Teoria dasRelações Internacionais 2Q16 · ~ª·Ed!Ç~ _o· · ALi\lEDIN 1\ Teoria das Relações Internacionais Adriano Moreira – 2016 – 9ª edição Até à página 48 – Notas e Prefácios às anteriores edições Capítulo 1 Introdução § 1º A ComunidadeInternacional 1. Autonomia disciplinar das relações internacionais O problema da autonomia disciplinar das relações internacionais é um aspecto do problema da autonomia disciplinar da ciência política. Assim como esta se definiu na base de um facto social relevante que foi.o poderpolíticosoberano,isto é, uma capacidade de obrigar que não tem igual na vida interna da comunidade, nem tem superior na vida externa, as relações internacionais ganharam autonomia na base do facto social consequente, isto é, que a pluralidadedepoderespolíticossoberanos implica relações de perfil específico, o qual encontrou uma primeira expressão no conceito recuperado de estadode natureza. Este conceito foi criado pelos chamados contratualistas,umas vezes atribuindo-lhe alcance de hipótese outras de deliberada ficção: mas trata-se, em qualquer dos casos, de explicar a passagem da vida do Homem de uma situação imaginada anterior à existência da sociedade para a situação, em que o conhecemos, de viver sempre e apenas em sociedade. Realmente, a questão não é a de uma interdependência necessária entre os homens que não se concebe que alguma vez não tenha existido, mas sim a de obediência a uma lei ou natural,ou positiva.De novo aqui a coincidência das palavras obriga a uma distinção de sentidos. A leinaturalou direitonaturalrefere-se a um conjunto de leis a que os homens devem obedecer pela natureza delas, ainda que não exista um poder que as imponha. A afirmação de que devemobedecer não se refere à explicação da conduta 49 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS dos homens, mas sim àjustificaçãodessa conduta; refere-se ao que podemos chamar a obrigação moral.O alcance desta depende de urna filosofia de valores, à qual faremos referência oportuna. Por agora, importa-nos salientar que o referido estadode naturezanão foi suposto por todos os autores com igual moldura. Não parece que algum deles tenha imaginado a existência do Homem sem referência a urna lei naturalou direitonatural.Esta lei natural,no caso de existir, é inspirada pela justiça que a racionalidade aceita. Mas a questão era a de haver ou não haver um poderorganizadopara impor a obediência desse direitonatural, ou, no caso de a existência deste não ser aceite, para impor um direito positivo directarnente derivado do contratodoshomensou da vontadeproeminentedo poder instituído. Na visão de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que escreveu o Contrato Social(1762), "os homens nasceram livres, e por toda a parte estão submetidos à escravidão". Afirma que o Homem é bom e livre por natureza, e que foram as instituições e o poder político que o corromperam. A lenda do bom selvagem, talvez inspirada pelo contacto dos descobridores com as sociedades aborígenes americanas, cuja estrutura não compreenderam logo, está nesta orientação. O poder corrupto que tinha em vista parecia ser o poder absoluto do Antigo Regime, que a Revolução Francesa derrubaria. Isto porque, em vez de advogar a eliminação de qualquer poder político, corno fazem os anarquistas, sustenta que a democracia directaé a única forma de preservar a liberdade dos homens, porque, neste regime, toda a limitação da liberdade deriva do consentimento prévio. De facto, a própria aceitação da democracia directa traduz-se na cedência de urna parte da liberdade à sociedade, a submissão das minorias às maiorias. Esta submissão tem a forma de um contratosocialentre todos e cada um dos membros da sociedade, para o bem geral. Deste contrato deriva urna associação com identidadee subjectividade, com urna vontadegeral,associação que olhada enquanto passiva se chama Estado,e enquanto activa se chama soberano. À questão de saber corno é que as minorias são livres quando obedecem à vontade das maiorias, responde justamente que a votação se destina a interpretar a vontade geral, e que a minoria apenas se engana na interpretação da mesma vontade que a maioria exprime. A vontadegeralé pois imaginada diferente da vontadede todosou da vontadedegrupos,deixando assim sem resposta o chamado paradoxoda democracia. À circunstância de, pelo contrato social, ser criada a vontade geral, um poder soberano, infalível, inalienável, indivisível, conduz a admitir que os homens podem ser forçadosà liberdadeno caso de não quererem submeter-se à vontade geral,como seria a hipótese das minorias rebeldes. O próprio Rousseau admitiu 50 INTRODUÇÃO ue a sua doutrina tinha uma eventual componente de tirania, mas não encon;rava maneira lógica de resolver essa quadratura do círculo 4 • Diferentemente dele, John Locke (1632-1704), um dos teóricos do liberalismo moderno, defendeu a existência de direitosnaturaisinalienáveis, implantados por Deus nos seres racionais. Os seus dois Treatises of CivilGovernment(l690), e a sua Letteron Toleration(1689), são os clássicos do governo limitado pela lei, e da sociedade pacificada pela tolerância. Os direitos naturais, os direitos originários como lhes chamou o nosso velho Código Civil do Visconde de Seabra, existem antes de instituída a sociedade políticae esta foi voluntariamente instituída pelos homens (contrato) para eliminar as ocasionais violações daqueles direitos. Os principais desses direitos são o direito à vida, à integridade física, a caminhar de um lado para o outro, à propriedade. Tais direitos não podem ser limitados ou eliminados excepto pelo consentimento, e talvez nem todos como seriam as excepções do direito à vida e à liberdade física. Deste modo contraria todas as legitimidades políticas que não se baseiem no consentimento, designadamente a hereditária das monarquias absolutas. O governo legítimo deriva do pacto social, do contrato, do consentimento. É pelo pacto social (compact) que os homens livres aceitam a limitação dos seus direitos naturais em favor da segurança oferecida pela sociedade. Embora não exista prova histórica deste alegado procedimento, parece-lhe pelo facto de os homens que existe um visível e demonstrado tácitoconsentimento não abandonarem as sociedades a que pertencem. Esta teorização estava ligada à justificação da chamada GloriosaRevolução inglesa de 1688, fornecendo a base da teoria do governo pela lei, da economia de mercado, e das relações contratuais do trabalho. E foi muito inspiradora dos "Founding Fathers"dos Estados Unidos. Ainda noutra linha, Thomas Hobbes (1588-1679) escreveu o famoso Leviathan(1615), onde procura definir o que se entende por naturezahumana,soberania,obrigação política,e lei.Admite que existe o direitonatural,que todos os seres racionais devem apreender e seguir, tal direito tem autoridademas não qualquer poderque o faça respeitar no estado de natureza, isto é, antes da instituição do poder político: nessa situação a vida social é uma guerra de todos os homens contra todos os homens. A segurança é obtida por um contratosocial,talvez em duas fases: primeiro, entre cada um e todos os homens para instituírem o soberano que os governará; depois, entre eles e o soberano a quem entregam o poder de fazer executar e cumprir o contrato social. • Jean-Jacques Rousseau, Du ContratSocial(1762); Émileou Traitidel'éducation (1762); Projectsde Constisurfe Gouvernementde la Pologneetsursa riformation(1772). tutionpourla Corse(1765); Considirations 51 TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Tal soberano é um homem, ou uma assembleia de homens, e as suas determinações só podem ser repudiadas por rebeliãocriminosa. De facto, Hobbes é considerado, com Bodin (1530-1596), um teórico do absolutismo , embora seja certo que, sem total coerência, sustenta que existem limites à acção do Estado derivados do direito natural, e sugere que a legitimidade tem de encontrar apoio no consentimento. O estado de natureza, e o contratualismo, foram negados por correntes importantes, designadamente por David Hume (1711-1776),por Hegel (1770-1813)e Karl Marx (1818-1883),que consideraram toda a construção absolutamente incoerente. Isto porque ela supõe que o tácito consentimento é possível contra a realidade social (Hume), ou a racionalidade possível fora da sociedade organizada (Hegel), ou porque não parece aceitável admitir que os homens queiram abandonar o estado de natureza para construírem a sociedade capitalista vigente (MacPherson) 5• Independentemente das doutrinas sobre o estado de natureza anterior à instituição da sociedade política serem, ou não serem, logicamente aceitáveis como chave de interpretação da formação das entidades soberanas, a vida internacional, como foi sublinhado por Locke, essa demonstra visivelmente um estado de naturezaa desafiar um continuado esforço para a racionalizar e submeter a instituições políticas que dispensem o uso da força. Por isso, como notou Raymond Aron, o cronista por excelência do século XX, ainda hoje é ofenómenoda guerraque mais evidentemente determina a autonomia deste campo de estudo chamado relações internacionais, porque cada um dos intervenientes, agentes ou actores dessas relações, se reserva o direito de recorrer à força própria para defesa do que considera o seu interesseou o seu direito6 • Esta situação de facto obriga a recordar alguns conceitos operacionais importantes, quer para entender a vida interna dos corpos políticos, quer a chamada vida internacional. Primeiro o conceito de interesse: exprime uma relação favorável entre pessoas e coisas ou entre pessoas e outras pessoas, para a satisfação de uma necessidade própria. Mas é de notar que a necessidade e o interesse existem seja qual for a maneira como a relação se estabelece, por consentimento ou por violência. Estas diferentes formas de estabelecer a relação favorávelfazem apelo a valorações diferentes, umas que consideramos justas ou morais , e outras injustas ou imorais . É esta circunstância que reconduz grande parte da vida internacional ao conceito de estadodenatureza. ' Raymond Aron, SociologiedesSociétisIndustriel/es,Les Cours de Sorbonne, s.d., (pai.), 16' lição, "Les théories du régime soviétique". '· Raymond Aron, Paz e Guerraentreas Nações,Brasília, 1962, é um dos livros que datam a autonomia científica das relações internacionais. 52 INTRODUÇÃO Os entes colectivos soberanos estão numa relação favorável para satisfazer •nteresses próprios, com o território, as águas fluviais ou marítimas, o espaço ~éreo, os grupos étnicos e culturais, e assim por diante. Seja qual for a natureza e origem dos valores a que subordinemos a justiça dos seus interesses, é cada um que em primeiro lugar julga, afirma e defende essa justiça, recorrendo eventualmente à força que normalmente assume, nestes casos, a natureza da guerra aos oposito~es. Veremos o~ resultados da lu~asecular par~ in_stitucionalizar a solução pacifica dos conflitos, mas aquela liberdade ou direito de fazer a guerra ainda é característica, social e politicamente, da comunidade interna cional, independentemente dos avanços formais do direito internacional, hoje orientado no sentido da negação total da legitimidade da guerra. A crescente complexidade da vida internacional tornou pois inevitável a autonomia desta área de estudo, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).A própria Sociedade das Nações patrocinou, na década de 30, 0 desenvolvimento destes estudos, sendo essa acção documentada pelo livro de Alfred Zimmern, UniversityTeachingof InternationalRelationsde 1939; por seu lado a UNESCO, já na vigência da ONU, depois da guerra de 1939-1945, impulsionou esses estudos, sendo o seu esforço documentado pelo trabalho InternationalRelations,edide Manning, The UniversityTeachingof SocialSciences: tado em Paris em 1954. Os mais clássicos autores desta disciplina, como Quincy Wright (TheStudyof Jnternational Relations,N .Y.,1955), Palmer e Perkins (InternationalRelations:The WorldCommunityin Transition,Cambridge, 1956), Hans J.Morgenthau (Politics amongNations,N.Y.,1954), Raymond Aron (Paze GuerraentreasNações,Brasília, 1962), quer adaptem o método de enumeração dos temas para definirem o seu campo de estudo, quer pretendam formular um conceito operacional, sempre evidenciam a guerra como um tema fundamental e autonomizador da área 7• Do ponto de vista conceitual, alguns autores definem a disciplina das relainterestaduais, definições internacionais como sendo a que se ocupa das relações ção que outros afastam porque não abrange as relações, por cima das fronteiras dos Estados, entre grupos ideológicos ou de interesses que condicionam as relações interestaduais. Por isso alguns sugerem que a definição restritiva seja refeentrepovosqueafectemopodersoberanodosEstados.Há quem a defina rida às relações como a disciplina que estudaosfactorese actividadesqueafectamapolíticaexteriore opoderdasunidadesbásicas,por exemplo, Estados e grandes espaços 8 • 7 Adriano Moreira, PolíticaInternacional,Porto, 1970, Cap . l; Adriano Moreira, A comunidadeinternacionalem mudança,2' ed ., Lisboa, 1982. • Hoffmann , Teoríascontemporáneas sobrelasrelacionesinternacionales , Madrid, 1979. 53 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Seja qual for o conceito, ele não deixará de suscitar dúvidas de concretização quanto aos problemas de fronteira ou interdisciplinares. Mas estes apenas não surgem aparentemente em relação às áreas de autonomia antiga porque o tempo estabilizou as soluções departamentais. O núcleo central de todas as definições propostas é o conjuntode relações entreentidadesquenãoreconhecem um poderpolíticosuperior,aindaque nãosejamestaduais,somando-seas relaçõesdirectas entreentidades formalmentedependentes depoderespolíticosautónomos. Este conceito operacional considera como agentes das relações internacionais, em primeiro lugar, os Estados;mas também as organizações internacionais que congregam a cooperação de Estados sem terem poder político mas sem internacionaisou transestaduais(organiobedecerem a nenhum; as organizações zações não-governamentais) nascidas da sociedade civil que cortam os limites designadamente qualificados de terdas fronteiras políticas; os podereserráticos, roristas, que se confrontam com os Estados sem lhe reconhecerem superioridade; as instituiçõesespirituaisde vocação mundializante, como a Igreja católica, que assumem a autoridadeindependente mesmo sem qualquer poderp(?lítico;os indivíduosque de facto, ou de direito, assumem uma intervenção , não subordinada ao poder político, na vida internacional 9• Isto levanta uma questão semântica importante, que é a de saber porque é que então estas relações se chamam internacionais, quando a maioria dos Estados existentes no mundo não correspondem a nações, e grande número de agentes não são Estados. Uma primeira razão para nem sequer discutir a validade da expressão está no seu antigo e continuado uso, sem que o saber se acrescente com rectificações sempre elas também discutíveis. Mas outra razão, mais importante, é que a expressão, que mantém a filiação valorativa no direitointernacional, disciplina normativa bem mais antiga, parece fazer apelo ao objectivo ético de reconhecer que a cada Nação deve corresponder um Estado, que a Nação é a forma ocidental mais rica de potencialidades para viabilizar a autonomia e independência dos povos. Não parece haver qualquer razão para substituir uma designação que se tornou clássica e se baseia em motivações de relevo, por outra que sempre também daria causa a ambiguidades. 2. Interdisciplina A sociedade internacional, ao contrário das sociedades politicamente organizadas em Estados, não corresponde ao modelo de sociedadeintegrada.Neste último modelo, uma autoridade suprema recolhe a lealdade dos indivíduos e dos grupos intermédios, lealdade que não se dirige ao bem comum da Huma'' Georges Berlia, Coursdesgra11ds problcmespolitiquescontemporains, Paris, Les Cours de Droit , 1967-1968 (pol.), faz uma aplicação do método da enumeração para definir o objecto. 54 INTRODUÇÃO .dade que os transcende, mas sim a uma sociedade política. Nesta é que as ;~nções sociais estão definidas e i~terli~adas, desenvolvendo-se_complementarmente para salvaguardar a funcionalidade do modelo e a realização do seu bem comum privativo. A sociedade internacional, essa ainda hoje não é uma comunidade integrada, e não corresponde às características do Estado moderno com um conceitoestratégicoprivativo,uma organização racionaldopoderpolítico,um instrumentoburocráticoe um sistemajurídico coerente.Como evidencia Manning, a ciência política do Estado começa pelo contexto para depois se ocupar das relações abrangidas dentro dele; as relações internacionais começam por estudar as entidades básicas para depois examinar as conexões exteriores 10• Esta circunstância fez com que o problema da interdisciplina e do método interdisciplinar tenha maior relevo neste ramo das ciências políticas que são as relações internacionais, do que noutras ciências sociais como a sociologia, ou a economia que é talvez a mais autónoma de todas. A questão da interdisciplina tem mais de uma faceta e conviria evidenciar algumas delas. Em primeiro lugar, tem que ver com a classificação e arrumo das disciplinas científicas , ou classificação das ciências, que sofre uma revisão periódica. A longa duração, sobretudo institucionalizada em escolas e departamentos , de uma classificação que sempre corresponde a uma data histórica e ao saber e perspectivas então disponíveis, faz esquecer a transitoriedade instrumental das divisões e dificulta sempre a revisão do enquadramento e a autonomia de disciplinas novas imposta pelo alargamento dos campos de estudo e afinamento das perspectivas e instrumentos de análise. Um remédio para o exame de problemas novos, ou vistos de novo, e que rompem as tradicionais definições dos campos de estudo e respectivas técnicas, é a convergência dos especialistas, com as suas específicas perspectivas, para o exame em comum da questão. Esta convergência interdisciplinar será normalmente o passo inicial de uma futura definição autónoma de um novo objecto, de novas metodologias, de uma nova disciplina. Foi assim que a ciência política se autonomizou em face do normativismo do direito constitucional, e que as relações internacionais se autonomizaram dentro da ciência política. Mas a interdisciplina, enquanto não se atinge o patamar das definições autónomas, dá origem, institucionalmente, aos grupos polivalentes de investigadores, que adquirem eventualmente estabilidade formal, e que convergem, com a pluralidade das suas especialidades, para o estudo de um problema que não cabe nas definições tradicionais. É muito ainda a situação actual das relações internacionais, entregues a departamentos autónomos "'Thc U11iversity Teaching , cit., p. 74. 55 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS das instituições da investigação e do ensino, mas procurando assegurar uma formação consistente a partir da convergência de especialistas com formações perfeitamente diferenciadas, tal como historiadores, sociólogos, economistas, geógrafos, estrategas, juristas, filósofos e politólogos. A definição gradual do seu objecto específico leva progressivamente ao arrumo tradicional das espenucleares e disciplinas auxiliares. cialidades convergentes entre disciplinas O primeiro e principal esforço é portanto o de conseguir uma definição, mesmo e frequentemente pelo método da enumeração, dos problemas que integram o âmbito das relações internacionais. As necessidades interdisciplinares serão então mais evidentes, não podendo esquecer-se nunca a arbitrariedade razoávelque está na base de qualquer definição operacional ou enumeração de temas. Entre as muitas sugestões, quase tantas quantos os autores, podemos aproveitar o essencial da proposta de René Coste: 1) as relações internacionais são as que decorrem entre poderes ou autoridades que não reconhecem outros superiores, ou por cima das fronteiras territoriais entre grupos e indivíduos formalmente subordinados àqueles poderes ou autoridades; 2) como ramo do saber, organiza uma série de técnicas e métodos agregados com perspectiva multidisciplinar, com o fim de elaborar hipóteses, e identificar os temas, classificar os objectivos axiológicos, definir as alternativas possíveis da evolução, julgar da equação entre as alternativas e os objectivos identificados; 3) as relações internacionais podem descrever-se em termos de formaçãodedecisões por indivíduos situados numa circunstância social concreta 11• 3. Da sociedade à comunidade internacional Esta conclusão do processo evolutivo que levou à autonomia científica e pedagógica das relações internacionais foi uma resposta à evolução da sociedade interque está em curso. A partir nacionalpara o modelo da comunidadeinternacional do movimento das Descobertas, data em que começa a construção do Euromundo, também se desenha a consequência, hoje consumada, de se extinguir um mundo de áreas separadas e até mutuamente ignoradas. A racionalização da nova conjuntura, de elaboração demorada, teve acidentes graves de falta de entendimento recíproco e de comunicação 12• A lenda do bom selvagem, que tanta importância haveria de ter no contratualismo, correspondeu à visão deformada das sociedades aborígenes sul-americanas, que inspiraram a convicção de que poderiam existir sociedades sem poder político. René Coste, MoralInternacional , Barcelona, 1967, p. 38. Adriano Moreira, A Europaemformação,2' edição, S. Paulo, 1976, onde se analisa a formação, exercício e crise do Euromundo. 11 12 56 INTRODUÇÃO contacto com a intimidade de África, muito para além do conhecimento 0 orádico de africanos, anterior ao movimento das Descobertas, levantou até esp estão teológica de saber se teriam alma, e socialmente dinamizou os fenóa qu d . enos gravíssimos do transporte e escravos para outros ~ontmentes e a polí~ca de discriminação, agora em processo de extinção na Africa do Sul. t A admissão de todas as comunidades na vida internacional, em princípio m voz própria, apenas se verificou realmente depois da guerra de 1939-1945, c~m O movimento geral da descolonização consagrado na Carta da ONU. Isto cignifica que o alargamento da área de regência do direito internacional foi :ntecedido pelo desenvolvimento da interdependência e solidariedade, mesmo sem igualdade, das áreas geográficas, étnicas e culturais, que durante séculos se relacionaram numa base de hierarquia e su?ordinação . No começo da guerra de 1939-1945, toda a Africa era uma colónia da Europa, a Ásia não tinha peso político, mesmo quando tinha personalidade internacional formal como a China, na balança de poderes internacional. Pelo contrário, todo o continente americano, com ligeira excepção, assumira um lugar igual na comunidade internacional depois da crise europeia do bonapartismo, e na sequência da independência dos EUA em 1779, ficando o Brasil abrangido no movimento e com a independência consagrada pelo tratado de 1825. Mas esta primeira grande vaga do anticolonialismo liberal, no sentido do alargamento, em pé de igualdade, a várias regiões do mundo, não teve o mesmo significado do movimento posterior a 1945, porque neste caso foram os povos nativos que assumiram uma voz própria, e naquele do século dezanove foram realmente europeus emigrados que comandaram as referidas independências . dogénerohumano As alterações políticas que encaminharam para a consideração comoumasócomunidademundial,com uma aspiração visível a um direito igual e não imposto por uma área do mundo às outras, foram tornadas possíveis por várias revoluções 13 • A primeira delas foi a revolução científica e técnica que teve a sua intervenção constitutiva e salto qualitativo no sentido da mundialização da sociedade internacional logo que dominou as ondas e organizou a revolução e da informada comunicação. Produziu o fenómeno chamado da simultaneidad ção,de tal modo que, em qualquer ponto do mundo, em qualquer momento, se verifica uma projecção global dos acontecimentos em curso ao redor da Terra e uma chamada global dos povos à reflexão. O que fez surgir um novo problema de dep endência, porque o domínio dos mecanismos da informação por 3 Adriano Moreira, "A lei da compl exidade cre scente na vida internacional ", in Comentários,Lisboa , 2' ed., 1992, p.11. Teilhard de Chardi n, "La vida cósmica ", in Escritos deitiempodeguerra(1916-1919),Madrid, 1967; Chardin, Quelquesréflexionssur/e retentisse mentspiritueldela bombe atomique,Pari s, 1946, p. 25. ' 57 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS um agente interveniente na vida internacional, Estado ou entidade privada de projecção transestadual, pode orientar tendenciosamente o processo de formação de decisões internacionalmente relevantes. Outra revolução foi a alteração quantitativa da relação entre os grupos étnicos, com o decréscimo relativo da etnia branca, vítima do que já chamam lapeste blanchee que altera os equilíbrios étnico-culturais externos como está a resultar da chamada bombademográfica situada no Norte de África, sendo de reter que o Euromundo foi uma construção da etnia branca. Por outro lado, no que se refere à forma extrema de os Estados afirmarem os seus direitos e interesses, que é a guerra, todas estas modificações produziram um fenómeno comprovado em duas guerras, e que foi a mundialização dos teatros estratégicos, durante séculos pura e simplesmente regionais. Tal mundialização foi corolário, e outras vezes causa, da corrida armamentista, que viu nascer neste século a guerraatómica,a guerraquímica,a guerrabacterioainda desconhecidas da geração que viveu as difilógica,a guerrameteorológica, culdades do começo deste século. A própria vida económica conheceu os mercados transnacionais e as organizações económicas multinacionais, que pretendem competir internacionalmente com o que chamam as armasdapaz em substituição das armasdaguerra. No domínio científico, aconteceu que raros Estados podem acompanhar a superpotência ocidental, que ainda são os EUA, único que pode organizar um instrumento de investigação como a NASA, o que obriga não só à internacionalização mas também ao reconhecimento e aceitação geral de dependências e interdependências mundiais, científicas e académicas, desconhecidas no passado. Esta nova configuração da sociedade internacional teve o efeito de reforçar fazendo convergir técnicas e sabea necessidade de recorrer à interdisciplina, res estruturados em diferentes e anteriores conjunturas. As disciplinas que apareceram como dominantes nessa aproximação foram a ciência política, a economia, o direito, a história, a diplomacia e a estratégia, que finalmente se congregam em currículos destinados à formação específica de investigadores e profissionais. Os quais se deparam com um objecto que, em vista das interdependências crescentes, abandona progressivamente o modelo de sociedade internacional, no qual o contrato é o instrumento por excelência para desenvolver estruturas e instituições comunitárias. 4. O normativismo internacional Tudo isto implica que reconhecemos uma realidade chamada comunidadei11terpor débeis que ainda sejam as estruturas. Também aqui é necessária 11acio11al, uma prevenção semântica, visto que indiferentemente se usam as expressões 58 INTRODUÇÃO . dadee comunidade.Ora, de acordo com a proposta do sociólogo Ferdinand soc1e . uma d'c r 0..nnies (1855-1936), existe 11erençaentre os grupos que por vezes amb as lavras confundem, e que ele respectivamente chamou Gesellschaft(socieas pa . (comum'd ad e). d de) e Gememschaft ª A expressão comunidade designa um grupo social ao qual se pertence sem identificado em termos de vida comum, interesse comum, cooperaescolha , . _ . ão e interacção entre os seus membros na busca da reahzaçao desse mteresse ç com sentido comum de pertença entre os membros do grupo: é o caso da ~mília, da Nação, da região, do município. Nas sociedades todos os elementos se podem encontrar, excepto que a entrada no grupo é voluntária, o objectivo tem limite temporal mais ou menos determinado, não é pressuposta a continuidade e duração para além da sucessão das gerações: são exemplos as sociedades culturais, as empresas económicas, as alianças para objectivos concretos. Sabe-se que uma sociedade se transforma eventualmente numa comum'd ade14. A questão da existência de uma comunidadeinternacionalsignifica indagar se O conjunto da Humanidade, dividido em grupos que muitos deles assumem um poder em relação ao qual não reconhecem poder superior, tem já as características de uma comunidade, independentemente da indiferença com que se usam as expressões sociedade e comunidade ou se é apenas um conceito nominativo. Algumas correntes conservadoras afirmam que a Nação-Estado é a organização mais ampla que tem a experiência acumulada necessária para fundar uma vida comum, afastando inteiramente o conceito de que a Humanidade é uma entidade social real, um objecto de devoção e um guia de responsabilidade moral. Todavia,esta atitude, muito filiada no hegelianismo, parece completamente em desacordo com os factos e com os valores vigentes na vida internacional. Em primeiro lugar nunca foi exacto que houvesse a coincidência necessária Nação-Estado, um princípio político apenas proclamado no Ocidente nos 14 Pontosdo Presidente Wilson na guerra de 1914-1918.Mesmo no espaço ocidental nunca foi um princípio com inteira validade, porque há vários Estados multinacionais, porque existem nações divididas entre vários Estados, e porque a esmagadora maioria dos Estados do mundo têm necessariamente um povo mas este não é uma Nação. 1 • A evolução do isolacionismo para a sociedade internacional, e depois para a comunidade internacional, reduz-se à problemática da integração.Ver o livro básico de Karl Deutsch {et. ai.), Política/ Communityand the North Atla11ticArca, Princeton, 1957. Philip E. Jacob e James V. Toscano {edc.),The lntegratio11 of PoliticalCommu11ities, Filadélfia, 1964. Ferdinand Tiinnies, Community and Association, Londres, 1955. 59 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS As fidelidades referem-se a valores diferentes da Nação, designadamente a coroa, a confissão religiosa, a circunstância adversa comum ou global muito desafiante, que empurra para a unidade política. É este último facto que determina a evolução contemporânea no sentido de formar aquilo que se vai chamando os grandesespaçosdestinados a superar a incapacidade do Estado clássico para responder às necessidades actuais dos povos. É o caso dos espaços militares duradoiros, como a NATO e foi o Pacto de Varsóvia, ou, em plano diferente, a União Europeia. O sentimento de fidelidade comum a valores comuns, à nova estrutura política definida, ao interesse comum, e a intervenção individualizada na vida internacional não assentam necessariamente no carácter nacionalda pluralidade de povos abrangidos pelo enquadramento novo. Ora, se as hesitações teóricas podiam ainda ser avançadas antes da última guerra mundial, depois disso os vários fenómenos de efeito mundial e mundializante, que alguns ficaram referidos, já não permitem negar a existência de um interessecomumdaHumanidade,assumido até institucionalmente por exemplo pela Organização das Nações Unidas, e que é a primeira referência de uma comunidade mundial. Sem estrutura política, sem poder emergente, mas vinculada a um património comumdaHumanidadee a um normativismo correspondente. O património comum da Humanidade abrange, designadamente, o maralto em que nenhum Estado pode exercer soberania, o outer-space e os corpos celestes que não podem ser apropriados por nenhum Estado, a Antárctida, e bens imateriais como a paz, a solidariedade entre povos ricos e povos pobres, a cooperação Norte-Sul do mundo, a variável comum do medo em face da domesticação da energia atómica e do risco do holocausto nuclear por acção internacional ou simples erro humano 15• A imperfeição da estrutura em desenvolvimento da comunidade mundial, que não criou um poder político federador dos vários poderes políticos que não admitem superior na Ordem internacional, tem como consequência que o estadode naturezaainda é um conceito que corresponde a muitos aspectos da vida dessa comunidade, e que esta aparenta sinais frequentes de disfunção e quebra de paz, reconduzíveis pelo menos a duas circunstâncias: 1) não existe igualdade entre os membros dessa comunidade, mesmo que o direito internacional o proclame, porque a regra continua a ser a de uma hierarquia real baseada na força disponível; b)não existe uma arbitragem acatada para os conflitos entre o interesse geraldaHumanidadee o interessesupremode cadaagente 15 Mihajlo Mesarovic e Eduard Pcstel, Mankind at the turningpoint:the secondreportto the Club ofRome, N.Y.,1974, Cap. 6°. 60 INTRODUÇÃO unidade internacional, os mais importantes deles sendo os Estados. dia O famoso Bium, primeiro-ministro da França, na Sociedade das - existira . . , nunca, uma or d em d e - s· "Não existe, e con fiiamas em que nao Naçoe . • · que integram · . . l. edência entre as potencias a comum "dad e mternac10na pre: estabelecesse no seio da Sociedade das Nações uma hierarquia dos Esta· arruma · d a, mora l e matena. lmente. " Uma ob servação Se d s a Sociedade fi1cana º:•obviamente não correspondia aos factos da SdN, e também não veio a corqu ponderaos da ONU, onde os cinco grandes (EUA,Rússia, França, Inglaterra, ~~ina) têm no Conselho de Segurança um direito de veto em relação a todas s questões que respeitem à paz e segurança internacionais, privilégio hoje a " . reclamado por outras potencias. A existência da comunidade, independentemente da existência de um poder político federador, levanta a mesma questão com que os contratualistas se defrontaram ao tentar racionalizar a formação do Estado a partir do estado denatureza,e que é a da existência de um normativismo geral, com o nome de ética ou de direito. Podemos admitir que, havendo interdependência de homens e grupos, o problemadosvaloresé inevitável, e a proble~ática do direito natural surge imediatamente. Pelo que toca aos valores, a orientação que nos parece aceitável é a que aceita a não-indiferença do mundo, o que significa que, em relação a todas as coisas, reconhecemos um sinal particular que nos leva a considerá-las santas ou profanas, justas ou injustas, boas ou más, e assim por diante. Daqui resulta a distinção entre juízos deexistênciaejuízos devalor,sendo que os primeiros enunciam o que uma coisa é, e os segundos o que uma coisa vale. São juízos que também fazemos a respeito das relações entre indivíduos e entre colectivos como os Estados. Uma atitude possível é concluir que os juízos de valor são impressões subjectivas de agrado ou desagrado que as coisas nos produzem e projectamos sobre as coisas. Por outro lado, o facto que os latinos sequor(vejo o que é melhor e exprimiam dizendo - vídeomelioraproboque,deteriora aprovo, mas sigo o pior) parece demonstrar que o valor é alguma coisa de objectivo, que não se demonstra, mas que ele se mostra, como se passa com a obra de arte (beleza) ou com a relação humana (justiça). Acontece, como nota García Morem e, que os valores se descobrem, no sentido rigoroso da palavra descobrir, e aparec em como alguma realidade finalmente encontrada. Sustenta-se por isso que os valores nem são coisas, nem impressõe s subjectivas, deles apenas se pode dizer que valem. A essência do valoré a não-indiferença, é não ser indiferente. Por isso Husserl lhes chama objectos não independentes, isto é, que não têm natureza substantiva independente, aderem sempre a outro objecto, que é belo, é justo, é bom . d: co:m Disse 61 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS São portanto qualidades, e independentes do tempo e do espaço e da quantificação. Não se pode dizer de um acto que é dez vezes justo, nem que a sua justiça depende do tempo e do lugar. São portanto absolutos, isto é, não têm a validade dependente das épocas. Mas acontece que a capacidade dos homens para os reconhecer, essa é relativa, como é plural a maneira de os afirmar, pelo que existem conjunturas e épocas que não consentem aos homens, ou a certas comunidades, a sua descoberta, ou a coincidência nas avaliações. É neste ponto que a concepção dos valores como absolutos se encontra com o relativismo, porque tem de reconhecer e respeitar o pluralismo das leituras, que as valorações assumidas variam no tempo e no espaço para os processos e para cada grupo cultural, e são diferentes conforme as comunidades 16• A experiência da vida separada e sem comunicações, durante séculos, das várias comunidades, deu assim lugar à criação de sistemas culturais específicos, cujas valorações dos interesses e condutas recíprocas, assim como das normas a que devem subordinar-se, não coincidem. A unidade que vivemos encontrou-se com um mundo que a UNESCO chamou de múltiplasvozes. O estado de natureza da comunidade internacional, no sentido que ficou referido, suscita então o mesmo problema que os contratualistas e liberais levantaram para a definição da sociedade civil e do Estado, e que Grotius (1583-1645) referia à sociedade internacional, o qual é o de saber se existe um direito naturalque, independentemente do facto de não existir um poderpolítico,e acolhendo o pluralismo cultural das várias comunidades, seja um padrão comum das novas relações comunitárias. Pode falar-se também e antes de uma ética internacional,sobretudo para com a expressão afirmar que se trata de normas sem coacção física organizada no sentido de impor a sua observância·, mas hierarquicamente superiores ao direito internacional organizado e vigente para o actual patamar da evolução. Para responder a este problema temos duas tradiçõesocidentais:a tradição maquiavélicae a tradiçãopersonalista. A primeira encontra expressão nas análises de Maquiavel (1459-1517), considerado o fundador da ciência política, que escreveu duas obras principais: O Príncipee os Discursossobre os primeiros dez livros de Tito Lívio. O primeiro dos livros inicia uma perspectiva de Realpolitik,baseando-se numa desinibida observação da conduta dos homens e das instituições com o objectivo de adquirir, manter e exercer o poder político. "' García Morente, Lecciones preliminaresdcfllosofla,Buenos Aires, 1957, Lição XXIV,e bibliografia ali Barcelona, 1967. Cohen-Tanugi, Le droitsansl'État, Paris, aconselhada. René Coste, Moralllltcrnacio11al, 1985. Friedrich Hayek, Droit, législationet libcrté,Paris,1980. Marcel Gauchet, La révolutiondesdroitsde l'Hommc, Paris, 1989. 62 INTRODUÇÃO A sua principal observação é que são as boasarmasque estão na base das boas por isso dá preferentemente a sua atenção às primeiras. /eis,Deste e - e, a ex1stencia . • . de valores ab so lutos que esta, em d"1scussão, e, modo, nao . a vontade de quem tem o poder de impor. Assim, o nonnativismocorresponde simma ordem,que co locara' ova lor d a segurança d o po d er acima . d a Justiça. . . ª u Na tradição, o maquiavelismo ficou a designar o conjunto de procedimentos orais que visam adquirir e manter o poder, e o próprio analista adquiriu a ;:agem da amoralidade. Não parece justa esta consequência, porque Maquia vel distinguiu aquilo que lhe parecia a realidade da competição política, da a ologética que também faz a favor de um Estado constitucional, com divisão e~quilíbrio de poderes, em que a representação das várias classes conduziria, pelo governo limitado, à liberdade de todos. Os factos da vida internacional não têm desmentido que as boas armas assumem O ditado do que entendem ser as boas leis, impondo uma ordemque não coincide necessariamente com a justiça. A Ordem internacional, agora em crise desde a queda do Muro de Berlim em 1989, resultou da decisão das potências vencedoras da guerra de 1939-1945, e assim aconteceu sempre no passado 17• A tradição humanista, que tem no Ocidente uma vertentecristãe uma vertente laica, assumida principalmente pelo chamado socialismodemocrático,radica em Santo Agostinho (354-430) cujo escrito principal é A CidadedeDeus.Lidando com a queda do Império Romano, a que assistiu, procura descobrir princípios que devem presidir aos conflitos internacionais, analisando detidamente o problema da paz. Assim defende uma concórdia justa filiada nos supremos valores cristãos, mas admite a guerra quando a agressão vitoriosa se traduzisse na perdição: lutar "antes que mortos na alma" 18• Ora, a chamada PaxRomana,que correspondeu a uma organização imperialdas relações ent re comunidades diferenciadas, foi geralmente imposta pela conquista, de modo que a pacificação da Europa e do Norte de África correspondeu à criaç ão de um império, e à imposição de uma espécie de lei internacional que era oj usgentium,aplicável a todos os grupos que entravam na sua jurisdição política, ou tratavam com ele. Este direito era exclusivamente editado pelo poder imperial, que lhe assegurava a efic ácia com os seus meios de coacção, mas também por isso mesmo correspo ndi a a uma tolerância do poder imperial para com tais povos, a qual podia ser ret irada sempre que os interesses do Estado o exigissem. . 17 Maquiavel, Lc Prince(1532); Discoursmr lapremieredécadedeTito Livio (1513-1519); Discourssur l'artde laguerrc(1519-1521). Existem várias reedições. 18 Santo Agostinho, La ciudaddeDios,2• vol., XIX, Madrid, 1978. 63 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Todavia, a criação desse jus gentiumpode ter correspondido à convicção de que existem valores e princípios acima das divisões políticas, étnicas, culturais e religiosas, que se aplicam a todos os homens; ou, simplesmente, à consideração de que para manter a capacidade suficiente de ser obedecido, é necessário condescender com um certo grau de liberdade e autonomia de todos os povos e homens. No primeiro caso é a perspectiva humanista que se adopta, no segundo é a perspectiva maquiavélica. Na experiência romana, se adaptarmos Cícero (106-43 a.C.) como referência, vemos que a existência de um direito natural foi afirmada na tradição do grego Platão (428-348 a.C.) e dos estóicos. Foi Cícero quem distinguiu entre podere autoridade,defendeu o respeito por uma lei inscrita no coração de todos os homens por um Deus legislador, e cuja violação torna indigno o poder e os homens infractores. Os seus livros (De Officiis,De Legibus,Republica)transmitiram aos pensadores cristãos posteriores as doutrinas antigas do direito natural, da justiça, e da ordem. Todavia, o verdadeiro problema de um normativismo internacional apenas surge para tutelar as relações entre poderesindependentes uns dos outros, ou entre organizações e pessoas subordinadas a entidades políticas diferenciadas. Por isso mesmo, na cultura ocidental, os pensadores ocuparam-se desse problema para adaptarem a lei romanaà condição de cada lugar e época sem deixar perder o universalismo do jus gentium e da lei naturalque lhe servia de invocado suporte, e também quando ajurisdiçãoeclesiástica,a que mais tarde se submetera a RepúblicaCristã, entrou em colapso. A falta de uma autoridade superior aos poderes que entram em relação torna sempre evidente e urgente encontrar uma resposta para o normativismo que presidirá às relações entre eles. A expressão internationallaivfoi introduzida por Bentham em 1780, mas é muito longa a teoria dos pensadores (Grotius, Pufendorf, Vattel, Kant) que procuraram lançar e consolidar os fundamentos de um normativismo internacional respeitado. Estes pensadores dividiram-se em duas correntes fundamentais. Para uma corrente chamada positivista,que radica em Vattel, o direito internacional é um conjunto de tratados, acordos e costumes aceites pelos Estados, cujo respeito depende do voluntário acatamento dos interessados. É a perspectiva maquiavélica que se insinua aqui, com os corolários de que os tratados são espelhos de uma ocasional correlação de forças, ou simples compromissos abandonados logo que a balança de poderes se altera. Para outra corrente, ajusnaturalista,o direito internacional decorre de valores, entre os quais predomina o valor da justiça, é sustentado por uma autoridade própria assente na natureza humana, e não pode ser desobedecido em consciência nem afastado por tratados . 64 INTRODUÇÃO roblema da validadedesse direito é diferente da sua eficácia,sendo esta Ofipa dependente da voluntariedade dos Estados por não haver um poder que ic . h 19 rior que a 1mpon a . sup;a simbologia ocidental, é o drama de Antígona que representa a fidelid aos valores, acima da ordeme sem temer a consequência da reacção da ~a : que O poder político representa. Filha de Édipo, rei de Tebas, aconte· rorçque os seus d 01s · 1rmaos, · - Et10c ' 1es e Po1·mices, se envo1veram em 1uta pe 1a ce:isição do poder, morrendo ambos em duelo. O senhor da cidade, Creonte, aqandou sepultar Etíocles, mas proibiu que se desse sepultura a Polinices . ~alando a ordem e a lei, Antígona resolve praticar o fraterno acto de sepultamento. Confessa perante Creonte o crime cometido, e alega que uma lei superior à lei do Estado a obrigava a cumprir a piedosa obrigação. Morreu por isso. Esta necessidade de escolher está sempre presente no processo político • • )20 interno e mternac1ona . As relações entre os grupos nacionais, etno-culturais, ou raciais, e o poder político, obedecem politicamente a um esquema geral, que subordina várias áreas culturais ao mesmo poder político (Império Romano), abriga vários poderes políticos dentro da mesma área cultural (Grécia antiga), ou faz coincidir a área cultural com o poder político (Estado nacional). Os grandes espaços consentidostendem para agrupar Estados da mesma área cultural, como acontece com a Comunidade Europeia. Os grandes espaços impostosagregam as unidades políticas em função do conceito estratégico do poder dominante, como aconteceu com os impérios coloniais das democracias europeias e com a URSS. A comunidade internacional em estruturação, ponto ómega terrestre na linguagem de Chardin, tende para superar os esquemas tradicionais pelo reconhecimento do valor da unidade do género humano, pelo facto assumido de que só há uma Terra, pelo repúdio do próprio conceito de guerra justa do direito internacional agora em mudança . Cresce por isso o apoio ao entendimento de que é necessário desenvolver um conceito de segurançahumanaglobal,referido, em trabalho preparatório do SID - Parlamentarian and CivilSocietyCampaignon "BuildingGlobalHuman Security"- nestes termos: "um mundo no qual toda a gente, em toda a parte, esteja habilitada a conduzir as suas vidas e modos de vida sem o constante medo de sinais e ameaças para a sua sobrevivência, saúde, trabalho e bem-estar. Conseguir uma segurança humana global significa dirigir muitas das energias e recursos antes afectados à segurança nacional, no sentido militar e geopolí19 Hans Kelsen, La ideadeiderechonaturaly otrosEnsaios,Buenos Aires , 1954, p. 269. escrito por Jean Anouilh, 1944. 'º Neste século, drama 65 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS tico, para criar essa esperança do mundo". A famosa Barbara Ward escreveu a tal propósito : "é necessário grande visão, grande santidade, grande sabedoria para manter vivo e viver o sentido de unidade dos homens" 21 • §2º RelaçõesInternacionaise PolíticaInternacional 1. Objecto e fins do estudo das relações internacionais A tentativa de autonomizar o estudo das relações e da política internacionais tornou-se sobretudo evidente, como vimos, depois da Primeira Guerra Mundial. Muitas disciplinas, sobretudo nas universidades americanas, passaram a lidar com domínios, mais ou menos arbitrariamente definidos, que significavam realmente ensaios da definição de um novo campo autónomo de investigação e de ensino: Economia Internacional, Psicologia das Relações Internacionais, Geografia Política, Direito Internacional, Diplomacia, História da Diplomacia, foram algumas das disciplinas que apareceram. Por outro lado, com estudos baseados ou inspirados por departamentos especializados das universidades, começaram a aparecer autonomizadas, como objecto de estudo, certas regiões do globo, por exemplo, América Latina, Próximo Oriente, África, América do Norte. A própria Sociedade das Nações já patrocinou, na década de 30, como dissemos, o desenvolvimento desses estudos, tendo sido particularmente importante a Conferência sobre Estudos Internacionais realizada em Praga em 1938, e documentado por Alfred Zimmern, assim como a UNESCO, já no domínio das Nações Unidas, tem procurado também desenvolver o estudo das relações internacionais, sobretudo na medida em que se relacionam com o papel das Nações Unidas no mundo. Na Europa pôde verificar-se, no que respeita ao ensino do Direito Internacional, uma evolução no sentido de modificar a sua natureza puramente normativa para incluir uma explicação sociopolítica e conjuntural das normas e práticas internacionais. Deste modo, também neste domínio particular se verifica a divergência geral que se encontra no domínio das ciências políticas entre as tradições, aliás muito recentes, americana e europeia. Na tradição americana, o ponto de vista da sociologia está na origem da autonomização do estudo das 21 Barbara Ward, The Rich Natio11s and the PoorNatio11s, N.Y., 1962; SpaccshipEarth, N.Y., 1966; Progress of smallplanei,N.Y., 1979. Robert Muller, Neiv Genesis,Shapinga globalspirituality,Washington, 1993; Robert Muller, The birth of aglobalcivilization,Anacortes, WA, 1991. 66 INTRODUÇÃO - s internacionais, enquanto na Europa são o ponto de vista normativo e relaçoe . . , ria que se mostram dom mantes na base da evolução. a b1sto • _corrente d as re 1açoes - _mternac_10na1s, · · · Percorrendo ~ programa d e ens1_no d mos, empiricamente, ter uma 1de1ado seu concreto obiecto, deixando Pº e ouco para mais tarde a tentativa de estabelecer conceitos operacionais p , . entre relaçoes - mternacwnazs, . . . relaçoes - de um cionados com as d·c uerenças poss1ve1s re1a . / /' . . . / 'ticainternacwna e po ztzcamternaczona. pol1Ora, os mais "dos e autoriza . dos autores norte-americanos . • con hec1 como 22 Quincy Wright ou Norman D. Palmer e Howard C. Perkins tratam com maior u menor extensão dos problemas suscitados pelas relações entre os poderes 0 olíticos. Ocupam-se, designadamente, da descrição da organização mundial pm Estados, da avaliação da importância dos vários poderes políticos internacio~ais,dos instrumentos de defesa do interesse nacional (diplomacia, propaganda, economia, guerra), das tentativas de controlo das relações entre os Estados (balança de p~der~s, segurança colec~iva,organismos inte~n~cionais, o~ganismos supranac1ona1s),tratam de conflitos correntes (colomahsmo, satelização, guerra subversiva, refugiados), procuram identificar os tipos de acção adaptados por cada poder político (política estrangeira da Rússia, política estrangeira dos Estados Unidos, política estrangeira da Inglaterra) e por vezes prognosticam sobre o futuro do mundo em que vivemos. Este modo de talhar um campo próprio de actividade, feito por enumeração de temas, em desenvolvimento do conceito operacional, e como também é habitual no domínio de todas as ciências sociais e políticas, apenas parece uma novidade porque se trata de domínios muito recentes da investigação e do ensino. A verdade é que este método se encontra mais ou menos na origem da autonomia de todos os domínios do saber e que a definição conceituai abstracta e operacional, do âmbito de cada disciplina, é geralmente o resultado de uma acomodação estratificada pelo tempo. O Professor Quincy Wright, dando-se conta disto, escreveu que "as relações internacionais, como disciplina que contribui para a compreensão, previsão, avaliação e controlo das relações entre os Estados e das condições da comunidade mundial é ao mesmo tempo uma história, uma ciência, uma filosofia e uma arte. Esta disciplina está a começar a obter resultados nos esforços de analisar e sintetizar numerosas disciplinas que pensaram guiar as actividades práticas no campo internacional ou desenvolver teorias gerais relacionadas com esse campo partindo de particulares espécies de dados ou de particulares pontos de vista" 23 • 22 Quincy Wrigh t, Thc study of internatíonalrelatíons,N.Y., 1955. Norman D. Palmer e Howard C. Perkins, Irztcrnatíon al Relatíons,Cambridge, 1957. 23 Lug. cit., p. 48 1. 67 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Esta situação é hoje muito comum e não privativa do estudo das relações internacionais. De facto, a divisão dos campos de estudo é sempre puramente convencional, e a classificação das disciplinas corresponde a certa conjuntura do levantamento dos problemas que a ciência pode enfrentar. Quando a problemática a exigir atenção é nova, as novas disciplinas sempre assumem o carácter de interdisciplinares, parecendo tributárias de velhas disciplinas, até que se estabeleça uma nova e suficientemente pacífica divisão. Ora, a razão pela qual as relações internacionais assumiram a importância que se exprime nesta autonomia recente encontra-se na internacionalização dos problemas que é característica do nosso tempo, e vai provocando a erosão da jurisdição interna em termos de fazer desenvolver o referido modelo de comunidade. a) A internacionalização dos problemas: a lei da complexidade crescente Conviria, para melhor entendimento deste ponto, referir a expressão que a internacionalização dos problemas assumiu depois da fundação da Organização das Nações Unidas. A Carta das Nações Unidas tem sido muitas vezes entendida como traduzindo princípiosorientadores de natureza política (guidingprinciples), paradigmas muito gerais mas não imperativos para a solução dos conflitos de interesses. Guiados por esses princípios, os Estados membros da Organização só viriam a ficar ligados pelo direito internacional quando conseguissem acordar num Tratado sobre corolários decorrentes do entendimento da Carta. Estaríamos assim em face de uma espécie de método de engenharia social,que assentaria na acumulação de precedentes a construção de uma nova forma de coexistência internacional. Por isso, tem especial importância o disposto no S 7 do artigo 2º da Carta, que diz o seguinte: "Nothing contained in the presem Charter shall authorize the United Nations to intervene in matters whích areessencia/ly wíthinthe domestíc jurisdictionof anystateor shall requi re the Members to submit such matters to settlement under the present Charter; but this principie shall not prejudice the application of enforcement measures under Chapter VII". Esta disposição exprimia, de algum modo, uma atitude geral, senão um princípio jurídico, considerado válido num mundo anterior às Nações Unidas. Este princípio era o de que a natureza essencialmente doméstica ou interna dos conflitos os deveria subtrair à jurisdição dos organismos internacionais ou supranacionais. Acontece, porém, que a expressão foi sendo entendida, dentro daquela concepção que referimos e que considera a Carta como traduzindo princípios políticos e não jurídicos, no sentido de considerar que interessa à comuni68 INTRODUÇÃO . roacional qualquer problema suficientemente internacionalizado. Para d demte ª os interessados abordam o problema tantas vezes quantas for possível canto, , · na_agen d a d. a O_rgamzaçao ' - de d o a mov1men~ar_ . elas formas pos~1ve1s a e~ ·- das organizações mternac1ona1s e dos povos ate encontrar ma1ona . 0p1n~ fjciente no sentido de fazer aprovar uma resolução. A situação pode sinte1 s~ -se assim; sãoessencialmente dejurisdiçãointernaaquelasquestõesquea maioria t12:ar · não tenha dec1 'd'd - de caracter , . . l e cabendo . 'veldaAssembleia t o quesao mtemacwna exigi , . 14 asuacornpetencza. n Esta siruação processual foi tornada possível pelo abuso e deturpação d factos, mas também derivou das exigências específicas do nosso tempo. R:almente, a nossa época é caracterizada por uma interdependência total ue afeccou de maneira decisiva os tipos de relações e os conceitos a que ~las estavam subordinadas até há poucos anos. O mundo tende para a unidade e caracteriza-se pela planetização dos fenómenos políticos. Deixou de haver regiões, povos, governos ou acontecimentos indiferentes para o resto da Humanidade. Como disse o famoso Teilhard de Chardin, encontrámo-nos perante a "unificação, tecnificação, racionalização crescente da Terra humana. Parece-me que seria necessário fechar os olhos ante o espectáculo do mundo para imaginar que poderíamos escapar a qualquer das três correntes de fundo" 25• Esta interdependência significa a socializaçãodo mundo em todos os problemas globais onde a decisão humana tenha um papel a desempenhar: a fome, a explosão demográfica, a domesticação da energia atómica, a paz, são indivisíveis. Ao mesmo tempo que se marcha para a unidadedo mundo,assiste-se a uma multiplicação das relações internacionais. Esta multiplicação é simultaneamente qualitativa e quantitativa. É quantitativaporque se multiplicam os pontos de contacto, as participações de interesses entre os Estados e os outros agentes das relações internacionais. Ê qualitativaporque se multiplicam as novas formas de coopera ção ou oposição entre os Estados ou tais agentes. Convém muito sublinhar que o aumento quantitativo das relações também afecta a própria qualidade, porque a multiplicação do mesmo tipo de relações dá origem a problemas novos entre os Estados. Finalment e, ao lado da marchapara a unidadedo mundo e da multiplicação dasrelaçõesinternacionais(convergência), verifica-se a proliferaçãodoscentrosde decisã o (disper são). Esta proliferação dos centros de decisão é imediatamente visível no aumento do número de Estados que existem no mundo e que mais m? '' Leland M. Good rich e Edward Hambro, Chartcrofthc U,litcdNatia11s,Commrntarynnd Docummts, llosron, 1949. Kelscn, Thc Law of tlw UnitedNatíons, N.Y., 1955. "Teilhard de Char din, L'Avcnirdel'Homme,Paris, 1959. 69 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS que triplicou depois da última grande guerra. A dispersão e a convergência encontram um princípio unificador nos orgãos supranacionais de diálogo,coo- peraçãoe decisão. Acontece que os Estados têm eles a natureza de instituições comunitárias, instituições para as quais o território e a fronteira têm historicamente uma importância essencial. Como todas as instituições comunitárias, sem que isto queira significar que o fenómeno não se verifica nas outras, os Estados têm uma vocação conservadora e uma vocação inovadora. A primeira das vocações, conservadora, I ida com a identidade e com a necessidade de preservar valores essenciais que preenchem a parte mais valiosa do que se chama a tradição. A vocação inovadora, relacionada com a própria subsistência do Estado, traduz a sua necessidade de encontrar respostas novas para os problemas novos. Antes da última grande guerra, e portanto antes da fundação das Nações Unidas, o mundo das relações internacionais decorria entre Estados sobretudo ocidentais, fortemente dotados de uma vocação conservadora no sentido de que todos tinham comungado, numa série de valores e regras de conduta a que chamamos direito internacional. Grande parte, portanto, da vida de relação entre os poderes soberanos estava sujeita a uma escala comum de valores que exprimiam respostas experimentadas a problemas antigos. Actualmente, o panorama internacional é quantitativamente dominado por novos e recentes Estados, de vocação predominantemente inovadora. Alheios à experiência que esse direito internacional exprimia, negando-se a aceitar imperativos em cuja formulação não colaboraram. Daqui, mais um factor da importância crescente do estudo das relações internacionais e a radicação desse estudo no foro das ciências políticas, acontecendo que a política do direitoínternacionalocupa o primeiro plano dos esforços dirigidos à mudança. Para exprimir sinteticamente esta evolução do panorama internacional temos falado na lei da complexidade crescente da vidainternacional,pretendendo significar que a marcha para a unidade vem acompanhada de uma progressiva multiplicação, quantitativa e qualitativa, dos centros internacionais de diálogo, cooperação, e de decisão, e das relações entre esses centros 26 • Os clássicos problemas considerados de jurisdiçãointernatransitam aceleradamente para a categoria de internacionalmente relevantes e estes para internacío11ais, agregando· -se finalmente no patrimóniocomumdaHumanidade. "· Adriano MoreirJ, A fri da comple.tidadc crescentena vjda internacional.in Commtários,Lisboa, 1992, P· ll. 70 INTRODUÇÃO do estudo das relações internacionais b)fill -5 porém , apenas razoes - c1ent1 · 'fi1case aca d'emtcas . que d etermmam . a autoNão sao, · d d d l õ . . . N ' . e importância o estu o as re aç es 10temac10na1s. ecesst'd ades pra- nomta , . ' . d' , 1 . muito prementes tornam necessano e ate m 1spensave esse escudo. ncasEm primeir o lugar, a d'1p lomac1a, . ca d a vez mais. comp lexa, e, uma arte que •sa de basear-se no estudo científico das relações internacionais. A arteda precl . , . d . h . rrasegue-se na 1mportancta as artes que exigem o con ectmento actuado do levantamento das relações internacionais para decidir da oportuni~:~e de recorrer a esse meio de acção, e o modo de o conduzir. O bipolarismo Iterou O conceito segundo o qual a guerra, no dizer de Clausewitz, era a conti~uação da política por outros meios, porque agora a política é frequentemente a continuação da guerra por outros processos. Designadamente, a Cana das Nações Unidas prevê a guerra como uma política supranacional de cooperação para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. A guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, foi um exemplo. A guerra evolui assim de instrumento de políticas nacionais para instrumento de política supranacional. Veremos a evolução que está a ser determinada pelo fim da Guerra Fria em 1989. Aquilo que hoje se chamam as PublicRelations,que interessam tanto à actividade públi ca como à actividade privada internacional, exige o estudo aturado das relações internacionais, em áreas da vida privada que vão do desporto e da cultur a à economia da procura e da oferta globais. económicotão assumido e dinamizado por empresas de O desenvolvimento dimensão internacional, assim como as múltiplas formas de cooperação económica internacional e supranacional, exigem o estudo autónomo das relações internacionais. Algumas grandes empresas têm já os seus conselheiros pri vativos ou departamentos especializados. Finalmente, sem com isto querer significar que não há outros domínios relevantes, a conjuntura internacional levou ao aparecimento de um tipo novo de funcionário, o funcionário internacional, ao qual se exigem lealdades que são incompatíveis, por vezes, com a lealdade tradicional ao seu país. O estudo das relações internacionais é indispensável, com autonomia, por constituir a base académica da sua formação. fue 2. Subjectivismo e objectivismo: questões de método No domínio das relações internacionais, como no domínio de todas as ciências e do objectivismo dos investigadores, sociais, surge o problema do subjectivismo comentadores e docentes. Este problema tem dois asp ectos que convém não confundir. Em primeiro lugar, alguns como Quincy Wright sublinham que os 71 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS problemas das relações internacionais contendem com a concepção deverdadede cada uma das sociedades em presença, cada uma reclamando uma objectivj. dade que não reconhece à outra. Ele próprio, defensor da concepção ocidental de vida, não deixa de sublinhar, referindo-se à época da Guerra Fria terminada em 1989 com a queda do Muro de Berlim, que "no mundo comunista a objectividade é deliberadamente repudiada, mas isto é simplesmente uma das muitas evidências de que o comunismo e a procura da verdade são incompatíveis" 21. Os soviéticos diziam o mesmo dos ocidentais. Este problema, todavia, é, apenas, um dos dados com o qual tem de contar-se no estudo das relações internacionais. O verdadeiro problema do objectivismo e do subjectivismo diz respeito ao observador que não pode ele próprio alhear-se de uma certa concepção do mundo e da vida que faz parte da sua circunstância pessoal e que condiciona necessariamente a sua relação com os factos a observar e avaliar. Esta é uma das razões pelas quais, na pedagogia americana, se encontra uma tendência para despersonalizar o ensino, o que se traduz em fornecer aos alunos os textos e os documentos sem os filtrar por uma exegese pessoal do professor, Daqui também a importância dos métodos quantitativos designadamente na avaliação do poder de cada um dos centros de relações internacionais em presença, e a atracção pela chamada revolução behaviorista. Por exemplo, o professor alemão Wilhelm Fucks, que há anos veio a Portugal a convite do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, publicou um livro sobre a divisão do poder no mundo, chamado Formdnzur Macht (Fórmulas do Poder,1965) onde tentou analisar a realidade sociológica internacional com métodos exclusivamente estatísticos. Deste modo, organizou um certo número de índices para 1965, colocando os Estados Unidos no topo com o valor de 1000. Avaliando por relação aos Estados Unidos o poder dos outros grandes países, calculou o valor 674 para a URSS e 415 para a China. Prospectivando o desenvolvimento provável até ao ano 2000, conclui que nessa data a China será a primeira potência do mundo, com um poder duas vezes superior aos dos poderes reunidos da URSS e dos Estados Unidos. Pensou que nessa data o Japão seria a quarta potência mundial ultrapassando o poder reunido da Grã-Bretanha e da Alemanha. Provocou então algumas inquietações, mas os factos inquietantes foram progressivamente outros. Esta tentativa corresponde à mais radical expressão da preocupação objectivista neste domínio e não é de estranhar que tenha vindo da parte de um físico. Todavia, não se vê como é que poderá ser eliminada a relação pessoal "Lug. cit., p. XXVI. 72 INTRODUÇÃO b rvador com os factos e, portanto, as cautelas no sentido de garantir a do_o si:idade devem também ter em conta a referida inserção do observador obJectcerta concepção do mundo e da vida. Por isso, convém ter sempre pre111.una as tendências contraditórias que animam essas concepções, pelo menos sente s traços mais . ev1'd entes, e natura Imente no domm10 , . part1cu . 1ar d este 110s seU b'ecto de estudo. 0 JTalvez a exemplificação de alguns dos tópicos que interessam ao investiganeste domínio possa ajudar a compreender melhor a cautela metodológica dor lh , , , e se aconselha, porque e sera necessano ter opções. qu É comum encontrar uma oposição na maneira de encarar os fenómenos que se por muito difícil que seja explicar o que rime pelo binómio realismo-idealismo, :~ntende por cada uma destas coisas, embora a diferença geral possa talvez ser encontrada dizendo-se que se trata de resolver a hesitação entre perder a República e salvar os princípios ou abandonar os princípios para salvar a República. Diferente contradição é a que se exprime pela dialéctica entre nacionalismo-internacionalismo, que pode talvez explicar-se dizendo que se trata de resolver a hesitação entre a unidade do género humano e os interesses de cada povo. Outra contradição exprime-se falando na oposição entre segurançanacío11al-cooperação internacional, que se traduz na hesitação entre a salvaguarda da soberanía e a marcha para a criação de autoridades supranacionais. Existe uma contradição que se exprime pela expressão farça-consentimento, que traduz a hesitação entre organizar uma sociedade ínternacíonal h ierarquizada e uma sociedade internacional de Estados paritários 28• Estas opções inevitáveis, enriquecidas facilmente com outras de menor expressão, vêm a reflectir-se nas orientações ou escolas de pensamento que se organizam especialmente no meio académico onde se definiu a autonomia das relações internacionais no âmbito das ciências sociais. Tal facto deu-se apenas no fim da primeira conflagração mundial, tendo por questão principal, como notou Aron (1962),a guerra. O mesmo fenómeno que no Renascimento fizera desenvolver o direito internacional por um lado, e a fria razão de Estado pelo outro. Ainda hoje, as divisões paradigmáticas da literatura que se lhe refere mantêm a referência às clássicas perspectivas realista, racionalista e universalista, com dependência de Maquiavel, de Grotius e de Kant 29 • Na história curta da disciplina a nível académico é frequente autonomizar um período idealista,entre as duas guerras mundiais, um período realistaque 1 ª Palmer e Perkins, cit, p. XXV e sgts. Leslic Lipson, Thtgreat issuts of polítics, Prentice 1-Iall,1954. P· 351. Loui, Hale, Civilizationand ForeignPolicy,Harptr, 1955. "M. Wight, Wcstern valuesín International Relatians, in H. Butterfield (org.), Diplomaticlnvtstigations, Londres, 1966. 73 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS cobriria desde a Segunda Guerra Mundial à década de sessenta, e depois a revolução behaviorista. Trata-se de uma divisão indicativa, porque os pontos de vista coexistem, e o realismo é, como nota Panebianco, sempre a corrente teórica dominante. Corresponde mais aos factos uma c/i1Jag em teóricaentre o idealismo e o realismo, uma clivagem metodológica, e também uma clivagem derivadadepadrões culturais ou nacionais, permitindo identificar , por exemplo, uma escola norte-americana e uma escola europeia, embora a época seja de sínte se30 • Talvez esta convergência actual tenha a sua raiz no desenvolvimento meto dológico da década de sessenta, que se deu sobretudo nos Estados Unidos, mas que envolveu também os europeus 31• No caso de se admitir que é possível isolar a questão central do debate, suscitado pelos b ehavioristas, estes entendiam que apenas tinham validade os estudos baseado s em técnicas quantitativas, para as quais reservavam a designação de método científico. Por isso negaram esse carácter aos realistas anteriores da escola americana, e definitivamente aos idealistas, incluindo autores como Carr, Morgenthau, Wight, Buli e RaymondAron 32• A este muito se deve, pelo contrário, no sentid o de esclarecer o equívoco estatístico do behaviorismo, ao invocar a necessidade de distinguir as pers pectívas filo sóficas, históricas e jurídicas que se debruçaram sobre as relações internacionais, das relações internacionais como ciência soda!, tributária de um pluralismo metodológico não absorvido pelas técnicas estatísticas e quantitativas. Esta pretensão reduzia-se afinal a compatibilizar o método comparativo históricoclássico e o métodoestatístico,sem excluir nenhum, porque finalment e é o objecto que det ermina o méto do. Mais importante foi a questão, levantada por David Singer em 1961, e conhecida como a questão do 11ívddea11álise. Em sínt ese, trata-se de optar entr e partir do sistema inte rnacional para racionalizar o desempenho dos agentes da vida internacional (holismo), ou, pelo contrár io, ente nd er que o sistema é o resultado da agregação das acções individualizadas dos agentes 33 • Pode suste ntar- se qu e são d uas persp ecti vas irrecon ci1iáveis no entendi mento do que Hegel chamou "a transição da quantidade para a qualidade", e 1'1A. Panebianca , Refazionii11tm1a zionali,Milão, 1992 , p. 15. J.Vasquez, Tlu poiverof poivcrpolitics,New , Londres, 1985 . Bru nsw ick.1983. K. J.Hol~ti,Thcdi1ridíngdiscípli11e 11K. Knorr e J.Rosc nau (org.). Contrndi11gapproaches tofoternatio11alpolitícs, Princcton, 1969. G. Pasquino , Tradiziu11 e e scfrnza ,ic/lostudfo de/lapolíticaínternazionale,11I'olitico, XXXIV.S. Hoffmann, Thesiateof •~ar,N.Y.• 1965.Q Wright, A st11~1 oj war.Ch icago, 1942. ll E. Carr, T/1c fü-c111y Yc,m'Cri.,is,Londres,1939. H. Morgenth:iu, Scíentijic Manvs.I\:m,cr Polítics, Chic:igo,1946. R.Aron,fuzcGumua1tm:sNaçiies.B1'3sllia, l962. :uo.Si~r,'Th eL:>elofAnalysisProblcm",i nH-1,rlclMitia,J6,1961.A.Pl:troni. "L'individualismometodologico",in de/la politica,Bolonh a, 1989. M. Holll s e S. Smith, Explaininga11dm1dmA. Punebianco (org.), L'A11a/üi ta11ding intematíonalrelati1ms,Oxford , 1990. 74 INTRODUÇÃO . ão de que a sociedade excede os indivíduos, porque estes recebem, conv1cç . (idade a que pertencem, parte da sua maneira de ser, como geralmente datot~e!Il 05 marxistas. Mas do ponto de vista do método, o averiguado é que enten ve..,es apenas é possível uma racionalização a partir da consideração !gumas ,, · • a egado, isolando tendências que caracterizam o todo; os estudos numedo ag~e política externa dos Estados, e dos outros agentes da vida internacio· d e ad optar o ponto d e rosos ue disfunc1onam · · - po d em d e1xar os sistemas, nao 1, q na , . 1· . d . . individualista, com importante ap 1caçao na teoria os;ogos que os trata 1 vista ctores rac1ona1s . . que procuram opt1m1zar . . os resu ta dos com economia. de como a - 34 Aos extremismos de Kaplan (1957) e de Waltz (1979), que apenas con05 . rne1 • d l . . . . d .deram possível uma teona as re ações mternac10na1s rigorosamente edu5'. a outros como Martin Wight (1966) responderam negando a possibilidade ttV , 113 de qualquer teoria. Como sempre, o notável Aron (1972) defendeu uma posição intermédia, muito acatada nos estudos europeus, afastando das ciências sociais, e portanto das relações internacionais, a utilização da teoria no sentido da tradição filosófica, ou como sistema hipotético-dedutivo da orientação positivista. No seu parecer, a teoria, nas ciência~ so~iais, ap~nas rode: fornecer a defi~ição espe~ífica do objecto, que nas relaçoes mternac1ona1s se traduz na normalidade da v10Iência; identificar as principais variáveis; sugerir hipóteses sobre a regularidade do funcionamento do sistema. Por isso deve ser preservada de ideologismos para ser submetida ao controlo empírico, ao mesmo tempo histórico-sociológico, tornando possível a compreensão das conjunturas, mas sem nenhuma pretensão ou possibilidade de ser uma ciência aplicada 35 • Esta orientaçao recebeu o apoio de Hoffmann, que entre uma concepção dedutiva da teoria, e uma concepção indutiva que parte dos comportamentos e do material histórico disponível, adapta a segunda 36 • De fact o, esta querela talvez possa ser reconduzida a uma variação sobre a indefiní vel medida do realismo que as escolas adaptam, e todas as variantes parecem opostas ao idealismo que, na sequência de Woodrow Wilson, e depois da Primeira Guerra Mundial, pretendeu descobrir a natural harmonia das naçõe s37• Uma posição que parece ter recuperado importância com a queda do Muro em 1989, a voga do fim daHistóriade Fukuyama, e a sugestão de que 1<K.Waltz, Man theStatea1Jd War,N.Y., 1954, e Morton K:1pl:1n,SystemandProms in Intm,ationalPolitics, N.Y.,1957, forneceram as bases d:1 :1proxim:1çio holístico-sistémic:1, sobretudo o ú ltirno com :1sua teoria geral dos sistemas. G. E. Rusconi, Risclzio1914,Bolonha, 1987. G. Allison, Esscna of Decisiun, Boston, 1971. 31 Aron, ÉtudesPolitiques,Paris, 1972. ,. A. Panebianco, cít., p. 25. S. Hoffmann, JanusandMinerva,Westvicw Press, Bouldcr, 1987. "M. Howard, Wara11dtheliberalca11scicna, Oxford, 1981. 75 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS o mundo seria submetído ao modelo político democrático, ao modelo econó. mico do mercado, e ao modelo de segurança da paz pelo direito. Mas a corrente realista, que conta designadamente com a herança de Tucídides, Maquiavel, Hobbes, Espinosa, dos teóricos da razão de Estado, Max Weber, e Aron, encontrou em Edward Carr, inspirado já pela guerra, um defensor que manteve a perspectiva como dominante 38• É claro que os idealistas dão um contributo indispensável e basta lembrar a linha PeaceResearch,e a sua contribuição na crucial década de setenta para o tema da paz. Mas a chamada de atenção de Carr impediu esquecer o estado de natureza da vida internacional, o poder como facto essencial da política interna e externa, a necessidade de basear 0 processo decisório na percepção dos factos. Não se trata de um conceito ao serviço da linha da Rcalpolitikque Ludwig von Rochau introduziu no debate alemão em 1853, porque essa é uma opção dos decisores, e a metodologia em discussão ocupa-se do conhecimento e da compreensão. A dominante linha realista exibe hoje nomes importantes como os de Schuman, Spykman, Niebuhr, Kennan, e, talvez acima de todos, Morgenthau 39 • Os conceitos que este adiantou, designadamente o de powerpoliticsou permanente luta pelo poder, do interesse nacional objectivo, da proeminência do Estado como actor de um sistema de Estados, da alternância das políticas de statu quo de imperativos, ou de prestígio, do risco permanente da guerra, dos mecanismos de equilíbrio (balança de poderes) e do diálogo diplomático, são temas essenciais de referência que muitas vezes apoiam conselhos para além da descrição e da compreensão. É talvez desta eventual violação da neutralidade científica que partem as críticas de Raymond Aron, ele próprio chamado por alguns um heterodoxo realista, que pretendeu combinar o saber da sociologia com o conhecimento histórico. O seu famoso Paze Guerraentreas Nações(1962) prepara a teoria dos modelos de competição internacional , a identificação sociológica das variáveis dominantes na política internacional e determinação das regularidades empíricas, a análise histórica do bipolarismo, sempre na linha de Weber que não deixava esquecer a tensão entre os factos e os valores, entre análise e decisão, o que lhe fez constantemente referir o conflito entre o maquiavelismo e as éticas da paz. Esta alternância ou tensão da guerra e da paz faz com que a sua outra obra fundamental seja Penserla Guerre- Clausewitz,autor que repôs na actualidade, 1' E. Carr, TheTl!'cntyYears'Crisis,Londres, 1939. 3'' Schuman, fotcrm1tio11al Politic!i, N.Y.,1933. Spykman, Amcrica11 stratcgyfo Wor/dPolitícs,N.Y., 1942, Niebuhr, Christia11ity a11d powerpolitics,N.Y., 1940. Kcnnan, AmericanDipfomacy,Chic~go, 1951. Morgenth3U, ln dcfrnccof11atio11al i11tcrc.<t, N .Y.,1951. 76 INTRO D UÇÃO orque O concei~o deste, de que. a gue~ra é a concin~ação da polític~ ~or outros P •os foi invertido na era do b1polansmo no sentido de que a poht1ca passou m~' . era continuaçao da guerra por outros mews 40 • ª s }\quilo que o afasta do realismo de Morgenthau é o facto de não admitir ue 3 powerpoliticsesgota a área da política i nternacíonal. Diz: "uma tal interqretação falsearia aos nossos olhos o sentido da política , que é a luta entre os indivíduos e entre grupos para assumir o poder e repartir os bens raros, mas é ao mesmo tempo busca de uma ordem equitativa'".i. O conflito ideológico, ue dominou meio século de vida internacional, recebia assim acolhimento na q . 1· sua perspect1va rea 1sta. J\ influência de Aron encontrou paralelo apenas e talvez na do britânico Martin Wight que também aceita a importância da po1ver politics,e o pessimismo sobre a possibilidade de obter progressos na esfera das relações internacionais. Mas não entende que a lura pelo poder esgota o objecto da disciplina, e apenas a considera principal quando vigora um sistema de Estados, o que historicamente, na sua opinião, apenas tinha três exemplos na história da Humanidade: 0 sistema do Ocidente dos Estados, o grego das cidades -Estado, e o chinês no período que vai da queda do império Chou (771 a. C.) à implantação do impé rio Ts'in (225 d. C.)42 • Em tal modelo a luta é estruturada, baseada sobretudo no equilíbrio de poderes, segundo certos pattemsofpo1ver relativamente persistentes, de acordo com a geografia e a força de cada agente , mas também de acordo com um sistema de normas. Diz que "é verdade que as crença s não prevalecem na política intern acional salvo se tiverem o apoio do poder ... mas é igualmente verdade que o poder terá menor ou maior eficácia em função da força das crenças que inspiram o seu uso"•u. As guerras de religião, a guerra revoluci onária de França contra as soberanias legitimistas, o conflito deste século entre as democracias ocidentais, o nazismo e o sovietismo, manifestam a relação entre a política int e rna e a polí tica externa, desenvolvem lealdades horizontais que atravessam as fronteiras, o que tudo demonstra a alternância de forças ideológicas com forças de simples powerpolitícs.Sustenta que as ideia s, os valores, as crenças, as ideologias, não são apenas justificações para obter uma imagem, são factos que dinamizam por si as relações internacionais. 0 ' Aron, Penscrla G1 urre, 2 vols., Par is, 1976. "Aro 11, c it., p. 74. "M:in in Wigh t, SysttmofStates,Br istol, 1979, p. 22. " Cit., p. 81. 77 - TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Os estudos sobre o findo conflito bipolar foram abordados pelo realismo, podendo salientar-se Waltz e GilpinH. Por vezes fala-se de realismoestrutura/ para sublinhar a tentativa, que se deve sobretudo a Waltz, de conjugar o realismo clássico com uma racionalização sistémica. Sugere que o realismo clássico, semelhante à teoria de empresa da economia, é reducionista, e útil para compreender a política dos Estados individualmente considerados; mas a perspectiva holística, tal como a teoria do mercado, deve desenvolver-se em termos rigorosamente sistémicos. A estrutura do sistema internacional tem um princípioordenadore uma distribuiçãodepodercomo elementos essenciais do sistema. Conhecidos ambos os elementos, podemos descurar as características dos intervenientes individualizados, porque é suficiente uma teoria do funcionamento do sistema. A crítica imediata de que não fica explicada a disfunção do sistema e a mudança, encontra acolhimento em Gilpin, mais céptico sobre a racionalização sistémica, mais próximo do realismo clássico. Um sistema internacional mantém-se funcional e equilibrado, seja fundado no princípio imperial, seja fundado na hegemonia ou equilíbrio de potências, se nenhum Estado poderoso tiver interesse em modificar o statu quo:mudanças internas ou mudanças individualista baseada na internacionais podem determinar uma rationalc/zoice avaliação dos proveitos e dos custos. Parece impossível arbitrar a diferença, e admitir que o princípio do equilíbrio (Waltz) ou que o princípio da hegemonia (Gilpin) são reciprocamente excluentes, e não de incidência variável com o tempo e o lugar 45 • 3. A bipolaridade nas relações internacionais Esta posição competitiva das grandes concepções do mundo e da vida, que o observador deve ter sempre presente para não faltar à objectividade e autocriticar-se, são o afloramento da situação habitual dos agentes das relações internacionais, que, frequentemente, se organizam orientados por ideologias contraditórias, e que neste século obedeceram, depois da guerra de 1939-1945, a um modelo bipolar hoje extinto, e talvez a ser substituído por um multipolarismo. Quando falamos em ideologias queremos referir aquilo que Weidlé apelidou de sistemas de ideias que já não são pensadas por ninguém, isto é, que não podem ser atribuídas, na sua formulação com peso social, a um autor referenciável. Trata-se de uma expressão que deve muito da sua actualidade à dou- .,. K. Waltz, Thear)'afí11tcmatia11al palitics,N.Y., 1979. R. Gilpin, Wara11dCha11ge an Warldpalitics,Camoflntematianal Re/ations,Princeton, 1987. bridge, 1981; Thcpalitica/Eca11am)' 5 • Panebianco, Relazio11i Írltemazia11ale, cit., p. 57; Metadascicntiflcae relazioniintemazionali,II Mulino, Bolonha, 1973. 78 ... . ão marxista, que sempre atribuiu à ideologia a função de justificar os 46 rrtnaÇ l . esses de uma c asse . ,nt~o período da Guerra Fria, e não obstante as proclamações de cada um dos ideológico, s ganhou relevo a percepção do então chamado apaziguamento blocondo ' significar que os mteresses, · · tm · h am assumi"do o pn-. e a tecnocracia, quere . - d os con n·ttos, remeten d o para um p Iano 1rre . 1evante . lugar na de fi1mçao rne1ro ndes querelas sobre valores da renovação ou conservação das estruturas asgra .ais internas e externas. , . soeiTeremos ocas1ao . - de voItar a este pro bl ema, mas notar-se-a, que a propna G erra Fria foi sempre subordinada à proclamação de concepções do mundo e d ºvida excluentes uma da outra. O facto dos dois blocos militares exigirem, por ªnto tempo, que foi meio século, a quasi totalidade das atenções dos poderes raolíticose da opinião pública, também fez concentrar as análises no bipolarismo, Paconteceu que a derrocada do sovietismo reanimou a tese do apaziguamento ~deológico,agora levando até a proclamar a sobrevivência exclusiva da proposta ~os ocidentais. É a tese do fim daHistória,de Fukuyama, que apreciaremos. Ora O bipolarismo é um modelo de referência em cada conflito concreto, entre dois países, dois espaços ou dois blocos, mas nem significa que seja uma tendência global da comunidade internacional que abriga uma pluralidade de conflitos, nem significa o começo do fim das ideologias. O esgotamento de um projecto ideológico está relacionado com as mudanças verificadas na realidade sociológica a que se dirigia, e a mudança origina outras e novas propostas para meditar, outros anúncios dos "amanhãs que cantam". Por isso, o nosso tempo, desaparecido o bipolarismo NATO-Pacto de Varsóvia, vê crescer de novo a importância das ideologias, e cada vez mais se caracteriza pelo apagamento da origem das ideias-força que conduzem as massas, e até pelo anonimato das fontes de criação, divulgação e sustentação das condicionantes ideológicas das relações internacionais. Pense-se no anonimato do poder dominante nas grandes agências de informação, em várias grandes organizações multinacionais e grupos de pressão, que actuam em todos os níveis do sistema internacional. Por isso, as ideologias, entendidas como a forma que assume, em qualquer comunidade política, a ideia de obra ou empresa que um grupo social prossegue, constituem hoje de novo um tema fundamental em tudo que se relacione com o poder político e, portanto, também com as relações internacionais. 6 Foi um termo criado por Destutt de Tracy (1795) para designar uma ciência geral das ideias. O marxismo popularizou a expressão, dando-lhe o sentido de um complexo de ideias, mitos, e valores, com a função de justificar o statuquoe manter a ordem. A análise não pode deixar de tratar o próprio Políticas,Lisboa, 1964. marxismo como uma ideologia. Adriano Moreira, Ideologias ' 79 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Não quer isto dizer que as relações internacionais decorram sempre sob o signo da contradição ideológica; antes, pelo contrário, a tradição ocidental estruturou-se no sentido de as procurar reconduzir a uma concepção comulll. do mundo e da vida com expressão no direito internacional. Esta foi porélll. uma situação só tardiamente alcançada, várias vezes agredida, e hoje, ao que parece, de novo em franca crise no mundo contemporâneo. Repare-se, de facto, em que no começo da última grande guerra o poder político mundial pertencia exclusivamente, com excepções insignificantes, a poderes europeus ou de tradição europeia como era o caso das Américas. Depois da última grande guerra, a maioria dos poderes políticos identificáveis não é de raiz ou tradição europeia. Considerando que os Estados, como todas as instituições comunitárias têm, simultaneamente e como vimos, uma vocação e uma vocaçãoinovadora,a situação ideológica mudou radicalmente. conservadora Recorde-se que a vocação conservadora significa a necessidade de defender valores adquiridos, soluções experimentadas, um património cultural acumulado; a vocação inovadora significa a necessidade de encontrar respostas novas para os novos problemas. Ora, a maioria dos poderes políticos existentes hoje no mundo estão animados por uma predominante vocação inovadora, visto que nunca tinham tido acesso antes, com voz própria, ao diálogo internacional. Daqui o consequente aparecimento de um conflito de percepções em progresso, o frequente repúdio do direito internacional por esses novos Estados, a busca de uma nova ideologia justificadora de interesses nascidos em conflito com os interesses dos antigos poderes do mundo. Visto que a eficácia na realização desses interesses e concepções depende de uma relação entre os poderes que estão em confronto, pode ser-se tentado a reduzir a importância das ideologias em função do número de centros, considerados autónomos, de poder. Neste sentido, dizia o Presidente Eisenhower, em Outubro de 1955, que "o facto central da vida de hoje é a existência no mundo de duas filosofias do homem e do governo. Elas estão em luta pela amizade, lealdade e apoio da população mundial". Esta afirmação, repetida depois frequentemente, correspondia à identificação de um sistema bipolar de centros estratégicos autónomos, a URSS e os Estados Unidos, com expressão formal respectivamente nos Tratados de Varsóvia e da NATO. Todavia, por muito sedutora que seja esta simplificação, a bipolaridade global das relações internacionais deve considerar-se apenas acidental ou tendencial. A razão para então considerar a bipolaridade nesses termos encontrava-se no facto de que o poder alcançado pelos centros estratégicos autónomos era de tal ordem que foram conduzidos a um equilíbriode impotência,que tornava difícil a previsão da mudança. O certo é que, para além de ser discutível se não 80 INTRODUÇÃO . m i"á antes de 1989, data da queda do Muro de Berlim, identificar-se oderta ' estrateg1cos , · ' · d e 1mpotenc1a . • . teve como P centros autonomos, o equ1"11'b no outr~~ .0 0 aumento da liberdade de acção das pequenas e das médias potênª:,que aumentou muito a margem de problemas que as grandes potênP- podiam cons1"derar v1ta1s • • 47. cias, • 0 c1as . como o neutra 1· Enadesse modo se e.1ormaram novas I"deo 1og1as, ismo, o ter. mundismo, o fundamentalismo, que depois de 1989, fim do bipolarismo ce1rotégico, e da Guerra Fna, . anunciam . um re 1evo crescente. N a me d"d I a em que e~tr:taram O sistemabipolar, foram tecendo solidariedades e acções que podea r~ abranger no conceitode teia,também importante para o estudo da política ~~erna, e que exprime umprojectodinâmicodedisfuncionarum sistemaemfavor de in novaordemsistémica. Os partidos clandestinos, os movimentos subversivos, O u:activismos da sociedade civil mundial, desenvolvem uma teia destinada a pro~ocar a disfunção do sistema, em nome de um projecto diferente de vida. c?'º 4. Relações internacionais e política internacional o estudo das relações internacionais necessita, como todos os domínios da investigação e do ensino, de certos conceitos operacionais que ajudem a delimitar as fronteiras com outros ramos do saber. Uma discussão prévia, habitual nestes domínios, diz respeito à propriedade da expressão relações internacionais. Essa discussão, talvez não puramente académica, começa por implicar alguma ideia a respeito do que se entende por Nação. Admitamos, com brevidade, que no conceito corrente, ao qual voltaremos, muito tributário de Renan e de Mazzini, a Naçãoé uma forma de sociedade caracterizada por um passado comum, um desejo de viver em comum, e por aquelas aspirações comuns a que Malraux chamou "a comunidade de sonhos". Podemos mesmo, provisoriamente, admitir, como faz René Coste, que as expressões Nação,povoe pátria exprimem frequentemente pontos de vista diferentes da mesma realidade. Todavia, a Naçãoé apenas uma das formas possíveis de viver em comum, e acontece até que, no estado actual da comunidade internacional, os grupos que podem considerar-se nações são minoritários em relação à quantidade de entidades políticas que existem no mundo 48 • 7 Morgemhau, PoliticsamongNations, N.Y., 1959. Luis Garcfa Arias, "A Transformação das Relações Internacionais no Século XX", in EstudosPolíticose Sociais,1966, n• 2. "Malraux, La Tentationde l'Occident,Paris, 1926, que insiste na identificação pela "comunidade de sonhos", que a autodeterminação deste século multiplicou justamente quando a conjuntura internacional obriga a repensar a função do nacionalismo, como notou F. Perroux, "L'espace et la Nation", in Diogencs,1962. • 81 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Talvezpossa dizer-se que a forma de coexistência chamada Nação representa uma circunstância tão perfeita de viabilidade que todos os poderes políticos tendem a fazer convergir o seu povo para essa condição. A maior parte desses recentes poderes políticos, caracterizados por uma vocaçãoinovadora,como já vimos, buscam a efectivação do que pode chamar-se um projectonacional,isto é, dar uma consciência nacional ao povo que governam. Mas é certo que geralmente não exercem o poder em relação a um grupo que possa chamar-se uma Nação. Daqui a dúvida, não apenas semântica, sobre internacionais. Todavia, o geral objectivo de a propriedade da expressão relações efectivar projectos nacionais, que os Estados prosseguem, recomenda a manutenção da expressão. Observar-se-á ainda que se os grupos com ou sem natureza de Nação, subordinados a poderes políticos independentes, não fossem mais que somatórios de indivíduos, as relações chamadas internacionais não seriam mais do que as relações inter-individuais. Todavia, os grupos aparecem a ter relações recíprocas como tal, na sua qualidade de entidades políticas independentes e isto ainda que o seu povo não constitua uma Nação. Portanto, e como vimos, a expressão relações internacionais compreende asrelações entreentidades políticas,a maiorpartedelas governandoumpovoquenãoé umaNação,e relações entreentidadesprivadassujeitasa entidadespolíticasdiferentes,assimcomoasrelações entreentidadesprivadase entidades 49 políticasdequenãoestãodependentes • A expressão política, por seu lado, implica referência a uma entidade dotada de poder político e, portanto, a expressão políticainternacional,estritamente entendida, não tem coincidência com a expressão relações internacionais, visto decorque destas só compreenderia o estudo da dinâmica do conjuntoderelações rentesentrepoderespolíticos.Como, porém, mesmo relações internacionais que não decorrem entre poderes políticos sempre são condicionadas, directa ou indirectamente, por aquelas relações, no âmbito da política internacional cabe o estudo da dinâmica de todas as relações internacionais. E sobretudo cabe o fenómeno crescente de uma política internacional sem poder, a realidade que Havei identificou ao falar do poder dos que não têm poder. E em que sentido há-de ser entendida, portanto, a expressão políticainternacional?No sentido plural que a palavra política pode assumir. Admitindo que se entende por ciênciaspolíticaso conjuntodedisciplinascientíficastendopor objecto ogovernoe a administraçãodoEstado(outambémde todososoutrospoderespolíticos), apolíticaÍ1lternacional é um ramodasciênciaspolíticas. Considerando que dentro das ciências políticas (direito político, administração pública, economia política, etc.) se autonomiza uma ciência política pro' 9 René Cosce, MoralInternacional,Barcelona, 1967, p. 38 e sgts. 82 INTRODUÇÃO dita que se ocupa do fenómeno da luta pela aquisição, manutenção e ' 1o d essa c1enc1a ·• · . ' · mternac1ona · · 1e' um ramo ou cap1tu prt·arnente , . do poder, a po l'1t1ca e){erc_icido aceitando que a ciênciapolíticainclui no seu objecto determinar como · func10nam · ' - d0 J\in fectivamente a, e segun do que fiormas e tipos os orgaos é que e uais as regras efectivamente observadas na condução dos negócios Estª~º•qqual a escala de valores a que realmente os detentores do poder pres'bhcos, pu h menagem; que, por outro lado, se ocupa do estudo dos programas que 0 a tornar-se regras práticas de condução dos negócios públicos, isto é, ta~ aspiram - d ommantes · - d as rrentes que não sao mas preten d em assumir· a d.1recçao das.codades políticas, · l' · · · 1 ' ' 1 f d a po mca mternac10na e um cap1tu o un amenta 1d a 1 s?: e ia política, isto é, o capítulo que trata de todos esses problemas nas rela,. _ .d . c1enc d _ s directas entre os po eres po 11t1cosque nao se cons1 eram reciprocamente ço~ordinados. Naturalmente agrega o estudo da dinamização das restantes su . . lações internac1ona1s. re Finalmente, entendida a política como arte, isto é, a arte de decidir oportunamente e com autoridade a solução dos conflitos de interesses surgidos na vida dos povos, com o seu campo mais específico na função governativa do Estado, a política internacional é um aspecto dessa arte. s.Ciências auxiliares o estudo das relações internacionais e da política internacional precisa de apoiar-se numa série de disciplinas que, genericamente, podem ser indicadas comosendo aquelas cujo campo classicamente definido vem a ser interceptado por esta nova perspectiva. O próprio desenvolvimento da disciplina tem indicado quais são as suas principais ciências auxiliares, ao mesmo tempo que se torna mais vigorosa a definição do seu núcleo específico. Assim,e pelo que toca aos Estados Unidos da América, o estudo das relações internaciona is foi abordado principalmente por sociólogos e, na Europa, por historiadore s. Depois, as relações internacionais foram aprofundadas e agora com especial contribuição europeia, pelos juristas, particularmente os cultores do Direito Int ernacional. Nas duas áreas, o modelo da economia de mercado deu especial relevo à Economia. Muitas outras disciplinas podem ser ainda indicadas. Mas será conveniente dar particul ar relevo a duas delas. A primeira é a Antropologia Cultural, dada a importânci a que assumiu no nosso tempo o estudo dos sistemas culturais como unidades reais de estudo histórico. E não apenas como unidades de estudo mas ainda como versões poderosas de orientações políticas fundamentais: o ?ermanismo, o eslavismo, o arabismo, a latinidade, são expressões de alcanc e ideológico cujo sentido e força só podem ser alcançados pelo estudo com os métodos da Antropologia Cultural. 83 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Por outro lado, convém destacar a importância da Estratégia, que recentemente chegou entre nós à Universidade 50 • Não é um problema separável do da importância da Antropologia. De facto, cada vez se torna mais geral a atitude mental que procura enriquecer a compreensão da evolução política dos quadros internacionais mediante o recurso à ideia do conflito também entre sistemas culturais. Já não se trata apenas de César nem da França mas sim, eventual ou frequentemente, do islamismo, do eslavismo, da negritude, do europeísmo 51• Esta concepção de conflito tendeu para diminuir ou esquecer o papel convergente e dinâmico do poder político, e animou muito a luta anticolonialista e racista do nosso tempo. Ao aceitar a concepção da proeminência do conflito entre os sistemas culturais, como fazem Diop, Nkrumah, Sekou Touré, Nelson Mandela, esquecem que os sistemas culturais dominantes são muitas vezes sistemas de enquadramento dentro dos quais se procede a uma síntese e não a um esmagamento. Por exemplo, o Império Romano foi a expressão de um enquadramento dentro do qual, com o inevitável passivo, se processou uma síntese de grupos orientados por culturas menores. O império de Carlos Magno, ao estabelecer as marcas, definiu o âmbito territorial dentro do qual se processava uma síntese sob a égide de um poder político unificador. Isto significa que as relações entre os sistemas culturais, vista a função do poder político, tanto podem ser de oposição como de convergência, e que o movimento no sentido da emergência de uma verdadeira comunidade mundial faz apelo à convergência. Um mundo de múltiplas vozes, como lhe chamou a UNESCO. O poder político, nas suas relações internacionais , aparece assim exercendo uma acção convergente, ou uma acçãodivergente do pluralismo cultural, conforme as circunstâncias. Esta acção cristaliza em regras ou práticas tradicionais inspiradas pelos seus interesses permanentes, de tal modo que cada modelopolítico acaba por dar feição a uma maneira especial de estar no mundo 52 • 'º Foi por mim proposta a criação, no ISCSP,do Mestrado de Estratégia, onde convergiram professores das instituições mili tares do ensino, com professores da Universid ade Técnica. Com a colaboração da Academia Internacional da Cultura Portuguesa foi iniciada, em 1990, a publicação da série Estratégia, que j:ícompreende 7 volumes de trabalhos universitários. 51 CheikAnta Diop, L'uniti culturelledel'AfriqueNoir,Paris, 1958. 52 Ver GeopoUtica J' Geoestrategia, Universidad de Zaragoza, 1966, onde se encontra um escudo sobre "EI Estado Universal en los condicionamentos ideológicos de la Geopolítica", por Adriano Moreira; Adria no Moreira, PolíticaI11ternacio,ial, Porco, 1970, Capítulo I, geralmente reproduzido nesta incro· dução. R. Numel in, The beginningsof diplomacy:a sociological studyofintertribaland intm1ationalrelatioris, Oxford, 1990. Samuel Huntington, "The clash ofCivilizations?", in ForeignAjfairs, 1993. 84 INTRODUÇÃO § 3º O DiálogoInternacional 1.Diplomacia . d l' . . . 1 , . d h . d" 1 mais importante mstrumento a po 1t1camternac10na e, am a OJe,a 1p o0 rnada, que pode ser definida com umaarteda negociação ou o conjuntodastécnicas rocessos deconduziras relaçõesentreosEstados. eP Sendo uma tarefa sem fim, compreende-se que Richelieu insistisse na neces"dade de negociar sempre, notando, no seu TestamentPolitique, que mesmo g . urna negociação que não resulta não é um esforço perdido. E longa a tradição de comentários pessimistas sobre a vantagem e a idoneidade da diplomacia e dos diplomatas. O famoso general Stilwell desabafou o seguinte: "o termo 'diplomata' para o americano médio evoca a visão de um ser imaculadamente vestido de calça de fantasia, polainitos, fraque, chapéu alto, com uns modos friamente severos e superiores que escondem o jogo rápido como um relâmpago que orienta a nau do Estado, desloca as peças no tabuleiro com precisão infalível e invariavelmente aparece em Washington sem camisa. Ou melhor, sem a nossa camisa!". Por sua vez, foram usadas afirmações atribuídas a Estaline no sentido de que as palavras de um diplomata não devem ter relação com as acções, que palavras são uma coisa, acções outra, e eventualmente que diplomacia sincera é coisa tão impossível como água seca ou aço de madeira. Esta tradição crítica não deve todavia deixar de ser relacionada com a circunstância de que a diplomacia, tal como se definiu em termos modernos, foi o instrumento do interesse do Estado e, portanto, o instrumento adaptado aos corolários do princípio da razão de Estado. Vamos tentar dar a este respeito alguns apontamentos que ajudem ao entendimento deste instrumento da política internacional 53• Note-se primeiro que a expressão artede negociação é inseparável do estudo dos órgãos encarregados de aplicar o método que essa arte utiliza. Ora, este método e esta maquinaria sofreram uma evolução que geralmente aparece dividida em quatro fases: o métododiplomáticoda Gréciae deRoma;o métodoitaliano 53 Raoul Genet, Traitédediplomatieet dedroitdiplomatique,Paris, 1931, p. 5, enumera e refuta as críticas e os ataques típicos contra a diplomacia e os diplomatas: "a diplomacia, quer pelo jogo das alianças, quer pelo segredo das suas operações, favorece as guerras e as intrigas perigosas para a paz dos Estados; a diplomacia consagra e fortifica o sistema da desigualdade dos Estados; a diplomacia, enfim, utiliza métodos furtivos e pretensiosos que impedem os povos de se lançarem espontaneamente nos braços uns dos outros. Nenhuma destas críticas nos parece bem fundada". O Barão de Szilassy (Traitépratique, P· 46) é citado por Genet (p. 105) nestes termos: e Bismarck eram conhecidos por dizerem a verdade, e conta-se que esta virtude lhes era tão útil que, por vezes, não os acreditavam, atribuindo aos seus comentários verídicos algum significado misterioso, o que lhes convinha muito". 85 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS dosséculosXV eXVI; o métodofrancêsdosséculosXVII, XVIII eXIX; o métododeterrni. nadopelasgrandesconflagrações mundiais54 • a) A diplomacia na Grécia e em Roma É fácil encontrar na tradição literária da velha Grécia descrições de negociações e acontecimentos ocasionais que são manifestações dessa arte de negociar elll que se traduz a diplomacia. Antes de recorrer à guerra foi tentada a restituição de Helena por meios pacíficos. Embora a Grécia não tivesse conhecido o sistema de manter missões permanentes nas capitais estrangeiras, constantemente enviava representantes e recebia embaixadas de carácter temporário. Por regra os seus enviados recebiam credenciais da assembleia política da sua cidade e não era suposto que recebessem presentes dos soberanos junto de quem eram credenciados. Usualmente as missões eram colectivas, como que para assegurar a representação de todas as tendências políticas e para se fis_ calizarem mutuamente. A regra era a da diplomacia aberta, isto é, os embaixadores declaravam publicamente os objectivos das suas missões. Conheceram o instituto da neutralidade e da arbitragem. Pensa-se que desenvolveram utilmente a instituição do consulado. De qualquer modo, é certo que pelo século v a.e. os gregos tinham construído um complicado aparelho diplomático; conheciam as ligase as alianças,tinham estabelecido princípios para a declaração da guerra,parafazer a paz, paraa ratificaçãode tratados,arbitragem,neutralidade,troca de embaixadores,funções doscônsules,estatutosde aliança,naturalização,asilo,extradiçãoepráticasmarítimas. Frequentemente se diz que o carácter totalitário da cidade grega e a circunstância de cada outra cidade ser sempre considerada como inimiga potencial, tornava precária uma concepção de ética internacional. Todavia, os tratados estavam sob a guarda de Zeus e era suposto que só com boa razão podiam não ser observados. Ficou sobre a diplomacia na Grécia um famoso depoimento de Demóstenes referente à fase final da queda sob o domínio de Filipe da Macedónia. Esse discurso, chamado Defalsa legatione,pronunciado contra Aeschines, diz: "Os embaixadores não têm à sua disposição navios de guerra, infantaria pesada ou fortalezas; as suas armas são as palavras e as oportunidades. Em negociações importantes as oportunidades passam rapidamente; uma vez perdidas não podem ser recuperadas. É mais grave perder uma oportunidade numa democracia do que numa oligarquia ou autocracia. Sob os seus sistemas podem tomar-se medidas instanAdriano Moreira, PolíticaInternacio11a/, cit., cap. I, S 2•. Harold Nicolson, The evolutionof diplomatic metlwd,Londres, 1956, cap. 1. 54 86 INTRODUÇÃO eamente logo que seja dada uma ordem, mas connosco tem de notificar-se can - provisona . ' . e ·meiramente o C onse lh o para que ele ad opte uma reso luçao pr;smo assim somente quando os arautos e os embaixadores tenham enviado tJlma nota diplomática escrita. LI Então o Conselho tem de convocar a Assembleia mas unicamente numa data arcada nos termos da lei. Ali o exponente tem de aduzir razões para provar a :a tese em face de uma oposição ignorante e muitas vezes corrupta; e mesmo 5 uando este interminável processo tenha atingido o seu termo e haja chegado quma decisão, perde-se ainda mais tempo antes da aprovação de medidas de a . ordem financeira. Assim um embaixador que numa constituição como a nossa actua com processos dilatórios e nos faz perder oportunidades faz mais do que isso, rouba-nos o domínio dos acontecimentos ... Parece-me, homens de Atenas, que vos tornastes absolutamente apáticos, aguardando mudos que a catástrofe desabe sobre nós. Mantendes-vos sentados, observando as desgraças que avassalaram os vossos vizinhos sem que adapteis medidas para a vossa própria defesa! Tão-pouco pareceis ter consciência dos métodos complexos pelos quais o vosso país está sendo lentamente minado." A estrutura do Estado romano, pondo o acento tónico no império, não foi a mais indicada para desenvolver um método e um aparelho diplomático. A Pax Romanaestabeleceu um sistema normativo (jusgentíum)para as relações entre os estrangeiros e os cidadãos romanos, mas no domínio do poder político aplicou quede negociação. Todavia, desenvolveram o resmais um métododesubordinação peito pela boa-fé e, pela sua importância prática, do respeito pelos tratados. Os seus embaixadores foram chamados nuntii ou oratores,designados pelo Senado para curtas missões, e os resultados das suas negociações ficavam sujeitos à aprovação do Senado. Reconheciam a imunidade dos embaixadores, que talvez deva chamar-se antes imunidade do enviado, visto que não havia embaixadores permanentes. Os emb aixadores que eram enviados a Roma tinham de esperar pacientemente pela autorização para serem recebidos pelo Senado, a qual nem sempre era dada. Os romanos criaram uma espécie de árbitros chamados recuperatores, dois por cada parte num tratado, com um presidente neutral, para julgamento de reclamações. Estabeleceram a prática dos refénsque em geral exigiam mas não davam. Usaram o método de fixar um tempo limite para as negociações dos embaixadores que recebiam. Fazendo a síntese da contribuição grega e romana para a arte da negociação, Harold Nicolson diz o seguinte: "os gregos descobriram a necessidade de submeter as relações internacionais a certos princípios estáveis, mas não conseguiram encontrar um método de negociação entre as sociedades democrá 87 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ticas e os governos despóticos, não tendo compreendido que as assembleias políticas não são indicadas para conduzir a diplomacia. Por outro lado, considero que a maior contribuição dos romanos foi o princípio pactasunt servanda. De qualquer modo, não se lhes deve a criação nem de um sistema nem de um método para a negociação permanente 55 ." b) O sistema italiano A queda do Império Romano implicou que a alternativa da obediência ou da revolta fosse substituída pela competição ou cooperação entre os vários poderes políticos que vinham ocupar o vazio deixado pela queda do Império. Os imperadores de Bizâncio foram os primeiros a organizar um departamento de negócios estrangeiros e a treinar pessoal especialmente para esse efeito. Quando o imperador subia ao trono mandava anunciar este facto aos poderes estrangeiros por meio de embaixadores que cobriam as suas despesas negociando as mercadorias que eram autorizados a transportar. Eram-lhes fornecidas instruções escritas. As questões de protocolo e cerimonial eram meticulosamente tratadas e o próprio imperador Constantino Porphyrogenitus escreveu um tratado sobre essa matéria rodeando a recepção dos embaixadores estrangeiros de grande pompa. A tradição de Bizâncio foi recebida por Veneza, que organizou um sistema de diplomacia e foi o primeiro Estado a preservar os seus arquivos de forma sistemática. Os seus documentos diplomáticos cobrem os nove séculos que vão de 883 até 1797, compreendendo os relatórios dos embaixadores à Senhoria de Veneza e descrevendo as suas negociações. Compreenderam também a necessidade de manter os embaixadores informados sobre os negócios internos de Veneza. Os embaixadores eram nomeados por tempo limitado, não podiam ter propriedades no lugar do destino, e deviam entregar à Senhoria os presentes que recebiam. Não podiam ser acompanhados pelas mulheres. No século XVI, a época de Maquiavel, Guicciardini deplora que as pessoas procurem evitar a nomeação para cargos diplomáticos. É por esta data que definitivamente desaparece a função arbitral do Papa, Veneza e Génova entram em relações normais com o Império Otomano, Luís XI afirma a soberania do Estado instruindo os seus embaixadores na Grã-Bretanha com esta maquiavélica regra: "Se eles vos mentirem, procurai mentir-lhes mais do que eles." A fraqueza de cada um dos pequenos Estados italianos, a espécie de equilíbrio de impotência em que se encontravam, a precariedade dos sistemas políticos, tudo encaminhou no sentido de encontrar uma arte de negociação, que " Harold Nicolson, The Evolutio11 of DiplomaticMethod,Londres, 1953, pp. la 23. 88 INTRODUÇÃO . caracterizar as famosas Combinazione,e que representavam o anteparo vet~ ª 'li·do do Estado. Maquiavel é o retratista da época e César Bórgia o modelo rna1sso ncarna a frieza amoral da razão de Estado. que; teoria de que o interesse do Estado está acima de considerações éticas , a base claríssima para transformar a arte da negociação numa técnica e u~da em órgãos especializados. Em 1450 é nomeado o primeiro embaixa ~Pº'residente no sentido moderno junto dos Médicis, pelo duque de Milão. º\emplo multiplicou-se em toda a Europa e esses enviados chamaram-se oraO do:es. Foi Carlos V quem decretou, em meados do século XVI, que o título de baixador devia ser dado apenas aos representantes de cabeças coroadas ou em s6 da República de Veneza . Só mais tarde se chegaria à concepção de que os embaixadores deviam ser da nacionalidade de quem os enviava e, como hoje volta a acontecer, a presença permanente de embaixadores não foi sempre considerada compatível com a segurança do Estado 57• Por esse tempo, sendo deficientes os meios de informação, os diplomatas tinham funções muito importantes: eram uma fonte única de informação para seu soberano, por isso acompanhavam constantemente os soberanos junto 0 de quem estavam acreditados. o que hoje se chama conferênciadealtonívelnão era considerado aconselhável. Filipe de Comines expressou esta opinião: "Dois grandes príncipes, que desejam estabelecer boas relações pessoais, nunca devem encontrar-se face a face mas sim comunicar através de bons e advertidos embaixadores." Um dos defeitos da diplomacia neste período era a importância dispensada ao cerimonial e ainda a grave questão das precedências. Resultou desta questão o hábito de os intervenientes num tratado porem as suas assinaturas em círculo . Pode hoje parecer-nos estranho que fosse necessário esperar até ao Congresso de Viena de 1815 para resolver esta questão . O sistema italiano caracterizou-se em suma pelo ensinamento de que a razão doEstadoestá acima de quaisquer outras considerações e pelo desenvolvimento de uma série de hábitos e técnicas de oportunismo que cabem na famosa expressão Combinazione. 56 Nicolson, cit., p. 34. F. Meine cke, Machiavelism:the doctrineof Raison d'Etat and its place in modern History,Londres, 1957. s, Assim como os soviéticos consideravam a ciência política ocidental como uma arte da propaganda, assim também consideravam a arte diplomática ocidental como uma estratégia de mistifica1,ão. VerHisloiredela diplomalie,dirigida por Vladimir Potiemkine, Paris, 1947, especialmente III volume, que abrange o período do socialismo cercado num só país, e onde é desenvolvida, p. 726 e sgts., a chamada "táctica da diplomacia burguesa". 89 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS e) O sistema francês Nos séculos XVII e XVIII foi a França que deu o tom à arte de negociar, sendo predominantes a figura e o longo reinado de Luís XIV.Em 1626 Richelieu criou o Ministério dos Negócios Estrangeiros e, assim, também o princípiodaunidade do comandonapolíticaexterna. Embora o rei Luís XIV não se dispensasse de dirigir ele próprio a política externa, associava o ministro a essa política salvo no que depois se havia de cha. mar secretdu Roí ousecretdel'Empereur. Por 1685, a França tinha embaixadas permanentes em Roma, Veneza, Constantinopla, Viena, Haia, Londres, Madrid, Lisboa, Munique, Copenhague, Berna, além de missões especiais e ministros residentes em muitos outros lugares. Estabeleceu uma hierarquia de enviados: embaixadores extraordinários, embaixadores ordinários, enviados e residentes. Os embaixadores erarn providos de instruções escritas. Passaram a ocupar-se do desenvolvimento do comércio do seu país. Exprimindo o tipo desejável de diplomata, escrevia, nessa época, François de Callieres 58 : "O bom diplomata deve ter espírito de observação, um dom de aplicação que o obrigue a não se distrair com divertimentos e prazeres fúteis, um critério seguro que apreenda as coisas tal como são e que vá direito aos fins visados pelo caminho mais natural e mais curto sem se perder em requintes e subtilezas falhas de sentido. O bom negociador deve ter a qualidade de penetração que lhe permita discernir os pensamentos dos homens e surpreender através da mais pequena mudança de expressão que paixões os agitam. O diplomata deve ser rápido, talentoso, um bom ouvinte, cortês e agradável. Não deve procurar ter fama de ser hábil nem deve ter a paixão da discussão a ponto de divulgar informações secretas só para fazer prevalecer um argumento. Acima de tudo, o bom negociador deve possuir suficiente domínio de si próprio de forma a resistir ao desejo de falar antes de pensar o que deve dizer. Não deve cair no erro de supor que um ambiente de mistério, em que os segredos são decifrados a partir de pequenos nadas e a mais insignificante bagatela se torna um assunto de Estado, não passa de um sintoma de um espí· rito mesquinho. Deve prestar atenção às mulheres mas nunca perder o coração. Deve ser capaz de simular dignidade mesmo que não a possua; mas, simultaneamente, deve evitar toda a exibição falha de gosto. ' " Callieres, De la maniercdenégocieravec lessouverains , Paris, 1716, p. 35. Cf. Nicolson , cit., p. 64 . 90 INTRODUÇÃO ragem é também uma qualidade essencial, pois que nenhum homem ~dco ode ter a esperança de realizar com sucesso uma negociação confi. • . d e um re 101oe1ro . . e ser isento . de t ímt .o pO negocia d or d eve ter a pac1enc1a denc1a.1 . econceitos pessoais. pr D ve possuir uma natureza calma, ser capaz de suportar alegremente as b:rias, não deve ser dado à bebida, ao jogo, às mulheres, à irritabilidade, . 1mpertmentes. . . zom uaisquer outros capnc. hos e f:antas1as ouª qnegociador, a1'em d'isso, d eve estu d ar a h'1stona ' . e memorias, ' . ser coo h e0 or dos hábitos e instituições estrangeiras e ser capaz de dizer em relação a cedalquer país estrangeiro · on d e assenta verdd' . a e1ramente aso b erama. qu Todo aquele que segue a carreira diplomática deve conhecer as línguas Jemã,italiana e espanhola, tal como o latim, pois a ignorância dessa língua :eria uma desgraça e uma vergonha para um homem público, visto que se trata da língua comum das nações cristãs. Deve também ter certos conhecimentos de literatura, ciência, matemática e direito. Finalmente deve saber receber de forma acolhedora. Um bom cozinheiro é muitas vezes um exce1ente cone,·1· ia dor "59 . d) A diplomacia instrumento do Estado nacional A concepção de Callieres correspondeu à de um mundo que atingira um ponto crítico que os historiadores costumam assinalar com a data do Tratado de Westefália, assinado em 1648. Até então, o mundo tinha conhecido Estados grandes e pequenos, incluindo a poeira de Estados italianos, mas não tinha grande experiência de uma unidade nova que ia ser o Estadonacional.A razão de Estado de Luís XIVvai ser transmudada no interesse nacional. Portugal era já um Estado nacional mas tinha acabado de restaurar a sua independência. A Inglaterra, a França e a Espanha apareciam como grandes poderes a que deveriam acrescentar-se a Rússia e a Prússia. O Sacro Império Romano-Germânico viveria ainda, mas apenas como um fantasma, até à intervenção napoleónica. A Igreja Romana assistia à divisão dos fiéis pela Reforma, tendo perdido qualquer poder de arbitragem no mundo. Maquiavel e Bodin definem a amoralidade do poder do Estado, Lutero e Calvino exprimem a quebra da unidade ideológica, Grotius e os internacionalistas começam a definir um conjunto de regras requeridas pelos novos tempos: o direito internacional fundado na razão e sem autoridade supranacional. "Nicolson, cit, p. 65. Sobre a emergência da moderna diplomacia, esta mais submissa à razão de Estado de Maquiavel, do que aos preceitos éticos, James Der Derian, On diplomacy,Oxford, 1987, p. 105 e sgts. E. Satow, Guideto DiplomaticPractice,Londres, 1979. 91 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A Paz de Westefália representou o reconhecimento de que o Império tinha desaparecido, a Igreja não mais podia arbitrar nem mesmo nas matérias espirituais (os príncipes escolhiam livremente o calvinismo, o luteranismo ou 0 catolicismo); a forma republicana do Estado coexistia em pé de igualdade corn a monarquia. Em resumo, o Estado passava a ser o ponto de referência das relações internacionais. Como observou Warren Ault, "em 1648 o sistema do Estado estava corn. pletamente estabelecido na Europa. O Império era uma concha vazia. A pretensão do Papa à soberania temporal na Europa era, como força efectiva, uma coisa do passado" 6 º. As relações internacionais a partir de 1648 caracterizam-se, por um lado, pela busca de um equilíbrio entre os emergentes Estados europeus e, por outro lado, pelo estabelecimento e organização de um mundo governado pela Europa, ponto de partida e de chegada de todas as correntes significativas da política. O primeiro ponto teve expressão na rivalidade das casas de Bourbon e Habsburgo, e o segundo na corrida dos novos poderes europeus (Grã-Bretanha, França, Holanda, Espanha) para se estabelecerem nos territórios coloniais. Desenha-se a política da balança de poderes, onde a Inglaterra assumiria o papel de fiel da balança, equilíbrio de poderes que teve a sua expressão formal no Tratado de Utrecht de 1713 e pôs fim à Guerra da Sucessão de Espanha; a França aceitou que nunca poderia vir a constituir um só reino com a Espanha e perdeu a Nova Escócia a favor da Inglaterra; a Áustria recebeu Nápoles, Sardenha, Milão e os Países Baixos espanhóis; a Grã-Bretanha recebeu Gibraltar; desencadeou-se a unificação e fortalecimento da Prússia. Em resumo, a balança de poderes aparecia como o substituto de uma autoridade supranacional inexistente. Este sistema funcionou com duas crises principais. A primeira foi a Guerra dos Sete Anos, começada em 1756 com a invasão da Saxónia por Frederico da Prússia, e que terminou com a expulsão da França do continente americano pela Inglaterra, e com a derrota da Áustria, da França e da Espanha e o esgotamento da Prússia, o que assegurou a manutenção do equilíbrio porque nenhum Estado ficou em condições de dominar a Europa. A segunda crise tem o seu ponto crítico na Revolução Francesa e na aventura napoleónica. Como o período anterior tinha sido relativamente estável, o Congresso de Viena procurou restaurar o velho sistema. O princípio da balança de poderes encaminhou-se no sentido de classificar os Estados consoante a sua importância: a Inglaterra, a Rússia, a Áustria, a "°Warren Ault, Europei11Modem Times, 1946 p. llO. Robert Mandrou, L'Europeabsolutiste,Raiso11e/ raiso11 d'État (1649-1775), Paris, 1977. 92 INTRODUÇÃO , ssia, a França, a Grécia, Portugal e Espanha, foram considerados grandes pru , , . . d" d e otências, mas e certo que so os quatro pnme1ros correspon 1am e iacto a • 61 Psse conceito . e No panorama mundial o verdadeiro facto novo, que ia marcar toda a evolu_0 posterior, era a chegada do primeiro território colonial à situação de poder ç:}ítico independente: os Estados Unidos da América do Norte. p De então até às grandes conflagrações mundiais, especialmente até à guerra de 1914-1918, manteve-se ainda assim dominante o que se chamou a PaxBrinnica.Foi um regime de equilíbrio de poderes na Europa, e de colonização ta ~ do resto do mundo pela Europa . Os Estados entretanto nascidos do anticolonialismo eram de filiação europeia. No âmbito correspondente ao equilíbrio europeu, a guerra da Crimeia (l854-1856) e a guerra franco-prussiana (1870-1871) deram origem ao aparecimento de novos poderes como a Alemanha; nasceu a Itália, foi-se desfazendo o Império Otomano com o aparecimento da Grécia, Montenegro, Roménia, Sérvia,Bulgária e Albânia; desfez-se o Império Espanhol, e o Brasil tornou-se independente; no Oriente o Japão aparece, a partir de meados do século XIX, como um desafio à hegemonia europeia, baseando a sua ascensão na vitória sobre a China em 1894-1895 e sobretudo na sua vitória sobre a Rússia em 1904-1905. No começo da guerra de 1914-1918 o equilíbrio europeu tinha expressão na Tríplice Aliança (1882) que reunia a Alemanha desejosa de manter a situação de 1871, a Áustria receosa da Rússia, e a Itália preocupada com a projecção francesa no Norte da África; e tinha expressão na Tríplice Emente (1907), reunindo a França ferida pela guerra de 1870, a Inglaterra procurando equilibrar o crescimento da Alemanha, e a Rússia com os seus projectos em relação aos Balcãs. O equilíbrio de poderes tendia para uma dimensão mundial que claramente se havia de tornar visível no fim da guerra de 1939-1945. O elemento 3 • fundamental da diplomacia do período foi o nacionalisma6 Já vimos que a razão de Estado se transmutou quando a Nação e não a Casa reinante apareceu como elemento aglutinador e ponto de referência do poder político. Foi sobretudo depois da Revolução Francesa que o problema das nacionalidades assumiu relevância como base para a formação do Estado. Uma série de termos novos entrou na terminologia corrente a partir dessa data e da pri61 Jean-Baptiste Duroselle, L'Europede1815 a nosjours, Paris, 1967. •'Adriano Moreira, PolíticaUltramarina,Lisboa, 1961. Eric J. Hobsbawm, L'Eredesempires(1848-1874), Paris, 1989. Robert Schrerb, LeXJXsiecle.L'apogéede/'expansionwropienne, Tome VI de l'Histoire Générale des civilizatio ns, Paris, 1965. 63 André Tibal, HistoireDiplomatiquecontemporaine(1925-1932), Paris, 1933, 4' lição, p. 93. François Bedarida, L'A11glct erre trio111pha11te (1832-1914), Paris, 1974. Pierre Guillen, L'empireal/e111a11d (1871-1914), Paris, 1970. 93 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS meira erupção anticolonialista do século XIX: Nação, Estado nacional, nacionalismo, autodeterminação nacional. Uma série de termos tão significativa como no nosso tempo o aparecimento de palavras novas como contenção, cogumelo atómico, internacionalização, equilíbrio de impotência. A primeira coisa problemática foi a definição da própria Nação. Ficou famosa a comunicação de Ernest Renan feita à Sorbonne em 1882 subordinada ao título Qu'est-cequ'unenation?A orientação estabelecida nessa proposta punha o acento tónico da Nação não na língua, ou na etnia, mas sim no passado comum e no desejo de realizar tarefas comuns no futuro. Esta orientação subjectiva havia de ser contrariada pelo objectivismo que veio a animar a doutrina nacional-socialista, a qual baseou na etnia comum a definição nacional. Talvez a sua origem primeira esteja no discurso que Fichte pronunciou na Universidade de Berlim em 1807, chamado Discursoà NaçãoAlemã, a qual, dividida em centenas de soberanias, era incitada a encontrar no sangue comum o elo da solidariedade global. Voltaremos a este ponto. Até à crise da última grande guerra o elemento subjectivo posto em evidência por Renan esteve sempre presente e dominante, de tal modo que o Estado nacional apareceu como um objectivo desejável mas nem sempre possível. O simples problema da dimensão do grupo condicionando a sua viabilidade sempre fez entender que o Estado poderia compreender mais de uma Nação sem violência para a vontade dos povos e com vantagem para o interesse da comunidade nacional. Mas entende-se, perfeitamente, o sentido do princípio das nacionalidades e o sentido da autodeterminação nacional. No nosso tempo, um maquiavélico, no sentido científico da expressão, como é Morgenthau, escreveu que "a Nação precisa de um Estado. Uma Nação - um Estado é assim o postulado político do nacionalismo, o Estado nacional é o seu ideal" 64 • A conjuntura que dominou este século XX a findar havia de desenvolver esta convicção da excelência do Estado nacional até ao ponto de substituir a Nação pelo que se pode chamar um projecto nacional. Como veremos ao tratar do surto anticolonialista contemporâneo, os novos Estados são apenas projectos nacionais sustentados por elitesmuito restritas. Isto demonstra a importância do nacionalismo, quer se trate do nacionalismo tradicionalista, quer se trate do nacionalismo liberal do século XIX, quer do nacionalismo totalitário do começo deste século, quer dos projectos nacionais. O citado Morgenthau não deixou de notar a tentativa de acomodação do nacionalismo anterior à última grande guerra com a tendência para a unidade do mundo que assinalámos no começo deste curso. Escreveu ele: "Chamar pelo mesmo nome aquilo que inspirou as oprimidas e competitivas nacionalidades ""'Hans Morgenthau, PoliticsamongNations,1959, N.Y., p. XXI. 94 INTRODUÇÃO , ulo XIXe aquilo que fez mergulhar os superpoderes dos meados do século dosec , combate mortal e obscurecer a mudança fundamental que separa a nossa '?'em da época anterior . O nacionalismo de hoje, que é realmente um naciona1· d epoca . . . . universalista, tem apenas uma c01sa em comum com o nac1ona ismo o }!~!11~ XIX,isto é, a Nação como último ponto de referência para as lealdades 0 secu ões políucas. · Aqm,· to d avia, · aca b a a seme lh ança. P ara o nac10na · 1·ismo d o e,acç ' b' · fi 1 d l' . fi 1 d uloXIX,aNaçãoeoo 1ect1vo ma aacçaopo 1t1ca,oponto ma o d esense~vimento político para além do qual há outro nacionalismo com objectivos v? ilares e igualmente justificáveis. Para o nacionalismo universalista de mea:~ do século XX, a Nação é apenas o ponto de partida de uma missão universal :. último objectivo atinge os limites da política mundial. Enquanto o nacio0 ~alismo quer uma Nação num Estado e nada mais, o nacionalismo universalista do nosso tempo pede para uma Nação e um Estado o direito de projectar as suas próprias avaliações e modelos de acção sobre as outras nações"6 5 • Algumas correntes doutrinais como a Action Françaisede Ma urras estão na encruzilhada desta modificação. A importância, que adiante melhor veremos, da diplomacia colectiva contemporânea tem implicações desta situação. É também esta conjuntura que põe em causa a noção de soberania, e que, em vista da tendência para a formação dos grandes espaços, como a União Europeia, minimiza ideologicamente o nacionalismo. De facto, o Estado nacional não foi separável do conceito de Estado soberano. E a soberania , tal como foi entendida por Bodin (1530-1596), seu primeiro teórico, e po r Hobbes, Locke, Rousseau e, entre os modernos, por Duguit, Kelsen ou Laski, é um poder sem igual na ordem interna nem superior na ordem externa. O interesse do Estado aparece como supremo e a soberania não tem limites gue não sejam consentidos. O corolário final deste entendimento é a concepção de Maurras - "la France et seulement la France" ou , numa expressão inglesa gue ficou célebre, "my country right or wrong". Veremos, ao definir a conjuntura actual, os reflexos desta crise na problemática internacional contemporânea em gue o Estado soberano está em revisão e se discute também o valor do Estado nacional. Z.Acção privada e sociedade civil mundial Tivemos ocasião de salientar que a complexidade crescente da vida internacional tem como traço muito característico a internacionalização da vida privada. Esta internacionalização da vida privada tem expressão no aparecimento de uma série de organizações não-governamentais (ONG) qu e correspondem ao fenómeno da vizinhança entre pessoas sujeitas a lealdade s políticas diferentes. 65 Morgenth 3u, cit., p. 313. 95 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Os advogados, os médicos, os engenheiros, os cientistas em geral, agrupani.. -se para além das nacionalidades respectivas. As academias foram pioneiras desta nova forma de solidariedade internacional. A Organização das Nações Unidas deu grande importância a estas organizações internacionais não-governamentais (ONG) classificando-as em categorias para as suas relações com o Conselho Económico e Social. A categoria A com. preende as organizações com um interesse básico na maioria das actividades do Conselho; a categoria B compreende as associações com especial competência mas lidando apenas com algumas matérias do Conselho; finalmente existe u~ registo das associações, muitas centenas, que tenham possibilidade de dar uma contribuição valiosa para o trabalho do Conselho. Pertencem a essas categorias, por exemplo, a Câmara Internacional do Comércio, a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres, a Associação para o Estudo do Problema Mundial dos Refugiados, a CARE (Cooperative for American Relieve Everywhere), a União Católica Internacional de Serviço Social, a Associação Internacional dos Advogados, a Federação Internacional dos Jornalistas, a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha, etc. 66 • Para além desta actividade institucionalizada, a acção privada tem relevo através dos grupos de pressão e até através de personalidades de relevo internacional. Fenómenos como os de Lord Russell (1872-1970) e Schweitzer (1875-1965) não são exclusivos do nosso tempo, mas são mais frequentes e têm uma acção mais vasta na época contemporânea 67 • Estas personalidades estão num plano diferente de simples grupos ou pessoas que, em certo país, influenciam a opinião pública ou tentam mobilizar essa opinião a favor ou contra outros Estados. Nesta acção privada, e no domínio tão importante da imagem de cada povo, os emigrantes representam um factor da maior importância. A Associação dos Franceses no Estrangeiro, a Associação dos Japoneses no Estrangeiro, aAlliance Française, o British Council, a União das Comunidades de Cultura Portuguesa, esta vítima do habitual descaso dos poderes públicos, são tudo organizações que correspondem à relevância da acção privada na política internacional. Existem circunstâncias variadas em que o Estado, não podendo ou não lhe convindo agir por intermédio dos seus orgãos oficiais, tem de fiar-se da acção privada ou de fazer face a essa acção privada. º"Roger Pinto, Les Orga11isatio11s Europiem1es, Paris, 1963; Yearbookofthe U11ited Nations,N.Y., 1990. 7 Lord Bertrand Russel recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1950 e foi um activo militante do pacifismo, com audiência mundial. Schweitzer, que foi teólogo protestante, músico respeitado, e médico, tornou-se um ponto de referência mundial a partir da sua acção no Gabão , onde fundou o Hospital de Lambaréné, que pretendeu integrado nos modelos culturais nativos. Recusou o Prémio Nobel da Paz em 1952. • 96 INTRODUÇÃO rante o isolamento da Espanha, depois da Guerra Civil, organizações · para que b rar o cerco d"tp 1omat1co. ' . A conteceu o mmto priva O com o cordão sanitário com que pretenderam isolar a Rússia em 1918. mes:Urura política de alguns países, como é o caso dos Estados Unidos da Amé~ es torna ainda mais importante este aspecto dos instrumentos da política ~,ca,nacional. Admitiu-se que ali o poder real pertence a uma eliterecrutada, ,nter , . , . ti d rvia não democrat1ca, nos negocios, nas orças arma as, recentemente nos fº lectuais, e na área da informação, especialmente da televisão. Este fenó1nte , obJ"ecto de estudos que se tornaram celebres, traduz-se numa descenmenO, alização do poder que torna extremamente importante toda a metodologia ;estinada a abordar os sectores da vida privada que, realmente, participam no processo de formação das decisões políticas. , . ou das contn "bmram 3, propaganda e opinião pública Aimportância da propaganda como instrumento da política internacional está relacionada com a função da opinião pública mundial. A primeira vez que se tentou atribuir uma alta função a essa opinião pública foi aquando da fundação da Sociedade das Nações. Discutiram-se, então, duas orientações funda mentais, uma francesae outra americana. A França, preocupada com a segurança das suas fronteiras e o desenvolvimento posterior da segurança europeia, não confiava num direito internacio nal desprovido da força e pensava conseguir um sistema coactivo qualquer para assegurar a efectivação do Pacto. Os americanos, pela voz de Wilson, e exprimindo a tradição saxónica, supunham que o tribunaldaopiniãopúblicaseria uma garantia suficiente para a efectivação e respeito das regras internacionais. Lord Robert Ceei!, explicando a situação aos Comuns em 21 de Junho de 1919, dizia: "Agrande arma à qual nos confiámos é a opinião pública, e se estamos errados a respeito disto, então toda a construção está errada". As próprias Nações Unidas, de acordo com a interpretação de Goodrich e Hambro, foram baseadas nesta convicção e chamaram à Assembleia Geral daquela organização "a consciência aberta do mundo" 68 • O problema principal que esta questão põe é o de saber se existe realmente uma opinião pública mundial autónoma. Sabemos que o mundo é cada vez mais uma unidade, mas o simples facto de se ter tentado e podido mobilizar essa opinião pública mostra que se trata de alguma coisa que pode ser produzida, condicionada, manejada, independentemente da sua correspondência a uma exacta informação e valoração dos factos. ""Goodrich e Hambro, cic., p. 151. 97 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O problema suscita uma grave questão de ética e de moral internacional para além dos simples problemas técnicos da comunicação. O famoso Walte; Lippmann, tratando da relação entre a opinião pública e os "pontos de Wilson~ que se situaram no centro do conflito entre as teses francesa e americana d~ Sociedade das Nações, disse o seguinte: "Seria um erro supor que o aparente. mente unânime entusiasmo que festejou os 14 pontos representou concordân. eia sobre um programa. Cada um pensa encontrar alguma coisa de que gosta e sublinha este aspecto e este detalhe, mas ninguém se arrisca a discutir as frases tão impregnadas com os conflitos subjacentes do mundo civilizado que foram aceites. Elas exprimem ideias opostas, mas evocam uma emoção comum. E nessa medida desempenharam um papel na união dos povos ocidentais para os desesperados dez meses de guerra que ainda tinham de suportar. As frases de Wilson foram entendidas numa infinidade diferente de sentidos em todos os cantos da Terra e assim, quando chegou o dia do acordo, toda a gente esperava alguma coisa. Os autores europeus tinham uma possibilidade de larga escolha, escolheram dar satisfação às expectativas sustentadas pelos seus concidadãos que detinham o maior poder no seu país. Desceram na hierarquia dos direitos da Humanidade para os direitos da França, Inglaterra e Itália. Não abandonaram o uso dos símbolos. Abandonaram somente aqueles que depois da guerra já não tinham raízes na imaginação dos seus eleitores. Preservaram a unidade da França pelo uso do simbolismo, mas não arriscariam nada pela unidade da Europa. O símbolo França estava profundamente agarrado, o símbolo Europa tinha só uma história recente6 9 ." A relação evidente entre a opinião pública mundial, o cumprimento das regras internacionais e o interesse do Estado soberano transformaram a propaganda num sério problema de governo que exigiu a criação de departamentos especiais em toda a parte. O problema da imagemdospovosfoi o ponto de referência central desta problemática. A última guerra viu mesmo autonomizado e sistematizado um conjunto de técnicas até então dispersas e que servem uma actividade nova dos governos: dirigirem-se directamente aos povos dos países com quem têm relações con· flituosas saltando por cima dos respectivos governos. Foi uma técnica apurada em grande parte pelos governos no exílio que a última guerra multiplicou. O objectivo é minar a legitimidade dos governos e pôr assim em causa a soli· dez da obediência. Como, por outro lado, a corrente de ideias, de opiniões, de valores, em que se traduz a opinião pública internacional está completamente despersonali· <,?Walter Lippmann, 98 P11blic Opi11io11, N.Y., 1922, p. 214. INTRODUÇÃO da quanto à origem, às fontes e aos métodos, a propaganda não pode deixar ~: entender-se que é um instrumento importantíssimo da política interna. nal. . . . , . a sua d'fi cioRepare-se que a se1ecção dos f:actos que constituem not1ciano, 1 u_0 a sua apresentação, estão na dependência de poucas entidades com estrusar~ anónima; lembre-se a importância dos grupos de pressão internacionais cumbém anónimos, e a interdependência das organizações privadas interna~~onais,igualmente anónimas ou mal conhecidas 70 • A experiência portuguesa dos últimos anos, a distorção da imagem nacioal frequente, na transição dos regimes políticos, é prova suficiente da impor~ânciacontemporânea destes problemas. De algum modo, a transformação da sociedade internacional numa comunidade, a desvalorização das fronteiras, e a capacidade técnica, permitiram a criação de uma esfera de cultura transnacional,sobretudo da responsabilidade e projecto dos grandes grupos multimédia.As redes publicitárias interligam-se à margem das soberanias, cruzando os capitais, submetidos estes ao modelo e exigência das economias de escala, do consumo global, pondo em causa os particularismos culturais. Na área política, o conflito do Golfo mostrou a CNN americana a transformar a população mundial numa só audiência. Os Estados, mesmo quando não abandonam os processos de censura em decorrência de uma assumida definiçãodemocrática, vêem o seu poder de intervir afectado seriamente pelas novas técnicas de comunicação. As ditaduras desistem de interferir nas transmissões de rádio, ou de controlar o audiovisual, ou, de maneira geral, de confiscar os meios de comunicação. Os países do Leste, a começar pela desaparecida URSS, tiveram a experiência da sua debilidade frente às novas técnicas, incluindo os satélites de televisão, a rede telefónica internacional automática, o fax. A resposta de adaptação mostra que o Estado espectáculo, identificado por Schwartzenberg, tem iguais desafios e dificuldades na ordem interna e na ordem externa 71 • No sentido mais corrente, as questõesde opiniãosão aquelas que respeitam a temas com definição incerta, e que por isso não apoiam o alinhamento de argumentos conducentes à evidência. Isto acontece com frequência na área dos valores a que são referidas as decisões e condutas, menos nos domínios da ciência e da técnica onde a evidência depende de maior investigação, repete-se na história sempre que falta apoio em factos averiguados. 70 Jean Meynaud , Lesgroupesdepressio11, Paris, 1960. Armand Math elarc, La cultureco11tra la démocratie? L'audiovisuelà /'heuretra11matio11ale, Paris, 1984; Cambridge, 1989; Me Luhan, U11derstanding Cymhia Schneid er e Bryan Wallis (dir.), GlobalTelevisio11, Media,N.Y., 1986. 71 99 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O tema evoluiu para opiniãopúblicaquando se verificou a identificação separada da sociedade civil e do Estado moderno, e aquela ganhou dinamismo e consistência suficientes para acompanhar a gestão dos interesses públicos pelos agentes da política. Por isso a opinião pública, com centros que lhe animam 0 desenvolvimento, defende a sua existência e eficácia combatendo o segredo de Estado, a censura, os chamados arcanaimperii.Os teóricos do Estado aperceberam-se do problema dessa específica relação entre a sociedade civil e o Estado, apoiando soluções diferenciadas. Um defensor do poder absoluto como Hobbes, condenou a opinião pública como ameaça para a estabilidade do Estado. Mas John Locke, na perspectiva liberal, sustentava que tendo os cidadãos renunciado ao exercício individual da força a favor do monopólio do Estado, tinham porém conservado o poder de julgar a conformidade das acções de cada um e do poder com os valores, usando do que chamou a "lei da opinião pública ou reputação", próxima esta do direito natural, mas variável de acordo com a diversidade de países. A distinção entre a moral e a lei civil, entre o poder político e o poder filosófico, anima os comentários. No pensamento de Kant, sobretudo no Projecto de Paz Perpétua, encontra-se defendida a necessidade de aprofundar as distinções entre política e moral como limite à vocação de domínio do poder, assegurando a autonomia da sociedade civil perante o Estado pela intervenção de pensadores livres de dependências oficiais, porque "a verdadeira política não pode progredir, se primeiro não prestar homenagem à moral". Mas é talvez com o liberalismo francês de Constam e Guizot que a opiniãopúblicaaparece identificada como intermediária entre o eleitorado que só periodicamente é chamado a votar, e os órgãos de soberania. Uma articulada harmonia entre o Parlamento e a opinião pública controla a classe política e reforça a autoridade das decisões. Foi com esse objectivo que Benjamin Constam sugeriu as reformas institucionais necessárias para que a reflexividade entre as câmaras e a opinião pública funcionasse. Uma perspectiva que desvaloriza a sociedade civil perante o Estado e a opinião pública perante a ciência é a de Hegel, na Filosofia do Direito, porque só o Estado orgânico assegura a passagem do bom senso à ciência, da anarquia de interesses da sociedade civil à visão ordenada do Estado de direito. Por seu lado Marx considerou a opinião pública como uma falsa consciência, ideológica, servindo os interesses da burguesia. A sociedade civil apenas terá plena existência política com a abolição das classes, e então não haverá conflito entre ela e o Estado. A experiência foi alertando a opinião liberal para a possível corrupção da opinião pública, um tema que ocupou jáAlexis de Tocqueville e John Stuart Mill, advertindo que a pressão sobre as massas, à margem dos excessos da autoridade pública, conduz o indivíduo a ter que escolher entre o conformismo e a marginalização. Como que antecipou a situação actual em que uma indústria cultural pretende o êxito pelo consumo, fazendo desaparecer as condições do 100 INTRODUÇÃO ., pelo qual os iluministas pretendiam orientar a formação da opinião. 1 0 dia og tro lado, não parece ter conseguido êxito o intuito do TheFederalist(vol. po~º:e propunha assegurar a distinção entre opinião e interesse, pela criação 49 'q a Câmara alta inspirada pelo modelo intelectual das academias, e onde a de · · de fimisse · um qua droque . umdiscussão, sem compromisso com os interesses, • • d . ' . d l' . F'icou ce'l eb re, e 1tvre•sse de apo10 · e re fc erencia ao processo ecisono a po ltlca. servi _ . ( . adigmática, uma afirmaçao de Paul Henn Spaak 1899-1972) na Assembleia rr oNU, quando asseverou que ouvira muitos discursos que tinham mudado ªua opinião, mas nunca um discurso que alterasse o seu voto. Lenine argua :ntou que apenas a esquerda, no seu conceito, tinha a capacidade de formu~r opiniões dignas de serem observadas na governação, pelo que devia ser a ;nica perspectiva aceitável. Todos os totalitarismos adaptam este método da arbitragem, excluindo as perspectivas discordantes. O tema das áreas culturais, ou do mundo de múltiplas vozes de que fala a UNESCO, aponta para a doutrina de que, na área dos valores, a maioria pode convergir no sentido de conclusões fiáveis, mas que o mesmo é difícil de admitir em domínios da ciência, da técnica, da economia, da segurança, e da governação, e nesta dúvida se baseia a desconfiança sobre os opinionpolis que são abrangentes de todas as áreas. Este circunstancialismo orienta no sentido de recortar um conceito menos abrangente de opiniãopública,o qual não corresponde necessariamente à opiniãodamaioriamas sim à opiniãointerveniente na condução da sociedade civil e do Estado, ou da relação entre ambas. No fundo é um tema ligado com o das minorias activas, de tal modo que uma sociedade com maioria conservadora pode ter como activa uma opinião pública liberal ou revolucionária, também acontecen do que a relação seja a inversa. O processo político não dispensa a consulta da opinião pública, no sentido restrito indicado, mas cada vez mais é necessário , na sociedade de informação em que o mundo se encontra, atender à relação dela com os meios usados para a avaliar, designadamente inquéritos estatísticos e debates públicos fornecidos pelos meios de comunicação. Estamos muito longe do academismo do TheFederalist. Assim como é difícil admitir que existe opinião pública nos países onde vigoram políticas excludentes de pluralismo e qu e assumem o controlo dos media,também nas sociedades abertas surge o problema do controlo dos meios de comunicação e da influência relativa que tem nos conteúdos. Tal como a arte da publicidade cria necessidades artificiais orientadas pelas sedes de decisão económica, também na física do poder polít ico cresce a preocupação equivalente. A defesa da sociedade aberta contra os seu inimigos (Popper) é a condição reconhecida para que exista uma opinião públ ica disputada por vários discursos, mas livre na opção. Suposta a pureza do modelo observado, o discurso mede a eficácia pelos resultados, os mais importantes sendo deveres implantados, expectativas criadas, agres101 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS sividade causada, confiança obtida. Na linguagem corrente dos franceses, é necessário avaliar a miseenscénedos agentes e a priseen chargedos destinatários. De facto é o conceito de cenografia que entra na metodologia do Estado espec. táculo. Não apenas a palavra, mas a totalidade do cenário, contribuem para a captura da opinião pública. Usar a mesma expressão que se utiliza para a cap. tura do poder, resulta do facto de, na sociedade aberta, a eficácia do poder depender da adesão da opinião pública 72 • 4. Mercado e sociedade civil mundial É crescente a importância da acção económica no domínio da política internacional e a longínqua instituição dos cônsules está intimamente relacionada com. o desenvolvimento do comércio. Mas a acção económica como instrumento da política internacional tem particular relevo no nosso tempo pela sua relação com o aparecimento de novas dependências entre os Estados, especialmente na área que os dependentes chamam do neocolonialismo. Encontrou, por outro lado, a causa próxima da sua actualidade na temática relacionada com o desenvolvimento económico, que tem sido abordada pelas disciplinas de várias ciências. O famoso livro do Professor Rostow, As Etapasdo Crescimento Económico(1960), marca, do ponto de vista doutrinal, um ponto de referência temporal para a nova importância da acção económica na alteração da estrutura internacionaF3. Como a política do desenvolvimento se pode efectivar entre nações de capacidades variáveis e conceitos estratégicos diversos, o tipo de relações que se estabelecem entre nações ricas e pobres tem a maior importância e constitui tema principal de algumas reiteradas declarações da Santa Sé. De acordo com a orientação de Rostow, Eugene R. Black, John K. Galbraith, Raul Presbisch, Teodoro Moscoso, Milton, E. Eisenhower, Dean Rusk, e utilizando a terminologia que Galbraith tornou corrente, o mundo pode ser dividido em dois grupos fundamentais de países: as sociedades opulentas,que compreendem todos os países da América do Norte e da Europa Ocidental, com economia de direcção descentralizada e com alto consumo popular; as sociedades pobres, 'H. L. Childs, Publiopi11io11: 11ature,flmclio11 a11drole,Van Nostrand, Princeton, 1965;A. Sauvy, L'opinion publique,P.U.F., Paris, 1964; Tocqueville, Dela démocracie C11Amerique,1830; J.Habermas, Storiae critica dessujetsdepouvoir,Langages, 43, de/l'opi11io11e publica,Laterza, Bari, 1971; Landowski, La miseen sce11e 1 to do thi11gs 1vi1h111ords, Oxford, 1962; Hoffmann, La misem scc11e de la viequotidiélmc, 1976; Austin, Ho11 Paris, 1974; Gseimas e Landowski, lntroductio11 à /'a11alyse du discoursensciencessoeiales,Paris, 1979; Karl socictya11dits rnemics,Londres, 1945; John Stuart Mil!, Co11sideratio11s on represcntaPopper, The ope11 1861; Adriano Moreira, Relaçõesmtre asgrandespotências,ISCSP, 1989; Armand (et ti11eGo11en1mrnt, la dcmocratic? L'audo1•imel à l'heuretra11snationale, La Découverre, Michi:le) Mathebrt, La rnltureco11trc Paris, 1984. éco11omiquc, Paris, 1960. ' ' W.W. Rostow, Lcs,!tapesdela croissa11ce 102 INTRODUÇÃO compreendem a generalidade dos países da Ásia, com excepções como quehamados Tigres, o Japão, a Austrália, a Nova Zelândia, os países da África 05 ~ parte da África Austral, e a maior parte dos países sul-americanos, onde 10 sa características são as opostas das sociedades anteriores. Dentro dos limites ~:stes casos e~tremos é possível definir uma escala de posições que todavia • tem agora interesse para o nosso tema. 11 0 ª A lei da complexidade crescente teve aqui reflexos da maior importância. EugeneR. Black escreveu o seguinte: "Diz-se que a ciência e a técnica reduziram tamanho do mundo, e é verdade que isso aconteceu. Mas também aumenta;a!llrodos os problemas muito além da sua proporção em referência ao passado. A ciência e a técnica forçaram as sociedades da espécie humana a uma intimidade nunca antes verificada na História. Ao mesmo tempo, como opinou Lord Russell, o primeiro e principal efeito da ciência e da técnica foi infundir na Humanidade um grande aumento do sentido do poder humano, poder do Homem sobre a Natureza e sobre os seus congéneres. Esta combinação do aumento da intimidade e o sentido, enormemente incrementado, do poder humano, veio acrescentar a Babel de diferenças entre as sociedades humanas, e de tal modo que o grau de perigo e descontentamento que hoje compartilhamos é único em toda a História moderna" 74 • Este perigo do descontentamento, para além dos problemas derivados apenas da concorrência de poderes políticos no mundo, veio salientar que, ao lado da importância das metas do próprio desenvolvimento, que foi expresso na fórmula revolução dasesperanças crescentes, avulta a importância dos métodos pelos quais se procura conseguir desencadear esse desenvolvimento. Os Estados proeminentes nos dois pólos que dominaram por meio século a divisão de forças no mundo, EUA e URSS, ofereceram modelos diferentes a essa revolução e lutaram por uma hegemonia que, nos casos extremos, revestiu respectivamente os aspectos do neocolonialismo e da satelização. Depois da última grande guerra, a primeira espectacular manifestação da acção económica evidentemente relacionada com o equilíbrio dos poderes políticos no mundo foi o famoso PlanoMarshall,que recebeu o nome do então Secretário de Estado dos Estados Unidos da América. Tratou-se de transplantar para a Europa a experiência americana, com dificuldades que Herbert von Broch faz compreender com estas palavras: "As nações e a contextura social que elas desenvolvem são fruto de acidentes e de necessidades, de causas remotas e de pressões inevitáveis. Com uma excepção: os Estados Unidos da América. Os Estados Unidos não se desenvolveram nem foram tecidos, como outras "Eugcnc R. Illack, The diplomacyof cconomicdevelopment,Harvard University Press, 1961. Há tradução brasileira, sob o título A PolíticadoDesenvolvimento Económico,Rio de Janeiro, 1962. 103 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS nações, segundo o padrão desigual e confuso da História. Os Estados Unidos foram criados" 75• Isto significa uma enorme confiança na razão e a tendência para não considerar a contingência histórica como resistência a vencer. De facto, a sua experiência passada parecia ter sempre presente a sentença de Adam Smith: "Pouco mais se requer, para levar um Estado ao mais alto grau da opulência, partindo da mais baixa barbárie, do que a manutenção da paz, os impostos brandos, e uma administração de justiça tolerável; tudo o resto chegará pelo rumo normal dos acontecimentos" 76 • Tratou-se de um Estado, que se pretende árbitrona vida interna, descobrir a necessidade de uma atitude coordenadora pelo menos nas relações internacionais. Quando, em 5 de Junho de 1947, na abertura do ano escolar da Universidade de Harvard, Marshall anunciou o programa para a recuperação da Europa, disse o seguinte: "É já evidente que antes que o Governo dos Estados Unidos possa ir muito além nos seus esforços para aliviar e ajudar o arranque do mundo europeu no seu caminho para a recuperação, deve haver algum acordo entre os países da Europa sobre as exigências da situação e a parte que esses próprios países tomarão no sentido de dar viabilidade a qualquer acção que possa ser tomada por este Governo. O programa deve ser único, aceite por certo número, se não por todas as nações europeias" 77• Estes propósitos tiveram expressão na Convenção de Cooperação Económica Europeia, cujo instrumento diplomático foi assinado em Paris a 16 de Abril de 1948 78 • Quando este método se tornou extensivo a outras partes do mundo, então também se tornou evidente que uma política de desenvolvimento económico, implicando a solidariedade internacional, exige igualmente uma nova forma de diplomacia. Projectar, coordenar, executar, exigiam uma atitude flexível a que a experiência europeia não servia de paradigma porque as premissas culturais nas outras partes do mundo eram diferentes. Uma coisa é ajudar países de alta tradição científica e técnica e com inultrapassável experiência de direcção, outra é ajudar territórios sem passado em tal plano, com escasso enquadramento e com classes dirigentes geralmente dotadas de um sentimento de frustração. Começou, por isso, a verificar-se o aparecimento de instituições, ·, Herbert von Ilroch, A Sociedadeltlacabada(Amcrika:Die U11ftrtige Gesellschaft),Rio de Janeiro, 1964, p.13 . ·,, ln Illack, cit ., p. 60 da ed. bras ileira. Foreig11 Policy,BasicDocumwts, 1941· " "The European Recovery Programme", in A DecadeofAmerica11 -1949, Washington, 1950, p.1268. '" ln João Dias Rosas, A Luta pelosMercadosAfrica11o s, Lisboa, 1958, p. 35. 104 INTRODUÇÃO rvidores e de métodos novos para lidarem com esta acção económica, ins- deseento fiun damenta I d a po l'mca . mternac10na . . 1contemporanea. • cru:o que respeita aos instrumentos novos, aconteceu que, dentro da cada , próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros foi esquecido, ou foi-lhe 0 pats;da a posição proeminente, para conduzir as operações relacionadas com neg , • 79 , rea econom1ca ªª sem premeditação, os países começaram a definir novos mecanismos para irem neste domínio, por estarem em face de necessidades novas. Mas tam~!m começou a sentir-se a necessidade de encontrar um novo tipo de negociador,e O próprio Eu gene Black definiu um tipo normativo nos seguintes termos: .,0 diplomata do desenvolvimento deve preencher a lacuna existente entre o diplomata convencional e o comerciante ou investigador. Seus propósitos não devem ser comerciais ou estritamente económicos, mas em caso algum deve interessar-se pelos estreitos objectivos políticos que por vezespreocupam o diplomata comum. o diplomata do desenvolvimento deve ser um homem com vocação, preferivelmente um homem com termos imediatos de referência. Como artesão do desenvolvimento económico deve usar as ferramentas das disciplinas económicase outras, o melhor que possa, para situar em perspectiva, para lançar luz sobre elas e para iluminar as opções perante aqueles que decidem no mundo subdesenvolvido. Pode parecer um estranho papel para um diplomata mas, como assunto prático no mundo moderno, será certamente o modo mais efectivo de exercer uma influência construtiva, por parte das nações livres, no desenvolvimento dos países subdesenvolvidosªº." Como a acção económica, que tem por objectivo o que se chama a política do desenvolvimento, torna constantemente evidente que estamos em face de uma relação que interessa à independência dos poderes políticos, também internacionalmente, e para além dos objectivos gerais da ONU, se foram definindo programas, técnicas e instrumentos específicos. Em primeiro lugar entre a possibilidade de acordo bilateral entre os países, e a possibilidade de uma internacionalização que despersonalize a ajuda económica e financeira, as preferências têm-se encaminhado neste último sentido 81• Os antigos impérios coloniais, como é o caso da França, usam o método do acordo bilateral como instrumento apropriado para manter uma situação de "Vide Roger Orsingher, LesBanquesdans/e Monde,Paris, 1964. "' Lug cit., p. 41. 81 Charles P. Kindleberger, EconomiaInternacional,S. Paulo, 1974, p. 441 e sgts. José Calvet de Magalhães, A diplomaciapura, Lisboa, 1995, p. 93, sobre a morfologiadiplomática. 105 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS proeminência. Mas o que avulta, para além do neocolonialismo a que adiante nos referiremos, é a tentativade despersonalizar e internacionali zar a acçãoeconó. mica. No que respeita aos instrumentos nascidos sob o signo da despersonalização basta indicar as instituições bancárias e financeiras que têm sede em Washington'. Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial): que deu origem a duas instituições filiadas que são a Sociedade Financeira Internacional (SFI) e a Associação Internacional do Desenvolvimento (IDA); Banco Interamericano de Desenvolvimento, cuja actividade começou em 1960 e tem por objectivo contribuir para o desenvolvimento económico dos países membros que são a Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Estados Unidos, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Perú, Uruguai e Venezuela; Banco da~ Importações e Exportações de Washington, controlado pelos Estados Unidos, em actividade desde 1934. Na Europa, além do Banco de Pagamentos Internacionais, existente desde 1929, foi atribuído um papel importante ao Banco Europeu de Investimentos, criado por protocolo anexo ao Tratado de Roma do Mercado Comum, e a meia centena de bancos que actuam dentro da zona referida por este tratado. A despersonalização e a internacionalização da ajuda, que tiveram a sua grande experiência com o Plano Marshall, implicam, como aconteceu na Europa, a definição de espaços formais ou informais, com uma doutrina própria. O espaço mais internacionalizado foi sem dúvida o do Mercado Comum, que evolucionou para União Europeia . Mas, pelo que respeita ao continente americano, a doutrina Kennedy, que ficou conhecida por Aliança para o Progresso , teve como objectivo institucionalizar aquela zona, indo ao encontro de necessidades que quase ao mesmo tempo tinham sido identificadas pelo Presidente Kubitchek de Oliveira ao lançar o que chamou a Operação Panamericana. Esta doutrina Kennedy teve expressão prática na chamada Carta de Punta dei Este, em 1961. O famoso livro de Schlesinger sobre a Administração Kennedy descreve o clima dramático em que a acção da Aliança foi lançada 82 • Provavelmente o embaixador Lincoln Gordon foi o mais autorizado expo· sitor da doutrina, justamente porque ajudou a formulá-la, e foi encarregado de a executar no mais importante país da América Latina que é o Brasil. A importância atribuída ao Brasil é ainda um detalhe da política de despersonalização que os Estados Unidos pretenderam transformar em imagem da política de desenvolvimento. Gordon insistia em que a Carta se baseia neste princí pio: "Que a liberdade e as instituições da democracia representativa asseguram as • 1 Schlesinger. Mil Dias 110CasaBra11ca, Rio de Janeiro, 2 vols., 1966. 106 INTRODUÇAO eihores condições para satisfazer, entre outros, os anseios de trabalho, tecto terra, escola e saúde. Não há, nem pode haver sistema que garanta verdadeiro erogresso se não proporcionar oportun~d~~e para afirmação da dignidade da pessoahumana, fundamento da nossa c1v1hzação." p Reproduzindo assim palavras da Carta, punha bem em evidência que se ratavatambém de uma luta ideológica entre duas concepções do mundo e da tida, e que a política de desenvolvimento era um aspecto da estratégia global vue O seu país desenvolvia. De resto, a despersonalização dos instrumentos dessapolítica não conseguiu esconder a presença dos Estados Unidos da Américacomo denominador comum em todos os organismos criados. Mas esta despersonalização teve também reflexos na metodologia diplomática: em toda a parte a diplomacia colectiva,com o seu instrumento fundamental que são as conftrências,tornou-se dominante 83 • 111 s.Lógica da relação entre o poder económico e o poder político Aautonomia da economia política internacional apenas recentemente se definiu, libertando-se de uma percepção metodológica que concentrava nos conflitos, e capacidade militar para os enfrentar, o núcleo essencial das questões mundiais. Na literatura agora corrente está adquirido o entendimento de que a intervenção dos governos e povos é sobretudo económica, com a excepcio nalidade da subidaaosextremos(Clausewitz) da guerra. Por isso a interdependência entre política e economia exige atenção prioritária, porque, como escreve Robert Gilpin, "por um lado, a política largamente determina a moldura da actividade económica e orienta-a para as direcções que se julga servirem os interesses dos grupos dominantes; o exercício do poder em todas as suas formas é o maior condicionante da natureza de um sistema económico. Por outro lado, o processo económico tende para a redistribuição de poder e riqueza, transforma a relação de poder entre os grupos. Isto, por sua vez, leva à modificação do sistema político, fazendo assim nascer uma novaestrutura das relações económicas. Deste modo, a dinâmica das relações internacionais no mundo moderno é largamente função da recíproca interacção entre economia e política" 84 • Por isso, a teoria das relações internacionais se ocupa das motivações económicas, das acções, e das políticas que ultrapassam os limites domésticos dos 83 Lincoln Gordon, O Progresso pelaAliança, Rio de Janeiro, 1962. San Tiago Dantas, PolíticaExterna Independente , Rio de Janeiro , 1962; A Aliançaparao Progresso,Rio de Janeiro, 1962, comentários coordenados por J.C. Dreier. William Diamond, DevelopmentBanks, Baltim ore, 1957. Roger Orsingher, Les Banquesdans/e Monde, Paris, 1964 . "'Robert Gilpin , U.S. Powerand the MultinationalCorporation,N.Y., 1975, p. 21. 107 TEORI A DAS RELAÇ OES INTERNACIONAIS países 85• Na definição de Gilpin , a economia política internacional estuda "a recíproca e dinâmica interacção nas relações internacionais com o objectivo de conseguir riqueza e de conseguir poder" 86 • Neste século, foram dominantes os seguintes tópicos: a) conflito ideoló. gico entre Estados capitalistas e Estados socialistas, que dominou o panorania internacional de 1945 a 1989; b) a problemática do neocolonialismo identj. ficado como imperialismo capitalista, e da soberania limitada pela URSS na área dos socialistas, condição da supremacia económica do Estado director• e) tensão entre os aliados da NATO, nesta data com expressão maior nas rela~ ções competitivas entre os EUA e a União Europeia; d) a configuração do Pacífico, onde crescem os poderes da China e do Japão; e) as relações Norte-S ul• f) a diversificação das balanças de poder do ponto de vista da paz e da guerr a' e o consequente peso variável da componente económica no poder do Estado'. g) a competição armamentista, as suas bases tecnológicas, e o comércio d~ armas; h) as causas económicas da guerra; i) relação dos factores económic os com a crise da soberania e a formação de grandes espaços integrados; j) as multinacionais como actores das relações internacionais 87• A importância do tema é sublinhada pelas dificuldades frequentes relacionadas com a crise mundial dos défices. As mais salientes são a geral recessão verificada, com maior ou menor incidência local, nos países de economia industrializada; o abuso do poder funcional, a partir de 1979, dos países que controlam grande parte dos recursos do petróleo (OPEP), hoje mais obrigad os à prudência; fenómenos de instabilidade política e perda de confiança dos investidores, designadamente em vários países da America Latina e Central, o conflito das Coreias do Norte e do Sul, o Vietname , a guerra do Afeganistão, a destruição da África negra, a implosão da URSS; o novo estatuto de devedor crónico dos EUA; o peso da dívida do chamado Terceiro Mundo 88 • De tudo resulta que, como nota Jones, poucos factores da economia mundial deixam de ter consequências nas relações entre os Estados, assim como a situação económica interna dificilmente deixa de afectar a política internacional do Estado 89• Esta interdependência é um dos indicadores da mudança de sociedade internacionalpara comunidadeinternacional.A hierarquia das potências e a luta pela "~Walter S. Jones, The Logicofi11tcrnatio11al re/atio11s, Boston, 1988, p. 445 e sgts . "" Lug, cit, p. 43. "' Conf. W. Jones, cit ., p. 44. Thierry de Montbrial, "The european dimension", in Foreig11 Affairs,1985, p.512 . AjJairs, '" Christine A. Bogd:mowicz-Bindcrt, "World Debt: The Uniced States Reconsiders", Forcig11 1985--1986, p. 259 e sgcs. ''' EconomicRcpportof thc Prcsidc11t, N .Y., 1987, p. 139. 108 INTRODUÇÃO onia levam a desenvolver técnicas conceitualmente identificadas como neocolonialismo, exploração, manipulação,discriminação, hege~ /ismo,colonialismo, ;,11pert~o que a reivindicação de uma justiça internacionalque supere a submissão 010 de cionale evite uma políticaderetaliaçãode antigos povos dominados apoia it1tern:mento no sentido de existir um códigodecondutae uma supervisãomundial. 0 01~vso D. B. Steele, em nova versão dos clássicos Projectistas da Paz, enun1 p?r :; programa de gestãoglobalda economia(GEM), da responsabilidade de c1ou izações mternac10na1s, · · · e com auton "dad e supranac10na · 1para en frentar organ . 'b . ?o desiqu1h nos . 1nestes termos apoia-se . os A percepção d a economia. mternac10na . . no recohecimento de uma categoria de bens, materiais e espirituais, que não podem como da comunidade mundial. Um dos teoriza~ores desta matéria foi Charles P. Kindleberger, e talvez deva considerar -se a Declaração sobre os Direitos dos Povos à Paz (1984), da ONU, como um dos rimeiros documentos mais expressivos. Mas é necessário acrescentar a liber~adedos mares, os sistemas que visam dar peso e medida ao regime do comércio mundial,ou a prevenção dos chamados riscosmaiores,como os da difusa ameaça resultante das instalações atómicas para fins pacíficos e militares. E ainda, em grande parte efeito concentrado da explosão demográfica, dos avanços técnicose científicos , e da interdependência funcional, aquilo que já vai sendo chapúblicamundial.O caso das águas, por exemplo, ultrapassa a madopropriedade questão dos mares e oceanos, que a lei internacional regula. É urgente regular a situação dos rios internacionais, porque não parece aceitável que um dos Estados, a montante do curso de qualquer deles, possa desviar as águas para seu exclusivo proveito. O conceito de propriedade pública internacional, que deriva da natureza de comunidade que a sociedade internacional está assumindo, não o admite 9 1• ?,deixar de ser considerados 6. Imperialismo e colonialismo: o diálogo da imposição Umadas formas mais evidentes de estabelecer um sistema de relações entre os povosé o de conseguir implantar uma forma qu alquer de hierarqui a e subord inação. Os motivos apontados, para abonar tenta tivas desse género , são muito variados, encontrando-se justificações económic as, militares, morais e até psicológicas. 'º D. B. Stc elc, The causefor GlobalEconomicManagementa11dU.S. SystcmRcform,Inrernational Organizarion, N.Y.,1985, p. 561 e sgrs. 91 Charles P. Kindlcberger, "lnternational PublicGoods Wirhout lnternational Government" ,Amcrica11 Economic Revicw,1986, pp . la 13. Edward Burns, "The movement for World Government", Scicncc,Vai. 25, 1948, p. 5 e sgrs . Julia E. Johnson (edt.), FederalWorldGo1•ernmc11t,N.Y., 1948. Clcm Sunrer, The11eiv century,qucstfor the highroad,Cidade do Cabo, 1992, p. 1S e sgts., "four rules of rhe game" . 109 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Pelo que toca à motivação económica, a busca de novos campos de investimento e a obtenção de um mercado de matérias-primas e consumidores foralll muito usuais. A convicção de que "o comércio segue a bandeira" é uma síntese desse ponto de vista, mas também a simples invocação do prestígio nacional, com todas as implicações que este prestígio envolve, foi uma justificação fre. quente. A doutrina do "destino manifesto"que orientou a expansão americana até ao Pacífico é um exemplo dessa motivação. O famoso fardo do homem branco" a que se referiu Rudyard Kipling é urna justificação moral assim como se situa no mesmo plano a explicação do Presidente William McKinley quando anunciou que, em resposta à sua prece, Deus lhe ordenara que conquistasse e educasse os povos das ilhas Filipinas, fazendo pela graça de Deus o mais que estivesse ao seu alcance, porque eram seres pelos quais Cristo também morrera 92 • As necessidades de defesa nacional foram muitas vezes invocadas para obter o domínio de áreas contíguas às fronteiras, para subordinar Estados independentes, para obter fontes de matérias-primas e até soldados. Na Primeira Guerra Mundial, a França utilizou meio milhão de soldados vindos das colónias e a Inglaterra cerca da mesma quantidade de combatentes vindos da Índia, assim como na última grande guerra eram provenientes das colónias cerca de 200 mil dos homens perdidos pela Comunidade Britânica. populacionais,como aconteceu com o Japão antes da última Os excedentes grande guerra, foram um motivo invocado para a aquisição de novos territórios, e a necessidade de um espaçovital para o povo alemão foi a justificação declarada por Hitler. Seja qual for a motivação, o imperialismo significa um dinamismo do Estado que necessariamente conduz à definição de uma supremacia baseada na força, em relação a outros poderes políticos. O sentido do imperialismoé muito controverso e provavelmente cobre realidades não assimiláveis e até variáveis de acordo com a conjuntura histórica. Se percorrermos os conceitos operacionais que actualmente orientam as dissertações nestas matérias, encontramos quase sempre, como ponto de partida, a Study.Este trabalho, publicado o clássico trabalho de J. A. Hobson, Imperialism: em 1902, no apogeu dos impérios europeus, não dá porém uma noção precisa de imperialismo. Todavia, de uma maneira muito tradicional, não deixa de pronunciar-se sobre o que entende por colonialismo, caracterizando-o fundamentalmente como uma forma de exploração, que não exclui uma actividade transplantadora de civilização e de cultura. De facto, quer os trabalhos publicados a este respeito, quer as manifestações, posteriores à última guerra, nos ''' Palmer e Perkins, cit ., p.189. Adriano Moreira, PolíticaUltramarina,Lisboa, 1958. llO INTRODUÇÃO . rnos internacionais e nas conferências dos Estados recentes, não deiorga~isligar O colonialismo ao imperialismo, como que adjectivando, para os 111 Jíª \mpos uma prática antiga 93 • ovos t , . . 11 'li e-se, como exemplo, o estudo de Rupert Emerson, FromEmpzretoNatwn, ornproblema do imperialismo é reduzido ao confronto das soberanias de o 0 11 'dentais com o levantamento nacionalista dos povos da Asia e da Africa 94 • ocitemas principais do seu trabalho são a rejeição do colonialismo, a política os! ia! e os movimentos nacionais, a anatomia da Nação, as relações entre o co on . d . •onalismo e a democracia, a auto etermmaçao. 11ac• • amam 'fcestaçoes - mternac1ona1s, · · · e sem f:a1ar na ONU , a f:amosa No que respeita C nferência de Bandung, de 1955, identificou ambas as coisas, o mesmo tendo fi ~toa Conferência de Havana, de 1966. e Esta adjectivação uniformizadora do imperialismo pelo colonialismo parece conselhar a distinção entre o imperialismo anterior à era gâmica, que convi:eria com o novo imperialismo posterior à descoberta do caminho marítimo para a índia, que encontrou este o seu ponto crítico na Conferência de Berlim, em 1885, e foi essencialmente um imperialismo colonial dos Estados europeus sobre o resto do mundo. o imperialismo anterior à era gâmica era fundamentalmente europeu, de tradição romana, visava uma certa forma de organização da sociedade internacional ocidental que se confundiria depois com a República Cristã. Tratava-se de uma organização hierarquizada, primeiro centralizada, que evolucionou para uma descentralização em que o imperador, depois da renovação do império cristão por Carlos Magno em 800, se foi transformando numa pura figura arbitral até à sua formal extinção pela intervenção napoleónica, que ensaiou organizar o efémero grande império francês, um sonho liquidado na Batalha de Waterloo em 1815. Esta degradação da função imperial no Ocidente fez com que o conceito sobrevivente de império exprimisse apenas, desaparecida inteiramente a vocação romana, uma posição relativa do poder efectivo dos vários Estados, os mais poderosos reclamando a designação imperial, como acontecia com a Áustria. O sentido de hierarquia dos Estados também não está portanto ausente nesta titulação, mas é já um sentido puramente maquiavélico, isto é, da força relativa, e não o sentido orgânico da tradição romana: trata-se de uma hierarquia 93 J. A. Hobson, lmpcrialism: a study, Londres, 1902. Paul A. Ilaran, 11cco110111ia políticadodcscnvolvimrnto, Rio de Janeiro, 1972, sobre "as actividades imperialistas nos sectores sociais, ideológicos e culturais" e "o problema da guerra", p. 284, numa perspectiva de responsabilização dos países capitalistas pelo subdesenvolvimento do Sul. "Rupert Emerson, FromEmpireto Natio11,Boston, 1960. lll T EORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS baseada na força, que ameaça intervir, e não em qualquer dependência funcio, nal recíproca, jurídica ou política. Tal evolução do sentido do imperialismo implicou o aparecimento do nacio, nalismo como ideologia política fundamental de libertação dos povos, para depois ser agressivo, e, por isso, é neste sentido que usualmente o imperialismo moderno é filiado no nacionalismo. É a orientação de Bonn, Townsend, Lan, ger, podendo citar-se estas características palavras de Hans Kahn: "O imperialismo é na sua essência uma fase final do processo começado pelo nacionalismo O nacionalismo luta para unir os membros de uma Nação, politicamente 0 ~ territorialmente, numa organização estadual. Quando isto é conseguido, a luta pela posse da terra continua" 95 • Estas observações mostram duas atitudes possíveis do poder político animado de sentido imperial: ou o exercício de uma função convergente, que procura formar uma sociedade integrada vertical e horizontalmente; ou uma função que procura impor uma subordinação apenas vertical, estabelecendo uma hierarquia que não dá dignidade igual nem a todos os territórios nem a todos os povos integrados. Justamente, o imperialismo correspondente à era gâmica, que começa com a chegada de Vasco da Gama à Índia, enfrentou uma experiência não já apenas europeia, mas planetária, ecuménica e colonizadora. A linha política de espírito integrador que animou o nacionalismo ou o projecto nacional, e a que Kahn se refere, não foi geralmente transferida para além dos mares e para o contacto de etnias e sistemas culturais radicalmente diferentes dos europeus. Por isso, o novo imperialismo aparece revolucionariamente identificado como colonialismo, com o seu ponto crítico, como já se disse, na Conferência de Berlim de 1885, onde se definiu a perspectiva eurocentrista que os movimentos anticolonialistas adjectivariam pejorativamente. A política de integração, que procura constituir sociedades integradas vertical e horizontalmente, sem dependência de situação geográfica ou das etnias ou das culturas, tenta recusar a identificação com o imperialismo colonialista dos tempos modernos. Talvez a distinção entre o colonialismo missionário,este integrador, e colonialismo de espaçovital, este discriminador, ajude a analisar as diferenças das teses, sem esquecer que frequentemente as hipóteses se con· fundiam. Este imperialismo colonialista dos tempos modernos usou todos os instru· mentas próprios da política internacional e foi especialmente determinado pela •,;Hans Kahn, Natio11alism a11d Impcrialism,Brace, 1932, p. 42 . Este autor é dos modernos um dos poucos que não é sistematicamente anticolonialista. Nesse sentido se tornou conhecido o seu pequeno estudo chamado Rcj7ectio11s 011Colo11ialism, Pensilvânia, 1956. 112 INTRODUÇÃO . ão económica que ficou referida. Foram todas as democracias estabi..,0t1vaç ,. . , . , . 1 . . d ••· d frente marmma europeia que constrmram os 1mpenos co oma1s o Jiza:i:sxr~:Inglater~a, França, Ho~anda, Bélgi~a, so~reviv~n~o até 1974 o _impés~c tuguê s que vmha desde o seculo XV.F01este 1mpenahsmo, de motivação rio Pº~e mais económica, que serviu de modelo para a meditação marxista sobre antes, meno da colonização, levando à afirmação de que todo o imperialismo é o feno · na expansao - d o capita · 1·ismo. Esta fi01. a pos1çao . - d e L enme, . fase necessária uma as critica da, dentro da orientação marxista, pelo herético Kautsky (1854ap9e3n9) que não considerava o imperialismo senão como uma política preferida, . 1·1stas96 . -l - inevitáve l, d os E sta d os capita mas na 0 7 Guerra: a subida aos extremos Não se conhece nenhum período da história da Humanidade em que a guerra tenha estado ausente. O famoso Arnold Toynbee, no seu repetidamente citado A StudyofHistory,analisa longamente o problema da guerra nos tempos modernos mostrando como é um fenómeno permanente, de custos nunca recompensados pelos res~lt_ados, e quas~ se~pre com uma alegação ~deoló~ica ~e justificação. A defimçao e a determmaçao das causas da guerra sao porem hoie objecto de uma literatura cada vez mais vasta, e de uma disciplina chamada polemologia, mas aqui interessa apenas notar quais são as funções da guerra no domínio da política internacional e, ainda, as práticas que esta determina para a evitar, humanizar e remediar. Os Estados recorrem à guerra para salvaguardarosseusinteresseslegítimos ou ilegítimos, para exaltarvaloresmoraisou espirituais,para imporo triunfodegruposétnicosque se consideram superiores, para modificara ordempolítica e social internacional. Talvez não seja possível apontar um Estado anterior à última grande guerra cujo território, primeiro dos interesses historicamente vitais, não tenha sido definido pela guerra. Mas o que tem mais interesse na política internacional actual é a utili zação da guerra subversiva ou das guerrilhas como instrumento de uma disputa pelo poder mundial, disputa que é frequentemente ideológica. O Presidente Kennedy disse o seguinte: "As nossas fronteiras hoje estão em todos os continentes. 'Onde está a liberdade está a minha pátria', disse Benjamin Franklin. 'Onde não está a liberdade, está a minha' disse Tom Payne. Na segunda metade do século XX o espírito original americano, personalizado 96 Lenine. Imperialism as the higheststateof capitalism.Londres, 1927. Também in OezmesChoisies,Moscovo, 1953. q11estio11, Londres, 1899, onde exprime a parte da sua doutrina que foi reco VerKautsky, The agraria11 lhida pela ortodox ia marxista . Para uma visão global da evolução, José Adelino Maltez , O imperial·com1111ismo, Lisboa,1993. 113 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS pelos nossos FoundingFathers,defronta a sua maior experiência. Porque o nosso futuro e o do resto da população do mundo estão inseparavelmente ligados ' económica, militar e politicamente" 97 • Procurando evitar um confronto directo, os grandes poderes apoiaralll a insurreição em pontos críticos de fricção, não escondendo sempre esse apoio nem mesmo os objectivos em vista. É, em certo sentido, mais um aspecto d~ despersonalização dos métodos actuais. Luta-se em Angola, em Moçambique no Iémen, no Ruanda, no Corno de África, na Somália, mas, ainda quando u~ dos grandes poderes está envolvido directamente na guerra, o opositor aparece só por agente interposto. São guerras por procuração. A iniciativa não está selll. pre nos grandes poderes, mas o conflito nunca deixa de interessar aos poderes que disputam a supremacia mundial ou regional. E como o equilíbrio de impotência a que chegaram os grandes centros estratégicos de decisão, situação que o fim da Guerra Fria agravou, alargou enormemente a liberdade de acção dos pequenos e médios países, também por isso aumenta a frequência com que a guerra subversiva e revolucionária aparece na cena internacional. O aumento dessa liberdade resulta do facto de os grandes poderes, em vista da capacidade destruidora dos meios de fazer a guerra, serem compelidos a alargar a dimensãoda tolerância,aceitando acções que no passado considerariam intoleráveis. Roger Trinquier, ocupando -se deste fenómeno, diz o seguinte: "A guerra é actualm ente um conjunto de acçõe s de todas as espécies (políticas, sociais, económicas, psicológicas, armadas, etc.) que visa a destruição do poder estabelecido num país e a sua substituição por um outro regime. Para alcançar isso, o assaltante esforça-se por explorar as tensões internas do país atacado, as oposições políticas, ideológicas, sociais, religiosas, económicas, susceptíveis de terem uma influência profunda sobre as populações a conquistar. Por outro lado, pelo facto da interdependência actual das nações, todo o movimento reivindicativo no interior de uma população, mesmo se é de origem muito local e sem expressão longínqua, será rapidamente inserido, por adversários resolutos, no quadro das grandes oposições mundiais. De um conflito localizado na origem e de importância secundária eles esforçar-se-ão sempre, num espaço de tempo mais ou menos longo, por fazer um conflito generalizado" 98 • 17 John F. Kennedy, The Stratcgyof Pcacc.1960,N .Y., p . 56. Archer Jones, The art ofwar i11thc wcstcrnworld,Londres, 1988, onde analisa a evolução depois da Paz de 1945, p. 596 e sgrs. Paul Ramsey, The just ivar,forceandpoliticalresponsibility,EUA, 1968, sobre os custos da guerra, p. 523 e sgrs. ·•HRoger Trinquier, La guerremodcme,Paris, 1961, p. 15. UNESCO, Tcnsionsthat causeivar,Paris, 1951. J. Galtung, Essaysi11PcaceRcsearch,\foi. 1:Pcace,Research,Education,Copenhague , 1975. ' 114 INTRODUÇÃO óricos desta guerra de guerrilha ou revolucionária, entre os quais se os te Che Guevara, Mao Tsé-tung e Giap, não deixaram de sublinhar a destªca: mundial do método e do conflito com que está relacionado. Mao · "fi1cat1vo · b astante para constar d o seu dirnensa u O seguinte, cons1"dera d o s1gm "Considerando a guerra revolucionária como escreveO e célebre LivroVermelho: pequednoas operações das guerrilhas populares e aquelas das principais forrn W, . u d Exército Vermelho complementam-se reciprocamente como os braços ças ºrdo e direito de um homem, e se nós tivéssemos apenas as principais foresq~: ExércitoVermelho sem as guerrilhas populares, seríamos como um comças b "99 nte só com um raça . bate d . . e • A tentativa e e11mmar o recurso a, 1orça na compet1çao entre os gran d es aderes do mundo, restringindo a luta a uma competição sem guerra aberta, P cebeu a designação de SpiritofCamp David(25 de Setembro de 1959), nome ~: lugar onde o Presidente Eisenhower e Kruchtchev passaram em revista a lista dos problemas que dividiam os seus países. Falou-se desde então em coexistência pacífica,apaziguamento ideológico, pacifismo,mas a corrida armamentista continuou e, finda a Guerra Fria, o número de conflitos armados cresceu. A guerra traduz-se no exercício de uma violência armada contra as pessoas e contra as coisas, sem hesitações sobre o aniquilamento de ambas, até à eliminaçãode qualquer resistência à imposição da vontade do interveniente vencedor.A evolução dos meios de combater fez com que o objectivo tradicional de obrigar o adversário a reconhecer a cedência, normalmente em conferência de paz, fosse substituído pela guerraexistencial,que considera a eliminação do adversáriocomo um evento natural do processo 100 • Por vezes a eliminaçãoda estruturapolítico-jurídica parece suficiente, designadamente com o desaparecimento da personalidade internacional do Estado vencido;outras, com exemplos históricos anteriores mas sem a dimensão deste século,a eliminação física dopovoadversário, que a lei internacional considera um crimedegenocídio,é o resultado procurado. Na guerra de 1939-1945, a chamada rendiçãoincondicionaldefinida como objectivode guerra dos aliados, traduziu-se em eliminar o Estado alemão, que deixou de ser um interlocutor, sendo os vencedores quem ocupou o território " A11otatio11s Jrom ChairmanMao Tsitoung,Pequim, 1966, p. 90. Harrison E. Salisbury, The nen•emperors,China in the eraofMao a11dDeng, Boston, 1992, p.141 e sgts. 00 ' Roger Caillois, L'homme et /e sacri, Paris, 1950, é uma referência importante do moderno estudo científico da guerra, que a aproxima da festa ou da orgia ritual. Nef, War a11dhuman progress,N.Y., l950, analisa a sobrevivência da ideia de que a guerra é uma experiência nobilitante. Adriano Moreira, "O Pacifismo", in Comentários,cit., p.171, sobre os vários conceitos condenatórios da guerra. Milão, 1988, uma excelente análise do extermínio dos judeus e, p. 322, Atno J.Mayer, So/11zionejinale, da devastação da Europa pelos nazis. 115 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS vazio de soberania, e unilateralmente organizou as novas entidades políticas Em 1966, a guerra do Biafra levou à eliminação física dos ibos sobre os quais· comunidade internacional guardou silêncio, desde 1974 que o Iraque parecª adaptar tal solução para com os curdos, desde 1975 que a Indonésia ensaia ta~ resultado em relação aos timorenses, desde 1982 parece ser desse modo que 0 Sudão pretende eliminar as resistências do Sul do país. Não é fácil encontrar um problema que a guerra tenha resolvido, nem Utna guerra em que os dividendosdapaz compensem o preço sofrido por todos os intervenientes. é um método que penosamente se tem desenvolvido, quer Por isso, aprevenção no plano jurídico, onde o direito procura eliminar a legitimidade da guer ra quer no plano político que vai convergindo com o primeiro. ' A técnica da balançadepoderesfoi talvez a mais experimentada, variando todavia de definição, também em função da evolução dos meios de fazer a guerra e do alargamento dos teatros estratégicos 101• Classicamente, a prevenção pela balança de poderes traduzia-se em procurar um equilíbrio de meios militares à disposição de cada um dos pressentidos beligerantes, de modo a consegu ira dissuasão, quer de recorrer ao combate, quer de o intensificar , pela evidência dos custos a suportar. Depois da domesticação da energia atómica, complementada pelas guerras química e bacteriológica, a prevenção assentou na balançade terror,porque cada um dos blocos adversários tinha a capacidade de elimin ar o outro , arrastando eventualmente o holocausto de toda a população mund ial. Exemplificando, falar-se-á de equilíbrio actual da balança de poderes entre a Índia e o Paquistão, em vista de um conflito bilateral que dura desde 1947, sequela da divisão do Império Britânico das Índias. Dir-se-á que, no conflito de Israel, desde 1948 , enfrentando todos os seus vizinhos porque estes não aceitaram a decisão da ONU no sentido de constituir o Estado judaico, a balança de poderes se desequilibrou a favor de Israel. Durante o século XIX reconheceu-se a Inglaterra como fiel da balançado sistema de poderes euromundista, e durante todo o conflito bipolar, que apenas desarmou em 1989, verificou-se que a balança de poderes não tinha fiel da balança 102 • 'º' Kaplan, Balanceofpower,Bipolarit)'and othermcthodsof internationa/Systems,N.Y., 1957, p. 23 e sgrs. Edward V. Gulick, Europc'sClassica/Balanceof PoJ11cr, N.Y., 1955, passim . N .Y., 1967, p.161 e sgts. !ris L. Claude, Powerin i11tcr11atio11al "" Hans J.Morgemhau, Politicsa111011g11atio11s, N.Y., 1962, Parte 1. Walter James, cit., p. 284 e sgts. rclatio11s, 116 INTRODUÇÃO §4g InstrumentosGeraisdePolíticaInternacional 1 eito internacional ~-V rcisamente a guerra que constitui o ponto central de toda a problemá~ preelacionada com a possibilidade de estabelecer não apenas regras que os c1ca r políti.cos d evem ob servar, mas, tam b em, , e prmctpa . . 1mente, o esta b ederes Pº·mento de um mecanismo qualquer que permita tornar essas regras respeiIect . . . das e obngatonas. ta No fim da última grande guerra, o famoso Hans Kelsen, num estudo chaado PeaceThroughLa1v,aparecido em 1943, sintetizava a situação nestes tertll s· "Nasdiscussões políticas contemporâneas predominam dois problemas: ~~~eira, como pode ser satisfatoriamente organizada a vida económica dentro ~acomunidade nacional, o Estado, sem abolir a liberdade pessoal do indivíduo? Segundo,como pode ser evitada a guerra ou qualquer outro uso da força dentro da comunidade internacional, quer dizer nas relações entre Estados?" 103 o objectivo procurado com o direito internacional é o de conseguir um teor de vida que seja a réplica, neste domínio, do teor conseguido na vida interna dos Estados, onde o recurso à força é uma excepção. Porém, no que respeita à política, quer se trate da vida interna quer da internacional, não deve esquecer-se que o direito positivo é um instrumento do poder, ainda quando o poder o aceita como um limite. Esta circunstância explica que a formação do direito internacional seja muito recente, datando apenas do começo do século XVII o ponto crítico em que o interesse nacional aparece como referência fundamental, e em que a concepção imperial da tradição romana definitivamente cede o passo aos Estados soberanosHH. O desaparecimento da possibilidade de referência a uma autoridade universal definiu uma situação que exigia o estabelecimento de um conjunto de regras apoiadas em qualquer coisa que possa ser o equivalente do poder. Um substitutivo situado ocasionalmente de uma maneira flutuante entre o acordo dos Estados e as tentativas de reorganização supranacional, tudo com expressão num quase inexprimível sistema de ameaças e vantagens que pode talvez traduzir-se, para cada Estado, na submissão voluntária. De facto, mesmo depois da queda do Império Romano, os teólogos preocuparam-se mais com a moral individual do que com os problemas internadow, ln Hans Kelsen, La idcadei dcrcclw11at11ral y otrosEnsaios,Buenos Aires, 1946 , p. 269 . 'º' Pode ver-se a evolução em Arthur Nussbaum, Historiadeidcreclwi11temacional,Madrid 1947. Julian Huxley (ed.), Thc h11111a11ist Jramc,Londres, 1961. 117 -- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS nais. Quando se ocupavam de política era sobretudo dos problemas do pode legítimo que falavam, fazendo incursões ocasionais na problemática da guerr: justa e da colonização, capítulos onde seguiriam o ensino de S. Tomás. Foi só 0 Estado nacional que mudou a situação. Como nota René Coste: "Durante os séculos XV e XVI produziram-se, fre. quentemente de maneira insensível, consideráveis transformações nas estrutu. ras políticas, económicas e religiosas, assim como na mentalidade do Ocidente Em vez da Cristandade medieval que ruíra por todos os lados, tinham-se cons~ tituído Estados nacionais ciumentos e orgulhosos da sua independência poli. tica em relação ao Papado e ao lmpério" 105 • Os grandes nomes do direito internacional aparecem a partir de então: Grotius (1583-1645), um holandês que servia interesses contrários aos interesses portugueses, publicou, em 1609, o seu MareLiberum,onde sustenta a liberdade dos mares; em 1625 publicou o famoso DeJureBelliacPacis,enquanto a Europa se transformava pela tragédia da Guerra dos Trinta Anos. Com este livro começa talvez a autonomia de uma nova concepção das relações internacionais, uma expressão que havia de ser usada apenas por Jeremias Bentham um século e meio mais tarde 106 • Até ao positivismo do século XIX, os pensadores do direito internacional agruparam-se em três orientações fundamentais. Os naturalistas, invocando Grotius como matriz originária, atribuindo ao direito internacional específicas características: o direito natural é a fonte das regras a que os Estados se devem subordinar; a violação dessas regras deve ser considerada um crime; e, finalmente, a "lei da paz" resulta das Sagradas Escrituras, da história antiga e dos clássicos. Os positivistas, mais influenciados por Richard Zouche (1590-1660), um professor de Oxford, punham o acento tónico do direito internacional no costume nascido intergentes,expressão que na sua técnica substitui a expressão jus gentiumde Grotius. Os ecléticos de sempre fundiam ambas as orientações e, pouco a pouco, o estudo objectivo das normas tornou-se dominante e a codificação foi a tarefa característica do século XIX 107• Não interessa, do ponto de vista da política internacional, conhecer as dificuldades e variações doutrinárias do direito internacional como disciplina jurídica. Importa, sim, recordar de novo que os moralistas católicos, que primeiro se preocuparam de forma sistemática com a disciplina destas relações, estariam na origem do novo ramo das ciências jurídicas. Francisco de Vitoria (1480-1546), Francisco Suárez (1548-1617), Covarruvias (1512-1577),Roberto '"' René Coste, cit., p. 99. "'" OpprnlzeimInternationalLaiv,Longrnans, 1965, 1• vai., p. 81. "" Palmer e Perkins, cit., p. 308 e sgts. 118 INTRODUÇÃO ino (1542-1621)e Erasmo (1469-1536), que foi chamado o primeiro dos aeiarmeus partem d os ensinamentos · · cato·1·icos para o esta b elecimento de um europ ' . l . •w internac10na . direi · • · d e serem mora 1· . . . d ores d o exame Mas justamente a circunstancia istas os inicia , nomo destes problemas talvez ajude a compreender a diferença conceituai auto direito internaciona · l apresenta em re laçao - ao d'ireito . interno, . d esprovi'd o 0 que está, ao contrario ' · deste, de um instrumento · d d ou po er e coacçao. 0 com · · 1· · · Numa tradição que cnsta izou em Kant, e' comum ensinar que a Mora l visa disciplina do foro interior dos indivíduos, e que o Direito visa a disciplina activa da sua conduta exterior. A Moral é um conjunto de regras que percoiteao indivíduo viver em paz consigo mesmo, enquanto o Direito o obriga a rn ' que, no nosso tempo, e para al'em iverem paz com os outros. Acontece porem ~o pequeno sector em que o Direito dotado de coacção impera, os sociólogos começam a dar-se conta de que o critério da Moral tende para transformar esta num conjunto de regras que permite à pessoa viver em paz consigo mesma, mas integrado num complexo de regras que permitam obter a paz e a cooperação dos outros, próximo sempre da perspectiva da Moral, e esporadicamente susceptível de ser imposto pelo força. Ora o direito internacional, tal como se formou na sociedade ocidental, desprovido de um poder superior porque destinado a uma sociedade igualitária, não foi mais do que um conjunto de regras que permitiram a cada Estado obter a paz e a cooperação dos outros. Esta paz e esta cooperação eram o resultado de um equilíbrio de interesses e de poderes que por vezes, mas raramente, conseguiam encontrar expressão em fórmulas mais ou menos institucionalizadas: os tratados organizacionais como seria a Carta das Nações Unidas (1945); os Tratados de Locarno (1925); o Pacto de Paris também chamado de Briand-Kellogg (1928); o Acto Geral de 1928 destinado a "servir como tipo de sistema multilateral de conciliação para todos os diferendos e arbitragem, para os diferendos de natureza legal e de processo arbitral para todas as disputas"; as convenções sobre desarmamento; as tentativas esporádicas de Directório internacional; a política de equilíbrio; a instituição de tribunais internacionais. Esta forma de estabilização de origem europeia, que foi pois mais uma moral internacional do que um direito internacional, dominou todo o mundo a partir do século XIX, porque depois da Conferência de Berlim (1885) a supremacia no mundo era europeia ou de origem europeia, e o sistema em funcionamento era euromundista. Os Estados, admitidos como sujeitos da vida internacional, tinham sobreque inspirava toda a doutrinação, de crescente tudo uma vocaçãoconservadora importância, no sentido de ao menos jurisdicionalizar as questões essenciais. ª 119 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Depois da última guerra, o número de Estados que não participaram na for, mação desse equilíbrio mundial é muito maior do que o daqueles que foratn responsáveis pela antiga Ordem. A vocaçãoinovadorasobreleva, em quantidade a vocaçãocollServadora. ' O Direito, nestas circunstâncias, tende para evidenciar a sua frágil natureza de instrumento do poder, atenuando a vinculação aos valores éticos, e a Política assume a relevância que só parece menor nas épocas de estabilidade. A codificação do direito internacional do século XIX, o positivismo que a inspirou, parece dar alguma razão aos pessimistas que encontram nas codifi, cações um sinal da morte dos tempos. Os grandes poderes, dispondo de meios de destruição sem precedente, o que mantém a ameaça para além do fim da Guerra Fria, desenvolvem uma actividade significativa no sentido de encontrar uma nova forma de coexistência pacífica, porque a força deve ser usada apenas esporadicamente para ser útil. Mas esta busca de equilíbrio novo não lhes tem permitido a eles próprios respeitar a moral internacional que, com o nome de direito internacional, tinha exprimido o equilíbrio anterior à última grande guerra 108 • No caso de a evolução da sociedade internacionalse acentuar no sentido de comunidadeinternacional, também se tornará dominante a perspectiva da paz interna da comunidade e não a da paz internacionalentre os Estados, facto a que corresponde já o actua) inquieto desenvolvimento da doutrinade ingerência, por motivos humanitários, da comunidade internacional na vida interna dos Estados: são paradigmáticos os casos da Bósnia e do Ruanda, em que a ONU forneceu a legitimidade para a intervenção tímida e de resultados escassos. 2. Directório: um recurso e uma ameaça Esta situação reflecte, no plano internacional, a perplexidade a que a última guerra conduziu a definição ideológica das forças em presença. Karl Mannheim, em plena campanha, fez o seguinte diagnóstico da situação interrogante: "Os problemas fundamentais do nosso tempo podem expressar-se nas seguintes perguntas: existe a possibilidade de uma planificação que se baseie na coordenação e deixe, não obstante, um campo para a liberdade? Pode afastar-se deliberadamente a nova forma de planificação de toda a interferência que não seja ditada pela existência de casos em que o ajuste livre não tenha levado à harmonia, mas antes ao conflito e ao caos? Existe uma forma de planificação movendo-se na direcção da justiça social de maneira que se limite gradualmente a desproporção entre rendimentos e riqueza dos diversos estratos da lllH Um estudo académico das modificações do direito intern acional pode ver-se em Intematio11 al Lall' in a. Cha11ging World,publicado com a colaboração das Nações Unidas, N.Y., 1963. 120 INTRODUÇÃO _ 2 Existe uma possibilidade de transformar a nossa democracia neutral :Naça:democracia militante? Podem transformar-se as nossas atitudes em relan~rnaosjuízos de valor de tal modo que seja possível um acordo democrático ça~ e determinadas questões básicas, ao mesmo tempo que se atribuam à escoso ~ndividual as questões mais complexas?" 109• lhatA rnutação d os interesses · d esactua 1· · d as respostas a estas per1zou mmtas ntas que eram dadas pelas ideologias que convergiram para a formação do â~reito internacional em crise, e isto porque são novos os problemas e as ressras não podem ser as mesmas. po É esta desactualização que leva, segundo supomos, a falar no apaziguamento "deológicoque se manifestaria na transformação dos partidos socialistas, na ~ndiferençados cidadãos perante a vida política, no julgamento do poder pela sua eficácia, tudo baseado ou explicado pela espectacular expansão das forças produtivas que encaminhariam para sociedades de abundância sem a necessidade de conquistar novos territórios, sujeitar outros povos, ou subordinar • 1110 Estados a um esquema co 1ama . Falou-se, por isso, no crepúsculo das ideologias querendo afirmar que elas não correspondem às necessidades do nosso tempo que aspira a uma orientação roaisracional e técnica 111• Temos entendido que o fenómeno real é o da desactualização das antigas ideologias e a falta de instrumentos para expressão das ideologias novas já formadas ou em formação. A situação do direito internacional, repudiado pelos Estados que não participaram na sua formação, a natureza de programação política tão frequentemente atribuída à Carta da ONU, são sintomas dessa situação, que também encontra manifesta contraprova, pelo que toca à vida interna dos países, no completo desabar das antigas estruturas partidárias, no descrédito dos agentes da política, e na busca febril de novos aparentamentos e de novas solidariedades políticas. De modo que o panorama da política internacional, que viu desestabilizar uma moral internacional, embora frágil, sem um poder organizado para a garantir, mas ainda assim chamando-se direito internacional, a marcar uma intenção, parece às vezes encaminhar-se paradoxalmente para a busca de um poder sem modelo que possa suprir a inexistência de um normativismo acatado. A estabilidade representada pela existência de um conjunto de regras respeitadas, e por um poder ou algo (equilíbrio) que progressivamente lhe equivalha, que foi característica da época do predomínio europeu, não foi reencontrada. Aquilo que se chama hoje a crise da ONU é apenas um reflexo da crise do mundo, e por m•Karl Mannheim, DiagnosticodeNuestroTiempo,Buenos Aires, 1944. 110 Galbraith, L'erede /'opulrnce,Paris, 1961, e ColloquesdeRhei11feldrn, Paris 1960. 111 Gonzalo Fernández de la Mora, E/ Crepúsculode lasIdeologías,Madrid, 1965. 121 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS isso ela do que sofre é de não ser um instrumento reformado para a conjuntura sem julgar a situação presente em termos de futurologia. O que se pode tenta; é enumerar as experiências que no passado representaram, para o direito oU moral internacional, o equivalente aproximativo do poder que garante a coactividade do direito na ordem interna. Uma das experiências possíveis é a do Directórioou a de um Estadodirector dentro de uma zona definida por uma fronteira ou geográfica, ou cultural, ou ideológica. A Santa Aliança, destinada a assegurar a ordem territorial da Europa do Congresso de Viena de 1815, definiu uma fronteira ideológica baseada na fraternidade dos soberanos que diziam "considerarem-se como compatriotas, e que se prestarão, em todos os momentos e lugares, assistência e ajuda". A direcção do mundo dependente da Europa ficava entregue ao concerto de. um grupo de potências a que se chamou Pentarquia. Foi esta Pentarquia que evolucionou para o que se chamou o ConcertoEuropeu que dominou todo o fim do século XIX, que não se baseava verdadeiramente em tratados, mas que procurava assegurar, sobretudo por inspiração da Inglaterra, um certo equilíbrio entre as potências. Incapaz de resolver um conflito entre as grandes potências, podia todavia viabilizar soluções para além do campo dos interesses destas. Outra fórmula, ensaiada pelo nacional-socialismo, foi a do Estado director. No Pacto germano-italiano de 22 de Maio de 1939 foi dito que o povo alemão e o povo italiano resolveram intervir lado a lado para assegurar o seu espaço vitale para manter a paz. A ideia de espaço vital implicava a de fronteira, inspirada esta pela comunidade de sangue e medida pelas necessidades de subsistência do povo, determinando uma organização hierárquica dos outros povos dentro da área. A mesma ideia aparece na Aliança Tripartida, assinada com o Japão, que reservava para este o grande espaço da Ásia. A essência da concepção estava na divisão do mundo em grandes espaços, cada um sujeito a um Estado director. Transferia-se para a cena internacional o princípio do Führer.O Acordo germano-checo de 1939 e o Pacto germano-soviético da mesma data, assim como a concepção japonesa da Área de co-prosperidade da Ásia, obedeceram a esta inspiração que nega o conceito tradicional de sociedade internacional paritária. O equivalente do poder numa sociedade paritária foi, na experiência do passado, o equilíbrioque também se chama balançadepoderes,um conceito elaborado no século XVIII e que se tornou dominante durante o século XIX. Hume dedicou-lhe um estudo, Of theBalanceofPower,que não tem uma dezena de páginas, e Vattel, que evidenciou a relação da balança de poderes com a eficácia da ordem jurídica internacional, consagrou-lhe páginas escassas 112• 11' Edward Vose Gulick, Europc'sClassicalBalanceof Powcr,N.Y., 1955. 122 INTRODUÇÃO Os objectivos da política de equilíbrio eram, principalmente, os seguintes: varasobrevivência e independência dos Estados; salvaguardar o sistemainternapreser d · · · d" d " . d . l em que o Esta o se mscrev1a; zmpe zr a prepon erancza e qualquermembro c,on~stemaNo pensamento de Vattel, Centz e Wolff, teóricos, e no pensamento dost · . d Talleyrand, Mettermch e Castlereagh, homens de Estado, a guerra era um . e trumento destinado a defender e restaurar a balança de poderes. ins Este sistema levou-nos à formulação do conceito de zonadeconfluência depodecompreendendo o conjunto geográfico até onde fazem fronteira os interesres,das potências · que tiverem · . - d a b a1ança. acor d ad o na d e fi1mçao 5 se Para lá ficam as zonasmarginais,para onde eventualmente qualquer poder e poderá expandir desde que não afecte o equilíbrio. 5 o sistema do equilíbrio ou balança de poderes tem como elemento fundamental o que se chama o fiel da balança. Um escritor anónimo do século XVIII, citado por Hoffmann, escreveu: "Aexperiência e a razão habilitam-nos a entender que um poder geralmente persuade os outros a não cometerem erros, e este poder é chamado, penso que não sem razão, o fiel da balança. Seguramente uma muito honrosa e louvável função." A Inglaterra desempenhou o papel de fielda balança durante muito tempo, talvez historicamente até ao momento em que um seu inimigo, a Alemanha, esteve em condições de cortar a ligação vital dela com o mundo exterior. Na opinião de Leon D. Epstein, o submarino e o avião foram os símbolos do desaparecimento dessa função 113• A experiência de qualquer dos sistemas, as suas fraquezas e contingências, 0 seu oportunismo essencial, contribuíram para o fortalecimento de um ideal não atingido que é o da segurançacolectiva. 3. Segurança colectiva O conceito de segurança colectiva, que se formou antes e durante a guerra de 1914-1918, não pretendeu eliminar a soberania dos Estados. Procurava sim limitar as suas possibilidades de agressão. O ideal da segurança colectiva pode talvez definir-se por oposição ao sistema das alianças, em grande parte responsabilizado pela guerra de 1914-1918. Na aliança os Estados unem-se contra um eventual agressor, em regra historicamente determinado. A segurança colectiva busca um sistema global que funciona a favor de todos e, portanto, um sistema que reage contra qualquer agressão considerada injusta em face do direito internacional. 113 ln Foreig11 Policyin WorldPolitics,Roy C. Macridis {ed.), Washington, 1958. Adriano Moreira, "Evolução das Relações Leste-Oeste", in Ensaios,Lisboa, 1960. Georges Berlia, Problemesdesecuriti , cit., P· 233 e sgts., noticiando a conferência sobre a segurança e cooperação na Europa {CSCE) avaliada no contexto da paz nuclear. David P. Galleo, Beyo11d AmericamHegemo11y. N.Y., 1987, p. 215 e sgts. sobre o pluralismo estratégico. Pierre Lellouche, L'avenirdelaguerre,Paris, 1985, p. 247. 123 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A Sociedade das Nações foi anunciada num dos célebres 14 Pontos do Pre. sidente Wilson, e veio a ser a primeira grande expressão do ideal da segurança colectiva. Prevista a sua criação na agenda da Conferência da Paz reunida elll Paris em 1919, o seu Pacto veio a constituir a primeira parte dos tratados assinados com as potências vencidas. Em oposição à experiência da Santa Aliança, não procurava basear-se na unidade cultural ou na identidade de forma poli. rica dos Estados, mas assentava na afirmação da validade de um direito inter. nacional que, sendo de origem ocidental, era de vocação mundial. A ideologia do organismo traduzia-se nestes pontos essenciais: a) aceitação geral de certas obrigações destinadas a evitar o recurso à guerra; b)aceitação da validade do direito internacional, cuja eficácia resultaria da submissão voluntária dos Estados aos seus imperativos; e)observância estrita dos tratados entre os vários Estados; d) tendência para a diplomacia pública com repúdio , em princípio , dos tratados secretos, de modo que a justiça e a honra presidissem às relações internacionais. O ponto principal, que era o da guerra, recebia o seguinte tratamento no artigo 11 do Pacto da SdN: "l) É expressamente declarado que toda a guerra ou ameaça de guerra, quer afecte ou não directamente um membro da Sociedade, interessa à Sociedade no seu todo, e que esta deve tomar as medidas apropriadas para salvaguardar a paz das nações. 2) Fica também estabelecido que qualquer membro da Sociedade tem o direito de chamar a atenção da Assembleia e do Conselho para qualquer facto susceptível de afectar as relações internacionais e que ameace perturbar a paz e o bom entendimento entre as nações de que a paz depende." Várias razões impediriam resultados positivos desta tentativa de segurança colectiva. Em primeiro lugar, o seu carácter universalista foi definitivamente comprometido pela ausência dos Estados Unidos da América. Depois , a impossibilidade de usar directamente a força ou de impor aos Estados membros o uso da força a favor das suas decisões, não lhe permitiria ser mais do que uma medianeira colectiva entre eventuais litigantes. Casos típicos, como o da guerra de conquista da Etiópia pela Itália (1935), o Anschlussda Áustria e dos sudetas pelos nazis em 1938, a anexação da Boémia e da Albânia, em 1939, o caso da Manchúria, ocupada pelo Japão (1932), demonstraram a ineficácia do sistema 114 • Veremos como se desenvolveu o conceito depois da Segunda Guerra Mundial. IH Hoffmann , Orga11isations i11tematio11ale s etpouvoirspolitiquesdesÉtats, Paris, 1954. 124 INTRODUÇÃO organismos internacionais e supranacionais 4 · ta experiência pode servir de linha divisória de dois caminhos: o da construde organismos internacionaise o da construção de organismossupranacionais. çaoa facilitar a exposição poder-se-á adiantar desde já que os primeiros serão par d , . . , . d l ueles onde os Esta os mantem a posição pantana, e os segun os aque es aqde se inscreve um princípio de organização aristocrática ou de integração. :s primeiros pode também funcionar a regra da maioria, mas não o do voto rivilegiado; nos segundos, o voto privilegiado tem eventual função impor~antepelo menos em certos domínios sem que isso seja contrário à regra das E: 01aiorias. Sobretudo depois da guerra de 1914-1918multiplicaram-se as organizações internacionais, das quais, exemplificativamente, se podem apontar a Organização para as Comunicações, constituída em 1920, nos termos do artigo 23 do Pacto da SdN para assegurar, entre outras coisas, um tratamento equitativo para o comércio de todos os países; em 1923, por imperativo da mesma disposição, foi criada a Organização da Saúde; em 1926 foi criado em Paris o Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual destinado a promover o desenvolvimento e difusão da ciência, das letras e das artes e, designadamente, para desenvolver uma opinião pública contrária à guerra. Mas o grande problema é o de conseguir a supremacia da moral internacional, no sentido apontado, ou do direito internacional como mais correntemente se diz. Uma supremacia que exige um poder ou equivalente de um poder como já ficou referido, objectivo que aponta para o estabelecimento de uma autoridade supranacional, ou, como meta final, daquilo que pode chamar-se um Estadouniversal. A busca de uma organização supranacional confunde-se, na linhagem dos chamados Projectistas da Paz, com a própria história da tentativa inacabada de construir uma Europa politicamente unificada e, por causa do passado domínio mundial da Europa, com a própria história do projecto utópico de estabelecer um Estado universal. Os império s romano, árabe, carolíngeo, bizantino, foram experiências de autoridade centralizada e de uma organização hierarquizada que não corresponde ao mod elo da organização supranacional. Este é um projecto determinado pela existê ncia de Estados soberanos . Ao mesmo tempo que os juristas de Bolonha e Toulouse vão construindo a doutrina do nacionalismo, os ideais da unificação encontram um precursor em Pierre Dubois, conselheiro de Filipe, 0 Belo, e que, pelos começos do século XIV escreveu o De recuperatione TerraeSanctae,subintitulado Tratadode PolíticaGeral.Adversário da supremacia do Papa, e advogado da confiscação dos bens das igrejas e dos conventos, 125 --- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS projecta os Estados Unidos da Europa. Na querela da supremacia entre 0 Imperador e o Papa, aponta um terceiro caminho, o de um Concílio laico das nações europeias, representativo da República Cristã, e dispondo de ulll poder arbitral. Mas parece ter sido a planetização do fenómeno político, que tem co1110 marcos a tomada de Constantinopla por Maomé II em 1453, e a chegada de Vasco da Gama à Índia em 1498, que determinou o florescimento dos projectos universalistas, projectos que encontram acabado o fenómeno do Ocidente dos Estados. Com efeito, entretanto, as raízes da Reforma estão lançadas por Lutero (1483-1516), Calvino (1509-1564), Wycliffe (1330-1384), Jan Hus (1371-1415),Savonarola (1452-1498), os exércitos permanentes são estabelecidos; as Igrejas nacionais despontam; os impostos regulares são decretados. Em 1464, Jorge de Podebrady, rei da Boémia, apresenta a proposta de "u 111a aliança defensiva da Cristandade contra os turcos". Mas tratava-se de mais do que uma aliança: os contratantes deviam-se ajuda mútua; a arbitragem resolveria os conflitos entre eles; os desobedientes seriam passíveis de sanções colectivas; cada Nação teria um voto; a sede da liga seria móvel, por períodos de cinco anos. Jorge de Podebrady não conseguiu todavia a projectada convocação de uma Dieta ou Assembleia dos reis e príncipes cristãos, com que se propunha escapar simultaneamente à autoridade do Papa e do Imperador pelo terceiro caminho que fora apontado por Dubois. Depois, em 1623, Emeric Crucé publicou o seu Le nouveauCynéeou Discours desOccasionset Moyensd'établirune Paix Généraleet la Libertédu Commercepour tout /e Monde.Pouco se sabe do seu autor, sacerdote e professor, algures, de Matemática. Pacifista convicto, sustenta que a guerra é desumana e não aproveita a ninguém nem dá honra que valha. O trabalho e o comércio devem ser a fonte de enriquecimento do Estado. Dizia, com o mais profundo universalismo: "Que prazer seria ver os homens circular de um lado para o outro livremente e comunicar entre si sem nenhum preconceito de país, de cerimonial e de outras coisas parecidas, como se a Terra fosse, como é verdadeiramente, uma cidade comum a todos." Dirige-se a Luís XIII para que promova, com todos os soberanos cristãos e da China, Japão, Pérsia, Etiópia, etc., uma organização destinada a preservar a paz no mundo. Dizia: "Seria necessário escolher uma cidade onde todos os soberanos tivessem perpetuamente os seus embaixadores, a fim de que as questões que pudessem surgir fossem solucionadas pelo julgamento de toda a Assembleia. De modo que se algum não seguisse a decisão de tão notável reunião, incorreria na desgraça de todos os príncipes, que encontrariam algum meio de o fazer 126 INTRODUÇÃO à razão." Reserva um lugar especial à Santa Sé por razões espirituais e de 1 .•. votar . ão mas sem lh e recon h ecer qua 1quer proemmencta po I'º 1t1ca. d tra Vm tÇ projecto ' • cita • do, e d e ongem · ·mcerta, e' o con h ec1"do corno Grande mmto de Henrique IV, realmente concebido, ao que parece, por Sully, já em 1 0 - pu'blº1cas, proiecto . P ºdan de avançada e a f:asta d o d as fiunçoes apresenta d o a' aten1 de Richelieu. Convidando os governos a unirem-se, Sully divide a Europa ~: quinzeEs~ad~s~e igual_p~der, divisão _evide~:eme~te arbitr!ria . Di;i_dia Republzca,na qual so adrn1t1a tres confissoes: catoltca, •ma Crist1amss1ma asst lvinista e luterana. Os turcos, por exemplo, deveriam converter-se a uma ~:las ou abandonar a Europa, pela força se necessário. Um órgão de quarenta embros chamado Cristianíssimo Conselho teria o poder de arbitrar todas : questões. Tal Conselho seria renovado cada três anos e cada ano mudaria de sede. Um exército europeu, cosmopolita, estaria à sua disposição, com cem mil infantes, vinte e cinco mil cavaleiros e cento e vinte canhões. Entretanto, estando próxima a Paz de Westefália, era para o sistema de equilíbrio que realmente se caminhava. Em 1693, William Penn, autor da constituição da Pensilvânia, que viria a servir de modelo à constituição dos Estados Unidos da América, publica o seu Ensaioparaa Pazpresenteefutura da Europa,preparando o estabelecimento de um Parlamento sob a inspiração desta divisa: Beatipacifici.Cedantarma togae. A importância de cada Estado tinha expressão no número dos seus delegados. De todos os Projectistas é o único que se preocupa com Portugal, a quem atribui três votos, enquanto o Estado mais poderoso, a Alemanha, tinha doze. Admite a Turquia e a Rússia na Europa. A presidência seria rotativa. As decisões deviam ser tomadas por maioria de três quartos. Os debates realizar-se-iam em latim ou francês. Requer um exército privativo e estabelece que as despesas sejam pagas pelos vencidos. Outro grande espírito, Leibniz, concebeu a unidade supranacional da Europa e, também, o governo do mundo pela Europa. Em 1632, procura em vão Luís XIV para lhe submeter as suas ideias. Em 1677 publica Dejure suprematusaclegationis prÍllcipumGermaniae,em que sugere um colégio universal, religioso e político, sob a autoridade do Papa e do Imperador. A Europa deve, como a Igreja, ter um chefe, imperador. Mas este é mais um árbitro do que um soberano medieval ressuscitado; "NonMonarchiamuniversalem...sedDirectionemgeneralem seuarbitriumrerumesse."Evangelizadora do mundo, a cada país tomado em consideração se assinava uma missão: a França recebia a África; a Suécia e a Polónia recebiam a Sibéria e a Taurídia; a Inglaterra e a Dinamarca recebiam a América do Norte; a Espanha recebia a América do Sul; a Holanda recebia as Índias Orientais. Morreu convencido do rigor do seu diagnóstico, mas também pessimista quanto à viabilidade da terapêutica proposta. _ª 127 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Dirigindo-se a Saint-Pierre, dir-lhe-á que há certas fatalidades que impedeni os homens de serem felizes, mas insiste em que o mal da Europa vem da falta de uma autoridade efectiva. O abade de Saint-Pierre, a quem se dirigiam estes amargos comentários tendo estado presente no Congresso de Utrecht, publicou em 1713um project~ para estabelecer a paz perpétua na Europa, reunido num Epitoma de 1728 dedicando-o a Luís XIV e pondo-o sob a inspiração de Henrique IV. ' Escrevia o seguinte: "Penso que, se as dezoito soberanias da Europa, para conservar-se na forma da governação presente, para evitar as guerras entre elas e para procurar-se todas as vantagens de um comércio perpétuo de Nação a Nação, quiserem ratificar um tratado de união e um congresso perpétuo mais ou menos sob o modelo das sete soberanias da Holanda, ou das três soberanias dos suíços ou das soberanias da Alemanha, penso, digo eu, que as mais débeis teriam a segurança suficiente de que o grande poderio das mais fortes não poderia causar-lhes mal, de que cada uma guardaria longamente as promessas recíprocas, de que o comércio nunca seria interrompido e de que as questões futuras se resolveriam sem guerra mediante o caminho de arbitragem". Propunha por isso a constituição de um senado ou assembleia, com poderes legislativos e judiciais. Os Estados tinham voto em função da sua importância, mas os pequenos Estados podiam agrupar-se para ter voto igual. As decisões seriam tomadas por maioria, salvo em questões importantes onde se exigia a unanimidade. Limita os exércitos nacionais. No caso de guerra, a assembleia designará um generalíssimo para chefiar um exército de composição internacional de cerca de quinhentos mil homens, correspondendo a vinte e quatro mil por Estado membro. Determina a supremacia do direito internacional. Condena definitivamente qualquer revisionismo territorial. Estas ideias aparecem dispersas nos numerosos volumes da sua obra e foi Jean-Jacques Rousseau que, em quarenta páginas, resumiu o projecto, que todavia não considerou viável nem realista. Voltaire troçou do abade, num trabalho chamado CartadoImperador daChina,(Rescritdel'Empereurdela Chine)a propósito do projecto da paz perpétua. No Prefácio à edição de 1713 estava claramente expresso o objectivo do projecto: "o meu desejo é propor os meios de tornar a paz perpétua entre todos os soberanos cristãos". O Tratado de Westefália, de 1648, traçara uma nova carta política da Europa, e o princípio da estabilidade de fronteiras implicava impedir o regresso à guerra como instrumento de polí· tica internacional. Era a paz pela supremacia do direito. Mas como o verdadeiro problema é o da autoridade que dispensa a força, não desejava que a organização tomasse a forma de uma monarquia universal, mas sim a de um congresso a que todos poderiam juntar-se e de que livremente 128 INTRODUÇÃO d •am sair. Não é necessário entender aqui por congresso mais do que uma Pº ;r:1ede união voluntária, e a todo o tempo revogável, de diversos Estados. esp_ectmenteassim poderia realizar-se a ideia de um direito público das gentes vn1ca d . , . esolve as questões entre os povos e maneira c1v1ca,como por um pro. bar , b ara, isto . , pe 1a guerra. que r e não de uma manetra e, cesso, · s· d 1 b ' 1o Augustm. Th'1erry, Em1814,Samt- 1mon, eco a oraçaocomoseu dº1sc1pu da Sociedade Europeiaou da necessiblica Oensaio chamado Da Reorganização pude e dos meios de congregar os povos da Europa num só corpo político, conda ando cada um a sua independência nacional 115 • serv mais in fluente d os proiectos, . 'dh' a OJeserve d e re fi'. que am erenc1a aos pen0 adores neste domínio, foi o ProjectoFilosóficoda Paz Perpétuapublicado por ~ant, aparecido em 1796 . Não via para os Estados outra solução que não fosse: «renunciar, como os indivíduos, à liberdade anárquica dos selvagens", instituindo um congresso, pelo qual entendia "uma espécie de união voluntária, e a rodo Otempo revogável", e não "como o dos Estados Unidos da América, uma união fundada numa constituição pública e, por conseguinte, indissolúvel". Todos estes pensadores, inspirados pelo conceito da unidade do género humano, são europeus, marcados por uma concepção europeia do mundo e da vida e apenas preocupados com a paz da Europa. A experiência portuguesa , por exemplo, não é citada. Os territórios para além da Europa não inspiravam, nem sequer entre nós, o estudo sistemático das suas concepções do mundo e da vida. Nem mesmo na tradição portuguesa se encontra abertura para lidar científica e sistematicamente com esses problemas. Os referidos pensadores tinham também contra si uma outra tradição europeia,muito viva na época em que aparecem estes Projectistas, e que é a tradição maquiavélica. Esta tradição maquiavélica não se ocupava da paz perpétua nem da resolução arbitral dos conflitos, mas sim do interesse nacional em expansão. Frederico II da Prússia, comentando o projecto de Saint-Pierre em carta dirigida a Voltaire, dizia: "O abade de Saint-Pierre, que me distingue com a sua correspondência, enviou-me uma bela obra sobre a maneira de restabelecer a paz na Europa. A coisa pode fazer-se , e não falta para isso mais do que obter o consentiment o da Europa e outras pequenas bagatelas 116 " . Voltaire chamou-lhe "Saint-Pierre d'Utopie", mas Hussard chamá -lo-ia, perante a crise europeia, "fonctionaire de l'Humanité". 115 Bernard Voyenne, Historiadela ideaeuropea,Barcelona, s.d. Adriano Moreira, "Sobre o Estado Universal",in EstudosPolíticose Sociais,1965, p. 997; Adriano Moreira, Politicalntcmacio11al, Porto, 1970, p. 92 reproduzida neste ponto. "•Noapen. d"ice (p. 561) da edição AbbedeSaint-Piem, Projetpourrmdrelapaixperpét11e/lee11 Europe,Paris, 1981, estão publicados o coment:írio de Rousseau, o resumo do projecco de Sully, a carta de Leibniz . 129 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Presentemente, de novo a ideia do Estado universal renasce e encontra 08 seus Projectistas, porque o fenómeno político definitivamente se tornou pia. netário e os Estados enfrentam problemas e interesses que costumam estar na base da definição de um bem comum. Um desses interesses é a explosão demográfica que inquieta as maiores auto. ridades espirituais do mundo, que inquieta os poderes políticos, que encaminha estes para a solidariedade, porque nenhum se atreve a agir isoladamente. Relacionado com este problema da explosão demográfica está o problellla da fome, e a oposição correlativa entre Estados ricos e pobres. Por outro lado, toma-se consciência de que a era gâmica está chegando ao fim e de que começa a era interplanetária. O objectivo de chegar à Lua foi talvez o símbolo do começo desta nova era, e o mundo começou a perguntar-se se não seria mais útil que, em vez de ali chegar um russo ou um americano, ali chegasse simplesmente um homem. Assim foi geralmente entendido, e acatado pela ONU, quando Neil Armstrong, às 3 horas e 56 minutos de 21 de Julho de 1969, praticou o gesto histórico de pisar a Lua. Finalmente, tudo isto se passa numa situação em que a paz é indivisível porque a tradição maquiavélica nos conduziu, por meio século, a um equilíbrio de impotência dos maiores países do mundo. No importante discurso que dirigiu à Nação, ao abandonar o seu cargo e a carreira política, o Presidente Eisenhower disse: "O Estado que eu chefiei é hoje um complexo militar e industrial que pode levar à destruição da Humanidade porque o poder que detém é suficiente para destruir a Humanidade". Daí os esforços que desenvolveu para definir uma qualquer forma de coexistência pacífica. O fim da Guerra Fria, e da vigência do modelo bipolar EUA-URSS, em 1989, multiplicou as soberanias com acesso ao armamento nuclear. Por isso, depois da queda do Muro, e da guerra do Iraque em 1991, começou a falar-se da revo- luçãoestratégica. Nesta linha, Neville Brown produziu o primeiro ensaio globalizante da evolução que tornou obsoleta toda a doutrina formulada a respeito do bipolarismo. Não é de estranhar que mais uma vez faça apelo ao aprofundamento do método interdisciplinar, porque este, durante o não longo período em que foi reconhecida a autonomia das relações internacionais, não conseguiu formular uma metodologia transdisciplinar. Reconhecendo a globalização dos problemas internacionais, dá precedência à segurança sobre o antigo dominante conceito de defesa, considerado o atraso tecnológico do mundo em desenvolvimento, a degradação ecológica, a pressão demográfica do Sul, a transformação de alguns bens essenciais, como a água, em bens raros, susceptíveis de causar a guerra. Inscreve-se assim na linha de pensamento em que se encontram Thomas Malthus, Karl Marx e Me Luhan. As respostas são mais negativas do que prornis· 130 INTRODUÇÃO mas rendem a comprovar que a própria arte da guerra está em revisão, das relações entre teatro de operações, vi_s são regional e global e controlo de armamentos 117• d1ssua s?r;:~ nova e difícil conceptualização § 5º Perspectivas sobreasRelaçõesInternacionais 1 perspectiva anglo-saxónica: utopismo e realismo ~ identificação d_aspersp~cti~as que dominam as concepções co~t~aditórias bre as relações mternac10na1s procura, como sempre neste domm10 da cons~ptualização operacional, um arrumo que obedece ao artificialismo metodo~ógicoda simplificação. O que significa que as necessidades de análise podem vira aconselhar a decomposição de uma perspectiva em várias, a reanimar perspectivas incidentalmente consideradas não relevantes, a modificar completamente o critério de classificação e as componentes da grelha estabelecida. Aidentificação que aqui sugerimos resulta do predomínio dos poderes políticos, que vai variando no tempo e no espaço, mas que tem, entre as suas características, o avultar da perspectiva pela qual o poder se oriente. Por outro lado, quando as perspectivas são assumidas pela análise académica, perdem a ligação aos poderes em que se filiam para serem definidas em função dos objectivos e métodos disciplinares. utopista, Deste modo, é frequente filiar na cultura anglo-saxónica a corrente embora se encontrem utopistas em todas as áreas culturais. Trata-se sempre de construir um modeloideal,no sentido de que não tem necessária correspondência na realidade, e aferir a validade e funcionamento desta em função do modelo proposto. Na elaboração deste modelo influem decisivamente as correntes ideológicas que se congregam no pensamento do autor, e, por outro lado, a experiência vivida, ao seu alcance. A designação da corrente tem origem no livro de Thomas Morus (1478-1535),chanceler de Henrique VIII, e que este condenou à morte por se recusar a prestar-lhe juramento de fidelidade quando o reino abandonou o catolicismo. 117 Gorbatchov, Rapportpolitiquedu ComitéCentraldu PCUS auXXV//' Congresd11Parti, Moscovo, 1986. HenryKissinger, Lesannéesorageuses, Paris, 1982. Philippe Bretton e Jean-Pierre Chaudet, La coéxistence pacifique,1971. Vitali Korionov, Lapolíticade CoexistenciaPacíficacnacción,Moscovo, 1975. Marques dos Santos, Dacoexistên ciapacífica,Lisboa, 1986 . Adriano Moreira, Relaçõeswtre asgrandespotências,Lisboa, l989. Neville Brown, The stategicrevolutionthoughtfor thc ttvcnty-firstcrntury,Londres, 1992, p. 200 e sgrs. Thoma~ Robert Malthus (1765-1834), Essay011 Population,Londr es, (1798-1803). Ernest Mandei, Traitéd'ÉconomieMar.riste,II vol., Paris, 1962, p. 401. Georges Berlia, Prob/emesdesécuritéi11ternatio11a/e ti dtdifense,Paris, Les cours de droit (pol.), 1975. 131 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS É hoje Santo da Igreja Católica. O livro chama-se justamente Utopia(1516),0 que significa empartealguma(noplace).Descreve uma ilha onde a vida é pacífica sem propriedade privada nem violência, e instituições políticas mais gestor~ de coisas do que de homens. Desde então, a expressão designa uma corrente literária que ignora os factos desagradáveis e resistências do real, propondo U1tt modelo de vida política sem acidentes. Os seus autores, como Morus, fazellt recomendações sem cuidar de saber se a realidade pode adaptar-se ao modelo Outros, como Huxley (BraveNew World)explicam como deviam ser as condiçõe~ reais para que um modelo ideal pudesse ter vigência. Finalmente, o modelo ideal destina-se a justificar acções de modificação da realidade. A Repúblicade Platão, o modelo socialista utópico de Fourier (1772. ou o cooperativismo de Owen (1771. -1837) com a sua proposta dos phalanstérios, -1858), inscrevem-se nessa corrente, sendo os últimos vivamente criticados por Marx e Engels justamente com base no facto de se desviarem da realidade social. Alguns sociólogos, como Sarei, consideraram as construções utópicas como desempenhando a função de empurrar as forças sociais e políticas para a acção. Todavia, a corrente utopista, em que são habitualmente inscritos os chamados ProjectistasdaPazinternacional,alguns antes citados, é criticada não apenas pela corrente do marxismo científico, mas também em nome do realismopolíticoe do conservadorismo que sustenta a defesa das estruturas existentes. Aquilo que porém caracteriza a perspectiva anglo-saxónica é o realismoque coloca a noção de poder(power)no centro da vida internacional e da conceptualização desta pela análise teórica. Este poder será entendido como a capacidade de obrigar(Max Weber) e, portanto, na vida internacional, como a capacidade de sustentar a integridade dos interesses próprios contra as agressões, e de os expandir eventualmente a expensas de interesses apoiados em poderes menores. A noção de interesseé assim o conceito central, e a relação poder-interesse traduz-se no fenómeno principal das relações internacionais. Um dos autores mais significativos desta orientação realistaé Hans J.Morgenthau, cujo livro PoliticsAmong Nations (1948) ainda é hoje uma referência indispensável. Afastando preliminarmente o utopismo, sustenta de entrada que "a teoriatem deserjulgadanão em virtudede um princípioou conceitoabstracto preconcebidoe desvinculadoda realidade,mas sim pela suafinalidade; ordenare dar sentidoa uma massadefenómenosquesemelacontinuariamdesconexos e ininteligíveis. Deveresistira uma duplaprova,empíricae lógica.Osfactossubmetem-se,tal comosão, à interpretaçãoque lhesdeu a teoria,e as conclusões a que chegaa teoriaderivam,por comosfactose necessidade lógica,dassuaspremissas?Em suma, a teoriaé convergente consigomesma?"118• 1'" Morgenthau, PoliticsAmo11g Natio11s, N .Y., 1948. 132 INTRODUÇÃO facto, não se pode dizer que a perspectiva realistarecuse sempre a exisDe . . . . de valorese d e um normatzvzsmo superiores, em b ora a1gumas correntes rêncta Mas na perspectiva dominante de Morgenthau do que se trata é de 0 faÇ pelo exame da realidade internacional, que não é possível conseguir 1u ' cone · rac10na · 1e mora 1f:azen d o-a d erivar . d e prmc1p10s . ' . . ntar uma or d em po l'1t1ca 1 trllPª ctos e un iversalmente válidos, dando por certas a bondade e maleabiliabstra ' · recon h ecen d o que o mun d o rea 1e' o d da nature za humana; ao contrario, da ~tado da acção de forças inerentes à natureza humana, é com estas, e não . resura elas, que e, necessario ' · agir. · A rea l'd 1 ad e e' o conif7' ztode mteresses, pe 1o que contrincípios morais . apenas a1cançaram a1guma v1genc1a . • . pe 1a mstauraçao, . - semos recária, de um equilíbrio, conseguido por um sistema de contrapoderes e pr p-es A experienc1a · • · h'1storica, ' · por um 1ad o, e a certeza d e que apenas se po d e tens0 · alizar O mal menor e nunca o bem absoluto, orientam o realismo da escola. ;aqui derivam alguns princípios, que são os seguintes: 1)A racionalidade é um pressuposto das decisões políticas pelo que, em face de um quadro averiguado de circunstâncias, a questão d~ve ser a de definir as alternativas racionais que se oferecem à decisão a tomar. E duvidoso o que deve entender-se por racionalidade, mas o que parece mais evidente é que se lhe dá sentido de razoabilidade, isto é, a decisão que realiza mais provavelmente o 0 objectivocom o menor sacrifício de meios e interesses. 2) Por isso o conceito de interesse,e a identificação deste em cada processo examinado, é fundamental. Trata-se do elemento de ligação objectiva entre a razão que procura compreender e os factos com que se defrontará a decisão. No sentido de Morgenthau parece não haver distinção entre interessee poder, 0 que talvez leve a considerar o interess e, nas relações internacionais, como o interesse armado das capacidade s necessári as para o realizar, abandonando os interesses que ficam além das capacidad es di sponíveis. Teria a consequência metodológica de negligenciar a consideração das motivaçõessubjectivas e das ª7; f ideologias. Deste modo, e independentemente da variação temporal destas motivações e ideologias, seria possível estabelecer um continuumracional para a política, designadamente, americana, inglesa ou russa. A noção de interessenacionalpermanentetorna-se assim proeminente nesta orientação. Este pólo dinamizador das relações internacionais evita que se estabeleça qualquer equação entre as políticas sustentadas pelos responsáveis de um aparelho e as simpati as filosóficas ou ideológicas desses mesmos responsáveis. Estas são, diz, invocadas para tornar algumas vezes eficazo seu discurso político, mas trata-se apenas de cenografia. . Todavia,como é inegável que tais motivações e adesões ideológicas influenciam a tomada de decisões políticas, o realismoaparece com uma forte faceta 133 -- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS apologética e normativa, uma fundada prevenção metodológica contra o enten. dimento da política internacional por referência a propostas utópicas, mas está longe de uma teoria científica como pretenderia. Acontece ainda que a identificação do interessecom o podercondena à Per. pétua insatisfação os chamados povos deserdados da Terra, como são as nacj0 _ nalidades submetidas a um poder imperial, e sabemos que a história desmente este facto, assim como a realidade de cada época não pode ser apreendida se111 considerar as teiasque vão tecendo os deserdados do poder até que, muito fre. quentemente, desfuncionalizam os sistemasdos poderosos e ganham peso específico na balança internacional de poderes. Todo o processo descolonizador moderno serve de exemplo e demonstração. permanente,mas isto 3) O núcleo central fica melhor definido como o interesse apenas significa duradoiro, porque cada unidade política mostra que variou no tempo, de interesse fundamental. Todavia é válido para a comunidade inter~ nacional, como para a interna, que o interesse é a essência da política, e que, como já afirmava Tucídides, "a identidadede interessesé o maissegurodosvínculos entreEstadosou indivíduos". Por seu lado, Max Weber escrevia que (materiais e ideais), não ideias, dominam directamente as acções dos homens. Mas as imagensdo mundocriadas por esta ideia têm servido em muitos casos de indicadores para determinar as vias em que o dinamismo do interesse mantinha as acções em movimento". Mas o interessepermanenteou, melhor, interesseduradoiro,muda. O interesse duradoiro das potências europeias da frente marítima (Inglaterra, França, Alemanha, Espanha, Portugal), traduzido em construir e manter um impériocolo11ial, desapareceu depois da guerra mundial de 1939-1945. Tal interesse anda a ser substituído pelas solidariedades europeiase atlânticas. Também o mesmo relativismo deve ser adaptado para lidar com o conceito de poder. Entendido este como a capacidade de estabelecer e manter o controlo do homem sobre o homem, ou de uma entidade política sobre outra, analisa-se num conjunto de elementos, desde a violência física aos meios de constrangimento económico e financeiro, aos métodos da engenharia social que induzem a adesão e obediência da sociedade civil. De acordo com as épocas e lugares, o poder varia de composição: o poder militar é o decisivo em certas épocas e circunstâncias, o poder científico, tecnológico, financeiro, económico são predominantes noutras. Por outro lado, o conceito nominativo mais específico de interesse, na nossa em vista da regra que no Ocidente época, é ainda o chamado interesse11acio11al proclama que a Nação deve coincidir com o Estado. Embora esta concordância seja uma excepção no mundo, a semântica trata o caso como uma regra geral. é um pro· Todavia, ainda assim temos de reconhecer que a conexão Estado-Nação 134 INTRODUÇÃO d história, e que pode desaparecer ou passar para segundo plano, dando d~to ªa outras relações, como a do interesse-grande espaço: é o caso das alianorig;lll adoiras (NATO-Pacto de Varsóvia), e dos grandes espaços económicos ças /r a renderem para políticos - União (Política) Europeia. A perspectiva (CE_\ aceita esta evolução e prospectiva. Mas encara a evoluçãoreformistacom reahs\ sempre que é equacionada em função de um ideal abstracto: pretende reserv re em conta a v1scos1 · "dad e e res1stenc1a · • · que d envam · d o que ch ama, com P cersern · ºfi · 1 · d lºd d · . opriedade mas s1gm 1cat1vamente, as eis a rea 1 a e po l'1t1ca. tlllP:)0 realismo político entende que a acção do Estado está submetida a uma l deresponsabilidade e não a uma moralde convicção. Os agentes da política mora . . . etpereatmundus.O o bº1ect1vo . . rnacional não po d em a d enr. a, regra fizat;ustztza ;t~nteresse nacionalobriga a sacrificar a moral individual da responsabilidade 0 favor da acção que realiza, defende ou desenvolve aquele interesse. O gover::nte pacifista terá de recorrer à guerra. Poderíamos talvez dizer que entende ue a ética de convicção julga da conformidade das acções com a lei moral, a itica da responsabilidade (política) julga a acção pelas suas consequências, pelo que a prudênciaé, nessa concepção, a maior das virtudes. Lincoln disse a tal propósito: "Faço o melhor que sei e o melhor que posso, e assim me proponho seguir até ao fim. Se o resultado me dá razão, o que se tiver dito contra mim não terá significado, se o resultado não me der razão, dez anjos que jurassem que a razão me pertencia não teriam significado." S) A posição relativista da perspectiva realista leva eventualmente a confun dir a identi ficaç ão do interesse nacional com o bem comum da Humanidade, e a ética nacional com a ética universal. Existe um abismo entre a crença de que todas as nações estão submetidas ao julgamento de Deus, e a convicção de que Deus está semp re do nosso lado. O conceito que define a cena internacional como um encon tro de interesses por vezes contraditórios evita esses ideologismos, e int roduz a moderação como critério de busca de equilíbrios pacíficos. 6) A especifi cidade da política, e, dentro desta, das relações internacionais, define uma teo ria de perguntas autónomas, conforme as disciplinas . Assim: o economista per gunta em que medida uma acção afecta o bem-estar da sociedade; o jurista pergunta se tal acção está de acordo com o direito; o moralista, se está de acord o com a moral de convicção; o politólogo realista pergunta qual o reflexo dessa acção no poder nacional. É por isso que o internacionalista realista rejeita a pe rspectiva legalista-moralista da política internacional 119 • O ataque da URSS à Finlândia, em 1939, é apresentado como exemplo. Juridicamente, a resposta era que violava o Pacto da Sociedade das Nações; politi119 Morgenchau,"Another Great Debate: the national interest ofthe United States", in The American Po/iticalScic11cc Rcvic1v,XLVI, 1952, p. 979 . 135 -- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS camente afectava o equilíbrio de interesses que respeitava, designadamente à França e à Inglaterra. Estas não intervieram na guerra a favor da Finlândi~ porque necessitariam de atravessar o território da Suécia, e esta recusou corn o fundamento jurídico da soberania. A resposta jurídica foi considerada sufi. ciente para, com oportunismo, não assumir responsabilidades políticas. Nesta orientação podem situar-se outros autores significativos, corn0 Schwartzenberg e, com alguma originalidade, McDougall 120 • Este último avança no sentido de ultrapassar as definições formais dos intervenientes no processo internacional, visto que o poder de decidir não reside sempre, e de facto, nos órgãos institucionalmente apontados. Coloca como princípio que as relações internacionais não repousam em regrasde direitomas sim em decisões. Estas são tomadas em função dos objectivos políticos pelos decisionistas que não são necessariamente os suportes legais dos órgãos de soberania. Numa época em que tern ganho importância o fenómeno da clandestinidade doEstado,este ponto de vista deve ser retido dentro da perspectiva realista. A perspectiva realista assumiu relevo sobretudo no clima de Guerra Fria em que se viveu no último meio século. Uma corrente do pensamento europeu tornou-se realista moderada e de grande projecção, a que foi representada por Raymond Aron. O seu livro Paz e GuerraentreasNações,de que existe tradução portuguesa, influenciou uma geração inteira de politólogos 121• Mas é num estudo publicado a propósito da crise do regime americano causada pelo conflito entre o Presidente Truman e o General MacArthur em decorrência da guerra da Coreia, que Aron fez uma síntese da sua posição 122• Considera Morgenthau e G. F. Kennan como os representantes mais destacados da chamadaRealpolitik,para a qual a rivalidade dos Estados é um dado permanente, o poder é inseparável dela, acontecendo que algumas vezes o poder deixa de ser um meio para ser um fim em si mesmo . A defesa dos interesses nacionais é a essência da política externa. Deste modo, para um realista como Morgenthau, só existem duas soluções para um conflito de interesses: a negociação ou a guerra.Uma das sugestões de Aron, tendo em vista a Guerra Fria entre os blocos ocidental e soviético, é que existe uma solução de compromisso semacordonegociado. Assim, designadamente, explicava que a divisão da Alemanha em dois Estados tinha o acordo não negociado dos ocidentais, que não o podiam confessar. 120 Schwarczenberg, Po111er Politics,a study of I11tematio11a/ Society,Londres, 1964. McDougall, Laiva11d Minimum WorldPublicOrder,Yale, 1961. 121 R. Aron, Paze Guerrawtre asNações,Brasília, 1962. 122 R. Aron, "Une philosophie de la politique extérieur", in RevueFrançaisedeSciencePolitique,III, 1953, pp. 69-91. 136 INTRODUÇÃO ncorda em que se uma grande potência está decidida a obter cer· d a comum'd ad e mternacional, · Mas co fícios, mesmo contra as normas e 1eis a s bene . d' , e d' co . neira de a impe ir e empregar a 1orça ou estar 1sposto cre d'1velmente , nicama , , . d . . / naczona , pergunu á-la.Considera porem eqmvoco o conceito e interesse a ei11Pr?esignadamente,qual é o interesse nacional da Jugoslávia, da Finlândia candºairmânia. Considera ultrapassado o ponto de vista generalizado no século ou da uito difundido pelos pensadores alemães, de que o interesse nacional :xteriormente sobre as divergências internas dos partidos. prim a a guerra é certamente o facto autonomizador das relações internaAgor, . . . mas O conflito central e determinante desapegou-se dos chamados c1ona1s, . ob. . comunsd e gran d es espaços ou es nacionais, para ter em vista ')ect1vos interesS . . _ . ões, onde um poder tende para ser dommante e d1rector. Nao pode falarco!igaç R, . . . l R, . ., . m interesse permanente para a uss1a 1mpena e para a uss1a sov1et1ca, -see · ' . do emanha do Kaiser e a Aleman h a d e H.it ler. Isso sena. o contrario para a Al lismo.Mas, no século actual, a conjugação de poderes tem de fazer-se para , . deb'/' . rea irumprojectocomum: "nosecu , /oXX,umagrandepotenc1a 11ta-sesere11unciar serv d d .. . . ld , ervirumaideia."Talvez eva a mmr-se que a prmc1pa emonstração e que o 0 ~amadointeresse permanenteé afinal variável no tempo, e que a diferença está no ~empo demorado e no tempoacelerado. Os interesses que se inscrevem no primeiro é que parecem permanentes, mas todos variam de estrutura e de definição. XI~,: z.Perspectiva marxista - perspectiva russa Apenasse fala numa perspectiva marxista das relações internacionais porque os regimes políticos que se reclamam dessa matriz não podem deixar de ter umapolítica para as relações internacionais, e a sua conduta não vai deixar de se reconduzir a pontos de vista com a probabilidade de serem contraditórios comos ocidentais. Propriamente de Marx, não existe uma perspectiva das relaçõesinternacionais, embora forneça elementos fundamentais para uma teoria dessasrelações: todas as sociedades de classes engendram a guerra, as guerras são conflitos entre as classes dirigentes que utilizam as massas como instrumentos, pelo que é da futura sociedade sem classes que virá a solidariedade entre os povos, sendo a vitória final do proletariado o facto do qual decorrerá a paz entre as nações. Daqui resultou a posição dos estudiosos soviéticos das ciênciassociais em geral, e das relações internacionais em particular, no sentido de que a ciência ocidental é apenas um capítulo da propaganda dos Estadoscapitalistas, sem qualquer valor científico. Por seu lado, o sovietismo erigiu em.trave-mestrada sua teoria das relações internacionais a doutrina leninista do imperialismo. ~us~entavaLenine que a expansão das soberanias e interesses dos países capitalistaspor todo o mundo, submetendo este a um esquema imperialista,era 137 TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS a última fase do capitalismo. O sistema estava condenado aos conflitos inter, nos das potências, determinados pela concorrência em relação aos mercados às fontes de matérias-primas, às oportunidades de investimento, à mão-de~ -obra barata. A guerra mundial seria inevitável em prazo não longo, e tal guerra daria aos povos explorados do mundo e ao proletariado a oportunidade, espe, cialmente no mundo colonial, de derrubar o capitalismo e de estabelecer 0 socialismo. A doutrina leninista converteu-se assim numa ideologia do comunis 1110 vitorioso na URSS, mas isso não resolveria o problema das relações entre os dois mundos socialistae imperialista.Era necessária uma estratégia, com suporte científico em vista do carácter atribuído aos pressupostos marxistas. Todavia enquanto que Lenine repetidamente falou da inevitávelluta entre soviéticos ~ imperialistas, Estaline mencionou algumas vezes a coexistência pacífica,ou então o perigo da agressãocapitalista,ou a inevitabilidade daguerraentre Estados capitalistas e Estados proletários. A hesitação é reflexo da variação da conjuntu ra, que incluiu uma guerra mundial na qual a URSS esteve ao lado dos países que qualificava de capitalistas, e isso não parecia previsto na teoria. Finalmen te Kruchtchev, proclamando que o poderio atómico soviético era suficiente para dominar ou paralisar os países imperialistas, afirmou que a doutrina leninis ta da inevitabilidade da guerra estava superada pelos factos. A coexistência pacífica e a passagem não violenta do capitalismo para o socialismo eram agora possíveis e preferíveis, afastando-se a possibilidade de um conflito armado que poderia representar a extinção da Humanidade. A competição seria económica e ideológica. Esta orientação suscitou críticas do marxismo na sua versão chinesa, então a mais poderosa em vigor, porque Mao Tsé-tung sempre destacou a necessidade da violência e da ajuda às forças revolucionárias de todo o mundo. A diferença é de táctica, não é de princípios 123• A construção de uma teoria das relações internacionais, a partir da concepção dita científica marxista, revelou-se incoerente quanto às doutrinas desenvolvidas com menor pretensão de infalibilidade. Do que se tratou foi de um realismomarxista,que pretendeu congregar num só conceito o interessenacioproletário,subordinando esta componente àquela. nal mais o internacionalismo Recordando a natureza do normativismo internacional considerado como uma superestrutura destinada a proteger os interesses das soberanias imperialistas, ,:, Brzezinski, The sovietbloc:unity and coeflict,N.Y., 1961. Goodman, The sovietdesignfor a WorldState, N.Y., 1961. Lowenthal, WorldCommunism:the desi11tegratio11 of a secularfaith, Oxford, 1964. Chih-yu foreign policy,Londres, 1990, p. 62. Vladimir Bukovski, URSS: de l'utopieau Shih, The spirit of chi11ese désastre,Pais,1990, p. 159. 138 INTRODUÇÃO sumiram como moralde responsabilidade comunista era conhecido . que as • • d d como razãodeEstado.E esta passou a ser a matnz onenta ora a qu11º. ocidente . , . no tiva sov1et1ca. oria da razão de Estado encontra as suas raízes nos livros I e II da l'erspec ora a te , .' de Platão, envolvendo a questão de saber se, para defender aquilo R,epubh~a chamamos o interesse público, a "mentira real" é justa. Moralistas que hot nt recusam absolutamente admitir uma resposta afirmativa, mas · · d a a corrente de pensamento que 'º m0 -.K~ªquiavel que se encontra sistematiza desdeina a defendaneira e. · · d a a d e fcesa amora l d a pos1çao . - suprema d o eventua l gera l e, reie1ta vem · -"'d"fc tor do poder, mas as c01sas sao Jª 1 e rentes quan d o se trata ddfc a e esa d o dete:o e da preservação dos objectivos colectivos que este deve servir. Há até Estatentativa de d outnna . para a segun d a h"1potese, , . 1· em que a d"1sc1p ma mora l u~:ídi ca é abandonada para a defesa dos interesses estaduais . A clandestini~!~e do Estado, a que já nos temos referido, é toda inspirada pela supremacia da razão de Estado. Ora, 0 Relatório de Kruchtchev ao XX Congresso do PCUS (1956), denunciando os crimes e erros de Estaline para manter a ditadura sobre o partido e a destesobre o Estado, é uma demonstração de que a razão de Estado, em ambos os sentidos mencionados, foi a matriz da perspectiva política do sovietismo. Aquilo que a razãodeEstadoacrescenta à perspectivarealistaé que esta é um ponto de vista metodológico, e aquela também é, além disso, um princípio de acção.A metod ologia desdobra-se numa apologética 124 • Isto não significa que a política internacional não tivesse, na orientação académicae na acção prática, referências normativas e valorativas. Mas não são referênciasao sistema de valores e normas ocidentais, consideradas superestruturas de justificação da condenada sociedade capitalista. A revisão de Gorbatchov,que colocou de novo o voluntarismo no centro da dinamização da política, repudiando a causalidade social marxista, sem repudiar ainda expressamente a apologética,obrigou a rever também a perspectiva soviética das ciências sociais, agoraa evolucionarem no sentido de uma convergência com as escolas de pensamento ocidentais. Abandonado o império, o realismo encaminha a Rússia para assumir, da herança e prática soviéticas, tudo o que considera pertencer aos seus interesses permanentes. "• Nicolau Maquiavel, Le Pri11cc suii•ide l'Anti-Machiai•elde FredericII, Paris, 1968. Lenine, L'État et la Paris, 1971. Martim de Albuquerque, A SombradeMaquiavele a Ética TradicionalPortuguesa, Re"volutio11, Braga,1974. Ilretton et Chaudet, La coexistence pacifique,Paris, 1971. Adam Schaff, EI marxismoafi11al desiglo,Ilarcelona, 1994, sobre o que morreu e sobrevive no marxismo. 139 TEORIA DAS RELAÇÕES INTCRNACIONAIS 3. Perspectiva europeia Podemos falar de uma perspectiva europeia porque aqui nasceram todos os problemas que viriam a constituir aquilo que hoje autonomizamos com o nollle de relações internacionais, e as tentativas de, por um lado, disciplinar o seu conhecimento teórico e, por outro, deduzir regras orientadoras de acção. Talvez a mais antiga matriz europeia seja o voluntarismoque radica na autonomia da vontade política a definição dos objectivos e dos métodos de acção, ficando a variedade de comportamentos dependente do tipo de criatividade do home 111 ou grupo de homens a quem pertencer o exercício do poder. A doutrina dos heróis, a referência dos tempos históricos à mudança das lideranças ou chefias políticas, são expressões dessa perspectiva que recorre às leis do comportamento individual ou à sua tipologia para encontrar algu111 ponto de apoio para as previsões ou prognósticos. Por isso, talvez, e depois da guerra, o mais antigo capítulo autonomizado das relações internacionais é a diplomacia,definida como uma artedenegociação. A sistematização dessa arte, já praticada por gregos e romanos, deve urna grande contribuição a Veneza que, como vimos, seguindo a tradição de Bizâncio, foi o primeiro Estado a preservar os seus arquivos de maneira sistemática. Na Itália do século XVI, a fraqueza de cada um dos Estados italianos, o equilíbrio de impotência em que geralmente se encontravam, a precariedade das alianças, tudo encaminhou no sentido de desenvolver a famosa arte de Combinazione.Maquiavel é o analista da época e César Bórgia o modelo de homem de Estado voluntarista, calculista e amoral. O voluntarismo continua a ser o princípio dos governos personalizados, não institucionalizados ou democráticos, que são mais numerosos do que as constituições admitem. O marxismo, que teoricamente se pretendeu científico e vincula o poder político a interesses independentes das concepções individualistas dos gestores do poder político, na prática produziu o cultodapersonalidade, a proeminência do conducator, a ditadura de um homem (Secretário-Geral) sobre o partido, e do partido sobre o país. O voluntarismo foi sempre uma característica do sistema, que se reflecte nas perspectivas da análise e da apologética, porque não deixam de apare· cer estudos que frequentemente começam pelo tributo da referência à lide· rança política em vigor. Em todos os regimes de poder pessoal acontece coisa semelhante, independentemente da latitude ou do sistema cultural em que se inscrevem. Progressivamente, o valorinstitucionalda Naçãoveio marcar a perspectiva europeia, assente na generalizada convicção da excelência do Estado nacional, 140 INTRODUÇÃO ual viria a ter expressão no princípio de que cada Nação deve corresponder aq E do12s um sra · ª A uando da elaboração do Programa dos Comunistas por Bukharine em qele escrevia ali: "Não se trata do direito das nações (quer dizer do con18 ~9 t~ dos trabalhadores e da burguesia) a dispor de si próprios, mas do direito iun {assetrabalhadora. Isso significa que a dita vontade da Nação não é sagrada da e no's" Deste modo identificava a perspectiva essencial da Europa a que se para · opunha. por outro lado, a razãodeEstadonasceu e desenvolveu-se nessa mesma comu"dadede nações, evidenciando aquilo que parece mais característico na persn~ctivaeuropeia, e que é a tentativa de compatibilizar a tradiçãopersonalistae a p adiçãomaquiavélica, o compromisso ou alternância entre a moralde convicção e trmoral deresponsabilidade, a proclamação de grandesprincípiose valoresabsolutose : simultâneo uso da força como argumento supremo independente da justiça dos interesses. Daqui o peso da disciplina da História no domínio das relações internacionais, 0 método comparativo que permite sugerir as decisões alternativas, sem nunca desaparecer a tendência para formular teorias gerais, que parecem mais adjuvantesou guias do que expressões de uma relação necessária entre modelos de acção e consequências. A criatividade na origem do processo político internacional e a novidade semprecedentes nos efeitos procurados ou produzidos parecem sempre admitidas nas perspectivas europeias. Trata-se de uma ambivalência entre o idealismo e o realismo 126 . A tentativa de fixar grandestendênciasque inspirem soluções analógicas, encontrou um dos melhores representantes em Arnold Toynbee, o famoso autor de A StudyofHistory127• No que respeita às relações internacionais, as suas contribuições foram sendo desenvolvidas no SurveyoflntemationalAffairs,publicação anual do Royal Institute.Evidencia ali que o equilíbriodepoderesé um princípio que entra em funcionamento sempre que uma sociedade se articula numa série de Estados independente s, e que tal equilíbrio desliza do centro de um sistema político para a periferi a. Admitiu ser um erro considerar estanques os agrupamentos de problemas internos e problemas internacionais, porque a sua interpenetração é uma regra. Acontece que o modelo da relação entre poderes da mesma 125 Harold Nicolson, The EvolutionofDiplomaticMetlwd, Londres, 1953. swald Spengler, The declineofthe West,N.Y., 1926-28. Raymond Aro n, La Théoriede l'Histoiredans l'A/emagne Co11temporai11e Paris 1938. 127 ' ' A. Toynbee, A Study of History,Londres, 1943. 1260 , 141 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS área cultural não tem correspondência no modelo de relação entre poderes de áreas culturais diferenciadas. Admitiu que a sociedade internacional obe. dece todavia mais aos preceitos de Maquiavel do que aos preceitos de Grotius De facto, Toynbee procura combinar as duas tradições referidas de uma filoso: fia do poder e de uma filosofia moralista. A técnica de equilíbrio dos poderes aparece como a mais apoiada na prudência governativa 128 • 4. A perspectiva neutralista A questão da perspectiva neutralista surgiu apenas com o fim da Segunda Guerra Mundial, e o programa descolonizador da paz, sobretudo inspirado pelos EUA, mas não faltaram perspectivas ideológicas anteriores que serviralll para alimentar os novos poderes instalados nas antigas colónias. Assim como a independência dos EUA foi ocasião para a formulação de um panamericanismo plural, mas sempre dirigido contra a presença ou retorno das soberanias europeias ao continente, também as formações políticas da África e da Ásia descolonizadas tinham a sua herança de antieuropeísmo, de antiocidentalismo, de repúdio cultural ou étnico dos estrangeiros agressores 129• Desde 1815 que Bolívar, tentando manter a unidade antes assegurada pela soberania colonial, desenvolveu aquilo que foi chamado o sonho de Bolívar. Tratava-se de conseguir a federação das antigas colónias espanholas, tal como tinham conseguido no Norte as antigas colónias inglesas. Mais ambicioso, mas sempre contestado dentro do continente, foi o projecto norte-americano que proclamou que "a integração é um dos objectivos do sistema interamericano", tal como foi definido, em 1967, na Terceira Conferência lnteramericana Extraordinária. Tratava-se então de um pan-americanismo desenvolvimentista, que viria a ser abrangido pelo conceito de neocolonialismo, uma das componentes da ideologia de contestação sustentada por Che Guevara e Fidel Castro, este conservando até hoje o governo de Cuba. A priLatino-Americanade Solidariedade, que os castristas reuniram meira Conferência em Havana em 1966, produziu uma declaração geral que preconiza a violência revolucionária, a guerra da guerrilha, e que a revolução cubana seja considerada a vanguarda do anti-imperialismo latino-americano. Por outro lado, na faixa muçulmana que divide o Norte do Sul do mundo, desde Gibraltar até à Indonésia, o pan-arabismo e o islamismo juntam-se para definir uma reacção ao mesmo tempo baseada na fé, na cultura e num patriotismo abrangente, contra o sistema euromundista, e suas implantações cultu· "" Quincy Wright, A study ofn•ar,Chicago, 1942, II, p. 755. "' F.Fanon, Lcsdamnésdcla Terre,Paris, 1958, produziu uma das mais influentes an:ílises identificador.is desse espaço colonial, sem acesso ao di:ílogo internacional. 142 INTRODUÇÃO . o!íticas. O Manifesto do Comité Nacional da Síria, de 1936, dava esta ra15e,P_0 • "a Nação árabe é a população que habita sobre o território árabe e defini~:~nida pela comunidade da língua, da mentalidade, das recordações q~e ~~ cas, dos hábitos e costumes, dos interesses, das esperanças ... A pátria é h15t0r~ pelas regiões que estão compreendidas nos seguintes limites: ao norte, fortll:t: Taurus e o Mediterrâneo; ao sul, o Oceano Arábico (Índico), as mono M~ da Abissínia, as Cordilheiras do Sudão e o Sahara; a oeste, o Oceano 5 ra~. ªtico, e sobre as costas da Síria, o Mediterrâneo; a leste, as montanhas do 0 Golfo de Bassorah (Golfo Pérsico)". Jra~embre-se finalmente que o pan-africanismo também forneceu um antece te ideológico importante ao anticolonialismo posterior à guerra finda em d;:s. Desde a Conferência de Londres de 1900, convocada pelo advogado das ~ tilhas, Henry Sylvester, e da doutrinação fundamental de Burghart Dubois, :fessor na Universidade de Atlanta nos fins do século XIX, abriu-se um cami~ho que passou pela Negritudede Aimé Césaire e Leopold Senghor, e de que a revistaJeuneAfriquefoi suporte. Fanon apreendeu bem o sentido do movimento uando, no citado LesDamnésdela Terre,escreveu que "a adesão à cultura negro!fricana, à unidade cultural de África, passa primeiro por um apoio incondicional à luta de libertação dos povos" 13º. Esta vastíssima área tem uma unidade exterior que foi expressão da submissão a poderes coloniais, todos ocidentais, a maior parte deles sediados na Europa, o resultado de um processo que começou com o Tratado de Tordesi lhas de 7 de Junho de 1494, e anunciou a meta final na Conferência de Berlim de 1885, onde os ocidentais decidiram a ocupação total do continente africana131. Internamente, a unidade da área foi sempre um projecto político e não um resultado de condicionamentos estruturais. A desmobilização começa talvez com uma decisão americana baseada na percepção de que as potências coloniais tinham esgotado as suas capacidades necessárias para manter a logística dos império s, tudo ao contrário dos desígnios que alimentaram quando decidiram resist ir à ameaça do nazismo. O famoso John Foster Dulles, Secretário de Estad o dos EUA, escreveu o seguinte: "quando as batalhas da Segunda Guerra Mundial se aproximavam do fim, o problema colonial passou a constituir o maior problema político do período. Se o Ocidente houvesse tentado perpetuar o statu quodo colonialismo, a revolução dos países coloniais e a der- A:ª: 30 ' Fanon, cit., p. 35. Mamadou Dia, Réflexionssur /'iconomiedel'AfriqueNoir,1953 . .,, Adriano Moreira, "Da Conferência de Berlim de 1885 ao moderno Anticolonialismo", in Legado Político do Ocidente,Lisboa, 1995. G. Hanataux, Le partagede l'Afrique,Paris, 1909. Santa-Rita, Estudo sobrea Co11ferêl!cia deBerlimde 1885, Lisboa,1916. 143 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS rota ocidental teriam sido inevitáveis. A única política que poderia ter êxito seria a de conceder, pacificamente, a independência aos mais adiantados dos 700 milhões de indivíduos dependentes 132• A Carta da ONU deu expressão jurídica a esta orientação, organizando nos Capítulos XI e XII a administração dos territórios não-autónomos e a respon. sabilidade das potências administrantes, que os deveriam encaminhar para um modelo político democrático e para a autodeterminação. Rapidamente foi entendido que todos os povos estavam em condições de serem autodeterminados, entrando-se num período de acelerada retirada das soberanias coloniais com a clara excepção da URSS e dos EUA que não encontraram nada para auto~ determinar dentro das suas fronteiras políticas. A chegada destes países ao diálogo internacional em que, como regra, nunca tinham participado, orientou o processo internacional no sentido de dar e reconhecer identidade à vasta zona geográfica que vizinhava com as fronteiras de segurança dos blocos em formação, um que assumia o legado político ocidental (NATO), outro que assumia a revolução marxista mundial (Pacto de Varsóvia). Os analistas puseram em evidência circunstâncias identificadoras que se repetiam em toda a área. Foi assim que, na linha de Pierre Moussa (1959) que a considerou dividida em naçõesproletárias,a proposta de Fourastié e Vimont, largamente acolhida, a descreveu nestes termos: natalidade forte, mortalidade elevada, fraca esperança de vida, intuicionista e tradicionalista, sem iniciativa empresarial, estruturas políticas arcaicas, sem classe média, mulheres submetidas, instrução deficiente e falta de quadros, desemprego, subemprego, fraca taxa de investimento, fraca capacidade financeira, fraca poupança, agrária, produtividade baixa, autoconsumo, exportação de matérias-primas, dependentes do estrangeiro 133• Eles próprios, usando o método das conferências, e aproveitando a oportunidade única que a ONU fornecera de todos se encontrarem com todos, forjaram uma identidade que Alfred Sauvy, inspirado pela brochura de Sieyes - Qu'est-ce quele TiersÉtat?- chamou de Terceiro Mundo,em processo de definição perante os dois blocos existentesm. A primeira e histórica conferência foi a de Bandung, na Indonésia, realizada cm 1955, com forte intervenção da União Indiana. Ali, o Presidente Sukarno, 132 John Foster Dulles, Waror Peace,N.Y., 1950, p. 76. Adriano Moreira, A comunidadeinternacionalem mudança,cit., p. 89 e sgts.; Adriano Moreira, Relaçõesentreas GrandesPotências,Lisboa, 1989, p. 92 e sgts. 13 '- Fourastié e Vimont, Histoircde Dcmain, Paris, 1956. Adriano Moreira, A ComunidadeIntcmacional cm Mudança,cit., p. 90. LH Balandier (e outros), Le TicrsMonde, Paris, 1956. Adriano Moreira, CiênciaPolítica,Lisboa, 1995, p. 372. 144 INTRODUÇÃO . da reunião, chamou povosmudosdomundoaos que até então sempre detro . nospe .do representados por um soberano colomzador, e que todos se reco. 11amsi t1° . como povosde cor. oheciamis na Conferência do Cairo de 1957, com Nasser a desempenhar um vepo ' . . p 1ano, proc 1amaram que era a antiga . situação . . rnacional de primeiro el 1nte _ . paP . ue os unia, mesmo que nao fossem povos de cor, e que todos deviam 1 colon! ~ qr-se contra as antigas soberanias opressoras, porque todos contestaobt1iza . . m mesmas coisas, que todas eram ocidentais. va~~~almente, na Conferência de Havana de 1966, acolhidos por Castro que fiavaO poderio dos EUA, acrescentaram que os que agora se tornavam indedes~~ncestinham em comum, com os que tinham ganho a liberdade no século pen •or a circunstância de serem povospobres,uma condição da responsabili1 . . antert ' , . . . . . h dade das antigas pote~cias imperiais: ~ue ma?ti~ am contra e es a agress~vid de porque inerente a filosofia e pratica capitalistas. Os povosdecor,os antigos ~onizad os,os pobresdestemundo,começam a exercer uma política concertada, ~o rmal ou informalmente, em todas as grandes questões internacionais. 0 Interpretando e desenvolvendo osguidingprinciplesda Carta da ONU, conseguiram algumas Declarações da Assembleia Geral que fixaram as linhas essenciaisda perspectiva neutralista ou terceiromundista. A primeira foi a chamada Declara çãosobre a outorgada independência aosterritóriose aospovoscoloniais,de 14 de Dezembro de 1960. A segunda foi chamada Programadeacçãoparaa aplicação integraldasdeclaraçõessobrea ou:orgada independência aosterritóriosepovoscoloniais, de 12 de Dezembro de 1970. E nesta última que se afirma que "todos os povos têmo direito à autodeterminação e à independência, e que a sujeição dos povos ao domínio est rangeiro constitui um grave obst áculo para a manutenção da paze da segurança internacionai s e para o desenvolvimento das relações pacíficasentre as nações". Finalmente, a importante Resolução que aprovou a Declaraçãorelativaà SoberaniaPermanen tesobreosRecursosNaturais, de 1966, e a CartadosDireitoseDeveres Económicos dosEstados,esta aprovada em 12 de Dezembro de 1974135• A Declaração de 1960 foi chamada, com propriedade, CartaMagnada Descolonização, e nela é que se afirma que o atraso cultural, político ou económico não pode entravar a descolonização. Foi sobretudo na ONU, usando o poderdo númerona Assembleia Geral, que a perspectiva terceiromundista se desenvolveu, podendo talvez caracterizar-se pelas seguint es referências: a) assumem um capital de queixas contra o Ocidente colonizad or, especialmente contra as soberanias europeias imperiais, acusadas de tere m abortado o desenvolvimento autónomo das suas áreas cul135 Celso Albuquerque , "Autodeterminação", in LegadoPolíticodo Ocidente, cit. 145 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS turais, de terem confiscado os seus recursos naturais, de os submeterem a regi. mes de discriminação racial e de opressão política; b) assumem um critério d dupla medida em relação aos 12 e 22 Mundos, sempre mais benevolentes corn 0~ soviéticos, em grande parte porque a Rússia nunca exerceu a soberania naque. las áreas; e) afirmam-se com um direito natural às reparações pela intervenção colonial passada, e geralmente entendem as ajudas internacionais, ou bilaterais como obrigações dos doadores; d) declaram a legitimidade da guerra de liben:a: ção, dizendo Fanon que "nos países coloniais só o campesinato é revolucionário Não tem nada a perder e tudo a ganhar"; e) a contribuição chinesa acrescentou· com Lin Piao, que "é da luta revolucionária dos povos da Ásia, África e Améric~ Latina, onde vive a esmagadora maioria da população mundial, que depend e a causa revolucionária mundial; f) afirmaram-se neutrais quanto ao conflito bipolar, mas nunca foram pacifistas, foram apenas contra as formas de guerra que não estão ao seu alcance, tendo concluído na primeira Conferência de Solidariedade dos povos da Ásia, África e América Latina, reunida em Havana de 3 a 15 de Janeiro de 1966 que: 1)o imperialismo, incluindo a versão do colonialismo e do neocolonialismo, desenvolve uma agressão continuada contra os países pobres· Z) o imperialismo, que os EUA especialmente representam, não renuncia volun'. ta riamente aos seus objectivos; 3) os movimentos, para conseguirem a realin dependência política, devem recorrer a todas as formas de luta, incluindo a luta derespos ta. armada, porque a violênciaimperialistalegitimaa violênciarevolucionária Homens como Nasser (Egipto), Keniata (Quénia), Chu En-lai (China), Giap (Vietname), ou mais moderados como Eduardo Mondlane (Moçambique) e Amílcar Cabral (Guiné), ou humanistas como Leopold Senghor (Senegal) ou Houphouet-Boigny (Costa do Marfim), ou pacifistas com Gandhi (Índia), ou revolucionários fundamentalistas como Mao (China), introduziram no processo global um inevitável protagonismo, frequentemente o culto da personalidade, que multiplicou as facetas plurais do desenvolvimento da matriz neutralista. 5. Perspectiva internacionalista A perspectiva internacionalista é também plural, e corresponde a mais de uma opção. O que une todas é a convicção de que a actividade política internado· na! deve ser examinada em relação a uma condição humana universal, e não em relação com os limites acidentais que decorrem das fronteiras geográficas, da história, ou das constituições e regimes políticos. A concepção medieval de uma lei natural esteve associada a uma visão internacionalista da condição humana, assim como à jurisdição, cimeira às divisões políticas, da Igreja católica. O con· ceito medieval da República Cristã correspondia a essa atitude, assim como 0 conceito de povo de Deus se traduz num internacionalismo que atravessa as fronteiras políticas. 146 INTRODUÇÃO projecti stas da Paz foram adeptos de uma perspectiva internacionalista, Os ando a salvaguarda de um interesse geral e superior ao das unidades • • • escritores, • e • , . s que era a paz d os povos. U m d os pnnc1pa1s que reienProcur ~~' . P res foi Kant (1724-1804), que em 1795 apresentou um Proiecto de Paz inos an ' qual procurava esta b e1ecer uma espec1e ' · d e remo · gera 1 em que a , rua no perpeania fosse a razão. A prmc1p10 · ' · entusiasmou-se · - Francesa, com a Revo1uçao ' M as dep01s . vo1tau a' sober.maginou como um passo a camm · ho da paz perpetua. que;icção de que uma monarquia moderada é a melhor forma de governo para con imperfeitos. A sua filosofia moral fornece as bases do internacionalismo seres . . d . . , . e 1 , d ue advoga. O pnme1ro os imperativos categoncos que 1ormu a e que eveq agir de modo a que a nossa acção possa corresponder a uma lei universal, mos atando todos os homens como fins e não como instrumento, membros de um tr comum de fina l"d 1 ad es ". Uma lei é universal quando se dirige apenas à razão, não fazendo distinção entre seres racionais, mas apenas entre o bem e o mal. Tal lei não fere a liberdade dos que por ela são governados, porque apenas contraria os seus desejos condenáveis. O liberalismo é uma consequência da doutrina, sem necessidade de mencionar qualquer fundamento religioso destinado a não obstar à realizaçãopessoal. No que se refere às relações internacionais, tinha como objectivo a abolição das jurisdições estaduais e a adopção de um corpo de leis aceites por todos, e de aplicação vigiada por um congresso das potências. O marxismo, como vimos, é também um internacionalismo de base e objectivosdiferentes. Finalmente, a evolução do fenómeno da solidariedade e interdependência de todos os Estados e outros agentes da cena internacional conduziu a um internacionalismo que se tornou progressivamente importante depois da fundação da ONU. Trata-se de, por um lado, considerar a paz como um bem indivisível da Humanidade, que o Conselho de Segurança deveria preservar, mas, por outro lado, de definir um verdadeiro património comum da Humanidade, ao qual pertencem já o mar alto, a Antárctida, os corpos celestes, tudo a reclamar instituições com um poderfuncional,que não é a soberania, mas limita a soberania: é o caso das organizações especializadas da ONU 136• Todas estas perspectivas condicionam, respectivamente, as escolas que as adaptam, não apenas naquilo que em cada uma se encontra sempre de apologético sobre as políticas recomendadas, mas também no levantamento dos dados considerados relevantes para a compreensão da conjuntura, e para a formulação das tendências, possibilidades e probabilidades da evolução. 136 Keiscn, cit. Yves Lacoste, Co11tre lesa11ti -tiers-111011distes et co11tre certai11s ticrs-111011distes, Paris, 1986. Serge Larouchc, Lafinde la SociétédesNations, in Traverses 33-34, Paris, 1985. 147 -- TEORIA DAS REL AÇÕES INTERNACIONAIS 6. A perspectiva da Santa Sé Não é possível separar a história do Euromundo da intervenção da Igreja cató. lica, em todos os domínios, quer dizer, desde a formulação dos critérios que definem a dignidade do homem como pessoa, ou que consagram a distinção entre a sociedade civil e o Estado, fornecem as referências da legitimidade de origem e exercício do poder, propõem o modelo da comunidade internacional, aos que tentam assegurar a paz pelo direito. No que respeita à identificação das perspectivas que estão vigentes na comunidade internacional, e sempre com o risco do arbítrio, talvez seja razoável para a actualidade, procurar caracterizar a da Santa Sé a partir da total perd~ de poder temporal sobre os seus Estados italianos, consequência da unificação da Itália, que o rei Vítor Emanuel II concretizou em 2 de Julho de 1871 quando, estabelecendo a corte no Palácio do Quirinal, pronunciou estas famosas palavras: "estamos em Roma e aqui permanecemos" 137• Tratava-se de uma época em que o mundo político ocidental tinha o liberalismo, nas suas diferentes versões, como ideologia dominante, hesitava entre a soberania popular (Rousseau) e a soberania nacional (Sieyes), decidia a experiência colonial das potências europeias da frente marítima, e desencadeava 0 pluralismo dos projectos que incluem o anarquismo do Estado supérfluo, as contra-revoluções, os totalitarismos, o sindicalismo e, sobretudo, o marxismo. As questões políticas que a Santa Sé teve de enfrentar muito concretamente em relação ao novo Estado italiano, tiveram o seu ponto final com os Acordos de Latrão, assinados em 11 de Fevereiro de 1929, pelo Secretário de Estado de S.S. Pio XI e por Mussolini, chefe do governo fascista italiano, no palácio que o Papa Sixto V mandou construir em 1586. A nova definição internacional da Santa Sé, que assume um protagonismo específico na vida internacional, vai basear-se não em qualquer poder político, mas sim e apenas na autoridade,isto é, uma proeminência institucional reconhecida que permite influenciar as condutas e as decisões. A mensagem evangélica interessa, no plano das relações internacionais , não como uma revelação, mas como uma proposta que na origem se perfilou como revolucionária em relação ao mundo antigo 138• Os princípios fundamentais são os seguintes: a)a primazia da pessoa humana, titular de direitos inalienáveis, com a vocação da imortalidade; b)daqui decorre uma nova percepção das relações entre o Estado e o homem, com a evidência de que a organização política é transitória, instrumental e contingente; e) a ideia 117 Alfred Stern (e outros), HistóriaUniversal,como VIII, Liberalismo y 11acio11a/ismo (1848-1890), Madrid, 1960, p. 314. '~ João Paulo II, VcritatisSplwdor,Roma, 1995 . 148 INTRODUÇÃO nidade, do povo inteiro sem distinção de etnias ou culturas, porque - ha, mais. JU . d eus, nem gentios, . da f-luillª ão filhos de Deus: d.isse S. Pau 1o que "nao rodos ~ uncisos e nem circuncisão, nem bárbaros nem pagãos, nem escravos, Ill ctrC • • ne h ens livres"; d) de acordo com o Evangelho segundo S. Mateus, foi Cnsto neltl ~:terrogado sobre o dever de pagar tributo, separou o que é de César do que~d~ Deus, fixou a dualidade do poder político e do poder religioso, baseou que e ra distinção entre o direito público e o direito privado 139• Acrescendo o a futude que o po d er po l mco ' . contmgente . , se exerce d entro d e uma area tern-. fac~olem relação à qual a fronteira geográfica é um elemento definidor essencoria' - e, dºiviºdºd . po l'iticas, . . a comunida d e d os crentes nao i a por essas f:ronteiras ou, eia'1 utras palavras, o povo d e D eus apoia · um mternactona . . 1·ismo supera d or d as f.°ri~ações estaduais. Durante centenas de anos a dualidade da organização i~ídca e da organização religiosa, com as suas incidências na vida interna dos ~~tados (auton?mia da s~cied~d~ civil) e na vida internaci?nal (autoridade do Pontífice) inspirou conflitos senos entre o Estado e a Igreia. No século V,a Carta do Papa Gelásio ao Imperador Anastásio, diz claramente: "Duascoisas há pelas quais é regido este mundo, principalmente a sagrada autoridade dos Pontífices , Imperador Augusto, e o poder dos reis. Nelas é tanto mais importante o prestígio dos sacerdotes, que até, em vez dos próprios reis, eles é que vão prestar contas ao Senhor no divino tribunal. Sabes , efectivamente, que embora estejas à frente do mundo inteiro do meu tempo, inclinas reverentemente a tua fronte ante os juízes nas coisas da religião e a eles pedes os meios para a tua salvação, ó meu filho elementíssimo, apesar da tua alta dignidade" 140 • Adoutrina das duas espadas, exposta por Bonifácio VIII, em luta com Filipe IV de França, na Bula Unam Sactam,pretendia que "na Igreja existem duas espadas",a espiritual e a temporal, "mas esta tem de esgrimir-se em favor da Igreja, e aquela pela própria Igreja"H 1• As crises foram frequentes entre a Igreja e o Estado, e muito discutidas pelos escritores medievais, destacando-se Dante que, no De Monarchia(1309) , propunha assim a limitação recíproca: a Igreja, que exprime a vontade de Deus no mundo, pede-nos que reconheçamos que a sua autoridade se baseia no amor, e que não pode impor-se pela força sem contradições; distingue-se do poder temporal dos príncipes, mas a legitimidade destes depende da concordância com o primeiro, sob pena de ser perverso. A questão da relação entre a Igreja e o Estado não é exclusiva da Igreja cató lica,mas a evolução dessa específica relação teve uma importância mundial, não '"Marcel Prélot , Histoiredesidéespolitiques, Paris, 1961, p.134 e sgts . Alejandro Bugallo , "Teor ia das duas espadas", in LegadoPolíticodo Ocidwte, cit., p. 81 e sgts. 111 A· Bugallo, cit ., p. 94. Joseph Lortz, Historiadela Jglesia,Madrid, 1962, p. 307. 140 149 -- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS apenas pela acção missionária da Igreja que assim se defrontou com a variedade dos poderes políticos no mundo, mas também porque os poderes ocidentais organizaram eles um mundo que se manteve politicamente submisso aos seus padrões até meados deste século. Uma Igreja pode organizar-se para viver sob a autoridade do poder político que existir, ou constituir-se como instituição autónoma, exibindo uma fonte de legitimidade e autoridade específica e privativa, que rivaliza com a política. Algumas orientações doutrinais, como foi o caso de Hobbes (1588-1679) que publicou o Leviathanem 1651, entenderam que uma autoridade independente dentro do Estado impede que este tenha um poder soberano. Quando Hen. rique VIII se proclamou chefe supremo da Igreja de Inglaterra (1534), desligando-se do passado credo católico, porque a Igreja católica recusou anula r 0 seu casamento com Catarina de Aragão, adaptou por antecipação esse ponto de vista, embora a experiência tenha vindo a estabelecer um equilíbrio entre a Coroa e a Igreja anglicana. Depois da Revolução de 1917,e até 1984, o governo soviético da URSS assumiu o poder de governar a estrutura e liturgia da Igreja ortodoxa, proibind o a educação religiosa e adaptando o ateísmo como ideologia do Estado. No Ocidente católico, a doutrina claramente procurou racionalizar e legitimar a dupla fidelidade, ao Estado e à Igreja, separando as áreas de juris dição, mas sem poder evitar conflitos, designadamente quando o Estado proíbe à Igreja acções necessárias para o exercício da sua missão. Não faltam exemplos de a cooperação consentida se traduzir numa mais valia da acção, servindo de exemplo a actividade missionária desenvolvida nos territórios onde se verificou a expansão colonial portuguesa 142 • O facto é que, no Ocidente, o Cristianismo entendido ou como doutrina da fé ou do comportamento, e a Cristandade definida como povo de Deus unido para além dos modelos políticos e suas fronteiras, foram referências fundamentais de toda a doutrina dos direitos do Homem, da sociedade civil, do Estado, do estatuto das várias outras Igrejas, da comunidade internacional, e do edifício normativo que procura disciplinar as relações entre todos os instrumentos deste complexo processo. Do ponto de vista da comunidade internacional, e sobretudo a partir do momento em que a expansão marítima agudizou a questão das relações com os infiéis, a perspectiva católica tomou expressão cimeira na definição de um jus Adriano Moreira, "Tratado de Tordesilhas", in LegadoPolíticodo Ocidente,cit., p. 98 e sgts. Adriano Moreira, PolíticaUltramarina,Lisboa, 1961. Joseph Lortz, Historia de la Iglesia,Madrid, 1961, p. 305 e sgts . 141 150 INTRODUÇÃO naesocietatís, um direito da sociedade humana 43 1 • Um núcleo matricial de hll~a os juristas assume a definição das matrizes do direito internacional, desteÓº~o-se Francisco de Vitoria (1492-1546), Soto (1494-1560), Luis de Molina ta~;:. 1soO),Francisco Suárez (1548-1617), seguidos por juristas como Hugo (l tius (1583-1645) com o seu DeJureBelli ac Pacis,aparecido em 1620, Frei Gro fim de Freitas que publicou em 1625 o Dejusto ímperíolusitanorum asiatico, sera d John Selden que em 1635 fez aparecer o seu Mare Clausum. e Os continuadores de Grotius definiram o critério mais seguro de identifi ação dos ocidentais, e a sua contribuição mais duradoira para uma Ordem 1 ~ndial sempre em mudança, que é o direito internacional. Uma longa cami!Ilhadaem que avultam Wolff (1679-1754), autor do conceito de civitasmaxima, ;attel (1714-1767), autor do conceito de sociedadedas nações,Pufendorf (1692_1694),Tomásio (1655-1728), e finalmente os que, sobretudo a partir do século XIX,consagram a autonomia científica da disciplina 144 • A evolução da perspectiva internacionalista, apoiada pelo conceito transestadual do povo de Deus, e da doutrina paulina das relações com os poderes instituídos, parece recolher os dois elementos fundamentais da posição romana. o ponto da situação deve ser feito, para este fim de século, a partir do ConcílioVaticano II, que João XXIII convocou. No que respeita à evolução do conceito paulino sobre as relações com os príncipes temporais, talvez deva distinguir-se entre aquilo que respeita ao poder político instituído, e o que concerne à sociedade civil que governa. Nas relações com os príncipes temporais, a Santa Sé viveu séculos em intensa ligação com o poder político, que dela recebia a legitimação, até que as mudanças liberais a afectaram, proclamando, sobretudo a partir da Revolução Francesa, o Estado laico, e retirando-lhe os próprios territórios em que exercia a soberania temporal. Depois da referida tomada de Roma e até 1929 (Latrão), o Papa considerava-se prisioneiro, mas nesta última data, e na lógica da acção iniciada por Pio XI, voltou a incitar os católicos a participarem na vida pública, e adoptou o modelo das Concordatas sempre que possível, para regular as suas relações com o poder político. Est as Concordatas foram especialmente importantes em relação aos Estados com responsabilidades coloniais, e Portugal assinou uma, e mais um Acordo Missionário, em 1940, para associar a Igreja à missionação e ensino no Ultramar, regime que durou até à revolução portuguesa de 1974. 3 Antonio Truyo l y Serra, F1111damentos dedcrcchoi11tcmacional público,Madrid, 1970, p. 172 e sgt~. '" Adriano More ira , A Europacm Formação,cit ., p. 93 . Arthur Nussba um, Historiadei dercc/10 i11tcma, cio11a/ , Madrid, 1963 (actualização de Luis García Arias). Sanei Roman o, Corsodi diritto i11tcmazio11alc Pádua, 1962, p. 21 e sgts . " 15] TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Finalmente, a dolorosa experiência da guerra de 1939-1945, a campanha contra a crítica posição de Pio XII em relação à Alemanha nazi e ao holocausto o movimento da descolonização que a Carta da ONU consagrou, a chegad~ de um vasto mundo colonizado e não cristão ao diálogo internacional, tudo encaminhou o Concílio Vaticano II para que fosse agora a Igreja a afastar-se do Estado e dos poderes políticos, recusando-se a admitir que qualquer deles se possa apresentar como um filho dilecto da Igreja, mesmo as formações políticas que se identificam como culturalmente cristãs. Define-se como uma fonte de doutrina que pode e deve aproveitar a todas as forças em conflito, rnas a cada uma delas, e aos seus seguidores, pertence a responsabilidade das opções e acções. Isto significa que a Santa Sé não assume programas específicos a respeito dos problemas da comunidade internacional ou da sociedade civil de cada Estado. Pelo que toca à comunidade civil, e desde o regresso iniciado em Latrão aperfeiçoou a doutrina para os direitos do Homem, a qual foi recolhida na Decla: ração Universal da ONU de 1948, ofereceu uma doutrina para as relações com a sociedade civil, e enfrentou a justiça social com numerosas Bulas, desde Leão XIII (RerumNovarum,1891), passando pelos Documentos conciliares (ApostolicamAutoritatem,Ad Gentes,ChristusDominus,DignitatisHumanae)e culminando com a extraordinária doutrinação de João Paulo II. 7. O mundialismo Neste fim de século, a mudança em curso da estrutura para o modelo de comunidade internacional revela um conflito de tendências referentes à moldura do futuro relacionamento entre os agentes da vida internacional, mas também um conflito que se traduz na resistência das estruturas que entraram em crise mas não perderam um poder de intervir. Existe uma aceleração da história e como que uma contracção do mundo. Primeiro, o processo de eliminação do isolamento das comunidades diferenciadas e distintas no tempo cultural ou no espaço físico parece ter chegado à consumação. A grande tarefa dos Descobrimentos, em que Portugal teve papel proeminente, termina com os homens a conhecerem, como disse Paul Valéry, os limites terrenos do seu reino. Mas, simultaneamente, a velocidade das comunicações, para as tarefas da paz e para as tarefas da guerra, como que reduziu as dimensões do mundo. Leva-se menos tempo de avião de Lisboa a Nova Iorque do que de automóvel de Faro a Bragança. O conflito entre a URSS e os EUA sobre a colocação dos mísseis de médio alcance na Europa, e que antecedeu de pouco a queda do sovietism 0 , diria respeito ao ganho de alguns minutos na rapidez de atingir o adversário. 152 INTRODUÇÃO to que as campanhas de Napoleão decorriam à velocidade máxima e,nqua;alos podiam atingir, as superpotências podiam agredir o territóque os c~versários, transpondo o Atlântico e a Europa, em poucos minutos. ª ' · comprova d a por d uas guerras ch amari·o dosdialização do teatro estrateg1co, A mun ndiais, a mundialização do sistema de comunicações por satélite, a mundas?1u ão dos mercados, a mundialização da informação, a mundialização dos ~iahzaderivadosdos avanços científicos e técnicos aplicados para fins bélicos nsco~ficoscomo acontece com a energia atómica, tudo leva a desmoronar as aCI 1 , e P uras do passado que duraram seculos. estrut .d.d ' . oc1. A. mesmo tempo, Ber 1· 1m esteve d.1v1 1 a ate' 1989 entre as potencias \ e a URSS, assim como o Vietname e a Coreia foram divididos politidenta1 . d a v1a,ar-se . . d.irectamente d e Israe 1para os ente em Estados; não po d e am camdos árabes vizinhos; os Estados interferem nas comunicações radiofónicas Esta · ,. sem prece d entes, mas ara que não sejam capta d as; a pro d ução atmge 01ve1s p rava-sea distância entre países ricos e países pobres; a relação entre recursos ag opulações faz reaparecer a importância da geografia da fome. · ep Na defin1çao · - concreta d os mo d e1os po l'.1t1cos,ao mesmo tempo que existe um claro movimento de reconhecimento da incapacidade do Estado clássico pararealizar as finalidades e objectivos que o fizeram nascer, aparecendo grandes espaços organizados que tendem a superar essa incapacidade, também se verificaque o nacionalismo renascido, as diferenças étnicas, culturais e religiosas lutam pelo reconhecimento da sua especificidade e até autonomia de gestão e representa ção internacionais. Foi o que aconteceu na dissolução da com plexaURSS,onde estão abrangidas nacionalidades, etnias, culturas e religiões correspondentes às que inspiraram as autonomias, independências e Estados nacionaisdo Ocidente. Esta ten dência para a pulverização de um grande espaço político, que formalmente tem correspondência na pulverização dos impérios coloniais ocidentais depois da última guerra mundial, parece exprimir um fenómeno de divergência e pluralismo contrário ao fenómeno de convergência e unificação dos grandes espaços que ficou referido. Linhas de evolução aparentemente tão contraditórias, que vão do nacionalismo,ao internacionalismo e ao mundialismo, devem corresponder a exigências diferentes. Numa primeira aproximação parece evidente que a convergência para os grandes espaços segue o método do consentimento, da complementaridade, da igualdade das unidades políticas integradas, e que a pulverização se dá nos modelos políticos de matriz imperial, onde o consentimento dos povos foisubstituído pela imposição em regra militar, onde a hierarquia interna dos grupos diferenciados é estrutural e com expressão nas hierarquias políticas e económicas.A natureza imperial não estava presente apenas nos sistemas colo153 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS niais das potências da Europa da frente marítima, também o esteve na DRss nas suas relações jurídico-políticas com os satélites . e Um grande escritor do nosso tempo, o jesuíta Teilhard de Chardin, foi u dos observadores que melhor e antecipadamente se apercebeu deste fenómen: O mundo atingiu uma interdependência que não era presumível no começo d · 0 século. Os fenómenos são tendencialmente planetários e a guerra, a fome explosão demográfica, o perigo atómico ou das guerras química e bacteriol~~ gica, a luta pelo espaço exterior, tudo são demonstrações da planetização dos fenómenos políticos. Fala-se, por isso, na PátriaPlanetária. Deixou de haver nações, países, regiões, indiferentes para o resto da Bu rna. nidade, o que se exprime numa tendência para a unidade política do mundo Por outro lado, verifica-se uma proliferação dos centros de decisão de arde~ política, militar, económica ou religiosa, com uma multiplicação acelerada dos Estados , que parece um princípio de dispersão. Ambos os princípios, convergência e dispersão, originando uma multiplicação quantitativa e qualitativa das relações entre os vários centros decisór ios decorrentes da indutável interdependência mundial. Foi para tentar exprimi; cresesta evolução, e na linha de Chardin, que temos falado na leidacomplexidade centeda vidainternacional,significando, como explicámos antes, que a marcha para a unidade do mundo vem acompanhada de uma progressiva multiplica ção quantitativa e qualitativa dos centros de decisão (divergência), e de uma multiplicação quantitativa e qualitativa das mútuas relações (convergência), tudo originando novas formas políticas (grandes espaços) e órgãos supranacionais de diálogo, cooperação e decisão (unidade). Era perante esta evolução que Chardin falava na necessidade da criação de uma Frente Humana, uma espécie de força de intervenção política que compreendesse os fenómenos da mundialização, da complementaridade, da interdependência, superando as antigas divisões e formas políticas de o rebanho humano responder aos desafios 145• Tudo isto teve uma tradução importante num fenómeno que por sua vezse querendo com tal expressão significar que a luta chamou a mortedasideologias, ideológica, que foi dominante a partir das revoluções americana, francesa e soviética, teria perdido o sentido, a violência e a actualidade, e que as circunstâncias encaminhariam o mundo para um pragmatismotecnocrático que submete todos os problemas à disciplina da ciência e da técnica sem dependência das inúteis ideologias. Mas o fenómeno parece outro. As velhas ideologias, o liberalismo, o sovietismo, o legitimismo, o nacionalismo, o socialismo, todas foram criadas para 145 Teilhard de Chardin , L'Avenirdel'Homme,Paris, 1959. Claude Soucy, Pensielogiqueetpenséepolitiqui chcz Tei/1,ard de Chardin,Paris, 1967. Louis Pésillier, La patrieplanetaire,Paris, 1977. 154 INTRODUÇÃO ra mundial que entretanto desapareceu, em parte por influência . . l e interno, . ufllª esrrutu .deologias. Mud ad a a estrutura d o mun d o mternac1ona as 1 daquelas elhas perderam actualidade e utilidade, pelo que são novas ideolo ostaSvtão em formação para co b nr. o vazio. . Este vazio . parece em gran d e prop · 'fi1co e tecmco ' · · s que'bestário do facto d e que a ace leração d o processo c1ent1 g1a parte ~ri ~mpanhada por uma evolução correspondente da ética , pelo que o nã0 foi actro é hoje evidente e gritante. Mas a indiferença tecnocrática perante · ' · e aos resu lta d os econom1cos ' · desencons para olhar exclus1vamente a' e fi1cac1a e 1 ' d h d' , . . e 0 s va• ore não te m dimensão capaz e preenc er a 1stanc1aentre uma c01sa réc111COS , out:·tre as novas solidariedades, afinidades e semelhanças que determinam urações das sociedades que ultrapassam a clássica dimensão nacional, con, igico-linguíst1ca, · ou re 1· · · · 'fi1ca, 1g10sa, esta' Justamente a capac1'd ad e c1ent1 ~~ , ica e económica de responder aos desafios, e uma certa convergenc1a nas ~ec:as de responder, desactualizando as velhas clivagens ideológicas, eviden~r do a necessidade de criar ideologias novas, ou novas concepçóes concor c1an entes do mundo e da vida. r Recordem os que, na caracterização de Raymond Aron, que foi um dos maiorespolitólogos europeus deste século, se configurou uma distinção entre sociedades industrializadase sociedades agráriasque ultrapassa os quadros políticos tradicion ais. As primeiras, que se desenvolveram sobretudo no Norte do mundo, caracterizam-se pela divisão do trabalho, pela substituição do músculo pela máquina, e pela substituição da memória pelo computador . Esta característica, com os seus corolários na maneira de viver dos povos, projecta no mapa uma sombra que cobre os territórios do Norte do globo, desde a Rússia ao continente americano, incluindo portanto os EUA e o Canadá . Na mesma linha, lembremos que Galbraith fala nas sociedades afluentes, situadas na mesma zona geográfica, e que se caracterizam pelo facto de terem recursospara todos os projectos, desde o domínio do fundo dos mares ao domínio do outer-space.Ainda, mais pessimista porque se dedicou a pôr em relevo o passivodas sociedades ricas, Marcuse falava nas sociedades que produziram o homemu11id imensional,isto é, com uma só dimensão que é a de consumidor , a dimensão conveniente para uma sociedade de consumo. Sociedade esta de consegundo o qual sumo que inventara, nesta região do mundo, o modelodemercado, a procura deter mina a oferta. Agora, para sustentar os mecanismos empresariais da oferta e o respectivo lucro, era a tal oferta que condicionava a procura, criando necessidades e dependências artificiais. O sistema social, incluindo o proletariado, estaria corrompido pelos electrodomésticos, o automóvel e a televisão, necessid ades que o impedem de qualquer autêntico intervencionismo revolucionário. (i • A• 155 T EORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Pelo contrário, no Sul do mundo, as sociedades agrárias, independent mente das diferenças étnicas, culturais e de localização geográfica, são caract rizadas por monoculturas, fraco investimento, deficiência de quadros, ausênc~de espírito empresarial, urbanismo limitado, fraca expectativa de vida, trabaih a 0 de menores e estatuto social diminuído das mulheres, doença e subaliment ação, dentro de uma fronteira de fome que Josué de Castro foi um dos prillle'1· rosa identificar 146• Deste modo, uma distinção entre o Norte e o Sul do planeta, reclamando uma solidariedade de que o Concílio Vaticano II assumiu a defesa, deu origelll a um problema mundial entre áreas que ultrapassam as tradicionais divisões políticas, e que se exprimiu falando no conflitoNorte-Sul, no diálogoNorte-Sul ou na cooperação Norte-Sul, conforme a matriz ideológica do autor é marxista' liberal, ou humanista cristã. ' Por outro lado, existem correntes de unidade Norte-Norte, e Sul-Sul, corn expressão política que se manifestou primeiro nas áreas pobres. Aqui, recordamos que desde a Conferência de Bandung, na Indonésia, realizada em Abri) de 1955, não faltaram os projectos de unificação política. Nesta conferência o factor de solidariedade foi a cor da pele; eram os povos de cor em luta contr~ a etnia branca que deteve longamente o poder colonial. Um racismo de sinal contrário ao que sempre fora invocado tornou-se orientador da luta política. Depois, em 1958, reuniu no Cairo a Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, onde Nasser foi a figura dominante. Agora era não já apenas a cor, mas a antiga situação de colóniaque aparecia como cimento da solidariedade. Finalmente, a Conferência de Havana, de 1966, onde o líder foi Fidel Castro, ligou o anticolonialismo do século XIX ao anticolonialismo do século XX, e apelou para a unidade baseada na condição geral de pobreza. Era a solidariedade dos povos de cor, colonizados pelos ocidentais, e pobres, que se afirmava, dando origem a uma atitude internacional comum dos povos do também chamado Terceiro Mundo, que foi o neutralismo. Essencialmente, esta linha significou a neutralidade em relação à competição dos blocos do Norte do mundo (NATO - Pacto de Varsóvia), procurando recolher cooperação de ambos os lados, mas tendo sempre uma atitude mais favorável para a URSS que nunca exerceu o poder político naquelas áreas. Mao Tsé-tung haveria de doutrinar uma solidariedade mais forte daquilo que chamava a área dos 3 A (Ásia -África -América Latina), que constituiriam o campo da cidade planetária situada no hemisfério Norte. Como demonstrara na China, e ao contrário da convicção tradicional, o campo pode vencer a cidade, pelo que o campodo Sul da Terra poderia vencer a cidadeplanetáriado Norte 147• "' ' Balandier (e outros), Lc TicrsMonde, Paris , 2' ed., 1961. em Mudança, Lisboa, 2 1 ed ., 1982, p. 128 e sgts . ,., A. Moreira, A ComunidadeInterrracional 156 INTRODUÇÃO Existem outros projectos, também de perfil ideológico, que apelam para lidariedades que não respeitam as tradicionais divisões políticas, como é o 50 do fundamentalismodo Irão, ou do imperialismo vietnamita, ou, no plano 0 'ª~rural, os da hispanidade e do lusotropicalismo. cu Desmentindo as teses da morte das ideologias, a conjuntura deste fim de ,culo começa a tornar evidente uma nova constelação de valores, inspiradora ~: uma renovação ideológica mais caracterizada pelo internacionalismo, pelas . terdependências a caminho do mundialismo. Deste modo, vão-se definindo :otradições e sínteses que têm efeito nos alinhamentos de forças na balança ·oternacional de poderes. 1 Parece importante, e muito apoiada pela UNESCO, a vertente do diálogodas em vez do conflito, amparado na aceitação da coexistência e da converculturas, gênciatendencial. Esta não parece incompatível com à defesa da identidadeculturaldos grupos, antes se afigura um processo de enriquecimento pelas trocas recíprocas de padrões. Deste modo, a estrutura seria definida no sentido de repudiar o colonialismo e O neocolonialismo: o primeiro, caracterizado pela imposição de uma soberania alienígena a um povo e seu território, com a característica geral de o colonizador levar a técnica e o capital, e o colonizado fornecer a terra e a mão-de-obra, tudo segundo um estatuto de subordinação política; o neocolonialismo, que é um fenómeno subsequente à descolonização moderna, e que se traduz em impor um domínio económico, financeiro e até cultural a um povo de estruturas mais fracas e geralmente de cultura diferente, sem necessidade de impor a soberania, uma situação da qual muitos países sul-americanos se queixam em relaçãoaos EUA, e de que muitos países que foram colónias europeias sequeixamem relação às antigas metrópoles. Nesta redefinição de condutas entre povos de cultura e etnias diferentes, aparecem condenados os crimes contraa Humanidade:o principal deles é o genocídio,que se traduz na extinção programada de um povo inteiro. Foi o que aconteceu com os judeus vítimas do programa nazi da última grande guerra, é o que está a acontecer aos timorenses invadidos pela Indonésia, foi o que aconteceu aos ibos que se revoltaram contra a Nigéria na década de sessenta, é o que os sérvios praticam na Bósnia com o nome de limpeza étnica. Um dos conflitos do acomodamento em curso é o do patriotismoe internaciovisto este implicar redefinições do poder político soberano que o sennalismo, timento patriótico histórico não aceita sempre ou não aceita facilmente. Talvezpor esta resistência inevitável é que os movimentosrevolucionários tendem para o mundialismo, como foi o caso da revolução proletáriapregada pelo leninismo histórico e pela versão guerrilheira de Che Guevara. No sentido de desarmar os conflitos clássicos, acontece que os próprios revolucionários, que 157 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS adoptam formas terríveis de luta como o terrorismo,apoiam e exigem uma Pofí_ ticade desarmamentoentre os blocos, e a pazpelodireitocresce como ideal colec, tivo da Humanidade, muito apoiado pela série de papas conciliares, em que avulta João Paulo II. Não apenas as sociedades internas, mas a sociedade internacional, movelll, -se doutrinalmente para serem sociedadesde opiniãoem que as armas da paz substituem as armas da guerra, o métodocontratualsubstitui a imposição,o diá, logotoma o lugar do combate,ajustiça substitui a simples ordemimposta pelos vencedores. De novo as Declarações dos Direitos do Homem, americana de Filadélfia francesa da Revolução, universal da ONU, se transformam num ponto de refe~ rência geral dos poderes políticos, ainda que divirjam no elenco dos direitos e no conteúdo de cada um. O valor da soberania, que desde Bodin (1530-1596) é um dado fundamental da organização mundial, e se apoia frequentemente mas não sempre, no patriotismo e no nacionalismo, está em processo de revisão' renuncia a faculdades em favor de entidades supranacionais, admite a incapa~ cidade de continuar a assegurar isolada os objectivos das comunidades, e não voltará provavelmente a ter o conteúdo do passado. Questões como a condição da mulher e das crianças, da liberdade da informação, da liberdade de criação artística, da justiça social, da ecologia, da criminalidade internacional, deixaram de pertencer à jurisdição interna para se transformarem em problemas internacionais. Uma clara linha de evolução é que a clássica distinção entre os problemas internos,problemas internos internacionalmenterelevantes,e problemasinternacionais,se mantém as fronteiras formais, mudou o conteúdo de cada uma das categorias, porque existe um trânsito evidente dos problemas de internos para internacionais. A comunidade internacional é um meio social onde todas estas tensões e correntes se entrecruzam, aparentando algumas características fundamentais que apesar de tudo permanecem desde o século XV, época da formação dos grandes Estados modernos. As sociedades são compostas por indivíduos, mas a sociedade internacional caracteriza-se pela existência real de corposintermédios,dominantemente os Estadossoberanos. Esta última característica, embora a soberania esteja em evolução, traduz-se numa sociedade internacional ainda em estadodenaturezapor não existir um poder,ou seu equivalente, garante da observância do normativismo da comu· nidade internacional. A voluntariedade dos elementos do conjunto ainda é a regra. Daqui resulta que a eficácia das normas em mudança depende do con· sentimento do Estado em mudança, tudo caracterizando uma época de planos decontingência. 158 INTRODUÇÃO do da fundação da ONU, o direitode veto foi introduzido no estaf\qua~onselho de Segurança, com o declarado fundamento de que uma curodo tência não se subordina, em questões do seu interesse fundamengrande Pº 0 dos pequenos. Foi por exemplo, em 13 de Julho de 1961, o que , 0 vot ca1• ~ . I(r uchtchev quando declarou que "mesmo que todos os pa1ses do .,pruniu . - que nao - estivesse . d e acor d o com os mteres. e.d dop rassem uma d ecisao mun ~RSS e ameaçasse a sua segurança, a URSS não reconheceria tal decisesda apoiando-se na sua força sustentaria os seus direitos". Tudo significa · d epen d enc1a • . d os interesses, . . São' mas /idariedadedefiacto,b asea d a na mter e' mais d E d d . . . 'dº p que aso e do comportamento os sta os o que o normat1v1smo JUrt 1co. or ~e::~:cke escrevia que "os príncipes e os magistrados dos governos indepen,s s que se encontram no universo vivem num estado de natureza", candente iro ainda actual. ce /\ permanência destas características não desmente a evolução interna do . tema a que temos feito referência. Assim, o quadro geral das relações intersi;cionais foi euromundistaaté ao fim da Segunda Guerra Mundial, mas esse nredomínio director das potências europeias foi substituído pelo bipolarismo URSSe EUA. Esta transformação teve, entre as suas consequências, a multiplicaçãoacelerada das independências e a já notada complexidade crescente das relações internacionais sem que as características gerais tenham desaparecido ou sido substituídas. Assim, o problema da distância entre a proclamada regrada igualdade dos Estados frente à lei internacional, e a real hierarquia dos Estados segundo o seu poder, de facto tornou-se mais grave e complexa com a corrida armamentista e a alteração qualitativa das armas. Como sempre, vai demorar a harmonização, numa nova Ordem, entre aquilo que permanecerá do passado, e aquilo que corresponderá às respostas inovadoras. Mas estas são urgentes para acolher as exigências de um globalismo que inclui uma série de riscos maioressem precedente na História. A Conferência das Nações Unidas sobre o ambiente e o desenvolvimento, chamada Cimeirada Terra,e que reuniu no Rio de Janeiro de 3 a 14 de Junho de 1992, foi uma das melhores expressões internacionais da progressiva tomada de consciência do mundialismo e da marcha para uma definição comunitária da estrutura mundial. Tratou-se de conseguir uma associação global de países afluentes e pobres no sentido de responderem em comum aos desafios comuns, entre eles o do próprio destino do planeta, uma só Terra para todos os homens. Os factos, mais uma vez, ultrapassaram em velocidade a mudança cultural necessária, e por isso não foi possível que os do Norte mostrassem uma sériadisposição para rever o seu método e sistema de desenvolvimento, e os do S~Imostrassem que renunciavam ao direito de poluir para se desenvolverem. Ficouem todo o caso o sentimento da necessidade de definir o desenvolvimento t 159 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS em termos de ser "socialmente equitativo,ecologicamente viável,conscientemente efi 1 • caz, e capaz de reequilibrar as relações Norte-Sul" 148 • § 6º Desenvolvimento dasPerspectivas 1. Desenvolvimento da perspectiva realista As perspectivas dominantes no campo das relações internacionais lidam todas com o facto do poder,e todas se confrontam com as teorias,a maior parte das vezes desdobradas ou complementadas por doutrinas,que procuram racionalizar tais relações ou torná-las coerentes com um sistema de valores. Algumas destas teorias e doutrinas incorporam-se mesmo no sistema cultural de vastas áreas e por isso receberam uma apreciável adesão dos Estados na sua conduta. Vamos examinar o desenvolvimento concreto das principais perspectivas em confronto com as teorias e doutrinas dominantes, começando pela perspectiva realista. Indica-se esta em primeiro lugar, que é geralmente qualificada de anglo-saxónica e hoje representada pelo americanismo. Não se confundindo com uma simples powertheoryou Realpolitik,por isso mesmo não sustenta a indiferença perante os valores e os ideais, ou perante a lei internacional. Mas orienta -se pela convicção de que o interesse nacional deve ser suficientemente forte para o poder ser então usado em nome dos valores . Depois da guerra, o citado Morgenthau, e outros críticos, acusaram a política americana de falta de realismo por ter assumido uma pregação legal-moralista no mundo, com tendência para ignorar a balança de poderes 14 9 • Foi esta consideração que inspirou uma constelação de princípios que dão conteúdo ao americanismo, que condicionaram a expansão do poder americano, e que ainda hoje estão presentes no incerto conflito ideológico mundial. Assim, e para começ ar, a Revolução Americana consagrou, com a Constituição assinada em 17 de Setembro de 1787, o direitoà revoltaem nome da autodeterminação nacional, o que faria larga carreira até aos nossos dias, mas representou um corte definitivo com o legitimismo que dominava a Europa de então, e da qual os EUA se separaram. Por outro lado, anunciando assim limi· tes novos à acção interna e externa do poder , introduziu o princípio e a técnica " " M. Barri:re (coord.), Terrcpatrímoi11c co11111m11. La scienceauservicedel'environnementet du développement, Paris, 1992. S. Faucheux, J.F. Nocl. Lesmwacesg/oba/ess11rl'e11viro11nement, Paris, 1992. PNUD, Rapport Paris, 1992. 111011dial s11r/e dé1>eloppe111e11t h11111ai11, '" H. J.Morgenthau, Another GreatDebate,cit. 160 INTRODUÇAO ão dos Direitos do Homem (Filadélfia, 1776), que ficou para sem- Ç . 1"deo 1og1ca , . em re 1açao - as , areas , . on d e d om1. cu 1tura1s da Declarauma ban d eira preco:;res políticos autoritários, ou totalitários, que os não reconhecem ou natllp itam. nã0 respe realismo orientou outras definições de políticas destinadas a con_Mas:Estado, o seu interesse e o seu poder. Reclamando o direito à revolta sohdar distante metrópole, a consolidação interna do Estado primou sobre a co~dtr~:da Declaração dos Direitos do Homem, que não foram reconhecidos vah ª'!hões de escravos que continuaram · - nem aos m ' d'10s, pn-. nessa con d"1çao, 15 ªº.5~;s senhores do território, que foram eliminados º. nunv · · mternac10na · · 1proc 1ama d o e a con d uta Esta discordância· entre o d 1re1to . na foi salvaguardada pelo conceito de jurisdiçãointerna,a qual definia os - aos quais. nao - e, l'1c1ta . a mtervençao . - d e qua 1quer Esta d o inter blemas em re 1açao ~:ºorganização internacional, princípio ainda consagrado no artigo 2 S 7 da Carta da ONU. É isto que explica que, por exemplo, a grande Coligação Democrática que anhou a guerra de 1939-1945 tivesse incluído talvez uma dezena de ditaducompreendendo eventualmente a URSS. A convergência democráticadizia respeito aos objectivos externos e à Ordem internacional a estabelecer , não ao regime interno. Tratou-se de preservar um poder que era essencialmente da etnia branca. Depois, em busca de uma dimensão territorial suficiente, definiram a sua primeirazona de influênciaproclamando a chamada DoutrinadoDestinoManifesto: tratava-sede considerar manifesto que a fronteira natural do novo Estado se encontravano Pacífico, e nessa direcção marcharam sem respeito pelas populaçõesindígenas nem pelas soberanias estabelecidas . Acrescentaram a definição da sua segunda zona de influência com a chamadaDoutrina deMonroe:este presidente, na mensagem ao Congresso de 2 de Dezembrode 1823, afirmou o isolamento dos EUA em face das questões europeias;a oposição ao restabelecimento de qualquer soberania europeia no continente em decorrência do legitimismo proclamado no Congresso de Viena de 1815;a exclusão da intervenção europeia nos negócios do continente americano . Isto foi possível porque, com apenas quarenta anos de existência, os EUA eram já o mais pode roso Estado da área. A reserva da área deixou de inspirar quaisquer dúvidas quando o Presidente Theodore Roosevelt, na mensagem ao Congresso de 1904, definiu a doutrina chamada do bigstick: os EUA declaravam-se decididos a exercer, contra vontade, o dever de polícia internacional sempre que a instabilidade das repú- ;as, "ºtocquev1·11e, De la démocratieer, Amérique,Paris, 1951, 1, p. 353 . 161 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS blicas sul-americanas o aconselhasse. O respeito pela jurisdição interna dos outros cedia perante o interesse dos EUA, o que provocou grandes reacções no continente. Este realismo traduz-se portanto em assumir que compete aos EUA defi_ nir os seus interesses vitais, a área reservada à sua influência, os limites do respeito pela jurisdição interna dos outros, proclamando esses princípios em função das capacidades que em cada momento integram o seu poder Na política de blocos, os EUA, bem como a antiga URSS, sempre distingui~ ram a área dos seus interesses mundiaisde que se ocupavam em diálogodirecto,da área dos interesses regionais a que dão apoio, como acontece com a Aliança do Atlântico. Esperaram sempre que fosse evidente que não tomavam compromissos a favor dos interesses regionais que ferissem os seus interesses e responsabilidades mundiais. É fácil a tentação de alargar esta concepção realista a todos os Estados, como fazem os que assumem tal perspectiva como base da análise das relações internacionais. Mas parece que este realismo é inerente à detenção de uma posição razoável na hierarquia do poder das potências, e que os Estados mais desfavorecidos de capacidades tendem para assumir posições e propostas e actuações mais normativas, apologéticas, jurídicas. Tal realismo americano veio a ter expressão na Carta da ONU, entrada em vigor em 24 de Outubro de 1945. Não obstante a afirmada fé na pazpelodireito, as duas superpotências de então proclamavam que um grande país não consentiria, nas questões que respeitassem aos seus interesses fundamentais, subordinar-se ao voto das pequenas potências. Por isso mesmo, no Conselho de Segurança da ONU, responsável pela paz e segurança internacionais, ficou definido um mecanismo que consagra o chamado direitode veto.Trata-se de que as decisões do Conselho são tomadas por maioria dos membros, mas é necessário que nessa maioria estejam os chamados cincograndes:URSS, (hoje a Rússia) EUA, Inglaterra, França e China. Tam· bém não tiveram hesitação em conferir votos separados à URSS, Bielorrússia e Ucrânia, o que significou dar três votos à URSS, contra o princípio de que cada Estado, independentemente do seu tamanho, tem um voto. O mesmo realismo, no domínio da aplicação do princípio da autodetermi· nação dos povos e do anticolonialismo, acelerou a retirada das soberanias euro· peias de todas as suas colónias, mas não encontrou nenhuma colónia dentro do império soviético. No que respeita aos EUA, a ONU votou a integração do Hawai e do Alasca como Estados federados, não obstante a separação geográfica e até étnica; entregou-lhe, na dependência do Conselho de Segurança onde dispõe de veto, 162 INTRODUÇÃO . issos que necessitava para fins de segurança na Micronésia, e nada de tideicom te foi autorizado em relação a outra soberania. semelhanto já no domínio da Sociedade das Nações, que durou no intervalo Deres uerr ' as mun d'1a1s, · o C onse lh o tm · h a nove mem b ros, d os quais. cmco, . duasg _ . das F nça Itália, Japao e Inglaterra senam permanentes. Os EUA nunca EVA, ra ' . ram a Sociedade. integra utro lado, o reconhecimento da hierarquia dos Estados levou à criação, O por · · . pe lo qua l um Esta d o d o concerto oc1SdN dos mandatos.E ra um instituto pela se,viaconfiado a administração de um outro Estado, território ou povo 1 d:nta nsiderado em condições de civilização e cultura para assumir o tal lugar naoc:do e independente na comunidade das nações. Estavam nessa situação separ · . . d epen d enc1a • . em a Síria, a Pa lestma, o LI'b ano e, u' ltimo a ob ter a m MarroCos, , a Namíbia que era um mandato confiado à Africa do Sul. 1989 J\paz acordada no fim da guerra de 1939-1945, e realmente baseada na Nova dem intern acional, hoje em crise, determinada pelo acordo URSS - EUA, 0 :deu rodo o Leste europeu à URSS, imperativo de um julgamento realista sobre : dimensão dos poderes em presença. O realismo não repudia os princípios, assumeou proclama a não-exigibilidade da sua observância em face de circunstânciasconcretas em que a equação dos interesses, e a balança de poderes, não consentem ir mais longe do que reconhecer que o reino de Deus não é deste mundo.A hierarquia das potências é admitida como um facto permanente. 2. Desenvolvimento da perspectiva marxista Pormuito que o marxismose reclame de científico, os desenvolvimentos políticossão tributários evidentes do insubstituível voluntarismo,e a versão soviética da URSSdeveu muito ao pensamento e vontade de Lenine, presidindo à formaçãode muitas lideranças do terceiromundismo. É por isso importante meditar algumascorrecções que introduziu na doutrina mais académica do inspirador da escolae recordar que a queda do sovietismo e a dissolução da URSS em 1989 nãoeliminaram a presença do património ideológico e cultural criado, em meio séculode hegemonia, numa vasta área do mundo. A referida diferença de velocidades entr e o processo político e o processo cultural exige atenção para a presença da perspectiva marxista na problemática internacional. Primeiro, chefe de um movimento em luta pela aquisição do poder, Lenine assumiuuma posição maquiavélica, porque definiu os padrões da conduta do partido e das massas sem submissão à ética e ao direito tradicionais da comu~id~deocidental. Anunciou aos marxistas-leninistas que a sua moralidade é m~eiramentedefinida em função dos interesses do proletariado, sem compromissoscom os valores da sociedade burguesa. É por isso que os meios a empregar podem contrariar esta última moral considerada convencional, mas estão 163 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS justificados pelos fins prosseguidos: tudo o que serve a causa do proletariad 0 está justificado. O motor da luta pelo poder e da construção do Estado pro} tá rio será o partido ao qual pertence a representação dos interesses da maje. ria, que é proletária mas não tem consciência da classe à qual efectivamen~pertence. O movimento é conduzido por revolucionários profissionais que falam em nome dos proletários e conduzem o Estado em função dos interes~ ses dos mesmos. _ Para assegurar a eficácia do partido, instaurou a regra do centralismode1110 cráticoque significa a concentração total dos poderes na direcção do partid o Rejeitou qualquer evolucionismo ou reformismo socialista, mantendo intran: sigentemente a luta de classestal como fora afirmado no ManifestoComunista publicado em 1848 por Marx e Engels. ' Pelo que toca à conjuntura mundial em que assumiu o poder, no fim da guerra de 1914-1918,interpretou-a à luz da teoria do imperialismo, último estádio do capitalismo, teoria exposta num ensaio com esse nome, e que é indispensável conhecer. Neste trabalho procura explicar algumas evidentes contradi ções entre a previsão teórica de Marx e Engels e a situação da Rússia imperial: porque é que a revolução apareceu na Rússia onde todavia a concentração de capital não chegara ao ponto de crise; porque é que numa sociedade pré-capitalis ta a revolução foi contra a burguesia e o capitalismo; porque é que ainda assim era o primeiro passo para a vitória mundial do proletariado. cultural,acrescenta ndo Também foi Lenine que iniciou a teoria da revolução ou corrigindo a teoria de Marx. O marxismo clássico descreve as condições objectivas da revolução, mas Lenine acrescentou que para além dessas condições objectivas que se traduzem na transformação material, é necessária a revolução cultural que altera as condiçõessubjectivas,isto é, a percepção da realidade social. É necessário quebrar o suporte cultural da velha ordem burguesa. Modernamente, o famoso Gramsci, com a sua teoria da hegemonia, deu nova culactualidade à revoluçãoculturalna temática marxista. A chamada revolução tural chinesa, conduzida por Mao dentro do próprio regime, aparentemente contra a burocracia e o elitismo, em 1967-68, tinha em vista criar as condições subjectivas necessárias ao desenvolvimento do Estado e da sociedade soda· lista de modelo chinês. A sua teoria do imperialismo descreve o sistema da comunidade internado· nal como construído e mantido em favor das burguesias capitalistas, organiza· das estas em Estados, e estes hierarquizados de modo que um pequeno número de potências ocidentais, em que avultam a Inglaterra, a França, a Alemanha, já os EUA, constituíam um Directório informal. A hierarquia das potências era afirmada também nesta percepção. Contrariando orientações sustentadas por Rosa Luxemburgo (1870-1919) e Trotsky (1879-1940), porque a primeira defen· 164 INTRODUÇÃO ito pela vontadedospovoscom a consequência da autodeterminação e diaO resde defendia a revolução mundialpermanente,Lenine de facto defendeu a o segun ºão da estrutura histórica do Estado cujo governo assumia (fronteira, Jllanute~~ objectivos estratégicos), criou a doutrina do socialismo cercadonumsó populaçafi u,ndamentos da política internacional derivada do princípio de que a 5' eos Pª' . , pátriadostrabalhadores de todoo mundo. Rúss e: modo alterou completamente o conceito básico de Estado que domiDeSrrganização da comum'd ad e mternac10na . . l pe los oc1'd enta1s. . Enquanto nou ª ~es entenderam o Estado mantido por uma fidelidade vertical de todos que es os internos ao po d er nac10na . l, e a orgamzaçao . - po l 1t1ca ' . propna , . (p luos grup · · ) como d e exclus1va . iuns . . d'1çao - mterna, . tota 1·1tansmo o . 0 autoritarismo, ra1ism ' . fi fld l'd d . l . . d' . . ismo-leninismo a 1rma a I e I a e vertzcae a;uns zçaointernacomo prm. do cons01arx . , . mas enten d e que o proletarza , •os que protegem o Esta d o sov1et1co, c!P\ uma unidade de classe ao redor da Terra, que deve politicamente unir-se t,~letáriosdet~doo mundo,uni-vo.s!), e assumir_º°?ª ~de!idade h~rizontal or~e~[ada, sem distmção de soberanias, em relaçao a Russta, definida como patrza dostrabalhadores detodoo mundo. Do ponto de vista leninista, a intervenção de qualquer grupo proletário na luta contra o Estado nacional em que não está integrado não é ingerência na vida interna deste último, é defesa do valor revolucionário mundial. Adiferença de atitude exigida em relação à URSS vinha ideologicamente justificada com a versão de que a URSS era já um Estado a caminho do socialismo, no qual os interesses proletários eram proeminentes, enquanto que nos outros Estados, capitalistas, o poder nunca está justificado porque é opressor. Como é difícil negar o facto da nacionalidade,a doutrina do Estado marxista-leninista, agora pela mão de Estaline, definiu-se no sentido de aceitar a identidade etno-linguística como base da organização interna em repúblicas federadas, mas negou-lhes a autodeterminação no sentido de sair da União, embora a tenha reconhecido a qualquer povo no sentido de entrar na União. A doutrina precisou de ser complementada quando, depois da guerra, vários Estadosda Europa de Leste ficaram ocupados pelas tropas soviéticas, segundo um estatuto em que foram designados por satélites. Esta concepção levou à divulgação da tese ocidental de que a URSS não era um Estado como os outros, e os ocidentais fizeram seguir a Revolução de 1917de um cordãosanitário,isto é, uma conjugação de atitudes, desde o corte de relações diplomáticas à intervenção militar, no sentido de impedir a exportação da revolução. Tal cordão não durou, e rapidamente o velho modelocontratual,por via dos tratados, foi aplicado à definição das relações da URSS com os restantes Estados do mundo. 'ª 165 --- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Mas esta :specializou_ uma actividade do Estado que _secham~ estratég iaindi. recta,um con1unto de me10s de acção (em regra clandestina) destinados a cori: a fidelidade vertical das populações ao seu governo legítimo, e os ocide nta~r procuraram organizar instrumentos idênticos, enfrentaram a gestão de u~s forma renovada de relacionamento internacional que é a perigosa clande st;/ dadedoEstado,mas salvaguardaram, sempre que possível, uma área de tra nsp rarência submissa às tradicionais regras diplomáticas e jurídicas. Pelo seu lado, a URSS agiu sempre coerentemente com a perspectiva leni. nista, e durante e depois da guerra de 1939-1945 tornou-se mais evide nte consistente a persistência de métodos. Primeiro quando enfrentou o plan: nazi de hierarquizar os povos da Europa, sob a regência ariana dos alemães, por mil anos. Neste caso, Hitler (1889-1945) tinha exposto num livro célebre, lvfein Kampf,um programa de reabilitação da Alemanha vencida na guerra de 1914. -1918. Firmado no mito da superioridade da raça ariana, proclamou a conciliação do Herrenvolk(povo superior) com a doutrina do Lebensraum(espaço vital), anunciando a acção militar para definir este espaço em função das necessida des daquele povo alemão. Proclamando ainda a doutrina do Führerprinzip, apresentou-se a si próprio como líder carismático esperado pela Nação, ao qual devia ser reconhecida totalautoridadepara assumir totalresponsabilidade. Assim definiu a ditadura de um homem sobre o partido nacional-socialista, deste sobre o Estado, e do Estado sobre a sociedade civil que não tinha autonomia perante o poder totalitário. Um modelo com muitas semelhanças com o leninismo, que levou à ditadura do Secretário-Geral sobre o partido, deste sobre o Estado, e do Estado sobre toda a sociedade civil, étnica e culturalmente plural, existente dentro das fronteiras. A guerra aparece imediatamente legitimada na doutrina hitleriana para libertar os grupos do povo alemão submetidos à chamada indignidade do poder de uma soberania de povos inferiores, e para impor uma definição territorial que desse ao povo alemão o espaço vital necessário. Complementarmente, a violência estava legitimada, internamente, para libertar o povo ariano da proclamada agressão de minorias que manchavam a Nação e o Estado, sendo os judeus os mais notórios e numerosos. Por isso foi adaptado o programa chamado solução final que se traduziu na tentativa de os liquidar fisicamente a todos, tendo massacrado seis milhões. Este projecto, que falhou com a derrota da Alemanha na guerra de 1939-1945, possibilitou todavia um desenvolvimento do conceito e modelo soviéticos. O primeiro importante facto deste drama mundial deu-se quando, em 4 de Fevereiro de 1938, Hitler assumiu o comando supremo das forças armadas, afastando, com ignóbeis ameaças, o Ministro da Guerra Marechal von Blomberg, e o Chefe de Estado-Maior General Werner von Frich. A fraqueza das demo· 166 INTRODUÇÃO . .dentais, e a rápida progressão das tropas alemãs, tornaram possível, ,raciasdoclgosto de 1939, a assinatura de um Pacto germano-soviético de nãoetll 23 _e que permitiu à URSS dividir com a Alemanha o território da Poló-agressao,r a Carélia separada da Finlândia, e estabelecer as suas posições nos ·a ocupa , . L , . L' , . 111 ' Bálticos - Estoma, etoma e ttuama. Estªd~:via, em 22 de Junho de 1941, a Alemanha iniciou a confrontação miliTo tra a URSS sem prévia declaração de guerra, e esta aliou-se à Coligação carcon ra'tica ocidental, terminando a guerra com os exércitos ocupando o que, vemoc . , , ueda do Muro de Berlim em 1989, se chamou a Europa de Leste. Orgaa~eª qum sistema de satélites,cuja situação internacional foi caracterizada pela mz;;;nada soberanialimitadaformulada pelo Secretário-Geral Leonid Brejnev, douual é uma versao - pragmat1ca ' · d a d outnna · d as nac10na . l'd 1 ad es d e E sta 1· me, ª ;da aquando da organização constitucional do Estado leninista. us A estrut ura do bloco pelo método da imposição tornou mais nítidos os contornos da doutrina sobre o imperialismo, que foi a trave-mestra da visão leninista da comunid ade internacional. O conceito operacional de imperialismoé o da imposição do poder soberano pelaconquistaou da imposição do poderhegemónico globalque equivale à soberania. Foi a política proclamada por Joseph Chamberlain em 1880 para a Inglaterra que dinamizou o vasto Império Britânico. A crítica deste método, pela sua natureza exploradora dos povos e terras submetidos, foi assumida por Lenine no citado trabalho de 1917,Imperialismo,últimoestádiodo capitalismo.Chamou-lhe estádio porque considerou esse patamar como inevitável para a economia capitalista, e tendo como sequência a guerra entre os Estados expansionistas, a guerraimperialista entreEstadoscapitalistas, para assegurar a exploração de recursos e o domínio dos mercados. Na mesma linha, um dos famosos líderes da revolta africana, N. Nkrumah (1909-1972) escreveu em 1956 um manifesto intitulado Neo-Colonialism. The Last Stageof Imperialism,onde denuncia os métodos não militares de os Estados capitalistas dominarem os subdesenvolvidos aos quais formalmente davam a independência. Para o marxismo-leninismo a expansão da soberania ou da influênciaglobaldos Estados da sua linha, por meios militares, ou não-militares, não é imperialismo, é libertaçãodosproletáriosoprimidos. O fenómeno maoístafaria intervir nos desenvolvimentos do marxismo, em relação à comunidade internacional, a necessidade de reconhecer outros valores para além dos proletários, designadamente os nacionais e culturais. Mao tornou-se lendário sobretudo pela chamada LongaMarcha.Em 1934, à beira da derrota interna pelas tropas governamentais do Kuo Min-tang chefiadas por Chang Kai-shek, levou um exército de 50.000 homens para o refúgio de Chen-ci, a 10.000 quilómetros de distância. Assumiu que a guerra é um instrumento necessário e não dispensável enquanto o capitalismo for activo: "Nós, 167 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS comunistas chineses, opomo-nos a todas as guerras injustas inimigas do Pro. gresso, mas não somos opostos às guerras justas favoráveis ao progresso. Elll vez de nos opormos a esta última forma de guerra, nós, comunistas chineses tomaremos nela uma parte activa. Somos partidários da eliminação da guerra' e não queremos a guerra. Mas é somente pela guerra que podemos eliminar~ guerra. Se queremos abolir as espingardas, devemos pegar nas espingardas Quando a Humanidade tiver progredido ao ponto de ter eliminado as classe~ e eliminado o Estado, somente então não haverá qualquer guerra." Mas a China maoísta não aceitou o conceito hierarquizante da Rússia pátria dos trabalhadores de todo o mundo; assumiu a herança histórica das reivindicações territoriais contra a URSS, e procurou uma função directora no Pacífico talhando para si própria uma área, com fundamento histórico, onde a responsa~ bilida de de superpotência lhe devia ser reconhecida. Nas suas Memórias,Andrei Gromyko escreve: "Não me proponho comentar as políticas domésticas de Mao Tsé-tung. As suas actividades tiveram um grande impacto na situação interna da China e foram amplamente avaliadas pelo Partido Comunista da União Soviética e outros partidos irmãos; menos foi escrito acerca da influência de Mao nas relações internacionais; todavia, a política externa da China foi inteiramente dirigida, durante várias décadas, pelas suas ideias e perspectiva filosófica 1s1_tt Teve uma clara noção do conflito Norte-Sul,e procurou desenvolver o seu espaço no sentido Sul-Sul,mobilizando os povos dos 3A (Ásia, África, América Latina), todos pobres e agrários, contra o bloco Norte -Norte, industrializado e rico. Por isso as relações sino-soviéticas não foram sempre amenas. Finalmente, o marxismo-leninismo expandiu-se num vasto espaçoideológico que inclui muitos países do chamado Terceiro Mundo, na área dos 3A. A população de cor identificava facilmente os colonosbrancoscom os capitalistase a si própria como composta pelos proletários;a URSS nunca exercera um poder político nessa área, e por isso não tinha ali um capital de queixas; servia de exemplo de como uma sociedade agráriapodia dar o salto para a industrialização, atribuindo a causa ao regime soviético. A herança da perspectiva não desapareceu das políticas em exercício nessas áreas. Por seu lado a China, sob a direcção de DengXiaoping, assumiu uma nova aproximação ao mundo ocidental com a definição de um socialismode mercado para dinamizar a economia, e uma construção nova do Estado para responder 151 Gromyko, Memories,Londres, 1989, p. 318. Gorbatchov, Memoriade losanosdecisivos,(1985-1992), Madrid, 1993. Li Zhisui, La vieprivéd11Présidc11t Mao,Paris, 1994. François Fejtõ,Lafinedclledemocrazit sroriaddla popolari,Milão, 1992, p. 284e sgts. sobre a evolução depois de 1989. Martin Gilbert, Lagra11de scco11da guerramondialc,Milão, 1989, p. 234, sobre a invasão da URSS. Alexander Dubcek, C'csr/'espoir qui mcurtc11dcmicr,Paris, 1993, p. 238, sobre o uso do poder militar soviético. Mikhail Gorbatchov,E/ pon•enirpacíficode 1111estro planeta,Barcelona, 1986, sobre a revisão da logística do império. 168 INTRODUÇÃO , doissistemas:um o das regiões que, como Taiwan, Macau e Hong a,s com · d e a d mmistraçao · · a uTIIP •vem com uma economia· d e merca d o e regimes convi . - su b meti'd as a uma economia. descentralizada, e outro o d as reg10es púbhcaA uestão dos direitos do Homem está a revelar-se a variável que desaesrat:l. ; nas a viabilidade do novo sistema, mas a manutenção das estruturas fia0 ª0 .ª~ do marxismo. O massacre de Tiananmen deixou a opinião pública 1s2 essenciais . 1em suspenso . d un 111 f{oll.g 'ª nvolvimento do europeísmo 3,pese eísmo deve ser considerado pelo menos em relação a dois períodos, um oeurop . . , . . C om as d uas componenansãoe outro d e regresso a, p 1ata tiorma ongmana 'd l h . . ,1zca, . que encontraram smte, de exp do seu legadooc, enta, a umamstae a maqu,ave ces normativismo do direito internacional , e num conjunto de instituições sesno lares, teve um momento em que o concerto dos poderes europeus, de facto ~vaerial detinha o efectivo governo do mundo. A Conferência de Berlim de . negra, corresunp5, na 'qual os pa1ses , europeus d eciºdºiram a parti ºlh a d a A,fnca 188 onde certame nte ao ponto alto desse sistema. O ponto crítico do arranque tal~ezpossa ser estabelecido pelo Tratad? de T?~desilhas, de 7 de Junho de 1494, peloqual D. João II de Portugal e os Reis Catohcos Fernando e Isabel de Castela assentaram na linha divisória das zonas de expansão respectivas 153• OsLusíadaspodem ser lidos como um manifesto político do Ocidente cristão,visto que ali se aponta Lisboa como uma Nova Roma, destinada a dar leis melhoresao mundo inteiro 15 +.Ao mesmo tempo que a crise da Reforma terminavacom a aparência de um poder espiritual do Papa acima dos principados políticos, estes transformavam a RepúblicaCristãno OcidentedosEstados.Bodin (1530-1596)e Maquiavel (1459-1517) são os escritores dessa crise de mudança para o cresci mento e expansão. O primeiro, no seu Six livresde la République (1576),examina o conceito de soberania que define como "o mais elevado e pe rpétuo" pode r numa comunidade, cujo titular tem o absoluto direito e dever de fazerleis. As leis são a expressão dessa vontade e todos lhe devem obediênci a sem necessidade de terem consentido na sua promulgação. Osvalores do Estado, da soberania, da jurisdição interna, da Nação, do tratado, da guerrajusta, as técnicas e artes da diplomacia e da estratégia, o objectivo da paz pelo direito,tudo foram criaçõesdo espírito europeu. "2Deng x·1aoping, . SelectedWorks(1975-1982), Pequim, 1984. 153 LegadoPolíticodo Ocidente,cit, p. 97. "'A · More1ra, · O ManifestoPolíticod'Os Lusíadas,Braga, 1964. 169 TEO RIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Sempre cultivando a vontade do poder, maquiavelicamente, como not lucidamente Paul Valéry e André Siegfried 155 • Mas este logo acrescenta "quª~ necessário não esquecer, no outro prato da balança, a beleza moral de tan: e homens da nossa raça que, seja nas missões, seja na administração colonial os exército ou mesmo na simples colonização, não se deixaram conduzir se~~o pela nobre ambição de tornar a Humanidade mais civilizada, isto é, nos:º li pensamento, melhor" 156• O direito internacional é talvez o melhor critério cultural da identificaçã do europeísmo político, que nele estabeleceu a síntese de todas as suas con~ tradições. As contradições que fizeram nascer o Euromundo num processo d guerra civil entre os europeus, e que, em duas guerras civis, a que chamamo: mundiais, consumaram a liquidação dos impérios que tinham sido construídos a partir desta plataforma europeia. O Euromundo teve um livro de referência que foi a Bíblia,com leituras dife. rentes, mas para todos o mesmo. Politicamente definiu uma comunidade internacional que não dava estatuto de igualdade às outras regiões e povos. Forte nas suas tradições judaico-cristãs, grega e romana, usou afórmula do impériopara disciplinar, em regime de subordinação, os Estados e povos que encontrou no processo das Descobertas e expansão. Sempre que o equilíbrio da balança de poderes o exigiu, recorreu à técnica do Directório,e mais de uma vez um restrito grupo de potências assumiu o poder e o direito de governar a comunidade internacional: foi assim no Congresso de Viena de 1815, que reorganizou a Europa depois da queda de Napoleão, e na qual se formou a chamada Pentarquia que abrangeu as grandes potências da época; foi assim na Conferência de Berlim de 1885; foi esta a tradição recolhida no Conselho de Segurança da ONU. Não hesitou em fazer vigorar, ao lado da igualdade da lei para os Estados, a desigualdade do estatuto político dos mesmos Estados. As designações império, reino, principado soberano, ducado soberano, exprimem semanticamente uma hierarquia de poder que se manteve para além da quebra do sistema feudal. Categorias como as de Estado vassalo, protectorado, mandato, corresponderam a essa hierarquia que também dava superioridade global aos Estadoseuropeusem face de todos os outros. A comunidade euromundista assumiu o direito de reconhecer a personalidade internacional dos Estados 157• Neste contraditório processo, é certo que os grandes princípios que regem a comunidade internacional mundial, e que estabelecem um travejamento polí155 Paul Valéry, Regardssur /e mondeactuel,Paris, 1941. André Siegfried, La crisedel'Europe,Paris, 1935. Siegfried, cit., p. 66. 157 Adriano Moreira, A Europaem Formação,Lisboa, 3' ed., 1987. 15 '' 170 INTRODUÇÃO . 'd' co superior às diferenças de perspectivas e seu desenvolvimento, são . , . . . JUíl 1 europeísmo. Ü s prmcip10s t1coestruturantes que regem o sistema mun,idosao . . _ . lações internac10nais sao os segumtes: de, dia!das re c(pioda igualdade 1 I- pr ns Estados são juridicamente iguais, o que não se confunde com a /zierarO fo~~s oderque ficou referida. As relações depodernão obedecem a essa regra jurí0 p s O princípio-guia, ainda consagrado no artigo 2 S 1 da Carta da ONU é: dica.m~zação funda-senoprincípioda igualdade soberanadetodososseusmembros." ~Aoga;incípio daimunidadedecorre da igualdade soberana, porque deste último resulta a consequência de um Estado não poder ser submetido à ~o~c~içãode outro Estado. Tem cada um imunidadedejurisdição,pelo que os JU~~:naisde um Estado não podem julgar as actividades soberanas de outro. rrt exemplo, os tribunais de um Estado não podem julgar a nacionalização . d os seus nac10nais. . . dPorbens decretada por outro Esta d o e que fiiram mteresses OeEstado a que estes pertençam tem de recorrer ao direito de protegerdiplomaticamente os seus nacionais e entrar em negociações. Esta imunidade não se aplica quando o Estado aparece a agir nos domínios dodireito privado, por exemplo, como comerciante, o que era frequente em vista dosregimes socialistas existentes. Mas os Estados beneficiam da imunidade de execução,isto é, os seus bens não podem ser apreendidos e executados. Acrescentam-se as imunidadesdiplomáticas conferidas aos agentes dos Estados estrangeiros. Esta matéria está hoje regulada na Convenção de Viena de 18de Abril de 1961. Entre as imunidades, e a título de reciprocidade, conta-se a imunidade das comunicações que não permite examinar nem reter a correspondência ou os correios diplomáticos; o privilégio da cifra,ou seja, de codificar as comunicações; a inviolabilidade dos locais da missão diplomática, sem queisso signifique extraterritorialidade; certas imunidades jurisdicionais, que subtraem os diplomatas ao julgamento pelos tribunais do Estado onde estão acreditados. O princípioda reciprocidade diz respeito à igualdade concreta das relações: um Estado garante a outro e aos seus nacionais um tratamento igual ao que o outro Estado lhe dispensar e aos seus nacionais. Ambos procurarão pragmaticamente assegurar um comportamento que se traduza em igualdade efectiva de compromissos e desempenho. O corolário deste último princípio é o princípiode não-discriminação. Trata-se de cada Estado não recusar a certos Estados os direitos ou vantagens que concedeua outros Estados. É um princípio de aplicação tendencional, que tem em_contaas circunstâncias. Assim, no tratado do GATT, que estabeleceu um regime geral de comércio e tarifas, a construção do sistema assentou na abri- q~'ª. {to 171 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS gação que cada Estado assumia de reservar um tratamento similar para tod Os . _ .. os Edsta os com os quais entra em re 1açoes comerciais. Acontece que este princípio, não tendo em conta a condição real dos Est dos, levaria a consequências perversas e não queridas. É por isso que nas ret' ções entre países industrializados e países em vias de desenvolvimento est:· últimos preferem o que se chama uma dualidadede normas:afastam o princíp· s . ~ da não-discriminação nas relações entre os dois grupos ?e Estados, e aplicatn. -no no interior do grupo dos países em desenvolvimento. E o que acontece desd 1968, quando a CNUCED (Conferência das Nações Unidas sobre o Corné: cio e o Desenvolvimento) estabeleceu um sistemageneralizadodepreferência s. A Declaração de 1 de Maio de 1974 (instauração de uma nova ordem econórnica internacional) reclama para os países do Terceiro Mundo um "tratamento pre. ferencial e sem reciprocidade". II - Princípioda independência Este princípio foi-se tornando complexo com a evolução da conjuntura: trata-se do direito de cada povo a dispor de si próprio; do direito, proclamado pelos antigos colonizados, da soberania permanente sobre os recursos naturais; e do princípio da não-intervenção de terceiros na vida interna de cada Estado. Comecemos pelo último. foi afirmada no artigo 15 S 8 do Pacto da Sociedade das A não-intervenção Nações, e no artigo 2 S 7 da Carta da ONU. Mas é frequentemente violada. Na Guerra Civil de Espanha, entre 1936 e 1939, a SdN viu-se obrigada a invocar repetidamente o princípio sem conseguir evitar que as potências que se defrontariam na guerra de 1939-1945 interviessem respectivamente a favor dos nacionalistas revoltados, e dos republicanos que detinham o governo legítimo. Depois da guerra as grandes potências intervieram frequentemente na vida interna de outros países, mas as pequenas e médias potências também o fazem, como acontece diariamente no Médio Oriente. Discute-se se o princípio é válido quando se trata de uma intervençãohumanitária,por exemplo para proteger os próprios nacionais, como fez a França no Zaire em 1978; como fez Israel em 1976 quando libertou em Entebe (Uganda) os passageiros de um avião que fora desviado; como tentaram, sem êxito, os EUA em 1980, quando quiseram libertar os seus diplomatas sequestrados no Irão. Em 1989, os EUA invadiram o Panamá, com a operação que chamaram justa causa,para prenderem o Gene· ral Noriega, antigo Presidente da República e Comandante-em-Chefe do Exér· cito, porque este era acusado de utilizar o aparelho de Estado para canalizar o comércio de drogas para os EUA, e o princípio também foi invocado. As reac· ções da comunidade internacional são contraditórias, e o drama da dissolução da Jugoslávia, ou a tragédia do Ruanda (1994), estão a servir de dinamizadores 172 INTRODUÇÃO _ do direito e obrigação da intervenção humanitária da própria forrnuladǪ?ternacional, até agora usando a legitimidade que vai reconheuni·da e tn vosà autodeterminação, que não vinha no Pacto da SdN, está hoje nd0 à ~NdUs.po O d're1to • • I O a Cart a da ONU, sendo uma das medidas destmadas a favorecer a presso n de garantir aos povos a opção pela independência, e a sua proclaA Resolução z. frata -seefoi a outra face da proclamação contra o colonialismo. 1 ~w~ . snaçaXV)de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia Geral da ONU, chama-se 158 • Depois, J514( _ sobrea outorgada independência aospaísese aospovoscoloniais IJtcfar:~ºaResolução 2625 (XXV), que foi chamada Declaração sobreosprincípios em~9 . '-nternaci onalrelativosàs relaçõesinternacionaise à cooperação e11tre Estados, 4od1re1to' . , . volveuo pn nc1p10. desen Iicação do princípio defrontou-se sempre com grandes dificuldades. Foi efectivo em todos os territórios submetidos ao poder colonial dos Estacorn;uropeus. Não foi aplicado a nenhum território sob a soberania da URSS dosdosEUA.Também não foi considerado aplicável aos países integrados num :ado nascido da descolonização, porque os países do Terceiro Mundo todos susntamO carácter definitivo das suas fronteiras. Foi o caso do Biafra integrado na teigéria.É a regra proclamada pela OUA (Organização de Unidade Africana) 159• A soberania permanentesobreosrecursosnaturaisfoi objecto do estudo de uma Comissãoda ONU criada em 1958, objecto de várias resoluções, e finalmente explicitadana Declaração de 14 de Dezembro de 1962. Então foi estabelecido queos investimentos estrangeiros deviam ser garantidos, e que, no caso de expropriação,sempre por motivos de utilidade pública, devia ser dada uma indemnização.Todavia, depois de 1974, a reivindicação de uma novaordemeconómica tem levado a maior radicalismo dos Estados que foram colónias, os internacional quaisreivindicam o direito absoluto da expropriação dos estrangeiros sem obrigaçãode indemnizar. O acordo internacional sobre este ponto não existe 160 • O europeísmo, que deixou este legado em vigor no mundo, primeiro dividiu-se internamente com os desviacionismos que foram o americanismo e o sovietismo, e depois sofreu um processo de recuo determinado pelas guerras mundiais, de modoque as soberanias europeias regressaram todas à plataforma originária, tal como as legiões romanas um dia regressaram a Roma 161• AÂo Guilhaudis, Le droitdespeuplesà disposerd'eux-mêmes,Grenoble, 1976 . . H. Thierr y, Droit internationalpublic,Montchrestian, 1981, p . 473. Fawcett, lnterventionin InternallonalLall',RCADI, 1961, II , ol., pp. 342-421. Fisher, La souverainctésur les ressourm 11aturelles, AFD, 1962, pp.517 528. <}a ;: ln LegadoPolíticodo Ocidente, cit ., Celso de Albuquerque, Autodeterminação,p. 265. d Verevoluç:ioem A. Moreira, A EuropacmFormação,3' ed., Lisboa, 1987; Adriano Moreira, Oshorizontes ª Europa,in Verbo, vol. 23, 1994, p . 305. 173 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS . Desde então, o europeís~o_passou, progre~sivamente, a de.sig?ar out ro Pro. iecto. Este assenta na conv1cçao de que os pa1ses europeus tem mteress es _ interdependentes e modelos culturais dominantes tão comuns, que nenhutao acção política pode ter êxito sem uma integração que acabe com as frequ:ª tes guerras civis do passado. O ideal da Nação-Estadodeve ser superad o Pe~criação de instituições legais, políticas e económicas comuns. A organ iza _ª dinamizadora deste novo ideal tem sido a Comunidade Económica Eurotº (CEE), hoje União Europeia, que foi instituída pelo Tratado de Roma de 25~: Março de 1957. Baseada embora no projecto inicial de um mercadocomum,tem evoluído sentido de assumir uma unidadepolíticaainda sem projecto ~armai bem de~~ 1 nido, um objectivo tornado inevitável pelo chamado Acto Unicoassinado n Luxemburgo em 1986, e assumido finalmente pelo Tratadode Maastricht do ' e 1992. O movimento tende para fazer desaparecer as condições que animarall! os conflitos internos do passado, para unificar a sociedade civil euro peia, e para estabelecer finalmente um poder político supranacional. Este movimento europeísta de novo sinal exerceu uma forte atracção e influência no Leste europeu submetido ao regime dos satélites, e o projecto da casacomumeuropeia, também de contornos mal definidos, exprimiu esse ideal de uma união final dos países europeus desde o Atlântico aos Urales. A herança do Ocident e dos Estados implica um conflito não superado entre um proclamado patrio tismo europeu, sem passado, e um passado histórico vinculado ao patriotism o dos vários povos europeus. fL P' e< co R -1 o, o a< A a! e< CI di a1 e nl re 4. Desenvolvimento da perspectiva neutralista A Carta da ONU também inclui, com definição dispersa pelos seus capítulos,e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, um modelodedesenvolvimento político.Trata-se da concepção democrática do Estado, que foi parte essencialda m ideologia da Aliança que ganhou a guerra, à qual a tradição americana, inglesa e francesa deram a contribuição mais significativa 162 • A Carta, no artigo 73b), tÍ' impunha à potência administrante o dever de ajudar os povos dos territórios -r não autónomos a conseguir "um desenvolvimento progressivo das suas livres o instituições políticas". n: Todavia, alguns factos talvez indutáveis, porque com os factos não se dis· cute, impuseram com excessiva frequência trajectos históricos não concor· dantes com a previsão da Carta. Em primeiro lugar, afronteira, mais naquelas regiões do que agora se doutrina para as antigas metrópoles, é um elemento 1•! Adriano Moreira, PolíticaInternacional,Porto, 1970, p. 289 e sgts., sobre os "sistemas políticos da conjuntura". 174 19 INTRODUÇÃO enta l do Estado, e ali foram traçadas pelo acordo dos antigos colofundªtn s sem ter em conta as realidades históricas, culturais e étnicas das . adore , . • . . ntZ ões. Por isso, a referencia que se tornou dominante no processo des1 com o traçadodasfronteiras popu .ªç dor foi a de Jazercoincidiras independências lon1za , . co . . Assim a Indones1a, por exemplo, sempre declarou na ONU, antes da 1 cofont ª s.ãoPortuguesa de 1974, que não tinha reivindicações sobre Timor1 uçque agora ocupa e .d ec l,ara mt~gra . d o no ~eu ternt~no. . ' . D e.ste mo d .Re"º este, º: /ismoestadual neutraltstae expressaodopluralismoco/oma/anterior, e não e 0 Puranhecime nto de realidades institucionais resultantes ou equivalentes L/ 0 r~~~adonacional. Foi por esta razão que a OUA (Organização de Unidade ~~ricana),criada e~ ~ddis-Abeba em 25 de Maio de 1963, assentou em que fi onteirassãodefimttvas. as ~a herança colonial, além das fronteiras,teve lugar de destaque a línguado lonizador, que ficou como instrumento indispensável de comunicação geral c:rre os grupos integrados dentro das fronteiras, e assim ficou a África divi~idapor áreas que falam português, francês ou inglês, tal como no continente americano se implantara uma geografia do inglês, do francês, do castelhano e do portu guês . Quanto ao modelo de desenvolvimento político interno, talvez seja reconhecívelo facto de que a experiência históricacolonialfoi uma herança mais referenciada do que a propostaideológica da Carta da ONU. A tradição política dessas áreas, com diferenças essenciais entre cada um dos3A(Ásia - África -América Latina) não tem paradigmas históricos coincidentescom os ocidentais 163• O salto imposto da sua realidade histórico-cultural paraa moderni dade ocidental , que a Carta consigna, tem como referência existencialo própri o modelo colonial de exercício do poder político. E tal modelo, qualquerque fosse a soberania imperial , não respondia ao constitucionalismo das democracias estabilizadas da frente marítima europeia que detinham as maioressupremacias coloniais. A Inglater ra, a França, a Holanda, a Bélgica, Portugal, em toda a parte mantiverama concentração de poderes, regressaram com os governadores e vice·reisao funcionário do legitimismo anterior às revoluções liberais, substituíram o princípio da lei igual para todos pelos estatutos diferenciados, distinguiram, nas declarações de direitos, os direitos essenciais dos direitos instrumentais queos condic ionam, admitiram mas tutelaram os direitos políticos apenas em relaçãoàs comu nidades tradicionais. 163 Balandier, Sociologie actuellede l'AfriqueNoire, Paris, 1955; Balandier(e outros) /e TiersMonde, Paris, 1956. 175 T ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A luta, algumas vezes pacífica mas frequentemente armada, pela independê eia, mostrou objectivamente que os movimentos queriam, com ela, obter ta 11• bém e exactamente o poder integral, concreto e sofrido, que se lhe opunha lllA lei da homologiafuncionou, amparada na sua aplicação pela larga ade~ideológica à proposta marxista do partido e do Estado, na qual o centra/isª0 ' · fi01· sempre um e1emento estrutura 1. ll!o democratico Em países onde a imagem democrática foi mais preservada, como no Seneg 1 na Costa do Marfim, os presidentes Senghor e Houphouet-Boigny foram che~' vitalícios, exactamente como aconteceu em toda a parte onde o centralisrn s democrático foi invocado. Apersonalidade dolíder,o cultodapersonalidade, o partido 0 único,o partido-sistema,o tribalismo,mantiveram-se em proporções diversas lll raras vezes terão deix~do de impor_os seus reflexos na realidade política, qu: se trate do Norte de Africa ou da Africa negra, do antigo Império das Índiar s ou da Asia, com excepções muito contadas. Neste desabar da velha Ordem elll que nos encontramos, uma das questões essenciais, sem resposta coerent e e viável conhecida, é a de saber como conciliar o exigido respeito mundial pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, esta sempre com leituras não-uniformes, com modelos políticos mais próximos das realidades culturais nativas, mas afastados da proposta da Carta da ONU. Algumas intervenções humanitárias ocidentais, tal como na Somália (1993), no Ruanda (1994), no Haiti (1994), viram-se frustradas talvez em parte pela falta de resposta para esta questão. Quando, em 1991, o Iraque foi confronta do com uma coligação de trinta e dois Estados, liderada pelos EUA, para retirar do Koweit que invadiu e anexou em 2 de Agosto de 1990, operação conhecida por Tempestade no Deserto, o Presidente Saddam Hussein, responsável por vários graves atentados contra a Ordem internacional, sobreviveu apoiado num consenso internacional, que não pediu, em favor do statu quo.Continuou implacável no esmagamento da oposição, na destruição dos chiitas do Sul e, de caminho, de bairros inteiros de Bassorah, de Kerbala e Nadjat, matando cinquenta mil pessoas e fazendo exilar sessenta mil, ao mesmo tempo que continuava com a repressão brutal dos curdos e mantinha o projecto de conseguir fabricar armas atómicas. Outros exemplos documentam esta situação de impotência da comu· nidade internacional para submeter o desenvolvimento político ao modelo ocidental recolhido pela lei internacional. A luta interna pelo poder usando a violência armada, depois da independência, foi uma prática repetida, designadamente no Líbano, na Somália, no Sri Lanka, no Cambodja, na Indonésia, na Libéria, no Irão, no Zaire, no Burundi, no Sudão , em Angola, em Moçambique. A legitimidaderevolucionáriasupera a legitimidade democrática, assim como a legitimidadeda vitóriadispensa outras consagrações. 176 INTRODUÇÃO rnamente, o princípio da legitimidade daguerradelibertação cobriu operaExte se inscrevem entre as maiores tragédias militares da história. Na noite -~que . ço de Junho de 1950, fortes contmgentes norte-coreanos atravessaram o 5 de 2 lo 38, linha em que se tinha fixado a fronteira dos ocidentais com os sovié1 ~araeNa suas Memórias, o General MacArthur, que comandava no pacífico, ricos. a· "Senti um calafrio. Nove anos antes, em 7 de Dezembro de 1941, tamin,for:~ingo, outra chamada anunciou-me o ataque japonês a Pearl Harbour, e bet11escutava de novo o som da guerra" 164• O tratado de paz seria assinado em ago;; Julho de 1953, mas de facto tratou-se apenas de um armistício ainda em 2 r e que manteve viva a questão da reunificação de ambas as Coreias. vig~~ Indochina, tornou-se lendário Ho Chi Minh, uma das personalidades is ricas de todo este período. Fracassada a negociação com a França para que m:a abandonasse voluntariamente o território, assumiu, com a cooperação do ~eneral Giap, uma das maiores revelações militares do século, a luta armada. Estaterminou para a França com o desastre de Dien Bien Phu, onde durante 55 diasos seus exércitos foram massacrados, capitulando em 7 de Maio de 1954. Terminou assim a guerra da Indochina, mas o mundo ainda havia de viver a guerra no mesmo território, então chamado de Vietname. Fora em 26 de Abril de1954que se iniciara a Conferência de Genebra e onde se tratou da divisão da Alemanha,da divisão da Coreia, e da divisão da Indochina. O General Giap compareceuem posição de superioridade, uma experiência nova para os ocidentais. A delegaçãofrancesa, chefiada pelo ilustre mas efémero Mende-France, concordou nadivisãodo ter ritório pelo paralelo 17,reconhecendo-se a República Democráticade Ho Chi Minh. Enquanto Foster Dulles, Secretário de Estado americano, consideravao colonialismo francês um obstáculo para a paz, e se congratulava porque"se tin ha obtido a independência do Cambodja, do Laos e do Vietname do Sul",os marxistas nacionalistas do Norte não escondiam o objectivo da unificação.Em 20 de Dezembro de 1960 foi anunciado que algures fora celebrado um Congresso para a formação de uma Frente Nacional para a Libertação do Sul,mais tarde conhecida por Vietcong,visto que congsignifica comunista. Em 1961começou a guerra civil no Vietname dirigida pelos comunistas, e o PresidenteKennedy resolveu cumprir a promessa de Eisenhower no sentido de que ajudaria "o Governo do Vietname a impedir a subversão e a agressão com todos os meios militares necessários". O envolvimento americano foi total, para sofrer a primeira derrota da sua história, crian do um complexo nacional nunca absorvido, incluindo a dúvida colectiva sobre a justiça da guerra e a justificação dos custos em vidas humanas, mutilações, dest ruição de bens e da natureza, derrocada dos valores morais. ? ,.. M acAnhur, Memories,N.Y., 1964. 177 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Pela segunda vez, um exército de guerrilheiros camponeses batia irremedi ave1. mente uma potência industrial colocada no topo do poder militar. Quando, em 27 de Janeiro de 1973, por iniciativa do Presidente Nixon, ft. ordenado o cessar-fogo, o balanço da guerra registava a perda de 56.000 GI n °• total de meio milhão de homens, uma despesa avaliada em 135 mil milhões'% dólares, uma desoladora experiência no uso das armas químicas, uma hu d~ lhação nacional, e nenhum problema resolvido. A incerteza do sentido da nI'lltOrdem, da qual pouco se pode prognosticar com segurança, o desenvolvirne~"a das perspectivas neutralista e terceiromundista, mais do que da americana to europeia, defrontam-se com um mundo onde se desvaneceu o adversário qou estava identificado pela colonização anterior e próxima, para buscar orientaç~e num ambiente do transitório, do instável, do equívoco. A democracia inscrito na Carta da ONU como modelo de desenvolvimento político é mais invocadª para fins de imagem do que como projecto em vias de execução. Assim coll.l ª o desamparo ideológico derivado do afundamento do sovietismo acelerou~ rumo em direcção ao populismo que salvaguarda a estrutura política da obrigação de assumir um debate político autêntico 165• O Prémio Nobel Wóle Soyinka, o primeiro escritor africano que, em 1986 obteve essa consagração, e que está rapidamente a ser traduzido em todo~ mundo, disse da Nigéria que esse país "é uma grande Nação aprisionada por um grupo de militares violentos e primitivos". E todavia, de acordo com a sua própria literatura, não é uma excepção. No livroAPlay ofGiants,submete ao ridículo, mas do ponto de vista dos critérios ocidentais que presidem ao uso, considerado excelente, que faz da língua inglesa, alguns dos mais típicos dirigentes africanos, como Idi Amin (Uganda), Bokassa (Rep. Centro-africana), Mobutu (Zaire), Nguema (Guiné). As suas histórias trágicas, como O homemmorreu,Aflorestadosmil demónios,ou o biográfico Aké, documentam a distância entre o ocidentalizado que ama a sua pátria, e o regresso do aparelho político às heranças tribalistas. O panorama é diferente nas áreas culturais da Ásia oriental, a partir da qual o maoísmo pretendeu unificar a zona dos 3A. Talvez mais exactamente nos países do Budismo, do Confucionismo e do Taoísmo, onde, no dizer de Edward N. Luttwak, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington, "a educação é a verdadeira religião que recebe a devoção que os monoteístas reservam para a sua fé" 166 • "''J. M. Robercs, Historyofthc World,N.Y., 1987, p. 935 e sgts., sobre a marcha da revolução asiática. Paul Johnson, UneHistoircdu 111011dc modcme,Paris, 1985, II vol., p. 47 e sgts., sobre a geraçãode Ba11dung. "''' Edward N. Lumvak, I 11uo1•i protagonisti,in Ulisse 2000, Outubro, 1994. Kissingcr, Mis Memorias, Madrid, 1979, p. 169 e sgts., sobre "a agonia do Vietname". David Me Cullough, Truma11, N.Y., 199Z, p. 821 e sgts., sobre a crise MacArthur. 178 INTRODUÇÃO . de um lugar foi possível verificar que o desenvolvimento políticoe o (llalS J3!ll . ntoeconómico, de acordo com os padrões da ONU, se deram paralejt5t111'º/vime ue noutros casos, o desenvolvimento económico foi possível com e q ' autontanos. · ' · O processo que, const"deran d o espec1'fi1caa recunte, e Jant _ )íticos padro~s~~ Japão, transforma a Coreia, Singapura, Taiwan, Tailândia, e União peraçao mbém alastrou à China e à Indonésia. O mecanismo dos chamados - · orienta · l co 1oca perguntas d e resposta d"f' ·1aos oc1· Jndiana,taonómicosda Asta 1 1c1 ·/adres ec , . d 1 111 'b • ue abandonaram o poder poltt1co, e estao em processo de per a de . e parttcu . 1armente a Europa, vao - ab nr. os dentais q ia· saber se os oc1"dentats, ege!llon . h" . d" . h readas à expansao c mesa e m 1ana, como aconteceu com a Japonesa, ~~ . ~. arávelda questão do desemprego crescente; depots, se o processo absore1nsep · · •rnensidão da Ch"ma e d a 1·n d"1a,e' mqmetante prever o que acontecera ' ao ver:i:nre global, quando dois biliões de chineses e indianos participarem no am urno dos poluentes. A iminência dos conflitos de interesses, ou do agraconsento dos existentes, . e d a mu d ança d e prospect1va . d e socze. e, um d os 1actores vam . . l. dade internacio nal para a d e comum"dade znternaczona s.Desenvolvimento internacionalista Nadécada de sessenta houve uma espécie de revisão da tradição liberal dos séculos XVIII e XIX,ao mesmo tempo tributária do utilitarismo anglo-saxónico e do utopismo. Tratou-se geralmente de pôr em evidência que o paradigma do Estadoagente das relações internacionais em função dos seus interesses permanentes, como por exemplo entendia o citado Hans Morgenthau, não correspondia à estrutura nova das relações internacionais, que tinham ultrapassado 0 estarismo para fazerem avançar a intervenção das empresas multinacionais e transnacionais, dos indivíduos, dos poderes erráticos, das Igrejas, das organizações internacionais não-estaduais como as internacionais políticas, ou profissionais, ou culturais, ou científicas. Falou-se então de transnacionalismo, significando que a sociedade internacional não é apenas internacional, tem interesses que excedem tal formato; não é a simples expressão da coexistênciados Estados, é também o conjunto das relações estabelecidas entre organizações e homens a despeito das barreiras estaduais. O jurista Philip Jessup foi um dos conhecidos teorizadores, mas juntam-se nomes como os de Robert 0 'Keohane e Joseph Nye, ou Arnold Wolfers e Wilfred Jenks 167• Jessup. Tra11s11atio11al Law,1956 . Arnold Wolfers, The actorsi11ivorldpolitics,Discordand Col/aboration, Beldinorcs, 1962. Wilfred Jenks, E/ dercc/10 comú11 dela Huma11idad, Madrid , 1968 , e bibliografia citada . Politics:Essay011thcco11verge11ce ofNationalandInternationalSystem,N.Y., 1969. E. JamesRo~cnau, Li11kage Morse,Modcmizationand the transformationof intemationalrelations,N.Y., 1976 . K. Deutsh e D. Singer , Multipolar PowcrSystcmand b,temational stability,WorldPolitics,XVI, 1964. i., 179 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A época em que os Estados monopolizaram as relações clássicas da dipl macia, da paz e da guerra, terá desaparecido porque os Estados perdera lllo. monopólio das relações exteriores. Na linguagem de Nye e O'Keohane, trat a. º 8 de substituir um modelo de statecentricparadigm,por um modelo de world ticsparadigmem que o uso da força, ou ameaça dela, já não será o facto esse~. eia! das relações internacionais, mas sim o fenómeno de bargainingou troe entre uma pluralidade de agentes, nem todos estaduais. Um Estado, sem Pes; na balança estratégica dos poderes militares, desempenha eventualmente um papel essencial pela sua capacidade financeira ou intervenção ideológica, colllo acontece respectivamente com a Suíça e Cuba. Esta perspectiva internaci ona. lista ou transnacionalist~ inspirou corre~tes ~cadémicas i~p?r~antes, desig. nadamente a cada vez mais presente teona da mterdependenc1a mternaci onaJ de Cooper, Morse e Bergsten, e a teoria da informação de Karl Deutsch. Esta perspectiva não deixou de enfrentar a resistência da escola clássica designadamente de Kenneth Waltz, quando doutrinou sobre o mito da inter~ dependência, sustentando que o fenómeno transnacional não apaga o facto dominante de que o Estado, monopolizador do jogo diplomático e estratég ico, continua a ser o agente principal das relações internacionais. Trata-se portanto, essencialmente, de um conflito de perspectivas sociológicas sobre a função real do Estado: para os clássicos, o Estado é o agente das intervenções determinantes, causais, das relações internacionais, gerind o as relações dos poderes soberanos e o risco da guerra; para os transnacionalis tas ou internacionalistas, o sistema da interdependência mundial crescente relativizou o papel do Estado porque os indivíduos e as organizações não-estatais influenciam a conduta dos Estados e geram um modelo que é sobretudo de interdependência, trocas e serviços. No espaço europeu, foi Marcel Merle quem melhor assumiu esta posição, sustentando que o Estado é muito frequentemente uma simples máscara que não deixa ver a real acção dos actores supostos secundários e que o poder político não controla. Adaptando a metodologia sistémica, afirma a existência de um sistema internacional cujo elemento mais importante são as forças transnacionais. Parece existir muito de verdade na perspectiva transnacional, a qual começa já a ter concretização no aparecimento de modelos políticos de grandes espaços, que procuram suprir a insuficiência do Estado para responderem ao fenómeno da interdependência. As doutrinas de Vitoria e Suárez, o conceito de comunidade mundial, a realidade de um património comum da Humanidade, estão na linha de pensamento agora renascida com o nome de internacionalismo ou transnacionalismo, mas para enfrentar a novidade do globalismo, que excede pa/ 180 INTRODUÇÃO ão internacionalista, porque mais uma vez o facto da mudança poliapercep~e em velocidade a resposta cultural. ·ca exce ti da Guerra Fria: contingência e Ordem 6 6,O °:e endentes revoluções de 1989 puseram todos os Estados do planeta P..5 surpea evidência de que a única coisa certa, a respeito da Nova Ordem mun. sem que os ana 1· . . d e previsao, . - os serperant . é ue ruiu a antiga, 1stas, os mstitutos d!al, ;t aduais, ou os governos, tivessem pressentido aquilo por que lutavam v,çose . . , 1 'dente havia me10 secu o. o OCI n Ao redor da Terra, o florescimento dos desafios que eram relegados para umbra pelo conflito central da Guerra Fria não anuncia sempre a espea pen de que a paz para os nossos dias seja necessariamente o ponto ómega do rança ocesso em curso. pr Para além da renovação chinesa, da queda do Muro, da revolução romena, da invasãodo Koweit, da Tempestade no Deserto, do golpe de Estado na URSS, ontos críticos que concentraram a informação e as inquietações dos povos, ~ fogo lento e persistente das ameaças menores continuou alimentado com explosõesameaçadoras. Devem mencionar-se algumas crises !nternas, internacionalmente relevantes, como a liquidação do apartheidna Africa do Sul, o estado de sítio na Argélia, a desordem na Argentina, o desastre sempre anunciadoda administração no Brasil, a crise federalista no Canadá, a agonia teimosaem Cuba, a instabilidade na União Indiana, o alerta para a paz em Israel, a incerteza em Marrocos, os limites de sobrevivência em África, a desorientaçãona Polónia, a tragédia da Bósnia, o massacre no Ruanda. Talveza percepção mais realista, e resguardada dos excessos inevitáveis da competição pelo domínio da informação e das imagens com peso no ambiente decisório,seja a que reconhece nesta longa teoria de conflitos menores a teia, queo conflito bipolar ou estimulava ou continha, mas cuja expansão em grande medida controlava . A primeira evidência que emergiu no novo quadro resultante da implosão soviética foi a da urgência de um plano de contingência,que não existia, para a súbitatransformação da estrutura mundial. Mudança carregada de pormenores de uma nova justiça internacional, mas privada dos termos de referência respeitantes à identificação e hierarquia dos poderes políticos. No processo em curso talvez seja portanto útil distinguir o plano de contingênciado projectoda Nova Ordem,no sentido de racionalizar com alguma credibilidade a questão dos EUA como única superpotência em exercício, 0 convívio das grandes e médias potências em face de desafios graves, o encontro de todas as perspectivas com o mesmo desafio da comunidade mundial. 181 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS De facto, a primeira importante decisão dos EUA, depois de a URSS t arreado a bandeira em cima do Muro de Berlim, foi a de acrescentar, à lict er rança da defesa ocidental, a responsabilidade de preencher o vazio estratégi~ mundial. Admitindo que a revisão da logística do império que os factos impusera aos soviéticos tem equivalente nas circunstâncias especificamente americ: nas, todavia foi contida a tentação isolacionista em favor do envolvimento no processo da inesperada mudança, responsabilizando-se pela elaboração e exe. cução de um plano de contingência. Até à cimeira da NATO, realizada em Londres em 6 de Junho de 1990 n ' a qual a URSS deixou de ser considerada o inimigo e foi proclamada a necessidade de um novo atlantismo", os EUAasseguraram uma liderança que permitiu o acordo final entre Moscovo e Bona, e imprimiu a confiança que lhes consentiu organizar e executar, com legitimidade adquirida no Conselho de Segurança, a intervenção contra o Iraque agressor. Não faltam comentários no sentido de concluir que destes factos decorre o projecto de uma Nova Ordem mundial traduzida numa Pax Americana, herdeira nacional do extinto condomínio bipolar. Algumas expressões, fundadamente eufóricas, do Presidente Bush, que não sabia que ia perder a reeleição, são invocadas para abonar o entendimento, designadamente da União Europeia, da declaração feita no Congresso, em 11 de Setembro de 1990, no sentido de que a crise "oferecia uma rara oportunidade de avanço para uma Nova Ordem mundial". É difícil aceitar, sem grandes dúvidas, a razoabilidade deste conceito que leva directamente à identificação da função americana como sendo a de gendarmemundial,uma anotação que, em vários lugares, tende para enriquecer o antiamericanismo. Ao contrário, a análise das correntes do pensamento que animou o debate interno americano, a ponderação do quadro de diligências em que se empenham como medianeiros e não como directores, as propostas apresentadas aos aliados e concorrentes, designadamente a União Europeia e o Japão, tudo parece apontar para a distinção entre o plano de contingência em que estão comprometidos e a Nova Ordem da qual se distinguem apenas anúncios de algumas linhas de força. A resposta americana para a inesperada contingência do arrear da bandeira soviética não se confunde com a reorganização mundial em que entende participar, e pelo que toca a esta é que assumem importância primordial as correntes de opinião interna que podem alterar a política pela alteração da vontade do eleitorado. 182 INTRODUÇÃO a do declínio, assumida por Paul Kennedy no já famoso The rise " iftheGreatPoivers,aponta para a concentração nos problemas internos, O andfall der que os EUA sofrem de imperialoverstretche não podem continuar r enten - 16s p0 rtar a tensao . asuPº. confiantes no poder americano, advogaram alguns o unilateralismo, Mais ântica do iso · lac10msmo, · · · A menca · fizrst,second and com uso d o conceito ovasem · d n· d" · fc • 11• • entendem que a maior parte os con 1tos mun iais nao a ectam o mteth1rd·mericano, e que, quando o afrontam, os Estados Unidos não necessiressedaaliados, têm capacidade de agir unilateralmente, tudo de acordo com ta!Il e lho conselho no sentido de que "quando a Guerra Fria acabar, a Améo seu ve " . devevoltar para casa . ric~este caso trata-se de um unilateralismo que não tem qualquer correspondên. om O conceito e função de Estadogendarme,e tem muito que ver, para bem onderação dos interesses permanentes, com a lembrança de atitudes de ªc~sacomo a de Espanha ou da Grécia, a partir da necessidade das bases, em rerna com O antiamericanismo europeu que pesa na vontade dos eleitores. MuiSll ' . ' d o u ltrapassa d o merca d o comum, ospoderão tamb'em mvocar o europeismo ~ojeUnião Europeia, que daria aos americanos a justificação de já terem realizadoO objectivo de fazer recuar o sovietismo e ajudar a reabilitar a Europa. Tudo ponderado, nesta data parece dever concluir-se que os EUA, que não podemevitar serem a única superpotência sobrevivente, recusarão o papel de gendarme na futura Nova Ordem, mas não dispensarão as alianças exigidas pela interdependên cia mundial e por alguns objectivos que integram o seu interessenacional. O unilateralismo não parece compatível com a democracia globalque alguns identificam como propósito nacional estratégico da procurada paz. O predomínio mund ial americano será, nessa linha, o da generalização do ideal da democracia liberal, dos Direitos do Homem e da economia de mercado, temas do famoso livro de Francis Fukuyama, TheEnd ofHistoryand theLast Man. Mas a reali zação deste objectivo, longe de ser prosseguido na função de Estado director, usando em relação ao mundo o bigstickcom que historicamente ameaça o continente americano, levou a definir uma política de intervenção baseada no valor reconhecido da interdependência, o que implica admitir a permanência do interesse americano na Europa, na manutenção do Tratado do Atlântico, na defesa de um pilar europeu, no reconhecimento de uma responsabilidade a estender às questões out of area. Ao contrário da ambição dagendarmerie,parece crescer a vontade de racionalizar a contribuiç ão autónoma dos aliados, o interesse de partilhar o fardo ,\ fi1osofi te 168 Pau1Kennedy, The riseandfali ofthe GreatPowers,Londres, 1988. 183 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS da ordem e da segurança, sem naturalmente renunciar à proeminência Poli . que decorre do facto da hierarquia do poder das potências. tica O desaparecimento da ameaça soviética também implicou que o pana ra internacional dos conflitos exibisse um novo perfil, porque os desafios co lll_a dos pela ordem militar do bipolarismo ganham dinamismos imprevistos nt,. . . a ser a N ova O rd em. que exigem respostas d aqui'l o que vier Em primeiro lugar, a implosão do império soviético obriga a prepar ar quadros de acolhimento do regresso da Rússia à categoria de Estado cornoos outros, com debilidades preocupantes, e ameaças decorrentes dos separat~s 1s. mos em cadeia. Os equilíbrios internacionais do novo século são imprevisíveis, porqu na sequência da política de Gorbatchov, que deu uma imagem confiável ae, programa de transição, o preço da mudança inclui o renascimento da Europ~ Central, com a libertação dos Estados satélites, a reunificação da Alemanha,a desintegração do COMECON e do Pacto de Varsóvia, o afastamento dos anti. gos aliados, a perda do estatuto político de superpotência tornada evidente pela crise do Golfo; o conflito entre a Arménia e o Azerbeijão, os georgianos e os assetas, os quirguizes e os uzbeques, os moldavos e os gagauzes, demonst ralll que o poder interno não mantém a eficácia, que é discutível a alegada manutenção do controlo dos arsenais militares, e que o próprio inverno pode serulll adversário para o qual aquilo que resta do Estado não tem resposta. Substituir a finda ordem dos Pactos Militares, em derrocada desde 1989,é uma das exigências às quais tem de responder a Nova Ordem, que não pode ser indefinidamente substituída pelo plano de contingência em que vivemos, nem parece susceptível de submissão a um modelo de gendarmerieamericano. Esta chegada à vida internacional de novos intervenientes, cuja experiência do exercício de soberania foi interrompido por variáveis mas sempre longos períodos, fez com que a explosão dos nacionalismos, ou das reivindicações de identidade, acentue uma linha de divergência que parece o oposto do caminho para os grandes espaços, para os internacionalismos institucionalizados, para uma nova definição moderadora do Estado e da soberania. Todavia, esta tendência, por vezes com rompimento da paz, corresponde por outro lado a um possível alargamento da vigência do direito internacional, porque se trata de restituir a voz aos povosmudosdo mundoque a velha Ordem submetia. Não obstante ir a caminho das duas centenas o número de Estados reconhecidos pela Ordem internacional em revisão, foi fundada na Haia, em 11de Fevereiro de 1991, urna associação chamada Unrepresented Nations and Peo· pies Organization (UNPO), que reclama a representação de 50 milhões de pes· soas distribuídas por vinte e seis nações sem voz internacional. 184 INTRODUÇÃO . . .ativa apoia-se nas diásporas desses povos, designadamente arménios, Aintc~orígenes da Austrália, papuas, emigrantes de Taiwan, do Turquestão, ,ur~º~'ªda Crimeia, das Malucas, do Tibete, de Zanzibar, do Ruanda. daS•~ª' bstant e o princípio da autodeterminação inscrito na Carta da ONU, Na?ºentos como o que foi iniciado pela famosa Conferência de Bandung e rno~; essas nações pertencem ao passivo da velha Ordem, e Timor, agredido de19 donésia que albergou a referida e histórica conferência, é a última e uma pelaln is sangrentas manifestações dos conformismos que levaram as potências dasmasáveis pela Carta da ONU a tratar vários povos como povosdispensáveis. resr:es mobilização do conflito bipolar coloca os arquitectos da Nova Ordem estação perante a necessidade de liquidar esse processo que adquiriu voz e~~ fendas do sistema em desagregação, assim como perante a urgência de ªinar as guerrasporprocuração que pontuaram a fronteira das passadas áreas ~;:fluênci a dos blocos: Angola e Moçambique inscrevem-se nesse rosário de . srrumentalização dos povos, mas o ponto crítico, que permite ter a noção da :edida da guerra que estava em curso, foi avaliado por inteiro na Conferênciade Madrid (1991) em que, pela primeira vez, e por gestão dos EUA, árabes e israelitasiniciaram o diálogo que recusavam havia décadas, com intervenção de sírios, libaneses, jordanos, palestinos e russos. Além da questão da terra própria e da paz entre os dois povos, trata-se de eliminaro foco do qual decorrem nacionalismos irredutíveis e fundamentalismosreligiosos armados, o choque petrolífero, o alastramento do uso das técnicasterroristas, a desenfreada e perigosa corrida armamentista. Um dos aspectos mais graves do conflito do Golfo foi justamente a evidênciade que os ocidentais lutavam contra um adversário que apenas eles próprios armaram,a caminho de poder fazer a guerra química, biológica e nuclear, só porque a mão invisível da teologia do mercado pudera agir à margem das cautelasgovernativas, das limitações legais, e da esquecida ética. Por toda a América do Sul, como escrevia recentemente o Senador Anselmo Sule,"o gasto em armas chegou a cifras insuportáveis por países com tantas carências,mas manteve-se até ao momento em que os governos centro-americanos,na culminação de um processo iniciado com as gestões pacificadoras do Grupo de Contadora, que evitou a guerra, concretizaram acordos de paz que baixaramo perfil da área e tornaram possível a continuidade de governos eleitos por sufrágio popular". A tensão permanente entre democracia, exigências sociaise militarização, precisa de ser substituída por uma relação equilibrada entre democracia, justiça social e integração. Um dos principais receios, do qual assumiu voz a Conferência Permanente de Partidos Políticos da América Latina(COPPAL),é o de que o extinto bipolarismo seja substituído pela hegemoniade uma só potência. Pt 185 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS No caso do direito internacional poder ser considerado como uma referên, eia normativa de vigência resistente à mudança da ordem política, poderíalllo encontrar até princípios gerais para antecipar as novas concretizações dos sis~ temas e da balança de poderes. Mas o direito internacional é um instrumento da política, cujo sentido e eficácia variam antes em função do equilíbrio de poderes alcançado. Em 1982, depois da invasão do Sul do Líbano por Israel, o Conselho de Segurança adoptou 16 resoluções e nenhuma foi observada, não obstante sereill obrigatórias. Mas na questão do Koweit, os mecanismos da paz, previstos desde 1945 pela Carta da ONU, foram utilizados com rigor e celeridade. E não foi necessário instituir o Comité de Estado-Maior da Organização que deveria assumir a direcção estratégica. As tropas foram sem discussão colocadas sob comando americano e a Tempestade do Deserto foi um triunfo nacional, e não internacional. ' Ficou porém claro que o princípiode não-ingerêncianos negóciosinternosdos Estadosestáassediado por várioslados,e que, por exemplo, as intervenções humanitárias não são condenadas quando visam socorrer os sofrimentos dos povos e dos homens. A questão é a de chegar a uma definição que impeça os excessos de ordem política. A balança de poderes que se desenha, com rejeição do modelo de Estado gendarme,e tendo em conta os protagonismos em exercício nos conflitos surgidos desde 1989, aponta para poderes emergentes em várias áreas, mas 0 essencial da questão tudo encaminha para o situar por agora num espaço euro-atlântico. No exercício do plano de contingência, os EUA viraram-se sempre para os que, em todo aliados europeus, procurando eventualmente manter o leadership o caso, não provocara grandes sobressaltos de gestão política, ou na cadeia de comando, em cerca de meio século de aliança no Tratado do Atlântico, e com o resultado histórico de a organização ter mantido a paz nessas dezenas de anos, e concorrido em primeira linha para a implosão do adversário. É inegável que a NATO tem assegurado a primazia dos EUA no mundo atlântico, mas não se trata de um Estado director proteger os outros: trata-se de a aliança ter protegido todos. O súbito alargamento da Europa ao espaço que vai até aos Urales, com o desaparecimento da ameaça soviética, talvez devesse colocar em primeiro plano a questão da segurança da Europa toda, agora reencontrada, uma questão enfrentada no âmbito da OSCE e proclamada prioritariamente naActa da Conferên· eia de Helsínquia de 1 de Agosto de 1975. Acontece porém que, ao mesmo tempo que a OSCE vai criando mecanismos que exigirão os habituais anos de rodagem, no espaço euro-atlântico que era 186 INTRODUÇÃO la linha Oder-Neisse crescem as iniciativas e tendências em favor 1iJt1Ítad~'dpefesa europeia", as quais, na sua forma mais extremista, tratam os ma e , 1. deu . nos como povo d"1spensave Jllerica. como a proposta americana de 18 de Junho de 1991 pretende esten Eassim idade euro-at 1· · d e Vancouver a VIad"1vostoque, a iniciativa . . . . ant1ca comu n derª 1 mã de Dezembro de 1990 e Fevereiro de 1991, em favor de uma defesa ",ranco-a , . europeu, nao - apenas . ede facto aponta para um novo po, 1o estrategico europeia.pilar europeu de defesa, encarado este originariamente como uma urn . - d Para . uitativa repartiçao e encargos. rnaise~ a Nova Ordem manterá o seu pilar fundamental no espaço euro-atlân. Quque a história, a dignidade dos povos e o interesse maior de todos, não uco, :padece com unilateralismos, parece nesta data resultar da conjuntura. secoé difícil aceitar · que expenencias ·• · curtas, apenas vivi · "das d es d e 1989 , pos,Masfornecer a lição de que é necessário substituir o património criado em e sam . . "d os em comum, por uma m . d epen d.encia. d e1en. quenta anos d e nscos vivi :;: a respeito da qual ninguém forneceu ainda a tabela dos riscos e das ameaçasa enfrentar. A questão do Golfo não se define como um argumento bem construído, porque ela foi entendida como uma agressão à segurança mundial, não à segurança dos países geograficamente mais próximos. Por isso a legitimidade foi encontrada no Conselho de Segurança, a liderança nãoteve a necessidade de formalização em tratados, e os europeus participantes nãose encontraram depois entre os críticos que também podiam ter assumido os riscos e agora lamentam que a Europa estivesse ausente. A fala tem mais o aspecto de discurso eleitoral destinado a capturar consentimentos, do que de discurso de governo destinado a gerir interesses fundamentais. Por outro lado, o facto de se tratar de uma agressão à segurança global também não configura o acontecimento como justificativo da necessidade de uma força independente para projectar o poder europeu em qualquer parte do mundo. A Europ a não esteve no Golfo, nem estava habilitada a projectar autonomamente o pod er fora da sua área, porque a Europa desse discurso não existia: existia a Europa da NATO, da UEO, da CSCE, da EFTA, da CEE, em busca de uma unida de política que não tem ainda modelo, mas cujo preferível modelo não é talvez o do império, ou da superpotência, ou do complexo militar-industrial do qual se lamentavam as lideranças nos dois lados da desaparecida cortina de ferro. Temos uma Nova Ordem a construir, não temos um património para arrasar; temos instituições para redefinir, não temos um deserto para urbanizar.Também aqui é oportuno recordar a humildade do sábio: se pude ver mais longe, é porque trepei aos ombros de gigantes. 187 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Todos os países, independentemente da sua posição na hierarquia dos Pod res estaduais, serão envolvidos pela teia da Nova Ordem em formação, porq e. o mundialismo é a consequência da interdependência comandada pelas revlle luções globais, especificamente a da informação, a da ciência e tecnolo giao. , . ,a d o merca d o, a d os teatros estrateg1cos. A capacidade de gerir esse mundialismo, ao qual não corresponde a velh invenção do Estado soberano organizado para voos mais limitados, é a maioª exigência da interpelação de Morin para que consigamos definir a manei ra dr , e entrar no seculo :XXl169 . A interpelação envolve, muito concretamente, a decisão de aderir aos gran. des espaços que, tantas vezes sem nome, organizam a resposta que supera as insuficiências das soberanias clássicas, ou assumem os interesses novos que nunca estiveram a cargo daquelas soberanias. A degradação para a situação tecnicamente chamada de Estado exíguo vai seguramente atingir muitas das entidades políticas, tal como acontece u no passado não muito longínquo com velhos reinos e principados europeus rapidamente esquecidos. Seria porém ousado prever esse resultado em função da dimensão dos elementos do Estado, porque, historicamente, não foram necessariamente os mais pequenos que desapareceram absorvidos em entidades mais vastas, nem serão necessariamente os maiores que vão renascer para a supremacia internaci onal passando pelas fendas abertas pela derrocada do bipolarismo. A identidade e a vontade desempenham um papel essencial nesse processo, e as duas parecem sobejamente exemplificadas no caso português em resposta às aceleradas e pesadas mutações a que foi submetida a definição do Estado nas últimas décadas. A evolução das fronteiras, desde a fundação da NATO, representou para Portugal um desafio sem equivalentes fáceis de encontrar, e foi ocasião de uma das mais sólidas demonstrações de firmeza da identidade. Essa identidade e essa vontade apontam para uma soberania de serviço à comunidade internacional, na qual os factos mostram que não dispensará a intervenção portuguesa na Nova Ordem, nos dois Atlânticos, na Europa e na Euráfrica. É certamente este o conceito estratégico constitucional, porque a definição dos objectivos supremos do Estado, e a adesão aos princípios do mundialismo, apontam ali para um protagonismo oposto a qualquer demissão ou passividade. Tendo sido a variável comum dos sucessivos conceitos estratégicos '"ºEdgar Morin, ParasairdoséculoXX, Rio de Janeiro, 1981. Ali escrevia, salientando a necessidade de prever "uma grande hegemonia imperial que possa estender-se à totalidade do globo", que, ao lado do g igantesco poder militar, a URSS era "de uma fraqueza inaudita", e que "bastaria uma dilacera· ção ou ruptura a partir da cúpula para uma desintegração em cadeia atingir todo o sistema", como aconteceu (p. 338). 188 INTRODUÇÃO verno, definidos nos muitos programas sucessivos, e independentemente, de go onto, das diferenças partidárias dos suportes dos órgãos do Estado, não ...esse 'd o conceito · estrateg1co ' · nac1ona · I. •· d ráP estar ausente num fiuturo re d e fi101 Pº;orque a soberania de serviço também é, há séculos, um imperativo do con. estratégico nacional português, a que os outros dois, o constitucional e ceitooverno, se su b or d'mam, que esse nen h um regime . . po d e impor, e nen h um de g rno decreta, porque é a síntese da experiência secular vivida em comum, o go::eúdo da vontade de viver em comum, o projecto do futuro para a vida em ::mum, a própria definição de Nação: ou, no caso concreto, da maneira poresa de estar no mundo. cugu _perestroika: a conjuntura estratégica 7 Aconjuntura mundial foi dominada, sobretudo no que respeita à dissolução do bipolarismo de meio século, pela nova linha definida por Mikhail Gorbatchov, seu livro Perestroika,subintitulado, na versão portuguesa de 1987, Anos de 00 transformação e deesperança paraa URSS eparao mundo. Antes de tecer alguns comentários sobre tal fim da conjuntura, devemos esclareceruma posição metodológica, como é sempre aconselhável nestas matérias, e que não pode deixar de reflectir-se na análise que sempre se pretende objectiva, mas é sempre condicionada pela perspectiva adoptada. O ponto que aqui interessa diz respeito ao critério orientador dos algumas vezeschamados historiadores do presente, os quais, como George Berlia, Maurice Flamont, René Remond, Christian Zentner, Jean Beauté, Paul Johnson, procuram racionalizar os factos que ainda pesam no ambiente das decisões políticas em curso, reconduzindo-os a categorias definidas como patamares ultrapassados pela evolução 17º. Falam, a partir da ruptura da Grande Aliança que se seguiu à chamada paz de 1945, de períodos autónomos de competição estratégica marcados pela mudança qualitativa das armas, de períodos de relacionamento entre as superpotências caracterizados, sucessiva e evolutivamente, pela Guerra Fria, pela dissuasão, pela distensão, pela cooperação, e assim por diante. Estamos mais inclinados a entender que lhes foi possível definir, com maior ou menor rigor, um conjuntodetécnicascaracterísticas que são usadas conforme as exigências da arte diplomática e os objectivos da estratégia indirecta, e não 110 Mikhail Gorbacchov, Perestroika,Lisboa, 1987. Georges Berlia, Coursdesgra11ds problemespolitiques contemporai11s, (pai.), Paris, 1967-1968. Maurice Flamont, Coursd'hístoiredesJaits iconomiquesft sociaux, (pol.),Paris, 1968-1969. René Remond, Histoiregé11iralepolitiqueetsociale, (pai.), Paris, 1967-1968. Christian Zentner, Lasguerrasde la posguerra,Barcelona, 1973. Jean Beauté, Relatio11s I11tcmatio11a/cs, (pai.), Paris, 1983. Paul Johnson, Unehistoircdu mo11de moderne,1917-1918, Paris, 1985 . 189 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS apreender uma racionalizada série de fases históricas que não voltam a rep tir-se. A competição armada, se possível por entreposta entidade, repet iu.:· sempre que necessário (Indochina - 1947, Coreia - 1950, América Cent ra)~ 1962, Golfo - 1987), as técnicas de apaziguamento foram utilizadas em cad conflito marginal sem coincidência temporal, a ententeexistiu na aventu rada Suez - 1956, nas tentativas comunistas da Grécia -1948, em Praga - 1948, e n revolta da Hungria -1956, assim como a Guerra Fria foi também chamad a, e~ primeiro lugar por Nixon, o começo da terceira guerra mundial171• Nesta perspectiva, a Perestroikadeve em primeiro lugar ser examinad a, n data, como uma técnica inspirada pelos interesses permanentes da URss, eª não como o marco de uma nova fase que os historiadores do presente se pre. parariam para imediatamente conceptualizar no sentido de fixarem um novo patamar das relações entre as superpotências, com os seus reflexos inevitáveis sobre o resto do mundo, e sem retorno. A questão a colocar é, portanto, a de saber por que razões foi utilizad a de novo, com diferente nome, a técnica do apaziguamento, e se haverá previsões animadoras sobre uma marcha positiva para o final estabelecimento da paz pelo direito, o tal ponto ómega sempre sonhado e nunca conseguido, depois de séculos de Projectistas da Paz e de organizações internacionais. Talvez possa ajudar-nos a aproximar uma visão mais clara da situaç ão 0 facto de a mensagem da Perestroika ter aparecido ao mesmo tempo que 0 livro de Federico Mayor Zaragoza, Maí'ianasiemprees tarde,quando assumiu a direcção geral da UNESCO, e o livro do Conde de Marenches, Secreto s de Estado,quando abandonou a direcção dos serviços de informação externos da França 172. O primeiro, que se coloca na perspectiva universalista de Chardin, e na prospectiva de Fourastié, aproveitando os instrumentos de análise global que as organizações da ONU colocaram à disposição dos seus agentes, define algumas das ameaças, ou das manchas comuns a toda a população da Terra, independentemente da circunstância política de cada região, ou povo173• Depois de termos vivido a maior explosão técnico-científica da história, de termos acumulado a maior quantidade de inteligências de sempre porque nunca existiram tantos homens vivos, de podermos totalizar em cada instante as correntes de informação que exprimem a situação unitária do mundo, de ° 1• 1 Richard M. Nixon, La verdaderagucrra, Ilarcelona, 1980, fazia suas estas palavras de Harold MacMillan: "apenas nos podemos salvar olhando para a realidade e organizando a resistência que temos de criar se não queremos perder na Terceira Guerra Mundial aquilo que ganhámos nas duas anteriores" . 1 ' Fedcrico Mayor Zaragoza, Mm1a11a sicmprces tarde,Madrid, 1987. Conde de Marenches, Secretos de Estado,Madrid, 1987 (trad . do francês, Da11s/esccrctdcsprinces,Paris, 1986). 1 ' · Fourastié, bnie11tario deiporvcuir- las 40000 horas,Madrid, 1965 . 190 INTRODUÇÃO ...-.osactualizado o mapa da oferta e da procura em todos os domínios, anter ... uimos, com todos esses dados, traçar uma geografia da angústia que conseg · o a florar t1m1 ' 'd o d o rosto d a esperança que mais · assa, nos tons som b nos, ulrra~eziluminou o mundo no fim da guerra de 1939-1945: as grandes liberurn; 5 fundamentais contra o medo e contra a miséria, os Direitos fundamend~ eeinatacáveis do Homem, a igual dignidade das etnias e das culturas, o . cais · - e ao governo pe 1o consentimento, . ito à auto d etermmaçao aso l'd 1 ane. d ad e direpovos e d os governos, o d'1re1to · a' 1e e 1· 'd d . d' 'd 1 1 . a pos1c1 a e m 1v1 ua e co ect1va, dos ação da guerra, o direito positivo deduzido do direito natural comum a cerg . dos os seres vivos. to Ao contrário dos projectos e das esperanças, aquilo que se desenvolveu foi ma competição estratégica mundial que nos presenteou com um então não il revisto mundo bipolar, com uma nova variável estrutural da vida internacional pue é O medo do holocausto final, com uma teoria sempre crescente de conrlitos regionais a servirem de transitórias válvulas de segurança à tensão que ameaçacom o conflito maior, tudo suportado por uma sociedade civil global ao redor da Terra, onde sectores privilegiados da população vivem materialmente melhor do que outros, mas todos vivem uma angústia comum que, nesse plano, não distingue entre dominadores e dominados. Um dos traços mais salientes, e ameaçadores desta evolução, é que a técnica excedeu a ética em todos os domínios, desde a investigação biológica às formasde fazer a guerra, tendendo as coisas para a implantação do real estado de natureza de que falavam, mas apenas hipoteticamente, os contratualistas como Rousseau, Hobbes e Locke 174• O direitointernacional perdeu importância a favorde uma políticado direitointernacionalem busca de um conjunto de normasque exprimam, não necessariamente uma nova justiça, mas um novo equilíbrio de forças. Aguerra deixou de ser, demonstradamente, o combate artesanal que o direito já disciplinara em muitos aspectos, com a necessidade de uma abundante mão-de-obra, que eram os vastos exércitos, porque cada homem transportava um limitado poder de destruição; deixou de ser uma guerra económica, limitada à obtenção de objectivos concretos, destinada a terminar à mesa da conferência entre vencedores e vencidos, e poupando, sempre que possível, as destruições inúteis das cidades, das populações civis, das mulheres e das crianças. Em sua substituição temos a guerra que tende, como as sociedades ricas, para pós-industrial, substituindo o homem pela máquina e a memória pelo computador, definitivamente de desperdício, aniquilando massas e cidades para quebrar a vontade do adversário rápida e amarguradamente, não querendo a rn 17 ' Adriano Moreira, CiênciaPolítica,Coimbra,1995, sobre as ideologias. 191 TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS paz dos bravos mas sim o desaparecimento do adversário, com a mesa da e ferências de paz substituída pelo tribunal que julga os vencidos antecipa~lla. mente condenados pela derrota. A sociedade civil mundialmente produzida, e angustiada pela variável d medo, tem estes traços enumerados por Mayor Zaragoza: 570 milhões de p 0 soas submetidas; 800 milhões de analfabetos adultos; 250 milhões de crian es. - esco lanz_a . d as; 1.500 mi"lhões d e pes_soassem serv~ço_s · · , · adequa. Ças nao san_itanos dos; 1.300 milhões de pessoas com rendimento per capitamfenor a 90 dólar anuais; 1.300 milhões de pessoas sem casa adequada. es Por outro lado, no quinquénio de 1975-1980, deram-se cerca de 100.0oo mortes anuais de crianças entre O e 4 anos de idade; 150.000 entre 5 e 9 ano . e 66.000 entre 10 e 14 anos. Existem países vários em que a taxa de mortat'. 1 dade infantil supera 100 por 1.000 de nados vivos. As deficiências nutritivas afectam principalmente a infância. A anemia nutricional aparece em alguns países da América Latina com uma população equivalente a 56% do total do subcontinente, em percentagens que oscilam entre 3 e 10% da população. Mas entre pré-escolares, estas percentagens variam entre 14 e 41%, sendo similares as cifras para os escolarizados. Quanto às mulheres grávidas, varia de 22 a 62% segundo as áreas. Em 12 países da região, a desnutrição em menores de 5 anos supera os 40% e na maioria dos casos o problema não se origina na falta de alimentos, ou d~ potencialidade para os produzir, antes na reduzida capacidade de compra das maiorias, na ignorância e nas más condições médico-sanitárias. Hoje sabemos que cincode cadaseisdestasmortesde criançaspodemsertecnica- menteevitadas. O facto da ética não ter acompanhado a explosão técnico-científica permite que a organização política e social mundial aceite viver uma situação que comporta, segundo notícia, os seguintes factos: que 6% da população do mundo consome 35% dos produtos de base; que o rendimento per capitade alguns países seja 250 vezes superior à de alguns outros; que se gaste 70 vezes mais a armar os soldados do que a educar os estudantes; que o produto das exportações de numerosos Estados não chega para cobrir as suas necessidades básicas de alimentação e o juro das dívidas; que os excedentes de alimentos de algumas regiões se acumulam e até são destruídos, enquanto noutros lugares se morre de fome; que a produção industrial se reduz de forma planificada por falta de uma procura sobrante, enquanto 2/3 da Humanidade vivem em extrema pobreza; que a ignorância aumenta em números absolutos, em vez de diminuir. Não é difícil concordar com Federico Mayor Zaragoza, na linha do texto constitucional da UNESCO, que "a soluçãodesteestadodo mundo,tão insatisfató· 192 INTRODUÇÃO cheiodeameaças,exigeuma análiseprofundadasrelações queexisteme dasque 0 rio'º~xistir entrea ciência,a éticae a política"175• deve~uando poré m examina~os ~s depoime_n~o~dos ho~e.ns aos qu~i~t~m per'do mais ou menos trans1tonamente, dmg1r os negocios mundiais a frente enct ' . . . t nidades de poder que amda chamamos Estados, verificamos facilmente, dasusempre com aprazimento, · • · fcoram o mteresse • que os seus va1ores essenciais ne~onal enten dido em função de conceitos elaborados para uma conjuntura nactdial que d e fim1t1vamente .. d esapareceu, a manutençao - ou crescimento . de munoder nacional à medida das metas estabelecidas a partir dessa base, e tamu~ pos interesses geraisdaHumanidade:mas estes parecem um elemento do chabe~o discursoeficazdestinado a obter a adesão ou passividade da geralmente ~;eliz sociedade civil mundial, constituída pelas salamandras cuja revolta jul1:m necessário evitar ou conter, mais do que anúncios de objectivos destinaâos a transformar-se em esperança concreta neste mundo 176 • As desaparecidas repúblicas soviéticas, a mortandade da Indochina e da Coreia,o genocídio na Ind~nésia, na Índia e na Nigéria, as guerras terroristas permanentes mantidas em Africa, na terra dos bascos, dos irlandeses e dos hispano-americanos da América Central, a guerra civil dos muçulmanos em nome do fundamentalismo e do petróleo, o fantasma do Afeganistão, todos são factosque podem ser filiados em projectos imperialistas exógenos que incidentalmente aproveitam ânsias justas de redenção colectiva que se esmagam contra estruturas de poder que obedecem a uma conceptologia política dominadora. O Estado soberano de Bodin já não corresponde às exigências que andam a configurar a implantação de grandes espaços, mitos da superioridade cultural e étnica já não correspondem à interdependência mundial, as fronteiras físicasjá não satisfazem as urgências de defesa mas apenas da identidade que é fonte de criatividades úteis, o excesso de poder político internacional torna-sevulnerável aos poderes funcionais e erráticos que quebram a paz sem grandes despesas, a variação da decisão e credibilidade das populações pode levar à falência dos aparelhos militares sofisticados. Mas são este s que dominam o esforço produtivo regido pelos poderes políticos, que implicam a vigência da viciosa relação entre armamento e desenvolvimento,que nos condenaram a assentar o poder de destruir o mundo na miséria do mundo ameaçado de destruição, que vitalizam o crescimento da droga, comércio de armas, guerrilha. políticasse fazem em tempo Temos algumas vezes salientado que as revoluções e que as revoluções culturaisse fazem em tempodemorado. acelerado, ,75Cit., p. 36 . 176 Karel Capek , A revoltadassalama11dras, Lisboa, s.d . 193 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A última guerra mundial foi uma revolução política da estrutura internac· 10 nal, num tempo que não pareceu acelerado apenas porque os sofrimentos for • excessivos nesse período, mas que tem essa natureza insofismável quando reªIli ramos em que destruiu, em poucos anos, uma Ordem política e jurídica munJ.ª· que levara séculos a construir, com justiça ou sem ela, que fez afundar o Eu:ª 1 mundo vigente desde o começo do movimento das Descobertas, que apeo o. etnia branca do governo do mundo que obtivera, que destruiu os quadros~ a organização económica apoiada numa política de armamento alfandegário d a fronteiras, que redefiniu a hierarquia real das potências, que construiu e d as truiu um mundo estrategicamente bipolar em cujo horizonte se perfila, co;s0 uma das hipóteses, o verdadeiro império, que por definição é mundial. Para que tivesse coerência com o ideário da grande coligação democrática que se pretendeu e supôs vencedora, levando a convicção ao ponto de o insere. ver na Carta da ONU, seria necessário que o provável império mundial viesse a ter forma no governo mundial pelo consentimento, decorrente da interdependência e socialização de todos os povos, de acordo com o legado humanista ocidental e a filosofia democrática consagrada nos textos como a formulação que melhor presidiria à reorganização do mundo. Acontece que a antevista mudança assentava numa indispensável revolução cultural de dimensão mundial, que esta nunca se faria senão em tempo demorado, e que os factos têm demonstrado que esse tempo não decorreu, que a revolução prevista foi retardada pela sobrevivência dos conceitos da estrutura política que morreu com a guerra, e que a predominância constante dos factos estratégicos torna frequentemente mais provável o projecto de império imposto do que consentido, com um perfil autoritário e não democrático, tudo à custa de um preço que é pago pela sociedade civil mundial reproduzida no quadro alarmante que ficou referido. Para documentar esta tensão entre a revolução política que a guerra produziu e a revolução cultural que a chamada paz não proporcionou, basta-nos lembrar os depoimentos de alguns dos mais directos intervenientes na evoluçãodo último meio século, quer no exercício do poder, quer no exercício do magistério da inteligência que procura falar inutilmente ao ouvido dos príncipes. Com o risco de erro inerente às amostras selectivas, pensemos que as memó· rias de Henry Kissinger, que interveio no Watergate, na guerra do Médio Oriente em 1973, na crise do petróleo e no diálogo Norte-Sul, na questão da descolo· nização, no processo da África, na queda de Salvador Allende, na definição da política americana para a África do Sul, na guerra da Indochina, nas negocia· ções sobre o SALT-11,na retoma das relações com a China, no enfraquecimento do presidencialismo que vai de Gerald Ford à proeminência do Congresso dos nossos dias, tem como conceito básico, intelectualmente inspirador, o do Con· 194 INTRODUÇÃO d Viena, o equilíbrio dos poderes, a proeminência de potências direcgresso eesolução dos interesses de todos como decorrência do acerto das coras,.ª r de interesses de cada vez menos intervenientes 177• . teiras , tr00 _ teve por exemplo um dossier sobre a Africa, não acompanhou a derroN~~ império português, não previu as alterações profundas do que se chacad~ Terceiro Mundo, escapou-lhe a evolução de Angola . ..,aria o • . absorveu-o, e a cnaçao . - que supun ha esta,,. diálogo entre as superpotenc1as dora de um terceiro pólo pela China decorreu da mesma perspectiva, não bihza u atenção às solidariedades Sul-Sul que se desenvolviam em resposta e resto , . . P tamento as sociedades ncas do Norte. afiron . Nesta região não estava o po d er como class1camente o enten d"1a,estava apea revolução política cultural em marcha que haveria de transferir algum do nas · ' . entre as d uas guerras, d e Moscovo sentimento de cerco, que d ommou a Russia ra Washington. pa Peguemos nas memórias de Reza Pahlevi, chamado nesses tempos o gendarmedo Golfo, e escritas a despedir-se da vida, portanto num momento em que os nossos critérios ocidentais nos levam a aceitar que um homem está a dizer a sua verdade . Asua verdade, quando se autojustifica, mas também quando opta, baseado nos contactos e experiência pessoal, é que "não foi Churchill, sem dúvida, o grande vencedor da Segunda Guerra Mundial, mas sim Estaline.Nas conferênciasde Teerão, de Yalta e, finalmente, de Potsdam, foi ele e sempre quem puxou peloscordelinhos. E foi ele quem impôs a 'paz soviética' em que vivemos há 35 anos".E acrescenta, referindo-se aos últimos dias do império: "Desde há muito tempo, perto de dois anos, parecia-me que a atitude de certos americanos era inquietante (...) Alguns meses depois, teria a oportunidade de encontrar-me como meu grande amigo Nelson Rockfeller. 'Pode-se conceber', perguntei-lhe à queima roupa, 'que os americanos e os soviéticos tenham partilhado o mundo entre si'? 'Decerto que não', respondeu-me ele. Mas depois acrescentou: 'Pelo menos que eu saiba ..." 178• Por seu lado, o grande mestre do nosso tempo que foi Raymond Aron, o idealista céptico que anotou diariamente o declínio do Euromundo, que morreu a falar do fim de uma geração, aquela que viveu a ambiguidade da guerraimprováveledapaz impossível, diz o seguinte: "Nietzsche, o último metafísico do Ocidente segundo Heidegger, e aquele que procura o sentido da nossa época por referência à história da filosofia, acrescenta uma dimensão suplementar aos nossosdiagnósticos históricos. Ensina-nos alguma coisa sobre o nosso futuro? ..º 177 Henry Kissinge r, Mis Memorias,Madrid, 1979. Mohamed Reza Pahlevi, Respostaà História,Lisboa, 1980, pp. 164 e 215. 178 195 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O destino da Europa Ocidental depende principalmente do apagamento do deuses ou da quebra demográfica? Guardo suficientemente o gosto da espe~ culação filosófica para não dar uma resposta categórica a estas questões. p0 outro lado, se se trata de apocalipses possíveis, das ameaças que pesam sobr; a Humanidade, sei onde procurar a fé e a esperança. Contra os males da civili. zação industrial, as armas nucleares, a poluição, a fome e a explosão demo grá. fica, não tenho o segredo dos remédios miraculosos. Mas sei que as cre nças milenaristas ou as racionalizações conceptuais não servirão para nada; pre firo a experiência, o saber e a modéstia. Se as civilizações, todas ambiciosas e todas perecíveis, devem realizar num tempo longínquo os sonhos dos profetas, que vocação universal as poderia unir fora da razão? 179 " A razão parece não ser abusivo entender que a traduz na revolução cultu ra] que substitua uma conceptologia política construída para uma época acaba da de Estados soberanos absolutos, desejando o isolamento e a auto-suficiênci a. Mas aquilo que nos documenta o livro de Marenches, é uma contínua luta dos poderes, um desenvolvimento aterrador da estratégia indirecta, uma sobrevivência dos modelos imperiais do passado, o sonho de novos impérios regionais como o fundamentalista, a clandestinidade do Estado, o objectivo da força à margem das contingências, misérias e exigências da sociedade civil mundi al, todo o caminho do modelo imperial imposto. E não lhe ocorre senão aconselhar um "plano mestre do Ocidente" decadente, centrado na constituição de um exército europeu com material estandardizado, com armas nucleares, com forças expedicionárias altamente móveis, com uma retaguarda consolidada, e constituir com os países do Magrebe (Marrocos, Argélia, e Tunísia) um "Par South"que desse à Europa as mesmas oportunidades das superpotências 180• Os conceitos são exactamente os de 1939-1945, adaptados às circunstâncias da debilidade europeia, e da movimentação bilateral ou solitária das superpotências. A intimidade longa com a clandestinidade do Estado não lhe indicou qualquer sinal de uma revolução cultural em marcha a exigir a mudança do ins· trumental clássico da luta por um peso na balança internacional de poderes. É a manutenção do conceito da chamada terceira guerramundialem curso,como lhe chamou Nixon, e em que avulta a estratégia indirecta, a qual se salda, no seu ponto de vista, por sucessivas perdas ocidentais. É neste contexto que aparece a mensagem de Mikhail Gorbatchov, que uns procuraram inserir na estratégia indirecta desmobilizadora do Ocidente; que 17'' Raymond Aron, Mémoircs,Paris, 1983, p. 729. Raymond Aron, Plaidoyer pour l'Europedécadc11te, Paris, 1979, onde desenvolveu a tese da "Europavítima desiprópria",p. 333 e sgts. '"" Marenches, Secretosde Estado,Madrid, 1986, pp. 219-220 . 196 INTRODUÇÃO s entenderam como fixando um ponto de reflexão imposto pela variável outr:do e suas causas, e o início da abertura dos caminhos à revolução cultural do t11orne poss1ve ' 1a rea d aptaçao - d os mstrumentos . . ao mun d o anguspo 1'mcos . q.uedot que pós-guerra pro d uzm. O ua facto de ambas as superpotências terem anunciado em Washington um O ordo tendo por objectivo o início da desnuclearização do arsenal militar (INF), ac ou evidente que a análise das razões que levaram a este acto não podia limicorn a um d os mtervementes, . . car-se tem d e procurar tentar apreen d er o processo de mudança em ambos. E esta primeira observação também evidencia que ambasas superpotências giamcomoEstadosdirectores,cientesda suaproeminênciana hierarquiaefectivados ~stados,e dequeosseusinteressesmundiaisnãose confundiamcomos interessesregionaisaosquaistentamdaro seuapoioe solidariedade. Finalmente, e ao contrário do disposto na Carta da ONU, foi anunciado que O acordo tinha disposições secretas, quando o artigo 102 da referida Carta manda que os tratados sejam registados e publicados pelo Secretariado, sendo até lá inoponíveis. Estamos portanto claramente numa área reservada da política de ambas as superpotências, com exclusão da interferência da comunidade internacional em qualquer forma das suas organizações. Por isso é necessário procurar entender a expressão que cada uma delas adaptou do seu interesse nacional. a)Pelo que toca à URSS, era evidente que nunca antes abandonara uma posição adquirida, ou satelização, no processo de Estadoem movimentoque a própria Constituição consagrava; e que nunca, até então, praticara qualquer acto político que significasse o abandono do processo colonial que herdou do regime anterior, mantendo a definição territorial do império, com diferente organização administrativa e nova semântica, na qual avulta o conceito de nacionalidades. Este conceito, que atendeu sobretudo à identificação linguística, foi coberto pela regra da unidade indivisível do Estado, e pela política de assimilação que levouBrejnev a falar de uma repúblicadopovointeiro. Pondo de lado a semântica, não é difícil reconhecer que, proclamando ideologia diferente, esta política foi tentada sem êxito por outros Estados no passado,designadamente pelo Império Austro-Húngaro da última fase, pela França no Norte de África, e por Portugal em todo o seu Ultramar. A diferente ideologia, a diferente estrutura do poder político, a natureza continental do império, a contiguidade geográfica, o isolamento de cada nacionalidade em relação ao mundo exterior, a auto-sustentação do poder nacional com ligeiras dependências externas, parecem razões explicativas para o facto de o movimento descolonizador mundial da ONU não ter atingido severamente aquela região. 197 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS É todavia admissível considerar que todos os factores da internacionalizaçã 0 e interdependência mundiais, que atingiram globalmente as democracias bra das, e derrubaram os regimes autoritários da sua área, tinham atingido intt namente a população soviética, manifestando-se mais tarde do que nas regiõ:8 livres do mundo, mas estendendo os seus efeitos à inevitável mudança gerac 1• 0nal, à alteração do perfil da composição étnica do império onde os brancos est avam a ficar em minoria, à necessidade de corresponder assim a novas exigência 8 internas como outros regimes totalitários se viram compelidos a fazer. Um regime sem instrumentosde absorçãodos efeitos da mudança não s reforma facilmente sem ruir, e não é invulgar que adapte a fuga para a frentee mobilizando os sentimentos mais profundos do nacionalismo para o conflit~ exterior, como exemplificou Péricles em lição que deu frutos; ou que procure sem alterar a estrutura de domínio, conseguir o reforço da obediência passiv~ por intermédio de uma política de desenvolvimento que vai ao encontro das necessidades sempre adiadas do consumo, o que implica um abrandamento do esforço externo, e uma transferência de recursos das indústrias pesadas para as indústrias ligeiras. A necessidade de responder às tensões internas seria explicação razoável para uma linha de apaziguamento externo, para uma política de conten ção da corrida armamentista, com um desarmamento equilibrado que não afecta a segurança do adquirido, não renega a ideologia, não abandona a confia nça na lógica objectiva da história, não precisa de abrandar a convicção da queda inevitável dos sistemas diversos do marxismo-leninismo, por muitas que sejam as variantes ocasionais deste. não de um Tratar-se-ia portanto de ser oportuna a técnicado apaziguamento, patamardemudança,ou de uma alteraçãoideológica, tudo com inteira salvaguarda e até com eventual aumento do peso negocial posterior em do valordasegurança, relação à Europa Ocidental 181• b) Este aumento do poder negocial inscrevia-se na lógica, até então bem retribuída, da estratégia indirecta que o poder soviético manejou com inegável superioridade em relação ao seu adversário americano. '"' Emmanuel Todd, La clmtefi11ale, Paris, 1976, foi um exemplo raro de previsão dos efeitos implosivos de um político reformista na URSS, sustentando que "uma reforma do sistema comunista não pode deixar de destruir os fundamentos da centralização imperial russa e libertar as tendências centrífu· gas das repúblicas periféricas da URSS", síntese do prefácio da reedição de 1990, p. IV. No mesmo sentido Andrei Amerik, L'URSS survivra-t-ellew 1984?, Paris, 1977, com prefácio de Alain Besançon, Por seu lado, Vladimir Bukovski, URSS:del'utopieau désastre,Paris, 1990, ao analisar "/esmalheursdela p. 222 e sgts., debruça-se sobre os efeitos não queridos ou nem sequer previstos, a partir Perestroi"ka", da confissão de Gorbatchov, que o seu "novo pensamento" semeava a desorientação nos soviéticos. Daqui a hipótese de que a evoluçãose afastou radicalmente do projecto. 198 INTRODUÇÃO É certo que a variável do medo, a que nos referimos e que se tornou estrul pesou demasiado sobre as novas gerações europeias, que não possuem • . da tllra,ória da guerra, e possuem to d a a m1ormaçao . e sob re as consequenc1as t11elll • . das guerras atomica, ' . qmmica ' . e bacte"da armamentista, sobre os nscos corri • Jógica. rio . . 1o processo mternaciona . . 1cuias . consequencias • . herConsideram irrac1ona ..,.,têm em desfavor progressivo o dever militar, aceitaram a filosofia do darau,, d senvolvimentismo e do bem-estar, compreenderam que existe uma relação ~ •osa e contraditória entre armamento e desenvolvimento. 'ka ve10 . ao encontro d e aspi. viciDo ponto d e vista . d o d"iscurso e fiicaz, a p erestroz rações profun?~s d~s sociedades oc_identais abert:s, fortaleceu a :end~ncia ara a desmobihzaçao das democracias brandas, ammou todas as disposições favoráveisà aceitação da autenticidade da política anunciada. Os inquéritos de opinião da época mostram que a popularidade de Gorbatchov,proclamado homem político do ano pelas sondagens, cresceu desmedidamente em relação às dos líderes ocidentais, o que comprova que o crédito da autenticidade foi alargando, por muito que os responsáveis europeus insistam erndistinguir o desarmamento da segurança, sendo este o valor de que aquele é instrumento, e por muito que esclareçam que o acordo entre as superpotências aumentava a superioridade militar soviética em relação à Europa, quer ernarmas convencionais quer no que respeita às armas químicas e talvez bacteriológicas. O caminho para a receada finlandização dependeu sempre mais dos termos do acordo eventual das superpotências do que da vontade política e recursos para construir uma autonomia europeia estratégica. Não era seguro que todos e cada um destes recursos pudessem ser reunidos em termos de evitar o alargamento e efectivação do primeiro cenário. Na percepção dessa data não esteve incluída a dissolução eminente da URSS182 • c) Estas eventuais consequências para a situação da Europa Ocidental não podem ter deixado de ser tomadas em conta no processo de decisão americano, e se o passado comum ocidental apontava no sentido de que as recusavam e de que o acordo se basearia na convicção de que seriam evitadas, também era necessárioque o interesse nacional americano fosse compatível nessa data com tal decisão e firmeza. 111 Vladimir Bukovski, URSS: de /'utopieau disastre,Paris, 1990, p. 222 e sgts., analisa a percepção do próprio Gorbatchov, no início do processo, salientando a sua declaração à imprensa de 23 de Maio de 1988:"a direcção soviética actual é incapaz de outra coisa que não seja desenvolver o nacionalismo". O desenvolvimento objectivo do processo afastou -se radicalmente do programa de governo, que visava reorganizar a defesa dos interesses permanentes da Rússia . Objectivo que foi claramente retomado, depois da queda do regime, pela nova administração em exercício. 199 -- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Na tendência mundial para a formação de grandesespaços,superadores d insuficiências do Estado para enfrentar a mudança do mundo para a qua} n~ foi criado, o Atlântico Norte parece um Mediterrâneo mais perfeito do quª0 clássico, porque em ambas as margens florescem os mesmos valores, idênti; 0 sociedades civis, as tradições que deram raízes à nova superpotência. l\fas as esta descoberta tomou forma expressa em tratados (NATO), e na inesquecívse intimidade que foram duas guerras mundiais, ela contraria a tradição polít· e( ICa e processo de formação dos EUA. Da Europa que consideraram dissoluta emigraram os americanos e, Para salvar a pureza dos costumes, não deveriam envolver-se em questões do con, tinente de origem, segundo a recomendação da despedida de Washington O destinomanifestodo novo povo, segundo a doutrina que se tornou nacional, er · o Oeste, as margens do Pacífico. O herói popular da juventude é o homem qu: marchou nessa direcção, limpando o território dos primitivos donos, e fazendo florescer uma nova civilização. O mar nacional é o Pacífico, e nas suas margens, não obstante as enormes distâncias, é que estão as grandes oportunidades de investimento, os mercados ávidos de consumo, os concorrentes que ajudaram imprudentemente a crescer. O futuro tem ali domicílio. Por outro lado, a sua área natural de influência, assim reclamada e proclamada com a doutrina do bigstick,é todo o continente americano, por cuja ordem se disseram espontaneamente responsáveis, no qual declararam, contra os legitimistas de Viena de 1815, que não admitiam soberanias alienígenas 183• O êxito da passada estratégia indirecta da URSS, a resistência às reformas dos governos locais, a miséria estrutural da região, tudo encaminhou para uma revolta de que Cuba é o símbolo, de tal maneira que é provável que a fronteira da liberdade, proclamada por Kennedy, fosse mais visível, para o americano médio, na América Central do que no Muro de Berlim. A negociação do apaziguamento, neste último ponto, poderia ser indispensável para tentar restabelecer a segurança perdida na área histórica de exclusiva influência. O envolvimento americano na reconstrução e segurança europeias, e depois do cordão sanitário dos Pactos Militares ao redor da URSS, com as guerras mar· ginais da Coreia e do Vietname, e o financiamento das resistências esporádicas em África, no Golfo, e outros lugares, foram pesando negativamente na deter· mi nação da sua sociedade civil, cansada de ver morrer os seus jovens na propor· ção em que crescem os seus impostos, para colher mais reveses do que êxitos e, sobretudo, do que reconhecimento e agradecimentos mundiais. Não faltam razões, históricas, presentes, e de perspectiva do futuro, para que o eleitor americano estivesse disposto a festejar a autenticidade da nova 183 O Presidente Clinton retomou a doutrina com a intervenção no Haiti, em 1994. 200 INTRODUÇÃO ·nha russa, a admitir que ela servia os seus interesses nacionais permanentes h ue falavaMorgenthau, e que uma nova modesta Yalta poderia ser um prode qo idóneo para servir os seus objectivos e dos seus aliados, quando a Rússia cess operar e se a separação da Europa se acentuar. recparece indiscutível que a solução de Yalta foi conseguida à custa dos inteses alheios, traduzidos na perda de liberdade dos povos do Leste europeu, res · · ' I traçar uma nova 1· e. d aque 1a, ao menos as agora era 1magmave m h a d'11erente lll troço da linha Oder-Neisse. Mas não basta a convicção da autenticidade no , • , 1 noomento do acor d o, porque o e. 1 uturo nunca e prev1s1vecom segurança, pare~ndo-lhes que é tempo de os europeus europeízarem a defesa, como foi tempo ~e os vietnamitas vietnamizarem a guerra que finalmente perderam. Por outro lado, a função de Estado director desempenhada ao longo de meioséculo ao redor da Terra, exigiu um tal esforço na defesa, muito superior ao da URSS, que a economia dava sinais de ser também necessário diminuir a viciosarelação entre armamento e desenvolvimento, transferindo os recursos paraO último sector. O sistema financeiro dá sinais de crise preocupante, a alienação em devedores insolventes, como é o Brasil, acentua-se, o dólar perdeu a sua função de moeda de referência, e a evolução do sistema político mostra 0 sintoma habitual da debilidade do poder nacional, que é a proeminência do Congresso e um Presidente fraco. O regime americano, sem tocar na expressão formal da Constituição, conseguiuuma alternância no governo das forças políticas agrupadas em dois partidos hegemónicos, o democrata e o republicano. Mas a alternância mais característica foi entre o governo pelo Presidente e o governo pelo Congresso, o primeiro em épocas de expansão, o segundo em épocas de recessão. Os presidentes fortes puderam usar impunemente a clandestinidade do Estado, procurar no tesouro abundante os recursos para a agressividade, e retribuir com a glória a confiança não inquisidora da Américanos seus órgãos de soberania; o Congresso sempre exigiu a transparência, cuidou de limitar as verbas, reclamou os privilégios dos Estados federados, falouao mundo pelas suas comissões, e desautorizou as iniciativas presidenciaisquando a debilidade do poder nacional obrigou à moderação e a cuidar do fortalecimento da frente interna. Aos presidentes fortes como Roosevelt, corresponde a alternativa de fracos como Ford. Não acontece tão frequentemente que o mesmo Presidente, como Reagan, possa vir a protagonizar as duas situações,começando por jurar, no momento da posse, que ia restaurar a grandeza da América, para terminar cedendo o passo ao Congresso preocupado com a debilidade da América. As sondagens, mesmo americanas, sobre a popularidade dos líderes internacionais, deixaram Reagan a grande distância de Gorbatchov, um mau sinal 201 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS de que era a mensagem deste que ia ao encontro da vontade de mudança d eleitorado soberano, da juventude com aspirações novas, do contribuinte e 0 . . o~ mqmetações crescentes. Que termine a corrida armamentista, que se desnuclearize o mundo q e. • ' 1d o me d o, que se e 1· . ' lle se araste a vanave 1mmem as ameaças d as guerras quíllli e bacteriológica, que se caminhe para a paz pelo direito, que se libenelll ca recursos indispensáveis para o desenvolvimento, que a explosão técnica e ci/s tífica seja envolvida pelo programa da ética, que se reconheça a unidade efe°' tiva do mun_do e a unidade r:al do género humano, que.º ~~nse~timento pe~~ razão substitua o constrangimento pela força, que a m1sena seia substituíd pela dignidade da forma de viver, são valores ocidentais que progressivament a animam a vontade política dos povos, e que levam a festejar todas as mensagene de esperança concreta para o mundo de hoje. s Mas é necessário que tais valores, como pregam a ONU e a UNESCO, sejam um património comum da Humanidade e, sobretudo, que os governos, ou os que por eles têm o real poder de decidir, sejam a voz tribunícia dessas aspirações, e não os agentes de uma política de domínio, herdeira do legado maquiavélico e não do legado humanista. O acordo que se ia desenvolvendo tinha prováveis exigências internas de cada uma das superpotências que o tornaram plausível e desejável, tendo uma delas caído de estatuto, mas não com um preço composto pelos interesses alheios como frequentemente aconteceu no passado, e neste caso não pode ser omitid~ a dolorosa experiência europeia. A mensagem que o propiciou não era nova, era apenas o aproveitamento, para 1987, do discurso dos Projectistas da Paz que se fez ouvir em todas as crises, e a nossa história é uma marcha de crise em crise. O que significa que, à crítica, as soluções parecem sempre conjunturais, segundo o critério do legado humanista, compassos de espera para a continuidade da marcha recorrente do legado maquiavélico. Faltou sempre que a autenticidade se transformasse na variável estrutural permanente da vida internacional, agora em substituição da variável estrutu· raldomedo. O primeiro acto soberano de reconhecimento da autenticidade da proposta soviética foi a assinatura do Presidente dos Estados Unidos da América no tra· tado de Washington, de INF, mas com as cláusulas secretas, cuja natureza viola o direito internacional que tem como objectivo a paz pelo direito. Talvez que a parte publicada correspondesse à coacção normativa dos factos que obrigaram as duas superpotências a mudar de rumo, e a parte secreta à dúvida que guarda a raíz de todos os medos e riscos em que temos vivido. Finalmente, a evolução interna da detenção, exercício e salvaguarda do poder, tem acidentes a con· siderar em qualquer processo de mudança, e, como aconteceu na URSS, com 202 INTRODUÇÃO . certamente inesperados, na evolução da revisão da logística do império. ef~ttO~, são do império soviético, que colocou um ponto final na intervenção Atl11P~sta de Gorbatchov, mais uma vez demonstrou a debilidade dos instrurefort11t de análise e previsão. Nesta data, a Rússia de Ieltsin tenta regressar ao 111entos , como os outros, e o processo e, d'fi 'to de um pais i erente. concet overnoda globalidade 8•O gdas as latitudes, indiferentemente pelo que respeita aos conflitos em De to chegam contn 'b mçoes · - para tentar respon d era' pergunta fiormu 1ad a, entre curso, 'd a maneira 'd e sair 'd o secu 'l o XX. Trata-se os por Edgar M'onn, a respeito outr ' nte de uma 10 · d agaçao - sob re as possi'b'l'd d . d e superar as i i a es e me10s justa]11e aças que parecem semeadas pelas revoluções que desencadeámos a partir ~Jll:onhecimento geográfico dos limites da Terra, pelo fim de novecentos, e t:mbém de uma antecipação utópica da nova sociedade tocada pelo milagre do milenarismo. Entre as múltiplas interrogações e perplexidades que a conjuntura de das interdependências que conduza uma mudança suscita, destaca-se a aceleração evidente erosãodasoberania,esse elemento fundamental da antiga estrutura política da comunidade internacional. Não pode ignorar-se, por exemplo, que as multinacionais económicas, que foramo pesadelo de muitas crises políticas das últimas décadas, aparecem frequentemente como as organizações que desafiam mais severamente o conceito tradicionaldo Estado soberano. Tais empresas desenvolveram influências poderosas que escapam ao controlo dos governos, e frequentemente foram conceptualizadas como um capitalismointernacional que tomava o lugar e a função do imperialismo político emretrocesso. Não faltam casos em que o envolvimento das multinacionais na luta pelo poder, a participação em golpes de força, ou na corrupção do aparelho de Estado,foram alegados, insistindo-se em que a submissão delas a várias jurisdiçõessoberanas lhes facilita escapar à intervenção de todas. Recordemos que, para enfrentar esta acusação, a própria OCDE - Organization for Economic Cooperation and Development - tentou organizar códigosde boacondutapara multinacionai s, de modo a impedir a relação viciosa entre o poder económico e o poder político. É porém un ilateral entender que a principal causa da crise da soberania, e do processode redefinição em que se encontra, esteja na reestruturação dos mercados,que dariam origem a uma nova concepção de fronteira, embora pareça exactaa relevância da internacionalização acelerada dos fluxos financeiros e das actividade económicas. 203 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A explosão científica e técnica ocupa uma posição causal importante processo, organizando novos centros dominantes e novas dependências llo quais tornaram obsoletas todas as políticas de suficiência nacional nessa á; as Talvez possa admitir-se, sem o discutir aqui, que a NASA é provavelmente uea. nova forma de universidade que nenhuma outra soberania isolada poderá t llla .. e que a coniugação das so b.eramas europeias 'd as comunidadel\. tar repro duzir, - tem capac1'd ad e para 1gua · lar. es nao Nos claustros das nossas universidades nacionais, começam a definir gr des e destacadas manchas coloridas as insígnias dos títulos que os seus se~~1 dores obtiveram no estrangeiro, um fenómeno raríssimo e contrariado ent • , am . d a d urante to d a a pnme1ra . . meta d e d este secu ' lo. re nos Esta explosão científica e técnica atingiu os Estados, entre outros vári 08 ' · na area ' d a d e fiesa e d a segurança, o que s1gn1 · 'fi1catocar num dos po . d omm10s, tos mais sensíveis da soberania, tal como é classicamente entendida. n A evolução geral das sociedades do Norte do mundo para o modelo ind11s. triai, afluente e de consumo, desactualizou o anterior modelo do exército artesanal, herdado e próprio das sociedades predominantemente agrárias. Também tais exércitos, como as actividades económicas, necessitavam deum contingente avultado e não muito dispendioso de servidores. Os instrumentos de trabalho não representavam, cada um, um grande poder de destruição dos inimigos, e a necessidade de uma numerosa mão-de-obra, não especializada era inegável. O dever militar, o serviço militar obrigatório, a longa duração d~ submissão às fileiras, a função pedagógica do quadro permanente, conceitos como era o do espelho da Nação que se aplicava às forças armadas, tudo estai•a inteira, lógica, e coerentemente relacionado com o sagrado das fronteiras fisj. cas, o tipo agrário da comunidade nacional, as possibilidades técnicas ao dispor do braço armado do Estado. A explosão científica e técnica, em parte determinada pela corrida armamentista, e por outro lado desactualizando rapidamente os conceitos estratégicos e as artes militares, fez com que o modelo dos exércitos evolucionasse para o de exércitos de laboratório. A qualificação técnica dos agentes tem de acompanhar a sofisticação dos instrumentos, com exigências crescent es de capacidade para investir na investigação, na aplicação, no adestramento para a utilização. Gradualmente desapareceu a suficiência soberana na área da defesa, inde· pendentemente da hierarquia do poder das potências. As próprias superp otê~cias necessitaram de organizações colectivas permanentes, dentro das quais procuraram uma posição directora mais ou menos dominante, como tem sido o caso, neste último meio século, da NATO e do agora dissolvido Pacto de Var· sóvia (1991). 204 INTRODUÇÃO Masa agregação na defesa distribuiu funções, entre os Estados, que não são . s às capacidades científicas, técnicas e financeiras, e o realismo aconseaJbel:xaminar o caso em termos de hierarquia real dos poderes, o que signiJba:evisão do conceito de soberania. O modelo do complexo militar-industrial fie~ definido não deixa de reproduzir a mesma hierarquia relativa dos podeassim . estaduais envolvidos. res conflito do Golfo foi apenas um dos últimos a demonstrar esta evolução O ue ficou referida nos seus traços essenciais, e os efeitos sobre as concepções lo dever militar, da constitucionalização tradicional desse dever, do regime do rviço militar obrigatório, também entre nós estão a manifestar-se. se poderá ainda notar-se, a propósito das consequências deste conflito, que ão apenas o vasto mercado ligado à segurança e à defesa é condicionado pela ~ierarquiadas potências no complexo militar-industrial, como surgiu uma nova uestão: a mesa da paz não coloca já no primeiro plano as compensações terAtoriaise as indemnizações de guerra, porque esses temas foram substituídos pelapartilha do mercado da reconstrução do campo de batalha. Ainterdependência mundial, por outro lado, faz transformar em fundamental a questão do desafio do fraco ao forte. A crise do petróleo desencadeada pela OPEPem 1973 foi um anúncio e um aviso que não puderam ser desprezados. Apartir de 1975, as conferências cimeiras dos Chefes de Estado e de Governo dos principais países industrializados foram o reconhecimento da necessidade de uma coordenação de resposta. Na crise do Golfo, é certo que o direito internacional tinha sido gravemente violado, que os direitos dos povos e dos homens foram severamente esmagados, mas não fora a dependência do petróleo,se não estivesse em causa o poderfuncional intolerável de um país agressor que ameaçaria o regular funcionamento dos sistemas ocidentais e mundiais, a reacção não teria ultrapassado o patamar diplomático e o clamor da opinião pública, como aconteceu tantas outras vezes. Suposta a paz, a hierarquia das potências sofreu uma drástica revisão em função dos critérios económicos. As armasdapaz afectam tão radicalmente as balanças internacionais do poder como as armasdaguerra,com inegável superioridade. Os países da Europa Ocidental reconhecem uma ameaça no dinamismo japonês, juízo partilhado pelos EUA surpreendidos pelo seu inimigo vencido na guerra. O Acto Único europeu abriu caminho às urgências, agora manifestasdepois da assinatura do Tratado de Maastricht de o Mercado Comum marchar para a uniãopolíticae para a unidadede defesa,aproximando-se assim, na intenção dos promotores, que também aqui os factos podem contrariar, e se a evolução prosseguir, de um modelo de Estado plural, com projecto ainda mal definido. 205 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Os EUA, a única superpotência militar que resta, não pode deix ar d manifestar, do alto da sua função a caminho talvez de gendarmedo mund e preocupação com o que chama a fortaleza europeia,que alinha com a ameo, a japonesa 184 • ªça Em suma, são muitos, variados e importantes, os sinais de que a pri mei inquietação da conjuntura internacional se encontra na busca de novasJrontr~ , . 1 . ez. rasde novos gran des espaços, que não são as etmco-cu tura1s, nem as histó . cas, nem as da antiga segurança militar, nem dos fundamentalismos, nem ri. linguísticas: são sobretudo as económicas, ou, talvez mais realisticame nte as simplesmente económicas em competição com as dos complexos industr i;i:~ -militares, com fenómenos de homologia e concorrência entre os modelos como se passa com os EUA a formalizarem o mercado que integra o Canad á O' EUA e o México; com a União Europeia a mostrar tendências para ultrap as~a; a fronteira simplesmente económica, adquirindo uma capacidade de defesa• com a Rússia desmobilizada de superpotência, decidida a recuperar a sua zon~ próximo,e na qual a coede influência exclusiva, à qual chama hoje estrangeiro são do conjunto era antes mantida pela força. Neste caso foi a falência da economia que provocou o descrédito do modelo social e político, e determi noua marcha hesitante e sinuosa para uma ambicionada economia de mercado, sem abandono dos interesses geopolíticos. O prognóstico reservado sobre esta evolução de uma superpotência militar totalitária para um modelo de Estado que reconhece as identidades nacionais, e revoluciona o modelo económico, também se reflecte em incertezas sobre0 futuro da Europa e, nele, o futuro e o papel da Alemanha, ou da coligação da Alemanha com a França ambicionando uma posição directora da Europa inte• grada 185 • De tudo resulta que a procurada Nova Ordem, cujas fronteiras internas estão por decidir, faz nascer uma questãoexigenteque é a dogovernodaglobalidadeem que se encontram, e se confrontam, tantos projectos e tamanha falta deles. O governo da globalidade foi o elemento da ideologia do império, em todas as suas históricas manifestações, que animou os movimentos destinados a ,.. P. Lellouche, Lc 110uveau monde:del'ordrcd'Yaltaau désordrcdesnations,Paris, 1992, descreve este fim da velha Ordem, para a qual A. Valladão, LeXXI siccleseraaméricain,Paris, 1993, contribui com a visão do gendarme. 15 Bun· • Na exposição organizada pelo Bundcstag,e documentada pelo livro publicado pelo Deutscher destag,Bona, 1992, sob o título Fragenan die deutsclieGesc/1ichte, faz-se um esforço considerável para firmar a imagemde uma participação na gestão europeia com total repúdio das experiências passadas deste século . Trata-se mais uma vez da construção do discursoeficaz,ao qual o europessimismo coloC3 fortes objecções. 206 INTRODUÇÃO rar a fronteira da soberania na maior distância possível, e introduziu o 1an 'lllP 1 bo _ a esfera armilar - , entre os símbolos do P?der em expansão. gloNo ponto alto d~ ma~cha para a ocupação da Afric~, no fim do século J_CIX, h Chamberlam f01 o seu expoente, contra os /zttle englander,oposição Josep · em to d os os paises ' d a frente mantima ' · · . rna que se repro d uzm europeia. ,nt~uando, em 1902, J. Hob~on criticava o imperiali~mo co~o um~ for~a exploração, que usava o metada dos mercados captivos, abna cammho as de becidas teses de Lenine de 1917, sobre o imperialismo como forma mais con . 1d . 1· desenvolvidae termma o capita ismo. Esta contraposição ideológica não eliminava o método, e sobre os destroos daquilo que foi um Euromundo político, desfeito pelas suas duas guerras çivis,chamadas mundiais, de 1914-1918 e 1939-1945, a Nova Ordem internacio:al dos Pactos Militares, que durou meio século, fez derivar a situação de paz impossívele guerra improvável da ameaça recíproca de duas superpotências: a República Imperial dos EUA (Aron), e o Império Soviético, cada uma delas no exercício de um desviacionismo do Euromundo matricial, e assumindo a responsabilidade da intervenção na totalidade do globo. Não foi previsto, na análise desse período, que o conflito bipolar terminasse pela implosão de um dos oponentes, abrindo à superpotência sobrante a hipótese da responsabilidade global. Foi a situação que André Fontaine detectou e analisou logo em 1991, procurando antever a reacção e os resultados de uma política dos EUA surpreendidos pela nova conjuntura. A percepção é a de um desafio da Alemanha e do Japão na balança do poder económico, mas sem um inimigo, ou assimilado, que pareça influenciar o processo decisório: l'un sans /'autre.Um vazio de estruturas onde avultam, entre outras, estas questões: o destino dos "náufragosdoplanetaMarx";afixação dafronteira europeia,por exem- plo,nosUralesou em Vladivostoque; a vingançadas naçõesna áreado recuosoviético; papelrenovadodoIslão,e do dinamizadorquesãoosárabes;a chegadadoHinduísmoe 186 doJudaísmoà cenainternacional • Um optimista como Teilhard de Chardin não pôde ainda assim evitar aprevisãode que a alternativa do futuro estava entre o triunfo definitivo e violento de uma só potência, e a instauração do governo da globalidade pelo consentimento. Aqui, na segunda alternativa, a globalidade muda de sentido e de conteúdo, a resposta muda de método, e o desafio é percebido com outro perfil. O primeiro factor destas mudanças, que pressentiu, foi o nascimento de uma sociedade civilmundial,uma realidade que nem sequer parece a réplica factual de centenárias doutrinações sobre a igual dignidade de todos os homens, 1116 André Fontaine, L'un sansl'autre,Paris, 1991, p. 253 e sgts. 207 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS etnias, e culturas, embora esta perspectiva lhe forneça enquadramento étic Parece antes o resultado da submissão da totalidade do rebanho humano~consequências estruturais das mesmas revoluções mundiais. as Em primeiro lugar talvez pelo efeito dinamizador de uma consciência unive sal, a da referida revolução dosteatrosestratégicos militaresque, com uma demonstr:: ção nas duas grandes guerras, uma ameaça duradoira do holocausto resultant da confrontação entre os blocos, e exemplificação nas guerras territorialrnent e contidas, da Coreia, do Vietname, do Afeganistão e do Golfo, ensinou que e paz é estruturalmenteindivisível.O pensamento secular dos Projectistas da Paz ª instituições do tipo da ONU que tinham sido negligenciadas, voltam a rne;e~ cer uma atenção urgente em nome das exigências da globalidade, que já não , dos projectos das soberanias imperiais. e Outra revolução que vem talvez em segundo lugar na percepção polít ica mas que, como antes vimos, condicionou o percurso da revolução estratég ica' foi a explosão científica e tecnológica, que tornou perversamente possíveis~ formas de guerra atómica, química, biológica, A biologia molecular arrancou a investigação espacial permitiu visitar todos os planetas por intermédio da~ sondas, a genética, a neurofisiologia, a cosmologia, a mecânica quântica, a genealogia humana, a inteligência artificial, são vários dos campos onde o avanço foi balizado por uma série de descobertas assinaladas, designadamente, pelo Prémio Nobel, Mas a totalidade do rebanho humano, a maior parte dele sem acesso directo e imediato aos benefícios dessas conquistas, tomou porém consciência do risco maior a que ficou globalmente submetido. Os acidentes de Three Mile Island nos EUA (1979) e de Tchernobyl na URSS (1986) causaram um alarme e produziram riscos mundiais que já não puderam ser eliminados pela amenidade com que anteriormente tinham sido tratados os acidentes precursores de Windscale na Inglaterra (1957) e Kychtym na URSS (1957). Sobretudo o acidente de Tchernobyl (26 de Abril), implicando um número avultado de mortes imediatas, um número maior de mortes causadas por seque· las, a necessidade de deslocar mais de 100.000 pessoas, e a perda para qualquer uso, por muitos séculos, de centenas de quilómetros quadrados de terra, foi uma grave advertência à sociedade civil mundial. A ameaça visa um valor supremo, uma só Terraparaum sópovo. O espírito de comunidade mundial apoia-se, por outro lado, na sempre pre· sente revolução das comunicações, antes descrita, que produziu o fenómenoda instantaneidadee ubiquidadeda informação,transformando a população mundial numa só audiência, com os efeitos perversos inevitáveis. A censura dos Estados pode ser ultrapassada, os centros de decisão política comunicam com os eleitorados depois da informação ter chegado, e a informa· 208 INTRODUÇÃO _0 chega aos centros de decisão antecipando a capacidade dosultrapassados serviços Contra e~t~ forma ~e domínio hierarquizado das ~ociedades estaduais: ~faciais. da sociedade clVllmundial, os povos do chamado Terceiro Mundo lutam, ate e ora sem êxito, por uma nova ordem da informação. ag por mmtas · outras causas, mas tam b em ' porque a m . fiormaçao - e' um po d er ue fragiliza a consistência do tradicional saber secreto de grupos, de institui\es e de poderes políticos, a nova categoria da globalidade teve resposta em ~ovimentos que atacam as velhas estruturas políticas tributárias do modelo imperial, animando os nacionalismos, os regionalismos, as identidades culturais, os particularismos. A mais saliente das facetas dessa renovação e revivalismo chamou-se anticolonialismo,que avançou a velocidade variável em função da viscosidade das estruturas atacadas, sendo a velocidade maior nas áreas das democracias da Europa da frente marítima, e menor nos impérios terrestres como o soviético. Esta sociedade civil mundial, que já reclama um património e um domínio comum da Humanidade com expressão jurídica (o mar alto, a Antárctida, o espaço, a gestão das reservas de matérias-primas, o controlo de energias) é talveza principal causa, poucas vezes reconhecida, do debate aberto e em curso sobre o papel e funcionamento do Estado. Este parece ter vivido os seus últimos anos gloriosos na década de sessenta, planificando e possuindo na área soviética e no Terceiro Mundo, prometendo o pleno emprego e o enquadramento das economias nacionais nos países desenvolvidos. Mas na última década tornou-se evidente que a velha invenção declina em facedas instituições, supranacionais, privadas e públicas, que ignoram as fronteiras,também em consequência das exigências das regionalizações e dos poderes locais que o esvaziam pela descentralização, finalmente em resultado da renovaçãodos movimentos institucionais. Muitas organizações políticas, e todos os debates eleitorais, se concentraram eventualmente sobre a questão de ter melhor Estado, ou menor Estado, mas finalmente a questão parece ser a de saber que nova invenção vai gerir as partes e o todo da nova sociedade civil que é mundial, cujo tecido está unificado pelas dependências e interdependências, mas que apresenta novas formas de conflitos que não dispensam regulação e arbitragem, que exige a preservação do planeta como património comum insubstituível, que não pode dispensar 0 controlo efectivo dos riscos maiores, que assumiu a unidade da segurança e tem de evitar as disfunções militares que facilmente se transformam em conflitos mundiais. O apocalip se é possível, como resultado perverso de todas as ameaças acumuladas;a gestão vai frequentemente deslizando para uma tecnocracia dedi209 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS cada a uma teoria dos jogos, que esta não tem referências éticas ou cultur . · po der po Imco, ' · e o re 1ac10namento · encontrar uma e1orma nova de genro dais,· poderes, é uma urgência que a globalidade torna aguda. Os A queda do modelo bipolar, que já parecia estrutural pela longa dura _ . - entre os superÇao' . . pareceu e11mmar o temor d e Ch ar dºm que era a competiçao deres pelo exclusivismo imperial, mas lançou a problemática do Estado p~f1 cia mundial, com pretendida manifestação no conflito do Golfo, já charnact • 0 . . guerra d o secu ' 1o XXI . ª primeira Existem porém anúncios mais esperançosos na experiência deste fim d século. Por um lado, a formação de grandesespaços que aparecem como a primei e forma de superar as insuficiências do Estado conhecido, grandes espaços q ra · d e segurança. Ue - d e ar d em econom1ca, ' . d e or d em po I'mca, sao As novas criaturas políticas, em desenvolvimento, não anunciam a dispens do poder, mas já deixam supor que pretendem ser uma alternativa para a solu~ ção imperial, um limite para o Directório decorrente da hierarquia das potências, e que implicarão a criação de uma forma, ainda mal pressentida, de poder não correspondente à soberania do Ocidente dos Estados, esta em processo de funcionais,que retiram a soberania aos Estados, sema mudança: as autoridades assumirem, para ordens concretas e restritas de problemas, foi uma das sugestões sábias de Jean Monnet, pensando designadamente no carvão e no aço,e agora ou nos rios navegáveis, ou nas fontes de energia. Neste contexto tem-nos parecido apropriado insistir no conceito defederalismofuncional,uma das formas de responder à perda de soberania e à interdependência, com respeito pela regra do consentimento. A organização da ONU tornou relevantíssimo o ponto de vista, dado que os fundadores fizeram convergir no mesmo texto o legado maquiavélico e o legado humanista que temos referido. Na área da política ou, talvez mais expressivamente, na área do exercício da lógica do poder militar, ficou claro que as grandes potências não aceitariam decisões maioritárias que contrariassem os seus interesses vitais. Daqui o chamado direitodeveto,uma faculdade que possibilita paralisar o Conselho de Segurança, porque não consente a imposição de qualquer decisão da maioria, todavia sempre indispensável para agir. Não foi assim na área da cooperação económica e social, a respeito da qual o artigo 55 foi expresso no "propósito de criar as condições de estabilidade e bem-estar necessários para as relações pacíficas e amistosas entre as nações, baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da livre deter· minação dos povos". As organizações especializadas, designadamente a OIT - Organização Internacional do Trabalho, FAO - Alimentação e Agricultura, UNESCO - Educação, Ciência e Cultura, ICAO -Aviação Civil, OMS - Saúde, 210 INTRODUÇÃO WJPÜ- Marcas e Patentes, AIEA - Energia Atómica, agem mundialmente sem berania, mas com autoridade que limita a área de intervenção das soberanias. 50 acidentes frequentes na área política e estratégica não se verificam nestes os - consegue, vmcu . lad a a' fiunçao - espec1'fi1ca,evitar . ou u 1trad rnínios. Afiederaçao 187 ºssar as questões derivadas do conceito de Estado soberano • Pª0 problema maior com que se entra no próximo século é talvez, portanto, o do governo da globalidade, pregado sem_recomp~n~a pela longa teoria de Pro. ctistas da Paz, quando faltavam os me10s face a dimensão do desafio, e que ieora aparece como um desafio em parte suscitado pela enormidade dos meios - d a so b erama. cl'ass1ca. . ague não po dem ser con fi1ad amente entregues a' gestao q A ordem pela solução imperial continua a ser um projecto cultivado por váriasinstâncias, que evitam a semântica, em qualquer das formas integradoras ou de simples policiamento, mas parece desafiada e rejeitada pelo revivalismo das comunidades históricas de base, pela assumida consciência de sociedade civilmundial, pela experiência acumulada do risco para a paz a que historicamente tem conduzido. A ordem pelo consentimento, que progride em adesões neste fim de século, anda a multiplicar as experiências e, com elas, as frustrações e as esperanças, dos organismos de diálogo, de cooperação, de coordenação, que desarmam as soberanias sem as substituírem, e que obrigam estas a uma redefinição de objecto e de meios, no patamar intermédio dos grandes espaços. a)A globalidade do património cultural: Relatório de 1995 da UNESCO A fundação da ONU, na data em que a velha ordem filiada na SdN tinha sido varridapela Segunda Guerra Mundial, foi orientada pelo ambicioso projecto de fazercoincidir, e conciliar, no mesmo texto, dois legados que não são apenas de origem ocidental, mas que pertencem à herança ocidental: o legado maquiavélicoque fia da superioridade do poder a defesa dos interesses, e o legado humanístico que apela ao consentimento em nome dos valores participados. O primeiro legado foi recolhido no Conselho de Segurança, com as intervenções eventualmente confiadas a forças postas à sua disposição para executar as decisões que são obrigatórias para os Estados; o segundo recolhido pela Assembleia Geral, e com a execução confiada às organizações especializadas em que a UNESCO se inscreve. No primeiro caso foi reconhecido que existe uma hierarquia das potências, negadora nos factos da igualdade proclamada em sede de princípios, e daqui 187 Santiago S:ínchcz González e Pilar Mellado Prado, Sistemaspolíticosactuales,Madrid, 1992, especial mente sobre a Lei de Bona, para aproximação com os projectos federais das forças políticas europeias, p.126. 211 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS decorreu o chamado direito de veto, e as novas majestades das superpotêncj no caso do legado humanístico, as organizações especializadas organizara 111 ~s; segundo um princípio de federalismo funcional, ficaram sempre dependen/e de uma estratégia de financiamento que não ignorava as diferentes capacidades dos Estados membros, mas que preservava a igualdade de voto consagrada es na . , . essenc1a . 1. earta como pnnc1p10 As funções do Conselho de Segurança ficaram como que suspensas em vist do aparecimento dos Pactos Militares, a NATO e o Pacto de Varsóvia, que puse~ ram entre parêntesis, durante meio século, o programa da Carta, de modo qu foi realmente a Ordem dos Pactos Militares que vigorou até 1989. e No entretanto, e talvez sobretudo como efeito da revolução da informação a opinião pública mundial passou a ter a realidade que apenas era suposta pela' ilusões do Presidente Wilson no fim da guerra de 1914-1918. s Lidar com os valores, aferir a relação das políticas com os princípios, ensinar a autenticidade e a defesa dela, tudo assumiu progressivo relevo para essa opinião pública vinculada à decisão e credibilidade de que dependeu a eficácia das alianças, e a intervenção da UNESCO entrou em linha de colisão com 05 interesses das grandes potências directoras dos Pactos Militares. Foi assim que, por fins de 1983, a Embaixadora Jeane Kirpatrich, inspirada pelo mau humor dos EUA, afirmou na ONU que, pelo que tocava à UNESCO "os que pagam a factura não têm voz, e os que têm voz não pagam a factura"'. O conflito de interesses e de percepção teve como protagonista pela UNESCO o Director-Geral Bedjaoui, e como principal crítico os EUA, que acusaram a UNESCO de prosseguir uma "política desastrosa", desenvolvendo "programas tendenciosos", e exercendo "uma gestão extravagante". Por essa data já o globalismo económico tinha adquirido direito a ser reconhecido como estrutural, e o FMI e o Banco Mundial exerciam nessa área um prota• gonismo que não escapava ao controlo dos grandes países industrializados. Independentemente das circunstâncias da intervenção e do tipo de personalidade dos responsáveis da época, pareceu evidente a muitos observadores que os EUA não desejavam apoiar uma organização especializada cujo processo decisório lhe escapava, e que lhe parecia ir à deriva no sentido de privilegiar valores contrários aos sustentados pelo institucionalismo ocidental, de mos· trar sinais de compromisso ideológico, de politização. Foi um incidente em que a preferência então demonstrada pela coopera· ção bilateral nas áreas da cultura e da ciência, privilegiando os países amigos EUA como eram o Egipto, a Turquia e o Paquistão, assentou muito provavel· mente no desencontro entre os conceitos com que as superpotências raciona· lizaram o bipolarismo, e a mudança em tempo social acelerado das estruturas mundiais. 212 INTRODUÇÃO A.evolução que cumulou com o fim da Guerra Fria em 1989, aquilo que mosé que se estava a caminho do ponto crítico em que todas as áreas culturais cro:undo falariam finalmente com voz própria, uma novidade tão alarmante do O influente Samuel Huntington abalaria a polemologia ao prognosticar que queonflito das civilizações será a linha de batalha do futuro". "oC Estava esquecido de que a UNESCO, ao executar o projecto de escrever uma I-Iistóriada Humanidade, cuja publicação se ini~io~ :m 1963, era da perspec·vaglobalista que se ocupava, em busca do patnmomo comum dos homens, e tlor isso o projecto se diferenciava da historiografia anterior ao concentrar-se ~o desenvolvimento cultural e científico, isto é, da "consciência do universal no homem". Embora o alarme ainda se inscreva na linha do entendimento que os EUA manifestaram no sério incidente de 1983, o ensaísta deixa transparecer a esperança quando escreve: "Todavia, o Ocidente também deve desenvolver uma compreensão profunda dos fundamentos religiosos e filosóficos das outras culturas, e pelos métodos segundo os quais os povos desses países definem os seus interesses". Uma referência esta que deveria aconselhar o regresso à UNESCO, e à linha do aprofundamento do conhecimento recíproco de todas as diversidades étnico-culturais em que se analisa o género humano concebido como uma unidade. Recordaremos, como uma das contribuições mais valiosas, a investigação ordenada pela UNESCO em 1949, destinada a inventariar e difundir "os dados científicos pertinentes às questões raciais", e a preparar "uma campanha de educação baseada nesses dados". A participação multidisciplinar foi exemplar, e a proclamação de 18 de Junho de 1950 permanece como um texto fundamental de referência quando reaparecem, em mais de um lugar, as manifestações racistas, os fundamentalismos xenófobos,as leituras restritivas e desencontradas dos direitos do Homem, com o Estado em crise de soberania, com as fronteiras a mudarem de definição e de função, com a sociedade civil a mundializar a sua dimensão, com a cultura transnacional e crescer de importância no património mundial. Pela data do inquérito e da Proclamação de 1950, o tema da descoloniza~ãoocidental, tendo sobretudo em vista a retirada das soberanias europeias de Africa, e a eliminação do apartheidna África do Sul, pareciam ser os pontos críticos da discriminação e dos mitos raciais, aparecendo logo a seguir, na tabela das inquietações, a situação dos aborígenes da América Latina, o tema dos civil rightsna América do Norte, e o estatuto das minorias nos vários orientes que iam chegando ao diálogo internacional. Talvez não tenha sido geralmente pressentida a evolução que conduziu, em meio século de concorrência entre o magistério dos valores e os factos do pro213 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS cesso político, a que Estados ciosos da homogeneidade cultural, da circuns , eia nacional da sua identidade, e que defendiam essa condição pelo cont tal\. das migrações nas fronteiras e pela discriminação interna, tivessem de evr~lo 0 cionar para multiculturais. liEste foi um efeito de muitas causas, entre elas o funcionamento do mercad de mão-de-obra barata e sem protecção social, mas também do alargamento d0 direito de ir pelo mundo, e do processo de transparência das fronteiras den tr 0 dos grandes espaços. Um primeiro caso que serve de exemplo é o dos próprios EUA, hoje talv definitivamente um país bilingue, com a hispanidade a progredir da costa le ei em direcção ao Atlântico, e com o movimento dos civilrigtlzsa triunfar na ord:e política e na mentalidade da sociedade civil. ll! Outro caso é testemunhado pela evolução europeia, em cujo território O isl . mismo é professado por milhões de imigrantes que já representam a segun; religião de França, por povos que no flanco sul da NATO obrigam à revisãodª conceito estratégico, que no plano mundial exigem uma reflexão e uma nov: atitude no convívio com uma cultura que se alarga por um cinturão que vaidas Colunas de Hércules à Indonésia, dividindo o Norte do Sul do globo. As perturbações do processo de adaptação dos conceitos e dos comportamentos a esta nova irreversível situação, tornam-se mais agudas quando se soma depois da queda do Muro em 1989, aquilo que já se vai chamando a revolta da~ nacionalidades a Leste, o despertar da outra Europa, a das regiões, das minorias nunca completamente integradas num modelo de Estado nacional, das identidades etno-culturais, dos separatismos como aconteceu na Checoslováquia e ameaça acontecer na Itália, da violência que se eterniza com os bascose na Irlanda do Norte. Sempre o pluralismo que enriquece quando converge,e que dinamiza as cóleras quando é a força que decreta as estruturas da subordinação, e da exclusão. Por isso, a iniciativa do Ano da Tolerância, em 1995, veio corresponder a uma exigência aguda da nova conjuntura, obrigando a meditar sobre o pluralismo étnico, cultural, religioso e político, com uma nova dimensão, agora internacionalizada, e que o PNUD problematizou com os seus Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, o último tornado público em 11 de Junho de 1997. Convergindo com o pensamento da UNESCO, este documento proclamao seguinte: "a pobreza tem muitas faces, é muito mais do que baixo rendimento. Ela reflecte também educação e saúde escassas, privação de conhecimento e comunicação, falta de condições para exercer os direitos humanos e políticos e a ausência de dignidade, confiança e respeito próprio". . A generalidade dos temas da educação que implicam com a pobreza de muitas faces está abrangida pela intervenção da UNESCO, desde a educação para ° 214 INTRODUÇÃO à educação para a cidadania, fazendo constantemente a navegação entre aP~zemas observantes propostos e os sistemas observados na realidade social s s1st . , _ rase revela, ora resiste a percepçao, que desperta para a mudança ou que . queºrma de fundamenta 1ismo. seª Do Relatório agora publicado, destacamos a educação para a paz, os direido Homem e a democracia. Quanto à paz, é no acto fundador da UNESCO tOS se afirma que a guerra começa no coraçao - dos homens, e nesta area ' - se nao queontrou polemologia que adiantasse mais do que aquilo que Gandhi sabia, encdo que Santo Agostm · h o ensmou . . sob re a guerra. Mas o d esastre em que viveouosé que não foi suspeitado pelos que viam na queda do Muro em 1989 o iní~0 da distribuição dos dividendos da paz. ct Na área que ainda há poucos anos chamávamos do Terceiro Mundo, e que )amavapor educação, instalaram-se sociedades de guerra, isto é, que apenas c . d . conhecem a guerra como maneira e viver. De acordo com um recente projecto de investigação da Universidade de Leyden,só no período entre 1995 e 1996, isto é no espaço de tempo a que se refereo Relatório da UNESCO que apreciamos, verificaram-se vinte conflitos maiores,uma classificação que se refere a confrontos que tenham causado mais de 10.00 mortos num ano, designadamente no Burundi, Ruanda, Tchechénia, Bósnia-Herzegovina, Afeganistão, Argélia, Iraque, Sri Lanka, Turquia, Serra Leoa, Libéria, Índia, Paquistão, Colômbia, África do Sul, Cambodja, Angola, Sudão,Tadjiquistão, Zaire. Ascausas são de identificação aleatória, mas a combinação de factores étnicos,culturais, religiosos, está presente com frequência, e a pobreza parece uma moldura que potencializa a conflituosidade. Acontece porém que não se trata apenas dessa pobreza como facto, acrescem sentimentos de privação superior à de outros grupos étnicos ou culturais, por vezes porque um rápido desenvolvimento económico e social abriu feridas no tecido social, separando grupos que tinham coexistido em paz. Que o radicalismo político-religioso venha dar uma cobert ura ao mesmo tempo de justificação e de incitamento à violência não é raro, como demonstram os conflitos entre muçulmanos e hindus no subcontinente indiano. Mas o fundamentalismo também se manifesta em comunidades cristãs e judaicas, embora a regra no Ocidente seja a de que actuam com respeit o pelo observância das normas democráticas. Constru ir os alicerces de uma paz generalizada, que finalmente exclua a anarquia madura em que vivemos, cada vez mais parece depender, não sobretudo das relações bilaterais, não da ajuda traduzida na doação de bens e serviços, mas sim da cooperação, e esta tendendo para multilateral e, portanto, como que despersonalizada. 0 215 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Esta ajuda multilateral foi o método logo preconizado pela ONU na d da fundação, com esperanças depositadas na OIT, na OMS, na FAO, na Üf\.ªta e na Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultu C:i, UNESCO. ra... A tolerância aparece como um val~r de implant:ção prévia, e~pécie de Pedr fundamental, porque sem ele não se vislumbra pacifismo de proJecto que Po a levar ao resultado do pluralismo convergente, interdependente, e pro dutor~sa futuros participados. e Não tem sido fácil implantar a convicção de que o verbo, instrument o ess cial da educação, é um elemento poderoso contra a violência que mais con~no poder material de impor uma ordem, submissões, regimes políticos, eq ~~ . d e po d eres mun d"ia1s. · Ui l1'b nos Mas conviria reforçar a confiança despertada pela queda do Leste soviético, recordando o que foi a saga dos resistentes da Europa Central, os obrj. gados pela Carta 77, aqueles que, como Havei, acreditaram no poder dos que não têm poder, e com a palavra foram disfuncionando o sistema político que subjugava os seus países e os seus concidadãos, mas não as suas inteligências e mesmo as suas consc1encias. A experiência dos últimos decénios, que foi tornando mais amplo o saber a respeito da globalização, parece ter mostrado que a educação em matéria de direitos humanos é uma das exigências prioritárias para que se possa gerir em paz o processo integrador e mundializante. Foi nesse sentido que se posicionou a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, reunida em Viena de Áustria em 1993, cuja Declaração e Programa de Acção recomenda aos Estados uma intervenção responsável e consistente no sentido de assegurar "uma educação na matéria e a difusão de informação junto do público tendo particularmente em conta as necessidades das mulheres a esse respeito". Desejaria contribuir para salientar que se trata hoje fundamentalmente da inadiável necessidade da educação para o que podemos chamar o exercício de uma cidadania mundial. Muitas das discriminações de que a UNESCO se ocupa, e que procura eliminar, tiveram reflexo numa contradição duradoira entre os direitos do Homem afirmados nas Declarações de sentido mundializante, incluindo a das Nações Unidas, e a abrangência dos direitos, liberdades e garantias consignados nas constituições políticas para os cidadãos. Estes últimos, que no mundo anglo-saxónico foram chamados civilrightse civilliberties,foram muitas vezes reservados apenas a uma parte do povo, corno aconteceu logo em Filadélfia na data da independência dos EUA, que deixa· ram fora do direito à felicidade, proclamado para os americanos, os escravos • li. 216 • ' INTRODUÇÃO tão andavam por três milhões, e os aborígenes que sobravam do genoue en q, . entretanto executado. . . crdto mesmo aconteceu por to d o o contmente que segum. o mo d e lo constttu0 . al do Norte, e haveria de verificar-se no vasto império colonial europeu do 0 '.ºnlo XIX,quando as democracias estabilizadas da frente marítima europeia f. secu . "diram ocupar o contmente a ncano. dectEntretanto, os catac 1· . ismos m1·1·1tares, em que se a fun dou o sistema euromun. a levaram a suprir as insuficiências do Estado soberano pela organização .. . , . d1st , d grandes espaços, uns m1htares como a NATO, outros amda apenas econom1\ como o Mercosul, finalmente a caminho de assumir completa identidade ~ . E . olítica como a Umão urope1a. P A liberdade de circulação e fixação legalmente definida, como acontece nesta área europeia, ou simplesmente os factos do mercado de trabalho, comeam a impor a consagração do direito de intervenção na gestão pública com ~ase na vizinhança, e por isso se fala já na cidadania europeia, efectiva nas administrações locais. Por outro lado, no plano da mundialização, todo o intervencionismo que a comunidade internacional assume e legitima em nome dos interesses da Humanidade, tende para tornar insustentável a contradição entre os civilrightsdas constituições nacionais, e os direitos do Homem que se afirmam sem limitações de soberanias ou de fronteiras. Digamos que a educação na área dos direitos humanos, tendo em conta todos os aspectos parcelares mas exigentes que os programas da UNESCO corntemplam, terá de tornar coerente a cidadania estadual com a cidadania do grande espaço, e finalmente com a cidadania mundial que se expressa nas Declarações mundiais. Uma evolução e uma exigência de grande alcance, porque a própria revisão da Declaração Universal da ONU terá de incluir novos direitos individuais ali não previstos. Por exemplo, o direito a exigir o cumprimento dos tratados pelos Estados dificilmente será negado, para ser exercido pelos que desfilaram em protesto nas várias praças do mundo, abalado no passado pelo tratamento dos tratados cornosimples pedaços de papel; ainda o direito à preservação do ambiente global, o direito à defesa e conservação de patrimónios comuns da Humanidade, e finalmente o direito à paz como direito fundamental dos homens. A pedagogia terá de definir-se, a responsabilidade de cada instância terá de alargar-se, a competência global da UNESCO não poderá deixar de assumir essa dimensão em prioridade. Finalmente, deixarei ainda um comentário sobre a educação naquilo que respeita a intervenção dos meios de comunicação, sobretudo da televisão, e que 0 ensino oficial adaptou moderadamente no chamado ensino à distância. 217 TEO RIA DAS RI:LAÇÔES INTERNACIONAIS Quando se refere a modéstia da intervenção oficial não se tem em vist qualidade, mas sim a dimensão do alvo a atingir. Os grandes grupos multi mé~-ª parecem ter assumido a criação de uma cultura transfronteiriça, com públj ta competição por alianças, tomada de posições accionistas, usando essa noca forma de conquista que se chama OPA.Os ganhos não têm fidelidades nacion:ª . necessanas, , . e ateo log1a . d o merca d o, que recompensa os virt . uosoIS ou cu ltura1s da crença com o domínio das audiências, é que orienta a competição. s As especificidades culturais defrontam-se com as campanhas chamada globais, de modo que os Dallase Dinasty,e as reacções, desenham agora hierar~ quias de centros de e_missãomoldados em termos que recordam a antiga hierarquia das potências. E de lembrar que não foram apenas os Estados do Norte d mundo que entraram nessa competição em nome das suas identidades e inte~ resses, também o Terceiro Mundo se apercebeu da necessidade de lutar, selll êxito, por uma Nova Ordem mundial de informação, a questão que esteve na base da crise da UNESCO de 1983. Esta revolução da comunicação teve um efeito notável na área da política internacional, que foi o de violar o regime de censura dos Estados totalitá rios e permitir aos mecanismos oposicionistas desenvolverem redes de informaçã~ paralelas que combateram a imposição sistémica oficial. Até os procedimentos dos governos se alteram, porque os dirigentes dos grandes e pequenos países recebem a totalidade da informação em tempo real, mas quando decidem já a opinião pública os condiciona porque reagiu mais rapidamente do que os aparelhos burocráticos. Todavia, esta intervenção que se mundializa e que cobre todas as áreas da responsabilidade da educação, tem certamente uma vinculação domina nte à referida teologia de mercado, mas é duvidoso que por isso a tenha sempre em relação aos valores da paz, do desenvolvimento equitativo, da luta contraa pobreza nas suas várias frentes, da tolerância que deve responder ao encontro de todas as áreas culturais, da situação das mulheres e das crianças, da elirni• nação das sociedades de guerra , do fortalecimento da família em função de cada área cultural, da consideração de cada ser humano como um fenómeno que não se repete na história da Humanidade, da educação para a cidadania mundial em função da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Reco· nhecendo os dados altamente positivos desta revolução da informação, e a sua contribuição para o processo da mundialização, designadamente porque foiela que tornou possível avaliar o passivo global da nossa responsabilidade, é tempa de a análise científica e pedagógica, da competência da UNESCO, encarar e definir remédio para os defeitos das virtudes desta intervenção informal no processo educativo. 218 INTRODUÇÃO ~ tobalidade do passivo: povos mudos - povos dispensáveis b) ~rnos de referência mais abrangentes da conjuntura deste fim de século, ºI c;010 resulta da crescente bibliografia que tende para adoptar uma unidade ca c odeio, são o globalismo e os direitos do Homem. A percepção teilhardiana de :rnplexidade crescente tem sempre resposta no primeiro dos referidos conda_c os O qual cobre um sistema observado que por sua vez se desdobra em várias ce~ts· ~ sistema observante que a Carta da ONU e o ideário ocidental da guerra c~;;tam como bandeira, tendo recebido expressão formal na Declaração Unia sal dos Direitos do Homem de 1948, reconhece-se com mais dificuldade na ver ealidade que entretanto se desenvolveu. r Em grande medida, a evolução no sentido da submissão do globo a um sistema, que em muitos aspectos substituiu pela submissão as prometidas autonomias das comunidades e das pessoas, implicou o sacrifício de valores que amparavam a promessa de que nem os homens nem os povos voltariam a ser usadoscomo instrumentos de projectos alheios. Trata-se, em suma, de ter acontecido uma vez mais que entre as promessasdos dividendos da paz, e a sua realidade implantada, se verificou uma falta de coincidência e uma distância que fizeram permanecer, com nova medida e com novo perfil, a falta de autenticidade que deu carácter ao intervalo entre as duas guerras mundiais. No que respeita aos valores que se congregaram na ideologia ocidental da guerra, basta consultar as prospectivas e as avaliações globais para verificar facilmente que andam afastadas dos critérios, dos modelos, e dos objectivos então proclamados. Em plena Guerra Fria, quando ninguém se atrevia a prognosticar a queda do Muro de Berlim em 1989, o famoso Hudson Institute, com o qual pontificaram Herman Kahn, William Brown e Leon Marte!, traçava um cenário para os próximos duzentos anos, o qual se ocupava das perspectivas dosempregos, do consumo, da energia e seus custos, das profecias e realidades relativasao petróleo, do custo dos metais, do crescimento da população mundial, do produto mundial bruto por habitante, custo do controlo da poluição em relação ao produto nacional bruto, e nada a respeito da paz, da autodeterminação dos povos, dos direitos do Homem, da relação do desenvolvimento com a equidade. Todavia estávamos em 1976, e dois anos antes Soljenitsine tinha sido expulso da União Soviética, por coisas como ter publicado em 1958 Um dia de Ivan ficando obrigado a publicar apenas no Ocidente os seus maniDenissovitclz, festos posteriores; em 25 de Abril desse ano dera-se a Revolução portuguesa que desencadeou efeitos consideráveis na estrutura internacional, incluindo o destino de Timor; o Presidente Richard Nixon evitava o impeaclzment anteci- 219 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS panda a demissão; começara em 1975 o desastre do Líbano; os cubanos tinh desembarcado nesse ano em Angola; os EUA festejavam o bicentenário da in~lll pendência. Parecia indutável ter recordado a Declaração dos Direitos de délfia, e oportuno avaliar a medida em que se tinha projectado na realid;;mundial, mas essa preocupação não recebeu forma no texto que entretanto e Se tornou famoso. Talvez deva recordar-se, para avaliar tal alheamento, que a Carta da ÜNlJ naquilo que diz respeito à ordem e segurança mundiais, tinha sido posta ent ' parênteses pela ordem dos Pactos Militares (NATO-VARSÓVIA) que duran:e cinquenta anos se manteve em vigor com base na dissuasão nuclear, isto é, co e tn base no medo recíproco, uma variável nova na história mundial. No entretanto, mantida, com alguma fragilidade, a área de intervenção da organizações especializadas, e, logo depois de finda a Guerra Fria, a ONU anun~ ciou o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, cujos Relatórios desde o início, em 1990, procuraram "acabar com a incorrecta avaliação do progresso humano apenas através do crescimento económico". Uma das repetidas conclusões é que "o desenvolvimento que perspectiva as desigualdades actuais não é sustentável nem merece ser sustentado". Esta afirmação não pode deixar de lembrar que o conceito de desenvolvimento acolhido na Carta da ONU era integrador de três vertentes inseparáveis, desenvolvimento político, social e económico, e não apenas do último que tanto inspirava a filosofia desenvolvimentista e a frustrada ideologia das p·t raisingexpectations. No centro da problemática das vertentes do desenvolvimento político e social, está a questão dos direitos do Homem. Acontece que a Declaração de 1948 foi, com algum fundamento, considerada dependente das escalas de valores e modelos europeus, e por isso consi• derada de difícil entendimento coincidente nas áreas, por exemplo, de cultura islâmica, ou do humanismo oriental. Todavia, essa avaliação dirigida aos direitos do Homem da primeira geração, contidos na Declaração de 1948, muda de sentido em face da codifica ção feita pelo Tratado sobre direitos civis e políticos de 1969, entrado em vigor dez anos depois, quando finalmente estava ratificado por 35 Estados. Não apenas parece infundado alegar a vinculação europeísta de tais direitos, como parece claro que os direitos do Homem correspondem a um sistema baseado na lei internacional, como sublinhou Volkmar Koler, com precedê ncia sobre o direito interno. O que significa que não é lícito invocar a inviolabilidade da jurisdição interna para cobrir os abusos. Acresce que, depois da declaração final de 1993, feita pela Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, também os direitos chamados de terceira geração, todos relacionados com o desenvol· 220 INTRODUÇÃO . ento com equidade na orientação de Patrício Aylwin, foram incluídos num 1, smtese ' . vunsenso umversa · proposta, como fc 01• o b serva d o, d a tra d"1ção cnstã, d' . . I' . d h . fi . . con d cranscen enc1a 1s am1ca, e o umamsmo con uc10msta. ª Em nenhuma área cultural do mundo é hoje lícito, para qualquer sobera. invocar a filiação ocidental dos textos legais sobre os direitos humanos, e 111 ª1'amar uma leitura objectivamente diferenciada para legitimar as sua práti- rec as abusivas. e Élamentável, mas indispensável, ter de reconhecer que também neste domí- io é larga a distância entre o modelo observante elaborado pela legislação e ~esoluçõesdas instâncias supranacionais e o modelo observado da realidade •ncernacional. 1 Por isso, num mundo em que a sociedade civil evolucionou para transnacional, muitas organizações não-governamentais assumem a voz dessa solidariedade nova e horizontal que se eleva contra as soberanias múltiplas e relutantes, e acusam a falta de meios e métodos para forçar à efectiva vigência dos direitos humanos juridicamente reconhecidos. Quando da recente reunião da Comissão da ONU para os Direitos Humanos, em Genebra, ainda, por exemplo, foi possível ao governo da China evitar resoluções críticas usando o veto ou solidariedades de interesses . Mas já não é possível às soberanias, mesmo privilegiadas com a majestade do veto, evitar que a Amnistia Internacional, e outras organizações humanitárias,mantenham na agenda da opinião pública mundial práticas que especialmente dizem respeito à República Popular da China, à Colômbia, à Nigéria, à Turquia, e à Indonésia e a Timor. Deste modo vai sendo possível evitar que a falta de vontade política suficiente para que a Comissão dos Direitos do Homem da ONU decida livremente em função da realidade degradante, autorize o silêncio e a prescrição pelo esquecimento. No longo entretanto, como consta do recente relatório do International Committee da Cruz Vermelha, consagrado à avaliação do respeito pelo direito humanitário internacional, verifica-se que foi alcançado "um nível sem precedentes de barbaridade" nos conflitos em que intervém a força militar. Esta situação parece ter relação com o facto de a Carta da ONU ter sido um exercíciofrustrado no sentido de conseguir a coexistência, e harmonia, entre 0 legado maquiavélico ocidental que reconhece a hierarquia das potências no Conselho de Segurança, e o legado humanista relegado para a Assembleia Geral sem poder decisório. Foi o primeiro que conduziu à substituição efectiva do modelo proposto para a ordem e segurança mundiais pela referida Ordem dos Pactos Militares que vigorou até 1989. 221 TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A revisão da estrutura colonial euromundista em que se viveu até à Segund Guerra Mundial, ficou condicionada pela avaliação da balança de poderes rnu ª dial em formação. Por isso, se todos os impérios da frente marítima europe~1 ª . d e sub meter-se a'd esco 1omzaçao · - programa d'a, e certo que nem os EDA tiveram nem a URSS encontraram, na sua vasta área de soberania, nenhum povo Para autodeterminar. Muito pelo contrário, os EUA seriam autorizados a integrarem o Hawai e Alasca no seu território nacional, coisa não consentida a qualquer outro Estad:. a URSS, detentora do maior império terrestre e colonial, manteve Íntegra ' doutrina das nacionalidades que o próprio Estaline elaborara, até que a Peres~ troika permitiu finalmente olhar para dentro das coisas. Os limites da tolerância existentes e respeitados durante o meio século de ameaça recíproca entre os blocos, permitiram uma política de metades: duas meias Europas, duas metades de Berlim, duas Coreias, dois Vietnames, dois Iémenes; consentiram liberdades unilaterais como na Grécia, na Hungria, na Checoslováquia, no Afeganistão; e além disso promoveram a existência, para além da situação dos direitos do Homem, de duas categorias de povos, às quais foi negado o direito à autodeterminação, que são os povosmudose os povosdispensáveis. Nos primeiros se incluem, como exemplo significativo, os vinte e três milhões de curdos que teimam em subsistir: 12 milhões na Turquia, onde representam 20% da população; 4,5 milhões no Iraque, atingindo 25% da população; 1 milhão na Síria, correspondendo a 9% da população; ainda, uma diáspora no martirizado Líbano, cuja reabilitação internacional acaba de ser pregada por João Paulo II. Todavia, e não obstante as declarações de princípios e as práticas descolonizadoras da ONU, os curdos são referidos sempre como minoria dos vários territórios onde se encontram as parcelas em que os dividiram, e não são autorizados a falar por si próprios ao mundo, em nome da unidade do povo. Desde 1995 que a questão dos curdos é o problema principal da Turquia, onde uma guerra contra o chamado Partido dos Trabalhadores do Kurdistão (PKK)procura dominar o separatismo, matou mais de 20.000 pessoas, levou trinta mil homens das forças armadas a invadir o Norte do Iraque para tomar as bases e o santuário assegurados pelos que vivem nesse lado da fronteira. Podemos lem· brar os tamils de Sri Lanka, os tutsis e os hutus do Burundi e do Ruanda, sem esquecer os irlandeses do norte e os bascos peninsulares. Deles falam alguns, em vez deles falam as soberanias interessadas, mas eles próprios são oficialmente mudos por razões de interesses alheios. Neste fim de século, ao qual foram prometidos os dividendos da paz, os povos mudos ainda tendem para serem considerados povos dispensáveis, víti· mas de eliminação programada. 222 INTRODUÇÃO Aexperiênci~ do passado, não m_uitolo~gí_nq~oe datad~ ~té pelas a~to?eter. çõeSliberais e pela proclamaçao do direito a revolta e a mdependenc1a que (!llnaersonalidade aos Estados de todo o continente americano, conheceu essa de~ica de que foram vítimas os aborígenes. Desse modo desaparecem as pode. , . entre o At 1ant1co • . e o p ac1'fi1co,um f:acto prat tribos que povoavam o terntono 5 rosa documentado por Tocqueville em algumas das suas páginas dramáticas. Iog~uando a guerra de 1939-1945 viu incluir a solução final entre os objectidaAlemanha,que para isso exterminou seis milhões de judeus, toda a pregação :ológica foi desenvolvida em torno do conceito de povo dispensável, e até da 1 igência e justificação de o dispensar. ex A condenação mundial de semelhante prática, a incriminação do genocídio e dos crimes contra a Humanidade, a criação do Tribunal de Nuremberga, execução humilhante dos responsáveis alemães, a criação de santuários nos ~ugaresdos sacrifícios, a construção dos museus da memória, a responsabilizaçãodos aparelhos educativos pelo alerta da consciência das novas gerações, nada foi suficiente para que a categoria dos povos dispensáveis fosse definitivamenteeliminada. O legado maquiavélico guardou a sua área de vigência com êxitoem relação às pretensões do legado humanista. Lembremos, como exemplo significativo, a guerra do Biafra que, durante dois anos e meio, massacrou a população dessa província que pretendia exercer a autodeterminação em relação à Nigéria. Em meados de Janeiro de 1970 0 chefe da revolta, general Philip Effiang, ofereceu a rendição sem condições ao governo de Lagos. Nessa data os observadores anunciaram que tinham sido mortos dois milhões de ibos, habitantes do Biafra, numa população de catorze milhões de pessoas. Foi inútil que a Cruz Vermelha, logo em 1968, tornasse públicoque eram eliminadas 8.000 a 10.000 pessoas diariamente, descrevendo o sofrimento sem igual das crianças, e salientando que a maior parte das vítimassucumbia pela fome nos campos de concentração. Apaz e o silêncio desceram simultaneamente sobre o território, com os interessesdominantes pacificados pela redução de um povo dispensável. Sugerimos que é neste vasto passivo da Ordem finda dos Pactos Militares que se inscreve o drama de Timor. Com fortes pressões sistémicas no sentido de reduzir os timorenses à situação de povo mudo, e ao tratamento de povo dispensável por parte da Indonésia. Esta percepção não veio atenuar nenhuma responsabilidade histórica de Portugal, que conduziu de forma deficiente o processo de retirada da soberania. Massem eliminar essa responsabilidade de um país de condição exógena em relaçãoao sistema mundial então vigente, parece seguro que Timor foi vítima, por duas vezes na vida da mesma geração, de genocídio executado no interesse dos grandes poderes concorrentes na área. 223 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Durante a guerra de 1939-1945, Timor ainda era considerado um territó , de importância estratégica para a segurança da Austrália, e por isso as forrio australianas o invadiram, violando a neutralidade portuguesa, com prude Ças • . do governo. nte s1·1encw A invasão consequente pelos japoneses, que expulsaram os aliados, deixo população entregue a uma violenta ocupação militar, a qual praticamente dliª truiu o território, em termos de corresponder à definição dos crimes con:sa Human!dade. Ficou dessa época a lendária gesta de D. Aleixo, contada pe;a Capitão Oscar Ruas, primeiro governador português a retomar o exercício~ soberania depois da derrota do Japão e seus aliados. As coisas mudaram entretanto radicalmente no período em que vigorou Ordem dos Pactos Militares, em parte porque Timor deixou de interessar ª ªº conceito de segurança australiano, bastando como razão a evolução da arte da guerra. Durante o período da descolonização e da consolidação do estatuto internacional da Indonésia independente, o Presidente Sukarno, o mesmo da geração de Bandung, declarou mais de uma vez que o seu país apenas pretendia o território da antiga soberania colonial holandesa, e que não tinha pretensões sobre Timor-Leste. Esta boa conduta estava de acordo com a orientação da ONU que era no sentido de manter as fronteiras territoriais sem revisão, um ponto expressamente acatado pela Carta da Organização da Unidade Africana (OUA),e posto em causa pela primeira vez, perigosamente, na crise dos grandes lagos neste ano de 1997. Por outro lado, a proclamada obediência ao preceito também amparavaa pretensão da Indonésia no sentido de obter a tranquila entrega de Irian Jaya, a metade ocidental da ilha da Nova Guiné, cuja parte oriental forma a Papua-Nova Guiné. Ali também vigora uma violência extrema, e notícias veiculadas pela Igreja católica falam de trinta e sete mortos em 1994-1995, havendo informação sobre a acção independentista da OPM (Organização para a Independência da Papuásia) e as violências que recrudesceram em Março de 1996: é um caso que pode suspeitar-se de povo mudo, que o descaso internacional poderá deixar tratar como povo dispensável. Mas aquela boa conduta de Sukarno foi abandonada pelo actual regime do general Suharto, chegado ao poder com a bandeira do anticomunismo e com escassa economia das vidas dos adversários, liquidados por centenas de milhares. Com o expresso proclamado receio de que a Revolução portuguesa de 1974 entregasse o governo de Timor-Leste a um governo marxista, e invocando apre· 224 INTRODUÇÃO ~ anunciou que não assistiria pacífico a essa tentativa, numa mensagem venǪ0 ' • , }lida pelo governo portugues da epoca. 01ªEm1975 invadiu, ocupou, e integrou Timor-Leste no seu território, comedo assim três violações do direito internacional. re\ reacção das potências tem sido lenta, porque é a Realpolitikque principalnte orienta os comportamentos: a Austrália, agora em processo de asiatifica~: do seu conceito estratégico nacional, assume uma definição de segurança ç~argadaque inclui a defesa das boas relações e solidariedade com a potência ª ilitar regional que é a Indonésia; os EUA, em crise de solidão depois da queda : Muro em 1989, têm a Indonésia como principal aliado militar nesse vasto 0 pacífico,e cala ali o discurso humanista que entretanto vai fazendo pela Amé.caLatina, e que também coloca em surdina quando chega a Pequim, uma des;aça que acontece aos povos pobres, Timor tem petróleo e isso conduz mais rapidamente ao acordo dos interesses, do que ao interesse pelos direitos dos povose pelos direitos do Homem. Tudo circunstâncias que explicam porque é que uma situação tão profundamente em desacordo com o direito internacional, foi também objecto de um processo de deturpação da imagem para a fazer perceber como um diferendo entre a Indonésia e Portugal. Realmente é uma grave questão entre a Indonésia e as Nações Unidas, isto é, entre a Indonésia e a comunidade internacional, da qual não podem licitamente alhear-se nem o Conselho de Segurança, nem a Assembleia Geral, nem a Comissão de Direitos do Homem, nem o Conselho de Tutela. Portugal, sejam quais foram as suas responsabilidades históricas, é hoje apenas potência administrante, legitimado pela Carta da ONU para representar e defender os interesses e direitos dos timorenses, como povo e como pessoas. Nisso não pode Portugal transigir, porque não cura de interesses próprios, cumpre sim um dever jurídico para com a comunidade internacional, assume um dever moral e internacional para com os timorenses, não recusa a responsabilidade histórica que lhe pertence, e nem beneficia de inventário. Esta autenticidade de conduta, que obteve adesão unânime das forças políticas, das instituições e da sociedade civil portuguesas, não teria certamente sidosuficiente para evitar que sobre Timor continuasse descendo a cortina do esquecimento destinada aos povos tratados como mudos e dispensáveis, se o tribunal da opinião pública mundial, hoje de facto afirmado na sociedade civil transnacional que se organiza com voz própria, não tivesse sido alertado pelos meios da comunicação social que surpreenderam a violência, pelos timorensesque no exterior fizeram o clamor pela justiça, pela Igreja católica portadora da herança dos teólogos juristas que aqui mesmo, nas nossas Universidades, designadamente Suárez e Molina, mais os seus discípulos da nossa Escola de 225 -- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Direito Natural de Évora, lançaram os fundamentos dos direitos dos Home ns e dos povos. A campanha que o Prémio Nobel recompensou, e fortaleceu, é verdadeir amente uma demonstração do poder do Verbo, do poder dos que não têm pode da capacidade que a palavra inspirada tem de disfuncionar um sistema violen/ em favor da justiça. Que será feita, segundo nos diz a esperança que sustento todos os que participam neste bom combate. ª e) Educar para a cidadania mundial A questão da educação para o exercício da cidadania, que foi escolhida para tema inicial do encontro promovido pelo nosso Conselho Nacional da Educação em 1997, está evidentemente situada entre os mais desafiantes temas da crise do sistema educativo. Talvez dela possa dizer-se, com maior propriedade do que a respeito das muitas outras, que todos os seus termos de referência aparecem condicionados pela regra segundo a qual os factos se alteram em tempo social acelerado, e os conceitos operacionais se modificam em tempo social demorado. Lembramos que o uso do conceito assentou também, entre várias razões numa preferência ideológica contraposta, desde as Revoluções Americana~ Francesa, à qualificação de súbdito, entendendo-se que a última implica uma submissão que aquele conceito rejeita. A envolvida concepção de lealdade em relação a um Estado não abrangeu porém toda a população, e o seu conteúdo considerou-se vinculado à existência de uma Constituição que inclui uma enumeração dos direitos e garantias do cidadão. Este conceito sempre consentiu na existência de grupos submetidos ao Estado, mas sem acesso à cidadania, como aconteceu designadamente com os escravos, com os aborígenes da América, e, menos agressivamente, com os estrangeiros residentes ainda que permanentemente. Estávamos longe da cidade grega, mas não tão longe de Aristóteles, com o Estado soberano a imprimir um carácter atomístico à semanticamente chamada comunidade internacional. Esta distância contribuiu para enriquecer o pluralismo conceituai que distingue por um lado os direitos cívicos (civilrights)que são inerentes à qualidade de cidadão, e que na literatura por vezes também são chamados liberdades cívicas (civilliberties),e por outro lado os direitos humanos que pertencem a rodo e qualquer homem independentemente do lugar e condição de cidadania elll que se encontre. A pretensão dos Estados racionais-normativos, cujas constituições têm sem· pre uma declaração de direitos, liberdades e garantias, é a de concordância 226 INTRODUÇÃO cial entre os direitos civis e os direitos do Homem, mas movimentos chacendendos civil rightsque apareceram nos EUA mostraram, ainda neste século, mado~otinh a desaparecido a necessidade de impor o respeito efectivo dos 11 q~e. os, liber dades e garantias previstas na Constituição, designadamente em diret~oaos negros. O CivilRigthsAct de 1964 deu sentido à evolução a favor da relaça tendcidad e. au Não obsta nte a perspectiva mundialista e ecuménica que se traduziu na laraçáo Universal dos Direitos do Homem da ONU (1948), o conceito e a pe~idade do Estado soberano, que dominaram a vida internacional até ao fim ~easegunda Guerra Mundial, sobreviveram no tempo social demorado, ensombª ndo a percepção de que a referência dos direitos do Homem tendeu para ~:rapassar a limitação conceituai dos direitos, liberdades e garantias, ligados ~a Cl"dadania, à medida que as interdependências e dependências mundiais se consolidaram, e que o mundialismo se firma ao mesmo tempo como modelo bservante e como realidade observada. 0 Para a realidade observada, tornou-se geral o conceito de aldeia global entendida como mundialização ecológica, do económico, e do político, o todo apelando para o que alguns chamam uma democracia avançada, por incertos que sejamas análises e pressupostos organizativos. Talvez não seja ousado identificar a crise do Estado soberano como elemento essencial da nova conjuntura, o que significa estarem em causa áreas de intervenção dessa criatura, os seus limites espaciais de acção, as capacidades disponíveis,as lealdades dos indivíduos, os valores de referência, incluindo os que dizem respeito à cidadania, às formas que esta pode revestir e aos termos do respectivo exercício. Pode filiar-se na mudança das estruturas mundiais, que definitivamente afectaramo papel do Estado soberano, o facto, que parece bem identificado, de osdireitos do Homem tenderem para ocupar a proeminência que pertencia aos direitoscívicos, no sentido de eliminar, ou ao menos de progressivamente esbater,a distinção entre uns e outros, com reflexos expressos em novos conceitos de cidadania,de sociedade civil, de liberdade de circulação e fixação de residência no mundo, de participação na gestão local e nacional, e, finalmente, na revisão da própria enumeração dos direitos do Homem, que enfrenta as exigências de reformulação inevitáveis em cada mudança importante da conjuntura. Não parece difícil reconhecer que a década de oitenta, deste século a findar, foimarcada pela questão dos direitos do Homem, os quais, como foi observado por Paul Thibaud, foram reconhecidos como referência básica das legitimidades políticas e sociais, apoiadas em movimentos políticos como a dissolução do sistema soviético, usando organizações como a Amnistia Internacional, e movimentos humanitários como o da medicinasemfronteiras. 227 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Isto ao mesmo tempo que a crítica do projecto da sociedade reconciliact conduzida por Cornelius Castoriadis, alinhava as debilidades do maneis a, do Estado, e que Paul Ricoeur remetia o conceito para o capítulo das utotº 1 baseadas na suposição de que o poder político será alguma vez alheio a in ª8 . ~ resses e preconceitos. Pelo menos no espaço ocidental, a velocidade da mudança concorreu P que os direitos do Homem se perfilassem como o ponto de referência; e partida, para ultrapassar os antagonismos de interesses e as ameaças deu e poder político incontrolado, visando um pluralismo democrático solidamen: apoiado no entendimento de que tais direitos do Homem são oponíveis a qua~ quer regime e em qualquer lugar da Terra. Foi uma previsão de Norbert Elias, em cujos ensaios, escritos entre 19 39 e 1987, sobre a sociedade dos indivíduos, antecipou que a interdependênci entre o homem e a sociedade se tornaria planetária. a A velha referida temática da relação entre os direitos e liberdades cívicas, e os direitos do Homem, ganhou novos contornos, muitos reconhecendo que findara a época em que os Estados soberanos monopolizavam as relações internacionais, substituindo por um modelo de worldpoliticsparadigm 0 antigo state centricparadigm,para usar a linguagem de Nye e O'Keohane. Mas sobretudo tornou-se evidente, para observadores como Philip Jessup, Robert O'Keohane, Arnold Wolfers, Wilfred Jenks, que na sociedade internacional emergiam interesses que excedem o conceito clássico, e que se apoiam em relações estabelecidas entre homens e organizações sem limitações possíveis pelas barreiras estaduais. A resistência da escola clássica, bem representada por Kenneth Waltz coma sua crítica ao que chamou o mito da interdependência, sustentando que o transnacional ismo não diminuiu a dominância do Estado, tem certamente alguma exactidão para potências do topo da hierarquia, mas parece mais corresponder àquele ponto do tempo tríbulo em que inevitavelmente vivemos, e que representa a presença do que resta do passado em cada época de mudança. Finalmente globalizada a estrutura mundial na sequência das revoluções científica e técnica, dos teatros estratégicos, do mercado transnacional, das comunicações, os conceitos de património comum da Humanidade ao serviço do género humano sem distinções, encontram apoio na realidade de uma cons· tituída sociedade civil mundial, contratual e exigente perante as velhas e múlti· pias soberanias, criando voz própria nas organizações não-governamentais de múltiplas espécies, empenhadas na prevenção e defesa do planeta Terra, queé a casa comum dos homens. Ao mesmo tempo que tardam os dividendos da paz esperados desde 1945, vão aparecendo novas e talvez utópicas propostas como a da União Federal do :a 228 INTRODUÇÃO • cicoNorte, de Clarence K. Streit, a da Constituição Mundial em que trabap.tlan!11os professores da Universidade de Chicago em 1945, ou do Movimento Jharadialpara o Governo Federal Mundial que se organizou no Luxemburgo ?JUO m1946. e Também começam a merecer mais do que uma distraída atenção, reflexões a do visionário Robert Muller, ao elaborar uma ladaínha de lamenta0 c~~ em que anota a divisão do planeta em centenas de fragmentos territoriais çoe qualquer lógica geográfica, ecológica, ou humana, cada fragmento proclase:do-se como mais importante do que o planeta ou o resto da Humanidade, maeforçaro armamento de cada um deles para defender a sua integridade, ou ª rrescentar o seu espaço; condenando a acção dos cientistas, industriais, cons:urores, economistas, militares, que vão destruindo os recurso s fundamentais, não-renováveis, do nosso planeta. Trata-se de enunciar as disfunções do Estado soberano como modelo geral de organizaç ão política, de reconhecer o desafio que tende para ser resol vido fazendo coincidir os clássicos direitos cívicos enumerados nas Constituições nacio nais com a definição dos direito s do Homem, de concluir por alongar a list a destes últimos direitos em função da evolução do globalismo estrutural. Por isso se fala no direito individual à paz, porque este não deve ser o privilégiode poucos, deve ser a condição de todos; para isso se sustenta o direito individual de exigir um planeta desarmado, começando por se dirigir ao seu governo;o direito de ver os seus governos a cumprir os tratados e o direito internacional,designadamente com o corolário do direito de recorrer à intervenção da comunidade internacional contra a violação da regra; o direito a uma educaçãoglobal que elimine a programação para a xenofobia, para a agressividade, parao interesse armado; e por isso o direito a uma informação objectiva e global para cada um poder exercer a intervenção democrática que lhe incumbe; e finalmente o "direito a uma cidadania mundial e governação do mundo", no exercíciodo direito igual de todos os seres vivos ao seu planeta, lembrando Muller as conhecidas palavras de Benjamin Franklin: "Deus permita que não apenaso amor da liberdade mas também o conhecimento dos direitos do Homem impregnem todos os países do mundo, de modo que um filósofo possa descolar-separa qualquer lugar e dizer que está no seu país". O Estado soberano, perante este ambiente do globalismo, perde competênciaspelas cúpulas a favor de organizações supra-estaduais, perde capacidades efectivasna relação entre objectivos e meios, cede à divisão interna de poderes ª favorde autonomias territoriais de variada espécie. Asociedade civil é transnacional, multiplica as fidelidades horizontais pelo contratualismo, cria instrumentos próprios para exercer uma voz autónoma e 229 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS independente em relação às soberanias que se debilitam, vai enriquecend experiência com o método das conferências mundiais, desde a Cimeira da 'l'e; ª do Rio de Janeiro, à Conferência de Pequim, onde foi a sociedade civil mundi: e não as soberanias, quem ousou falar claro. ' Talvez não seja audacioso entender que estamos perante a exigência do rec nhecimento de uma cidadania mundial, que coincide com a definição muodiai dos direitos do Homem, que mais se exerce no ambiente da socieda:civil mundializada do que em relação às soberanias envolvidas e limitadas Poe este novo tribunal da opinião pública mundial para o qual o Presidente Wi!~ son pensou equivocadamente, em 1919, que já podia apelar a favor da paz que encontrou na falta dela a variável que sobretudo lhe dinamizou a compie~ xidade e a consistência. O ensino para a mundialização, para a intervenção responsável e individuai no processo dessa sociedade civil, para enfrentar o passivo da nova condição do planeta, é um desafio incontornável da tal cidadania emergente: o crescimento demográfico, a degradação dos recursos não renováveis, a ameaça à biodiversidade, a miséria de parte da Humanidade, a recusa de voz a povos mudos do mundo como os curdos, o tratamento de povos como dispensáveis reservado às vítimas do genocídio como os ibos e os timorenses, tudo exige uma resposta do processo educativo, do qual a aldeia global é uma responsabilidade. Não parece coerente admitir geralmente a validade deste cenário, para negar que no espaço europeu, onde esteve sediado por séculos o governo do mundo, também o Estado soberano está em crise, também a organização de um grande espaço, novo patamar intermédio entre o modelo estadual e a globalidade, exige revisão dos conceitos dependentes do tempo social demorado para racionalizar a mudança das estruturas, feita em tempo social acelerado. A Segunda Guerra Mundial destruiu o sistema euromundista e, com ele, os pressupostos da soberania absoluta e suficiente. Ainda que sem plano, os grandes espaços multiplicam-se, alterando completamente a primeira e essencial referência da soberania e da cidadania, que é a fronteira, sagrada pela escala de valores históricos e patrióticos. Portugal tem disso uma experiência sem equivalente, porque a mesma geração viveu pelo menos três realidades: a das fronteiras imperiais que, até à década de sessenta, eram todas com soberanias ocidentais, com excepção do então irrelevante caso de Macau; depois, a des· colonização deu-lhe por fronteiras novos países que nenhum deles pertencia à área ocidental, mudando radicalmente a definição da vizinhança; finalmente, depois de 1974, ficou com uma só fronteira geográfica, esta europeia. Mas aconteceu-lhe que a fronteira ao mesmo tempo se foi multiplicando, num processo sustentado que vinha de antes, e que teve que ver com os 230 INTRODUÇÃO spaços. Deste modo, a fronteira de segurança passou a não coincidir gi-andesegráfica, porque é a da NATO em lonjuras mal sabidas pelo contingente colílªge~iros; a fronteira económica transferiu-se para as comunidades euroconscbmetendo a econonua. mterna . . - contra Ia; a a constrangimentos que nao de 5 peͪ fisunteirapolítica anda a ser redefinida na CIG-Conferência lntergovernaoova ~ode1996, e a fronteira cultural teve um primeiro ensaio de fixação com mentado que instituiu a Comunidade de Estados de Língua Portuguesa. 0 f~t:ca foi tão evidente o facto de que o sistema, a que o país pertence, ultraueJJlmuitas direcções o regime constitucional, entendido este como a P~::nsão da capacidade de regência de uma parte apenas do sistema. dt Na sociedad e civil que preenche o espaço europeu, tão recortado por fron• várias, vive uma exigência histórica dirigida ao sistema de ensino, e que 5 ce1ra . E d d . d . . . , . raduz em consegmr que os sta os europeus eixem e ser mimigos muset para se tra ns1ormarem r . . 1· d ·1 em parceiros: o que imp ica que, os quatro pi ares 05 ; educação, aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, e \ender a ser, os dois últimos apontam especiais exigências. ap Educar para a unidade mundial, reduzindo a distância entre países ricos e geografia da fome, eliminando as ameaças inerentes, exige a capacidade de educarpara o pluralismo do grande espaço, neste caso europeu, e ensinar para a salvaguarda das identidades mesmo que se agrave a crise do Estado soberano. Porquea crise deste não é o mesmo que a crise do Estado nacional, não são as naçõesque estão em crise, o Estado é uma forma contingente de servir as comunidades, e terá de adaptar-se aos constrangimentos do processo globalizante emcurso, para defesa apropriada das identidades nacionais, incluindo as outras Europas às quais a história negou voz, salvaguardando a igual dignidade de todas contra as ameaças tradicionais de uma hierarquia de poderes políticos. O conceito de cidadania europeia, antes de ter uma expressão normativa moldadaem função do institucionalismo da União, é uma versão da cidadania mundial, uma regionalização apropriada da Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma participação activa na sociedade civil internacionalizada, algumasvezes surpreendida por uma política furtiva de executivos. A maior parte dos Estados, ainda os que não são nações, tiveram a ambiçãoda homogeneidade cultural, e algumas vezes a supuseram pelo método de alienar minorias. Mas a livre circulação pelo mundo, no exercício do direito básicode estar, de andar, e de ir de um lugar para o outro, multiplicou as minorias étnico-culturais, ao mesmo tempo que o avanço na concepção das várias cidadanias vai derrogando antigos conceitos excludentes, defensores do jus por vezes nacionalistas, algumas vezes xenófobos e violentos. As catesaguinis, gorias estão em mudança, e recentemente Thomas Hammar falou no denizen typecomo realidade situada entre o cidadão e o estrangeiro, um compromisso 231 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS que vai respondendo às chamadas colónias interiores que as imigrações vcriando, sobretudo por causa do mercado de trabalho. ª0 Os postulados de uma cultura homogénea da população do Estado es _ ' e - h 01e · mu lttcu · ltura1s, · e a educatao postos em causa, patses que 1oram nações sao _ deste fim de século não o pode ignorar. Çao As responsabilidades do aparelho educativo são hoje desafiadas não uma ordem mundial estabilizada, por unidades políticas consolidadas, por~or sistema observante racionalizado, ou por um sistema observado de estrutu lll sabida, antes acontece que da Nova Ordem apenas sabe que acabou a anti ra do Estado soberano tem notícia que está em crise, do globalismo vai recebeu~ª• 0 manifestações desintegradas, das dependências e interdependências mu diais sabe que foram desencadeadas mas não as sistematiza. De tudo resuJ:· que se, pela lição de muitos como Theillard de Chardin, Robert Muller, Simoª Weil, Mortimer Adler, o mundialismo é uma perspectiva que domina toda: problemática, o desagregar das estruturas aponta mais uma vez para o homein kantiano como valor supremo, que procura encontrar nos grandes espaços 0 amparo político. Foi esta percepção que orientou o europeísmo de pensadores como Jacques Maritain, François Perroux, Denis de Rougemont, e sobretudo do muito esquecido Richard de Coudenhove-Kalergi, iluminando a decisão de Jean Monnet Robert Schuman, De Gasperi, Adenauer. ' No entretanto, os conceitos de Estado, de cidadão, de soberania, de direitos do Homem, de federalismo, de jurisdição interna, de comunidade internacional, de sociedade civil, de paz e de guerra, ainda quando se mantiveram em circulação, foi apoiando uma pluralidade de equívocos. O aparelho do ensino, desamparado dos apoios institucionais seculares, foi somando alguma aprendizagem: aprendeu que a suficiência do Estado soberano, que eliminou a tradição medieval da livre circulação de professores e estudantes, tem de ser substituída pelo regresso à internacionalização dos padrões, às solidariedades científicas sem fronteiras, à comunhão nos projectos e nos resultados; a função de serviço à comunidade fez-lhe encontrar a problemática da cidadania global, antes tema de utopistas com tradução na Declaração dos Direitos do Homem, e grande incerteza quanto à metodologia da intervenção; nesta incerteza avulta o desafio para lidar com realidades novas como são a sociedade civil transnacional, as fidelidades horizontais que defrontam e afron· tam os poderes clássicos; o patamar dos grandes espaços, que na antiga sede do governo do mundo se chama União Europeia, fá-lo deparar com a crise do Estado soberano, com a redefinição do conceito de fronteiras, com o alarga· mento do exercício do direito básico de ir pelo mundo, aproxima-o do mui· ticulturalismo, da cidadania exercida em função da vizinhança e não da 232 INTRODUÇÃO ·onalidade, da dialéctica entre o direito de emigrar e o direito de imigrar. oac'a-seenfim de assumir uma perplexidade que nunca teve resposta satisfa' • • d frat · )Untas, · , .. apren d er a viver numa "r.terra umca, consegum o perce b er com toflªfinalidades, e o que fazer. É à participação activa nessa dinâmica de incerque ue chamamos c1'd adama. . tezaS q 233 Capítulo li Teoria doPoder § 1º A NaturezadoPoderInternacional 1.Conceito operacional de poder Associedades organizadas em Estados evolucionaram, no espaço ocidental, para umracionalismo expresso num sistema jurídico que, por um lado, disciplina o poder políticoe, por outro lado, encontra no poder organizado o instrumento destinado a fazer observar o norma tivismo jurídico. Os textos jurídicos fundamentaisque codificam as normas disciplinadoras da organização do poder político, da produção das regras de direito, e da intervenção do poder para assegurar a observância da legalidade, são as constituições políticas. Por isso mesmo, no querespeita à explicação e justificação do exercício do poder político interno, asteorias dominantes são as teorias jurídicasdopoderpolítico. Estas teorias usam conceitos normativos como direito, obrigação, lei, hierarquiadas normas jurídicas, legalidade, inconstitucionalidade, competência, considerando-se reprovável o poder que se afasta da pré-definição jurídica e do respeito pelos direitosdoHomem,aproximando-se dos modelos clássicos do Estadodegenerado, o despotismo, a oligarquia, a demagogia ou, na designação maisabrangente de hoje, do totalitarismo. O constitucionalismo moderno, de origem ocidental, desenvolve teorias jurídicaspara racionalizar o fenómeno político, invocando autoridades como as de Aristóteles (384-322 a.C.), Locke (1632-1704) e Hegel (1770-1831). O conceito central parece ser o de Kant (1724-1804), que sustenta que todo o ser humano 235 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS deve ser tratado como um fim em si mesmo, e nunca como um meio, sendo o valor fundamental que a razão obriga a respeitar. este daPaz Os idealistas, com a sua ascendência nos recordados Projectistas pretendem disciplinar a vida internacional aplicando a mesma perspectiv~ dlle teorias jurídicas do poder, também são inclinados a racionalizar as rela _as . . . d os po d eres po I'1t1cos . - d e um qua d ro normativoÇoes mternac1ona1s em fiunçao direito internacional, ao qual falta um poder especificamente ao serviç~ ~li garantia da sua eficácia; todavia, alguns procuram fazer equivaler a esse el ª menta, o poder, o simples sentimentointernacional de que se trata de normas ju ~dicas obrigatórias, ou o poderdescentralizado que se traduz na legitimidade de ca~IEstado recorrer à guerrapara defender o seu direito violado ou ameaçado. ª É precisamente a circunstância de não haver um poder organizado, ao co trário do que acontece na vida interna, que seja destinado à função de gara:: tir o direito, que faz recorrer ao conceito de estadode natureza,no modelo de Locke, para caracterizar a vida de relação no plano internacional. E como 0 poder actua independentemente de aceitar um direitonaturalou um conjunta de valoressuperiores e anteriores ao Estado e ao poder político, um realismo metódico obriga muitos juristas e filósofos a sustentar que o direito é expresso apenas pela lei positiva, isto é, trata-se realmente de uma ordemou ordenamento que resulta da vontadedopoderou da convenção ou acordo a que chegam poderes concorrentes. O facto relevante é, nessa orientação, que as pessoas na vida interna, e os Estados na vida internacional, possam ou não ser obrigados a observar tal normativismo, sendo irrelevante qualquer pretensão de afirmar direitos originários anteriores a tal ordenamento, ou um direito natural que tal ordenamento deveria respeitar. A nossa concepção ocidental dominante, com a melhor expressão nas Declaraçõesde Direitosdo Homem, as quais obtiveram progressivamente uma adesão que tende para mundial e assumiram hoje a dignidade de ponto de referência para avaliar a legitimidade da acção do poder político em toda a comunidade internacional, é a de um direito anterior e superior ao Estado, um direito natural mesmo de matriz indefinível, um conjunto de valores expressos na síntese que se chama a dignidadedo homem. Todavia, na vida internacional como regra, e na vida interna com demasiada frequência, o poder actua de acordo com a convicção de que os princípiosguiase o normativismo jurídico são um produto da vontade normativa do Estado, determinada pela gestão de objectivos que formula e relaciona, sem obediência a qualquer direito natural, direitos originários do homem ou valores absolutos. Os totalitarismos caracterizam-se por essa atitude. Por outro lado, ainda quando os agentes das relações internacionais aceitam a existência desse 236 TEORIA DO PODER jvismo superior e anterior, desses direitos originários do Homem, desoorfllt res absolutos, é no seu próprio poder que têm de apoiar, antes de mais, ºa dos seus interesses e do normativismo que consideram justo. a de esa corrente, que tem Marx como o teórico matricial, considera por isso V~o O normatismo jurídico e todos os direitos individuais ou das entidades quecoivassãoconsequência desubjacentes relações deforça.Deste modo, o direito de · d o seu d omm10, ' · ou d e o E sta d o exc1mr. terceiros . coJectrietário exc1mr· terceiros 0 pro~território, é explicado por Hegel em termos de direitodepropriedade ou de 1· d dose · M · d d' . . itodesoberania; para arx, os mvoca os ireitos sao exp ica os em termos direodersediado nas relações de produção 188• de~ conceito operacional de poder, em qualquer das orientações, acaba por se velarfundamental para a racionalização e teorização das relações internaciore.5 Por isso deve ser examinado independentemente da posição que se tome nat . a sua re 1açao - com os va1ores, o d.1re1to · natura 1, os d'1re1tos . d o H ornem, ou bre so . l direito internac1ona . 0 Que devemos entender por podernas relações internacionais é um conceito certamente em relação com o que deve entender-se por poder na ordem interna. Narecordada definição de Max Weber, o poder é sempre a capacidade de obrigar ou,como diz Walter S. Jones: ''A capacidade deum agentedasrelações internacionais ses; parausarrecursose valoresmateriaise imateriaisde maneiraa influenciara produção deeventos internacionais em seuproveito"189• Deste modo, o poder é o produto de recursos materiais (tangible)e imateriais (intangible), que se integram à disposiçãoda vontade política do agente, e que este usa para influenciar, condicionar, congregar,vencer, o poder de outros agentes que lutam por resultados favoráveisaos seus próprios interesses. Desta definição operacional, isto é, destinada a ser um instrumento útil de trabalho sem compromisso com a essência das coisas, resulta que o poder é instrumental, destinado à realização de objectivos. Isto não é incompatível coma degenerescência interna ou externa que se traduz em considerar o poder comoum valorem si próprio.Mas a natureza do poder é ser instrumental, o que também imediatamente evidencia que o poder não é uma coisa mensurável em termos quantitativos, o poder é sempre uma relação: a capacidade de realizar objectivosé sempre função das capacidades opostas. Na competição militar contemporânea encontram-se flagrantes exemplos demonstrativos desta circunstância. Assim, na guerra do Vietname, os EUA, a maior potência militar ocidental em termos quantitativos e qualitativos, não conseguiu o objectivo de vencer o Vietname do Norte, um poder qualitativo e 118 Hegel, Filosof{a deiderecho,introdução de Karl Marx, Buenos Aires, 1944. "'Walter S. Jones, T/,elogicofi11ternational relations,Boston, 1988, p. 257. 237 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS quantitativo fraco, expressão de uma sociedade agrária e pobre. Parece que factores imateriais, relacionados com a determinação e vontade das popui°s ções, foram superiores na sociedade pobre aos que se manifestaram na so .adade afluente com a qual entrou em conflito, vencendo. Na relação, o po:edos EUA foi inferior ao do Vietname. er O mesmo aconteceu no Afeganistão com a invasão da URSS. De novo u sociedade industrializada, sustentando o poderio quantitativo e qualitat:a 0 de uma superpotência, foi vencida pela determinação e vontade da sociedad pobre. Na relação estabelecida, o poder da URSS foi inferior. e Em ambos os exemplos não podemos ignorar que os vencedores tiveram ajuda respectiva de uma outra superpotência, mas isso iguala eventualmen/ quantitativa e qualitativamente os termos de referência, mantendo-se a evidên~ eia de que o poder é uma relação. Em termos estáticos, isto é, considerando apenas a percepçãoque cada urn dos intervenientes tem do poder do outro, e portanto sem acção demonstrativa, também se encontram exemplos concludentes. Assim, fala-se da finlandizaçãopara designar a relação entre Estados, equivalente à que se verificava entre a URSS e a Finlândia, e que se traduz em que este último país não tinha poder para arquitectar e prosseguir políticas que contrariassem os objectivos da URSS. Mas o Principado do Mónaco, por exemplo, tem menos poder quantitativo e qualitativo do que a Finlândia, e todavia nunca foi obrigado a subordinar as suas políticas às da URSS. A situação geográfica altera os termos da relação, e a URSS não tem poder em relação ao Mónaco. Todavia, este Principado já não dispõe da mesma situação em relação à França, cuja política não pode atrever-se a contrariar 19º. Destes exemplos decorre que nem toda a relação entre poderes pode ser medida, por exemplo, em termos de armamento, ou, mais claramente, que não há coincidência entre poder e força. Ao dizer isto usamos ocasionalmente a expressão força para dimensionarquantitativamentee qualitativamenteos recursos à disposição davontadepolíticadoagente;e a expressão poderpara designara capacidade de influenciara condutade terceiros,nostermosantesreferidos. Este poder não é exclusivamente militar, antes o recurso aos meios militares é excepcional. Sendo certo que o poder (capacidade militar, económica, financeira, ideológica, cultural, etc.) está sempre em exercício na vida interna· ''"' A. F. K. Organski e Jacek Kugler, "Davids and Goliaths: predicting the outcomes ofincernational wars", in ComparativePoliticalStudies,1988, pp. 141 e 180, ensaiam dar uma expressão matemática à avaliação do poder dos adversários. David A. Baldwin, "Power analysis and World pol itics: new trends versus old tendencies", in WorldPolitics,1979, pp. 161-194, dá o sumário de vários estudos sobreª comparação de poderes, fazendo uma avaliação crítica das contribuições. 238 TEORIA DO PODER seu métodonormale contínuoé o dapersuasão,quese traduzem concretizar 10 i;ionª : ia em resultados peloexercícioda razão. a;,ifluencazão pode também, talvez mais apropriadamente, chamar-se razoabif;sta r . rque O método envolve continuamente a ofertade vantagensou desvanfidade, ;; primeiras como estímulo e as segundas como sanções, que obrigam ~ager1sderação dos interesses que devem ser equacionados, e à aceitação de um 3 P~~'brioconsiderado razoável para as circunstâncias. Oferecem-se vantagens equie,rciais,ajuda técnica ou financeira em troca das facilidades militares procoJlldas·ou ameaça-se com a ruptura de relações diplomáticas, com restrições cura eiais ' ou de financiamento . ou, finalmente, com o usodafiorçaque e, uma r co111e b'daaosextremosdousodopoder. su ~e tudo resulta que, sendoopoderuma relação,a superioridade de um agente . rernacional sobre outro pode não ser uniforme, isto é, manifesta-se em rela· d o tipo · d e con fl'1to d e interesses, . determina mas acontecen d o que a çosiçãorelativa é inversa noutro tipo de conflito de interesses. Até 1989, a URSS ~evesempre superioridade sobre os ocidentais em relação ao Muro de Berlim e à situação da cidade, mas não a teve quando pretendeu instalar mísseis em Cuba (1962)durante a presidência de Kennedy. inão a um 2. Qualificaçãodo poder o facto de o poder ser uma relação, e também o facto de esta relação não ser necessariamente global porque varia em função das situações dos agentes e dos conflitos de interesses, torna imediatamente inteligível que o poder tem sedeseventualmente diferentes conforme o tipo de conflito, e usa faculdadesou componentes diferentes conforme as circunstâncias. Daqui várias qualificações do poder conforme a sede em exercício, a componente utilizada, ou o método ou forma escolhida para o seu uso. Vimos que o poderprocura em regra o consentimentoobtido pela razoabilidade, e que apenas excepcionalmente recorre à coacçãoque pode ser finalmente militar. Acontece assim, quanto à forma do uso, e com mais frequência na vida interna do que na internacional, que o poder de um líder assenta no carisma, isto é, numa qualidade ou dom pessoal que induz à obediência por adesão; trata-se do exercício do poder, melhor designado por autoridadeneste caso, pelo consentimento; o tirano,isto é, o que assume o poder sem legitimidade e o usa para fins que não coincidem com os que a comunidade considera justos 191 • Na vida internacional, o poder é exercido por e desejáveis, utiliza a coacção "' Adriano Moreira, O carismae a lei da homologia,in Comentários, 2' ed., Lisboa, 1992, p. 135. Max Weber,Economiae Sociedade,lº vol., México, 1944, p. 244. 239 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS influênciaou pe_rsuasão, ou pelo controlo:no p_rimeiro ~aso º.tratadoé a expres. são do consentimento; no segundo pode facilmente mtervir um tratado lll é a hierarquia que funciona, como no caso dos satélites soviéticos, ou n~ t as tado de paz que se segue à imposta rendição sem condições, como foi O c ra. as0 das guerras de 1914-1918 e de 1939-1945. Em qualquer das referidas formasdeexercício dopodera componente ou facu. 1 dade utilizada não é a mesma: o poder será económico quando se traduz na cap cidade de controlar especialmente os meios de produção; político,quando le:ao controlo dos órgãos competentes dos legislativos e executivos; mi/itarquand e consegue, pela ameaça ou uso da força, paralisar a capacidade alheia de reco~ rer à força. A importância do poder,e das suas várias formas, na vida política, leva a corrente de pensamento alemã chamada Machtpolitik,termo equivalente do conceito inglês de powerpolitics,a entender que, no processo político interno e externo, não existe outro factor envolvido além do poder.Deste modo, os gru. pos sem podernão têm de ser considerados, e os que possuem podersão relevantes apenas e na medida em que pesam na balança interna ou externa dos poderes. Tal corrente, que abstrai completamente dos valoresou de um normativismoanterior e superior ao poder, também é chamada corrente da Realpo/itik, ou do realismopolítico. Diferencia-se porém da perspectiva realista chefiada por Morgenthau, e que ficou referida, visto que esta não exclui os valores do condicionamento e definição dos interesses nacionais e procedimentos adoptados pelo Estado 192• A Realpolitiknão atende a nenhum dos direitosoriginários doshomensou das instituições,mas apenas aos poderese aos interesses, que eventualmente são direitos, polímas o que os torna relevantes é serem interesses. A perspectiva do realismo ticoreconhece direitos, designadamente define o interesse nacional em função de direitos que também reconhece a terceiros: direito à integridade nacional, direito à livre navegação, direito à soberania. Por exemplo, a perspectiva realista americana inclui a defesa de uma concepção democrática da vida interna e da vida internacional, ideologia que faz parte do interesse nacional: isto tem reflexo nos métodos políticos usados, nas formas de poder seleccionadas para agir, na autolimitação do exercício interno e externo do poder político. A Realpolitiknazi definiu os interesses do Estado e construiu o poder de os realizar ignorando o direito internacional que subscreveu (os tratados, disse, 192 Hans Morgenthau, ln defe11se ofthc 11atio11al interest,N.Y., 1950, pp.120-121, adverte contra "a inabi· lidade para distinguir entre o que é desejável e o que é possível, e a inabilidade para distinguir entre o que é desejável e o que é essencial". Karl von Clausewitz, Da Guerra,Brasília, 1979, p. 189, adverte que "toda a acção tem ... de ser planeada numa simples penumbra, que ... tal como o efeito do nevoeiro ou do luar, dá às coisas dimensões exageradas ou uma aparência irreal". 240 TEORIA DO PODER os de papel), negando direitos às minorias que liquidou (judeus, dimiedaç ~o p físicos) desmembrando outros Estados {absorção dos sudetas da Che'doS i ' , • • 11111 , uia): a regra e apenas a de que quem tem poder decide para realizar os cost~va~ressessem autolimitação pelo reconhecimento de qualquer normatise115 int perior ou direitos alheios daqui derivados. 5tJl0 vi comanda a formulação do normativismo objectivo, que é um sistema ditado a partir da posição de proeminência, o qual sistema melhor se 1 0 jufl \á uma ordemqualificada pela origem: o nazismo pretendia estabelecer challlª E ropa uma or d em nazi. para m1·1anos. na ; dramático é que a hierarquia das potências é um facto permanente, dessa minência decorre sempre uma ordem marcada pela superioridade efectiva, proerisso existiram uma ordemromana,uma ordembritânica,uma ordemsoviética, e p: ordem americana, conforme as épocas e as regiões. Que a Realpolitiknão tenha 11111 a presença na definição de qualquer delas, é impossível de afirmar. 11111 A questão é a de tal Realpolitikser a regra adaptada pelo poder, ou antes, a ventualfalta de autenticidade em que todos os poderes incorrem, adaptando : comportamento de proclamar uma coisa e fazer outra. Quando em Filadélfia05 fundadores dos EUA proclamaram os direitos de todos os homens livres e iguais, não suprimiram a escravatura que então era a condição de uns três milhõesde negros. A França da Revolução, da liberdade de todos os homens, haveriadepois disso de construir um império colonial. O ideário aliado da guerra de 1939-1945 não impediu que o acordo URSS-EUA para a paz europeiaincluísse um traçado artificial e injusto das fronteiras de vários Estados. Umacoisa é porém o compromisso ou transigência da corrente humanista com a Realpolitik, outra coisa é ter esta Realpolitikcomo princípio que não transige como respeito por valores e normativismos. De qualquer modo, ainda é necessário dar lugar ao fenómeno de uma políticasempoder,que abordaremos, e que Havei referenciou na Carta 77 e no ensaio sobreopoderdossem-poder. :~er ,~? 3. Componentes do poder: naturais e sociopsicológicos Vimosque o podernãoé uma coisa,é uma relaçãoentrevontadesqueutilizamrecursos àsuadisposição. Todavia, quando se pretende fazer uma determinação e identificaçãodos poderes em confronto, a primeira aproximação olha cada um dos termos da relação estatisticamente, e portanto como uma coisa. É a este momento que corresponde a abertura do capítulo X do Leviathande Hobbes:"O poder de um homem ... consiste nos meios para obter qualquer aparente vantagem futura." Tal chamada vantagem,que objectivamente é um resultado,qualifica-se pelo domínio onde se pretenda que seja produzido: domínio dasaúde, da educação, do acrescentamento do território, do esmagamento das 241 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS forças militares inimigas. A definição do poder e seus componentes faz-se função do campo de acção onde os efeitos devem ser produzidos. No mome elll do exame estático do poder (força) não se examina todavia a relaçãocausa/cnto o comportamento do poder contrário em cujo âmbito de acção se prete :lll interferir. É um elemento de exame posterior 193• n e dopoderdividem esses elementos em inter Os estudos sobre os componentes , . . . . . p nos d , ou domest1cos e mternaczona1s ou exteriores. or outro 1a o, e quanto as caract rísticas dos componentes, classificam-nos em naturais,sociológicos e sincrético eQuanto aos recursos ou componentes naturais do poder, primeiro tracts. zem-se na posiçãogeográficae territorialque condiciona pesadamente, nos do~sentidos, o poder nacional. Designadamente, é uma variável que determinais extensãodasfronteirase a conflitualidade da vizinhança,com imediato efeito sobrª a definição dos instrumentos de defesa nacional. e A extensão geográfica da Rússia determinou a derrota de Napoleão em 1812 e de Hitler século e meio mais tarde. Mas o efeito dos riscos da defesa de tã~ extensa fronteira, como também acontece com a China, é evidente. A estabilidade de Israel, embora seja um pequeno território, é condicionada pela posição geográfica que lhe dá fronteiras conflituosas e dificilmente sustentáveis. Independentemente de uma qualquer possibilidade de quantificação, a posição geográfica condiciona positiva ou negativamente o poder nacional. Ao contrário, Portugal, na sua definição geográfica actual, retira dela um poder- poder funcional - que é a posição do chamado triânguloestratégico (território europeu mais arquipélagos), importante para a defesa ocidental com expressão na NATO e para a reavaliação depois do fim da Guerra Fria. A geopolítica procura exprimir em leistendenciaisa relação entre a geografia e o poder. Assim, o famoso Halford Mackinder, que formulou em 1914a doutrina do heartland,firmava esta conclusão: "He who rules Eastern Europe commands the World Island ofEurope, Asia and Africa; and he who rules the World Island commands the World" 194 • Por seu lado, Alfred T. Mahan afirmava, no fim do século passado, que o controlo dos mares é decisivo na balança geral de poderes, assim como alguns teóricos explicam o dinamismo histórico russo como determinado pela busca de saídas para os mares quentes 195 • Não parecem demonstrados os teoremas extraídos da situação geográfica, mas é inegável a importância da situação geográfica, e da definição territorial e marítima dos Estados, para a comparação do poder: o Suez, o Panamá , o Golfo Pérsico, o estreito de Gibraltar, os Dardanelos, Malaca e Ormuz são elemen· 193 Walter S. Jones, cit., p. 257 e sgts. Halford Mackinder, DemocraticIdeaisand Rea/ity,N.Y., 1919, p.150. 115 ' Alfred Mahan, The influenceof SeaPo1ver uponHistory,Boston, 1890. 114 ' 242 TEORIA DO PODER ente presentes na avaliação dos poderes em conflito, competição cularrn d , d" d" . , . e sass eração. Os portos _e ~ue_um pais . 1spoe con 1c10na~ ~ comercio, a o co~Pa ão oceânica, a ex1stenc1a de serviços que pesam posmvamente nos . vescig ç , . 11'1 dispon1ve1s. ,ecorsos undo componente do poder, com directa relação com a posição geol]rnseg d . d es1gna . d a mente matenas-przmas ,. . , conjunto e recursos naturais, e ener0 gráfica,eegoria de superpotência reconhecida pela comunidade internacional à fª·~c~tes de 1989, e que a Rússia tenta recuperar agora, e aos EUA, apenas foi VR5 ªda pela suficiência em recursos naturais que ambos os Estados enconaJcanǪ f . dentro das suas ronte1ras. era~ charnado choque petrolífero mostrou facilmente como este elemento diciona positiva e negativamente o poder de agir no comércio internacioco~Entre 1973 e 1983, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróusando o aumentodepreços,provocou uma crise no sistema produtivo dos e~igos poderes coloniais, acumulou reservas desproporcionadas de divisas tetradólares), financiou os seus planos de desenvolvimento privativos, sus~ncoua subida da conflituosidade dos Estados árabes contra Israel, utilizou : capacidade de embargar o fornecimento de petróleo para forçar os Estados ocidentais a modificarem as suas políticas na área. É todavia evidente que a simples detenção dos recursos naturais, ou a sua falta,não é suficiente para se reflectir no poder nacional: o Japão, deficiente emmatérias-primas, foi um dos maiores poderes militares deste século e adquiriu,depois de derrotado, o estatuto de uma das mais poderosas potências económicas;a Indonésia, rica em minérios estratégicos, é um actor secundário na balançade poderes mundial. A capacidade de mobilização dos recursos é indispensável,e a dependência alheia em relação a tais recursos tem de ser mane jada,o que exige capacidade de gestão. Finalmente, a população é um elemento fundamental componente do poder. Umalarga população é que permite o recrutamento dos quadros necessários e o florescimento das iniciativas indispensáveis para promover a capacidade industrial, mobilizar os recursos naturais, dar conteúdo ao braço militar. Mas,também aqui, o factor quantitativo tem de ser complementado pelo qualitativo que se traduz em preparação técnica, desenvolvimento social e político, produtividade, coordenação entre recursos humanos e recursos naturais. AÍndia não tem um poder correspondente à dimensão quantitativa da sua população,porque não tem a correspondente dimensão qualitativa 196 • Entre os componentes sociopsicológicos do poder indica-se sempre um elemento não quantificável, que é a imagemassumida pela população, as suas atitudes tj t9<. WalterS. Jones, cit., p. 259 e sgts. Organski, Populationand Wor/dPower,N.Y., 1960. 243 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS e expectativas.Quando a população se assume como devendo apoiar ofardo homembranco,um destinomanifesto,ou defender a sua purezaracial,o efeito d do tas ideias na capacidade é comprovado. Respectivamente o Império Britâni es. os EUA, a Alemanha, assumiram os objectivos expressos naquelas forlllu~o, ções, de natureza mítica, e o movimento inevitável do Estado foi considerá a. • . d a imagem . . d"1atamente e1az compreen d era 1mportanc1a o que 1me colecf VeI · mente recolhida dos adversários e aliados. Daqui a crescente intervençã~~propagandano sentido de firmar a imagem dos outros que seja conveniente pa ª . do po d er. ta os proiectos No conflito Leste-Oeste do último meio século, o cuidado recíproco co a definição de uma imagem ameaçadora de cada adversário nunca abranctt A política de distensão, iniciada pela Perestroika de Gorbatchov, desencadeou. uma evidente batalha no sentido de alterar as imagens recíprocas que estivera u em vigor tão longamente. A engenhariasocialconsegue hoje, em pouco telllp: radicar e destruir imagens que antes tinham por vezes uma vigência secula ' • t E o problema geral da percepção, submetida a condicionamento orientador. A atitude recíproca na relação população-governo é um fundamental componente sociopsicológico. A adesão ou repulsa entre ambos tem efeito imediato sobre o poder efectivo. Diversos interesses produzem, designadamente, em tempo de guerra, as quintas colunas que ou colaboram directamente com 0 adversário, ou debilitam a capacidade do aparelho político. A consistência da relação é um facto a averiguar e que não depende directamente da espécie de regime político : é inegável que a população alemã seguiu Hitler de 1933 a 1945, e que a população francesa, no regime democrático, apoiou mal o governo que perdeu a guerra. Do que se trata, sobretudo no conflito militar , é da dimensão da decisão popular no sentido de mobilizar recursos e suportar sacrifícios em função do resultado visado. Durante a última guerra mundial, Churchill mobilizou os ingleses e contou com a sua adesão total, prometendo-lhes sangue,suore lágrimaspara finalmente obterem a vitória e a preservação da sua liberdade nacional e teor de vida. Finalmente, é corrente considerar a liderança e o seu maior ou menor carisma. Não obstante o fenómeno que Ortega y Gasset chamou a rebeliãodasmassas e a massificação doprocesso político,casos como os de Napoleão, Hitler, Roosevelt, Charles de Gaulle, Churchill, Mao, Castro, Estaline, demonstram a importância da liderança personalizada. Muitos analistas contestam este facto. Mas parece que não é explicável de outro modo a capacidade mobilizadora de um Churchill quando proclamou: "We shall fight on the beaches, we shall fight on the landinggrounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fighrin the hills; we will never surrender." 244 TEORIA DO PODER onentes sincréticos do poder 4,co:P dos componentes chamados naturais e sociopsicológicos, existem O Aºla entes que se apresentam como uma ordenada combinação da capacicolllP~n mana e recursos naturais que habilitam o Estado a agir. É assim que dade ~adeindustrialaparece como um elemento definidor da própria hierarll c~P~:s potências. A evolução da arte de fazer a guerra é tributária da condiq~iafluente da sociedade, isto é, da relação entre os seus recursos e os seus 窺.ªtos em termos de que os primeiros respondem sempre às exigências proJec egundos. dosAs guerra mo d erna exige · uma so fi1st1ca · d a capac1'd ad e c1ent1 · 'fi1ca, tecmca ' · . dustrial coroando recursos naturais avultados. A vitória dos aliados na e 10 oda Guerra Mun d'1a1fi01,. entre outros f:actores, consequenc1a • . da sua capasrae de produzirem armas em quantidade e qualidade largamente superiores 1 ~ dos seus adversários. Avalia-se friamente a relação entre o custo do invesª~mentoem cada soldado e o número de mortes e destruições que causa ao :~versário,para medir a produtividade da máquina de guerra. A corrida armamentista,neste último meio século, implicou o investimento de recursos incalculáveisna produção das armas nucleares e nos sistemas de protecção, de tal modoque os projectos desenvolvimentistas foram sacrificados brutalmente . Umaabundante produção de investigadores vai concluindo pela importância dacapacidade industrial como um dos factores mais determinantes da hierarquiados poderes 197 • De todos os factos ou componentes do poder que ficam indicados, a capacidadeindustrialé a variável económica mais importante, e a qualidadeda liderança é a mais importante variável política. É esta que se responsabiliza pelo julgamentoda relação entre os meios e os objectivos estratégicos assumidos, decidindo os termos da acção. São muitas as formas que, nas relações internacionais, pode revestir o uso do poder, e os componentes deste podem ser usados separadamente. O poder económico é frequentemente usado, proporcionando ou suprimindo ajudas , cooperação e vantagens a terceiros, para que estes sejam induzidos a adaptar umaconduta satisfatória. O poder cultural traduz-se em dar oportunidades a estudantes ou investigadores,em alimentar os meios de comunicação social ou de preenchimento dos lazeres, na actividade editorial, na cooperação no domínio dos equipamentoscientíficos e pedagógicos. A opinião pública pode ser influenciada de "'Tornaram-se autoridades Clifford German, A Tentative EvaluationofWor/dPower,Journa/of Conflict Resolutio11 , 4, 1960. Harvey Starr, WarCoalitions,Lexington, 1973. Bruce Russet, Internationa/Regions andtheIritemationa/ System,Chicago, 1967. 245 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS longe, designadamente, pela rádio ou pela transmissão das imagens à distâ . 1 A venda ou doação de armamentos é constantemente denunciada, e a de:~ • afcecta o processo. Un. eia A força física não deixa de intervir, independentemente do recurso à guerr Mas esta, como veremos, ainda em épocas chamadas de paz, como aconte com o meio século decorrido desde o fim da Segunda Guerra Mundial, con~~ nua a ser um instrumento frequente. Trata-se sempre de resolver pretensõe exclusivas em relação a um objectivo, designadamente um pedaço de territ's 0rio, ou o domínio de um grupo populacional, ou o acesso a certa área do glob que é necessário avaliar: afor:· Neste caso da guerra existem duas capacidades isto é, a capacidade a usar para vencer o adversário ou destruir os elemen;o' do seu poder; o custoda tolerância,isto é, a medida da capacidade de absorver a: sanções e destruições que o adversário imporá com a sua resposta. O poderda guerraassenta portanto em factores militares, mas também em factores políticos que dizem respeito à decisão e credibilidade da liderança e das populações envolvidas. O custoda tolerânciapode traduzir-se em que uma sociedade menos desenvolvida vença a sociedade mais desenvolvida. Foi assim que, na guerra do Vietname, Ho Chi Minh afirmou, e os factos confirmaram a previsão: "ln the end the Americans will kill ten patriots for every American who dies, but is they who will tire first" 198• Num conhecido estudo sobre quarenta guerras, Rosen conclui que metade delas foram ganhas pela parte que sofreu mais. É por isso que os comandos árabes se chamamfedayeen,isto é, os votados ao sacrifício. Os terríveis bombardeamentos de Londres pelos alemães na última guerra tiveram o efeito de estimular a decisão de resistir. Sobre o Vietname escreveu James Cameron: "Longe de atemorizarem e quebrarem o ânimo das gentes, os bombardeamentos parece-me que estimularam e consolidaram esse ânimo" 199• Isto torna clara a dificuldade de avaliar a capacidade relativa de poderes em confronto, mesmo no caso da subida aos extremos da guerra. Durante a guerra do Vietname, o Secretário para a Defesa Robert McNamara utilizou os mais sofisticados computadores e uma equipa altamente qualificada de cientistas para avaliarem os possíveis resultados de várias estratégias alternativas. As previsões falharam para total desmoralização da técnica e dos cientistas. O ponto de partida mais aconselhado é a comparação de índices mensuráveis do relativo produto nacional bruto das partes envolvidas. Mas os factos demonstram a importância de factores não susceptíveis de medida, designadamente o desenvolvimento político e a qualidade da liderança. Não faltam tentativas, ª· ª· 198 190 Walter S. Jones, cit., p. 270. James Cameron, Hcrcisyourrncmy,N.Y., 1966, p. 66. 246 TEORIA DO PODER ito animadoras, de introduzir uma ordem matemática na avaliação do rnu · · · a que tem d e somar-se os f:actores vm · d os do ·o oa 'nterno de cad a m1m1go odert n . ..200 r r1or · este davia, o insucesso de McNamara tornou evidente que o poder não pode roliado apenas em f unçao- de componentes mensuravets, ' . porque e'f un d aserav:lO peso de elementos motivacionais e rigor das percepções sobre o adver~e~t pelo sentido de abrangência de todos estes elementos, tornou-se muito sart~~cidaa chamada fórmula de Cline,profundamente estudada entre nós por 'ºf'bio Valente de Almeida, que é a seguinte: Pp = (C+E+M)x {S+W).Aqui, po ~ 0 poder suposto; C é a massa crítica da população e território; E e M as PPacidades económica e militar, respectivamente; Sos objectivos estratégicos; ia vontade de executar as estratégias nacionais 201 • Em síntese, esta fórmula fúicas e das capacida. nifica assumir que o poder é o produto das capacidades sig · d · · ' · fi b'l"d despsicológicas, tornan o assim mmto precana a con 1a 1 1 ad e d os resu 1ta d os u pelo menos, fornecendo dados para muito curto prazo, e exigindo uma o ' , verificaçãocontinua. Assim, depois da guerra do Vietname, embora as capacidades físicas dos americanosfossem altamente superiores às ajudas soviéticas, a superioridade da vontade dos vietnamitas para se mobilizarem no sentido de executar as estratégias nacionais dava-lhes um total muito superior ao dos EUA no mapa comparativodo poder respectivo, avaliado pelo conjunto dos factores físicos e psicológicos.Passado algum tempo, a percepção da população americana assumiu a derrota do Vietname como indicação de que o intervencionismo não é aconselhável,e certamente a distância entre a URSS e os EUA, no que toca à vontadede prosseguir as estratégias nacionais, diminuiu. Pelo que toca à URSS, provavelmente o desastre da intervenção no Afeganistão afectou o nível da determinação soviética e talvez tenha motivado a revisãoda logística do império. Finalmente, vista a necessidade das alianças, e dos blocoscontraditórios, a avaliação do poder tem de ser tentada por conjuntos, não em relação a poderes individualizados. É o poder da NATO e não o poder dosEUA, era o poder do Pacto de Varsóvia, não o poder da URSS. De tudo resulta que é tão incerta a avaliação dos poderes em confronto como a prospectiva da evolução e dos resultados futuros, não podendo todavia evitar-se a circunstância de que a acção política tem de ser planeada com base na percepção da realidade actual e na prospectiva do futuro. A conclusão a que se chega é sempre insegura, e a acção baseia-se necessariamente em pre00 Organski and Jacek Kugler, "Davids and Goliaths", in Comparative PoliticalStudies,1978, pp.141-180. de Almeida, Do poderdo pequenoEstado,Lisboa, 1988. Ray S. Cline, WorldPoiver Assessment: A calculusofstrategicdrift, Washington, 1975. Walter S. Jones, cit.,p. 271 e sgts. ' 'º' Políbio Valente 247 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS sunções. Tudo significa que a decisão, em cada patamar, é tomada em face d alternativas positivas e negativas. e Quando Hitler invadiu a Checoslováquia e a Polónia, concluíra que a ln g1a. - d . . terra e a França não estavam em con d1çoes e intervir e enganou-se. A anã]· s dos factores do poder não tinha certamente dispensado nenhuma das refer: e cias necessárias. Finalmente, em todos os casos se evidencia que opodern::~ uma coisa,é uma relaçãovariável,aparecendo como elemento essencial, e difici)~ mente avaliável, a percepção que cada interveniente na relação tem do Poder do outro. 5. Política de equilíbrio Para avaliar a correlação dos poderes em acção na comunidade internacional e determinar um ponto de equilíbrio que evite o recurso à guerra, os analistas recorrem ao conceito da balançadepoderes,elaborado no século XVIII e dominante, como princípio-guia das políticas internacionais, durante todo o século x1x202_ Recordemos que a política de equilíbrio tem os seguintes principais objectivos: garantir a independência e sobrevivência dos Estados; salvaguardar O sistema em que o Estado se inscreve; impedir a dominância de qualquer membro do sistema. Por isso, como vimos, teóricos como Vattel, Centz e Wolff, e estadistas como Talleyrand, Metternich e Castlereagh, definem a guerra como um instrumentodestinadoa defenderou restaurara balançadepoderes. Trata-se portanto de uma política conservadora dos sistemas, obviamente contrariada sempre por qualquer Estado revisionista, ou animado por um projecto de expansão. Conceitos como os de zonadeconfluênciadepoderes(onde convergem os interesses de mais de um Estado), de zona de influência(reservadaa um Estado), e de zonasmarginais(livres para a expansão), destinam-se a tornar flexível o conservadorismo da balançadepoderes.Nas primeiras zonas a guerra é um instrumento utilizado, e nas últimas os acordos são prováveis. Na actual situação mundial, o continente americano é uma área de influência dos EUA, a antes dividida Europa recupera de ser uma área de confluência de poderes, que incluem os EUA e a Rússia. O Vietname, a Coreia, a África negra, são áreas marginais onde as superpotências combatem frequentemente usando para isso interpostos agentes, designadamente os movimentos armados 2º3. É costume representar assim, figurativamente, a balança de poderes: 202 A. Moreira, Políticalllternacional, Lisboa, 1968, p. 58. Edward Vose Gulick, Europe'sC/assical Balance of Power,N.Y.,1955, capítulo!: enumera vários conceitos da balança de poderes. 203 Gordon A. Cr:iig e Alexander L. George, Forceand Statecraft:diplomaticproblemsof ourtirne,N.Y., 1983, mostram como o sistema pode comportar alterações do equilíbrio. Assim, entre 1815-1878, 2 248 TEORJA DO PODER BalançadePoderes A _ ponto de equilíbrio _ pratos da balança _ Fiel da balança /i~ B D C acesso aos pratos da balança pode respeitar a um só Estado ou a vários 0 dos, configurando as hipóteses de conflito entre dois actores, de um 13st ªr contra vários, ou de alianças em cada um dos lados. Existem con~ctºuras em que um Estado, ou um grupo de Estados (Directório) assume iu;cnção de fiel da balança,e sempre que esta se desequilibra para um lado, ~ ~ auxílio ao outro para restabelecer o equilíbrio. Um escritor anónimo ;; século XVIII, citado por Hoffmann, escreveu: "A experiência e a razão habilitam-nos a entender que um poder geralmente persuade os outros não cometerem erros, e este poder é chamado, penso que não sem razão, : fiel da balança. Seguramente, uma muito honrosa e louvável função." A Inglaterra desempenhou o papel de fiel da balança por mais de um século emrelação aos poderes europeus, talvez até que a sua adversária Alemanha alcançoua capacidade de cortar a ligação vital da ilha com o mundo exterior. SegundoEpstein, o submarino e o avião marcaram o desaparecimento daquela função204 • É certo que, historicamente, o conceito foi especialmente usado com referênciaao equilíbrio dos poderesmilitares.Mas tem utilidade para avaliar o poder totale as alternativas do seu uso, especialmente em épocas de GuerraFriaou de equilíbrio peloterrorcomo os que dominaram a cena internacional do último meio século.Assim, durante este período, embora a capacidade militar da URSS e dosEUAse tenha equilibrado, a balançadepoderesfavoreceu os EUA pela superiorcapacidade no domínio dos recursos económicos, técnicos e científicos, e dastécnicas da sua utilização. O uso do conceito operacional da balança de poderes tem de ser feito considerandopelo menos as seguintes condicionantes metodológicas, que resultamdas considerações até agora feitas: a)o poderé um instrumento destinado a promover interesses ou alcançar objectivos, não é, salvo em circunstâncias pouco frequentes, um fim em si mesmo; b) o poder não é uma coisa, é uma Inglaterra é reguladora, entre 1878-1890 é a Alemanha, entre 1890-1914, de novo a Inglaterra. Vid, capítulo3, "Balance ofpower, 1815-1914: Three Experiments". ""In RoyC. Macridis (edt.), ForeignPolicyin WorldPolitics,Washington, 1958. Adriano Moreira, Política cit., p. 78 e sgts. Kaplan, "Balance of power, Bipolarityand other Methods oflnternational Internacional, 8Ystems", in American Politica/ScienceReview,1957, p. 684. 249 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS relação entre capacidades opostas; e) o poder varia pela agregação ou subtrac _ de componentes naturais, sociopsicológicos ou sincréticos, internos ou ex;ªº nos; d) nas relações internacionais é permanente a possibilidade do conf1•er. que pode subir aos extremos da guerra; e) o objectivo da política da hala~to, de poderes não é eliminar os poderes mas sim mantê-los em relacioname Ça nt0 pací fico 205 • Esta última nota torna evidente que se trata apenas de um instrumento d análise dos efeitos do equilíbrio e desequilíbrio, e não de um instrumento de apologética política: procura-se determinar a evolução dos factores de ordemª desordem no sistema, a participação de cada Estado nessa evolução depende doe seus objectivos e capacidades que são objecto de análise diferente, e requerellls da parte dos outros, a definição de políticas apropriadas. Em face da evoluçã' dos factores de equilíbrio e desequilíbrio que a balança de poderes demons~ tra, cada Estado deve, possivelmente, responder com razoabilidade a pergun. tas deste tipo: é necessário aumentar o nosso poder, ou a situação não exige tal esforço? As nossas relações, designadamente com os Estados fronteiriços, exigem uma alteração da balança? A balança desequilibrou-se a favor dos competidores, e o equilíbrio tem de ser restabelecido? Nestas avaliações nunca pode ser confundido o poderpotencialcom o podereftctivo. Países como o Brasil têm um poderpotencialimportante, em vista dos recursos materiais na sua posse. Mas a falta de capacidade para desenvolver, coordenar e mobilizar tais recursos com uma adequada vontade política não lhe dá acesso correspondente aos pratos da balança de poderes. Quando esta carência for suprida, terá então um poder efectivo, supostas a decisão e credibilidade, que afectará a balança de poderes. Esta lida portanto com poderesmobílízáveis, não com poderespotenciais. Tal poderassume a natureza de forçainterventora quando usa drasticamente a guerra, ou a ameaça crível dela, para alterar a balança de poderes. A forma mais significativa desse passo é a guerrapreventiva.Um Estado, antes que outro o agrida, ou alcance condições de alterar o equilíbrio em seu favor, antecipa-se atacando para privar o concorrente da possibilidade de adquirir um maior peso na balança. Tem sido frequentemente a motivação de Israel ao desencadear ataques contra os Estados vizinhos. Estas acções são baseadas em cálculos que assumem grande risco de erro, para qualquer dos lados. Antes da extinta URSS firmar o seu poder estratégico nuclear, nos EUAfoi advogado o ataque preventivo contra ela. A mesma espécie de movimento se verificou quando a China se mostrou capaz de entrar no clube atómico. Quando Walter S. Jones, cit., p. 286 e sgts. George Liska, lnternational Equilibrium,Cambridge, 1957• pp. 36 e 37. 205 250 TEORIA DO PODER atacou Pearl Harbour em 1941, provocando a entrada dos EUA na guerra oJaP~ial,a sua acção militar preventiva destinou-se ao efeito de privar os EUA flltlnualquer capacidade de retaliação em face dos planos expansionistas do de ~ na Ásia e no Pacífico. JaPªºsramente porque a competição mundial se desenvolve hoje com o uso de tres diferentes do poder militar, a balançadepoderesé usada para determinar Pº :cidadedegerira influênciainternacional de cada Estado, ou grupo deles, sobre acap os diferentes Estados e grupos, traçando a balança mundial dos poderes outr - fimance1ro, · c1ent1 · 'fi1co, tecno log1co, ' · Jjadosem separa d o ou em com b.maçao, ava ercial, 1·deo l'og1co, · cu 1tura 1. _ 0 co~ Japão, antes da guerra, era considerado na balança de poderes militares 1110um sério adversário. Depois de perder a guerra, não tem presença na ~:lança de poderes militares, mas o seu peso na balança global é enorme, vista asuacapacidade económica e financeira. Fenómeno semelhante se passou com a Europa que, até ao início da guerra, foi o centro principal do poder político mundial. Depois disso, a Europa foi sobretudo o eventual campo de batalha ou a moeda de troca entre as superpotências. Todavia, a presente conjuntura de revisãoda logística dos impérios russo e americano, que coloca o poder estratégiconum plano secundário, fez pesar decisivamente a capacidade económica da União Europeia nos pratos da balança de poderes globais em confronto. A estrutura da balança, e portanto o seu modelo, varia no tempo e também, quando as áreas estratégicas podem ser consideradas autonomamente, em relação a cada uma das áreas. Enquanto a balança de poderes se mantém estável,o conceito de sistema pode ser utilizado para o exame do seu funcionamento, visto que encontramos uma sériede elementos(Estados)interligados por umfeixederelações(umasjurídicasoutrasdefacto),dentrode umafronteiraqueexclui parao ambientea interacçãocomelementosestranhos. Deve notar-se que o conceito de balançadepoderesaparece estudado como categoria histórico-política desde o Congresso de Viena de 1815 até ao fim da Primeira Guerra Mundial que viu desaparecer a função que a Inglaterra assumia de fiel da balança.A balançadepoderesdo bipolarismo, onde avultaram, em cada prato dela, as superpotências, não tinha fiel da balança. Ora, na data em que foi identificada como um modelo actuante, a balança de poderes não era mundial, porque os teatros estratégicos não eram mundialmente comunicantes, isto é, as competições e conflitos da área europeia não se repercutiam no continente americano ou na Ásia. Hoje, as competições são tendencialmente mundiais e a balança mudou de perfil. Podemos admitir que, na forma mais simples mas com correspondência nos factos, trata-se de um Estado maximizar o seu poder para realizar os seus objectivos, acabando por colidir com os interesses de outro: a rivalidade histó251 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS rica entre a França e a Casa de Áustria correspondeu a tal modelo. A luta P equilíbrio decorre entre ambos os Estados. elo Rapidamente, cada um procura alianças e a balança diz respeito a coJi ções de Estados, o exemplo mais frequente na história dos conflitos europega. corresponde a uma preferência pela pazem desfavor da gue:s, O valordoequilíbrio assim como a luta pelo desequilíbrio tem o significado contrário. O prime·ra, 1r0 valor pode levar a fazer entrar um novo elemento num dos pratos da halan para restaurar um equilíbrio perdido, ou a que um dos elementos se transfjÇa para o outro grupo com a mesma finalidade. Mas o objectivo de desequilibra;ª balança recorre aos mesmos métodos, sendo o resultado exibido que comprovª as intenções políticas. Os analistas do modelo indicam vários métodos de man~ ter ou recuperar o equilíbrio de poderes, designadamente vigilância, coliga. ções, defesa da solidariedade da coligação, e finalmente a guerra limitada Por tal objectivo. Mas o conceito e função de fiel da balançaparece mais eficaz206 A Inglaterra, geralmente apontada como um fiel clássico da balança, forn~ceu também, durante um século, a tipologia mais geral indicada para que um Estado possa desempenhar essa função: deve ter uma posição elevada na hierarquia das potências; o equilíbrio deve servir os seus interesses fundamentais como no caso inglês em que serviu os seus desígnios imperiais; deve ter grand~ mobilidade de acção, e um sentido de autolimitação do uso do poder que possui. O habitual cepticismo sobre a possibilidade de estabelecer neste domínio tendências duradoiras ou modelos sempre utilizáveis inclina para considerar a hipótese viável em aleatórias épocas e conjunturas 20 7• Morton A. Kaplan, que estudou o período novecentista em que há convergência na afirmação de que o modelo funcionou, pretende que a experiência sugere os seguintes princípiosguiaspara que o equilíbrio seja eficaz na preservação da paz: 1) Os participantes aumentarão as suas capacidades, mas devem aceitar a responsabilidade de negociar as suas divergências em vez de combaterem. 2) Desde que o aumento das capacidades é o primeiro motivo da política internacional, os Estados devem estar prontos a lutar, se necessário, mais do que renunciar a maior desenvolvimento. 3)Havendo guerra, os Estados devem estar preparados para terminar o com· bate, mais do que destruir os fundamentos de equilíbrio eliminando um par· ticipante. Isto é importante porque o modelo é construído no pressuposto de haver pelo menos cinco participantes. '°''Gulick, cit., cap. 3. 207 Organski, WorldPolitics,N.Y.,1968, pp. 282-299, onde considera a hipótese válida para o período de 1824 a 1914. 252 TEORIA DO PODER da participante no equilíbrio contestará qualquer tendência para pre4~~a por qualquer Estado ou coligação. 1~~to que o sistema é construído na base do poder dos Estados, os partiJol11 1 5) devem contrariar tendências na direcção de uma organização supraip~nte~ou de organizações que alterem o estatuto soberano dos participantes nac1ona sistema. . . . . no ) cada part1c1pante deve consentir que derrotados elementos 1mportan6 taurem as suas pos1çoes, . - e encoraiar . agentes menores a ob terem o estaresre;e participantes plenos. Todos os elementos maiores devem ser tratados ~uto]mente como participantes aceites no desempenho 208 • igu~Segunda Guerra Mundial acelerou o processo, que começara na Primeira, estringir o número das grandes potências, acabando por aparecer um sis- resu 1tau d a posse d o ioga e dera bipolar d e superpotenczas, ' · cuia · nova ape 1açao c:]ear. Esta bipolarização foi acompanhada de uma competição ideológica 11 sentido de conquistar a adesão das populações dos adversários, multiplin:ndoas formas de hostilidade. e A direcção bipolar deixou formalmente fora do sistema poucos países neutrais(Suécia,Suíça, Áustria), ou zonaspobresde neutralistas.Este período assistiu a acontecimentos fundamentais, muitas vezes levando à beira do conflito centralentre as superpotências, como foram o bloqueio de Berlim, a chegada de MaoTsé-tung ao poder, as guerras da Coreia, do Vietname, a intervenção soviéticana Hungria, na Checoslováquia, a guerra do Afeganistão, o conflito permanente no Médio Oriente, a revolução fundamentalista do Irão. O bloco liderado pelos EUA abrangeu uma cadeiade alianças, cada uma delas ligadacom as outras no sistema mundial: Organização dos Estados Americanos(22 membros, datada de 1947, recebendo forma no chamado Pacto do Rio deJaneiro ou Tratado lnteramericano de Assistência Recíproca); Tratado de Segurançado Japão (1952, dois membros); Tratado de Segurança com aÁustráliae a Nova Zelândia (1951, trilateral); Tratado de Defesa Mútua com a Coreia doSul (1953, bilateral); Tratado de Defesa Colectiva do Sudeste da Ásia (1954, oitomembros);Tratado de Defesa Mútua de Taiwan (1954, bilateral). Acrescem tratados sobre bases e estacionamento de tropas, o que se traduz tudo num envolvimentode talvez quarenta e seis Estados, ao redor do mundo, nos mesmosobjectivos apoiados no poder militar. A URSS, com o Pacto de Varsóvia (1954) que englobava todos os satélites europeus, complementado embora pelas acidentadas solidariedades com a China,teve uma expressão formal mais regional. ,.. K . aplan, Systemsand processin intcmational re/ations,N.Y., 1957, p. 23. Walter S. Jones, The logicof mternat iona/rclations,cit, pp. 292-293. 253 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Mas os factos demonstram que a bipolaridade e o equilíbrio não elCi igualdade absoluta de poder, bastando que a força seja suficiente para ufelli passar o custodetolerânciado adversário. A situação, em contraste com o tno;ra. do século XIX, aponta para o facto de que a maior diferença foi a falta deJi ~lo balança,e de que nenhum Estado ou grupo de Estados podia aspirar a eJCe;dq tal função. Parece de reconhecer que a paz dos últimos cinquenta anos deccer reu_antes de u,m_equilíbrio de terr~re ~u_e,em 1990, ~h~gámos a um período ~r~ revisão da log1st1cade ambos os 1mpenos, sem prev1sao sobre a nova defini . · · l que aparecera., Çao mternacwna Jones dava a seguinte expressão gráfica às tensões que pareciam anuncia uma balançadepoderesmultipolar,mas não previu a implosão da URSS que lançor o sistema mundial numa turbulência de disfunção, de prospectiva incerta. u ...•··············· O panorama do fim do século é muito mais complexo, indicando-se pelo menos trinta e oito conjuntos geopolíticos em definição, desde a América do Norte ao Pacífico, considerado este o berço do futuro. Qualquer das superpotências, na vigência do modelo bipolar que ruiu, recorreu à força para manter a área de influência: os EUA em Cuba (1961), na República Dominicana (1965), no Panamá (1989); a URSS na Hungria (1956), na Checoslováquia (1968), no Afeganistão (1979) 209 • Esta questão do poder nas relações internacionais tornou-se dominante e clássica a partir das análises de Max Weber, e o tema deve grande parte da sua actualidade académica a Lasswell, que viu no poder o elemento mais específico do fenómeno político 210• 20 2 '' "' Jacques Huntzinger, Introductio11 aux relatio11s intemationales,Paris, 1987, p. 257 e sgts. Lasswell e A. Kaplan, Poteree societá,Milão, 1979. 254 TEORIA DO PODER poleJllO logia 6· dissemos, politólogos da reputação de Raymond Aron encontram ape0 Collla guerra o facto determinante da autonomia das relações internacionais. 5 11 11a isso a gue rra e' um tema d ommante · ·• · no vasto campo d e estu d o d a c1encia po~ídca,examinado do ponto de vista ético, jurídico, sociológico e, naturalPº nte, polític o. Vamos indicar as principais teorias que intentam explicar as in:salidades da guerra, investigação que anda a ser objecto de uma nova discic~ina,que Bouthoul chamou polemologia 211• Várias publicações são dedicadas P rmanenteme nte a este tema, destacando-se os Journalof ConflictResolution r~anadá),Journa/ of PeaceResearch(Noruega), PeaceResearchReview(Canadá). conceito operacional de guerra, que preside às várias teorias, é o de hosti0 lidades entre Estados ou grupos sociais conduzidas por forças armadas que manejama organizada violência possível. 1-Assimetria depoderes uma teoria é a da assimetriadospoderes,com expressão em antigas máximas comoa que diz - se queres a paz, prepara a guerra. Trata-se de conceber uma estratégia de um poder expansivo que visa interesses titulados por outro poder (umterritório, por exemplo), e a perspectiva da Realpolitiksustenta que o poder conservador está ameaçado se admitir uma desfavorável assimetria de poder. Nestecaso a balança de poderes é insuficiente para manter a paz, a superioridade é a única garantia. Quando Winston Churchill, em 1946, denunciou a cortina de ferro que os soviéticostinham feito descer sobre a Europa, também sustentou que apenas a superioridade militar ocidental os faria parar, porque qualquer outra relaçãode forças ofereceria "temptations to a triai of strength". Não é fácil admitir que a teoria ofereça uma explicação geral para as causas da guerra, antes parece aplicar-se apenas a alguns casos de guerra. Uma variante desta teoria, sustentada por Organski, é chamada teoria power-transitionda guerra. Insiste mas sim as assiemque o facto determinante não são as assimetriasestabelecidas, metriasemergentes e em evolução,evolução cujo ritmo pode inclinar os Estados a desafiar o statu quo.A eficiência causal, nesta visão da power-transition,assenta na admissão de que todo o statu quoestável se traduz em Estadospoderosose com objectivos realizados(EUA, Inglaterra, França). Um súbito desenvolvimento das capacidades dos revisionistas levará a desafiar a Ordem internacional estabelecidae à guerra 212 • ™G • . aston Bourhoul, Elemcnts dePolémologie, Pans, 1951. i120 k" rgans 1, cit., capítulos 7 e 8. 255 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS II - Nacionalismo a) Irredentismo A Nação tem um sentido fixado, na cultura ocidental, por Renan, que a defini como um grupo com história comum, um presente participado, e aquilo quu Malraux chamou uma comunidade de sonhos, tudo implicando normalment~ a vontade de constituir um Estado independente. Mas também designa algu. mas vezes o povo do Estado sem Nação, como acontece com a generalidade dos Estados da África negra; ou grupos identificados pela etnia, ou pela religião ou por modelos culturais, que apenas reclamam o respeito pela diferença se~ todavia existir uma vocação para a independência política. Em todos os casos se quando uma alienação efectiva, imposta por grupo ou fala da guerra nacionalista poder político diferente, não lhes parece deixar outra alternativa. Esta guerra reveste duas formas principais: irredentismoe separatismo.Pelo que toca ao irredentismo,acontece que o território mundial está praticamente dividido na sua totalidade entre Estados soberanos. Estas fronteiras dividem frequentemente grupos étnico-linguísticos ou culturais entre soberanias diferentes: é o caso da Irlanda do Norte em relação à Inglaterra e à Irlanda; de Caxemira absorvida na Índia e reclamada pelo Paquistão; os curdos estão divididos entre o Iraque, o Irão e a Turquia; os bascos estão divididos entre a Espanha e a França, etc. O irredentismo é uma luta pela unificação do povo, e chama-se irredento a um território onde está estabelecida uma parte do grupo, e que este considera perdido ou arrancado pela força por uma soberania ilegítima. Alguns dos conflitos graves do nosso tempo têm essa causa. é animado pela citada regra, acolhida expressamente nos 14 O nacionalismo Pontos do Presidente Wilson, na guerra de 1914-1918, segundo a qual a Nação tem direito a constituir um Estado independente, e entende-se que abrangendo toda a Nação. Desde 1969, pensa-se que 70% dos mais de centena e meia de conflitos identificados radica em questões nacionais. A circunstância determinante da guerra é geralmente o facto de a Naçãoestar abrangida pela soberania de um Estado que repudia. De facto existe uma identidade fundamental entre irredentismo e nacionalismo. Mas a diferença mais saliente é que neste último caso pretende-se fundar um Estado nacional, e naquele caso existe em regra um Estado que reclama uma parte do território de outros Estados onde alega viver parte da sua Nação. A luta pela independência, para ocupar um lugar igual e separado na comunidade dos Estados, como disse Jefferson, é a expressão mais lídima da guerra nacionalista. 256 TEORIA DO PODER atismo e independência b)ser•~a de guerra que corresponde a situações que cruzam as anteriormente VJll~~as é O separatismo. Um grupo com identidade pretende separar-se de um jnd1~ existente e assumir o lugar independente e separado para o qual sente 0 listª _0 e capacidade. Não se trata de reclamar a união a Estado diferente, ou vocaçaEstad o reclamar território de outro. O caso dos curdos ou dos bascos de umponde a este modelo. Existem no mundo vários focos de conflito separac~rr~:s ibos pretendem separar-se da Nigéria, e sacrificaram talvez um milhão 0st ~das a essa luta depois da independência do Estado, após a guerra de 1939d~:5. 0 Bangladesh separou-se, pela guerra vitoriosa, do Paquistão; os bascos -l «:para se separarem da Espanha, e a Catalunha manifesta igual disposição; luta . os s1ºkh s 1utam contra o centracroatas contestavam a ab sorção na Jugos l'avia; mo da União Indiana; o Ulster católico luta contra a Inglaterra; Timor-Leste tra contra a Indonésia; o Quebeque francês contesta a unidade do Canadá; o ;bete foi absorvido pela força pela China; os curdos lutam simultaneamente contraO Iraq ue, o Irão, a Turquia que os dividem entre si. Muitos outros focos menorespod em ser enumerados. r III- Darwinismo internacional Umaconcepção darwinista do poder tem sido uma causa ideológica da guerra. Trata-sede assumir que as sociedades, tal como as espécies, progridem pela competiçãoe selecção, pelo que a guerra é pregada como uma nobre forma de vida. o fascismode Mussolini sustentava, pela voz do seu líder, que "o fascismo acima de tudo não acredita nem na possibilidade nem na utilidade da paz universal. Porisso rejeita o pacifismo que apenas esconde a submissão e a cobardia" 213• Maso ponto de vista foi desenvolvido até aos extremos pelo nazismo de Adolf Hitler,que proclamou o mito da raçaariana,o objectivo de organizar hierarquicamente os povos da Europa sob a sua direcção, e mandou executar o projecto chamado SoluçãoFinalpara liquidar definitivamente os judeus, dos quais morreram uns seis milhões. As raças superiores, dizia, não podem entregar-se à "cegueira pacifista para renunciar a nova aquisição de território" 214• Os marxistas, que enfrentaram a invasão nazi durante o último conflito mundial, e que sustentam que a guerra é um fenómeno radicado na diferença de classespara além das divisões de fronteiras, interpretam o darwinismo social como mais uma forma do ideologismo burguês para esconder a realidade da luta de classes 215• "'c-l[ , por Christensen, Ideologies andModem Politics,N.Y., 1971, p. 70. I er, Mei11 Kampf,Boston, 1943, pp. 134-157. BryanBeau, ProblemsofWar and Peace:a CriticaiAnalysisof BourgeoisTheories,Moscovo, 1972. lHff !IS lt 257 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS IV - Erro depercepção A revolução das comunicações deu origem a que a cenografia entrasse nas P re. apareces ocupações da ciência política, e que o chamado Estadoespectáculo como a expressão das técnicas usadas na implantação da imagemdesejada pei~e líderes, pelas instituições políticas, e pelos Estados nas relações internac 1· s 0nais. Todo o ritual da Coroa britânica se inscreve hoje nessa engenharia socj 1 da imagem útil para os fins e objectivos do Estado. Trata-se de um fenómenª antigo, ao qual o avanço das tecnologias veio dar uma nova dimensão. Gran/ parte daquilo que se chama a estratégia indirectaé uma luta de cada poder polític: para enfraquecer a lealdade das populações submetidas à soberania adversária, denegrindo-lhe a imagem e implantando uma beneficiada imagem própria Por exemplo, a campanhapacifistadesenvolvida pela estratégia indirecta sovié~ tica entre os países ocidentais na década passada, para enfraquecer a lealdade à NATO, foi pelos próprios classificada como a maior campanha de sempre no sentido de conquistar os corações dos povos europeus 216 • Acontece que a sofisticação e a velocidade das armas foi acompanhada da sofisticação dos meios de comunicação ao serviço da engenharia da imagem, pelo que os riscos do erro de comunicação são ultrapassados pelos riscos da errada imagem assumida dos intervenientes na vida internacional, dos seus objectivose das suas condutas, erro que pode ser induzido. Quando o processo da subida aos extremos da guerra se desencadeia, há uma escalada na movimentação dos meios bélicos para o confronto. Dessa escalada faz parte, e muitas vezes acentuada, uma escalada na comunicação, porque o combate tem muito de verbal e simbólico. O conhecido Herman Kahn ocupou-se largamente deste problema da escalada217. V - Competiçãoarmamentista A corrida armamentista é apontada como uma causadaguerraou um substitutivo daguerra,segundo a famosa conclusão de Samuel P. Huntington. Numa interpretação conspirativa,que teve curso nos próprios EUA depois da Primeira Guerra Mundial, as indústrias do armamento seriam muito responsáveis pela organização de lobbiesda guerra. Durante o último meio século, a competição armamentista entre os dois blocos traduziu-se, por um lado, na estabilidade 216 Anato! Rapoport, "Perceiving the Cold War", in InternationalConflictand BehavioralScience(Robert Fisher, edt.), N.Y.,1964, que analisa a principal literatura. Karl Deutsch, Análisedasrelaçõesinternacio· nais, Brasília, 1968, p.147 e sgts. "' Herman Kahn, Thinking aboutthe Unthinkable,N.Y., 1984, p. 96, sobre o uso das armas nucleares mostra, com a enumeração dos cenários, a fragilidade da percepção das intenções do adversário. J. David Singer, "Threat Perception and Nacional Decision-Makers",Journa/ ofConflictReso/ution,195B, pp . 90-105. 258 TEORIA DO PODER edo recíproco, e no desenvolvimento não apenas das armasestratégicas, pel0 Il1mbém das capacidades de desenvolver a guerrabacteriológica ou a guerra ..,asta . d . l ••·, ·ca fazendo aumentar enormemente os nscos a guerra por s1mp es erro .. . ' . q no ou de fiic1encia tecmca. hU~arece inegável que a corrida armamentista pode ser causada por conflito ~amente existente; que pode acelerar a subida aos extremos até pelo uso · que po d e manter um eqm'l'b · pe lo me d o o qua l evita · a Previ uerra preventiva; 1 no dagrra, e sempre se traduz, em todos os casos, numa incompatibilidade entre gue ir uma políticaarmamentistae conseguir sustentar uma políticadesenvolvimenQuer o aumento do risco, quer as incidências orçamentais, implicaram o a. d e teorias . mternac10na1s . . . d e controIo de armamentos.G ran d e dtissenvolvimento \ce das negociações ininterruptamente mantidas pelos blocos ocidental e ~: Leste, neste longo período de confrontação, disseram respeito ao controlo ,,,,n,' s~r 218 dearmamentos . Aimplosão da URSS tornou mais urgente o processo das negociações sobre desarmamento porque, com o desaparecimento de um Estado no antigo Leste 0 soviético,surgiam quatro potências nucleares, que são a Rússia, a Ucrânia, o Cazaquistão e a Bielorrússia, que tornaram problemática a execução dos acordosde redução das armas estratégicas (START)de 29 de Julho de 1991, os quais previama eliminação de 30% do arsenal atómico global. Em Maio de 1992 foi assinado em Lisboa um acordo pelo qual as várias potências aderiram ao tratado START,e se obrigaram a observar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP).Em Junho seguinte, numa conferência em Washington, George Bush, então Presidente dos EUA, e Boris Ieltsin, Presidente da Rússia, concordaram em que, até 2003, reduzirão as cabeças nucleares de cada lado a 3500, que eliminarãoos mísseis de cabeças múltiplas instalados no solo, e que desenvolverão umsistemaglobaldeprotecção(GPS) antimísseis, renovando o antiquado tratado ABMde 1972 (mísseis antibalísticos). Em Junho de 1992, em Oslo, os antigos treze membros do Pacto de Varsóvia obrigaram-se a observar o tratado de redução dos armamentos convencionais na Europa (CFE). Finalmente, o Tratado CéuAberto,assinado em Helsínquia em 24 de Março de 1992, abriu o acesso ao espaço aéreo de "Vancouver a Vladivostoque". Em Julho de 1992 foi acordada a redacção final do Tratado sobre interdição de armas químicas com a adesão de 50 Estados, e a China, em 10 de Março de 1992, assinou o Tratado de Não-ProliferaçãoNuclear (TNP), seguida pela França em 3 de Agosto 219 • Todavia, o 218 Marek Thee (edt.}, Armaments,arms co11trol and disarmament,UNESCO, 1981. Swadesh Rana (edt.}, Obstac/es to disarmamenta11d1vaysof overcomingtlum, UNESCO, 1981. 219 Lellouche, Lc NouveauMonde:de /'ordrede Yaltaao desordredesNations, Paris, 1992. GRIP, Mimcnto Dife11sc Désarmcment,1992 (anual, Bruxelas, 1992). SIPRI Yearbook, 1991, WorldArmamerllsand Disarmame11ts (anual}, Oxford, 1991. Em 1993-1994 foi a recusa da Coreia do Norte em autorizar as ins259 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS comércio das armas, e o ciclo droga - armas - guerrilha, continuam a ser Ull) ameaça que escapa ao controlo internacional e alimenta grande parte dos co a flitos regionais, das guerrilhas internas, e do terrorismo mundial. n- VI - Afuga para afrente Uma causa da guerra, já anunciada por Péricles, o teórico da democracia, é 0 intencional uso do conflito externo para resolver problemas internos 22º. A política de Bismarck, que entre 1866 e 1871 provocou três guerras Par acelerar a integração dos vários Estados alemães na unidade, é citada colllª exemplo. Assim como a proposta do Secretário de Estado William Henry Sewar~ ao Presidente Abraham Lincoln no sentido de que este provocasse uma guerra externa que unisse a Nação e impedisse a guerra civil. A análise estatística não comprova todavia esta causa senão como uma manifestação ocasional, porque é rara a coincidência entre um conflito interno e uma guerra externa. Ao contrário, parece mais frequente que um conflito interno atraia a intervenção externa, e que desta resulte o conflito. Os exemplos antigos e recentes são numerosos. A guerra do Vietname, que durou de 1950 a 1973, envolveu primeiro os franceses e depois os americanos. Em 1984, os EUA intervieram na Nicarágua contra os sandinistas, e em El Salvador para manter um governo que lhes era favorável. A URSS interveio na Checoslováquia (1968) e na Polódo nia (1981). No Médio Oriente as intervenções abrigadas na clandestinidade Estadosão contínuas, da parte de terceiros, que assim conduzem uma competição armada por entreposta entidade. Em 1994 os EUA intervieram no Haiti, autorizados pela ONU, para derrubar a Junta Militar e restabelecer o Presidente eleito, sem que tenha sido possível encontrar motivos lógicos para esta intervenção selectiva num mundo de ditaduras (Iraque, Indonésia, República Dominicana, Cuba, etc.), salvo pretender restituir crédito interno ao Presidente dos EUA, Bill Clinton. VII - O instinto de agressão Alguns teóricos desenvolvem uma popular teoria ligando a guerra a um natural instintodeagressão nunca eliminado pelo progresso da sociabilidade. Muita pecções da Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA), o maior alerta na área do controlo de armamentos. A convenção internacional banindo as armas químicas, devia entrar em vigor em 1de Janeiro de 1995, mas não obteve as 65 ratificações necessárias dos 160 Estados aderentes . Os Tratados START-1(1991) e START-11(1993) de redução de armas estratégicas estão igualmente pendentes da'. ratificações . O Tratado sobre as Forças Convencionais na Europa (DCE), para vigorar em 1995, e~ta ameaçado pelo pedido de rescisão da Rússia . A decisão francesa (1995) de reiniciar as experiências nucleares perturba todo o ambiente de confiança . 20 ' ln LegadoPolíticodo Ocidente,cit., O discursodePéric/es. 260 TEORIA DO PODER literatura usa o método comparativo recorrendo ao exame do comportadestª animal de várias espécies. O mais conhecido dos analistas destes comJllent:entos nos tempos modernos foi Konrad Lorenz, que estudou a lógica e - em d"C ' • animais • • 221. 11erentes especies Porta-es da agressao funbº;,nperativo territorial,ou a reserva de um espaço, aparece como fundamenl sustenta que ao lado da agressividade cada espécie desenvolve uma inibição ca· 0 uso da violência, que se manifesta quando a vítima da agressão dá um ~ar~de submissão. Aplicando as suas conclusões à agressão humana, parece-lhe sinaa falta que os h omens tem 'd as armas naturais. que outros animais .. possuem que como consequência um moderado nível de inibição, e o uso das capacida.. dcetll s intelectuais. para desenvo 1ver armas arti"fiiciais. e Parece certo, independentemente do rigor da transferência dos conceitos para o exame da conduta humana, que os cientistas sociais não encontram esta orientação a explicação ou o paradigma da transformação do instinto ~ndividualem movimento político que sustente e racionalize o uso da guerra. Poroutro lado, os fenómenos estudados por Lorenz animam acidentalmente sectores racistas que deixaram o registo histórico de calamidades que a organizaçãointernacional condena e não quer repetidas 222 • VIII- Osciclosdaguerra e dapaz Talcomo acontece na teoria da cultura, e na teoria económica, também neste domínio apareceu uma teoriade ciclos,ou de uma curvadaguerra.Os estudos quantitativos são numerosos, mas as divergências de conclusões mantêm-se 223 • Umahipótese aponta para um ciclo de vinte e cinco anos antes de 1680 e um ciclode trinta e cinco anos posteriormente. Além da questão do ritmo, fica a difícil questão das causas do ritmo. Uma hipótese corrente apela para modelosda psicologia e liga os ciclos à memória dos sofrimentos da guerra: quando se apagam, o recurso à violência reaparece, e transforma-se o horrorem glória. Outra hipótese baseia no ciclo da substituição das lideranças políticas os ciclos de recurso à violência, porque cada geração de dirigentes tem a sua guerra. A ideia de periodicidade continua a ser de difícil demonstração. IX- O complexomilitar-industrial Estacausa da guerra tomou relevo político, entre outras razões, porque o Presidente do EUA, General Eisenhower, definiu desse modo o Estado que dirigira 221 Konrad Lorenz, On Agression,N.Y., 1966. Konrad Lorenz, E/ comportamiento animale humano,Barcelona, 1977.António Marques Bessa, Quem Lisboa, 1993, um recente estudo da teoria das elites. governa?, 223 Uma das teorias que impulsionaram a indagação foi a do famoso Oswald Spengler, Declineof the West, N.Y.,1926, I, p.109 e sgts. 222 261 ---- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS politicamente. A tese sustenta que poderosos grupos, com interesses domina tes na indústria da guerra, exercem a sua influência para criar, manter, e agrat· ar as tensões. É uma versão da teoria conspirativa da história e da política. Tal espécie de grupos seria composta por militaresprofissionais,donosead,n. 1 nistradoresde indústrias militares.funcionárioscujas carreiras estão ligadas , despesas militares, pessoalpolíticocujo eleitorado tem interesse em project~s de defesa. A solidariedade e força destes grupos seria apreciável, e apelam Pars nacional,usando várias organizações quª valores como o patriotismoe a segurança funcionam como aparelhos ideológicos. Esta teoria não distingue entre Esta~ dos capitalistas e Estados socialistas 224 • Não pode omitir-se a importância do complexo militar-industrial den. tro da teoria geral dos grupos de pressão, embora o dimensionamento da sua influência seja questionável em função de cada Estado, forma de regime e conjuntura. Embora evitando qualquer incursão na área da política, foi John Kenneth Galbraith um dos que primeiro conceptualizou e analisou o comportamento do Estadoindustrial,inquirindo sobre os efeitos da autonomia da tecnoestrutura. Perguntava-se: "a questão seguinte, importante tanto para as sociedades socialistas como não-socialistas, refere-se ao que busca a tecnoestrutura fazer com a autonomia que exige. Quais são os seus objectivos? Concordam eles com os objectivos da sociedade? Qual é a interacção entre os dois? 225 Durante a Guerra Fria o questionário foi naturalmente dirigido para os objectivos do Estado e sua acção externa, ofensiva e defensiva, e daqui a influência da mensagem de Eisenhower. O livro do General Villegas sobre a guerra política ficou como uma análise, ideologicamente comprometida, da percepção de um complexo militar-industrial soviético, fortemente dependente de uma opção ideológica. A alternativa formulada por Lenine - "ou triunfa o Governo soviético em todos os países avançados do mundo, ou triunfa o mais reacionário imperialismo" -, explicaria a submissão das repúblicas ao complexo militar-industrial afeiçoado pelo conceito estratégico revolucionário, e o desenvolvimento da acção externa continuada traduzir-se-ia em dividendos de obediência interna 226 • "'Wright Mills, Thcpowerelite,N.Y.,1956, fornece uma importante base teórica à perspectiva. 225 John Kenneth Galbraith, O 11ovo Estadoi11dustria/, Rio de Janeiro, 1968, p. 120. Burnharn, Themana· geria/rcvolution,Bloomington, 1960, deu estatuto académico à questão da tecnoesrrurura. m General José Díaz de Villegas, La guerrapolítica,Madrid, 1966, p. 49. 262 TEORIA DO PODER _ 0 Malthusianismo conomista Thomas Malthus (1766-1834) escreveu um livro clássico, Essay O e ipu/ation,onde sustenta que a população cresce em progressão geométrica 011 Pºrecursos alimentares em progressão aritmética, produzindo uma ameaça e º}ome e uma necessidade de reajustamento. A análise política do problema de dui pela necessidade do controlo do crescimento da população. conJ\lgunssustentam que a guerra é um regulador dos excedentes. Nota-se que d sde 1900 viveram mais homens na Terra do que a soma de todas as gerações essadas,e que tal número duplicará ou quadruplicará no próximo século. MalP:us antevia cataclismos, guerras e fomes como eliminadores do excesso de teres vivos em relação à capacidade de os manter. A teoria de Hitler do espaço :iral necessário ao povo, que se obtém e mantém pela guerra, encontrou fundaroento nestas proposições. Não obstante as terríveis mortandades, que progressivamente aumentam de dimensão, causadas pela guerra e progresso dos roeiostécnicos de a fazer, a taxa de eliminação de homens vivos não corresponde à função correctora que esta perspectiva lhe atribui 227• Tendo em conta a estrutura colonial, com expressão por vezes imperial sem definição formal, mais os conflitos religiosos, culturais e étnicos, e os efeitos secundários da competição entre os blocos das potências, a questão demográfica aparece como uma das mais críticas na relação Norte-Sul, que o ConcílioVaticano II definiu como das graves do nosso tempo. O Norte do mundo caracterizado por economias industrializadas (Aron), afluentes(Galbraith), e de consumo (Marcuse), vivendo em cidades, substituindo o músculo pela máquina e a memória pelo computador, com crescente expectativa de vida; o Sul do mundo caracterizado por uma economia agrária, sem excedentes, de monocultura, com deficiência de quadros técnicos, rendimentos de miséria, fraca expectativade vida, povos de cor, colonizados, dependentes, definindo aquilo queJosué de Castro chamou a geografiadafome"228 • Tudo parecendo obedecera umatendência segundo a qual os ricos tendem para ser mais ricos, e os pobres para ter mais filhos. A revolta da área dos 3A (Ásia, África, América Latina), contra o Norte, incluiuestas referências nas ideologias de justificação. Acontece que ao mesmo tempo que crescem as desigualdades entre o Norte e o Sul, também se acentuam dentro de cada país. Em 1993, o Banco Mundial informou que, numa população de cerca de 5,3 mil milhões de habitantes, o t 227 Malthus, Principesd'économie politique,Paris, 1969; no clássico Essay011theprincipleofpopulation(1798), analisaas causas que determinam a relação entre a população e os recursos existentes. 228 F,Fanon, LcsdamnésdelaTerre,Paris, 1958. Pierre Moussa, Lesnationsproli taires,Paris, 1959. Mannoni, Psychologie dela colonisation,Paris, 1950. Josué de Castro, Géopolitiquedelafaim, Paris, 1952. 263 -- TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS planeta tinha, em 1991, cerca de 1,16 mil milhões de pobres, isto é, pessoas qu não dispõem de mais do que 370 dólares por ano. e A enorme massa de pobres vive no hemisfério sul, sendo a África, hoje, a Illai preocupante, embora conte apenas 12% da população mundial. Os analistas qua~ li ficam a década de 80 como umadécada perdida,sugerindo que o peso da dívida ,e políticas de ajustamentoestruturalinadequadas, foram responsáveis pelo regresso da miséria, do analfabetismo e da mortalidade infantil, acrescendo as guerras locais por procuração. As migrações descontroladas, que designadamente agravam a segurança europeia, são frequentes e dramáticas 229 • O controlo da natalidade aparece assim como uma políticadesegurança dos países ricos, que por vezes remete para segundo plano a percepção da sua relação com o desenvolvimento. Na importante Conferência do Cairo, de Setembro de 1994, sobre o desenvolvimento do Terceiro Mundo, os EUA foram acusados de a terem promovido com uma finalidade de defesa e segurança, procurando o aborto como instrumento regulador do crescimento demográfico da área da geografia da fome. As confissões religiosas, com proeminência para a Igreja católica, à qual se juntaram os islâmicos, opuseram a defesa dos valores de cada área cultural e, para os crentes, o respeito pelos credos respectivos, obtendo vencimento 23º. A questão é a do chamado crescimento demográfico zero,sustentado por economistas como Kenneth Boulding, Nicholas Georgescu, Roegen, Robert Heibroner e E. J.Mishan. A ameaça que examinam é a de existirem na Terra seis mil milhões de pessoas no ano 2000, 9,5 mil milhões em 2025 e 15 mil milhões em 2050. O seu argumento ético é o de evitar os sofrimentos humanos e os prejuízos ecológicos que resultarão de o ajustamento vir a ser feito pela fome e pela doença. Os opositores alegam a confiança na criatividade humana, capaz de encontrar meios que respondam ao crescimento da população, que será finalmente limitado pelo desenvolvimento 231• A guerra é ainda um instrumento de resolução dos conflitos pela força, mas a sua explicação causal e a racionalização do seu uso continuam obscuras. 7. A jurisdição penal internacional 1 - O 11 de Setembro foi referenciado como tendo mudado a circunstância mundial, e certamente a enormidade da agressão obrigou a várias reflexões e intervenções, as quais todavia não levam a concluir que se trata de acontecimento desligado de raízes passadas. "'' S. Bessis, Lafairn dans/e monde,Paris, 1991. PNUD, Rapportmondialsur /edéveloppernent humaiu,Paris, 1992. 2311 231 Adriano Moreira, "Uma semana em Setembro", in DiáriodeNotícias,27/9/94. Alfred Sauvy, Zero Growth?,N.Y., 1975. Julian Simon, The ecouornics ofpopulationgrowth,N.Y.,1977, 264 TEORIA DO PODER rrorismo de Estado faz parte do legado maquiavélico da história políO ;e ta pela autodeterminação dos povos levou a teorizar o terrorismo como rica,ªd~s sem poder, o refinamento da tecnologia das armas permitiu obter ar!ll~ issão das sociedades civis e dos governos pelo exercício da destruição a su -~ade cidades, tudo numa época que antecedeu visivelmente a da Guerra 111 ~ss~stamesma caracterizada pelo medo recíproco do holocausto, uma variáfrtª• va na história da Ordem internacional, e tendo o Estado soberano como velno . ferênc1a. re Asnovidades mais salientes da brutalidade do ataque às torres foram, em priiro lugar, o facto de os EUA serem atacados dentro do seu território, e depois meeO ataque fosse desferido por um podererrático,organizado em rede, evenqua!rnentereduzindo um Estado a hospedeiro, e usando meios rudimentares em t~rnparaçãocom a sofisticação do aparelho de segurança e defesa do agredido. e Subitamente foi crescendo o entendimento de que a globalização tinha desrerrirorializado a defesa, e que muito institutos jurídicos organizados tendo o Estado soberano como actor principal, exigiam revisão ou recriação: o exercícioda legítima defesa foi reformulado para enfrentar um chamado eixo do mal; a questão da legitimidade, sem a qual não existe apoio da sociedade civil para os combates, viu nascer uma dialéctica entre a legitimidade global da ONU, a legitimidade da organização regional de defesa que é a NATO, a legitimidade individual dos EUA. Estes últimos, desafiados pelo unilateralismo que se apoia no facto de terem recebido a agressão, mas talvez sobretudo pela supremacia tecnológica do seu aparelho militar, fizeram não obstante a invocação do artigo V do Tratado da NATO. Por esta disposição, todos os membros da Aliança estavam obrigados à solidariedade perante a agressão, mas com a dificuldade de concordarem com uma interpretação do texto que consagrasse a desterritoria lização desse dever, que admitisse um novo tipo de agressor - o poder errático, a par do Estado das origens do tratado, e ainda capacidade para acompanhar o processo decisório da cadeia de comando da potência ao mesmo tempo agredida e dominante. Os meios de comunicação acentuaram a sua urgência de conhecer respostas, imaginando algumas, mas os Estados Maiores precisam de algum tempo para renovaros conceitos estratégicos, e sobretudo os pequenos países são forçados a repensar a soberania de serviço que lhes cabe nesta movediça conjuntura. A frente militar organizou-se no modelo clássico da coligação sem coincidência com o enquadramento da NATO, e entretanto a União Europeia, enredada nas dificuldades de definir e montar uma política de segurança e defesa própria, mais uma vez está obrigada a medir as limitações da sua capacidade estratégica. 265 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Todavia, teve a oportunidade, por iniciativa do Comissário António Vit rino, de autonomizar o problema da redefinição da frente jurídica, e desta:· . e ocupare1. 2 - O direitos humanos são o núcleo duro da relação contraditória entr soberanismo e o internacionalismo, tema que atingiu um ponto crítico no decurs e trajecto fica a ;volução i_nt~rn~no se~tido de reco_n~ecerqu~ do sé~ul? ~- N? uma 1unsd1ção independente e a garantia 10d1spensavel da efect1V1dadeda 8 declarações de direitos. Quando a Revolução Francesa (1789) proclamou os Direitos do Homem do Cidadão, confiou à Assembleia o desenvolvimento dos preceitos, mas ced~ o Terror contrariou a convicção de que tais direitos eram naturais, inalienáveis e sagrados. Nos EUA, o Bill of Rights viu confiada ao poder judicial indepen. dente, com influência reconhecida do ChiefJusticeMarshall(1803), "o remédio contra a violação de um direito reconhecido por lei". Esta experiência doméstica, numa época de indiscutido soberanismo, não oferecia fundamento e exemplo para uma definição de causas e meios que legitimassem a violação da jurisdição interna por poderes alienígenas, mas fornecia a experiência da necessidade da jurisdição independente para que as declarações de direitos fossem efectivas. Foi por isso que, no século XIX, as intervenções pioneiras da linha actual foram baseadas sobretudo em impulsoshumanitáriosque acabariam por apoiar o desenvolvimento de um novo direito internacional. O primeiro impulso humanitário em importância disse respeito à escravatura e ao tráfego, com expressão no Acto de Berlim de 1885, segundo o qual "o tráfego de escravos é proibido em conformidade com o direito internacional", embora ficasse excluída a avaliação da situação interna dos Estados, um tema que ainda por meados do século XX preocupava a comunidade internacional, e que só em 1970 viu o Estado de Oman anunciar o fim da escravatura. Depois a experiência de Gladstone (1880) no sentido de obrigar a Turquia a respeitar as minorias cristãs da Bulgária, e o conflito dos EUA com Espanha por esta ofender em Cuba "o senso moral do povo dos Estados Unidos", encaminhou para a declaração de Theodore Roosevelt de 1904, sobre "O estado da União", acrescentando referências ao massacre dos judeus em Kishenet e dos arménios na sua própria pátria, para afirmar que "a intervenção humanitária em casos extremos pode ser justificada e apropriada". Finalmente, a tradicional corrida armamentista obrigou a considerar a economia de vidas em conflitos, e daqui a fundação da Cruz Vermelha (1863) por Henri Dunant, a Conferência de S. Petersburgo de 1868, e as da Haia de 1899 e 1907, estabelecendo limites ao uso dos gases e balas explosivas. 266 TEORIA DO PODER _ Tais impulsos humanitários, mais fund~dos na carid~de do que e~ prinrídicos, não encontraram desenvolvimento suficiente na Sociedade ip10s J~es, cujo tratado todavia previa "um tratamento justo para os naturais Ja5 N:i~nias",permitiu fundar o BIT como agência de direitos universais, mas Jas ~ a punição de crimes de guerra porque, segundo os EUA de então, as rcjetro_u s das ]eis da Humanidade apenas podem ser punidas por Deus. Talvez ,,jo)aço;çãodas minorias raciais, linguísticas e religiosas, tenha ficado como a ..• prote . . 1· . d e mter. . ira manifestação d e um pensamento mternac1ona ista ap01ante prun~ s na então considerada jurisdição interna, tema de que o Tribunal Perençoe " nte de Justiça Internacional se ocupou algumas vezes. fllane · · como o d e manter su b missas · provavelmente, mteresses esta d uais, as popuões nativas das colónias europeias, ajudaram a não enfrentar a perseguição Jaç •udeus na Alemanha, ou a liquidação dos Kulaks e de milhões de cidadãos ao;~sovietismo, uma situação denunciada por H. G. Wells quando, em 1939, pemeçada a Segunda Guerra Mundial, advogou, no jornal The Times,fazer de c:a Declaração de Direitos efectiva o objectivo dos combates, com base na :mples afirmação de que, "desde que um homem vem a este mundo sem decisãosua",está legitimado para aquela protecção. O livro de H. G. Wells, On The RightsoJMan, traduzido em dezenas de línguas, inspirou o seu amigo Presidente Franklin Roosevelt a apoiar a proclamação aliada no sentido de que "a completavitória sobre os seus inimigos é essencial para preservarosdireitoshumanos e a justiça nos seus territórios assim como noutros territórios". A experiência da guerra viria a reflectir-se na Carta da ONU (1945), mas sem conseguir eliminar o conflito entre o soberanismo e a internacionalização.Em 8 de Agosto de 1945 foi proclamada a NurembergClzarter,e tem interessedetectar no discurso do ClziefUSProsecutorno Tribunal Internacional de Nuremberga, Robert H. Jackson, a então importante linha divisória da jurisdiçãointerna e da internacionalização. Autor dos indispensáveis TlzeCaseAgainst theNaziWarCriminais(1946) e The NurembergCase(1947), disse o seguinte no tribunal: "Nem antes nem agora necessitamos discutir os méritos das suas obscurase tortuosas filosofias. Não os julgamos pela posse de absurdas ideias. É o seu direito, se assim decidirem, renunciar à herança hebraica pela civilização de que a Alemanha era parte. Também não é problema nosso que igualmente repudiem a influência helénica. A falência intelectual e a perversão moral do regime Nazi poderia não ser uma questão do direito internacional se isso não tivessesido utilizado para empurrar a Herrenvolkatravés das fronteiras internacionais. Não são os seus fundamentos, são os seus actos que incriminamos. O seu credo e doutrinas são importantes apenas como evidência dos motivos, propósito, conhecimento e intenção". !. 267 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A Carta da ONU recebeu assim dois legados: o legadomaquiavélico que ate ao poder efectivo e foi recolhido no Conselho de Segurança; o legadohurnan~de st que atende aos valores e teve sede principal na Assembleia Geral. ' ª O art. 2 (7) sagrou o respeito pela jurisdição interna com o conteúdo herd d de antes da guerra, e a DeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos,adaptadaª 0 48 votos em 10 de Dezembro de 1948, ficou longe da declaração de Trulll.Por ao encerrar a Conferência de S. Francisco, quando disse: "temos boas raz:n, para esperar uma declaração internacional de direitos que seja tão parte da vi;s internacional como o nosso Bill ofRights é parte da nossa Constituição". Vai ª l?ena lembrar que se abstiveram a URSS, Checoslováquia, Polónia, Jugosláv~aª Africa do Sul e Arábia Saudita. ' A interpretação do art. 55 da Carta era fixada no sentido de se dispor de um declaração de princípios guias não imperativos, não derivados da natureza ne ª da divindade, mais ligados ao imperativo categórico de Kant: não garantia: direitos, apelava à sua promoção pelos Estados membros à luz do respeito pela dignidade humana, sendo esta a referência chave do conceito. O proclamado respeito pela jurisdição interna não impediu que o conteúdo fosse sendo objecto de reduções e violações efectivas. A Comissão de Direitos Humanos não teve comentários úteis a fazer sobre o derrube de Allende, nem sobre o Vietname, nem sobre Granada, nem sobre a doutrina Brejnev, nem sobre a invasão da Checoslováquia e da Hungria, nem sobre as selváticas governações de Bokassa, de Idi Amin, ou de Pol Pot. Como também foi irrelevante a crítica à larga recusa de ratificação das TivinCovenantsde 1966, e de outros tratados que lidam com os direitos humanos. Governos da África e da Ásia invocaram as culturas regionais como limitativas do globalismo da Declaração Universal, mas casos como os de Banda no Malawi, Marcos nas Filipinas, e Ershad no Bangladesh, mostram que os povos conseguem dar um sentido partilhado à dignidade humana que orientou a Declaração da ONU. Nesta linha da dignidade humana, intervenções carismáticas como as de Andrei Sakharov ou VáclavHavei, ajudaram a dinamizar leituras da Carta à luz da renovada meditação sobre o art. 28 da Declaração, segundo o qual "cada pessoa tem direito a uma ordem social e internacional na qual os direitos e liberdades contidas nesta Declaração possam ser completamente realizados". A Conferência de Viena de 1993 foi organizada para representar a apoteose do conceito de uma Nova Ordem mundial centrada sobre o respeito pelos direitos humanos, embora o Dalai Lama tenha sido excluído por imposição da China. outro lado, a experiência europeia foi dando luz a um corolário essencial de todo este processo. Em 1950 foi promulgada a Convenção Europeia dos Direi· tos Humanos, com o objectivo de concretizar para este espaço os princípi~s da Declaração Universal. A instituição do Tribunal de Estrasburgo aberto ª 268 TEORIA DO PODER er pessoa, organização não-governamental ou grupo" (art. 25), levou qualqUencer resistências soberanistas, e a tornar evidente que também inter:in0~ ª v }mente é exacto que semjurisdiçãoindependente nãoexisteefectivorespeito aciona n d'reitos humanos. I pefoserimos que esta demonstração ajudou a ultrapassar o conceito de Nuremsugelll que a jurisdição dependeu da vontade dos vencedores da guerra de berf 945, em que o princípio de não retroactividade das leis penais foi igno193 elll que o cumprimento de ordens deixou de excluir a responsabilidade. i rad~~routro lado, as atrocidades do fim de século tenderam para redefinir o eito substantivo da jurisdição interna a favor do direito de intervenção concanitária:o Conselho de Segurança criou em 1993 um tribunal penal interbu!Il · 1gar os cnmes · . Jugoscontra a Humam'd ad e cometi'd os na antiga ionalpara JU nac - na Sorna'1'1a,com a Oiperaçao - R estorenope, u · , ia•a intervençao cnou o ch ama d o 1 ;g;dishufactor (1993), e a insistên~ia na guerra cirúrgica, uma consequência delasendo o massacre de Srebremca, em Julho de 1995, quando o General .Mladiado exército sérvio da Bósnia executou 7.000 muçulmanos e deslocou jovens, mulheres e crianças, num exercício de limpeza étnica, com limi23.ooo tadoreceio do Tribunal da Haia. Não vale a pena insistir na enumeração dos desastres humanos que despertaram a consciência de que a realidade nova, que Edgar Morin chamou tinha preparado a opinião mundial para que a recentemente sociedade-mundo, monstruosidade terrorista de 11 de Setembro fizesse emergir uma forte correntede apoio e de exigência no sentido de enfrentar pelas armas uma ameaça global- ao que correspondeu a coligação liderada pelos EUA - e de organizaruma Frente Jurídica de resposta em que por uma vez a iniciativa europeia sedestacou. O estatuto do Tribunal Penal Internacional, de 1999, define uma competênciapara julgar os seguintes casos: genocídio, crimes contra a Humanidade, crimesde guerra, crimes de agressão. Por experiência recordada, os direitos humanos, filiados todos no valor central da dignidadehumana,apenas se tornam no eixo da roda quando uma jurisdiçãoindependente os sustenta. Neste caso, o soberanismo desenvolveu a oposição às adesões ao Tratado invocando:a eventualidade da extradição de nacionais para a jurisdição do TPI;as penas que se afastam das definições nacionais, designadamente a pena de morte e a prisão perpétua. Talvez deva meditar-se sobre o mundo de múltiplas vozesdo conceito da UNESCOpara admitir que não são modelos culturais nacionais que estão em causa,é sim o encontro das várias áreas culturais que apenas no século XX todastiveram voz própria, e neste encontro se apoiam as decisões normativas, 269 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS necessariamente inovadoras; que a extradição é um conceito de relação ent Estados e neste caso é da sociedade-mundo que se trata; que o Tribunal Pe re . 1não e' um tn "buna I d e vence d ores, e' sim · mst1tu1 · · 'd o por acorct nal lnternac1ona Finalmente deveria meditar-se sobre a diferente natureza das coligações lll. 11)tares e das frentes jurídicas transnacionais. A experiência dos conflitos armados entre as potências industria lizacta 8 e os países em via de desenvolvimento, pobres estes por definição e de regr saídos do regime colonial, regista fracassos históricos das primeiras. Na Indo~ china e na Argélia saíram vencidos os franceses, na versão Vietname os ElJA. sofreram a primeira derrota da sua história, no Afeganistão desabou o illlpério da URSS. A experiência tem de reflectir-se na estratégia em curso contra 0 Afeganistão, não apenas na disciplina da comunicação social, mas também na prudência respeitante à previsão do tempo necessário para uma modalidade de intervenção que evite os riscos do passado. Parece ter sido a avaliação da experiência tida na área das intervenções designadamente humanitárias, que levou à formulação do conceito de interven~ ção cirúrgica, com a primeira intenção de assegurar ao eleitorado que as tropas nacionais não sofreriam perdas, e não para garantir que as coisas se passariam sem o sacrifício de inocentes, um preço de todos os combates agora semanticamente amenizado com a designação de efeitos colaterais. Na complexa teia de motivos e objectivos de cada intervenção armada, esta última formulação responde à verificação de que as sociedades civis informadas esperam por intervenções rápidas às quais fornecem o indispensável apoio, e que este apoio se deteriora quando o tempo excede as expectativas criadas, os custos humanos e materiais se acumulam, a insegurança começa a semear-se nas retaguardas. caso do Afeganistão o governo dos EUA tornou claro que a luta contra o terrorismo internacional será longa, visando prevenir assim os desânimos da população, mas também declarou que a intervenção contra o Estado que lhe fornece apoio estaria terminada rapidamente, e aqui as medidas do tempo arriscam-se a ser diferentes para os responsáveis políticos e para os cidadãos. Ora, a luta internacional contra o terrorismo, um objectivo que rapidamente conseguiu uma adesão alargada dos antigos inimigos da Guerra Fria, não está necessariamente no mesmo plano de adesões à intervenção militar contra Esta· dos cúmplices. As redes e a interligação entre as redes violam a segurança global e forçamª hospedagem não consentida, exigem uma actividade de informação preventiva transnacional, implicam a organização de uma investigação criminal e de uma justiça sem fronteiras impeditivas, uma problemática autónoma em relação às intervenções militares que possam verificar-se no decurso da batalha legal que ?· 270 TEORIA DO PODER , será longa, dolorosa, difícil, dispendiosa, podendo criar dificuldades talllbe~uradas alianças determinadas pelos conflitos. 1estruteropos dos combates militares e os tempos da batalha legal não são Os . - e . embora eventua 1mente se cruzem como acontece no Afiegamstao, iguais,ter fundamento procurar evitar que os esforços da batalha legal possam paretctados pela relação da opinião pública com as contingências militares. ~nião Europeia, que nesta ocasião parece ter assumido que a sua capa·d de estratégica é um conceito nominal sem conteúdo à altura de sucessici ªdesafios, dos quais ao mesmo tempo se tem mantido ausente e lastimosa, v~s erdeu a oportunidade de assumir a urgência da batalha legal, e por isso a ' · mternac10na · · 1sem depen d.encia . do percurso naoP · ência de organizar a 1og1st1ca urg .. d intervenção m111tar. ª De facto, é uma criminalidade transnacional que está em curso, infelizente um conceito mais vasto que o do terrorismo. Trata-se de um flagelo ~paz de desestabilizar os governos, de afectar os seus valores, de perturbar o ~uncionamentoda economia, de parasitar os rendimentos, de explorar viciosamenteos avanços científicos e técnicos, de paralisar o desenvolvimento, de dinamizar uma atitude securitária que atinja os direitos, liberdades e garantiasdos cidadãos. o patamar da iniciativa europeia deve ser um impulso que ajude a acelerar a intervençãoda ONU, que tem à disposição um texto importante, a Convenção Contrao Crime Transnacional Organizado, assinada por 124 países em Palermo, no dia 15 de Dezembro de 2000. A rapidez com que o acordo foi conseguido tempoucos precedentes, mas é necessário não perder de vista que se trata do interessegeral da comunidade internacional, que esse interesse deve ser prosseguido independentemente da estratégia contingente privativa de qualquer Estado,sem consentir que o tempo da frente jurídica tenha um ritmo dependentedo ritmo das intervenções militares. Faz parte dessa exigência ratificar as convençõesda ONU que lidam com a questão, e não esquecer que a jurisdição penalinternacional não deve ser rejeitada por nenhum Estado, porque parece um elemento indispensável para que a opinião pública mundial acompanhe a mundialização efectiva da frente jurídica. 4- Em 11de Abril de 2002 foi criado oficialmente o Tribunal Penal Internacional,com cerimónias simultâneas em Nova Iorque e Roma, com pelo menos 56 ratificações anteriores a mais sete entregues no acto. Portugal, que modificou a Constituição para esse efeito, aderiu em Fevereiro de 2001. Entrará em funçõesno dia 1 de Julho do ano corrente, mas tem de salientar-se que faltam pelo menosdois elementos essenciais: a definição da agressão, de facto dependente aindade uma qualificação pelo Conselho de Segurança; incluir o crime de terrorismona competência do Tribunal depois de os Estados membros concluírem ser; 271 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS uma convenção abrangente dos vários actos em apreciação; finalmente, que 08 Estados Unidos da América, a Rússia e Israel, ratifiquem o texto que assinara em Roma, porque a guerra justa exige autenticidade. lll § 2º A RacionalizaçãoTeórica 1. A Antiguidade clássica No persistente estado de natureza da comunidade internacional, o podere a força, com a subida aos extremos da guerra,continuam a ser os fenómenos que teóricae um normativismoético-jurídicoaceite e eficaz. desafiam a racionalização Na antiguidade clássica, possivelmente é Tucídides o primeiro a quem se deve uma meditação teórica sobre as relações internacionais a partir da experiência que teve da guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas (431-404 a.C.). O seu é o primeiro ensaio da nova disciplina 232 • livro A guerradoPeloponeso Depois de descrever a luta desencadeada entre duas cidades com vocação imperial, luta que considerou a maior de que havia memória, considera-a de explicação obscura porque ambas as cidades eram florescentes e dispunham de abundantes recursos. A dinâmica da guerra implicou que todas as cidades da Grécia alinhassem com uma das potências directoras. Porque é que estas recorreram à guerra, tendo cada uma delas condições necessárias para o desenvolviadversário que chama "a causa mento pacífico? Encontra a causa no imperialismo mais verdadeira", e que podia hoje filiar-se na doutrina da "assimetriadopoder". A guerra deriva do excesso de poder, e a aquisição de um império envolveo Estado numa dinâmica imperial, transforma-o num Estadoem movimentocom a permanente necessidade de colocar a fronteira dos seus interesses mais longe. Por outro lado, as outras cidades, afligidas pela assimetria do poder, são compelidas a assumir a defesa, e o conflito agudiza-se pela formação de grupos opostos. Para explicar o conflito concreto, o nosso autor estabelece uma das primeiras doutrinas do estadode natureza,do imperialismo, das relações entre as cidades independentes, e da função da guerra. Este pensamento não teve continuidade na antiguidade clássica porque os pensadores gregos e romanos se debruçaram muito sobre a vida interna da cidade, e pouco sobre as relações internacionais, talvez porque os grupos eram por regra incomunicantes, e a guerra a forma mais frequente dos contactos com exclusão da coexistência, interdependência, cooperação e permanência das relações. m Tucídides, La guerradeiPeloponeso, 2 vols., Barcelona, 1963. 272 TEORIA DO PODER , ecessário abrir uma excepção para o estoicismoque fez emergir o prin. d o genero ' h umano, oposta ao prmc1p10 . ' . do .E nda unida d e mora 1e po l'1t1ca ~íp'ºesse supremo da cidade que se encontra na doutrina democrática de Péri,ncerOs estoicos, ao contrário, consideram cada cidade um elemento do edifí c~es.ue é O género humano, do Estado abrangente do mundo inteiro, e que um c~ºd1reito naturaldeve reger. Esta pregação começa com Zenão no ano 300 a.C. 50 ~cenas, e vai ser continuada por Epicteto e Marco Aurélio em Roma. Indeeflldentemente das suas posições sobre o materialismo e a razão (logos), aquilo penpoliticamente releva é que foram universalistas, apelaram para a natureza qu\nal do homem, e definiram este como um cidadão do mundo. rac~esta linha se inscreveu o famoso Cícero (106-430 a.C.), grande orador e cadista romano, defensor do direito natural e do mundialismo, cosmopoli e_s rno ou diríamos hoje, Estadomundial.Com variantes, o universalismoteocrá;;;0 d~ Santo Agostinho, o impériomundialde Dante, a pazperpétuade Kant são filiadosnessa visão básica. z.o legado humanista: a unidade cristã do género humano A concepção cristã da unidade do género humano, que S. Paulo exprimiu ao dizerque "não há mais diferença entre judeus e pagãos, circuncisos e não-circuncisos,bárbaros e gregos, escravos e homens livres" era o oposto da concepçãoda cidadeautárquica da Grécia, e teve uma expressão efectiva na República 233 Cristã medieval, com a sua doutrina das duasespadas • O poder religioso, investido no Papa, compreende uma larga jurisdição sobre ossoberanos cujo poder se afirmava vindo de Deus, situação que a referida dou trina apoiara na OitavaCartaaoImperadorAnastásio,enviada pelo Papa Gelásio I (492-496), onde se afirma a separação e coexistência do podertemporale do poderespiritual,mas com supremacia deste. Na Bula UnamSanctamafirma: "Uma e outra espada, pois, estão na potestade da Igreja,a espiritual e a material. Mas esta tem de esgrimir-se em favor da Igreja; aquela, pela própria Igreja. Uma pela mão do sacerdote, outra pela mão do rei e dossoldados, embora com a indicação e o consentimento do sacerdote." A divisãodos homens em comunidades não afasta a circunstância de estarem unidos poruma comunidade de destino espiritual, pelo que, como nota Marcel Prélot: "alógica é que a Humanidade esteja submetida a uma só lei e a um só governo, que ela forme a primeira dessas universalidades imaginadas pelo direito romano e cuja noção assumirá na Idade Média uma tão grande importância" 234 • : Documentação em LegadoPoliticodo Ocidente,cit., p. 81 e sgts. Marcel Prélot, Histoiredcsidéespolitiques,Paris, 1975, p. 140. 273 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A ideia da comunidade universal é uma das contribuições fundament . ª15cl.º · ' . cu 1tura 1com~~ d a H. um.a~,'d ad e. A vigên o pa_tnmomo do pnnc1p10 na area cnstã, durante a Idade Media, for facilitada pelo fac eia · ·' • e o coneto.ela · d os po d eres po J'mcos, pu 1venzação que fc ez esquecer a expenenc1a romano do imperium.Em contraposição era a ideia da monarquiauniversalqueito poderia ter desenvolvido, como nota Visscher, se a evolução não se tivesse a e se ntes encaminhado para o modelo do Estadosoberanoe do Estadonacional. S. Tomás de Aquino (1226-1274), na articulação da passagem do Feuc1 lismo para o Renascimento , vem enriquecer a doutrina de uma ordem rn adiai, que sobrevive à viragem da evolução dos modelos políticos, com a de;nda existência de um direito natural anterior e superior às decisões normattª ·s ustenta que existem . quatroespectes ''dl' e eis: a leietern Vas d os po d eres temporais. que é um nome para a concepção de Deus sobre os fins da criação; a leinatu~~ composta pelos princípios que os seres racionais reconhecem e aos quais obª_ decem por natureza, visto ser parte da lei eterna revelada aos homens na Terr:. a lei divina,expressa nos comandos divinos revelados nas escrituras; a /eiposi~ tiva,formulada pelos homens para racionalmente assegurarem o bom governo das suas comunidades. Aplicando a sua concepção à comunidade internacional, discutiu a submissão de todos os príncipes (imperium)à autoridade divina (sacerdotium), e deduziu normas para as relações justas entre os Estados. Deu assim uma contribuição para a definição da guerrajusta, distinguindo entre a causajusta da guerra Uus ad bellum)e a condutajusta daguerraUus itzbello),que ainda hoje vigora no direito internacional. Meio século depois, Dante (1265-1321) escrevia, em De Monarchia(1309), que a única esperança para a paz mundial residia na consolidação do poder do Imperador, e defendia o ideal da monarquia universal 235• A evolução da comunidade internacional para o modelo do Estado nacional, a quebra da unidade da República Cristã, designadamente pelo movimento reformador que negou a autoridade espiritual do Papa, a implantação da doutrina política de que o rei é imperador no seu reino, tudo exclui a submissão geral a uma autoridade espiritual. Mas nunca foi eliminado o projecto de obter a paz pela convergência numa instituição laica, que assumisse ao menos uma autoridadegeral.Os planos dos chamados ProjectistasdaPaz,e instituições como a Sociedade das Nações (SdN) e a Organização das Nações Unidas (ONU) correspondem a esse legado. . . . enst~am,s~o Pª:ª m George H. Sabine, A historyofpoliticalthcory,N.Y., 1961, p. 257. 274 TEORIA DO PODER ado maquiavélico 1 3, O egiavelismo,antes de ser uma apologética amoral de métodos pragmáti0 ,,~q:onduzir a vida internacional e a vida política interna, sem respeito por ,as e morais é uma teoria do poder e do relacionamento dos poderes inter. jces ' htJl. almente, baseada na observação dos comportamentos. ºª'~;ando Maquiavel publicou O Príncipeem 1527, fez a primeira análise glol da sociedade internacional a partir do conceito de estadodenatureza.Depois ba uinze anos ao serviço de Florença, usou a sua própria experiência para deÂuzirO fenómeno da luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder eraJítico.Começa por recor dar que os prmctpa · · dosnao - recon hecem 1· e1ou po der P:e lhe sejam superiores, declarando assim a inutilidade da herança cultural . - me d'1eva1. dq Repúb1· 1caCnsta ª De facto autonomiza a análisedos factos em face da apologética, e conclui que relações entre os principados são reguladas pelo equilíbrio dos poderes, e 5 ª ue a força é o elemento fundamental. O facto é sempre reunirasforçassuficientes ~araalcançar o objectivo:se aquelas existem, o principado passa à acção; se não existem,tem de abster-se. Afirma: "A guerra é a verdadeira profissão de quem governa;é por terem negligenciado as armas e terem-lhe preferido as delícias do ócio que vimos soberanos perderem os seus Estados." Cada principado prossegue portanto os seus objectivos usando o poder, e só um poder superior o poderá travar. As relações internacionais, sem lei nem autoridade específica, assentam no medo, na intimidação, no estratagema e no constrangimento: "Dois receios devem ocupar um príncipe: o interior dos seus Estados e a conduta dos súbditos são objecto de um; o exterior e as ambições das potências vizinhas são o objecto do outro. Para este, o meio de se prevenir é ter homens armados e bons amigos, e ter-se-ão sempre bons amigos quando se possuem boas armas". É por isso que dedica o capítulo XXI a explicar "como é que deve conduzir-seum príncipe para adquirir reputação", analisando a neutralidade, a aliança, a inversão das alianças, o prestígio, a dissuasão, como instrumentos entre os quais escolherá o mais adequado para realizar os seus intentos 236 • Testemunha do nascimento do Estadosoberano,sustentou a teoria clássica da sociedade internacional assente sobre o interesse fundamental de cada Estado, a conflituosidade do estado de natureza, as relações de força, a relação entre diplomacia e estratégia. Era já a perspectiva realista que lhe servia de referência, como em nossos dias fazem Morgenthau e Aron, e fizeram Hobbes e Clausewitz 237• 216 Maquiavel, cit., capítulo XXI. Jacques Hunczinger, Introductionaux relationsintemationalcs,Paris, 1987, p. 27 e sgts. 237 275 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Thomas Hobbes, ao qual fizemos oportuna referência, parece o continuad de Maquiavel quando , no Leviathan,considera o estado de natureza caracte ~r zado pelo homohominilupus. Na vida internacional, igualmente, não encont qualquer princípio de sociabilidade. Ao contrário, segundo escreve, é o dolllr~ a desc tnio por excelência das três causas humanas de discórdia: a competição, Jiança,a glória.Os Estados e os homens combatem-se pelo proveito, para im;no domínio sobre os outros, para se defenderem, por sinais de glória. Como or comunidade internacional não existe um Leviathan,é a anarquia maquiavélj~a que vigora, cada Estado soberano intervindo até onde o poder de constrange: lho permite 238 • 4. A comunidade internacional A concepção cristã da unidade do género humano, que vimos corresponder à supremacia pontifícia e ser vencida pelo aparecimento do Estado nacional, veio inspirar os jusnaturalistas dos séculos XVI e XVII, em que se destacaram Francisco de Vitoria, dominicano professor em Salamanca, e o jesuíta espanhol Suárez, que foi professor da Universidade de Coimbra durante a dinastia filipina. Viram a grande época dos Descobrimentos peninsulares, e tiveram de enfrentar os problemas suscitados pela questão da legitimidade de adquirir as terras descobertas e povoadas, e ainda a definição das relações a estabelecer com os principados dos povos e terras encontrados. Vitoria é fundador do direito internacional moderno, preocupado com a definição das regras jurídicas (direito das gentes) que obrigam os Estados e as comunidades antigas e descobertas, apelando de novo para o conceito de comunidade universal. Defende uma função instrumental do Estado, uma concepção inserida na indivisão originária e natural da comunidade dos homens. O planeta é também naturalmente indivisível. A divisão feita pelos Estados por fronteiras foi uma necessidade destinada a amparar a fragilidade dos homens, a providenciar sobre a sua defesa e segurança . Isto não suprimia a comunidade originária, e daqui o direito que cada homem tem de estar , andar, ir deriva o jus communicationes, de um lado para o outro ao redor da Terra. Há um direito natural superior às prerrogativas e direito positivo de cada Estado, do qual decorrem regras que garantem a paz internacional2 39 • '-'"Marcel Merle, Sociologiedesrclatio11s i11ternationales, Paris, 1974, p. 24e sgts. 2 19 Francisco de Vitoria, Relectiode Jndis (o libertadde los índios),Madrid, 1967, I Parte (co11 quederecho • e II Parte (quepodertienenlos rqes deEspalÍasobrelosindios ha11l'e11ido losbárbarosa poderdelosespa1iolcs?) en lo temporal)'cn lo civil?). 276 TEORIA DO PODER eu Jado,Suárez também sustenta a unidade superior do género humano, :te do preceito do amor e da caridade mútua que se estende mesmo aos resLlta eiros240 • Já então advoga o valor da interdependência dos principados, estrªº!ndo num dos seus textos mais citados: "Nunca com efeito estas comue~cr~espoderão bastar-se a si próprias isoladamente a ponto de dispensarem 111 ~ª da recíproca, a associação, a união, seja para o seu progresso e utilidade, ª ~JLlor causa de uma necessidade ou de uma indigência moral, como a expe~ia demonstra." Por estes motivos, têm necessidade de um direito que r1en . , d e re 1açao - e d e necess1. dirige e as or d ena convementemente neste genero ~sde. o seu apelo já não é, como em Vitória, a um direito natural e ao modelo dª urnasociedade perfeita anterior e superior aos Estados. Parte antes da intere endência necessária dos principados, um conceito que fará carreira entre dep ' . Mas as d uas v1soes . - sao - comp 1ementateóricos d o rea 1· ismo ang 1o-saxomco. 5 ;es, porque não há co~tra_dição en~re conceito de comunidade _u?iversal_eo facto da interdependenc1a dos prmc1pados em que aquela se d1v1de.A diferença está talvez em que no primeiro caso o direitodasgentesou internacional verndeduzido do afirmado direitonatural;e no segundo o direito internacional é a expressão, em primeiro lugar, do costume estabelecido e consentido pelos Estadosna sua relação. o século XX tem mostrado um interesse crescente pelo tema do governo mundial.Baseando-se na tradição nacional americana, apareceu o movimento dos UnitedWorldFederalists. Menos ambicioso o movimento WorldPeaceTlzrouglz World La1v,cujo objectivo é a pazpelodireitomundiale não o federalismo internacional.Os reformistas como Lester R. Brown, procuram desenvolver a cooperação internacional na área do "inventory of mankind's problems", incluindo ambiente, ricos e pobres, desemprego, urbanização e fome. A SdN e a ONU foramas expressões institucionais destas correntes 241 • pr 5~!ª O ? 5. As utopias do fim do século e as previsões metódicas Pormuito próximo que esteja o fim do século XX, as previsões a respeito de uma NovaOrdem do terceiro milénio fazem-nos regressar ao mundo da utopia. Isto porque as perspectivas adiantadas, ao menos em parte substancial da suadefinição, dizem respeito a uma teoria desconhecida, no sentido de que não dispomos de informação suficiente, nem sobre os factos, nem sobre as variáveis,para antever o controlo do seu desenvolvimento. uºSuárez, De Legibus, Madrid, 1971, I, p.11 e sgts. Edith Wynner, WorldFederalGovcrmnwt in Maximum Tcrms,N .Y., 1954, p. 38. Richard B. Gray (ed.), lnter11atio11a/ SecuritySystems,)rasca, 1969, p. 61. Grenville Clark e Luis B. Sohn, WorldPeaceThrough WorldLaw,Cambridge, 1966. Lester R. Brown, Worldwitlwut borders,N.Y., 1972, p. 11. 4 ' ' 277 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Parece interessante lembrar que foram Karl Marx e Frederico Engels q contribuiu para colocar os utopistas no plano não confiável do total corte llelll ' · concepçoes - a autorictcolll a rea l1'd ad e, procuran d o concentrar nas suas propnas . 'fi1ca. ~ c1ent1 Para além do Manifesto Comunista, o estudo de Marx intitulado The l strugglesin France(1850), e o estudo de Engels chamado Socialism,Utopia/ ass Scientific(1850), estabeleceram o quadro dessa qualificação, confiados em terªnd descoberto as leis da História, para termos verificado em nossos dias que alguelll • fcoram mais• exactos nas prev1soes • - 242 . ns utop1stas Nada disto infirmava a definição de Thomas Nipperdey, segundo a qua) utopia significa "um projectoliteráriopara um mundoproblemático ... quecanseiª u:- tementeexcedeoslimitesepossibilidades de qualquerrealidadeexistentee enuncia ordemsubstancialmente diferente". ª De facto, a distância entre a realidade e a utopia não impede que esta tenha uma íntima consistência, que o decorrer do tempo obriga a examinar segundo o critério do Padre António Vieira a respeito das profecias, cujo enunciado mudaria de sentido à medida que a História se distancia do seu aparecimento. Vejamos alguns exemplos abonatórios da oportunidade e da utilidade do exercício proposto pelo tema deste curso. Comecemos até por um texto qualificado de distopia, porque inspirado pela falência das promessas revolucionárias de 1917.Trata-se da novela de Zamyatin, chamada Wena tradução que apareceu nos EUA em 1924. A visão que descreve é a de um benefactor impiedoso que controla totalitariamente a vida da sociedade e dos indivíduos, regulamentados e obedientes desde o nascimento à morte, desde o acordar ao dormir. O globalismo que anuncia traduz-se num Estado abrangente da Humanidade, onde desapareceu a surpresa da novidade, uma possibilidade anulada pela administração minuciosa. É preocupante notar que os mais conhecidos e divulgados Huxley e Orwell também anteciparam a mesma espécie de totalitarismo, não obstante terem raízes em sistemas culturais e políticos bem diferenciados do sovietismo de 1920 em que se filiava a experiência de Zamyatin. No BraveNew Worldde 1932, de Huxley, é o WorldSupervising Boardque administra o WorldState, assim como no NineteenEighty-Fourde 1949, de Orwell, éo BigBrotherque controla absolutamente os povos e territórios da Eurásia. Nestas várias obras, está sempre previsto um núcleo da velha Humanidade, os selvagens que vivem para lá do GreenWallde Zamyatin, os selvagens das reservas de Huxley, os excluídos de Orwell, mudos e dispensáveis pelo sistema, mas em todo o caso guardando os restos da antiga individualidade. 242 Wolfang Bergsdorf, "The age of utopianism in retrospect", in GermanCommcnts,n 2 38, 1995, P· 86· 278 TEORIA DO PODER :Notemosque Huxley emerge de uma sociedade de abundância, e por isso •fica a beatitude futura com o consumismo sem insatisfações, com a eli·delltl . d • . 1 • ção do sofrimento e as carenc1as. 1111 ~aso contrário de Zamyatin, que tem o sovietismo na sua circunstância, ell é de uma linha desgostosa com a evolução do sistema político do socia~rWoreal, condicionado pessoalmente por uma sensibilidade pessimista que . • . ao s1s. )lslll · a1·1mentar esperanças d e me lh ona. pe 1a res1stenc1a _ lhe permite 11ao celllª· .• · d e H'1t1er e d e Esta 1· Testemun h a d as expenenc1as me, com uma sau'd e d'b'l e 1 uito sublinhada por Anthony West, também apreciou a versatilidade de con~cções que permitiu a aproximação e ruptura da aliança de ambos os ditado;es, a transferência da solidariedade da URSS para os aliados, o acordo entre as duas proclamadas incompatíveis concepções do mundo e da vida, no sentido de partilharem, em Teerão e Yalta, as esferas de influência sem audiência dos povosabrangidos pela divisão. Tudo confirmando a experiência que analisava da guerra de Espanha, e fortalecendo o antitotalitarismo que lhe inspirou o livro que chamou Animal Farm,expressão do horror que lhe causaram as atrocidades progressivamente reveladas,e sobretudo o poder assumidosobre o que o totalitarismo chamou a verdade objectiva, isto é, a submissão do relato histórico às versões e correcções exigidas pelos interesses políticos de cada data. Entretanto, os Estados foram-se reconciliando com o complexo de Savanarola(1452-1498),cujo profetismo o levara à fogueira, reencontrando no Capítulo LVIdos DiscorsisopralaPrimaDecadi Titi Livio,de Maquiavel, a preocupação de racionalisar a previsão do futuro. Foi assim que Ossip Flechteim por 1943 divulgou o conceito de futurologia, que Bertrand de Jouvenal acrescentou a sua bibliografia com um livro intitulado L'Artdela Conjecture,e que em 1962 o governo da França encarregou um chamado Grupo1985 de estudar, "sous l'angle des faits porteurs d'avenir", o que fosseútil saber sobre a situação que se enfrentaria vinte anos mais tarde 243 • De então em diante a análise prospectiva viu nascerem autoridades como Herman Kanh e Anthony J. Wiener, Fourastié e Vimont, Alvin e Heidi Toffler, instituições como o Clube de Roma, observatórios estaduais, designadamente nos serviços militares envolvidos no confronto da Guerra Fria 244 • E foi justamente o inesperado ponto final posto nesse confronto, pela queda do Muro de Berlim em 1989, que demonstrou a fragilidade, simultaneamente, Paraum Ministérioda Ciência,Lisboa, 1967, pg. 205. Paris 1967; Fourastié e Vimont, Histoirededemain, Paris, 1956; Alvin e Heidi Toffler, Creatinga neivcivilizations,N.Y., 1995. m ln Adriano Moreira, O tempodosoutros,ensaio 2 « Herman Kahn e Anthony J.Wiener, L'.An2000, 279 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS dos profetas, dos utopistas, e dos dispendiosos serviços de prospectiva 0 que nenhum governo, nenhuma instância de segurança, nenhuma Uni~: ~dade, nenhum observatório, nenhum analista, previram um acontecime rsi. que havia meio século traduzia o seu objectivo estratégico e o cerne das snto . . llas mqu1etações. No rescaldo do desaparecimento da Ordem dos Pactos Militares (N,tro -Pacto de Varsóvia) em que vivemos cinquenta anos deste século XX, desta · ram-se duas previsões a curto prazo, esse exercício arriscadíssimo dos queca. preparam para serem desmentidos em vida pela história. se Em primeiro lugar o famoso ensaio de Francis Fukuyama, TheEnd oJEistor andtheLastMan, sendo que esta última expressão - o últimohomem- era o títu?' que Orwell primeiro teve intenção de dar à sua utopia, onde o protagonista ª Winston Smith foi criado como representando o "last man in Europe". Este texto, que teve a repercussão habitual das escolhas que as editoras Il1ttltinacionais decidem impor, dá por assente que não resta à Humanidade Il1ais do que um projecto, o do bloco sobrante à queda do Muro, liderado pelos EUA em risco de solidão na hierarquia das potênciasm. A paz e os seus dividendos estão, profetiza utopicamente, ao alcance de um mundo definitivamente submisso à economia de mercado, à democracia política, e ao respeito geral pelos direitos do Homem. Os factos teimam em não ser promissores no que respeita à efectivação da leitura, de qualquer das proposições. No que toca à democraticidade geral, o conceito abstracto varia pelo menos entre a observância da vontade da maioria, a protecção dos interesses da maioria, e a proeminência dos interesses maiores, o que deixa espaço para muitas variações entre a intervenção do voto livre e o autoritarismo mais ou menos próximo do totalitarismo. Pelo que respeita à economia de mercado, é difícil admitir que o modelo teórico seja implantável em vastas regiões do globo, na Ásia, na África, na América Latina, onde não existe uma sociedade civil que corresponda à hipótese do modelo. Um desenvolvimento com equidade, que supõe alguma tutela ética da mão invisível do liberalismo das grandes potências económicas, parece uma exigência crescente por essas latitudes também chamadas da geografia da fome, desde que Josué de Castro a identificou e baptizou. Finalmente, os direitos do Homem começam por ser objecto de leituras divergentes em cada sede de culturas autónomas, bastando recordar as dificuldades constantes com que se embaraçam os estadistas das democracias ocidentais quando visitam Pequim, e ali em regra moderam ou calam o discurso m Francis Fukuyama, The wd ofhistory a11d /e last man, N. Y., 1992. 280 TEORIA DO PODER . alista que exercitam nas competições domésticas pelo poder. Longe prognosticada, talvez tendo em vista uma liderança mun• . b . . . e • da on1 . da da superpotenc1a so revivente, esta a viver o 1so1amento que 101 o 6 di~ltz;odo est udo de André Fontaine, L'un sansl'autre(199l)H • Tinha proclaobJ~cRonald Reagan o seguinte:"sempre acreditei que este continente era um O ma excepcion al cujo destino era excepcional. Creio que o nosso destino é ser tur~l da espera nça de toda a Humanidade". 247 0 ª;or seu lado Paul Kennedy, depois de ter meditado sobre The riseandfali of h eatpower s (1988), decidiu juntar-se aos que preferem uma metódica percept _e~lobalista, nimbada de europeísmo, para desacreditar a futurologia neste ça~os: "Permanece o facto de que, em vista de não conhecermos o futuro, é ~:possível dizer com certeza se as tendências globais conduzirão a um terrídesastre ou serão dominadas por surpreendentes avanços na adaptação t1111 ve~}ormização :e1 "248 humana. Um dos elementos da utopia de Orwell era a previsão de um globo não divididopelo atomismo dos Estados soberanos, mas sim dividido em três grandes espaços,um tema sobrevivente na análise corrente da conjuntura, e derivadas previsões,levadas a cabo pela perspectiva liderada por Samuel P. Huntington, 249 autordo famoso The clashof civilizations. Trata-se de um ensaio que toca a polemologia e no qual a visão cataclísmica parte da hipótese de a identificação dos grandes espaços, aptos politicamente, e eventualmente decididos a subir aos extremos da guerra, ser dependente da comunidade de civilização. A linha-mestra da perspectiva pode talvez identificar-se com a premissa que alguns enunciam no sentido de que, estando globalizado o contacto das áreas culturais, a cadeia articulada de cultura-democracia-paz internacional e ordem mundial, só tem significado dentro de cada contexto sociocultural. Segue-se em geral uma afirmação de facto, embora de discutível exactidão, a qualse traduz em concluir que é difícil um processo de troca de modelos entre culturas, pelo que o diálogo é a única possibilidade de preservar a paz. Daqui a conclusão de que o diálogo entre religiões é seguramente o maior desafio,possível e desejado, porque na opinião do teólogo Hans Kung é necessárioinsistir na necessidade da paz entre as religiões para conseguir uma Nova Ordem mundial pacífica. "' André Fonraine, L'u11sam /'autre,Paris, 1991. ambigue,Paris, 1996, pg.141. "'T. D. Allman, Un desti11 mp I • • au Kennedy, Preparmgforthe tiventy-firstcentury,N.Y.,1993, pg. 348. Paul Kennedy, The nse and faliofthegreatpowm, Londres, 1998. zâ o s amuei P. Hungtington, "The clash ofcivilizations?", in ForeignAffairs,1993 . 281 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Na contribuição proposta por Huntington afirma-se pois que uma P , tica global será condicionada pelo choque de civilizações, sendo que, colll oii0 hábito, se verifica uma incerteza na utilização dos termos. de Neste caso trata de identificar vastas áreas culturais pela hegemonia de e cepções religiosas, e assim anteviu conflitos maiores entre o Ocidente e O Isl~nentre o Islão e o Hinduísmo, entre o Islão e a Ortodoxia eslava, entre a área e~~• 1 nesa e o Japão. No que respeita à Europa vê a linha divisória principal entr • Cristandade ocidental e ortodoxa, por um lado, e o Islão pelo outro. ea Em suma, diz, "asgrandesdivisõesdaHumanidadee afonte principaldeconf!it , na cu1tura. os estara OsEstados-nação continuarãoa serosmaispoderosos actoresnasrelações mundiai mas osprincipaisconflitosdaspolíticasglobaisverificar-se-ão entrenaçõesegrupos:• diferentescivilizações". e Estas proposições, cujas bases não esgotam as perplexidades que animam diferentes prospectivas, chegam para evidenciar que o primeiro dos factos que desafiou não só a velha Ordem finda em 1989, mas também o rigor e utilidade de muitos e respeitáveis conceitos, é o do globalismo. Trata-se, em primeira aproximação, de uma versão do ponto ómega terrestre de Teilhard de Chardin porque todos os povos e áreas convergem num sistema unificado de interde~ pendências. Conviria talvez clarificar a pluralidade de sentidos da globalização, ela própria uma expressão que sucedeu ao comum uso anterior da mundialização. Esta última expressão, muito ligada entre nós à gesta das descobertas e doação de novos mundos ao mundo, punha em evidência uma espécie de governo euromundista, em que participaram as soberanias ocidentais, especialmente as da frente marítima europeia. Durante séculos, tal situação de globalização da gestão política pelos ocidentais, não correspondia a uma interdependência mundial que seria resultado das revoluções técnico-científica, dos teatros estratégicos, dos mercados, da informação. Duas guerras chamadas mundiais pelos efeitos, mas exclusivamente ocidentais pelas origens, destruíram aquela mundialização política de gestão quando justamente as referidas interdependências de todas as áreas e povos se consolidaram. Durante meio século, que decorreu entre 1945, fim da guerra, e 1989, queda do Muro de Berlim, o projecto de acudir a tal derrocada com um novo modelo expresso na Carta da ONU, foi de facto posto entre parênteses na área da paz e segurança, porque o que vigorou foi uma Ordem dos Pactos Milita· res, assente no medo recíproco, causado este pela posse das armas estratégicas, até que o esgotamento das capacidades logísticas da URSS desmoronou 282 TEORIA DO PODER , io soviético, e nos conduziu para um tempo de anarquia madura, na o illlPe~espeitoda nova ordem, a única coisa que continuamos a saber é que . qual,a boUa antiga. ste período de anarquia madura, prefigura-se uma mudança essencial e ureza dos agentes da vida chamada internacional, sendo a primeira a 11:in~~zrespeito ao Estado soberano, em crise por vezes chamada crise do quedo nacional, o que não é exacto. As nações são raras, por isso corresponEstª a valores cimeiros, mas o Estado soberano corresponde a muitas e variadelllfidelidades ou imposições, e a soberania, essa novidade renascentista dasonhecida por Maquiavel e Bodin, é que em geral se degrada: pelo topo, re~que os Estados são compelidos a transferir competências para organisp:s supranacionais; pelas bases porque os separatismos se multiplicam, e as :escentralizações, desconcentrações e regionalizações vão tornando elásticasas supremacias internas até eventual final ruptura; pela perda de poderes, orque para muitos enfraquecem ou desaparecem capacidades de exercício ~esmo nas áreas de interesses que lhes ficam, designadamente na defesa, e nasegurança interna e externa. Daqui decorre o aparecimento de um novo actor de perfil ainda mal definido, mas certamente um grande espaço com gestão autónoma, nuns casos supletivodas unidades menores que lhe são integradas, noutros casos revelandoum fenómeno de coacção que devemos chamar política, ou de coacção sistémica. Trata-se, por exemplo, de as alianças militares deixarem de ser temporárias emfunção de uma ameaça, para se institucionalizarem como a Aliança Atlântica que permanece fazendo apelo dominante ao consentimento, ou como se passoucom o Pacto de Varsóvia que se organizou com base na hierarquia directivada Rússia. Trata-se de a Europa, desde o Ano Zero que foi 1945, caminhar para uma União Política Europeia, tendo passado pelo projecto do simples mercado, pela fase da subsidiariedade em que se encontra, a caminho de uma política externa e de segurança comum, de uma moeda única, de uma função internacionalunitária. Trata-se da Euráfrica reaparecer nos projectos informais tímidos e na acção formalizada nos quadros da Convenção de Lomé. Trata-se de Orwell merecer ser revisitado no que toca à previsão da repartição do globo em grandes espaçoscom identidade política. Parecendo evidente a crise do Estado soberano, a estruturação dos grandes espaços não poderá ser alheia ao fenómeno historicamente permanente da hierarquia dos poderes políticos dentro de cada grande espaço, e por isso, designadamente, um dos mais sérios problemas do processo europeu é o de :a'\r 283 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS evitar o aparecimento de um Directório ou de um Estado director, talco 1110o . . . - d o bzg · stick continente americano se continua a d e firontar com as versoes d EUA, tal como os vários Pacíficos terão de acomodar-se com a existência os da China ou do Japão. O que significa que a crise da soberania não afecta por igual os modelo . s~ Estado existentes, porque alguns deles correspondem, pelos seus elemento , 8 própria definição do grande espaço: os Estados Unidos, a Rússia, a China : a . _ . •nao enfrentam a mesma defimçao da cnse que afecta os Estados europeus, 0 aconselha a transferir para o plano do globalismo, em que convergem todo~Ue questão da hierarquia e do Directório, neste caso a tríade com a qual já pare' a ocupar-se a imaginação de alguns responsáveis. ce Um tema muito íntimo do desafio da anarquia madura em que vivemo e que mostra a emergência de poderes informais, como o G-7, ou os poder:• erráticos e violentos, à espera da racionalização que supere a teia de planos d; contingência em que vivemos. Procurando sintetizar este encontro globalista na área dos poderes políticos, depara-se com uma realidade que é o património comum da Humanidade incluindo designadamente bens materiais como o mar alto, a Antárctida, 0 ~ satélites, bens imateriais como a paz, bens sincréticos como o desenvolvimento humano, a biodiversidade e o ambiente. Alguma sede terá de ser encontrada para responder em comum às exigências, e nesta data é na reforma da ONU que se concentram as atenções, sobretudo do Conselho de Segurança que é onde se reflecte a hierarquia dos poderes políticos. Neste ponto, talvez a observação mais necessária, e mais óbvia, seja a de quea reformulação da intervenção globalizada, designadamente reformando a ONU, não resulta da própria organização, é imposta sim pelas mudanças substanciais da realidade mundial, para além da crise do Estado soberano. Em primeiro lugar o facto, inteiramente descurado e imprevisto na data da fundação da ONU, de que, pela primeira vez na história da Humanidade, todas as áreas culturais do mundo falam pela sua própria voz, o que implica a desocidentalização das estruturas, e mais o diálogo que enriqueça a compreensão e defina a área de tolerância indispensável para a preservação da paz. Trata-se do grande desafio da interculturalidade mundializada, a partir das pequenas células que as migrações vão espalhando por todas as latitudes. Uma questão esta ligada com o processo de desvalorização das fronteiras físicas animada pela revolução da técnica, dos mercados e da informação, e que deu origem a uma realidade que é a sociedade civil transnacional, recid_a de fidelidades horizontais que enfraquecem ou quebram as fidelidades verti· cais com os poderes políticos estaduais. 284 TEORIA DO PODER nova realidade é que serve de apoio e de inspiração a uma perspectiva 13st ªnvolvimento humano, na previsão de uma nova arrumação dos pode- do dese .. mund1a1s. resN 5 últimos anos, o mundo acentuou a polarização económica, de modo e aºdesigualdade entre países ricos cuja riqueza cresce, e países pobres cuja qu lação aumenta, se torna desafiante para a paz. poP;uito por este último facto, também ganha consistência a percepção de ao globalismo económico deve corresponder um globalismo de responsaq~J~dade pelo passivo dos povos mudos, dos povos tratados como dispensáveis, 1 bt populações que vivem · · ' · d as soc1e · d a d e d e guerra, d os con fl'1tos das na m1sena, armados. Os Relatórios do PNUD, especialmente o de 1996, mostram a relação entre crescimento económico e desenvolvimento humano, que é necessário fazer convergira longo prazo. Ali se escreve que "o documentoparao desenvolvimento humanonoséculoXXI aindanão estáescrito.Começaráa sê-lopelasescolhas políticas quefizermos,atémesmonofim doséculo.Idealmenteestasescolhasaceitarãoaprevisão dequeaseconomiasexistemparaaspessoas- nãoaspessoasparaas economias". Por isso a UNESCO lançou o desafio da educação para o exercício da cidadania, que agora deve começar a ser encarada como mundial. Trata-se de em primeiro lugar compreender que a contradição entre os civilrightsque as constituições limitam por vezes a uma parte da população, e as Declarações Universaisdos Direitos do Homem, se defrontam com as exigências de autenticidade da sociedade civil transnacional, que encontra voz pacífica nas ONG, e agressivaem poderes erráticos que desafiam o pacifismo da evolução. Sejaqual for o sistema de poderes que finalmente venha a enquadrar o globalismodo século XXI, o regresso ao homem kantiano, como valor fundamental, parece anunciado na área da autenticidade; a perspectiva da responsabilidade globalpelo passivo da Humanidade, parece a caminho; a dúvida sobre se, ainda assim, poderemos finalmente distribuir os dividendos da paz, não foi dissipada. 6. Tópicos da nova democracia a)O modelo democrático observante e a multiplicidade dos modelos observados Apenas no sentido de limitar os termos de referência dos temas para os quais especificamente pretendo chamar a atenção, referirei brevemente alguns conceitos operacionais que ficam excluídos da reflexão. Por isso mesmo lembraremos apenas que, literalmente, a democracia significa o governo pelo povo como um todo, remetendo para uma discussão inter285 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS minável o acordo sobre a identificação do povo e dos actos de govern realmente lhe pertencem, à luz do conflito de pelo menos dois critérios~ 9ue 0 choice)que diz respeito à identificação dos parti~• da escolha colectiva (collective tes, e o dos interesses visados pela decisão (socialchoice).Realmente uma ~?ªngência sobre o conceito de maioria que nas democracias ocidentais atenct'"er. primeiro critério - maioriadevotos-, que nas antigas democracias popular/ ª0 Leste atendera ao segundo - maioriadeinteressados, e que as correntes auto s_d_o maiores. rita. rias pretenderam substituir pela proeminência dos interesses Vinculando o conceito à herança de Péricles, que considerava indignos d cidadania ateniense os que não participavam na decisão política, ficam ar ª dados da meditação conceitos que contaminam o valor nuclear do legado. F~edemocrático, o qual teve origem na doutrinação sov·~ª assim excluído o centralismo tica, e que, na orientação do Komintem(1919),significava que "o Partido Co~enista apenas será capaz de cumprir o seu dever se a sua organização for t:centralizada quanto possível, se prevalecer uma disciplina de ferro" (Twentyonº ConditionsofAdmissionto Komintem). e Também excluímos aquilo que Tocqueville (L'ancienregimeet la Révolution 1856), chamou o despotismodemocrático, quando referiu a versão fundamenta~ lista do princípio da soberaniadopovo,e que parece corresponder à degenerada demagogia identificada por Aristóteles. Partiremos da proposta das Nações Unidas, cujo texto fundamental, neste domínio, é o artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo o qual "cada pessoa tem direito a uma ordem social e internacional na qual os direitos e liberdades contidos nesta Declaração possam ser completamente realizados". Definidos estes nos chamados Twin Covenantsde 1966, abriram o caminho para que a Conferência de Viena de 1993 fosse organizada para representar a apoteose do conceito de uma Nova Ordem mundial centrada sobre o respeito pelos direitos humanos, valor cimeiro da perspectiva democrática ocidental que orientou a construção da ONU. Não pode esquecer-se que a Aliança Democrática que ganhou a guerra de 1939-1945 abrangia cerca de uma dezena de ditaduras, mas foi o conceito ocidental de democracia que organizou o espaço e a luta contra a área do centralismo democrático soviético, prometendo a implantação do seu conceito de liberdade desde o Atlântico até aos Urales. No conjunto de países que correspondiam ao conceito de satélites da análise ocidental, a aspiração ao modelo fez parte da ideologia da resistência daqueles que deram direito de cidade ao conceito do poderdosquenãotêmpoder. O destacado e líder Václav Havei, no discurso pronunciado já na qualidade de Presidente da Checoslováquia em 1 de Janeiro de 1990, disse o seguinte, recordando Comenius e repetindo Masaryk: "o teu poder, povo, voltou às tuas mãos". 286 TEORIA DO PODER e mesmo ano que Mikhail Gorbatchov, falando no Comité Central do foi nt:m 5 de Fevereiro, disse: "na sociedade renovada, o partido não pode p~V.'e desempenhar a sua função de vanguarda se não for uma força demoe"1st1r . mente recon h ec1'd a,,. cra~c;amosoAdam Michnik já em 1956 tinha proclamado (Pcnserla Pologne, /eetp0 /itiquedela résistance, Paris,1983): "a única via a tomar pelos dissidenpaíses de Leste é a de, um~ luta incess,a~te a favor d~s ,reforma~, a favor te ma evolução que alargara as liberdades clVlcase garantira o respeito pelos d~\os do homem". Por seu lado, o Manifesto da Carta dos 77 (1 de Janeiro de n I nternaczona . 1sobre osD zrez. . direi), invocand o os Jª " cita · d os 11 · Covenants- -'-acto wm 977 l Cívicos ePolíticos,e PactoInternacionalsobreosDireitosEconómicos, Sociaise Cul1 " · d d 'd d' tos rais_ proc amava que, a partir esta ata, os nossos c1 a aos tam b'em tem :direito, e o Estado o dever, de se conformar com eles". A queda do Muro em 1989 definiu o segundo patamar do alargamento do conceitodemocrático ocidental ao espaço dos antigos satélites, uma realidade saudadapor François Furet (Le Mondede la RévolutionFrançaise,nº 7, Julho de !989),com estas palavras: "quais são as ideias que nos chegam hoje de Moscovo, de Varsóvia,de Budapeste, ou, ontem, da Praça de Tiananmen? Nós conhecemo-las,são as nossas, as das democracias modernas, desde o fim do século XVIII:os direitos do Homem, as eleições, a liberdade das pessoas compreendendo o mercado". A euforia desta anotação anunciava um terceiro patamar de projecção do conceito ocidental da democracia em resposta ao fenómeno da globalização. O seu doutrinador mais conhecido é Francis Fykuyama (The end of historyand thelastmen, 1992), que, em face da não prevista queda do muro de Berlim e da catástrofe do regime soviético, anunciou que a mundialização do conceito ocidental, nimbado de americanismo, era a única alternativa sobrante com os seus componentes de democracia política, direitos humanos, e economia de mercado. Esta conclusão académica talvez tenha como apoio circunstancial a supremaciados EUA, e uma referência cultural à ideia, de Guizot e Tocqueville, de que a revolução que instituiu a liberdade política e a igualdade civil é o facto central da história da Europa moderna (Raynaud), desenvolvida na perspectiva de fim de século abrangente da grande maioria de doutrinadores e analistas ocidentais, segundo os quais a democracia corresponde ao modelo mais desejávelde regime, ainda que as definições continuem múltiplas (Rosanvallon). Os desastres das guerras que se prolongaram nas áreas coloniais para além do fim da Segunda Guerra Mun dial, a multiplicação de regimes totalitários ou autoritários, os genocídios múltiplos, as guerras internas que criaram associedades de guerra, a dimensão dos crimes contra a Humanidade, tudo remete a M::os 287 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS preferência pela democracia ocidental para a categoria de modeloobservante proposta de vocação globalizante para todos os modelosobservados, mas dl~~a mente se pode considerá-lo como a proposta sobrevivente que, nesse sent~ci]. 1 ' · do, sena· o fi1m da h"1stona. As perspectivas liberal e democrática, que marcam a ruptura do fim século XVIII ocidental, e que referem o indivíduo como elemento fundalll do tal da problemática política, nunca abandonaram a perspectiva subjacenttl· Nação, que emergiu como um valor específico no decurso da revolução. L da em 1789, quando Emmanuel Sieyés escreveu - Qu'est-ceque/e tiersétat?,ali a?iº mava que "a nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. A sua vontat é sempre legal, ela é a própria lei". Carl von Savigny, autor De la vocationdenote tempspour la législationet lasciencedu droit(1814), ensinava que "as relações or ~e nicas entre o direito e o carácter essencial de uma nação devem ser conservga. adas na marcha do tempo". Experiente da guerra de 1914-1918, e participante na defesa dos ideais demo. cráticos dos aliados, o notável Coudenhove-Kalergi, ao advogar os Estados Unidos da Europa foi para salvar as nações porque "a união da Europa sob o signo da liberdade, da fraternidade, da igualdade, poderia trazer um tempo novo, mais belo para a França, a Europa, e o mundo". As 14 Reivindicações de Budapeste, de 22 de Outubro de 1956, exigiam a democracia que serviria a nação restituída à sua dignidade. De facto, é a referência a um tecido cultural específico, orientador da formação de juízos colectivos sobre o que é justo e virtuoso como decisão sobre os interesses divergentes e sobre os interesses comuns, de modo a governar o pluralismo em paz, fazendo da tolerância um padrão geral, e da mudança uma consequência do diálogo entre as flutuantes maiorias e minorias. O conflito em curso desde 11 de Setembro colocou no primeiro plano das inquietações governativas e doutrinais, esta questão dos padrões culturais, que fazem apelo ao alargamento do conceito de Nação (Nação árabe, por exemplo) ou às solidariedades de grandes espaços como a Europa ou o Ocidente. Nesta linha se desenvolveram o patamar nacional que se tornou visível em Valmy,o patamar do grande espaço da cidadania europeia de Victor Hugo, a dimensão ocidental da ordem dos Pactos Militares que terminou em 1989, a proposta mundializante ligada ao unilateralismo americano. A democratização da comunidade internacional, cujo paradigma foi o tra· tado negociado com igual liberdade de consentimento entre os Estados, tevea metodologia do diálogo codificada pela arte diplomática. Esta arte autonomizou uma área da hierarquia das potências, e da subordinação entre elas, onde o diálogo foi substituído pela imposição com desenvolvimento em vários regi· mes, tudo abrangido no vasto conceito de colonização. 288 TEORIA DO PODER eriência actual dos fundamentalismos, com expressão aguda nos comeXP ' . ' d o d o ter!11curso contra os po d eres erraticos que a d optaram o meto b:tt~S e evidenciou o limite à tolerância e à ambição globalizante do fim da ,or1s!llº• j\ bis~r;:~damentalismo, inimigo da democratização da vida internacional, tem premissa a oposição proclamada insanável dos modelos culturais de comcolllºrnento, condicionamentos da racionalidade variável das decisões, e incluiu port~ática internacional a questão da governabilidade do pluralismo, dos limi11ate . d . . . d d . da tolerância e os m1m1gos a emocrac1a. cesTudo igualmente desafios da governabilidade democrática das comunidades ais que foram designadamente enquadrados pelo relativismo de Kelsen estadu ' (Lademocratie, sa natu~e, valeur,_ Pa_ris,:988). Rec~r~emos um dos s~us t~x~os ignificativos: "o domm10 da ma10na, tao caractenstico da democracia, d1stms e-se de qualquer outro porque, na sua essência mais profunda, não somente ~surne por definição, mas também reconhece politicamente e, pelos direitos e liberdades fundamentais, pelo princípio da proporcionalidade, protege uma oposição- a minoria ... Tal é o sentido verdadeiro deste sistema político que chamamosdemocracia e que não temos o direito de opor ao absolutismo político senão porque ele é a expressão de um relativismo político". o critério da tolerância, como recorda Patrice Rolland, assenta em ultrapassar a confiança com que Carl Schmitt entendia que o liberalismo democrático ignorava a ideia de inimigo, e aceitava apenas a de concorrência, porque a tolerância transforma o inimigo em adversário. As circunstâncias aconselham a não confundir a opinião com os actos, e a não confundir a tolerância com a indiferença ou a habituação. Na vida interna, como aprofundaram Habermas e Dewey, são o diálogo, o debate, cada vez mais densos na sociedade de informação, que revelam princípiosde validade geral, e aplicações condicionadas pela cultura cuja importância foidesignadamente recolhida no conceito de comunidade nacional. Acontece que o facto do pluralismo, tornado sempre presente pela doutrinação de Rawls, é na circunstância cultural que encontra os limites mais rígidos para a tolerância, pelo que as sociedades políticas ocidentais de facto não eliminaram sempre as colónias interiores, embora os valores do liberalismo, da democracia, dos direitos humanos, orientassem o pensamento no sentido da convergência de padrões da maneira comum de a sociedade civil estar no mundo. Mas assim como a globalização levou ao confronto de áreas culturais irredutíveis, impedindo que o mundo de múltiplas vozes de que fala a UNESCO seja apenas de adversários e não de inimigos, assim também a circulação de pessoas, mercadorias e capitais, muito sob a inspiração de uma teologia de mercado, está a reproduzir, nos antigos espaços estaduais, as sociedades cosmopolitas. !ª 289 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A relação entre o fenómeno transestadual que agora se desenvolve em gu e a mudança interna, sobretudo no espaço ocidental, leva a inverter os tererra, de uma temática clássica. Foram séculos em que a presença dos ocidentaislllos trópicos prendeu a atenção de teólogos, juristas, politólogos, mas entramo nos milénio a lidar com o quadro da presençadostrópicosnaEuropa,designadam: no pela dependência migratória da Europa em queda demográfica. nte O notável Gilberto Freyre fez circular os temas do lusotropicalismo, do ib rotropicalismo, e do eurotropicalismo, mas não viveu o tempo da inversão de. Os • • termos d a re fc erenc1a. O modelo europeu da cultura homogénea, que gradualmente alarga a cid dania e a amolda aos grandes espaços em formação, depois de superar o moder 0 medieval do pluralismo das comunidades submetidas ao centralismo do pode regressa às sociedades cosmopolitas. r, Os fenómenos das colónias interiores, os milhões de imigrantes vindos do sul e do cordão muçulmano que vai de Gibraltar à Indonésia, a frequência dos incidentes violentos, tudo exige o regresso à meditação da tolerância, à preven. ção activa contra o renascer dos mitos raciais e dos fundamentalismos culturais, à relação destas realidades com as crises económicas, que podem apelar à facilidade das respostas securitárias, e ao fraccionamento da sociedade civil. A UNESCO não se atrasou ao apelar ao estudo das novas condições do exercício da cidadania. Talvez mais preocupante do que o remédio securitário seja0 descaso em relação à mudança da sociedade civil. b) A crise da sociedade civil nacional É comum abordar a evolução do nacionalismo europeu e ocidental, tendo em vista os excessos dos regimes políticos que designadamente foram responsáveis pela Segunda Guerra Mundial, e o culto das soberanias absolutas agora em processo de desmobilização em consequência das crescentes interdepen· dências mundiais. Mas é necessário abordar outra face do problema que se traduz na crise de uma política que secularmente procurou uniformizar os padrões cu!· turais, e até étnicos, da comunidade submetida ao mesmo poder político, adaptando um modelo observante e um resultado procurado, que é a comunidade nacional. Não será necessário recordar os grandes teorizadores desse processo, que foram Renane Liszt, o primeiro mais atento ao processo histórico, o segundo mais inclinado pelas circunstâncias a considerar as afinidades étnicas. De facto, as soberanias procuravam conduzir para um modelo convergente de valores e condutas os grupos humanos que submetiam, e isso teve expressões semânticas muito significativas: os reis chamaram-se católicos ou fidelíssimos, 290 TEORIA DO PODER roclamaram a comunhão na fé, os conceitos estratégicos nacionais P ovos - e a ass1m1 . ·1açao. P , (11 a evange 1·1zaçao 1ra 1u d ' · porque os Esta dos nac1ona1s · · sao 111c_ foram numerosos os casos e ex1to Nªº mas não é escassa a adesão ao objectivo e à proclamação de o resulassos, . , esc sido obndo, para alem dos factos comprovados. ~~ 1:1 , ortuno lembrar, nesta data marcada pela chamada globalização, que . E feridos modelos ocidentais foram implantados no imaginário político dos ca~s ~eos colonizados pelos europeus, sendo que o continente americano foi o cr~::iro grande cenário dessa acção, com uma multiplicidade de soberanias P'1 do norte ao sul do continente, proclamaram o valor da Nação. querodaviaentramos no terceiro milénio com a evidência incontornável de os genocídios, ou intencionais ou colaterais, devastaram os aborígenes que quemos donos dos territórios, e que os sobreviventes em regra não integram a er:clamada nação de cada um dos Estados soberanos existentes. pr Do norte do continente americano sempre serão lembrados os iroqueses de cujo drama foi deixado o testemunho de Tocqueville, ao divulgar a petição ue, em fins do século XIX, dirigiram ao Congresso dos EUA para serem eludidadossobre se os últimos da sua raça também teriam de morrer. Ainstituição que se demonstrou mais eficaz e vigilante nesta área, durante século passado, foi o BIT - Repartição Internacional do Trabalho, o orga0 nismoda Sociedade das Nações que teve uma trajectória mais sólida e se manteveinterveniente depois da criação da ONU. Aproximou-se lentamente de uma perspectiva englobante dos aborígenes dosEstados independentes do continente americano, e dos indígenas das colóniasafricanas, tendo como principais os temas da liberdade e direito de trabalho,de que foi expoente a Convenção sobreo trabalho forçadode 1930; pressionou a adopçãode uma política social nos territórios não metropolitanos, formulando váriasconvenções em 1947, onde a supressão de qualquer discriminação entre trabalhadores, fundada na raça, cor, sexo, crença, pertença a um grupo tradicionalou filiação sindical, era repudiada, firmando uma orientação que viria a dar sentido às intervenções do Conselho Económico e Social da ONU. Terá vantagem aprofundar a acção posterior do BIT, mas sobretudo deve notar-seque a distância entre essas propostas e os factos, na torturada América Latina,tem hoje expressão gritante na saga do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que compareceu na Praça do Zócolo, no centro da cidade do México,depois de anos de luta, e vindo do reduto de Chiapas. Liderados pelo famoso Comandante Marcos, proclamaram com simplicidade o objectivo de terminar com "cinco séculos de infâmia". Lucidamente, o antropólogo André Auburg nota que "o que pede Marcos não é O mar para o beber. Organizando esta marcha, intima o Presidente Vicente Fox . 291 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS a declarar que espécie de nação mexicana pretende construir. Marcos recJa llla simplesmente que os índios façam parte dessa Nação". Por seu lado, Marcos declarou firmemente os seus motivos quando afi 1 mau o seguinte: "De todos os habitantes do México os índios são os lll ~esquecidos. São considerados como cidadãos de segunda classe, mas in ª~s modos para o país. Ora nós não somos restos. Fazemos parte de povos c:ouma história e uma sabedoria milenárias. Povos que, mesmo espezinhadoslll esquecidos, não morremos. Aspiramos a ser cidadãos como os outros, quere~ mos fazer parte do México, e isso sem perder as nossas particularidades, se sermos obrigados a renunciar à nossa cultura, numa palavra, sem deixarlll: 8 de ser indígenas". Esta situação multiplica-se pelo globalismo do que já foi chamado inútil" uma expressão que pretende abranger a série de conflitos cuja causa está na~ exclusões de várias espécies. As identidades étnicas ou tribais queixosas c01110 em Cabinda ou na Costa do Marfim, a desagregação imperial com expressão em desordem que abrange a Arménia, a Geórgia, a Tchetchénia, os genocídios como aconteceu com os ibos, tudo são fenómenos de exclusão que de maneira geral seguem pela linha horizontal dos 3A (Ásia, África e América Latina). Muita desta fenomenologia anda ao cuidado de uma tropicologia que tenta compreender, depois dos factos, o passivo da herança deixada pelo império euromundista em toda essa vasta zona do globo que apenas recentemente ascendeu ao protagonismo internacional. Uma área onde as estratégias nacionalistas, desenhadas tendo como modelo os conceitos ocidentais, orientaram projectos de poder que não tinham qualquer realidade nacional para lhes servir de suporte. Ao contrário, pelo norte do mundo, sede das antigas soberanias coloniais, a afirmada ambição de correspondência das comunidades políticas ao modelo da Naçãofoi geral, com desmobilização dos conceitos definidores do nacionalismo político. Acontece porém que o tão presente globalismo, que sobretudo corresponde a uma espécie de teologia de mercado, desenvolveu uma tal mobilidade das populações, em busca da subsistência, que nesta data a situação parece invertida. Ao mesmo tempo que em territórios como a África do Sul e o Zimbabué renascem os projectos da uniformização étnica, mobilizando as cóleras contra os europeus que recordam a antiga subordinação colonial, os trópicos instalam-se no Norte do mundo, e particularmente na Europa. Durante séculos, a acção colonizadora ocidental nos trópicos orientou-se pela ideia de que as populações locais poderiam ser objecto de uma moldagem assimiladora, reconhecendo tarde que os modelos culturais são mais resistentes do que as substituições modernizantes das técnicas. Os progressos materiais 292 TEORIA DO PODER ~oforam, em vários territórios, acompanhados pelo sincretismo cultural, prosituações de discriminação ou apartheid. duZNestecomeço de milénio os trópicos instalaram-se nos territórios ricos do Norte do m_und?,.obrigando a rever muita da conceptologia organizada antes do fim dos 1mpenos. Em primeiro lugar, pela acção convergente da desordem política instalada m vastas regiões desse antes chamado Terceiro Mundo, e depois pelas exigêne·asda economia de mercado, a imigração para o espaço europeu tem aumen~:do em termos de colocar em discussão o antigo modelo de uniformidade cultural. Os Estados são obrigados a encarar uma definição multicultural e multiétnica da sua população, um facto renovado e estrutural. A experiência de meio século tem esta circunstância por irreversível, e eoquanto que pelo vasto continente americano os restos de povos, e os antigos acrescentamentos demográficos, exigem a integração política em pé de igualdade, na Europa são os trópicos que se instalam multiplicando as diversidades étnicas e culturais para as quais por seu lado contribui a liberdade de circulação comunitária. A Europa, ao tentar definir uma Nova Ordem descobriu-se múltipla, e ao reconstruir a economia de mercado encontrou-se semeada de colóniasinteriores, maisidentificadas etnicamente do que pelos modelos culturais. Alguns valores fundamentais da cultura ocidental, que também estiveram presentes no período imperial euromundista com violações frequentes, foram trazidos para o primeiro plano da temática da Nova Ordem em formação. Insistimos em que as mesmas causas dominantes da discriminação nos trópicos coloniais,e que a UNESCO identificou no histórico inquérito de 1950, acompanharam a imigração dos trópicos para o Norte afluente, industrializado e detrabalhoe as relações sexuaisinter-étnicassão as mais rico,de modo que as relações civilintegradaepacífica. perturbadoras do pretendido modelo de sociedade É inevitável que a tipologia dos conflitos seja revisitada, dando voz à que alguns autores chamam a outraEuropa,a das minorias que não tiveram voz na vigênciadominante do projectadoEstadonacional. Destaca-se neste plano a CartaEuropeiaparaaprotecçãodaslínguasregionaisou minoritárias (Estrasburgo 05/11/1992), que entre nós teve expressão no reconhecimento do mirandêscomo língua nacional, e que também cobre o facto das sociedades nacionais transfronteiriças politicamente divididas. Mas é a mobilidade das populações que sobretudo reclama atenção, porque é a principal fonte dos contactos multiculturais e étnicos com todos os riscos dos conflitos raciais e das discriminações. A questão dos mitos raciais é certamente a mais inquietante, e daqui a vigilância da ComissãoEuropeiacontrao Racismoe a Intolerância(ECRI), atenta aos 11ª indo 293 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS procedimentos intra-europeus sobre o racismo, a xenofobia, o anti-semitis e a intolerância, na perspectiva da protecção dos direitos humanos. Os faclllo considerados pelos seus relatórios dizem respeito à raça, à cor, à língua, à r tfs gião, à nacionalidade e origem nacional ou étnica. e 1• Não pode ignorar-se que a discriminação racial é a mais ameaçadora da civil, como foi reconhecido pela Resolução 2106 (XX), de 21 de DezembroP~z e 1965, da Assembleia Geral da ONU. Progressivamente, outros tópicos convergem no sentido de alguma orien. tação ser adaptada na área de exercício do poder político, e nesta perspecti talvez seja útil aproximar as temáticas da Carta SocialEuropeia,um tratado Conselho da Europa assinado em 1961, e revisto em 1996, na linha da Convenção paraa Protecção dosDireitosHumanoseLiberdades Fundamentaisde 1950; a Conven~ sobre çãoEuropeiasobreoEstatutodosTrabalhadores Migrantes,de 1977; a Convenção a Participação deEstrangeiros na VidaPúblicaa NívelLocal,de 1992; e finalmente a ConvençãoEuropeiasobreNacionalidades, também do Conselho da Europa, assinada em 6 de Novembro de 1977. Da legislação interna destacamos a que diz respeito às condições de entrada permanência, saída e afastamento dos estrangeiros do território nacional,~ último sendo o Decreto-Lei n 2 4/2001, de 10 de Janeiro, acrescentando as preocupações, de origem religiosa, tornadas públicas sobre a ponderação na abertura das fronteiras. Esta problemática parece reconduzir-se a um núcleo central que é o da cidadania, um dos conceitos fundamentais do direito público, e hoje também a exigir revisão. Recordemos que a cidadania está ligada à nacionalidade, mas historicamente não se verifica necessariamente a coincidência entre os dois círculos, quer por exclusão de etnias (caso dos indígenas das antigas colónias, e dos aborígenes do continente americano), quer pela discriminação dos sexos, quer finalmente pelas exigências da maturidade. As revoluções liberais fizeram da cidadania uma defesa da dignidade humana, no que se refere à sua face defensiva contra os abusos do poder, e um instrumento de participação na gestão política. Uma evolução, que conviria lembrar, designadamente sistematizada por Marshall, faz considerar três dimensões dessa cidadania, a civil, a política, e a social, tendo como ponto de partida as declarações de Filadélfia (1776) e a da Declaração Francesa (1789).A primeira, eminentemente liberal quanto à ideo· logia, diz sobretudo respeito às liberdades pessoais de pensamento, de associa· ção, de religião, e aponta para uma sociedade contratualizada; a segunda, que Pé rieles considerava a mais nobre componente da cidadania, diz respeito à capacidade de escolher e ser escolhido para o exercício da soberania, e enriquecer concepções de identidade nacional; a terceira, mais apoiada na solidariedade, ;a 294 TEORIA DO PODER lidou-se no século XX, levou a desenvolver o Estado providência, que teve consoos seus condicionamentos as devastações das guerras mundiais, as descoent~:ações,as confrontações sociais, a intervenção sindical, a crescente urbani)oJl~ as migrações internas e externas, a nova função da opinião pública. zaçao, parece ter de reconhecer-se que, ao mesmo tempo que a definição substan. da cidadania se alargou pelas três referidas vertentes, a civil, a política, e t1"ªcial também se foi debilitando a sua vinculação original ao Estado sobeaso ' ran~a origem, as diferenças sociais e políticas internas não tinham expressão na aldadevertical e exclusiva à soberania, absoluta por definição, exercida dentro 1 :e uma fronteira destinada a garantir a inviolabilidade da jurisdição interna. Mas grande parte das causas que desenvolveram a vertente social da cidadania, também se reflectiram causalmente na debilitação do Estado soberano clássico,obrigado a reconhecer a necessidade de integração nos grandesespaços políticos, a caminho de terem uma ainda mal definida identidadepolítica,como aconteceu com a União Europeia. assinado Textos como as referidas ConvençãoEuropeiasobrea Nacionalidade, em Estrasburgo em 6 de Novembro de 1987, e a ConvençãosobreParticipação dosEstrangeiros na VidaPúblicaa NívelLocalassinada na mesma cidade em 5 de Novembrode 1992, dizem respeito a este fenómeno. A CartadeDireitosda União Europeia, aprovada no Conselho de Nice, é o documento mais expressivo da evolução,que terá esta evidente consequência estrutural: a necessidade de articular a cidadania verticalmente fiel ao Estado clássico em perda de soberania, com a cidadania que se traduz em fidelidade ao grandeespaçopolítico de integração. Este facto dinamiza uma realidade nova que é a da sociedade civiltransfronteiriça,progressivamente apoiada na livre circulação de pessoas que vai reduzindo asfronteiras geográficas a simples apontamentos administrativos. E que aponta também para uma dissociação das várias componentes da cidadania, para além da sua evolução desencontrada no tempo. É por isso que análises como as de Marshall (1950), Bottomore (1996), Mozzinacional,vão sendo acompanhadas cafreddo (1997), mais vinculadas à sociedade pela perspectiva da sociologia relacional que permite dar acolhimento racionalizado a esta evolução. De facto, a nova realidade da sociedadeciviltransnacional,que cresce de evidência nos grandesespaços, desenvolve-se em linha de apoio às respostas que os excluídos estão a dar ao globalismoeconómico, como recentemente aconteceu no Canadá com os violentos protestos contra a instituição do espaço económico americano, patrocinado e desenvolvido pelos EUA. Causas homólogas das que levaram à autonomização da vertente social da cidadania nacional, apontam para uma terceira definição: a definição de uma 295 .... TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS cidadaniasocialuniversal,directamente apoiada na Declaração de Direit ONU, e de resposta ao mundialismo do mercado e dos seus por vezes ch:s da dos efeitos colaterais, que são os da exclusão, o da exploração de comun~a1 des e indivíduos, o da criminalidade internacional que designadamente e uma revisão da organização internacional contra a escravatura e formas valentes. q 1O facto relevante, que tem a mais significativa expressão na doutrin prática das intervenções humanitárias, é que, em função da Declaração versai dos Direitos do Home~ se vai definindo u~a :idadaniasocialuniver:~que ganha corpo e desenvolvimento sem dependenc1a da evolução das cl, ' sicas vertentes políticas da cidadania nacional, mas como resposta à necesas_dade de defesa da dignidade humana, sem diferenças de etnia, de religião,~~ cultura, de lugar. Um conceito que arma os direitos do Homem contra os passivos da globalização, à margem dos Estados e dos grandes espaços em que estes tendem para se agrupar. A ConferênciaMundial contraa discriminaçãoracial,xenófobia e intolerância(Durban, 2001), orientou-se realmente por este conceito, que todavia aguarda expressa formulação, para além das discussões sobre a natureza puramente ocidental da Declaração Universal dos Direitos da ONU, assumindo a necessidade de introduzir nas definições o valor das especificidades culturais. A cidadaniasocialuniversal,de algum modo correspondente à terceira geração de direitos do Homem, separa -se da soberania clássica para agrupar os direitos individuais à paz, ao ambiente, ao património comum da Humanidade, à igual dignidade na sociedade civil transfronteiriça e transnacional a que a mundialização conduziu, e que não pode ser violada por nenhum poder político. 250 ?ª- /!: t/: 250 J. Barros-Moura, CidadaniaEuropeia:uma construçãoracional,Gradiva, Lisboa, 1999. M. Castro Hen· riques, et ai., Educaçãoparaa cidadania,Lisboa, Plátano, 1999. Gi lberto Freyre, O Mundo queoportuguês criou,Rio de Janeiro, 1940. Maria Elisa Rodrig ues Bacelar Gonçalves, Educação,Valorese Cidadania,(pol.), Universidade Aberta, Lisboa, 2000. Guy Héraudy, Peupleset languesd'Europe,Milão, 1966. T. Marshall, Class,Citizer,sl,ipand socialdevelopment,Westport, Greenwood Press, 1973. Marshall e T. Botromore, Citizensl,ip and Social Class,London, Pluto Press, 1992. Adriano Moreira, Estudosda ConjunwraInter· nacional,D. Quixote, Lisboa, 2000. Mozzicafreddo, Estadoprovidênciae Cidadaniaem Portugal,Celta Editora, Oeiras, 1997. F. Parisot (coord.), CitoyemietésNationaleset CitoyennetéEuropée1111e, Hachette, Paris, 1998. Ronald Reiwer (org.), Tlieorising Citizcnsl,ip,Albany, N. Y., 1995. José F. S. Saraiva (org.), CPLP,ComunidadesdosPovosdeLínguaPortuguesa,I.B.R .I., Brasília, 2001. 296 TEORJA DO PODER §3º A RacionalizaçãoSistémica tlletodologia dos sistemas 1,f,pacífica, como logo resulta da pluralidade de perspectivas identificáveis, J,jaO eão pelos factos mais relevantes na dinâmica das relações internacionais. ª_opÇ}ificando,o método adoptado pode concentrar-se no estudo dos agentes su:nP . - co 1ect1vas, . . d'viduais que aparecem em representaçao- de orgamzaçoes como ,n;stado, as multinacionais, as internacionais políticas. Esta visão implica a 0 éviaadopção de uma matriz voluntarista, que seria documentada no estudo ~: própria História, a qual era dividida em períodos marcados pelo reinado ou hefia política obtida a outro título. c Cada época, ou o comportamento de cada entidade colectiva, são assim caracterizadas pela personalidade e comportamento do agente. Ainda agora, autores na linha de Duguit insistiram em que o realismonão identifica senão homens a relacionarem-se entre si, e nunca entidades abstractas como o Estado ou a multinacional. perspectiva, dominante no jornalismo,faz apelo às leis da políticas, como o bonapartismo, o maoísmo, psicologia,tenta por vezes tipologias 0 gaullismo, não para designar uma doutrina, mas sim para designar um padrão ao qual compara outros padrões individuais de comindividual decomportamento portamento, fazendo análises e previsões quanto às decisões que são de esperar. Asbiografias são uma fonte importante de informação para este método. De facto, é o mesmo método que se torna mais complexo quando se assume queogrupoé o agente mais frequente do processo político interno e internacioexistem porta-vozes de nal,porque, entende-se, não existem agentesindividuais, grupos de indivíduos ligados por interesses, convicções, objectivos. Não chega analisar o comportamento do representante, é necessário analisar o comportamento do grupo, porque se intercondicionam, pelo que a sociologia faz a sua intervenção: grupos de interesses, grupos de pressão, grupo director. É todavia a interacção das personalidades individualizadas, com uma resultante de compromisso mais ou menos voluntário, que nessa perspectiva permite descrever, compreender e prognosticar. Um governo não é uma entidade com um comportamento pautado abstractamente por regras constitucionais, é um grupoque varia de comportamento conforme a sua composição real, dentro do mesmo condicionalismo constitucional, partidário e programático. ou grupal,que são compatíveis com as várias Às metodologias individualista matrizes ideológicas, opõe-se uma metodologia instituciona/ista. Esta parte da convicção de que a vida social exibe duas referências fundamentais, os homens e as ideias: os primeiros perpetuam-se pela reprodução, as segundas pela tra297 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS dição,palavra que significa a passagem de mão em mão, neste caso de ger , em geração. Para se perpetuarem, as ideias organizam um conjunto de Illª~ao humanos e materiais ao seu serviço, de modo que a instituição, na sua fo<:!Ios mais perfeita, é uma ideiadeobraou deempresa,queserealizae duranum meiosot~a Uma Universidade, uma Nação, uma Igreja, correspondem a tal fenóill eia/. A instituição tem uma objectividade, isto é, um conjunto de regras pelas qua~no. seus membros se regem; uma hierarquia,que corresponde a uma distribu/ ~s de funções; uma intimidade,que se traduz na pressão e marca que impriille Çao membros da instituição; uma ideiadirectora,que torna funcionais ou instrurnnos tais as vontades individuais. en. As instituições têm uma personalidade diferente da dos seus membros vontade que se exprime em seu nome não coincide com a vontade que os age'~ tes exprimiriam para servir interesses próprios, a personalidade individunJ tem importância, mas não existem homens insubstituíveis para a instituiçã: que dura no tempo para além dos indivíduos que morrem e são substituídos' • Esta é a doutrina de Hauriou, Prélot e Renard 251 • Este último sintetiza dizendo que "a instituição encontrou a sua força vital na pessoa humana, e a pessoa humana recolheu-se no seio da instituição". Nenhuma destas posições metodológicas pode considerar-se excludente das outras, porque o que cada uma faz é dar proeminência a um tipo de agente das relações políticas internas e internacionais, mas nenhuma pode ignorar a pluralidade de tipos de agentes que são intervenientes. O seu peso relativo tem que ver com a teoria da causalidade nas ciências sociais, mas todas são formas de intervenção voluntarista num processo condicionado por muitos factores naturais geográficos, económicos, ecológicos, sociais, tipo de sociedade, etnia, religião, modelos culturais. Aquilo que a proposta da metodologiasistémicavem trazer de novo é um modelo de racionalização de todos esses factores complexos, ajudando a apreender a realidade, descrevê-la e prognosticar os comportamentos dos agentes e do conjunto. A utilização do método é antiga, mas a definição operacional do conceito varia conforme os autores e as épocas. Em primeiro lugar, o conceito sistémico um ponto de vista segundo o qual certem de ser aproximado do organicismo, tas entidades sociais, como poderiam ser as instituições, são suficientemente orgânicas para serem compreendidas em função das leis que regem os organismos vivos. Na forma mais razoável, terá de entender-se que se faz uma aplicação analógica dessas leis. Trata-se de um ponto de vista geralmente sustentado por concepções políticas conservadoras. 251 Adriano Moreira, CiênciaPolítica,Lisboa, 1995, p. 56; idem, DireitoCorporativo,Lisboa, 1954. 298 TEORIA DO l'ODER davia, 0 organicismo, entendido com inteiro repúdio da aproximação da fo cial da vida orgânica, é uma variante do holismo,isto é, a suposição de que \,id:t~ºersoobedece a uma tendência no sentido de sintetizar as unidades em o ll~~~adesorganizadas. Hegel chamava-lhe "a transição da quantidade para a cotª/dade". Daqui se parte para a afirmação de que a sociedade é alguma coisa 1 q~ª nte da soma dos indivíduos que lhe pertencem, pelo que tem caracte. e as mst1tu1çoes . . . - que a caracterizam, . d1fere , . as e capac1"dad es espec1'fi1cas.As 1eis stl · d"1v1 'duos. íl c assam e su bmetem os m ulrraP d b . • concor d.anc1a, • pensa d ores corno Bur ke peste mo o, em ora sem inteira ontheRecent _97),que é um dos fundadores do conservadorismo (Rejlections 729 ~ volutioninFrance,1790), Hegel (1770-1831), fundador do moderno idealismo, eJgunsmarxistas, concebem que o homem recebe parte da sua maneira de ser ~: totalidade histórica a que pertence: a Nação, a classe, a Igreja. A convicção de que o comportamento da parte apenas pode ser explicado por referência às regrasque governam o todo, é um corolário desta atitude. Ametodologia sistémica nas ciências políticas decorre porém directamente dacibernética, que é o estudo do controlo interno dos sistemas em que as várias operações interactuarn reciprocamente e sistematicamente, como acontece nasmáquinas que possuem a chamada inteligência artificial. o termo parece ter sido inventado por Norbert Wiener e Arthur Rosenthal, admitindo-se que os sistemas podem ser mais ou menos imunes às influências externasou ambiente, e que é possível enunciar algumas leis de valor geral sobre 0 funcionamento dos sistemas. A expressão feedbackexprime o retorno do output do sistema, como input, de natureza positivaou negativa,exprime os apoios ou exigênciasrecebidos. Os primeiros são estabilizadores do sistema porque reduzemas exigências, e os segundos podem ser destrutivas pelo efeito contrário. Nabiologia, o critério foi enunciado por Bertahanffy, que o usou para os seus trabalhos sobre a célula, partindo para a teoriageraldossistemasque inspirou a fundação, em 1956, da Societyfor the Advancementof GeneralSystemsResearch. Aperspectiva parece ter sido importada para as ciências sociais porTalcott Parsons, célebre sociólogo americano, e aplicado nos domínios das ciências políticas por David Easton e Karl Deutsch 252• Pelo que toca às relações internacionais, a expressão sistema também tem mais de um sentido para além daquele que lhe corresponde como designação de uma metodologia de aproximação. Os historiadores falam em geral de sistemasinternacionais para darem a fotografia de uma área política em certa época, descrevendo as relações diplomáticas, ou outras, estabelecidas e o seu fluir. Fala-se assim do sistema do Tratado u, Adriano Moreira, CiênciaPolítica,cit., p. 98 e sgrs . 299 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACION AIS de Westefália do século XVII, ou do sistema do concerto das nações do . XIX, ou do bipolarismo do século XX. sec1.11 0 Não se trata porém de investigar regrasdo funcionamento inerentes tema, ou de modelos de funcionamento. Ora, a noção de sistema é us: sis. convicção de que é possível afirmar a existência de "relações regulares ª na o comportamento dos Estados e o tipo de ambiente em que se encontra e~tre rn is1 . No modelo de Easton, ca da agente esta dua 1apresentar-se-ia condicionaa · ºda seguinte maneira 25.i.: SISTEMA POLITICO SISTEMA ECOLÓGICO SISTEMA BIOLÕGICO SISTEMA DE PERSONALIDADES SISTEMAS SOCIAIS AMBIENTE INTER IOR ... RETRACÇÃO DA INFORMAÇÃO .. ..... ~,-. .." 5 UJ z UJ Q. ;!; ãi CONVERSÃO DAS EXIGÊNCIAS EM OUTPUTS :. < SISTEMAS POLITICOS INTERNACIONAIS SISTEMAS INTERNACIONAIS ECOLóGICOS ·- -. AMBIENTE EXTERIOR ·-.-. cn UJ o ê3 ir ~ RETROACÇÃO DA INFORMAÇÃO SISTEMA SOCIAIS INTERNACIONAIS Trata-se de verificar, por exemplo, que os Estados não se comportam igualmente conforme o ambienteé bipolar ou multipolar. A análise sistémica fundamenta-se portanto na distinção entre o sistemae o ambienteou contexto.O sistema é formado pelo conjunto de elementos ligados por um feixe de relações, interdependentes, e com uma fronteira, que o separa do campo global das forças (actores e factores) que se situam fora das relações que se pretendem estudar (ambiente ou contexto). Para o estudo das relações internacionais, ou reduzimos o sistema às relações entre os governos dos Estados (Morton Kaplan), ou autonomizamos subsistemas,e então temos um ambienteexternoa considerar, ou estudamos o sistema internacional global, e então admitimos que existe ambienteinternomas não existe ambienteexterno. Jacques Huntzinger, cit., p.159 . Easton , A SystemsA11alysis of PoliticalLife, N.Y.,1967. ). W. Depierre, L'A11a9•se desSystemcsI'olitiques, Paris , 1973. 1.<3 1.. 300 TEORIA DO PODER ndo a orientação de Raymond Aron, uma aproximação sócio-histórica seg~lemas do sistema rejeita análises apriorísticas e parte dos exemplos fardosrºs pela experiência de sistemas do passado. Por outro lado, porque iden11ec1 a guerracomo facto autonomizador das relações internacionais, Aron cific?U 0 critério para estabelecer a fronteira do sistema nestes termos: "Um sis· 1e' constitui · 'd o pe 1as um"dad es po l'1t1cas . que mantem • re 1ações llsaria internac1ona relllªlares,e que são susceptíveis de serem implicadas numa guerra generaliref,, Não aceitava que fosse possível prever os acontecimentos diplomáticos za ª~sà análise do sistema, mas este método permitia identificar os constran~açentos sobre o Estado e a parte que o determinismo social desempenha girnrelaçõesinternacionais. Historicamente, identificava o exemplo fornecido - entre as monarquias . europeias . cl'asszcas, . nas lascidades gregas,o exemp 1o das re 1açoes Leste-Oestedo século XX. peociedade europeia do séculoXIX, as relações 5 a .MortonKaplan é mais radical255• Em vez de uma perspectiva sócio-histórica, ornaa posição de proceder a uma análise a priorida teoria geral dos sistemas : da análise sistémica. Não esconde o carácter imperfeito dos esquemas apriorísticos,mas considera que os elementos históricos disponíveis são pobres, e que,portanto, a teorização das relações internacionais exige que se parta de um quadro teórico para chegar à realidade. Esse quadro teórico é um sistema observante, construído para responder a estas perguntas gerais: porqueé queum ° sistema sedesenvolve, comofunciona o sistema,e porqueé queo sistemadeclina. Identificou como variáveis dos sistemas as regrasessenciais dosistema,as regras declassificação dosactores,as capacidades, a informação. As regrasessenciais do sistema descrevem a relaçãoentreos actoresou agentes,cujo comportamento se considera maisdependente da natureza do sistema do que da sua espontaneidade; as procuram exprimir a capacidade do sistema se adaptar regrasde transformação e de àsmudanças do ambiente, pelo que cada sistema terá regrasdetransformação adaptação; finalmente os caracteres estruturaisdosagentese a hierarquiaque existe entre eles, a qual influencia o seu comportamento . Fazendo uma aplicação ao sistema internacional em que vivemos até 1989, e que ajudará a compreender o método, e também o muito que tem de simplesmenteoperacional e conveniente, Marcel Merle especifica os caracteres do sistema internacional nos termos seguintes: 1- É um sistema global e fechado sobre si mesmo. Esta primeira afirmação baseava-sena distinção entre o sistemae o ambienteou contexto.Parece apenas o reconhecimento da evidência, mas esta evidência implica também verificar que a mudança de dimensãoprovoca uma mutação nas relações entre os elementos componentes do sistema. A mudançaqualitativaprogressiva traduziu-se na tlS Kaplan,Processa11dSystemi11I11temationalRelatio11s, N.Y., 1967. 301 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS definição de um teatro estratégico mundial, na instantaneidade da info ção, na mundialização dos mercados, na participação de uma crescente rltta. de centros de decisão política que se vão ligando a órgãos de diálogo, coo rede ção e decisão. Pode talvez resumir-se falando na simultaneidadeda confroPera. de todos os agentes das relações internacionais. Afirma Mede que o sisttªfiio eilla· fechado no sentido de que ocupa todo o espaço terrestre, sem zonas margi _e de expansão livres de conflito possível. na,s Z - O facto de o sistema não ter ambiente exterior implica uma intensifi sobreopatrimóniocomca. ção do domínio dos actores sobre os espaços, e expressão da Humanidade,levando a uma maior complexidade das relações referente "111 mar alto, aos fundos marinhos, ao outer-space,à ecologia. Mas na ordem ps 0 •· tica, a alteração qualitativa também é de monta. A função que o limesromano exerceu em relação aos bárbaros, foi també pelo concei~ desempenhada pelo conceito de infiéis,pelo conceito de selvagens, 0 de Estadosburguesesou de Estadoscomunistas,pela Muralhada China.Para alé dessas fronteiras ficava o ambienteexterno ao sistema de onde vinham ame: ças, exigências, colaborações e apoios. Isto desapareceu ou tende para o rápido desaparecimento em face da mundialização. O fluxo de exigências e apoiosé de um ambiente interiorizado. Também não existem agentesexternos. 3 - Sintetiza Mede: "O exemplo da distribuição dos recursos e da repartição dos poderes mostra bem que o sistema internacional absorveu o ambiente. De então em diante podemos extrapolar a partir destas constatações e afirmar que as relações internacionais se desenvolvem em circuito fechado: os inputsque afectam o ritmo (por exemplo a pressão demográfica, a difusão das ideologias, a aspiração ao bem-estar e ao desenvolvimento) partem de diversos pontos situados no interior do sistema (o que permite falar em ambiente interno); quanto aos outputs,quer dizer as reacções do sistema, não mais poderão, como aconteceu muitas vezes no passado, escapar à cadeia de retroacção para transferir a outros os encargos necessários à satisfação da demanda. Por outras palavras, o sistema internacional, pelo facto do seu carácter global e fechado, não fecha mais as portas às suas contradições. É obrigado a assumi-las ele próprio, o que submete cada uma das suas unidades constitutivas a uma pressão muito mais forte que no passado" 256 • 4 - O sistema é heterogéneo porque o feixe de relações contínuas e não-intermitentes entre os seus elementos, sendo de evidenciar a informação simul· tânea, liga intervenientes de poderdesigual.Acresce a diversidade de tiposde agentes,porque ao lado do Estado é necessário colocar as organizações intemacio· políticas,as multinacionais,os poderesespirituaisins· naisestaduais,as internacionais ;? 25 '' Merle, cit, p. 333. 302 TEORIA DO PODER . l'zados, os podereserráticos ou, de maneira geral, as forças transnacionais. I • c1ona fi d' · a to d as as espec1es ' · d e actores, 1 ptt 'd riedades e con rontos 1zem respeito sob ª nas aos Estados. Algumas vezes definem-se grandesespaçosinterméoã0 apr: 0 velho Estado e o mundialismo, como são as alianças militares per- ' · · d os Esta d os Amencanos, · 1 ent s ou os espaços econom1cos: uJ'os Orgamzação mane~teaç' ão de Unidade Africana, Comunidade Económica Europeia, NATO, organtZ de Varsóvia. pac;a_por isso, a mundialização do sistema tornou mais difícil e complexa a A falta deste é também uma caracterísem de um mecanismoregulador. inontag . . . do sistema que se formou. E aqm que tem actuahdade o pensamento dos ct~~osProjectistas da Paz, e as teorias sobre o estado de natureza. O mais próv~ 0 de um mecanismoreguladorinformal foi durante meio século o verdadeiro x•~omíniode responsabilidade EUA-URSS, agora em revisão desde que se deu 'º;rnplosãoda URSS. O sistema entrou em disfunção. ª Esta aproximação é diferente da abordagem sócio-histórica de Raymond Aron,mais relativista, mais operacional e menos dogmática. Mas foram comlernentaresa partir de alguns traços metodológicos comuns: ambos recorrem tipologia, e procuram determinar as regras do seu funcionamento, Aron por urnprocesso histórico, Kaplan por via lógica e apriorística; ambos admitem a possibilidadede detectar regularidades no comportamento dos agentes; ambos admitem que os sistemas são finalmente controlados por uma co-responsabiJidadedos mais poderosos (oligopólio); admitem a pluralidade de tipos de sistemasinternacionais. Kaplan,por seu lado, estabeleceu seissistemasracionais de relações internacionais,dois históricos(século XIX) e quatronominaisporque são intelectualmente constituídos ou, noutra terminologia, sistemasobservantes. Tais sistemas são: de veto,de equilíbrio,bipolarflexível, bipolarrígido,universale hierarquizado. No sistemadevetocada agente tem o poder de bloquear o sistema, mas também cada agente tem o poder de resistir à pressão do veto. O sistema de equilíbriodepoderescaracteriza-se pela multipolaridade que se organiza para manter umabalança de poderes equilibrada. O sistemabipolar flexívelfaz coexistir agentes e actores supranacionais, como as alianças, e actores universais como estaduais a ONU. Se os dois blocos tendem para uma hierarquização interna, também o bipolarismo se torna rígido, fazendo desaparecer oa agentes não-alinhados admitidos ainda pelo bipolarismo flexível. O sistemauniversalé um modelo confederal que confere ao agente universal o principal papel: este sistema exige uma grande homogeneidade do meio internacional, e uma relação de solidariedade entre os agentes e o agente universal. Finalmente, o Estadouniversal, objectivo dos impérios, seria o sistema hierarquizado, e portanto com uma centralização muito maior do que a do sistema universal de inspiração confederal. r 303 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Na convicção de Kaplan, estes modelos devem abranger toda a experiê . histórica, a realidade da conjuntura, e o futuro. Coloca assim um limite nc,a fundamento, à criatividade da história, o que não acontece com a aborda' selll gelll de Raymond Aron. 2. Aron e Kaplan: o funcionamento dos sistemas A dualidade das abordagens referidas, a sócio-histórica e a racionalista, leva um afastamento nítido, não obstante as referidas atitudes comuns, quando a trata de enunciar as possíveis regras de funcionamento dos sistemas. Para R se ay. mond Aron, muito consciente sempre das limitações da nossa capacidade d racionalizar as conjunturas, não é possível chegar à formulação de regras gerat de funcionamento dos sistemas, apenas é possível racionalizar cada sisterns concreto, historicamente vigente, e assim mesmo limita-se à análise do sistem: multipolare do sistemabipolar.Para cada sistema procura estabelecer o padrão da relação de forças e o carácter homogéneo ou heterogéneo do sistema. A primeira indagação, relação deforças,destina-se a averiguar a hierarquia dos poderes intervenientes, e a repartição das forças entre os agentes hegemónicos e a multipolaridade correspondem e entre estes e os secundários. A bipolaridade aos dois grandes tipos de relação de forças. O carácter homogéneo ou heterogéneo do sistema diz respeito à definição ideológica dos intervenientes: se o princípio é o legitimismo, o sistema é homoo sistema é heterogéneo. A homogéneo; se uns são legitimistase outros democráticos, geneidadeprovocaa moderação, a heterogeneidade provocaa conflituosidade.O sistema europeudo séculoXVIII foi homogéneoe multipolar,enquantoque o do séculoXX foi bipolare heterogéneo. No sistemapluripolarpodeaparecero fiel da balança, o quenão épossívelqueaconteçano bipolarismo. Porseu lado,MortonKaplanprocuradeterminaras regrasessenciais para o equilíbriode cadasistemaidentificado, as regrasde transformação e as estruturasde cada agente. Quanto ao sistemamultipolar,apura seisregrasque considera rigorosas e aplicáveis a todos os actores desse sistema: 12 cada agente procura realizar os seus objectivos estratégicos sem subir aos extremos da guerra, porque esta pode desequilibrar o sistema (concerto europeu do século XIX);211quando necessário para a protecção dos seus interesses, cada agente recorrerá à guerra (Europa dos séculos XVIII e XIX); 3 2 a guerra visa realizar o interesse e não eliminar outro agente, porque o número de elementos tem relação com o equilíbrio do sistema; 42 luta contra a instauração de uma hegemonia dentro do sistema; 52 recusa um agente supranacional, regra que complementa a anterior no sentido de manter o equilíbrio do sistema (luta contra o projecto napoleónico); 62 reintegra os vencidos no normal posicionamento do sistema, evitando a evo304 TEORIA DO PODER para o bipolarismo (recuperação da França vencida pelo sistema do Conso de Viena de 1815). caracteriza-se por dois blocos que se impõem, pela gre~ sistemabipolarmaleável . arquiado poder, aos restantes agentes secundários. Se os dois blocos se manh'.elí sem a supremacia de um deles, as regras de funcionamento aproximam-se ce!lldo modelo multipolar. Se uma hierarquia acaba por ser estabelecida, as das . ' ºdo. as passam a ser as d o bºzpolansmo ng1 • !llǪ 0 re~s regras comuns a todos os sistemas bipolares maleáveis são estas: competi•o pela supremacia de cada um dos blocos; cada bloco subordina os objectivos ~asagentes económicos aos seus interesses, e procura subordinar os do bloco -~alaos interesses do suposto agente universal; cada bloco procura aumentar 1 : sua clientela de aliados, mas cultiva a tolerância para com os não-alinhados ara que se conservem nesta situação. O sistema é muito instável e a evolução Podedar-se quer para o multipolarismo quer para o bipolarismo rígido. A estahilidade do bipolarismo repousa_ essencialmente no equilíbrio do poder, que pode ser o equilíbrio do terror. E evidente que a multipolaridade tem o risco por exemplo da proliferação horizontal das armas nucleares e a multiplicação de conflitos limitados. Mas o bipolarismo parece exceder em riscos todos os sistemas.As hipóteses que são formuladas nesta linha de análise, sobre as vantagens e riscos comparados do bipolarismo e do multipolarismo, passam em regrapela extrema abstracção lógica, que procura fazer intervir uma suposta maturidade dos agentes no cálculo dos riscos e dos ganhos derivados da subida aosextremos da guerra. Nessas hipóteses não cabem as novas ideologias agressivas,os nacionalismos, os fundamentalismos, o medo, a competição, o racismo, o conflito étnico e cultural subitamente desencadeado. Afinal tudo parece repousarna relação de forças, e o uso destas depende de um voluntarismo que aceitaou rejeita o statuquo.As regras são mais de prudência por um lado documentada, e por outro aconselhada, tudo na base da possibilidade e da probabilidade,nunca da certeza, porque o regresso ao estado de natureza, na forma maisaguda que é a guerra, é um risco permanente 257• ;.Merle, cit, passim. Brzezinski, The Soviet Bloc, Unity and Conflict, Harvard, 1960. Buchan, Change 1th0 ut War,Londres, 1974. Reuter, Institutions lllternationales,Paris, 1972. Morgenthau, cit., passim. 305 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS § 4º O Regresso aoEstadodeNatureza 1. A filosofia do uso da força Até à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não existia uma proibição do Usod força nas relações internacionais, e a segunda Convenção da Haia de 1907 ap a nas limitava o recurso à força para a cobrança de certas dívidas contratuais eOs Estados incluem o direito de fazer a guerra no seu estatuto internacion~J a situação foi classicamente retratada por Clausewitz ao escrever: "Aguerra nãe é somente um acto político mas um verdadeiro instrumento político, o prosse~ guimento de relações políticas, uma realização destas por outros meios"2Sa A filosofia de Clausewitz, nascida num Ocidente dos Estados, tinha sob~etudo em vista a Prússia e o seu destino num sistema de egoísmos estaduais Numa época em que os exércitos eram artesanais quanto aos meios, e as mas~ sas não participantes na decisão política, a guerra total (absoluta) não ultrapassava a concepção da necessidade de destruir a máquina de guerra do inimigo, destruição à qual se seguia a assumida capacidade de ditar a paz. Os princípios fundamentais da filosofia clausewitziana podem talvez enumerar-se da seguinte maneira, seguindo a síntese de Anatole Rapoport: 1) O Estado é uma entidade personalizada (viva),com empreendimentos bem definidos e dotada de inteligência para promover e examinar os meios de os levar a cabo. 2) O Estado é soberano, isto é, não reconhece qualquer autoridade acima dele. 3) Visto entre os objectivos de todos os Estados figurar o de aumentar o seu próprio poder à custa de outros, os interesses dos Estados estão sempre em conflito, independentemente de qualquer excepção acidental e efémera. 4) Os choques de interesses entre dois Estados são tipicamente resolvidos pela imposição da vontade dum sobre a do outro. Portanto, a guerra é uma fase normal das relações entre Estados 259 . A Primeira Guerra Mundial obrigou a meditar sobre a necessidade de introduzir na filosofia e na teoria a perspectiva dos interesses da Humanidade que ultrapassam os do Estado soberano. A interdependência fazia crescer rapidamente o número de intervenientes na guerra que se tornou mundial; o desenvolvimento das técnicas de combate, apoiadas em potenciais industriais, científicos e tecnológicos, alargou o objectivo militar, que devia ser destruído, aos centros nevrálgicas do adversário, implicando o ataque às populações civis e às cidades. 25tt 259 Clausewitz , Da Guerra, Brasília, 1979. ln Prefácio à edição brasileira Da Guerra, cit . 306 TEORJA DO PODER bora Clausewitz fosse um conservador e tivesse a preocupação do perigo f,!11 de um exército de massas, não ignorou o processo de democratização incer:~rainiciado pela Revolução Francesa e continuado por Napoleão. Entend~guorémque os exércitos se manteriam no plano da execução da vontade do dt3 Pdo com supremacia do político sobre o militar, uma presunção a que os E,sta , s deixam frequentemente de corresponder. factoexército revo1·uc10nano 'ºf. rances, e d.ep01s napo l'ºeomco, nao - era composto 0 recrutas sem acesso ao entendimento dos objectivos e práticas de guerra, mas ~e de patriotas que lutavam por convicções, alguns pelos direitos do Homem silllera O Iegitimismo, todos pelos ideais da Revolução. Napoleão compreen~~: a importância dos factores imponderáveis, como a intuição ou percep.0 popular da situação, o moral, a decisão popular, a credibilidade. Quando riausewitz dizia: "dêem a guerra ao povo! O Estado é o povo!", parecia ter uma visãoorganicista do Estado, e não lhe ocorria que um camponês ou um operário armado, e com uma visão da situação política, podia começar a pensar na relação da guerra externa com a situação interna modificável também pela força.Um problema maior desta democratização da guerra será a manutenção da fidelidade das armas ao objectivo estratégico do Estado. A experiência tem mostrado que é problemática, com projectos ideologicamente incompatíveis: 0 ideal democrático contra o ideal totalitário, o ideal nacional contra o ideal soviético,a libertação colonial contra a missão civilizadora, o método da guerrilha contra os exércitos clássicos. Os custos da guerra, porém, facilmente demonstram a vencedores e vencidos a igualdade da condição de desastre a que chegam, à medida que a guerra caminhapara existencial por simples consequência dos meios a utilizar. A domesticaçãoda energia atómica foi o alarme supremo. Uma linha de pensamento neoclausewitziana e pessimista considera que os factos não consentirão nunca banir a guerra, e inspirou uma sociologiamundialdas relações internacionais, cujo representante mais notável foi Raymond Aron,grande comentador de Clausewitz, e que sintetizou o seu pensamento em Paze GuerraentreasNações260 • Um weberiano cartesiano, atento à complexidade da vida internacional que Clausewitz não conheceu, apenas na guerra encontrou o fenómeno autonomizador das relações internacionais como disciplina científica. Aceitou como pressupostos, que lhe pareciam evidências historicamente comprovadas, os seguintes: a violência esteve na origem dos Estados, a violência foi sempre a última instância das relações entre os Estados, a prospectiva não permite antever outra situação. l6o Raymond Aron, Paze Guerraentreas Nações,Brasília, 1962. 307 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Debruçado sobre a conjuntura, e tendo sido testemunha participante d queda da Ordem anterior a 1939-45, e do estabelecimento da Ordem dos :p a tos Militares, duvidando da eficácia dos métodos que procuram banir ague ac. pela lei (ONU, Tribunal Internacional de Justiça, acordos de desarmamen;r) caracterizou o conflito central como uma defesa da civilização ocidental coº' tra o comunismo soviético, e avaliou a possibilidade de controlar a intensida:da guerra pela dissuasão, evitando o holocausto. O equilíbrio do terror foi u e dado permanente na época que manteve sob observação constante, e nun rn alterou o seu diagnóstico de guerra improvável, paz impossível. ca Esta visão académica da guerra, que identificou os interesses da Humanidade com a percepção ocidental, esta com a tradição europeia, coerente com a versã americana, foi acompanhada de uma versão dos aliados, mas dirigida mais a~ grande público como é exigido numa época de democratização da guerra, e que teve a sua figura importante em Herman Kahn, cujos livros são já clássic08 2G1 Enfrentou sem ambiguidades o facto de o equilíbrio mundial estar penden~e das duas superpotências nucleares, não sendo de excluir que o confronto viesse Tratou então de racioa verificar-se. Convidou portanto a pensarno impensável. nalizar a escalada provável do confronto, definindo quarenta e quatro pataNesta escolástica, a separação rigorosa mares, dos quais vinte e novenucleares. entre o estadodeguerrae o estadodepaz não é possível, e de facto não tem viabilidade a guerra rápida e decisiva, ainda conseguida no século passado. Também não existe mais distinção qualquer entre o diplomatae o militar,porque a política acompanha imparavelmente toda a escalada do conflito, excepto naturalmente no último patamar - a guerraespasmo.O controlo é possível, a catástrofe não é impossível, o conflito é permanente, a política internacional é um contí- nuo delutapelopoder. Esta corrente diferencia-se da que tem sido chamada escatológica e queresponde ao facto de a conquista ou expansão ser assumida como um objectivo do poder político, em especial dos Estados totalitários: por exemplo, a missão civilizadora que no Oriente inspirou o projecto da Área da co-prosperidade da Ásia dirigida pelo Japão militarista; o renascimento do espíritoimperialromano assumido por Mussolini e pelo fascismo; o arianismo de Mein Kampf de Hitler e do nazismo no poder; a libertação dos proletários de Lenine. Na versão leninista, a doutrina de Clausewitz recebe algumas correcções fundamentais: o interessenacionalnão lhe parece senão o interesseda classe gover"'' Herman Kahn, Thinkingaboutthc Unthinkab/c,N.Y., 1962, On Thc nuclcanvar,Princeton, 1960. Linus Pauling, No moreivar,N.Y., 1958. Quando teve notícia da experiência atómica de Alamogordo (1945), Churchill disse: "O que era a pólvora? Uma banalidade. O que era a electricidade? Uma insignificân· eia. Esta bomba atómica é a ira num segundo", in John Keegan, Historiade laguerra,Barcelona, 1955• p. 451. 308 TEORIA DO PODER ue não coincide com o interesse da classe explorada; a guerra que o q ,,ante · que ten d"1a para o era! estudou sena· antes um con n·1to entre burgues1as, Geºemo do conflito imperialista, última fase do capitalismo; os verdadeiros · e~trres desta guerra eram as e/assesgovernantesou capita · 1· 1stas oc1"denta1s. :icto d · d d. . d E d . 1· . d . .Anatureza a mter epen enc1a os sta os capita 1stasretirava to a a rac10Jidadeà guerra, porque as nações são impelidas por forças que os aparelhos afio~.s não dominam (teoria conspiratória), e a guerra leva a resultados não queridos, 1 ' ª~0 foram a dissolução dos impérios centrais na Primeira Guerra Mundial, as 'ºvoluções internas não previstas, a revisão final da hierarquia das potências. re .Afastadaa propaganda antimilitarista com que os soviéticos ajudaram adesruir O exército imperial, regressaram à necessidade de um braço armado e de conceito estratégico que incluísse a legitimação da guerra em termos mobilizadores da população. Não obstante ter sido politicamente vencido, foram os ideais de Trotsky que estiveram presentes na redefinição levada a cabo por Estaline. Um exército com todos os ingredientes clássicos - hierarquia, cadeia de comando, identificação exterior dos postos, condecorações, privilégios maisum objectivo patriótico (herdado) acrescido do internacionalismo proletário (missão). Mas a contribuição leninista parece ter acrescentado, ao modelo clausewitziano, a noção da pátria dos trabalhadores de todo o mundo e não um Estado-Nação como os outros, a de instrumento mundial da lutadeclassese não apenasde interesses estaduais, e paz mundial. Mas que paz mundial?Talvez seja de aceitar que, na primeira versão leninista, a paz era o resultado de um conflito final vitorioso, e confundia-se com a ordemsoviéticamundiallibertadora. Todavia,para um Estado organizado e responsável, a guerra passou a ser mais considerada, como diz Rapoport, como um desastre ameaçador examinado do pontodevistacataclísmico e que deve ser evitado. A visão escatológica da guerra pareceu transferir-se para a China de Mao. A filosofia cataclísmica avalia a guerra em relação à Humanidade como um todo, e não como um fenómeno determinado por um interveniente - o Estado ou a classe. Não encontra nenhuma racionalidade nessa subida aos extremos porque, seja qual for o interesse procurado e até realizado pelo agente, do ponto de vista geral da Humanidade há sempre uma perda. O problema que suscita como fundamental não é o da relação da guerra com os objectivos do poder, é sim o da relação da guerra com a paz, e a descoberta das condições para evitar aquelecataclismo. A investigação das condições capazes de evitar a guerra segue duas linhas de trabalho: uma sistemático-teórica e outra empírica 262 • :rn 262 A. Moreira, Relaçõesentreasgrandespotências,curso de mestrado de 1984/85, Lisboa, 1989, p. 62, sobre a peaceresearch.José Adelino Maltez, O imperial-comunismo, Lisboa, 1993, p. 349 e sgts., sobre "darevolução aomar,darinato". 309 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A primeira, que teve como pioneiro Lewis F. Richardson, aplicou a te . dos sistemas de um ponto de vista cataclísmico, examinando a estabilidactºria modelo construído hipoteticamente, com grandes vantagens para o treino edo fissional mas sem utilidade para estabelecer uma teoria. Pro. Acompanhada pela investigação de Quincy Wright, esta linha talllb. seguiu a via empírica de estudar "as querelas sangrentas", descobrindo evelll tuais correspondências, de mod? a evidenciar a repetição de certas con~~: ções que as precederam ou segmram. Os chamados peaceresearchers elll se distinguem Galtung, James Clarke, Rapoport, Glover e Brown, pare~lte . em contraponto com a po/emo1· . 1· querer dfi e mir, ogza,uma zrene ogza,ou ciêne111 . da paz. Alguns institutos, como o Research Institute de Oslo (1966), 0 s~'ª 0 ckholm International Peace Research Institute (1969), o Center Research ~ Conflict Revolution da Universidade de Michigan (1959), e o Canadian Pea; Research Institute (1964), dedicam-se a essa investigação sem fornecere~ grande terapêutica. Pondo de lado a pretensão da teoria cataclísmica de apreender o fenómeno em sínteses equivalentes às das ciências da natureza, de facto todos acabam por reconhecer que o jogo de forças na comunidade internacional depende da intervenção voluntarista de homens, agindo em função das suas matrizes valora tivas, objectivos e percepções. 2. A prevenção dos conflitos A primeira forma de prevenção dos conflitos que examinaremos é a que recorre ao normativismo, e que se desenvolve numa série de propostas: condenação jurídica da guerra Uus contrabellum);regulamentação do direito excepcionalà guerra Uusadbellum);regulamentação do exercício da guerra Uusin bello); punição dos actos de guerra Uuscriminisbelli);institucionalização de uma autoridade internacional ou transnacional. Mesmo as formas repressivas ou institucionais agem como preventivas, pelo simples facto da sua existência. I) A restrição jurídica - jus ad bellum A tradição ocidental da condenação da guerra tem grandes fundamentos católicos. Santo Ambrósio é dos primeiros doutrinadores apontados como tentando definir as ideias de paz justa e guerra justa, um tema com que toda a Idade Média se preocupa. Mas é Santo Agostinho, no século V, quem, para responder à questão de saber se os cristãos podiam fazer a guerra sem pecar, e vivendo a con· juntura da queda do Império Romano, distingue a guerra justa da guerra injusta, sendo necessário, para estarmos perante a primeira, a iniquidade do inimigo. 310 TEORIA DO PODER São Tomás, que sistematizou o pensamento tradicional, exigiu três condi- para que a guerra fosse justa: 1) declarada por autoridade competente; Çoes · - que se tra d uz em evitar · o ma l mut1 · ' 'l . om justa causa; 3) recta mtençao Z)cOs juristas vão receber esta tradição teológica, com Vitoria e Suárez, a ques- mais difícil sendo a definição da justa causa. Por isso, o Ocidente dos Estafezcom que nos séculos XVII, XVIII e XIX tenha havido um retrocesso na luta ºra restringir ojus adhei/umque cada Estado assumiu sem limites. Os juristas conjuntura, como Grotius, Bynkershoek, Pufendorf, Wolff, Vattel, Martens, :conhecem um direito ilimitado ao Estado para recorrer à guerra. Entretanto, o ~cto da interdependência, a mundialização dos teatros da guerra, a sofisticação dosmeios de a fazer, tudo inclinou, desde o começo deste século, à formulação deumjus contrahei/um,e à definição de meios preventivos e repressivos. o primeiro passo desta evolução no século XX é marcado pela Conferência da Haia de 1907: exigia a declaração prévia de guerra (declaração formal ou ultimatumcondicional) e restringia drasticamente o direito de fazer a guerra para cobrança de dívidas. O Pacto da Sociedade das Nações, depois da Primeira Guerra Mundial, condenou as seguintes guerras: 1) as guerras de conquista (art. 10); 2) guerras começadas sem prévio recurso à arbitragem, solução judicial ou exame pelo Conselho da SdN, ou antes de terem decorrido três meses sobre decisão judicial ou do Conselho dando razão ao agressor (art. 12); 3) a guerra contra um membro da SdN que se comprometesse a cumprir de boa-fé as sentenças (art. 17);4) a guerra contra um membro da SdN que tivesse aceitado a decisão unânime do Conselho, com exclusão dos votos das partes interessadas (art.15) 263 • Antes da guerra de 1939-1945, o último passo foi o famoso Pacto Briand-Kellogg,assinado por quinze Estados em Paris, em 27 de Agosto de 1928. Logo no artigo 1Q se proíbe a guerra, sem excepção, como instrumentodapolíticanacional.Deste modo ficaram fora da proibição: a) a guerra de legítima defesa; b) a acção armada decidida pela Sociedade das Nações; c) finalmente, o Pacto não abrangia as guerras entre Estados não signatários, e entre um Estado signatário e outro não-signatário. Somando a isto as reservas postas por alguns signatários, e a falta de um critério de guerra justa, resultava um mecanismo frágil. A guerra de 1939-1945 foi um regresso mundial ao estado de natureza e, depois de terminada, a Carta da ONU (art. 2 S 4), diz imperativamente que: "osmembros da Organização, nas suas relações internacionais, abster-se-ão de r: r 263 José Luis Fernández-Flores, DeiDerechodela Guerra,Madrid, 1982, p.135 e sgts. Wehberg, La Proibició11 deiusodelaJuerzay la Protección dela integridadterritorialsegúnla Cartadela ONU,Madrid, 1957, 1,p. 338. Veremos a definição nova proposta pelo Secretário-Geral da ONU, Boutros-Ghali, in An a11d political Agenda for Peace,Nações Unidas, 1992. Para uma visão global, Paul Ramsey, Thejustwar,Jorce N.Y., 1968, com análise da intervenção do Concílio Vaticano II, p. 369 e sgts. responsibility, 311 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a ind pendência política de qualquer Estado, ou em qualquer outra forma incorn. e. tível com os propósitos das Nações Unidas". PaA Carta todavia considerou legítima a guerra de legítimadefesa,a guerrad determinada pelo Conselho de Seguran e libertação nacional,a acçãointernacional ou pela Assembleia Geral. Pela Resolução 3314 (XXIX),de 14 de Dezembro ~a, 1974, definiu o que deve entender-se por agressão. O fenómeno da interd e ependência levou ao predomínio da legítima defesa colectiva que é invocad por todos os pactos militares vigentes até 1989, com especial relevo para O lr ~ tado do Atlântico Norte (4 de Abril de 1949) e Pacto de Varsóvia (14 de Maio: 1955). Esta legítimadefesacolectivacontra hipotética agressão tem determinad: a corrida armamentista que caracteriza a nossa época, e o aparecimento de a guerra novas formas de fazer a guerra - a guerraatómica,a guerrabacteriológica, química,a guerrameteorológica. II) O desarmamento O desarmamento, como já vimos, ganhou progressivo relevo no capítulo da prevençãodaguerraà medida que os meios de a fazer ganhavam em poder de destruição e ameaçaram com a catástrofe geral, estando em causa asarmasatómicas A questão é d~ as armasquímicas,as armasbacteriológicas e as armasconvencionais. saber se a corrida armamentista pode ser controlada e como. Do ponto de vista da racionalidade nenhum analista deixa de admitir que não tem sentido tal corrida que constantemente eleva o patamar do desafio com ressalva impossível do equilíbrio permanente. São três as principais razões que militam em favor do controlo do armamento, e do desarmamento: 1) diminuir a probabilidade de guerra; 2) diminuir a extensão da destruição em caso de guerra; 3) reduzir os custos financeiros da defesa. Os esforços desenvolvidos visam: a) abordar o aspecto qualitativo do armamento, impedindo a progressiva sofisticação (proliferação vertical); b) diminuir quantitativamente as espécies de armas. O primeiro Strategic Arms Limitation Treaty (SALT-1),por exemplo, assinado em 1972 entre os EUA e a URSS, limitou o número de ICBM, cabeças nucleares, e MIRV, ou foguetes de cabeças múltiplas. Também limitaram as defesas antimísseis respectivas, oferecendo cada potência à outra alvos desO que se tinha em protegidos, porque o receio recíproco assegurava a dissuasão. vista não era a redução, era contrariar a competição em espiral. A redução propriamente das armas é um acordo mais complexo. Isto foi considerado possível na época chamada da distensão do Presidente Nixon dos EUA. Os desenvolvimentos tecnológicos (aumento da potência dos MIRV,os submarinos americanos Trident, os mísseis Cruise), e as dúvidas aliadas sobre se o acordo EUA-URSS não afectaria a segurança europeia, levaram o Presidente 312 TEORIA DO PODER cera preparar a negociação SALT-11que nunca chegou a um acordo. A inva~Mdo Afeganistão, a lei marcial na Polónia, a crítica pública ao SALT-11,fizeram 530 que o Presidente Reagan iniciasse outra política de limitação de arma- corocoque se chamou START- Strategic Arms Reduction Talks. Tratava-se de (lle:ara corrida, e de diminuir as armas estratégicas instaladas. O objectivo rnou-se opção zero-zero, porque a redução acabaria na eliminação mútua ªarmas atómicas. A complexidade do problema conduziu a que, no fim da Geerra Fria, estivessem em curso várias negociações: START, sobre a globalid udedos problemas estratégicos; INF, sobre forças nucleares intermediárias; JBFR, sobre a redução mútua e equilibrada de forças convencionais. A instalaáOpela NATO dos mísseis Cruise e Pershing, e a instalação pela URSS de mís~eisSS-20e SS-4, perturbaram as negociações. Entretanto, o Presidente Reagan anunciouo seu programa chamado correntemente guerradasestrelas(IDS). Em !986, Reagan e Gorbatchov encontraram-se em Reykjavik na Islândia, e uma novafase começou, com um inicial confuso período de acertos e desconfianças,até que as negociações START recomeçaram em 1987, sem resultados significativos, e com uma importância diminuída pela proeminência e evolução da Perestroika. Todo este período foi dominado, politicamente, por um conceito de balança depoderes. O principal factor relacionado com a paz no que respeita ao conflito foi o equilíbrio das percepções americana, dos seus aliados, da Rússia, central da China, do Terceiro Mundo, sobre o risco do holocausto 264 • O conceito fundamental é que as negociações sobre o desarmamento são negociações sobre a forma de fazer a guerra. Daqui a importância dos esforços para eliminar a guerra química, e para eliminar os ensaios nucleares, uma política de novo desafiada pela França em 1995. e; ~ 3. Oproblemático restabelecimento da Ordem O desequilíbrio e disfunção dos sistemas, cuja mais grave manifestação é a guerra, exige que o estado de natureza seja eliminado ou contido por uma Nova Ordem. Esta ordem é desejável, porque na expectativa dos povos consolida um futuro período de paz que corresponde a um sentimento de justiça compartilhado pelaspopulações e Estados interessados. Mas a regra é que, devido ao facto de '" Desenvolvimentos em RaymondAron, Lasociétii11dustricl/c etlagucrrc,Paris, 1959. Charles Chaumont, LasuuritédesÉtats et la sécuritidu monde,Paris, 1948. Pierre Célerier, Géopolitiqueet Giostratégic,Paris, 1955.Coressi e Wint, TotalWar,N.Y., 1972. Marek Thee (edt .), Ar111a111e11ts, armsco11trol a11d disar111amc11t, UNESCO,1981. SIPRI - Yearbook 1993 , WorldAr111amc11tsa11d Disarmamc11ts(anual, Oxford University Press, 1993). P. Boniface (dir.), L'A11néestratégique 1994. LcsÉquilibrcsMilitaircs,Paris, 1994 . Esta matéri~ est:ídesenvolvida em Adriano Moreira, Relaçõesentreasgrandespotências, Lisboa, 1989, p . 59 e sgts . 313 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS haver vencedores e vencidos, a Nova Ordem seja exclusivamente o espelho real hierarquia de poderes, e portanto reflectindo a concepção dos vencedda 0 res. Sempre que a paz foi estabelecida nestes termos, a Ordem teve essa na . d tu. reza d e um d 1ta o. A Ordem europeia, agora em revisão, começou por ser o ditado das Potê cias vencedoras na guerra de 1939-1945, reflectindo de resto o equilíbrio ale nçado para as rivalidades e os objectivos contraditórios das potências vencedo:nMas a Ordem anterior, com expressão na Sociedade das Nações, fora a substituas. da Ordem saída do Congresso de Viena de 1815, onde o ditado foi feito peJta cinco (pentarquia) potências principais que derrotaram o plano napoleóni/s Temos por isso que prever mais de uma evolução possível, desde a violação 0 sionalda Ordemà destruiçãoda Ordem. tª Convém, portanto, não esquecer que a Ordemreinantetem sempre na has uma hierarquia e equilíbrio de poderes estaduais. Por outro lado, pode ser ume Ordemregionalou a Ordemmundialque está em causa. ª O direitointernacional,com a precária eficácia que referimos, é a expressão mais vasta de uma Ordem mundial. Mas esta desdobra-se em ordenamentos mais ou menos abrangentes, que não obedecem todos necessariamente ao~ imperativos do direito internacional geral ou que pretendem alterar mesmo o direito internacional. Porque a guerra é o regresso ao estado de natureza a paz raras vezes deixa de ser a submissão dos vencidos, e a sua manutenção é confiada a uma Ordem ditada pelos vencedores, acordada entre as potências dominantes, ou definida por um Estado director. Durante o período da proeminência da Inglaterra, o qual acabou com as duas guerras mundiais, falou-se na PaxBritannica;os EUA contribuem para que se fale na PaxMercatoriacorrespondente ao modelo económico mundial que pretendem implantar; os marxistas falaram sempre da Pax Sovieticaparecendo que esperavam novidades da sua metodologia; a Ordem do último meio século foi a dos PactosMilitares,com a componente da pazpeloterror.A referência ao poder e à sua física está sempre implícita. A pazpelodireitotem o objectivo, não alcançado, de referir a Ordem a valores essenciais de justiça entre os povos, e a observância dela ao consentimento dos Estados, mas esse projecto, que era o da ONU, esteve entre parên· tesis até 1989. De qualquer modo, a paz é surpreendentemente a situação normal entre os Estados, e a guerra uma situação temporária. O retorno à paz pode dar-se por três maneiras diferentes: 1)os beligerantes deixam de praticar actos de guerra e vão retomando as relações pacíficas sem estabelecerem um tratado de paz; 2) estabelecem as condições da paz em tratado especial; 3) um dos interve· nientes no conflito absorve o outro. A primeira hipótese verificou-se várias vezes: em 1716 a guerra entre a Suécia e a Polónia; em 1720 entre a Espanha e a 314 TEORIA DO PODER . em 1801 entre a Rússia e a Pérsia. A opinião mais geral é que a situação fra;Ç:~ existente quando as relações pacíficas recomeçam, e não a anterior às de -~idades,é que prevalece. - d o adversano , . tem como pnmetro . . passo a conbostt A anexação ou su b'iugaçao . t Esta pode todavia ser apenas de uma parte do território inimigo, e está quis :mada com a operação efectiva. A paz também fica assim estabelecida se 5 • A conqmsta · tota 1, mesmo com o amqut · ·1amento de con hostilidades termmarem. asdas as forças inimigas, também não é anexação se o vencedor entender cont~ ir um tratado de paz e restituir o vencido à soberania. A anexação implica a ~ ~orporação do território do vencido no território do vencedor, por decisão 10 ilateral deste. A unificação da Itália, por exemplo, foi o resultado da anexa0 u_odo Reino da Sardenha, do Reino das Duas Sicílias (1859), do Grão-Ducado ça da Toscana, dos Ducados de Parma e Modena e, finalmente, dos Estados do papaem 1870. A forma mais corrente de terminar com o estado de guerra é o tratadodepaz: depoisda corrida à sorte das armas, um acordo mútuo define as condições de de Estados estabelecimento da paz. Frequentemente, os bonsofíciose a mediação, neutros em relação ao conflito, intervêm para que as negociações sejam entabuiadas e prossigam. Normalmente segue-se um período chamado de armistício em que se suspendem as hostilidades para negociações, mas em que não se extingue o estado de guerra. Estas negociações podem ter lugar por troca de notas entre os governos beligerantes ou por intermédio de negociadores especiais, e podem decorrer em território neutral ou no território de um deles. Em qualquer caso, os negociadores têm imunidade diplomática. Frequentemente a negociação passa por dois patamares: os preliminares, que são objecto de um primeiro acordo; o tratado final, que incorpora o primeiro dos preliminares. O direito internacional não tem regras especiais para os tratados de paz26s. m Oppenheim, Intm1atio11al Laiv,Londres, 1921, II, p. 356 e sgts. 315 Capítulo Ili OsIntervenientes § 1º O Estado 1.Conceito operacional Amundialização do teatro das relações internacionais é acompanhada da manutenção de uma componente essencial, herdada da época em que o mundo se dividiaem áreas não-comunicantes, e que é a fragmentação em sociedades com identidade separada, projectos autónomos e percepções diferenciadas do conjunto a que pertencem. O que atribui também um carácter específico ao que se chama comunidade internacional, porque, no sentido técnico corrente, lhe faltou sempre a solidariedade e o projecto de fututro comuns, sendo mais evidentes a interdependência mesmo não querida nem assumida, e a multiplicação dos poderes de intervir sem coordenação. O Estado moderno, criação do Renascimento, é todavia o herdeiro de um fenómeno que acompanhou sempre a sedentarização dos grupos sociais. Para enfrentar uma série inevitável de problemas organizacionais, a sociedade estabilizou-se de acordo com um modelo em que se encontram três elementos: território, população, principado.O perfil de cada um dos elementos varia no tempo e no espaço, o relacionamento entre eles ou a estrutura de cada um também varia, mas existem sempre. Na área ocidental, a queda do Império Romano levou à sociedade feudal em que o poder se desfaz em migalhas, em que as relações pessoais são as dominantes, em que falha o sentimento de pertença a grandes unidades. No mundo de matriz oriental, ao contrário, continua o modelo dos impérios dirigidos 317 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS por cidades-Estado, como Bizâncio, Bagdade e Córdova. No Renascirn estrutura-se o OcidentedosEstados:cada um destes é uma entidade dota~llto, um poder que não reconhece igual na ordem interna nem superior na or~ ele externa, poder chamado soberania. Este modelo alcançou uma projecção eltt dia! e está vigente desde a Florença do século XV até às mais recentes ind;un. dências do Terceiro Mundo. Pen. O conceito de soberania é o elemento organizador, ao mesmo tempo id lógico e estrutural. Trata-se do "poder absoluto perpétuo de uma Repúbitº: (Bodin), esta última palavra significando Estado. O seu corolário é a inde/ª jurídica.A evo!ue~. dênciade cada um em face de todos, e portanto a igualdade . . . b ' "d 1 ' 1 - do modelo pÇao seguinte mais importante, e tam em oc1 enta , e a evo uçao ara 66 Estadonaciona/2 • Na citada obra de Maquiavel (O Príncipe),o patriotismo já aparece como u cimento importante da solidariedade do povo. Vem talvez preencher O vaz~ causado pela quebra das fidelidades espirituais a Roma, e harmonizar a sociab: !idade com o humanismo laico, fornecendo um valor superior de referência. Parece que, em regra, foi o Estado que forjou a Nação, como notou Lord Acton, sendo menos comum que a Nação tivesse dado origem ao Estado. As grandes revoluções americana e francesa alargaram essa fidelidade ao grupo alargado que Renan caracterizaria, e que no imaginário revolucionário existira desde sempre e para sempre: as nações existem no estado originário. "ANação existe antes de todas as coisas: está na origem de tudo, a sua vontade é sempre legal; ela é a própria lei; antes dela e acima dela existe apenas o direito natural" (Sieyes).No século XIX o ideal nacional cobre toda a Europa, embora apenas no ideário da guerra de 1914-1918, nos 14 Pontos de Wilson, se tenha consagrado a regra de que a cada Nação deve corresponder um Estado. Todavia, nem sequer na Europa o princípio foi regra sem excepção, porque a sua efectivação depende da verificação de um requisito, a viabilidadeem face da conjuntura. Muitos Estados são plurinacionais e algumas nações estão divididas entre mais de um Estado. Mas o modelo corresponde de tal modo às necessidades dos povos que o Estado-Nação foi adoptado como projecto ideológico das independências anticoloniais deste século. As elites condutoras do processo revolucionário, ou as que foram compostas de europeizados pelas universidades, ou as que vieram dos quadros militares e do sindicalismo, associaram o poder como um projecto 11acio11al. Trata-se de reproduzir, pelo uso intencional do poder, o fenómeno que o Estado naturalmente produziu na Europa colonizadora contra a qual se revoltaram. Tais novos Estados não governam uma Nação, mas têm um projecto de ""' Hans Kahn, Natio11alis111: its 111ca11il1ga11d history.Princeton, 1955, p.122e sgts. 318 OS INTERVENIENTES d a evolução do agregado populacional para esse modelo. Desenvolfllª11ª\nda este ponto em relação com os tipos de Estado 267• remos~o resulta que o Estado, com múltiplas formas, mas sempre com os De cuelementos estruturais, é ainda hoje o principal agente das relações (!les!llº~ionais.O príncipe pode ser o rei legítimo (monarquia europeia), um inrernªarismático, um ditador, um partido hegemónico, um poder democrácbefee s tal elemento existe sempre. Aquilo que não existe é uma igualdadereal rico,maondente à desejada igualdade jurídica,porque a hierarquiadaspotênciasfoi corres!permanente na comunidade internacional. E a soberania, como verea regr . . •á não correspon d e ao conceito renascentista. (!!OS,) _Reconhecimento 1 É•ustamente pelo facto da soberaniae pela importância que por natureza tem Jsrelações internacionais, que a comunidade internacional submete a regras nareconhecimento d a existencia .,.d e um Edsta o. 0 A primeira dificuldade é estabelecer as regrassegundo as quais o reconhecimentodeve ser concedido ou negado. A importância do facto resulta de que umEstadoapenasadquireapersonalidade internacionalepodeexercerasinerentesprerrogativas setiversidoreconhecido pelosoutrosEstados;cadaEstadoé livrede reconhecer ounãoreconhecer um Estadoqueaparece. Este enunciado mostra logo que o simples e primeiro acto de que depende a legitimação da intervenção soberana na vida internacional é uma eventual causada anarquia, porque a atitude dos Estados pode não ser uniforme, e o novoEstado ser reconhecido por uns e não reconhecido por outros. A doutrina jurídica, para responder a esta questão, divide-se: uma corrente entende que o poder de reconhecer é discricionário; outra corrente entende quecada Estado deve limitar-se a verificar os factos - se existe um Estado - sem fazerintervir julgamentos valorativos ou de interesse próprio. Em termos de conduta-padrão, só a Inglaterra aplica habitualmente a regra objectiva;os EUA, pelo menos no que respeita à mudança de regimes, costumamverificar se foi democrática, de acordo com os seus padrões. Na realidade, trata-se apenas de uma política relacionada com a influência que os Estados querem defender ou incrementar. Uma das consequências desta situação quanto ao reconhecimento é que, de facto,os Estados invadem a jurisdição interna dos outros, designadamente para avaliarda democraticidade dos processos políticos. Por outro lado, a relação do reconhecimento com apolíticadeinfluênciaconduziu a diversificar o conteúdo do acto de reconhecimento: reconhecem não um Estado, mas umaNaçãoem pro267 Ernest Gellner, Naçõese Nacionalismo,Lisboa, 1983, p. 133 e sgts. 319 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS cesso de independência, como foi o caso da Polónia reconhecida pelos AI. 1 na guerra de 1914-1918; reconhecem governosnoexílio,anunciando que esp ªd 0 & a libertação dos territórios e povos de uma situação afirmada ilegítima eralli foi o caso dos Estados invadidos pelos alemães na guerra de 1939-1945'. collio . . d. . , 1 e. • 'reco · n h ecem movimentosque mvocam o 1re1to a revo ta, como 101o caso da G Civil espanhola; assumem o direito de reconhecer ou não os governos,p;erra cada Estado reclama o direito de apreciar livremente as condições em queque poder se apresenta a querer exercer competências internacionais. uni é uma arma usada na competição interna . Em resumo, o reconhecimento . -· mternacioncio. na 1. Deste mo d o, ate, a entra d a como mem bdro as orgamzaçoes . se politizou. Juridicamente, a entrada na ONU depende de um juízo fortna~ts corresponde a uma aceitação geral da personalidade de qualquer Estado· tn e a entrada foi frequentemente condicionada por juízos políticos sobre O ~qu~~ líbr~o d~ votos na Assembleia Geral, e a inerente influência nas relações inte~nac1ona1s. II - Estatuto O Estado assume a totalidade das prerrogativas que a comunidade internacional lhe atribui, a maior parte delas consagrada no direito internacional, A síntese desse conjunto de prerrogativas foi tradicionalmente chamada a soberania. Este conceito significava a total liberdade do Estado no sentido de que nenhuma obrigação lhe podia ser imposta, já que nenhum poder superior e exterior era reconhecido. A evolução já referida tornou os Estados geralmente incapazes de realizarem isolados as finalidades ou objectivos que lhe foram assinados, alguns devendo considerar-se exíguos,isto é, definitivamente incapazes de realizarem todas as finalidades estaduais, e obrigados a alienarem em terceiro Estado, ou em organização internacional, tal função. É por isso que, não obstante a expressão soberania ser ainda a corrente, e designadamente a recolhida no artigo 2º da Carta da ONU, começa a ser corrente definir o estatutodoEstadocomo o conjuntodecompetências internacionais que lhepertencemdeacordocomo direitointernacional.Deste direito, especialmente do costume internacional, deriva o conteúdo dessas competências. a) Competência interna As competências chamadas internas têm relação com o estatuto internacio· nal dos Estados, embora a regra seja a da liberdadede acçãono interiordoEstado. A questão internacional que imediatamente surge é a das fronteirasque limitam essa interioridade. É regra que as fronteiras terrestres efluviaisse encontram deli· mitada s com rigor, mas ainda não é esse o caso das fronteirasmarítimase aéreas. 320 OS INTERVENIENTES _ stá decidida a questão da extensão das águas territoriais (Conferências de Naº;brade 1958 e 1960), isto é, as águas sobre as quais o Estado exerce poderes Ge\alentes aos que exerce sobre a terra firme; não estão definidos os poderes equt/íciaque os Estados exercem sobre a zonacontígua,ou zonaeconómicaexclud~pourna área marítima que se estende para lá das águas territoriais; não estão 5,va, · d e exp loraçao - d as riquezas . d o mar e d o contro lo marmmo ' . entes os d"1re1tos assssasáreas para além das águas territoriais; o aparecimento dos engenhos necra-atrnosféricos deu origem à definição do espaço aéreo como a porção da exrnosfera situa . da so bre o terntono. . , . at A definição da nacionalidade, que identifica a comunidade humana corresondente ao Estado, é uma competência de cada Estado. Mas as dependências ?nternacionaissão várias. Em primeiro lugar pode acontecer que os critérios de ~adaEstado concorram no sentido de que uma pessoa tenha mais do que uma nacionalidade ou nenhuma(apátrida). por outro lado, quando a residênciafaz coincidir a competência territorial e pessoal, não aparecem obstáculos ao pleno exercício das competências dos Estados;mas se a residência dissociar as duas competências, surgem eventualmente questões de ordem internacional. Se um português reside em França, conserva a totalidade dos seus direitos como português; mas não está em condição de os exercer sem se conformar com o direito interno francês que pode impedir tal exercício, por exemplo do direito de votar. Por isso, aparecem os tratados que regulam bilateralmente a situação dos residentes estrangeiros. O citado artigo 2 S 7 da Carta da ONU diz que "nenhuma disposição da presente Carta autoriza as Nações Unidas a intervir nos negócios que dependem essencialmente da competência nacional de um Estado." A interpretação desta disposição não é pacífica e sabemos que é variável em função da evolução da conjuntura. A questão dos direitos do Homem mostra como a comunidade internacional fez variar, em geral no sentido restritivo, o âmbito da competência exclusivados Estados. Neste fim de século, o direito de ingerência humanitária (Bósnia,Ruanda) progressivamente restringe a área da jurisdição interna. De qualquer modo, as competências internasobedecem ainda à regra da liberdade do Estado, que se manifesta por exemplo na organização constitucional, na forma do regime político, ou nos modelos de vida jurídica privada. É recente a afirmação de uma competência críticada comunidade internacional em relação à conformidade da vida interna com padrões internacionalmente aprovados, designadamente quando se trata de repudiar o totalitarismo ou o desrespeito dos direitos do Homem, e isto não deixará de criar uma limitação à regra da liberdade interna dos Estados. Talvez possa dizer-se que a tendência, consequência da interdependência crescente, é que os problemasinternostendem com 321 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS frequência crescente para se transformarem em internacionalmente relevantes que estes por sua vez tendem para internacionais. 'e b) Competência externa As competências externassão integradas pelas prerrogativas atribuídasaosEstad paraagiremna comunidadeinternacional. os A primeira é o direitoderepresentação activa e passiva, que exercem por interO pessoal diplomático, constituindo uma carreir médio das missõesdiplomáticas. hierarquizada, destina-se a exercer essa função. O embaixadoré o representant a oficial de um Estado junto de outro Estado: a importância das funções exige que o Estado hospedeiro dê o seu acordo (agrément) que pode revogar a tod~ o tempo declarando-o personanongrata. O embaixador, por sua vez, entra em funções solenemente entregando as cartas que o acreditam na sua qualidade e função - lettresde créance.O embaixador, os seus colaboradores e os seus familiares, bem como os lugares de trabalho e os serviços, gozam de uma série de imunidades (jurisdicionais, fiscais e aduaneiras) para lhes garantir a liberdade de acção, tudo sujeito ao princípio da reciprocidade. relacionadas com a representaA missãodiplomáticatem funçõesprotocolares ção do país nas cerimónias oficiais;funçãoderelação,pela qual conduz as negociações, as discussões, as trocas de pontos de vista entre os governos usando as comunicações escritase verbais;uma função deinformação,mantendo o seu governo actualizado quanto ao conhecimento do que de relevante se passa no país onde está acreditado;função deprotecçãodos nacionais. diplomáticascorresponde a um estado de tensão gravee, A rupturade relações designadamente, precede usualmente a declaração de guerra. Um acto menos grave, e que pode anteceder aquele, é a chamadado embaixador,que pode suspender de facto as relações diplomáticas directas. Os Estados costumam, nestas hipóteses, recorrer a um terceiro Estado para os representar. Os recursos técnicos de todas as formas de comunicação, a rapidez das mesmas, e a multiplicação das relações internacionais que não são exclusivamente políticas, estão a condicionar a função tradicional da missão diplomática em dois sentidos: o relacionamento técnico, científico, económico e militar, multiplica os especialistas (conselheiros e adidos) que integram o pessoal do ministério e a missão; as facilidades de comunicação multiplicam os contactos directos entre os governantes, e o uso da missão com a simples função de correio (nuntius). Por outro lado, a Guerra Fria intensificou a função da informação em termos que se aproximam com frequência da clandestinidade, o que implicarestrição, sempre melindrosa, da circulação dos diplomatas e uma vigilância que 322 OS INTERVENIENTES ·Jrnente fere a dignidade das missões e dos Estados. O declínio das funções missão diplomática parece certo, mas não podem ser dispensadas, , • • , • 26s P s pelo contrario, como mstrumento tecmco . que historicamente são anteriores à missão dipl~máant~s serviçosconsulares, aosnacionaisdoseuEstado.E um . desempenham umafunçãodeajudaeprotecção tica~ionário designado pelo Estado para exercer funções noutro Estado onde fu? tem colónias de emigrantes, ou com o qual existem relações de ordem ecoexts . . órnica, podendo ser que se recorra a um nac10nal do Estado de acolhimento, 11 geral quando os interesses não são de grande monta. O cônsul funciona 01 e0010 oficialde registocivil(casamento, registo de nascimentos, emissão de cercidões e passaportes, documentação comercial), de notário(contratos, testa~entos, etc.), de funcionáriojudicial (notificação), de informador em matéria económica, e autoriza a entrada de estrangeiros no seu país concedendo o visto. Asua função é administrativa, não política. Uma das prerrogativas mais importantes do Estado é a que os ingleses chamam treaty-makingpower: qualquer Estado pode iniciar negociações com outro ou vários Estados até chegar a um tratado. De facto, este poder traduz-se em que osEstados são legisladores, e apenas obedecem às regras que criam. Um tratado é um acordoentreEstadoscomo objectodeproduzirefeitosdedireito.O Estado tem o direito de recorrer à justiça internacional, tem legitimidadepara isso, embora a jurisdicionalização das relações entre os Estados seja extremamente deficiente. O Tribunal Internacional de Justiça, previsto no artigo 92 da Carta da ONU, e com sede na Haia, tem competência, segundo o artigo 36 do seu Estatuto, que "seestende a todos os litígios que as partes lhe submetam, e todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou nos Tratados e convenções vigentes." A regra é, portanto, a da voluntariedade da submissão. É por isso que o direitode celebrartratadose o direito de estaremjustiça não conseguiram até hoje eliminar o direitode recorreràforça e portanto a competênciadefazeraguerra.É verdade que o Pacto da Sociedade das Nações restringiu o conceito de guerra legítima, e que o chamado Pacto Briand-Kellogg (1928) condenou o recurso à guerra. Foi a partir deste texto que os aliados, no fim da guerra de 1939-1945, instituíram o Tribunal de Nuremberga e o de Tóquio para julgar os dirigentes políticos e militares das potências vencidas e considerados responsáveis pela Segunda Guerra Mundial. A Carta da ONU também diz (artigo 2 S 3) que "os membros da Organização se abstêm, nas suas relações internacionais, de recorrer à ameaça da força ou ao emprego da força". Acontece porém que algumas acções de força são consideradas legítimas (legítima defesa, libertação colonial, acção do Conselho 1 faC , icas da o 11t ' '" Marcel Merle, La vie internationale,Paris, 1963, p. 29 e sgts. 323 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS de Segurança para eliminar a ameaça de guerra ou a agressão em curso, ac _ de polícia da ONU), e na aplicação desse conceito fica muita margem par Çao conflitos armados, acrescendo o arbítrio que não pode ser eliminado porª os é uma decorrência do poder que o Estado possui efectivamente. que Na situação actual do mundo, os Estados continuam a poder decidir recor , e , • d f: , . , l ter a 1orça, e a competenc1a e azer a guerra e uma prerrogativa a qua renuncia apenas em face de circunstâncias que raras vezes se reúnem. Assim, a neutra/ida: ordinária, ou decisão de não intervir num conflito armado, é sempre possívet permanenteé um estatuto adaptado por vári ' e sempre revogável. A neutralidade Estados: Suíça (Declaração de 20 de Março de 1815), Áustria (Constituição ~s 1955), Laos (21 de Julho de 1966). No passado foi tentada, antes da guerra de 1914-1918, pela Bélgica e pelo Luxemburgo. Mas os factos mostram que, se: interesse dos agressores o exigir, não hesitam em violar a neutralidade. O que significa que não é neutral quem quer, só é neutral quem pode. Deste estatuto se distingue o neutralismo,uma atitude política dos países do Terceiro Mundo que se concertaram, durante o bipolarismo e a Guerra Fria para não alinharem com nenhum dos blocos, ocidental ou soviético. Mas nã~ renunciam à competência de fazer a guerra, à qual recorrem com frequência. e) Igualdade e independência No sentido de compensar a desigualdade dopoder,os Estados viram reconhecidas pela comunidade internacional duas condições que são garantiase não direitos ou liberdades: a igualdadee a independência. Existem várias tentativas de justificação destas garantias, que se traduzem em aplicar ao Estado as considerações que justificam os direitos individuais inalienáveis e iguais das pessoas. Podem em todo o caso ser entendidas como garantias destinadas a salvaguardar um bem comum que é a paz geral. O artigo 2 S1 da Carta da ONU diz que a Organização se funda sobre a igualdade soberana de todos os seus membros. A independência é um corolário da igualdade, e também se confronta com a realidade das interferências de uns Estados no processo da formação da vontade dos outros. Basta reparar em que a independência não se verifica em isolamento, mas sim em interdependência, para reconhecer que essa independência, quando respeitada, e sem interferências provenientes de uma relação de poder, significa uma discricionariedade dentro dos limites fixados pelo direito internacional. Esta independência cede por vezes à interdependência crescente e ao facto variável da hierarquia dos poderes, dando assim origem, por vezes, a estatutos jurídicosque exprimem a restrição da capacidade: o regime chamado de capitulaçõesque, a partir do século XVI, deu às comunidades cristãs estrangeiras, instaladas na Turquia, um estatuto que as excluía da jurisdição territorial; 0 regime de porta abertaimposto à China pelas potências ocidentais no século 324 -- OS INTERVENIENTES e que abria o seu mercado às iniciativas daquelas potências; o regime de ,(IX,sãoa soberaniasestrangeiras, permitindo-lhesa instalaçãodeverdadeiros enclaves cotice:andes cidadeschinesas;osprotectorados dosocidentais,ou os mandatosda SdN, ,,as~ftdeicomissosda ONU, tudo são fórmulas de limitação das independências d ., • . 'dicamente ese1ave1s. Jllr~bolidas tais formas jurídicas, nunca foi abolida a hierarquia de facto: a granssificação, não apoiada em qualquer texto jurídico, de superpotências, 1 ~ ª médiasepequenaspotências,Estadosexíguose micro-Estados, corresponde a esse ues, ' . e m1·1·1tar. facto,basean d o-se sob retu d o na capac,'d a d e estrateg,ca 011° z.os tipos de Estado: estrutura 0 Estado aparece na cena internacional como uma unidade, fonte de decisões, masisso não significa que todos os Estados tenham a mesma estrutura, e a diferença das estruturas tem relevância para a vida internacional. o Estadounitáriotem a soberaniaque o caracteriza externamente, e internamente não tem pluralidade de poderespolíticos.Mas existem modelos ou históricosou actuais em que as coisas se passam diferentemente. No passado foram conhecidas as uniõespessoais,que se verificavam quando, por aplicação das regras dinásticas, mais de um Estado ficava com o mesmo soberano: foi o caso de Portugal e Espanha entre 1580 e 1640, da Grã-Bretanha e de Hannover entre 1714 e 1838, da Holanda e do Luxemburgo entre 1815 e 1890. Os Estados não perdem a sua personalidade internacional, mas é evidente que surge um factopolíticonovo com projecção nas relações. A uniãorealresulta de uma decisão entre Estados habitualmente vizinhos, os quais guardam a personalidade internacional, mas transferem certas competências para órgãos comuns, designadamente a defesa e os negócios estrangeiros:foi o caso da Suécia e Noruega entre 1815 e 1907, da Áustria e da Hungria entre 1867 e 1919, entre a República Árabe Unida e o Iémen segundo a Carta efémera de 8 de Março de 1958. Esta solução nunca teve existência duradoira na vida internacional. Já não acontece o mesmo com a confederação de Estados e com os Estados federais. Entre 1778 e 1787 os EUA foram uma confederação; a Suíça entre 1815e 1848; a Alemanha entre 1815 e 1871. Historicamente encontra-se uma evolução normal da confederação para a federação. Na confederação a personalidade internacional dos Estados é mantida, e a forma assumida traduz-se em transferir para órgãos comuns (a Dieta germânica, o Congresso dos EUA) um certo número de competências internacionais. Isto significa que as confederações não coincidem no mesmo modelo, mas todas se caracterizam pelo acordo de Estados soberanos no sentido de exercerem em comum certas competências internacionais. 325 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS As modernas organizações de defesa permanente, como a NATO, ªPro . mam-se desse modelo que se caracteriza pelo exercício em comum de um c lCI, d e competenc1as. , . el'to numero Finalmente, o regime federal, de que os EUA são o exemplo mais im externas,e tante, transferepara órgãoscentraiso monopóliodascompetências 269 • O modelo federal mo ar. quizafinalmentea relaçãodospoderespolíticosestaduais stra portanto um governo central (ou federal), que coexiste com governosestadua· ambos com um braço legislativo e outro executivo. Os dois governos estão su~~ metidos à mesma Constituição Federal, mas cada um deles é supremonas áre da sua competência, e a legitimidade é popular e independente. Deste moct:s opoderpolíticoestadualnão é uma delegação do poderpolíticofederal. ' Trata-se por outro lado de um ponto em que se encontra um importante elemento de meditação sobre a diferença entre a imagemque o Estado cuJ. tiva e de que naturalmente a Constituição é simples elemento cenográfico, e a realidadeda estrutura do poder político. Assim, a Constituição da URSS era aparentemente mais larga nas atribuições de competências às repúblicas que constituíam a União do que a dos EUA. As repúblicas soviéticas podiam teoricamente fazer a guerra, e algumas, como a Ucrânia e a Bielorrússia, tinham representação internacional na ONU e o poder de celebrar tratados. De facto a unidade do poder era assegurada pelo monopólio do partido comunista, ~ o Estado funcionava como unitário, com a descentralização e a desconcentração administrativas necessárias. Algumas correntes do europeísmo em vigor são advogadas do federalismo europeu, que consideram a única forma política superadora dos antagonismos do passado e das insuficiências de cada Estado para encarar separadamente os desafios do futuro. hitºr- 3. Sistemas políticos e regime político As expressões Estado,sistemapolíticoe regimepolíticoaparecem por vezes usadas como sinónimos, diferenciando-se pela caracterização ideológica acrescentada: socialista, liberal, comunista, teocrático, democrático, totalitário. Existem todavia questões que exigem uma definição operacional dos conceitos que os autonomiza, as quais dizem respeito à própria identificação do objecto da ciência política e, portanto, ao âmbito do fenómeno político. O fenómeno essencial do Estado, na observação que se confirma desde Trasímaco na Repúblicade Platão, até às investigações sucessivas de Schaeffle, Max "'ºAdriano Moreira, "Sistemas Políticos da Conjuntura", in LegadoPolíticodo Ocidente,cit. Karl Lõwenstein, Teoríada la constitución,Barcelona, 1979, p. 23 e sgts., sobre o processo político e os tipos de governo. Jean-François Revel, Le regaindémocratique,Paris, 1992, p. 457, sobre a tese do movimento para a democracia mundial. 326 OS INTERVENIENTES Gaetano Mosca, Heller, Thomas I. Cook, Catlin, Lasswell, Morgenthau . . D ugmt, . uma d·c "'eber, vY' ond Aron, e, o poder e, portanto, como smtettzou uerene.Rª!::ntre fortes e fracos, entre os que mandam e os que obedecem. Acontece ciaǪ te fenómeno permanente não se manifesta apenas na organização social quee~ determinado período histórico foi chamada Estado,porque designadaqueee foram realidades diferentes, com igual caracterização, a polisna Grécia, . . me d'1eva1. lflent . . ehrzstiana . eriumem Roma, a CIVltas 0 ,,nÍor isso, o Estado é uma espécie do género organização políticadassociedades, ta de acordo com aquilo que Zubiri chama o fenómeno da homologia,tem ees rocura ' · ' · abrange uma popu 1açao - e pro duz um po der, vanan . do um terntono, oupdefinição d o sistema . /' . d . /' . po 1tzcoe o regimepo 1t1co. na O Estado soberano é uma forma de organização política ocidental que se desenvolveuna Europa a partir do século XIII até ao fim do século XIX, e que eOlcomo características específicas, em relação às formas anteriores, a passat em do senhorio territorialpara a soberaniaterritoria!,a alteração da relação entre ~ poderespirituale o poderpolíticoque a Igreja introduzira para firmar a supremacia do primeiro, o primado da política no sentido de organizar e satisfazer as necessidades terrenas da comunidade, a progressiva despersonalização do comando pela evolução do conceito de ojficiume, finalmente, como escreveu MaxWeber, a acentuação do monopóliodaforça legítima,que receberia a designação de soberania. As definições do Estado, que atendem apenas aos elementos estruturais e permanentes de qualquer das formas de organização política das sociedades, usam colocar o acento tónico em um dos elementos: a) "o Estado somos nós", disse Kelsen ao definir a democracia como o governo do povo pelo povo; "o Estado é a forma viva do povo ... É o próprio povo", disse Herder na orientação do nacional-socialismo; b) evidenciando a permanente diferenciação entre governantes e governados, o Estado é visto como a sede do governo efectivo: "nous avons vu que tout l'État est en la personne du prince" (Bossuet): "L'Érat c'est moi" (Luís XIV); o dominador soberano confunde-se com o Estado, concluiu Bornhak; e) embora desde Bodin a Kant as definições do Estado não dêem primazia ao território sobre o qual a comunidade existe, deve recordar-se com Jellinek que a teoria patrimonial da Idade Média atendia sobretudo ao território e fazia derivar o poder político da propriedade do solo; d) o poder político caracteriza outra linha de definições, para a qual o Estado é um certo governo de vários grupos e do que lhes é comum, usando um poder soberano, perspectiva que informa toda a obra de Jouvenel. É em relação com o elemento poderpolítico,que aparece em todos os tipos de organizações políticas das sociedades, que se perfilam os conceitos de sistema políticoe de regimepolítico.A utilização actual do conceito mais vasto de organi327 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS zaçãopolíticaé imposta porque o próprio Estado, depois do seu aparecirnen sofreu variações consideráveis, sobretudo a partir do século XIX, e o fenórn/º• da luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder político excede extetº . .. "d esse po d er: apareceu um Feudna e internamente os qua d ros orgamzac1ona1s lismo interior dos poderes de facto no mundo do trabalho, das empresas daideologias, dos partidos, das internacionais políticas; estruturam-se depenct, as cias e solidariedades externas na defesa, na economia, na ciência, na cultu:nna política, que afectam os conteúdos e definições da soberania e a função d~ aparelho que a exerce. A primeira necessidade de limitar operacionalmente os conceitos de siste,n políticoe regimepolíticodecorre da verificação de que o Estado, entendido comª aparelhodopoder,não coincide necessariamente com o sistemapolíticointegral, ne; interna nem externamente, porque os contrapoderes internos têm de ser considerados, e porque frequentemente se articula com uma organização política que o excede internacionalmente, mesmo sem o consentimento da soberania. A noção teórica de sistema, como vimos, é, nesta área da ciência política, a mesma utilizada nas outras áreas das ciências sociais: um conjunto de elementos com identidade própria, interdependentes por um feixe de relações, e que se perfilam dentro de uma fronteira. Uma corrente de inputs(apoios e exigências) e outputs(decisões) estabelece a relação do sistemacom o ambiente,em cujo ambiente se inscrevem outras organizações políticas, e a comunidade internacional no seu conjunto. Mas o sistema pode ser considerado em dois planos: uma hipóteseinte1pretacomo acontece com o sistema marxista teórico; o contiva (sistemaobservante), junto dasefectivasrelações de interdependências vigentes, dentro de uma situação concreta, e que constituem um sistemaespecífico(sistemaobservado). No mundo actual, o sistema político observado abrange frequentemente elementos exteriores ao Estado, de modo que a fronteira do sistema não coincide sempre com a fronteira do Estado. A forma como os vários elementos do sistema interactuam, definindo um status e desempenhando funções, que produzem resultados finais ou decisões, dá vida a vários tiposde regênciadossistemas,que devemos chamar políticos porque é o fenómeno da luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder que constitui o elemento dinâmico do sistema, e é para impor uma forma de regência do sistema que se ocupa o poder, fazendo com ele variar as relações. Justamente porque a questão do poder de reger o sistema é central, a definição do regime exprime-se num norma tivismo que visa disciplinar as relações entre os elementos do sistema, e esse normativismo nunca é exclusivamente de meios-fins, não é na totalidade eticamente neutral, tem apoios e contestações internos e externos, decorrentes das diferentes escalas de valores, objectivos, 328 OS INTERVENIENTES sses concepções do mundo e da vida que se colocam desafiantes perante iotereões 'da tota l"d . . - que constituem . 1 ad e d os h omens e d as .mst1tu1çoes a orgaasopÇ l' . . ção po 1t1ca. oiz~ facto de o sistema político exceder hoje frequentemente o Estado enten·do como aparelho do poder soberano, tem consequências na qualificação dt te na comunidade internacional, umas vezes sem expressão jurídica, outras de~ ela: as designações de superpotência, grande potência, média potência co Estado exíguo, correspondem ao primeiro caso; as designações de Estado oussaloou Estado protegido corresponderam ao segundo, mas se os estatutos :cíclicos caducaram, os factos produziram realidades equivalentes. J o regime político pode, portanto, não abranger a regência de todo o sisceJlla,nem interna nem externamente, e os elementos que ficam subtraídos a tal regênciarepresentam, no ambiente decisório do poder político, limitações que fazeJllcom que as expressões Estado, soberania e poder político não tenham o Jllesmoconteúdo para todos os regimes observáveis e formalmente equivalentes, designadamente possuindo constituições escritas coincidentes. Por outro lado, as disfunções possíveis do sistema, resultantes da variação dasmaiorias, ou do recurso à força, como as greves, os golpes de Estado, as revoluções,as ameaças ou pressões e agressões externas, implicam que, na luta pela aquisição,manutenção e exercício do poder político, tenham de aparecer concepçõesdiferentes sobre a pilotagem e funcionamento do sistema, com expressões normativas, valorativamente comprometidas, que entendem impor uma formade regência do sistema e não outra, o que necessariamente exige uma definiçãovariável dos vários statusefunçõesdos elementos componentes, formuladas de uma perspectiva conservadora, reaccionária, reformista ou revolucionária. Por isso, sendo a força inerente ao fenómeno político, o regimepolíticose traduz, no dizer de Jiménez de Parga, "na solução que se dá defacto aos problemas políticos de um povo". Estas circunstâncias fazem com que o sistemapolíticoe o regimepolíticopossamnão coincidir, na medida em que o segundo, embora proclamado e modernamente com expressão numa Constituição, pode não ter assumido a efectiva regência do sistema ou da sua totalidade. A guerra civil duradoira, que caracteriza muitos Estados actuais, corresponde a esse facto. Haverá eventualmente então um fenómeno de falta deautenticidademedida pela distância entre o proclamado e a realidade; também acontece que o regime político proclamado é intencional e puramente semântico, isto é, verbal e para fins de imagem, porque o regime real é outro. Quando um regime se proclama democrático e redige uma constituição semanticamente correspondente à matriz invocada, mas vive dezenas de anos em ditadura de partido único, o regime político real não é o invocado. Quando um regime se proclama sacia329 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS lista, mas vive em economia de mercado paralela às leis, a falta de autentic· é evidente. O normal, porém, é que o regime proclamado corresponda à tdade cie de voluntarismo que pretende reger o sistema, e por isso as definiçõeespé. s dos regimes políticos não omitem tal perspectiva. Assim, o Dizionariodi politicafascista (Roma, 1940, Vol. IV, pp. 31-3S) . . . tres • e1ementas no regime: . · b) a massa•dis a) o capoe a c1asse po l'1t1ca; )· tmgu1a fórmula. Isto correspondia à famosa definição de Chiarelli: "um comple;oc ª instituições coordenadas no sentido do desenvolvimento de uma determin de concepção do Estado e da Sociedade". Não é realmente diferente a forrnadiª , d emocrattca. '. Ass1m, . o acata d o Bur d eau escreve que"ua.· ção que vem d a area regime político é o estado de equilíbrio em que se fixa num momento d~lll uma sociedade estática e que se caracteriza pelas soluções que adapta quan à fonte, objecto e modo de estabelecimento do direito positivo". Para Duvto ger, "um conjunto de instituições políticas funcionando em determinado pa~:em certo momento, constitui um regime político". ' Em qualquer dos tipos se encontra sempre uma referência ideológica (liberal, socialista, comunista, democrática, fascista, terceiromundista) ou uma ideologia de recusa; um modo concreto de organização (Estado unitário, regional federal) em que têm especial relevo as estruturas, função e objectivos dos par~ tidos políticos; e uma visão da estrutura social. As exigências principais de método estão em considerar no conceito de regimeapenas o Estadocomo aparelho do poder definido, por exemplo, numa Constituição, e no de sistema a estruturapolíticaintegral,incluindo por exemploos partidos proibidos, os poderes de facto ou externos, e os contrapoderes, sendo que esta última perspectiva é mais abrangente, tendo em vista os fenómenos da falta de autenticidade e a variação de conteúdo daquela realidade básica. O regime político traduz-se assim no conjunto de instituições, nem sempre com expressão normativa, que regulam a luta pela conquista e exercício do poder de reger o sistema, na totalidade se possível, em função dos valores que animam as instituições participantes. Vimos que os sistemas políticos homólogos têm mais de uma alternativa no que respeita ao regime político, sobretudo no que toca à estrutura01ganizativa do poder político, que assegura a selecção da classe política em exercício, os status e função dos componentes desta, utilizando processos destinados a garantir a regularidade dos comportamentos em função dos valores ou concepções de vida adaptados. Trata-se portanto de condicionar a formação da vontade política, e os regimes são objecto de uma tipologia, que é plural em função do critério adaptado. A mais antiga tipologia foi herdada de Aristóteles, que atendia apenas à estrutura organizativa, e distinguia entre a) monarquia,ou governo por um ° 330 OS INTERVENIENTES . ) aristocracia, ou governo por alguns; e) democracia, ou governo por todos. so;b or assente que a concepção fundamental da vida era comum aos interª"ª p no processo po l'mco, . e o mteresse . . do po der, cons1. . ntes gera 1o ob"iecuvo º ve11':doque cada uma das formas tinha um equivalente degenerado quando derales pressupostos eram abandonados pelos governantes: a tirania,a o/igar3que . . e a demagogia. qu,a, · A teoria das elites, que sustenta que o po der, mesmo na chama da monar. pertence sempre finalmente a um pequeno grupo seja qual for o regime, qu1a, duziu a tipologia a puramente formal. re Daqui resulta a importância que assumiu a perspectiva já sociológica de Montesquieu, que distinguia entre república,monarquiae despotismo,atendendo à combinação de dois critérios: a naturezae o princípiodogoverno.A primeira atendeao número de detentores do poder (todos na república, e apenas um na monarquiae no despotismo) e à forma de exercício (o monarca está submetido a leis,o déspota usa o arbítrio) ; o princípio do governo, correspondente ao que hojechamamos valores orientadores , tem que ver com a teoria da obediência, e conclui que a república assenta na virtude,a monarquia na honra,e o despotismono medo,pelo que se pode entender que este engloba a generalidade dos regimesdegenerados de Aristóteles. O desenvolvimento da perspectiva sociológica conduziu a relacionar os tipos dosregimes com as diversas formas de luta para adquirir e manter o poder político,e estas com o condicionalismo social e político, interno e internacional, em queessa luta se desenvolve, tendo essa perspectiva a sua expressão mais saliente em duas orientações: o materialismohistóricoe a razãodeEstado. A primeira faz depender o tipo de regime político da evolução do modo de produção, e assim tipifica a democracia apenas dos homenslivresna cidadeburguesa,o -Estado,o despotismooriental,o feudalismo,a democraciarespresentativa socialismo proletário. As críticas a este critério, que, sendo embora de fundamentação variada, todas podem reunir-se na perspectiva geral da razãode Estado,não ignoram a importância do sistema de produção e do acesso à distribuição da riqueza, mas sustentam que outros factores, incluindo o sistema cultural, os fins da comunidade e seu condicionamento, e designadamente o papel do Estado na vida internacional, estão incluídos na explicação do tipo de regime adoptado. Por exemplo, a estrutura organizativa do poder na Inglaterra, caracterizada pelo autogoverno local e pelas liberdades públicas, tem relação com a insularidade que dispensava a centralização e o militarismo para que foram conduzidos, por razões internacionais, os poderes continentais, como a França, a Espanha ou a Alemanha. 331 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Os novos Estados, nascidos da descolonização moderna, assumem tip autoritários de regime, entre outras razões que decorrem da falta de identida~s nacional das populações e do seu pluralismo étnico e cultural, porque um ~ grupo (partidoarmado,Jorças militares,grupoétnico)assume o poder e o objecti:o 0 da unidade, e esse grupo não teria, mesmo que o pretendesse, recursos humano 8 para responder às exigências de um regime baseado na divisão de poderes. Daqui uma relação entre o subdesenvolvimento e a concentração do poder (reg·. 1 mes de partidoúnico,poderpessoale autoritarismo)e entre as sociedades afluentese descentralização e desconcentração depoderes(federação, Estadosregionalizados, pode: local,instituiçõesdemocráticas). Pressupondo que existe e pode ser graduado o desenvolvimento político tendo como padrão de referência as democracias ocidentais (especialmente 0 ~ EUA, a Inglaterra e a França), aparecem as tipologiasdesenvolvimentistas, a mais divulgada delas sendo a que Edward Shills apresentou em 1950 ao Committee on Comparative Politics:a)Democracias políticas:diferenciação de funções e espeexecutivosejudiciais,partidospolíticos cialização das estruturas (órgãoslegislativos, gruposdeinteresses, órgãosdeinformação). b)Democracias tutelares:concentração d~ poder no executivo, apagamento do poder legislativo, dependência do poder judiciário, falta de alternância, tudo com o proclamado objectivo de conduzir o modernizantes: não existe autenregime para a democracia política. e) Oligarquias ticidade, forma constitucional nem alternância no poder, o regime é ditatorial, e o seu objectivo proclamado é o desenvolvimento económico. d) Oligarquias totalitárias:de partido único, ou chefia personalizada, sem alternância e com imposição de uniformidade ideológica, que compreendiam os regimes soviéticos das várias tendências e os extintos fascismo italiano e nazismo alemão. e) Oligarquiastradicionais:a elite dirigente recruta-se na base do parentesco e do status,tem geralmente forma dinástica, e apoia-se no costume mais do que em qualquer constituição racional-normativa. Outros autores, como Gabriel Almond e Bingham Powell, introduziram variações na tipologia sem abandonar o critério. Partindo da teoria da obediência, a qual procura determinar as razões pelas quais a regência do sistema é acatada com esporádica intervenção da força, aparecem dois grandes tipos: democracias e monocracias 270 • As democracias são regimes que se orientam pelo objectivo de estabelecer juridicamente as "técnicas da liberdade" individual, de modo que o poder se baseará no consentimento n o E. Shills, Politicaldevelopmrnti11theNeivStates,Haia, 1962. Olivier Duhamel, Lesdémocratics, régimes, histoire,éxigrnces, Paris, 1993. Antoine de Baecque (dir.), Unehistoiredeladémocratiern Europe,Paris, 199l, p. 74, onde vem o estudo de René Girault, 1989:lesrévolutionsdémocratiques, sobre o processo democrá· rico na URSS e satélites. M. Jiménez de Parga, Los régimrnes políticoscontemporáneos, Madrid, 1965. 332 OS INTERVENIENTES d 5 ficando as maiorias obrigadas a respeitar os direitos das minorias, de ro ºu;ada a alternância no exercício do poder. As "técnicas da liberdade" e :1s~eg em a uma tipologiaconstitucional,falando-se em regimes presidencialistas, ,on ~:bleiasparlamentares, ou dualistas,variantes orientadas pela mesma condeas: de vida, cujo principal texto são as Declarações de Direitos do Homem. 0 cepǪcepçãodos direitos do Homem inspira uma nova tipologia, que se orienta A~o~istinção entre garantia das liberdades formais (democracia clássica) e efec~eª ão dos direitossociais(democracia progressiva). uva~osregimesmonocráticosé eliminada a necessidade do consentimento de dos como condição de legitimidade do poder e da obediência voluntária, co luiu-se a alternância, e em vez da vontadeda maioriafala-se nos interessesda (sovietismo) ou nosinteresses maiores(nacionalismo) como fonte de legitiex~oria m~dade.A monocracia pode ter sede num chefe(regime de poder personalizado, :rno no III Reich), num partidoúnico(sovietismo, fascismo), nas forçasarmadas {terceiromundismo),numa instituição(teocracia iraniana). Quando a monocraciaimpõe uma concepção ideológica fala-se de totalitarismo,e quando apenas propõe tal concepção fala-se de autoritarismo,embora a diferença de teses não conduzasempre a hipóteses diferenciáveis. o conceito de totalitarismodeve ser aproximado dos conceitos de ditadura, despotismo, absolutismo,autocraciae autoritarismo.A palavra ditadura é empregue primeiro no sentido romano (órgão extraordinário, designado constitucionalmente, por tempo determinado, para debelar um perigo ou crise transitória externa ou interna). No sentido moderno, designa os governosdecrise,previstos designadamente no art. 48 2 da Constituição de Weimar, e transitórios; ou o conjunto de regimes antidemocráticos ou não-democráticos, segundo o modelo ocidental, sem fundamento constitucional anterior, por tempo indeterminado, sem poderes limitados pela duração e definição de uma emergência, designadamente a guerra, sendo portanto um regime ilimitado no tempo. Enquanto que as duas primeiras formas (ditador romano, governo de crise) podem chamar-se constitucionais porque derivam da lei existente e visam salvaguardar a forma e objectivos do regime que voltará à plena vigência debelada a causa da instituição, a terceira parece ter-se autonomizado com a instauração do governo da Convenção Francesa de 10 de Outubro de 1793, invoca a legitimidade revolucionária, e considera-se legitimamente em exercício até à imposição da utopia directora, assumindo portanto poderes constituintes. Neste caso, o poder não está necessariamente nas mãos de um homem (ditador),mas pode antes estar nas mãos de um grupo (convenção, assembleia, partido) ou, na pretensão teórica de Marx, nas mãos de uma classe (proletariado). A expressão despotismo,no sentido clássico de Aristóteles, designa ou a ditadura própria dos povos orientais, cujo regime era então assimilável ao da relação 333 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS entre senhor e escravo, ou a degenerescência dos regimes monárquicos oc· tais no sentido dos séculos XVII e XVIII. Servia para designar as manar Id~n9~1as de poder ilimitado, podendo embora ser um despotismoesclarecido ou despo legal,guiados pela razão e noção de progresso. Neste sentido, despotistisnio llloe . _ . . , . ab so lutismo sao praticamente smommos. A palavra autocracia, usada especialmente pelos monarcas russos, teve . nificado variável, mas designa um grau máximo de poder absoluto (autocr sig. independente dos súbditos ou de qualquer outra instituição. Autores c~ta), Hans Kelsen simplificaram a classificação, considerando autocráticostodo:º regimesnão-democráticos. O mesmo aconteceu com a expressão autoritaris os . . -d emocrático ll'lo empregue frequentemente para des1gnar to dos os regimes nao' Todavia, no uso mais corrente, fala-se de autoritarismosem oposição a totalits~ rismos,como espécies de regimes não-democráticos: os primeiros caracte ~ r1zar-se-iam por uma moderação no que respeita à mobilização das massas e , penetração política da sociedade, designadamente por aceitarem limites éticoª exteriores e superiores ao Estado, exógenos ao sistema, por exemplo a mora~ tradicional do país (católica), como se passava com o regime da Constituição política portuguesa de 1933; os segundos não aceitam tais limites éticos superiores, exógenos. Classicamente, falou-se de totalitarismoem Itália, na década de 20, para caracterizar o chamado Estadofascistaitaliano em contraposição ao Estadoliberal.A Enciclopédia Italiana (1932),e Mussolini, afirmam a novidade de "umpartido quegovernatotalitariamenteuma Nação".Na Alemanha de Hitler, para todos totalitária, preferia-se a expressão Estado autoritário, mas o totalitarismo ficou deuma ditaduradepartido,incluindo o comunista. Assim concomo a designação cluíram George H. Sabine, Carl J.Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski. Na talvez mais divulgada e aceite caracterização, que é de Hannah Arendt, o de onde deriva com absoluta certeza a totaregime totalitário tem uma ideologia lidade do curso da história, destruindo os grupos e instituições que compõem o tecido da vida privada, usando o temor como instrumento para obter a obediência, procurando traduzir nos factos a própria visão ideológica sem admitir contradição de qualquer pluralismo. Cria por isso a categoria de inimigosobjectivos,isto é, todos os que podem ser obstáculo ao desenvolvimento do projecto ideológico, mesmo que não sejam inimigos reais,isto é, os opositores conscientes à restauração do regime, e tal como aconteceu com os judeus exterminados na Alemanha e os pequenos agricultores liquidados na URSS271 • ' " HerbertSpiro, Totalitarismo,in E11ciclopedia IntemacionaldelasCienciasSociales,vol.10, 1974. Hannan Arendt, The originsof totalitarism,N.Y., 1994. Carl J.Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski, Totalitarian DictatorshipandAutocracy,N.Y., 1956. R. Aron, Démocratiect totalitarisme,Paris, 1965. 334 OS INTERVENIENTES xpressão organizativa do Estado totalitário é geralmente definida nesA emos: a) uma ideologia oficial que não reconhece validade ao pluralismo, cesternge todos os aspectos de vida do homem, sem distinguir sociedade civil , . como mstrumento . d e d omm10, , . gma. d o por um e abra ado; b) um parti "do umco e Es;eou ditador; e) a salvaguarda policial que tem como inimigos não apenas ~b;•víduos,mas grupos em relação aos quais funciona a noção de culpa abstracta 111 1 guês, judeu, agricultor) e não da culpa concreta de cada homem (inimigos (t~;ctivos); d) monopólio da informação e das forças armadas; e) serviço ceno 1.zado da economia, sob dependência burocrática; f) utilização programada 1 era, da propaganda e do terror. para Arendt, são elementos essenciais a personalização do poder (com o derivado do culto da personalidade) e o objectivo de transformar a natureza humana para obter a obediência sem réplica (os asilos psiquiátricos para internar os opositores), e apontando como exemplos apenas a Alemanha hitleriana (depoisde 1938) e a Rússia soviética (depois de 1930), enquanto que Friedrich e Brzezinski acrescentam o fascismo italiano, o comunismo chinês e os satélites soviéticos. Por seu lado, o famoso Raymond Aron caracterizava o totalitarismo pelo partido único monopolista do poder, pela ideologia que exprime a verdade oficial, e O controlo da sociedade civil pelo terror policial e ideológico. A novidade do totalitarismo, na forma que assumiu neste século, não impediu os autores de indagarem por antecedentes históricos. Assim, Neumann chamou ditaduras totalitárias ao regime franquista de Espanha e ao império de Diocleciano em Roma; o tradicional despotismo oriental, tantas vezes referido pelos clássicos, foi lembrado por Karl A. Wittfogel, assim como o regime de Calvino (1555-1564) em Genebra foi recordado por Moore. Existem traços de semelhança irrecusáveis nestes recordados modelos, mas o totalitarismo moderno tem pontos originais, designadamente a mobilização política permanente e total da sociedade civil, a transformação social imperativa,a fusão entre o público e o privado. Por outro lado, as condições do mundo moderno produziram factores que determinam as características do totalitarismo contemporâneo, designadamente: a sociedade de massas; a tendência para a criação de grandes espaços políticos; a divisão mundial consequente em vastos teatros estratégicos, económicos e ideológicos, em busca de pilotagem ou direcção política; a submissão à tecnologia; a industrialização destrutiva das antigas instituições que deixa isolados e permeáveis os indivíduos ao cimento das ideologias políticas; a constante preparação bélica; os meios técnicos disponíveis para a direcção centralizada das massas e da economia. A organização destes espaços pelo consentimento (Mercado Comum, por exemplo) é a alternativa democrática. 335 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A costumada luta semântica, sobretudo depois do início do período q foi chamado Guerra Fria, transformou a expressão totalitarismonum elemenue . . contra o ad versano, ' · e fi1couparticul to permanente d o d 1scurso e fi1cazpo l'1t1co mente abrangente dos regimes de inspiração marxista, mas o seu traço do;~nante parece ser a total indiferenciação, perante o poder político, do púbH/ e do privado, isto é, do Estado e da sociedade civil. Por isso a ideologia exciu ? vista e excludente do pluralismo, o partido único, o ditador e o terror, são el:: mentas constitucionais que permitem identificar o totalitarismo. 4. Nação e povo As palavras Naçãoepovosão frequentemente empregues como sinónimos, talvez porque as relações entre a realidade que com elas se pretende exprimir, e 0 poder político, nunca podem ser rigorosamente delimitadas, e as fidelidades que este exige não apelam sempre para os mesmos valores. Nota Shafer que, na Idade Média, um homem deveria sentir-se primeiramente cristão, depois burguinhão, e finalmente francês, em sentido inteiramente diferente do actual. A hierarquia das fidelidades foi alterada pelo tempo, ao menos no Ocidente de tal modo que a Nação se transformou num valor cimeiro determinante d~ organização política, do direito internacional, e até de orientações ideológicas. Mas continuamos a lidar com realidades chamadas globalmente Naçãoárabe, assim como Gioberti fala da Naçãoeuropeia, outros em Naçãoeslava,sem que a unidade política ou o sentimento popular cubram o fenómeno a que as expressões se referem, e na tradição americana usa-se a expressão the Nation and theStates para designar uma comunidade nacional pluriestatal embora federativa. Daqui resulta que a palavra povo tem aparentemente mais relação com a submissão ao mesmo poder político, sem que necessariamente constitua uma Nação, e esta é ainda a regra no mundo contemporâneo. O povodo Estado soberano da Califórnia é parte da Nação americana, os povosdos Estados resultantes do anticolonialismo moderno não são nações, e a Naçãoalemãesteve dividida em dois Estados com o respectivo povosubordinado a fidelidades políticas diferentes. Sendo certo que a Revolução Francesa de 1789 marca o início da importância actual do princípio das nacionalidades, a hesitação da mudança encontra-se na incerteza da linguagem com que divulgou os seus princípios. A Encyclopédie tinha proposto, no século XVIII, que a expressão Naçãodesignasse o conjunto de povossubmetidos ao mesmo governo, de modo que se tratava de uma síntese que absorvia os regionalismos culturais e políticos, problema que enfrentaram as monarquias centralizadoras, e que constitui hoje objectivo fundamental dos Estados que foram colónias das soberanias europeias. Mas a definição, nestes termos, refere-se mais a um projectonacionalque anima um programa político, do que a uma realidade cultural existente. Quando 0 336 OS INTERVENIENTES • 32 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791, afirmou 0 arug"oprincípiode todaa soberaniaresideessencialmente na Nação",provavelmente . o coniunto . d os tresestadosrepresenta d os na eonst1tumte, . . q.ueda tinha em vista um corpo moral com identidade, isto porque, nas constituições de 1793, e º:no III, do ano VIII, de 1852, se fala na soberaniadopovo,e o povo é definido doscidadãos. do1110a universalidade co O fundamental é, nesta fórmula última, a relação entre o poderpolíticoe o con, todaspessoasqueabrange,não o é a natureza das relações que eventualmente carácter nacional a tal conjunto de pessoas porque o Estado pode ser mul0 inacional, ou não corresponder a uma nacionalidade. Todavia, o princípio das t acionalidades tornou-se num princípio-guia do legado político ocidental, o nual princípio outras áreas culturais procuraram adaptar, de tal modo que se ;eivindica que exista uma relação de coincidência entre a Nação e o Estado, e apenas nessa hipótese se afirma que uma Nação é livre, em face da comunidade internacional; é um problema diferente o de saber se os seus membros são livres dentro do Estado, e aqui está a sede das questões referentes à participação na direcção política. Surgem portanto os problemas de saber o que é a Naçãoque anima o princípio das nacionalidades independentes, porque é que calprincípio se tornou dominante no legado político ocidental, e que aplicação concreta encontrou. Em primeiro lugar a filosofia liberal, que sempre hesitou entre considerar o votocomo um direito ou uma função, talvez devesse logicamente reconhecer-lhea primeira qualidade, o que significaria colocar a estabilidade e dimensão do corpo político em constante discussão, contrariando a obra da monarquia centralizadora que procurou dar realidade espiritual e continuidade histórica aos povosconduzidos para a unidade nacional, tornando permanentemente latentes asquestões dos regionalismos, e dos interesses transitórios de quem vota tendo em vist a objectivos contraditórios com a manutenção dessa unidade; o voto como função já implica o reconhecimento de um interesse comum e superior aosinteresses privativos dos eleitores, interesse comum que se trata de defender e preservar pela vontade maioritária manifestada, e não apenas de exprimir uma coligação dos interesses específicos dos votantes que formam a maioria. Esta questão não escapou a J.Stuart Mill, que concluiu: "existe uma nacionalidade onde se encontram homens unidos por simpatias comuns que não existem ent re eles e outros homens, simpatias que os levaram a agir de concerto, maisvoluntariamente do que o fariam com outros, a desejar viver sob o mesmo governo, e a desejar que este mesmo governo seja exercido exclusivamente por eles próprios ou por uma parte deles". A origem deste sentimento de nacionalidade, que dá unidade existencial ao grupo com interesses próprios exigindo um poder político nascido do seu seio, A atr\ 1;: 337 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS atribuiu-a a uma pluralidade de causas, agindo cumulativamente ou sepa mente, no todo ou em parte, designadamente a etnia, a língua, a religi;ªda. limites geográficos, a história comum, o orgulho e a humilhação partilho, 0 s . . . ados h 1stoncamente em coniunto. Podem verificar-se todos os elementos referidos sem que se manifes exigência do governo próprio, e nesse caso o fenómeno cultural não será ete ª plementado por uma vocação política de independência internacional, rnorn. revolução interna, dirigida contra o AncienRégime,também necessitou de aasa lar para uma fonte de legitimidade política, e foi na Nação, por vezes charn~;~ povo soberano, que a encontrou. O povo soberano chega ao poder, no Ocidente, pela mão de precurso res como foram Espinosa ou Bayle, e de pensadores como foram Montesquie Voltaire, Rousseau, Diderot, D'Alembert. Quando o abade Sieyes apresent/' novosoberanono famoso ensaio Qu'est-ceque/e TiersÉtat?(Janeiro, 1789),coloc: a Nação no centro da problemática política, partindo da oposição, formulada pelo abade de Mably, entre os direitosdosoberanoe os direitosda Nação,apelando para a vontade desta contra as ordens e os privilégios. A definição deste corpo histórico ficou no Ocidente, na linha formulada por Renan, com o acento tónico não na língua ou na etnia, mas sim no passado comum e na vontade de realizar tarefas colectivas comuns agora e no futuro uma espécie de plebiscito contínuo. Esta orientação subjectiva,da qual seria~ tributários Mazzini e Malraux, não foi independente do facto de ter em vista um de poder político consentido, e acentuou, na fórmula do último, "a comunidade sonhos",que o aparelho político deve servir e não contrariar. Quando, na batalha de Valmy, os soldados gritavam vivaa França,e não já vivao Rei, Goethe anotou que assistira a um facto histórico de grande importância 272 • Mas o conceito de Nação também se tornou importante, em vista da acção devastadora de Napoleão, porque os alemães invadidos e humilhados não dispunham de um poder político unitário que defendesse o interesse comum dos vários povos germânicos submetidos a centenas de soberanias. Aqui se verificou a validade do conceito do maquiavélico Morgenthau: "a Nação precisa de um Estado. Uma Nação - um Estado é assim o postulado do nacionalismo, o Estado nacional é o seu ideal". Por isso se diz que Napoleão fez nascer um novo poder ao atacar a Nação na Rússia, ao libertá-la na Itália, ao desafiá-la na Alemanha e em Espanha. Foi assim 272 Ernest Renan, Qu'est-cequ'unenation?,in Discourset confirrnces,Paris, 1887. Émile Bure (org.), Ernest Renan et l'Allemagne,N.Y., 1945. C. J.H. Hayes, The historicalevolutionof modem nacionalism,N.Y.,J93l, ne/suosviillppostorico,Florença, 1956. H. Nohn, L'ideadei11azio11alismo J.S.Mill, "Representative government", inAmericanStatePapers,Londres, 1952, cap.16, "OfNarionality, as connected with representative government", p. 424. 338 OS INTERVENIENTES Ficbte, vivendo as amarguras das guerras napoleónicas e as desventuras da qlleão alemã, abandonou as suas críticas anteriores ao princípio das naciona~aÇdes e, nos célebres Discursosà Naçãoalemã,apelou para a unidade nacional 1idaO única base de reorganização do Estado e salvação da Alemanha. corn · a' vonta d e d os vivos, . . ' . e a cu 1tura h erOs [acrores alh e10s a ongem etmca da parecem avultar na sua orientaçãoobjectivatalvez porque eram os que mais da r;ntemente permitiam quebrar as fidelidades dos vários povosalemãesem coleçãoaos váriosEstados,e ligar a fidelidade nacional a um Estado unitário e re a ficientemente poderoso. su O processo político de unificação alemã foi por este caminho, com vicissiudes várias, incluindo o racismo que no século XX daria a tónica ao nacional~socialismo,o qual ~nexou violentamente ao III Reich territórios como o dos sudetas e a própria Austria porque objectivamente os proclamavam habitados or alemães. Exactamente o contrário do preceito de J. Stuart Mill, que dizia: flogo que o sentimento de nacionalidade existe em algum lugar, há uma razão primafade para unir todos os membros da nacionalidade sob o mesmo governo que lhes pertença; isto é o mesmo que dizer que a questão do governo deveria ser resolvida pelos governados. Não se vê o que é que um grupo de homens deveriaser livre de fazer, salvo procurar com quais dos diversos grupos colectivosde seres humanos pretende associar-se". Se a Nação, quando se transforma num valor político, fica assim ligada a uma certa atitude de exclusão em relação aos grupos diferentes, não se segue que necessariamente inspire um nacionalismo agressivo. Enquanto entidade colectivacom um valor próprio, é acolhida neste divulgado conceito de Joseph de Maistre: "As nações são qualquer coisa no mundo, não é permitido ignorá-las, afligi-las nas suas conveniências, nas suas afeições, nos seus interesses maiscaros". Mas o acrescentamento jacobino da intolerância para com o estrangeiro, já em 1798 era denunciado pelo abade Barruel, que usa a palavra nacionalismo para designar a atitude que "tomou o lugar do amor geral". Então foi permitido desprezar os estrangeiros, enganá-los e ofendê-los. Esta virtude foi erradamente chamada patriotismo. Isto é diferente da consequência geralmente admitida de que uma Nação, assumindo o nacionalismo, tem o dever patriótico de se armar e de se defender contra a opressão, e não tem relação lógica ou valorativa com o nacionalismo, muito inspirado por Maurras, que coloca as minorias culturais internas em situação de desigualdade, e anima a aversão e agressividade contra o estrangeiro. Passando dos conceitos ao comportamento, como faz Albertini, identifica·se a Nação pelo comportamento dos indivíduos que possa qualificar-se como um comportamento nacional, com o que não se adianta muito sem uma prévia 339 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS definição dos critérios de referência. O critério principal é o da fidelidact uma entidade chamada Portugal, ou França, ou Brasil, acompanhada de fid~ dades a valores de outra natureza, mas primando aquela sempre sobre diver : 1• cias de grupo ou individuais, como a classe, a região, o estrato social, 0 grgen. . llpo d e mteresses, o partido. Fica ainda por definir então o valor cimeiro de referência do compor menta, o que e' Portuga 1, o que e'F rança, o que e' Bras1·1, e daqm. partem correntta. críticas actuais no sentido de fazer coincidir a Nação com um elemento ideot~ gico, subjectivamente ligado a um mito, objectivamente ligado eventualmen . d ., . te a um Esta do que proJecte o seu po er nas consc1enc1as. Esta perspectiva parece favorecer a oposição entre os jogosdopodere a po vezesnegadarealidadenacionalsubjacente, com predominância para os primei: ros, e designadamente não explica as lutas pelas independências nacionais , margem das formações políticas ideológicas, e tira ou altera o significado d~: heróis nacionais. Isto não quer dizer que a Nação não possa ser considerada como elemento de uma ideologia, em mais de um caso, mas tem de aceitar-se como uma realidade. Em primeiro lugar, como se torna evidente no processo da Revolução Francesa, mas também é evidente na evolução do Estado para centralizado e burocrático antecedendo o seu aparecimento sociológico, a formação da Nação pode ser o elemento de um projecto de apenas um sector do povo que deseja desencadear a solidariedade nacional pela miscigenação cultural e física de todos os grupos politicamente unificados (integração, aculturação, miscigenação, sincretismo), e pode ser o projecto exclusivo do poder político (projecto nacional) que tem como elemento estrutural afronteirafísica e pretende dar unidade, pela criação de um sentimento nacional, à população que lhe fica submetida. Nesta linha, como também se passa com os novos Estados de expressão oficial portuguesa, quando o regime soviético proclamava ter construído finalmente o Estadodopovointeiro(1983),estava a exibir uma pretensão dessa espécie em relação ao pluralismo nacional, cultural, étnico e religioso que há séculos existe dentro das fronteiras imperiais da Rússia. Mas os grandes construtores dos Estados nacionais modernos, usando a centralização do Estado e a destruição dos poderes feudais e dos regionalismos, pretenderam o mesmo e conseguiram fazer nascer a Nação pela transformação qualitativa das solidariedades do povo submetido ao mesmo poder. É neste sentido que se pode falar da Nação como ideologia do Estado buro· crático centralizado, parecendo todavia que não há fundamento demonstrado para entender, em vista dos exemplos de épocas diferenciadas, que a Revolu· ção Industrial criou modos de produção que exigiam a definição de mercados alargados à dimensão nacional, que assim seria o seu efeito, quando demons· .ª ° 340 OS INTERVENIENTES d mente a Nação como realidade precedeu em muitos lugares, como Portuªreferida Revolução; algumas nacionalidades modernas bem identificadas, n:il,ª a Ucrâma, · viveram . . exteriores; . i,submeti.das por po deres po 1'1t1cos outras, co!ll~0 Laos, ganharam a independência sem terem atingido a industriali' . d e po d eres mvasores . ' agranos; ' . colll ~ e perderam-na pe 1o d omm10 tam b em 0 z~çan~,como os palestinianos, perderam o território, do qual foram expulsos, ª guO efeito de se intensificar o sentimento nacional; casos como o do Reino ~7do da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, parecem traduzir a lealdade geral fidelidade à Coroa, mas sem perderem o sentido nacional de Inglaterra, de E5cócia, de Gales e de Irlanda. Se a causalidade parece ser diversificada para o aparecimento de cada fenómeno nacional, a principal parece sempre política, e tem que ver com o voluntarismo mobilizador de circunstâncias favoráveis não necessariamente económicas mas também religiosas, étnicas, de simples defesa, perante uma ameaçacatalisadora de grupos naturalmente diferenciados. ANação pode ser pois um elemento da ideologia do Estado, como se disse e está a acontecer com os projectosnacionaisdos Estados nascidos na sequência do anticolonialismo contemporâneo, todos agrários, como acontece com os Estados chamados de expressãooficialportuguesaque apenas dispõem das fronteiras físicas e da língua geral herdadas do colonializador, mas não de uma Naçãoconstituída, porque a tal modelo não corresponde ainda o aglomerado de etnias que compõem o povo respectivo. Mas aconteceu também que à Nação, como ideia de obra ou de empresa incorporada por uma comunidade que já atingiu tal forma, se agregam elementos ideológicos privativos apenas do regime eventualmente instalado, ou também participados pela comunidade. Deste modo, o racismoariano,e a missão desta chamada raça, foi adaptado pelo nazismo com as conhecidas consequênciasna Segunda Guerra Mundial, incluindo a chamada SoluçãoFinalem que se traduziu a liquidação de uns seis milhões de judeus (genocídio); o imperialismo detradiçãoromanafoi adaptado pelo fascismo italiano, com as consequências verificadas na guerra da Etiópia e na participação na Segunda Guerra Mundial; serapátriadostrabalhadores detodoo mundofoi acrescentado pelo Estado soviético ao nacionalismo russo; descobrire missionaras terrasegentesdo Ultramarapegou-seao idealismo da Nação portuguesa durante séculos; ofardodohomembranco, traduzido na obrigação de civilizar as terras e gentes conquistadas, completou o nacionalismo da Coroa britânica; transformarosAndesnumaSierraMaestrafoi o aditamento revolucionário acrescentado ao nacionalismo marxista de Cuba. As lealdades nacionais, em todos os casos, foram utilizadas pelo Estado para o desenvolvimento desses objectivos ideológicos, quer estes se tenham ou não tenham incorporado à comunidadedesonhosnacional. tíll n: 341 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Também em cada comunidade nacional os seus elementos valorizarn ct· 1 rentemente os factores que compõem o ideário nacional comum, e po . fe, Fernando Pessoa podia dizer "a minha pátria é a língua portuguesa", 08 j;~sso durante séculos se despediam na diáspora dizendo "em Jerusalém, no ano eus vem", uns falam na sua "terra de Nossa Senhora", alguns na sua "terra da dade", outros na "terra dos meus antepassados". rAssim como a Nação é um produto cultural, também acontece que a 8 r dariedade nacional desaparece, ou muda de sentido, ou perde a vocação / lo exercício de um poder político privativo e nativo. O princípio das nacion dades nunca teve aplicação generalizada e constituem uma minoria os Estadalos do mundo que correspondem ao modelo. Algumas vezes porque tal princí . e • sempre 1· . d o pe la via . b1·t·d · · a Estóniapio 101 1m1ta 1 ade em f:ace d a coniuntura, e assim Letónia e a Lituânia puderam ser independentes entre as duas guerras rnu'~ diais, mas foram absorvidas pela URSS no começo da segunda dessas guerra: sem terem podido recuperar até 1992 o estatuto anterior. ' Mas países como o Luxemburgo ou a Bélgica lograram encontrar viabilidade, o que não aconteceu durante a Guerra Fria com nenhuma das cinco nacionalidades incorporadas na Jugoslávia. Nestes casos , a Nação existe com destino político variável conforme a variação do ambiente político externo, e assim checos e eslovacos encontraram algum tempo a viabilidade querendo viver num só Estado, até à separação, tal como acontece com os cantões suíços. Mas verifica-se que a perda da viabilidade da independência, por razões endógenas ou exógenas, conduz eventualmente à morte da consciência nacional, como aconteceu com várias comunidades europeias que já constituíram Estados independentes, algumas sobrevivendo com um sentimento puramente regional dentro de grandes nacionalidades contemporâneas. Um dos problemas da evolução da comunidade internacional do nosso tempo é que as exigências e desafios da mundialização, do internacionalismo e da interdependência gerais estão a fazer aparecer afinidades novas, formais ou informais, com o nome de grandesespaços, os quais podem condicionar negativamente a viabilidade independente de várias nacionalidades, e até fazer nascer novas espécies de solidariedades que releguem para segundo plano nuns casos, e façam desaparecer noutros, a Nação até agora viável e independente no concerto internacional2 73 • li:e ª;.ª '"' Durand, Confédérationd'États et Étatfédéra/,Paris, 1955, p. 180. Guggenheim, Traitédedroitinterna· tiona/public,Genebra 1953, I, p. 582, e II, p. 583. Paul Reuter, Droit intemationa/ public,Paris, 1958, p. 436. Visscher, Théorieset réa/itésC11droitilltemationa/public,Paris, 1953, p. 445. 342 OS INTERVENIENTES oderes erráticos S,os1'xperiência imemorial da perturbação interna de um Estado, suscitada 13,cis~e ;a armada, e com ulteriores repercussões na vida internacional. É o caso pela~rra civil em que os insurgentes podem dominar partes significativas da gu ritório, por exemplo dominando portos, aeroportos e linhas férreas de ~ote:tância internacional, o que obriga os Estados a um reconhecimento de illlPºdestepoderefectivoque intervém também na ordem internacional. O fim facto ontenda levantará a questão do reconhecimento do novo governo como dac'tt'mo e o d esaparec1mento . d o antigo, . , em causa a contmm. . tu d o sem por Jeg1 ' , . d de do propno Estado. ª Embora haja uma certa discricionariedade no reconhecimento, não existe maarbitrariedade: os Estados orientam-se pela regra fluida de que "um governo uue goza da habitual obediência da população com uma razoável expectativa de permanência, pode dizer-se que representa o Estado em questão e como tal está qualificado para o reconhecimento" 274 • o mesmo acontece com um Estado que aparece de novo na vida internacional, designadamente um território colonial que se tornou independente (Angola,Moçambique, etc.), ou que se separa do domínio de outro Estado, como conseguiram várias das repúblicas soviéticas. Hoje, quando as independências seguem os trâmites fixados na Carta da ONU, designadamente os territórios coloniais que chegam à independência, o reconhecimento daquela organização vale como reconhecimento geral. A experiência da última guerra, que pode infelizmente repetir-se em maior ou menor extensão, fez surgir a figura do reconhecimento dos governosno exílio, e que representavam, para os parceiros da coligação militar, os Estados de que provinham mas que estavam ocupados pelo inimigo invasor. Foi o caso de praticamente toda a Europa Ocidental, ocupada pelas tropas nazis, e cujos países tiveram governos no exílio. Este reconhecimento poderia, como regra, ser apenas simbólico e não ter nada a ver com o poderque actua na vida internacional. Mas não é defacto assim. Por um lado a intervenção do governo no exílio é entendida como assumindo compromissos que obrigam o Estado para além da libertação e do retorno ao normal exercício da soberania. Por outro lado, foi a primeira vez que o fenóse tornou relevante no sentido de que afronteiranão reserva meno transnacional o espaço para a exclusividade de intervenção do governo que exerce o poder no território. Os meios de comunicação, designadamente a rádio e hoje a televisão por satélite, somaram-se à clandestinidade das comunicações, para tornar efectivo :" Lauterpacht , Oppenheim's i11ternatio11al la1v,N.Y., 1948, p.127. 343 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS o facto de que um povo pode ser dirigido do exterior em vários domínios ticipar em acções importantes para o esforço conjunto da guerra. 'e Par. Desenvolveu-se porém um fenómeno mais importante e com poucos dentes, que foi o método da guerrilha.Era historicamente conhecido, fora~rece. no Brasil por nós contra os holandeses que ocuparam Pernambuco e, só por e sado plo, na península Ibérica contra os franceses. Mas o movimento descoloniz:~nipodendo aliás invocar o direitoà revoltaque vinha da tradição da independê ~t, americana e que a Carta da ONU aceitou, utilizou e aperfeiçoou aguerrilha c~cia instrumento de luta, esta transformou-se em instrumento na vida internacio lllo • . que nao - pode serctnaJ' . d,ef;actopassou a ser uma categoria e o recon heczmento po l'mca 1 conhecida, mesmo que não tenha sido assumida a natureza do reconhecime esjurídico. Os grandes técnicos desta forma de combate armado foram Mao ,:-t,o lSe-tung, o general V.N. Giap, Che Guevara e Carlos Marighella. Mao concentrou-se na questão da conquista do poder interno, e por iss definiu as características da guerrapopular,tornando famosa a fórmula segund~ Procurou mobilizar as massas campoa qual "opoderestánapontadasespingardas". nesas, afirmou e demonstrou que o campo pode vencer a cidade, transformando essa gente numa "muralhaverdadeiramente indestrutível"contra a superioridade técnica do adversário. ém Giap, no Vietname, partiu da mesma premissa, estabelecendo que a guerrilha é a forma de combate conveniente para um país economicamente pobre. Trata-se de uma guerra de movimento, em que o domínio clássico do território não é fundamental, embora seja utilizada, se possível, a técnica de possuir umfoco (foquismo) de onde o domínio se espalhará como nódoa de azeite. Mas o mais importante é ter pelo menos um santuário,mesmo fora do território em discussão, para preservar a direcção, reservas, contactos e refrescamento. De resto, se o inimigo é forte, evita-se, se é fraco, ataca-se; ao armamento moderno responde-se com o terrorismo, coordenando as acções militares com as acções políticas e económicas; a linha de batalha está onde estiver o inimigo. A solidariedade internacional, por vastas áreas, ou ocidentais, ou soviéticas, ou neutralistas, internacionalizou este problema por várias razões. A questão do santuárioem território estrangeiro implica o consentimento do soberano deste território de abrigo; o Estado contra o qual a guerrilha combate não pode deixar de assumir que o fornecedor do santuárioparticipa na acção de agressão, mas frequentemente não pode cortar as relações com tal Estado por motivo de outro interesse. O reconhecimento da situação de facto implica a definição internacional de um agenteque procura, desenvolve e executa actos eficazes na ordem internacional. A questão é ainda geralmente mais complexa porque o conflito permanente entre blocos de potências implicou em regra que cada um dos lados auxiliava a 344 OS INTERVENIENTES ilha com meios técnicos e funcionais, e o facto, que facilmente se repete, goerr acionaliza mais o problema. Portugal teve experiência desta situação incerntea chamada guerracolonialque durou de 1960 a 1974. Depois, o movidora:oda UNITA em Angola herdou e reproduziu toda esta situação. Manteve 111 ejõcoque tinha condições para servir de santuário,que é a Jamba; recebeu uJll'lio de potências exteriores, mantendo representantes em mais de um país, au~teactuaram como agentesdiplomáticos de facto; conduziu aguerrilhaque, neste , • on . 1ass1ca. evoluc10nou para uma guerra c cas0Este ' méto d o d e com b ate d'a ongem, . . pe Ios caracteres que vimos resumm• d o omando, a uma forma de poder que chamamos o podererrático.Tal poder não 5 e 111necessariamente território próprio, precisa de um hospedeiro que forneça :esantuário,mas procede nos moldes de um Estado: é obedecido por largas massasda população, alimenta o orçamento de maneira violenta ou consentida, sustenta forças armadas, leva a guerra sob a forma de terrorismoa vários territóriosde Estados diferentes, tem eventualmente um projecto de estabilização finalsob a forma de Estado clássico. Éo caso da Organização de Libertação da Palestina, cujo dirigente foi recebidona ONU, foi tratado como Chefe de Estado por vários países, teve santuário na Jordânia que ia destruindo para ocupar ali o poder, e tinha o projecto de conseguir fundar um Estado da Palestina, projecto posto finalmente em execução em 1994, com negociações directas entre Israel e Arafat, dirigente dos palestinianos. O seu poder é erráticoquanto à base de apoio e à frente de combate, mas a comunidade internacional não pôde desconhecer este facto do podercom relevância internacional. O podererráticopode ter menor sistematização organizacional e projecto menos específico e algumas vezes até difícil de compreender, assumindo a formade terrorismointernacional. Sempre que um governo é obrigado a negociar comesses grupos, a estabelecer e cumprir acordos para a libertação de pessoas ou de meios e instalações técnicas, reconhece defacto um interlocutor na cena internacional. É assim o complexo mundo em que vivemos, e que não encontra expressão em fórmulas jurídicas respeitadas 275 • 6. A crise do Estado soberano Este tema está submetido, sobretudo desde 1989, a uma variação constante dos termos de referência internacionais, e parece destinado a ser um dos mais perturbantes, ao menos ideologicamente, no processo de refundação da Ordem internacional em que nos encontramos. m Adriano Moreira, CiênciaPolítica,1995, p. 211 e sgts. 345 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Por necessidade de algum conceito organizador, que sirva de guia às tações necessárias numa conjuntura de mudança, lembremos a discutíve~edi. nição operacional, da autoria de Roger Scruton, que tem sido utilizada. defi_ Este começa por afastar o conceito de Nação que chama vago, mas gen zado, e que significa "qualquer Estado soberano com autonomia política :ra)j. ritorial definida"; depois assenta em que, sociologicamente, "a Nação con ~er. st num povo, que possui uma língua comum (ou dialecto de uma língua com: e com um património de costumes e tradições, os quais podem ter sido inte ~), rizados a ponto de os considerarem obrigatórios, e que reconhece intere rio. sses . propna , . "276 . comuns e a comum necess1"dad e d e uma sob erama Tal conceito operacional abstrai, pela sua natureza técnica, das divergêncj históricas entre as citadas formulações de Ernest Renan (1823-1892)e Johan G as tlieb Fichte (1762-1814),tributários de circunstâncias ambientais diferentes~t0 discurso político mais corrente no processo internacional, e até nos d"ISCurSOS políticos internos, é aquele que Scruton afasta por vago e não-operacional, isto é, aquele que confunde a Nação com um Estado soberano com autonomia política e território definido. De facto, uma breve análise semântica quantitativa dos discursos facilmente evidencia que a avaliação da crise da velha Ordem é geralmente referida à crise do Estado-Nação e, em corolário, à crise da soberania do Estado nacional. Temos por certo que se trata de mais um dos erros induzidos a favor das necessidades e objectivos, ou da captação das vontades ou da justificação perante os eleitorados, a que o discurso político dá forma, mas que arrastam consequências que não podem ser minimizadas. O certo é que a experiência vivida, e de novo trazida para o plano dos projectos pela moderna teoria dos grandes espaços, é que as fidelidades à sede da soberania podem ter uma origem diferente da nacionalidade, que as legitimidades políticas não são necessariamente nacionais, e que as nações não exibem necessariamente a ambição de assumirem uma soberania própria e exclusiva. Por outro lado, independentemente da coacção exterior, ou da circunstância envolvente adversa, as identidades comunitárias não são necessariamente nacionais, porque esta realidade é uma criação da cultura ocidental, e a sua implantação noutras latitudes, como veremos, não se faz sem adaptações, por vezes essenciais, do modelo originário. É por isso que uma das variantes mais importantes do nacionalismo, que parte do conceito segundo o qual o Estado e a Nação devem coincidir, entende que a identidadenacionalexprime uma dinâmica acrescentada ao conceito socioló- "º Roger Scruton, 346 A dictionaryofpoliticaltlwught,N.Y., 1982. OS INTERVENIENTES • de Nação, que implica o movimento no sentido de obter e garantir uma 0 gic ania completa, e eventualmente uma expansão . · · 1·ismo e' com b at1.d o pe las d outnnas . Saber Éneste últtmo ponto que o nac10na que . róprias se chamam universalistas e se afirmam adversárias quer do parti. l quer d o 1mpena . . 1·ismo. a s1prismo nac1ona 1 cu ~a ordem definida pelo direito internacional clássico, nascido para reger o ·dente dos Estados , a primeira fidelidade mais geral do povo, base da obeoci . entao - ab so lutas, 101 .: . a d.masttca, , . que fi1cou como a travet•ncia às sob eramas ,eestrado Congresso de Viena de 1815. -!11A progressiva substituição, em regra revolucionária, dessa legitimidade pela legitimidade democrática, embora tenha implicado a generalização do uso, elo discurso político, do conceito nominativo de Nação, encontrou mais frepuente referência, embora não certamente mais clara, na vontadedopovo dos q liberaise contratua 1· 1stas. Aextinção da velha Ordem, simbolizada na queda do Muro de Berlim, deixou um mundo no qual as identidades políticas obedecem a várias legitimidades e modelos, tudo o contrário da proclamada malha dos Estados nacionais. Avultam alguns grandes poderes - EUA, Alemanha, Japão, Rússia, China - e dificilmente pode dizer-se que todos correspondem ao modelo Estado nacional, tantas são as minorias internas que se chamam nacionais, ou os grupos étnico-culturais submetidos ao Estado sem consentimento. tendencialmente conglomeDepois, temos o fenómeno dos grandesespaços, rados de nações, ou grupos étnico-culturais, ou regiões que não se definem pela identidade da população, e que ainda não constituem Estados no sentido clássico, mas assumem um protagonismo político de nova invenção e de que são exemplos as Comunidades Europeias que evoluíram já para a União Europeia, pelo Tratado de Maastricht. O resto do mundo que os europeus criaram, porque foi obra dos soberanos europeus a engenharia política que ali se consolidou, é um mostruário de Estados não-nacionais: a América Latina com poucas excepções, o Médio Oriente decretado pelas concorrências ocidentais, o desagregado império soviético, a África negra onde a herança colonial das fronteiras constrange as comunidades tribais no sentido de evolucionarem para aceitar o Estado que exibe um projectonacional. De tudo resulta que o Estado-Nação, ambicionado por se ter demonstrado, historicamente, como o modelo mais capaz de mobilizar as solidariedades e de apoiar os projectos de futuro colectivo, ocupa um espaço reduzido no sistema das relações internacionais. Talvez por isso seja mais exacto dizer que a Nova Ordem se defronta com uma crise do Estado soberano, que sempre tem um povo, e não afirmar apres347 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS sadamente que está em crise o Estado nacional. Não se pode tomar a Par todo, sobretudo tendo em vista, neste fim de século e fim do último i te~ela europeu, a revolta das comunidades submetidas que pertenciam aos povo~Perio do mundo, e que levou alguns observadores a falar também genericarne tn"do1 . das naczona . fI'dades,com o seu correio . d e 1· ' . fundarnnte na vingança 1mpeza etmca, lismo, racismo e xenofobia. enta. A crise do Estado nacional tem porém alguma realidade, certamente · d o mundoPreo. . . d o espaço ocupa d o na geogra fi1apo l'mca cupante, e o seu 11m1ta _ está necessariamente ligada à crise internacional do Estado soberano. nao Talvez a racionalização do fenómeno possa começar pela distinção e cidadão activo e cidadão passivo do constitucionalismo liberal, o qual rern:tre , ... mmonas etmco-cu ,. l.tura1s para o mesmo cong l omera dd' teu_ vanas o as mcapacid des políticas. O movimento das independências novecentistas do continen ª americano, animado pelo exemplo anterior dos EUA, todo foi exclusivamen;e de europeus emigrados, muitos legalmente deportados, e todos responsávei: pela expropriação dos territórios aos nativos, e pela extinção tantas vezessistemática desses aborígenes 277• Quando, no Inverno de 1831, Alexis de Tocqueville se encontrava em Memphis, Tennessee, escreveu sobre os índios escorraçados das suas terras: "os índios levaram consigo as suas famílias, e incluíram na sua caravana os feridos e os enfermos, com os meninos recém-nascidos e os velhos à beira da morte"; "três ou quatro mil soldados empurraram à sua frente a vagabunda raça dos aborígenes. Vêm depois os pioneiros brancos que atravessam os bosques, espantam os animais de caça, exploram os cursos dos rios interiores e preparam a marcha triunfal da civilização através do deserto." Aconteceu que os índios eram espoliados "com estranha comodidade, tranquila e legalmente, filantropicamente, sem derramar sangue e sem violar um só dos grandes princípios morais aos olhos do mundo"; pareceu-lhe impossível exterminar com "mais respeito pelas leis da Humanidade" 278 • O impériodabranquidade, incluindo a construção do império russo em direcção às profundidades da Ásia, teve as mesmas frequentes consequências, e recorreu a métodos não muito variados, em todos os lugares que considerou vazios de poder legítimo. Todavia, não apenas a evolução cultural e da economia, mas sobretudo os aspectos específicos da emigração e dos desiguais movimentos demográ· de Tocqueville, De la démocratiew Amérique,2 volumes, Paris, 1961, continua a ser um documento indispens:ível sobre as origens e desenvolvimento da democracia americana. 178 Ver Paul Johnson, E/ 11acimirnto deimundomodemo,Buenos Aires, 1992, p. 209 e sgts. Walter La Feber, The 11rn >empire: a11i11terpretation ofAmerica11 expansio11, 1860-1898, N.Y., 1963. William A. Williams, The rootsof the modernAmcrica11 empire,N .Y., 1969. 277 Alexis 348 OS INTERVENIENTES estão a obrigar à revisão do conceito e da realidade do Estado nacional ftcos, , ários pa1ses, a começar pe 1os EUA. c!ll;s independências foram baseadas na convicção, proclamada pelo venedo Jefferson (1743-1826) de que, pela vontade de Deus, chega um dia em rao um povo tem o direito de reivindicar um lugar igual e separado na comuque _ ·dade das naçoes. 01 Mas esse povo, em todo o continente americano, foi apenas o dos europeus igrantes, e seus raros assimilados, a longa mão do império da branquidade c!lleem muitas latitudes, designadamente no Brasil, se proclamou nativa conq: a metrópole longínqua. cr Neste fim de século, os EUA defrontam-se com a hispanização da sua sociedade, e já não podem, nem legal nem realmente, considerar os negros como apeculiar institutiondos Estados do Sul a que se referiam nos trabalhos constitucionais. Teminteresse, agora que tanto se menciona a crise do Estado nacional, recordarque a Nação foi então a que proclamou a independência. O conceito parece que se tornou claro durante o Grande Debate do Missouri, que se desenrolou entre 8 de Dezembro de 1919 e 26 de Fevereiro de 1821, dando origem ao famoso do Missouri". No seu diário escreveu John Quincy Adams, em Fevereiro de 1820, que, no Congresso, "os oradores mais eloquentes" estavam "do ladoesclavagista", e Monroe, na mesma data, em carta para Jefferson, escreveu: "nunca vi um problema que ameace tão gravemente a tranquilidade e inclusivamentea manutenção da União, como este." Foi observado por Paul Johnson, que o uso da expressão peculiarinstitution,destinada a evitar a clara referência à manutenção da escravatura, marcou um novo estilo do discurso político: "a utilização de eufemismos haveria de tornar-se numa característica do mundo moderno que estava a nascer, e em nenhuma área se utilizou mais assiduamente do que na defesa sulista do trabalho escravo." Aconteceu portanto que os europeus, e apenas eles, ligados por interesses comuns e pela revolta anticolonialista, puderam encontrar-se na situação que Jefferson invocou para legitimar a independência, e essa realidade nacional talvez não possa ser posta em dúvida durante a longa caminhada que levou os EUAà majestade de superpotência 279 • Todavia, analistas que tornaram actuais os temas da decadência e do fim da História julgam-se obrigados a discutir a questão de saber se os EUA não são já um Estado pós-moderno, distinto do modelo que actuou na cena internacional entre 1890 e 1960, de Theodore Roosevelt até John Kennedy, com o :.... P. Lellouche, Le nouveaumonde:del'ordredeYaltaaudésordre desNations,Paris, 1992. L. La'idi, L'Ordre mondia/ re/âché.SensetpuissanceapreslaguerreJroide,Paris, 1992. 349 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS seu ponto mais alto na Segunda Guerra Mundial, e a maior liderança nas mde Franklin Roosevelt. No conceito que propõem, a dimensão cultural já ª~s é caracterizada por escolas comprometidas com a tarefa da educação das ;ao . sas e com a a1ta cu 1tura, porque se tornaram dommantes os massmed"za,cria asd uma n?v~ cultura pop_ular_inte_rnacional;a dimens~o mi~i~ardeix?u d~ se ªP~ia~ em exerc1tos convenc10na1salimentados pelo serviço m1htar obngatorio, e e , st · 1· - econón..• ª · e qua d ros espec1a agora a cargo d e tecno 1ogias 1zad os; a dº1mensao . •111ca perdeu o modelo do mercado nacional, e desenvolve-se em operações multinacionais para um mercado global. Nesta percepção, toda ela tributária da mundialização característica d época, a principal observação é porém, supomos, a que se traduz em afirma: que os Estados Unidos já não são um Estado-Nação. Talvez nunca o tivesse sido completamente, nem quando eram uma sociedade moderna. De qualqu: modo, desde 1960, progressivamente tornaram-se menos uma Nação e mais uma sociedade multicultural. Talvez a já referida hispanização, a chegada de negros e porto-riquenhos à cidadania activa, sejam fenómenos que estão relacionados com a mudança, dando um sentido novo à tradição federalista. Também no Brasil foi possível afirmar que os negros são a parte não integrada da Nação brasileira, mas a situação geral dos índios que sobram na América do Sul reconduz-se a essa mesma questão da falta de integração nacional de grupos reduzidos, durante séculos, à situação de povos mudos do mundo, e que agora recuperam a sua voz interna, dentro do quadro de Estados que apenas foram nacionais por referência à etnia que se reservou fornecer os cidadãos activos 280 • Este aspecto do fenómeno do povo multicultural de uma superpotência torna bem evidente que a crise do Estado nacional e a crise do Estado soberano não se confundem, nem são necessariamente interdependentes. A crise do Estado soberano no espaço europeu parece conduzir para um grandeespaçode modelo político multicultural, ao mesmo tempo que Estados multiculturais europeus, como a Checoslováquia, se fraccionam, estão em processo de dissolução como a Jugoslávia, ou revelam fracturas importantes como a Itália ou a Espanha. O elemento sempre comum, e em crise, é o da soberania, que varia em termos de responder às exigências tanto dos Estados multinacionais ou multiculturais, como às dos raros Estados nacionais, mas em nenhum caso parece ser capaz de manter a definição que lhe foi dada para fundar o Ocidente dos Estados. '"ºElise Manienstras, Nous/epcuple. Lesorigi11es du 11atio11alisme américain,Paris, 1988. Claude Fohlen, L'Amirique deRoosevelt,Paris , 1982. Paul Kennedy, Naissanceet déclindesgrandespuissances,Paris, 1989. pluralismand civicculture,Middletown, 1990. Lawrence Fuchs , TheAmericanKaleidoscope: 350 OS INTERVENIENTES rise do Estado soberano, não obstante o fim da velha Ordem, parece 13scaC . volver-se em termos de pretender manter o consentimento dos povos desenfundamento da legitimidade das mudanças, repudiando a conquista, cofllºe são exemplos Goa, Timor e o Koweit, embora não possa esquecer-se a deq~dinação da justiça ao normativismodosfactos. 5tl b~esta força normativa dos factos cabe a perda de capacidade do Estado para lizar os objectivos para os quais tal entidade foi inventada. Algumas sobre~ªências históricas, como Andorra, o Mónaco ou São Marino, podem servir de viv rência para ava1· · • · crescente d o mo d e1o d e Esta d o ex1guo, ' 1ara 1mportanc1a que 6 reerostambém chamam PotiemkineStates,envolvidos num jogo de let'spretend. 0 ut Teoria do Estado exíguo : Quando a aventura napoleónica recebeu um ponto final em Waterloo, o mais 1 eminente dos construtores da Nova Ordem, que foi Metternich (1773-1859), figura dominante do Congresso de Viena de 1815, definia os seus conceitos operaciona~se ~nuncia~a a estratégia dominante a partir de uma longa experiênciada vida mternac1onal. Tinha representado um pequeno poder político, o dos Condes de Westphalia, no Congress~ de Rastadt em 1797, subira de perspectiva ao negociar a aliança de 1805 da Austria, da Prússia e da Rússia, contra a França, e, entre 1806e 1809, estudou o futuro adversário na qualidade de embaixador da Áustria em França. Coube-lhe a responsabilidade de conduzir a política externa austríaca no decurso da campanha imperial de Napoleão, vindo a ser o ideólogo da Santa Aliança responsável por um novo modelo da relação entre as soberanias. Nas Memoiresde 1844, formulava o seguinte conceito-chave do sistema: "Como não existe um Estado isolado ... não devemos perder de vista a sociedade dosEstados,esta condição essencial do mundo moderno. Cada Estado tem, para alémdos seus interesses específicos, outros interesses que são partilhados, quer com todos os outros Estados reunidos, quer com simples grupos de Estados. Os grandes axiomas da ciência política derivam do conhecimento das verdadeiras políticas de todos os Estados: é sobre estes interesses gerais que repousa a garantia da sua existência". Adversário dos chamados nacionalismos alemães, nesse século em que des pertaram as vocações das comunidades agredidas pelos exércitos da Revolução Francesa, o Estado soberano foi o seu valor de referência, e não lhe ocorreu fazer derivar a sua legitimidade da coincidência entre a Nação e o Estado. Parece mais leitor do Conde-Duque de Olivares, certamente presente nas memórias da Casa de Áustria, e que em 25 de Dezembro de 1632 escrevia a Filipe IV o seguinte: "o negócio mais importante da nossa Monarquia é que Vossa 7 351 TEORIA DAS RCLAÇÔES INTERNACIONAIS Majestade se faça Rei de Espanha. Quero dizer, Senhor, que Vossa M:aje não deveria dar-se por satisfeito com ser Rei de Portugal, de Aragão, de Val:~ª?e e Conde de Barcelona, mas trabalhar abertamente e em segredo para rectCt~, esses reinos de que a Espanha é composta ao estilo e leis de Castela, se Uzir haja qualquer diferença no aspecto das fronteiras, dos postos aduaneir: 9Ue poder de convocar as Cortes de Castela, de Aragão e de Portugal sempres,do desejável, e a nomeação sem restrições dos ministros das diferentes naçõque Se Vossa Majestade fizer isso, será o príncipe mais poderoso do mundo"2a1es... Parecendo exacto que a agressão francesa despertou os nacionalismos · nova força estruturante na ordem internacional, o Estado-Nação não foi o,vUra fundamental da nova ordem, e teria de esperar pelos 14 Pontos de Wilsonª or rescaldo da guerra de 1914-1918,para receber uma consagração directiva m'no , as não absoluta. Não faltam pela mesma época continuadores da doutrinação dos Projectistas da Paz, bastando recordar Benjamin Constant (1777-1830), firme adversário do militarismo ou democrático ou totalitário, e portanto da soberania agressiva, sustentando que "o fim único das nações modernas, é o repouso, com este a abundância, e, como fonte da abundância, a indústria. A guerra é cada vez menos o meio mais eficaz de atingir tal fim" 282. A referência à Nação continuaria equívoca até aos nossos dias, usada certamente pelo geral reconhecimento do seu valor especial, mas significando mais vezes o povo objecto da soberania que identificava cada Estado, do que uma comunidade que correspondesse à identidade nacional. O Estado soberano é que foi o paradigma da nova ordem, as fidelidades em que assentava eram de mais de uma espécie, incluindo um projecto de vida comum, a comunhão na fé, a vinculação dinástica, e superioridade racial, o serviço de uma classe, com vozes justificativas que faziam da razão de Estado o paradigma do arbítrio das soberanias. 2. As identidades dos grupos culturais submetidos à soberania de um Estado não foram sempre ignoradas e portanto também a identidade nacional teve um papel na logística dos Estados plurais que constituem a regra da organização internacional. Os impérios que morreram com a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918, designadamente o Império Austro-Húngaro, foram exemplo dessa circunstância corrente, e o Reino Unido só neste fim de século começou a dar mostras '"' J.H. Elliott e J.F.La Pena. Memoria/esy cartasdei conde-duquede Olivares,Madrid, p. 95. m Benjamin Constant, De l'Espritde Conquete,Paris, 1813. 352 Alfaguara, 1978, OS INTERVENIENTES sido atingido pela fadiga o enquadramento monárquico das suas três de rer . nalidades. pac: dinâmica imperial europeia no século XIX, mantendo a lógica do patri, iode experiências imperiais do Ocidente desde os romanos, não mostrou ~ººrepâncias, entre as democracias da frente marítima em expansão, quanto discbJ. ectivo de submeter povos, culturas, etnias, a uma fidelidade igual à sobeªºº ia conqmstadora. . ranO Estado soberano foi o actor das relações internacionais progressivamente nsformadas no tecido de malha apertada das dependências e interdepenr;ncias, em termos de a frequente conflitualidade armada ter levado os teoriadoresmodernos, como Aron, a concluir que a guerra é o facto autonomizador ~a disciplina científica correspondente. O incontornável Max Weber (1864_1920)tinha ensinado que "todo o Estado é fundado sobre a força", disse um diaTrotsky em Brest-Litovsk. Com efeito, é a verdade. Se não existissem mais do que estruturas sociais sem qualquer violência, o conceito de Estado teria desaparecido e não restaria senão o que chamou, no sentido exacto do termo, a".A violência não é evidentemente o único instrumento normal do Estado issonão é duvidoso - mas ela é o seu meio especifico" 283 • Os totalitarismos, em todas as latitudes, e não apenas na Europa do nazismo, do sovietismo, tornaram esdrúxulo o valor da soberania, com os seus valores, muitosdestes organizados tendo por vector principal a nação e o nacionalismo, umasemântica que frequentemente não tinha correspondência no pluralismo étnico, cultural, religioso, do povo acantonado dentro das fronteiras que se queriam invioláveis, tornando insulares as jurisdições internas. O Estado forte era o tipo de referência, o que na ordem externa significava,muitas vezes sem fundamento, a capacidade de impedir a proeminência de um poder externo dominante, e internamente uma capacidade de obrigar sem desafios, num crescente de intervenções nas áreas da segurança, da cultura, da justiça, do desenvolvimento. A autonomia estratégica foi a escala de referência da inevitável hierarquia das potências, que a domesticação da energia atómica completou com a criação contemporânea da majestade das superpotências. Deste modo, a balança de poderes, que até à Segunda Guerra Mundial foi europeia, era a melhor garantia da paz, e a percepção da soberania como um poder indivisível, e também não analisável em componentes, era a corrente. Tal Estado soberano foi-se afirmando pela absorção de entidades políticas múltiplas, simplificando os actores da vida internacional, impedindo a multiplicação pelo exercício do modelo do império em todas as latitudes para onde '1J Max Weber, Lesavantet lapolitique,Paris, 1959. 353 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS se expandia o poder dos responsáveis pelo que o estatuto do Tribunal 1 cional de Justiça (art. 38º/l) chama "os princípios gerais de direito rec nterna. dos pelas nações civilizadas". ºnhecj. A época dos impérios da frente marítima europeia, que alcançou O seu alto entre a Conferência de Berlim de 1885 e a derrocada causada pela gu Ponto erract 1939-1945, teve o Estado soberano como modelo observante, o império e paradigma do triunfo supremo do modelo, a supremacia estratégica lll c~'.11° pela capacidade militar. e 1da Foi esta supremacia estratégica, medida pela capacidade de domesti · nuc 1ear, que ongmou · · • d e d as superpotenc1as, • · e deu ecara energia a nova maiesta , ter à Ordem dos Pactos Militares que teve o seu ponto final com a quedar~cª 0 Muro de Berlim em 1989, e a dissolução do império soviético. 3. Esta subida aos extremos do modelo do Estado soberano, que termin deixando uma única superpotência, os EUA, em crise de solidão no vasto de~~ fio do globalismo, também foi acompanhada, de acordo com a lógica da lei; complexidade crescente, pelo desagregar das grandes unidades imperiais da: democracias europeias, pela multiplicação dos actores intervenientes nos fora internacionais, e finalmente pela crise do Estado soberano, talvez erradamente chamada crise do Estado nacional em consequência dos equívocos que rodearam este qualificativo nobilitante. A evolução e descrédito do Estado soberano, que foi o garante da liberdade do mercado entre os ocidentais, o gestor da economia na área soviética, oresponsável pelo desenvolvimento no Terceiro Mundo, foram sublinhados vigorosamente quando em 1996, no tradicional discurso sobre o Estado da Nação, 0 Presidente Clinton proclamou "o fim do Estado forte", porventura o primeiro anúncio de que os EUA também encaram a revisão da logística da República Imperial, como lhe chamou Aron. Talvez a primeira alteração, em ordem de importância naquilo que respeita à vida internacional, tenha sido a substituição da balança de poderes ocidental pela balança de poderes mundial, agora completamente desequilibrada pelo desaparecimento da Ordem dos Pactos Militares ao fim de meio século de vigência, mas um desequilíbrio que não implicou substituição de parceiros, traduziu-se antes num buraco negro que ameaça as resistências e capacidades da superpotência sobrevivente, ao mesmo tempo solicitada para o exercício dagendarmeriemundial,e repudiada pelos múltiplos e diversos poderes que lhe temem o controlo. Na medida em que esses múltiplos poderes ainda possuem base política territorial, vão compondo as debilidades pela agregação em grandes espaços, os quais, pelo método da subsidiariedade, quando é o consentimento que preva354 OS INTERVENIENTES tendem para o exercício de funções que foram antes do Estado soberano, Jece, se passa com a União Europeia. co~~lvez se trate apenas de um conflito inerente ao tempo tríbul? de todas . stituições, o facto desses grandes espaços tantas vezes ressuscitarem, no 1 as :esso de formação, os apelos à grandeza, a uma espécie de patriotismo do pr~cdvo, substituto do que foi inseparável da soberania estadual, como a União coeopeia fez na crise do Golfo, na crise do Kosovo, e faz na discussão sobre o r:ur jectado pilar europeu da defesa. proDe qualquer modo, o tambor e a bandeira tendem para mudar de ritmo e de r porque a defesa e a segurança dependem de um conceito mundializado em ~:;ca de apoio institucionais, e parecem fora do tempo os Estados que sacrifi caramO desenvolvimento à busca de uma posição entre as potências nucleares, ara de facto alcançarem o estatuto de perturbadores e não o da supremacia. p Esta situação equívoca tem expressão no facto de que os conflitos armados nãopararam no último meio século, mas também não houve uma declaração deguerra. Todas as alterações que de algum modo são corolários da transformação da balançaocidental de poderes em balança mundial, se reconduzem afinal à mundializaçãodas dependências e interdependências, e à exigência da globalização dasgestões, sem Estado, para além do Estado, e também com o Estado . Como sublinhou lucidamente Alain Touraine, no modelo internacional dos Estados soberanos, "o poder estava nas mãos dos príncipes, das oligarquias, daselites dirigentes. Definia-se como a capacidade de impor a sua vontade aos outros, de modificar os seus comportamentos. Esta imagem do poder não corresponde à nova realidade. O poder está em toda a parte e em parte alguma: está na ponderação, nos fluxos financeiros, nos modelos de vida que se generalizam, no hospital, na escola, na televisão, nas imagens, nas mensagens, nas próprias técnicas ... O grande problema não é "tomar o poder": é recriar a sociedade, inventar de novo a política para impedir a luta cega entre os mercados excessivamente abertos e as comunidades muito fechadas e a desagregação das sociedades onde cresce a distância entre os incluídos e os excluídos, os in e os out"284 • Existem redes transfronteiriças de capitais, da informação, das religiões, do crime, da defesa, que organizam centros de poder difusos ou formalizados, ao mesmo tempo que no interior dos velhos Estados se multiplicam as regiões, as descentralizações, as seitas, os corporativismos. 21 ' Alain Touraine, Lettre à Léo11el, Miclzel,Jacques,Martine,Bernard,Dominique... et vous,Paris, 1995, p.36. 355 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Talvez tenha de admitir-se que o conceito weberiano do Estado como d · 1encia • · 1eg1t1ma ' · d entro d e um espaço terntorial · eten· tor d o monopo'1·10 d a v10 tector da jurisdição interna, não corresponda à realidade da multiplic Pr~. de poderes que se cruzam e o limitam. Por isso tem fundamento que Be,tº Buli, na época da globalização, fale de uma "forma neomedieval da ordem tica universal" 285 , numa linha de pensamento em que se encontram Gictdº 1· Guéhenno, Held, e o autorizado Castells 286 • ens, Todos parecem admitir que, seja qual for a doutrina adaptada sobre a ori do Estado, a teoria do Estado soberano tem por quadro de referência a Nag~rn e por isso falam da crise do Estado nacional. Admitindo que tem fundamtº• a observação de que essa formulação confunde o conceito de povo com O /to ceita de Nação, de facto o acordo será sobre a crise do Estado soberano q:nno que respeita à capacidade de gestão interna, quer no que toca à capacida;r e . . 1 de gestão mternac10na . No que concerne à primeira, a dissolução dos impérios que multiplicaram as independências, a desagregação dos Estados multinacionais, a reivindicação do regresso de competências aos Estados federados em detrimento do Estado federal, as regionalizações ou as zonas especiais, tudo parece encaminhar para reconhecer ao valor da identidadeuma precedência sobre o valor das fidelidades verticais à soberania, o que significa que a crise é do Estado soberano e não do Estado nacional. Mas é sempre portanto a crise do Estado, tal como o identificou a percepção maquiavélica, que está em curso, num fim de século que viu aparecer um número de Estados sem precedente histórico, definindo uma teoria longa de reivindicações de independências que parecem orientadas pelo velho modelo. Todavia, sendo as identidades que avultam como valor cimeiro das reivindicações, a nova hierarquia das potências parece ter como critério orientador, tal como é proposto por Castells, "a capacidade de controlar o instrumento que são as redes mundiais em nome das identidades específicas", enquanto que os valores mundiais pretendem "submeter todas as identidades para alcançar os objectivos utilitários transnacionais" 287• Trata-se certamente de uma nova percepção do poder, que deixou de ser visto como uma realidade polifacetada mas densa, para se analisar em componentes separáveis. Por isso não estamos perante uma balança de poderes, mas de balanças de poderes que funcionam conforme as conjunturas, e rareiam os Estados que ? 285 Hedley Buli, The anarchicalsociety,Londres, 1983 . Manuel Castells, Lc pouvoirde/'ídentíté, Paris , 1997. 287 Lug. Cir., p. 369. 281 ' 356 OS INTERVENIENTES balll lugar em todas elas, ou sempre com a mesma hierarquia. Servindo de ceflmplo, a posição do Japão na balança económica não tem réplica na balança e1'~• ar assim como a presença da União Indiana na balança militar não tem 11t ' 1111 ' • , !ica na balança econom1ca. rePEnquanto que, na vida interna, os laços do poder com a sociedade tendem, países desenvolvidos, para a contratualização, colocando o consentimento 5 no lugar da imposição, na vida internacional os factores exógenos tendem para fl~balizar os constrangimentos do ambiente, reduzindo em alguns casos a g ~iga soberania à mera capacidade de representar a identidade, como aconaflcecom alguns pretendingstatesdo Pacífico. te Em síntese, à medida que é a marcha para a mundialização das dependências interdependências, que faz apelo à globalização das gestões, o Estado sobe:ano é compelido pelos factores exógenos do ambiente a redefinir a soberania, a contratualizar as relações com os centros de decisão emergentes, a multiplicar as balanças de poder, a seleccionar as capacidades que reserva, a transferir parcelas do poder, a alienar áreas de gestão, medindo a exiguidade pela diminuição da área em que tais factores exógenos não lhe deixam outra escolha. Asimples representação directa da identidade, perante a comunidade internacional, parece ser o conteúdo residual da capacidade do Estado exógeno. Esta condição não tem relação necessária com a natureza nacional do povoenvolvido, mas é difícil admitir que alguns Estados-Nação não venham a ser afectados pela degradação dessa relação entre meios disponíveis e finalidades. Na previsão do citado James Kurth, que não inova em relação à doutrina mais generalizada sobre os grandes espaços em formação ou existentes, para muitos Estados "as efectivas organizações, porque são elas que efectivamente actuam nas áreas da cultura, da segurança, e da economia, serão os globalmedia, as forças militares, e as empresas multinacionais, que se projectam a partir dos países pós-industriais e industrialmente avançados". A talvez humilhante, mas realista distinção entre construtores (makers)e aproveitadores (takers)da história, já não atende sequer à clássica hierarquia das potências, que sempre se verificou não obstante a proclamada igualdade dos Estados. Agora, também é necessário contar com as empresas multinacionais de todas as matrizes, as quais, em regra nascidas da iniciativa da sociedade civil dos grandes Estados, como que desmontam o Estado à medida que desenvolvem uma filosofia política original. Muita da doutrinação da paz pelo consenso, da livre empresa, da livre circulação das pessoas, mercadorias e capitais torna impossível montar uma política industrial, uma política financeira, uma política de defesa, uma política cultural, baseada na soberania clássica ou entregue aos órgãos tradicionais da soberania do Estado. 357 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Em resumo, a crise do Estado soberano é o principal desafio político d fim de século, e o modelo político a reinventar não afecta o valor da 'N e~te obriga sim a rever os modelos políticos para responder simultaneamente:~ª?• valores essenciais: o respeito pelasidentidadesnacionais,étnicase culturais,e a D 018 d D · · d u ec/a. raçao os 1re1toso nomem. Os povosmudosdomundo,os povostratadoscomodispensáveis, os povossubmetid ainda não sendo Nações, todos dinamizam o fenómeno recente que foi charn ~s• 0 a vingançadasnacionalidades. O que significa que o valor da Nação perman:c O que não permanece é a funcionalidade do Estado soberano, que não é s e. pre a resposta procurada para a defesa da identidade nacional. elll- § 2º AsInstituições Internacionais 1. As estruturas das instituições internacionais O Ocidente dos Estados, mesmo referindo-nos apenas à Europa, viveusem qualquer instituição internacional que correspondesse à necessidade de tornar 0 diálogo colectivo e permanente, ou de cooperação ou, finalmente, de decisão. Para enfrentar circunstâncias excepcionais, convocaram-se grandes reuniões a que geralmente se chamou Congressos (Congresso de Westefália, Congresso de Viena), designando-os pelo nome da cidade onde se reuniam. Mas, obtido 0 resultado, que em geral dizia respeito ao traçadodas fronteirase equilíbriodeforças,supunha-se que a estabilidade estaria assegurada por um período longo, e o Congresso dissolvia-se. A complexidade crescente das relações internacionais e as muitas dependências progressivas foram apontando para a institucionalização, a princípio informal, por que se traduziu, na Europa, no aparecimento de um Directório, isto é, o concerto de várias potências que assumem de facto o poder directivo da comunidade em vários domínios. A aventura napoleónica levou à formação da chamada Santa Aliança,que coligou as monarquias legítimas,contra o Imperador, incluindo a Inglaterra, a Prússia, a Áustria, a Rússia, depois a França e Estados menores. Esta Santa Aliança, que ideologicamente se erguia contra o ideário da Revolução Francesa e defendia o legitimismo tradicional e a concepção cristã da vida tal como a entendiam, para além da acção militar usou o método dos Congressos para acertar a política: Congressos de Troppau, Laibach, Verona, e até determinou intervenções armadas em Nápoles e Espanha para defender o legitimismo. O facto é que o sistema definido pelos Acordos de Paris de 26 de Setembro 358 OS INTERVENIENTES 5 e 20 de Novembro de 1815 teve origem na Rússia de Alexandre, onde, 181 de 84, Nicolai Novikov publicou uma obra afirmando ser "o Czar o vigário 17 efJlCristo na Terra". Aqui está a origem da Santa Aliança, da qual Alexandre de eveu: "é a obra imediata de Deus. Foi ele que me elegeu seu instrumento. ~sc~rele que realizei esta grande obra" 288 • Não importa ver agora a história da EPta Aliança, nem do Congresso de Viena que reorganizou a Europa depois san - mas apenas notar como a tecmca , . do D'1rectono , . (cond queda de Napo 1eao, ªrto de um restrito número de países), que aqui foi a chamada Pentarquia, cearece para respon d er a' crescente mter · d epen d'enc1a . e a' f:a 1ta d e uma auton-. 1 ap . dade supranac10na . ourante o período de supremacia nazi na Alemanha, fazia parte do seu pro·ecto assumir a função de Estadodirectorna Europa, admitindo essa função para ~ Japão na Ásia, e tudo terminou com a derrota de 1945. A doutrina americana do bigstick é uma forma de assumir a função de Estado director. A doutrina da soberania limitadaque Brejnev enunciou para definir a situação dos satélites em relação à URSS, no Pacto de Varsóvia, é uma afirmação de Estadodirector. Emvez de um grupo de países, um país assume a supremacia directora, usando a hierarquia do poder. Aliquidação da Santa Aliança, à qual Jacques-Henri Pirenne chamou "organizaçãoeuropeia da paz mundial", deu-se sem que tenha havido um corte formal. o último Congresso foi o de Verona de 1822289 • Todavia o seu desaparecimento deixou em funcionamento uma espécie de concertoeuropeuque Lenine identi290 ficaria com as grandes potências industrializadas ao escrever o Imperialismo • o mecanismo informal da cooperação herdado permitiu gerir uma Ordemrelativamente estável durante um século. Mas os processos eram os encontrosentre responsáveis, e a diplomacia. Não havia um mecanismo institucional. As primeiras instituições permanentes aparecem justamente no domínio das comunicações:União Telegráfica (1865) e Postal (1874),Convenção Europeia do Danúbio (1856),e a União para a protecção internacional da propriedade industrial (1833). Limitadas a questões técnicas sem afectarem os interesses que os Estados então consideravam vitais, não foi talvez previsto que a cooperação técnica era a primeira fase para a cooperação política institucionalizada. O Tratado de Paz assinado em Versailles, pondo fim à guerra mundial de 1914-1918,incluiu nos seus preceitos 26 artigos, o Pactoda SociedadedasNações. Era a institucionalização de um organismo destinado a salvaguardar a paz e a observância do direito internacional. Assim nasceu também o estatuto do Tri288 ln LegadoPolíticodo Ocidente,cit., Celso de Albuquerque, A SantaAliança,p.138 e sgts. Celso Albuquerque, cit, p. 141. 290 Lenine, L'Impérialisme,stadesupreme du capitalisme,Paris, 1956. 289 359 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS bunal Permanente de Justiça Internacional (artigo 14 do Pacto) e da Organi ção Internacional do Trabalho (artigo 38). Uma convenção da mesma data (19:a9 instituía a Convenção Internacional da Navegação Aérea, e depois foi criado ) Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (1924). Os secretariados _0 8 0 . . /d esenvo lve-se, os serviços . . t·ismomternacwna permanentes, um fiuncwna aum ª tam de ritmo, a autoridade das instituições vai crescendo. Nasce uma redee;relações internacionais que é sobreposta à ideia de relações directas entre e Estados. Hoje, as instituições internacionais atingem duas centenas e exerceos 111 uma função medianeira permanente entre os Estados. Todas as instituições internacionais são organismos interestaduais, emregraco personalidade jurídicainternacional, competência especializada e nãogenérica,instituía: pelosórgãossoberanos decadaEstadomembro. por tratadossujeitosà ratificação Isto mostra que a participação de cada Estado fica sujeita à regra da liberdadedeparticipação,o que não significa obrigatoriedade para a instituição de 0 receber. A ONU com frequência tem feito demorar, por vezes anos, como aconteceu com Portugal, a admissão solicitada. Esta liberdade tem como corolário afaculdadedeabandonoda instituição. Os casos de abandono são cada vez mais raros, sinal de que a interdependência crescente aconselha os Estados a manterem a filiação. É claro que isto não significa que se possa obrigar o Estado membro a participar na actividade da organização, e a URSS paralisou o Conselho de Segurança da ONU pelo simples facto de não comparecer. Todavia, a doutrina inclina-se no sentido de que a liberdade de não exercer os direitos não afecta a obrigação de cumprir os deveres, por exemplo financeiros. Assim como a admissão depende do acordo dos membros da instituição, a exclusão por causa estatutária, ou a suspensão, também é competência das instituições, que raras vezes a usam. Mas a SdN expulsou a URSS em 1939, a Organização ser dos Estados Americanos expulsou Cuba em 1961. Não obstante a liberdade a regra, é certo as instituições mundiais, como a ONU e as suas agências especializadas, tenderem cada vez mais para a universalidade. A regra é que cada Estado tenha um voto, de acordo com o princípio da igualdade dos Estados. Mas existem várias modalidades ou práticas que realmente restringem aquela igualdade por homenagem à real hierarquia dos poderes. Uma delas é a constituiçãodosórgãosrestritosmais adequados para as funções executivas. Para evitar a falta da voz dos Estados que não tenham cadeira no órgão, usa-se acordar em indicar um representante por grandes áreas geográficas ou culturais: um Estado pela área latino-americana, pela Europa Ocidental, pela Europa de Leste, pelos Estados árabes, etc. É assim que se passa com o Conselho de Segurança da ONU, onde as cinco grandes potências têm lugar permanente, e direito de veto, e os outros membros são escolhidos por áreas que geográfica. asseguram a equitativarepresentação 360 --- OS INTERVENIENTES cro dos métodos destinados a acolher a realidade da hierarquiadopoder :cessidade de todos manterem o direitode ter voz é o regime da ponderae_ª~ lugaresou cadeiras(pondérationdessieges).Neste caso procede-se como na fªº ~bleia Consultiva do Conselho da Europa, onde as grandes potências têm J\~S~to a 18 lugares, as médias a 6 e as pequenas a 4 ou 3. O método pode ter dire expressão diferente, que é a desigualdade devotosem função da importância ulllªEstados,como no Conselho da União Europeia. Ou, como no Conselho de do~rança da ONU, através do vetode algumas grandes potências, neste caso SeEVA,Rússia, Inglaterra, França e China. os Não obstante a cooperaçao - ser ca d a vez mais . o obº1ect1vo . que se procura torar dominante para a comunidade internacional, em vez da competição pelo fornalecimento dos elementos clássicos do Estado, é ainda o peso da tradicional militar,que inspira ~ierarquia das potências, em função da relativa capacidade rodasestas fórmulas de compromisso entre o princípioda igualdadee o realismo da capacidade diferente.A pertença às organizações internacionais que lidam comas questões dependentes das soberanias, e que exigem estas ponderações e acordos, é um privilégio exclusivo dos Estados. Tal privilégio é exercido pelos órgãos de poder soberano de cada Estado, sem que as instituições tenham de julgar da forma de regime interno que condiciona o acesso ao poder. Assim, no caso de uma mudança revolucionária do regime, ou mesmo pacífica, com mudança de orientação política, o seu regime tem de ser reconhecido e a sua orientação acatada. Aquando da invasão da Hungria (1956) pela URSS, a Assembleia Geral da ONUreprovou a intervenção e a imposição de novo governo ao povo húngaro, mas admitiu os delegados indicados por este em substituição dos antigos. A única excepção dos tempos modernos foi a da representação da China na ONU:durante muitos anos, foi o governo de Chang Kai-shek, que se refugiara na Formosa, que representou a China na ONU, e não o governo comunista que ocupara o poder. Mas a situação acabou por ser reconduzida à normalidade, e hoje é o governo de Pequim que ali tem lugar, estando Taiwan numa ambígua situação. Todavia, sempre como efeito da crescente internacionalização e interdependência, o facto da internacionalização da vidaprivadacomeça a reflectir-se em certas excepções ao monopólio estatal de representação. A primeira excepção (p. ex. Conselho da Europa), é que nas assembleias deliberativas das instituições internacionais estão representados os parlamentaresdos Estados pelo que a representação já não é uma competência exclusiva do executivo (Governo); deste modo, indirectamente, consagra-se uma representação directa do povo de cada Estado, independentemente de os deputados pertencerem ou não a partidos políticos no exercício do poder. 0 361 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O mais expressivo sinal de mudança encontra-se na Organização Interna. na/ do Trabalho(OIT), onde as delegações são compostas por represent cio. dos patrões e representantes dos trabalhadores . Outras instituições, coªntes própria ONU, atribuem um estatutoconsultivoa organizações não-governa lllo a tais (artigo 64), designadamente junto do Conselho Económico e Social ;en. st exemplos denunciadores de uma mudança em curso não invalidam que~ r es ainda seja que a estrutura e política das instituições internacionais é da cegra 0 1llpetência dos Estados 291• 2. Modelos organizacionais e funcionamento As instituições internacionais, não obstante as especificidades de cada u podem agrupar-se por modelosorganizacionais que correspondem a um grau~ª• cedência da liberdadetotal dos Estados em favor da cooperação imposta pet interdependência. Podem indicar-se três modelos principais: modelo de Asse ~ bleia;modelo executivo;modelo governativo. m No primeiro caso (Assembleia ou Conferência), a regra é que todas as competências estejam centradas no plenário dos Estados, seja qual for o método de ponderação dos votos. Existe um secretariado que exerce, com maior ou menor complexidade de acção, funções de apoio e burocráticas. A Liga Árabe funciona assim. No segundo caso (executivo), existe uma complexidade maior do aparelho permanente da organização, para assegurar a execução das decisões, que não se limitam a reconhecer conflitos de interesses, traçam programas para o futuro que exigem acção. O Pacto da SdN correspondeu a esse modelo, que é também o da ONU: Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Conselho de Tutela, Conselho Económico e Social, Secretariado. O terceiro modelo (governativo) já entrega a órgãos permanentes a formulação das políticas e o seu prosseguimento. É o que acontece com a União Europeia, onde a Comissãofunciona em muitos aspectos como um Governo, e o Parlamentoactua em função dos interesses da União e não dos interesses de cada país onde os eurodeputados são eleitos . O método da separação depoderes, que informa o constitucionalismo ocidental, começa a manifestar-se ali com importância. A permanência e periodicidade das reuniões dos órgãos das instituições internacionais é função do seu peso e capacidade de intervenção na vida internacional. A história dos parlamentos demonstra que a permanência é uma arma 2 i11ternationalcs , Paris, 1961.A revista InternationalOrga11izatio11, Boston, '" Pierre Gerbet, Lesorga11isations da World Peace Foundation , fornece os dados sobre esta questão. Hans Kelsen, T/zelawof tlzeUnited Natio11s, N.Y., 1952. 362 OS INTERVENIENTES , . importante, e as instituições internacionais, que obedecem à regra de . , . ten d em sempre para instaurar . pºhttCª do O grupo ena. interesses propnos, essa qoe'ºda permanência. No modelo da Assembleia a periodicidade normal é o regra as pode acontecer que seja maior como acontece frequentemente com 311 º:esco,e a União Postal. Enquanto que as conferências diplomáticas do i ,ú lo passado eram grandes acontecimentos, actualmente tendem para a regusecU • • ·dade rotineira. tar\~,dsteporém uma consequência importante desta regularidade, e que é . tauração de uma diplomaciaparlamentar.O processo diplomático clássico 3 msegociação, e do modelocontratualdo acordo, está a ser gradualmente substida'~o vista a natureza colegial dos órgãos das instituições internacionais, por tlll ' •e . 1, na cnaçao • - d e com1ssoes . processo par/ amentar.Este man11esta-se no ntua u:manentes ou temporárias especializadas, na discussão plenária dos relató~ os técnicos, na condução dos debates, na publicidade e, em alguns casos, na ri • • • • divisãopor ma10nas e mmonas. É muito inconclusivo o debate sobre as vantagens e inconvenientes deste processo,mas não parece que possa ser abandonado em favor do secretismo tradicionalque rodeava a política internacional. A principal questão que o método dadiplomacia parlamentar evidencia é a do voto. Todas as razões que levaram jurídica com a desigualdade defacto tornam-se aqui 3 tentar conciliar a igualdade evidentes.A regrada unanimidade,que salvaguarda inteiramente a igualdade jurídica,de facto contraria o princípio político de que os grandes Estados não se subordinam ao voto dos pequenos nas questões que consideram importantes para os seus interesses. É porém mantida em numerosos casos. Oprincípiodamaioria,sem qualificação de votos, agrava ainda o conflito com a referida regra política, visto que os pequenos países são quantitativamente esmagadoresem relação às grandes potências e superpotências. É porém aceite, em função dos interesses em causa. Na ONU, por exemplo, e exceptuando o Conselho de Segurança onde vigora o veto,o princípio da maioriasimplesou maioriaqualificada(conforme a questão) é o da Assembleia Geral, e também é sem restrição o dos restantes conselhos e comissões. A defesa da hierarquia são indicativas(guidingprincipies)e não das potências está em que as resoluções imperativas. A evoluçãoda internacionalização mostra um fenómeno que é o inverso do que se passou na história da formação do Estado centralizado e burocrático. Neste, (Weber)a racionalização do exercício do poder político centralizado implicou a criação,desenvolvimento e especialização de um aparelho burocrático cada vez mais sofisticado. Na comunidade internacional, a criação, desenvolvimento e racionalizaçãode um aparelho burocrático progressivamente complexo antecede a visíveltendência para o aparecimento de poderes supranacionais. 363 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS É por isso um problema de importância crescente o da lealdade dos fun . nários internacionais às instituições que servem, mesmo por indicação dos cio. governos, a qual pode entrar em conflito com a lealdade nacional. seus O aparelho burocrático internacional tem condições para a neutralia d em face dos Estados dos quais os funcionários são originários? E ao mesª e lllo . d . . . _ tempo, de não ser neutro em re 1ação aos interesses a mst1tmçao que serv 2 Casos como o do Secretário-Geral da ONU são paradigmáticos. Mas não po;· ser ignorado que a burocraciainternacional,seja qual for o modelo das instit _e ções, é um poderdefacto no panorama geral dos intervenientes nas relaçõUi• • • 292 es mternac10na1s . 3. A função e poderes das instituições internacionais As atribuiçõesdas organizações internacionais e transnacionais são normalmente definidas em termos muito vagos nos respectivos estatutos, pelo que as funçõesvêm a sofrer de igual incerteza. Basta ler o artigo 10 e seguintes da Carta da ONU para verificar como a área reservada à sua competência parece sem limites. De facto, e pondo de lado a excepçãoda competênciareservada que cada Estado pode sempre levantar como um travão, as definições estatutárias são termosde referência, que parecem uma moldura a ser preenchida pela jurisprudência política de interesses que os Estados vão desenvolvendo. O conteúdo não é realmente definido aprioristicamente, é construído em resposta às exigências evolutivas da conjuntura. No caso da ONU, pode verificar-se que a invocação da competênciareservada nunca foi praticamente acolhida, pelo que a dinâmica da Organização tende para ser dominante. Os casos da descolonização da Indonésia, ou da Argélia, ou do Ultramar português, são demonstrativos. O que tudo encaminha no sentido de que os mecanismos das instituições internacionais tendem para ser complementados por uma jurisdiçãoque arbitra os conflitos com a excepção da competência reservada. É o caso do Tribunal de Justiça da União Europeia. Esta situação quanto às atribuiçõese funções que tendem para serem alargadas não tem correspondência nos poderesdas organizaçõesinternacionais. Um parecer importante do Tribunal Internacional de Justiça, de 11 de Abril de 1949, diz o seguinte: "ACarta não se limitou a fazer da Organização criada por ela um centro da harmonização dos esforços das Nações Unidas para os fins que ela define; deu-lhe órgãos, atribuiu-lhe uma missão própria ..." De facto, as organizações internacionais exercem competências semelhantes às dos 292 Huillier, Lcsinstitutions intcmationalcsct trarisnationa/cs, Paris , 1961. Galliard, Iristit11tio11s i11tematio· nalcs,Paris, 1956. 364 OS INTERVENIENTES dos, exercem o direito de representação, estabelecem acordos interna6stª .5 obrigam -se aos seus tribunais internos. Mas estão muito deficiente·011a1, ct e providas de poderesque assegurem o respeito pela sua autoridade para lfle~d~r. controlare sancionar.No primeiro domínio (decisão), a sua competênJec1, , , . fica-se em regra pela recomendação ou resolução,como e o caso da Assemeia 1 l . Geral da ONU. b e~uando lhes compete verdadeiramente a decisão,podem dar-se várias hipóuando a decisãotem de ser tomada por unanimidade,trata-se verdadeirareses. Q nte de uma forma ou processo de estabelecer um tratadoou contratoentre os JJl:mbrosda organização, como acontece na NATO. Tem a vantagem da cele~dade,da transparência e da condução sustentada de uma política. Mas, ver~adeiramente, são pseudodecisões dos Estados, como lhes chamou Colin, que escapamao controlo dos parlamentos e assim vão configurando uma espécie de executivo da instituição. A decisãoé executada por um órgão que exerce o poder delegado ao qual osmembros da instituição devem obediência . O típico é o Conselho de Segurançada ONU, em relação ao qual diz a Carta (artigo 24): "Os membros conferemao Conselho de Segurança a responsabilidade principal da manutenção da paz e da segurança internacional e reconhecem que ao cumprir as decisões que lhe impõe esta responsabilidade, o Conselho de Segurança actua em seu nome", e acrescenta (artigo 25) que "os membros da Organização concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança de acordo com a Carta". Também o executivo da União Europeia toma decisões que são imediatamente exequíveis dentro do território dos Estados membros, designadamente em relação às empresas económicas. É isto que atribui o carácter transnacional a uma organização: as decisões dirigem-se, imperativas, à própria sociedade civilsem necessidade de intervenção da soberania local. de algumas insDeste tipo de decisõespodem aproximar-se os regulamentos tituições internacionais técnicas (União Postal Universal - UPU, Organização daAviaçãoCivil Internacional - OACI, Organização Mundial de Saúde - OMS) osquais, sendo aprovados por maioria,são aplicáveis em todos os Estados membros, embora, o que torna o mecanismo imperfeito, os Estados possam tornar pública a sua recusa total ou parcial do decidido, o que não acontece com as decisões do Conselho de Segurança. A falta de um poder coercitivo anda a ser preenchida por outros métodos. Umdeles é o controlodo cumprimento das decisões, que implica o fornecimento de dados estatísticas, e até, em alguns casos como o da Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA), inspecções locais. Este método mobiliza o apoio dos Estados e a opinião pública contra o infractor e coage no sentido do cum365 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS primento. Quanto aos próprios Estados, a aplicação de sanções tem de se fi pelo patamar disciplinar dentro da organização em causa: privação de Voto tear pensão ou exclusão, recusa de serviços. A natureza soberana dos Estados 'sus. selha que a negociação tome o lugar das sanções 293 • acon. Chaumont, L'ONU, Paris, 1957. Goodrich e Hambro, Charterofthe UnitedNatio11s,Londres, 1949Errera, Euratom,Bruxelas, 1958. 293 366 Capítulo IV AsForças emAcção § 1º OsPoderesEstaduais t. A lógica do poder militar a)Supremacia militar Vimosque o conceito tradicional do poder internacional tem que ver com a capacidade militar, e que o conceito de balançadepoderesé ao mesmo tempo metodológico e político, isto é, observante e observado. Também vimos que, nesseaspecto, o teatro estratégico se mundializou, que a balança de poderes temsido bipolar vai para meio século, sem fiel da balança, e traduzindo-se num equilíbrio de terror desde a domesticação da energia atómica. Este enquadramento do teatro estratégico mundial não eliminou a existênciade guerras marginais, ou de tensões regionais que, por sua vez, implicam o usoregional do conceito de balança de poderes, e a tentativa de uma definição das áreas estratégicas regionais. Este poder militar funcionou como uma advertência a maior parte do tempo, nãoteve faculdades integradoras do poder dos Estados que normalmente assumiram uma acção bipolar, e portanto grupal, de resposta, em que os EUA e a URSSapareceram todavia como Estados directores. A definição das áreas em conflito encontrou as suas raízes nas consequências da Primeira Guerra Mundial. sanitárioocidentaldestinado a conter a exporA URSS, submetida a um cordão tação da Revolução de 1917, organizou-se com base no conceito de socialismo 367 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS cercadonum sópaís, e procurou o desenvolvimento pela definição do que mau uma NovaEconomiaPolítica(NEP). cha. A anormalidade de relações com os outros Estados não foi porém durad . então e, liquidado o contencioso com os países bálticos cuja independê º'~a reconheceu, e depois de regulados os conflitos com a Polónia e a Romé/c,a URSS começou a sair do isolamento diplomático. Uma primeira aproxim:ª~ ª com a Alemanha resultou de ambos os países terem uma posição de resist~ao eia às pretensões dos vencedores no domínio das indemnizações de guer en. reembolso de infra-estruturas; em 16 de Abril de 1922 assinaram o acord~~ e Rapallo, que liquidava o contencioso entre ambos os países e originava u e cooperação militar. Rapidamente o governo trabalhista de MacDonald de Fevereiro de 1924, o governo italiano em 8 de Fevereiro, a França em 28 d Outubro, o Japão também nesse ano, os EUA em 1933, reconheceram O nov~ regime. Em 15 de Setembro de 1934 a URSS entrou na SdN. O perigo nazi acelerou este processo na década de trinta, e o medo da agressão encaminhou no sentido das alianças defensivas. Foi Lavai, que viria a ser punido pela cooperação com os alemães invasores da França, quem concluiu em 1933 o pacto franco-soviético. Todavia, os acordos de Munique (Setembro de 1938), que permitiram salvar episodicamente a paz na Europa, traduziram-se em que a França e a Inglaterra abandonaram a Checoslováquia à ambição de Hitler. O resultado foi que a URSS, desaparecida a coerência de uma estratégia comum contra a Alemanha, procurou aproximar-se desta assinando o Pacto Molotov-Ribbentrop, em 13de Agosto de 1939. Nesta data não existia ainda um aparente conflito de influência política, nem um confronto militar, e apenas a Europa parecia em questão. Mas estavam lançadas as bases da guerrade religiãoque dividiu os dois blocos, depois do intervalo da aliança para vencer o nazismo. Nos anos que se seguiram à paz de 1945, o mundialismoque inspirou a ONU foi perdendo em eficácia, ao mesmo tempo que se organizava um sistemabipolar (Ordem dos Pactos Militares) que dominou a política internacional, com um factor dinamizador que foi a corridaarmamentista. O Conselho de Segurança não pôde exercer os poderes que lhe confiou o Capítulo VII da Carta, incluindo as sanções económicas e militares contra os transgressores da paz, justamente porque as superpotências nunca deixaram de apoiar uma das partes em conflito e, consequentemente, de exercer o veto. Não obstante ter criado os instrumentos dos observadores e das forçasdemanutençãodapaz, que usou nos conflitos do Congo (1960), de Chipre (1964), do Sinai (1967) e do Líbano, a ONU apenas em 1987, na sequência da nova atitude soviética, retomou uma intervenção significativa na vida política internacional. Podem indicar-se as seguintes acções relevantes: cessar-fogo entre o Irão e 0 e:; 368 AS FORÇAS EM ACÇÃO ue (1988); negociação de Genebra para terminar o conflito do Afeganistão rraq rribuição da Missão de Bons Ofícios das Nações Unidas (UNGOMAP) no econanistãoe no Paquistão; esforços semelhantes no Sahara Ocidental, CamfJed~ Médio Oriente e América Central. O agente desta mudança foi o SecrebO , .•Jª• Geral J.Perez de Cuellar. cario · - e' um mo d e1o b'1po1ar d e regenc1a • · d os Entretanto, o que esta' em rev1sao ócios mundiais, com os EUA liderando um dos blocos, e a URSS liderando :e!utro, sistema que findou em 1989, deixando os EUA como superpotência obrante. Este modelo bipolar de direcção pusera no lugar do mundialismoda ONU, herdeiroeste dos Projectistas daPaz,o conflito imperial entre os EUAe URSS que, evolução sinuosa, teve o condomínio da regência mundial, ou como objec001 ~jvoou como consequência da lógica dos factos. Paralelamente, e a demonstrar a insuficiência da velha invenção que é o Estado soberano para responder às exigênciasdas comunidades, o fenómeno dos grandesespaçosrepartiu o mundo em 3 áreas (12Mundo: EUA e Aliança Atlântica; 22 Mundo: URSS; 32 Mundo: neutralista), onde funcionaram subsistemascondicionados sempre pela co-responsabilidade mundialdas superpotências. 5 b)Política de desarmamento Durante meio século, que terminou em 1989 com a queda do Muro de Berlim, 0 mundo viveu submetido a um regime de bipolarismo, e sempre ameaçado pela destruição da Humanidade no caso de as duas alianças, a do Atlântico e a de Varsóvia,decidirem subir aos extremos e utilizar as armas estratégicas. O medo recíproco era uma variável estrutural da Ordem mundial, porque nenhuma das regras éticas ou jurídicas, que pretendiam regular o comportamento dos adversáriosno combate, dava resposta às tentativas de previsão do temido apocalipsemilitar. O estado de natureza, conceito ao qual Locke recorre para descrever a situação da comunidade internacional, parecia o mais indicado para racionalizar as interdependências contraditórias, e por isso McDougall, com alguma originalidade, anotava que as relações internacionais não assentavam em regras, mas sim em decisões 294 • Não obstante os solenes princípios recolhidos em documentos tão fundamentais como a Carta da ONU, nesses anos que vão de 1939 a 1989 os poderes comportavam-se frequentemente como se estivessem convictos de que actuavam referindo-se a princípios-guias (guidingprincipies),formulados para a gestão de objectivos definidos pelos Estados sem qualquer obediência a um direito natural, a direitos originários do Homem, a valores abso'" McDougall, Laivand Mi11imumWorldPub/icOrder,Yale, 1961. 369 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS lutos. O poder apareceu de novo consagrado como um valor em si pró . 10 , uma insubstituível capacidade de obrigar (Max Weber) ou, como diz S. Jones: "Acapacidade de um agente das relações internacionais agir e a ter proveito". Qualquer das superpotências recorreu à força para manter: seu área de influência: os EUA em Cuba (1961), na República Dominicana (l 9~ua no Panamá (1989); a URSS na Hungria (1956), na Checoslováquia (196s) S), 'no Afeganistão (1979) 295 • Entre as várias causas da guerra, que uma incipiente polemologia procur identificar, aparece como vimos a competição arma mentista, que exige de fa ou - com o tema d a paz pe 1o d'1re1to. · Isto porque tal comCto autonomia· em re 1açao tição é animada pela revolução técnica e científica que desenvolveu os s~eefeitos distanciando-se perigosamente da ética, a qual, nesta matéria, tend Us . 'dd a es agranas. ,. para estacionar nas respostas aos mo dld e os as soc1e Foi a estreu_ tégia baseada nos exércitos artesanais, ainda dominante no início da guerra d: 1914-1918, e exigentes de grande quantidade de mão-de-obra, que inspirou 0 direito internacional, desmoralizado este pelos exércitos de laboratório que tiveram as armas estratégicas nucleares como argumento supremo, e a ameaça do holocausto como dissuasor permanente. A capacidade de fazer a guerra química e a guerra bacteriológica acrescentou a distância temível entre a técnica e a ética. Para uma teoriaconspfrativa, que teve curso nos próprios EUAdepois da Primeira Guerra Mundial, as indústrias do armamento seriam responsáveis pela organização dos lobbiesda guerra. Esta interpretação foi revigorada pelo facto de o Presidente Eisenhower, ao despedir-se do poder, ter definido o Estado que governou como um complexo militar-industrial no qual, portanto, grupos dominantes das indústrias de guerra teriam uma influência capaz de criar, manter e agravar as tensões. Usando a perpectiva de Wright Mills, tais grupos seriam compostos por militares profissionais, donos e quadros das indústrias militares, funcionários dependentes das despesas militares, políticos em ligação com um eleitorado interessado nas actividades da defesa 296 • A autonomia relativa, mas importante, deste facto que, na sua forma extrema, tem a natureza de um complexo militar-industrial, também autonomizou o desarmamentocomo correspondendo a um capítulo fundamental da prevenção daguerra:o risco do holocausto estava filiado, sem distinção, na decisão sobe· rana ou no simples erro. A proposta feita por Kennedy, em 12 de Dezembro de 1962, no sentido de instalar uma linha telefónica directa entre a Casa Branca ,l~ ,.,, Jacques Hunczinger, Introductio11 aux relatiorzs i11ternatio11ales, Paris, 1989, p. 257 e sgts. Dew Acheson, Prese,ztat the creatio11, myyearsin the State Department,N.Y., 1969. 2 "" Wright Mills, Thepowerelite,N.Y., 1956. 370 AS FORÇAS EM ACÇÃO rnlin, correspondeu à percepção de que aquela situação exigia uma poHe_0 ~r:o-responsabilidade, sobretudo pela identificação do chamado riscomaior, 1,ca,eum riscocriadocujocontroloescapaeventualmenteaosresponsáveis originários, ist0 e;contece comas catástrofesdasinstalações nucleares. com; risso assumiram tanta importância O as negociações sobre o desarmamento, . d endentemente das exigências decorrentes da necessidade de enfrentar til ep , 1de manter uma po l'1t1ca . armament1sta . e uma po l'ltlca . de efa imposs1ve a carnvolvimento. U m pouco mespera . d amente, as consequenc1as • . d a d esagredes:o da URSS, e o facto de tal acontecimento ter produzido uma proliferação gaç · nuc 1eares, passaram a d ommar . . - d e d esarmamento d potências as negoc1açoes e artir de 1991-1992: ao lado da Rússia, perfilam-se a Ucrânia, o Cazaquistão ap , . a Bielorruss1a. e os acordos soviético-americanos de redução de armas estratégicas (START), de 29 de Julho de 1991, depois de longas negociações, foram assinados pelos quatro herdeiro~ d~ forJa nuclear soviética, :m Lisboa, em Maio de 1992. Asnovas republicas mdependentes tambem aderem ao tratado de não-proliferaçãodas armas nucleares (TNP). Na cimeira de Washington, de 16 de Junho de 1992, os Presidentes Bush e Ieltsin decidiram ultrapassar o acordo START, comprometendo-se a reduzir drasticamente as cabeças nucleares, e a participar noglobal de protecção" (GPS) antimísseis, com revisão do acordo ABM (mísseis antibalísticos) de 1971. Em Julho de 1992, em Oslo, os treze países do extinto Pacto de Varsóvia (findo em 1991) aderiram ao Tratado de redução de armamentos convencionais (CFE) e, seguidamente, assinaram um Acordo CFE-lA para a redução dos efectivos militares. O tratado chamado Céu Aberto, assinado em Helsínquia em 14 de Março de 1992, e que actualiza os acordos militares de Vancouver e Vladivostoque, completou o programa de desarmamento europeu. Em Julho de 1992 foi redigido o tratado de interdição de armas químicas, ao qual declararam aderir cinquenta Estados. Um acordo de 3 de Março de 1992 comprometeu 17 países industrializados a limitar a venda de material utilizávelno fabrico de armas atómicas e a China, em 10 de Março de 1992, assinou finalmente o tratado de não-proliferação nuclear (TNP). Todoestemovimentoé importante,mas nãopodefazer esquecerqueo desarmamentonão é a paz, é um acordo sobrea maneiradefazer aguerra297 • A importância e autonomia do armamento, e a tentativa de controlar este juridicamente, teve relação com diversas percepções do fenómeno da guerra: uma, representada pelo famoso H. G. Wells, identifica a vontade que decide "' Sobre a evolução da arte de fazer a guerra no Ocidente, Archer Jones, The art oJWarin the Westem World,Londres, 1987. 371 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS o conflito, e assim explica a Primeira Guerra Mundial como o resultad O ambições do Kaiser e da casa Krupp 298 ; outros, como Max Scheler, entende das "a guerra não é mera expressão de violência física, à qual abandona O seu cmque a espiritualidade racional quando se sente impotente, é antes uma disp ªrnpo Utad . h poderes e vontades entre as pessoas co1ect1vas que c amamos Estados"299 d e tas percepções recorta a guerra como um fenómeno com especificidade n~ , es. · vasta d a v10 · 1enc1a, ' · que aparece como um ac1·d ente quan d o o Estadoarea mais , entidade em movimento dinamizadora da história, em luta pelo alargam.ee a do poder ou liberdade política, à margem e acima das limitações jurídicas nto A defesa da guerra, feita na orientação de Scheler, traduz-se em suste · que ela outorgaaosEstadososdireitoscorrespondentes ao seupoder.Não pode :t~r tir-se ~ not~ de que o Estado é consider_ado,ju~tificado pelos _resultados, e p~;: tanto 1dent1ficado como um valor em s1propno, do qual denva a legitimidad da ordem que vier a impor. O próprio Ortega, aliciado em certa medida por est~ perspectiva, recomendava a interpretação da acção de Castela, durante a reconquista, à luz de um sentido de Estado, contrário ao particularismo doméstico de outros povos peninsulares como os leoneses, galegos, aragoneses, catalães e, sem o dizer, portugueses 300 • Mas isso não o impediu de condenar o conceito de Scheler, segundo o quala guerra é um juízo de Deus, que "manifesta todas as forças essenciais de um povo ou Nação". Os factos foram sempre demonstrando que, ao contrário, a subida aos extremos da guerra apenas foi legitimada ao serviço da justiça. A corrida armamentista, e a proliferação vertical e horizontal das armas atómicas neste século, ao mesmo tempo que tornavam esdrúxula a ameaça de qualquer conflito, também contribuíram para desvalorizar o conceito da guerra como violência específica dos Estados, eventualmente legitimada por um transpersonalismo estadual. A violência da guerra teve de ser assumida como um conceito abrangente de conflitos entre Estados, mas também de conflitos entre movimentos internos e Estado, de agressão de poderes erráticos contra Estados e sistemas, tudo alimentado por uma circulação de armamentos que ameaça não reservar nenhuma espécie deles ao acesso privativo das soberanias formais. Daqui resultou que o pacifismo, independentemente das eventuais vinculações ideológicas, se alargou objectivamente a uma teoria geral de acções não- violentas, que deve importante contribuição aos especialistas da peaceresearch. 298 H. G. Wells, Laguerrequitueralaguerre,Paris, 1915. Max Scheler, Dergwius desKriegeszmdderdeutscheKrieg,1915, in José Ortega y Gasset, Elgwio dela guerra)'laguerraalema11a, Obras Completas, 22 volume, Madrid, 1983. 300 Ortega, lug. cit., p. 218, nota 2. 299 372 AS FORÇAS EM ACÇÃO s a guerra passou a ser examinada de um ponto de vista cataclísmico, que 1 pore e de em relação à Humanidade como um todo, e não como um fenómeno ,ent~ºnado com um instrumento, o Estado ou a classe. Nesta linha, escritores 1ac10 d s como Galtung, Conway, Glover, Brown e Rapoport, contrapõem uma à mais antiga polemo/ogia, criando centros já referidos. cita ;,enelogia 110v;odos finalmente reconhecem que o jogo de forças da comunidade inter. nal depende de um voluntarismo, agindo em função de matrizes valoratipact:bjectivose percepções. À proclamação do acto constitutivo da UNESCO vas,gundoa qual as guerras começam no coração dos homens - correspondeu -seorização dasacçõespacíficasparaobteros resultados justos secularmente procura: ~pelaguerra.Destaca-se a obra de Gene Sharp, Thepoliticsof nonvio/entaction, 0 cluindo especificamente "acção convencional militar, luta de guerrilha, regie;dio,tumultos, acção policial, ofensiva e defesa privadas armadas, guerra civil, cerrarismo,bombardeamentos aéreos convencionais ou ataques nucleares, ou t formas seme lh antes "301 . Nesta perspectiva globalizante, o Estado continuou a intervir como o inscrumentoda violência organizada, com tendência monopolizadora, mas dependente do risco que está na disponibilidade dos outros agentes da violência que tiveremacesso à intervenção na comunidade internacional. De novo a família dos Projectistas da Paz, em que se destaca Kant com o Projectoda Paz Perpétua, volta à actualidade para lidar com a autonomia da intervençãoque o Estado mantém em posição privilegiada, mas agora sem dispor de uma doutrina e de uma técnica que obtenham a submissão dos outros agentes aos programas de acção não-violenta. Sobretudo porque o Estado deixou de poder ser definido como o monopolizador da força, e também não parece fácilsubordinar os factos ao entendimento de Max Scheler sobre a guerra, ou dosvários transpersonalismos que pregaram a dignificação da guerra e do seu agente soberano. Ao contrário de a guerra poder ser definida como uma espécie nobilitada, de identidade específica, dentro da complexa área da violência, aconteceu que uma série de formas de violência reivindicam os atributos e finalidades com os quais se pretendia caracterizar a guerra como um instrumento do Estado ao mesmo tempo soberano e agente da História. É por isso que os conceitos operacionais clássicos, usados para lidar com o fenómeno da guerra, foram frequentemente excedidos pela evolução. Assim, a tradicional definição da guerra como "um conflito entre Estados com o objectivo de cada um subjugar o outro pela força armada para assegurar certas exigências ou reivindicações" (Scruton), também se aplica sem difi- r: 301 Gene Sharp, Nonvio/c11t action,Boston, 1973. 373 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS culdade aos movimentos terroristas , a alguns fundamentalismos, a agen internacionalismos ideológicos. tesde As guerras entre Estados também não resultam sempre de políticas te . . . expans10mstas; . . na1s ra d.1cam eventua 1mente, como acontece com as guerrrrito· religião, em duradoiras contradições culturais. O mapa dos conflitos em asde ' · o nsco · frequente d e se a1argarem a vastas reg1oes, •- as capacidcurso ou poss1ve1s, d militares que se multiplicaram, o policentrismo atómico, as formas de guª es química ou biológica ao alcance de várias entidades não-estaduais, tudo pa:rra ten?er para el!mi~ar o s~mântico desvelo pelo alegado pr~ncípio inato da b:~~ gerancia, que msp1rou Nietzsche e Sarei, porque a generalizada consciência do risco faz apelo a outros valores 3º2 • e) O armamento moral - a nova Mensagem de Assis Não é fácil racionalizar a nova conjuntura usando os conceitos operacionais d.ISponÍveis, e que foram elaborados, com dificuldades similares, para entender Ordem finda. Admitamos porém que está consumada uma mudança da estru~ tura da comunidade internacional, de tal modo que o Estado em transição sofre a competição de outros agentes das relações do poder, e que a comunidade civil mundial tende a definir-se com esquecimento das fronteiras políticas. Em tal novo contexto, a guerra perde a sua definição qualitativa e estrutural específica , dentro da problemática geral da violência, e todos as formas de violência se revelam interdependentes ou conjuntamente instrumentais para a realização do mesmo objectivo político. Nos conflitos concretos é mesmo frequentemente impossível manter adistinção entre meios violentos e não-violentos de acção. Por isso convém deixar aqui um apontamento sobre a tradição cristã de apoiar as intervenções não-violentas contra as injustiças sociais, a manifestação de uma linha em relação com situações de guerra declarada, e alguns equívocos que aparecem a coincidir com esta nova referida conjuntura em que a guerra se autonomiza mal no quadro geral do excesso da acção violenta e não-violenta. Da investigação do citado Gene Sharp podemos recolher alguns exemplos de apoio a acções não-violentas, admitindo que este conceito abrange todos os "métodos de protesto, não -cooperação e intervenção" que recusam o uso da violência física contra as coisas e contra as pessoas. Neste domínio tem de reconhecer-se o papel cimeiro de Gandhi, que deu certamente a maior contribuição individual para a definição e consolidação da perspectiva pacifista e das acções não-violentas destinadas a alterar a ordem estabelecida. Os seus primeiros exer- 30 ' Nietzsche, TliusspokeZarathustra,Berlim, 1883. Sorel, Rifbions sur la vio/ence,Paris, 1908. 374 AS FORÇAS EM ACÇÃO . na África do Sul, a transformação do satyagrahano método por excelência ertação da Índia, são marcos na história da acção não-violenta 303 • cíc1?bs ' o recurso a' fc' . • . naoda hpentro desta, porem, e no senti'do de amparar a res1stenc1a joJentatem u~. lugar part!cular, e c~m _ante:e~ent:s que ~an_ibém,incluem -'-1 istãos de vanas confissoes. A proc1ssao rehg10sa e um class1co metodo de os~:tência e de protesto, usada em várias ocasiões e diferentes épocas. A massa reSIularque, em 1905, se dirigiu ao Palácio de Inverno em S. Petersburgo, tomou Pfirma de uma procissão dirigida pelos clérigos, exibindo cruzes e ícones, ªentºoando cânticos religiosos: cerca de uma centena de pessoas foi morta pelas opas, e umas trezentas ficaram feridas. tr Actosreligiosos e preces públicas tiveram exemplo na Polónia ocupada pelos alemãesem 1942. Em 1959, quando a polícia sul-africana, em Ixopo, ordenou a urnamultidão de mulheres que debandassem, elas "caíram de joelhos e começarama rezar", desorientando a força pública. Em 1963, durante o confronto budista com o regime de Diem, o padre católico Cao van Luan, reitor da Universidadede Hue, conduziu os estudantes ao pagode Tu Dam para rezarem em solidariedade com o protesto budista. Talvezum grande símbolo da resistência pacífica, eficazmente desafiadora do poder, tenha sido, neste século, o Cardeal Mindszenty, Primaz da Hungria. Assuas Memórias, publicadas no exílio, são um documento de referência fundamental para a doutrina cristã da resistência. Os anos que passou nas prisões marxistas, diariamente punido fisicamente, e os longos anos que esteve em reclusão na Embaixada dos EUA para que a sua presença animasse o povo, definem uma clara distinção entre a resistênciae a violência,mostrando como a primeira não está necessariamente associada à segunda. A importância da distinção está a ser posta em evidência em Timor, onde a proclamada extinção da guerrilha pelas forças da Indonésia não pode ser confundida com o fim da resistência. Esta ligação com a resistência, sempre em nome de valores cristãos, tem eventualmente revestido a condição de voz tribuníciados povos ou extractos sociais alienados, algumas vezes claramente invadindo as áreas da política. As revoluções pacíficas da Europa Central, e muito especificamente a resistência e independência final da Polónia, na sequência do desmoronamento do império soviético, tiveram na Igreja uma voz tribunícia, naturalmente acusada de ultrapassar essa função. No caso de Timor, a voz do Administrador Apostólico D. Ximenes Belo tem sido uma voz tribunícia para o exterior, sendo de admitir que anima a resistência sem intervir na acção armada. 303 É indispensável acrescentar hoje a variante de Nelson Mandela, Longocaminhoparaa liberdade, autobiografia, Lisboa, 1994. 375 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Talvez seja a dificuldade de manter bem separado o envolvimento na r . tência, e uma recusada participação na acção violenta, que contribui p es,s. perplexidade relacionada com a acção da Igreja na torturada América La:~aa com expressão visível na teologia da libertação e na acção de alguns dos 'na, teóricos, como o Pe. Boff. seus Independentemente da presença de referências à metodologia mar . . . . Xista nas perspect1vas que adopta, talvez mais recolhidas de Rosa Luxemburgo do que de outro qualquer autor dessa área, parece que o formulado preceito · capitalista · - d as comum'dadesde basea lºb - d a v10 · 1· espera d a acçao I ertaçao enc1a eque d violência marxista precisa de um complemento de modo. a Não sendo desconhecidos os métodos postos pela experiência à disposiçã das acções de libertação, sendo actualíssima a problemática da distinção entro meios pacíficos e meios violentos, e dara a diferença entre resistência e com~ bate armado, é de notar que não se encontra na doutrina, destinada às comunidades de base, nem a invocação de qualquer dos pacifistas que dominam 0 pensamento contemporâneo, nem o conselho de recorrer à violência. A lógica do discurso é posta em suspenso, deixando assim inevitavelmente o caminho livre à lógica da acção libertadora, que não exclui a violência 3° 4 • Vimos que a lei da complexidade crescente da vida internacional, de acordo com a qual se multiplicam as dependências e interdependências dos Estados, parece aconselhar no sentido de usar um conceito operacional da violência que negue à guerra dos soberanos uma definição específica e numa valoração privativa. As ameaças e as agressões, com eventuais efeitos generalizados, podem ter origens bem diversas, desde o acto isolado do assassinato de um líder que desencadeia uma guerra civil, à sublevação civil que sobe ao extremo de exigir a intervenção da comunidade internacional. Nos dias recentes, a África do Sul e a Jugoslávia serviram de exemplo ameaçador. De acordo com a nova estrutura da comunidade civil mundial e da comunidade internacional, a explosão técnica e científica entregou à liberdade dos Estados o poder de destruir a Humanidade, e as crises das estruturas políticas, desagregando as cadeias de comando tradicionais, multiplicam os centros de decisão capazes de terem acesso às armas de destruição maciça, e às formas de guerra total dos pobres, que são baseadas nas armas químicas e biológicas. Daqui a importância da intervenção da doutrina católica sobre a guerra, renovada a partir da Segunda Guerra Mundial, e concretizada, pelo que res·"'' Leonard Iloff, O caminhoda Igrejacomosoprimidos,Rio de Janeiro, 1980; Teologiado cativeiroe da libertação,Petrópolis, 1980 . Meira Penna, O evangelizo segundoMarx, S. Paulo, 1982. A. Moreira, De Bandu11g aosproblemasNorte-Sul,in Comentários, Lisboa, 1992. Gandhi, An Autobiography ort/rcstor)'ºÍ my cxperimentswitlztruth, Navajivan Publishing House, 1956. George Mikes, T/relzungaria11 rcvolution, Londres, 1957. Miller, No11violc11ce: a ChristianInterpretation,N.Y.,1964. 376 AS FORÇAS EM ACÇÃO ·caaos princípios guias, no Concílio Vaticano II. A Constituição Pastoral pe• A IgrejanoMundoModerno(Gaudiumet Spes),proclamada por Paulo VI em so;repezembro de 1965, foi considerada por muitos como o maior resultado 8 ~oncílio, e mesmo uma viragem importante na avaliação da guerra como do , rneno, e da justiça dela como doutrina. fen;Jaborada no período crítico da competição bipolar, teve apoio em textos eriores de grande significado. Conviria lembrar a Encíclica Pacemin Terrisde an~ :XXIII,de 11 de Abril de 1963; antes, o Discorsode Pio XII de 30 de Setemde 24 de Dezembro de 1955; e, finalmente, Jo~ºde1954 e o seu Radiomessagio !rhistórico Discurso à Assembleia das Nações Unidas, proferido por Paulo VI 4 de Outubro de 1965. 111 e Talvezo ponto essencial seja, como sustenta Dominique Dubarle, a "reformulaçãoda teologia da guerra justa" 3º5• A doutrina clássica era tributária dos três princípios enunciados por S. Tomás:a iniciativa devia ser de uma autoridade competente, por uma causa justae com recta intenção, isto é, respeitando a justa medida na condução das operaçõesmilitares 306 • A guerra era, na doutrina comum, um meio de restabelecerum direito injustamente violado. Tendo em conta a evolução da comunidade internacional, das formas de guerra possíveis, e das múltiplas novas oportunidades de resolver pacificamente os diferendos, o texto conciliar, recolhendo a anterior doutrina dos pontífices, apenasaceitoua legítimadefesados interesses vitaisde uma Nação, designadamente o direito à independência ameaçada. A passagem da perspectiva da teologia da guerra justa para a perspectiva da legitimidade da guerra defensiva foi baseada, desde Bento XV a Paulo VI, na própria evolução da conjuntura: tratou-se, como salienta Dubarle, de reconhecer a ambiguidade das justificações enumeradas para as guerras modernas, da perigosidade dos meios técnicos disponíveis, da importância e oportunidades crescentes dos modelos de negociação. A restrição estabelecida à condenação absoluta da guerra (não se pode negar aos governos o direito de legítima defesa, 79-2),deriva da necessária transigência com as realidades, que obrigam a considerar simultaneamente "a condenação absoluta da guerra e a acção internacional para a evitar". Na distância que fica entre as condenações e a acção solicitada, os problemas novos é certo que não encontram respostas inequívocas. O texto do n 2 79 faz menção da guerra "mais ou menos latente", procurando abranger as formas de guerra subversiva e revolucionária, mas não pareceu possívelir além da teologia tradicional e da valoração do direito à autodetermiJ-Os ln La Chiesanel mondocontemporaneo, edição organizada por Enzo Giammancheri, Brescia, 1966, p.288. J-Oc,S. Tomás, Sum. Theol.,II- II, q. 40, art. l. 377 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS nação. Considera contrários ao direito natural os chamados crimes de g e assim deixa aberta a legitimação de Nuremberga. Uerra, Mas sobretudo foi necessário enfrentar a capacidade militar de destru· _ em massa e indiscriminada das cidades e populações do adversário. 'Çao Nunca foi fácil, no longo período da ameaça ~ecíproc~ ~e destruição ambos os blocos, condenar absolutamente a doutrma da utilização das ar de estratégicas, porque ela tinha relação evidente com a legítima defesa. o a lllas ao sentido de medida, que já Pio XII fazia no discurso de 30 de Setembr~~o 1954 dirigido à XIII Assembleia da Associação Médica Mundial, inscrevi e ' . d efcesa. Mais . tar d e, nas vesperas ' d a reeleiçãoa-se . class1ca ' . d e 1eg1t1ma na d outrma d 0 Presidente Reagan e da política da guerra das estrelas, a Conferência Episco . fc' • concreta na sua con d enaçao - d as armas atom1cas. '· pa1 Amencana 01mais Por outr lado, a própria guerra das estrelas, que teria um efeito causal importante n fim da Guerra Fria, ficava abrangida pela reprovação completa e segura da co: rida aos armamentos, um preceito da maior actualidade nos dias que estamos viver. O Concílio foi claríssimo em proclamar que não devem abandonar-se a: esperanças de que a Humanidade chegue a um ponto em que a guerra não seja apenas deplorada e condenada, mas também eficazmente interdita. O efeito é mais imediato e credível do espírito pacífico, enunciado em Pacemin Terris, sem dúvida o desarmamento. Mas a doutrina ensina, antes do texto constitutivo da UNESCO, que a guerra começa no coração dos homens. E por isso a intervenção de João Paulo II, com a Mensagem de Assis, representa a mais elevada contribuição no sentido de criar as condições que excluam das o recurso à guerra. Em 9 e 10 deJaneirode1993, a reuniãodoslíderesespirituais ° grandesconfissõesreligiosas, paraquetodosconvirjamnasprecese napedagogianosentido de eliminaraguerrado coraçãodospovos,foi oponto maisaltoda intervenção destinadaa conseguirquetodosospovospeçama inspiraçãodivinaque iluminea maneira deentrarnoséculoXXI. É a segunda vez que João Paulo II escolhe Assis e a invocação de S. Francisco para desenvolver a doutrina da paz à qual pretende que seja referida a Nova Ordem mundial. A imprensa internacional deu um excepcional relevo ao encontro cujos resultados estão a ser divulgados e meditados, tendo de sublinhar-se a coerência com a intervenção histórica na mudança na área dos antigos satélites, e a articulação com os esforços no sentido de vincular a futura Ordem internacional a valores éticos de projecção mundial. Desta feita, é particularmente a Europa que serve de tema, porque esta reincide na tradição de ser ao mesmo tempo a matriz de todo o direito internacional, e a responsável por algumas das suas mais graves violações. É por causa dos povos da Europa, e já não em benefício das áreas da colonização ocidental, que voltam a ser proclamados estes valores: cada Nação tem direito à auto· 378 AS FORÇAS EM ACÇÃO rrninação como comunidade; trata-se de um direito que pode realizar-se e d eração dete · · so b erama· po l'1ttca, · · me d"1ante uma 1e . rnediante uma pnvattva seia se):onfederação com outras nações. ou Aproclamação, não de coisas novas, mas feita de novo, tem como causa pró. a O drama da dissolução da Jugoslávia, que suscitou esta questão na Mensade Assis: "Poderia ter sido preservada uma ou outra modalidade entre as geções da antiga Jugoslávia? É difícil excluir tal possibilidade. Todavia, a guerra º:e se desenrolou parece ter afastado tal solução. E a guerra está em curso. ~urnanamente falando, parece difícil antever o fim dela". Sobretudo, parece difícil prever a modalidade de paz que virá a reinar sobre o território onde se mistura o sangue derramado por todas as comunidades sem excepção. A autoridade que o europeísmo dos valores reclama para intervir no mundo e na definição da Nova Ordem é gravemente posta em causa pela negação dos mesmos valores em terras e por povos europeus que praticam entre si todas as violações condenadas pelo direito internacional que formularam e impuseram mundialmente. Não faltaram os depoimentos que, no encontro, deram testemunho da quebra do respeito pela dignidade humana, e talvez seja paradigmática esta declaração de um representante da comunidade católica de Banja Luka: "vivíamos na grande diáspora, conjuntamente com os fiéis da Igreja ortodoxa sérvia e da comunidade islâmica, na parte norte-ocidental da actual República da Bósnia e Herzegovina ... (Sofremos) mortes e massacres de crianças indefesas, violação de mulheres e raparigas, pesadas agressões psíquicas e físicas de religiosos, prisões, tortura, e ainda mortes de sacerdotes, destruição sem motivo de numerosas igrejas e mesquitas, centros pastorais e edifícios privados dos nossos fiéis, dramática expulsão de fiéis de muitas paróquias, generalizados saneamentos de postos de trabalho, constrangimentos para participar na guerra contra o próprio povo ..." A lição é de humildade para a arrogância que renasce em várias sedes políticas europeias, e por isso o encontro de Assis novamente apela ao ecumenismo superador das diferenças, respondendo ao mundialismo das interdependências com a busca e formulação dos valores universais. Tem importância, para avaliar do significado do encontro, recordar que estiveram presentes delegações católicas de trinta e dois países e do ConciliumConferentiorum Episcopalium Europae, delegações da diocese de Banja Luka, das arquidioceses de Sarajevo e Belgrado, delegações interreligiosas de Mostar e Skopje, de várias comunidades eclesiais cristãs, designadamente ortodoxos, anglicanos, metodistas, luteranos, e ainda representantes do Hebraísmo e do Islamismo. Não pode deixar de salientar-se que o pluralismo das representações confessionais é limitado, no significado, pela restrita área geográfica da proveniência. ~1: 379 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Provavelmente o interesse da opinião pública fixou-se, por isso mes para além da Jugoslávia, na questão de Israel, em vista da identidade dos~o, e gados. Todavia o problema é mais vasto, e a necessidade de persistir ineg· ele. Talvez baste recordar que vivem cerca de 10 milhões de muçulman:"el. Europa Ocidental, dos quais três milhões se encontram em França, dois mi!~-na na Alemanha, outros dois milhões na Inglaterra e meio milhão, respec/es 1 "amente, na Holanda, Bélgica, Itália e Escandinávia. A coexistência, neste fim de século, com essas e outras colónias interior já demonstrou dificuldades suficientes em vários países, e parece realme es, aconselhável tentar que a razão desenvolva urgentemente processos que nt: " . dos fiéisevi. 1·1caçao - e agravamento d e con firontos. A convergenc1a tem a mu 1ttp d tantas confissões, e a resposta que deram, comparecendo, anima no sentido de aceitar que, tal como foi proclamado, não se trata de uma esperança superficia~ nem de uma concessão a optimismos fáceis. E, antes de mais, trata-se da cora~ gem de afirmar, em conjunto, que "usar a religião como desculpa para a injustiça e para a violência é um terrível abuso que deve ser condenado por todos os verdadeiros crentes em Deus". Recordando a Mensagem da Jornada para a Paz de 1970, de novo se condena uma paz obtida pela força, mas, tal como disse um humilde fiel, lembrado da guerra mundial e agora vítima dos confrontos: "espero que o perdão permaneça no meu coração ... todos aqueles mortos ... aquela violência feroz ... como então ... pior do que então. Façamos com que, pelo menos, à geração dos vossos filhos não aconteça, rapazes". Todas as confissões presentes convergiram nesta afirmação de João Paulo II: "viemos em peregrinação a Assis para invocar Deus: abater as barreiras do ódio ... abrir caminho à paz". Na longa teoria dos Projectistas da Paz europeus, o pensamento cristão é dominante, mas muitas outras áreas culturais enriquecem esse legado da luta pela paz pelo direito, e pela concórdia. A Mensagem de Assis convoca todos os que se reconhecem herdeiros de uma pregação comum, para que se reencontrem numa oração comum, capaz de dinamizar uma comum acção destinada a implantar a concórdia. Trata-se, sobretudo, de convocar para a acção. No entretanto, ao longo deste meio século de conflito bipolar, os conceitos de fronteiras,de jurisdiçãointerna,de soberaniae de forças de defesa,de segurança, armadassofreram uma radical modificação, porque os factos o exigiam. Ainda no começo deste século, quando se deram por estabilizados os impérios coloniais das democracias europeias, as forças armadas correspondiam aos modelos e valores das sociedades agrárias. O patriotismo, que é uma virtude de camponeses, e nasceu do trabalho da terra, do amor à terra, e do regresso final ao pó da terra, era um valor funda380 AS FORÇAS EM ACÇÃO al mesmo das sociedades industrializadas, porque a mudança cultural se sempre em tempo demorado. fazfoi durante o processo da Revolução Francesa que Goethe, assistindo à talha de Valmy,anotou, como vimos, ter assistido a uma mudança essencial, ba ual era a de os soldados combaterem gritando viva a França, e não já dando aq . ·vasao Rei. vi A mudança da matriz da fidelidade política, que alastraria a todo o espaço cidental onde o legitimismo foi progressivamente substituído pela democraº·a deu ainda maior relevo aos valores de Nação e de Pátria, que contrariaram 1 : a~anço de todos os internacionalismos até à unificação dos teatros estratéicos e às guerras mundiais. g Rara fronteira ocidental, se alguma, deixou de ter origem na guerra, de ser violadaem guerra, de ser restaurada pela guerra. Quando os governos ocidentais se racionalizaram em função das premissas dos regimes democráticos, os ministérios daguerraforam todavia de modelo comum a todos os países. A expansãocolonial do século XIX, que definiu a forma última do Euromundo, por iniciativadas democracias europeias da frente marítima (Alemanha, Inglaterra, França, Holanda, Bélgica), não apoiava um conceito de forças armadas apenas defensivas, assim como a experiência histórica, a antiga e a recente, semeada de conflitos armados aos quais o projecto napoleónico acrescentou a dinamizaçãodos teatros estratégicos, fizera considerar cada Estado vizinho como um inimigo íntimo. A guerra, à qual Clausewitz (1780-1831) deu um estatuto académico, foi o factosocial determinante, segundo o já citado Aron, da autonomia científica das relações internacionais 307 • Na tradição de Maquiavel, portanto, todo o Estado deve estar preparado para a guerra, isto é, para um confronto violento com o objectivo de submeter outro Estado pela força armada, com vista a assegurar a ratificação de exigências, ou para se opor a elas. A força é usada com violência, isto é, viola, quebra e destrói os valores, humanos e materiais, contra os quais é dirigida. Porque é que a natureza humana requer frequentemente uma decisão violenta dos conflitos, é uma questão não resolvida. Filósofos como Nietzsche (1844-1900) e Sorel (1847-1922) consideram o recurso à violência como o resultado de um louvável instinto. O primeiro, no famoso Thus spokeZarathustra(1883-92), Assimfalava Zaratustra,atacou o legado humanista cristão que acusou de responsável por uma corrente "moral de escravo", e defendeu a realização individual do tipo do Übermensch(supert 111ell J-OIKarl von Clausewitz, Da Guerra,Brasília, 1979. Raymond Aron , Penser laguerre,Paris, 1985, dedicou-lhe uma análise escolástica que o coloca na matriz de todas as escolas de pensamento posteriores. Foi 0 clássico de referência, nas escolas militares de ambos os blocos, durante a Guerra Fria. 381 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS -homem), que cultiva a força, o poder e a vitalidade "além do bem e do título de um escrito de 1886. IllaJ~, O segundo, que influenciou o pensamento político moderno com as Reflexõessobrea violência(1908), sustentava que a violência não é um fenó suas acidental ou de crise, é acolhido no domínio dos princípios da moral e dIlleno gião, e na área das instituições sociais e políticas, pelo que a confrontaç: re_liO tónica de todo o processo político, pelo que toda a oposição respeitável te e a ' . eLormade v10 . 1enc1a. • . A soc10 . b"101og1a, . na me d"ida emmde d esenvo 1ver a sua propna pretendeu esclarecer o comportamento das sociedades humanas recorreniu~ 0 analogia com as determinantes biológicas do convívio dos animais, animo ª 0 relevo a dar a um primitivo instinto de território próprio, uma perigosa evu tual contribuição para o racismo. en. Os estudos antropológicos não parecem abonar a sociobiologia, porq .. sistemas dhe onra, que persistem . "ddd ue encontram mais nas soc1e a es esenvolvi308 das, do que outras motivações • Entre a apologética da violência que regimes políticos (Hitler-MussoliniLenine-Mao) adaptaram, e as incertas conclusões sobre a natureza humana permanecem ofacto daguerra,a debilidade dapolemologia, a vontadepolíticadecisiva' o sistemade valoresadaptado,as soluçõesorganizacionais. ' Os referidos exércitos das sociedades agrárias foram chamados, designadamente em Portugal, espelho da Nação, e tornou-se paradigmática a afirmação de Mouzinho de Albuquerque (1855-1902) - estepaís é obradesoldados. A integração social dos jovens, como vimos, assentava essencialmente e primeiro na intervenção da família, depois na escola que não dominava o analfabetismo, na Igreja e, finalmente, nas Forças Armadas, porque o serviço militar era geral e obrigatório. Os exércitos necessitavam de uma grande quantidade de mão-de-obra, porque os instrumentos ao seu dispor eram tecnicamente de eficácia limitada. Os contingentes era nas fileiras que recebiam a doutrina e a prática, ambas orientadas por um sistema de valores patrióticos, que de algum modo colmatavam as insuficiências de intervenção das outras instituições. O espelho da Nação era realmente o corpo permanente dos oficiais e sargentos. A total ocupação do globo pelas soberanias, com reserva do património comum da Humanidade, a mundialização dos teatros estratégicos, a explosão 'º"A sociobiologia. que estuda os fundamentos biológicos do comportamento social de homens e the new-synthesis,Harvard, 1975. Os eco· animais, foi autonomizada por Edward Wilson, Sociobiology: animale logistas, bem representados por Konrad Lorenz, prémio Nobel de 1975, E/ comportamie11to Barcelona, 1977, fornecem apoio a urna renovada tendência política no sentido de dar relevo huma110, a urna ideologia ambientalista, negadora da primazia dos factores culturais. Ver Alain de Benoist, NovaDireita- NovaCultura,Lisboa, 1981, p.136 e sgts. António Marques Bessa, Quemgoverna?,Lisboa, 1993, p. 494 e sgts. 382 AS FORÇAS EM ACÇÃO . a e científica causada e aplicada à própria guerra, fez evoluir os exércitos céC~~~os para exércitos de laboratório, que exigem uma alta formação técnica agra uadros, e reduzem as exigências de mão-de-obra não-qualificada. A fund~Sdo espelho da Nação desaparece perante a integração assumida por orgaç~ºções políticas de juventude ou sindicais. niza dever m1·1·1tar ten d e para ser d esconst1tuc10na · · 1·1zad o e o recrutamento 0 d pta as formas do voluntariado e do contrato, salvo o caso de emergência. :1 ºonceito daguerraevolui, por deslocação do acento tónico, para um conceitode ~;sa eseguranç~, o que significa uma mudança no quadro dos valores int_erna.'onais,no senudo de repensar as guerras de agressão. Por sua vez, o conceito de ~~fesadeixa de estar centrado no braço militar para abranger complexivamente odos os recursos económicos, científicos, técnicos, financeiros, ideológicos, ~omsedes de responsabilidade diferentes das forças armadas, e que são todas envolvidaspela ruptura da paz, ou pela ameaça da ruptura da paz. o objectivo é a segurança, tlzeguaranteeofsafety,evitando a subida aos extremosda guerra que, em vista dos meios técnicos ao dispor dos governos - guerra atómica,guerra química, guerra bacteriológica - ameaça com o holocausto da Humanidade. Este equilíbrio instável, da guerra impossível e paz improvável no dizer de Aron,que caracterizou o comportamento dos blocos até 1989, acabou por receber o nome de GuerraFria,uma expressão criada por Bernard Baruch em 1947, e cornada de uso mundial pelo famoso jornalista Walter Lippmann. O fim da Guerra Fria não diminuiu os riscos porque a crise da cadeia de comando dos antigos exércitos soviéticos multiplicou os poderes políticos com acesso às armas estratégicas, e os conflitos regionais deixaram de estar contidos pela antiga Ordem. O facto é que os Estados e os povos suportam cada vez com maiores dificuldades as despesas e encargos militares, os grandes poderes procuram diminuir os orçamentos respectivos, as chamadas armas inteligentes exigem a revisão das doutrinas estratégicas, as armas estratégicas disseminam-se vertical e horizontalmente. A doutrina que procura condenar e eliminar toda a forma de guerra continua desafiada pelos factos 309 • 2. A lógica do poder económico Amaior parte das relações entre os povos e entre os Estados são hoje de natureza económica, embora a política económica e as políticas do poder actuem inter309 António Emílio Sacchetti, EstratégiadeDissuasão,JSCSP, Lisboa, 1989. RomeDeclaratio11 on Peaceand Meeting of the North Atlantic Council in Rome, (a 7 e 8 de Novembro de 1991},NATO Cooperation, Office oflnformation and Press, Bruxelas . Harry Gelmon, "Rise anf fali of détente", in Problemsof Communism,Mar.-Abr., 1985, p. 5 e sgts . Richard Ned Lebow, "Deterrence reconsidered : the challenge of recem research", Surviva/,1985, p. 20 e sgts. 383 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ligadas, como aparece evidente no que respeita ao comércio de armas. Mas exemplo crítico é apenas um sector limitado de um complexo de relaçõeseste que a política determina largamente a moldura das relações económicas, e e elll st estão relacionadas com os objectivos políticos do poder3 10• O movimento coI ~ 1 zador que teve a referência na Conferência de Berlim de 1885 foi deterrnin principalmente por razões económicas - a busca de mercados e de matéria/ ? mas-, e a descolonização, depois de 1945, foi igualmente muito deterrnin~~ipela filosofia americana de livre acesso aos mercados e matérias-primas. a Trata-se de um problema essencialmente relacionado com a lógica da Iu pela posição na balança internacional de poderes, que subordina a política ec!~ nó mica a uma lógica subordinada àquela. Assim como a luta puramente polític conduziu às instituições internacionais e à transnacionalização dos processosª assim também a área das relações económicas deu origem a um conjunto de ins: tituições governamentais internacionais. Problemas de segurança do comércio como acontece com a rota do Atlântico, têm imediatos reflexos na área militar'. A políticaeconómicainternacionalé assim,no conceito de Gilpin, a recíproca edinâmicainteracçãonas relaçõesinternacionaisem buscade riquezaepoder.Deste modo o poder económico pode compensar, na balança de poderes e suposta a paz,~ ausência ou perda de poder político. Num livro que fez carreira, Akio Morita, lidando com a dimensão actual do chamado milagre japonês depois de o país ter sido vencido pelos EUA e proibido de ter forças militares, acentua a necessidade de avisar os americanos no sentido de não descansarem na imagem de superpotência, para que se concentrem na recuperação da economia. Nota, por exemplo, que sem os semicondutores produzidos pelo Japão, a eficácia dos mísseis estratégicos americanos não pode ser garantida. Sublinha que se o Japão suspendesse a venda de alguns elementos aos EUA e tivesse passado a vendê-los à URSS, o equilíbrio estratégico mundial teria sido afectado. Concentra-se também em tentar demonstrar que os americanos orientaram a sua economia pela noção do lucro imediato, jogando com o dinheiro, enquanto que os japoneses se preocupam com a produção e com a planificação. Desta afirmada superioridade espiritual e industrial não se podem deixar de tirar imediatamente conclusões políticas, entre elas a de que o Japão é um pilar da era moderna, que a dominância da etnia branca se extinguiu, que a revogação do tratado nipo-americano é um acto de sabedoria, que o Japão pode organizar uma defesa militar eficaz, que a capacidade tecnológica do Japão é a base da sua defesa 311• °~ 110 Robert Gilpin, USPolllera11dthe 111ulti11atio11al corporatio11, N.Y., 1980, p. 21. Akio Morita, Noto JeruNippo11, trad. ing., N.Y., 1989. G. Friedman, M. Lebard, The comi11g J11ar with Japa11,Londres , 1991. K. Postel-Vinay, La révolutio11 si/endeuseauJapo11, Paris, 1994. 111 384 AS FORÇAS EM ACÇÃO Estadosna ordemeconómicainternacional 1~ osdemeconómica internacional, os Estados desempenham um papel diver~:iordo em função da própria ideologia que os orienta. Os Estados de orientas1?c~beralou neoliberal fazem uma política económica que confia nas regras ç:io ercado, de modo que o intervencionismo do poder destina-se sobretudo a domegerO jogo transparente da lei da oferta e da procura. Naturalmente é outra prº~ria das políticas dos Estados socialistas e terceiromundistas, a qual, muitas 11 ceessem racionalidade económica, procura criar correntes de trocas a partir do vezO Num campo socialista a divisão internacional do trabalho não resulta do 1,er• . d os acor d.os mternac10. • do merca d o e d as vantagens compara d as mas sim 0 JºJs definidos em função de objectivos volumaristas. Para os países do Terceiro ~undo, trata-se de eliminar as desigualdades entre os Estados desenvolvidos e osEstados em desenvolvimento, pelo que a recusa do livre funcionamento das leisdo mercado é um princípio de justiça e orientador das políticas. Uma das principais funções dos Estados na vida económica internacional resultade serem os autores principais do direito aplicável à economia internacional,direito que é fundamentalmente de origem convencional e com expressãoem tratados. Estes tratados são de várias espécies: a)normativos:como regra elaboramum sistema específico (monetário, comercial ou financeiro), confiado a uma instituição internacional - Fundo Monetário Internacional - FMI, Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD, Organização Europeia de Cooperação Económica - OECE/OCDE; b) bilaterais:prosseguem por vezesos mesmos objectivos, mas entre dois Estados; e) casuísticos: regulam um caso particular, por exemplo, a exploração do petróleo e a sua comercialização, como a Organização dos Países Exploradores de Petróleo - OPEP. Estas convenções afectam em regra as entidades privadas que actuam na vida económica internacional. A intervenção do Estado na vida económica internacional varia conforme planificadacentraladopta uma concepção de economiademercado,ou de economia mente,ou de Estadoem viasdedesenvolvimento. O Estado capitalista, que tem uma concepção de economia de mercado, actua orientando-se para uma distância entre o poderpolíticoe o podereconómico: assume o primeiro, e aceita que o segundo é próprio dos agentes da sociedade econócivil,indivíduos ou sociedades. O interesse públicoé diferente dos interesses micos privados,embora as interferências sejam frequentes. Deste modo, quando o Estado capitalista intervém na vida económica internacional, em regra é para acordar o quadro jurídico em que se desenvolverão a livre concorrência e a competição dos agentes privados. Por isso, a ordem internacional neoliberal elaborada depois de 1945 pelos Estados capitalistas vencedores da guerra não tem 385 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS carácter directivo, e baseia a sua lógica no pressuposto de que a maximiza _ . . su fi1c1ente . - economicas ' Çaoc1 lucro e' um mcent1vo para d esenvo lver as re laçoes . o nacionais e chegar a uma divisão internacional racional do trabalh O 312_ Inter. Os Estados chamados socialistas, e que são os que adoptaram o model . . 1 ciado pela Revolução Russa de 1917,baseiam-se em princípios exactamente ~ n1tos: não há separação entre poder político e poder económico, nem disti P~sentre interesse público e interesse privado. As acções económicas inter:Çao externas são actos públicos do Estado, que substitui a lei do mercado pelap/a e ' . O comerc10 ' . externo e' portanto estatiza · d o, e as trocas do EstniJ,. caçãoeconom1ca. cl 0 socialista com outros Estados submetidas a um regime de direito público. a O Estado também coopera, por necessidade, na elaboração de um quad jurídico internacional, mas é ele que executa e não entidades da socieda~º civil. Em resumo, domina todo o processo dos fluxos económicos, porque e planificação integral da economia interna tem como consequência a submiss· ª , . l . ao d as reações l econom1cas externas ao Pano. E por isso que os tratadosbilatera· são mais utilizados do que os tratadosnormativos.É por isso que a articulaçã~ do mundo socialista com o mundo neoliberal foi difícil, visto que os critérios marxistas, aplicados à organização do Estado, são um entrave à livre circulação de capitais e mercadorias, e contrariam os investimentos estrangeiros. Ora, a livre circulação de capitais e mercadorias, a segurança dos investimentos, são pilares das concepções e políticas capitalistas. O resultado objectivo foi que os países capitalistas, no fim da Guerra Fria, detinham 70% das trocas mundiais, e os países socialistas não possuíam mais de 10%313 • O conceito de paísesem viasde desenvolvimento, que abrange normalmente todo o Terceiro Mundo, é relativamente recente, tendo aparecido a circular na década de sessenta. O referido desenvolvimento económico é também relacionado por alguns autores com o desenvolvimento culturale o desenvolvimento político.A teoria do desenvolvimento cultural é a que encontra mais dificuldades, quando entendida não como instrução, mas como modelos de conduta da comunidade, porque estes não são alguma coisa por natureza em progresso, o qual não coincide com a mudança. Mas para o desenvolvimento político, critérios ideológicos permitem traçar uma teoria do desenvolvimento: por exemplo o desenvolvimento da divisão de poderes e limitação do arbítrio do Estado, o desenvolvimento da representação política e do regime democrático, o desenvolvimento do respeito pelos direitos do Homem. ª~ 312 Bertrand Bellon, L'interventionismelibéra/,Paris, 1986. Kempf, Lacorne, Toinec, Le libira/ismeà l'américaine: l'État et /e marché,Paris, 1989. Thomas McGraw, Profitsof regulation,Cambridge, 1984. 313 Wlodzimierz Brus, Kazimierz Laski, FromMarx to Market:socialismin searchof a11economicsystem, Oxford, 1989. Bernard Chavance (dir.), Régulation,cycleset crisesdans/es économiessocialistes,Paris, 1987. 386 ---- AS FORÇAS EM ACÇÃO 0 desenvolvimento económico tem critérios objectivos mais evidentes, e malmente é uma expressão usada para designar um processo de crescinornto econom1co ' · expresso no ren d"1mento per capita, . e mu d anças fun d amenfll~ na estrutura económica que dão origem a tal crescimento. Estas mudanças ~ª~uem geralmente a industrialização, a emigração da força do trabalho do znrnpo para áreas industriais, a divisão do trabalho, a revisão das relações de caodução especialmente no que se refere ao acesso à propriedade da terra e p:rnento de investimento 314. ª A teoria da história de Marx baseia-se na convicção de que o crescimento das [orçasprodutivas determina a mudança das relações de produção, com a consequênciade obrigar à mudança de toda a superestrutura social. Antecedendo a entrada em circulação do conceito de países em desenvolvimento, teve grande projecção a teoria de Rostow sobre os patamares do crescimento. Seriam eles os seguintes: 1) economia tradicional na qual os usos e costumes impedem o desenvolvimento; 2) pré-condições para o take-off,designadamente as disposiçõespara o moderno desenvolvimento tecnológico; 3) take-off,o estádio em que a economia gera um surplussuficiente para sustentar o próprio desenvolvimento;4) a viragem para a maturidade, em que há um salto das importações para a exportação; 5) maturidade económica; 6) alto consumo de massas 315• Também Marx distingue seis estádios, embora referidos sobretudo a uma parte da história da Europa: comunismo primitivo, escravatura, feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo final. Os factos não estão a demonstrar a justeza da previsão, tendo em conta a evolução do Leste europeu. É corrente distinguir os patamares de crescimento nos países em desenvolvimento, dos patamares de desenvolvimento em países de capitalismo consolidado no pressuposto de que as condições dos primeiros são dependentes das condições já adquiridas pelos segundos. A classificação de Rostow tem recebido um apreço sobretudo pedagógico, e de facto auxilia na compreensão da diversidade das políticas económicas dos Estados 316• A aplicação desta moldura aos Estados concretos não é fácil, não apenas pela dificuldade de apreciar os factos, mas também porque afectam os valores referentes à dignidade nacional, e alguns não aceitam o qualificativo. Foi por razões deste último tipo que a designação de paísesatrasadosfoi afastada da linguagem diplomática e académica. De modo geral, segundo os estudos de 31 ' E. J.Mishan, The costof economicgroivth,1969, para uma crítica da política de investimento para o crescimento, em prejuízo do consumo imediato. 315 W.W. Rostow, Stagesofeconomicgrowth, N.Y., 1960. 310 Adriano Moreira, A comunidadeinternacionalem mudança,S. Paulo, 1967; CiênciaPolítica,Coimbra, 1995,p. 371 e sgts. Relatóriodo GATT. que é publicado cada dois anos. UNCTAD, TradeandDevclopment Repori,N.Y.,1989. 387 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Fourastié, os economistas e os sociólogos atribuem-lhes as seguintes e ' . fraco pro duto nac1ona . 1bruto, ba1xo · ren d"1mento per capita, · indaraci:_ensttcas: lização insuficiente, base elevada de analfabetismo, mulheres dependu sttia. trabalho de menores, partido único. entes, Mas a regra que de facto vigora na vida internacional é a do sist ernad autoqualificação,com a reserva de os outros Estados poderem não a ac . e ;ttar. A importância da qualificação é que os Estadosem viasde desenvolvimento l h d d' . . ecla. positi mam gera 1mente um estatutopart1cuar com as c ama as tscnmmações destinadas a aproximar as suas condições das que naturalmente já possue Vas, outros Estados. Mas não há um conceito pacífico, operacional ou jurídic: ~s ' e país em vias de desenvolvimento 317• O princípio da dualidadedenormas,resultante da exigência de um estatuto p ticular,deu origem a um direitododesenvolvimento porque os Estados desenvo!a~Vtdos vão concordando, porque os subdesenvolvidos recusam a ordem económic internacional neoliberal, e o facto da solidariedade e interdependência mundia~ exige essa articulação especial sob pena de as relações não terem o pacifismo desejável. Os factos parecem abonar esta solução proteccionista, visto que a parte destes países no comércio mundial tem decrescido continuadamente e são tributários de uma degradação dostermosdetrocaporque assentam geralmente a sua economia na exportação de matérias-primas cujo preço não acompanha a dos produtos industriais que inevitavelmente precisam de importar3 18• II - Os organismoseconómicosinternacionais A interdependência e a mundialização tiveram especiais efeitos no domínio das relações económicas, que são as mais numerosas, e por isso também o fenómeno da institucionalização se manifestou largamente. Uma tentativa de classificação funcional atenderia ao objecto das instituições, que seriam comerciais, financeiras, monetárias. Acontece porém que muitos organismos, sobretudo os regionais, têm objectivos complexos, pelo que é mais fácil classificá-los segundo a sua vocação seja mundial ou regional. Na Conferência de Bretton Woods, em Julho de 1944, antes do fim da guerra, os aliados decidiram criar três institutos de vocação mundial a integrar no sistema das Nações Unidas: FundoMonetárioInternacional-FMI; BancoInternacional 317 Jean Fourastié, Jr,ventariodeiporvenir- las40000 horas,Madrid, 1965. Louis Armand, PlaydoJ•er pour /'avenir,Paris, 1961. 3 Banco Mundial, Rapportsur lediveloppement dansdemonde,Washington, 1989 {anual}.Pascal Arnaud, '" La dettedu tiersmonde,Paris , 1988. Sus:in George,Jusqu'aucou,rnquetesur la dette du tiersmor,de,Paris, 1988. M. Bassoni, A. Beitone, Problcmesmonitaircsinternationaux,Paris , 1989. Wladimir Andreff, "Les politiques d'ajustement des pays en développement à orientation socialisteff, Revue Ticrs-Monde, p. XXX, Paris, 1988 . 388 AS FORÇAS EM ACÇÃO Reconstrução e o Desenvolvimento - BIRD; uma organização comercial que, Pª'~ ªrarde, acabou por ser o AcordoGeralde Tarifase Comércio-GATT. fllª~ primeiro (FMI) foi encarregado de gerir um "código de boa conduta dos s" em matéria monetária, e ajudar os Estados a vencer dificuldadestemfsta do ' ,,;ascom a balançadepagamentos. segundo (BIRD) devia enfrentar as dificuldades a longo termo, de natua estrutural,financiando capitais de investimento aos Estados nessas condir::s. Combinam-se assim os objectivos inseparáveis do equilíbrioa curto prazo ç~esenvolvimento a longo prazo. Por isso um Estado tinha que pertencer a ambas instituições para beneficiar do sistema. Nos termos dos artigos 57 e 63 da Carta da ONU, e por uma convenção-quadro, deviam ser instituições da ONU. A terceira instituição deveria ser a Organização Internacional de Comércio (OIC),cujos estatutos chegaram a ser aprovados em 1948 (Carta de Havana), mas Senado dos EUA opôs-se à ratificação. A título provisório, que permaneceu, 0 tinha sido criado em 1947, em Genebra, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT),a única instituição comercial de vocação mundial3 19• Dizem-se instituições de vocação mundial porque foram estruturadas para acolherem todos os países do mundo, mas o conflito de orientações entre os países que sustentam uma ordem neoliberal, e os restantes, desencorajou a participação de socialistas e neutralistas. As fronteiras nacionais introduzem o que se chama descontinuidade nastrocas comerciais e movimentos dos fac tores de produção. Não apenas a doutrina do comércio livre que os EUA, por exemplo, sempre advogam, mas a tendência verificada para a constituição de grandesespaços que supram as insuficiências do Estado, teriam a sua expressão institucionalizada no regionalismo económico, que atinge países capitalistas, socialistas, e em vias de desenvolvimento. Tais regionalismos servem, em conjunto ou separadamente, as finalidades da cooperação e da integração. Visaram essencialmente a cooperação as citadas OECE/OCDE e o COMECON que fazia parte da estrutura soviética. O regionalismo económico da integração orienta os países desenvolvidos que aderem à União Europeia. Este último não utiliza sempre a mesma forma política: uma vezesusa as zonasdelivretroca,nas quais são suprimidas as restrições comerciais e os direitos aduaneiros entre os participantes; na uniãoaduaneiraexiste uma tarifa comum exterior; nos mercadoscomunstodos os factores de produção cir- Pº'~ :s 319 Michel Rainelli, Le commerce internationa/,Paris, 1988. Rapportdu GATT, que aparece cada dois anos. Desde 1947 até 1993, o GATT foi objecto das seguintes negociações multilaterais: Génova (Abril-Outubro de 1947); Annecy (1949};Torquay (1950-1951};Dillon Round (1961-1962};Kennedy Round (1964-1967}; Tokyo Round (1973-1979}; Uruguay Round (1986-1993). O GATT foi substituído pela Organização Mundial de Comércio (OMC) em 1 de Janeiro de 1995. D. Clerc, H. Delorme, Lesaccords duGATT, Paris, 1995. P. Rainelli, Le GATT, Paris, 1994. 389 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS culam livremente. Apontam-se ainda formas superiores de integração: as ._ económicas,dentro das quais os Estados harmonizam as políticas econó u?'0es monetárias, fiscais e sociais; as uniõessupranacionais,nas quais os Estadoilltc~s, nam a soberania económica a favor de autoridades comuns com poder d: ~he. ciso·· ob ngatono · , · 320 . no Existem finalmente instituições que se enquadram mal nas categorias. . . . . · de naturezaeco Jur,. d .1cas existentes: são os estabelec1mentos pu'b/'1cosmtemac10na1s , mica, criados para desempenharem funções específicas que não se adap no. às molduras tradicionais: é o caso do Banque de Reglements Internaciontain (BRI), criado em Bâle em 1930, dos bancos centrais comuns aos países da D ~~Jc Monetária Oeste-africana e aos Estados da África central (BCEA e BCE~~o Os bancos regionais de desenvolvimento entram geralmente nesta categoria~· Todos estes organismos são exemplos de organização baseada na igualdade dos Estados, ou de ponderação,pelo número de votos, da importância de cad membro. O traço mais comum entre eles é que frequentemente possuem podernormativoquase legislativo, visto que os seus actosunilateraissão fonte de direito aplicável. O Fundo Monetário Internacional (FMI) tem mesmo um poder quasejudiciário,visto que lhe compete interpretar os seus próprios estatutos e resolver os conflitos relativos à sua aplicação. u; III - As empresasmultinacionais O fenómeno das empresas hoje chamadas multinacionais é antigo, mas no último meio século transformou-se num dado fundamental das relações internacionais. Fazem-se vários exercícios pedagógicos para mostrar a importância das multinacionais, mas eles geralmente dizem respeito à sua dimensão, e o importante é a função e as políticas de que se rodeiam. Por exemplo, a GeneralMotors,tendo em conta o PNB dos Estados, classifica-se em 13º lugar entre o México e a Suécia. Os seus empregados excedem em número a população nacional do Luxemburgo. Os activos líquidos da Standard Oil (ESSO) ultrapassaram em valor a reserva de ouro dos EUA, e a sua frota tem tonelagem superior à da Grécia. Normalmente têm sede nos países que seguem o modelo neoliberal, com grande vantagem numérica para os EUA. A explicação estrutural, e não conspiratória, está em que a internacionalização, a interdependência, o recurso aos grandes espaços, tem uma resposta adequada nas multinacionais. É problema diferente o dos métodos que utilizam eventualmente na sua política, e o nível de justiça que acompanha a sua actividade económica. É por isso que a ONU, 3"' J. Rideau (edt.) Lesaspects juridiquesdel'i11tégration économique,Colónia, 1971. Carreau e Juillard, Droit 111/enzational Économique,Paris, 1980, p. 29 e sgts. 390 AS FORÇAS EM ACÇÃO ocDE, e alguns parlamentos lhe dedicam uma crescente atenção 321• O próa .0 conceito de empresa multinacional é difícil de estabelecer pacificamente: corporação? Deve ~izer-se multi~:~edizer-se fir":ª• empresa,uni~ade,companhia, ou transnaczonal? Tornou-se corrente o conceito do Consecional,internaczonal 11ª , • . 1C.1rances: as soc1ed ades cuia. se de soc1a . 1esta, num pais , Jbo Econom1co e socia determinado e exercem as suas actividades num ou vários outros países, por . cermédio de sucursais ou filiais que coordenem" 322 • 10 As relações das multinacionais com os Estados da sede e com os restantes coroam-seextremamente complexas, e daqui a sua importância no panorama mundial das relações internacionais. Preocupações nacionalistas levam uma corrente, representada por F. Perroux, a entender que elas são sempre o aliado irresistível do governo do seu país de origem 323 • Outros detectam sobretudo relações deconflitoporque minam a autoridade e poder do Estado, pelo que Veremperigo(sovereignty at non se celebrizou com um trabalho chamado a soberania bay). Casos de grande projecção política mundial, como o derrube e morte do presidente Allende no Chile, foram relacionados com interesses de uma multinacional pela opinião pública. A conclusão de Carreau e Juillard é que "a tendência é mais no sentido dos conflitos do que no do acordo sem nuvens." Não nos interessam aqui os conflitos correntes com os governos dos países da sede, mas sim o seu papel nas relações económicas internacionais e os conflitos típicos com os países de acolhimento das suas sucursais e filiais. Antes convirá dizer que a presença de uma multinacional num país em desenvolvimento tem vantagens iniciais: os investimentos melhoram a balança de pagamentos internacionais do país hospedeiro, aumenta as exportações e a distribuição dos rendimentos, cria empregos, transfere tecnologias novas. Todavia,os mesmos países consideram-se rapidamente defraudados pela razão de troca das matérias-primas de que as multinacionais se apoderam, acusando-as de pôr em causa a soberania do Estado sobre os recursos naturais. Todos os países africanos que foram colónias fazem esta reclamação. Algumas vezes a actividade da multinacional entra em conflito com a planificação económica do Estado hospedeiro, assim como não transfere sempre uma tecnologia que não seja obsoleta. A mão-de-obra empregue causa eventualmente tensões sociais porque é mais bem remunerada que a mão-de-obra empregue por empresários locais. Os efeitos na balança de pagamentos podem ser negativos, pela necesA " • 321 OCDE, Investissementinternationa/etfirmes multinationales,Paris, 1976 .. Goldman (edt .), L'Entreprise multinationa/e face au droit,Paris 1977. 312 Carreau, cit, p. 46. m Perroux, L'lndépendence dela Natio11,Paris,1978, p. 179-180. Wladimir Andreff, LesMultinationales, Paris, 1990. Charles-Albert Michelet, Le capitalisme mondia/,Paris, 1985. ONU, Lessociétéstransnationa/es dans/edéveloppement mondial.Tendances etpmpectives,N.Y.,1988. 391 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS sidade de transferir rendimentos e capital. Os países do Terceiro Mundo sua debilidade, enfrentam mal as organizações como as multinacionais 'r:Pela , ,e ac·1 mente ficam dependentes delas. E deste facto que deriva a expressão rep'b .1 • dasbananasaplicada a repúblicas sul-americanas que foram dominadas po" lica multinacional americana do ramo. rurna No campo da estrutura das relações internacionais, as multinacionais a e contribuem para a divisãointernacio/;ntuam o fenómeno da interdependência trabalhocom a qual se optimizam os recursos mundiais. Hoje dominam pª ~o camente o comércio mundial, grande parte dele entre estabelecimentos, si:ati' . pa1ses, ' d a mesma mu ltmac10na . . l, esta b elecen d o uma corre ua. d os em vanos comercial fechada. Deste modo podem falsear a lei da oferta e da procurante . a economia. d e merca do, b a1xar . os preços na ongem, . que se b ase1a fazendo-elll os . d . . d' su bir no estmo, e assim por 1ante. O peso das multinacionais no sistema financeiro internacional também . importante, em vista da sua interferência na corrente dos investimentos, apro~ veitando da diferença de sistemas legais e modelos fiscais e financeiros. Existe a convicção de que a maior parte dos financiamentos das multinacionais americanas na Europa foi realizada com recurso aos contribuintes indígenas e não com importação de capital. Também é frequente que instalem as sedes em paraísos fiscais- Suíça, Liechtenstein, Antilhas Holandesas, Panamá, Bermuda Singapura - fazendo discriminações financeiras entre os Estados. ' Dispondo de uma liquidez considerável, as multinacionais também influenciam a política monetária internacional, porque devem colocar essas reservas nos mercados monetários, fazendo circular rapidamente grandes somas de um mercado para outro. Os Estados são muitas vezes, em consequência, obrigados a desvalorizar ou reavaliar as suas moedas, com as perturbações consequentes. Diz-se que o abandono das paridadesestáveisprevistas pelo acordo de Bretton Woods de 1944, e a sua substituição por um sistemadetaxasde câmbioflutuantes, foi uma resposta necessária dos Estados ao desafio das multinacionais. Pelo que toca às integrações regionais,o papel das multinacionais não é claro. Por um lado a sua acção parece coincidente com o movimento da abolição das fronteiras a que corresponde a integração regional. Mas a acção das multinacionais favorece mais a integração mundial. Antes da aproximação política entre a CEE e o COMECON, verificou-se que havia anos que as multinacionais atravessavam as fronteiras entre os dois blocos. Trata-se portanto, como diz Car· reau, de verdadeiros poderesprivadostransnacionais. Daqui, um problema internacional que já parece um confronto de poderes, e que é o da necessidade de uma regulamentação internacional das multinacionais. A atitude que pode surpreender-se no comportamento dos Estados não aponta para uma convergência próxima de pontos de vista. Um grupo impor392 AS FORÇAS EM ACÇÃO de Estados de economia de mercado não se sente inclinado para estabec:intecontrolos sistemáticos, e nesse grupo se contam os EUA, a Alemanha, a JeCrnda e a Suíça; outros como o Japão, e os países de economia planificada, rl0 ªram-se reticentes quanto às multinacionais, não aceitam filiais no seu ter~o,s;iocom 100% de capital estrangeiro, e preferem a associação com a firma rito maioritária. Algumas vezes os Estados excluem os capitais estrangeiros Joca1 , . 'd" d certos sectores, como a aeronaut1ca e a ra 10. e A capacidade de reacção dos países em vias de desenvolvimento é sempre enor,enquanto que a sua necessidade de investimento externo é relativamente :aior. Uns lançam-se na atitude liberal porque reconhecem que não possuem ondições para um controlo; outros defendem a soberania sobre os recursos eaturais e lançam-se nas nacionalizações, demonstrando que estas podem ser :ma arma dos fracos e não dos fortes. A linha que parece mais equilibrada, para progressiva no capital de ospaíses em vias de desenvolvime?to, é a da participação filiaislocais das multinacionais. E claro que a dificuldade é sempre a mesma, isto é, a capacidade de financiar a participação estadual ou privada. Por seu lado, as multinacionais procuram responder ao clima internacional, naquilo que tem de adverso para elas, instituindo um código de boa conduta, queteve o seu paradigma no "guiaparaosinvestimentos internacionais" apresentado e!Il1982 pela Câmara de Comércio Internacional. A OCDE tem feito esforços no mesmo sentido, e em 27 de Junho de 1976 tornou pública uma declaração com os "princípios directivos" análogos aos da CCI. Embora não se trate de princípios jurídicos,são guidingprincipiesque vão sendo geralmente observados. "A tendência para o estabelecimento de um estatuto internacional das empresas multinacionais é cada vez mais forte, porque não obstante a importância política da figura da multinacional, o direito positivo actual não conhece empresas com estatuto internacional" 324 • 3. O liberalismo: 1815-1914 Não obstante o Congresso de Viena (1815)legitimista, a época que se segue é submetida a regras liberais do ponto de vista económico. Existem proteccionistas como Friederich List na Alemanha e Carey nos EUA, por razões de debilidade dos respectivos Estados. Mas o princípio dominante, interna e externamente, era o famoso "laissez faire,laissezpasser",com o corolário de que governa melhor o governo que governa menos . O país que mais persistentemente aplicou a doutrina foi a Inglaterra, justamente porque a superioridade relativa lhe garantia 32 ' Carreau, cit., p. 62 e sgts. Charles-Albert Michelet, Le capitalísmemondial,Paris, 1985. ONU, Lcs sociitéstransnacionales da11s /e développement mondial.Tendencesetperspectives, Centro sobre as sociedades transnacionais da ONU, N.Y.,1988. 393 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS um avanço sobre os outros, e condenava muitos destes a especializarelll agricultura ou no fornecimento das matérias-primas. Na actualidade ·se na flito reacendeu-se com os países chegados à independência e que atribu: con. 111 mais desenvolvidos a intenção, e muitas vezes o êxito, de conseguire 111i aos 111 tar um neocolonialismo. Plan. De qualquer modo, a ordem económica liberal internacional supunh o instrumento jurídico da vida económica era o contratoe que os agentesª que · d as. A s trocas comerc1a1s · · eram 1· · empresas pnva 1vres,o movimento de ca eralll . . b, E Ptta . . . • . era 11vre,os mvesttmentos estrangeiros 11vrestam em. m resumo, liberd 18 contratual internacional, liberdade de trocas comerciais, liberdade de p ade mentos, liberdade de movimento de capitais, com garantia dos Estados Eaga. · stes exerciam raros controlos, de acordo com a filosofia do Estadogendarme. O liberalismo, que moldou o Estado racional-normativo ocidental, o cons . 1 tucionalismo e as garantias dos direitos individuais, teve doutrinadores co; • Espinosa, Locke, Montesquieu, Kant, Bentham, J. Stuart Mill, Jefferson, Mad~ son, pelo que a riqueza e diversidade de correntes é muito grande. O núcleo dos seus valores característicos é porém claramente identificável, e entre eles se destacam o valor da pessoa, os direitos naturais do Homem, o valor supremo da liberdade, uma visão antropocêntrica da vida, a perspectiva universalista dos direitos e dos deveres, a tolerância moral e religiosa. Os seus modelos mais importantes, que a corrente liberal implantou na vida internacional, foram: a livreempresa,o mercadolivre,a liberdadede comérciointernacional.A implantação internacional destes modelos teve como instrumento a cláusulada naçãomaisfavorecida,que pela primeira vez aparece no tratado de aliança e comércio de 6 de Fevereiro de 1776 entre a França e os Estados Unidos. Embora fosse condicional e começasse por se referir a uma situação privilegiada, tornou-se tão geral e costumeiraque Nole escreveu que "o tratamento de nação mais favorecida ou o tratamento igualitário (pode) ser considerado como a regra geral das trocas" 325 • Naturalmente os Estados alternaram com frequência entre a liberdade de comércio e o proteccionismo, conforme a evolução das suas capacidades e necessidades. No campo ocidental, depois do chamado Kennedy Round (1963-1967), a tendência é para abandonar a protecção tarifária. Esta orientação convive com a necessidade de um políciaeconómicaque evite que as organizações poderosas falseiemascondições deconcorrência, e com a referida cooperação que promova um estatuto internacionalmente válido para as multinacionais. Foi caract erístico desta época o padrãoouroque produzia ajustamentos automáticos e rejeitava Carreau, cic, p. 69. Guy Sotman, La solutio11 libérale,Paris, 1984, p. 149. Michel Crozier, 011nechange pas la sociétépar décret,Paris, 1979. 325 394 AS FORÇAS EM ACÇÃO intervencionistas. Todavia, os empréstimospúblicosinternacionaisnão 1·1vres, e os mvestzmentos · · d'll'ectosprzva · dos,sen do 1· 1vres, nao 1ora:r~m intervenções de países estrangeiros para protegerem os capitais dos st :ifil acionais contra abusos de nacionalizações ou expropriações dos goverseus países do investimento. Na América Latina, tradicional devedora e 1105 edeira de capitais estrangeiros, e também com uma vida política interna 0º5tstados tradicionalmente inquieta, nasceu a doutrinaCalvo,que procurava ~osedir ali o direitodeprotecçãodiplomáticainvocado pelos Estados dos investi:;es. Não foi geralmente acolhida, e houve exemplos de intervenção militar dosEstados dos credores para proteger estes, como aconteceu com o bloqueio daVenezuela em 1920. , • 1 O ht p 5 'ª•nteiramente :os 4. o nacionalismo da paz instável 0 período que decorre entre as duas guerras mundiais tinha sido previsto pelos vencedoresde 1918 como de um liberalismo internacional. O artigo 23 do Pacto daSociedade das Nações dizia que "os vencedores tomarão as disposições necessáriaspara assegurar a garantia e a manutenção da liberdade de comunicação e do trânsito, assim como um tratamento equitativo do comércio de todos os membros da Sociedade, ficando entendido que as necessidades especiais das regiões derrotadas durante a guerra de 1914-1918 deverão ser tomadas em consideração." Mas logo em 1917 se verificou a revolução soviética que pôs em circulação efectivaa categoria do Estadocomerciante; o nacionalismo renascente da Alemanha e da Itália não se compaginava com o liberalismo; a grandecrisede 1929 pareceu a derrocada final do projecto liberal. O Estado aparecia a intervir interna e externamente, a guerraeconómicaera uma característica da conjuntura da paz militar. Depois de 1930, o proteccionismo aduaneiroteve a mais significativa expressão na tarifa americana chamada Smoot-Hawly, ainda hoje aplicada aos países que não são membros do GATT, ou que não assinaram com os EUA tratados com a cláusula da nação mais favorecida. A política de subsídiosà exportaçãoe as práticasde dumpinggeneralizaram-se, com a contrapartida defensiva dos countervailing duties,e dos direitos aduaneiros antidumping,das restriçõesquantitativasou contingentesde importação. A moeda passou a ser frequentemente manipulada, procedendo os Estados a desvalorizaçõescompetitivase recorrendo às taxasdecâmbiomúltiplaseflutuantes. A moeda foi uma arma comercial e os Estados defenderam-se com a regulamentação dos câmbios . Também controlaram os investimentos, procurando que não fossem feitos em países não considerados seguros. A segurança era medida pelo risco da instabilidade política, das nacionalizações, do congelamento dos créditos 395 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS externos, da proibição do repatriamento. O resultado foi que, em ve . . . l gera l d e comercio, ' · se d esenvo lveu o rnetodo ' regime mternac10na de z deu ll\ bilaterais de Estados. acordos A Sociedade das Nações empreendeu vários esforços para reconduzir . 1 ção ao modelo do seu Pacto, convocando várias conferências entre 1920 ª ~tua. sempre com o intuito de restabelecer o padrãoouroe depois urna orderne933, micamundialconvencional. Mas o mais característico da época, em contra:?~óda política da SdN, foi o aparecimento de blocosem regra correspondente içao 8 impérios de cada urna das potências ocidentais: a Inglaterra criou azo aos libra esterlina, a França organizou um regime aduaneiro e monetário pnada ' le e co l'omas, · Portuga l e os pa1ses ' sua rnetropo escan d"mavos 1· 1garam-se à ara z a do esterlino, fixando urna relação cambial das suas moedas com a libra e ona liberdade de pagamentos e transferências dentro da área. urna Foi em 1936 que os EUA, a França e a Inglaterra, firmando um "acordo t . partido", iniciaram um movimento de retorno ao liberalismo internacion:;incitando ao desmantelamento dos regimes de contingentação e controlo d~ divisas. A nova guerra , e o clima que a antecedeu, não consentiram grandes progressos. Entre as duas guerras, a soberania económica foi exercida descoordenadarnente e subordinada a um conceito nacionalista. 5. A paz de 1945 Os vencedores assumem sempre o privilégio de estabelecer a Nova Ordemque, no fim da guerra de 1939-1945, foi naturalmente de inspiração americana paraa área que ficou aos ocidentais. Durante o período das operações, o diálogo sobre o futuro foi apenas entre os EUA e a Inglaterra, porque esta era a única que não tinha sido ocupada. Em Agosto de 1941, algures no mar, o Presidente Roosevelt e o Primeiro-Ministro Churchill assinaram a famosa Carta do Atlântico 326 • Para a Inglaterra, as questões fundamentais eram o crescimento, o pleno emprego, a segurança social; para os EUA eram a liberalização internacional do comércio, a livre empresa multinacional, que serviam a sua capacidade supe· rior. Naquele documento ficava expresso o objectivo de "no quadro das suas obrigações existentes, promover para todos os Estados, grandes e pequenos, vencedores e vencidos, um igual acesso ao comércio e às matérias-primas mun· diais necessárias para a sua prosperidade económica"; ainda "assegurar para todos condições melhores de trabalho, desenvolvimento económico e segurança social". Sublinharam mais de urna vez (Hull, Weller) que se tratava de princípios universais válidos para todos os povos. m, ln LegadoPolíticodo Ocidcute,cit ., p. 228 . 396 AS FORÇAS EM ACÇÃO carta da ONU, assinada em São Francisco em 26 de Junho de 1945, filava-se que a cooperação económicaé um dos fundamentos da organização dec!ara ), instituindo um Conselho Económico e Social, apoiado no princípio 3 (arcigºvizinhança económicaentre as nações. Nos capítulos IX e X perspectivavadaboariaçãode instituições internacionais especializadas, que viriam a incluir .seª edo Monetário Internacional - FMI e o Banco Internacional para a Recons0 ~0 1. R _ e Desenvo v1mento - BI D. 0 rruÀnovaordem económica implicou uma perda da antiga soberania em nome reconhecida interdependência dos povos. O exercício da soberania quer-se ~~ 0 em cooperação e não em conflito. Esta cooperação leva a uma institucio1e1t . · · lização representa d a por orgamzações como as re fien"das antes, e que v1g1am n:la observância de um códigode boaconduta.Em vez dos acordos bilaterais do passado,o multilateralismoassegura a liberdade e a não-discriminação. O sisfemaé essencialmente capitalista. Esta nova ordem pareceu largamente triunfante em 1990, quando comparada com a ordem económica soviética. Alguns dos mecanismos não funcionaramsem percalços, como aconteceu com o sistema monetário instituído em Bretton Woods em 1944, que ruiu em 1973. Mas, elaborada em bases neoliberais para os países desenvolvidos e com economia de mercado, a nova ordem acentuou a divisão do mundo por áreas, suscitando a contestação socialista e, sobretudo, do Terceiro Mundo que a acusou de impor a lei do mais forte e de perpetuar a situação dos subdesenvolvidos. Por isso serão estes os principais defensores de uma novaordemeconómica,relacionada não apenas com a riqueza mastambém com o poder. De facto, nos países capitalistas, a aplicação do neoliberalismo traduz-se em que a intervenção do Estado visa a obtenção, manutenção e exercício do poder em primeiro lugar, e apenas secundariamente a riqueza; a sociedade civil,com os seus instrumentos de acção internacional, procura o crescimento da riqueza ou poder económico, objectivo que relaciona com o poder político na medida em que necessita da protecção deste. No mundo socialista, esta distinção operacional não tem utilidade. Para avaliar o comportamento de cada Estado, e do sistema, é útil o guia de referência proposto por Walter S. Jones: I - Áreapolítica:primazia do sector público.A- Políticasdopoder:1 - actividadesde expansão:a) ajuda militar e comércio de armas; b) políticas hegemónicas; e) intervenção e agressão; d) actividades clandestinas; e) políticas regionais. 2 - Actividadesde Protecção: a) modernização militar; b) alianças; e) manutenção da estabilidade militar; d) segurança das fronteiras; e) espionagem; f) controlo das exportações. 3 -Actividadescodificadas:a) leis do mar; b) leis da guerra; e) leis regulando a agressão: Carta da ONU. B - A luta pela riqueza:1 - actividadesde expansão:a) ajuda económica; 397 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS b) comércio internacional e assistência técnica; c) imperialismo e neo 1 lismo; d) intervenção e agressão; e) intervenção internacional; f) diplom:º .ºnia. a) restrição ao comércio; h)~ªdas matérias-primas. 2-Actividades deprotecção: dos recursos naturais; c) leis do trabalho; d) políticas monetárias e fisc _efesa 18 Actividadescodificadas:a) comércio internacional; b) dívida externa; e) : 1 aduaneiras; d) código de conduta. II -Área económica: primaziadosectorp,~ºes A - A realização da riqueza:1 - actividadesde cooperação: a) troca de bens e tªd?· :!' ços; b) trocas culturais e educacionais, turismo. 2 -Actividadesdecompeti;~ 1utilização dos recursos do Terceiro Mundo; b) desenvolvimento tecnoli ~-a) c) competição pela qualidade; d) exploração dos mercados financeiros. lutapelopoder:1 - actividades de cooperação: a) defesa e implantação da id ;\ logia do lucro; b) resposta às necessidades económicas do governo; e) respoeo. st ' necess1'd a d es econom1cas ' . d os governos a l'1ados; d) expansao - d o empre ª as 2 - Actividadesde competição: a) comércio internacional de armas; b) protec;:dos mercados mundiais e recursos naturais; c) manutenção de condições come~ ciais favoráveis327• A construção neoliberal da ordem económica internacional do Ocidente revela a importância fundamental da balança de poderes económicos e financeiros. A projecção das políticas internas nessa área das relações internacionais dos imperativos e exigências domésticos e dos grupos económicos nacionais, evidente. Um conceito de economiaglobalpara abranger a linhapúblicae a linha privadade intervenção é indispensável. O comérciointernacionale o sistemamonetáriointernacionalsão aspectos relevantíssimos dessa economia global328• :~o; é 6. A nova ordem económica internacional A necessidade de uma nova ordem económica internacional foi em primeiro lugar exigida pelo Terceiro Mundo, a partir, historicamente, da Conferência de Bandung de 1955. A ONU criou a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) que, como todas as organizações da ONU, se transformou num forum para a definição e propaganda do pensamento desse grupo internacional numeroso e de presença recente na balança de poderes internacional. Em 1967, o então Grupodos 77 adaptou em Argel uma Cartaque era o manifesto reivindicativo contra os países desenvolvidos. Walter S. Jones, cit., p. 456. Mohammed Bedjaoui, Towardsa neivinternationaleconomicordcr,Paris, 1979, foi o Director-Geral da UNESCO afastado por pretender uma ordem mundial da informação favorável aos subdesenvolvidos, e que neste livro acusa o que chama, p. 23, uma economia predatória e a lei internacional da indiferença. 328 Myrdal, Uneiconomieinternationale,Paris, 1958. 327 398 AS FORÇAS EM ACÇÃO ovirnento acabou por levar a Assembleia Geral da ONU a aprovar, em 1974, Otll carta de Direitos e Deveres Económicos dos Estados 329 • 1.1tll~o mesmo ano, e pela segunda vez, a ONU aprovava os princípios gerais de a ordem económica internacional", completada, em 1975, por uma resolu11~sobre o "desenvolvimento e cooperação económica internacional." Tratava~::.por então, de um p_rogra'?a de ac?ão que, se d:senvolvido, imp!icaria u'?a , cervenção da comunidade internacional no sentido de que os pa1ses em vias : desenvolvimento reconquistassem a independência económicarealem face do chamam as imposições do neocolonialismo. q Trata-se de rejeitar a coacçãoeconómicados poderosos sobre os fracos, sem ue se defina o conteúdo daquela, de reduzir as desigualdades entre os Estados com uma política de igualdadepreferencial,de desenvolver uma relação de direito deajudae de obrigação deassistênciaque solidarize os ricos com os pobres, 330 Norte com o Sul do mundo • 0 :e a)o liberalismo e a globalização económica Adoutrina do liberalismo económico levou a que um tema principal do fim do século seja, como incidentalmente temos referido, a globalização dos mercadose da economia, de modo que a um mercado mundializador correspondem soberanias em crise que apenas geremumaparcelaterritorialdesse mercado. O FMI define a mundialização da economia como "a interdependência económicacrescente doconjuntodospaísesdo mundo,provocadapelocrescimento do volumee davariedade dastransacções transfronteiriças de bense de serviços,assimcomodosfluxosinternacionais decapitais,ao mesmotempoquepeladifusãoacelerada egeneralizada 331 datecnologia". Os dois princípios orientadores dessa política derivada do liberalismo foram a liberdade dosmercados(laissezfaire)e a livrecirculação(laissez-passer). No exercício de uma espécie de teologiademercado,que reverencia a mãoinvisível,progrediu a convicção de que uma desregulamentação das trocas comerciais e a total liberdade dos mercados conduzirão a um nível de vida superior em todo o mundo, e a uma sociedade mundial mais justa. O exame da conjuntura, a partir dessa perspectiva, assumida por órgãos de comunicação tão influentes como o FinancialTimese o TheEconomist,apela para exemplos comparativos como entre a antiga Alemanha de Leste e a originária m ln LegadoPolíticodo Ocidente,cit., p. 289. °Carreau, cit., p. 89. ONU, La situationiconomiqueen Europe-1993-1994, Genebra, 1994. Banco dans/emonde,Paris, anual. P. Hugon, L'Économie del'Afrique,Paris, Mundial, Rapportsur/ediveloppement 1993. 331 Fundo Monetário Internacional, Lesperspectives del'iconomiemondiale,Washington, Maio, 1997. 33 399 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS República Federal Alemã, entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul e . contmenta . 1e Ta1wan. . ' ntre a eh ma Comparações que se pretende que tenham influenciado a evolução da Ch. para o modelo de um Estadoedoissistemas,que a URSS se tenha dissolvido 1na o eleitorado do Reino Unido vote a mudança apoiado no chamado Novo':C)lle lhismo(1997) de Tony Blair332• raba. Sobretudo depois do Uruguay Round do GATT de 1993, o liberalismo p ceu afirmar-se como o único critério do politicamente correcto, apoiado n:re. informação de mercado favorável e dirigida por famosos controladores meios de comunicação, como Bill Gates, Rupert Murdoch, Jean-Luc La os dere, Ted Turner, Conrad Black, uma das causas da crise da UNESCO de 1:;;· quando o Terceiro Mundo ali exigiu uma Nova Ordem da Informação, e os ED,'\ abandonaram por isso a organização. O conceito de modernidade que domin este unilateralismo traduz-se, como escreveu entre outros Serge Halimi, a fazê~ -la depender da aceitação da livre circulação de pessoas, capitais e mercadorias da moeda única, da desregulamentação, da privatização, da informação, tud~ reproduzido no conceito de uma Europa do mercado, da desregulamentação, das privatizações, da informação, da moeda única. Do ponto de vista do modelo do desenvolvimento político, concluiu-se nessa orientação, que os Estados que resistiram à mundialização foram obriga~ dos a assumir modelos repressivos e a impor teores de vida sem qualidade e de penúria, dando origem a uma atitude reaccionária caracterizada pelo Estado providência, garante da segurança e da propriedade, entregando a defesa dos interesses sectoriais aos sindicatos, e esperando a fidelidade aos valores do nacionalismo populista. Esta atitude demonstraria, na orientação por exemplo de Martin Wolf, que a integração económica mundial pode ser evitada pelo voluntarismo político contra os constrangimentos internacionais, recusando desarmar as barreiras aduaneiras e abandonar o controlo dos câmbios. As teorias, uma dos resultados excelentes da globalização económica que se afirma modernista, e outra da reacção nacionalista acusada de arcaica e reaccionária, não são conciliáveis, até porque o apelo aos factos não pode, em cada uma das percepções, alhear-se de ideologismos. Na percepção globalista salienta-se que ela implica uma cooperação transfronteiriça e transnacional, que vai amortecendo o conflito Norte-Sul, que contribuiu para a queda do sovietismo e para a moderação do regime chinês. :a 332 Martin Wolf, Maispourquoicettchainedesmarchés?, Peter Martin, Uneobligationmora/e,Bernard Cassen, Poursauvcrlasociété,Serge Halimi, Faceaujoumalismedemarché;encourager ladissidance, Guy de Jonquiéres, "Des reformes quine sont pas allées loin", in Le MondeDiplomatique,Junho de 1997. 400 AS FORÇAS EM ACÇÃO dependentemente do crescimento económico, afirmam por isso que a 111ção do g lob a1·ismo economico ' . tera' um preço po l'ittco . e socia . l tra d uzi.d o ,on~e~taçãosevera da liberdade dos indivíduos, na regulamentação agressiva h~iedade civil, na criminalização das actividades económicas, na politiza5 d~ ~e rodas os processos, nos excessos da xenofobia, do medo da competição, çaº ravamento de um sentimento geral de insegurança. doag ' · afitrmam, os que aceitaram · ' . pelo contrario, o preço d a l"b i er d ad e economica, eram sinais evidentes de progresso, apontando-se como exemplo o cresJllOS • d , . ento impressionante de rendimentos os Dragões da Asia do Sudeste, o e • d e to d os os passivos, . - d o G ana e ct!ll • "todo C h"l i e, e ate,' na A,trica as excepçoes eXI do Uganda. Todavia,a crítica do modelo ganha relevo crescente, não apenas no quereseita à teoria dos resultados, mas também no que concerne à unilateralidade ~aglobalização económica. Quanto ao primeiro aspecto, o Relatório de 1996 do Programa das Nações Unidaspara o Desenvolvimento (PNUD) apoia a conclusão de que a globalizaçãoeconómica, longe de provocar uma mundial elevação do nível de vi~a, faz cresceras desigualdades tanto entre os países como dentro deles. Em Africa, cujasinfra-estruturas deixadas pelas soberanias coloniais têm sido brutalmente destruídas pelas guerras locais, os investimentos directos caíram 27% de 1994 a 1995,e, por todo o Terceiro Mundo, as políticas de ajustamento estrutural do FMIe do Banco Mundial, são acompanhadas, nos últimos dez anos, do alastramento da pobreza na mesma África, na América Latina, nas Caraíbas. Mesmo nospaíses desenvolvidos, como a Inglaterra e a França, mas agora geralmente na Europacomunitária, cresceram os desempregados que rondam os 18 milhões, e apareceu uma nova categoria de trabalhadores que os sociólogos chamam os workingpoor, os que empobrecem trabalhando. É assim que cresce a exigência da introdução de cláusulassociaisno comércio internacional, também muitas vezes reclamadas, não apenas em nome da equidade, mas igualmente em nome dos valores liberais da concorrência leal e da transparência na formação dos preços. Uma das questões que exigem exame rigoroso é a que se traduz em averiguar sea aproximação a uma globalização económica inspirada ideologicamente pela teologia de mercado, visando uma elevada eficácia tecnocrática e competitividade, implica tornar impossíveis ou mesmo inapresentáveis outras formas de racionalizar o governo do globalismo incluindo variados outros sectores. A observação das estruturas dá resposta negativa, porque milhares de organizações não-governamentais comprovam a vocação da sociedade civil transnacionalpara ordenar a rede mundializada, e os Estados multiplicaram processos de intervenção cooperativa na área militar (alianças como a NATO, tratados ºª 401 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS de fiscalização contra a proliferação nuclear e no sentido do desarma 111 na área do ambiente (Conferência do Rio de 1992), na área alimentar (~nto), para socorrer os estimados oitocentos milhões de subalimentados, no di . AO) 1 entre as áreas culturais (UNESCO). Tudo isto entra em conflito eventua; ºgo o reengineering da moderna gestão globalizante do mercado, em busca de colll seguir "o bom recurso, vindo do bom lugar, para o bom produto, sobre O ~on. mercado e no bom momento para o consumidor", pretendendo introdu ?lll equidadeno desenvolvimento mundial, e também, parece-nos, fazer do Pt~ a . ssivo . humano,sem fronte1ras, uma responsa b"l"d 1 1 ad e mun d"ia 1· tza d a mseparáveJ d a globalização dos mercados 333 • b) Relação entre a globalização económica e a globalização da segurança A questão da globalização do mercado, num tempo em que os Estados apena gerem individualmente parcelas do todo, desenvolveu-se em paralelo com: questão da globalização da segurança, esta com expressão formal na Agenda para a Paz do anterior Secretário-Geral da ONU, e suscitando uma das querelas ideológicas do fim da Guerra Fria, a de eliminar as despesas militares e 0 serviço militar obrigatório, em nome do pacifismo e a favor do aumento dos recursos a investir no desenvolvimento. Em primeiro lugar conviria fazer alguma meditação sobre a relação das lógicas dos poderes económico e militar. Esta questão tem uma expressão aguda no que respeita à relação interna, na Aliança Atlântica, entre o antecipadamente chamado pilar europeu e os EUA juntos com os nunca expressamente mencionados outros aliados do continente americano. Aquele pilar juridicamente não existe, mas politicamente tem anúncio na vertente da Política Externa e da Segurança Comum do Tratado de Maastricht, e manifestação concreta no por vezes chamado exército europeu, uma expressão que abrange forças organizadas e invoca uma futura função europeia integrada da UEO. m PNUD, RelatóriodoDeswvolvimentoHuma,w,1996, Lisboa, 1997, p.11, sobre "osresultados cspectacularn dodesenvolvimento humano- e osdesastres".Margarec Thaccher repetia que não tinha ideia do que fosse uma sociedade, e que apenas conhecia indivíduos, uma percepção absolucória da responsabilidade glo· bal pelo passivo da globalidade do mercado. O livro de Norberc Elias, La sociétédesindividus,Paris, 1991, reúne dos ensaios mais importantes desce século, baseados na experiência da guerra, do holocausto, e da Guerra Fria, sobre o conjunto das interdependências entre uma realidade e outra. Na linha do regresso ao Estado-Nação como elemento fundamental, contra o globalismo, Charles Pasqua, L'ardeur nouvelle,Paris, 1985, p. 197, visando repor a França como potência mundial. Alain Peyrefitte, Lasociété Paris, 1995, ensaia definir historicamente o facto da confiança como o único que assegura deconfia11cc, du développement,Paris, 1968, sobreª o desenvolvimento com equidade. Paul Borel, Les 3 révolutio11s interdependência das revoluções técnica, económica, política e cultural, depois da guerra. 402 AS FORÇAS EM ACÇÃO debate interno da Aliança, que muito se desenvolve usando foros margi0 . às instâncias da organização, tem uma premissa, nem sempre enunciada, 11ª1sé a de o globalismodasegurança serhegemonicamente geridopelosEUA. qileEmtermos históricos, o chamado Acto Fundador assinado entre a NATO e Rússia~m Maio de 1997, para defini~ uma co-responsabilidade na gestão da ª depois da queda do Muro de Berlim em 1989, marca para alguns o recoP~:cimento de um regime de PaxAmericana,derivado, como parece a Francis ;ukuyama, de ser a única superpotência, e não obstante a crescente relutância docongresso e dos cidadãos em apoiar despesas de intervenção externa, tendo elocontrário imposto uma redução de 40% do orçamento da defesa. p Em rodo o caso, o antiamericanismo sempre latente na evolução europeia, comvisívelraíz gaullista na área da segurança, parece sobrepor-se com frequênciaà corrente à qual parece que o curso da evolução aponta para a preservaçãoda unidade atlântica, uma linha em que se inscreve Jean-Marie Guéhenno, inseguro quanto à persistência da vontade americana de continuar a suportar 05 encargos de /eadership. Os factos porém mostram que o alargamento da NATO a Leste se faz mais rapidamentedo que o alargamento da UE, e isso não resulta demonstradamente de uma vontade americana de impor a sua gendarmerie,parece derivar da distância de efectivação a que se encontra a aspiração de François Mitterrand de vera Europa unida a exercer um papel mundial334 • Tem muitas vertentes a questão da relação da economia com a segurança, incluindo a doutrina a consagrar no que respeita ao papel das forças armadas, este muito dependente hoje da percepção que a opinião pública tenha da conjuntura. O último elemento tem agora uma incidência muito diferente, qualitativamente, da que lhe foi atribuída no conceito clausewitziano respeitante à decisão e credibilidade do Estado, porque entretanto se autonomizou, ou ficou dependente de vectores que o Estado não controla, a relação do sentimento popular com tais forças, especialmente pelas decisões que vai tomar nas consultas eleitorais. Tratando-se de um dos objectivos essenciais do Estado, o de assegurar a defesa e segurança do país, também ele está envolvido no processo acelerado de mudança que estamos a viver, perfilando-se em termos específicos em relação à chamada crise da soberania, porque se trata antes da impossibilidade crescente em que o Estado se encontra de manter este sector abrigado '" Pierre Marion, Lepouvoirsansvisage,Paris, 1990 , analisa a questão do complexo militar-industrial europeu, com acento tónico na política francesa, e com inevitável reflexo em qualquer conceito de autonomia estratégica da União Europeia . 403 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS pela reserva tradicional, que tornava indiscutidas a necessidade e a fu _ e indiscutíveis os valores que justificavam a organização, os sacrifício nçao, s, e o encargos. s Nesta data, a revolução da informação deu outra dimensão à opinião públ· e está a condicionar pesadamente o processo de funcionamento dos gove lca, democráticos, e também, embora diferentemente, os que se afastam da rnos modelo que a Carta da ONU, e a doutrina que nela se apoia, desejam mu~~:le l~ad~ ~Independentemente de qualquer relativismo filosófico, a alteração tec , . d a Inlormação, . e 1og1ca e a sua re lação com o merca d o, promovem objectino. mente o confronto das tendências, e a sua avaliação pelo público destinatár~aintroduzindo a exigência da crítica e da opção como elemento permanente:• ª sociedade civil e do potencial eleitorado. Ainda em meados deste século, independentemente do carácter mais 0 menos autoritário dos regimes, o processo decisório dos órgãos de soberani~ exigia o paciente percurso burocrático dos actos de informação e de inteligência, até que os responsáveis fossem habilitados a decidir, condicionando assim. os apoios da opinião pública e as variações dela. A acelerada propagação dos efeitos da referida revolução da informação conduziu a uma situação em que a opinião pública organiza uma percepção da corrente de notícias que lhe chegam em tempo real, escuta simultaneamente os técnicos chamados a depor e os fazedores de opinião encarregados de discursar em regime de contraditório, e firma uma orientação que vai ela estar já presente entre as condicionantes do executivo, atento aos efeitos eleitorais de cada decisão. Esta dependência não prevista pelos textos, que cada vez se torna mais pesada, configurando em novos moldes o perfil dos gestores dos meios de informação, vai também alargando a área da democracia contratualizada, do crescimento da tabela de questões que os responsáveis remetem para o plano do consensualismo, excluindo-se das responsabilidades da decisão solitária. Tenta-se esbater a hierarquia de poderes e responsabilidades entre maiorias e minorias, resolvendo, pelo método da negociação e do consenso, a questão velha, e sem resposta satisfatória, de saber como é que as minorias são livres obedecendo à decisão das maiorias. Por muitos lugares crescem, em paralelo com esta evolução, as observações críticas sobre a debilidade ou ausência do Estado, sendo por isso agora menos frequentemente referido o conceito que pela década de sessenta, fortalecendo o confronto ideológico dos blocos militares, inspirava a exigência de ter menos Estado e melhor Estado. Ao contrário, uma insegurança crescente e causada por formas de agressão que ou são excedentes da experiência passada ou refinam experiências antes 404 AS FORÇAS EM ACÇÃO . das e esporádicas, levam a repensar as formas democráticas de agir, e a como comuni,Vlld'política agindo na cena internacional, como sociedade civil que deseja ~e ervar os seus modelos de comportamento, e como homens que exigem . a res d d. . .. , . P . egridade os seus ireitos ongmanos. 111 cl]m conjunto apreciável de problemas relacionados com esta questão cenl da relação entre o Estado e a nossa liberdade naquelas diversas vertentes, eraá indisso 1uve1mente re 1ac10na · do com o pape 1novo d a opimao . ·- pu'bl' ica que estces referimos, . . 1 e mmto c aramente com a percepçao que esta vai. ten d o d a ::gurança e do papel reservado e esperado das Forças Armadas, numa situação deescassez de recursos, e de crescentes preocupações de ruptura do Estado providência. com variações significativas das experiências recentes, todos os países que escavamenvolvidos nos pactos militares em que se traduziu a Ordem mundial até 1989,têm memória activa dos sacrifícios que foram exigidos pela guerra mundial, pelasguerras coloniais, pela competição estratégica entre os blocos, pelas guerras marginais que foram pontuando a história da vida daquelas organizações, pelo custo das intervenções assumidas na sequência do fim da Guerra Fria. Tudo circunstâncias que forçam a orientação das opiniões públicas no sentido de admitir que a queda do Muro significou o fim do confronto e o desaparecimento do inimigo, levando comentadores celebrizados, como Fukuyama, a anunciar o fim da História. Este fim da História, assumido com pretendido rigor filosófico, não é de conteúdo muito diferente do alívio em que se firma a opinião pública que antecipa uma distribuição dos dividendos da paz, em que se inclui a drástica redução dos aparelhos militares e dos seus custos. Digamos que é um problema de gestão por objectivos, antes de ser um problema económico, e que tende frequentemente para ser definido a partir da convicção de que se extinguiram as ameaças, e portanto também a necessidade dos custos de as enfrentar. Talvez a primeira observação prudente a acrescentar seja a de que a segurança é inevitavelmente definida por um quadro de incertezas, bastando não esquecer que nenhum governo, observador, ou analista, previu o fim da Guerra Fria, embora esse fosse o resultado pretendido durante cerca de meio século de esforços e de sacrifícios. Acontece porém que o quadro da pacificação mundial não é animador, acontecendo que se diminuíram estatisticamente os conflitos armados entre Estados, é todavia crescente o número de conflitos dentro dos Estados. Esta observação será talvez mais exacta se tivermos em conta que decorre da velha classificação de conflitos armados, hoje de duvidosa utilidade por- liitlt:r em que medida o Estado faz parte da nossa liberdade, 405 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS que todos os conflitos internos conhecidos têm repercursões ou são efi . menos parcial, de circunstâncias internacionais. eito, a0 De acordo com um projecto de investigação da Universidade de L durante o ano que decorreu entre meados de 1995 e meados de 1996, de?den, pelo menos 20 conflitos que causaram vítimas em número superior a 1.oo;lll-se tos: Burundi, Ruanda, Tchechénia, Bósnia-Herzegovina, Afeganistão, Ar ~~r1 Iraque, (curdos, shiitas), Sri Lanka, Turquia (curdos), Serra Leoa, Libéria '.a, Paquistão (Caxemira), Paquistão (Karachi), Colômbia, África do Sul (I<.~a;diª• -Natal), Cambodja, Angola, Sudão, Tadjiquistão e Zaire. Estes conflitos e u u. . ausaram uma perda de 162.600 vidas, tendo que acrescentar-se 31 conflitos men que, em todo o caso, causaram entre 100 a 1.000 perdas de vida cada um. ores A sementeira destes conflitos por áreas geográficas do Terceiro Munct 0 pode induzir um reforço da percepção do fim da História, ao menos no No . , . d ,. ne d o mun d o, JUStamente na area em que estava situa o o ponto cnt1co do co _ fronta entre os blocos, ocidental e soviético. n Por isso mesmo parece conveniente, sempre tendo em conta esse elemento essencial da opinião pública, meditar sobre as causas de tais confrontos, e tentar alguma reflexão a respeito da questão da segurança nesse Norte do mundo depois do fim da Guerra Fria. ' A análise disponível aponta para múltiplas causas, por vezes para uma concorrência delas, ao mesmo tempo étnicas, culturais e religiosas. A questão demográfica é uma, porque todos os anos se somam 81 milhões de pessoas à população mundial, una média que será provavelmente sustentada até ao ano 2025, data em que é possível que se inicie um declínio. Um dos efeitos é que as fronteiras entre as áreas ricas, com relativa pouca população, e as zonas pobres com excesso dela, como acontece no Rio Grande e no Mediterrâneo, são continuamente objecto de pressões migratórias, que podem levar as tensões a extremos. Não é improvável que a luta pelo domínio de recursos naturais escassos, por terra e água, provoque conflitos, que as correntes de refugiados, como acontece agora nos Grandes Lagos, suscitem massacres, que a pobreza e a superpopulação, como no Leste europeu, ou no Bangladesh, impliquem violentas reacções contra os deslocados. No plano das diferenças étnico-culturais, temos recente experiência de que o radicalismo islâmico tem sérias consequências relacionadas com a "falta de distinção entre o sagrado e o profano e entre o doméstico e o político", como se viu no Irão e na Argélia, fazendo ressaltar uma ameaça dirigida contra a influência ocidental, em todos os níveis, desde o cultural ao político e económico. O fundamentalismo religioso não é exclusivo de nenhuma crença, e tem eventuais manifestações entre os cristãos, os judeus, os muçulmanos, os hin- t 406 AS FORÇAS EM ACÇÃO , as, de tal modo que o influente Huntington adiantou a convicção de que , · d o pe lo ch oque d as c1v1 . ·1· du1stroidma uma epoca que sera' caracteriza 1zaçoes, se apeitOque no seu pensamento dá especial relevância às diferenças confescoJlC • ais. 51011 /is generalizadas profissões de fé no pacifismo das relações internacionais aginam-se mal com a corrida armamentista de povos economicamente P colll · ' . ou b"10l'og1cas, . d 'beis mas ans10sos por d"1sporem de armas nuc 1eares, qmm1cas emose viu na guerra entre o Irão e o Iraque, como se evidencia na rivalidade cotre a União Indiana e o Paquistão, como se demonstra com a procura de uma e:pacidade atómica pela economicamente deprimida Coreia do Norte. e Supor que existe uma geografia do conflito, como há uma geografia da fome, as quais se desenvolveriam pelas margens de um Norte do mundo finalmente destinado ao diálogo proposto durante séculos pela teoria dos seus nativos Projectistasda Paz, parece sem qualquer fundamento, não podendo remeter-se para esquecimento que nesse espaço é que deflagraram, na mesma geração, duas 0 guerras mundiais pelos efeitos, mas exclusivamente ocidentais pelas causas. Foi essa experiência que levou os modernos construtores da Europa a escutar as doutrinações de Coudenhove-Kalergi, e, pela acção de Jean Monnet, e dosdirigentes das democracias-cristãs da Itália, Alemanha, e França, designadamente De Gasperi, Adenauer e Schuman, a organizar as comunidades europeias de modo a substituir pela cooperação institucionalizada as rivalidades cataclísmicas do passado. O grande modelo foi o da economia de mercado, e depois de 1989 tem sido frequente atribuir a esse mecanismo a vitória ocidental na Guerra Fria. Talvezseja uma visão frágil da evolução, porque não há livre mercado propiciadordo crescimento económico sem estabilidade e segurança, e a estabilidade e a segurança foram uma contribuição da NATO, sem a qual não existiriam os pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento económico, para a consolidação dos regimes democráticos, para o reforço das solidariedades europeias, para a transformação desse território, devastado pela guerra de 1939-1945, na sede de um conjunto de sociedades geralmente afluentes. Os custos do aparelho militar dissuasor do bloco do Leste, não são um passivo do progresso económico e social europeu, fazem parte do investimento retribuído pela confiança, pelo crescimento e finalmente pela vitória sobre o adversário de meio século. Quando o Secretário-Geral da ONU Boutros-Ghali publicou a Agenda para a Paz, traçando uma estratégia de resposta à instabilidade mundial e aos conflitos armados, de facto pretendeu organizar, com perspectiva globalista, uma intervenção que generalizasse a mesma segurança sem a qual não há desenvolvimento económico sustentado. 407 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Por isso mesmo, a queda do Muro em 1989 levou rapidamente ao 'f de Maastricht, agora em revisão pela CIG, e nela tomou relevo a vert ratado ente d defesa e segurança comum. a A relação entre a segurança e o crescimento sustentado inspirou a Polít" de uma europeização da segurança dentro da NATO, talvez nem sempre 1ca prudência mais desejável, e o projecto de definição de uma braço armad coma a enfrentar perplexidades, mas não parece que esteja a perder credibilido destá . Talvez possa dizer-se com algum fiundamento que se os povos da geoga e . f: . rafia da fome se dilaceram em termos de azerem nascer sociedades de guerra vários lugares do mundo, o Norte afluente tem conseguido estabelecer uem sociedade de paz, embora competitiva, porque organizou a protecção milima · 1um · entre os custos necessanos ' · para a1cançar ague 1e ob.Jectivo. · Nãotar e a me trata de ignorar que de regra é difícil compatibilizar uma política desenvol:~ 1 mentista com uma política armamentista, mas esta observação diz respeito um erro de gestão, frequente no Sul pobre, que se traduz em ignorar que umª coisa é a segurança, outra uma política baseada na preservação ou conquist: do poder pela força, usada internamente contra o adversário, usada externamente contra terceiros. A experiência do Norte ocidental, agora expressamente recolhida e invocada pelos antigos satélites do Leste que pedem a adesão, é que a segurança depende de alianças institucionalizadas, como tem sido a NATO, como pretende ser a UEO. E se essa solidariedade institucionalizada foi animada pela existência de um inimigo visível, que naquela encontrou o obstáculo essencial para que não pudesse prejudicar o crescimento económico, a recuperação da democratização geral, a efectividade da protecção dos direitos do Homem, é difícil ignorar que os desafios mudaram de perfil, mas não desapareceram. Por um lado, e com isto lembrando a mais pessimista das faces destaquestão, a chamada outra Europa das minorias, das fronteiras mal traçadas, dos irredentismos, dos patrimónios de queixas, encontrou novos mecanismos de expressão , e não pode acríticamente confiar-se em que nenhuma dessas questões tem possibilidades de ultrapassar os limites do diálogo para prosseguir a política por outros meios. A recuperação do Leste para os modelos ocidentais de governo, para a recuperação e desenvolvimento económico, exigem a manutenção dos mecanismos de segurança, como demonstram ser a sua percepção, quando simultaneamente solicitam a entrada não só na União Europeia, mas também na NATO. Esta solidariedade dos vectores não deriva apenas de uma memória histórica em relação à atitude da Rússia, que até pode não fazer justiça ao novo conceito estratégico que esta diz adaptar, mas está de acordo com a dolorosa experiência vivida e 408 AS FORÇASEM ACÇÃO uecida; também radica, em vários casos, na história das relações entre 11㺠es_q os satélites, todos submetidos à regra europeia de que os Estados vizianr1g . . . , . oS . 0 frequentemente m1migos mttmos. nb0 s saoutro lado, o corredor do Norte de África e o Médio Oriente são áreas por . . d stradamente mqmetantes para os Esta os europeus, e para as suas def!lº~zaçõescolectivas, pelo que progridem políticas no sentido de apoiar a org:ib~lidade ao longo dessa linha, prevenindo agressões não necessariamente esta ' •ucares. 1111 A Conferência de Barcelona, que pretendeu levar a cabo uma parceria omediterrânica, foi clara quanto à percepção assumida, apontada para a }iutssária organização de um vasto leque de instrumentos de ajuda, comér11ece . investimentos, e enquadramento de segurança, que não pode alhear-se de cio, . . venruaisdescontrolas de migrações, rupturas de cadeias de comando, agreseõeSpor poderes erráticos, solidariedades transfronteiriças entre movimentos :nternos dos povos do Sul e colónias interiores estabelecidas no Norte. Digamos que sem integração em grandes espaços não há desenvolvimento económicopossível (NATO, UE, Mercosul, OVA, ALADI, MCCA, CARICOM, ASEAN,OSCE), desenvolvimento que depende da segurança, a qual nas circunstânciasactuais inclui uma vertente militar, a nível regional - NATO e UEO _ a caminho de uma globalização como pretende a ONU na sua nova versão. Umavertente, esta, cuja importância cresce justamente porque é diminuta a eficáciada cooperação económica regional na área dos 3A, Ásia, África, América Latina,que não respondem favoravelmente aos modelos ocidentais de desenvolvimento, muito orientados para a industrialização. Em muitos países do anteschamado Terceiro Mundo foram as instituições nascidas dos acordos de Bretton Woods (1944) que dominaram inteiramente as políticas domésticas (FMIe Banco Mundial), e os resultados desanimadores incitam a procurar um modelo de intervenção alternativo. No entanto, a vertente da segurança, sem a qual não há desenvolvimento económico nem político, exige a formulação de um instrumento e de uma doutrina que legitimem e tornem eficazes as intervenções em nome dos interesses gerais da Humanidade. O facto é que parece de esperar que o Conselho de Segurança continue a desempenhar um papel crescentemente activo nas operações de paz, recorrendo com frequência a organizações regionais. Não é portanto apenas no plano lógico da organização de modelos observantes da evolução internacional, é sobretudo no plano realista dos modelos observados, que a relação entre a variável económica e a variável da segurança se mostra essencial e determinante para assegurar um desenvolvimento sustentado, global, regional, e dos territórios. A experiência atlântica, que cobriu a 409 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS extraordinária recuperação política, económica e social da Europa Ocide concludente no sentido de demonstrar que sem a NATO não teria sido nta), tal recuperação, e ainda menos o resultado final do fim da Guerra Fri~Ossível A leitura feita pelos antigos satélites vai nesse sentido, e por isso · simultaneamente a integração na UE e o alargamento da NATO, esta a ~edellt • estrateg1co ' · para a1argar a area ' d e responsa b"l·d evero conceito 1 1 ad e. A institucionalização das alianças, o revigoramento do centro glob 1 referência que deveria ser o Conselho de Segurança reformulado, compra de a tendência da evolução no sentido de que sem integração em grandes es ovalll não há nem segurança nem desenvolvimento, e que o recuo da integraçã:ªÇos tiplica os perturbadores e os focos de disfunção, sobrecarregando as mi·srn_ul. soes e encargos da segurança global. A pressão sistémica desta evolução não consente a nenhum país alhearda relação entre as duas variáveis, a económica e a da segurança, embora l~e seja sempre possível desistir de estar presente no processo decisório, com e as naturais consequencias. No caso português, em que o qualificativo corrente de país periférico vem das perspectivas economicistas alheadas das variáveis da segurança, parece de primeira evidência a necessidade de as avaliar em conjunto para tentar obter uma percepção tão próxima da realidade quanto possível, em vez de partir da escassez de recursos para dispensar mais esforços de análise. O desenvolvimento económico da UE não dispensa uma vertente de segu. rança comum, como foi decidido em Maastricht, tal como a chegada ao patamar da União dependeu da segurança garantida pela NATO durante meio século. Acontece que a primeira questão do novo tratado em revisão é o de europeizar a defesa, e não o de a dispensar, pelo que Portugal estará sempre na fronteira da articulação entre o pilar europeu e o pilar americano. Tal como está na fronteira de articulação com a sua moldura da segurança mediterrânica. Tal como estará na fronteira da articulação com o mecanismo de segurança integrada que venha a ser construída para o Atlântico Sul. A história irrecusável também o situa no plano do globalismo da segurança que a ONU assume, por enquanto nos moldes da Agenda para a Paz, porque no antigo império, em Angola e Moçambique, é o passado comum que o indica para a participação activa nas missões de reimplantação da paz e da segurança. Não parece uma conclusão de primeira evidência supor que um país possa estar inevitavelmente integrado em espaços económicos, a caminho da integração política, e ainda assim possa evitar o envolvimento nas responsabilidades da segurança sem a qual não existe mercado, crescimento, desenvolvimento. A gestão dos recursos é evidentemente exigível para não exceder as capacidades, mas a mobilização das capacidades depende de uma atitude que se tra• 410 A • AS FORÇAS EM ACÇÃO m querer estar presente nos centros de decisão para não ser apenas um dllZ~natáriodelas. A nova geografia das fronteiras, o novo globalismo da segudest~ a nova regionalização dos espaços, encontram o país nos pontos críticos rattÇriculação. A exigência estratégica é a de definir e assumir a medida em que dearbérll não renuncia· a estar presente nas d ec1soes · - e nas responsa b"l"d 1 1 ad es. ca!tl conselho de Segurança informal 70 · ando as principais potências industriais começaram a tentar definir uma Q:rdenação que desse previsibilidade à economia mundial, estávamos em ~;SS,e a primeira reunião teve lugar no velho Hotel Plazza de Nova Iorque. porentão a segurança mundial dependia do acordo não negociado em que se traduziu a Ordem dos Pactos Militares, cujo colapso ninguém previu, e que se verificouem 1989 com a queda do Muro de Berlim. Os países que tomaram parte nessa primeira reunião foram os Estados Unidos,o Reino Unido, a França, o Japão e a RFA. Em 1987, os acordos do Louvre aprofundaram o projecto, e o Canadá e a Itália juntaram-se aos fundadores, aparecendo assim o grupo dos G-7. Todos estes países eram orientados pela convicção da excelência da economiade mercado, mas pretendiam ainda assim corrigir os desequilíbrios que a mão invisível não conseguia evitar, não obstante a preocupação concentrada no comportamento da massa monetária. O objectivo claro para todos os observadores era o de regular a economia mundial, com uma intervenção derivada dos princípios da teologia de mercado,que por esse tempo tinha fronteira na linha geográfica do Pacto de Varsóvia. Do que se conhecia resultava que os objectivos imediatos incluíam fazerdescera cotação do dólar em termos de melhorar a balança comercial americana, reduzir a taxa dos juros, limitar a flutuação das taxas de câmbio, e sustentar o crescimento da procura mundial. O resultado útil e primeiro a conseguir era o de evitar a inflação moderando a velocidade do crescimento da procura global, mas em termos de a quebra desse crescimento não se traduzir em recessão. Na década de oitenta não se encontram notícias de que a organização informaldesses países, conhecidos como os mais ricos, tivesse objectivos que transcendessem os de ordem económica tornados públicos, o exercício mediático não fazia supor ambições de intervir na globalização da ordem internacional, e eram ocidentais as interrogações sobre se viria a institucionalizar-se no campo de intervenções que o vira aparecer. Depois de 1994, quando a tarefa de ajudar a Rússia a regressar ao estatuto de país igual aos outros tinha sido geralmente assumida como fundamental, ela foi convidada a participar nas reuniões anuais, e a cortesia internacional 411 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS começava a falar no G-7+1,como se tivesse sido iniciado um período d cumenato, em que o antigo inimigo daria provas de entendimento e ac ~ Cate. da economia de mercado. eitaçã0 A questão do Kosovo, que colocou em suspenso a credibilidade do qu do órgão cimeiro de intervenção na gestão da ordem internacional vei·e resta 0 sub· ' tamente colocar no primeiro plano da teatrologia em curso, uma espé . 1• nova vocação, ou a revelação de uma efectiva presença anterior menos s:~~de do informal, rico e mediático G-7, do qual não se conhece sequer a exist' tda, de um secretariado. encia Pode recordar-se que a proeminência dos Estados Unidos teve mais deu vez ocasião de não deixar esquecer que o poder financeiro está em exerct°:ª no que respeita à defesa da sua posição. Foi assim que na crise da UNES~~ ficou claro que não admitia estar numa organização em que os que decide não pagam, e os que pagam não decidem, retirando-se. Ili Na ONU, quando a braços com a difícil submissão do secretariado, adaptou o esquecimento bem lembrado de não pagar as contribuições, condicionando a agilidade da organização. Neste ambiente talvez se encontre um princípio de racionalização da súbita transferência do G-7 para as responsabilidades estratégicas, que a Carta da ONU reservou para o Conselho de Segurança. Este andou tão posto entre parênteses durante cinquenta anos de conflito bipolar, que a questão da legitimidade da intervenção no Kosovo foi esquecida, e o ardor da acção encaminhou a definição do novo conceito estratégico da NATO no sentido de passar sem ela, sempre que a própria Aliança entendesse que o seu juízo sobre os fundamentos das intervenções tinha consistência. Uma das ligeirezas da intervenção traduziu-se em ignorar o esforço desenvolvido nos últimos anos em relação à Rússia, e ao Leste em geral, no sentido de criar uma teia de parcerias que protegesse a paz geral e a reorganização da Ordem internacional. Não era necessário muita perspicácia para admitir que a Rússia, mal reconciliada ainda com a desagregação do império soviético, e com forças armadas a interiorizarem com dificuldade a mudança de estatuto, teria possivelmente de adaptar alguma medida de salvação da imagem. Ora, tal como aconteceu com o ditado da paz, tal como se passou com a reposição do Secretário-Geral da ONU nas negociações, tal como está a passar-se com a definição do programa da reabilitação do Kosovo, foi o G-7 que dinamizou a integração da Rússia no processo decisório, crismando-se em G-8, e anunciando assim que a perspectiva económica do grupo se alargou a planos mais vastos, originariamente da responsabilidade suspensa do Con· selho de Segurança. O que obriga a indagar sobre a sede real do poder emer412 AS FORÇAS EM ACÇÃO obre a escala dos valores proeminentes do obscuro projecto, sobre os 11t_e, ~os da reforma da ONU, se alguns, sobre a nova hegemonia das potên(.lfll111 virá a impor-se. E, para começar, sobre a questão de saber o que é o . 5 que . ereto G-8 · faltam homens devo~ado~ao progresso das garantias da paz, que tentam dtSJ-1áO reender a complexa teta de mteresses que tão frequentemente sobem aos co!llP rnos da guerra, e que são orientados pelo entendimento de que não lhes é ., . eXtre ávelident1'fi1carem to d as as vanave1s. ro" d . . , . d as P Ernpenha os nas mtervençoes, tantas vezes com nscos const"derave1s, ·ssões internacionais, contribuem para que a opinião pública mundial se rn:bilize a favor da implantação dos grandes princípios, e para que a resigna~ºnecessária para enfrentar os custos humanos e materiais dessas campanhas çejarecompensada pela convicção da grandeza das causas. 5 De rodas as instituições vinculadas a essa tarefa da paz pelo direito, a ONU é a rnais ambiciosa quanto ao projecto assumido, a mais debilitada pelos desviosde meio século de Guerra Fria, a mais necessitada de recuperação para orientar as respostas aos desafios do fim do milénio. Não é por isso a mais auspiciosadas notícias, quando as incertezas rodeiam todas as diligências em curso em mais de um continente, saber-se que as grandes proclamações, os solenesanúncios, os projectos assumidos, continuam a aproximar-se de serem um manto diáfano da fantasia, a esconder uma realidade que excede os pessimismosmais lúcidos. O livro que recentemente foi publicado por Boutros-Ghali, intitulado Unvanquished: a US-UN Saga,(N.Y.,1999) é provavelmente um dos mais desgostantes textos que podiam ser lançados no mercado nesta data. Não porque seja alguma vez inoportuno desvendar realidades do funcionamento das organizações internacionais, mas porque a realidade apenas é finalmente mostrada quando o responsável pelo mais importante dos postos da ONU se viu forçado a não continuar no cargo pela intervenção, de legalidade discutível, da superpotência sobrante. Não pode recusar-se a importância do que é revelado, não pode esconder-se a perplexidade com que se verifica que se tivesse havido composição de interesses, a revelação não seria provavelmente feita. No livro trata-se agora de tornar pública a campanha, imputada aos EUA, e destinada a impedir a reeleição do autor para um segundo mandato. Com motivos tão distantes dos objectivos da ONU, como o que se traduziu em impedir substituir homens por mulheres em cargos directivos, porque a nacionalidade dos propostos teve mais importância do que os princípios. ''ª 413 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS O que significa muito claramente que nem todos esperam que os f, • nários internacionais tenham como primeira fidelidade aquela que d Unc,o. instituição, e não a que os liga aos Estados de origem. evelllà No livro o autor recorda que, quando foi eleito em 1992, cinquenta por do pessoal da ONU era americano, embora os Estados Unidos pagasserncento nas vinte e cinco por cento dos encargos orçamentais. ªPeDenuncia a percepção da administração americana, que terá permitid presidente Clinton, quando tomou posse em 1993, exigir a substituição de~ª? 1 subsecretários da ONU que tinham sido apontados pelo presidente Bush i ~•5 cando homens vindos das fileiras da nova maioria. ' n 10 autor não se esquece de lembrar que ambos eram, pelo menos teori mente, funcionários responsáveis apenas perante a organização. Entre outcaras desgostantes lembranças, recorda que o seu antecessor Perez de Cuellar tinh sido acusado de ser "insuficientemente atento aos interesses dos EUA",e tor a público que foi pressionado para declarar que não seria candidato à reeleiçã:a O que teria recusado porque "não se pode demitir o Secretário-Geral das Naçõe~ Unidas por uma imposição unilateral dos Estados Unidos, esquecendo os direitos dos restantes membros do Conselho de Segurança". Declara-se finalmente vítima de uma bem estruturada campanha conduzida por Albright, campanha que terá desenvolvido "com determinação, não perdendo uma oportunidade de demolir a autoridade do Secretário-Geral". É útil ter base documental para avaliar o nível da luta pelo poder dentro das organizações internacionais, podendo comparar a retórica das lideranças sobre os desafios do fim do milénio com a realidade dos interesses que os animam. A mudança de patamar, subindo das disputas domésticas para a globalização, não muda os procedimentos, nem os padrões de referência dos intervenientes. Incluindo o autor, que teria prestado melhor serviço aos membros da ONU e seus povos, no caso de ter enfrentado os factos publicamente ainda no exercício do cargo que abandonaria. O manto diáfano da fantasia teria ficado mais transparente, e o depoimento mais autorizado. A intervenção do informal G-8 no processo do Kosovo parece ser um acontecimento de significado relevante neste fim de século, a sugerir alguma tentativa de leitura dos sinais dos tempos, pelo menos na área de intervenção dos poderes emergentes que assumirão o papel hegemónico da Nova Ordem em formação. É notório que este grupo de potências economicamente poderosas, e que se mantiveram antes na área de vigilância do mercado mundializado, não deixa· ram saber que tenham mudado de premissa, e desta deduziram a necessidade e a capacidade de intervir para ditar os termos da paz, para repor a ONU no processo das negociações, para retomar o processo de integração da Rússia no 414 AS FORÇAS EM ACÇÃO ro de Estado igual aos outros, um esforço que no entretanto da guerra • • ficado perigosamente entre parenteses. c1ll~ príncipes da supremacia do desenvolvimento económico, discretos ; ao funcionamento interno do ambicioso Directório, tiveram esta pri0 qu~n manifestação de autoridade na data em que o PNUD, seguindo o ritual lflei:meiro, dava publicidade ao seu Relatório de 1999, documentando mais vez que o passivo do desenvolvimento humano também tem de ser ava~~o com critérios de mundialização e de globalismo. (laTrata-se aqui de uma área onde as agências especializadas da ONU desenlveramintervenções altamente meritórias, mas cuja contribuição foi limitada vo grande parte pela paralisação do Conselho de Segurança, com as inevitáe:s consequências na inoperância da organização. v Bastaexaminar a lista das declarações e recomendações da ONU nesta década, araverificar que não tiveram sequência, ou porque a estratégia de limitar o paga~ento das contribuições devidas foi suficiente para lhe marcar o ritmo, ou porque mais claramente a vontade política não acompanhou as promessas. Vistos os grandes anúncios que foram as cimeiras de Nova Iorque sobre a Infância, do Rio de Janeiro sobre a Terra, de Viena sobre os Direitos Humanos, do Cairo sobre a População e Desenvolvimento, de Pequim sobre o Estatuto das mulheres, de Copenhague sobre o Desenvolvimento, de Roma sobre a Alimentação, e aproximando as propostas do referido levantamento constante do Relatório do PNUD sobre a situação do desenvolvimento humano, facilmente se compreende o cepticismo com que grande parte da opinião pública avalia o limitado caminho andado. E por isso aumentam de importância as reacções da sociedade civil, que não se limita a visivelmente reduzir a confiança que dispensa aos poderes políticos domésticos, antes também parece que, em contraponto, vai aprofundando a consciência da sua natureza transfronteiriça, transnacional, mundializada. Até agora, a principal expressão desta resposta, mais pública e documentada do que tem sido a do G-8 na área dos poderes políticos, foi dada pelas organizações não-governamentais (ONG), que desta vez anunciam uma reunião em Seoul, a realizar entre 10 e 16 de Outubro, de 1999, com o objectivo de avaliar a situação do desenvolvimento humano neste fim de século, e definir uma estratégia para o próximo milénio. Talvez o anúncio mais significativo seja que insiste na necessidade de reforçar a cooperação das ONG com a ONU, o que muito simplesmente implica assumir a urgência de a reformar, e de enfrentar a questão básica de identificar, reconhecer, e dar forma à sede real do poder, uma tarefa da qual, com alguma relevância, foi o G-8 que se ocupou. Tem certamente significado o facto de Boutros Boutros-Ghali ter declarado que vaticina uma intervenção mais imporcatll S e_ ,os: 415 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS tante da sociedade civil nas decisões do futuro próximo, porque a exp .• · me · 1UI· o con fl'1to entre a autonomia· d a ONU e a vocaçãerien · . eia em que se apoia 0 direc. tora da superpotência sobrante que são os EUA. Em relação ao projecto dos fundadores, debruçados sobre as ruí mundo de 1945, mudaram evidentemente dois elementos essenciais unasdo é o da renovação do colégio dos príncipes que não reconhecem as sup~e rnq~e de então, outro que é o da sociedade civil mundializada, a qual preten~acias consistência à intervenção reformada da ONU, que avalia as insuficiênc·e dar , . iasdo passa d o e suas causas, que regressa a utopia para avançar com um projec mundo novo, e cujas lideranças vão anunciando que o século XXI será "'a to de ... rcad 0 pela sua intervenção renovadora. Por isso a Conferência de Seoul é descrita como uma excelente oport . Uni. . d a d e d e encontro que f:aça convergir as perspect1vas Leste-Oeste e Norte-S 1 A sociedade civil transfronteiriça, transnacional, mundializada, procura as suu· vozes tribunícias para o diálogo da globalização. O solitário Secretário-Gera~ Kofi Annan fez um sóbrio comentário: "as ONG estão frequentemente no te:. reno humanitário antes que a comunidade internacional dê mandato à ONU" O projecto de intervenção parece mais vasto. · § 2º As ForçasTransnacionais 1. As internacionais políticas Entre os agentes da cena internacional merecem destaque autónomo os que são protagonistas das forças transnacionais, independentes do Estado e intervindo na luta pelo poder no interior de cada Estado. Compreendem solidariedades políprofissionais(internacionais ticas(internacionais partidárias), ou solidariedades sindicais), ou solidariedades religiosas (Igrejas), ou solidariedades científicasouhumanitárias(institutos, academias, associações como a Cruz Vermelha). A novidade está em que o confronto das ideologias e interesses que representam deixou de ter sempre os Estados como intermediários; antes estes passaram a ser frequentemente condicionados pela acção daquelas forças transnacionais. Uma das forças transnacionais políticas mais importantes é a das internacionais dos partidos políticos. A iniciativa pertenceu neste domínio às forças comunistas, com a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864, mais tarde conhecida como Internacional, em seguimento da publicação do Manifesto de Marx e Engels. As dissidências que levaram à disso· lução da I Internacional em 1876, e à efémera tentativa da II Internacional que se mostrou incapaz de impedir a guerra de 1914, deu oportunidade a um 416 AS FORÇAS EM ACÇÃO lo diferente: a III Internacional fundada em Moscovo em 1919, e apoiada ., . sov1et1co. o0 ~t m O nome de Komintern(Internacional comunista), cortando com a corºsocial-democrata, foi um instrumento do governo soviético no sentido . os parti.d os comumstas . d os outros pa1ses. , rentebordinar e gmar de~crise da última guerra não deixou subsistir formalmente um instrumento cção tão contrário ao espírito de uma aliança militar, e por isso foi dissold_~ªe substituído pelo Kominform,em 1947, oficialmente uma organização de :f:rmação dos partidos comunistas, de facto tentando continuar na linha da 1 anizaçao - an t ecessora. orgEml956 fc •d. 1 .d l . .fc - d d' fi 01 isso v1 o, ta vezparaev1taramam estaçao e 1vergenc1ase,o 1jaJmente,o governo da URSS passou a usar as Conferências dos partidos irmãos. dos81 Partidosde 1960, em Moscovo, foi declarado no comuni~a Confarência cadofinal: "Os partidos comunistas e operários declaram, por unanimidade, queO Partido Comunista da União Soviética é, e manter-se-á, como a vanguarda universalmente reconhecida do movimento comunista mundial, enquanto destacamento mais experiente e mais agressivo deste movimento" 335 • Logo depois da Primeira Guerra Mundial, os socialistas que não aceitaram ascondições do PCUS procuraram reactivar a II Internacional, o que conseguiramem 1923, em Hamburgo. Não puderam impedir o triunfo do fascismo na Europa,e também não levaram a resultado positivo as tentativas feitas, depois de 1945, para um entendimento entre os partidos socialistas ocidentais e os do Leste, porque os primeiros nunca puderam aceitar as "vintee uma condições de f1)0 ado A • paraa admissãoaoKomintern." Em 1947, os trabalhistas britânicos fundaram o Committee of the International Socialist Conference (COMISCO), mas apenas em 1951 foi lançada a actual Internacional Socialista, que agrupa uma meia centena de partidos nacionais. O modelo é federal, ao contrário do centralismo do Leste, e proclama o anticomunismo, o reformismo político e democrático, a planificação económica.Não acontece que todos os partidos socialistas alinhem sempre pela mesma orientação nos problemas de relevância internacional, mas é um lugar de encontro e a Internacional não actua dentro dos países senão por intermédio dos partidos nacionais. A União Internacional dos Partidos Democrata-cristãos, sob a influência da doutrina do Vaticano, foi pelas outras chamada a "internacional negra". Durante algum tempo o elo de ligação entre os partidos democrata-cristãos foram as m Em 1938 os seguidores de Trotsky fundaram uma IV Internacionalque subsiste na América do Sul. Sobre a evolução do sistema político, o lúcido estudo do Prof. Doutor José Adelino Mal tez, O Imperial·Comunismo,Lisboa, 1993. 417 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Novas Equipas Internacionais, fundadas em Março de 194 7. A doutrina é trina social da Igreja, mas esta, segundo orientação clara do Concílio Va: dou. II, não opta por qualquer formação política, dirige-se a todas. Existe ho· icano . 1d as D emocrac1as. C nstas. . Je111lla I nternactona A Internacional Liberal, fundada em 1947, tem expressão mais modest que funciona, ao que parece, mais como um clube de personalidades cuida~ Por. da sua independência. No caso de se consolidarem os grandes espaços, e asas designadamente a União Europeia, é de prever que as internacionais ten~lllo um peso crescente na vida internacional3 36 • ªtn 2. As internacionais sindicais Por seu lado, o movimento sindical também assumiu a internacionaliza _ Em 1945 foi fundada a Federação Sindical Mundial, que foi dominada sua extrema esquerda (1947), e se afirma como representante de mais de 100 milhões de trabalhadores de 35 países. A Confederação Internacional dos Sindicatos Livres, que nasceu da cisão de 1947, e foi constituída em Londres em 1949, fixando a sede em Bruxelas representa cerca de 60 milhões de trabalhadores filiados em quase meia cen~ tena de associações espalhadas por dezenas de países. A Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos, fundada em 1920 na Haia, afirma representar cerca de 10 milhões de trabalhadores espalhados por meia centena de países. Embora o movimento sindical seja conceitualmente apolítico, e reivindique essa condição, parece mais certo entender que cada uma das organizações obedece a uma opção política. A divisão do mundo em blocos estratégicos tornou nesse período mais aparente a adesão ideológica das internacionais sindicais. i:~~ 3. As forças religiosas As grandes religiões afrontaram-se tradicionalmente ao longo dos tempos mobilizando os Estados para tal efeito. A geral separação das Igrejas dos Estados, com a gritante recente excepção do fundamentalismo do Irão, não eliminou a presença dessas correntes na cena internacional. As mais importantes são o Cristianismo(católicos, ortodoxos, anglicanos, luteranos, reformados, metodistas, baptistas), o Islamismo,o Judaísmo,o Hinduísmoe o Budismo. Da Cristandade, a Igreja católica tem a adesão de metade, e a outra metade é partilhada pelas restantes Igrejas. O catolicismo é dominante na Europa Oci33 Française,T. X, Secção B" Alfred Grosser, "Les internationales des partis politiques", Encyclopédie Cap. l. Julius Braunthal, Yearbook oftheInternationalSocialistLabourMouvemwt.M. Vaussard, Storiade/la democraziacristiana,Bolonha, 1956. 418 AS FORÇAS EM ACÇÃO 1e na América do Sul; o protestantismo tem mais implantação na Europa dellt:al e na América do Norte, enquanto que a Igreja ortodoxa guarda a Europa cent , . . nral e a Russ1a. orieIslão esten d e um cmturao · - d es d e G.b ' . entre os para1 ra 1tar ate' a' I n d ones1a, 0 i !Oe 40. O Hinduísmo implantou-se no subcontinente indiano, enquanto (eosoConfucionismo e o Budismo ocupam zonas limitadas do Oriente. É eviquete que a organização institucional aumenta a influência das correntes relid~:as, sendo a mais perfeita, nesse aspecto, a Igreja católica. Desde 1870, com gt:unificação da Itália, que a Santa Sé tem apenas à disposição, pelos Acordos ~r Latrão de 1929, a chamada Cidade do Vaticano. e A crise religiosa pode ser causa de grandes perturbações internacionais, comoaconteceu com Lutero e as guerras de religião e dos camponeses, e está agoraa acontecer com o fundamentalismo a partir da revolução no Irão. A evidência primeira é que o Estado ocidental não tem grande possibilidade de mobilizar as instituições religiosas. Existe um esforço continuado das váriasconfissões cristãs no sentido de reencontrarem a unidade perdida, movimento muito evidente nas exortações que vão sendo conhecidas com origem noVaticano, e sobretudo demonstrado no empenhamento da dinastia de Papas humanistas deste século. A reunião, presidida por João Paulo II em Assis, de todos os líderes religiosos sem distinção de crenças, foi dos mais importantes acontecimentos da época, no domínio da luta pela reposição de um princípio ético na condução das relações entre os povos. Na América Latina, a acção do Pe. Camilo Torres na Colômbia, decidindo juntar-se à guerrilha com a qual morreu, tem ainda grande importância simbólica. Quando um Cardeal Mindszenty não cedeu e se deixou espancar diariamente na prisão na Hungria dominada pelos soviéticos, transformou-se num sério obstáculo para o progresso da ideologia que combatia. Quando Martin Luther King, pastor protestante, assumiu a luta pela integração social nos EUA, sendo assassinado, mudou a política do país. Também deve ser levada em conta a acção das várias ordens religiosas, conforme o seu escolhido campo de acção. O Vaticano, que não dá privilégios a nenhuma força política interna dos países, excluindo apenas com irredutibilidade as formações soviéticas, toma partido nas questões internacionais com frequência, e continuadamente doutrina sobre a paz em geral, os conflitos concretos e as ameaças que espreitam uma sociedade mundial em que a ciência e a técnica não foram acompanhadas pela evolução da ética 337• 337 Guerry, L'Égliseet la commur1auté despeuples,Paris, 1958. Base, La sociétéinternationalect /'églisc,Paris, 1961.Delavignette, Christianismcet colonialisme,Paris, 1960. Pierre Rondar, L'Islamet les musu/mans 419 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 4. Os interesses privados O Anuáriodas Organizações Internacionaismantém uma informação actu . 11 sobre as mais de mil e quinhentas organizações não-governamentais que ª Zada . . 1, I"dentlºfi1cand o o campo espec1'fi1cod a intervenção: · actua b. _lll na v1"da mternac10na 1 grafia, imprensa, religião, ciências sociais, relações internacionais, pol 10direito e administração, ajuda social, comércio e indústria, agricultura ltica, nicação e turismo, técnicas, ciências exactas, saúde, educação e juv~~ºlllu. desportos, literatura, etc. O que significa que a internacionalização d:u~e. privada tende para invadir todos os campos tradicionalmente reservad Vida osªº ,. po derpo 1mco. A importância que assumiu é que explica que o artigo 71 da Carta da ON estabeleça que "o Conselho Económico e Social pode tomar todas as disp ~ ções úteis para consultar as organizações não-governamentais que se ocuposi- re 1aciona . das com a sua competenc1a , . "A . de questoes . s organizações nestas e e111 <lições- ONG - podem enviar observadores às reuniões públicas do Conse~:e_das _comissões. Esta política generalizou-se a outras organizações interna~ c10na1s. As organizações com fins lucrativos, com a natureza de multinacionais mantêm uma tendência natural para tratar com os governos em pé de igual~ dade, sobretudo com os dos países recentemente independentes. O economista F. Perroux fala mesmo de efeitosde domínio,querendo abranger na expressão fenómenos semelhantes ao do extinto protectoradopolíticointernacional. Sobretudo quando se trata de matérias-primas fundamentais, como 0 petróleo, as multinacionais desenvolvem entre si uma actividade semelhante à actividade diplomática dos Estados, e usam designadamente os acordos, que funcionam como os tratados, e a repartição de áreas de actividade que são equivalentes às zonas de influência reclamadas pelas soberanias. A Standard Oil, a Royal Dutch Shell, a ITT, os fabricantes de aviões e de armamento, são referências indispensáveis para o estudo de qualquer conjuntura. Acontece até que, algumas vezes, os grupos financeiros são a longa mão dos governos. No conflito de 1951-1953 entre o Irão e a Anglo-Iranian Society, que levou à demissão do Primeiro-Ministro iraniano Mossadegh, aquela companhia era controlada pelo governo britânico. Tem-se verificado que não foi possível até hoje um monopólio mundial de um grupo privado em qualquer domínio de ~! d'a11jo11rd'h11i, Paris, 2 vais., 1958-1960. Adriano Moreira, CiênciaPolítica,Coimbra, 1995. Paul Balta, L'Is/amdans/e mo11de, Paris, 1986. Bruno Étienne, L'islamismeradical,Paris, 1987. Paul Ladriere, René Luneau (dir.), Le retourdcscertitudes,Paris, 1987. Mazowiecki, Un autrevisagede l'Europe,Paris, 1989. 420 AS FORÇAS EM ACÇÃO ·vidade, e que a competição tem sempre um papel. Acontece porém com ,crtuência que os meios de acção são tão libertos de ética como a conduta do fre,q cipe de Maquiavel, e que a corrupção é uma arma sempre à disposição. 11 P;' irnente, tais agrupamentos ainda não dispensam a necessidade de recorf1narn última mstanc1a . • . aos seus governos para a protecçao - d os interesses · que rere 33s Sseguem . pro 338 BullctindesOrganizationsNon-Gouvernementales, Bruxelas, mensal. 421 Capítulo V AOrdem eosPlanos deContingência § 1º A Perplexidade Crescente 1.A NATO e os planos de contingência Alinhade orientação política que, dentro do conceito estratégico da NATO, era caracterizada como advogando a europeização da defesa, mudou de significado depois de 1989. Até então, e certamente sofrendo a influência da viragem que ficou conhecida como vietnamização da guerra, talvez possa dizer-se que não se tratava senão de uma redefinição de encargos e de riscos, sem alteração da concepção da ameaça nem da filosofia da resposta. O risco do holocausto estava presente, o inimigo estava identificado, a solidariedade dentro da aliança derivava da percepção da conjuntura, uma experiência de cerca de meio século deixava pressentir a poucos, se alguns, que os factos podiam alterar-se significativamente. E todavia, com surpresa confirmada por todos os governos interessados, a queda do Muro não foi antecipada por nenhum governo ou serviço, a superpotência sobrante e solitária rapidamente sentiu que a autoridade de que até então dispunha se diluía mais rapidamente do que o seu poder efectivo deixava supor, e a europeização da defesa, que doutrinava, começou a parecer mais um desafio do que uma questão de filosofia organizacional. Parece útil, no sentido de tentar apreender o sentido da mudança da conjuntura europeia e das novas leituras da solidariedade atlântica, lembrar que sempre se passeou, pelas cidades deste velho continente, um antiamericanismo de ressentidos, que a recordação da ajuda na guerra estimulava em vez de amenizar. 423 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Talvez um afloramento daquele velho conceito segundo o qual exist política favores que nunca se desculpam, e a libertação do nazismo, a c:1ll na ção do avanço soviético, a ajuda à reconstrução, a estaca destinada a n~en. que a árvore fosse abanada deixando cair os frutos nas mãos do adversá:.vitar Leste, tudo seria excessivo para a sensibilidade das antigas grandes pot• 1º ~o enc1 europeias. as As campanhas pacifistas, demonstradamente inspiradas pela URss mobilizaram multidões em todas as grandes capitais europeias durante a década, nunca deixaram de explorar essas contradições emocionais qu'llla ' e as necessidades de segurança e defesa continham finalmente dentro de lilll' , . 339 ttes razoave1s • Todavia, depois da queda do socialismo, da implosão do império soviétic e do renascimento da Europa Central para o protagonismo histórico, a eur peização da defesa perdeu os constrangimentos estruturais que derivam ; bipolarismo, e o antiamericanismo apareceu em patamares mais visíveisd~ contencioso político internacional. De todos os acontecimentos que foram empurrando a europeização da defesa para um novo conceito, provavelmente é o conflito do Iraque aquele que deve considerar-se mais significativo. Há vantagem, supomos, em seleccionar alguns elementos do processo que militarmente conduziu à operação Tempestade no Deserto (1990-1991), e que, se a selecção tiver fundamento, ajudam a compreender a mudança que está em curso. Em primeiro lugar, tratou-se de, pela primeira vez, o Conselho de Segurança da ONU legitimar uma intervenção militar com a unanimidade dos cinco grandes, entre os quais estão duas potências europeias, a França e a Inglaterra, que não tiveram nem na decisão da intervenção, nem na participação material, nem na imagem mundial, qualquer peso equivalente à importância formal de cada uma dispor do direito de veto. Por outro lado, a superpotência sobrante, se bem que tenha assumido, sem contestação, o directório da intervenção, todavia não dispensou a ajuda financeira dos antigos vencidos, muito concretamente o Japão e a Alemanha. A surpreendente argumentação emocional que foi elaborada para construir o discurso de uma nova versão da europeização da defesa, reproduziu na essência os discursos do nacionalismo que, agora europeu, algumas versões europeístas usam condenar como prejudiciais para o bom entendimento dos povos. úi?J.e º: 339 Roger Caillois, L'hommeet /esacré,Paris, 1950. Gandhi, Non-violence in peaceand war,Londres, 1942. Brejnev, E/ programadepazparala décadadei 80, Moscovo, 1981. Gromyko, L'essencie/ estdepréserver la paix,Moscovo, 1981. 424 A ORDEM E OS PLANOS DE CONTINGÊNCIA A areceu a lamentação sobre a imagem de incapacidade que fora produzida pecundarização ou omissão dos Estados europeus, salientou-se a depen5 - aos americanos, • e Iaram-se advertenc1as • · contra o desampela•aem relaçao 1ormu d'11CI e 00 caso de retirada do aliado, falou-se de uma Europa que de facto não - po l'1t1ca . assumi"da, tivesse . Paro . tia e era d uv1"doso que, mesmo na fi1cçao a 1gum 1 ~" :re;se específico exclusivo na questão do Golfo. intrern fundamento, segundo entendemos, insistir em que a questão do Koweit fc•urna ameaça à segurança global, e por isso a intervenção militar teve aquela 1 itirnidade e aquela estrutura, pelo que não era a proximidade geográfica 1 e;eservia de elemento diferenciador, podendo acrescentar-se que dos Estados ~uropeussó não participaram na força de intervenção aqueles que não quiseralll•Ainda que esse seja o facto, politicamente foi a versão da honra e da glória, a exigência do tambor e da bandeira, que ganharam peso no discurso mobilizadordestinado a conseguir fazer aceitar a afirmada necessidade de uma nova europeização da defesa. Os factos mostram-se porém mais consistentes do que aquele discurso, o qual nunca se preocupou com a exigência lógica, incontornável, de seriar as ameaçase os riscos especificamente europeus, e por isso não abrangidos pelo conceito estratégico da NATO, nem pelo anterior conceito de segurança e paz mundiais da ONU. A implosão soviética todavia autonomizou, a par dos conflitos nacionalistas e étnicos que pontuam a dissolução do império, a questão da falta de uma cadeia de comando capaz de controlar as armas estratégicas que tinham sido a expressão da força da URSS, e são agora um risco maior ao alcance de poderes sem experiência nem credibilidade. Finalmente, a dissolução da Jugoslávia, o genocídio em curso na Bósnia, os crimes contra a Humanidade executados à sombra da jurisdição interna e da incapacidade internacional, de facto e de direito, para organizar uma intervenção eficaz, tudo ajudou a trazer à superfície da memória europeia a lembrança do Ano Zero, que foi 1945. Esta memória foi reactivada pela repetição das barbaridades de que o território da extinta Jugoslávia fora teatro durante a guerra mundial, mas também porque a Alemanha retomou um protagonismo que é usual minimizar, ou então mencionar adiantando que a democracia de hoje não consente qualquer paralelismo com passados excessos. O facto é que, já na vigência do Acto Único é que se processou a reunificação da Alemanha, a fixação da fronteira na linha Oder-Neisse, a formulação da política em relação ao Leste, e que para isto não foi necessário fazer intervir a política externa comum da Comunidade. No caso da Jugoslávia, onde as repúblicas do Norte foram historicamente marcadas pelo germanismo, também foi a decisão alemã que definiu o calendário do reconhecimento da Eslovénia e da Croácia. No caso de o novo protago- ° 425 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS nismo alemão acordar a lembrança do Ano Zero europeu que foi 1945, talllb, é porém certo que faz parte dessa memória o saber que o mais importante en-i blema europeu, desde há séculos, é o de acabar com a guerra civil entre os Pto. povos, guerra civil que, pelo menos duas vezes, se transformou em mun~~s pelos efeitos e pela dimensão do teatro da operação. ia} Guardaremos para outra oportunidade a apreciação deste discurso e cional esquecido do direito internacional, para salientar que parece ter~0 esta teia de factos que mudou definitivamente o conceito da europeização' d defesa e acrescentou à lógica do poder económico, que ainda caracterizav ª CEE do Acto Único, a lógica da segurança e defesa que levou ao salto qua~i~ tativo ~o Trat~do da União de Maastricht, agora em discussão e experiência europeia gerais. A causa próxima desta concretização do acrescentamento da lógica da segu. rança à lógica do poder económico, que marca o salto qualitativo do Acto Único para a União, é reforçada pelo cada vez mais !atamente interpretado dever de assistência humanitária: basta lembrar que a Sérvia, conduzida barbaramente pelo Presidente Slobodan Milosevié, pretende fundar uma terceira Jugoslávia que inclui o Montenegro, e arrasta o desaparecimento da Bósnia e Herzego: vina do mapa político. O preço até agora estimado é de cinquenta mil mortos mais as cidades mártires como Sarajevo e Gorazde. ' O risco do exercício do dever de assistência humanitária está na frequência com que a intervenção militar aparece na lógica irrecusável das coisas e dos sentimentos, levando a esquecer o princípio fundamental de respeito pela jurisdição interna e a exigência essencial da legitimidade que deve cobrir a intervenção, e esta apenas com probabilidade de êxito. A experiência ensina que a comunidade internacional desculpa facilmente uma intervenção rápida e com êxito, baseada em justa causa, mas a doutrina confia apenas em intervenções institucionais, decididas não por potências mas sim por organizações internacionais. Acontece que, de acordo com a Carta da ONU, a legitimidade para decidir uma intervenção em qualquer parte do mundo, com o objectivo de restaurar a paz, eliminar ameaças contra a paz, ou pôr um ponto final a crimes contra a Humanidade, pertence ao Conselho de Segurança da ONU. O caso do Iraque é o único em que os detentores do poder de veto se puseram de acordo para legitimarem uma intervenção, mas as circunstâncias do mundo, onde a interdependência crescente transforma a paz e a segurança num concreto bem comum da Humanidade, porque toda a ruptura da paz tem a potencialidade de alastrar, apontam para uma racionalização indispensável dos mecanismos interventores, globalista para ser eficaz. 426 A ORDEM E OS PLANOS DE CONTINGÊNCIA desenvolvimento desta conjuntura, imprevisível em 1989, passa por uma a qual tem elementos emocionais depenla entre atlantistase europeístas, · · l'd · · que se re fierem a uma quere es de antigas nva 1 a d es, tem e 1ementos racionais dentofiaorganizacional, e elementos míticosque envolvem a discussão da verftl~:ira fronteira europeia, da constelação dos valores especificamente euroda 5 da concepção do mundo e da vida em que deveria assentar a decisão e pe:dlbilidade da unidade possível. cr O adantismo tem essencialmente a ver com o futuro da NATO, e este não enas é dependente da evolução europeia, também depende da própria evoap . ção amencana. 1 u E esta, para além das teses desanimadoras do declínio, e dos factos preoupantes a respeito do modelo de sociedade inacabada que evidencia, mostra ~ndíciosde que os velhos temas isolacionistas voltam a preocupar o eleitorado, de que o FarwellAdressde George Washington é um texto com nova actualidade, de que o Pacífico reclama o título de berço do futuro, de que cresce o cansaçoperante os encargos mundiais da majestade da superpotência, e de que afloraalguma reacção negativa ao antiamericanismo europeu persistente, tudo a contribuir para moderar o envolvimento transatlântico, e para tentar manter 0 estatuto de proeminência sem prejudicar a transferência maior de encargos para a europeização da defesa. Por outro lado, o desaparecimento da ameaça não se traduz apenas na viabilizaçãode uma política mundial de desarmamento, a favor de um maior empenhamento na solidariedade, na cooperação e no desenvolvimento. A racionalização dos efectivos, do dispositivo militar, dos encargos no exterior, são corolários organizacionais inevitáveis, e a questão da desmobilização das bases inscreve-se neste plano, com os Açores dentro deste quadro. Pelo que toca aos elementos míticos, sem os quais não parece que se formule um programa de Estado mobilizador, talvez não seja infundado dizer que um dos aspectos importantes da reformulação em curso da Ordem internacional se traduz num conjunto de políticas em busca de uma ideologia, uma questão que implica com a exigência, vinda dos factos, de um mundialismo assumido, coordenado e participado. A mudança pode ser esquematizada em função de duas variáveis: a primeira delas com expressão na substituição da ameaça antiga por uma série de desafios ainda mal catalogados; a segunda diz respeito à percepção variável dessa mudança pelos agentes sobreviventes responsáveis pela antiga Ordem, e à multiplicidade de comportamentos novos, e não necessariamente coordenados, que adaptem. Assim como a redefinição eventual do comportamento da superpotência sobrante afecta todo o velho sistema de que foi directora durante meio século, 0 427 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS assim também os países europeus da NATO tendem para substituir 0 1 lismo estadual da intervenção na Aliança pela identidade do pilar eut llra. com expressão institucional. Deste modo, a política da europeização da /Pell, que os próprios EUA doutrinaram, recebe uma resposta diferente da si efesa, repartição nova de encargos e de riscos, porque abrange uma nova fil:Ples organizacional e um diferente conceito estratégico comum de segurançaSofia defesa. Teríamos por errado que estas novidades se traduzissem na extinçãe de Aliança Atlântica, porque meio século de experiência sem conflitos deriva~da da hierarquia real das potências envolvidas, e com um resultado histórico os foi vencer a Guerra Fria, tudo corresponde a um valor do património ocide que , . are , a d e segurança, on d e não fal nta!' a uma responsa b 1·1·d 1 ad e por uma vasttss1ma d . ta. . . rãa d esa fi10sd ecorrentes d e con fl 1tos margma1s, o terronsmo ou dos poder , . d 'fi . . l es errattcos, o narcotra 1coe outros passivos equ1va entes. Mas a identidade europeia de defesa ultrapassa em muito, na doutrina e n prática posteriores a 1989, o diálogo sobre a repartição das responsabilidad/ dentro da NATO. Embora a doutrina publicada a partir da guerra do Go!f; tenha em geral negligenciado esta