo de Pandemia
— e outro, e outro. À mulher bonita que atura as minhas diatribes e leu com
atenção todos estes contos, tecendo comentários e apontando os erros. Ao
bairro de Campolide e à Cova-Gala — pelos cenários. E, por fim, a todos os
que contribuíram para que o navio não fosse ao fundo durante a tempestade.
Continuemos.
O Autor
Nasceu a um de Março de mil novecentos e oitenta e sete na Cova-Gala,
Figueira da Foz. É autor do blogue “Os Filhos do Mondego”. Tem textos
publicados na revista Algarve Mais, na revista Via Latina, na revista Con
Textos e no jornal Portuguese Times (New Bedford, Massachusetts). Foi
orador no TEDxCoimbra 2012, na actividade “Mergulhar nas Palavras”, no II
Encontro Nacional de Estudantes de Letras, na Semana Cultural da Faculdade
de Psicologia da Universidade de Coimbra e no evento “Conhecestes? Com
Pedro Rodrigues” (ESTSC), bem como on stage host no
TEDxYouth@Coimbra. O seu texto “Menu Amor” recebeu uma menção
honrosa no concurso “Textos de Amor” do Museu Nacional da Imprensa.
Recebeu, em 2017, o prémio de Escritor Revelação, na VI Gala da Figueira
TV. Em 2019 lançou, pela Cultura Editora, o romance DEVE SER
PRIMAVERA ALGURES. Actualmente, trabalha como freelancer na área da
tradução.
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