Copyright © 2019 by Michael J. Kruger Publicado originalmente sob o título: The Ten Commandments of Progressive Christianity. Published by arrangement with Cruciform Press. Translated and printed by permission. All rights reserved. 1ª edição 2021 ISBN: 978-65-89129-10-3 Impresso no Brasil Tradução: Elmer Pires Revisão: Cesare Turazzi Capa: Júlio Araújo Diagramação: Marcos Jundurian Versão ebook: Tiago Dias ----------------------PIRATARIA É PECADO E TAMBÉM UM CRIME RESPEITE O DIREITO AUTORAL O uso e a distribuição de livros digitais piratas ou cópias não autorizadas prejudicam o financiamento da produção de novas obras como esta. Respeite o trabalho de ministérios como a Editora Trinitas. ----------------------- K94d Kruger, Michael J. Os 10 mandamentos da esquerda cristã / Michael J. Kruger ; [tradução: Elmer Pires]. – São Paulo: Trinitas, 2021. 75 p. ; 21cm Tradução de: The ten commandments of progressive christianity Inclui referências bibliográficas. ISBN 978-65-89129-10-3 1. Pós-modernismo – Aspectos religiosos – Cristianismo. 2. Liberalismo (Religião). I. Título. CDD: 230.046 ----------------------- Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477 Editora Trinitas LTDA São Paulo, SP www.editoratrinitas.com.br “É impressionante como muitos desses novos ‘10 Mandamentos’ tornaram-se o padrão em nossa cultura e estão na ponta da língua de tantos círculos ditos cristãos. Como um cirurgião de ponta, Michael Kruger se recusa a oferecer um diagnóstico leve ou uma cura superficial. Seu livro é uma análise convincente e oportuna que todos precisamos ouvir.” — Michael Horton, Westminster Seminary California “Não permita que a brevidade desse livro o engane. Michael Kruger escreveu uma crítica incisiva da ruína intelectual e do desvio teológico do cristianismo progressista. Igrejas, pastores, alunos, grupos de jovens, escolas e universidades cristãs fariam bem em se apropriar da sabedoria deste livro pequeno, porém devastador.” — Kevin DeYoung, Pastor na Christ Covenant Church (Matthews, NC); Professor de Teologia Sistemática no Reformed Theological Seminary (Charlotte, NC) “Cresci em denominações protestantes genéricas e conheço muitas igrejas da atualidade, portanto posso atestar: consigo, de longe, identificar nelas esses ‘10 Mandamentos do cristianismo progressista’. Não há nada novo na mensagem dessas congregações, nem mesmo o fato de retratarem-se a si mesmas como salvadoras da sociedade. Michael Kruger ajuda-nos a enxergar as inconsistências internas que permeiam esse ensino, uma delas sendo desacreditar a certeza e o absolutismo agindo com… bom, certezas e absolutismos. Devemos estar preparados para entender por qual razão tentativas como essas de reinterpretar o cristianismo jamais transtornarão o mundo, como fizeram os apóstolos pela pregação das boas novas de que Jesus Cristo é o Senhor. — Collin Hansen, Editor-chefe da The Gospel Coalition; Autor de Blind Spots: Becoming a Courageous, Compassionate, and Commissioned Church SUMÁRIO INTRODUÇÃO Uma Aula Magistral sobre Meias Verdades CAPITULO 1 Jesus é mais um Modelo de Vida do que um Objeto de Adoração CAPITULO 2 Afirmar o Potencial das Pessoas é mais Importante do que Lembrá-las da sua Pecaminosidade CAPITULO 3 O Ministério de Reconciliação deve ser Valorizado acima de Julgamentos CAPITULO 4 O Comportamento Gracioso é mais Importante do que Crer na Verdade CAPITULO 5 Questionamentos Atraentes são mais Valiosos do que Respostas Sólidas CAPITULO 6 Encorajar a Busca Pessoal é mais Importante do que a Unidade de Grupo CAPITULO 7 Suprir Necessidades Reais é mais Importante do que Manter Instituições CAPITULO 8 A Paz é mais Importante do que o Poder CAPITULO 9 Deveríamos nos Preocupar mais com Amor e menos com Sexo CAPITULO 10 A Vida neste Mundo é mais Importante do que a Vida no Mundo Vindouro SOBRE O AUTOR NOTAS INTRODUÇÃO Uma Aula Magistral sobre Meias Verdades Em 1923, J. Gresham Machen, então professor no Seminário Teológico de Princeton, escreveu seu clássico, Cristianismo e Liberalismo.1 O livro foi uma resposta ao crescimento do progressismo nas principais denominações de sua época. Machen defendia que, na verdade, a compreensão liberal e progressista do cristianismo não é uma mera versão variante da fé, nem uma simples representação de uma perspectiva denominacional diferente, mas sim uma religião completamente distinta. Em poucas palavras, o cristianismo liberal e progressista não é cristianismo. O que é mais notável no livro de Machen é a sua predição. Sua descrição do cristianismo progressista — uma versão terapêutica da fé que valoriza as problematizações em detrimento das soluções e exalta o ser “bom” à custa do “verdadeiro” — permanece, hoje, basicamente, da mesma forma. Só por esses elementos já deveria ser leitura obrigatória e garantida para todos os seminaristas e líderes cristãos. Embora os defensores modernos dessa visão apresentem o cristianismo progressista como algo novo e revolucionário, suas doutrinas não são nada inovadoras. Sim, podem até ter novos nomes (por exemplo, cristianismo “emergente”) e surgir com novas roupagens, mas não passam de uma releitura de sistemas de pensamento que já existem há gerações. Há pouco tempo que a presença permanente do cristianismo progressista chamou minha atenção, quando me deparei com um devocional diário de Richard Rohr, em cujas páginas o autor lista os dez princípios que julga necessários ao cristianismo moderno. Esses dez princípios foram, na verdade, extraídos do livro If The Church Were Christian: Rediscovering the Values of Jesus [“Se a Igreja Fosse Cristã: Redescobrindo os Valores de Jesus”], de Philip Gulley.2 Nesta coleção de devocionais, ironicamente intitulada “De Volta à Essência”,3 Rohr estabelece seus dez princípios como uma espécie de confissão de fé do liberalismo teológico moderno (isso tudo depois de difamar as confissões de fé). Esses dez princípios são, de fato, os “Dez Mandamentos do cristianismo progressista”. Uma diferença, no entanto, é que ao invés de serem apresentados no alto do monte, encontram guarida na sala de aula da universidade. Esses princípios tratam muito mais dos nossos próprios desejos humanos do que da verdade revelada de Deus — menos Moisés, mais Oprah. Perceba, no entanto, que cada um desses novos mandamentos é, no máximo, parcialmente verdadeiro. De fato, essa realidade é o que torna essa lista e mesmo o cristianismo de esquerda tão desafiadores. Meias verdades podem parecer excessivamente atraentes, até que reconhecidos os seus fundamentos e implicações. Benjamin Franklin estava certo quando disse: “Uma meia verdade costuma ser uma mentira completa”. Ao longo dos próximos dez capítulos, diagnostico e critico cada um destes princípios, oferecendo-lhes uma resposta bíblica e teológica, e ocasionalmente mergulhando no clássico de Machen. Se a igreja quer batalhar diligentemente pela “fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3), então precisamos ser capazes de distinguir a verdadeira fé dos ensinos que se mascaram de fé verdadeira. Minha esperança (e oração) é que este livro torne a vital tarefa de separar a verdade da mentira um pouco mais fácil. CAPÍTULO 1 Jesus é mais um Modelo de Vida do que um Objeto de Adoração Analisemos o primeiro mandamento do cristianismo de esquerda: Jesus é mais um modelo de vida do que um objeto de adoração. De muitas maneiras, esse princípio liberal equivale perfeitamente ao primeiro mandamento do cristianismo progressista. Tendo a opção entre adorar a Jesus (o que pressupõe sua divindade) e meramente considerá-lo um bom guia moral, os progressistas sempre favorecem a última opção. É claro, um de seus defensores vê isso e protesta dizendo que esse primeiro mandamento não rejeita a divindade de Jesus, tendo em vista as partes “mais um… do que”. Acaso o cristianismo progressista afirma a divindade de Jesus, mas simplesmente prioriza o seu exemplo moral? De acordo com o livro de Gulley, a resposta é um sonoro não. Sem meias palavras e com total descaramento, Gulley rejeita o nascimento virginal, nega a impecabilidade de Jesus e considera seus milagres como mitos criados para elevar Cristo à “posição de divindade”. De fato, Gulley insiste que “a adoração a Jesus por parte da igreja é uma prática que ele não incentivaria”.4 Logo, fica claro que os progressistas não simplesmente enfatizam o exemplo moral de Jesus. Ao invés disso, os liberais rejeitam deliberadamente a divindade de Cristo. Essa negação não é nenhuma novidade. Na época de Machen, os liberais agiam da mesma forma: O liberalismo o considera [Cristo] como um exemplo e guia; o cristianismo, como Salvador; o liberalismo faz dele um exemplo de fé; o cristianismo, objeto da fé.5 Aprofundemo-nos, porém, nesse ponto. O cristianismo seria válido se Jesus nada mais fosse que um exemplo moral? Vários problemas surgem em decorrência dessa crença. O Próprio Jesus Afirmou ser mais que um Exemplo Moral Comecemos reconhecendo que Jesus era, evidentemente, um exemplo moral aos seus seguidores. Na verdade, ele chamava os discípulos a imitá-lo (veja João 13.15). Jesus, contudo, é somente um exemplo moral? Ou, em outras palavras, os evangelhos apresentam Jesus como um mero homem sábio? Alguém como Gandhi, dando dicas para a vida prática? Uma leitura honesta dos evangelhos demonstra que a resposta a essa pergunta é um retumbante não. Na verdade, de Mateus a João, Jesus é apresentado não apenas como um bom mestre, mas como o Senhor Deus dos céus e da terra. Além das passagens mais óbvias de João que dão prova da divindade de Cristo (veja João 1.1, 1.18, 8.58, 10.30), estudiosos defendem que a divindade de Jesus também é evidente nos Evangelhos Sinópticos de Mateus, Marcos e Lucas. Para dar um exemplo, Michael Bird defende em sua obra recente, Jesus the Eternal Son [“Jesus: o Filho Eterno”],6 que mesmo Marcos — normalmente considerado como o Evangelho que apresenta o Jesus mais “humano” — oferece uma cristologia decididamente elevada. Jesus é o “Senhor”, YAHWEH se achegando ao seu povo, aquele que perdoa pecados, o senhor do vento e dos mares, o juiz do universo. Essa realidade levou C. S. Lewis a oferecer sua tão conhecida citação sobre Jesus como “apenas” um bom mestre moral: Estou tentando impedir que alguém repita a rematada tolice dita por muitos a seu respeito: “Estou disposto a aceitar Jesus como um grande mestre da moral, mas não aceito a sua afirmação de ser Deus”. Essa é a única coisa que não devemos dizer. Um homem que fosse somente um homem e dissesse as coisas que Jesus disse não seria um grande mestre da moral. Seria um lunático — no mesmo grau de alguém que pretendesse ser um ovo cozido — ou então o diabo em pessoa. Faça a sua escolha.7 Os Discípulos de Jesus o Adoravam como Senhor Embora o primeiro mandamento do cristianismo progressista hesite diante do culto a Jesus, os cristãos primitivos seguiam o caminho inverso. E, visto que exaltavam a Cristo como Senhor, os discípulos da igreja primitiva entregavam-se ao seu senhorio e o adoravam sem reservas. E eis a surpresa: os cristãos primitivos adoravam a Cristo mesmo sendo absolutamente monoteístas. Mesmo sendo composta de judeus, a igreja primitiva adorava a Jesus precisamente porque cria nele como o único Deus de Israel. Também devemos notar que Jesus nunca rejeitou essa adoração; tampouco se sentiu intimidado, desconfortável ou receoso diante do culto que as pessoas lhe prestavam. Cristo recebia essa adoração sem restrições. Eis alguns exemplos: • Os magos adoram a Jesus (Mt 2.11). • Os discípulos adoram a Jesus no barco (Mt 14.33). • Os discípulos adoram a Jesus após sua ressurreição (Mt 28.9; Lc 24.52). • O cego de nascença adora a Jesus (Jo 9.38). • Todo joelho se dobrará em adoração ao Senhor Jesus Cristo (Fp 2.10). • Os anjos adoram a Jesus (Hb 1.6). • Basicamente, o livro inteiro de Apocalipse trata acerca da adoração a Cristo. Aliás, esses poucos exemplos não consideram as inúmeras declarações doxológicas prestadas a Jesus, nem consideram as práticas de adoração dos cristãos primitivos entregando a Cristo uma devoção reservada somente a Deus.8 O Exemplo Moral de Jesus somente é Válido se Jesus for Senhor Embora os cristãos progressistas levem muito em consideração o exemplo moral de Jesus, o que estranhamente falta em seu sistema é por que alguém deveria se preocupar com isso. Afinal, se Jesus não passa de um homem comum, por que seu código moral em particular seria melhor do que o de qualquer outra pessoa? Por que acreditar que o código de conduta apresentado por Jesus importa? Por falar nisso, não é o sistema cristão progressista que está sempre lutando contra pessoas que fazem declarações morais absolutistas? Os bastiões do esquerdismo não nos dizem que a moralidade é relativa? Que a moralidade passa por constante mudança e é condicionada pela cultura? Afinal, não existe um sistema moral mais verdadeiro que outro; não force a sua moralidade sobre mim! Então, por que Jesus deveria ter esse tratamento diferenciado? Por que essas críticas não se aplicam ao seu caso, se ele não passa de um ser humano como nós? Suponho que alguém possa defender que a autoridade moral de Jesus não advém de sua divindade, mas de sua posição como profeta de Deus. Mas como alguém pode mesmo saber que Cristo é um profeta de Deus? As Escrituras são o único meio suficiente que conhecemos acerca de Jesus para concluirmos sua divindade. Evidentemente, essas declarações liberais revelam o que os progressistas pensam acerca das Escrituras. Muitos deles não confiam na Bíblia e rejeitam abertamente a sua inspiração divina. Agora, se as Escrituras não são confiáveis e não são inspiradas por Deus, como os liberais conseguem saber que Jesus foi um profeta? Alguns progressistas talvez afirmem aceitar a inspiração das Escrituras. Ora, mas se realmente aceitam que a Bíblia vem da parte de Deus, por que então não aceitam o claro ensino das Escrituras de que Jesus não é um simples profeta? Por que não aceitam as passagens já citadas neste capítulo provando cabalmente que Jesus é totalmente digno de toda adoração? Seja como for, a abordagem progressista de que “Jesus é apenas um mestre moral” simplesmente não funciona. E, além de tudo isso, não me impressiona a confusão causada pelo apelo progressista de Jesus ser um guia da moralidade, visto que muitos progressistas não querem nem mesmo seguir o ensino moral de Jesus! Por exemplo, os progressistas estão dispostos a apoiar o claro ensino de Jesus de que o casamento é exclusivamente entre um homem e uma mulher (veja Mateus 19.5–6)? Ou de que Cristo é o único caminho para a salvação (Jo 14.6)? Se não estiverem dispostos a crer nesses pontos, então por que a ânsia de apelar para Jesus como um mestre moral? O Cristianismo não é Moralismo Eis aqui o problema mais fundamental com esse primeiro princípio. Ao remover a pessoa de Cristo da equação como objeto de adoração, o cristianismo torna-se, basicamente, uma religião moralista. O liberalismo prega que doutrina e teologia não importam, mas sim o comportamento. Obras acima de credos. Crer nessas ideias, no entanto, vai diretamente contra o cristianismo histórico, que é uma religião por graça, e não por méritos. Não se trata primeiramente do que nós fazemos, mas do que Deus fez por nós. Ou, nas palavras de João: “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10). O próprio Machen absorveu esse conceito muito bem: Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o cristianismo — o progressismo está, no geral, no modo imperativo, enquanto o cristianismo começa com um indicativo triunfante; o liberalismo apela para a vontade do homem, enquanto o cristianismo anuncia, primeiramente, um ato gracioso de Deus.9 O que Deus Uniu O primeiro mandamento do cristianismo progressista reflete precisamente o cenário do mundo ocidental há mais de um século. Esse princípio representa ainda outra vã tentativa de preservar a moralidade de Jesus, enquanto se livra de sua identidade divina. No final de tudo, essa mescla simplesmente não funciona. O ensino moral de Jesus só tem autoridade se retida sua identidade como Senhor. Ambas as realidades não podem, nem devem ser separadas: “De modo que já não são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem” (Mt 19.6). CAPÍTULO 2 Afirmar o Potencial das Pessoas é mais Importante do que Lembrá-las da sua Pecaminosidade Poucos assuntos dividem mais o cristianismo progressista do cristianismo histórico do que o problema do pecado. De fato, é a desconsideração, o menosprezo ou mesmo a rejeição por completo da doutrina do pecado que define a essência do cristianismo progressista. Décadas atrás, Machen comentou o mesmo: “A perda da consciência do pecado está na própria raiz do movimento liberal moderno”.10 Chegamos então ao segundo mandamento do cristianismo progressista: Afirmar o potencial das pessoas é mais importante do que lembrá-las da sua pecaminosidade. A raiz desse princípio é o problema do pecado.11 O ser humano é pecador? Se sim, qual a importância dessa verdade? Mais que isso, qual a importância de que as pessoas saibam que são pecadoras? Devemos pregar contra o pecado dessas pessoas? Como ponderar entre a pecaminosidade das pessoas e o seu potencial enquanto portadoras da imagem de Deus? Pesando o Pecado e o Potencial Humano É óbvio que, antes de tudo, devemos reconhecer que esse segundo princípio é parcialmente verdadeiro. A mensagem cristã não trata apenas do pecado e do arrependimento. “Você é um pecador” não é tudo que pode ou deve ser dito. Cristo nos salva do nosso pecado, sim, mas, a partir daí, ele inicia uma obra regeneradora no íntimo de cada cristão. E, claro, esse trabalho começa a restaurar a beleza da imagem de Deus em nós. Nesse sentido, podemos afirmar, com justiça, que o ser humano tem potencial e que este deve ser reconhecido e celebrado. Não nos esqueçamos, porém, de que esse potencial só se torna válido mediante a graça salvadora de Deus e por meio da morte de Cristo, que venceu nossos pecados. À parte da salvação, qualquer afirmação do potencial humano rapidamente se transforma em uma versão de moralismo humanista. Em outras palavras, devemos reconhecer ambas as realidades: nossa total depravação e o maravilhoso potencial que temos como portadores da imagem de Deus. São verdades que coexistem. É, contudo, precisamente esse o problema com a mensagem do cristianismo progressista. Seus defensores não têm problema em aceitar a capacidade inata que o ser humano tem por ser criado à imagem de Deus; a resistência deles surge quando o assunto é o pecado. Repito, os cristãos progressistas separam aquilo que a Bíblia uniu. A Rejeição do Ensino Bíblico acerca do Pecado Agora, pode-se objetar que nem todos os cristãos progressistas negam o estado de pecado da humanidade. Alguns desses cristãos progressistas podem até mesmo defender que estão dispostos a testemunhar ambas as verdades. Voltando ao livro de Gulley — a base da lista de Rohr —, logo descobrimos que o próprio Gulley não afirma ambas as verdades. Na realidade, o autor se mostra bastante inflexível quando defende que o ensino cristão histórico acerca do pecado é fundamentalmente errado. Considere o seguinte: Gulley defende que as igrejas que ensinam que o ser humano é pecador são culpadas de “abuso espiritual” e “crueldade” para com os seus membros.12 Gulley declara abertamente: “cresci em uma tradição que enfatizava o pecado e a necessidade de salvação; não considerei essa visão útil para a minha vida, então decidi abandoná-la”.13 Gulley nega o pecado original afirmando que Adão e Eva não eram pessoas reais; ou seja, as narrativas que envolvem essas duas personagens não passam de “mitos” religiosos. Além disso, o relato da Criação não pode ser considerado confiável, pois é contraditório e inconsistente.14 Gulley defende que deveríamos parar “de considerarmos a nós mesmos miseráveis pecadores, merecedores da condenação divina”. Ele chega a se queixar de hinos como “Maravilhosa Graça”, pois descreve Deus salvando pecadores.15 A Rejeição da Obra Salvífica de Cristo Rejeitar o ensino bíblico acerca do pecado é a superfície; em suas profundezas se encontra a rejeição de uma verdade cristã ainda mais fundamental, a saber, de que o propósito da morte de Jesus Cristo era salvar-nos de nossos pecados. Aquele que rejeita a doutrina do pecado e diminui sua gravidade precisa encontrar um motivo diferente para a morte de Cristo. Para os progressistas (ao menos aqueles como Gulley), Jesus não poderia morrer na cruz para pagar pelos pecados da humanidade, pois isso seria como engrandecer a iniquidade. Não, Cristo precisa ter morrido por outra razão. Desta forma chegamos a outro princípio importante do cristianismo progressista: a rejeição da expiação substitutiva. Gulley declara: Ao longo dos séculos, a igreja sempre entendeu a salvação como ser resgatado do pecado e ir para o céu depois que morrer. Agora, e se eu acreditar que a salvação é a jornada da vida em direção à maturidade, à plenitude, ao amor? Se esse for o caso, Jesus não é aquele que salva a humanidade pelo seu sacrifício de sangue, mas aquele que exemplifica essa maturidade, essa plenitude, esse amor; aquele a quem os cristãos podem se voltar e dizer […] “podemos ser como ele!”.16 Vê-se, portanto, que essa visão acerca da morte de Cristo esposada pelo cristianismo progressista não só rejeita a doutrina do pecado original, mas também nega a obra salvadora de Cristo na cruz. Mais uma vez, sob esses ditames, o cristianismo é reduzido a mero moralismo. O Cristianismo Progressista (ou ao menos essa versão) não é Cristianismo Rejeitada a doutrina do pecado original, em seguida a ideia de que somos pecadores carentes de salvação e, por fim, negada a verdade de que Jesus morreu na cruz pelos pecados da humanidade, o que resta do cristianismo histórico e bíblico? Quase nada. Na verdade, Machen defendia que aquilo que nos resta não é cristianismo, mas outra religião. Por isso, digo com todas as letras que muito mais proveitoso é confiar na mensagem simples e clara do apóstolo Paulo: “Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). CAPÍTULO 3 O Ministério de Reconciliação deve ser Valorizado acima de Julgamentos Uma das principais marcas do cristianismo progressista é sua ênfase na forma como as pessoas se relacionam com o seu próximo à custa da maneira como o ser humano se relaciona com Deus. Essa preocupação se faz evidente em seu terceiro mandamento: O ministério de reconciliação deve ser valorizado acima de julgamentos. Neste ponto, Gulley preocupa-se com relacionamentos humanos quebrados ou feridos. Na visão desse autor, a igreja deveria fazer mais para reparar ou restaurar esses relacionamentos, mas permanece preocupada demais com o comportamento das pessoas. Os cristãos precisam parar de julgar e começar a ajudar. Agora, posso começar reconhecendo que o objetivo aqui é, em parte, recomendável. Proporcionar reconciliação a relacionamentos conturbados é um propósito bíblico fundamental. A Bíblia tem muito a dizer a respeito de tópicos como perdoar uns aos outros (Lc 17.4), reconciliar-se uns com os outros (Mt 5.24; At 7.26), reconciliação entre marido e mulher (1Co 7.11) e a remoção de hostilidade entre grupos (Ef 2.16). De fato, Gulley está certo em afirmar que a reconciliação entre pessoas é um aspecto importante do cristianismo. O problema, no entanto, é de que forma Gulley acredita que a reconciliação é idealmente alcançada. E é nessa parte que Gulley toma emprestado um princípio bíblico e lhe dá um toque decididamente progressista/esquerdista. A reconciliação é idealmente alcançada, ele defende, quando a igreja está menos preocupada com o costume de “julgar”. Se ao menos a igreja se livrasse da “cultura do julgamento”, parasse de oferecer “condenação e culpa” e abandonasse “sua predileção pelo pensamento de ‘oito ou oitenta’, ou de ‘esse ou aquele’”, então poderia ajudar mais as pessoas a se reconciliarem umas com as outras.17 Agora, outra vez, depende de o que se quer dizer com expressões como essas. Se a preocupação aqui é com o tom ou a postura geral da igreja, então estamos de acordo. As igrejas precisam ter cuidado, mesmo enquanto lidam com o pecado, mesmo quando se prestam à graciosidade, à paciência e à caridade. Agora, se o autor quis dizer que a igreja não deve se meter no comportamento das pessoas e julgá-lo pecaminoso ou errado, daí já é um caminho bem diferente. De fato, essa última abordagem tem diversos problemas significativos. É Profundamente Antibíblico Afirmar que nunca Podemos Julgar um Comportamento como Certo ou Errado As Escrituras estão repletas de exemplos em que o povo de Deus julga determinados comportamentos como errados. Jesus fez isso. Paulo agiu assim. E até mesmo nós somos chamados a agir assim: “Se teu irmão pecar [contra ti], vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão” (Mt 18.15). A essa altura alguém pode protestar: “Mas quem sou eu para dizer a alguém que ele/ela está errado/errada? Eu também sou pecador”. Sim, essa é uma perspectiva essencial, mas a Bíblia nunca exige que alguém seja completamente sem pecado antes de poder falar contra o pecado de outra pessoa. Perfeição pessoal não é um pré-requisito para se possa defender o que é certo, ou então ninguém jamais seria capaz de condenar o pecado — incluindo (como veremos em instantes) aqueles que querem julgar quem julga! A base apropriada para chamar algo de pecado não é a perfeição pessoal, mas simplesmente se Deus declara esse algo pecaminoso. Dizer que Nunca Podemos Considerar um Comportamento Errado é, no Fim das Contas, Contraproducente A grande ironia daqueles que dizem que não devemos julgar é que eles próprios julgam. Aqueles que dizem “não julgueis” estão declarando que um comportamento é “errado” (nesse caso, o ato de julgar), enquanto praticam eles mesmos esse comportamento errado! Logo, essa abordagem prova-se profundamente inconsistente. Esse é o equivalente retórico de serrar o galho no qual se está sentado. Dessa forma, o cristianismo progressista é o resultado do contexto cultural atual. Vivemos num mundo que insiste, mais do que nunca, que não devemos julgar. Mas também vivemos numa geração que há muito o mundo não via tão crítica e amargurada. Como nunca antes, as pessoas, hoje, se sentem livres para expressar, geralmente com vigor e fervor, sua indignação moral contra qualquer ofensa (como os ativistas das redes sociais podem atestar), e ainda assim permanecem, aparentemente, ignorantes de como esse comportamento falha em condizer com o lema de não julgar. É Inevitavelmente Seletivo Dizer que Nunca Podemos Declarar que um Comportamento está Errado Uma curiosidade da insistência progressista de que não devemos ser pessoas que “julgam” é que esse comportamento é seletivo. Em se tratando da ética sexual, por exemplo, os cristãos progressistas nos dizem que não devemos julgar práticas e comportamentos contrários. Eles defendem que a forma pessoal de manifestação e expressão deve ser livre. Mas quando se trata de racismo, ambientalismo, abusos e outras problemáticas semelhantes, então, aparentemente, julgar o comportamento dos outros é permissível. Na verdade, julgá-los é necessário! Dizer que Nunca Podemos Considerar um Comportamento Errado substitui o Processo de Reconciliação O problema fundamental com a abordagem progressista acerca do ato de julgar é que ela destrói aos poucos o próprio objetivo que está tentando atingir, isto é, a reconciliação. Essa harmonia só pode existir quando erros são reconhecidos e pecadores responsabilizados; quando há arrependimento. Para tanto, deve haver julgamento sobre o comportamento do próximo, o qual precisa ser realmente errado — e não apenas errado na opinião de alguém. De outra forma, a reconciliação torna-se uma simples ilusão. Podemos e devemos afirmar que a reconciliação é um importante princípio bíblico. E podemos afirmar que as igrejas não devem carregar um tom ou uma postura de julgamento, mas sempre agir com graça, paciência e um espírito de amor. Nada disso, porém, requer que abandonemos o claro ensino de Deus de que algumas coisas devem ser consideradas certas e outras, erradas. Essa é a maneira apropriada de julgar, e não uma prática a ser evitada; todo cristão é chamado e encorajado a isso. Nas palavras do profeta Isaías: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal” (Is 5.20). CAPÍTULO 4 O Comportamento Gracioso é mais Importante do que Crer na Verdade Como temos visto, o cristianismo progressista é amplamente definido por sua ênfase na moralidade em detrimento da doutrina. Seus defensores apregoam que o que realmente importa não é aquilo em que cremos, mas como nos comportamos. Isso nos leva ao quarto mandamento: O comportamento gracioso é mais importante do que crer na verdade. Numa primeira leitura, há certo terreno comum. Certamente, concordamos que a igreja deve ser caracterizada por uma postura terna e amorosa (ainda que haja controvérsias quanto à implicação desse amor e dessa ternura). No mínimo, pode-se dizer que a igreja (e os cristãos) deve ser paciente, gentil, bondosa e amorosa para com todos — até mesmo com aqueles que têm convicções teológicas diferentes. Ainda assim, porém, há uma série de problemas que surgem da maneira como esse mandamento é aplicado e da forma como Gulley dá mais detalhes a seu respeito. A Busca da Boa Teologia é o Problema? Priorizar o comportamento externo acima da teologia chama a atenção do mundo moderno, pois a população em geral já tem a ideia de que pessoas que se preocupam com teologia são facciosas, radicais, dogmáticas e até mesmo maliciosas. Pelo contrário, dizem-nos que o que importa é simplesmente ser amável com as pessoas. Gulley revela esse estereótipo ao comparar pessoas que se preocupam com teologia com os fariseus. Segundo Gulley, o problema com os fariseus é a sua “fixação pela ortodoxia” e sua “busca equivocada pela pureza teológica”.18 Ou seja: sua preocupação com a ortodoxia provavelmente revela o seu farisaísmo inato. Deixando de lado a natureza ríspida (!) dessa comparação, posso simplesmente citar sua tremenda imprecisão histórica. Jesus nunca disse que o problema com os fariseus era a sua preocupação excessiva com a ortodoxia. O problema com os fariseus era o legalismo (preferir leis humanas e preterir as leis de Deus) e a hipocrisia (falar uma coisa e fazer outra). Além do mais, legalismo e hipocrisia geralmente andam de mãos dadas. O problema dos fariseus não era se preocupar demais com a boa teologia; não, pelo contrário, era se preocupar de menos! A teologia dos fariseus era uma bagunça. Sua doutrina glorificava o homem, invertia as prioridades do próprio Deus e seguia seletivamente a lei do Senhor. Toda essa dificuldade levanta um ponto importante. Ensinar boa teologia não é o problema, mas a solução. Ensinar boa teologia é vital; é a essência de cuidar bem de uma alma. Ao invés de enxergar a teologia como algo que machuca ou oprime as pessoas, lembremo-nos de que a boa teologia, na verdade, consola e liberta. Os fariseus feriam as pessoas precisamente ao ensinar-lhes (e ao servir de exemplo) uma má teologia. O Comportamento é mais Importante do que a Teologia? Outro problema em relação ao quarto mandamento do cristianismo progressista é a dicotomia que este cria entre o comportamento e a doutrina. Seus defensores nos dizem que o comportamento é simplesmente mais importante do que a doutrina. A dificuldade, no entanto, é que ambos, comportamento e doutrina, não podem ser facilmente separados. Na verdade, qualquer declaração sobre comportamento certo ou errado é uma declaração teológica! Não se pode determinar um comportamento piedoso na falta de categorias teológicas e de conceitos firmes, pois o comportamento só é “certo” se concordar com a lei e com o caráter de Deus. Há uma rica ironia aqui. A declaração “O comportamento gracioso é mais importante do que crer na verdade” é, em si, uma proposição que requer o ato de crer daquele que a ouve! Aparentemente, nesse caso, a “crença correta” importa. Recebemos mais “Graça” Priorizando o Comportamento? O impulso de Gulley em preferir o comportamento à doutrina é conduzido por uma convicção simplista, isto é, que o comportamento leva à graciosidade. No dizer desse mesmo autor: “Jesus sabia que o comportamento ríspido normalmente tem raízes em uma busca extraviada por pureza teológica”.19 Em outras palavras, boa teologia não tende a produzir um comportamento gracioso. Ao contrário, defende Gulley, produzimos um comportamento mais gracioso quando enfatizamos... o próprio comportamento. Aqui é onde Gulley fecha o círculo e retorna ao primeiro mandamento progressista, a saber, que o cristianismo diz mais respeito à moralidade do que à adoração a Jesus. Simplificando, o argumento básico de Gulley é que o comportamento gracioso flui mais facilmente do moralismo. Obviamente, a triste realidade é que, na verdade, eram os fariseus, e não Jesus, que se comprometiam com o moralismo. E de forma alguma seu moralismo os tornava mais graciosos. Novamente, há uma ironia aqui. Embora critique a natureza ríspida dos fariseus, Gulley, ainda assim, defende a metodologia moralista dos próprios fariseus. É esse tipo de incongruência que surge sempre que a doutrina e a teologia são rebaixadas. Tudo que resta é uma religião de ser “bonzinho” com as pessoas. Se realmente desejamos nos tornar pessoas mais graciosas, nossa resposta não pode ser enfatizar o comportamento e “tentar mais e melhor”. Pelo contrário, a resposta é fixar os olhos em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que entregou sua vida para pagar a dívida dos nossos pecados e nos capacitar por meio do Espírito a viver uma nova vida. Só assim conseguiremos negar a nós mesmos e amar o nosso próximo com entrega. J. Gresham Machen resume esse ponto muito bem: O que é estranho sobre o cristianismo é que ele adotou um método inteiramente diferente. Ele não transformou as vidas dos homens apelando para a vontade humana, mas contando uma história; não através da exortação, mas pela narração de um evento [...] as vidas de homens são transformadas através de um fragmento de notícias.20 A abordagem cristã exige o pensamento teológico. Por fim, fica claro que o comportamento correto não é mais importante do que a teologia correta. Ambos, teologia e comportamento, são importantes. Tenhamos em mente o lembrete do apóstolo Paulo: “Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina” (1Tm 4.16). CAPÍTULO 5 Questionamentos Atraentes são mais Valiosos do que Respostas Sólidas Talvez nenhum outro mandamento capture mais o ethos do cristianismo progressista do que o quinto: Questionamentos atraentes são mais valiosos do que as respostas sólidas. Trata-se de uma estratégia eficaz. Coloque-se como alguém humilde e inquisitivo, numa simples jornada de descobertas. Então descreva o outro lado como formado por despenseiros altivos, defensores de dogmas excessivamente rígidos. Você não passa de um inquiridor bem-intencionado; os outros é que são maldosos, um bando de sabe-tudo, senhores do saber. Brilhante. Na verdade, essa é a reclamação de Gulley contra a igreja. Ele defende que a instituição da igreja tem se “comprometido com a propaganda” e “obedecido às cegas”, afastando-se da “explicação vigorosa da verdade”.21 Certo, mas, sendo assim, como devemos lidar com esse quinto “mandamento”? Permita-me apresentar alguns pensamentos. Uma Caricatura do Cristianismo Antes de tudo, percebamos, mais uma vez, que há um elemento de verdade nesse ponto. Só nos Estados Unidos, as expressões de cristianismo são muitas e variadas; muitos já se acostumaram com denominações que dão respostas rasas e insatisfatórias a dúvidas honestas acerca da fé. Em contextos assim, questionamentos a respeito da fé são desencorajados. E, quando feitos, a liderança pressupõe que o inquiridor está disposto a aceitar a resposta provida de bom grado; o envolvimento intelectual profundo deixou de ser uma opção. Se o referido mandamento progressista é projetado para corrigir essa abordagem do cristianismo, então estamos de acordo. Tal correção é necessária. Mas seria uma caricatura pintar todos os cristãos (ou o cristianismo) como propagadores do anti-intelectualismo. Na verdade, ao longo das eras, a maior parte dos cristãos já pressionou a Bíblia e lhe fez as perguntas mais difíceis — intelectuais, históricas e pessoais. Ao fazê-lo, esses cristãos descobriram que as Escrituras fornecem respostas sólidas e convincentes. Por que tamanha solidez seria motivo de ridicularização? Qual Posição é Intelectualmente Irresponsável? Suspeito que parte do problema em jogo é o pensamento progressista de que é intelectualmente irresponsável reivindicar a verdade, exigência esta feita pelo cristianismo histórico. Essa reivindicação soa arrogante; até mesmo presunçosa. Como alguém pode ter a certeza de verdades tão profundas? Os cristãos progressistas defendem que a melhor forma de agir é dizer: “Não sei”. Embora essa abordagem liberal dê um ar de humildade, seus problemas são graves. Em primeiro lugar, dizer “Não sei” só é a resposta certa se, de fato, não houver nenhuma base epistemológica para chegar ao conhecimento do respectivo questionamento. Agora, e se, ao contrário, houver base para obter conhecimento acerca da dúvida em questão? Existindo essa base, dizer “Não sei” constitui uma posição intelectualmente irresponsável. Em outras palavras, “Não sei” nem sempre é a resposta certa; às vezes, é a resposta errada. Imagine que, recentemente, você teve aulas sobre a Guerra Civil Americana. Caso um amigo seu pergunte: “Abraham Lincoln assinou a abolição da escravatura nos EUA?”, e sua resposta for “Sim”, dificilmente você seria contestado como um sabe-tudo arrogante. Na verdade, se tivesse respondido “Não sei”, devido a uma noção equivocada de humildade intelectual, então você poderia ser repreendido por rejeitar uma evidente verdade histórica. É claro que os progressistas defenderão que se trata de uma falsa comparação, pois sabemos que Lincoln assinou a abolição da escravatura, mas não sabemos, digamos, se Jesus realmente ressuscitou. Mas é justamente esse ponto que está sendo discutido! Visto que a Bíblia é, na verdade, a Palavra de Deus inspirada e revelada, quanto mais certeza podemos ter quanto à ressurreição de Cristo do que a respeito de Abraham Lincoln. O argumento progressista só funcionaria se alguém já “soubesse” que a Bíblia não é a Palavra de Deus e, portanto, pudesse colocar em dúvida qualquer uma de suas reivindicações. Mas como os progressistas conseguiriam obter esse conhecimento? Do ponto de vista progressista, não é um absurdo afirmar conhecimento absoluto? Em outras palavras, para ser intelectualmente defensável, a posição progressista necessariamente precisaria saber que é impossível saber se a ressurreição de Cristo realmente aconteceu ou não. Mas esse conhecimento exigiria um alto nível de certeza intelectual — algo que os progressistas declaram ser impossível. Certezas Sorrateiras Esse raciocínio todo conduz a um problema real com a posição progressista: ela é inconsistente. O cristianismo progressista lamenta o dogmatismo e a certeza do cristianismo bíblico. Tudo seria muito melhor, defende Gulley, se todos admitissem sua incerteza. O referido autor, porém, tem bastante certeza de suas posições — a ponto de condenar outras posições bem depressa. Em certo ponto, ele descreve uma perspectiva sobre a conversão como um “ponto de vista infantil”, de alguém claramente “preso” a uma posição teológica ruim. Nesse caso, e também em muitos outros, Gulley simplesmente contrabandeia sua certeza às escondidas, pela porta dos fundos. E ele está longe de agir sozinho. Os progressistas são rápidos em condenar todo tipo de comportamento dentro do seu campo de visão, ao mesmo tempo em que insistem que os cristãos que acreditam na Bíblia estão errados quando defendem certezas históricas. Por exemplo, considere o debate sobre o casamento de pessoas do mesmo sexo. Note que ouvimos pouquíssimos progressistas comentando algo como “Não temos a resposta para esse problema. Não podemos ter certeza a esse respeito”. Não, pelo contrário: recebemos um absolutismo por parte deles. Recebemos certeza. Recebemos dogmatismo. Assim, tem-se a impressão de que o verdadeiro problema não é a certeza. Os progressistas simplesmente trocaram um conjunto de crenças assertivas por outro. Todos temos certezas. Todos pressupomos alguns ensinos como verdadeiros e absolutamente reais. A pergunta-chave envolve a base dessas certezas. Os cristãos baseiam sua certeza na Palavra de Deus. O mundo pode zombar das Escrituras, mas Cristo manteve-se alicerçado na certeza que ele próprio declarou ao Pai: “A tua palavra é a verdade” (Jo 17.17). CAPÍTULO 6 Encorajar a Busca Pessoal é mais Importante do que a Unidade de Grupo O cristianismo sufoca o pensamento livre? A igreja só está interessada em proteger sua própria autoridade? No sexto capítulo de seu livro, Gulley responde a ambas as perguntas com afirmativas. Ele lamenta o fato de cristãos estarem tão preocupados com proteger a igreja de visões dissidentes que chegam a sufocar o pensamento livre e mesmo a expulsar aqueles que não se conformam ao seu sistema doutrinário. Essa problematização nos leva ao sexto mandamento do cristianismo progressista: Encorajar a busca pessoal é mais importante do que a unidade de grupo. Para provar seu ponto de vista, Gulley conta a história de conhecidos que “tiveram sua comunhão cortada” ou foram “evitados” pela igreja por certos comportamentos ou crenças. Eles simplesmente tentaram pensar por conta própria, mas a igreja estava mais interessada na “uniformidade do grupo”. Os progressistas então apregoam que Jesus jamais aceitaria essa espécie de rompimento. Pelo contrário, argumenta Gulley, Cristo era a favor da “jornada pelo saber espiritual” e “não tinha nenhum problema com o pensamento independente e a ação individual”.22 Para deixar claro, esse capítulo do livro de Gulley faz boas observações sobre a maneira como algumas congregações praticam a disciplina eclesiástica. Ele está certo em ser cauteloso com a prática de “evitar” de alguns grupos e, sem dúvida, não erra ao afirmar que algumas igrejas (como já mencionei) não se interessam pela comunhão com pessoas que fazem perguntas difíceis. Mas a mensagem geral do capítulo de Gulley é simplista demais. Igrejas que seguem certas verdades com firmeza e convicção são retratadas como mesquinhas e vingativas, e aqueles que questionam essas verdades são retratados como guerreiros lutando contra o sistema por liberdade de consciência. E Jesus, é claro, estaria do lado desse grupo libertário. Essa narrativa toda pode ser aceita pelo lado cristão progressista, mas eu, particularmente, a considero repleta de problemas significativos. O Cristianismo não é uma Simples Jornada Os progressistas gostam de retratar a religião cristã (e todas as religiões, nesse caso) como uma “jornada” espiritual. A religião é, fundamentalmente, uma “exploração ” individual das nossas crenças espirituais. O problema é que por trás dessa abordagem está um pressuposto gritante (embora oculto) do liberalismo teológico: Deus não se revelou com clareza e evidência. Deus nem mesmo revelou uma mensagem de salvação. Na verdade, o pressuposto oculto e fundamental dessa narrativa progressista é que a religião refere-se ao ser humano buscar e encontrar a Deus, e não ao ato de Deus ter se revelado à humanidade. É compreensível a irritação dos progressistas contra o cristianismo bíblico. De acordo com seus defensores, a religião (por definição!) é sempre um fluxo, um movimento. É o processo de buscar a Deus. Quão arrogante seria declarar que ele foi encontrado! Em contraste, o cristianismo bíblico defende que Deus claramente revelou a mensagem de salvação em Cristo Jesus, e que todas as pessoas em todos os lugares são chamadas a crer nas boas novas do Senhor. A Igreja Recebe Inquiridores Gulley promove a visão de que as igrejas, via de regra, não gostam de membros inquiridores, pois questionamentos são considerados ameaças à autoridade da igreja. Novamente, embora certamente haja congregações que agem assim, não creio que essa seja a verdadeira posição da igreja evangélica como um todo. Pelo contrário, a maioria das igrejas tem esse desejo de que as pessoas façam perguntas. Na verdade, as igrejas querem que as pessoas façam perguntas acerca da fé cristã, aprendam sobre as doutrinas em que os cristãos creem e por que acreditam nelas. Logo, parece que a queixa progressista sobre as igrejas é por outro motivo. Não se trata de não aceitar questionamentos (creio que a maioria das igrejas os aceite). A verdadeira problematização progressista é de que a igreja pensa que há resposta para muitos desses questionamentos! Portanto, a real objeção de Gulley se dá porque os cristãos acreditam que existem respostas claras e cognoscíveis às questões mais importantes da vida. O que ele realmente objeta é a crença cristã na verdade absoluta. Esse é o ponto crítico. E é por isso que os progressistas nunca se satisfazem com a simples mudança de tom ou de abordagem por parte dos cristãos. Eles só se sentirão satisfeitos quando os cristãos abandonarem por completo a afirmação de que o verdadeiro cristianismo possui verdades fundamentais.23 Jesus Ensinou a Disciplina Eclesiástica Como já deu para perceber, creio que Gulley não erra em afirmar que algumas tentativas de sufocar o erro são problemáticas. Mas ele cita erroneamente 1Coríntios 5.11 como evidência de que o apóstolo Paulo defende a prática num sentido mais lato. O que o apóstolo defende é a disciplina eclesiástica, aquele processo em que os líderes de uma congregação corrigem, de forma amorosa, um membro rebelde que se envolveu em desobediência grave (seja moral, seja doutrinária). Como toda disciplina, ela deve ser executada de forma gentil e para o bem de quem a recebe. E, apesar de Gulley supor que Jesus seria contra tal prática, Cristo a corrobora claramente em Mateus 18.15-20. No versículo 17, ele diz: “E, se ele [o irmão rebelde] não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano”. Em 1Coríntios 5.11, portanto, Paulo concorda com Jesus: o que alguns podem caracterizar como “sufocar” é, às vezes, um componente bom e necessário de um processo de disciplina eclesiástica ordenado e redentivo. Tenha em mente que a disciplina eclesiástica limita-se aos membros da comunidade pactual. Essas passagens bíblicas não proíbem o cristão de interagir com não cristãos ou com pessoas de visões discordantes. Como já deixei claro anteriormente, a igreja recebe não cristãos que desejam se achegar e aprender acerca de Jesus Cristo. A disciplina eclesiástica volta-se aos cristãos professos que se perderam no meio do caminho, a fim de que se arrependam de práticas pecaminosas e sejam restaurados. A disciplina ministrada pela igreja serve para manter a paz e a pureza do corpo. Errando a Mensagem Logo, acredito que o sexto mandamento do cristianismo progressista sofre de uma série de premissas erradas ou de uma má compreensão das bases. Seu ensino, mesmo sem provar, pressupõe que não há verdade absoluta, que a igreja não aceita questionamentos (enquanto, de modo geral, aceita, sim) e que sua instituição não compreende adequadamente a natureza e o propósito da disciplina eclesiástica (a qual serve ao bem do membro disciplinado). E ainda mais grave que tudo isso, a posição progressista erra o cerne da mensagem cristã. O cristianismo não se trata da “jornada” sem fim da humanidade em direção a Deus; a religião cristã, pelo contrário, é a jornada consumada que Deus fez para achegar-se a nós, a fim de salvar-nos dos nossos pecados. Nas palavras de João Batista: “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10). CAPÍTULO 7 Suprir Necessidades Reais é mais Importante do que Manter Instituições Em seu livro Eles Gostam de Jesus, mas não da Igreja,24 Dan Kimball indica uma mudança crucial nos dados demográficos de pessoas mais jovens, a saber, que elas estão desiludidas com a igreja institucional. Esses jovens professam seguir a Cristo, mas são céticos quanto às organizações religiosas. Esse fenômeno é apreendido no sétimo mandamento do cristianismo progressista: Suprir necessidades reais é mais importante do que manter instituições. No sétimo capítulo de seu livro, Gulley lamenta sobre como as “funções institucionais (e disfuncionais) superam a missão e o propósito da igreja”.25 Ele defende que a maioria dos cristãos está cega para essa realidade: “Parece ser um traço comum entre o ser humano e as instituições que criamos: ignorar nossas falhas, mesmo quando estas impedem nossa capacidade de agir e crescer”.26 Embora Gulley ofereça uma lista de observações úteis nesse capítulo, há também um tom anti-institucional subjacente que acaba divorciando Jesus Cristo de sua noiva, a Igreja. A Igreja não é Perfeita Sem dúvida, Gulley está certo de que a igreja não é uma instituição perfeita. Ele oferece uma série de exemplos de denominações mesquinhas, ensimesmadas, obcecadas com sua autopreservação e compulsivas por tamanhos e quantidades. Em particular, ele nota como muitas congregações são geridas como se fossem empresas, fato que cria uma cultura corporativa que tende a operar como uma corporação listada entre as mais ricas do mundo, e não como a noiva de Cristo. Congregações desse tipo estão mais preocupadas com o “preço de suas ações” do que com a necessidade das pessoas e da comunidade ao seu redor. Há muito com o que concordar neste ponto, e tenho certeza de que cada leitor poderia contribuir com o seu próprio relato das fraquezas presentes na igreja moderna. Repleta de pecadores e parte integrante de um mundo caído, toda igreja, evidentemente (e inevitavelmente), tem falhas. A Igreja Permanece Noiva de Cristo Ainda assim, a igreja permanece a gloriosa e maravilhosa noiva de Cristo, amada com grande amor e purificada por seu sangue (Ef 5.25–27). A igreja de Deus não será perfeita até a volta de Cristo, mas já é, com justiça, considerada santa — separada para Deus. Infelizmente, Gulley não partilha de uma visão elevada da igreja. Para ele, a igreja como instituição é relativamente dispensável. Por quê? Porque, em sua visão, a igreja tem pouco a ver com Jesus. O autor argumenta que “Jesus parecia dar [à igreja] pouca importância […] sua gênese e continuação não pareciam prioridade para ele”.27 É claro que estas são declarações chocantes quando comparadas ao que Jesus realmente disse sobre a igreja. Cristo não enxergava a igreja como uma edificação humana, mas como o corpo que ele próprio edificaria. “Edificarei a minha igreja”, Cristo disse a Pedro e, preocupado com sua continuação, acrescentou: “e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18). Além disso, Jesus zelava pela estrutura da igreja, especialmente com a forma de restaurar ovelhas perdidas, como aquela mencionada quando citamos o processo de disciplina eclesiástica traçado em Mateus 18.15–20. Perceba que Jesus não estava lidando com a igreja invisível — cristãos genuínos espalhados pelo mundo —, mas com expressões tangíveis e locais da instituição (igreja) que pode até mesmo aplicar disciplina a membros rebeldes. Em outras palavras, Jesus afirmava o valor da igreja institucional. O Propósito da Igreja Boa parte do problema referente ao relato de Gulley acerca da igreja é que ele a enxerga como tendo um propósito unicamente horizontal — isto é, o modo como o ser humano se relaciona com o seu próximo. A igreja deveria ajudar pessoas em necessidade: “alimentando o faminto, fazendo amizade com os solitários, amando o inimigo, curando o doente”.28 Embora esses elementos estejam no escopo da igreja, o que falta no relato de Gulley é o propósito vertical da igreja (a forma como o ser humano se relaciona com Deus). Nenhuma menção é feita do chamado à igreja a adorar e glorificar a Cristo. Nenhuma menção é feita sobre a igreja ser o ambiente no qual Deus fala ao seu povo por meio de sua Palavra. Nenhuma menção é feita sobre o que Deus faz por meio dos sacramentos. Isso explica muito da frustração de Gulley com a igreja. Ele acredita que a função principal da igreja é resolver problemas sociais. E ele parece chateado, pois considera que a igreja não tem feito o suficiente. Essa abordagem se encaixa muito bem com a crença da esquerda cristã. Se o sistema religioso de alguém é puro moralismo, as únicas categorias cabíveis, evidentemente, serão as horizontais. A “igreja”, então, torna-se apenas mais uma instituição de caridade ou uma versão da AMC local. Em contraste, a visão bíblica da igreja não escolhe entre dimensões verticais ou horizontais. Ela afirma ambas. É claro, a igreja deve ser luz e bênção no mundo, mas também foi projetada para redundar em glória e louvor a Deus, a fim de proclamar sua verdade. Problema Errado, Solução Errada Gulley salienta corretamente que a igreja não é uma instituição perfeita. De fato, pode ser frustrante ver congregações atoladas em burocracias e procedimentos, falhando em seu chamado inato. Mas a suposta solução de Gulley não é, nem de longe, uma solução. Ao invés de simplesmente descartar a instituição eclesiástica como uma criação humana, como o autor quer que façamos, precisamos levar a igreja de volta ao seu devido lugar: uma instituição ordenada e criada pelo próprio Cristo e para a sua própria glória. Não ousemos transformar a igreja em mais uma simples ferramenta para tratar de problemas sociais. Novamente, embora haja espaço para a igreja servir em prol da comunidade, não podemos nos esquecer de que o propósito primário da igreja é adorar a Cristo e proclamar sua Palavra. Lembremo-nos, também, de que um dia a igreja será perfeita: “Então, veio um dos sete anjos que têm as sete taças cheias dos últimos sete flagelos e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a noiva, a esposa do Cordeiro; e me transportou, em espírito, até a uma grande e elevada montanha e me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, a qual tem a glória de Deus. O seu fulgor era semelhante a uma pedra preciosíssima, como pedra de jaspe cristalina” (Ap 21.9–11). CAPÍTULO 8 A Paz é mais Importante do que o Poder Para aqueles frustrados com a religião institucional, pode parecer que os líderes eclesiásticos estão preocupados sobretudo com o poder, para tê-lo e mantê-lo. De fato, pode até parecer que igrejas atraem pessoas famintas por poder, ávidas por comandar os outros. O oitavo mandamento do cristianismo progressista foi desenvolvido para ir contra esse problema: A paz é mais importante do que o poder. Comecemos reconhecendo que boa parte desse oitavo mandamento progressista está correto. Deus não chama os líderes da igreja à autopreservação severa, mas ao serviço humilde e sacrificial. Assim como Pedro admoesta os presbíteros: “pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não [...] como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos do rebanho” (1Pe 5.2–3). Gulley apresenta sua perspectiva fornecendo vários exemplos de má liderança eclesiástica — pastores/bispos famintos por controle e dispostos a pisar nas pessoas para consegui-lo. Tenho certeza de que muitos cristãos poderiam contar histórias semelhantes por experiência própria. Entretanto, como em capítulos anteriores, Gulley tem o diagnóstico correto, mas a cura errada (ou terrivelmente incompleta). Como veremos a seguir, a fim de livrar a igreja da autoridade indevida, Gulley oferece uma abordagem excessivamente igualitária e que pode acabar furtando da igreja sua real autoridade. Autoridade vs Autoritarismo Gulley faz uma distinção plausível entre autoridade e autoritarismo. Embora a autoridade seja legítima, o autoritarismo é destrutivo. O autoritarismo é uma forma de liderança excessiva, de cima para baixo, comparável ao abuso, e que tem o poder de destruir os membros e a congregação como um todo. O próprio Jesus reconhecia os perigos da liderança despótica: “Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva” (Mt 20.25–26). Gulley também está certo em sugerir que a liderança autoritária precisa ser tratada quanto antes: “Quanto antes o autoritarismo for desafiado, mais saudável será a igreja”.29 Mas logo surge a dificuldade: como é possível saber se determinada liderança é autoritária? Gulley apresenta uma ponderação útil: “A liderança em questão edifica ou destrói?”.30 Esse ponto ecoa as palavras de Paulo: “Porque, se eu me gloriar um pouco mais a respeito da nossa autoridade, a qual o Senhor nos conferiu para edificação e não para destruição vossa, não me envergonharei” (2Co 10.8). Como veremos, entretanto, tudo depende de compreender a diferença entre edificar e destruir. Que Forma Toma para si a Autoridade Legítima? Embora Gulley deva ser elogiado por falar contra a liderança autoritária, permanece a necessidade de uma boa liderança com sua devida autoridade. Qual é o alcance da autoridade legítima da igreja? É aqui onde a bagunça começa. Por exemplo, podemos nos perguntar se a igreja (ou seus líderes) tem a autoridade de condenar falsas doutrinas. Pastores e presbíteros podem usar sua autoridade para defender a verdade e condenar o erro? Aparentemente, Gulley acredita que não. Ele conta a história de uma pastora que foi examinada por um comitê, devido a preocupações em relação à sua teologia progressista. Mas na cabeça de Gulley, o próprio questionamento foi um abuso de poder: “[O comitê] deixou de ter autoridade genuína para exercer autoritarismo; deixou de edificar para destruir”. Segundo Gulley, o comitê só queria saber de “comando e controle”.31 Em que mundo defender a sã doutrina tornou-se um abuso de autoridade? A igreja não tem controle sobre suas doutrinas e ensinos? Paulo não diz a Tito que é dever do presbítero “que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem” (Tt 1.9)? E não é verdade que todas as autoridades, até mesmo as legítimas, ainda precisam de certo nível de “comando e controle”? Pois, se não tiverem esse elemento de governo, não é fato que deixariam de ser autoridades? Essa confusão e tamanha inconsistência levantam perguntas sobre o ponto de vista de Gulley em relação à igreja. Parece que qualquer exercício de autoridade é visto como inapropriado, tirânico, ou mesmo uma mistura de inadequação com tirania. Ora, essa postura despótica não cabe no cristianismo progressista. Como vimos em capítulos anteriores, o pacote esquerdista, em seu cerne, carrega consigo um tom distintamente contrário às autoridades. Ninguém pode nos dizer o que fazer ou no que crer (embora, ironicamente, o livro todo de Gulley trate do que fazer e no que acreditar)! O que Significa Buscar a Paz? Se os membros de uma igreja devem buscar a paz, e não o poder, como Gulley sugere, então o que essa busca significa exatamente? Incrivelmente, o autor aproveita a oportunidade para defender o pacifismo e para repreender a igreja nos EUA por apoiar as Forças Armadas. Logo, a “paz”, de acordo com Gulley, é mais uma vez vista em termos unicamente horizontais. Trata-se da paz entre as nações; trata-se de cessar o conflito militar. Deixando de lado a questão do pacifismo (não há espaço para tratá-la aqui), é certo que podemos, em uma só voz, afirmar que a reconciliação entre as pessoas é um princípio bíblico fundamental. Como já expliquei, a Bíblia lida com o perdão ao próximo (Lc 17.4), com a reconciliação mútua (Mt 5.24, At 7.26), com a harmonia entre marido e esposa (1Co 7.11) e com a remoção de hostilidade entre grupos (Ef 2.16). Gulley, porém, ignora completamente a forma como essa paz horizontal é alcançada. Basta se esforçar? A igreja torna-se uma emulação da ONU? Protestamos contra as diversas guerras e conflitos armados mundo afora? As Escrituras, por sua vez, respondem à pergunta de como a paz é alcançada: “Porque ele [Jesus] é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade” (Ef 2.14). O poder para amar o próximo e para manter o vínculo da paz começa com a compreensão do amor de Deus por nós em Cristo. Esse é o fundamento da verdadeira paz: “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4.19). Em outras palavras, a paz horizontal (entre a humanidade) começa, antes de tudo, com o reconhecimento de que carecemos da paz vertical (entre Deus e a humanidade). E apenas Jesus pode fornecer paz com Deus. Inacreditável dizer, Gulley não parece ter interesse pelo método proposto por Jesus para receber paz. Para o autor, a paz não passa de um conceito político e social. Novamente, o cristianismo progressista, com seu desinteresse pela doutrina — e, por consequência, seu desinteresse por Jesus — é reduzido a mero moralismo. Problema Certo, Solução Errada Gulley está certo quando indica problemas com déspotas eclesiásticos que buscam dominar o rebanho ao invés de pastoreá-lo gentilmente. Líderes autoritários podem causar graves estragos tanto aos membros como à igreja em geral. Mas, embora Gulley esteja certo no diagnóstico, persistem as dificuldades quanto à cura. No esforço de livrar a igreja de líderes que ele julga autoritários, Gulley acaba por livrar a igreja de toda a sua autoridade. Ironicamente, essa libertação proposta pelo autor torna a igreja ainda mais vulnerável a indivíduos abusivos e suscetível a falsos ensinos. A cura para a liderança ruim não é o cessar absoluto de toda liderança. Pelo contrário, a má liderança deve ser substituída pela liderança piedosa, misericordiosa, gentil, cristocêntrica. Além disso, Gulley continua a pensar apenas no sentido horizontal. Sem Jesus e sem as boas novas do Evangelho, o referido autor não explica como alcançar a pacificação, tarefa difícil, quase impossível. Aparentemente, aos olhos de Gulley, as igrejas locais precisam simplesmente tentar mais vezes e com mais ímpeto, até conseguirem. Esse tipo de pacificação torna-se um jugo envolto em nosso pescoço — um arado que acabamos precisando puxar com a nossa própria força. Por isso, digo sem medo de errar: a melhor escolha é recorrer a Jesus, aquele que é o grande portador da paz; e Cristo a dará gratuitamente: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou” (Jo 14.27). CAPÍTULO 9 Deveríamos nos Preocupar mais com Amor e menos com Sexo Como já observamos, o cristianismo progressista é decididamente moralista: sua crença não importa, mas sim seu comportamento. Quão curioso, porém, é que essa abordagem não aparece em assuntos relacionados ao sexo. Quando o assunto se refere a questões sexuais, de repente os progressistas tornam-se a favor da liberdade e da escolha moral. Essa abordagem é evidente no nono mandamento da esquerda cristã: Deveríamos nos preocupar mais com amor e menos com sexo. De uma perspectiva retórica, trata-se de uma linguagem bem eficaz. Afinal, sua mensagem fala aquilo que as pessoas já querem ouvir — você tem toda a liberdade sexual que quiser e, ao mesmo tempo, é uma pessoa boa, um ser humano a favor do “amor”. Todos saem ganhando. O indivíduo pode manter qualquer prática sexual questionável e continuar se congratulando por sua superioridade moral. O livro de Gulley expande esse clichê a um argumento completo em prol da liberdade sexual. O autor ergue sua defesa adotando uma abordagem muito comum, portanto façamos uma breve análise de sua estratégia. Passo 1: Apresente as Virtudes Morais Daqueles que se Encontram em Pecados Sexuais O primeiro passo é mostrar que as pessoas envolvidas na disputa acerca do comportamento sexual são genuinamente boas, maravilhosas, seres humanos virtuosos e ecléticos. Esse movimento tem o objetivo de fazer as pessoas duvidarem se o pecado sexual é tão vil quanto a Bíblia diz ser. Afinal, se é tão ruim assim, como pessoas tão maravilhosas conseguem manter essas práticas? Em outras palavras, visto que pessoas maravilhosas se envolvem em comportamentos que considero errados, então, talvez, seja eu quem precise repensar se a prática em questão é realmente pecaminosa. Gulley faz esse movimento com astúcia brilhante. Seu primeiro exemplo é o de um casal com seus oitenta anos que convive e mantém relações sexuais com pessoas fora do casamento. O autor nos diz que ambos são pessoas “boas”, que “recebem calorosamente” outras pessoas em seu “modesto lar”, e que há fotos dos “netos espalhadas pelo corredor”.32 Aqui vemos como a estratégia de Gulley é amplamente edificada sobre a premissa de que determinada prática só será errada se as pessoas que a abraçam forem desagradáveis. Na verdade, o autor chega a essa conclusão sem meias palavras, a respeito do mesmo casal de idosos: “O lar que ambos criaram tornou-se um ambiente de profundo amor e respeito mútuo; nada daquilo parecia pecado para mim”.33 Mas não é dessa maneira que os cristãos pensam acerca da moralidade. Os cristãos não condenam um ensino ou uma prática somente quando se mostra desagradável. Nós, crentes em Jesus Cristo, não julgamos um comportamento baseando-nos em como as circunstâncias podem nos fazer “sentir”. Defendemos que algo é ruim quando este algo entra em conflito com o caráter de Deus, que é refletido em seus mandamentos morais. Logo, os cristãos defendem ser bem possível — na verdade, muito comum — que pessoas boas, com muitas outras virtudes, se envolvam em comportamentos extremamente errados. Quem comete pecados horríveis não são só os assassinos em série. Até mesmo a doce senhorinha ao seu lado pode cometer pecados, mesmo pecados graves. É claro, Gulley (e os pós-modernos, de modo geral) não vivem de acordo com a premissa defendida de modo consistente. Se ser “uma boa pessoa” torna um comportamento aceitável, então o que acontece quando uma pessoa considerada muito bondosa se envolve com uma prática repreensível? Por exemplo, molestar crianças. Gulley e seus companheiros certamente não defenderiam a aceitação dessa prática. Passo 2: Insista que Deus tem Coisas mais Importantes com que se Preocupar O próximo passo nessa estratégia é minimizar a santidade de Deus. O Senhor não tem tempo para se preocupar com o pecado sexual. Essa prática não o incomoda; ele tem problemas mais urgentes a resolver. A esse respeito, Gulley é claro enquanto fala acerca do casal de idosos: “Sabem, amigos, acredito que Deus tenha coisas maiores com que se preocupar. Apenas sejamos gratos que aquele casal de idosos tem um ao outro”.34 Certamente, as pessoas são livres para retratar Deus dessa forma. Na verdade, os progressistas geralmente pintam Deus como um sujeito descontraído — um tipo de avô fofinho que não quer se intrometer na sua vida, que só quer que você seja feliz. Esse, porém, não é o Deus da Bíblia. O Deus da Bíblia é infinitamente santo e, na verdade, lida em diversas partes de sua Palavra com a prática e o pecado sexual. E Deus não condena o pecado sexual por ser um radical ou retrógrado, mas porque o pecado sexual atinge o coração da nossa humanidade, agredindo violentamente o casamento, cujo propósito é refletir a união de Cristo com a sua Igreja (Ef 5.32). Passo 3: Mostre que o Comportamento Sexual Divergente conduz a Bons Resultados Esse terceiro passo estratégico é similarmente brilhante. Pois, nesse ponto, Gulley mostra como o pecado sexual traz alguns resultados positivos, ou ao menos como a prática sexual ajuda a resolver outros problemas. Por trás desse argumento há uma premissa sorrateira, ou seja, de que algo é bom — na verdade, que este algo deve ser bom — caso conduza a um bom resultado. Isto é, um bom resultado serve como prova positiva do valor moral pertencente ao comportamento que o produziu. Em relação ao casal idoso, Gulley nota que eles estavam financeiramente atados; logo, a vida a dois (como casal) os ajudava com as despesas. Além disso, ambos eram “solitários” e precisavam de companheirismo.35 Essa estratégia funciona bem, é claro, pois qualquer um que insista que o casal não deveria viver dessa forma parece insensível à situação financeira dos dois e indiferente para com a solidão deles. Mais uma vez, essa não é a perspectiva bíblica. Posso ser compassivo e compreensivo com a situação deles, enquanto os ajudo a seguir o mandamento de Deus acerca da prática sexual lícita. Não são decisões autoexcludentes. Além disso, é dever do cristão desafiar a ideia corrosiva de que dificuldades e sofrimentos justificam comportamentos pecaminosos. A incapacidade de pagar o meu aluguel não me dá o direito de roubar um banco, e tenho certeza de que o cidadão pós-moderno concordaria com essa ideia. Porém, em essência, essa é a lógica que os progressistas usam para tentar encobrir o pecado sexual. Passo 4: Retrate Aqueles que se Levantam contra Certas Práticas Sexuais como Pessoas Insensíveis e Cruéis Toda boa história tem seu revés, uma nêmesis contra a qual torcer. Nessa história do casal idoso, Gulley descreve o pastor da igreja que primeiro lhe informou sobre a situação do casal. Ao invés daquela descrição terna, positiva dada ao casal idoso, esse pastor recebe o tratamento contrário. Ele, então, é caracterizado como “crítico”, “indevidamente transtornado”, alguém que “categoricamente condena” os outros, ávido por perpetrar seu “código sexual meticuloso”.36 Gulley até mesmo dá a entender que o referido pastor é mesquinho, indisposto a ajudar financeiramente o casal de idosos. De acordo com esse retrato excessivamente simplista, o casal envolvido em pecado sexual deixa de ser o problema. O problema é esse sujeito que traz à tona o problema! Essa é a moralidade invertida da pós-modernidade (embora aplicada de forma inconsistente). Quando convém à agenda progressista mais genérica (por exemplo, assalto a banco, não pode; pecado sexual, sim, pode), a balança se inverte e passa a pesar dois pesos, duas medidas. O que falta, porém, ao argumento de Gulley é a ideia de que o pecado prejudica as pessoas e de que esse pastor talvez estivesse genuinamente preocupado com o prejuízo que o pecado sexual causa. Em outras palavras, é possível — uma ideia chocante para muitos em nosso mundo pósmoderno — ser verdade que confrontar o pecado é sinônimo de amor? Passo 5: Insista que Jesus Está do seu Lado O passo final na justificação do pecado sexual é ostentar o suposto apoio de Jesus. Para tanto, Gulley dá vazão a clichês básicos, como o de Jesus ser mais gracioso com pecadores do que com legalistas. O autor chega mesmo a apelar (não que seja uma surpresa vê-lo fazendo isso) à história de Jesus sendo ungido por uma mulher pecadora.37 Gulley, no entanto, não menciona que a mulher levou consigo os seus pecados e ajoelhou-se aos pés de Jesus, não em rebeldia, mas arrependida! Na verdade, Jesus relata àquela mulher que os pecados dela eram muitos, mas que todos estavam perdoados (Lc 7.47). Sim, Jesus perdoa a pecadores. Mas precisamos reconhecer e admitir que somos pecadores. Em suma, o nono mandamento de Gulley é uma obra de arte da esquerda cristã. Ele segue o manual clássico da justificação do pecado sexual e, à primeira vista, pode soar convincente. Mas, no final das contas, sua posição simplesmente não se sustenta. Não somos chamados a transformar o amor e a prática sexual em conceitos antagônicos. Pelo contrário, somos chamados a valorizar e estimar ambos. Como Paulo nos lembra: “Ninguém despreze a tua mocidade; pelo contrário, torna-te padrão dos fiéis, na palavra, no procedimento, no amor, na fé, na pureza” (1Tm 4.12). CAPÍTULO 10 A Vida neste Mundo é mais Importante do que a Vida no Mundo Vindouro Chegamos, por fim, ao décimo e último “mandamento” do cristianismo progressista. Este é um verdadeiro clássico: A vida neste mundo é mais importante do que a vida no mundo vindouro. É difícil imaginar uma única declaração que capture o ethos do cristianismo progressista com mais maestria do que o seu décimo mandamento. Na verdade, este princípio revela o pivô mais basilar dos progressistas, que se voltam deliberadamente contra assuntos eternos e enfatizam questões terrenas. Seus defensores pregam que o ser humano não precisa se preocupar com o que acontece depois da morte, pois ninguém realmente sabe o que acontece. Tudo o que importa é ajudar o pobre, alimentar o faminto e aliviar o sofrimento humano. Esse mandamento marca um final apropriado e condizente nessa pequena obra, pois incorpora concisamente muitos dos princípios do cristianismo progressista citados por Machen há muitos anos. A seguir, eis alguns deles, ecoando os conceitos mais gritantes apresentados nos capítulos anteriores. Preferir o Horizontal e Preterir o Vertical Para os cristãos progressistas, o ser humano sofre de um problema real. Não se trata, porém, de crer que a humanidade pecou e se rebelou em ofensas contra um Deus santo. Pelo contrário, o problema da humanidade é que existe sofrimento, guerra, pobreza, doença e fome. Em outras palavras, os progressistas definem os problemas da humanidade somente em conceitos horizontais (ou seja, a forma como o ser humano se relaciona com o próximo e com o mundo ao seu redor), e não em conceitos verticais (o relacionamento entre Deus e a humanidade). Como resultado, o ideal mais alto do cristianismo progressista não pode ser outro senão consertar o presente e ater-se a problemas temporais. Considerar a eternidade, na melhor das hipóteses, é perda de tempo. Na verdade, Gulley lamenta a “preocupação” da igreja com uma “ênfase exagerada” sobre o que acontece depois da morte e reclama das “fortunas que são gastas salvando pessoas de perigos e lugares imaginários”.38 Pregando o Moralismo, e não a Salvação Se não há eternidade com a qual se preocupar, então para onde a humanidade deve voltar a sua atenção? Às boas obras, é claro. Sua atenção deve se voltar à ajuda ao necessitado. A marca do cristianismo progressista é um compromisso pleno com a postura de ser “bom” e fazer coisas “boas”. Gulley usa as seguintes palavras: “Se a Igreja fosse cristã, faríamos o que Jesus fez — cada um ajudaria o seu próximo a viver neste mundo e pararia de se preocupar com o mundo vindouro”.39 É claro que qualquer um que esteja familiarizado com o ensino de Jesus há de considerar essa declaração genuinamente chocante. Cristo dava especial ênfase ao mundo vindouro e dele falava com frequência. Considere apenas um exemplo: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10.28). Sem inferno, sem pecado e sem julgamento, o cristianismo progressista não tem outra opção senão se tornar uma religião moralista. Reivindicar Incerteza Abraçando a Certeza No cerne do argumento de Gulley está a crença de que o inferno não é real. “Decidi não investir esforço em salvar almas de um inferno no qual não acredito”.40 Na verdade, ao longo desse mesmo capítulo, Gulley declara, repetidas vezes, que o inferno não existe. O autor aposta seu destino eterno (bem como o destino eterno de muitas outras pessoas) em sua convicção pessoal. Mas como ele sabe que o inferno não existe? O que falta no argumento de Gulley é uma forma de saber o que é ou não verdade. Ele nada mais faz que declarar sua crença sem qualquer base. A ironia das palavras de Gulley é que ele, na verdade, se posiciona como um humilde inquiridor, incerto de suas crenças. “Ainda não cheguei a uma compreensão definitiva de Deus, e penso que jamais a alcançarei”.41 Essa inconsistência realça uma das técnicas mais notáveis e perniciosas da esquerda cristã: alegar incertezas absolutistas, mas depois introduzir, sorrateiramente, suas próprias convicções, esperando que ninguém perceba a hipocrisia e a incoerência tão pungentes dessa posição. Conclusão Percebe-se, portanto, que o último mandamento de Gulley contém, com formidável astúcia, três marcas do cristianismo progressista. Seu décimo princípio enfatiza o ser humano, e não Deus; enfraquece e rebaixa a doutrina da moralidade; e, por fim, afirma incertezas para os outros, mas certezas para si mesmo. Tragicamente, a posição progressista faz uma cortina de fumaça diante da real mensagem do cristianismo — a verdadeira mensagem de Jesus. De fato, Cristo se preocupava com o sofrimento da humanidade e, sem dúvida, chamou todo crente a ter a mesma preocupação. Nós, porém, não tratamos o sofrimento humano como um ato de moralismo, mas como uma resposta à graça da cruz. Além disso, não lidamos exclusivamente com o sofrimento temporal, pois, mesmo que pudéssemos aliviar toda a aflição da humanidade, esse alívio não resolveria a maior das nossas necessidades. Nas palavras de Jesus Cristo: “Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?” (Mt 16.26). Sobre o autor Michael J. Kruger é o presidente do Seminário Teológico Reformado em Charlotte, NC, nos EUA, além de dispor da cátedra Samuel C. Patterson de Novo Testamento e Cristianismo Primitivo na mesma instituição. Notas 1 J. Gresham Machen. Cristianismo e Liberalismo (Recife: Os Puritanos, 2013). 2 Philip Gulley. If the Church Were Christian: Rediscovering the Values of Jesus (San Francisco, CA: HarperOne, 2010). 3 Disponível em: https://cac.org/returning-to-essentials -2017-11-30/. 4 Gulley, p. 16–17. 5 J. Gresham Machen. Cristianismo e Liberalismo (Recife: Os Puritanos, 2013), posição 1444 (Kindle). 6 Michael F. Bird. Jesus the Eternal Son: Answering Adoptionist Christology (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2017). 7 C. S. Lewis. Cristianismo Puro e Simples (São Paulo: Martins Fontes, 2005). 8 Para mais acerca do assunto, veja Larry Hurtado, One God One Lord: Early Christian Devotion and Ancient Christian Monotheism, 2. ed. (London: T&T Clark, 2000). 9 J. Gresham Machen. Cristianismo e Liberalismo (Recife: Os Puritanos, 2013), posição 771 (Kindle). 10 J. Gresham Machen. Cristianismo e Liberalismo (Recife: Os Puritanos, 2013), posição 1018 (Kindle). 11 Independentemente de como os progressistas definam ou entendam o termo “pecaminosidade”, os cristãos evangélicos reconhecem, com justiça, que todo pecado, em todos os sentidos, é consequência direta da Queda: vivemos num mundo caído, somos uma humanidade caída, em que todos são pecadores. 12 Gulley, p. 40, 30. 13 Ibid., p. 33. 14 Ibid., p. 37–40. 15 Ibid., p. 44, 43. 16 Ibid., p. 44. 17 Ibid., p. 54, 57, 61. 18 Ibid., p. 67. 19 Ibid. 20 J. Gresham Machen. Cristianismo e Liberalismo (Recife: Os Puritanos, 2013), posição 785 (Kindle). 21 Gulley, p. 93. 22 Ibid., p. 116, 118. 23 Os cristãos não creem que todo ensino da Bíblia é igualmente claro ou evidente, porquanto algumas doutrinas são difíceis de entender. No entanto, os crentes em Jesus Cristo creem, de fato, que são claras e evidentes a todos “as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação” (CFW, cap. I, VII). 24 Dan Kimball. Eles Gostam de Jesus, mas não da Igreja (São Paulo: Vida, 2011). 25 Gulley, p. 123. 26 Ibid., p. 125. 27 Ibid., p. 137. 28 Ibid., p. 126. 29 Ibid., p. 146. 30 Ibid., p. 144. 31 Ibid., p. 145. 32 Ibid., p. 157–159. 33 Ibid., p. 160. 34 Ibid., p. 158. 35 Ibid. 36 Ibid., p. 159. 37 Ibid., p. 166. 38 Ibid., p. 175, 176, 184. 39 Ibid., p. 184. 40 Ibid., p. 181. 41 Ibid., p. 18.