CÔNEGO SCHMID CONTOS DE . SCHMID Adaptacão de J. PIMENTEL Pl TO E DTTÓRA DO BRASIL s.■.• &AO PAULO k u • Co o a rlD c-lr • •1�1aa 111 aelt·• - Per1alaaa - Reelte - S•l•aeor - kto 4• B. Berl•••t• - GotA■ia- Caritl�• - l'IGrla■opoll, - )'. 41ear, I•••I.,( https://alexandriacatolica.blogspot.com.br lNDICE A Cruz de Madeira . . . . . . . 9 A Imagem Milagrosa . . . . . . 33 A Pombinha Branca ....... 57 A Capelinha da Floresta .... 87 O Canário . . . . . . . . . . . . . . 101 O Pirilampo . . . . . . . . . . . . 131 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br A CRUZ DE MADEIRA https://alexandriacatolica.blogspot.com.br A senhora Dutilleul. descendente de uma nobre e antiga família, tendo perdido o marido, vivia isolada cm seu castelo, onde dividia o tempo entre as preces, à meditação e o amparo aos infelizes das redondezas. Era nas obras de caridade e de auxílio ao próximo que empregava as suas riquezas, de sorte que, com o correr do tempo, conquistou a estima e a admiração da vizi­ nhança, que nela encontrava sempre o apoio de que necessitava. Sucedeu certa vez que a senhora Dutilleul, em virtude de importantes negócios, que reclamavam a sua presença. foi obrigada a deixar o castelo, permane­ cendo durante alguns dias na cidade próxima. Na véspera de seu regresso ao castelo, resolveu aproveitar o belíssimo dia de primavera que então se iniciava, para dar um passeio pela cidade. Era um domingo, e como o sol e o céu azul vol­ tassem depois de longos e tristonhos dias de chuva, por tôda a parte se viam camponeses alegres, nos seus pitorescos trajes· multicores. Chegava a senhora Du­ tilleul quase ao fim da rua por onde se saía da cidade, quando lhe ocorreu visitar a principal igreja da cidade, a qual não ficava muito distante dali. Imaginou que não poderia encontrar melhor oportunidade para seme­ lhante visita, uma vez que, num dia daqueles, certa­ mente o povo estaria pelas ruas ou no campo, de modo que nem ela iria perturbar a ninguém, nem a ela a pre­ sença de muita gente impediria de tranqüilamente observar as maravilhas arquitetônicas do templo. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 12 C O N E G U S C H M I D Realmente, quando penetrou no templo, notou que êste se achava deserto, ouvindo-se apenas o leve ruído de seus passos e um ou outro som distante, coa­ do através dos vitrais dás imensas janelas. Pôde assim, com todo o vagar, entregar-se aos seus pensamentos e orações, ao mesmo tempo que admirava a pureza das imagens dos santos e a majestade interna do templo. Longo tempo permaneceu de joelhos diante de um al­ tar, imaginando quantos séculos não teriam sido neces­ sários, quantas canseiras, quanta dedicação não teria exigido a elevação daquele monumento para que ali pudessem ir pela primeira vez O!. fiéis fazerem as suas preces ao Criador. Depois se levantou e foi observar outras partes da igreja, o altar-mor, os altares menores, as veneráveis pinturas murais. Em seguida visitou o túmulo dos bispos e pessoas notáveis pela sua virtude, cuja piedosa existência se achava resumida naquelas antigas inscri­ ções em caracteres góticos. Não havia por ali, pelo me­ nos aparentemente, um único ser vivo, e por isso seus passos ressoavam longamente pelas abóbadas. Assim corriam as horas, quando a senhora Dutil­ leul, ao penetrar numa das capelas laterais, viu de joe­ lhos nos degraus do altar uma pobre menina de uns oito anos de idade, inteiramente trajada de prêto. Com os olhos fitas na imagem que tinha diante de si, as mãos postas, rezava com tanto fervor, que não notou a apro­ ximação da senhora Dutilleul; e as grossas lágrimas, que lhe rolavam pelo rosto, emprestavam-lhe urna ex­ pressãu de indefinível pureza e resignação. No primeiro momento, não quis a senhora Dutí!­ leul perturbar as preces da inocente criatura, e ali dei- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE~ SCHMID https://alexandriacatolica.blogspot.com.br lS H CONEOO SCHMID xou-se ficar a contemplá-la, muda e im6vel, sem saber que fizesse. Por fim animou-se e se aproximou da me­ nina, batendo-lhe de leve no ombro: - Estás bem triste, minha boa menina! . . . Que tens? . . . Por que choras? . . . A pequena, sobressaltou-se, pois igualmente se julgava sozinha; voltou para a senhora Dutilleul os seus pobres olhos vermelhos de chorar, e a custo lhe respon­ deu: - Ah!... Estou bem triste, sim senhora. Há um ano perdi meu pai; e agora, ainda há oito dias, foi o entêrro de minha mãe! ... - Por que rezavas com todo aquêle fervor? - Eu pedia a Deus que se compadecesse de mim. Ainda moro na casa que era de meus pais, mas o proprietário já pediu a casa, e amanhã terei que ir embora. Eu tenho alguns parentes e espero que algum dêles me leve para a sua companhia. O senhor padre, que muitas vêzes ia visitar minha mãe, quando ela es­ tava de cama, já lhes disse que era obrigação dêles me receberem cm casa; mas até agora nenhum se resolveu a incumbir-se de minha educação. É que são todos po­ bres, e eu decerto iria ser muito pesada para êles ... - Pobre menina! - disse a senhora Dutilleul - Compreendo agora por que estás tão triste. - É verdade - replicou a garotinha - que estou triste. Mas as orações me fizeram tanto bem, que já me simo mais consolada. As palavras da ,inocente criatura, com os olhos cheios de lágrimas e o coração cheio de fé, enternece­ ram ainda mais a nobre senhora, que lhe disse: https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID li Creio que Deus ouviu as tuas preces, minha Vem comigo. Onde a senhora quer levar-me? - perguntou a pequena, meio assustada. - É preciso que eu volte para casa. - Vem comigo. Conheço bem o padre a que te referes. Vamos à casa dêle, combinar um modo pelo qual eu te possa ser útil. Dizendo isso, tomou a menina pela mão e se en­ caminharam para a casa do cura. :Êste era já um homem idoso, de aparência venerável, e ficou bastante surpre­ endido ao ver entrar a senhora, trazendo a menina pela mão. A senhora Dutilleul contou-lhe em poucas pala­ vras o que acabara de passar-se, e depois disso, pedindo para falar em particular com o sacerdote, explicou-lhe: - Tenho a intenção de levar esta criança comi­ go. Meus filhos morreram quando ainda eram peque­ nos, de modo que a esta menina poderei consagrar todo o amor que sentia por êles. No entanto, desejo saber se o senhor e os parentes da pequena órfã concordarão comigo, e se esta é realmente merecedora de tudo qu:m­ to pretendo fazer por ela. O venerável padre levantou as mãos para o céu, e exclamou: - Louvada seja a Providênd:; Divina! A senho­ ra não poderá fazer ohra de melhor caridade do que esta. Além do mais, esta criança é dócil e meiga, filha de pais modestos, sim, mas gente muito honesta, reli­ tiosa e verdadeiramente cristã. Queriam dar à filha única, a pequena Sofia, uma educação muito boa; infe­ lizmente não a puderam completar. Nunca poderei menina https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 16 Cô N E G O S C H M I D esquecer as palavras e a expressão da pobre mãe mo­ ribu:�da, quando a fui ver pela última vez: "Deus todo poderoso, Vós lhe servireis de pai; Vós lhe dareis outra mãe. Disso tenho plena convicção, e por isso morrerei tranqüila" ... Veja, pois, minha senhora, que as pala­ vras da santa mulher foram verdadeiramente proféticas. E a visita que �le, nas alturas, determinou que a senho­ ra fizesse à cidade, era sem dúvida para poder propor­ cionar o encontro com a pequena Sofia! Bendita seja a vontade divina! Então o digno cura chamou a pequena órfã, que ficara em outro quarto, e disse-lhe: - Ouve, Sofia. Esta senhora, tão respeitável pela sua piedade e bom coração, quer te servir de mãe. É um grande benefício que Deus nos concede. Estás disposta a acompanhá-la? Serás para ela uma filha de­ dicada? - Sim, senhor! - respondeu Sofia, que não ca­ bia em si de contente. - Como vês, minha filha - continuou o padre - Deus tem cuidado de ti, e já havia determinado a esta senhora que viesse à cidade, antes mesmo que fale­ cesse a tua pobre mãe. Ama, pois, a Deus, acima <!• tôdas as coisas, tenha sempre fé nesse Deus bom, justo e misericordioso. Obedece sempre a tua nova mãe, sem te esqueceres d'Aquêle lá de cima; füe te há de proteger no futuro, assim como acaba de te proteger agora. Em seguida o cura mandou chamar os parentes de Sofia e lhes expôs o que, com a sua aprovação pretendia fazer a senhora Dutilleul. Ninguém se opôs a que a senhora Dutilleul levasse a menina; pelo contrário, https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE S CH M I D 17 mostraram-se todos muito contentes. E mais contentes ainda f�caram ao saberem que a boa senhora lev�ria a pequena como se encontrava, isto é, que a modesta herança da mãe de Sofia ficaria para êles. Sofia só pe­ diu para levar, como lembrança, os livros de orações que pertenceram a sua mãe, o que lhe foi concedido de muito boa vontade. No dia seguinte, muito cedo, a senhora Dutilleul e Sofia tomaram o carro e se dirigiram para o castelo da nobre senhora. Lá chegadas, a senhora Dutilleul fêz com que Sofia sentasse a seu lado e serviu-lhe o al­ môço. Depois levou-a para um bonito quartinho e lhe disse: - Êste é o teu quarto. Cuida dêle com cari­ nho. E à noite, quando vieres para cá, dorme bem e não te esqueças de apagar a vela. O carinho de sua benfeitora e a bondade de Deus faziam com que a infeliz Sofia se sentisse conm que num sonho; de modo que à noite adormeceu tran­ qüilamente, murmurando as suas preces de reconheci­ mento. De manhã, ao despertar, outros motivos de contentamento a esperavam. É que sempre morar;:1 numa casinha escura de uma rua estreita, por cuj::s janelas jamais o sol entrava ao romper do dia; enquan­ to que ali, logo ao nascer, o sol vinha beijar-lhe as cor­ tinas do quarto, anunciando-lhe a hora do despertar. Ela levantou-se logo e pôs-se a admirar aquêle espetá­ culo de primavera em todo o seu esplendor. O jardim e a horta estendiam-se ao pé do castelo, co:n as sua� fôlhas verdes e flôres multicolorida�. De um lado descortinava, numa ligeira clevaçãC' do terreno, o pomar; de outro d·;:scobria viias perdida: https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 18 CONEGO SCHMID na distância, ricos campos de trigo, prados floridos e coroados por montes arredondados. Então Sofia ajoe­ lhou-se, para novamente agradecer a Deus por tudo quanto lhe havia proporcionado, justamente no mo­ mento em que se sentira mais desamparada. A senhora Dutilleul foi para Sofia uma verdadeira mãe; mas por outro lado não se pode negar que a garô­ ta lhe dedicava sincero amor filial, estando 5empre dis­ posta a satisfazê-la nos menores desejos. Quantas e quantas vêzes não saiu correndo para buscar o que sua nova mamãe queria, antes mesmo que esta acabasse de manifestar a sua vontade. Era, pois, perfeitamente na­ tural que a senhora Dutilleul lhe dedicasse cada V:!Z maior estima. Havia perto do castelo uma escola que, graças ao auxílio da castelã, prosperava cada vez mais. E assim, embora a pequena Sofia já soubesse ler e escrever, ia as­ sim mesmo à escola, para completar a sua instrução, e aprender princípios religiosos, os quais eram minis­ trados pelo padre, que visitava freqüentemente a casa de ensino. Nas horas em que não se dedicava aos estudos, Sofia era obrigada a ocupar-se de afazeres domésticos, como cozinhar, coser e arrumar a casa; uma ou outra vez ia trabalhar no jardim, tudo para familiarizar-se com a vida laboriosa e ativa que deveria ter. Nos mo­ mentos de folga, ia aos aposentos da senhora Dutilleul e ali permanecia conversando, ao mesmo tempo que aprendia costuras e bordados. Assim se passaram muitos e muitos anos, de tran­ qüilidade e bem-estar, .sem que contrariedades de maior vulto viessem pert11rbar a vida no castelo. Um dia, https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 1J porém, a senhora Dutilleul caiu doente. Sofia ficou muito apreensiva, e passou a cuidar de sua benfeitora, como se se tratasse de sua verdadeira mãe. Procurava contentar a doente nas menores coisas, andava nas pontas dos pés para não fazer barulho e perturbar o repouso da enfêrma. Era, pois, perfeitamente natural que a senhora Dutilleul não quisesse outra enfermeira a não ser Sofia, que chegava a passar longas noites :1 sua cabeceira, quando a moléstia parecia agravar-se. Fazia já muito tempo que a pobre senhora não mais abandonava o leito; mas Sofia mostrava-se incansável, o que a castelã sabia devidamente apreciar. Em certa noite muito fria de inverno, sentindo-se a doente muito mal, desejou tomar uma xícara de chá. Sofia foi à cozinha prepará-la, voltando logo depois, a tremer de frio. A senhora Dutilleul tomou o chá com visível dificuldade e ao devolver a xícara, disse a Sofia: - Minha cara Sofia: tens cuidado tão bem de mim como o faria a melhor das filhas. Por isso Deus te há de recompensar, e eu também te serei reconhe­ cida. A amizade não conhece o interêsse; entretanto, para te provar que não sou uma ingrata, pensei em ti no testamento. Quando eu morrer receberás uma quantia suficiente para que possas casar e viver sem dificuldades. Sofia chorava ao ouvi-la falar em tais têrmos e lhe suplicava que não se referisse àquele funesto mo­ mento; mas a senhora Dutilleul lhe respondeu: - Não chores, minha filha; a morte não é tão terrível como se pensa. Ao contrário, é uma amiga que abre as portas do céu, de modo que desde já me sinto feliz, pois em breve irei ver Aquêle que s6 conheço pela https://alexandriacatolica.blogspot.com.br Fé. Que a tua piedade seja sempre sincera, minha boa Sofia! Que Jesus te ensine sempre a escolher o bem e repelir o mal, e assim, quando chegar a tua hora, hás de reconhecer que a morte é doce. Não há nada de hor­ rível em deixar esta, para se chegar a uma vida melhor. A senhora Dutilleul calou-se por um momento. Ela segurava um crucifixo de madeira, que beijava com ardor e ternura. Depois prosseguiu: - Agora s6 vejo a imagem de Jesus; mas dentro em pouco, oh! felicidade!, estarei em sua presença. :Êste símbolo, ainda que bem diferente da realidade, faz lembrar os sacrifícios e as torruras por que antes :Êle passou, para finalmente inclinar a cabeça, empali­ decer e morrer. Os momentos mais doces de minha vida foram aquêles em que passei a admirar o seu exem­ plo, o seu amor infinito. Não há salvação sem a Fé, e graças a esta é que Ble nunca nos abandona na adver­ sidade. Dizia Ble a seus discípulos: "Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não fôsse assim, não vos diria: vou preparar-vos ali um lugar". Creio que o meu lugar está reservado; meu Deus para lá me chama. A senhora Dutilleul ainda quis continuar, mas lhe faltavam as fôrças; e s6 conseguiu murmurar com voz quase extinta: - Meu Deus, entrego minha alma em vossas - 1 maos .... A pobre Sofia foi acordar os criados e mandou chamar o padre. Uma hora depois aquela santa mulht:r fechava definitivamente os olhos, para imensa tristez,1 de Sofia, que por ela chorou como antes chorara a perda ela sua mãezinha tão cedo âesaparecida. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCH MI D https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 21 23 CONEGO SCHMID A senhora Dutilleul não era apenas respeitada na localidade; era verdadeiramente venerada pelos seus dotes de coração. Por isso ao entêrro acorreu uma ver­ dadeira multidão, formada de pessoas sinceramente penalizadas com a morte da sua benfeitora. Quando as cerimônias do sepultamento termina­ ram, reuniram-se os parentes para abrir o testamento. Verificou-se que havia um legado para Sofia: eram dois mil escudos, que lhe seriam entregues como dote, no dia do casamei::ito. Mas os juros dêsse dinheiro ela os iria re­ cebendo, enquanto não se casasse. Além disso, ficava a pequena autorizada a escolher, dentre as coisas que ha­ viam pertencido à falecida, uma jóia ou objeto, como lembrança. Alguns parentes da senhora Dutilleul arregalaram muito os olhos quando ouviram a leitura dessa passa­ gem do testamento; via-se o descontentamento estam­ pado em muitos rostos. As môças, em particular, já antecipadamente choravam a perda de alguma das mais preciosas jóias da tia; e assim, fazendo-se de amáveis, diziam a Sofia: - Escolhe êste magnífico vestido de sêda com brocados! É o vestido de casamento de nossa querida titia, não há nada mais lindo. Poderias guardá-lo para o teu casamento. O senhor Buisson, no entanto, um dos parentes, capitão já de certa idade, homem honesto e justo, inter­ veio: - :Êste vestido não serve para Sofia, não quei­ ram zombar da jovem. E depois, vocês não têm que dar opinião. Ela que escolha o que muito bem entender! https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMtD 23 As môças zangaram-se com êle, mas não desisti­ ram do seu intento, fazendo todo o possível para que Sofia escolhesse qualquer objeto insignificante, avalian­ do-o sempre por muito mais, para influenciar na esco­ lha que ela deveria fazer. Aturdida com tantos e tão contraditórios conse­ lhos, Sofia não sabia que responder. O testamenteiro, vendo as dificuldade� em que ela se encontrava, tomou a palavra e disse: - Cumpro o meu dever, protegendo uma órfã. Há entre os bens da falecida jóias e objetos de grande valor; e como no testamento está escrito que a senhora Dutilleul queria deixar à sua filha adotiva um objeto de valor, que lhe pudesse servir numa ocasião difícil, quero dar à môça tempo para refletir. Ela que volte amanhã, para dizer-me o que quer. Tudo indicava que haveria novas disputas. A co­ zinheira falava a Sofia que escolhesse um anel de bri­ lhantes ou um colar de pérolas, enquanto que o velho jardineiro lhe dizia que o pequeno retrato da falecida, ei;castoado de ouro e cravejado de brilhantes era o que ela devia pretender como lembrança. No dia seguinte, de manhã, reuniram-se novamen­ te os herdeiros, a maior parte dêles dispostos a ofere­ cer o máximo de resistência, principalmente as môças, que olhavam Sofia com maus olhos. Esta, no entanto, dirigindo-lhes a palavra, disse-lhes: - Eu desejo uma lembrança de minha benfeito­ ra, minhas caras senhoras, mas não me preocupo com o valor que possa ter. Pretendo um objeto a que a fale­ cida tenha dedicado especial estima. Já não merecia o legado da grande importância que me destinou; mas, https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 24 CONEGO SCHM ID como tenho o direito de escolher ainda um objeto, que= roque me seja dada a pequena cruz de madeira, o últi­ mo objetoque ela tinha nas mãos ao morrer. É êsse o objetoque para mim representa maior valor. Faz-me lembrar das suas últimas palavras; seguindo-as, tenho a certeza deque a bênção da minha última mãe descerá do alto do céu sôbre mim. O que Sofia acabava de dizer, foi recebido com alívio e satisfação por todos os presentes,que não pou­ param elogios pela devoção da môça, embora por den­ tro zombassem da sua simplicidade. - És uma grande tola, - disse-lhe depois a cozi­ nheira. - Porque não escolheste um objeto de valor? Não viaque estava te fazendo sinais de longe? Depois poderias ficar também com a cruz, pois é claro que nin­ guém se importaria com objeto cão insignificante. O velho jardineiro, porém, aprovou-lhe a escolha: - Deus te abençôe, boa menina. Tens alma de­ vota e reconhecida. Esta cruz há de trazer-te mais feli­ cidade do que tôdas as pérolas e brilhantes que por acaso escolhesses. Ouve bem o que digo, e verás! Sofia guardou cuidadosamente a cruz de madeira no armário, considerando-a como o mais precioso objeto que possuía. E enquanto que a modéstia da sua escolha lhe fazia bem ao espírito, o egoísmo dos parentes nobres da falecida proporcionou-lhes mais disputas e aborreci­ mentos do que prazer. Mais ou menos um ano antes da morte da senhora Dutilleul, o filho do jardineiro do castelo manifestara a idéia de pedir Sofia em casamento. Era um jovem honesto e bem educado.. Como já não tivesse mãe, foi ao pai que confiou os seus projetos, osquais fornm https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 25 logo aprovados. O jardineiro, por seu turno, tratou de comunicar a nova à patroa, a qual, conhecendo a incli­ nação de Sofia pelo rapaz, concordou inteiramente com o projeto. - Você deu a seu filho uma boa educação, ensi­ nando-lhe desde pequeno a amar a Deus, a gostar da ordem e do trabalho, da honestidade e da moderação. Não me oponho, pois, a que se case com Sofia; ao con­ trário, isso me causa muita satisfação. Entretanto, acho bom que Guilherme passe algum tempo na cidade, aperfeiçoando-se na horticultura, arte tão procurada atualmente. Se, quando êle voltar, ambos mantiverem as mesmas intenções, assistirei com prazer e como se­ gunda mãe, ao casamento de Sofia. Semelhante resposta a todos agradou. A senhora Dutilleul deu algum dinheiro ao rapaz, para as despesas de viagem, além de uma boa carta de recomendações; assim, êle partiu. Morrendo a senhora, e não sabendo Sofia para onde ir, convidou-a o jardineiro a que fôsse para sua casa, onde a môça também lhe poderia ser útil. Quando Guilherme voltou, realizou-se o esperado casa­ mento, acontecimento cuja felicidade só foi perturbada pela irreparável ausência da benfeitora de ambos. Por isso, após a cerimônia religiosa, foram os dois visitar o túmulo da senhora Dutilleul, o qual já fôra pela manhã enfeitado de flôres pelo Guilherme. Sofia e Guilherme passaram a viver muito felizes em companhia do velho jardineiro; mas, como esta vida nunca está livre de dissabores, três anos mais tarde o bom velho falecia, e os dois ficaram sós. Para maior infelicidade, um ano após a morte do pai, Guilherme, caindo de uma árvore, quebrou um https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 26 CONEGO SCHMID braço e sofreu grande abalo interno, de modo que não mais pôde continuar no seu ofício de jardineiro e hor­ ticultor. Os novos donos do castelo eram gente muito má, de modo que o preveniram de que deveria deixar o castelo ao cabo de três meses, recebendo uma pensão módica, um pouco de lenha e trigo. - Perder assim o trabalho - disse êle muito triste - é acontecimento para desanimar. Como tra­ taremos dos filhas que Deus nos deu? - Tenhamos confiança em Deus - respondeu Sofia - Êle não nos há de desamparar. Não existe de­ sespêro para quem crê em Deus. Depois combinaram o que haviam de fazer. Como na vila próxima não existisse uma única loja de arma­ rinhos e miudezas, resolveram abrir uma, para o que seria preciso comprar uma pequena casa. - Creio que o braço quebrado não há de impe­ dir-me de trabalhar no balcão - disse êle. - Quanto a mim - respondeu a espôsa - con­ to ganhar algu ma coisa fazendo costuras e outros traba­ lhos que me foram ensinados pela senhora Dutilleul. Havia justamente na vila uma casa que se prestava para o fim que ambos tinham em vista; por isso resol­ veram comprá-la. Mas como se achasse em mau esta­ do, era indispensável fazer uma boa reforma, e esta, mais o preço da casa, exigiriam muito dinheiro. Por outro lado cumpria pagar, em primeiro lugar as despe­ sas feitas com a moléstia de Guilherme, com a qual se gastara não pequena importância. Em todo o caso, havia os dois mil escudos de Sofia, que se achavam depositados com um comerciante d3 cidade. Mas sucedeu que o homem se recusou a devol- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTr - DE SCHMID 2'1 ver o dinheiro dizendo que, de acôrdo com o contrato, só estaria obrigado a pagá-los dentro de um ano. Com isso a situação do casal tornou-se ainda mais difícil. Felizmente um rico camponês propôs-se a em• prestar o dinheiro por doze meses; e, como era de espe­ rar, Sofia e Guilherme aceitaram a oferta, ficando-lhe muitíssimo reconhecidos. Depois de reformada, a casa apresenrnva um as­ pecto muito alegre e acolhedor. Para ela mudou-se a família. Logo a loja recebeu variado sortimento; e co­ mo o trato que os donos dispensavam aos fregueses fôs­ se dos mais amáveis, a freguesia aumentava, reconhecen­ do que os preços cobrados eram realmente muito módi­ cos. Entendia Guilherme ser preferível contentar-se com pequenos lucros em negócio honesto, a pretender enriquecer-se de um dia para outro. E agindo sempre dessa forma, reconquistara a felicidade perdida com o desastre, em virtude do qual ficara sem o emprêgo. Infelizmente durou pouco êsse período de tran­ qüilidade. Antes que decorresse um ano, o comercian­ te em cujas mãos se achavam m, dois mil escudos de Sofia, foi à falência, isto é, perdeu tudo o que tinha, como resultado de seus maus negócios. Assim que soube de tal notícia, apressou-se a pro­ curar Guilherme o camponês que lhe emprestara os mil escudos. Estava transtornado, feito um maluco com a idéia de que poderia não receber o seu rico dinheiro, e passou a dizer pesados desaforos ao casal, revelando-se o tal como realmente era, simples sujeito ganancioso, incapaz de um pouquinho de humanidade, sem o me­ nor \'estígio de amor ao próximo. E diante do c::isal. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 28 CONEGO SCHMID que absolutamente nada fizera para merecer semelhante tratamento, declarou em alto e bom som, que, se no dia do vencimento da dívida não recebesse tostão por tos­ tão o seu precioso dinheirinho, trataria imediatamente de mandar vender tudo o que havia ali: mercadorias, casa, móveis e até mesmo as camas que encontrasse. Triste futuro viam diante de si Guilherme e Sofia, que agora se confiavam às mãos de Deus, certos de que não ficariam desamparados nas horas difíceis, que ràpi­ damente se aproximavam. Na véspera do dia fatal, Sofia retirou-se para um quartinho abandonado da casa, para poder livremente entregar-se aos seus pensamentos e orações, e chorar à vontade. Com o coração aflito, apertava contra o peito a cruz de madeira que pertencera à senhora Dutilleul, rogando a Deus que a socoresse e amparasse naquela terrível situação. Pôs-se de joelhos e orou fervorosamente, implo­ rando ao Altíssimo que tivesse compaixão do marido quase inválido e das crianças, que mal algum haviam feito para merecer tão grande castigo: - Senhor, que há de ser das crianças? S6 em pensar nisso me sangra o coração. Meu Deus, se fôr pos­ sível, afastai de meus pobres filhos o triste futuro que os espera! - e assim dizendo, começou a soluçar e a verter lágrimas, que em breve lhe molharam todo o ros­ to. Assim permaneceu durante longo tempo; e, afinal, certa de que Deus sabe o que faz, acabou por consolar­ -se e encher-se de esperanças. Levantou-se e procurou guardar a cruz no lugar de onde a tirara; mas notou que lhe caíra um pedacinho https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 29 de um dos lados. Temendo que a cruz estivesse que­ brada, levou-a para junto da janela, onde a claridade lhe permitiria mais detido exame. E então, com grande suprêsa, notou que grandes cintilações provinham lá de dentro! ... É que por detrás da cruz havia umas molazinhas quase imperceptíveis, às quais, uma vez tocadas, per­ mitiam que a cruz se abrisse, revelando o seu interior, onde se achava oculta uma cruz de ouro cravejada de belíssimos brilhantes. Sofia, que se acostumara a ver brilhantes em casa de sua protetora, não pôde deixar de reconhecer que aquêles eram verdadeiros. Então tor­ nou a cair de joelhos, soluçando: - Ó meu Deus justo, ó meu Deus misericor­ dioso! Ainda uma vez me ouvistes as súplicas! Que estas lágrimas que derramo sejam o tributo do meu reco­ nhecimento! ... Depois se levantou e saiu correndo, à procura do marido, que se achava noutro quarto, tristemente sen­ tado, com o filho menor nos joelhos. Surpreendido com tão extraordinária nova, levantou as mãos para o céu e exclamou: - Senhor Deus, que inesperado socorro! Esta cruz vale muito dinheiro; agora podemos pagar nos­ sas dívidas, e nossos filhos não ficarão na miséria, sem ter onde morar! Depois os dois esposos se abraçaram, chamaram os filhos para junto dêles, explicando-lhes o milagre que deviam ao Senhor. Assim todos se puseram de joe­ lhos, de mãos postas, e oraram a Deus pela salvação que Ele lhes proporcionara. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 30 CONEGO SCHMID No dia seguinte Sofia partiu para a cidade, e o seu primeiro cuidado foi procurar o cura, aquêle mesmo que a protegera na ocasião da morte de sua mãe. Sofi::i explicou ao venerável ancião de cabelos brancos o que lhe sucedera desde o comêço das suas aflições, acaban­ do por contar-lhe a feliz descoberta da cruz de diaman­ tes oculta no envoltório de madeira. - Sim, Deus sempre nos estende a mão na infeli­ cidade; ninguém o implora em vão. Desde a mais tenra idade êle tem sido para ti um pai cheio de ternura e de bondade. Continua com tua fé inabalável n':Êle e em seu Divino Filho, cumpre os seus mandamentos, cria teus filhos nos mesmos sentimentos e :Êle te há de sal­ var de todos os perigos, de tôdas as desgraças! - Mas - perguntou Sofia - posso considerar esta cruz como de minha propriedade? Não cometo uma injustiça para com os herdeiros de minha proteto­ ra? Pois êste é sem dúvida, o mais precioso dos objetos deixados pela senhora Dutilleul ... - Esta cruz te pertence - replicou o bom cura. - É provável que a própria senhora Dutilleul ignorasse a existência desta riqueza oculta no interior da tosca cruz de madeira, pois se trata de um antigo objeto de família, que passava de pais a filhos. Em todo o caso, a sua última vontade era deixar-te a mais preciosa das suas jóias. Se o amor e o desinterêsse te fizeram esco­ lher um objeto aparentemente sem valor, Deus apro­ vou a tua idéia, ou melhor, inspirou-te na tua generosa escolha. São muito grandes os brilhantes desta cruz; devem valer muito dinheiro. Vende a cruz, paga tuas dívidas e põe o resto de lado, pois te poderá servir em https://alexandriacatolica.blogspot.com.br C O N TO S DE S C H M I D 31 outra dificuldade. Quanto à cruz de madeira, conserva-a sempre contigo, para que passe a teus filhos, como a mais preciosa das relíquias da família. O devoto ancião colocou novamente a jóia de bri­ lhantes no interior da cruz de madeira, fechou as molas e disse: - Quem poderia desconfiar da riqueza que ela encerra? O mesmo acontece com os nossos desgostos, que nos aparecem como infelicidades, mas que no en­ tanto contém um bem mais precioso que o ouro e os diamantes. Esta é a idéia que nos deve confortar na adversidade, fazendo-nos abençoar os males que Deus nos manda; pois um dia desaparecerá o envólucro rústi­ co, aparecendo o que lá dentro existe, em todo o seu esplendor. O bom sacerdote tinha um parente ourives, de sorte que, como a idade não lhe permitisse andar sem muitas canseiras, mandou-o chamar. O homem veio, examinou a cruz e declarou que era realmente de subido preço. Valia três mil escudos, e êle próprio estava pron­ to a comprá-la: daria mil adiantadamente, e os restantes dois mil seriam pagos em prestações. Como Sofia não fizesse segrêdo da sua feliz desco­ berta, a notícia logo se espalhou, indo chegar aos ouvi­ dos dos herdeiros da senhora Dutilleul. �stes se reuni­ r....,, muito irritados; estavam dispostos a denunciar Sofia à justiça, declarando que se apossara de uma ri­ queza que não lhe pertencia. Mas o senhor Brisson, sabendo disso, procurou-os para dizer: https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 12 CONEGO SCHMID - Deixem-se de reclamações e de lamúrias! Con­ siderem-se felizes que ninguém saiba o que se passa aqui. Se vocês todos não perderam ainda completamente a cabeça, ouçam o que lhes digo: mesmo que na ocasião da partilha vocês soubessem que a cruz de madeira con­ tinha semelhante tesouro, não poderiam impedir que Sofia a escolhesse. Em todo o caso, é justo que não ti­ vessem feito semelhante descoberta. Estão perfeita­ mente castigados da pouca piedade e respeito que mani­ festaram por ocasião da morte da santa mulher, assim como pela indiferença manifestada quanto à pobre ór­ fã. Vocês caçoaram de Sofia, porque escolheu um obje­ to sem v.alor; agora cabe a ela alegrar-se com a desco­ berta feita. Fiquem calados, pois, caso contrário, ain­ da por cima terão que sofrer as conseqüências de qual­ quer atitude irrefletida. Embora profundamente contrariados, desistiram os parentes da denúncia que pretendiam apresentar, de modo que Sofia não sofreu o menor aborrecimento. E antes de voltar para casa, mais uma vez resolveu voltar ao altar, onde pela primeira vez se encontrara com a sua protetora, orando à memória desta e agradecendo a Deus, que nunca desampara os que n'Êle têm fé, os que cumprem religiosamente os seus mandamentos. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br A IMAGEM MILAGROSA https://alexandriacatolica.blogspot.com.br Existiu há muitos e muitos anos uma pobre mu: lher que vivia numa cabana às margens do Danúbio. Perdera, fazia pouco tempo, o marido, jovem pescador, ficando sàmente com o filho, um bonito menino de cin­ co anos de idade, chamado Augusto. Teodora - êsse era o seu nome - criava o filho em devoção, ensinando-lhe as melhores virtudes. Sua principal preocupação consistia em que o rapazinho pudesse mais tarde seguir a profissão do pai, cujos apa­ relhos e instrumentos de pesca eram cuidadosamenre guardados. Guardados, sim, apesar de que o barco, que ficava virado perto da cabana, fôsse constante motivo para que a pobre Teodora estivesse constantemente recordando a imagem do espôso, tão cedo desaparecido. Teodora, à parte os afazeres domésticos, precisava ganhar a vida, e assim era que empregava todo o tem­ po possível fabricand0 rêdes de pesca, que ela fazia com perfeição. Quanto a Augusto, embora ainda tão pequeno, procurava fazer tôdas as vontades da mãe, para compensá-la dos esforços a que se via obrigada pa­ ra sustentar a família, pois o certo era que a infeliz se­ nhora não poucas vêzes permanecia até meia-noite, à luz da lamparina, incansàvelmente trabalhando. Certa vez, pouco tempo após a morte do marido, um irmão dêste veio visitar Teodora, trazendo-lhe uma bela e brilhante carpa. Ela, lembrando-se do finado. pôs-se a chorar, pois não acreditava que ainda pudess, ver em casa tão belo peixe. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 38 CONEGO SCBMID - Não chore, mamãe - disse o pequeno Augus: to - quando fôr grande, hei de pescar muito peixe para a senhora. Mesmo com os olhos cheios de lágrimas, a mãe não pôde deixar de sorrir: - Sim, meu Deus, fôstes v6s que tudo fizeste. solação na velhice. Seja bom e honesto como seu pai, que eu serei a mais feliz das mães. Em certa manhã de outono, enquanto a mãe se en­ tregava à tarefa de terminar uma grande rêde, que con­ tava entregar naquele mesmo d.ia, o menino recolhia num bosque das redond�zas frutinhos de faia, com os quais pretendia fabricar óleo ordinário para acender as candeias durante as longas noites de inverno O peque­ no ficava contente sempre que conseguia encher o ces­ tinho. Nessa manhã já conseguira fazer boa provisão de frutos, pois não perdera tempo. Perto do meio-dia, Augusto se achava cansado e com fome. Por isso sua mãe o fêz almoçar em baixo de uma grande faia, que ficava perto da cabana. Seu al­ môço constou de uma tigela de leite com uma grossa fatia do saboroso pão feito em casa. Terminado êsse almôço, Teodora disse ao filho: - Deite aqui nesta sombra e descanse um pm:co. Se você dormir, quando terminar meu serviço virei aqui acordá-lo. Momentos depois Augusto dormia profundamen­ te e a mãe, depois de contemplar por algum tempo aquela linda cabecinha ornada de cabelos crespos, reti­ rou-se para o interior da cabana. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID n Teodora foi continuar a rêde e trabalhou sem pa­ rar até terminar o serviço. Assim se passaram muitas horas, que lhe pareceram minutos, de tal forma se achava ela dedicada à tarefa. Quando por fim a termi­ nou, saiu para acordar Augusto. Mas não o encontrou. - Naturalmente meu anjo saiu para colhêr mais frutos - pensou ela, despreocupada. Não podia supor que qualquer desgraça pudesse suceder ao garôto. Voltou para a choça, tratou dos afazeres que ain­ da esperavam por ela, tudo isso mais ou menos mecâni­ camente, e sem se preocupar com o filho, que certamen­ te chegaria de um momento para outro. Mas o menino não chegava. De modo que Teo­ dora, já um pouco apreensiva, saiu para procurá-lo. O bosque era bastante extenso, de sorte que a boa mulher teve que andar muito. Por fim, já meio desesperada, começou a gritar pelo filho. Ninguém lhe respondeu. Então o seu desespêro atingiu o máximo. Teria o menino esquecido a recomendação que lhe dera, de não se aproximar do rio? Ao pensar nisso, estremeceu. En­ tão tomou a deliberação de correr à vila mais próxima. Suas lágrimas logo atraíram seu irmão, além de grande número de pessoas, que se mostravam tristes. Mas nin­ guém conseguiu dar-lhe informações sôbre a criança. E embora todos se dessem ao trabalho de procurar o me­ nino pelos bosques e vilas da redondeza, caiu a noite sem que se encontrasse o menor vestígio de Augusto. - Se êle se afogou no Danúbio - disse um de� sastrado camponês - haveremos de encontrar o cor­ po. Conhecemos perfeitamente o rio, de modo que o cadáver será fatalmente depositado na areia, perto de um grande carvalho, q\.lC não fica longe daqui. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 111 CONEOO SCHMTD Naturalmente que a mãe estremeceu ao ouvir se� melhantes palavras e, voltando para casa, chorou du­ rante tôda a noite. Logo ao amanhecer, correu até o do filho, mas nada encontrou. Ali tornou a voltar vá­ rias vêzes, em dias seguidos. Os pescadores que passa­ vam por aquêle lugar em suas canoas, acostumaram-se a vê-la constantemente, ora descendo, ora subindo o rio. Por fim Teodora perdeu as esperanças de encon­ trá-lo vivo ou morto, concentrando-se na sua tristeza. Em tão pouco tempo, perder o marido e o filho! Algu­ mas vêzes se consolava, pensando que, se assim fôra, tinha sido a vontade de Deus. Outras vêzes a si pró­ pria se acusava de não ter dedicado mais tempo ao pe­ queno, tão inexperiente, tão desprotegido! E a gente da aldeia, os vizinhos, os conhecidos, quando a viam passar, inteiramente de luto, murmuravam uns para os outros: - Coitada da Teodora, não há de levar muito tempo que não siga o marido e o filho! ... O cura da aldeia, um excelente homem, já bem idoso, tomava todo o interêsse pelos seus paroquianos, visitando-os e consolando-os nas horas difíceis. Já esti­ vera muitas vêzes na cabana de Teodora, de modo que ficou muito preocupado quando a viu certa vez na igre­ ja, abatida como estava. Assim foi que a mandou cha­ mar; queria conversar com ela, depois da missa. Teo­ dora atendeu, e foi vê-lo na casa paroquial. O padre estava sentado à escrivaninha, escrevendo. Pediu-lhe que se sentasse, enqu:into terminava um registro já https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 39 iniciado. Enquanto esperava, pôs-se Teodora a con­ templar um quadro que se encontrava na parede. Im­ pressionada pela pintura, que representava a mãe de Deus, chorando a perda do Filho Amado, ficou com os olhos marejados de lágrimas. O bom padre percebeu-o e dirigiu-se a ela: - Minha boa Teodora, eis um exemplo bem con­ solador. Examine bem o quadro: simboliza ao mesmo tempo uma dor profunda e uma piedosa resignação. São os olhos cheios de lágrimas que representam a tris­ teza e ao mesmo tempo as mãos postas, que exprimem a fé em Deus. Tome o quadro e leve-o: servirá para con­ sôlo nas horas de angústia, lembrando ainda que o pró­ prio Cristo não chegou à glória senão pelo sacrifício. A Mãe do Senhor seguiu-lhe o exemplo, pois outro cami­ nho não existe para se chegar ao céu. Teodora ouviu-o com grande emoção, sem tirar os olhos da pintura. Depois declarou-se resolvida a seguir o exemplo: - Senhor, seja feita a vossa vontade, e não a mi­ nha! Logo depois retirava-se Teodora para sua chou­ pana, levando a piedosa imagem. Foi então que lhe veio à idéia abrir uma cavidade no tronco da árvore sob a qual pela última vez vira o filho, e ali colocar a ima­ gem, que serviria de eterna lembrança do seu qi;erido Augusto, misteriosamente desaparecido. Comunicou a idéia ao padre, que não pôde deixar de aprová-la, ajudando-a no que pôde, isto é, escreven­ do atrás da imagem o nome de Augusto e a data do seu desaparecimento. Depois foi a imagem colocada na https://alexandriacatolica.blogspot.com.br &e CIONEGO SCBMID cavidade feita no tronco da árvore, como lembrança filho e como prova de fé e de confiança cm Deu.a. do * * * Enquanto a mãe aflita chorava a morte de AuguS: to, êste fazia uma viagem de mais de cem léguas. Che­ gara a grande cidade de Viena e vivia cm perfeita saúde numa soberba casa, quase tão bela quanto um palácio. Andava muito bem vestido, e, o que é mais, recebia uma excelente educação. Essa mudança de sorte, no en­ tanto, dera-se de modo muito simples, e naturalmente. Quando acordou, em baixo da grande árvore de que já falamos, apanhou o cestinho, esfregou os olhos ainda meio sonolentos, e saiu de nôvo à procura de fru­ tos de faia. Com êstes enchera quase completamente o cêsto, mas como ainda não estivesse contente com a co­ lheita, continuou a andar, chegando às margens do Da­ núbio. Ali se achavam muitas famílias, ricas e pobres. Eram passageiros de um navio, que tinham descido à terra, enquanto a embarcação recebia um carregamento. Entre essas pessoas havia um bando de crianças, as quais logo se aproximaram de Augusto, curiosas por que levaria o menino naquele cêsto. - Que frutos esquisitos! - exclamou a pequena Antônia, encantadora menina, mais ou menos da ida­ de de Augusto. Estava elegantemente vestida, e não era nada acanhada nem cheia de si. - Não há nada de extraordinário nestes fruti­ nhos, que são de faia, e servem para comer. Quer expe­ rimentar? https://alexandriacatolica.blogspot.com.br C01'TOS DE SCHMID https://alexandriacatolica.blogspot.com.br ,1 '2 CONEGO SCHMID Logo distribuía boa quantidade de frutos a tôdas as crianças, mostrando-se muito contente por se achar no meio daquela menino.da alegre. A bem dizer, nunca se sentira tão feliz em sua vida, pois raras vêzes tivera ocasião de brincar com outras crianças, pois só as havia na vila, onde êle ia poucas vêzes. Brincou bastante com meninos e meninas, os quais repartiram com êle as pe­ ras e ameixas que traziam. Depois teve vontade de visitar a embarcação, aquela casa flutuante, que para êle era uma grande no­ vidade, uma vez que jamais vira um navio. As crianças o levaram a bordo; quanto a Antônia, conduziu-o ao camarote de seus pais, um dos mais luxuosos da embar­ cação. - Oh! ... - exclamou Augusto maravilhado E.ste quarto aqui é bem mais bonito que minha casa! Antônia e as outras crianças passaram a mostrar­ -lhe os brinquedos que levavam. Augusto nunca vira tanta coisa bonita e engenhosa, de modo que se esque­ ceu de voltar para casa, enquanto era tempo. Sim, porque nesse meio tempo o navio partiu, descendo majestosamente o rio. Ningu.Em a bordo prc:aava grande atenção ao me­ nino. Os passageiros que já se encontravam a bordo, ju!::;.iram que se tratava do filho de algum nôvo passa­ r�iro e os passageiros que entraram naquela parada jul­ g;:r:.1m que êle pertencia a alguma familia que viera de longe. Foi só à tarde, quando o menino começou a cho­ rar, pois queria voltar para junto da mãe, que notaram a presença de uma criança a mais a bordo. Todos fica­ ram surpreendidos e houve grande alvorôço no navio. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CO N TO S D E S C H M T D 43 Alguns lamentavam a pobre mãe, outros 5e divertiam com a presença do inesperado companheiro de viagem. Quanto aos marinheiros, estavam zangadíssimos, e que­ riam que o menino descesse no primeiro pôrto. Apareceu o comandante do navio e perguntou ao memno: - De que cidade é você? De que vila? - Não sou de nenhuma cidade, não senhor. Não sou de nenhuma vila. - Ora esta! - exclamou o capitão, muito zan­ gado. De qualquer maneira, você deve morar em al­ guma casa! ... - Minha casa fica perto da vila. - Perfeitamente - respondeu o capitão. Mas, que vila é essa, como se chama? - Minha mãe nunca falou de outro modo. Ela dizia: agora está dando meio-dia na vila. . . amanhã vamos à vila ... - Como se chamam seus pais? - insistiu o ca• pitão, que já começava a perder a paciência. Minha mãe chama-se Teodora. Meu pai já morreu. Sim, está bem. Sua mãe se chama Teodora; mas, qual é o seu sobrenome? - Ela não tem outro nome; diz que é Teodora, e é quanto chega. Viu logo o capitão que não conseguiria qualquer informação a mais, de criança tão inexperiente. Estava muito aborrecido, e, como nada mais tivesse a fazer, exclamou: https://alexandriacatolica.blogspot.com.br « CONEGO SCHMID - Melhor seria que o cuco te levasse para outro lugar, não para aqui! Ao que o bobinho do Augusto respondeu ingênua� mente: - Não foi o cuco que me trouxe, não. Eu nunca o vi, mas já o ouvi cantar na primavera! Não houve quem não deixasse de rir da resposta, a despeito do visível embaraço do comandante. O Da­ núbio atravessava nessa ocasião um país de densas flo­ restas, não se percebendo uma única casa em redor. Ao cair do sol, porém, avistou-se a tôrre de uma igreja. Era intenção do capitão deixar o menino nessa localidade, para que algu ém se incumbisse de o entregar à mãe. Mas o senhor Wahl, pai de Antônia, a isso se ôpos; tratava-se de um rico comerciante, que transportava na embarcação pratarias e objetos preciosos, e que, como os demais passageiros do navio, fugia do inimigo, pois nessa ocasião uma terrível guerra devastava a Alema­ nha. - Gostaria imensamente que o pequeno fôsse entregu e à mãe - disse êle. - Mas isso, no momento, não é possível. O inimigo aproxima-se ràpidamente do navio, e algu mas horas que perdêssemos poderiam ser fatais; correríamos o risco de cair-lhe nas mãos, per­ dendo tudo quanto possuímos. Pelo amot de Deus, continue a viagem! Inquieto como estava, desejava o sr. Wahl que se navl!gasse também à noite. E como os marinheiros res­ pondessem que isso não se constumava fazer, retorquiu que pagaria uma boa gratificação à tripulação inteira, para que não se fizesse nenhuma parada. De tal modo https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID '5 se navegou durante tôda a noite, à suave claridade da Lua. Ao romper do dia, passaram por uma povoação edificada à margem do rio. Aproveitou-se o capitão da oportunidade para pedir aos camponeses que recebes­ sem o menino e o conservassem, enquanto tratariam de procurar saber quem era a sua mãe. Mas os campone­ ses lhe responderam que, pobres como eram, mal tinham com que alimentar os seus próprios filhos, de modo que não poderiam receber mais uma criança em suas casas. Logo depois, se avistou, não muito distante da margem, as casas de uma cidade de certas proporções. Ia o capitão determinar que se fizesse uma parada, para que êle próprio fôsse à terra, à procura do juiz ou do cura do lugar, para que um dêles ficasse com o menino sob sua guarda, quando se aproximou o sr. Wahl e lhe disse: - Está ouvindo?. . . É o troar dos canhões. O inimigo está perto; se pararmos um instante, estare­ mos perdidos! ... O capitão, que temia ter que ficar com o menino, não quis ouvir o passageiro, de modo que estava pres­ tes a começar uma grande discussão, quando a espôsa do sr. Wahl interveio; chegou-se ao ouvido do marido e lhe disse: - Meu caro, por que não tomamos conta desta infeliz criança? Com isso faríamos uma obra de cari­ dade e resolveríamos o caso. O sr. Wahl aprovou imediatamente a idéia, e pa­ ra que todos ouvissem, declarou bem alto: https://alexandriacatolica.blogspot.com.br C8 CôNEGO SCHMID - Abram tôdas as velas. Quanto à criança, le­ vo-a comigo e me encarrego de tudo quanto vier a ne­ cessitar no futuro. Todos ficaram satisfeitíssimos com semelhante declaração, não sendo poucos os passageiros que vie­ ram a felicitar o sr. Wahl pela resolução que acabava de tomar. Felizmente conseguiram chegar a Viena sem maio­ res contratempos. O sr. Wahl comprou uma grande casa, que mandou caprichosamente mobiliar; ali passou a família a residir, e o sr. Wabl entregou-se ao comér­ cio, que era a sua profissão. Foram contratados professôres para Antônia; e como Augusto residisse com êles e fôsse quase da mes­ ma idade que a menina, assistia igualmente às aulas. Logo fêz grandes progressos, revelando uma extraordi­ nária inteligência. Mostrando-se, igualmente, obedien­ te e de ótimos sentimentos religiosos, em breve era considerado como verdadeiro filho pelo sr. Wahl. Mais tarde, e com satisfação, notou o dono da casa que o peqneno tinha grande gôsto pelo comércio. Matriculou-o, pois, numa escola especializada, e admi­ tiu-o na sua casa comercial, como auxiliar. A incansável atividade e a honestidade de Augus­ to muito contribuíram para que os negócios prosperas­ sem. Por isso, o sr. Wahl pensou em recompensá-lo, tornando-o seu sócio. E como a pequena Antônia fôsse então uma encantadora môça, o sr. Wahl casou-a com Augusto. Quando a guerra terminou, tanto o sr. Wahl co­ mo seu genro receberam do imperador títulos de nobrehttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID ff za, pelos grandes serviços prestados ao país durante o conflito armado. Algu ns anos mais tarde, morrendo os pais de An­ tônia, resolveu Augusto deixar o comércio e comprar uma propriedade na Baviera ou Suábia. Com as devas­ tações causadas pela guerra as terras da região tinham baixado muito de preço, de modo que o môço esperava fazer um bom negócio naquelas redondezas. Assim o fêz, adquirindo uma propriedade que muito lhe agradou, o belo castelo que ali havia encon­ trava-se em ruínas. Por isso mandou fazer os conser­ tos necessários, voltando a seguir a Viena, a fim de buscar a espôsa e os filhos. Quando Antônia chegou, por tôda parte encon­ trou misérias e ruínas. Muitas casas da vila tinham vindo abaixo, enquanto grande número de outras amea­ çava desabar. - Ah, pobre gente! - disse ela. - É preciso ajudar êstes infelizes! Alegrou-se Augusto ao ver que as idéias da espô­ sa concordavam com as suas, e tudo fêz para socorrer �s habitantes das proximidades. Deu-lhes madeira pa­ ra as edificações, emprestou-lhes dinheiro, comprou gado e sementes para distribuir entre os mais necessi­ tados. Em breve o castelo se achava rodeado de casas novas e asseadas, assim como de campos cultivados e pastagens cheias de gado. Os camponeses não cessavam de elogiar o nôvo proprietário daquelas terras; mas êste respondia: https://alexandriacatolica.blogspot.com.br '8 CôNEGO SCHMID - De menino pobre que eu era, Deus me fêz rico e feliz. Seria um ingrato se não procurasse repartir um pouco do que tenho com os que têm necessidade de auxílio. Alegra-me ver que contribuí para o bem-estar de todos quantos me rodeiam. Não há maior felicidade no mundo do que tornar felizes os nossos semelhantes. * * * Enquanto Augusto crescia, prosperava e enrique­ oa em Viena, tornando-se grande senhor, sua mãe, a boa Teodora, passava por muitas amarguras. Pouco tempo depois do desaparecimento de Augusto, a guer­ ra levou a devastação e a miséria à região em que ela morava. De repente a floresta foi ocupada por solda­ dos inimigos, de modo que a infeliz mulher teve que fugir, indo procurar abrigo em casa de seu irmão, que morava na vila. Mas a casa do irmão em breve se reduziu a cinzas, e assim, enquanto êle ia procurar emprêgo em casa de um pescador, Teodora recolheu-se à casa de outra irmã, que tinha muitos filhos. Foi muito bem recebida e passou a tomar conta dos sobrinhos pequenos. Assim viveram as duas irmãs durante muitos anos, consolando-se uma à outra, até que um dia receberam dn terra natal uma carta do irmão, na qual se anunciava a morte da espôsa e o casamento das duas filhas; dêsse modo, pedia a Teodora que fôsse morar com êle, para tomar conta da casa. Teodora atendeu ao pedido. E mal chegou à vila, encaminhou-se para a floresta, com a intenção de visi­ tar a faia, sob a qual pela última vez vira o seu querido Augusto. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br eo N T o s D B s e H M I D 49 Mas, que tristeza! Como estava tudo mudado! Não mais se conhecia o atalho que levava à sua cabana; o solo estava inteiramente coberto de mato. Grandes árvores, com ramos colossais tinham substituído as matas e os arbustos. Havia muito tempo desaparecera o vestígio de sua miserável cabana, e nem mesmo foi possível descobrir a faia em que ficara o piedoso qua­ dro. - Mesmo que eu não encontre o quadro - pen­ sava ela - ao menos hei de reconhecer o tronco, pela abertura que nêle fiz. - Não perca tempo - disse-lhe um velho que andava catando lenha na floresta. Há muito tempo que a árvore caiu. O mesmo que sucedeu à vila, aconteceu à floresta. Os que deixamos crianças, são hoje homens feitos, os que eram homens tornaram-se velhos; quase todos os velhos daquele tempo não existem mais. As árvores velhas dão lugar às novas. Tudo passa depressa neste mundo, e os homens ainda mais depressa do que as árvores. Não temos morada certa na terra; espere­ mos por aquêle que nos espera no céu O senhor de Wahlheim, isto é. Augusto, que tal título recebera do imperador da Austria, morava a al­ guma distância daquele lugar. Mas a floresta fazia parte das terras que comprara. Um dia foi até a flo­ resta, acompanhar a distribuição de lenha que se fazia aos pobres, para que pudessem aquecer-se no inverno. Sendo muitas as árvores velhas a cortar. êlc queria es­ tar presente. Poderia, ao mesmo tempo, verificar se :­ distribuição era feita como se Jcvia, de moJo que cad:­ um recebesse ,l sua p:1rte. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 50 CôNEGO SCHMID Mandou reunir todos os chefes de família em de­ terminado ponto, e pessoalmente ia dando ora uma árvore a um, ora um tronco a outro. Como o irmão de Teodora não tivesse podido vir, Teodora veio em seu lugar, e apressou-se a ir pedir desculpas ao proprietá­ rio, explicando que o chefe da casa estava de cama. O senhor de Wahlheim estava bem longe de ima­ ginar que a idosa mulher, tão pobremente vestida era sua mãe. E por seu lado, Teodora jamais poderia supor que o belo e robusto rapaz que tinha pela frente, era simplesmente seu filho. De modo que recebeu, como os demais, a árvore que lhe coube na distribuição. O guarda das matas fêz comentários, dizendo que as faias deveriam ser guardadas para o senhor; para os pobres seriam mais que suficientes outras árvores de inferior qualidade. Mas o senhor de Wahlheim, muito severo, replicou: - Não devemos dar aos pobres apenas o que não presta, as coisas de qualidade inferior; devemos, isso sim, é repartir com êles o que tivermos de melhor, prin­ cipalmente nas ocasiões difíceis. Assim, esta faia per­ tencerá à irmã do doente. Deverá ser derrubada, cor­ tada e transportada à casa dêste, tudo por minha con­ ta. Os lenhadores que cortem esta em primeiro lugar; a lenha de que preciso, ficará para depois. E em seguida afastou-se, para não ouvir os agra­ decimentos de Teodora. Esta, porém, o seguiu com os olhos e exclamou: - Que Deus abençoe êste senhor! A mãe e o filho, que se haviam visto naquele mes� mo lugar, vinte e seis anos antes, encontraram-se de https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS D E SC H M I D 51 nôvo, sem se reconhecerem, e teriam outra vez ficado separados, talvez para sempre, se a Providência não determinasse o contrário. Logo dois lenhadores se puseram a cortar a faia. A árvore caiu com grande estrépito, e de repente os dois homens se puseram a gritar: - Um milagre! Um verdadeiro milagre! É que, com a queda, rompera-se o tronco, fazen­ do aparecer o quadro, que ficara oculto pela casca e o musgo que lhe cresceram por cima. As côres do quadro ainda estavam muito vivas e bem conservadas; brilha­ vam aos raios do sol. Mas os lenhadores eram moços, e nada sabiam a respeito da hist6ria da gravura, não podendo compreender como pudesse a imagem de Nos­ sa Senhora encontrar-se no interior da árvore. Se não havia nenhuma abertura por onde alguém a tivesse po­ dido colocar naquele lugar, era claro que se tratava de um milagre. Atraído pelos gritos proferidos pelos lenhadores, aproximou-se o senhor de Wahlheim, que se encontra­ va a pequena distância, ocupado ainda com a distri­ buição das árvores. Tomou o quadro e pôs-se a exami­ ná-lo atentamente. - Com efeito - declarou - é muito bonito. Pode-se mesmo dizer que é um primor. O desenho e as côres são de muito bom gôsto, parecem provir de mãos de mestre. Mas é fácil adivinhar como se encon­ tra o quadro no interior da árvore. Alguma devota pes­ soa cavou o lugar na casca, a qual, crescendo, veio ;1 encobrir a pintura ... https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 52 CONEGO SCBMID Apenas acabava de examinar a pintura, quando lhe ocorreu virá-la, para ver o que havia do outro la­ do. E então uma súbita palidez o invadiu. Pôs-se a tremer, e teve que apoiar-se a um tronco, para não cair. - Na verdade - pensou - isto é deveras sur­ preendente! ... É que nas costas da imagem se achavam escritas as palavras seguintes: "No dia dez de outubro do ano de 1850. vi embaixo desta árvore, pela última vez, meu filho Augusto, de cinco anos e três meses de idade. Deus esteja com êle, onde se encontrar, e ampare sua inconsolável mãe. Teodora Sommer". Aquelas palavras tiveram o dom de despertar as lembranças de Augusto. Era êle, sem dúvida algum::, a criança perdida: o nome e a data concordavam per­ feitamente. Fôra sua mãe, sem a menor dúvida, quem colocara a imagem naquele lugar ... Enquanto êle assim pensava, sua mãe corria-lhe ao encontro. Ela ficara no bosque à espera de uma vizinha, e a notícia da descoberta da imagem correra com extraordinária rapidez. De modo que correu ao lugar onde se encontrava o dono daquelas terras e lhe suplicou: - Por favor, meu senhor: dê-me a imagem. Ela me pertence. Veja que meu nome deve estar escrito atrás; foi o senhor cura que o escreveu, com o seu pró­ prio punho! . . . Ah! - disse ela, chorando - quan- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 5S 54 CONEGO SCRMID tas vêzes passei por debaixo desta árvore. sem poder reconhecê-la!. . . Ó meu querido Augusto, ainda te vejo no mesmo lugar em que te deixei dormindo! ..• As lágrimas e os soluços cortaram a voz da pobre mulher. O senhor de Wahlheim, que, vendo o nome de sua mãe escrito atrás da imagem já se emocionara bastante, sentiu que o coração lhe batia impaciente. Estava para se atirar aos braços dela, dar-se a conhecer, imediatamente. Mas depois lhe ocorreu que a súbita alegria poderia ser-lhe fatal. E então procurou conter­ -se. Tomou-a afetuosamente pelo braço e a consolou, dizendo que seu filho vivia, que êle próprio o conhe­ cia. . . Depois de tais preparativos, julgou que por fim podia dizer quem era: - Sou eu o Augusto, aquêle que a senhora per­ deu há tanto tempo! .... - Tu?!. .. - exclamou Teodora, atirando-se aos braços dêle, sem conseguir pronunciar nem mais uma palavra. Ambos ficaram assim, longamente apertados. Tô­ das as pessoas presentes se comoveram e não puderam reter as lágrimas. Por fim Augusto falou: - Minha boa mãe - disse, por fim o senhor de Wahlheim - Deus ouviu suas preces, 'Êle nunca me abandonou. E.le a consolou, como consolou a Maria, restituindo-me a minha mãe, para bem dizer, tirando­ -me dentre os mortos. Foi debaixo desta árvore que nos separamos e é no mesmo lugar que E.le nos reúne. Deus sabe o que faz. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 55 Oh, sim! ... Ele sabe o que faz, e tudo o que faz, faz bem feito!. . . Minha cega ternura teria impe­ dido de te educar como o merecias. Deus te confiou a outras mãos, separou-me de ti por muito tempo, para a minha e a tua felicidade. :Êle hoje te restitui a mim para sempre, para que sejas o sustentáculo e o consôlo da minha velhice. Ou melhor, para que sejas o prote­ tor de tôda esta região! ... A felicidade de Teodora e do filho eram impos­ síveis de descrever. Todos os camponeses tinham acudido para serem testemunhas do inacreditável espe­ táculo. O senhor de Wahlhcim incumbiu o guarda da floresta de ir dizer ao irmão de Teodora que esta só vol­ taria no dia seguinte e que levaria seu filho com ela. Depois determinou que viesse a carruagem, ajudou a mãe a subir, e sentou-se a seu lado, seguindo ambos para o castelo. Um nôvo contentamento esperava a boa Teodora. Estava envergonhada de apresentar-se tão pobremente vestida diante da nora, que era urna nobre dama. Mas esta correu a abraçá-la, considerando-se felicíssima por conhecer a mãe de seu marido. Teodora já chorava de alegria, mas julgou morrer de contentamento, quando chegou a conhecer os dois netos, Fernando e Maria. - Minha tristeza - disse ela - era outrora in­ dizível; mas minha alegria é agora ainda maior. S6 consigo chorar e agradecer a Deus. Deus de bondade, que sabe transformar o sofrimento em alegria: que é que poderemos esperar de VÓ5 lá no céu? https://alexandriacatolica.blogspot.com.br IC CONEOO SCHMID No dia seguinte, o s,-nhor de Wahlheim mandou aprestar a carruagem e foi com a mãe visitar o tio. Teo­ dora ficou com o doente até que êste se restabelecesse; depois voltou para o castelo, onde· ficou para sempre. Augusto e Antônia mandaram vir para o castelo o irmão e a irmã de Teodora, e dêles se ocuparam com carinho. Também procuraram saber de que necessita­ vam todos os demais parentes, oferecendo-lhes tudo quanto precisavam, para se sentirem amparados e feli­ zes. E por fim Augusto colocou na sua sala o pequeno quadro milagroso, para lembrar a todos o que pode a fé e a confiança em Deus. Ser-lhe fiel na ventura como na infelicidade, é o melhor caminho a seguir nesta vida. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br A POMBINHA BRANCA https://alexandriacatolica.blogspot.com.br Vivia em um antigo castelo situado entre monta­ nhas e chamado Falkenburgo, o bravo e generoso cava­ leiro Teobaldo. Os fracos e oprimidos, por longe que estivessem, podiam sempre contar com a sua proteção, pois a maior satisfação do cavaleiro consistia em fazer feliz aquela pobre gente. Por seu lado, D. Otília, espôsa de Teobaldo, era a benfeitora dos pobres, e andava pe­ las suas cabanas, visitando os doentes, distribuindo remédios e auxílios. O casal tinha uma filha, Inês, graciosa mocinha de seus dezoito anos, a qual, tendo saído aos pais, jul­ gava-se muito feliz quando podia prestar algum serviço a alguém. As três excelentes criaturas eram verdadeiramen­ te veneradas por quantos as conheciam, e não era de espantar que gozassem da mais completa felicidade, pois Deus ouvia as preces que todos os protegidos de Teo­ baldo faziam pela paz e tranqüilidade do cavaleiro e sua família. Em certo dia 'de verão, D. Otília e Inês Ja�am de­ pois do almôço para um passeio pelo jardim e a horta do castelo, e ora observavam os rubros botões de rosa prestes a desabrochar, ora as deliciosas cerejas de côres tão vivas. Sentaram-se as duas sob uma árvore que ha­ via no meio do jardim e puseram-se a contemplar as gôtas dágua do repuxo, que caíam brilhantemente ilu­ minadas pelo sol. Assim ficariam mais tempo, se um súbito barulho, perto do caramanchão, não viesse que- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 80 CONEGO SCHMlD brar a doce harmonia de um canto de cigarra, pousada em alguma árvore: distante. Sobressaltaram-se e, procurando saber a causa do barulho, notaram que se tratava de um pássaro que pretendera entrar no caramar:chão, mas logo se afasta­ ra, ao ver D. Otília e a filha. Decerto seria um passa­ rinho que fugia das garras de algum falcão; e, de fato, na atrapalhação em que vinha, foi ocultar-se atrás de D. Otília. - Olha, mamãe, é uma pombinha branca como a neve, que acaba de se esconder atrás da senhora! exclamou a mocinha. D. Otília observou: - Vou mandar assá-la para o seu jantar. - Assá-la!? - perguntou Inês, admirada e tris; te, recolhendo a assustada ave, como que para prote­ gê-la contra os perigos que a ameaçavam. - Oh, não, mãezinha, a senhora está brincando, não é? Se o pobre passarinho veio refugiar-se comigo, como podc:rei dei­ xá-lo matar! Olhe como é bonito: branco como a ne­ ve, com os pezinhos vermelhos de coral. Ouça como bate depressa o seu coraçãozinho! Pobre pombinha! Olha para mim com um olhar tão suplicante, tão cheio de inocência! Parece dizer: "Não me faça mal". Em vista dos propósitos da filha, D. Otília disse­ -lhe que a levasse para dentro t: lhe desse de comer. Também mandou fazer para a pomba uma gaiola pin­ tada <le verde e vermelho, a qual, depois de terminada, foi posta num canto do quarto de Inês, para receber a sua pequenina moradora de penas tão alvas. Inês tratava carinhosamente da pombinha, dand� -lhe diàriamente comida e água, limpando-lhe a gaiola https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CO NTO S DE S r: H M l D 61 com capricho. Com isso o passarinho se acostumou tan­ to a ela, tornou-se tão manso, que, aberta a portinhola. vinha depressa pousar nos ombros da sua protetora, o1. comer o alpiste que esta oferecia na concha da mão. Dentro de pouco tempo nem mesmo fechar a por­ ta da gaiola era preciso: a pombinha saía. voava, depois voltava sossegadamente para a sua morada. E de ma­ nhã, bem cedinho, vinha pousar sôbre a sua düna, para avisá-la de que eram horas de se levantar. Um dia Inês, que ainda estava com bastante sono, aborreceu-se com o pássaro, e disse à mãe: - Mamãe, hei de fozer de modo que ela não me venha acordar tão cedo. A noite, antes de me deitar, fecharei a porta da gaiola. - Não, minha filha. É bom que você se habitue a levantar cedo. É um costume que faz muito bem à saúde e torna o espírito mais tranqüilo durante o resto do dia. Depois, não seria uma vergonha para você le­ vantar mais tarde do que a pombinha? A lição não podia ser mais apropriada, pois dali por diante Inês nuc� :::ais deixou de levantar-se bem cedo. De outra feita, estava a menina à janela, enquanto o pássaro comia migalhas de pão a seus pés. Mas de repente voou e foi-se empoleirar na beirada do telhado. Inês assustou-se, julgando que perderia a sua compa­ nheira; mas a mãe a aconselhou a que chamasse pelo passarinho. 1;:ste obedeceu prontamente. - Veja, minha filha, como ela sabe obedecer. F. assim que você deve ser para sua mãe. E desde aguêle dia Inês tornou-se ainda mais obe­ di<:nte do que anteriormente. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 62 CONEGO SCHMID Em outra ocasião a pombinha, que já andava livre­ mente sôlta pelo jardim, pousou junto do tanque, para beber água, saltando graciosamente de pedra em pedra, para não sujar as patinhas. - Inês, repare o cuidado que ela tem com o seu asseio. . . As meninas nem sempre fazem assim . . . disse D. Otília, olhando para o vestido de Inês. É que êste estava um pouco sujo de barro do regador, ali encostado um pouco antes. Inês corou e daí por dian­ te procurou ter mais cuidado consigo. Tempos depois, Inês deixou o castelo, para fazer uma viagem em companhia da mãe. Quando voltou, a pombinha veio fazer-lhe mil demonstrações de alegria. - Enquanto a menina estêve fora - contou uma empregada - fazia pena ver a tristeza do pobre passarinho. Andava por tôda a parte procurando a sua dona. - É verdade - respondeu Inês - ela não po­ deria deixar de me ser reconhecida, pois fui eu que a protegi contra os perigos, quem lhe dou comida e mo­ rada. - E você, minha filha, também sabe ser sempre reconhecida? Agradece a Deus, por tudo o que :Êle lhe dá? Não deixe que um simples animalzinho a en­ vergonhe, mostrando-se melhor do que você! Com efeito, nem sempre sabia Inês agradecer a Deus os bens que lhe proporcionava; mas daquela data em diante, aprendeu uma lição. - Minha boa pombinha - disse um dia Inês ao passarinho - muito tenho aprendido contigo, devo­ •te muito. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 83 E foi D. Otília quem respondeu: - Muitas coisas mais poderá você aprender com ela. Esta pombinha branca é a própria imagem da do­ çura e da inocência. É simples, pura, sem fingimentos. Por isso, Jesus disse: "Sejam simples como as pom­ bas!" Deus permita que todos po�sam dizer de minha Inês: "É inocente e simples como as pombas!" E seus desejos foram satisfeitos. * * * Uma grande quadrilha de bandidos invadira o país. Teobaldo e seus homens lhe haviam dado caça por montes e vales, até que por fim acabaram destro­ çando o bando de criminosos. Tinha acabado de voltar dêsse feliz empreendi­ mento e estava justamente rodeado da espôsa e da fi­ lha, contando-lhes as várias peripécias que terminaram pela prisão de grande número de bandidos e pela fuga dos restantes, quando viu entrar uma senhora vestida de prêto, trazendo pela mão uma jovem, igualmente de luto. Como já fôsse noite, as luzes se achavam �::esas, de modo que as duas, ao entrarem, vestidas de negro, pareciam ainda mais pálidas do que realmente o esta­ vam. O cavaleiro e sua mulher levantaram-se para re­ ceber a desconhecida, que avançou para o dono do cas­ telo, dizendo-lhe: - Deus esteja contigo, generoso cavaleiro. Em­ bora nunca tivesse a oportunidade de encontrar-te, co­ nheço perfeitamente a tua fama, e sei que não é inutil­ mente que venho procurar proteção. Eu sou Rosalinda de Hohenburgo e esta menina é Ema, minha filha. Tal­ vez já conheças a causa de minha aflição: meu marido. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 84 CONEGO SCHMID Aldrich, morreu dos ferimentos que recebeu na guer­ ra, e creio que era bem conhecido pelo bem que pro curava fazer aos infelizes. Deixou-nos pouca coisa, mas que nos chega perfeitamente para viver: campos férteis de um lado, florestas do outro lado do castelo. Agora dois vizinhos nossos, de comum acôrdo, querem apoderar-se, cada um de uma dessas partes de nossas propriedades, e para tanto inventaram diversos pretexteis. Outrora se diziam amigos de meu marido, mas agora que Aldrich morreu, querem deixar-me apenas c-om o castelo. Como poderei viver assim? Meu pobre espôso bem que o previa. Foram estas as suas últimas palavras: "Espera em Deus e põe tua confian­ ça no cavaleiro Teobaldo; ninguém ousará fazer-te o menor mal". Generoso cavaleiro, espero que confir­ mes as palavras de meu marido, que se algum dia fôs­ ses infeliz, certamente haveria quem protegesse tua fa­ mília, como agora podes proteger a minha. A pequena Ema chegou-se para perto de Teobaldo e disse-lhe: - Senhor, não nos desampares! Enquanto que Inês, impressionada com o que acabara de passar-se, acercou-se do pai para acrescen­ tar: - Espero que papai se comova. Papai sabe que a pombinha quando perseguida pela ave de rapina, aqui encontrou proteção, de mamãe e de mim; não devemos repelir os que procuram asilo em nossa casa. Então Teobaldo respondeu: - Não te preocupes, minha pequena Inês. Hei de defender as duas perseguidas, que ora nos procurnm, se Deus quiser. Se antes nada dizia, é que estava re- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 65 fletindo nos meios que haveria de-empregar para socor­ rer a sra. Rosalinda e sua filha. Dizendo isso, pediu às visitantes que se sentas­ sem, e lhe explicassem melhor o que se passava; depois convidou-as a ficar no castelo enquanto êle iria tratar dos interêsses das suas hóspedes. Inês ficou muito contente, pois Ema iria passar uns dias em sua companhia. Levou-a a tôda a parte, ao jardim, à horta, mostrou-lhe o quarto de dormir, a pom­ binha branca. De modo que em breve estavam as duas muito boas amigas, porque verificaram que tinham nascido com os mesmos bons sentimentos, sendo igual­ mente educadas no temor de Deus. Dali a cinco dias, regressou Teobaldo: - Excelente notícia! - exclamou êle - Os teus inimigos desistiram das suas injustas pretensões e a contenda está liquidada. Pouca atenção teriam dado a minhas palavras, se eu não os houvesse ameaçado; de forma que lhes disse claramente que declararia guerra a quem tivesse a audácia de fazer mal à sra. Rosalinda e sua filha, e êles prometeram que não mais as impor­ tunariam. Consola-te, nobre senhora, que não mais cei­ farão teus campos, jamais tocarão numa única árvore de tuas florestas. Rosalinda, cheia de agradecimentos, alegre como estava, nem sabia como agradecer ao seu salvador: - Que Deus possa recompensar-te, meu genero­ so senhor! Que o Senhor proteja tua família! - e na­ da mais conseguiu dizer. A emoção a impedia de falar, mas Teobaldo compreendeu perfeitamente tudo quan to ela pretendia dizer. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 16 CÔNEGO SCHMID Chegando o momento da partida, fêz Rosalinda os preparativos para o regresso ao seu castelo. As duas meninas choraram muito ao se separarem. Inês que­ ria dar uma lembrança à amiga, e como Ema sempre manifestasse o desejo de ter uma pombinha,' Inês re­ solveu presenteá-la com :J. sua. Foi buscar o pássaro, apertou-o contra o coração, e entre lágrimas o entregou à amiga. Deu-lhe também a bonita gaiola, fazendo-lhe minuciosas recomendações, como se se tratasse de uma sua filha que partia. No entanto, depois que Ema se despediu, Inês ficou muito triste e se arrependeu de ter dado o passa­ rinho. - Antes eu lhe tivesse dado os meus brincos disse ela à mãe. - Você poderá dá-los em outra ocasião. Mas, não <."ra possível fazer um presente melhor. Uma lem­ brança de valor talvez não a agradasse tanto, e poderia humilhá-la. Oferecendo uma coisa de que você tanto gosta, provou-lhe que lhe tem amizade. Não se arre­ penda do que fêz. Como bem sabe, seu pai teria dado a vida para socorrer a pobre viúva. É bonito de sua par­ te ter dado à órfã o que ela mais desejava, embora se tratasse de um pássaro de que você tanto gostava. Quem não aprende cedo a se sacrificar pelos outros não tonta com a proteção de Deus. Com tranqüilidade e alegria passaram a viver em seu castelo D. Rosalinda e sua filha. O castelo era cons­ truído num lugar muito ap:-azível, que ficava na encosta de uma montanha, e ali costumavam às vêzes, bater via­ jantes para pedir pousada. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 6'1 r CONEOO SCHMID Certa tarde chegaram ao castelo dois estrangeiros, vestidos de romeiros, com sua roupa pardo-escura. Traziam grossos bordões em que se apoiavam, e exi­ biam os chapéus enfeitados de conchas de todos os ro­ mell'os. Depois que o guarda-portão os anunciou, D. Rosa­ linda mandou-os entrar para a sala térrea, onde lhes t0i servida a ceia, acompanhada de um bom copo de vinho. Depois que os estrangeiros terminaram a refeição, D. Rosalinda, acompanhada da filha, desceu para vê-los. Logo os romeiros passaram a contar muita coisa curio­ sa a respeito da Terra Santa. Tôda a gente do castelo os ouvia atentamente, mas era Ema a mais emocionada de todos, e até se lhe notavam lágrimas no seu rosto de criança; ela sentia não poder ir pessoalmente visitar aquêles santos lugares - Minha filha -disse-lhe D. Rosalinda -pode­ mos a qualquer hora nos transportarmos para êsses lu­ gares e visitar o país das oliveiras, o Calvário, o Santo Sepulcro: basta ler asslduamente o Evangelho. Assim se passavam as horas da noite, quando. por uma referência qualquer, os dois romeiros fizeram grande� elogios ao cavaleiro Teobal<lo. - Se o castelo de Falkenburgo não fôsse tão dis­ tante - acrescentou um dêles - e se eu tivesse a cer• teza de encontrar o bravo cavaleiro, com grande pra­ zer passaria por lá, somente para conhecê-lo e cumpri­ mentá-lo. A dona do castelo, porém, explicou-lhes que na­ quela ocasião não seria nada difícil encontrar o cava­ leiro; e quanto à distância, podia ser muitíssimo encur­ tada, se êles tomassem um caminho que ela conhecia. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 69 Regozijaram-se muito os romeiros com a notícia e resolveram, que no dia seguinte se poriam a caminho de Falkenburgo. Ema e sua mãe gostaram da idéia, por­ que poderiam mandar algumas lembranças aos seus amigos e protetores do castelo vh:inho. Em seguida foram todos dormir. No dia seguinte bem cedo partiram os dois pere­ grinos, acompanhados por um dos criados do castelo, o qual estava incumbido de mostrar o caminho. Apro­ veitou-se Ema da oporrunidade para depois de dar uma moeda de prata a cada um dos romeiros, pedir-lhes que dissessem a Inês que a pombinha ia passando muito bem. Os romeiros partiram; pouca atenção davam ao guia, e a princípio marcharam em silêncio. Depois que atravessaram uma montanha escarpada, porém, passa­ ram a conversar cm italiano. O rapaz que os acompa­ nhava, embora fôsse conhecido no castelo por Lie­ nhardt, e falasse perfeitamente o alemão, era de ori­ gem italiana, conhecia bem esta língua, sendo seu ver­ dadeiro nome Leonardo. De modo que prestou bem atenção ao que diziam seus companheiros de viagem, satisfeito por ouvir falar sua língua materna. E graças a isso, descobriu que não se tratava de verdadeiros romeiros, não lhes sendo aquela região tão desconhecida quanto diziam. Estavam disfarçados como romeiros, mas não passavam de bandidos pertencentes à quadrilha dispersada pelo cavaleiro Teobaldo, e ar­ diam de impaciência por tirar uma desforra. Com aquela aparência de piedosos e santos contavam pene­ trar no castelo de Falkenburgo, pedir agasalho, e à noi­ te, lev.antar-se-iam para assassinar o cavaleiro, a mulher https://alexandriacatolica.blogspot.com.br '10 CONEGO SCHMID e a filha. Depois liqüidariam os outros ocupantes, sa: queando o castelo, e ateando-lhe fogo, para reduzi-lo a cinzas. Assim foi que, quando avistaram ao longe, entre as montanhas azuladas, o vulto de Falkenburgo, o mais velho dos bandidos, chamado Lupo, disse ao seu com­ panheiro: - Lá está a caverna do homem que tanto mal fêz à nossa gente! É preciso que êle morra nos mais ,. crue1s tormentos 1.... Ao que respondeu Orso, o outro bandido: -· O projeto é bastante audacioso e se nossos planos falharem, ai de nós! Mas em compensação, as riquezas que nos esperam servirão para nos animar. Va­ le a pena arriscar! - Liqüidar com o sujeito é para mim mais im­ portante do que apoderar-me de seus tesouros, embo­ ra não diga que despreze a êstes. Se formos bem suce­ didos, ficaremos muito ricos. Escuta bem, Orso: ves­ tiremos os ricos trajes de Teobaldo. Tu usarás o seu cordão de ouro; eu ficarei com a cruz cravejada de bri­ lhantes. Depois, com tôdas as riquezas que arrecadar­ mos, iremos para outros países, onde seremos recebi­ dos como grandes senhores! - Tudo isso está muito bem - replicou Orso - mas o diabo é que tudo deve dar certo, como combinamos. - O quê? Estás com mêdo, por acaso? Não é perfeito o nosso plano? Não temos gente de confiança pelas redondezas? Bastará acender três luzes na janela do quarto dos romeiros, que logo virão em nosso auxílio sete dos mais robustos -:ompanheiros. Havemos de https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMTD '11 fazê-los entrar pela porta do jardim, que é fácil de abrir por dentro. Além disso, um dêles conhece perfeita­ mente todos os recantos do castelo. E é claro que nós, sendo nove, bem armados e prevenidos daremos per­ feitamente conta de homens que dormem. Não tenho a menor dúvida: seremos bem sucedidos. O bom Leonardo estava frio de terror ao ouvir semelhantes palavras; mas se mostrava muito despreo­ cupado, fingindo não entender uma única palavra do que diziam os dois bandidos. Assobiava, colhia flôres da beira do caminho, caminhava sem dizer palavra. Tomara a resolução de acompanhar os dois até Falken­ burgo, para poder contar ao dono do castelo os infer­ nais planos dos falsos romeiros. Foi então que um dos bandidos tropeçou e quase afundou num precipício. Se isso não aconteceu, foi simplesmente por ter a sua roupa ficado prêsa a uns arbustos das bordas do abismo. Mas o incidente ser­ viu para revelar por baixo da roupa de romeiro, uns trajes vermelhos e uma couraça polida de ferro. O ou­ tro, correndo para socorrer o companheiro, dei.'!:ou cair um punhal, que imediatamente foi escondido. Mas Leonardo fingiu nada ter percebido, e assim prossegui­ ram viagem. Dentro em pouco chegaram perto de outro terrí­ vel abismo, no fundo do qual corria um rio, cujas águas tinham sido muito aumentadas pelas chuvas dos últi­ mos dias. Servia de ponte um longo pinheiro; era uma passagem excessivamente estreita. Então o bandido mais velho disse ao outro: - Pode ser que êste rapaz tenha visto a minha armadura e o teu punhal; talvez esteja desconfiado. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br '12 CONEGO SCHMID Quando atravessarmos a ponte, dar-lhe-emos um em­ purrão, para que caia no abismo. Assim estaremos em maior segurança. Ouvindo aquilo, o pobre Leonardo tremia de mêdo; parou a pequena distância do precipício, e excla­ mou, espavorido: - Eu não ouso atravessar essa passagem. Senti­ ria vertigens! Mas o bandido mais velho replicou: - Ora essa, meu rapaz! Não tenhas mêdo. Vem cá, que te carrego! ... Leonardo recuava, recuava, até que atingiu o bosque. Ali chegando, pôs-se a dizer em voz chorosa: - Por favor, deixe-me!. .. Ddxe-me, pelo amor de Deus!. .. Poderíamos cair os dois juntos. E depois, como conseguiria eu voltar? Deixe-me voltar para casa. Os senhores não precisarão mais de guia; o atalho continua logo ali adiante e o castelo não fica longe daqui! ... O bandido mais môço atribuía o terror de Leo­ nardo à visão do precipício. Disse ao companheiro, co­ mo sempre, falando em italiano: - Que eu caia no abismo se êste palerma viu a arma ou a couraça; embora tivesse visto, não entende a nossa língua, de modo que não saberá quais são os nossos projetos. E além do mais, se entendesse, o que eu duvido muito, quem iria acreditar cm suas palavras? Deixa que se vá o pobre diabo!. . . Repara como está branco o poltrão!. . . - Está bem - acudiu o outro- está bem. Mas, para maior garantia, vamos derrubar esta ponte, de modo que, se o sujeito descobriu nossos planos, não https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 73 poderá dar com a língua nos dentes e prejudicar nos­ sos projetos. Ali está Falkenburgo; não existe em lé­ guas ao redor uma única ponte que lhe sirva de passa­ gem, para chegar ao castelo e daí estragar-nos com a festa. Em seguida, tomando de seus bordões, deixaram que o rapaz se fôsse embora. Quando chegaram ao outro lado do abismo, disse um dêlcs: - Tinha razão aquêle palerma; é uma passagem verdadeiramente perigosa. Além disso, a madeira dês­ te pinheiro está meio podre, e ainda poderá al guém que passar por aqui, despenhar-se no precipício ... Para que isso não aconteça - acrescentou, com um riso mau - vamos dar cabo desta ponte perigosa. Assim falando, tirou do lugar o pinheiro, fazen­ do-o precipitar-se no fundo do abismo, onde as águ as da torrente o levaram. Puseram-se de nôvo a cami­ nho, desaparecendo por detrá� de um rochedo. Quan­ to a Lonardo desatou em desabalada carreira, para ir contar a D. Rosalinda o que ouvira, revelando os sinis-. tros planos dos falsos romeiros. * * * A nobre senhora encontrava-se bem tranqüila em, seu castelo, e nem por sombra poderia supor quais os perigos que ameaçavam seu protetor e sua família. Ema não se cansava de repetir as narrativas dos dois romeiros, e, trabalhando perto da mãe, fazia-lhe cons7 tantes perguntas sôbre o que ouvira na noite anterior., À tarde, abrandando o calor, descera.n ambas para d vale, a fim de visitar os trigais. Estes se mostravam- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br .,. eo N E G o s e H M I D magnificamente desenvolvidos, prometendo excelente colheita. Assim aproveitavam a tranqüilidade da tarde, quando viram chegar Leonardo, espavorido e quase sem fôlego, gritando de longe: - Ai, que desgraça, minha senhora! Que triste , • 1 noucia .... E depois, quando chegou mais perto: - Os dois romeiros . . . para os quais servi de guia . . . não são romeiros, não ... , são bandidos! ... Querem assassinar o cavaleiro Teobaldo e tôda a gente do castelo!.. . Querem roubar tudo e pôr fôgo à ca­ sa! ... Mais não pôde dizer, tão cansado e sem fôlego se encontrava. Caiu por terra sem sentidos, e ali ficou muito tempo antes de voltar a si. D. Rosalinda e Ema atarantadas e trêmulas, mal sabiam que fazer. Por fim a senhora exclamou: - Minha filha: corre depressa ao castelo, reúne . todos os criados. Dize-lhes que arreiem os cavalos, que vão à tóda brida a Falkenburgo, mesmo com o sa­ crifício dos animais. Ema chegou ao castelo em poucos instantes, reu­ nindo imediatamente todos os criados, aos quais trans­ mitiu as ordens de sua mãe. Todos se puseram a lasti­ mar, como se êles próprios se achassem em perigo. Logo depois chegava D. Rosalinda, acompanhada de Leonardo, que lhe explicara melhor tudo quanto ou­ vira durante o trajeto. - Que estão vocês fazendo aí, que não montam imediatamente e não se põem a caminho? Vamos, não há tempo a perder! ... https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 71 É impossível minha se­ nhora - respondeu o antigo escudeiro de Aldrich - os dois malfeitores já devem estar _rpui�2 � '- r to longe; talvez já tenham che­ gado a Falkenburgo; enquanto que nós teremos que percorrer quinze léguas para lá chegar. Além do mais, já é noite e as es­ tradas estão quase inutilizadas pelas chuvas. Com o melhor cahttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br 78 CONEGO SCHMID valo do mundo ninguém chegaria a Falkenburgo antes da madrugada. Nossos cavalos são todos da lavoura, os corcéis de batalha foram todos vendidos depois da mone do senhor Aldrich. Mas mesmo que não o fôs­ sem, pouco adiantaria; não há um só cavalo em todo o país que aguentasse ir até lá no tempo necessário. A pobre senhora torcia as mãos de desespêro, e exclamava, sem cessar: - Oh! Meu Deus! Minha querida Ema, roga a Deus que destrua o projeto dos bandidos! E vocês, quaisquer que sejam as dificuldades, que fazem que não se põem a caminho? Uma única palavra chegaria para salvar Teobaldo e sua família. Tu, Martinho acrescentou, falando a um criado mais môço - que és jovem e tens boas pernas, vai depressa. Vai pelo ata­ lho que conheço, que assim encurtarás o percurso de um têrço; dou-te cem florins, se o fizeres. - É impossível, minha senhora - respondeu o criado - quem é que poderia achar o caminho com esta escuridão, no meio do mato, tendo ainda que atra­ •ressar um precipício medonho? - E depois - acrescentou Leonardo, cheio de tristeza - a ponte sôbre o precipício foi destruída. Se­ riam precisas asas para atravessar aquêle ponto. - ASAS! - repetiu Ema, a quem de repente ocorrera uma idéia. - O cavaleiro Teobaldo recomen­ dou-me que mantivesse prêsa a pombinha nos primei­ ros tempos, pois em caso contrário ela voltaria a Fal­ kenburgo!. . . Vamos atar-lhe um bilhete ao pescoço, que ela se incumbirá de dar o aviso! - Louvado seja Deus! - exclamou D. Rosalin­ da - Deus atendeu aos nossos rogos. Minha querida https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMJD .,., Ema, foi um anJo quem te inspirou tão engenhosa idéia; vamos pô-la imediatamente em execução! ... Enquanto D Rosalinda escrevia o recado, Ema foi buscar o passáro, a cujo pescoço se atou o precioso bilhete. Em seguida seguiram todos para o terraço, on­ de foi dada liberdade à pombinha. Esta, assim que se viu livre das mãos da menina, começou por ganhar al­ tura. Depois voou para cá e para lá, um pouco deso­ rientada; finalmente encontrou o rumo desejado, e pôs­ -se a voar na direção de Falkenburgo. Tinham todos estado em silêncio durante aquêles instantes de incer­ teza; agora uma súbita alegria invadia os corações da quantos apreciaram a cena. Faltava apenas fazer votos e preces para que a ave chegasse a tempo ao castelo de Falkenburgo: e se pode garantir que nunca nenhum navio carregado de ouro, ao deixar o pôrto, foi acompa­ nhado com mais ardentes desejos de boa viagem. Não obstante D. Rosalinda e a filha sempre per­ maneciam na maior inquietação. Chegaria a pomba a Falkenburgo? E se caísse nas garras de algu ma ave de rapina? Se não suportasse a viagem? Se chegasse mui­ to tarde? Se não pudesse entrar no castelo? Assim ficaram as duas longamente fitando o céu na direção do castelo vizinho, e mergu lhadas nas suas dúvidas e meditações. De modo que notaram, de re­ pente, um grande clarão no céu ... Seria um incêndio� Teriam os bandidos?. . . Não, não era um incêndio, era simplesmente a lua cheia que acabava de aparecer por detrás das florestas distantes. Mais tarde resolveram recolher-se. Mas pouco ou nada conseguiram dormir. E finalmente o dia nasceu. Ambas voltaram os olhos para o céu esperando de Deu!! https://alexandriacatolica.blogspot.com.br '11 CONEGO SCHMID que nada de mau tivesse deixado acontecer aos amigos distantes. * * * Já sabiam D. Rosalinda e a filha que os bandidos não haviam reduzido a cinzas o castelo de Falken­ burgo; mas sua inquietação permanecia a respeito da vida do cavaleiro e sua família. Com que alegria rece­ beriam naquele momento notícias de seus bons ami­ gos! Porque, como era natural, não poderiam nem ao menos imaginar o que sucedera em Falkenburgo no decorrer da noite anterior. Eis o que aconteceu: Na véspera, à tarde tinham ido alegremente para mesa o cavaleiro Teobaldo, D. Otília e a jovem Inês. O sol despedia os seus últimos raios, quando lhe vieram anunciar a chegada dos dois romeiros. O cavaleiro deu ordens para que os recebessem. E acrescentou: - Depois du jantar irei vê-los. Convém que lhes sirvam garrafas de vinho, para que soltem a língua e se mostrem dispostos a falar bastante. Tcobaldo e a mulher estavam longe de imaginar que horrível desgraça os ameaçava, quando de repente, Inês exclamou admirada: - Olhem, olhem, a minha pombinha! De fato, ali se achava o passarinho, pousado na janela, de asas abertas, batendo com o bico na vidraça, como que pedindo que a abrissem. - Vejam que traz alguma coisa amarrada ao pes­ coço - acrescentou a mãe. - Ah! É um pedaço de papel enrolado! Se não me engano, é uma carta. Que idéia têm estas crianças ... O cavaleiro examinou o papel com tôda a atenção. Por fora liam-se as seguintes palavras: "LEIA IME- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 79 DIATAMENTE". :Êle abriu, correu os olhos no que havia escrito ali e mudou de côr. - Que houve? - perguntaram, quase ao mes­ mo tempo a mãe e a filha, muito assustadas. Teobaldo leu em voz alta: "Mui nobre senhor: os dois romeiros que de­ vem chegar esta tarde ao vosso castelo são dois bandidos da grande quadrilha por vós dispersada. O mais velho chama-se Lupo e o mais môço, Orso. Trazem couraças e punhais escondidos por baixo da roupa de romeiro. Esta noite tentarão assassi­ nar o nobre cavaleiro, bem como todos quantos aí se encontrarem. O fito dêles é saquear o castelo para em seguida reduzi-lo a cinzas. Com vossas magníficas roupas, vosso cordão de ouro e vossa cruz craveiada de brilhantes pretendem passar, de então por diante, por grandes senhores. Três ve­ las acesas na ;ane_la do quarto dos romeiros será o sinal para que outros bandidos venham em auxílio déles, quando todo o castelo estiver mergulhado no silêncio da noite, sendo que os dois bandidos fantasiados de romeiros se encarregarão de abrir a porta do iardim para os companheiros de fora. Deus queira que a pombinha chegue a tempo e que todos se salvem! Envio-lhe o aviso dêste mo­ do porque não dispunha de outro meio. Mande imediatamente avisar que se salvaram, servindo-se de um portador a cavalo. Sua reconhecida. Rosa/inda". https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 80 CôNEGO SCHMID - Ó Deus de bondade! Que milagre! - disse D. Otília muito comovida. A pomba é uma mensa­ geira do céu, como aquela que levou a Noé na arca, o ramo de oliveira. Graças vos sejam rendidas, meu Deus! Teobaldo não perdeu tempo. Disse à mulher e à filha que entrassem num quarto vizinho, vestiu a cou­ raça, mandou chamar servidores para perto de si e em seguida deu ordem para que mandassem subir os romei­ ros. Entraram êstes na sala, com maneiras humildes, fazendo respeitosas reverências. Lupo, com fingida polidez e sorrisos bem ensaiados, avançou uns passos e declarou: - Generoso cavaleiro, viemos do castelo de Hohenburgo, onde os seus habitantes nos incumbiram de saudar-vo:;, bem como à vossa família. Considera­ mo-nos felizes por conhecer pessoalmente o ilustre ho­ mem, cujas façanhas heróicas são hoje conhecidas em todo o mundo, que é adorado pelas viúvas, pelos ór­ fãos, pelos desprotegidos. Dona Rosalinda não cessa de elogiar-vos. Sua filha Ema é um verdadeiro anjo, que chorava de emoção quando lhe fizemos a narrativa da nossa romaria. Recomendou-nos a môça que dissés­ semos que a pombinha gozava de boa saúde. O cavaleiro Teobaldo, ouvindo aquelas lisonjas e sabendo, como sabia, o que se escondia por detr�� de tão gentis palavras, dirigiu-se gravemente aos visitames e perguntou-lhes: - Quem são vocês? https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CO NTOS D E SC H M I D 81 - N6s somos pobres romeiros - respondeu Lupo. - Vimos a Terra Santa e voltamos para a Turín­ gia, onde nascemos. - Como se chamam? - tornou Teobaldo.. - Eu me chamo Herman - disse Lupa. Êste aqui ( e apontou o companheiro) é meu jovem primo Burckard. - Que querem vocês no castelo? - Pedimos agasalho por uma noite - disseram ambos, inclinando-se. - Amanhã, ao romper da alva, haveremos de part:r. Como ficarão contentes os nos­ sos, quando nos virem regressar! - Mentira! - gritou o cavaleiro em voz trove­ jante. - Tu, meu bandido, chama-te Lupa; o jovem patife é Orso. Não vêm de Terra Santa alguma, não são romeiros nem são de Turíngia alguma! São simples assassinos e incer,diários. Não vieram procurar agasa­ lho, mas assassinar os habitantes daqui, saquear e in­ cendiar o castelo. Por isso, irão receber a recompensa que merecem. Então? Queriam usar minhas roupas. exibir minhas condecorações, meu cordão de ouro, não é? Fêz uma pausa. Depois se dirigiu aos guardas: - Vamos: arranquem as roupas dêstes patifes, tirem essas falsas vestimentas, para que apareçam os seus verdadeiros trajes! Desarmem-nos e levem-nos para a enxovia da tôrre! Os criados obedeceram, de modo que por baixo das roupagens de romeiros surgiram as couraças e os punhais de que se achavam armados. A seguir os leva­ ram, aos empurrões, para a prisão do castelo, isso de- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 82 CONEGO SCHMID pois que o dono do castelo lhes atirou no rosto as pala­ vras que mereciam, pelo seu vil procedimento. Quando se viram a sós, voltou-se o bandido mais jovem para o companheiro: - Como é que o cavaleiro pôde saber de nossos projetos, em todos os seus pormenores? :Êle sabe até o que dissemos quando viemos para cá, até que preten­ díamos usar suas roupas e passar por nobres cavaleiros! Teria o rapaz que nos acompanhou compreendido a nos­ sa língua, apressando-se em nos denunciar? - Compreender, podia - respondeu Lupo. Mas chegar ao castelo é que não chegou. Não despre­ guei os olhos da ponte levadiça, e posso garantir que ninguém entrou no castelo depois de nós. A menos que êle tenha entrado pela janela. . . O fato é que em tu­ do isto há qualquer coisa de extraordinário. Teobaldo deve ter partes com o diabo. - Depois proferiu uma série de pragas e maldições contra o dono do castelo, contra todos quantos ali viviam. - Maldito! Foi a cau­ sa de nossa desgraça! É que Lupo, endurecido no crime, não se dava conta de que, êle sim, durante a vida causara inúmeras infelicidades com os crimes que cometera. Quanto ao bandido mais jovem, pôs-se a arrancar os cabelos e a lamentar-se: - Ah!. . . Se eu ao menos tivesse deixado de acreditar em tuas promessas! Prometidas honrarias e riquezas; e agora, não sei que terrível destino me espe­ ra! . . . Bem que uma voz cá dentro me dizia que de­ via recuar, se não quisesse ser castigado por meus cri­ mes!. . . Dos tesouros que me apoderei, nada mais resta; se eu tivesse preferido viver honradamente Jo https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SC HMID https://alexandriacatolica.blogspot.com.br � 84 C0NEGO SCHMTD trabalho, estaria agora bem tranqüilo, em minha aldeia, sem ter nada o que temer! Enquanto os bandidos assim se exprimiam, Teo­ baldo tomava as suas medidas para agarrar os cúmpli­ ces, que deveriam chegar à noite. Distribuiu os seus homens de forma conveniente e, à hora marcada, man­ dou acender as três luzes na janela do quarto destinado aos romeiros. Assim preparados, ficaram em silêncio, esperando. Já havia passado a meia-noite, e os homens do castelo começavem a perder a paciência. Seria um trabalho perdido, se os bandidos descofiassem de al­ guma coisa. - Tenho a idéia de disfarçar-me de romeiro disse o guarda-portão. - Assim mais fàcilrnente os as­ saltantes cairão na cilada; com essa vestimenta, pensa­ rão que sou um dêles. Saiu para voltar logo depois, devidamente disfar­ çado, trazendo na cabeça um chapéu enfeitado de con­ chas, recomendando aos companheiros que se escon­ dessem por detrás das colunas e esperassem. Por fim ouviram bater de leve na portinha do jardim. O guar­ da-portão foi abri-la. - Chegamos a tempo? - perguntou um dos bandidos que ali estavam. - Sim; chegaram a tempo. Mas não falem, e entrem todos. Quanto menos ruído, melhor - sussur­ rou o guarda-portão. Deslizaram uns atrás dos outros. Estavam todos armados de punhais, traziam enxôfre e tochas para atear fogo ao castelo. Quando o guarda-portão fechou o por­ tão, fêz um sinal para os seus companheiros, que esta­ vam escondidos atrás das colunas. Eles se precipita- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 115 ram sôbre os bandidos, que, desprevenidos, nada pu­ deram fazer. Enquanto Teobaldo chegou, acompanha­ do do restante dos seus homens, foram os assaltantes acorrentados e trancafiados na prisão. Por seu lado, D. Rosalinda e Ema esperavam an­ siosas e mesmos bastante inquietas, que chegassem notí­ cias de Falkenburgo. Mais de vinte vêzes a jovem subiu ao alto da tôrre, para ver se se aproximava algum men­ sageiro. E nada! Já era de tarde quando percebeu ao longe uma carruagem escoltada por grande número de cavaleiros. Cheia de satisfação, correu a avisar a mãe: - Mamãe!... Mamãe!... São êles mesmos que vêm!.. . Tenho a certeza de que são êles mes­ mos!... De fato, Teobaldo, Otília e Inês tinham-se pôsto a caminho para irem pessoalmente levar a Hohenburgo a feliz notícia da sua salvação. Logo que o cavaleiro avistou D. Rosalinda e a filha, apeou do cavalo.D. Otí­ lia e Inês desceram da carruagem e vieram cumprimen­ tar e agradecer às suas benfeitoras, tudo isso no meio de tais transportes de alegria que mal se pode descre­ ver. A satisfação fazia com que dirigissem, uns aos outros, mil perguntas, enquanto subiam a encosta que ia terminar no castelo. O acontecimento foi festejado por um grande banquete. Leonardo, que servia a mesa, foi obrigado a repetir tudo quanto sabia. Contou tudo minuciosamen­ te, acrescentando que escapara com vida graças ao ban­ dido mais môço, e portanto, pedia que a êste fôsse des­ tinado o castigo mais suave. No fim do banquete, Teobaldo ergueu sua taça para saudar Ema, declarando que, sem a feliz idéia da https://alexandriacatolica.blogspot.com.br M CONEGO SCHMID menina, não saberia o que a êle e a família teria suce­ dido. Ema respondeu com modéstia, declarando que nido se devia à Inês, que se privara da pombinha, para agradar à amiga. Tomou então a palavra a dona do castelo, dizendo que deviam em primeiro lugar agradecer a Deus e de­ pois a Leonardo, que tanto fêz, e até arriscou a vida para salvar a família de Teobaldo. - Sim - disse o bravo cavaleiro, apresentando uma taça a Leonardo - bebamos à noss:1 saúde. É pre­ ciso que sejas elevado um dia a escudeiro, pois o teu coração fiel te faz digno do direito da nobreza. - E ao bom cavaleiro Aldrich - acrescentou D. Otília, devemos lágrimas de reconhecimento, por ter rido a piedosa e feliz idéia de trazer para junto de si êste bom Leonardo, que Deus sempre proteja! Enquanto isso, Inês levantara-se da mesa e desa­ parecera. Dentro de pouco, apresentava a pombinha branca, que trouxera de Falkenburgo. E entregou à amiga a avezinha, que trazia no bico um ramo de oli­ veira de ouro. - Minha querida Ema - disse D. Otília - acei­ te êste ramo de oliveira, como lembrança da nossa sal­ vação. Foi minha mãe que mo deu, para recompensar o meu zêlo. Agora quero que o guarde, como lem­ brança dêste dia feliz. Estavam todos comovidos. E então, por sugestão da dona do castelo, resolveram encerrar as comemora­ ções, elevando em conjunto preces ao Senhor, que os s:1lvara no momento preciso em que se arriscavam a sofrer grandes e irreparáveis desgraças. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br A CAPELINHA DA FLORESTA https://alexandriacatolica.blogspot.com.br Conrado Ehrlieb, môço robusto e cheio de vida, depois de terminar com êxito o aprendizado de funilei­ ro, viajara três anos, para aperfeiçoar-se em seu ofício. Simples, mas decentemente trajado, caminhava pela estrada, trazendo às costas uma pesada malinha e nas mãos um grosso bordão. Assim viajara horas e ho­ ras, até que se embrenhou numa espêssa floresta. Inu­ tilmente tentou atravessá-la. Por muito tempo errou por entre as árvores, sem encontrar o menor vestígio de estrada ou atalho. E o sol já se ia escondendo por detrás das montanhas vizinhas, quando avistou a tôrre de uma pequena capela, meio oculta pelos ramos de um grupo de pinheiros. Encaminhou-se para aquêle lado, atingindo um pequeno atalho, que o levou à porta da igrejinha edi­ ficada numa pequena elevação do terreno. Foi então que se lembrou das palavras, que seu pai sempre repe­ tia: "Se depender de ti, meu filho, nunca passes por uma igreja aberta sem entrar e fazer as tuas orações''. Assim foi que Conrado penetrou na capelinha, cuja porta se achava aberta. E ao deparar com as som­ brias abóbadas, com as paredes enegrecidas pelo tem­ po, sentiu-se súbito voltar a anos, a séculos atrás. Reinava o mai,; absoluto silêncio no interior do pequenino templo. Conrado dirigiu-se ao altar-mor, e ali fêz a Deus uma ardente súplica. Ia retirar-se, para o que pretendia recolher a malinha e o bordão, que lhe haviam ficado ao lado, quando, ao levantar os olhos, notou na semi-obscuridade uma linda pintura. Chehttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br 90 CONEGO SCHMIC. gando mais perco, viu sôbre o altar um bonito livro de missa, encadernado de marroquim vermelho, com bor­ das douradas. Tomou-o nas mãos, abriu-o, e qual não foi a sua suprêssa, ao ler, na primeira página, o seu pró­ prio nome, escrito pelo seu próprio punho! Sem compreender nem acreditar no que seus olhos viam, percorreu todo o livro, reparando nas ima­ gens dos santos e nas orações ali contidas, rujas passa­ gens êle as conhecia tão bem. Sem dúvida que o livro lhe era familiar; mas, como viera parar ali, no meio daquela espêssa floresta, em cima do altar-mor de uma pequena igreja desconhecida? Isso Conrado não conse­ guia entender. Mil recordações da infância lhe vieram então ao espírito; e um desejo ardente de rever a família, ou pelo menos de ter notícias dela se apoderou de c;ua alma, enquanto que lágrimas abundantes lhe corriam pelas faces. - Ó meu Deus, que bons pais me destes! exclamou êle. - Como eram felizes os dias que passava junto dêles e de minha irmã! E quanto tempo se pas­ sou depois dessa desastrosa guerra que nos levou para fora da pátria e nos separou uns dos outros! Há anos minha mãe morreu na miséria, e suas mãos, que me <leram êstc livro, repousam hoje imóveis na sepultura. E meu pai, de quem há anos não tenho notícias? Teria morrido também, depois de tantos sofrimentos? Por onde andará minha irmã? Estará viva ainda? Nada sei. Isolado das pessoas que amo, ando só pelo mundo. Ah, meu Deus, se meus parentes ainda vivem, levai-me depressa para junto dêles! https://alexandriacatolica.blogspot.com.br co��TOS DE SCHMID https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 91 82 CONEGO SCHMID Assim orou Conrado durante muito tempo, de­ pois, levantou-se, disse consigo: - Não me atrevo a levar êste livro comigo; não sei se ainda posso considerá-lo como sendo meu. Tal­ vez alguém o esquecesse aqui e volte para buscá-lo. O melhor é sentar-me e esperar. Efetivamente, pouco depois de tais palavras, no­ tou que entrara no templo uma menina de seus dezes­ seis anos. Havia nela um todo de simplicidade, e embo­ ra suas roupas fôssem pobres, eram asseadas. Aproxi­ mou-se do altar, com profundo respeito, e depois excla­ mou, num suspiro: -Quanto sofro por havê-lo perdido, meu Deus! Era tudo quanto tinha de mais precioso neste mundo! Dispunha-se então a partir, quando Conrado, cuja presença ali ela não percebera, aproximou-se e lhe dis­ se, mostrando-lhe o livro: - Foi sem dúvida a menina quem esqueceu êste livro sôbre o altar? - Fui, sim senhor - respondeu a jovem, mui­ to contente. - Pode ver que na primeira página está escrito "Conrado Ehrlieb". - Pelo que vejo, êste livro tem para a menina um valor muito grande. Seria indiscreção de minha parte perguntar-lhe por quê? O nome de Conrado Ehrlieb é muito meu conhecido. Posso dar-lhe notícia dessa pessoa, se quiser. - Seria um grande favor, uma grande bondade sua - respondeu o jovem. - Conrado Ehrlieb é pa­ rente meu; muitos viajantes me têm dito que o viram em diferentes localidades, mas infelizmente tais notíhttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DF, SCHMID 93 cias jamais puderam ser confirmadas; talvez se tratasse de outra pessoa, com o mesmo nome. Por isso, acho que lhe devo contar parte de minha história; assim saberemos se é mesmo o Conrado que o senhor co­ nhece. E começou: - Meu pai estava empregado do outro lado do Reno. Sobreveio a guerra, o país foi ocupado pelas tropas inimigas, e êle foi obrigado a abandonar o país. Seu chefe, que também perdera tudo quanto possuía, estava impossibilitado de ajudá-lo, e no meio de tantas desgraças e sofrimentos, faleceu minha mãe. Ficamos numa situação bastante difícil. O faleci­ mento da espôsa foi para meu pai um golpe terrível. Ficando só com as duas crianças, como poderia êle con­ tinuar a viagem em busca de emprêgo? E como um habitante da localidade, um honesto caldeireiro, que não tinha filhos, se oferecesse para ficar com meu irmão sob sua guarda, meu pai aceitou e continuou a viagem, levando-me em sua companhia. Pusemo-nos a caminho, fomos para muito longe. Mas logo meu pai caiu doente, falecendo em poucos dias. Quanto a mim, ainda muito pequena, fiquei só, mas ainda tive a felicidade de ser recolhida por uma viúva, senhora boa e carinhosa, que tomou conta de mim. Desde então passaram-se dez anos; e nunca mais tive notícias de meu irmão. Foi assim que meu pai, embora já muito fraco, pe­ diu, na mesma noite em que morreu, para falar com o dono da casa em que estávamos morando. Quando êste o atendeu, pediu-lhe que comunicasse o seu falecimentr https://alexandriacatolica.blogspot.com.br IM CôNF.GO SCH'1TO ao filho e lhe transmitisse a sua bênção, suplicando ao caldeireiro que se fizesse protetor do rapaz. O enderê­ ço de meu irmão foi escrito num papel; mas uma desas­ trada empregada, ao fazer a limpeza, dias depois, pen­ sando que aquilo nada valesse, queimou o papel. Meu Deus! Quantas e quantas vêzes não pensei em meu irmão! Então Conrado, com voz trêmula e olhos cheios de lágrimas, interrompeu-a: - Oh, como são maravilhosos os caminhos de Deus! ... Minha cara menina! Diga-me: o seu nome, por acaso, não é Luísa? - Chamo-me Luísa Ehrlieb, sim senhor - res­ pondeu ela com surprêsa. - Olhe então bem para mim, Luísa, e que a minha mão aperte a sua. Quem escreveu seu nome neste livro fui eu, êsse é o meu nome. Sou eu o seu irmão Conrado! A menina custava acreditar no que ouvia; estava tão comovida quanto o irmão, e juntos derramavam lágrimas de contentamento. E assim foi que rende­ ram graças à Providência, que lhes proporcionara o tão almejado encontro. Depois Conrado prosseguiu: - Minha boa irmã, ainda me lembro do momen­ to em que me despedi de você. Uma família estrangei­ ra, que, como nós, fugia do inimigo, ofereceu a meu pai para levá-la de carro até a cidade próxima. Meu pai, vendo como você estava cansada, aceitou, e conti­ nuou o resto do caminho a pé. Parece que ainda a vejo, tôda contente, subir para a bonita carruagem, enquan­ to que eu chorava por a ver partir tão depressa. Você https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 95 era bem pequena; mas, como cresceu depois! Como me sinto feliz por encontrá-la de nôvo, tão mõça, tão cheia de saúde! Jamais poderia reconhecê-la, minha irmã. Louvado seja Deus, que enfim nos tomou a reunir! Ah! - cotinuou êle - quantos sentimentos se agitam em mim neste momento: o contentamento de havê-la encontrado, a tristeza de saher que, conforme c:u pensava, meu pai já não existe. Você não pode imagi­ nar quantos sofrimentos padeci durante todos êstes anos, principalmente quando me vinham dizer que meu pai me abandonara, que s6 quisera ficar livre de mim, e por isso me confiara ao caldeireiro. Agora vejo que eu é quem tinha razão, quando não acreditava em semelhantes palavras. Só você sabe o quanto nosso pai era bom e religioso. - Quem melhor do que eu pode saber disso? replicou Luísa. - Nunca me esquecerei da noite em que êle morreu. Chamou-me à sua cabeceira, e como me comoveram as suas últimas palavras! Parece-me ainda vê-lo a dar-me a sua bênção com a mão moribun­ da e aquêle semblante, que não mais parecia perten­ cer a êste mundo, que era a imagem de um santo! - Ainda há pouco, ao passar por esta igrejinha, lembrei-me dêle, que sempre me dizia: "Nunca pas­ ses num lugar consagrado a Deus sem entrar". E na derradeira vez em que passamos por um dêsses sagra­ dos lugares, entra.mos juntos. Meu pai fêz as suas ora­ ções e depois me disse: "É provável que eu não viva muito tempo mais, que me vejas hoje pela última vez. Que os meus últimos conselhos te fiquem gravados no https://alexandriacatolica.blogspot.com.br te CONEGO SCHMTD coração e não te esqueças de ser o arrimo de tua irmã, repartindo com ela o fruto do teu trabalho. Dá-me a tua mão, Conrado; prometes-me o que te peço?" Mandou-me ajoelhar, ergueu os olhos para o céu e deu-me a sua bênção. Depois que nos levantamos, 4braçou-me cc.,m ternura, deu-me o pouco de dinheiro :fe que podia dispor e só conseguiu pronunciar estas palavras: "Que Deus esteja contigo!" Hoje, quando entrei nesta capela, tôdas essas re­ cordações me assaltaram o espírito; pareceu-me ainda vê-lo ajoelhado, rezando. Oh, como me sinto feliz ao saber que meu pai não se esquecera de mim! Que na hora da morte me abençoou! - Sim, meu querido irmão, Deus é milagroso. Foi êle quem me fêz vir aqui e esquecer o livro de ora­ ções sôbre o altar. Foi Êle quem dirigiu para cá os seus passos, quem o fêz esperar até que eu voltasse. Êle quis reunir diante do altar os dois irmãos há tanto tempo separados. Rendamos graças a Êle, pelo que acaba de fazer, prometamos voltar aqui muitas vêzes, pela graça de nos haver reunido! Assim fizeram. Depois Conrado perguntou à irmã: - Mas diga-me uma coisa, Luísa: Como veio você aqui? Não tem mêdo de vir sozinha ao meio des­ ta espêssa floresta? - Não estamos tão longe de lugares habitados. O bosque acaba muito perto daqui e o caminho da capelinha é bastante freqüentado. Esta igrejinha é o lugar de minha predileção. Quando faz bom tempo, na primavera e no verão, é êste o meu passeio preferi- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS OE SCHM[D 97 do Também venh() aos domingos e nos dias de sema­ na, quando me sobra tempo depois do trabalho. O caminho é muito bonito, e como é agradável caminhar por baixo destas �-vores imensas! Quase sempre vem comigo uma de m:1 ilias amigas, filha de um respeitável homem do lugar; não veio hoje, por estar muito ocupada. Sempre u,agd,·êste livro de orações, e o sei quase de cor. Muitas vêzes nesta capela pedi a Deus para encon­ trar meu irmão. Agora vejo que não foi por acaso que o esqueci aqui; foi Deus quem o quis, para me trazer ao encontro de meu querido irmão. - Pois eu estava um pouco preocupado por en­ contrar-me perdido no meio da floresta, e no entanto, foi graças a isso que pude rever minha irmã. Eis como Deus transforba as nossas tristezas em fontes de ale­ gria! Mas, onde é que você mora, minha irmã? - Pertri daqui, do outro lado do morro, numa aldeia chamac\a Schoemborn; é onde reside· a digna se­ nhora que rrié adotou. Não tem filhos; é a viúva de um rico negociante. Estima-me como se fôsse sua filha - explicou Luísa. - Mas, vamos para casa. Minha nova mãe há de ficar muito contente ao conhecer meu irmão, cuja sorte tantas vêzes lamentamos e chora­ mos juntas. Logo se puseram a caminho. Conrado, embora estivesse muito cansado, não consentiu que a irmã lhe carregasse ;a mala. Foram conversando sôbre mil pe­ quenas coi.;as, e assim chegaram à aldeia em que Luísa residia. />t mãe adotiva desta ficou muito espantada ao ver a jovr.m chegar acompanhada de um estrangeiro. mas em compensação foi inexprimível a satisfação qul' https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 98 CONEGO SCHl\41D sentiu ao saber que se tratava do irmão de Luísa. Cus­ tava-lhe crer em acontecimento tão extraordinário. Logo se viram os dois irmão� cercados de grande número de curiosos. Uns diziam: - Não se pode negar: é ben:i o irmão de Luísa. Olhem como os dois se parecem! Mas outros se mostravam incrtxlulos, sacudiam a cabeça e diziam que não se devia confiar nas palawas de um desconhecido. No entanto tôdas as dúvidas de• sapareceram quando Conrado, tirando do bôlso o seu certificado de aprendiz e um atestado assinado pelo nrra, exibiu tais documentos a quantos pusessem em dúvida a sua identidade. A contentação da mãe adotiva de Luísa era muito grande, e lágrimas de ternura lhe vieI'l'im aos olhos ao conhecer o modo milagroso pelo qual <1s dois irmãos se encontraram. Chamou Conrado e disse-lhe. - Tinha a intenção de deixar "!Sta casa para Luísa, pois vejo que cresce ajuizada, não' tem os modos feios, nem a má conduta de tantas mocinhas que só pensam em vestidos e divertimentos. Mas, isso não há de impedir de fazer alguma coisa por você, bravo Con­ rado. Deus me proporcionou a riqueza para que tives­ se meios suficientes para fazer o bem e tornar felizes os meus semelhantes. O caldeireiro da vila morreu há alguns meses, sua casa está à venda. Vou comprá-la para você, se se sente com vontade de d.mtinuar no seu ofício, a contemo de todos. Essas palavras foram ditas na presençc.1 de muitas pessoas, e, de bôca, em bôca foram parar nos ouvidos dos parentes da digna viúva, todos êles muito ricos, https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 99 mas gente muito interesseira. Logo se apressaram a visitar a nobre senhora, aconselhando-a a desistir do projeto. Ela, todavia, não voltou atrás, e graças a isso, Conrado pôde entqgar-se ao seu trabalho, tornando-se em pouco um do�. profissionais mais conceituados do lugar. Casando-sl, tempos depois, com uma boa mô­ ça de fortuna, tey.; felicidade ainda mais completa. Por seu lado, casou-se Luísa com um honesto ra­ paz, encontrando as venturas a que tinha direito pelas suas virtudes. Pr6spero como estava, não se esqueceu Conrado do caldeireiro que dêle cuidara, que lhe ensinara o ofício. Não se limitou a escrever-lhe agradecendo por todos os benefícios recebidos. Sabendo que o bom homem, enfraquecido pela idade, não mais podia traba­ lhar; que perdera a mulher e não tinha o suficiente para viver corA confôrto, pois muito perdera com a guerra, decidiu-se a ir buscá-lo. Instalou-o em sua casa, e cuidava dêle com o mesmo respeito, amor e de­ dicação que se devem a um verdadeiro pai. Luísa sempre se comportou como filha submissa t: dedicada para com a sua mãe adotiva. De modo que, quando esta e o velho caldeireiro conversavam, costumavam dizer: - Deus não nos deu filhos, mas os que adotamos nos fazem tão felizes, como se fôssem verdadeiros. Na­ da pode e!.ceder os cuidados que nos dispensam, as alegrias que nos proporcionam. Conrado e Luísa fizeram restaurar a antiga capela, enfeitavam-na com flôres, e nos quatro cantos desta plantaram quatro tílias. Mandaram igualmente lim- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 100 C O N E GO S C H M I D par a pintura que ali existia, cujas côres se achavam um pouco desmaiadas pelo tempo; disso incumbiram hábil pintor, que se ofereceu para 1:estaurá-la reconhe­ cendo o valor da obra. A capela tornou-se admiráve� por sua alvura; através dos cristais das vidraças a vistn repousava sôbre o verde frescor das tílias que a sombreavam. O altar tinha o brilho do mármore. Tudo quanto o ornava era rico e simples, mas nada igualava o encanto do qua­ dro da parede. A frescura do colorido, a graça e a bele­ za do desenho deixavam uma doce impressão na alma. Representava o quadro a Santa Família: Nossa Se­ nhora sentada à porta da choupana, com o Menino Je­ sus ao colo. São José apresentava ao menino um cesti­ nho de frutos. Ambos olhavam com ternura para o Divino Filho, e o menino, de mão post, s, parecia con­ templa;:: o céu com recolhimento. Em baixo do quadro se liam, em letras de ouro, as seguintes p.:Javras: "A união, o trabalho, o amor e a piedade são os elementos da verdadeira felicidade". https://alexandriacatolica.blogspot.com.br O CANÁRIO https://alexandriacatolica.blogspot.com.br I No ano de 1793, época em que na França tanta� e tantas famílias es�avarn de luto ou na mais completa miséria, vivia em P:"ris a família d'Erlau. O sr. d'Erlau era um homem de Lom gênio e grande nobreza de alma. Era casado com uma excelente e amável senhora, e ti­ nha dois filhos, Carlos e Lina, que eram a fiel imagem de seus pais. Logo que irrompeu a luta, que à Europa tanto custou em sangue e lágrimas, o sr. d'Erlau dei­ xou a capital, recolhendo-se com a família a uma pe­ quena propriedade que possuía entre o Reno e os Vosges. Ali, na maior solidão passaram a viver no castelo rodeado de rochedos, férteis campos, vinhedos e árvores frutíferas. Alegraram-se os habitantes da vila próxima por os verem ali residindo, pois, ordinàriamente, só permaneciam 'fi..> castelo umas poucas semanas durante o ano. É que o sr. d'Erlau não se cansava de fazer o bem a seus semelhantes. Por outro lado, se aquela re­ gião antes já era um verdadeiro jardim, tantos cuida­ dos lhe dedicou o dono do castelo, que se transformou num paraíso. O sr. d'Erlau considerava-se feliz, rodeado dos fi­ lhos e da espôsa, e como tivesse bastante tempo dispo­ nível, empregava-o na instrução das crianças, a quem igualmente, transmitia os princípios religiosos, que con­ siderava indispensáveis à formação das almas. A se­ nhora d'Erlau companilhava dos sentimentos do mari­ do, e como acompanhasse as lições dos pequenos, não raras vêzes dizia algumas palavras de confôrto, inspira­ Jas pelo seu coração de mãe. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 104 CONEGO SCHMID Além dos conhecimentos religiosos, outros trans­ mitia o sr. d'Erlau a seus filhos, sem desprezar os que servem de pura recreação, e que concorrem para as pu­ ras alegrias da vida. Tanto êle como a espôsa tocavam muito bem piano; por isso, dava1, lições de piano a Carlos, e de canto a Lina. Estavam no fim do inverno, estação em que a música era o deleite principal de tôdas as tardes. O sr. d'Erlau imaginara uma pequena composição religiosa, a que adaptara uma terna melodia, ensaiando os filhos em segrêdo, para fazerem uma surprêsa à mãe, que de­ dicava bom tempo às suas leituras. Assim, quando na­ quela tarde a sra. d'Erlau chegou à sala, Carlos sentou­ -se ao piano e começou a tocar, acompanhando a irmã, que dizia os seguintes versinhos: Como és sábia, ó Providênci•! Eu tenho plena confiança Em teu divinos decretos. Admiro-te a potência, Abençôo-te a clemência, Que me inspira os meus afetos. A noite em abr;go certo Trata Deus de minha sorte; De manhã, quando desperto, Sou feliz, sinto-me forte. Pai terno e caritativo, 'P.le vela o meu futuro; Os dias, meditativo, Passo em descanso seguro! https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CON TOS DE SC H M l D https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 105 106 C ô N E G O S C H M I Il A senhora d'Erlau ficou muito comovida ao ou� vir a delicada composição. Nunca um concêrto lhe de­ ra tanto prazer, nem mesmo os que assistira nos palá­ cios dos príncipes. - Sim - exclamou ela, abraçando os filhos que Deus vele sempre por vocês, como o fêz até hoje! ... Mal acabava ela de pronunciar tais palavras e eis que a porta se abre, dando entrada a um bando de gente armada. O comandante tinha grandes bigodes e espêssas sobrancelhas, sob as quais brilhavam negros olhos ameaçadores. Vinham prender o sr. d'Erlau, que foi recolhido à prisão da cidade, acusado, de ser par­ tidário do rei e inimigo da liberdade. De nada adiantaram as súplicas e as lágrimas da espôsa e dos filhos, cruelmente repelidos. O sr. d'Er­ lau teve que seguir à fôrça e mal teve tempo de reunir alguns objetos para levar à prisão. Entregues à tristeza, quase desesperados, a espôsa e os filhos custaram a acalmar-se. Por fim, a mãe co­ brou um pouco de ânimo. - Tenhamos confiança em Deus, meus filhos, disse ela a Carlos e Lina - É :Êle quem nos manda êstc castigo, para experimentar-nos. :Êle há de nos dar as fôrças necessárias para suportá-lo, e nos há de fazer sair bem daquilo que agora nos parece uma grande infeli­ cidade. Seja feita a sua vontade! I I Logo que se retirou a gente que viera prender o sr. d'Erlau, sua digna espôsa pensou nos meios que poderia empregar para salvá-lo. Foi à cidade apresen­ tar-se aos juízes e levou o nome de todos os habitantes https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SC H M I D 107 das vizinhanças para que servissem de testemunhas de que seu marido vivia vida tranqüila e retirada; não se ocupava de negócios públicos nem dêles falava a nin­ guém. De nada valeram suas súplicas e rogos. Os juí­ zes permaneceram impassíveis, não permitindo nem mesmo que ela fôsse ver o marido na prisão, e ainda lhes ouviu dizer que o sr. d'Erlau dentro de poucos dias subiria ao cadafalso. Quando, três dias depois, voltou para o castelo, encontrou-o cheio de soldados. Tinham-lhe confiscado os bens e saqueado a casa, transformando-a em quartel. Expulsaram-na quando pretendeu entrar, chorando, sem ao menos ter notícias dos filhos. Todos os empre­ gados da casa tinham sido dispersados; era já bem tar­ de e ela nem sabia onde passar a noite, quando encon­ trou o seu velho servidor Ricardo, que lhe disse: - Minha boa senhora, são grandes os riscos que corre. No seu desespêro, declarou que tudo o que fa. ziam era uma escandalosa injustiça, uma grande cruel­ dade. Não há tempo a perder, é preciso fugir imedia­ tamente. É a única salvação que lhe resta; seria peri­ gosíssimo tentar escondê-la. Não pode salvar seu ma­ rido e se ficar mais tempo nestas paragens, pode consi­ derar-se perdida. Seus filhos estão em minha casa. Ve­ nha vê-los. Meu irmão, que é pescador do Reno, já está prevenido. Eu a acompanharei esta noite à casa dêle; assim a senhora poderá atravessar o rio e pelo menos ficará salva. A senhora d'Erlau foi à casa de Ricardo, que mo­ rava pouco além da vila. Mas ali nôvo desgôsto a espe­ rava. Lina caíra doente no dia de sua partida, tamanho fôra o seu desespêro e terror. Quando a mãe chegou, https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 108 CONEGO SCHMID estava com uma febre violenta, a ponto de não reconhe: cer as pessoas que a cercavam. A senhora d'Erlau que­ ria à viva fôrça cuidar da filha; mas o médico que desta estava tratando, disse-lhe que a pequena tinha pouros momentos de vida, e que a presença da mãe em nada poderia valer-lhe. Melhor seria que procurasse salvar­ -se a si própria. Com o coração despedaçado, e o rosto banhado em lágrimas, a carinhosa mãe, pálida e trêmula, estava junto da cabeceira da filha e não se dispunha a partir. O médico empenhou-se de nôvo para que ela se fôsse, tomando-a docemente pelo braço e procurando levá-la para fora do quarto. Mas, imediatamente, entrando a soluçar, avançou para a filha, apertando-a entre os bra­ ços e exclamando, inteiramente tomada pela dor: - Não, minha filha, não te posso abandonar. Minha vida nada significa; quero morrer contigo. O velho Ricardo e sua mulher suplicaram-lhe que partisse sem demora e lhe prometeram velar pela me­ nina, como se fôsse filha dêles. - É noite - disse Ricardo - Com a escuridão a senhora pode perfeitamente fugir. De minuto a mi­ nuto aumenta o perigo. Não é só a sua vida que se acha ameaçada; é a de minha mulher, é a minha, pois está proibido, sob pena de morte, ter estranhos à noite em casa, sem prevenir a polícia. - Se é assim, minha boa e cara Lina - disse a senhora d'Erlau, tôda chorosa - em nada mais te pos­ so ser útil. E como minha permanência aqui ainda po­ deria levar ao patíbulo êstes bons servidores, eu te dei­ xo sob a guarda de Deus. Vai para a morada da paz, https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE S C H M I D 109 onde a inocência deixa de sofrer, ficarás onde os cora­ ções que se amam nunca se separam. O pequeno Carlos, que estava ao lado da mãe, tomou, soluçando, a mão de Lina e disse-lhe: - Fica contente, minha querida Lina. Tu vais ser um anjo lá no céu. Lá estarás melhor do que aqui na Terra, onde somos obrigados a viver sobressaltados. Oh! Como eu quisera que fôsses conosco! Então a senhora d'Erlau partiu. O fiel Ricardo havia preparado as coisas mais necessárias para a via­ gem e saiu com elas carregando, abrindo o caminho. A senhora d'Erlau o seguia, transportando um embrulho embaixo do braço e trazendo o filho arrastado pela mão. Os três marchavam silenciosamente. A noite es­ tava horrível. Zunia uma ventania terrível, e a chuva encharcava as vestes e os sapatos dos fugitivos. - Esta chuva e esta ventania - disse por fim Ricardo - são socorros da Providência, que nos prote­ ge contra os nossos perseguidores. Eis como o que nos parece horrível tantas vêzes serve para trazer-nos o bem. Finalmente chegaram à casa do velho pescador. Entraram numa salinha enegrecida, tristemente ilumi­ nada pela luz de um lampeão. O honesto pescador aco­ lheu com simplicidade a senhora d'Erlau e o filho. En­ quanto o ancião transportava o barco para o Reno, sua mulher oferecia um pouco de sopa, pão e vinho aos hós­ pedes; mas êstes tremendo de frio e de mêdo, mal pu­ deram provar o que lhes era oferecido. Voltaram Ri­ cardo e seu irmão para a choupana e conduziram os dois fugitivos para a margem do rio. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 110 C ô N E G O S C H M I D A lua estava na quarto crescente, e de vez em gi1ando aparecia por entre as nuvens, como que para moderar o horror do furacão. A nobre senhora sentia um frio glacial quando se viu, altas horas da noite, en­ tre as águas do rio, cuja correnteza, aumentada pela tempestade, era ainda mais impetuosa. Mas cumpria atravessar aquelas águas, custasse o que custasse. Ri­ cardo e seu irmão pediram-lhe que tivesse ânimo, di­ zendo que Deus haveria de ajudá-los na travessia. Finalmente chegaram à outra margem. Ricardo se despediu e entregou à senhora D'Erlau o que conse­ guira salvar durante o saque do castelo: um relógio de ouro e um par de brincos com pedras preciosas. Além disso, entregou à senhora um punhado de moedas de ouro, tendo a delicadeza de não dizer que aquêle era um presente seu. Beijou a mão da senhora d'Erlau, de­ satando a chorar quando se despediu de Carlos: - Oh! minha querida e boa ama! Já estou velho, e creio que esta é a última vez em que vejo o sr. Carlos. Em nada mais lhe posso ser útil. Meus Deus há de incumbir-se de protegê-los! III Felizmente a senhora d'Erlau atingira a margem oposta e estava finalmente mais sossegada. Mas não podia permanecer ali, principalmente porque o teatro de guerra se aproximava cada vez mais. Com as indi­ cações de Ricardo, dirigiu-se para a Suíça. Os seus par­ cos recursos iam-se esgotando muito depressa. Fize­ ram-lhe ver que a vida era muito cara naquelas regiões, aconselhando-a a ir para a Suábia. Depois de andar de https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CON TO S D C SCH M I D https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 111 l12 C ,'.) N E C O S e H M T D um lado para outro, resolveu fixar residência no Tirol, a cujas fronteiras logo chegou. Em caminho, uma dessas pessoas caridosas, que gostam de passar a vida sendo úteis à humanidade, in­ dicou-lhe a casa de um tirolês, que de bom grado a rece­ beria em sua casa. Sem perda de tempo, recolheu ela as suas coisas, tomando um guia, que se incumbiu de levá-la através de montes e vales. Depois de longa ca­ minhada, disse-lhe.o guia: - Ali esta Schwarzenfels! É onde mora o bom velhinho que a receberá em sua casa! Estavam no alto de um monte, e a aldeia se er­ guia a seus pés. A boa senhora suspirou e pôs-se a descer por um atalho, que levava ao pé da montanha. O velho tirolês, que já os esperava, veio recebê­ -los, acompanhado de outro homem idoso. Sua fisio­ nomia risonha e benévola era mais agradável do que a postiça polidez da gente da cidade. Para demonstrar o respeito que tinha pela estranha que iria receber em sua casa, envergara a casaca cinzenta dos domingos, com o colête vermelho e o chapéu verde, com uma pena de galo, distintivos característicos da região. Disse êle: - Que Deus abençoe a sua vinda, nobre senhora! Estou satisfeitíssimo cm poder recebê-la em minhi>. ca­ sa, juntamente com seu filho. A boa tirolesa apresentou-se vestida com muito asseio e apesar dos cabelos brancos, conservava a pele rosada e fresca da juventude. Estava de pé no umbral da porta, e quando a senhora d'Erlau se aproximou, deu dois passos e disse-lhe: - Que Deus esteja com a senhora, nobre dama! A refeição está quase pronta; mas será preciso que a https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CO NTOS D E SC HM I D 113 senhora se contente com pouca coisa: em nossa casa pouco mais há que pão, leite, manteiga e batatas. O tirolês levou a senhora d'Erlau ao quarto que lhe estava destinado. Era um aposento simples e con­ fortável, de modo que a hóspede agradeceu a Deus por lhe haver proporcionado aquêle abrigo. IV Nos dias imediatos, ela arrumou suas coisas con­ forme as circunstâncias em que se encontrava. Prepa­ rava pessoalmente a comida e o resto do tempo passav11 a bordar e a coser, trabalhos êstes que sempre lhe ren­ diam alguma coisa. Porém, o que mais a preocupava era ver o filho sem ocupação. !le já começara a apren­ der latim, podendo a mãe continuar a instruí-lo; mas faltavam-lhe os livros, qu� ali não era possível conse­ guir. Certa manhã estava ela a pensar nesse nôvo pro­ blema, quando a chamou à realidade o toque do sino da capela próxima. A boa tirolesa veio dizer-lhe que o cura da vila situada do outro lado da montanha viera dizer missa na aldeia. A senhora d'Erlau aprontou-se e dirigiu-se à cape­ la, acompanhada do filho. O cura fêz um pequeno ser­ mão que muito a comoveu. Depois da missa foi ela conversar com o sacerdote, verificando que se tratava de um homem instruído, piedoso e amável. Prometeu arranjar livros para o menino, dando-lhe aulas diárias. se o menino pudesse todos os dias atravessar a montao­ nha e ir à sua casa. Carlos aceitou o oferecimento com satisfação e logo que se viu ocupado, sentiu-se mais alegre e feliz. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 114 C ô N E G O S C H M. T D Apenas acabava de almoçar, punha-se a caminho da casa do bom padre. Quando, porém, começava a cho­ ver d.ias e d.ias seguidos, o pequeno nada tinha com que se d.istrair. A senho1a d'Erlau pensava em conseguir pa­ ra o filho uma diversão que ao mesmo tempo represen­ tasse um trabalho. No Tirol criam-se muitos canários, dêles se ocupando muitas pessoas, que depois os vendem a outros países. O próprio dono de casa possuía um vivei­ ro dos referido!. pássaros. Como não fôssem caros, e lembrando-se de que Carlos, em outros tempos, sem­ pre possuía um daqueles pássaros, pediu a sua mãe que lhe comprasse um. - Ao menos - d.isse êle - teremos no meio destas montanhas alguma coisa que lembrará nossa pátria. A boa mãe logo lhe fêz a vontade. Carlos esco­ lheu um canário muito bonito, parecido com um que pertencera à sua querida Llna. Em breve o pass.irinho ficou tão manso, que vi­ nha comer nas mãos do menino e bicar a perna do dono, enquanto êste se achava escrevendo. Às vêzes, mesmo, voava para fora· de casa o que punha Carlos bastante assustado, pois receava que a avezinha não mais vol­ tasse. Mas era temor infundado, porque o canário não deixava de voltar para · a gaiola. Pouco tempo depois se pôs o passarinho a cantar. - É preciso ensinar-lhe uma bonita cantiga d.isse o velho tirolês. Carlos pensou que o homem estivesse brincando. Ainda não sabia que é possível ensinar os pássaros a cantar. O tirolês tomou de uma pequena flauta de marhttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMTD 115 fim e tocou uma pequena ária campestre, dizendo ao menino que fizesse o mesmo. A criança, que tinha grande devoção pela música, tocou o que ouvira. As­ sim procedeu dia após dia, até que o canário acabou por imitá-lo perfeitamente. Depois resolveu ensinar­ -lhe a música composta por seu pai, aquela mesma que fôra executada para a senhora d'Erlau momentos antes de lhe virem prender o marido. Com essa distração passava os longos dias de chuva, durante os quais esta­ va impedido de sair. Não obstante, a melodia servia para recordar à senhora o marido distante, do qual não tinha a menor notícia certa. Só os jornais da França algumas vêzes Ih� traziam umas vagas e incompletas re­ ferências; era o cura quem lhe transmitia essas notícias, através de Carlos, quando voltava das aulas. Uma tarde voltou o menino para casa com um pacote de jornais. O sr. cura, que não tinha podido lê-los, mandou-os para que a própria senhora d'Erlau verificasse se havia alguma boa notícia. Começou a pobre senhora a percorrer àvidamente as primeiras co­ lunas, e com efeito, encontrou certas notícias que lhe davam esperanças de poder em breve voltar para casa. Na última página, porém, encontrou uma longa lista dos fidalgos que haviam sido executados em França, por se mostrarem partidários da realeza. E imagine-se o estado de espírito da infeliz senhora, ao deparar, en­ tre os executados o nome do marido! O jornal tremeu-lhe nas mãos; e depois, c.:omo se um raio a atingisse, caiu no chão desmaiada. Foi muito difícil fazê-la voltar a si, e mesmo depois que o conse­ guiram, mostrava-se tão doente, que o médico receava não poder salvá-la. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 116 C ô N E G O S C A M l D O pobre Carlos, que não saía da cabeceira, ema­ grecia a olhos vistos. E o velho tirolês sacudia a cabe­ ça, temendo que a senhora e mesmo talvez a criança não conseguissem ver as primeiras manifestações da primavera próxima. V Embora a senhora d'Erlau tivesse deixado a pá­ tria sem maiores contrariedades, nem por isso descan­ sou o fiel Ricardo. É que o preocupava a sorte de seu amo, e era preciso pensar no que seria possível fazer para salvá-lo. Logo no dia seguinte dirigiu-se à cidade, onde se encontrava seu filho Roberto, que fôra obrigado a ser­ vir no exército. O bravo e esperto rapaz estava quase à porta da prisão do senhor d'Erlau, de modo que Ricar­ do teve a idéia de, por intermédio do filho, tentar a salvação do prisioneiro. Vários projetos foram discuti­ dos entre ambos, mas infelizmente nenhum poderia ser pôsto em prática. Em todo o caso, ficou estabelecido que Roberto se aproveitaria da primeira oportunidade que surgisse, para libertar o senhor d'Erlau. Assim de­ corriam os dias, e, embora fôsse grande a ansiedade, a ocasião oportuna não aparecia nunca. º Por fim, foi o senhor d Erlau condenado à mor­ te. A sentença seria executada no dia seguinte, pela manhã. O infeliz prisioneiro, que antes não pudera apresentar a sua defesa, estava no esct:ro da cela, pois nem mesmo uma luz lhe fôra dada. :E:le pensava na mu­ lher e nos filhos e era só por êles que sofria, não tendo recebido a menor notícia da família, desde que fôra prêso. Apesar de tudo, porém, a sua resignação reli­ giosa não o abandonava, e nem mesmo se desesperou https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CO NTOS DE SC H M I D 117 quando lhe vieram ler a sua sentença de morte. Nessa ocasião voltou os olhos para o céu e disse, resignado: - Seja feita a vossa vontade, meu Deus, e não a minha! ... Desde êsse momento os seus pensamentos se vol­ taram para o Senhor. - Onde irei buscar consolação? - dizia êle Quem me há de socorrer nesta última noite, senão Vós, meu Pai Celeste? Tudo quanto acontece é por vossa vontade; que ela seja feita, então. Fazei de mim e dos meus, Senhor, o que vos aprouver. Estava o senhor d'Erlau absorto nas suas medita­ ções, quando de súbito lhe chegou aos ouvidos um grande barulho, que se fazia lá fora. E a seguir a por­ ta da prisão se abriu com estrondo, entrando por ela a dentro grandes rolos de fumaça, através da qual se no­ tavam os clarões de um incêndio. Depois surgiu um jovem militar, que disse ràpidamente ao prisioneiro: - Pelo amor de Deus, salve-se! Era Roberto, o filho de Ricardo. Por causa da imprudência de alguns soldados, estava em chamas a ala da prisão em que se encontravam os prisioneiros. Os soldados, para se porem mais à vontade, haviam tirado as fardas, e procuravam apagar o incêndio. As­ sim foi que o jovem Roberto se aproveitou do momen­ to de confusão, apanhou a roupa e as armas de um com­ panheiro e correu à cela do sr. d'Erlau. �ste logo ves­ tiu a farda, colocando à cabeça um quepe com penacho; enquanto isso Roberto lhe apertava o cinturão. A grande barba do senhor d'Erlau emprestava-lhe um ar muito imponente, de modo que avançou por enhttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br 118 C O N E G O S C H M I D tre as cinzas e os soldados, ordenando que lhe abrissem caminho, no que foi prontamente atendido. De tal modo ganhou a rua, onde Roberto lhe disse: - Vá imediatamente ter com meu pai, que o es­ pera em casa de meu tio, velho pescador do Reno. Assim fêz o fugitivo, e com tôda a arrogância, co­ rno se realmente fôsse o ferrabraz que parecia, ia com a maior arrogância dêste mundo, gritando a quantos en­ contrava pela frente: - Vamos! ... Afastem-se! ... Deixem-me pas­ sar! ... Ninguém teve, pois, a idéia de fazê-lo parar, e em pouco tempo chegava à casa do •1elho pescador, que imediatamente lhe abriu a porta. Mas a princípio fi­ cou com mêdo, julgando que fôsse algum soldado com ordem de prendê-los, a êle e ao irmão. Quando verifi­ cou que era o senhor d'Erlau, achou tudo muito diver­ tido, e deu graças a Deus, que proporcionara a seu hóspede a oportunidade de evadir-se. Ricardo estava na casa, de modo que veio atirar­ -se aos braços do senhor, quase chorando de alegria. Contou-lhe então o que fizera para que a senhora d'Erlau fugisse com o filho. Quanto à menina, essa es­ tivera mesmo muito doente, mas já se restabelecera. De fato, mal o explicava, veio Lina atirar-se aos braços do pai, quase sem poder falar, tamanha era a sua felicida­ de naquele instante. Depois dêsses primeiros momentos dedicados a tão doces emoções, o senhor d'Erlau apressou a par­ tida; pretendia fugir aquela mesma noite, abandonando um país que não lhe oferecia a menor segurança, que se tornara um covil de salteadores. Pediu para atra- https://alexandriacatolica.blogspot.com.br eONTOS DE SeHM I D 119 vessar o rio no mesmo barco em qut: haviam tugido sua espôsa e o filho. Logo que escureceu, partiu, acompa­ nhado da filha e dos seus protetores. Na frente ia o velho pescador, depois o senhor d'Erlau e a filha, e finalmente Ricardo. Chegaram à margem, onde se encontrava amarrado o barco. De re­ pente ouviram lá atrás alguns tiros e os gritos de "Pega"! "Pega"! O incêndio fôra fàcilmente extinto, de modo que o desaparecimento do senhor d'Erlau depressa fôra notado. Os soldados, como era natural, deram pela folta da farda e das armas de seu companheiro, e sai­ ram no encalço do prisioneiro. Os gritos se ouviam cada vez mais próximos; os fugitivos estavam gelados de terror. Mas isso não os impediu de saltar para o barco e fugir, empregando nos remos tôda a fôrça, que a difícil situação lhes <lava. O velho pescador, sem tempo de embarcar, escondeu-se por detrás das árvores, para que os soldados não sou­ bessem que havia favorecido aquela fuga. Estavam a uns cinco ou seis metros da margem, quando os seus perseguidores ali chegaram, disparando tiros contra a embarcação que se afastava. Na cruel aflição pelo que podia acontecer, o senhor d'Erlau man­ dou que Lina se deitasse, e enquanto isso, êle e Ricar­ do remavam com dobrada energia. Uma bala atraves­ sou o chapéu do senhor d'Erlau, outra veio achatar-se contra um dos remos de Ricardo. Além do mais, o bote ia tão pesado, que quase afundava. Mas, feliz­ mente, chegaram à outra margem. Estavam salvos. Pularam fora do barco e caíram os três de joelhos, de mãos postas, agradecendo a Deus https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 120 C O N E G O S r:' H M T D por tê-los salvos. Depois se sentaram num velho tronco de árvore, pois precisavam descansar um pouco do es­ fôrço despendido na travessia. Logo que se sentiram com fôrças, puseram-se em marcha, em direção das montanhas da Suábia, de cujos inúmeros bosques de pinheiros se tirou o nome de "Floresta Negra". VI O que mais desejava o senhor d'Erlau era encon­ trar a mulher e o filho. Ricardo conhecia na Floresta Negra um bom camponês, para cuja casa se dirigiram os viajantes. Pretendiam colhêr informações e descan­ sar alguns dias. Mas o senhor d'Erlau estava tão im­ paciente, que insistiu em partir no mesmo dia. - Não ficarei tranqüilo - disse êle ao compa­ nheiro - enquanto não encontrar minha mulher e Car­ los. Dizes, meu bom Ricardo, que êles, com tôda a certeza, foram para a Suíça. Como, porém, haverei de descobri-los? Lina não pode fazer tão longa caminhada a pé, e por outro lado, não tenho recursos para alugar uma carruagem. Foi então que Ricardo sacou da algibeira uma bôl­ sa recheada de ouro, despejando o conteúdo sôbre a mesa. - O senhor não está tão pobre quanto imagina - respondeu-lhe Ricardo - Isto lhe pertence. O senhor d'Erlau estava por demais surpreendido para poder responder, e olhava, ora para o seu fiel ser­ vidor, ora para a pequena fortuna que se achava sôbre a mesa. - Quando meu amo era rico - explicou Ricar­ do - auxiliou muita gente, deu muito dinheiro emhttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTO� nE SCHMTD 121 prestado. Pois o ouro que tão generosamente empres­ tou, eu fui pouco a pouco recolhendo de nôvo, en­ quanto o senhor se achava na prisão. E, embora en­ contrasse muitos ingratos, também deparei com gente honesta e agradecida, que não só pagou o que devia, mas ainda acrescentou alguma coisa, como prova de reconhecimento e de amizade para com meu amo. O senhor d'Erlau contou o dinheiro; era uma boa soma. Depois levantou os olhos para o céu, em sinal de gratidão. - Teremos que economizar - disse depois. Mas sempre dá perfeitamente para irmos à Suíça. Ricardo, então, ocupou-se dos preparativos, e em­ pregando uma parte do dinheiro, comprou um pequeno carro puxado por um cavalo. Coberto o veículo com uma lona, para que Lina tivesse onde abrigar-se, pouco depois ganhavam a estrada. Ricardo ia quase sempre a pé, ao lado do animal; a menina, que não suportaria a caminhada, e o senhor d'Erlau, cujas fôrças estavam abaladas com a longa permanência na prisão, iam aco­ modados no interior do carro. Chegaram, então, à Suíça. Mas, como ali não con­ seguissem a menor notícia da senhora d'Erlau, volta­ ram para a Suábia, onde foram obrigados a permane­ cer alguns dias, pois a viagem contribuíra para cansar ainda mais o senhor d'Erlau, que acabou por cair de cama. Alugaram um quarto e uma cozinha. Ricardo comprou os utensílios necessários e passou a cuidar do doente e da casa. Lina, embora muito jovem ajudava-o no que podia. Longos dias estêve o senhor d'Erlau im­ possibilitado de sair da cama. Depois, aos poucos, foi https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 122 CO N E G O S C H M l D melhorando, até que já conseguia manter-se fora do leito boa parte do dia. Lina procurava meios de ale­ grar o pai, e chegava ao ponto de inventar pratos e qui­ tutes, para lhe dar alguma satisfação. Em outras oca­ siões surpreendia-o com uma nova modinha, ou com uma boa notícia. Por seu lado, o pai não deixava de manifestar-lhe contentamento. Um dia, como fôsse a data de seu aniversário, foi Lina à igreja próxima; queria rezar pelo restabeleci­ mento do pai e pela conservação da mãe e de Carlos. Chegando em casa, viu na janela um grande ramalhete feito com flôres de que ela mais gostava. Perto das flôres encontrava-se uma pequena gaiola, dentro da qual saltitava um canário amarelo, de topete, muito parecido com o que tivera na Alsácia. Ficou muito con­ tente com tais presentes, que lhe recordavam os felizes dias do passado. E as lágrimas lhe brotaram dos olhos, quando foi abraçar e agradacer ao pai, pela delicada lembrança. - É tudo quanto lhe posso dar, minha filha disse-lhe êste. - Em outros tempos, a data de seu ani­ versário era dia de festa para tôda a vila. Hoje deve­ mos comemorá-lo segundo a nossa situação e as nossas posses. Ricardo havia preparado um almôço melhor que o do costume, e quando foi sentar-se à mesa, ao lado de seu amo, abriu uma garrafa de vinho, que trouxera da Alsácia. Era um momento de alegria; mas o· senhor d'Erlau não podia esquecer-se dos ausentes: - Onde estarão a estas horas sua mãe e seu ir­ mão? - perguntou êle, com tristeza. Sabe Deus o que devem ter sofrido! Uma mulher e um menino, https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SC HMID 123 sem proteção e sem recursos, a quantos perigos estarão expostos? Quem sabe se ainda poderemos comemorar todos juntos o seu aniversário, minha querida filha? Eu receio . . . eu receio... Lina, no entanto, interrompeu o pai: - Console-se, meu pai; Deus, que nos protegeu até agora, não nos há de abandonar daqui por diante. Não foi à-toa que nos salvou de tantos perigos. Com certeza vela por êles, como tem velado dor nós. - É verdade - acrescentou Ricardo. - É ver­ dade. Não pôde prosseguir, pois se achava muito emo­ cionado. Ficaram algu ns instantes em silêncio, e eis que, quando menos se esperava, o canarinho da gaiola se pôs a cantar. A cantar aquela melodia, que come­ çava assim: Como és sábia, ó Providência, Eu tenho plena confiança. Em teus divinos decretos ... Lina prestou bem atenção e depois disse, cheia de admiração, juntando as mãos: - Céus, que ouço? É a melodia com que Carlos me acompanhava ao piano! É a modinha que cantáva­ mos, meu pai, quando o vieram prender! O senhor d'Erlau e Ricardo não queriam acredi­ tar no que ouviam; tinham os olhos presos no canário, que, no entanto repetiu ainda três vêzes a mesma me­ lodia. - Eis o que é para admirar! - exclamou, por fim, o senhor d'Erlau - Ó meu Deus, vós me quereis ensinar a achar minha mulher e meu filho, pois só êles https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 12' CONEGO SCHMID poderiam ter ensinado êste passarinho! Dize-me, Ri­ cardo, como conseguiste o canário? Ricardo respondeu que o comprara de um peque­ no úrolês. - Corre já! - exclamou o senhor d'Erlau - Vé se encontra o garôto! Ricardo saiu imediatamente. Mas ficou quase o dia todo fora, enquanto o senhor d'Erlau e Lina fica­ ram em casa, ardendo de impaciência, fazendo tôda a espécie de suposições a respeito das circunstâncias que teriam levado a senhora d'Erlau ao ponto de vender o passarinho. Chegaram mesmo a pensar que tivesse morrido, o mesmo se dando com Carlos, deixando na terra, como única lembrança, o canarinho cantador. Finalmente chegou Ricardo, acompanhado do pequeno tirolês. Interrogaram o menino, mas êste na­ da pôde dizer a respeito do canário, a não ser que o comprara no Tirol, de um jovem camponês. Quanto à senhora d'Erlau, não a conhecia; apenas sabia da exis­ tência de uma senhora estrangeira, que chegara ao seu país, acompanhada de um menino. Os traços que lhe descreviam eram mais ou menos o dessa desconhecida e de seu filho. Acrescentou ainda que vira a senhora na igreja, por diversas vêzes, e que o pequeno também lá ia à tarde, receber lições do senhor cura. A descrição feita pelo pequeno camponês, quanto aos modos e às feições dos desconhecidos estrangeiros foi tão bem feita, que o senhor d'Erlau não hesitou, em afimar: - São êles mesmos! São êles mesmos, não se pode duvidar! https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CO N T O S D E S C H 1\1 I D 125 E depois de agradecerem a Deus pela feliz ocor­ rência, pediram ao pequeno que lhe dissesse onde fica­ va o lugar a que se referira, e qual o caminho que se devia tomar para ali chegar. Deram uma moeda de prata ao pequeno tirolês e começaram os preparativos para a viagem. No dia seguinte partiram para o Tirol, levando também o canário, cuja gaiola foi suspensa num dos arcos que servia para sustentar a coberta do carro. VII O senhor d'Erlau e seus companheiros chegaram, sem maiores contratempos à cidade, em cujas proximi­ dades se encontrava a aldeia de Schwarzenfelds. Na es­ trada encontrou-se com um jovem pastor que confir­ mou inteiramente tudo quanto lhe dissera o pequeno tirolês: - É verdade - disse o pastor - não há dúvida que são verdadeiras as informações. E o cura lhe informou que a boa senhora andava sempre triste e de luto. Acreditava que seu marido ha­ via morrido. Lera a relação dos nobres executados na França, de modo que sofrera um abalo muito grave, caindo de cama. Parecia difícil conseguir salvá-la. mas em todo o caso, parecia que então o pior já havia pas­ sado. Aos poucos ia recobrando a saúde, embora des­ de o choque recebido nunca mais tivesse um momento de alegria. O senhor d'Erlau muito se espantou ao saber que fôra publicada a falsa notícia de sua morte; mas, depois de pensar melhor, pensou no que podia ser a causa do engano do jornal: talvez se esquecessem de riscar seu https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 126 CONEGO SCHMID nome da relação há tanto tempo pronta; ou então, quem sabe, teriam deixado o seu nome propositalmente incluído na lista, para se livrarem das responsabilida­ des de o terem deixado fugir. O senhor d'Erlau, mostrou-se, como era natural, muito aborrecido com os sofrimentos sofridos pela es­ pôsa ao ter conhecimento da falsa notícia. Pretendia ir imediatamente ao encontro da infeliz senhora. Mas o cura entendeu que um choque daquela natureza po­ deria ser-lhe prejudicial, devido ao estado de saúde da senhora d'Erlau. Resolveu acompanhar o seu visitante até a aldeia, para mostrar a casa, aconselhando que se devia tomar muito cuidado ao preparar o espírito da enfêrma. Quando chegaram ao alto da montanha, avista­ ram ao longe, no vale, entre os ramos do pinheiral, a aldeia em que viviam a senhora d'Erlau e o filho. Indi­ cou precisamente a casa, para onde se dirigiu o fiel Ricardo. A senhora d'Erlau achava-se sentada diante da lareira. A chama vacilante iluminava o quarto, pois já era quase noite. Entretinha-se com um bordado, en­ quanto que o pequeno Carlos lia em voz alta. Ao ver entrar o antigo servidor, deu um grito de alegria e cor­ reu ao seu encontro. Ricardo foi recebido como se fôs­ se um verdadeiro pai. A mãe do menino pediu a Ricardo que se sentas­ -se junto dela. Estava tomada de emoção, e mal podia falar. Só depois de alguns minutos é que conseguiu dizer-lhe: - Meu caro Ricardo, bem triste são as circuns­ tâncias em que nos tornamos a encontrar. Decerto já https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 127 sabes da morte do melhor dos maridos. . . E Lina? ... - perguntou a pobre mãe, com ansiedade - Que é feito dela?. . . Morreu também? ... - Console-se, minha senhora. A pequena está viva, e mais do que isso, goza de excelente saúde. Foi sàmente para decidi-la a partir que o médico resolveu dizer que estava desenganada. - Mas, então - tornou a senhora - por que a deixaste tão longe, cercada de tantos inimigos, corren­ do os maiores riscos? Por que não a trouxeste junto? Como tiveste coragem de vir só? Tôdas essas perguntas foram feitas quase ao mes­ mo tempo, de modo que Ricardo teve que esperar para responder: - Mas, quem foi que disse que ... ia responden­ do êle, quando a porta se abriu de nôvo para dar entra­ da à pequena Lina, que veio atirar-se aos braços da mãe. Carlos também se precipitou, de modo que ali ficaram os três, mudos, com os olhos cheios de lágri­ mas, matando naqueles doces momentos a imensa sau­ dade de tão longa separação. No entanto, depois dos primeiros instantes, vol­ tou a tristeza a dominar a pobre dama. Levantando os. olhos para o céu, disse, cheia de amargura: , - Ah, meu bom Deus, por que não permitistes· que meu marido fôsse salvo, para que a nossa alegria fôsse completa? - E voltando-se para os filhos, final­ mente reunidos, disse em voz chorosa: - Meus pobre,. filhos, que poderei fazer por vocês, eu, uma pobre viúva doente? Conforme fôra combinado, Ricardo não podia dar-lhe a notícia de que seu m�riào ainda estava vivo . https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 128 CONEGO SCHMID isso para evitar um choque que poderia ser de más con­ seqüências. No entanto, notou que a senhora d'Erlau, recuperando a filha, já estava mais calma. Por isso passou a conversar sôbre o marido de sua antiga patroa; e esta, pelo tom da palestra, desconfiou de alguma coisa. - Meus Deus - exclamou ela - meu marido ainda viv1: e deve estar aqui por perto!. . . Venham, venham meus filhos, corramos ao encontro dêle. O senhor d'Erlau, que se encontrava atrás da porta e ou­ vira tudo quanto diziam, deu alguns passos e final­ mente apareceu, para grande alegria da família. A senhora d'Erlau, que tanto chorava a sua morte, sentiu uma sensação particular. E trêmula, sem acreditar no que se passava, exclamou, cheia de reconhecimento: - Ó meu Deus, quanta alegria não nos estará reservada no céu, se mesmo na terra nos proporcionais momentos como êste? A feliz família passou uma noite deliciosa, com­ parecendo às comemorações do reencontro, não ape­ nas o fiel Ricardo, mas ainda o cura e o velho tirolês, dono da casa. No dia seguinte foi Ricardo buscar o canário que servira de instrumento da Providência, o qual ficara em casa do cura. Carlos contou que muito chorara a per­ da do passarinho. f:sce, em virtude dos transtornos causados pela moléstia da senhora d'Erlau, aproveita­ ra-se de um descuido, e, encontrando a porta da gaiola aberta, desaparecera. Naturalmente o pequeno tirolês o prendera no alçapão e, felizmente para a farru1ia d'Er­ lau, vendeu-o ao Ricardo, no dia do aniversário de Lina. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 129 A senhora escutou encantada a narrativa que lhe faziam, e não pôde deixar de acrescentar: - Sim, meu Deus, fôstes vós que tudo fizeste. Vós vos servistes dêste passarinho para indicar a meu marido, onde eu me encontrava. Sem que êle.chegasse, naturalmente eu morreria de desgôsto durante o inver­ no que se aproxima. - Não tive boa idéia - interveio Carlos - ao ensinar ao canário justamente aquela melodia? Olhe, estava bem longe de pensar que, em lugar de ficar tris­ te, devia encher-me de:: alegria por ter perdido o passa­ rinho. É que Deus propositalmente fêz com que êle fugisse, para ir contar a meu pai onde nós nos encon­ trávamos. Agora compreendo como a Providência nos dá pequenas tristezas, para depois transformá-las em grandes alegrias. - Tens razão, meu caro Carlos - respondeu-lhe o pai - Assim é, também, que Deus nos tirou a fortuna, para dar-nos outra maior, que é a de nos en­ contrarmos juntos sob a sua proteção. Depois se descobriu outro aspecto interessante do caso: é que Carlos incumbira um jovem pastor de procurar o canário perdido. E o rapaz, tendo-o encon­ trado, em lugar de restituí-lo ao dono, como deveria, resolveu vendê-lo. Mostrou-se muito confuso ao saber que sua má ação fôra descoberta a lé guas de distância, e jurou nunca mais proceder mal, convencido de que na­ da se pode fazer escondido, sem que algum dia se venha a descobrir. O senhor d'Erlau resolveu passar o inverno no vale de Schwarzenfelds: ficou com a família na casa do https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 130 C ô N E G O S C H M I D velho tirolês, enquanto que Ricardo se alojou numa cabana vizinha. O canário voltou para a sua antiga gaiola, e todos os dias Lina tinha o cuidado de trocar a água do passá­ ro, dando-lhe os alimentos de que mais gostava. Pode­ -se dizer que nem mesmo durante o período mais rigo­ roso do inverno lhe faltaram uma só vez as ervas fres­ cas que tanto eram de seu agrado. Parecendo compre­ ender, o canário cantava a melodia salvadora, no qüe era acompanhado pelos membros da família, sendo tu­ do motivos para novas consolações: - Queremos ter confiança - diziam - nesse Deus que tão milagrosamente nos salvou; 'Êle que até agora nos protegeu, sem dúvida que sempre velará por n6s, por piores que sejam as dificuldades do futuro! E o bom Ricardo comentava: - Sempre fico com muita pena, quando vejo êsses pobres passarinhos que andam lá fora na neve e fazem lembrar as palavras do Senhor: "Vejam os pás­ saros do céu; êles não recolhem no celeiro, e portanto o seu Pai Celeste os nutre. E vós não sois mais excelen­ tes do que êles?" Passou-se o inverno. E finalmente, depois de pas­ sar por tantas privações, de sofrer tantos desgostos, teve a família a felicidade de voltar para a França. on­ de conseguiu recuperar uma parte de seus bens. O senhor d'Erlau e a espôsa regozijaram-se com isso, porque, voltando a ser ricos, poderiam provar, como o provaram fartamente, o seu inteiro reconheci­ mc:nto às pessoas que, como Ricardo, os ampararam e socorreram nos momentos de infortúnio. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br O PIRILAMPO https://alexandriacatolica.blogspot.com.br Era uma vez uma pobre mulher, chamada Maria, que depois de um longo dia de trabalho, achava-se sentada junto à janela de sua casa, contemplando o pomar que se estendia diante de seus olhos. Fôra um dia muito quente de verão, de modo que, tendo-se de­ dicado desde cedo ao trabalho, estava mais cansada que de costume. O sol começava a declinar no horizonte, e a pobre criatura pensava, muito triste, em seu destino; o pe­ queno Fernando, seu filho de seis anos de idade, estava encostado à mãe, fazendo-lhe companhia. Depois de algum tempo, durante o qual nenhum dos dois falou, a pobre senhora levantou-se para dar ao filho uma xícara de leite. O menino começou a beber e sua mãe, que também se sentara à mesa, debru­ çou a cabeça sôbre os braços cruzados e pôs-se a cho­ rar. Até então Fernando estivera apenas quieto e tris­ te; mas, ouvindo os soluços da mãe, deixou de lado o leite, e começou a chorar também. Qual a causa de tão grande tristeza? É que Maria ficará viúva havia pouco tempo. João, seu marido, morrera na primavera anterior. Era um môço muito estimado na vila; graças à sua persis­ tência no trabalho, conseguira reunir algumas econo­ mias, que serviram como parte de pagamento na com­ pra, da choupana em que agora se encontravam Maria t: o pequeno Fernando. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 134 C O N E G O S C H M I D A compra, porém, não só lhe absorveu tudo quando guardara, mas ainda o obrigou a contrair algu­ mas dívidas, que contava pagar aos poucos; ficaria en­ tão, com aquela pequena propriedade, na qual teriam abrigo seguro a mulher, com quem se casara há pouco tempo. Os seus planos, no entanto, não puderam ser in­ teiramente postos em prática. É que irrompeu na vila uma grande epidemia, que matou muita gente. João também caiu de cama, atacado da moléstia, e por mais que Maria se desvelasse, tudo foi inútil; poucos dias depois falecia o marido, ficando ela e o pequeno deses­ perados e sem proteção. A moléstia de João consumira o pouco dinheiro de que o casal dispunha. E por cúmulo da infelicidade, Maria viu-se ameaçada de perder a choupana e o pe­ queno pomar que a cercava. João trabalhara durante muito tempo para um rico proprietário, o qual, em sinal de recompensa pelo esfôrço do empregado, emprestara-lhe oitocentos fran­ cos, sem o que não teria êle o necessário para adquirir a choupana. João se comprometera a pagar cem francos por ano ao seu protetor. Os pagamentos tinham sido todos feitos com a maior pontualidade, e faltava apenas a última presta­ ção, quando a morte veio surpreender o pobre homem, deixando sua mulher em sérias dificuldades. Dificulda­ des, não porque lhe fôsse impossível durante todo o ano que ainda teria pela frente, reunir a soma necessá­ ria para pagar o restante da dívida; mas porque, coIP a epidemia, falecera igualmente o proprietário que https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 135 emprestara o dinheiro ao marido e seus herdeiros exi­ giam o pagamento da importância total de oitocentos francos. Foi inútil que Maria jurasse e garantisse que já estava quase tudo pago, que só faltavam cem francos. Não podia apresentar recibo ou qualquer outra prova, de modo que, ou pagava os oitocentos francos ou a sua pequena propriedade seria vendida para saldar a dívida do espôso. Foi justamente o que aconteceu; e, recor­ rendo à justiça, decidiu o juiz que tinham inteira razão. E portanto, no dia seguinte, a casa seria penhorada e ela, que já perdera o marido, ficaria também sem ao menos ter onde morar. Por isso é que a pobre Maria, olhando o céu da­ quela tarde, se mostrava tão triste. Por isso desatou a chorar quando viu o pequeno Fernando tomando leite. É que seria aquela a última noite que passaria na sua cabana. No dia seguinte a sua propriedape seria ven­ dida em leilão para o pagamento da dívida, e ela, deses­ perada não sabia o que fazer. Fernando, que via a mãe chorar, mesmo sem en­ tender muito bem de que se tratava, pôs-se a chorar também. Mas, de repente, chegou-se a ela e lhe disse: - Mamãe, não fique triste. Não chore mais. Lembre-se do que papai dizia, quando estava doente, para morrer: "Deus é o protetor das viúvas e pai dos órfãos. Em tôdas as dificuldades, rezem a :Êle: :Êle há de velar por vocês, não haverá de os abandonar". Não era assim que êle falava? - É, sim, meu filho - disse Maria, a quem semelhante lembrança não deixava de consolar um pouco. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 136 CONEGO SCHMID - Então, por que é que mamãe chora tanto, Reze a Deus, que Êle nos há de socorrer ... No tempo em que eu andava pelo mato com papai, que ia cortar lenha, não chorava muito tempo, quando me aconte­ cia alguma coisa. Se eu tinha fome, ou se algum espi­ nho me entrava no pé, ia logo para perto dêle. E en­ tão êle deixava o machado e me dava um pedaço de pão ou me arrancava o espinho que doía. Nosso Senhor é como meu pai, tem o coração bor,1. Não é mau como o homem que nos repeliu, quando pedimos para ficar aqui . . . Mamãe, está vendo a lua e as estrêlas? É tudo d'Êle, papai me dizia isto. Não chore, mamãe; reze a Êle. Eu também vou rezar, que assim Êle nos­ atende. - Tens razão, meu filho - disse ela, muito tris­ te, mas abraçando o filho, que soubera confortá-la com palavras que não seriam de esperar de uma criança as­ sim tão pequena. Maria ajoelhou-se, juntou as· mãos e começou a rezar em voz que o filho pudesse ouvir. E êste, também de joelhos e de mãos postas, repetia as palavras da mamãe, orando com grande fervor: - Ó Padre Nosso, ouvi a prece de uma pobre mãe aflita, de um órfão desamparado! Não temos so­ corro algum neste mundo, mas Vós sois todo poderoso e por isso vos invocamos na nossa aflição. Livrai-nos, Senhor, dos males que nos afligem e não permitais que a injustiça nos arranque desta choupana, que não tería­ mos fôrças para resistir. Não permitais, Senhor, que o nosso coração se despedace ainda mais, como decerto acontecerá, quando chegarmos ao alto da colina e pela última vez enxergarmos êste teto que nos abriga hoje. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br r:QNTOS DE SCHMID https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 37 138 CONEGO SCHMID Ensinai-nos, Senhor, a aproveitar os nossos sofrimen­ tos. Fazei com que encontremos um asilo, por menor que seja; seremos felizes se o vosso espírito estiver conosco. Ao terminar aquelas palavras, Maria sentia-se tão comovida que não pôde dizer mais nada. Voltou os olhos para os céus e ali ficou numa expressão contem­ plativa, que ao mesmo tempo era de dor e de espernn• ça. Fernando, que se pusera de pé, olhava pela janela. De repente gritou: - Olhe, mamãe, olhe! É uma pequenina estrêla que se move, olhe!. . . Agora subiu. ! . Desce mais para perto de nós!. . . A estrelinha vem entrando pela janela, mamãe!. . . Olhe como é bo!lita! ... - É um pirilampo ou vagalume, meu filho disse a mãe. De dia parecia um bichinho comum; mas à noite brilha muito, como você está vendo. - Posso pegar, mamãe? Êle queima a gente com aquela luzinha? - Não, não queima, meu filho - disse ela dian• te de tamanha ingenuidade, e sorrindo, apesar da sua imensa aflição. - Não queima. Você pode pegar à vontade; é uma luzinha fria, pode pegar sem receio. Fernando não esperou mais. Correu atrás do vagalume que penetrara no quarto e caíra no chão. Mas não conseguia apanhá-lo, pois o bichinho meteu-se por debaixo de um grande armário e aquêles bracinhos curtos não conseguiam atingir o ponto em que se en­ contrava o vagalume. - Eu o estou vendo daqui, mamãe - disse o garôto - Está encostado à parede. Mas não consigo https://alexandriacatolica.blogspot.com.br CONTOS DE SCHMID 139 alcançá-lo, porque meu braço é muito curto. Como brilha! - Espere um pouco, meu filho - respondeu a mãe. - Logo êle há de sair daí e então você poderá pegá-lo. Fernando esperou um pouco. Mas estava impa­ ciente por deitar a mão ao vagalume, de modo que su­ plicou à mãe: - Ajude-me, mamãezinha, ajude-me! Faça-o sair dali . . . Ou então afaste um pouco o armário, que eu então o alcanço ... Maria levantou-se para satisfazer o filho, e, com um pouco de esfôrço conseguiu arredar o armário. O menino pegou o inseto, meio receoso, a princípio, mas assim mesmo começou a examiná-lo. O mais curioso de tudo foi que, ao afastar o armário da parede, alguma coisa caiu lá atrás, produzindo um pequeno ruído. Maria abaixou-se para ver de que se tratava e acabou por apanhar uma espécie de caderneta, com anotações e documentos. Que seria? Pôs-se logo a examinar o achado junto à chama da lamparina, pois já estava bem escuro, e não pôde evi­ tar um grito de surprêsa e satisfação. Era o caderno de notas sôbre os negócios do marido. Ali se achavam anotadas as prestações por êle pagas ao rico proprietá­ rio que lhe emprestara os oitocentos francos. E havia entre as fôlhas um documento assinado pelo referido proprietário; dizia o papel: "Declaro que no dia de São Martinho ajustei con­ tas com o João Bium, o qual agora me deve somente cem francos". https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 140 C ô N E G O S C H M T D Era a salvação tão ansiosamente esperada pela in­ feliz viúva; era a prova que lhe faltava para mostrar aos herdeiros que seu marido devia apenas os cem fran­ cos, conforme ela lhes dissera. Era Deus, enfim, que mandara aquêle vagalume, para indicar onde haviam ficado as contas do marido, os documentos de que ela precisava para salvar o abrigo do filho, que, sem isso, logo no dia seguinte não mais teria onde morar. Por isso ela ergueu os olhos para o alto, em sinal de grati­ dão ao Criador. Depois abraçou e beijou o filho, mal se contendo de alegria pc::lo verdadeiro milagre que acabara de acontecer. E o pequeno Fernando, a quem ela explicam a significação do achado, respondeu-lhe, muito orgu­ lhoso: Fui eu, hem, mamãe? Fui eu que descobri. Se eu não pedis!'>e para afastar o armário, a senhora não teria descoberto o papel ... - Sim, meu querido filho, foi- você. Mas foi principalmente Deus, que te mandou o bonito bichinho, para que tivéssemos a oportunidade de afastar o armá­ rio e descobrir a caderneta. A Êle é que devemos agra­ decer, a êsse Deus de bondade, que tão prontamente atendeu as nossas preces. Foi Deus quem nos mandou o pirilampo, meu filho. Era tamanha a satisfação de Maria, que ela mal pôde dormir aquela noite. Queria que o dia rompesse depressa, e as horas custavam a passar. Finalmente nasceu o sol. E então Maria saiu apressadamente, dirihttps://alexandriacatolica.blogspot.com.br CvNTOS DE SCH Ml D giando-se à moradia do juiz, que talvez nem tivesse levantado ainda, tão cedo era. Mas estava. E logo, re­ conhecendo a letra do fale­ cido proprietário, bem co­ mo o valor do documento, 1 https://alexandriacatolica.blogspot.com.br 141 ]42 C ô N E G O S C H M I D mandou imediatamente chamar o principal herdeiro, o que mais questão fizera de receber a importância total de oitocentos francos, pouco se importando que, com semelhante exigência, uma pobre viúva e um órfão ainda tão criança, fôssem para rua, e ficassem sem abrigo. O herdeiro veio imediatamente, e o juiz lhe expôs o sucedido, mostrando-lhe o documento assinado pelo proprietário que emprestara o dinheiro e que reconhe­ cia ter recebido setecentos francos, uma vez que decla­ rava só ter direito a mais cem. O herdeiro estava con­ fuso, sem saber o que falar. Por fim, arrependido do que fizera, exclamou: - Há aqui, sem dúvida alguma, o dedo da Pro­ vidência. Perdoe-me, senhora Maria, pelo modo por que a tratei, pelas tristezas e aborrecimentos que lhe causei. E para compensá-la de tudo, faço-lhe presente dos restantes cem francos. Vejo que Deus a quis sal­ var; de minha parte, quero fazer o que estiver ao meu alcance. Não me deve mais nada, senhora Maria. Po­ de ficar sossegada. E se para o futuro vier a precisar de alguma coisa, procure-me, que terei prazer em ajudá-la. Estou vendo que tem confiança em Deus e essa con­ fiança é mais preciosa do que todo o ouro do mundo. Se minha mulher ficasse viúva - prosseguiu o herdeiro - se não tivesse quem a amparasse, como eu me sentiria feliz se soubesse desde já que Deus a sal­ varia, como salvou a senhora, dona Maria! - Espere em Deus - rematou o juiz - siga o exemplo desta piedosa viúva; antes de tudo procure o reino de Deus e a sua justiça, que tudo o mais lhe será concedido como recompensa. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br