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Teoria
dasRelações
Internacionais
2Q16
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Teoria das Relações Internacionais
Adriano Moreira – 2016 – 9ª edição
Até à página 48 – Notas e Prefácios às anteriores edições
Capítulo
1
Introdução
§ 1º
A ComunidadeInternacional
1. Autonomia disciplinar das relações internacionais
O problema da autonomia disciplinar das relações internacionais é um aspecto
do problema da autonomia disciplinar da ciência política. Assim como esta se
definiu na base de um facto social relevante que foi.o poderpolíticosoberano,isto
é, uma capacidade de obrigar que não tem igual na vida interna da comunidade, nem tem superior na vida externa, as relações internacionais ganharam
autonomia na base do facto social consequente, isto é, que a pluralidadedepoderespolíticossoberanos
implica relações de perfil específico, o qual encontrou uma
primeira expressão no conceito recuperado de estadode natureza.
Este conceito foi criado pelos chamados contratualistas,umas vezes atribuindo-lhe alcance de hipótese outras de deliberada ficção: mas trata-se, em
qualquer dos casos, de explicar a passagem da vida do Homem de uma situação imaginada anterior à existência da sociedade para a situação, em que o
conhecemos, de viver sempre e apenas em sociedade. Realmente, a questão
não é a de uma interdependência necessária entre os homens que não se concebe que alguma vez não tenha existido, mas sim a de obediência a uma lei ou
natural,ou positiva.De novo aqui a coincidência das palavras obriga a uma distinção de sentidos.
A leinaturalou direitonaturalrefere-se a um conjunto de leis a que os homens
devem obedecer pela natureza delas, ainda que não exista um poder que as
imponha. A afirmação de que devemobedecer
não se refere à explicação
da conduta
49
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
dos homens, mas sim àjustificaçãodessa conduta; refere-se ao que podemos chamar a obrigação
moral.O alcance desta depende de urna filosofia de valores, à qual
faremos referência oportuna. Por agora, importa-nos salientar que o referido
estadode naturezanão foi suposto por todos os autores com igual moldura.
Não parece que algum deles tenha imaginado a existência do Homem sem
referência a urna lei naturalou direitonatural.Esta lei natural,no caso de existir,
é inspirada pela justiça que a racionalidade aceita. Mas a questão era a de haver
ou não haver um poderorganizadopara impor a obediência desse direitonatural,
ou, no caso de a existência deste não ser aceite, para impor um direito positivo directarnente derivado do contratodoshomensou da vontadeproeminentedo
poder instituído.
Na visão de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que escreveu o Contrato
Social(1762), "os homens nasceram livres, e por toda a parte estão submetidos
à escravidão". Afirma que o Homem é bom e livre por natureza, e que foram
as instituições e o poder político que o corromperam. A lenda do bom selvagem, talvez inspirada pelo contacto dos descobridores com as sociedades
aborígenes americanas, cuja estrutura não compreenderam logo, está nesta
orientação.
O poder corrupto que tinha em vista parecia ser o poder absoluto do Antigo
Regime, que a Revolução Francesa derrubaria. Isto porque, em vez de advogar
a eliminação de qualquer poder político, corno fazem os anarquistas, sustenta
que a democracia
directaé a única forma de preservar a liberdade dos homens,
porque, neste regime, toda a limitação da liberdade deriva do consentimento
prévio.
De facto, a própria aceitação da democracia directa traduz-se na cedência
de urna parte da liberdade à sociedade, a submissão das minorias às maiorias.
Esta submissão tem a forma de um contratosocialentre todos e cada um dos
membros da sociedade, para o bem geral. Deste contrato deriva urna associação com identidadee subjectividade,
com urna vontadegeral,associação que olhada
enquanto passiva se chama Estado,e enquanto activa se chama soberano.
À questão de saber corno é que as minorias são livres quando obedecem à
vontade das maiorias, responde justamente que a votação se destina a interpretar a vontade geral, e que a minoria apenas se engana na interpretação da
mesma vontade que a maioria exprime. A vontadegeralé pois imaginada diferente da vontadede todosou da vontadedegrupos,deixando assim sem resposta o
chamado paradoxoda democracia.
À circunstância de, pelo contrato social, ser criada a vontade geral, um poder
soberano, infalível, inalienável, indivisível, conduz a admitir que os homens
podem ser forçadosà liberdadeno caso de não quererem submeter-se à vontade
geral,como seria a hipótese das minorias rebeldes. O próprio Rousseau admitiu
50
INTRODUÇÃO
ue a sua doutrina tinha uma eventual componente de tirania, mas não encon;rava maneira lógica de resolver essa quadratura do círculo 4 •
Diferentemente dele, John Locke (1632-1704), um dos teóricos do liberalismo moderno, defendeu a existência de direitosnaturaisinalienáveis, implantados por Deus nos seres racionais. Os seus dois Treatises
of CivilGovernment(l690),
e a sua Letteron Toleration(1689), são os clássicos do governo limitado pela lei,
e da sociedade pacificada pela tolerância. Os direitos naturais, os direitos originários como lhes chamou o nosso velho Código Civil do Visconde de Seabra,
existem antes de instituída a sociedade
políticae esta foi voluntariamente instituída pelos homens (contrato) para eliminar as ocasionais violações daqueles
direitos. Os principais desses direitos são o direito à vida, à integridade física,
a caminhar de um lado para o outro, à propriedade. Tais direitos não podem ser
limitados ou eliminados excepto pelo consentimento, e talvez nem todos como
seriam as excepções do direito à vida e à liberdade física. Deste modo contraria
todas as legitimidades políticas que não se baseiem no consentimento, designadamente a hereditária das monarquias absolutas. O governo legítimo deriva
do pacto social, do contrato, do consentimento. É pelo pacto social (compact)
que os homens livres aceitam a limitação dos seus direitos naturais em favor
da segurança oferecida pela sociedade.
Embora não exista prova histórica deste alegado procedimento, parece-lhe
pelo facto de os homens
que existe um visível e demonstrado tácitoconsentimento
não abandonarem as sociedades a que pertencem.
Esta teorização estava ligada à justificação da chamada GloriosaRevolução
inglesa de 1688, fornecendo a base da teoria do governo pela lei, da economia
de mercado, e das relações contratuais do trabalho. E foi muito inspiradora dos
"Founding
Fathers"dos Estados Unidos.
Ainda noutra linha, Thomas Hobbes (1588-1679) escreveu o famoso Leviathan(1615), onde procura definir o que se entende por naturezahumana,soberania,obrigação
política,e lei.Admite que existe o direitonatural,que todos os seres
racionais devem apreender e seguir, tal direito tem autoridademas não qualquer
poderque o faça respeitar no estado de natureza, isto é, antes da instituição do
poder político: nessa situação a vida social é uma guerra de todos os homens
contra todos os homens.
A segurança é obtida por um contratosocial,talvez em duas fases: primeiro,
entre cada um e todos os homens para instituírem o soberano que os governará;
depois, entre eles e o soberano a quem entregam o poder de fazer executar e
cumprir o contrato social.
• Jean-Jacques Rousseau, Du ContratSocial(1762); Émileou Traitidel'éducation
(1762); Projectsde Constisurfe Gouvernementde
la Pologneetsursa riformation(1772).
tutionpourla Corse(1765); Considirations
51
TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Tal soberano é um homem, ou uma assembleia de homens, e as suas determinações só podem ser repudiadas por rebeliãocriminosa. De facto, Hobbes é
considerado, com Bodin (1530-1596), um teórico do absolutismo , embora seja
certo que, sem total coerência, sustenta que existem limites à acção do Estado
derivados do direito natural, e sugere que a legitimidade tem de encontrar
apoio no consentimento.
O estado de natureza, e o contratualismo, foram negados por correntes
importantes, designadamente por David Hume (1711-1776),por Hegel (1770-1813)e Karl Marx (1818-1883),que consideraram toda a construção absolutamente incoerente. Isto porque ela supõe que o tácito consentimento é possível
contra a realidade social (Hume), ou a racionalidade
possível fora da sociedade
organizada (Hegel), ou porque não parece aceitável admitir que os homens
queiram abandonar o estado de natureza para construírem a sociedade capitalista vigente (MacPherson) 5•
Independentemente das doutrinas sobre o estado de natureza anterior à
instituição da sociedade política serem, ou não serem, logicamente aceitáveis
como chave de interpretação da formação das entidades soberanas, a vida internacional, como foi sublinhado por Locke, essa demonstra visivelmente um estado
de naturezaa desafiar um continuado esforço para a racionalizar e submeter a
instituições políticas que dispensem o uso da força. Por isso, como notou Raymond Aron, o cronista por excelência do século XX, ainda hoje é ofenómenoda
guerraque mais evidentemente determina a autonomia deste campo de estudo
chamado relações internacionais, porque cada um dos intervenientes, agentes
ou actores dessas relações, se reserva o direito de recorrer à força própria para
defesa do que considera o seu interesseou o seu direito6 •
Esta situação de facto obriga a recordar alguns conceitos operacionais
importantes, quer para entender a vida interna dos corpos políticos, quer a
chamada vida internacional. Primeiro o conceito de interesse: exprime uma
relação favorável entre pessoas e coisas ou entre pessoas e outras pessoas, para
a satisfação de uma necessidade própria. Mas é de notar que a necessidade e o
interesse existem seja qual for a maneira como a relação se estabelece, por consentimento ou por violência. Estas diferentes formas de estabelecer a relação
favorávelfazem apelo a valorações diferentes, umas que consideramos justas ou
morais , e outras injustas ou imorais . É esta circunstância que reconduz grande
parte da vida internacional ao conceito de estadodenatureza.
' Raymond Aron, SociologiedesSociétisIndustriel/es,Les Cours de Sorbonne, s.d., (pai.), 16' lição, "Les
théories du régime soviétique".
'· Raymond Aron, Paz e Guerraentreas Nações,Brasília, 1962, é um dos livros que datam a autonomia
científica das relações internacionais.
52
INTRODUÇÃO
Os entes colectivos soberanos estão numa relação favorável para satisfazer
•nteresses próprios, com o território, as águas fluviais ou marítimas, o espaço
~éreo, os grupos étnicos e culturais, e assim por diante. Seja qual for a natureza e origem dos valores a que subordinemos a justiça dos seus interesses, é
cada um que em primeiro lugar julga, afirma e defende essa justiça, recorrendo
eventualmente à força que normalmente assume, nestes casos, a natureza da
guerra aos oposito~es. Veremos o~ resultados da lu~asecular par~ in_stitucionalizar a solução pacifica dos conflitos, mas aquela liberdade ou direito de fazer
a guerra ainda é característica, social e politicamente, da comunidade interna cional, independentemente dos avanços formais do direito internacional, hoje
orientado no sentido da negação total da legitimidade da guerra.
A crescente complexidade da vida internacional tornou pois inevitável a
autonomia desta área de estudo, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).A própria Sociedade das Nações patrocinou, na década de 30,
0 desenvolvimento destes estudos, sendo essa acção documentada pelo livro
de Alfred Zimmern, UniversityTeachingof InternationalRelationsde 1939; por
seu lado a UNESCO, já na vigência da ONU, depois da guerra de 1939-1945,
impulsionou esses estudos, sendo o seu esforço documentado pelo trabalho
InternationalRelations,edide Manning, The UniversityTeachingof SocialSciences:
tado em Paris em 1954.
Os mais clássicos autores desta disciplina, como Quincy Wright (TheStudyof
Jnternational
Relations,N .Y.,1955), Palmer e Perkins (InternationalRelations:The
WorldCommunityin Transition,Cambridge, 1956), Hans J.Morgenthau (Politics
amongNations,N.Y.,1954), Raymond Aron (Paze GuerraentreasNações,Brasília,
1962), quer adaptem o método de enumeração dos temas para definirem o seu
campo de estudo, quer pretendam formular um conceito operacional, sempre
evidenciam a guerra como um tema fundamental e autonomizador da área 7•
Do ponto de vista conceitual, alguns autores definem a disciplina das relainterestaduais,
definições internacionais como sendo a que se ocupa das relações
ção que outros afastam porque não abrange as relações, por cima das fronteiras
dos Estados, entre grupos ideológicos ou de interesses que condicionam as relações interestaduais. Por isso alguns sugerem que a definição restritiva seja refeentrepovosqueafectemopodersoberanodosEstados.Há quem a defina
rida às relações
como a disciplina que estudaosfactorese actividadesqueafectamapolíticaexteriore
opoderdasunidadesbásicas,por exemplo, Estados e grandes espaços 8 •
7
Adriano Moreira, PolíticaInternacional,Porto, 1970, Cap . l; Adriano Moreira, A comunidadeinternacionalem mudança,2' ed ., Lisboa, 1982.
• Hoffmann , Teoríascontemporáneas
sobrelasrelacionesinternacionales
, Madrid, 1979.
53
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Seja qual for o conceito, ele não deixará de suscitar dúvidas de concretização quanto aos problemas de fronteira ou interdisciplinares. Mas estes apenas
não surgem aparentemente em relação às áreas de autonomia antiga porque
o tempo estabilizou as soluções departamentais. O núcleo central de todas as
definições propostas é o conjuntode relações
entreentidadesquenãoreconhecem
um
poderpolíticosuperior,aindaque nãosejamestaduais,somando-seas relaçõesdirectas
entreentidades
formalmentedependentes
depoderespolíticosautónomos.
Este conceito operacional considera como agentes das relações internacionais, em primeiro lugar, os Estados;mas também as organizações
internacionais
que congregam a cooperação de Estados sem terem poder político mas sem
internacionaisou transestaduais(organiobedecerem a nenhum; as organizações
zações não-governamentais) nascidas da sociedade civil que cortam os limites
designadamente qualificados de terdas fronteiras políticas; os podereserráticos,
roristas, que se confrontam com os Estados sem lhe reconhecerem superioridade; as instituiçõesespirituaisde vocação mundializante, como a Igreja católica,
que assumem a autoridadeindependente mesmo sem qualquer poderp(?lítico;os
indivíduosque de facto, ou de direito, assumem uma intervenção , não subordinada ao poder político, na vida internacional 9•
Isto levanta uma questão semântica importante, que é a de saber porque
é que então estas relações se chamam internacionais, quando a maioria dos
Estados existentes no mundo não correspondem a nações, e grande número
de agentes não são Estados. Uma primeira razão para nem sequer discutir a
validade da expressão está no seu antigo e continuado uso, sem que o saber
se acrescente com rectificações sempre elas também discutíveis. Mas outra
razão, mais importante, é que a expressão, que mantém a filiação valorativa no
direitointernacional,
disciplina normativa bem mais antiga, parece fazer apelo ao
objectivo ético de reconhecer que a cada Nação deve corresponder um Estado,
que a Nação é a forma ocidental mais rica de potencialidades para viabilizar a
autonomia e independência dos povos. Não parece haver qualquer razão para
substituir uma designação que se tornou clássica e se baseia em motivações de
relevo, por outra que sempre também daria causa a ambiguidades.
2. Interdisciplina
A sociedade internacional, ao contrário das sociedades politicamente organizadas em Estados, não corresponde ao modelo de sociedadeintegrada.Neste
último modelo, uma autoridade suprema recolhe a lealdade dos indivíduos e
dos grupos intermédios, lealdade que não se dirige ao bem comum da Huma'' Georges Berlia, Coursdesgra11ds
problcmespolitiquescontemporains,
Paris, Les Cours de Droit , 1967-1968 (pol.), faz uma aplicação do método da enumeração para definir o objecto.
54
INTRODUÇÃO
.dade que os transcende, mas sim a uma sociedade política. Nesta é que as
;~nções sociais estão definidas e i~terli~adas, desenvolvendo-se_complementarmente para salvaguardar a funcionalidade do modelo e a realização do seu
bem comum privativo.
A sociedade internacional, essa ainda hoje não é uma comunidade integrada,
e não corresponde às características do Estado moderno com um conceitoestratégicoprivativo,uma organização
racionaldopoderpolítico,um instrumentoburocráticoe um sistemajurídico coerente.Como evidencia Manning, a ciência política
do Estado começa pelo contexto para depois se ocupar das relações abrangidas dentro dele; as relações internacionais começam por estudar as entidades
básicas para depois examinar as conexões exteriores 10•
Esta circunstância fez com que o problema da interdisciplina e do método
interdisciplinar tenha maior relevo neste ramo das ciências políticas que são as
relações internacionais, do que noutras ciências sociais como a sociologia, ou a
economia que é talvez a mais autónoma de todas. A questão da interdisciplina
tem mais de uma faceta e conviria evidenciar algumas delas.
Em primeiro lugar, tem que ver com a classificação e arrumo das disciplinas científicas , ou classificação das ciências, que sofre uma revisão periódica.
A longa duração, sobretudo institucionalizada em escolas e departamentos ,
de uma classificação que sempre corresponde a uma data histórica e ao saber
e perspectivas então disponíveis, faz esquecer a transitoriedade instrumental
das divisões e dificulta sempre a revisão do enquadramento e a autonomia de
disciplinas novas imposta pelo alargamento dos campos de estudo e afinamento
das perspectivas e instrumentos de análise.
Um remédio para o exame de problemas novos, ou vistos de novo, e que rompem as tradicionais definições dos campos de estudo e respectivas técnicas, é
a convergência dos especialistas, com as suas específicas perspectivas, para o
exame em comum da questão. Esta convergência interdisciplinar será normalmente o passo inicial de uma futura definição autónoma de um novo objecto,
de novas metodologias, de uma nova disciplina.
Foi assim que a ciência política se autonomizou em face do normativismo
do direito constitucional, e que as relações internacionais se autonomizaram
dentro da ciência política. Mas a interdisciplina, enquanto não se atinge o patamar das definições autónomas, dá origem, institucionalmente, aos grupos polivalentes de investigadores, que adquirem eventualmente estabilidade formal,
e que convergem, com a pluralidade das suas especialidades, para o estudo de
um problema que não cabe nas definições tradicionais. É muito ainda a situação actual das relações internacionais, entregues a departamentos autónomos
"'Thc U11iversity
Teaching
, cit., p. 74.
55
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
das instituições da investigação e do ensino, mas procurando assegurar uma
formação consistente a partir da convergência de especialistas com formações
perfeitamente diferenciadas, tal como historiadores, sociólogos, economistas,
geógrafos, estrategas, juristas, filósofos e politólogos. A definição gradual do
seu objecto específico leva progressivamente ao arrumo tradicional das espenucleares
e disciplinas
auxiliares.
cialidades convergentes entre disciplinas
O primeiro e principal esforço é portanto o de conseguir uma definição, mesmo
e frequentemente pelo método da enumeração, dos problemas que integram o
âmbito das relações internacionais. As necessidades interdisciplinares serão então
mais evidentes, não podendo esquecer-se nunca a arbitrariedade razoávelque está
na base de qualquer definição operacional ou enumeração de temas.
Entre as muitas sugestões, quase tantas quantos os autores, podemos aproveitar o essencial da proposta de René Coste: 1) as relações internacionais são
as que decorrem entre poderes ou autoridades que não reconhecem outros
superiores, ou por cima das fronteiras territoriais entre grupos e indivíduos
formalmente subordinados àqueles poderes ou autoridades; 2) como ramo do
saber, organiza uma série de técnicas e métodos agregados com perspectiva
multidisciplinar, com o fim de elaborar hipóteses, e identificar os temas, classificar os objectivos axiológicos, definir as alternativas possíveis da evolução,
julgar da equação entre as alternativas e os objectivos identificados; 3) as relações internacionais podem descrever-se em termos de formaçãodedecisões
por
indivíduos situados numa circunstância social concreta 11•
3. Da sociedade à comunidade internacional
Esta conclusão do processo evolutivo que levou à autonomia científica e pedagógica das relações internacionais foi uma resposta à evolução da sociedade
interque está em curso. A partir
nacionalpara o modelo da comunidadeinternacional
do movimento das Descobertas, data em que começa a construção do Euromundo, também se desenha a consequência, hoje consumada, de se extinguir
um mundo de áreas separadas e até mutuamente ignoradas. A racionalização
da nova conjuntura, de elaboração demorada, teve acidentes graves de falta de
entendimento recíproco e de comunicação 12•
A lenda do bom selvagem, que tanta importância haveria de ter no contratualismo, correspondeu à visão deformada das sociedades aborígenes sul-americanas, que inspiraram a convicção de que poderiam existir sociedades sem
poder político.
René Coste, MoralInternacional
, Barcelona, 1967, p. 38.
Adriano Moreira, A Europaemformação,2' edição, S. Paulo, 1976, onde se analisa a formação, exercício e crise do Euromundo.
11
12
56
INTRODUÇÃO
contacto com a intimidade de África, muito para além do conhecimento
0
orádico de africanos, anterior ao movimento das Descobertas, levantou até
esp estão teológica de saber se teriam alma, e socialmente dinamizou os fenóa qu
d
.
enos gravíssimos do transporte e escravos para outros ~ontmentes e a polí~ca de discriminação, agora em processo de extinção na Africa do Sul.
t A admissão de todas as comunidades na vida internacional, em princípio
m voz própria, apenas se verificou realmente depois da guerra de 1939-1945,
c~m O movimento geral da descolonização consagrado na Carta da ONU. Isto
cignifica que o alargamento da área de regência do direito internacional foi
:ntecedido pelo desenvolvimento da interdependência e solidariedade, mesmo
sem igualdade, das áreas geográficas, étnicas e culturais, que durante séculos
se relacionaram numa base de hierarquia e su?ordinação .
No começo da guerra de 1939-1945, toda a Africa era uma colónia da Europa,
a Ásia não tinha peso político, mesmo quando tinha personalidade internacional formal como a China, na balança de poderes internacional.
Pelo contrário, todo o continente americano, com ligeira excepção, assumira um lugar igual na comunidade internacional depois da crise europeia do
bonapartismo, e na sequência da independência dos EUA em 1779, ficando o
Brasil abrangido no movimento e com a independência consagrada pelo tratado de 1825.
Mas esta primeira grande vaga do anticolonialismo liberal, no sentido do
alargamento, em pé de igualdade, a várias regiões do mundo, não teve o mesmo
significado do movimento posterior a 1945, porque neste caso foram os povos
nativos que assumiram uma voz própria, e naquele do século dezanove foram
realmente europeus emigrados que comandaram as referidas independências .
dogénerohumano
As alterações políticas que encaminharam para a consideração
comoumasócomunidademundial,com uma aspiração visível a um direito igual e
não imposto por uma área do mundo às outras, foram tornadas possíveis por
várias revoluções 13 • A primeira delas foi a revolução científica e técnica que teve
a sua intervenção constitutiva e salto qualitativo no sentido da mundialização
da sociedade internacional logo que dominou as ondas e organizou a revolução
e da informada comunicação. Produziu o fenómeno chamado da simultaneidad
ção,de tal modo que, em qualquer ponto do mundo, em qualquer momento, se
verifica uma projecção global dos acontecimentos em curso ao redor da Terra
e uma chamada global dos povos à reflexão. O que fez surgir um novo problema de dep endência, porque o domínio dos mecanismos da informação por
3
Adriano Moreira, "A lei da compl exidade cre scente na vida internacional ", in Comentários,Lisboa , 2'
ed., 1992, p.11. Teilhard de Chardi n, "La vida cósmica ", in Escritos
deitiempodeguerra(1916-1919),Madrid,
1967; Chardin, Quelquesréflexionssur/e retentisse
mentspiritueldela bombe atomique,Pari s, 1946, p. 25.
'
57
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
um agente interveniente na vida internacional, Estado ou entidade privada de
projecção transestadual, pode orientar tendenciosamente o processo de formação de decisões internacionalmente relevantes.
Outra revolução foi a alteração quantitativa da relação entre os grupos étnicos, com o decréscimo relativo da etnia branca, vítima do que já chamam lapeste
blanchee que altera os equilíbrios étnico-culturais externos como está a resultar
da chamada bombademográfica
situada no Norte de África, sendo de reter que o
Euromundo foi uma construção da etnia branca.
Por outro lado, no que se refere à forma extrema de os Estados afirmarem
os seus direitos e interesses, que é a guerra, todas estas modificações produziram um fenómeno comprovado em duas guerras, e que foi a mundialização dos teatros estratégicos, durante séculos pura e simplesmente regionais.
Tal mundialização foi corolário, e outras vezes causa, da corrida armamentista,
que viu nascer neste século a guerraatómica,a guerraquímica,a guerrabacterioainda desconhecidas da geração que viveu as difilógica,a guerrameteorológica,
culdades do começo deste século.
A própria vida económica conheceu os mercados transnacionais e as organizações económicas multinacionais, que pretendem competir internacionalmente com o que chamam as armasdapaz em substituição das armasdaguerra.
No domínio científico, aconteceu que raros Estados podem acompanhar
a superpotência ocidental, que ainda são os EUA, único que pode organizar
um instrumento de investigação como a NASA, o que obriga não só à internacionalização mas também ao reconhecimento e aceitação geral de dependências e interdependências mundiais, científicas e académicas, desconhecidas
no passado.
Esta nova configuração da sociedade internacional teve o efeito de reforçar
fazendo convergir técnicas e sabea necessidade de recorrer à interdisciplina,
res estruturados em diferentes e anteriores conjunturas. As disciplinas que
apareceram como dominantes nessa aproximação foram a ciência política, a
economia, o direito, a história, a diplomacia e a estratégia, que finalmente se
congregam em currículos destinados à formação específica de investigadores
e profissionais. Os quais se deparam com um objecto que, em vista das interdependências crescentes, abandona progressivamente o modelo de sociedade
internacional, no qual o contrato é o instrumento por excelência para desenvolver estruturas e instituições comunitárias.
4. O normativismo internacional
Tudo isto implica que reconhecemos uma realidade chamada comunidadei11terpor débeis que ainda sejam as estruturas. Também aqui é necessária
11acio11al,
uma prevenção semântica, visto que indiferentemente se usam as expressões
58
INTRODUÇÃO
. dadee comunidade.Ora, de acordo com a proposta do sociólogo Ferdinand
soc1e
. uma d'c
r 0..nnies (1855-1936), existe
11erençaentre os grupos que por vezes amb as
lavras confundem, e que ele respectivamente chamou Gesellschaft(socieas
pa
.
(comum'd ad e).
d de) e Gememschaft
ª A expressão comunidade designa um grupo social ao qual se pertence sem
identificado em termos de vida comum, interesse comum, cooperaescolha ,
. _
.
ão e interacção entre os seus membros na busca da reahzaçao desse mteresse
ç com sentido comum de pertença entre os membros do grupo: é o caso da
~mília, da Nação, da região, do município.
Nas sociedades todos os elementos se podem encontrar, excepto que a
entrada no grupo é voluntária, o objectivo tem limite temporal mais ou menos
determinado, não é pressuposta a continuidade e duração para além da sucessão
das gerações: são exemplos as sociedades culturais, as empresas económicas, as
alianças para objectivos concretos. Sabe-se que uma sociedade se transforma
eventualmente numa comum'd ade14.
A questão da existência de uma comunidadeinternacionalsignifica indagar
se O conjunto da Humanidade, dividido em grupos que muitos deles assumem
um poder em relação ao qual não reconhecem poder superior, tem já as características de uma comunidade, independentemente da indiferença com que
se usam as expressões sociedade e comunidade ou se é apenas um conceito
nominativo. Algumas correntes conservadoras afirmam que a Nação-Estado
é a organização mais ampla que tem a experiência acumulada necessária para
fundar uma vida comum, afastando inteiramente o conceito de que a Humanidade é uma entidade social real, um objecto de devoção e um guia de responsabilidade moral.
Todavia,esta atitude, muito filiada no hegelianismo, parece completamente
em desacordo com os factos e com os valores vigentes na vida internacional.
Em primeiro lugar nunca foi exacto que houvesse a coincidência necessária
Nação-Estado, um princípio político apenas proclamado no Ocidente nos 14
Pontosdo Presidente Wilson na guerra de 1914-1918.Mesmo no espaço ocidental nunca foi um princípio com inteira validade, porque há vários Estados multinacionais, porque existem nações divididas entre vários Estados, e porque a
esmagadora maioria dos Estados do mundo têm necessariamente um povo mas
este não é uma Nação.
1
•
A evolução do isolacionismo para a sociedade internacional, e depois para a comunidade internacional, reduz-se à problemática da integração.Ver o livro básico de Karl Deutsch {et. ai.), Política/
Communityand the North Atla11ticArca, Princeton, 1957. Philip E. Jacob e James V. Toscano {edc.),The
lntegratio11
of PoliticalCommu11ities,
Filadélfia, 1964. Ferdinand Tiinnies, Community and Association,
Londres, 1955.
59
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
As fidelidades referem-se a valores diferentes da Nação, designadamente
a coroa, a confissão religiosa, a circunstância adversa comum ou global muito
desafiante, que empurra para a unidade política.
É este último facto que determina a evolução contemporânea no sentido
de formar aquilo que se vai chamando os grandesespaçosdestinados a superar
a incapacidade do Estado clássico para responder às necessidades actuais dos
povos. É o caso dos espaços militares duradoiros, como a NATO e foi o Pacto
de Varsóvia, ou, em plano diferente, a União Europeia. O sentimento de fidelidade comum a valores comuns, à nova estrutura política definida, ao interesse
comum, e a intervenção individualizada na vida internacional não assentam
necessariamente no carácter nacionalda pluralidade de povos abrangidos pelo
enquadramento novo.
Ora, se as hesitações teóricas podiam ainda ser avançadas antes da última
guerra mundial, depois disso os vários fenómenos de efeito mundial e mundializante, que alguns ficaram referidos, já não permitem negar a existência de
um interessecomumdaHumanidade,assumido até institucionalmente por exemplo pela Organização das Nações Unidas, e que é a primeira referência de uma
comunidade mundial.
Sem estrutura política, sem poder emergente, mas vinculada a um património comumdaHumanidadee a um normativismo correspondente.
O património comum da Humanidade abrange, designadamente, o maralto
em que nenhum Estado pode exercer soberania, o outer-space
e os corpos celestes
que não podem ser apropriados por nenhum Estado, a Antárctida, e bens imateriais como a paz, a solidariedade entre povos ricos e povos pobres, a cooperação Norte-Sul do mundo, a variável comum do medo em face da domesticação
da energia atómica e do risco do holocausto nuclear por acção internacional
ou simples erro humano 15•
A imperfeição da estrutura em desenvolvimento da comunidade mundial,
que não criou um poder político federador dos vários poderes políticos que
não admitem superior na Ordem internacional, tem como consequência que
o estadode naturezaainda é um conceito que corresponde a muitos aspectos
da vida dessa comunidade, e que esta aparenta sinais frequentes de disfunção e quebra de paz, reconduzíveis pelo menos a duas circunstâncias: 1) não
existe igualdade entre os membros dessa comunidade, mesmo que o direito
internacional o proclame, porque a regra continua a ser a de uma hierarquia
real baseada na força disponível; b)não existe uma arbitragem acatada para os
conflitos entre o interesse
geraldaHumanidadee o interessesupremode cadaagente
15
Mihajlo Mesarovic e Eduard Pcstel, Mankind at the turningpoint:the secondreportto the Club ofRome,
N.Y.,1974, Cap. 6°.
60
INTRODUÇÃO
unidade internacional, os mais importantes deles sendo os Estados.
dia O famoso Bium, primeiro-ministro da França, na Sociedade das
- existira
. . , nunca, uma or d em d e
- s· "Não existe, e con fiiamas em que nao
Naçoe
.
• · que integram
·
.
.
l.
edência
entre as potencias
a comum "dad e mternac10na
pre: estabelecesse no seio da Sociedade das Nações uma hierarquia dos Esta· arruma
· d a, mora l e matena. lmente. " Uma ob servação
Se
d s a Sociedade fi1cana
º:•obviamente não correspondia aos factos da SdN, e também não veio a corqu ponderaos da ONU, onde os cinco grandes (EUA,Rússia, França, Inglaterra,
~~ina) têm no Conselho de Segurança um direito de veto em relação a todas
s questões que respeitem à paz e segurança internacionais, privilégio hoje
a
" .
reclamado por outras potencias.
A existência da comunidade, independentemente da existência de um
poder político federador, levanta a mesma questão com que os contratualistas
se defrontaram ao tentar racionalizar a formação do Estado a partir do estado
denatureza,e que é a da existência de um normativismo geral, com o nome de
ética ou de direito.
Podemos admitir que, havendo interdependência de homens e grupos, o
problemadosvaloresé inevitável, e a proble~ática do direito natural surge imediatamente.
Pelo que toca aos valores, a orientação que nos parece aceitável é a que aceita
a não-indiferença do mundo, o que significa que, em relação a todas as coisas,
reconhecemos um sinal particular que nos leva a considerá-las santas ou profanas, justas ou injustas, boas ou más, e assim por diante. Daqui resulta a distinção entre juízos deexistênciaejuízos devalor,sendo que os primeiros enunciam o
que uma coisa é, e os segundos o que uma coisa vale.
São juízos que também fazemos a respeito das relações entre indivíduos e
entre colectivos como os Estados. Uma atitude possível é concluir que os juízos
de valor são impressões subjectivas de agrado ou desagrado que as coisas nos
produzem e projectamos sobre as coisas. Por outro lado, o facto que os latinos
sequor(vejo o que é melhor e
exprimiam dizendo - vídeomelioraproboque,deteriora
aprovo, mas sigo o pior) parece demonstrar que o valor é alguma coisa de objectivo, que não se demonstra, mas que ele se mostra, como se passa com a obra de
arte (beleza) ou com a relação humana (justiça). Acontece, como nota García
Morem e, que os valores se descobrem, no sentido rigoroso da palavra descobrir, e aparec em como alguma realidade finalmente encontrada. Sustenta-se
por isso que os valores nem são coisas, nem impressõe s subjectivas, deles apenas se pode dizer que valem. A essência do valoré a não-indiferença, é não ser
indiferente. Por isso Husserl lhes chama objectos não independentes, isto é, que
não têm natureza substantiva independente, aderem sempre a outro objecto,
que é belo, é justo, é bom .
d:
co:m
Disse
61
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
São portanto qualidades, e independentes do tempo e do espaço e da quantificação. Não se pode dizer de um acto que é dez vezes justo, nem que a sua
justiça depende do tempo e do lugar. São portanto absolutos, isto é, não têm a
validade dependente das épocas. Mas acontece que a capacidade dos homens
para os reconhecer, essa é relativa, como é plural a maneira de os afirmar, pelo
que existem conjunturas e épocas que não consentem aos homens, ou a certas
comunidades, a sua descoberta, ou a coincidência nas avaliações. É neste ponto
que a concepção dos valores como absolutos se encontra com o relativismo, porque tem de reconhecer e respeitar o pluralismo das leituras, que as valorações
assumidas variam no tempo e no espaço para os processos e para cada grupo
cultural, e são diferentes conforme as comunidades 16•
A experiência da vida separada e sem comunicações, durante séculos, das
várias comunidades, deu assim lugar à criação de sistemas culturais específicos,
cujas valorações dos interesses e condutas recíprocas, assim como das normas
a que devem subordinar-se, não coincidem. A unidade que vivemos encontrou-se com um mundo que a UNESCO chamou de múltiplasvozes.
O estado de natureza da comunidade internacional, no sentido que ficou
referido, suscita então o mesmo problema que os contratualistas e liberais levantaram para a definição da sociedade civil e do Estado, e que Grotius (1583-1645) referia à sociedade internacional, o qual é o de saber se existe um direito
naturalque, independentemente do facto de não existir um poderpolítico,e acolhendo o pluralismo cultural das várias comunidades, seja um padrão comum
das novas relações comunitárias. Pode falar-se também e antes de uma ética
internacional,sobretudo para com a expressão afirmar que se trata de normas
sem coacção física organizada no sentido de impor a sua observância·, mas hierarquicamente superiores ao direito internacional organizado e vigente para
o actual patamar da evolução.
Para responder a este problema temos duas tradiçõesocidentais:a tradição
maquiavélicae a tradiçãopersonalista.
A primeira encontra expressão nas análises de Maquiavel (1459-1517), considerado o fundador da ciência política, que escreveu duas obras principais:
O Príncipee os Discursossobre os primeiros dez livros de Tito Lívio. O primeiro
dos livros inicia uma perspectiva de Realpolitik,baseando-se numa desinibida
observação da conduta dos homens e das instituições com o objectivo de adquirir, manter e exercer o poder político.
"' García Morente, Lecciones
preliminaresdcfllosofla,Buenos Aires, 1957, Lição XXIV,e bibliografia ali
Barcelona, 1967. Cohen-Tanugi, Le droitsansl'État, Paris,
aconselhada. René Coste, Moralllltcrnacio11al,
1985. Friedrich Hayek, Droit, législationet libcrté,Paris,1980. Marcel Gauchet, La révolutiondesdroitsde
l'Hommc, Paris, 1989.
62
INTRODUÇÃO
A sua principal observação é que são as boasarmasque estão na base das boas
por isso dá preferentemente a sua atenção às primeiras.
/eis,Deste
e
- e, a ex1stencia
. • . de valores ab so lutos que esta, em d"1scussão, e,
modo, nao
. a vontade de quem tem o poder de impor. Assim, o nonnativismocorresponde
simma ordem,que co locara' ova lor d a segurança d o po d er acima
.
d a Justiça.
. .
ª u Na tradição, o maquiavelismo ficou a designar o conjunto de procedimentos
orais que visam adquirir e manter o poder, e o próprio analista adquiriu a
;:agem da amoralidade. Não parece justa esta consequência, porque Maquia vel distinguiu aquilo que lhe parecia a realidade da competição política, da
a ologética que também faz a favor de um Estado constitucional, com divisão
e~quilíbrio de poderes, em que a representação das várias classes conduziria,
pelo governo limitado, à liberdade de todos.
Os factos da vida internacional não têm desmentido que as boas armas assumem O ditado do que entendem ser as boas leis, impondo uma ordemque não
coincide necessariamente com a justiça. A Ordem internacional, agora em crise
desde a queda do Muro de Berlim em 1989, resultou da decisão das potências
vencedoras da guerra de 1939-1945, e assim aconteceu sempre no passado 17•
A tradição humanista, que tem no Ocidente uma vertentecristãe uma vertente
laica, assumida principalmente pelo chamado socialismodemocrático,radica em
Santo Agostinho (354-430) cujo escrito principal é A CidadedeDeus.Lidando
com a queda do Império Romano, a que assistiu, procura descobrir princípios
que devem presidir aos conflitos internacionais, analisando detidamente o problema da paz. Assim defende uma concórdia justa filiada nos supremos valores
cristãos, mas admite a guerra quando a agressão vitoriosa se traduzisse na perdição: lutar "antes que mortos na alma" 18•
Ora, a chamada PaxRomana,que correspondeu a uma organização
imperialdas
relações ent re comunidades diferenciadas, foi geralmente imposta pela conquista, de modo que a pacificação da Europa e do Norte de África correspondeu à criaç ão de um império, e à imposição de uma espécie de lei internacional
que era oj usgentium,aplicável a todos os grupos que entravam na sua jurisdição
política, ou tratavam com ele.
Este direito era exclusivamente editado pelo poder imperial, que lhe assegurava a efic ácia com os seus meios de coacção, mas também por isso mesmo
correspo ndi a a uma tolerância do poder imperial para com tais povos, a qual
podia ser ret irada sempre que os interesses do Estado o exigissem.
.
17
Maquiavel, Lc Prince(1532); Discoursmr lapremieredécadedeTito Livio (1513-1519); Discourssur l'artde
laguerrc(1519-1521). Existem várias reedições.
18
Santo Agostinho, La ciudaddeDios,2• vol., XIX, Madrid, 1978.
63
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Todavia, a criação desse jus gentiumpode ter correspondido à convicção de
que existem valores e princípios acima das divisões políticas, étnicas, culturais
e religiosas, que se aplicam a todos os homens; ou, simplesmente, à consideração de que para manter a capacidade suficiente de ser obedecido, é necessário condescender com um certo grau de liberdade e autonomia de todos os
povos e homens. No primeiro caso é a perspectiva humanista que se adopta,
no segundo é a perspectiva maquiavélica.
Na experiência romana, se adaptarmos Cícero (106-43 a.C.) como referência, vemos que a existência de um direito natural foi afirmada na tradição do
grego Platão (428-348 a.C.) e dos estóicos. Foi Cícero quem distinguiu entre
podere autoridade,defendeu o respeito por uma lei inscrita no coração de todos
os homens por um Deus legislador, e cuja violação torna indigno o poder e os
homens infractores. Os seus livros (De Officiis,De Legibus,Republica)transmitiram aos pensadores cristãos posteriores as doutrinas antigas do direito natural, da justiça, e da ordem.
Todavia, o verdadeiro problema de um normativismo internacional apenas
surge para tutelar as relações entre poderesindependentes uns dos outros, ou
entre organizações e pessoas subordinadas a entidades políticas diferenciadas. Por isso mesmo, na cultura ocidental, os pensadores ocuparam-se desse
problema para adaptarem a lei romanaà condição de cada lugar e época sem
deixar perder o universalismo do jus gentium e da lei naturalque lhe servia de
invocado suporte, e também quando ajurisdiçãoeclesiástica,a que mais tarde
se submetera a RepúblicaCristã, entrou em colapso. A falta de uma autoridade superior aos poderes que entram em relação torna sempre evidente e
urgente encontrar uma resposta para o normativismo que presidirá às relações entre eles.
A expressão internationallaivfoi introduzida por Bentham em 1780, mas é
muito longa a teoria dos pensadores (Grotius, Pufendorf, Vattel, Kant) que procuraram lançar e consolidar os fundamentos de um normativismo internacional
respeitado. Estes pensadores dividiram-se em duas correntes fundamentais.
Para uma corrente chamada positivista,que radica em Vattel, o direito internacional é um conjunto de tratados, acordos e costumes aceites pelos Estados,
cujo respeito depende do voluntário acatamento dos interessados. É a perspectiva maquiavélica que se insinua aqui, com os corolários de que os tratados
são espelhos de uma ocasional correlação de forças, ou simples compromissos
abandonados logo que a balança de poderes se altera.
Para outra corrente, ajusnaturalista,o direito internacional decorre de valores, entre os quais predomina o valor da justiça, é sustentado por uma autoridade própria assente na natureza humana, e não pode ser desobedecido em
consciência nem afastado por tratados .
64
INTRODUÇÃO
roblema da validadedesse direito é diferente da sua eficácia,sendo esta
Ofipa dependente da voluntariedade dos Estados por não haver um poder
que ic
.
h 19
rior que a 1mpon a .
sup;a simbologia ocidental, é o drama de Antígona que representa a fidelid aos valores, acima da ordeme sem temer a consequência da reacção da
~a : que O poder político representa. Filha de Édipo, rei de Tebas, aconte·
rorçque os seus d 01s
· 1rmaos,
· - Et10c
' 1es e Po1·mices,
se envo1veram em 1uta pe 1a
ce:isição do poder, morrendo ambos em duelo. O senhor da cidade, Creonte,
aqandou sepultar Etíocles, mas proibiu que se desse sepultura a Polinices .
~alando a ordem e a lei, Antígona resolve praticar o fraterno acto de sepultamento. Confessa perante Creonte o crime cometido, e alega que uma lei
superior à lei do Estado a obrigava a cumprir a piedosa obrigação. Morreu por
isso. Esta necessidade de escolher está sempre presente no processo político
•
•
)20
interno e mternac1ona .
As relações entre os grupos nacionais, etno-culturais, ou raciais, e o poder
político, obedecem politicamente a um esquema geral, que subordina várias
áreas culturais ao mesmo poder político (Império Romano), abriga vários poderes políticos dentro da mesma área cultural (Grécia antiga), ou faz coincidir a
área cultural com o poder político (Estado nacional).
Os grandes espaços consentidostendem para agrupar Estados da mesma
área cultural, como acontece com a Comunidade Europeia. Os grandes espaços impostosagregam as unidades políticas em função do conceito estratégico do poder dominante, como aconteceu com os impérios coloniais
das democracias europeias e com a URSS. A comunidade internacional em
estruturação, ponto ómega terrestre na linguagem de Chardin, tende para
superar os esquemas tradicionais pelo reconhecimento do valor da unidade
do género humano, pelo facto assumido de que só há uma Terra, pelo repúdio do próprio conceito de guerra justa do direito internacional agora em
mudança .
Cresce por isso o apoio ao entendimento de que é necessário desenvolver
um conceito de segurançahumanaglobal,referido, em trabalho preparatório do
SID - Parlamentarian
and CivilSocietyCampaignon "BuildingGlobalHuman Security"- nestes termos: "um mundo no qual toda a gente, em toda a parte, esteja
habilitada a conduzir as suas vidas e modos de vida sem o constante medo de
sinais e ameaças para a sua sobrevivência, saúde, trabalho e bem-estar. Conseguir uma segurança humana global significa dirigir muitas das energias e
recursos antes afectados à segurança nacional, no sentido militar e geopolí19
Hans Kelsen, La ideadeiderechonaturaly otrosEnsaios,Buenos Aires , 1954, p. 269.
escrito por Jean Anouilh, 1944.
'º Neste século, drama
65
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
tico, para criar essa esperança do mundo". A famosa Barbara Ward escreveu a
tal propósito : "é necessário grande visão, grande santidade, grande sabedoria
para manter vivo e viver o sentido de unidade dos homens" 21 •
§2º
RelaçõesInternacionaise PolíticaInternacional
1. Objecto e fins do estudo das relações internacionais
A tentativa de autonomizar o estudo das relações e da política internacionais
tornou-se sobretudo evidente, como vimos, depois da Primeira Guerra Mundial. Muitas disciplinas, sobretudo nas universidades americanas, passaram a
lidar com domínios, mais ou menos arbitrariamente definidos, que significavam
realmente ensaios da definição de um novo campo autónomo de investigação
e de ensino: Economia Internacional, Psicologia das Relações Internacionais,
Geografia Política, Direito Internacional, Diplomacia, História da Diplomacia,
foram algumas das disciplinas que apareceram.
Por outro lado, com estudos baseados ou inspirados por departamentos
especializados das universidades, começaram a aparecer autonomizadas, como
objecto de estudo, certas regiões do globo, por exemplo, América Latina, Próximo Oriente, África, América do Norte.
A própria Sociedade das Nações já patrocinou, na década de 30, como dissemos, o desenvolvimento desses estudos, tendo sido particularmente importante a Conferência sobre Estudos Internacionais realizada em Praga em 1938,
e documentado por Alfred Zimmern, assim como a UNESCO, já no domínio
das Nações Unidas, tem procurado também desenvolver o estudo das relações
internacionais, sobretudo na medida em que se relacionam com o papel das
Nações Unidas no mundo.
Na Europa pôde verificar-se, no que respeita ao ensino do Direito Internacional, uma evolução no sentido de modificar a sua natureza puramente normativa para incluir uma explicação sociopolítica e conjuntural das normas e
práticas internacionais. Deste modo, também neste domínio particular se verifica a divergência geral que se encontra no domínio das ciências políticas entre
as tradições, aliás muito recentes, americana e europeia. Na tradição americana,
o ponto de vista da sociologia está na origem da autonomização do estudo das
21
Barbara Ward, The Rich Natio11s
and the PoorNatio11s,
N.Y., 1962; SpaccshipEarth, N.Y., 1966; Progress
of smallplanei,N.Y., 1979. Robert Muller, Neiv Genesis,Shapinga globalspirituality,Washington, 1993;
Robert Muller, The birth of aglobalcivilization,Anacortes, WA, 1991.
66
INTRODUÇÃO
- s internacionais, enquanto na Europa são o ponto de vista normativo e
relaçoe
.
. , ria que se mostram dom mantes na base da evolução.
a b1sto
• _corrente d as re 1açoes
- _mternac_10na1s,
·
·
·
Percorrendo ~ programa d e ens1_no
d mos, empiricamente, ter uma 1de1ado seu concreto obiecto, deixando
Pº e ouco para mais tarde a tentativa de estabelecer conceitos operacionais
p
, . entre relaçoes
- mternacwnazs,
.
. . relaçoes
- de
um cionados
com as d·c
uerenças poss1ve1s
re1a
. /
/' . .
. /
'ticainternacwna
e po ztzcamternaczona.
pol1Ora, os mais
"dos e autoriza
. dos autores norte-americanos
.
• con hec1
como
22
Quincy Wright ou Norman D. Palmer e Howard C. Perkins tratam com maior
u menor extensão dos problemas suscitados pelas relações entre os poderes
0
olíticos. Ocupam-se, designadamente, da descrição da organização mundial
pm Estados, da avaliação da importância dos vários poderes políticos internacio~ais,dos instrumentos de defesa do interesse nacional (diplomacia, propaganda,
economia, guerra), das tentativas de controlo das relações entre os Estados
(balança de p~der~s, segurança colec~iva,organismos inte~n~cionais, o~ganismos supranac1ona1s),tratam de conflitos correntes (colomahsmo, satelização,
guerra subversiva, refugiados), procuram identificar os tipos de acção adaptados por cada poder político (política estrangeira da Rússia, política estrangeira
dos Estados Unidos, política estrangeira da Inglaterra) e por vezes prognosticam sobre o futuro do mundo em que vivemos.
Este modo de talhar um campo próprio de actividade, feito por enumeração de temas, em desenvolvimento do conceito operacional, e como também
é habitual no domínio de todas as ciências sociais e políticas, apenas parece
uma novidade porque se trata de domínios muito recentes da investigação e
do ensino. A verdade é que este método se encontra mais ou menos na origem
da autonomia de todos os domínios do saber e que a definição conceituai abstracta e operacional, do âmbito de cada disciplina, é geralmente o resultado
de uma acomodação estratificada pelo tempo.
O Professor Quincy Wright, dando-se conta disto, escreveu que "as relações
internacionais, como disciplina que contribui para a compreensão, previsão,
avaliação e controlo das relações entre os Estados e das condições da comunidade mundial é ao mesmo tempo uma história, uma ciência, uma filosofia
e uma arte. Esta disciplina está a começar a obter resultados nos esforços de
analisar e sintetizar numerosas disciplinas que pensaram guiar as actividades
práticas no campo internacional ou desenvolver teorias gerais relacionadas
com esse campo partindo de particulares espécies de dados ou de particulares pontos de vista" 23 •
22
Quincy Wrigh t, Thc study of internatíonalrelatíons,N.Y., 1955. Norman D. Palmer e Howard C. Perkins, Irztcrnatíon
al Relatíons,Cambridge, 1957.
23
Lug. cit., p. 48 1.
67
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Esta situação é hoje muito comum e não privativa do estudo das relações
internacionais. De facto, a divisão dos campos de estudo é sempre puramente
convencional, e a classificação das disciplinas corresponde a certa conjuntura
do levantamento dos problemas que a ciência pode enfrentar. Quando a problemática a exigir atenção é nova, as novas disciplinas sempre assumem o carácter de interdisciplinares, parecendo tributárias de velhas disciplinas, até que
se estabeleça uma nova e suficientemente pacífica divisão.
Ora, a razão pela qual as relações internacionais assumiram a importância
que se exprime nesta autonomia recente encontra-se na internacionalização
dos problemas que é característica do nosso tempo, e vai provocando a erosão da jurisdição interna em termos de fazer desenvolver o referido modelo
de comunidade.
a) A internacionalização
dos problemas: a lei da complexidade crescente
Conviria, para melhor entendimento deste ponto, referir a expressão que a
internacionalização dos problemas assumiu depois da fundação da Organização das Nações Unidas.
A Carta das Nações Unidas tem sido muitas vezes entendida como traduzindo princípiosorientadores
de natureza política (guidingprinciples),
paradigmas
muito gerais mas não imperativos para a solução dos conflitos de interesses.
Guiados por esses princípios, os Estados membros da Organização só viriam
a ficar ligados pelo direito internacional quando conseguissem acordar num
Tratado sobre corolários decorrentes do entendimento da Carta.
Estaríamos assim em face de uma espécie de método de engenharia
social,que
assentaria na acumulação de precedentes a construção de uma nova forma de
coexistência internacional. Por isso, tem especial importância o disposto no
S 7 do artigo 2º da Carta, que diz o seguinte: "Nothing contained in the presem Charter shall authorize the United Nations to intervene in matters whích
areessencia/ly
wíthinthe domestíc
jurisdictionof anystateor shall requi re the Members to submit such matters to settlement under the present Charter; but this
principie shall not prejudice the application of enforcement measures under
Chapter VII".
Esta disposição exprimia, de algum modo, uma atitude geral, senão um
princípio jurídico, considerado válido num mundo anterior às Nações Unidas.
Este princípio era o de que a natureza essencialmente doméstica ou interna
dos conflitos os deveria subtrair à jurisdição dos organismos internacionais
ou supranacionais.
Acontece, porém, que a expressão foi sendo entendida, dentro daquela
concepção que referimos e que considera a Carta como traduzindo princípios
políticos e não jurídicos, no sentido de considerar que interessa à comuni68
INTRODUÇÃO
. roacional qualquer problema suficientemente
internacionalizado. Para
d demte
ª os interessados abordam o problema tantas vezes quantas for possível
canto,
, · na_agen d a d. a O_rgamzaçao
' - de
d o a mov1men~ar_
.
elas formas pos~1ve1s
a
e~ ·- das organizações mternac1ona1s e dos povos ate encontrar ma1ona
.
0p1n~
fjciente no sentido de fazer aprovar uma resolução. A situação pode sinte1
s~ -se assim; sãoessencialmente
dejurisdiçãointernaaquelasquestõesquea maioria
t12:ar
· não tenha dec1
'd'd
- de caracter
,
.
. l e cabendo
. 'veldaAssembleia
t o quesao
mtemacwna
exigi
, . 14
asuacornpetencza.
n Esta siruação processual foi tornada possível pelo abuso e deturpação
d factos, mas também derivou das exigências específicas do nosso tempo.
R:almente, a nossa época é caracterizada por uma interdependência total
ue afeccou de maneira decisiva os tipos de relações e os conceitos a que
~las estavam subordinadas até há poucos anos. O mundo tende para a unidade e caracteriza-se pela planetização dos fenómenos políticos. Deixou de
haver regiões, povos, governos ou acontecimentos indiferentes para o resto
da Humanidade. Como disse o famoso Teilhard de Chardin, encontrámo-nos perante a "unificação, tecnificação, racionalização crescente da Terra
humana. Parece-me que seria necessário fechar os olhos ante o espectáculo
do mundo para imaginar que poderíamos escapar a qualquer das três correntes de fundo" 25• Esta interdependência significa a socializaçãodo mundo em
todos os problemas globais onde a decisão humana tenha um papel a desempenhar: a fome, a explosão demográfica, a domesticação da energia atómica,
a paz, são indivisíveis.
Ao mesmo tempo que se marcha para a unidadedo mundo,assiste-se a uma
multiplicação das relações
internacionais.
Esta multiplicação é simultaneamente
qualitativa e quantitativa. É quantitativaporque se multiplicam os pontos de
contacto, as participações de interesses entre os Estados e os outros agentes
das relações internacionais. Ê qualitativaporque se multiplicam as novas formas
de coopera ção ou oposição entre os Estados ou tais agentes. Convém muito
sublinhar que o aumento quantitativo das relações também afecta a própria
qualidade, porque a multiplicação do mesmo tipo de relações dá origem a problemas novos entre os Estados.
Finalment e, ao lado da marchapara a unidadedo mundo e da multiplicação
dasrelaçõesinternacionais(convergência), verifica-se a proliferaçãodoscentrosde
decisã
o (disper são). Esta proliferação dos centros de decisão é imediatamente
visível no aumento do número de Estados que existem no mundo e que mais
m?
'' Leland M. Good rich e Edward Hambro, Chartcrofthc U,litcdNatia11s,Commrntarynnd Docummts,
llosron, 1949. Kelscn, Thc Law of tlw UnitedNatíons, N.Y., 1955.
"Teilhard de Char din, L'Avcnirdel'Homme,Paris, 1959.
69
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
que triplicou depois da última grande guerra. A dispersão e a convergência
encontram um princípio unificador nos orgãos supranacionais de diálogo,coo-
peraçãoe decisão.
Acontece que os Estados têm eles a natureza de instituições comunitárias,
instituições para as quais o território e a fronteira têm historicamente uma
importância essencial. Como todas as instituições comunitárias, sem que isto
queira significar que o fenómeno não se verifica nas outras, os Estados têm uma
vocação
conservadora
e uma vocação
inovadora.
A primeira das vocações, conservadora, I ida com a identidade e com a necessidade de preservar valores essenciais
que preenchem a parte mais valiosa do que se chama a tradição. A vocação inovadora, relacionada com a própria subsistência do Estado, traduz a sua necessidade de encontrar respostas novas para os problemas novos.
Antes da última grande guerra, e portanto antes da fundação das Nações
Unidas, o mundo das relações internacionais decorria entre Estados sobretudo ocidentais, fortemente dotados de uma vocação conservadora no sentido
de que todos tinham comungado, numa série de valores e regras de conduta a
que chamamos direito internacional. Grande parte, portanto, da vida de relação entre os poderes soberanos estava sujeita a uma escala comum de valores
que exprimiam respostas experimentadas a problemas antigos.
Actualmente, o panorama internacional é quantitativamente dominado
por novos e recentes Estados, de vocação predominantemente inovadora.
Alheios à experiência que esse direito internacional exprimia, negando-se
a aceitar imperativos em cuja formulação não colaboraram. Daqui, mais um
factor da importância crescente do estudo das relações internacionais e a
radicação desse estudo no foro das ciências políticas, acontecendo que a política do direitoínternacionalocupa o primeiro plano dos esforços dirigidos à
mudança.
Para exprimir sinteticamente esta evolução do panorama internacional
temos falado na lei da complexidade
crescente
da vidainternacional,pretendendo
significar que a marcha para a unidade vem acompanhada de uma progressiva
multiplicação, quantitativa e qualitativa, dos centros internacionais de diálogo, cooperação, e de decisão, e das relações entre esses centros 26 • Os clássicos
problemas considerados de jurisdiçãointernatransitam aceleradamente para a
categoria de internacionalmente
relevantes
e estes para internacío11ais,
agregando·
-se finalmente no patrimóniocomumdaHumanidade.
"· Adriano MoreirJ, A fri da comple.tidadc
crescentena vjda internacional.in Commtários,Lisboa, 1992,
P· ll.
70
INTRODUÇÃO
do estudo das relações internacionais
b)fill -5 porém , apenas razoes
- c1ent1
·
'fi1case aca d'emtcas
. que d etermmam
.
a autoNão sao,
·
d
d
d
l
õ
.
.
.
N
'
. e importância o estu o as re aç es 10temac10na1s. ecesst'd ades pra-
nomta
, .
' . d'
, 1
. muito prementes tornam necessano e ate m 1spensave esse escudo.
ncasEm primeir o lugar, a d'1p
lomac1a,
. ca d a vez mais. comp lexa, e, uma arte que
•sa de basear-se no estudo científico das relações internacionais. A arteda
precl
.
, . d
.
h .
rrasegue-se na 1mportancta as artes que exigem o con ectmento actuado do levantamento das relações internacionais para decidir da oportuni~:~e de recorrer a esse meio de acção, e o modo de o conduzir. O bipolarismo
Iterou O conceito segundo o qual a guerra, no dizer de Clausewitz, era a conti~uação da política por outros meios, porque agora a política é frequentemente
a continuação da guerra por outros processos.
Designadamente, a Cana das Nações Unidas prevê a guerra como uma política supranacional de cooperação para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. A guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, foi um exemplo.
A guerra evolui assim de instrumento de políticas nacionais para instrumento
de política supranacional. Veremos a evolução que está a ser determinada pelo
fim da Guerra Fria em 1989.
Aquilo que hoje se chamam as PublicRelations,que interessam tanto à actividade públi ca como à actividade privada internacional, exige o estudo aturado
das relações internacionais, em áreas da vida privada que vão do desporto e da
cultur a à economia da procura e da oferta globais.
económicotão assumido e dinamizado por empresas de
O desenvolvimento
dimensão internacional, assim como as múltiplas formas de cooperação económica internacional e supranacional, exigem o estudo autónomo das relações
internacionais. Algumas grandes empresas têm já os seus conselheiros pri vativos ou departamentos especializados.
Finalmente, sem com isto querer significar que não há outros domínios relevantes, a conjuntura internacional levou ao aparecimento de um tipo novo de
funcionário, o funcionário internacional, ao qual se exigem lealdades que são
incompatíveis, por vezes, com a lealdade tradicional ao seu país. O estudo das
relações internacionais é indispensável, com autonomia, por constituir a base
académica da sua formação.
fue
2. Subjectivismo e objectivismo: questões de método
No domínio das relações internacionais, como no domínio de todas as ciências
e do objectivismo
dos investigadores,
sociais, surge o problema do subjectivismo
comentadores e docentes. Este problema tem dois asp ectos que convém não
confundir. Em primeiro lugar, alguns como Quincy Wright sublinham que os
71
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
problemas das relações internacionais contendem com a concepção
deverdadede
cada uma das sociedades em presença, cada uma reclamando uma objectivj.
dade que não reconhece à outra. Ele próprio, defensor da concepção ocidental
de vida, não deixa de sublinhar, referindo-se à época da Guerra Fria terminada
em 1989 com a queda do Muro de Berlim, que "no mundo comunista a objectividade é deliberadamente repudiada, mas isto é simplesmente uma das muitas
evidências de que o comunismo e a procura da verdade são incompatíveis" 21.
Os soviéticos diziam o mesmo dos ocidentais.
Este problema, todavia, é, apenas, um dos dados com o qual tem de contar-se no estudo das relações internacionais. O verdadeiro problema do objectivismo e do subjectivismo diz respeito ao observador que não pode ele próprio
alhear-se de uma certa concepção do mundo e da vida que faz parte da sua circunstância pessoal e que condiciona necessariamente a sua relação com os factos a observar e avaliar.
Esta é uma das razões pelas quais, na pedagogia americana, se encontra uma
tendência para despersonalizar o ensino, o que se traduz em fornecer aos alunos
os textos e os documentos sem os filtrar por uma exegese pessoal do professor,
Daqui também a importância dos métodos quantitativos designadamente na
avaliação do poder de cada um dos centros de relações internacionais em presença, e a atracção pela chamada revolução behaviorista.
Por exemplo, o professor alemão Wilhelm Fucks, que há anos veio a Portugal a convite do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, publicou um
livro sobre a divisão do poder no mundo, chamado Formdnzur Macht (Fórmulas do Poder,1965) onde tentou analisar a realidade sociológica internacional
com métodos exclusivamente estatísticos. Deste modo, organizou um certo
número de índices para 1965, colocando os Estados Unidos no topo com o
valor de 1000.
Avaliando por relação aos Estados Unidos o poder dos outros grandes países,
calculou o valor 674 para a URSS e 415 para a China. Prospectivando o desenvolvimento provável até ao ano 2000, conclui que nessa data a China será a primeira potência do mundo, com um poder duas vezes superior aos dos poderes
reunidos da URSS e dos Estados Unidos. Pensou que nessa data o Japão seria
a quarta potência mundial ultrapassando o poder reunido da Grã-Bretanha e
da Alemanha. Provocou então algumas inquietações, mas os factos inquietantes foram progressivamente outros.
Esta tentativa corresponde à mais radical expressão da preocupação objectivista neste domínio e não é de estranhar que tenha vindo da parte de um
físico. Todavia, não se vê como é que poderá ser eliminada a relação pessoal
"Lug. cit., p. XXVI.
72
INTRODUÇÃO
b rvador com os factos e, portanto, as cautelas no sentido de garantir a
do_o si:idade devem também ter em conta a referida inserção do observador
obJectcerta concepção do mundo e da vida. Por isso, convém ter sempre pre111.una
as tendências contraditórias que animam essas concepções, pelo menos
sente s traços mais
. ev1'd entes, e natura Imente no domm10
, . part1cu
. 1ar d este
110s seU
b'ecto de estudo.
0
JTalvez a exemplificação de alguns dos tópicos que interessam ao investiganeste domínio possa ajudar a compreender melhor a cautela metodológica
dor
lh
,
, ,
e se aconselha, porque e sera necessano ter opções.
qu É comum encontrar uma oposição na maneira de encarar os fenómenos que se
por muito difícil que seja explicar o que
rime pelo binómio realismo-idealismo,
:~ntende por cada uma destas coisas, embora a diferença geral possa talvez ser
encontrada dizendo-se que se trata de resolver a hesitação entre perder a República e salvar os princípios ou abandonar os princípios para salvar a República.
Diferente contradição é a que se exprime pela dialéctica entre nacionalismo-internacionalismo,
que pode talvez explicar-se dizendo que se trata de resolver a
hesitação entre a unidade do género humano e os interesses de cada povo.
Outra contradição exprime-se falando na oposição entre segurançanacío11al-cooperação
internacional,
que se traduz na hesitação entre a salvaguarda da soberanía e a marcha para a criação de autoridades supranacionais.
Existe uma contradição que se exprime pela expressão farça-consentimento,
que traduz a hesitação entre organizar uma sociedade ínternacíonal h ierarquizada e uma sociedade internacional de Estados paritários 28•
Estas opções inevitáveis, enriquecidas facilmente com outras de menor
expressão, vêm a reflectir-se nas orientações ou escolas de pensamento que se
organizam especialmente no meio académico onde se definiu a autonomia das
relações internacionais no âmbito das ciências sociais.
Tal facto deu-se apenas no fim da primeira conflagração mundial, tendo por
questão principal, como notou Aron (1962),a guerra. O mesmo fenómeno que
no Renascimento fizera desenvolver o direito internacional por um lado, e a fria
razão de Estado pelo outro. Ainda hoje, as divisões
paradigmáticas
da literatura que
se lhe refere mantêm a referência às clássicas perspectivas realista, racionalista
e universalista, com dependência de Maquiavel, de Grotius e de Kant 29 •
Na história curta da disciplina a nível académico é frequente autonomizar
um período idealista,entre as duas guerras mundiais, um período realistaque
1
ª Palmer e Perkins, cit, p. XXV e sgts. Leslic Lipson, Thtgreat issuts of polítics, Prentice 1-Iall,1954.
P· 351. Loui, Hale, Civilizationand ForeignPolicy,Harptr, 1955.
"M. Wight, Wcstern valuesín International Relatians, in H. Butterfield (org.), Diplomaticlnvtstigations,
Londres, 1966.
73
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cobriria desde a Segunda Guerra Mundial à década de sessenta, e depois a revolução behaviorista. Trata-se de uma divisão indicativa, porque os pontos de vista
coexistem, e o realismo é, como nota Panebianco, sempre a corrente teórica
dominante. Corresponde mais aos factos uma c/i1Jag
em teóricaentre o idealismo
e o realismo, uma clivagem
metodológica,
e também uma clivagem
derivadadepadrões
culturais ou nacionais, permitindo identificar , por exemplo, uma escola norte-americana e uma escola europeia, embora a época seja de sínte se30 •
Talvez esta convergência actual tenha a sua raiz no desenvolvimento meto dológico da década de sessenta, que se deu sobretudo nos Estados Unidos, mas
que envolveu também os europeus 31•
No caso de se admitir que é possível isolar a questão central do debate, suscitado pelos b ehavioristas, estes entendiam que apenas tinham validade os estudos baseado s em técnicas quantitativas, para as quais reservavam a designação
de método científico. Por isso negaram esse carácter aos realistas anteriores
da escola americana, e definitivamente aos idealistas, incluindo autores como
Carr, Morgenthau, Wight, Buli e RaymondAron 32•
A este muito se deve, pelo contrário, no sentid o de esclarecer o equívoco
estatístico do behaviorismo, ao invocar a necessidade de distinguir as pers pectívas filo sóficas, históricas e jurídicas que se debruçaram sobre as relações
internacionais, das relações internacionais como ciência soda!, tributária de
um pluralismo metodológico não absorvido pelas técnicas estatísticas e quantitativas. Esta pretensão reduzia-se afinal a compatibilizar o método comparativo
históricoclássico e o métodoestatístico,sem excluir nenhum, porque finalment e
é o objecto que det ermina o méto do.
Mais importante foi a questão, levantada por David Singer em 1961, e conhecida como a questão do 11ívddea11álise.
Em sínt ese, trata-se de optar entr e partir
do sistema inte rnacional para racionalizar o desempenho dos agentes da vida
internacional (holismo), ou, pelo contrár io, ente nd er que o sistema é o resultado
da agregação das acções individualizadas dos agentes 33 •
Pode suste ntar- se qu e são d uas persp ecti vas irrecon ci1iáveis no entendi mento do que Hegel chamou "a transição da quantidade para a qualidade", e
1'1A. Panebianca , Refazionii11tm1a
zionali,Milão, 1992 , p. 15. J.Vasquez, Tlu poiverof poivcrpolitics,New
, Londres, 1985 .
Bru nsw ick.1983. K. J.Hol~ti,Thcdi1ridíngdiscípli11e
11K. Knorr e J.Rosc nau (org.). Contrndi11gapproaches
tofoternatio11alpolitícs,
Princcton, 1969. G. Pasquino ,
Tradiziu11
e e scfrnza ,ic/lostudfo de/lapolíticaínternazionale,11I'olitico, XXXIV.S. Hoffmann, Thesiateof
•~ar,N.Y.• 1965.Q Wright, A st11~1
oj war.Ch icago, 1942.
ll E. Carr, T/1c
fü-c111y
Yc,m'Cri.,is,Londres,1939. H. Morgenth:iu, Scíentijic
Manvs.I\:m,cr
Polítics,
Chic:igo,1946.
R.Aron,fuzcGumua1tm:sNaçiies.B1'3sllia,
l962.
:uo.Si~r,'Th eL:>elofAnalysisProblcm",i
nH-1,rlclMitia,J6,1961.A.Pl:troni.
"L'individualismometodologico",in
de/la politica,Bolonh a, 1989. M. Holll s e S. Smith, Explaininga11dm1dmA. Punebianco (org.), L'A11a/üi
ta11ding
intematíonalrelati1ms,Oxford , 1990.
74
INTRODUÇÃO
. ão de que a sociedade excede os indivíduos, porque estes recebem,
conv1cç
.
(idade a que pertencem, parte da sua maneira de ser, como geralmente
datot~e!Il 05 marxistas. Mas do ponto de vista do método, o averiguado é que
enten
ve..,es apenas é possível uma racionalização a partir da consideração
!gumas ,,
·
•
a
egado, isolando tendências que caracterizam o todo; os estudos numedo ag~e política externa dos Estados, e dos outros agentes da vida internacio·
d e ad optar o ponto d e
rosos ue disfunc1onam
·
·
- po d em d e1xar
os sistemas,
nao
1, q
na
,
.
1·
. d .
. individualista, com importante ap 1caçao na teoria os;ogos que os trata
1
vista ctores rac1ona1s
.
. que procuram opt1m1zar
. .
os resu ta dos com economia. de
como a
- 34 Aos extremismos de Kaplan (1957) e de Waltz (1979), que apenas con05 .
rne1
• d
l
.
. . .
d
.deram possível uma teona as re ações mternac10na1s rigorosamente
edu5'.
a
outros
como
Martin
Wight
(1966)
responderam
negando
a
possibilidade
ttV ,
113
de qualquer teoria.
Como sempre, o notável Aron (1972) defendeu uma posição intermédia,
muito acatada nos estudos europeus, afastando das ciências sociais, e portanto
das relações internacionais, a utilização da teoria no sentido da tradição filosófica, ou como sistema hipotético-dedutivo da orientação positivista. No seu
parecer, a teoria, nas ciência~ so~iais, ap~nas rode: fornecer a defi~ição espe~ífica do objecto, que nas relaçoes mternac1ona1s se traduz na normalidade da v10Iência; identificar as principais variáveis; sugerir hipóteses sobre a regularidade
do funcionamento do sistema. Por isso deve ser preservada de ideologismos para
ser submetida ao controlo empírico, ao mesmo tempo histórico-sociológico,
tornando possível a compreensão das conjunturas, mas sem nenhuma pretensão ou possibilidade de ser uma ciência aplicada 35 •
Esta orientaçao recebeu o apoio de Hoffmann, que entre uma concepção
dedutiva da teoria, e uma concepção indutiva que parte dos comportamentos
e do material histórico disponível, adapta a segunda 36 •
De fact o, esta querela talvez possa ser reconduzida a uma variação sobre
a indefiní vel medida do realismo que as escolas adaptam, e todas as variantes parecem opostas ao idealismo que, na sequência de Woodrow Wilson, e
depois da Primeira Guerra Mundial, pretendeu descobrir a natural harmonia
das naçõe s37• Uma posição que parece ter recuperado importância com a queda
do Muro em 1989, a voga do fim daHistóriade Fukuyama, e a sugestão de que
1<K.Waltz, Man theStatea1Jd
War,N.Y., 1954, e Morton K:1pl:1n,SystemandProms in Intm,ationalPolitics,
N.Y.,1957, forneceram as bases d:1 :1proxim:1çio holístico-sistémic:1, sobretudo o ú ltirno com :1sua
teoria geral dos sistemas. G. E. Rusconi, Risclzio1914,Bolonha, 1987. G. Allison, Esscna of Decisiun,
Boston, 1971.
31
Aron, ÉtudesPolitiques,Paris, 1972.
,. A. Panebianco, cít., p. 25. S. Hoffmann, JanusandMinerva,Westvicw Press, Bouldcr, 1987.
"M. Howard, Wara11dtheliberalca11scicna,
Oxford, 1981.
75
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
o mundo seria submetído ao modelo político democrático, ao modelo econó.
mico do mercado, e ao modelo de segurança da paz pelo direito.
Mas a corrente realista, que conta designadamente com a herança de Tucídides, Maquiavel, Hobbes, Espinosa, dos teóricos da razão de Estado, Max Weber,
e Aron, encontrou em Edward Carr, inspirado já pela guerra, um defensor que
manteve a perspectiva como dominante 38• É claro que os idealistas dão um contributo indispensável e basta lembrar a linha PeaceResearch,e a sua contribuição na crucial década de setenta para o tema da paz. Mas a chamada de atenção
de Carr impediu esquecer o estado de natureza da vida internacional, o poder
como facto essencial da política interna e externa, a necessidade de basear 0
processo decisório na percepção dos factos. Não se trata de um conceito ao
serviço da linha da Rcalpolitikque Ludwig von Rochau introduziu no debate
alemão em 1853, porque essa é uma opção dos decisores, e a metodologia em
discussão ocupa-se do conhecimento e da compreensão.
A dominante linha realista exibe hoje nomes importantes como os de Schuman, Spykman, Niebuhr, Kennan, e, talvez acima de todos, Morgenthau 39 •
Os conceitos que este adiantou, designadamente o de powerpoliticsou permanente luta pelo poder, do interesse nacional objectivo, da proeminência do
Estado como actor de um sistema de Estados, da alternância das políticas de
statu quo de imperativos, ou de prestígio, do risco permanente da guerra, dos
mecanismos de equilíbrio (balança de poderes) e do diálogo diplomático, são
temas essenciais de referência que muitas vezes apoiam conselhos para além
da descrição e da compreensão.
É talvez desta eventual violação da neutralidade científica que partem as
críticas de Raymond Aron, ele próprio chamado por alguns um heterodoxo
realista, que pretendeu combinar o saber da sociologia com o conhecimento
histórico. O seu famoso Paze Guerraentreas Nações(1962) prepara a teoria dos
modelos de competição internacional , a identificação sociológica das variáveis dominantes na política internacional e determinação das regularidades
empíricas, a análise histórica do bipolarismo, sempre na linha de Weber que
não deixava esquecer a tensão entre os factos e os valores, entre análise e decisão, o que lhe fez constantemente referir o conflito entre o maquiavelismo e
as éticas da paz.
Esta alternância ou tensão da guerra e da paz faz com que a sua outra obra
fundamental seja Penserla Guerre- Clausewitz,autor que repôs na actualidade,
1'
E. Carr, TheTl!'cntyYears'Crisis,Londres, 1939.
3''
Schuman, fotcrm1tio11al
Politic!i,
N.Y.,1933. Spykman, Amcrica11
stratcgyfo Wor/dPolitícs,N.Y., 1942,
Niebuhr, Christia11ity
a11d
powerpolitics,N.Y., 1940. Kcnnan, AmericanDipfomacy,Chic~go, 1951. Morgenth3U, ln dcfrnccof11atio11al
i11tcrc.<t,
N .Y.,1951.
76
INTRO D UÇÃO
orque O concei~o deste, de que. a gue~ra é a concin~ação da polític~ ~or outros
P •os foi invertido na era do b1polansmo no sentido de que a poht1ca passou
m~'
.
era continuaçao da guerra por outros mews 40 •
ª s }\quilo que o afasta do realismo de Morgenthau é o facto de não admitir
ue 3 powerpoliticsesgota a área da política i nternacíonal. Diz: "uma tal interqretação falsearia aos nossos olhos o sentido da política , que é a luta entre os
indivíduos e entre grupos para assumir o poder e repartir os bens raros, mas
é ao mesmo tempo busca de uma ordem equitativa'".i. O conflito ideológico,
ue dominou meio século de vida internacional, recebia assim acolhimento na
q
.
1·
sua perspect1va rea 1sta.
J\ influência de Aron encontrou paralelo apenas e talvez na do britânico
Martin Wight que também aceita a importância da po1ver
politics,e o pessimismo
sobre a possibilidade de obter progressos na esfera das relações internacionais.
Mas não entende que a lura pelo poder esgota o objecto da disciplina, e apenas
a considera principal quando vigora um sistema de Estados, o que historicamente, na sua opinião, apenas tinha três exemplos na história da Humanidade:
0 sistema do Ocidente dos Estados, o grego das cidades -Estado, e o chinês no
período que vai da queda do império Chou (771 a. C.) à implantação do impé rio Ts'in (225 d. C.)42 •
Em tal modelo a luta é estruturada, baseada sobretudo no equilíbrio de
poderes, segundo certos pattemsofpo1ver
relativamente persistentes, de acordo
com a geografia e a força de cada agente , mas também de acordo com um sistema de normas. Diz que "é verdade que as crença s não prevalecem na política
intern acional salvo se tiverem o apoio do poder ... mas é igualmente verdade
que o poder terá menor ou maior eficácia em função da força das crenças que
inspiram o seu uso"•u.
As guerras de religião, a guerra revoluci onária de França contra as soberanias legitimistas, o conflito deste século entre as democracias ocidentais, o
nazismo e o sovietismo, manifestam a relação entre a política int e rna e a polí tica externa, desenvolvem lealdades horizontais que atravessam as fronteiras,
o que tudo demonstra a alternância de forças ideológicas
com forças de simples
powerpolitícs.Sustenta que as ideia s, os valores, as crenças, as ideologias, não
são apenas justificações para obter uma imagem, são factos que dinamizam
por si as relações internacionais.
0
' Aron, Penscrla G1
urre, 2 vols., Par is, 1976.
"Aro 11, c it., p. 74.
"M:in in Wigh t, SysttmofStates,Br istol, 1979, p. 22.
" Cit., p. 81.
77
-
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Os estudos sobre o findo conflito bipolar foram abordados pelo realismo,
podendo salientar-se Waltz e GilpinH. Por vezes fala-se de realismoestrutura/
para sublinhar a tentativa, que se deve sobretudo a Waltz, de conjugar o realismo clássico com uma racionalização sistémica. Sugere que o realismo clássico, semelhante à teoria de empresa da economia, é reducionista, e útil para
compreender a política dos Estados individualmente considerados; mas a perspectiva holística, tal como a teoria do mercado, deve desenvolver-se em termos rigorosamente sistémicos. A estrutura do sistema internacional tem um
princípioordenadore uma distribuiçãodepodercomo elementos essenciais do sistema. Conhecidos ambos os elementos, podemos descurar as características
dos intervenientes individualizados, porque é suficiente uma teoria do funcionamento do sistema.
A crítica imediata de que não fica explicada a disfunção do sistema e a
mudança, encontra acolhimento em Gilpin, mais céptico sobre a racionalização sistémica, mais próximo do realismo clássico. Um sistema internacional
mantém-se funcional e equilibrado, seja fundado no princípio imperial, seja
fundado na hegemonia ou equilíbrio de potências, se nenhum Estado poderoso tiver interesse em modificar o statu quo:mudanças internas ou mudanças
individualista baseada na
internacionais podem determinar uma rationalc/zoice
avaliação dos proveitos e dos custos. Parece impossível arbitrar a diferença, e
admitir que o princípio do equilíbrio (Waltz) ou que o princípio da hegemonia (Gilpin) são reciprocamente excluentes, e não de incidência variável com
o tempo e o lugar 45 •
3. A bipolaridade nas relações internacionais
Esta posição competitiva das grandes concepções do mundo e da vida, que o
observador deve ter sempre presente para não faltar à objectividade e autocriticar-se, são o afloramento da situação habitual dos agentes das relações internacionais, que, frequentemente, se organizam orientados por ideologias contraditórias, e que neste século obedeceram, depois da guerra de 1939-1945, a um modelo
bipolar hoje extinto, e talvez a ser substituído por um multipolarismo.
Quando falamos em ideologias queremos referir aquilo que Weidlé apelidou de sistemas de ideias que já não são pensadas por ninguém, isto é, que
não podem ser atribuídas, na sua formulação com peso social, a um autor referenciável. Trata-se de uma expressão que deve muito da sua actualidade à dou-
.,. K. Waltz, Thear)'afí11tcmatia11al
palitics,N.Y., 1979. R. Gilpin, Wara11dCha11ge
an Warldpalitics,Camoflntematianal Re/ations,Princeton, 1987.
bridge, 1981; Thcpalitica/Eca11am)'
5
• Panebianco, Relazio11i
Írltemazia11ale,
cit., p. 57; Metadascicntiflcae relazioniintemazionali,II Mulino,
Bolonha, 1973.
78
...
. ão marxista, que sempre atribuiu à ideologia a função de justificar os
46
rrtnaÇ
l
.
esses de uma c asse .
,nt~o período da Guerra Fria, e não obstante as proclamações de cada um dos
ideológico,
s ganhou relevo a percepção do então chamado apaziguamento
blocondo
' significar que os mteresses,
·
· tm
· h am assumi"do o pn-.
e a tecnocracia,
quere
. - d os con n·ttos, remeten d o para um p Iano 1rre
. 1evante
. lugar na de fi1mçao
rne1ro
ndes querelas sobre valores da renovação ou conservação das estruturas
asgra
.ais internas e externas.
, .
soeiTeremos ocas1ao
. - de voItar a este pro bl ema, mas notar-se-a, que a propna
G erra Fria foi sempre subordinada à proclamação de concepções do mundo e
d ºvida excluentes uma da outra. O facto dos dois blocos militares exigirem, por
ªnto tempo, que foi meio século, a quasi totalidade das atenções dos poderes
raolíticose da opinião pública, também fez concentrar as análises no bipolarismo,
Paconteceu que a derrocada do sovietismo reanimou a tese do apaziguamento
~deológico,agora levando até a proclamar a sobrevivência exclusiva da proposta
~os ocidentais. É a tese do fim daHistória,de Fukuyama, que apreciaremos.
Ora O bipolarismo é um modelo de referência em cada conflito concreto,
entre dois países, dois espaços ou dois blocos, mas nem significa que seja uma
tendência global da comunidade internacional que abriga uma pluralidade de
conflitos, nem significa o começo do fim das ideologias. O esgotamento de um
projecto ideológico está relacionado com as mudanças verificadas na realidade
sociológica a que se dirigia, e a mudança origina outras e novas propostas para
meditar, outros anúncios dos "amanhãs que cantam".
Por isso, o nosso tempo, desaparecido o bipolarismo NATO-Pacto de Varsóvia, vê crescer de novo a importância das ideologias, e cada vez mais se caracteriza pelo apagamento da origem das ideias-força que conduzem as massas, e
até pelo anonimato das fontes de criação, divulgação e sustentação das condicionantes ideológicas das relações internacionais. Pense-se no anonimato do
poder dominante nas grandes agências de informação, em várias grandes organizações multinacionais e grupos de pressão, que actuam em todos os níveis
do sistema internacional. Por isso, as ideologias, entendidas como a forma que
assume, em qualquer comunidade política, a ideia de obra ou empresa que um
grupo social prossegue, constituem hoje de novo um tema fundamental em
tudo que se relacione com o poder político e, portanto, também com as relações internacionais.
6
Foi um termo criado por Destutt de Tracy (1795) para designar uma ciência geral das ideias.
O marxismo popularizou a expressão, dando-lhe o sentido de um complexo de ideias, mitos, e valores,
com a função de justificar o statuquoe manter a ordem. A análise não pode deixar de tratar o próprio
Políticas,Lisboa, 1964.
marxismo como uma ideologia. Adriano Moreira, Ideologias
'
79
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Não quer isto dizer que as relações internacionais decorram sempre sob
o signo da contradição ideológica; antes, pelo contrário, a tradição ocidental
estruturou-se no sentido de as procurar reconduzir a uma concepção comulll.
do mundo e da vida com expressão no direito internacional. Esta foi porélll.
uma situação só tardiamente alcançada, várias vezes agredida, e hoje, ao que
parece, de novo em franca crise no mundo contemporâneo.
Repare-se, de facto, em que no começo da última grande guerra o poder
político mundial pertencia exclusivamente, com excepções insignificantes,
a poderes europeus ou de tradição europeia como era o caso das Américas.
Depois da última grande guerra, a maioria dos poderes políticos identificáveis
não é de raiz ou tradição europeia. Considerando que os Estados, como todas
as instituições comunitárias têm, simultaneamente e como vimos, uma vocação
e uma vocaçãoinovadora,a situação ideológica mudou radicalmente.
conservadora
Recorde-se que a vocação conservadora significa a necessidade de defender
valores adquiridos, soluções experimentadas, um património cultural acumulado; a vocação inovadora significa a necessidade de encontrar respostas novas
para os novos problemas.
Ora, a maioria dos poderes políticos existentes hoje no mundo estão animados por uma predominante vocação inovadora, visto que nunca tinham tido
acesso antes, com voz própria, ao diálogo internacional. Daqui o consequente
aparecimento de um conflito de percepções em progresso, o frequente repúdio
do direito internacional por esses novos Estados, a busca de uma nova ideologia
justificadora de interesses nascidos em conflito com os interesses dos antigos
poderes do mundo.
Visto que a eficácia na realização desses interesses e concepções depende
de uma relação entre os poderes que estão em confronto, pode ser-se tentado a
reduzir a importância das ideologias em função do número de centros, considerados autónomos, de poder. Neste sentido, dizia o Presidente Eisenhower, em
Outubro de 1955, que "o facto central da vida de hoje é a existência no mundo
de duas filosofias do homem e do governo. Elas estão em luta pela amizade,
lealdade e apoio da população mundial". Esta afirmação, repetida depois frequentemente, correspondia à identificação de um sistema bipolar de centros
estratégicos autónomos, a URSS e os Estados Unidos, com expressão formal
respectivamente nos Tratados de Varsóvia e da NATO.
Todavia, por muito sedutora que seja esta simplificação, a bipolaridade global das relações internacionais deve considerar-se apenas acidental ou tendencial. A razão para então considerar a bipolaridade nesses termos encontrava-se
no facto de que o poder alcançado pelos centros estratégicos autónomos era
de tal ordem que foram conduzidos a um equilíbriode impotência,que tornava
difícil a previsão da mudança. O certo é que, para além de ser discutível se não
80
INTRODUÇÃO
. m i"á antes de 1989, data da queda do Muro de Berlim, identificar-se
oderta
' estrateg1cos
, ·
'
· d e 1mpotenc1a
.
• . teve como
P
centros
autonomos,
o equ1"11'b no
outr~~ .0 0 aumento da liberdade de acção das pequenas e das médias potênª:,que aumentou muito a margem de problemas que as grandes potênP- podiam cons1"derar v1ta1s
• • 47.
cias,
•
0
c1as
. como o neutra 1·
Enadesse modo se e.1ormaram novas I"deo 1og1as,
ismo, o ter. mundismo, o fundamentalismo, que depois de 1989, fim do bipolarismo
ce1rotégico, e da Guerra Fna,
. anunciam
. um re 1evo crescente. N a me d"d
I a em que
e~tr:taram O sistemabipolar, foram tecendo solidariedades e acções que podea r~ abranger no conceitode teia,também importante para o estudo da política
~~erna, e que exprime umprojectodinâmicodedisfuncionarum sistemaemfavor de
in novaordemsistémica.
Os partidos clandestinos, os movimentos subversivos,
O
u:activismos da sociedade civil mundial, desenvolvem uma teia destinada a pro~ocar a disfunção do sistema, em nome de um projecto diferente de vida.
c?'º
4. Relações internacionais e política internacional
o estudo das relações internacionais necessita, como todos os domínios da
investigação e do ensino, de certos conceitos operacionais que ajudem a delimitar as fronteiras com outros ramos do saber.
Uma discussão prévia, habitual nestes domínios, diz respeito à propriedade da expressão relações
internacionais.
Essa discussão, talvez não puramente
académica, começa por implicar alguma ideia a respeito do que se entende
por Nação.
Admitamos, com brevidade, que no conceito corrente, ao qual voltaremos,
muito tributário de Renan e de Mazzini, a Naçãoé uma forma de sociedade
caracterizada por um passado comum, um desejo de viver em comum, e por
aquelas aspirações comuns a que Malraux chamou "a comunidade de sonhos".
Podemos mesmo, provisoriamente, admitir, como faz René Coste, que as expressões Nação,povoe pátria exprimem frequentemente pontos de vista diferentes
da mesma realidade.
Todavia, a Naçãoé apenas uma das formas possíveis de viver em comum, e
acontece até que, no estado actual da comunidade internacional, os grupos
que podem considerar-se nações são minoritários em relação à quantidade de
entidades políticas que existem no mundo 48 •
7
Morgemhau, PoliticsamongNations, N.Y., 1959. Luis Garcfa Arias, "A Transformação das Relações
Internacionais no Século XX", in EstudosPolíticose Sociais,1966, n• 2.
"Malraux, La Tentationde l'Occident,Paris, 1926, que insiste na identificação pela "comunidade de
sonhos", que a autodeterminação deste século multiplicou justamente quando a conjuntura internacional obriga a repensar a função do nacionalismo, como notou F. Perroux, "L'espace et la Nation",
in Diogencs,1962.
•
81
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Talvezpossa dizer-se que a forma de coexistência chamada Nação representa
uma circunstância tão perfeita de viabilidade que todos os poderes políticos
tendem a fazer convergir o seu povo para essa condição. A maior parte desses
recentes poderes políticos, caracterizados por uma vocaçãoinovadora,como já
vimos, buscam a efectivação do que pode chamar-se um projectonacional,isto
é, dar uma consciência nacional ao povo que governam.
Mas é certo que geralmente não exercem o poder em relação a um grupo
que possa chamar-se uma Nação. Daqui a dúvida, não apenas semântica, sobre
internacionais.
Todavia, o geral objectivo de
a propriedade da expressão relações
efectivar projectos nacionais, que os Estados prosseguem, recomenda a manutenção da expressão.
Observar-se-á ainda que se os grupos com ou sem natureza de Nação, subordinados a poderes políticos independentes, não fossem mais que somatórios
de indivíduos, as relações chamadas internacionais não seriam mais do que as
relações inter-individuais. Todavia, os grupos aparecem a ter relações recíprocas
como tal, na sua qualidade de entidades políticas independentes e isto ainda
que o seu povo não constitua uma Nação. Portanto, e como vimos, a expressão
relações
internacionais
compreende
asrelações
entreentidades
políticas,a maiorpartedelas
governandoumpovoquenãoé umaNação,e relações
entreentidadesprivadassujeitasa
entidadespolíticasdiferentes,assimcomoasrelações
entreentidadesprivadase entidades
49
políticasdequenãoestãodependentes
•
A expressão política, por seu lado, implica referência a uma entidade dotada
de poder político e, portanto, a expressão políticainternacional,estritamente
entendida, não tem coincidência com a expressão relações internacionais, visto
decorque destas só compreenderia o estudo da dinâmica do conjuntoderelações
rentesentrepoderespolíticos.Como, porém, mesmo relações internacionais que
não decorrem entre poderes políticos sempre são condicionadas, directa ou
indirectamente, por aquelas relações, no âmbito da política internacional cabe
o estudo da dinâmica de todas as relações internacionais. E sobretudo cabe o
fenómeno crescente de uma política internacional sem poder, a realidade que
Havei identificou ao falar do poder dos que não têm poder.
E em que sentido há-de ser entendida, portanto, a expressão políticainternacional?No sentido plural que a palavra política pode assumir. Admitindo que
se entende por ciênciaspolíticaso conjuntodedisciplinascientíficastendopor objecto
ogovernoe a administraçãodoEstado(outambémde todososoutrospoderespolíticos),
apolíticaÍ1lternacional
é um ramodasciênciaspolíticas.
Considerando que dentro das ciências políticas (direito político, administração pública, economia política, etc.) se autonomiza uma ciência política pro'
9
René Cosce, MoralInternacional,Barcelona, 1967, p. 38 e sgts.
82
INTRODUÇÃO
dita que se ocupa do fenómeno da luta pela aquisição, manutenção e
' 1o d essa c1enc1a
·• · .
'
· mternac1ona
·
· 1e' um ramo ou cap1tu
prt·arnente
, . do poder,
a po l'1t1ca
e){erc_icido
aceitando que a ciênciapolíticainclui no seu objecto determinar como
·
func10nam
·
' - d0
J\in fectivamente
a,
e segun do que fiormas e tipos
os orgaos
é que e uais as regras efectivamente observadas na condução dos negócios
Estª~º•qqual a escala de valores a que realmente os detentores do poder pres'bhcos,
pu h menagem; que, por outro lado, se ocupa do estudo dos programas que
0
a tornar-se regras práticas de condução dos negócios públicos, isto é,
ta~
aspiram
- d ommantes
·
- d as
rrentes que não sao
mas preten d em assumir· a d.1recçao
das.codades políticas,
·
l'
·
·
·
1
'
'
1
f
d
a po mca mternac10na e um cap1tu o un amenta 1d a
1
s?: e ia política, isto é, o capítulo que trata de todos esses problemas nas rela,.
_
.d
.
c1enc
d
_ s directas entre os po eres po 11t1cosque nao se cons1 eram reciprocamente
ço~ordinados. Naturalmente agrega o estudo da dinamização das restantes
su
.
.
lações internac1ona1s.
re Finalmente, entendida a política como arte, isto é, a arte de decidir oportunamente e com autoridade a solução dos conflitos de interesses surgidos
na vida dos povos, com o seu campo mais específico na função governativa do
Estado, a política internacional é um aspecto dessa arte.
s.Ciências auxiliares
o estudo das relações internacionais e da política internacional precisa de
apoiar-se numa série de disciplinas que, genericamente, podem ser indicadas
comosendo aquelas cujo campo classicamente definido vem a ser interceptado
por esta nova perspectiva. O próprio desenvolvimento da disciplina tem indicado quais são as suas principais ciências auxiliares, ao mesmo tempo que se
torna mais vigorosa a definição do seu núcleo específico.
Assim,e pelo que toca aos Estados Unidos da América, o estudo das relações
internaciona is foi abordado principalmente por sociólogos e, na Europa, por
historiadore s. Depois, as relações internacionais foram aprofundadas e agora
com especial contribuição europeia, pelos juristas, particularmente os cultores
do Direito Int ernacional. Nas duas áreas, o modelo da economia de mercado
deu especial relevo à Economia.
Muitas outras disciplinas podem ser ainda indicadas. Mas será conveniente
dar particul ar relevo a duas delas. A primeira é a Antropologia Cultural, dada a
importânci a que assumiu no nosso tempo o estudo dos sistemas culturais como
unidades reais de estudo histórico. E não apenas como unidades de estudo
mas ainda como versões poderosas de orientações políticas fundamentais: o
?ermanismo, o eslavismo, o arabismo, a latinidade, são expressões de alcanc e
ideológico cujo sentido e força só podem ser alcançados pelo estudo com os
métodos da Antropologia Cultural.
83
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Por outro lado, convém destacar a importância da Estratégia, que recentemente chegou entre nós à Universidade 50 • Não é um problema separável do
da importância da Antropologia. De facto, cada vez se torna mais geral a atitude mental que procura enriquecer a compreensão da evolução política dos
quadros internacionais mediante o recurso à ideia do conflito também entre
sistemas culturais. Já não se trata apenas de César nem da França mas sim,
eventual ou frequentemente, do islamismo, do eslavismo, da negritude, do
europeísmo 51•
Esta concepção de conflito tendeu para diminuir ou esquecer o papel convergente e dinâmico do poder político, e animou muito a luta anticolonialista
e racista do nosso tempo. Ao aceitar a concepção da proeminência do conflito
entre os sistemas culturais, como fazem Diop, Nkrumah, Sekou Touré, Nelson
Mandela, esquecem que os sistemas culturais dominantes são muitas vezes sistemas de enquadramento dentro dos quais se procede a uma síntese e não a um
esmagamento. Por exemplo, o Império Romano foi a expressão de um enquadramento dentro do qual, com o inevitável passivo, se processou uma síntese
de grupos orientados por culturas menores. O império de Carlos Magno, ao
estabelecer as marcas, definiu o âmbito territorial dentro do qual se processava
uma síntese sob a égide de um poder político unificador.
Isto significa que as relações entre os sistemas culturais, vista a função do
poder político, tanto podem ser de oposição como de convergência, e que o
movimento no sentido da emergência de uma verdadeira comunidade mundial faz apelo à convergência. Um mundo de múltiplas vozes, como lhe chamou a UNESCO.
O poder político, nas suas relações internacionais , aparece assim exercendo
uma acção convergente,
ou uma acçãodivergente
do pluralismo cultural, conforme
as circunstâncias. Esta acção cristaliza em regras ou práticas tradicionais inspiradas pelos seus interesses permanentes, de tal modo que cada modelopolítico
acaba por dar feição a uma maneira especial de estar no mundo 52 •
'º Foi por mim proposta a criação, no ISCSP,do Mestrado de Estratégia, onde convergiram professores
das instituições mili tares do ensino, com professores da Universid ade Técnica. Com a colaboração da
Academia Internacional da Cultura Portuguesa foi iniciada, em 1990, a publicação da série Estratégia,
que j:ícompreende 7 volumes de trabalhos universitários.
51
CheikAnta Diop, L'uniti culturelledel'AfriqueNoir,Paris, 1958.
52
Ver GeopoUtica
J' Geoestrategia,
Universidad de Zaragoza, 1966, onde se encontra um escudo sobre
"EI Estado Universal en los condicionamentos ideológicos de la Geopolítica", por Adriano Moreira;
Adria no Moreira, PolíticaI11ternacio,ial,
Porco, 1970, Capítulo I, geralmente reproduzido nesta incro·
dução. R. Numel in, The beginningsof diplomacy:a sociological
studyofintertribaland intm1ationalrelatioris,
Oxford, 1990. Samuel Huntington, "The clash ofCivilizations?", in ForeignAjfairs, 1993.
84
INTRODUÇÃO
§ 3º
O DiálogoInternacional
1.Diplomacia
.
d
l' . .
. 1 , . d h . d" 1
mais importante mstrumento a po 1t1camternac10na e, am a OJe,a 1p o0
rnada, que pode ser definida com umaarteda negociação
ou o conjuntodastécnicas
rocessos
deconduziras relaçõesentreosEstados.
eP Sendo uma tarefa sem fim, compreende-se que Richelieu insistisse na neces"dade de negociar sempre, notando, no seu TestamentPolitique,
que mesmo
g
.
urna negociação que não resulta não é um esforço perdido. E longa a tradição
de comentários pessimistas sobre a vantagem e a idoneidade da diplomacia
e dos diplomatas. O famoso general Stilwell desabafou o seguinte: "o termo
'diplomata' para o americano médio evoca a visão de um ser imaculadamente
vestido de calça de fantasia, polainitos, fraque, chapéu alto, com uns modos
friamente severos e superiores que escondem o jogo rápido como um relâmpago que orienta a nau do Estado, desloca as peças no tabuleiro com precisão
infalível e invariavelmente aparece em Washington sem camisa. Ou melhor,
sem a nossa camisa!".
Por sua vez, foram usadas afirmações atribuídas a Estaline no sentido de que
as palavras de um diplomata não devem ter relação com as acções, que palavras
são uma coisa, acções outra, e eventualmente que diplomacia sincera é coisa tão
impossível como água seca ou aço de madeira. Esta tradição crítica não deve
todavia deixar de ser relacionada com a circunstância de que a diplomacia, tal
como se definiu em termos modernos, foi o instrumento do interesse do Estado
e, portanto, o instrumento adaptado aos corolários do princípio da razão de
Estado. Vamos tentar dar a este respeito alguns apontamentos que ajudem ao
entendimento deste instrumento da política internacional 53•
Note-se primeiro que a expressão artede negociação
é inseparável do estudo
dos órgãos encarregados de aplicar o método que essa arte utiliza. Ora, este
método e esta maquinaria sofreram uma evolução que geralmente aparece dividida em quatro fases: o métododiplomáticoda Gréciae deRoma;o métodoitaliano
53
Raoul Genet, Traitédediplomatieet dedroitdiplomatique,Paris, 1931, p. 5, enumera e refuta as críticas e
os ataques típicos contra a diplomacia e os diplomatas: "a diplomacia, quer pelo jogo das alianças, quer
pelo segredo das suas operações, favorece as guerras e as intrigas perigosas para a paz dos Estados; a
diplomacia consagra e fortifica o sistema da desigualdade dos Estados; a diplomacia, enfim, utiliza
métodos furtivos e pretensiosos que impedem os povos de se lançarem espontaneamente nos braços
uns dos outros. Nenhuma destas críticas nos parece bem fundada". O Barão de Szilassy (Traitépratique,
P· 46) é citado por Genet (p. 105) nestes termos: e Bismarck eram conhecidos por dizerem a verdade,
e conta-se que esta virtude lhes era tão útil que, por vezes, não os acreditavam, atribuindo aos seus
comentários verídicos algum significado misterioso, o que lhes convinha muito".
85
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
dosséculosXV eXVI; o métodofrancêsdosséculosXVII, XVIII eXIX; o métododeterrni.
nadopelasgrandesconflagrações
mundiais54 •
a) A diplomacia na Grécia e em Roma
É fácil encontrar na tradição literária da velha Grécia descrições de negociações
e acontecimentos ocasionais que são manifestações dessa arte de negociar elll
que se traduz a diplomacia. Antes de recorrer à guerra foi tentada a restituição
de Helena por meios pacíficos. Embora a Grécia não tivesse conhecido o sistema de manter missões permanentes nas capitais estrangeiras, constantemente
enviava representantes e recebia embaixadas de carácter temporário.
Por regra os seus enviados recebiam credenciais da assembleia política da
sua cidade e não era suposto que recebessem presentes dos soberanos junto de
quem eram credenciados. Usualmente as missões eram colectivas, como que
para assegurar a representação de todas as tendências políticas e para se fis_
calizarem mutuamente. A regra era a da diplomacia aberta, isto é, os embaixadores declaravam publicamente os objectivos das suas missões. Conheceram
o instituto da neutralidade e da arbitragem. Pensa-se que desenvolveram utilmente a instituição do consulado. De qualquer modo, é certo que pelo século v
a.e. os gregos tinham construído um complicado aparelho diplomático; conheciam as ligase as alianças,tinham estabelecido princípios para a declaração
da
guerra,parafazer a paz, paraa ratificaçãode tratados,arbitragem,neutralidade,troca
de embaixadores,funções
doscônsules,estatutosde aliança,naturalização,asilo,extradiçãoepráticasmarítimas.
Frequentemente se diz que o carácter totalitário da cidade grega e a circunstância de cada outra cidade ser sempre considerada como inimiga potencial,
tornava precária uma concepção de ética internacional. Todavia, os tratados
estavam sob a guarda de Zeus e era suposto que só com boa razão podiam não
ser observados.
Ficou sobre a diplomacia na Grécia um famoso depoimento de Demóstenes referente à fase final da queda sob o domínio de Filipe da Macedónia. Esse
discurso, chamado Defalsa legatione,pronunciado contra Aeschines, diz: "Os
embaixadores não têm à sua disposição navios de guerra, infantaria pesada
ou fortalezas; as suas armas são as palavras e as oportunidades. Em negociações importantes as oportunidades passam rapidamente; uma vez perdidas
não podem ser recuperadas.
É mais grave perder uma oportunidade numa democracia do que numa oligarquia ou autocracia. Sob os seus sistemas podem tomar-se medidas instanAdriano Moreira, PolíticaInternacio11a/,
cit., cap. I, S 2•. Harold Nicolson, The evolutionof diplomatic
metlwd,Londres, 1956, cap. 1.
54
86
INTRODUÇÃO
eamente logo que seja dada uma ordem, mas connosco tem de notificar-se
can
- provisona
. ' . e
·meiramente o C onse lh o para que ele ad opte uma reso luçao
pr;smo assim somente quando os arautos e os embaixadores tenham enviado
tJlma nota diplomática escrita.
LI Então o Conselho tem de convocar a Assembleia mas unicamente numa data
arcada nos termos da lei. Ali o exponente tem de aduzir razões para provar a
:a tese em face de uma oposição ignorante e muitas vezes corrupta; e mesmo
5
uando este interminável processo tenha atingido o seu termo e haja chegado
quma decisão, perde-se ainda mais tempo antes da aprovação de medidas de
a
.
ordem financeira.
Assim um embaixador que numa constituição como a nossa actua com processos dilatórios e nos faz perder oportunidades faz mais do que isso, rouba-nos o domínio dos acontecimentos ... Parece-me, homens de Atenas, que vos
tornastes absolutamente apáticos, aguardando mudos que a catástrofe desabe
sobre nós. Mantendes-vos sentados, observando as desgraças que avassalaram
os vossos vizinhos sem que adapteis medidas para a vossa própria defesa! Tão-pouco pareceis ter consciência dos métodos complexos pelos quais o vosso
país está sendo lentamente minado."
A estrutura do Estado romano, pondo o acento tónico no império, não foi a
mais indicada para desenvolver um método e um aparelho diplomático. A Pax
Romanaestabeleceu um sistema normativo (jusgentíum)para as relações entre os
estrangeiros e os cidadãos romanos, mas no domínio do poder político aplicou
quede negociação.
Todavia, desenvolveram o resmais um métododesubordinação
peito pela boa-fé e, pela sua importância prática, do respeito pelos tratados.
Os seus embaixadores foram chamados nuntii ou oratores,designados pelo
Senado para curtas missões, e os resultados das suas negociações ficavam sujeitos à aprovação do Senado.
Reconheciam a imunidade dos embaixadores, que talvez deva chamar-se
antes imunidade do enviado, visto que não havia embaixadores permanentes.
Os emb aixadores que eram enviados a Roma tinham de esperar pacientemente pela autorização para serem recebidos pelo Senado, a qual nem sempre
era dada. Os romanos criaram uma espécie de árbitros chamados recuperatores,
dois por cada parte num tratado, com um presidente neutral, para julgamento
de reclamações. Estabeleceram a prática dos refénsque em geral exigiam mas
não davam. Usaram o método de fixar um tempo limite para as negociações
dos embaixadores que recebiam.
Fazendo a síntese da contribuição grega e romana para a arte da negociação, Harold Nicolson diz o seguinte: "os gregos descobriram a necessidade de
submeter as relações internacionais a certos princípios estáveis, mas não conseguiram encontrar um método de negociação entre as sociedades democrá 87
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ticas e os governos despóticos, não tendo compreendido que as assembleias
políticas não são indicadas para conduzir a diplomacia. Por outro lado, considero que a maior contribuição dos romanos foi o princípio pactasunt servanda.
De qualquer modo, não se lhes deve a criação nem de um sistema nem de um
método para a negociação permanente 55 ."
b) O sistema italiano
A queda do Império Romano implicou que a alternativa da obediência ou da
revolta fosse substituída pela competição ou cooperação entre os vários poderes políticos que vinham ocupar o vazio deixado pela queda do Império.
Os imperadores de Bizâncio foram os primeiros a organizar um departamento de negócios estrangeiros e a treinar pessoal especialmente para esse
efeito. Quando o imperador subia ao trono mandava anunciar este facto aos
poderes estrangeiros por meio de embaixadores que cobriam as suas despesas negociando as mercadorias que eram autorizados a transportar. Eram-lhes
fornecidas instruções escritas. As questões de protocolo e cerimonial eram
meticulosamente tratadas e o próprio imperador Constantino Porphyrogenitus escreveu um tratado sobre essa matéria rodeando a recepção dos embaixadores estrangeiros de grande pompa.
A tradição de Bizâncio foi recebida por Veneza, que organizou um sistema
de diplomacia e foi o primeiro Estado a preservar os seus arquivos de forma sistemática. Os seus documentos diplomáticos cobrem os nove séculos que vão
de 883 até 1797, compreendendo os relatórios dos embaixadores à Senhoria de
Veneza e descrevendo as suas negociações.
Compreenderam também a necessidade de manter os embaixadores informados sobre os negócios internos de Veneza. Os embaixadores eram nomeados por tempo limitado, não podiam ter propriedades no lugar do destino, e
deviam entregar à Senhoria os presentes que recebiam. Não podiam ser acompanhados pelas mulheres.
No século XVI, a época de Maquiavel, Guicciardini deplora que as pessoas
procurem evitar a nomeação para cargos diplomáticos. É por esta data que definitivamente desaparece a função arbitral do Papa, Veneza e Génova entram em
relações normais com o Império Otomano, Luís XI afirma a soberania do Estado
instruindo os seus embaixadores na Grã-Bretanha com esta maquiavélica regra:
"Se eles vos mentirem, procurai mentir-lhes mais do que eles."
A fraqueza de cada um dos pequenos Estados italianos, a espécie de equilíbrio de impotência em que se encontravam, a precariedade dos sistemas políticos, tudo encaminhou no sentido de encontrar uma arte de negociação, que
" Harold Nicolson, The Evolutio11
of DiplomaticMethod,Londres, 1953, pp. la 23.
88
INTRODUÇÃO
. caracterizar as famosas Combinazione,e que representavam o anteparo
vet~ ª 'li·do do Estado. Maquiavel é o retratista da época e César Bórgia o modelo
rna1sso
ncarna a frieza amoral da razão de Estado.
que; teoria de que o interesse do Estado está acima de considerações éticas
,
a base claríssima para transformar a arte da negociação numa técnica
e u~da em órgãos especializados. Em 1450 é nomeado o primeiro embaixa ~Pº'residente no sentido moderno junto dos Médicis, pelo duque de Milão.
º\emplo multiplicou-se em toda a Europa e esses enviados chamaram-se oraO
do:es. Foi Carlos V quem decretou, em meados do século XVI, que o título de
baixador devia ser dado apenas aos representantes de cabeças coroadas ou
em
s6
da República de Veneza .
Só mais tarde se chegaria à concepção de que os embaixadores deviam ser
da nacionalidade de quem os enviava e, como hoje volta a acontecer, a presença
permanente de embaixadores não foi sempre considerada compatível com a
segurança do Estado 57•
Por esse tempo, sendo deficientes os meios de informação, os diplomatas
tinham funções muito importantes: eram uma fonte única de informação para
seu soberano, por isso acompanhavam constantemente os soberanos junto
0
de quem estavam acreditados.
o que hoje se chama conferênciadealtonívelnão era considerado aconselhável.
Filipe de Comines expressou esta opinião: "Dois grandes príncipes, que desejam estabelecer boas relações pessoais, nunca devem encontrar-se face a face
mas sim comunicar através de bons e advertidos embaixadores."
Um dos defeitos da diplomacia neste período era a importância dispensada
ao cerimonial e ainda a grave questão das precedências. Resultou desta questão
o hábito de os intervenientes num tratado porem as suas assinaturas em círculo .
Pode hoje parecer-nos estranho que fosse necessário esperar até ao Congresso
de Viena de 1815 para resolver esta questão .
O sistema italiano caracterizou-se em suma pelo ensinamento de que a razão
doEstadoestá acima de quaisquer outras considerações e pelo desenvolvimento
de uma série de hábitos e técnicas de oportunismo que cabem na famosa expressão Combinazione.
56
Nicolson, cit., p. 34. F. Meine cke, Machiavelism:the doctrineof Raison d'Etat and its place in modern
History,Londres, 1957.
s, Assim como os soviéticos consideravam a ciência política ocidental como uma arte da propaganda,
assim também consideravam a arte diplomática ocidental como uma estratégia de mistifica1,ão.
VerHisloiredela diplomalie,dirigida por Vladimir Potiemkine, Paris, 1947, especialmente III volume,
que abrange o período do socialismo cercado num só país, e onde é desenvolvida, p. 726 e sgts., a
chamada "táctica da diplomacia burguesa".
89
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
e) O sistema francês
Nos séculos XVII e XVIII foi a França que deu o tom à arte de negociar, sendo
predominantes a figura e o longo reinado de Luís XIV.Em 1626 Richelieu criou
o Ministério dos Negócios Estrangeiros e, assim, também o princípiodaunidade
do comandonapolíticaexterna.
Embora o rei Luís XIV não se dispensasse de dirigir ele próprio a política
externa, associava o ministro a essa política salvo no que depois se havia de cha.
mar secretdu Roí ousecretdel'Empereur.
Por 1685, a França tinha embaixadas permanentes em Roma, Veneza,
Constantinopla, Viena, Haia, Londres, Madrid, Lisboa, Munique, Copenhague, Berna, além de missões especiais e ministros residentes em muitos outros
lugares. Estabeleceu uma hierarquia de enviados: embaixadores extraordinários, embaixadores ordinários, enviados e residentes. Os embaixadores erarn
providos de instruções escritas. Passaram a ocupar-se do desenvolvimento do
comércio do seu país.
Exprimindo o tipo desejável de diplomata, escrevia, nessa época, François
de Callieres 58 : "O bom diplomata deve ter espírito de observação, um dom de
aplicação que o obrigue a não se distrair com divertimentos e prazeres fúteis,
um critério seguro que apreenda as coisas tal como são e que vá direito aos fins
visados pelo caminho mais natural e mais curto sem se perder em requintes e
subtilezas falhas de sentido.
O bom negociador deve ter a qualidade de penetração que lhe permita discernir os pensamentos dos homens e surpreender através da mais pequena
mudança de expressão que paixões os agitam.
O diplomata deve ser rápido, talentoso, um bom ouvinte, cortês e agradável.
Não deve procurar ter fama de ser hábil nem deve ter a paixão da discussão
a ponto de divulgar informações secretas só para fazer prevalecer um argumento.
Acima de tudo, o bom negociador deve possuir suficiente domínio de si próprio de forma a resistir ao desejo de falar antes de pensar o que deve dizer.
Não deve cair no erro de supor que um ambiente de mistério, em que os
segredos são decifrados a partir de pequenos nadas e a mais insignificante
bagatela se torna um assunto de Estado, não passa de um sintoma de um espí·
rito mesquinho.
Deve prestar atenção às mulheres mas nunca perder o coração. Deve ser
capaz de simular dignidade mesmo que não a possua; mas, simultaneamente,
deve evitar toda a exibição falha de gosto.
' " Callieres, De la maniercdenégocieravec
lessouverains
, Paris, 1716, p. 35. Cf. Nicolson , cit., p. 64 .
90
INTRODUÇÃO
ragem é também uma qualidade essencial, pois que nenhum homem
~dco ode ter a esperança de realizar com sucesso uma negociação confi. • . d e um re 101oe1ro
. . e ser isento
.
de
t ímt .o pO negocia d or d eve ter a pac1enc1a
denc1a.1
.
econceitos pessoais.
pr D ve possuir uma natureza calma, ser capaz de suportar alegremente as
b:rias, não deve ser dado à bebida, ao jogo, às mulheres, à irritabilidade,
. 1mpertmentes.
.
.
zom uaisquer outros capnc. hos e f:antas1as
ouª qnegociador, a1'em d'isso, d eve estu d ar a h'1stona
' . e memorias,
' . ser coo h e0
or dos hábitos e instituições estrangeiras e ser capaz de dizer em relação a
cedalquer país estrangeiro
· on d e assenta verdd'
.
a e1ramente aso b erama.
qu Todo aquele que segue a carreira diplomática deve conhecer as línguas
Jemã,italiana e espanhola, tal como o latim, pois a ignorância dessa língua
:eria uma desgraça e uma vergonha para um homem público, visto que se trata
da língua comum das nações cristãs. Deve também ter certos conhecimentos
de literatura, ciência, matemática e direito.
Finalmente deve saber receber de forma acolhedora. Um bom cozinheiro é
muitas vezes um exce1ente cone,·1·
ia dor "59 .
d) A diplomacia instrumento do Estado nacional
A concepção de Callieres correspondeu à de um mundo que atingira um ponto
crítico que os historiadores costumam assinalar com a data do Tratado de Westefália, assinado em 1648. Até então, o mundo tinha conhecido Estados grandes e pequenos, incluindo a poeira de Estados italianos, mas não tinha grande
experiência de uma unidade nova que ia ser o Estadonacional.A razão de Estado
de Luís XIVvai ser transmudada no interesse nacional.
Portugal era já um Estado nacional mas tinha acabado de restaurar a sua
independência. A Inglaterra, a França e a Espanha apareciam como grandes
poderes a que deveriam acrescentar-se a Rússia e a Prússia. O Sacro Império
Romano-Germânico viveria ainda, mas apenas como um fantasma, até à intervenção napoleónica.
A Igreja Romana assistia à divisão dos fiéis pela Reforma, tendo perdido
qualquer poder de arbitragem no mundo. Maquiavel e Bodin definem a amoralidade do poder do Estado, Lutero e Calvino exprimem a quebra da unidade
ideológica, Grotius e os internacionalistas começam a definir um conjunto de
regras requeridas pelos novos tempos: o direito internacional fundado na razão
e sem autoridade supranacional.
"Nicolson, cit, p. 65. Sobre a emergência da moderna diplomacia, esta mais submissa à razão de Estado
de Maquiavel, do que aos preceitos éticos, James Der Derian, On diplomacy,Oxford, 1987, p. 105 e sgts.
E. Satow, Guideto DiplomaticPractice,Londres, 1979.
91
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A Paz de Westefália representou o reconhecimento de que o Império tinha
desaparecido, a Igreja não mais podia arbitrar nem mesmo nas matérias espirituais (os príncipes escolhiam livremente o calvinismo, o luteranismo ou 0
catolicismo); a forma republicana do Estado coexistia em pé de igualdade corn
a monarquia. Em resumo, o Estado passava a ser o ponto de referência das relações internacionais.
Como observou Warren Ault, "em 1648 o sistema do Estado estava corn.
pletamente estabelecido na Europa. O Império era uma concha vazia. A pretensão do Papa à soberania temporal na Europa era, como força efectiva, uma
coisa do passado" 6 º.
As relações internacionais a partir de 1648 caracterizam-se, por um lado,
pela busca de um equilíbrio entre os emergentes Estados europeus e, por outro
lado, pelo estabelecimento e organização de um mundo governado pela Europa,
ponto de partida e de chegada de todas as correntes significativas da política.
O primeiro ponto teve expressão na rivalidade das casas de Bourbon e Habsburgo, e o segundo na corrida dos novos poderes europeus (Grã-Bretanha,
França, Holanda, Espanha) para se estabelecerem nos territórios coloniais.
Desenha-se a política da balança de poderes, onde a Inglaterra assumiria o
papel de fiel da balança, equilíbrio de poderes que teve a sua expressão formal
no Tratado de Utrecht de 1713 e pôs fim à Guerra da Sucessão de Espanha; a
França aceitou que nunca poderia vir a constituir um só reino com a Espanha
e perdeu a Nova Escócia a favor da Inglaterra; a Áustria recebeu Nápoles, Sardenha, Milão e os Países Baixos espanhóis; a Grã-Bretanha recebeu Gibraltar; desencadeou-se a unificação e fortalecimento da Prússia. Em resumo, a
balança de poderes aparecia como o substituto de uma autoridade supranacional inexistente.
Este sistema funcionou com duas crises principais. A primeira foi a Guerra
dos Sete Anos, começada em 1756 com a invasão da Saxónia por Frederico da
Prússia, e que terminou com a expulsão da França do continente americano
pela Inglaterra, e com a derrota da Áustria, da França e da Espanha e o esgotamento da Prússia, o que assegurou a manutenção do equilíbrio porque nenhum
Estado ficou em condições de dominar a Europa.
A segunda crise tem o seu ponto crítico na Revolução Francesa e na aventura napoleónica. Como o período anterior tinha sido relativamente estável, o
Congresso de Viena procurou restaurar o velho sistema.
O princípio da balança de poderes encaminhou-se no sentido de classificar os Estados consoante a sua importância: a Inglaterra, a Rússia, a Áustria, a
"°Warren Ault, Europei11Modem Times, 1946 p. llO. Robert Mandrou, L'Europeabsolutiste,Raiso11e/
raiso11
d'État (1649-1775), Paris, 1977.
92
INTRODUÇÃO
, ssia, a França, a Grécia, Portugal e Espanha, foram considerados grandes
pru
,
,
. .
d"
d e
otências, mas e certo que so os quatro pnme1ros correspon 1am e iacto a
•
61
Psse conceito
.
e No panorama mundial o verdadeiro facto novo, que ia marcar toda a evolu_0 posterior, era a chegada do primeiro território colonial à situação de poder
ç:}ítico independente: os Estados Unidos da América do Norte.
p De então até às grandes conflagrações mundiais, especialmente até à guerra
de 1914-1918, manteve-se ainda assim dominante o que se chamou a PaxBrinnica.Foi um regime de equilíbrio de poderes na Europa, e de colonização
ta
~
do resto do mundo pela Europa .
Os Estados entretanto nascidos do anticolonialismo eram de filiação europeia. No âmbito correspondente ao equilíbrio europeu, a guerra da Crimeia
(l854-1856) e a guerra franco-prussiana (1870-1871) deram origem ao aparecimento de novos poderes como a Alemanha; nasceu a Itália, foi-se desfazendo o
Império Otomano com o aparecimento da Grécia, Montenegro, Roménia, Sérvia,Bulgária e Albânia; desfez-se o Império Espanhol, e o Brasil tornou-se independente; no Oriente o Japão aparece, a partir de meados do século XIX, como
um desafio à hegemonia europeia, baseando a sua ascensão na vitória sobre a
China em 1894-1895 e sobretudo na sua vitória sobre a Rússia em 1904-1905.
No começo da guerra de 1914-1918 o equilíbrio europeu tinha expressão
na Tríplice Aliança (1882) que reunia a Alemanha desejosa de manter a situação de 1871, a Áustria receosa da Rússia, e a Itália preocupada com a projecção
francesa no Norte da África; e tinha expressão na Tríplice Emente (1907), reunindo a França ferida pela guerra de 1870, a Inglaterra procurando equilibrar
o crescimento da Alemanha, e a Rússia com os seus projectos em relação aos
Balcãs. O equilíbrio de poderes tendia para uma dimensão mundial que claramente se havia de tornar visível no fim da guerra de 1939-1945. O elemento
3
•
fundamental da diplomacia do período foi o nacionalisma6
Já vimos que a razão de Estado se transmutou quando a Nação e não a Casa
reinante apareceu como elemento aglutinador e ponto de referência do poder
político. Foi sobretudo depois da Revolução Francesa que o problema das nacionalidades assumiu relevância como base para a formação do Estado. Uma série
de termos novos entrou na terminologia corrente a partir dessa data e da pri61
Jean-Baptiste Duroselle, L'Europede1815 a nosjours, Paris, 1967.
•'Adriano Moreira, PolíticaUltramarina,Lisboa, 1961. Eric J. Hobsbawm, L'Eredesempires(1848-1874),
Paris, 1989. Robert Schrerb, LeXJXsiecle.L'apogéede/'expansionwropienne, Tome VI de l'Histoire Générale des civilizatio ns, Paris, 1965.
63
André Tibal, HistoireDiplomatiquecontemporaine(1925-1932), Paris, 1933, 4' lição, p. 93. François
Bedarida, L'A11glct
erre trio111pha11te
(1832-1914), Paris, 1974. Pierre Guillen, L'empireal/e111a11d
(1871-1914),
Paris, 1970.
93
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
meira erupção anticolonialista do século XIX: Nação, Estado nacional, nacionalismo, autodeterminação nacional. Uma série de termos tão significativa como
no nosso tempo o aparecimento de palavras novas como contenção, cogumelo
atómico, internacionalização, equilíbrio de impotência.
A primeira coisa problemática foi a definição da própria Nação. Ficou famosa
a comunicação de Ernest Renan feita à Sorbonne em 1882 subordinada ao título
Qu'est-cequ'unenation?A orientação estabelecida nessa proposta punha o acento
tónico da Nação não na língua, ou na etnia, mas sim no passado comum e no
desejo de realizar tarefas comuns no futuro.
Esta orientação subjectiva havia de ser contrariada pelo objectivismo
que veio
a animar a doutrina nacional-socialista, a qual baseou na etnia comum a definição nacional. Talvez a sua origem primeira esteja no discurso que Fichte pronunciou na Universidade de Berlim em 1807, chamado Discursoà NaçãoAlemã,
a qual, dividida em centenas de soberanias, era incitada a encontrar no sangue
comum o elo da solidariedade global. Voltaremos a este ponto.
Até à crise da última grande guerra o elemento subjectivo posto em evidência por Renan esteve sempre presente e dominante, de tal modo que o Estado
nacional apareceu como um objectivo desejável mas nem sempre possível.
O simples problema da dimensão do grupo condicionando a sua viabilidade
sempre fez entender que o Estado poderia compreender mais de uma Nação sem
violência para a vontade dos povos e com vantagem para o interesse da comunidade nacional. Mas entende-se, perfeitamente, o sentido do princípio das
nacionalidades e o sentido da autodeterminação nacional. No nosso tempo, um
maquiavélico, no sentido científico da expressão, como é Morgenthau, escreveu
que "a Nação precisa de um Estado. Uma Nação - um Estado é assim o postulado político do nacionalismo, o Estado nacional é o seu ideal" 64 •
A conjuntura que dominou este século XX a findar havia de desenvolver esta
convicção da excelência do Estado nacional até ao ponto de substituir a Nação
pelo que se pode chamar um projecto nacional. Como veremos ao tratar do
surto anticolonialista contemporâneo, os novos Estados são apenas projectos
nacionais sustentados por elitesmuito restritas. Isto demonstra a importância
do nacionalismo, quer se trate do nacionalismo tradicionalista, quer se trate do
nacionalismo liberal do século XIX, quer do nacionalismo totalitário do começo
deste século, quer dos projectos nacionais.
O citado Morgenthau não deixou de notar a tentativa de acomodação do
nacionalismo anterior à última grande guerra com a tendência para a unidade
do mundo que assinalámos no começo deste curso. Escreveu ele: "Chamar pelo
mesmo nome aquilo que inspirou as oprimidas e competitivas nacionalidades
""'Hans Morgenthau, PoliticsamongNations,1959, N.Y., p. XXI.
94
INTRODUÇÃO
, ulo XIXe aquilo que fez mergulhar os superpoderes dos meados do século
dosec
,
combate mortal e obscurecer a mudança fundamental que separa a nossa
'?'em da época anterior . O nacionalismo de hoje, que é realmente um naciona1·
d
epoca
.
.
.
.
universalista, tem apenas uma c01sa em comum com o nac1ona ismo o
}!~!11~ XIX,isto é, a Nação como último ponto de referência para as lealdades
0
secu ões políucas.
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Aqm,· to d avia,
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1ect1vo ma aacçaopo 1t1ca,oponto ma o d esense~vimento político para além do qual há outro nacionalismo com objectivos
v? ilares e igualmente justificáveis. Para o nacionalismo universalista de mea:~ do século XX, a Nação é apenas o ponto de partida de uma missão universal
:.
último objectivo atinge os limites da política mundial. Enquanto o nacio0
~alismo quer uma Nação num Estado e nada mais, o nacionalismo universalista
do nosso tempo pede para uma Nação e um Estado o direito de projectar as
suas próprias avaliações e modelos de acção sobre as outras nações"6 5 • Algumas
correntes doutrinais como a Action Françaisede Ma urras estão na encruzilhada
desta modificação. A importância, que adiante melhor veremos, da diplomacia
colectiva contemporânea tem implicações desta situação. É também esta conjuntura que põe em causa a noção de soberania, e que, em vista da tendência
para a formação dos grandes espaços, como a União Europeia, minimiza ideologicamente o nacionalismo.
De facto, o Estado nacional não foi separável do conceito de Estado soberano. E a soberania , tal como foi entendida por Bodin (1530-1596), seu primeiro
teórico, e po r Hobbes, Locke, Rousseau e, entre os modernos, por Duguit, Kelsen ou Laski, é um poder sem igual na ordem interna nem superior na ordem
externa. O interesse do Estado aparece como supremo e a soberania não tem
limites gue não sejam consentidos. O corolário final deste entendimento é a
concepção de Maurras - "la France et seulement la France" ou , numa expressão inglesa gue ficou célebre, "my country right or wrong".
Veremos, ao definir a conjuntura actual, os reflexos desta crise na problemática internacional contemporânea em gue o Estado soberano está em revisão e se discute também o valor do Estado nacional.
Z.Acção privada e sociedade civil mundial
Tivemos ocasião de salientar que a complexidade crescente da vida internacional tem como traço muito característico a internacionalização da vida privada.
Esta internacionalização da vida privada tem expressão no aparecimento de uma
série de organizações não-governamentais (ONG) qu e correspondem ao fenómeno da vizinhança entre pessoas sujeitas a lealdade s políticas diferentes.
65
Morgenth 3u, cit., p. 313.
95
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Os advogados, os médicos, os engenheiros, os cientistas em geral, agrupani..
-se para além das nacionalidades respectivas. As academias foram pioneiras
desta nova forma de solidariedade internacional.
A Organização das Nações Unidas deu grande importância a estas organizações internacionais não-governamentais (ONG) classificando-as em categorias
para as suas relações com o Conselho Económico e Social. A categoria A com.
preende as organizações com um interesse básico na maioria das actividades do
Conselho; a categoria B compreende as associações com especial competência
mas lidando apenas com algumas matérias do Conselho; finalmente existe u~
registo das associações, muitas centenas, que tenham possibilidade de dar uma
contribuição valiosa para o trabalho do Conselho. Pertencem a essas categorias,
por exemplo, a Câmara Internacional do Comércio, a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres, a Associação para o Estudo do Problema Mundial dos Refugiados, a CARE (Cooperative for American Relieve Everywhere),
a União Católica Internacional de Serviço Social, a Associação Internacional
dos Advogados, a Federação Internacional dos Jornalistas, a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha, etc. 66 •
Para além desta actividade institucionalizada, a acção privada tem relevo
através dos grupos de pressão e até através de personalidades de relevo internacional. Fenómenos como os de Lord Russell (1872-1970) e Schweitzer (1875-1965) não são exclusivos do nosso tempo, mas são mais frequentes e têm uma
acção mais vasta na época contemporânea 67 • Estas personalidades estão num
plano diferente de simples grupos ou pessoas que, em certo país, influenciam
a opinião pública ou tentam mobilizar essa opinião a favor ou contra outros
Estados.
Nesta acção privada, e no domínio tão importante da imagem de cada povo,
os emigrantes representam um factor da maior importância. A Associação dos
Franceses no Estrangeiro, a Associação dos Japoneses no Estrangeiro, aAlliance
Française, o British Council, a União das Comunidades de Cultura Portuguesa,
esta vítima do habitual descaso dos poderes públicos, são tudo organizações
que correspondem à relevância da acção privada na política internacional.
Existem circunstâncias variadas em que o Estado, não podendo ou não lhe
convindo agir por intermédio dos seus orgãos oficiais, tem de fiar-se da acção
privada ou de fazer face a essa acção privada.
º"Roger Pinto, Les Orga11isatio11s
Europiem1es,
Paris, 1963; Yearbookofthe U11ited
Nations,N.Y., 1990.
7
Lord Bertrand Russel recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1950 e foi um activo militante do
pacifismo, com audiência mundial. Schweitzer, que foi teólogo protestante, músico respeitado, e
médico, tornou-se um ponto de referência mundial a partir da sua acção no Gabão , onde fundou o
Hospital de Lambaréné, que pretendeu integrado nos modelos culturais nativos. Recusou o Prémio
Nobel da Paz em 1952.
•
96
INTRODUÇÃO
rante o isolamento da Espanha, depois da Guerra Civil, organizações
· para que b rar o cerco d"tp 1omat1co.
' . A conteceu o
mmto
priva O com o cordão sanitário com que pretenderam isolar a Rússia em 1918.
mes:Urura política de alguns países, como é o caso dos Estados Unidos da Amé~ es torna ainda mais importante este aspecto dos instrumentos da política
~,ca,nacional. Admitiu-se que ali o poder real pertence a uma eliterecrutada,
,nter
, .
, .
ti
d
rvia não democrat1ca, nos negocios, nas orças arma as, recentemente nos
fº lectuais, e na área da informação, especialmente
da televisão. Este fenó1nte
,
obJ"ecto
de
estudos
que
se
tornaram
celebres,
traduz-se
numa descenmenO,
alização do poder que torna extremamente importante toda a metodologia
;estinada a abordar os sectores da vida privada que, realmente, participam no
processo de formação das decisões políticas.
,
. ou
das contn "bmram
3, propaganda e opinião pública
Aimportância da propaganda como instrumento da política internacional está
relacionada com a função da opinião pública mundial. A primeira vez que se
tentou atribuir uma alta função a essa opinião pública foi aquando da fundação da Sociedade das Nações. Discutiram-se, então, duas orientações funda mentais, uma francesae outra americana.
A França, preocupada com a segurança das suas fronteiras e o desenvolvimento posterior da segurança europeia, não confiava num direito internacio nal desprovido da força e pensava conseguir um sistema coactivo qualquer para
assegurar a efectivação do Pacto.
Os americanos, pela voz de Wilson, e exprimindo a tradição saxónica, supunham que o tribunaldaopiniãopúblicaseria uma garantia suficiente para a efectivação e respeito das regras internacionais. Lord Robert Ceei!, explicando a
situação aos Comuns em 21 de Junho de 1919, dizia: "Agrande arma à qual nos
confiámos é a opinião pública, e se estamos errados a respeito disto, então toda
a construção está errada".
As próprias Nações Unidas, de acordo com a interpretação de Goodrich
e Hambro, foram baseadas nesta convicção e chamaram à Assembleia Geral
daquela organização "a consciência aberta do mundo" 68 •
O problema principal que esta questão põe é o de saber se existe realmente
uma opinião pública mundial autónoma. Sabemos que o mundo é cada vez mais
uma unidade, mas o simples facto de se ter tentado e podido mobilizar essa
opinião pública mostra que se trata de alguma coisa que pode ser produzida,
condicionada, manejada, independentemente da sua correspondência a uma
exacta informação e valoração dos factos.
""Goodrich e Hambro, cic., p. 151.
97
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O problema suscita uma grave questão de ética e de moral internacional
para além dos simples problemas técnicos da comunicação. O famoso Walte;
Lippmann, tratando da relação entre a opinião pública e os "pontos de Wilson~
que se situaram no centro do conflito entre as teses francesa e americana d~
Sociedade das Nações, disse o seguinte: "Seria um erro supor que o aparente.
mente unânime entusiasmo que festejou os 14 pontos representou concordân.
eia sobre um programa. Cada um pensa encontrar alguma coisa de que gosta e
sublinha este aspecto e este detalhe, mas ninguém se arrisca a discutir as frases
tão impregnadas com os conflitos subjacentes do mundo civilizado que foram
aceites. Elas exprimem ideias opostas, mas evocam uma emoção comum.
E nessa medida desempenharam um papel na união dos povos ocidentais para os desesperados dez meses de guerra que ainda tinham de suportar.
As frases de Wilson foram entendidas numa infinidade diferente de sentidos
em todos os cantos da Terra e assim, quando chegou o dia do acordo, toda a
gente esperava alguma coisa.
Os autores europeus tinham uma possibilidade de larga escolha, escolheram
dar satisfação às expectativas sustentadas pelos seus concidadãos que detinham
o maior poder no seu país. Desceram na hierarquia dos direitos da Humanidade para os direitos da França, Inglaterra e Itália. Não abandonaram o uso dos
símbolos. Abandonaram somente aqueles que depois da guerra já não tinham
raízes na imaginação dos seus eleitores. Preservaram a unidade da França pelo
uso do simbolismo, mas não arriscariam nada pela unidade da Europa. O símbolo França estava profundamente agarrado, o símbolo Europa tinha só uma
história recente6 9 ."
A relação evidente entre a opinião pública mundial, o cumprimento das
regras internacionais e o interesse do Estado soberano transformaram a propaganda num sério problema de governo que exigiu a criação de departamentos especiais em toda a parte. O problema da imagemdospovosfoi o ponto de
referência central desta problemática.
A última guerra viu mesmo autonomizado e sistematizado um conjunto de
técnicas até então dispersas e que servem uma actividade nova dos governos:
dirigirem-se directamente aos povos dos países com quem têm relações con·
flituosas saltando por cima dos respectivos governos. Foi uma técnica apurada
em grande parte pelos governos no exílio que a última guerra multiplicou.
O objectivo é minar a legitimidade dos governos e pôr assim em causa a soli·
dez da obediência.
Como, por outro lado, a corrente de ideias, de opiniões, de valores, em que
se traduz a opinião pública internacional está completamente despersonali·
<,?Walter Lippmann,
98
P11blic
Opi11io11,
N.Y., 1922, p. 214.
INTRODUÇÃO
da quanto à origem, às fontes e aos métodos, a propaganda não pode deixar
~: entender-se que é um instrumento importantíssimo da política interna. nal.
.
. . , . a sua d'fi
cioRepare-se que a se1ecção dos f:actos que constituem
not1ciano,
1 u_0 a sua apresentação, estão na dependência de poucas entidades com estrusar~ anónima; lembre-se a importância dos grupos de pressão internacionais
cumbém anónimos, e a interdependência das organizações privadas interna~~onais,igualmente anónimas ou mal conhecidas 70 •
A experiência portuguesa dos últimos anos, a distorção da imagem nacioal frequente, na transição dos regimes políticos, é prova suficiente da impor~ânciacontemporânea destes problemas. De algum modo, a transformação da
sociedade internacional numa comunidade, a desvalorização das fronteiras, e
a capacidade técnica, permitiram a criação de uma esfera de cultura transnacional,sobretudo da responsabilidade e projecto dos grandes grupos multimédia.As redes publicitárias interligam-se à margem das soberanias, cruzando os
capitais, submetidos estes ao modelo e exigência das economias de escala, do
consumo global, pondo em causa os particularismos culturais.
Na área política, o conflito do Golfo mostrou a CNN americana a transformar a população mundial numa só audiência. Os Estados, mesmo quando não
abandonam os processos de censura em decorrência de uma assumida definiçãodemocrática, vêem o seu poder de intervir afectado seriamente pelas novas
técnicas de comunicação. As ditaduras desistem de interferir nas transmissões
de rádio, ou de controlar o audiovisual, ou, de maneira geral, de confiscar os
meios de comunicação.
Os países do Leste, a começar pela desaparecida URSS, tiveram a experiência da sua debilidade frente às novas técnicas, incluindo os satélites de televisão, a rede telefónica internacional automática, o fax. A resposta de adaptação
mostra que o Estado espectáculo, identificado por Schwartzenberg, tem iguais
desafios e dificuldades na ordem interna e na ordem externa 71 •
No sentido mais corrente, as questõesde opiniãosão aquelas que respeitam
a temas com definição incerta, e que por isso não apoiam o alinhamento de
argumentos conducentes à evidência. Isto acontece com frequência na área
dos valores a que são referidas as decisões e condutas, menos nos domínios da
ciência e da técnica onde a evidência depende de maior investigação, repete-se na história sempre que falta apoio em factos averiguados.
70
Jean Meynaud , Lesgroupesdepressio11,
Paris, 1960.
Armand Math elarc, La cultureco11tra
la démocratie?
L'audiovisuelà /'heuretra11matio11ale,
Paris, 1984;
Cambridge, 1989; Me Luhan, U11derstanding
Cymhia Schneid er e Bryan Wallis (dir.), GlobalTelevisio11,
Media,N.Y., 1986.
71
99
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O tema evoluiu para opiniãopúblicaquando se verificou a identificação separada da sociedade civil e do Estado moderno, e aquela ganhou dinamismo e
consistência suficientes para acompanhar a gestão dos interesses públicos pelos
agentes da política. Por isso a opinião pública, com centros que lhe animam 0
desenvolvimento, defende a sua existência e eficácia combatendo o segredo de
Estado, a censura, os chamados arcanaimperii.Os teóricos do Estado aperceberam-se do problema dessa específica relação entre a sociedade civil e o Estado,
apoiando soluções diferenciadas. Um defensor do poder absoluto como Hobbes,
condenou a opinião pública como ameaça para a estabilidade do Estado. Mas
John Locke, na perspectiva liberal, sustentava que tendo os cidadãos renunciado
ao exercício individual da força a favor do monopólio do Estado, tinham porém
conservado o poder de julgar a conformidade das acções de cada um e do poder
com os valores, usando do que chamou a "lei da opinião pública ou reputação",
próxima esta do direito natural, mas variável de acordo com a diversidade de
países. A distinção entre a moral e a lei civil, entre o poder político e o poder
filosófico, anima os comentários. No pensamento de Kant, sobretudo no Projecto de Paz Perpétua, encontra-se defendida a necessidade de aprofundar as
distinções entre política e moral como limite à vocação de domínio do poder,
assegurando a autonomia da sociedade civil perante o Estado pela intervenção
de pensadores livres de dependências oficiais, porque "a verdadeira política não
pode progredir, se primeiro não prestar homenagem à moral". Mas é talvez com
o liberalismo francês de Constam e Guizot que a opiniãopúblicaaparece identificada como intermediária entre o eleitorado que só periodicamente é chamado a
votar, e os órgãos de soberania. Uma articulada harmonia entre o Parlamento e a
opinião pública controla a classe política e reforça a autoridade das decisões. Foi
com esse objectivo que Benjamin Constam sugeriu as reformas institucionais
necessárias para que a reflexividade entre as câmaras e a opinião pública funcionasse. Uma perspectiva que desvaloriza a sociedade civil perante o Estado e
a opinião pública perante a ciência é a de Hegel, na Filosofia do Direito, porque
só o Estado orgânico assegura a passagem do bom senso à ciência, da anarquia
de interesses da sociedade civil à visão ordenada do Estado de direito. Por seu
lado Marx considerou a opinião pública como uma falsa consciência, ideológica,
servindo os interesses da burguesia. A sociedade civil apenas terá plena existência política com a abolição das classes, e então não haverá conflito entre ela e o
Estado. A experiência foi alertando a opinião liberal para a possível corrupção
da opinião pública, um tema que ocupou jáAlexis de Tocqueville e John Stuart
Mill, advertindo que a pressão sobre as massas, à margem dos excessos da autoridade pública, conduz o indivíduo a ter que escolher entre o conformismo e a
marginalização. Como que antecipou a situação actual em que uma indústria
cultural pretende o êxito pelo consumo, fazendo desaparecer as condições do
100
INTRODUÇÃO
.,
pelo qual os iluministas pretendiam orientar a formação da opinião.
1 0
dia og tro lado, não parece ter conseguido êxito o intuito do TheFederalist(vol.
po~º:e propunha assegurar a distinção entre opinião e interesse, pela criação
49 'q a Câmara alta inspirada pelo modelo intelectual das academias, e onde a
de
·
·
de fimisse
· um qua droque
. umdiscussão, sem compromisso
com os interesses,
•
•
d
.
'
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l'
. F'icou ce'l eb re, e
1tvre•sse de apo10
· e re fc
erencia ao processo ecisono a po ltlca.
servi
_
.
(
.
adigmática, uma afirmaçao de Paul Henn Spaak 1899-1972) na Assembleia
rr oNU, quando asseverou que ouvira muitos discursos que tinham mudado
ªua opinião, mas nunca um discurso que alterasse o seu voto. Lenine argua :ntou que apenas a esquerda, no seu conceito, tinha a capacidade de formu~r opiniões dignas de serem observadas na governação, pelo que devia ser a
;nica perspectiva aceitável. Todos os totalitarismos adaptam este método da
arbitragem, excluindo as perspectivas discordantes. O tema das áreas culturais, ou do mundo de múltiplas vozes de que fala a UNESCO, aponta para a
doutrina de que, na área dos valores, a maioria pode convergir no sentido de
conclusões fiáveis, mas que o mesmo é difícil de admitir em domínios da ciência, da técnica, da economia, da segurança, e da governação, e nesta dúvida
se baseia a desconfiança sobre os opinionpolis que são abrangentes de todas
as áreas. Este circunstancialismo orienta no sentido de recortar um conceito
menos abrangente de opiniãopública,o qual não corresponde necessariamente
à opiniãodamaioriamas sim à opiniãointerveniente
na condução da sociedade civil
e do Estado, ou da relação entre ambas. No fundo é um tema ligado com o das
minorias activas, de tal modo que uma sociedade com maioria conservadora
pode ter como activa uma opinião pública liberal ou revolucionária, também
acontecen do que a relação seja a inversa. O processo político não dispensa a
consulta da opinião pública, no sentido restrito indicado, mas cada vez mais é
necessário , na sociedade de informação em que o mundo se encontra, atender
à relação dela com os meios usados para a avaliar, designadamente inquéritos
estatísticos e debates públicos fornecidos pelos meios de comunicação. Estamos
muito longe do academismo do TheFederalist.
Assim como é difícil admitir que
existe opinião pública nos países onde vigoram políticas excludentes de pluralismo e qu e assumem o controlo dos media,também nas sociedades abertas
surge o problema do controlo dos meios de comunicação e da influência relativa que tem nos conteúdos. Tal como a arte da publicidade cria necessidades
artificiais orientadas pelas sedes de decisão económica, também na física do
poder polít ico cresce a preocupação equivalente. A defesa da sociedade aberta
contra os seu inimigos (Popper) é a condição reconhecida para que exista uma
opinião públ ica disputada por vários discursos, mas livre na opção. Suposta
a pureza do modelo observado, o discurso mede a eficácia pelos resultados,
os mais importantes sendo deveres implantados, expectativas criadas, agres101
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
sividade causada, confiança obtida. Na linguagem corrente dos franceses, é
necessário avaliar a miseenscénedos agentes e a priseen chargedos destinatários.
De facto é o conceito de cenografia que entra na metodologia do Estado espec.
táculo. Não apenas a palavra, mas a totalidade do cenário, contribuem para a
captura da opinião pública. Usar a mesma expressão que se utiliza para a cap.
tura do poder, resulta do facto de, na sociedade aberta, a eficácia do poder
depender da adesão da opinião pública 72 •
4. Mercado e sociedade civil mundial
É crescente a importância da acção económica no domínio da política internacional e a longínqua instituição dos cônsules está intimamente relacionada com.
o desenvolvimento do comércio. Mas a acção económica como instrumento da
política internacional tem particular relevo no nosso tempo pela sua relação
com o aparecimento de novas dependências entre os Estados, especialmente
na área que os dependentes chamam do neocolonialismo.
Encontrou, por outro lado, a causa próxima da sua actualidade na temática
relacionada com o desenvolvimento económico, que tem sido abordada pelas
disciplinas de várias ciências. O famoso livro do Professor Rostow, As Etapasdo
Crescimento
Económico(1960), marca, do ponto de vista doutrinal, um ponto de
referência temporal para a nova importância da acção económica na alteração
da estrutura internacionaF3.
Como a política do desenvolvimento se pode efectivar entre nações de capacidades variáveis e conceitos estratégicos diversos, o tipo de relações que se
estabelecem entre nações ricas e pobres tem a maior importância e constitui
tema principal de algumas reiteradas declarações da Santa Sé.
De acordo com a orientação de Rostow, Eugene R. Black, John K. Galbraith,
Raul Presbisch, Teodoro Moscoso, Milton, E. Eisenhower, Dean Rusk, e utilizando a terminologia que Galbraith tornou corrente, o mundo pode ser dividido
em dois grupos fundamentais de países: as sociedades
opulentas,que compreendem todos os países da América do Norte e da Europa Ocidental, com economia
de direcção descentralizada e com alto consumo popular; as sociedades
pobres,
'H. L. Childs, Publiopi11io11:
11ature,flmclio11
a11drole,Van Nostrand, Princeton, 1965;A. Sauvy, L'opinion
publique,P.U.F., Paris, 1964; Tocqueville, Dela démocracie
C11Amerique,1830; J.Habermas, Storiae critica
dessujetsdepouvoir,Langages, 43,
de/l'opi11io11e
publica,Laterza, Bari, 1971; Landowski, La miseen sce11e
1 to do thi11gs
1vi1h111ords,
Oxford, 1962; Hoffmann, La misem scc11e
de la viequotidiélmc,
1976; Austin, Ho11
Paris, 1974; Gseimas e Landowski, lntroductio11
à /'a11alyse
du discoursensciencessoeiales,Paris, 1979; Karl
socictya11dits rnemics,Londres, 1945; John Stuart Mil!, Co11sideratio11s
on represcntaPopper, The ope11
1861; Adriano Moreira, Relaçõesmtre asgrandespotências,ISCSP, 1989; Armand (et
ti11eGo11en1mrnt,
la dcmocratic?
L'audo1•imel
à l'heuretra11snationale,
La Découverre,
Michi:le) Mathebrt, La rnltureco11trc
Paris, 1984.
éco11omiquc,
Paris, 1960.
' ' W.W. Rostow, Lcs,!tapesdela croissa11ce
102
INTRODUÇÃO
compreendem a generalidade dos países da Ásia, com excepções como
quehamados Tigres, o Japão, a Austrália, a Nova Zelândia, os países da África
05
~ parte da África Austral, e a maior parte dos países sul-americanos, onde
10
sa características são as opostas das sociedades anteriores. Dentro dos limites
~:stes casos e~tremos é possível definir uma escala de posições que todavia
• tem agora interesse para o nosso tema.
11 0
ª A lei da complexidade crescente teve aqui reflexos da maior importância.
EugeneR. Black escreveu o seguinte: "Diz-se que a ciência e a técnica reduziram
tamanho do mundo, e é verdade que isso aconteceu. Mas também aumenta;a!llrodos os problemas muito além da sua proporção em referência ao passado.
A ciência e a técnica forçaram as sociedades da espécie humana a uma intimidade nunca antes verificada na História. Ao mesmo tempo, como opinou
Lord Russell, o primeiro e principal efeito da ciência e da técnica foi infundir na Humanidade um grande aumento do sentido do poder humano, poder
do Homem sobre a Natureza e sobre os seus congéneres. Esta combinação do
aumento da intimidade e o sentido, enormemente incrementado, do poder
humano, veio acrescentar a Babel de diferenças entre as sociedades humanas,
e de tal modo que o grau de perigo e descontentamento que hoje compartilhamos é único em toda a História moderna" 74 •
Este perigo do descontentamento, para além dos problemas derivados apenas da concorrência de poderes políticos no mundo, veio salientar que, ao lado
da importância das metas do próprio desenvolvimento, que foi expresso na fórmula revolução
dasesperanças
crescentes,
avulta a importância dos métodos pelos
quais se procura conseguir desencadear esse desenvolvimento. Os Estados
proeminentes nos dois pólos que dominaram por meio século a divisão de forças no mundo, EUA e URSS, ofereceram modelos diferentes a essa revolução e
lutaram por uma hegemonia que, nos casos extremos, revestiu respectivamente
os aspectos do neocolonialismo
e da satelização.
Depois da última grande guerra, a primeira espectacular manifestação da
acção económica evidentemente relacionada com o equilíbrio dos poderes
políticos no mundo foi o famoso PlanoMarshall,que recebeu o nome do então
Secretário de Estado dos Estados Unidos da América. Tratou-se de transplantar para a Europa a experiência americana, com dificuldades que Herbert von
Broch faz compreender com estas palavras: "As nações e a contextura social
que elas desenvolvem são fruto de acidentes e de necessidades, de causas remotas e de pressões inevitáveis. Com uma excepção: os Estados Unidos da América. Os Estados Unidos não se desenvolveram nem foram tecidos, como outras
"Eugcnc R. Illack, The diplomacyof cconomicdevelopment,Harvard University Press, 1961. Há tradução
brasileira, sob o título A PolíticadoDesenvolvimento
Económico,Rio de Janeiro, 1962.
103
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nações, segundo o padrão desigual e confuso da História. Os Estados Unidos
foram criados" 75•
Isto significa uma enorme confiança na razão e a tendência para não considerar a contingência histórica como resistência a vencer. De facto, a sua experiência passada parecia ter sempre presente a sentença de Adam Smith: "Pouco
mais se requer, para levar um Estado ao mais alto grau da opulência, partindo
da mais baixa barbárie, do que a manutenção da paz, os impostos brandos, e
uma administração de justiça tolerável; tudo o resto chegará pelo rumo normal dos acontecimentos" 76 •
Tratou-se de um Estado, que se pretende árbitrona vida interna, descobrir
a necessidade de uma atitude coordenadora pelo menos nas relações internacionais. Quando, em 5 de Junho de 1947, na abertura do ano escolar da Universidade de Harvard, Marshall anunciou o programa para a recuperação da
Europa, disse o seguinte: "É já evidente que antes que o Governo dos Estados Unidos possa ir muito além nos seus esforços para aliviar e ajudar o arranque do mundo europeu no seu caminho para a recuperação, deve haver algum
acordo entre os países da Europa sobre as exigências da situação e a parte que
esses próprios países tomarão no sentido de dar viabilidade a qualquer acção
que possa ser tomada por este Governo. O programa deve ser único, aceite por
certo número, se não por todas as nações europeias" 77•
Estes propósitos tiveram expressão na Convenção de Cooperação Económica Europeia, cujo instrumento diplomático foi assinado em Paris a 16 de
Abril de 1948 78 •
Quando este método se tornou extensivo a outras partes do mundo, então
também se tornou evidente que uma política de desenvolvimento económico,
implicando a solidariedade internacional, exige igualmente uma nova forma
de diplomacia. Projectar, coordenar, executar, exigiam uma atitude flexível a
que a experiência europeia não servia de paradigma porque as premissas culturais nas outras partes do mundo eram diferentes. Uma coisa é ajudar países
de alta tradição científica e técnica e com inultrapassável experiência de direcção, outra é ajudar territórios sem passado em tal plano, com escasso enquadramento e com classes dirigentes geralmente dotadas de um sentimento de
frustração. Começou, por isso, a verificar-se o aparecimento de instituições,
·, Herbert von Ilroch, A Sociedadeltlacabada(Amcrika:Die U11ftrtige
Gesellschaft),Rio de Janeiro, 1964,
p.13 .
·,, ln Illack, cit ., p. 60 da ed. bras ileira.
Foreig11
Policy,BasicDocumwts, 1941·
" "The European Recovery Programme", in A DecadeofAmerica11
-1949, Washington, 1950, p.1268.
'" ln João Dias Rosas, A Luta pelosMercadosAfrica11o
s, Lisboa, 1958, p. 35.
104
INTRODUÇÃO
rvidores e de métodos novos para lidarem com esta acção económica, ins-
deseento fiun damenta I d a po l'mca
. mternac10na
.
. 1contemporanea.
•
cru:o que respeita aos instrumentos novos, aconteceu que, dentro da cada
,
próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros foi esquecido, ou foi-lhe
0
pats;da a posição proeminente, para conduzir as operações relacionadas com
neg
, • 79
, rea econom1ca
ªª sem premeditação, os países começaram a definir novos mecanismos para
irem neste domínio, por estarem em face de necessidades novas. Mas tam~!m começou a sentir-se a necessidade de encontrar um novo tipo de negociador,e O próprio Eu gene Black definiu um tipo normativo nos seguintes termos:
.,0 diplomata do desenvolvimento deve preencher a lacuna existente entre o
diplomata convencional e o comerciante ou investigador.
Seus propósitos não devem ser comerciais ou estritamente económicos, mas
em caso algum deve interessar-se pelos estreitos objectivos políticos que por
vezespreocupam o diplomata comum.
o diplomata do desenvolvimento deve ser um homem com vocação, preferivelmente um homem com termos imediatos de referência. Como artesão do
desenvolvimento económico deve usar as ferramentas das disciplinas económicase outras, o melhor que possa, para situar em perspectiva, para lançar luz
sobre elas e para iluminar as opções perante aqueles que decidem no mundo
subdesenvolvido.
Pode parecer um estranho papel para um diplomata mas, como assunto
prático no mundo moderno, será certamente o modo mais efectivo de exercer
uma influência construtiva, por parte das nações livres, no desenvolvimento
dos países subdesenvolvidosªº."
Como a acção económica, que tem por objectivo o que se chama a política
do desenvolvimento, torna constantemente evidente que estamos em face de
uma relação que interessa à independência dos poderes políticos, também
internacionalmente, e para além dos objectivos gerais da ONU, se foram definindo programas, técnicas e instrumentos específicos.
Em primeiro lugar entre a possibilidade de acordo bilateral entre os países,
e a possibilidade de uma internacionalização que despersonalize a ajuda económica e financeira, as preferências têm-se encaminhado neste último sentido 81•
Os antigos impérios coloniais, como é o caso da França, usam o método do
acordo bilateral como instrumento apropriado para manter uma situação de
"Vide Roger Orsingher, LesBanquesdans/e Monde,Paris, 1964.
"' Lug cit., p. 41.
81
Charles P. Kindleberger, EconomiaInternacional,S. Paulo, 1974, p. 441 e sgts. José Calvet de Magalhães,
A diplomaciapura, Lisboa, 1995, p. 93, sobre a morfologiadiplomática.
105
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
proeminência. Mas o que avulta, para além do neocolonialismo a que adiante
nos referiremos, é a tentativade despersonalizar
e internacionali
zar a acçãoeconó.
mica.
No que respeita aos instrumentos nascidos sob o signo da despersonalização
basta indicar as instituições bancárias e financeiras que têm sede em Washington'.
Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial):
que deu origem a duas instituições filiadas que são a Sociedade Financeira Internacional (SFI) e a Associação Internacional do Desenvolvimento (IDA); Banco
Interamericano de Desenvolvimento, cuja actividade começou em 1960 e tem por
objectivo contribuir para o desenvolvimento económico dos países membros que
são a Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Estados Unidos, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Perú, Uruguai e Venezuela; Banco da~
Importações e Exportações de Washington, controlado pelos Estados Unidos,
em actividade desde 1934. Na Europa, além do Banco de Pagamentos Internacionais, existente desde 1929, foi atribuído um papel importante ao Banco
Europeu de Investimentos, criado por protocolo anexo ao Tratado de Roma
do Mercado Comum, e a meia centena de bancos que actuam dentro da zona
referida por este tratado.
A despersonalização e a internacionalização da ajuda, que tiveram a sua
grande experiência com o Plano Marshall, implicam, como aconteceu na
Europa, a definição de espaços formais ou informais, com uma doutrina própria. O espaço mais internacionalizado foi sem dúvida o do Mercado Comum,
que evolucionou para União Europeia . Mas, pelo que respeita ao continente
americano, a doutrina Kennedy, que ficou conhecida por Aliança para o Progresso , teve como objectivo institucionalizar aquela zona, indo ao encontro de
necessidades que quase ao mesmo tempo tinham sido identificadas pelo Presidente Kubitchek de Oliveira ao lançar o que chamou a Operação Panamericana.
Esta doutrina Kennedy teve expressão prática na chamada Carta de Punta dei
Este, em 1961. O famoso livro de Schlesinger sobre a Administração Kennedy
descreve o clima dramático em que a acção da Aliança foi lançada 82 •
Provavelmente o embaixador Lincoln Gordon foi o mais autorizado expo·
sitor da doutrina, justamente porque ajudou a formulá-la, e foi encarregado de
a executar no mais importante país da América Latina que é o Brasil. A importância atribuída ao Brasil é ainda um detalhe da política de despersonalização
que os Estados Unidos pretenderam transformar em imagem da política de
desenvolvimento. Gordon insistia em que a Carta se baseia neste princí pio:
"Que a liberdade e as instituições da democracia representativa asseguram as
•
1
Schlesinger. Mil Dias 110CasaBra11ca,
Rio de Janeiro, 2 vols., 1966.
106
INTRODUÇAO
eihores condições para satisfazer, entre outros, os anseios de trabalho, tecto
terra, escola e saúde. Não há, nem pode haver sistema que garanta verdadeiro
erogresso se não proporcionar oportun~d~~e para afirmação da dignidade da
pessoahumana, fundamento da nossa c1v1hzação."
p Reproduzindo assim palavras da Carta, punha bem em evidência que se
ratavatambém de uma luta ideológica entre duas concepções do mundo e da
tida, e que a política de desenvolvimento era um aspecto da estratégia global
vue O seu país desenvolvia. De resto, a despersonalização dos instrumentos
dessapolítica não conseguiu esconder a presença dos Estados Unidos da Américacomo denominador comum em todos os organismos criados. Mas esta despersonalização teve também reflexos na metodologia diplomática: em toda a
parte a diplomacia
colectiva,com o seu instrumento fundamental que são as conftrências,tornou-se dominante 83 •
111
s.Lógica da relação entre o poder económico
e o poder político
Aautonomia da economia política internacional apenas recentemente se definiu, libertando-se de uma percepção metodológica que concentrava nos conflitos, e capacidade militar para os enfrentar, o núcleo essencial das questões
mundiais. Na literatura agora corrente está adquirido o entendimento de que
a intervenção dos governos e povos é sobretudo económica, com a excepcio nalidade da subidaaosextremos(Clausewitz) da guerra.
Por isso a interdependência entre política e economia exige atenção prioritária, porque, como escreve Robert Gilpin, "por um lado, a política largamente
determina a moldura da actividade económica e orienta-a para as direcções que
se julga servirem os interesses dos grupos dominantes; o exercício do poder
em todas as suas formas é o maior condicionante da natureza de um sistema
económico. Por outro lado, o processo económico tende para a redistribuição de poder e riqueza, transforma a relação de poder entre os grupos. Isto,
por sua vez, leva à modificação do sistema político, fazendo assim nascer uma
novaestrutura das relações económicas. Deste modo, a dinâmica das relações
internacionais no mundo moderno é largamente função da recíproca interacção entre economia e política" 84 •
Por isso, a teoria das relações internacionais se ocupa das motivações económicas, das acções, e das políticas que ultrapassam os limites domésticos dos
83
Lincoln Gordon, O Progresso
pelaAliança, Rio de Janeiro, 1962. San Tiago Dantas, PolíticaExterna
Independente
, Rio de Janeiro , 1962; A Aliançaparao Progresso,Rio de Janeiro, 1962, comentários coordenados por J.C. Dreier. William Diamond, DevelopmentBanks, Baltim ore, 1957. Roger Orsingher, Les
Banquesdans/e Monde, Paris, 1964 .
"'Robert Gilpin , U.S. Powerand the MultinationalCorporation,N.Y., 1975, p. 21.
107
TEORI A DAS RELAÇ OES INTERNACIONAIS
países 85• Na definição de Gilpin , a economia política internacional estuda "a
recíproca e dinâmica interacção nas relações internacionais com o objectivo
de conseguir riqueza e de conseguir poder" 86 •
Neste século, foram dominantes os seguintes tópicos: a) conflito ideoló.
gico entre Estados capitalistas e Estados socialistas, que dominou o panorania
internacional de 1945 a 1989; b) a problemática do neocolonialismo identj.
ficado como imperialismo capitalista, e da soberania limitada pela URSS na
área dos socialistas, condição da supremacia económica do Estado director•
e) tensão entre os aliados da NATO, nesta data com expressão maior nas rela~
ções competitivas entre os EUA e a União Europeia; d) a configuração do Pacífico, onde crescem os poderes da China e do Japão; e) as relações Norte-S ul•
f) a diversificação das balanças de poder do ponto de vista da paz e da guerr a'
e o consequente peso variável da componente económica no poder do Estado'.
g) a competição armamentista, as suas bases tecnológicas, e o comércio d~
armas; h) as causas económicas da guerra; i) relação dos factores económic os
com a crise da soberania e a formação de grandes espaços integrados; j) as multinacionais como actores das relações internacionais 87•
A importância do tema é sublinhada pelas dificuldades frequentes relacionadas com a crise mundial dos défices. As mais salientes são a geral recessão verificada, com maior ou menor incidência local, nos países de economia
industrializada; o abuso do poder funcional, a partir de 1979, dos países que
controlam grande parte dos recursos do petróleo (OPEP), hoje mais obrigad os
à prudência; fenómenos de instabilidade política e perda de confiança dos
investidores, designadamente em vários países da America Latina e Central, o
conflito das Coreias do Norte e do Sul, o Vietname , a guerra do Afeganistão,
a destruição da África negra, a implosão da URSS; o novo estatuto de devedor
crónico dos EUA; o peso da dívida do chamado Terceiro Mundo 88 •
De tudo resulta que, como nota Jones, poucos factores da economia mundial deixam de ter consequências nas relações entre os Estados, assim como
a situação económica interna dificilmente deixa de afectar a política internacional do Estado 89•
Esta interdependência é um dos indicadores da mudança de sociedade
internacionalpara comunidadeinternacional.A hierarquia das potências e a luta pela
"~Walter S. Jones, The Logicofi11tcrnatio11al
re/atio11s,
Boston, 1988, p. 445 e sgts .
"" Lug, cit, p. 43.
"' Conf. W. Jones, cit ., p. 44. Thierry de Montbrial, "The european dimension", in Foreig11
Affairs,1985,
p.512 .
AjJairs,
'" Christine A. Bogd:mowicz-Bindcrt, "World Debt: The Uniced States Reconsiders", Forcig11
1985--1986, p. 259 e sgcs.
''' EconomicRcpportof thc Prcsidc11t,
N .Y., 1987, p. 139.
108
INTRODUÇÃO
onia levam a desenvolver técnicas conceitualmente identificadas como
neocolonialismo,
exploração,
manipulação,discriminação,
hege~ /ismo,colonialismo,
;,11pert~o
que a reivindicação de uma justiça internacionalque supere a submissão
010
de cionale evite uma políticaderetaliaçãode antigos povos dominados apoia
it1tern:mento
no sentido de existir um códigodecondutae uma supervisãomundial.
0 01~vso D. B. Steele, em nova versão dos clássicos Projectistas da Paz, enun1
p?r :; programa de gestãoglobalda economia(GEM), da responsabilidade de
c1ou izações mternac10na1s,
·
·
· e com auton "dad e supranac10na
·
1para en frentar
organ . 'b . ?o
desiqu1h nos .
1nestes termos apoia-se
.
os A percepção d a economia. mternac10na
.
.
no recohecimento de uma categoria de bens, materiais e espirituais, que não podem
como da comunidade mundial. Um dos teoriza~ores desta matéria foi Charles P. Kindleberger, e talvez deva considerar -se a
Declaração sobre os Direitos dos Povos à Paz (1984), da ONU, como um dos
rimeiros documentos mais expressivos. Mas é necessário acrescentar a liber~adedos mares, os sistemas que visam dar peso e medida ao regime do comércio
mundial,ou a prevenção dos chamados riscosmaiores,como os da difusa ameaça
resultante das instalações atómicas para fins pacíficos e militares. E ainda, em
grande parte efeito concentrado da explosão demográfica, dos avanços técnicose científicos , e da interdependência funcional, aquilo que já vai sendo chapúblicamundial.O caso das águas, por exemplo, ultrapassa a
madopropriedade
questão dos mares e oceanos, que a lei internacional regula. É urgente regular a situação dos rios internacionais, porque não parece aceitável que um dos
Estados, a montante do curso de qualquer deles, possa desviar as águas para
seu exclusivo proveito. O conceito de propriedade pública internacional, que
deriva da natureza de comunidade que a sociedade internacional está assumindo, não o admite 9 1•
?,deixar de ser considerados
6. Imperialismo e colonialismo: o diálogo da imposição
Umadas formas mais evidentes de estabelecer um sistema de relações entre os
povosé o de conseguir implantar uma forma qu alquer de hierarqui a e subord inação. Os motivos apontados, para abonar tenta tivas desse género , são muito
variados, encontrando-se justificações económic as, militares, morais e até psicológicas.
'º D. B. Stc elc, The causefor GlobalEconomicManagementa11dU.S. SystcmRcform,Inrernational Organizarion, N.Y.,1985, p. 561 e sgrs.
91
Charles P. Kindlcberger, "lnternational PublicGoods Wirhout lnternational Government" ,Amcrica11
Economic
Revicw,1986, pp . la 13. Edward Burns, "The movement for World Government", Scicncc,Vai.
25, 1948, p. 5 e sgrs . Julia E. Johnson (edt.), FederalWorldGo1•ernmc11t,N.Y., 1948. Clcm Sunrer, The11eiv
century,qucstfor the highroad,Cidade do Cabo, 1992, p. 1S e sgts., "four rules of rhe game" .
109
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Pelo que toca à motivação económica, a busca de novos campos de investimento e a obtenção de um mercado de matérias-primas e consumidores foralll
muito usuais. A convicção de que "o comércio segue a bandeira" é uma síntese
desse ponto de vista, mas também a simples invocação do prestígio nacional,
com todas as implicações que este prestígio envolve, foi uma justificação fre.
quente. A doutrina do "destino manifesto"que orientou a expansão americana
até ao Pacífico é um exemplo dessa motivação.
O famoso fardo do homem branco" a que se referiu Rudyard Kipling é urna
justificação moral assim como se situa no mesmo plano a explicação do Presidente William McKinley quando anunciou que, em resposta à sua prece, Deus
lhe ordenara que conquistasse e educasse os povos das ilhas Filipinas, fazendo
pela graça de Deus o mais que estivesse ao seu alcance, porque eram seres pelos
quais Cristo também morrera 92 •
As necessidades de defesa nacional foram muitas vezes invocadas para obter
o domínio de áreas contíguas às fronteiras, para subordinar Estados independentes, para obter fontes de matérias-primas e até soldados.
Na Primeira Guerra Mundial, a França utilizou meio milhão de soldados
vindos das colónias e a Inglaterra cerca da mesma quantidade de combatentes
vindos da Índia, assim como na última grande guerra eram provenientes das
colónias cerca de 200 mil dos homens perdidos pela Comunidade Britânica.
populacionais,como aconteceu com o Japão antes da última
Os excedentes
grande guerra, foram um motivo invocado para a aquisição de novos territórios, e a necessidade de um espaçovital para o povo alemão foi a justificação
declarada por Hitler.
Seja qual for a motivação, o imperialismo significa um dinamismo do Estado
que necessariamente conduz à definição de uma supremacia baseada na força,
em relação a outros poderes políticos. O sentido do imperialismoé muito controverso e provavelmente cobre realidades não assimiláveis e até variáveis de
acordo com a conjuntura histórica.
Se percorrermos os conceitos operacionais que actualmente orientam as dissertações nestas matérias, encontramos quase sempre, como ponto de partida,
a Study.Este trabalho, publicado
o clássico trabalho de J. A. Hobson, Imperialism:
em 1902, no apogeu dos impérios europeus, não dá porém uma noção precisa
de imperialismo. Todavia, de uma maneira muito tradicional, não deixa de
pronunciar-se sobre o que entende por colonialismo, caracterizando-o fundamentalmente como uma forma de exploração, que não exclui uma actividade
transplantadora de civilização e de cultura. De facto, quer os trabalhos publicados a este respeito, quer as manifestações, posteriores à última guerra, nos
''' Palmer e Perkins, cit ., p.189. Adriano Moreira, PolíticaUltramarina,Lisboa, 1958.
llO
INTRODUÇÃO
. rnos internacionais e nas conferências dos Estados recentes, não deiorga~isligar O colonialismo ao imperialismo, como que adjectivando, para os
111
Jíª
\mpos uma prática antiga 93 •
ovos
t
,
.
.
11 'li e-se, como exemplo, o estudo de Rupert Emerson, FromEmpzretoNatwn,
ornproblema do imperialismo é reduzido ao confronto das soberanias
de o
0 11
'dentais com o levantamento nacionalista dos povos da Asia e da Africa 94 •
ocitemas principais do seu trabalho são a rejeição do colonialismo, a política
os! ia! e os movimentos nacionais, a anatomia da Nação, as relações entre o
co on
.
d
.
•onalismo e a democracia, a auto etermmaçao.
11ac•
• amam 'fcestaçoes
- mternac1ona1s,
·
·
· e sem f:a1ar na ONU , a f:amosa
No que respeita
C nferência de Bandung, de 1955, identificou ambas as coisas, o mesmo tendo
fi ~toa Conferência de Havana, de 1966.
e Esta adjectivação uniformizadora do imperialismo pelo colonialismo parece
conselhar a distinção entre o imperialismo anterior à era gâmica, que convi:eria com o novo imperialismo posterior à descoberta do caminho marítimo
para a índia, que encontrou este o seu ponto crítico na Conferência de Berlim,
em 1885, e foi essencialmente um imperialismo colonial dos Estados europeus
sobre o resto do mundo.
o imperialismo anterior à era gâmica era fundamentalmente europeu, de
tradição romana, visava uma certa forma de organização da sociedade internacional ocidental que se confundiria depois com a República Cristã. Tratava-se de uma organização hierarquizada, primeiro centralizada, que evolucionou
para uma descentralização em que o imperador, depois da renovação do império cristão por Carlos Magno em 800, se foi transformando numa pura figura
arbitral até à sua formal extinção pela intervenção napoleónica, que ensaiou
organizar o efémero grande império francês, um sonho liquidado na Batalha
de Waterloo em 1815.
Esta degradação da função imperial no Ocidente fez com que o conceito
sobrevivente de império exprimisse apenas, desaparecida inteiramente a vocação romana, uma posição relativa do poder efectivo dos vários Estados, os mais
poderosos reclamando a designação imperial, como acontecia com a Áustria.
O sentido de hierarquia dos Estados também não está portanto ausente nesta
titulação, mas é já um sentido puramente maquiavélico, isto é, da força relativa, e não o sentido orgânico da tradição romana: trata-se de uma hierarquia
93
J. A. Hobson, lmpcrialism: a study, Londres, 1902. Paul A. Ilaran, 11cco110111ia
políticadodcscnvolvimrnto,
Rio de Janeiro, 1972, sobre "as actividades imperialistas nos sectores sociais, ideológicos e culturais"
e "o problema da guerra", p. 284, numa perspectiva de responsabilização dos países capitalistas pelo
subdesenvolvimento do Sul.
"Rupert Emerson, FromEmpireto Natio11,Boston, 1960.
lll
T EORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
baseada na força, que ameaça intervir, e não em qualquer dependência funcio,
nal recíproca, jurídica ou política.
Tal evolução do sentido do imperialismo implicou o aparecimento do nacio,
nalismo como ideologia política fundamental de libertação dos povos, para
depois ser agressivo, e, por isso, é neste sentido que usualmente o imperialismo
moderno é filiado no nacionalismo. É a orientação de Bonn, Townsend, Lan,
ger, podendo citar-se estas características palavras de Hans Kahn: "O imperialismo é na sua essência uma fase final do processo começado pelo nacionalismo
O nacionalismo luta para unir os membros de uma Nação, politicamente 0 ~
territorialmente, numa organização estadual. Quando isto é conseguido, a luta
pela posse da terra continua" 95 •
Estas observações mostram duas atitudes possíveis do poder político animado de sentido imperial: ou o exercício de uma função convergente, que procura formar uma sociedade integrada vertical e horizontalmente; ou uma função
que procura impor uma subordinação apenas vertical, estabelecendo uma hierarquia que não dá dignidade igual nem a todos os territórios nem a todos os
povos integrados.
Justamente, o imperialismo correspondente à era gâmica, que começa com
a chegada de Vasco da Gama à Índia, enfrentou uma experiência não já apenas
europeia, mas planetária, ecuménica e colonizadora. A linha política de espírito
integrador que animou o nacionalismo ou o projecto nacional, e a que Kahn se
refere, não foi geralmente transferida para além dos mares e para o contacto
de etnias e sistemas culturais radicalmente diferentes dos europeus. Por isso,
o novo imperialismo aparece revolucionariamente
identificado como colonialismo, com o seu ponto crítico, como já se disse, na Conferência de Berlim
de 1885, onde se definiu a perspectiva eurocentrista que os movimentos anticolonialistas adjectivariam pejorativamente.
A política de integração, que procura constituir sociedades integradas vertical e horizontalmente, sem dependência de situação geográfica ou das etnias
ou das culturas, tenta recusar a identificação com o imperialismo colonialista
dos tempos modernos. Talvez a distinção entre o colonialismo
missionário,este
integrador, e colonialismo
de espaçovital, este discriminador, ajude a analisar as
diferenças das teses, sem esquecer que frequentemente as hipóteses se con·
fundiam.
Este imperialismo colonialista dos tempos modernos usou todos os instru·
mentas próprios da política internacional e foi especialmente determinado pela
•,;Hans Kahn, Natio11alism
a11d
Impcrialism,Brace, 1932, p. 42 . Este autor é dos modernos um dos poucos
que não é sistematicamente anticolonialista. Nesse sentido se tornou conhecido o seu pequeno estudo
chamado Rcj7ectio11s
011Colo11ialism,
Pensilvânia, 1956.
112
INTRODUÇÃO
. ão económica que ficou referida. Foram todas as democracias estabi..,0t1vaç
,.
.
,
.
, .
1 . . d
••·
d frente marmma europeia que constrmram os 1mpenos co oma1s o
Jiza:i:sxr~:Inglater~a, França, Ho~anda, Bélgi~a, so~reviv~n~o até 1974 o _impés~c tuguê s que vmha desde o seculo XV.F01este 1mpenahsmo, de motivação
rio Pº~e mais económica, que serviu de modelo para a meditação marxista sobre
antes, meno da colonização, levando à afirmação de que todo o imperialismo é
o feno
· na expansao
- d o capita
· 1·ismo. Esta fi01. a pos1çao
. - d e L enme,
.
fase necessária
uma as critica da, dentro da orientação marxista, pelo herético Kautsky (1854ap9e3n9)
que não considerava o imperialismo senão como uma política preferida,
. 1·1stas96 .
-l
- inevitáve l, d os E sta d os capita
mas na 0
7 Guerra: a subida aos extremos
Não se conhece nenhum período da história da Humanidade em que a guerra
tenha estado ausente. O famoso Arnold Toynbee, no seu repetidamente citado
A StudyofHistory,analisa longamente o problema da guerra nos tempos modernos mostrando como é um fenómeno permanente, de custos nunca recompensados pelos res~lt_ados, e quas~ se~pre com uma alegação ~deoló~ica ~e
justificação. A defimçao e a determmaçao das causas da guerra sao porem hoie
objecto de uma literatura cada vez mais vasta, e de uma disciplina chamada
polemologia, mas aqui interessa apenas notar quais são as funções da guerra
no domínio da política internacional e, ainda, as práticas que esta determina
para a evitar, humanizar e remediar.
Os Estados recorrem à guerra para salvaguardarosseusinteresseslegítimos
ou ilegítimos, para exaltarvaloresmoraisou espirituais,para imporo triunfodegruposétnicosque se consideram superiores, para modificara ordempolítica e social
internacional.
Talvez não seja possível apontar um Estado anterior à última grande guerra
cujo território, primeiro dos interesses historicamente vitais, não tenha sido
definido pela guerra. Mas o que tem mais interesse na política internacional
actual é a utili zação da guerra subversiva ou das guerrilhas como instrumento de
uma disputa pelo poder mundial, disputa que é frequentemente ideológica.
O Presidente Kennedy disse o seguinte: "As nossas fronteiras hoje estão em
todos os continentes. 'Onde está a liberdade está a minha pátria', disse Benjamin Franklin. 'Onde não está a liberdade, está a minha' disse Tom Payne.
Na segunda metade do século XX o espírito original americano, personalizado
96
Lenine. Imperialism as the higheststateof capitalism.Londres, 1927. Também in OezmesChoisies,Moscovo, 1953.
q11estio11,
Londres, 1899, onde exprime a parte da sua doutrina que foi reco VerKautsky, The agraria11
lhida pela ortodox ia marxista . Para uma visão global da evolução, José Adelino Maltez , O imperial·com1111ismo,
Lisboa,1993.
113
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
pelos nossos FoundingFathers,defronta a sua maior experiência. Porque o nosso
futuro e o do resto da população do mundo estão inseparavelmente ligados
'
económica, militar e politicamente" 97 •
Procurando evitar um confronto directo, os grandes poderes apoiaralll a
insurreição em pontos críticos de fricção, não escondendo sempre esse apoio
nem mesmo os objectivos em vista. É, em certo sentido, mais um aspecto d~
despersonalização dos métodos actuais. Luta-se em Angola, em Moçambique
no Iémen, no Ruanda, no Corno de África, na Somália, mas, ainda quando u~
dos grandes poderes está envolvido directamente na guerra, o opositor aparece
só por agente interposto. São guerras por procuração. A iniciativa não está selll.
pre nos grandes poderes, mas o conflito nunca deixa de interessar aos poderes
que disputam a supremacia mundial ou regional.
E como o equilíbrio de impotência a que chegaram os grandes centros estratégicos de decisão, situação que o fim da Guerra Fria agravou, alargou enormemente a liberdade de acção dos pequenos e médios países, também por isso
aumenta a frequência com que a guerra subversiva e revolucionária aparece na
cena internacional. O aumento dessa liberdade resulta do facto de os grandes
poderes, em vista da capacidade destruidora dos meios de fazer a guerra, serem
compelidos a alargar a dimensãoda tolerância,aceitando acções que no passado
considerariam intoleráveis.
Roger Trinquier, ocupando -se deste fenómeno, diz o seguinte: "A guerra
é actualm ente um conjunto de acçõe s de todas as espécies (políticas, sociais,
económicas, psicológicas, armadas, etc.) que visa a destruição do poder estabelecido num país e a sua substituição por um outro regime. Para alcançar isso, o
assaltante esforça-se por explorar as tensões internas do país atacado, as oposições políticas, ideológicas, sociais, religiosas, económicas, susceptíveis de
terem uma influência profunda sobre as populações a conquistar. Por outro
lado, pelo facto da interdependência actual das nações, todo o movimento reivindicativo no interior de uma população, mesmo se é de origem muito local
e sem expressão longínqua, será rapidamente inserido, por adversários resolutos, no quadro das grandes oposições mundiais. De um conflito localizado na
origem e de importância secundária eles esforçar-se-ão sempre, num espaço de
tempo mais ou menos longo, por fazer um conflito generalizado" 98 •
17
John F. Kennedy, The Stratcgyof Pcacc.1960,N .Y., p . 56.
Archer Jones, The art ofwar i11thc wcstcrnworld,Londres, 1988, onde analisa a evolução depois da Paz
de 1945, p. 596 e sgrs. Paul Ramsey, The just ivar,forceandpoliticalresponsibility,EUA, 1968, sobre os
custos da guerra, p. 523 e sgrs.
·•HRoger Trinquier, La guerremodcme,Paris, 1961, p. 15. UNESCO, Tcnsionsthat causeivar,Paris, 1951.
J. Galtung, Essaysi11PcaceRcsearch,\foi. 1:Pcace,Research,Education,Copenhague , 1975.
'
114
INTRODUÇÃO
óricos desta guerra de guerrilha ou revolucionária, entre os quais se
os te Che Guevara, Mao Tsé-tung e Giap, não deixaram de sublinhar a
destªca: mundial do método e do conflito com que está relacionado. Mao
· "fi1cat1vo
· b astante para constar d o seu
dirnensa
u O seguinte, cons1"dera d o s1gm
"Considerando a guerra revolucionária como
escreveO e célebre LivroVermelho:
pequednoas operações das guerrilhas populares e aquelas das principais forrn W,
.
u d Exército Vermelho complementam-se reciprocamente como os braços
ças ºrdo e direito de um homem, e se nós tivéssemos apenas as principais foresq~: ExércitoVermelho sem as guerrilhas populares, seríamos como um comças
b
"99
nte só com um raça .
bate
d
.
.
e
• A tentativa e e11mmar o recurso a, 1orça
na compet1çao
entre os gran d es
aderes do mundo, restringindo a luta a uma competição sem guerra aberta,
P cebeu a designação de SpiritofCamp David(25 de Setembro de 1959), nome
~: lugar onde o Presidente Eisenhower e Kruchtchev passaram em revista a
lista dos problemas que dividiam os seus países. Falou-se desde então em coexistência
pacífica,apaziguamento
ideológico,
pacifismo,mas a corrida armamentista
continuou e, finda a Guerra Fria, o número de conflitos armados cresceu.
A guerra traduz-se no exercício de uma violência armada contra as pessoas
e contra as coisas, sem hesitações sobre o aniquilamento de ambas, até à eliminaçãode qualquer resistência à imposição da vontade do interveniente vencedor.A evolução dos meios de combater fez com que o objectivo tradicional
de obrigar o adversário a reconhecer a cedência, normalmente em conferência
de paz, fosse substituído pela guerraexistencial,que considera a eliminação do
adversáriocomo um evento natural do processo 100 •
Por vezes a eliminaçãoda estruturapolítico-jurídica
parece suficiente, designadamente com o desaparecimento da personalidade internacional do Estado
vencido;outras, com exemplos históricos anteriores mas sem a dimensão deste
século,a eliminação
física dopovoadversário,
que a lei internacional considera um
crimedegenocídio,é o resultado procurado.
Na guerra de 1939-1945, a chamada rendiçãoincondicionaldefinida como
objectivode guerra dos aliados, traduziu-se em eliminar o Estado alemão, que
deixou de ser um interlocutor, sendo os vencedores quem ocupou o território
" A11otatio11s
Jrom ChairmanMao Tsitoung,Pequim, 1966, p. 90.
Harrison E. Salisbury, The nen•emperors,China in the eraofMao a11dDeng, Boston, 1992, p.141 e sgts.
00
'
Roger Caillois, L'homme et /e sacri, Paris, 1950, é uma referência importante do moderno estudo
científico da guerra, que a aproxima da festa ou da orgia ritual. Nef, War a11dhuman progress,N.Y.,
l950, analisa a sobrevivência da ideia de que a guerra é uma experiência nobilitante. Adriano Moreira,
"O Pacifismo", in Comentários,cit., p.171, sobre os vários conceitos condenatórios da guerra.
Milão, 1988, uma excelente análise do extermínio dos judeus e, p. 322,
Atno J.Mayer, So/11zionejinale,
da devastação da Europa pelos nazis.
115
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
vazio de soberania, e unilateralmente organizou as novas entidades políticas
Em 1966, a guerra do Biafra levou à eliminação física dos ibos sobre os quais·
comunidade internacional guardou silêncio, desde 1974 que o Iraque parecª
adaptar tal solução para com os curdos, desde 1975 que a Indonésia ensaia ta~
resultado em relação aos timorenses, desde 1982 parece ser desse modo que
0
Sudão pretende eliminar as resistências do Sul do país.
Não é fácil encontrar um problema que a guerra tenha resolvido, nem Utna
guerra em que os dividendosdapaz compensem o preço sofrido por todos os
intervenientes.
é um método que penosamente se tem desenvolvido, quer
Por isso, aprevenção
no plano jurídico, onde o direito procura eliminar a legitimidade da guer ra
quer no plano político que vai convergindo com o primeiro.
'
A técnica da balançadepoderesfoi talvez a mais experimentada, variando todavia de definição, também em função da evolução dos meios de fazer a guerra
e do alargamento dos teatros estratégicos 101• Classicamente, a prevenção pela
balança de poderes traduzia-se em procurar um equilíbrio de meios militares
à disposição de cada um dos pressentidos beligerantes, de modo a consegu ira
dissuasão, quer de recorrer ao combate, quer de o intensificar , pela evidência
dos custos a suportar. Depois da domesticação da energia atómica, complementada pelas guerras química e bacteriológica, a prevenção assentou na balançade
terror,porque cada um dos blocos adversários tinha a capacidade de elimin ar o
outro , arrastando eventualmente o holocausto de toda a população mund ial.
Exemplificando, falar-se-á de equilíbrio actual da balança de poderes entre
a Índia e o Paquistão, em vista de um conflito bilateral que dura desde 1947,
sequela da divisão do Império Britânico das Índias. Dir-se-á que, no conflito de
Israel, desde 1948 , enfrentando todos os seus vizinhos porque estes não aceitaram a decisão da ONU no sentido de constituir o Estado judaico, a balança
de poderes se desequilibrou a favor de Israel. Durante o século XIX reconheceu-se a Inglaterra como fiel da balançado sistema de poderes euromundista,
e durante todo o conflito bipolar, que apenas desarmou em 1989, verificou-se
que a balança de poderes não tinha fiel da balança 102 •
'º' Kaplan, Balanceofpower,Bipolarit)'and othermcthodsof internationa/Systems,N.Y., 1957, p. 23 e sgrs.
Edward V. Gulick, Europc'sClassica/Balanceof PoJ11cr,
N.Y., 1955, passim .
N .Y., 1967, p.161 e sgts. !ris L. Claude, Powerin i11tcr11atio11al
"" Hans J.Morgemhau, Politicsa111011g11atio11s,
N.Y., 1962, Parte 1. Walter James, cit., p. 284 e sgts.
rclatio11s,
116
INTRODUÇÃO
§4g
InstrumentosGeraisdePolíticaInternacional
1 eito internacional
~-V rcisamente a guerra que constitui o ponto central de toda a problemá~ preelacionada com a possibilidade de estabelecer não apenas regras que os
c1ca
r políti.cos d evem ob servar, mas, tam b em,
, e prmctpa
. . 1mente, o esta b ederes
Pº·mento de um mecanismo qualquer que permita tornar essas regras respeiIect
. . .
das e obngatonas.
ta No fim da última grande guerra, o famoso Hans Kelsen, num estudo chaado PeaceThroughLa1v,aparecido em 1943, sintetizava a situação nestes tertll s· "Nasdiscussões políticas contemporâneas predominam dois problemas:
~~~eira, como pode ser satisfatoriamente organizada a vida económica dentro
~acomunidade nacional, o Estado, sem abolir a liberdade pessoal do indivíduo?
Segundo,como pode ser evitada a guerra ou qualquer outro uso da força dentro
da comunidade internacional, quer dizer nas relações entre Estados?" 103
o objectivo procurado com o direito internacional é o de conseguir um teor
de vida que seja a réplica, neste domínio, do teor conseguido na vida interna
dos Estados, onde o recurso à força é uma excepção. Porém, no que respeita à
política, quer se trate da vida interna quer da internacional, não deve esquecer-se que o direito positivo é um instrumento do poder, ainda quando o poder o
aceita como um limite.
Esta circunstância explica que a formação do direito internacional seja muito
recente, datando apenas do começo do século XVII o ponto crítico em que o
interesse nacional aparece como referência fundamental, e em que a concepção imperial da tradição romana definitivamente cede o passo aos Estados
soberanosHH.
O desaparecimento da possibilidade de referência a uma autoridade universal definiu uma situação que exigia o estabelecimento de um conjunto de
regras apoiadas em qualquer coisa que possa ser o equivalente do poder. Um
substitutivo situado ocasionalmente de uma maneira flutuante entre o acordo
dos Estados e as tentativas de reorganização supranacional, tudo com expressão num quase inexprimível sistema de ameaças e vantagens que pode talvez
traduzir-se, para cada Estado, na submissão voluntária.
De facto, mesmo depois da queda do Império Romano, os teólogos preocuparam-se mais com a moral individual do que com os problemas internadow, ln Hans Kelsen, La idcadei dcrcclw11at11ral
y otrosEnsaios,Buenos Aires, 1946 , p. 269 .
'º' Pode ver-se a evolução em Arthur Nussbaum, Historiadeidcreclwi11temacional,Madrid 1947. Julian
Huxley (ed.), Thc h11111a11ist
Jramc,Londres, 1961.
117
--
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nais. Quando se ocupavam de política era sobretudo dos problemas do pode
legítimo que falavam, fazendo incursões ocasionais na problemática da guerr:
justa e da colonização, capítulos onde seguiriam o ensino de S. Tomás. Foi só
0
Estado nacional que mudou a situação.
Como nota René Coste: "Durante os séculos XV e XVI produziram-se, fre.
quentemente de maneira insensível, consideráveis transformações nas estrutu.
ras políticas, económicas e religiosas, assim como na mentalidade do Ocidente
Em vez da Cristandade medieval que ruíra por todos os lados, tinham-se cons~
tituído Estados nacionais ciumentos e orgulhosos da sua independência poli.
tica em relação ao Papado e ao lmpério" 105 •
Os grandes nomes do direito internacional aparecem a partir de então: Grotius (1583-1645), um holandês que servia interesses contrários aos interesses
portugueses, publicou, em 1609, o seu MareLiberum,onde sustenta a liberdade
dos mares; em 1625 publicou o famoso DeJureBelliacPacis,enquanto a Europa
se transformava pela tragédia da Guerra dos Trinta Anos. Com este livro começa
talvez a autonomia de uma nova concepção das relações internacionais, uma
expressão que havia de ser usada apenas por Jeremias Bentham um século e
meio mais tarde 106 •
Até ao positivismo do século XIX, os pensadores do direito internacional
agruparam-se em três orientações fundamentais. Os naturalistas, invocando
Grotius como matriz originária, atribuindo ao direito internacional específicas
características: o direito natural é a fonte das regras a que os Estados se devem
subordinar; a violação dessas regras deve ser considerada um crime; e, finalmente, a "lei da paz" resulta das Sagradas Escrituras, da história antiga e dos
clássicos. Os positivistas, mais influenciados por Richard Zouche (1590-1660),
um professor de Oxford, punham o acento tónico do direito internacional no
costume nascido intergentes,expressão que na sua técnica substitui a expressão
jus gentiumde Grotius. Os ecléticos de sempre fundiam ambas as orientações e,
pouco a pouco, o estudo objectivo das normas tornou-se dominante e a codificação foi a tarefa característica do século XIX 107•
Não interessa, do ponto de vista da política internacional, conhecer as dificuldades e variações doutrinárias do direito internacional como disciplina
jurídica. Importa, sim, recordar de novo que os moralistas católicos, que primeiro se preocuparam de forma sistemática com a disciplina destas relações,
estariam na origem do novo ramo das ciências jurídicas. Francisco de Vitoria
(1480-1546), Francisco Suárez (1548-1617), Covarruvias (1512-1577),Roberto
'"' René Coste, cit., p. 99.
"'" OpprnlzeimInternationalLaiv,Longrnans, 1965, 1• vai., p. 81.
"" Palmer e Perkins, cit., p. 308 e sgts.
118
INTRODUÇÃO
ino (1542-1621)e Erasmo (1469-1536), que foi chamado o primeiro dos
aeiarmeus partem d os ensinamentos
·
·
cato·1·icos para o esta b elecimento
de um
europ '
.
l
. •w internac10na .
direi
·
• · d e serem mora 1·
. . . d ores d o exame
Mas justamente a circunstancia
istas os inicia
, nomo destes problemas talvez ajude a compreender a diferença conceituai
auto direito internaciona
·
l apresenta em re laçao
- ao d'ireito
. interno,
.
d esprovi'd o
0
que está, ao contrario
' · deste, de um instrumento
·
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ou po er e coacçao.
0
com
·
· 1·
·
·
Numa tradição
que cnsta
izou em Kant, e' comum ensinar
que a Mora l visa
disciplina do foro interior dos indivíduos, e que o Direito visa a disciplina
activa da sua conduta exterior. A Moral é um conjunto de regras que percoiteao indivíduo viver em paz consigo mesmo, enquanto o Direito o obriga a
rn
' que, no nosso tempo, e para al'em
iverem paz com os outros. Acontece porem
~o pequeno sector em que o Direito dotado de coacção impera, os sociólogos
começam a dar-se conta de que o critério da Moral tende para transformar esta
num conjunto de regras que permite à pessoa viver em paz consigo mesma, mas
integrado num complexo de regras que permitam obter a paz e a cooperação
dos outros, próximo sempre da perspectiva da Moral, e esporadicamente susceptível de ser imposto pelo força.
Ora o direito internacional, tal como se formou na sociedade ocidental,
desprovido de um poder superior porque destinado a uma sociedade igualitária, não foi mais do que um conjunto de regras que permitiram a cada Estado
obter a paz e a cooperação dos outros.
Esta paz e esta cooperação eram o resultado de um equilíbrio de interesses
e de poderes que por vezes, mas raramente, conseguiam encontrar expressão
em fórmulas mais ou menos institucionalizadas: os tratados organizacionais
como seria a Carta das Nações Unidas (1945); os Tratados de Locarno (1925);
o Pacto de Paris também chamado de Briand-Kellogg (1928); o Acto Geral de
1928 destinado a "servir como tipo de sistema multilateral de conciliação para
todos os diferendos e arbitragem, para os diferendos de natureza legal e de processo arbitral para todas as disputas"; as convenções sobre desarmamento; as
tentativas esporádicas de Directório internacional; a política de equilíbrio; a
instituição de tribunais internacionais.
Esta forma de estabilização de origem europeia, que foi pois mais uma moral
internacional do que um direito internacional, dominou todo o mundo a partir do século XIX, porque depois da Conferência de Berlim (1885) a supremacia
no mundo era europeia ou de origem europeia, e o sistema em funcionamento
era euromundista.
Os Estados, admitidos como sujeitos da vida internacional, tinham sobreque inspirava toda a doutrinação, de crescente
tudo uma vocaçãoconservadora
importância, no sentido de ao menos jurisdicionalizar as questões essenciais.
ª
119
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Depois da última guerra, o número de Estados que não participaram na for,
mação desse equilíbrio mundial é muito maior do que o daqueles que foratn
responsáveis pela antiga Ordem. A vocaçãoinovadorasobreleva, em quantidade
a vocaçãocollServadora.
'
O Direito, nestas circunstâncias, tende para evidenciar a sua frágil natureza
de instrumento do poder, atenuando a vinculação aos valores éticos, e a Política
assume a relevância que só parece menor nas épocas de estabilidade.
A codificação do direito internacional do século XIX, o positivismo que a
inspirou, parece dar alguma razão aos pessimistas que encontram nas codifi,
cações um sinal da morte dos tempos. Os grandes poderes, dispondo de meios
de destruição sem precedente, o que mantém a ameaça para além do fim da
Guerra Fria, desenvolvem uma actividade significativa no sentido de encontrar
uma nova forma de coexistência pacífica, porque a força deve ser usada apenas
esporadicamente para ser útil.
Mas esta busca de equilíbrio novo não lhes tem permitido a eles próprios
respeitar a moral internacional que, com o nome de direito internacional, tinha
exprimido o equilíbrio anterior à última grande guerra 108 • No caso de a evolução da sociedade
internacionalse acentuar no sentido de comunidadeinternacional,
também se tornará dominante a perspectiva da paz interna da comunidade e
não a da paz internacionalentre os Estados, facto a que corresponde já o actua)
inquieto desenvolvimento da doutrinade ingerência,
por motivos humanitários,
da comunidade internacional na vida interna dos Estados: são paradigmáticos
os casos da Bósnia e do Ruanda, em que a ONU forneceu a legitimidade para
a intervenção tímida e de resultados escassos.
2. Directório: um recurso e uma ameaça
Esta situação reflecte, no plano internacional, a perplexidade a que a última
guerra conduziu a definição ideológica das forças em presença. Karl Mannheim, em plena campanha, fez o seguinte diagnóstico da situação interrogante:
"Os problemas fundamentais do nosso tempo podem expressar-se nas seguintes perguntas: existe a possibilidade de uma planificação que se baseie na coordenação e deixe, não obstante, um campo para a liberdade? Pode afastar-se
deliberadamente a nova forma de planificação de toda a interferência que não
seja ditada pela existência de casos em que o ajuste livre não tenha levado à
harmonia, mas antes ao conflito e ao caos? Existe uma forma de planificação
movendo-se na direcção da justiça social de maneira que se limite gradualmente a desproporção entre rendimentos e riqueza dos diversos estratos da
lllH Um estudo académico das modificações do direito intern acional pode ver-se em Intematio11
al Lall'
in a. Cha11ging
World,publicado com a colaboração das Nações Unidas, N.Y., 1963.
120
INTRODUÇÃO
_ 2 Existe uma possibilidade de transformar a nossa democracia neutral
:Naça:democracia militante? Podem transformar-se as nossas atitudes em relan~rnaosjuízos de valor de tal modo que seja possível um acordo democrático
ça~ e determinadas questões básicas, ao mesmo tempo que se atribuam à escoso ~ndividual as questões mais complexas?" 109•
lhatA rnutação d os interesses
·
d esactua 1·
· d as respostas a estas per1zou mmtas
ntas que eram dadas pelas ideologias que convergiram para a formação do
â~reito internacional em crise, e isto porque são novos os problemas e as ressras não podem ser as mesmas.
po É esta desactualização que leva, segundo supomos, a falar no apaziguamento
"deológicoque se manifestaria na transformação dos partidos socialistas, na
~ndiferençados cidadãos perante a vida política, no julgamento do poder pela
sua eficácia, tudo baseado ou explicado pela espectacular expansão das forças
produtivas que encaminhariam para sociedades de abundância sem a necessidade de conquistar novos territórios, sujeitar outros povos, ou subordinar
• 1110
Estados a um esquema co 1ama
.
Falou-se, por isso, no crepúsculo das ideologias querendo afirmar que elas
não correspondem às necessidades do nosso tempo que aspira a uma orientação
roaisracional e técnica 111• Temos entendido que o fenómeno real é o da desactualização das antigas ideologias e a falta de instrumentos para expressão das
ideologias novas já formadas ou em formação. A situação do direito internacional, repudiado pelos Estados que não participaram na sua formação, a natureza
de programação política tão frequentemente atribuída à Carta da ONU, são
sintomas dessa situação, que também encontra manifesta contraprova, pelo
que toca à vida interna dos países, no completo desabar das antigas estruturas
partidárias, no descrédito dos agentes da política, e na busca febril de novos
aparentamentos e de novas solidariedades políticas.
De modo que o panorama da política internacional, que viu desestabilizar
uma moral internacional, embora frágil, sem um poder organizado para a garantir, mas ainda assim chamando-se direito internacional, a marcar uma intenção,
parece às vezes encaminhar-se paradoxalmente para a busca de um poder sem
modelo que possa suprir a inexistência de um normativismo acatado. A estabilidade representada pela existência de um conjunto de regras respeitadas, e
por um poder ou algo (equilíbrio) que progressivamente lhe equivalha, que foi
característica da época do predomínio europeu, não foi reencontrada. Aquilo
que se chama hoje a crise da ONU é apenas um reflexo da crise do mundo, e por
m•Karl Mannheim, DiagnosticodeNuestroTiempo,Buenos Aires, 1944.
110
Galbraith, L'erede /'opulrnce,Paris, 1961, e ColloquesdeRhei11feldrn,
Paris 1960.
111
Gonzalo Fernández de la Mora, E/ Crepúsculode lasIdeologías,Madrid, 1965.
121
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
isso ela do que sofre é de não ser um instrumento reformado para a conjuntura
sem julgar a situação presente em termos de futurologia. O que se pode tenta;
é enumerar as experiências que no passado representaram, para o direito oU
moral internacional, o equivalente aproximativo do poder que garante a coactividade do direito na ordem interna.
Uma das experiências possíveis é a do Directórioou a de um Estadodirector
dentro de uma zona definida por uma fronteira ou geográfica, ou cultural, ou
ideológica. A Santa Aliança, destinada a assegurar a ordem territorial da Europa
do Congresso de Viena de 1815, definiu uma fronteira ideológica baseada na
fraternidade dos soberanos que diziam "considerarem-se como compatriotas, e que se prestarão, em todos os momentos e lugares, assistência e ajuda".
A direcção do mundo dependente da Europa ficava entregue ao concerto de.
um grupo de potências a que se chamou Pentarquia.
Foi esta Pentarquia que evolucionou para o que se chamou o ConcertoEuropeu
que dominou todo o fim do século XIX, que não se baseava verdadeiramente em
tratados, mas que procurava assegurar, sobretudo por inspiração da Inglaterra,
um certo equilíbrio entre as potências. Incapaz de resolver um conflito entre
as grandes potências, podia todavia viabilizar soluções para além do campo
dos interesses destas.
Outra fórmula, ensaiada pelo nacional-socialismo, foi a do Estado director.
No Pacto germano-italiano de 22 de Maio de 1939 foi dito que o povo alemão e
o povo italiano resolveram intervir lado a lado para assegurar o seu espaço vitale
para manter a paz. A ideia de espaço vital implicava a de fronteira, inspirada esta
pela comunidade de sangue e medida pelas necessidades de subsistência do povo,
determinando uma organização hierárquica dos outros povos dentro da área.
A mesma ideia aparece na Aliança Tripartida, assinada com o Japão, que
reservava para este o grande espaço da Ásia. A essência da concepção estava na
divisão do mundo em grandes espaços, cada um sujeito a um Estado director.
Transferia-se para a cena internacional o princípio do Führer.O Acordo germano-checo de 1939 e o Pacto germano-soviético da mesma data, assim como a
concepção japonesa da Área de co-prosperidade da Ásia, obedeceram a esta inspiração que nega o conceito tradicional de sociedade internacional paritária.
O equivalente do poder numa sociedade paritária foi, na experiência do
passado, o equilíbrioque também se chama balançadepoderes,um conceito elaborado no século XVIII e que se tornou dominante durante o século XIX. Hume
dedicou-lhe um estudo, Of theBalanceofPower,que não tem uma dezena de páginas, e Vattel, que evidenciou a relação da balança de poderes com a eficácia da
ordem jurídica internacional, consagrou-lhe páginas escassas 112•
11'
Edward Vose Gulick, Europc'sClassicalBalanceof Powcr,N.Y., 1955.
122
INTRODUÇÃO
Os objectivos da política de equilíbrio eram, principalmente, os seguintes:
varasobrevivência
e independência
dos Estados; salvaguardar
o sistemainternapreser
d
·
·
·
d"
d
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.
d
. l em que o Esta o se mscrev1a; zmpe zr a prepon erancza e qualquermembro
c,on~stemaNo pensamento de Vattel, Centz e Wolff, teóricos, e no pensamento
dost
·
.
d Talleyrand, Mettermch e Castlereagh, homens de Estado, a guerra era um
. e trumento destinado a defender e restaurar a balança de poderes.
ins Este sistema levou-nos à formulação do conceito de zonadeconfluência
depodecompreendendo o conjunto geográfico até onde fazem fronteira os interesres,das potências
· que tiverem
·
. - d a b a1ança.
acor d ad o na d e fi1mçao
5
se Para lá ficam as zonasmarginais,para onde eventualmente qualquer poder
e poderá expandir desde que não afecte o equilíbrio.
5
o sistema do equilíbrio ou balança de poderes tem como elemento fundamental o que se chama o fiel da balança. Um escritor anónimo do século XVIII,
citado por Hoffmann, escreveu: "Aexperiência e a razão habilitam-nos a entender que um poder geralmente persuade os outros a não cometerem erros, e este
poder é chamado, penso que não sem razão, o fiel da balança. Seguramente
uma muito honrosa e louvável função." A Inglaterra desempenhou o papel de
fielda balança durante muito tempo, talvez historicamente até ao momento
em que um seu inimigo, a Alemanha, esteve em condições de cortar a ligação
vital dela com o mundo exterior. Na opinião de Leon D. Epstein, o submarino
e o avião foram os símbolos do desaparecimento dessa função 113•
A experiência de qualquer dos sistemas, as suas fraquezas e contingências,
0 seu oportunismo essencial, contribuíram para o fortalecimento de um ideal
não atingido que é o da segurançacolectiva.
3. Segurança colectiva
O conceito de segurança colectiva, que se formou antes e durante a guerra de
1914-1918, não pretendeu eliminar a soberania dos Estados. Procurava sim
limitar as suas possibilidades de agressão. O ideal da segurança colectiva pode
talvez definir-se por oposição ao sistema das alianças, em grande parte responsabilizado pela guerra de 1914-1918. Na aliança os Estados unem-se contra um eventual agressor, em regra historicamente determinado. A segurança
colectiva busca um sistema global que funciona a favor de todos e, portanto,
um sistema que reage contra qualquer agressão considerada injusta em face
do direito internacional.
113
ln Foreig11
Policyin WorldPolitics,Roy C. Macridis {ed.), Washington, 1958. Adriano Moreira, "Evolução das Relações Leste-Oeste", in Ensaios,Lisboa, 1960. Georges Berlia, Problemesdesecuriti , cit.,
P· 233 e sgts., noticiando a conferência sobre a segurança e cooperação na Europa {CSCE) avaliada no
contexto da paz nuclear. David P. Galleo, Beyo11d
AmericamHegemo11y.
N.Y., 1987, p. 215 e sgts. sobre o
pluralismo estratégico. Pierre Lellouche, L'avenirdelaguerre,Paris, 1985, p. 247.
123
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A Sociedade das Nações foi anunciada num dos célebres 14 Pontos do Pre.
sidente Wilson, e veio a ser a primeira grande expressão do ideal da segurança
colectiva. Prevista a sua criação na agenda da Conferência da Paz reunida elll
Paris em 1919, o seu Pacto veio a constituir a primeira parte dos tratados assinados com as potências vencidas. Em oposição à experiência da Santa Aliança,
não procurava basear-se na unidade cultural ou na identidade de forma poli.
rica dos Estados, mas assentava na afirmação da validade de um direito inter.
nacional que, sendo de origem ocidental, era de vocação mundial. A ideologia
do organismo traduzia-se nestes pontos essenciais:
a) aceitação geral de certas obrigações destinadas a evitar o recurso à guerra;
b)aceitação da validade do direito internacional, cuja eficácia resultaria da
submissão voluntária dos Estados aos seus imperativos;
e)observância estrita dos tratados entre os vários Estados;
d) tendência para a diplomacia pública com repúdio , em princípio , dos tratados secretos, de modo que a justiça e a honra presidissem às relações internacionais.
O ponto principal, que era o da guerra, recebia o seguinte tratamento no
artigo 11 do Pacto da SdN:
"l) É expressamente declarado que toda a guerra ou ameaça de guerra, quer
afecte ou não directamente um membro da Sociedade, interessa à Sociedade
no seu todo, e que esta deve tomar as medidas apropriadas para salvaguardar
a paz das nações.
2) Fica também estabelecido que qualquer membro da Sociedade tem o
direito de chamar a atenção da Assembleia e do Conselho para qualquer facto
susceptível de afectar as relações internacionais e que ameace perturbar a paz
e o bom entendimento entre as nações de que a paz depende."
Várias razões impediriam resultados positivos desta tentativa de segurança
colectiva. Em primeiro lugar, o seu carácter universalista foi definitivamente
comprometido pela ausência dos Estados Unidos da América. Depois , a impossibilidade de usar directamente a força ou de impor aos Estados membros o uso
da força a favor das suas decisões, não lhe permitiria ser mais do que uma medianeira colectiva entre eventuais litigantes. Casos típicos, como o da guerra de
conquista da Etiópia pela Itália (1935), o Anschlussda Áustria e dos sudetas pelos
nazis em 1938, a anexação da Boémia e da Albânia, em 1939, o caso da Manchúria, ocupada pelo Japão (1932), demonstraram a ineficácia do sistema 114 • Veremos como se desenvolveu o conceito depois da Segunda Guerra Mundial.
IH
Hoffmann , Orga11isations
i11tematio11ale
s etpouvoirspolitiquesdesÉtats, Paris, 1954.
124
INTRODUÇÃO
organismos internacionais e supranacionais
4
· ta experiência pode servir de linha divisória de dois caminhos: o da construde organismos
internacionaise o da construção de organismossupranacionais.
çaoa facilitar a exposição poder-se-á adiantar desde já que os primeiros serão
par
d
,
.
. , .
d
l
ueles onde os Esta os mantem a posição pantana, e os segun os aque es
aqde se inscreve um princípio de organização aristocrática ou de integração.
:s primeiros pode também funcionar a regra da maioria, mas não o do voto
rivilegiado; nos segundos, o voto privilegiado tem eventual função impor~antepelo menos em certos domínios sem que isso seja contrário à regra das
E:
01aiorias.
Sobretudo depois da guerra de 1914-1918multiplicaram-se as organizações
internacionais, das quais, exemplificativamente, se podem apontar a Organização para as Comunicações, constituída em 1920, nos termos do artigo 23
do Pacto da SdN para assegurar, entre outras coisas, um tratamento equitativo para o comércio de todos os países; em 1923, por imperativo da mesma
disposição, foi criada a Organização da Saúde; em 1926 foi criado em Paris o
Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual destinado a promover o
desenvolvimento e difusão da ciência, das letras e das artes e, designadamente,
para desenvolver uma opinião pública contrária à guerra.
Mas o grande problema é o de conseguir a supremacia da moral internacional, no sentido apontado, ou do direito internacional como mais correntemente se diz. Uma supremacia que exige um poder ou equivalente de um poder
como já ficou referido, objectivo que aponta para o estabelecimento de uma
autoridade supranacional, ou, como meta final, daquilo que pode chamar-se
um Estadouniversal.
A busca de uma organização supranacional confunde-se, na linhagem dos
chamados Projectistas da Paz, com a própria história da tentativa inacabada de
construir uma Europa politicamente unificada e, por causa do passado domínio mundial da Europa, com a própria história do projecto utópico de estabelecer um Estado universal.
Os império s romano, árabe, carolíngeo, bizantino, foram experiências de
autoridade centralizada e de uma organização hierarquizada que não corresponde ao mod elo da organização supranacional. Este é um projecto determinado pela existê ncia de Estados soberanos . Ao mesmo tempo que os juristas de
Bolonha e Toulouse vão construindo a doutrina do nacionalismo, os ideais da
unificação encontram um precursor em Pierre Dubois, conselheiro de Filipe,
0 Belo, e que, pelos começos do século XIV escreveu o De recuperatione
TerraeSanctae,subintitulado Tratadode PolíticaGeral.Adversário da supremacia
do Papa, e advogado da confiscação dos bens das igrejas e dos conventos,
125
---
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
projecta os Estados Unidos da Europa. Na querela da supremacia entre 0
Imperador e o Papa, aponta um terceiro caminho, o de um Concílio laico
das nações europeias, representativo da República Cristã, e dispondo de ulll
poder arbitral.
Mas parece ter sido a planetização do fenómeno político, que tem co1110
marcos a tomada de Constantinopla por Maomé II em 1453, e a chegada
de Vasco da Gama à Índia em 1498, que determinou o florescimento dos
projectos universalistas, projectos que encontram acabado o fenómeno do
Ocidente dos Estados. Com efeito, entretanto, as raízes da Reforma estão
lançadas por Lutero (1483-1516), Calvino (1509-1564), Wycliffe (1330-1384),
Jan Hus (1371-1415),Savonarola (1452-1498), os exércitos permanentes são
estabelecidos; as Igrejas nacionais despontam; os impostos regulares são
decretados.
Em 1464, Jorge de Podebrady, rei da Boémia, apresenta a proposta de "u 111a
aliança defensiva da Cristandade contra os turcos". Mas tratava-se de mais do
que uma aliança: os contratantes deviam-se ajuda mútua; a arbitragem resolveria os conflitos entre eles; os desobedientes seriam passíveis de sanções colectivas; cada Nação teria um voto; a sede da liga seria móvel, por períodos de cinco
anos. Jorge de Podebrady não conseguiu todavia a projectada convocação de
uma Dieta ou Assembleia dos reis e príncipes cristãos, com que se propunha
escapar simultaneamente à autoridade do Papa e do Imperador pelo terceiro
caminho que fora apontado por Dubois.
Depois, em 1623, Emeric Crucé publicou o seu Le nouveauCynéeou Discours
desOccasionset Moyensd'établirune Paix Généraleet la Libertédu Commercepour
tout /e Monde.Pouco se sabe do seu autor, sacerdote e professor, algures, de
Matemática. Pacifista convicto, sustenta que a guerra é desumana e não aproveita a ninguém nem dá honra que valha. O trabalho e o comércio devem ser
a fonte de enriquecimento do Estado. Dizia, com o mais profundo universalismo: "Que prazer seria ver os homens circular de um lado para o outro livremente e comunicar entre si sem nenhum preconceito de país, de cerimonial
e de outras coisas parecidas, como se a Terra fosse, como é verdadeiramente,
uma cidade comum a todos."
Dirige-se a Luís XIII para que promova, com todos os soberanos cristãos e da
China, Japão, Pérsia, Etiópia, etc., uma organização destinada a preservar a paz
no mundo. Dizia: "Seria necessário escolher uma cidade onde todos os soberanos tivessem perpetuamente os seus embaixadores, a fim de que as questões que
pudessem surgir fossem solucionadas pelo julgamento de toda a Assembleia.
De modo que se algum não seguisse a decisão de tão notável reunião, incorreria na desgraça de todos os príncipes, que encontrariam algum meio de o fazer
126
INTRODUÇÃO
à razão." Reserva um lugar especial à Santa Sé por razões espirituais e de
1
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. ão mas sem lh e recon h ecer qua 1quer proemmencta
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de Henrique IV, realmente concebido, ao que parece, por Sully, já em
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- pu'blº1cas, proiecto
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de avançada e a f:asta d o d as fiunçoes
apresenta d o a' aten1 de Richelieu. Convidando os governos a unirem-se, Sully divide a Europa
~: quinzeEs~ad~s~e igual_p~der, divisão _evide~:eme~te arbitr!ria . Di;i_dia
Republzca,na qual so adrn1t1a tres confissoes: catoltca,
•ma Crist1amss1ma
asst
lvinista e luterana. Os turcos, por exemplo, deveriam converter-se a uma
~:las ou abandonar a Europa, pela força se necessário. Um órgão de quarenta
embros chamado Cristianíssimo Conselho teria o poder de arbitrar todas
: questões. Tal Conselho seria renovado cada três anos e cada ano mudaria
de sede. Um exército europeu, cosmopolita, estaria à sua disposição, com cem
mil infantes, vinte e cinco mil cavaleiros e cento e vinte canhões. Entretanto,
estando próxima a Paz de Westefália, era para o sistema de equilíbrio que realmente se caminhava.
Em 1693, William Penn, autor da constituição da Pensilvânia, que viria a
servir de modelo à constituição dos Estados Unidos da América, publica o seu
Ensaioparaa Pazpresenteefutura da Europa,preparando o estabelecimento de
um Parlamento sob a inspiração desta divisa: Beatipacifici.Cedantarma togae.
A importância de cada Estado tinha expressão no número dos seus delegados.
De todos os Projectistas é o único que se preocupa com Portugal, a quem atribui
três votos, enquanto o Estado mais poderoso, a Alemanha, tinha doze. Admite
a Turquia e a Rússia na Europa. A presidência seria rotativa. As decisões deviam
ser tomadas por maioria de três quartos. Os debates realizar-se-iam em latim
ou francês. Requer um exército privativo e estabelece que as despesas sejam
pagas pelos vencidos.
Outro grande espírito, Leibniz, concebeu a unidade supranacional da
Europa e, também, o governo do mundo pela Europa. Em 1632, procura em
vão Luís XIV para lhe submeter as suas ideias. Em 1677 publica Dejure suprematusaclegationis
prÍllcipumGermaniae,em que sugere um colégio universal, religioso e político, sob a autoridade do Papa e do Imperador.
A Europa deve, como a Igreja, ter um chefe, imperador. Mas este é mais um
árbitro do que um soberano medieval ressuscitado; "NonMonarchiamuniversalem...sedDirectionemgeneralem
seuarbitriumrerumesse."Evangelizadora do mundo,
a cada país tomado em consideração se assinava uma missão: a França recebia
a África; a Suécia e a Polónia recebiam a Sibéria e a Taurídia; a Inglaterra e a
Dinamarca recebiam a América do Norte; a Espanha recebia a América do Sul;
a Holanda recebia as Índias Orientais. Morreu convencido do rigor do seu diagnóstico, mas também pessimista quanto à viabilidade da terapêutica proposta.
_ª
127
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Dirigindo-se a Saint-Pierre, dir-lhe-á que há certas fatalidades que impedeni
os homens de serem felizes, mas insiste em que o mal da Europa vem da falta
de uma autoridade efectiva.
O abade de Saint-Pierre, a quem se dirigiam estes amargos comentários
tendo estado presente no Congresso de Utrecht, publicou em 1713um project~
para estabelecer a paz perpétua na Europa, reunido num Epitoma de 1728
dedicando-o a Luís XIV e pondo-o sob a inspiração de Henrique IV.
'
Escrevia o seguinte: "Penso que, se as dezoito soberanias da Europa, para
conservar-se na forma da governação presente, para evitar as guerras entre
elas e para procurar-se todas as vantagens de um comércio perpétuo de Nação
a Nação, quiserem ratificar um tratado de união e um congresso perpétuo
mais ou menos sob o modelo das sete soberanias da Holanda, ou das três
soberanias dos suíços ou das soberanias da Alemanha, penso, digo eu, que as
mais débeis teriam a segurança suficiente de que o grande poderio das mais
fortes não poderia causar-lhes mal, de que cada uma guardaria longamente
as promessas recíprocas, de que o comércio nunca seria interrompido e de
que as questões futuras se resolveriam sem guerra mediante o caminho de
arbitragem".
Propunha por isso a constituição de um senado ou assembleia, com poderes
legislativos e judiciais. Os Estados tinham voto em função da sua importância,
mas os pequenos Estados podiam agrupar-se para ter voto igual. As decisões
seriam tomadas por maioria, salvo em questões importantes onde se exigia a
unanimidade. Limita os exércitos nacionais. No caso de guerra, a assembleia
designará um generalíssimo para chefiar um exército de composição internacional de cerca de quinhentos mil homens, correspondendo a vinte e quatro
mil por Estado membro. Determina a supremacia do direito internacional.
Condena definitivamente qualquer revisionismo territorial.
Estas ideias aparecem dispersas nos numerosos volumes da sua obra e foi
Jean-Jacques Rousseau que, em quarenta páginas, resumiu o projecto, que todavia não considerou viável nem realista. Voltaire troçou do abade, num trabalho
chamado CartadoImperador
daChina,(Rescritdel'Empereurdela Chine)a propósito
do projecto da paz perpétua. No Prefácio à edição de 1713 estava claramente
expresso o objectivo do projecto: "o meu desejo é propor os meios de tornar a
paz perpétua entre todos os soberanos cristãos". O Tratado de Westefália, de
1648, traçara uma nova carta política da Europa, e o princípio da estabilidade
de fronteiras implicava impedir o regresso à guerra como instrumento de polí·
tica internacional. Era a paz pela supremacia do direito.
Mas como o verdadeiro problema é o da autoridade que dispensa a força,
não desejava que a organização tomasse a forma de uma monarquia universal,
mas sim a de um congresso a que todos poderiam juntar-se e de que livremente
128
INTRODUÇÃO
d •am sair. Não é necessário entender aqui por congresso mais do que uma
Pº ;r:1ede união voluntária, e a todo o tempo revogável, de diversos Estados.
esp_ectmenteassim poderia realizar-se a ideia de um direito público das gentes
vn1ca
d
.
, .
esolve as questões entre os povos e maneira c1v1ca,como por um pro. bar
, b ara, isto
.
, pe 1a guerra.
que r e não de uma manetra
e,
cesso,
·
s·
d
1
b
' 1o Augustm. Th'1erry,
Em1814,Samt- 1mon, eco a oraçaocomoseu dº1sc1pu
da Sociedade
Europeiaou da necessiblica Oensaio chamado Da Reorganização
pude e dos meios de congregar os povos da Europa num só corpo político, conda ando cada um a sua independência nacional 115 •
serv mais in fluente d os proiectos,
.
'dh' a OJeserve d e re fi'.
que am
erenc1a aos pen0
adores neste domínio, foi o ProjectoFilosóficoda Paz Perpétuapublicado por
~ant, aparecido em 1796 . Não via para os Estados outra solução que não fosse:
«renunciar, como os indivíduos, à liberdade anárquica dos selvagens", instituindo um congresso, pelo qual entendia "uma espécie de união voluntária, e
a rodo Otempo revogável", e não "como o dos Estados Unidos da América, uma
união fundada numa constituição pública e, por conseguinte, indissolúvel".
Todos estes pensadores, inspirados pelo conceito da unidade do género
humano, são europeus, marcados por uma concepção europeia do mundo e
da vida e apenas preocupados com a paz da Europa. A experiência portuguesa ,
por exemplo, não é citada. Os territórios para além da Europa não inspiravam,
nem sequer entre nós, o estudo sistemático das suas concepções do mundo e
da vida. Nem mesmo na tradição portuguesa se encontra abertura para lidar
científica e sistematicamente com esses problemas.
Os referidos pensadores tinham também contra si uma outra tradição europeia,muito viva na época em que aparecem estes Projectistas, e que é a tradição
maquiavélica. Esta tradição maquiavélica não se ocupava da paz perpétua nem
da resolução arbitral dos conflitos, mas sim do interesse nacional em expansão. Frederico II da Prússia, comentando o projecto de Saint-Pierre em carta
dirigida a Voltaire, dizia: "O abade de Saint-Pierre, que me distingue com a sua
correspondência, enviou-me uma bela obra sobre a maneira de restabelecer a
paz na Europa. A coisa pode fazer-se , e não falta para isso mais do que obter o
consentiment o da Europa e outras pequenas bagatelas 116 " .
Voltaire chamou-lhe "Saint-Pierre d'Utopie", mas Hussard chamá -lo-ia,
perante a crise europeia, "fonctionaire de l'Humanité".
115
Bernard Voyenne, Historiadela ideaeuropea,Barcelona, s.d. Adriano Moreira, "Sobre o Estado Universal",in EstudosPolíticose Sociais,1965, p. 997; Adriano Moreira, Politicalntcmacio11al,
Porto, 1970,
p. 92 reproduzida neste ponto.
"•Noapen. d"ice (p. 561) da edição AbbedeSaint-Piem, Projetpourrmdrelapaixperpét11e/lee11
Europe,Paris,
1981, estão publicados o coment:írio de Rousseau, o resumo do projecco de Sully, a carta de Leibniz .
129
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Presentemente, de novo a ideia do Estado universal renasce e encontra 08
seus Projectistas, porque o fenómeno político definitivamente se tornou pia.
netário e os Estados enfrentam problemas e interesses que costumam estar na
base da definição de um bem comum.
Um desses interesses é a explosão demográfica que inquieta as maiores auto.
ridades espirituais do mundo, que inquieta os poderes políticos, que encaminha
estes para a solidariedade, porque nenhum se atreve a agir isoladamente.
Relacionado com este problema da explosão demográfica está o problellla
da fome, e a oposição correlativa entre Estados ricos e pobres.
Por outro lado, toma-se consciência de que a era gâmica está chegando ao
fim e de que começa a era interplanetária. O objectivo de chegar à Lua foi talvez o símbolo do começo desta nova era, e o mundo começou a perguntar-se
se não seria mais útil que, em vez de ali chegar um russo ou um americano, ali
chegasse simplesmente um homem. Assim foi geralmente entendido, e acatado
pela ONU, quando Neil Armstrong, às 3 horas e 56 minutos de 21 de Julho de
1969, praticou o gesto histórico de pisar a Lua.
Finalmente, tudo isto se passa numa situação em que a paz é indivisível porque a tradição maquiavélica nos conduziu, por meio século, a um equilíbrio de
impotência dos maiores países do mundo. No importante discurso que dirigiu
à Nação, ao abandonar o seu cargo e a carreira política, o Presidente Eisenhower disse: "O Estado que eu chefiei é hoje um complexo militar e industrial que
pode levar à destruição da Humanidade porque o poder que detém é suficiente
para destruir a Humanidade". Daí os esforços que desenvolveu para definir uma
qualquer forma de coexistência pacífica.
O fim da Guerra Fria, e da vigência do modelo bipolar EUA-URSS, em 1989,
multiplicou as soberanias com acesso ao armamento nuclear. Por isso, depois
da queda do Muro, e da guerra do Iraque em 1991, começou a falar-se da revo-
luçãoestratégica.
Nesta linha, Neville Brown produziu o primeiro ensaio globalizante da evolução que tornou obsoleta toda a doutrina formulada a respeito do bipolarismo.
Não é de estranhar que mais uma vez faça apelo ao aprofundamento do método
interdisciplinar, porque este, durante o não longo período em que foi reconhecida a autonomia das relações internacionais, não conseguiu formular uma
metodologia transdisciplinar. Reconhecendo a globalização dos problemas
internacionais, dá precedência à segurança sobre o antigo dominante conceito
de defesa, considerado o atraso tecnológico do mundo em desenvolvimento, a
degradação ecológica, a pressão demográfica do Sul, a transformação de alguns
bens essenciais, como a água, em bens raros, susceptíveis de causar a guerra.
Inscreve-se assim na linha de pensamento em que se encontram Thomas Malthus, Karl Marx e Me Luhan. As respostas são mais negativas do que prornis·
130
INTRODUÇÃO
mas rendem a comprovar que a própria arte da guerra está em revisão,
das relações entre teatro de operações,
vi_s são regional e global e controlo de armamentos 117•
d1ssua
s?r;:~
nova e difícil conceptualização
§ 5º
Perspectivas
sobreasRelaçõesInternacionais
1
perspectiva anglo-saxónica: utopismo e realismo
~ identificação d_aspersp~cti~as que dominam as concepções co~t~aditórias
bre as relações mternac10na1s procura, como sempre neste domm10 da cons~ptualização operacional, um arrumo que obedece ao artificialismo metodo~ógicoda simplificação. O que significa que as necessidades de análise podem
vira aconselhar a decomposição de uma perspectiva em várias, a reanimar perspectivas incidentalmente consideradas não relevantes, a modificar completamente o critério de classificação e as componentes da grelha estabelecida.
Aidentificação que aqui sugerimos resulta do predomínio dos poderes políticos, que vai variando no tempo e no espaço, mas que tem, entre as suas características, o avultar da perspectiva pela qual o poder se oriente. Por outro lado,
quando as perspectivas são assumidas pela análise académica, perdem a ligação
aos poderes em que se filiam para serem definidas em função dos objectivos
e métodos disciplinares.
utopista,
Deste modo, é frequente filiar na cultura anglo-saxónica a corrente
embora se encontrem utopistas em todas as áreas culturais. Trata-se sempre
de construir um modeloideal,no sentido de que não tem necessária correspondência na realidade, e aferir a validade e funcionamento desta em função do
modelo proposto. Na elaboração deste modelo influem decisivamente as correntes ideológicas que se congregam no pensamento do autor, e, por outro lado,
a experiência vivida, ao seu alcance.
A designação da corrente tem origem no livro de Thomas Morus (1478-1535),chanceler de Henrique VIII, e que este condenou à morte por se recusar
a prestar-lhe juramento de fidelidade quando o reino abandonou o catolicismo.
117
Gorbatchov, Rapportpolitiquedu ComitéCentraldu PCUS auXXV//' Congresd11Parti, Moscovo, 1986.
HenryKissinger, Lesannéesorageuses,
Paris, 1982. Philippe Bretton e Jean-Pierre Chaudet, La coéxistence
pacifique,1971. Vitali Korionov, Lapolíticade CoexistenciaPacíficacnacción,Moscovo, 1975. Marques dos
Santos, Dacoexistên
ciapacífica,Lisboa, 1986 . Adriano Moreira, Relaçõeswtre asgrandespotências,Lisboa,
l989. Neville Brown, The stategicrevolutionthoughtfor thc ttvcnty-firstcrntury,Londres, 1992, p. 200 e
sgrs. Thoma~ Robert Malthus (1765-1834), Essay011 Population,Londr es, (1798-1803). Ernest Mandei,
Traitéd'ÉconomieMar.riste,II vol., Paris, 1962, p. 401. Georges Berlia, Prob/emesdesécuritéi11ternatio11a/e
ti dtdifense,Paris, Les cours de droit (pol.), 1975.
131
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
É hoje Santo da Igreja Católica. O livro chama-se justamente Utopia(1516),0
que significa empartealguma(noplace).Descreve uma ilha onde a vida é pacífica
sem propriedade privada nem violência, e instituições políticas mais gestor~
de coisas do que de homens. Desde então, a expressão designa uma corrente
literária que ignora os factos desagradáveis e resistências do real, propondo U1tt
modelo de vida política sem acidentes. Os seus autores, como Morus, fazellt
recomendações sem cuidar de saber se a realidade pode adaptar-se ao modelo
Outros, como Huxley (BraveNew World)explicam como deviam ser as condiçõe~
reais para que um modelo ideal pudesse ter vigência.
Finalmente, o modelo ideal destina-se a justificar acções de modificação da
realidade. A Repúblicade Platão, o modelo socialista utópico de Fourier (1772.
ou o cooperativismo de Owen (1771.
-1837) com a sua proposta dos phalanstérios,
-1858), inscrevem-se nessa corrente, sendo os últimos vivamente criticados por
Marx e Engels justamente com base no facto de se desviarem da realidade social.
Alguns sociólogos, como Sarei, consideraram as construções utópicas como
desempenhando a função de empurrar as forças sociais e políticas para a acção.
Todavia, a corrente utopista, em que são habitualmente inscritos os chamados
ProjectistasdaPazinternacional,alguns antes citados, é criticada não apenas pela
corrente do marxismo científico, mas também em nome do realismopolíticoe do
conservadorismo
que sustenta a defesa das estruturas existentes.
Aquilo que porém caracteriza a perspectiva anglo-saxónica é o realismoque
coloca a noção de poder(power)no centro da vida internacional e da conceptualização desta pela análise teórica. Este poder será entendido como a capacidade
de obrigar(Max Weber) e, portanto, na vida internacional, como a capacidade
de sustentar a integridade dos interesses próprios contra as agressões, e de os
expandir eventualmente a expensas de interesses apoiados em poderes menores. A noção de interesseé assim o conceito central, e a relação poder-interesse
traduz-se no fenómeno principal das relações internacionais.
Um dos autores mais significativos desta orientação realistaé Hans J.Morgenthau, cujo livro PoliticsAmong Nations (1948) ainda é hoje uma referência
indispensável. Afastando preliminarmente o utopismo, sustenta de entrada
que "a teoriatem deserjulgadanão em virtudede um princípioou conceitoabstracto
preconcebidoe desvinculadoda realidade,mas sim pela suafinalidade; ordenare dar
sentidoa uma massadefenómenosquesemelacontinuariamdesconexos
e ininteligíveis.
Deveresistira uma duplaprova,empíricae lógica.Osfactossubmetem-se,tal comosão,
à interpretaçãoque lhesdeu a teoria,e as conclusões
a que chegaa teoriaderivam,por
comosfactose
necessidade
lógica,dassuaspremissas?Em suma, a teoriaé convergente
consigomesma?"118•
1'"
Morgenthau, PoliticsAmo11g
Natio11s,
N .Y., 1948.
132
INTRODUÇÃO
facto, não se pode dizer que a perspectiva realistarecuse sempre a exisDe
. .
.
. de valorese d e um normatzvzsmo
superiores,
em b ora a1gumas correntes
rêncta Mas na perspectiva dominante de Morgenthau do que se trata é de
0 faÇ
pelo exame da realidade internacional, que não é possível conseguir
1u '
cone
· rac10na
·
1e mora 1f:azen d o-a d erivar
. d e prmc1p10s
. ' .
.
ntar uma or d em po l'1t1ca
1
trllPª ctos e un iversalmente válidos, dando por certas a bondade e maleabiliabstra
' · recon h ecen d o que o mun d o rea 1e' o
d da nature za humana; ao contrario,
da ~tado da acção de forças inerentes à natureza humana, é com estas, e não
.
resura elas, que e, necessario
' · agir.
· A rea l'd
1 ad e e' o conif7'
ztode mteresses,
pe 1o que
contrincípios morais
. apenas a1cançaram a1guma v1genc1a
. • . pe 1a mstauraçao,
.
- semos recária, de um equilíbrio, conseguido por um sistema de contrapoderes e
pr p-es A experienc1a
· • · h'1storica,
' · por um 1ad o, e a certeza d e que apenas se po d e
tens0 ·
alizar O mal menor e nunca o bem absoluto, orientam o realismo da escola.
;aqui derivam alguns princípios, que são os seguintes:
1)A racionalidade
é um pressuposto das decisões políticas pelo que, em face
de um quadro averiguado de circunstâncias, a questão d~ve ser a de definir as
alternativas racionais que se oferecem à decisão a tomar. E duvidoso o que deve
entender-se por racionalidade, mas o que parece mais evidente é que se lhe dá
sentido de razoabilidade,
isto é, a decisão que realiza mais provavelmente o
0
objectivocom o menor sacrifício de meios e interesses.
2) Por isso o conceito de interesse,e a identificação deste em cada processo
examinado, é fundamental. Trata-se do elemento de ligação objectiva entre a
razão que procura compreender e os factos com que se defrontará a decisão.
No sentido de Morgenthau parece não haver distinção entre interessee poder,
0 que talvez leve a considerar o interess e, nas relações internacionais, como o
interesse
armado das capacidade s necessári as para o realizar, abandonando os
interesses que ficam além das capacidad es di sponíveis. Teria a consequência
metodológica de negligenciar a consideração das motivaçõessubjectivas e das
ª7;
f
ideologias.
Deste modo, e independentemente da variação temporal destas motivações
e ideologias, seria possível estabelecer um continuumracional para a política,
designadamente, americana, inglesa ou russa. A noção de interessenacionalpermanentetorna-se assim proeminente nesta orientação.
Este pólo dinamizador das relações internacionais evita que se estabeleça
qualquer equação entre as políticas sustentadas pelos responsáveis de um aparelho e as simpati as filosóficas ou ideológicas desses mesmos responsáveis. Estas
são, diz, invocadas para tornar algumas vezes eficazo seu discurso político, mas
trata-se apenas de cenografia.
. Todavia,como é inegável que tais motivações e adesões ideológicas influenciam a tomada de decisões políticas, o realismoaparece com uma forte faceta
133
--
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
apologética e normativa, uma fundada prevenção metodológica contra o enten.
dimento da política internacional por referência a propostas utópicas, mas está
longe de uma teoria científica como pretenderia.
Acontece ainda que a identificação do interessecom o podercondena à Per.
pétua insatisfação os chamados povos deserdados da Terra, como são as nacj0 _
nalidades submetidas a um poder imperial, e sabemos que a história desmente
este facto, assim como a realidade de cada época não pode ser apreendida se111
considerar as teiasque vão tecendo os deserdados do poder até que, muito fre.
quentemente, desfuncionalizam os sistemasdos poderosos e ganham peso específico na balança internacional de poderes. Todo o processo descolonizador
moderno serve de exemplo e demonstração.
permanente,mas isto
3) O núcleo central fica melhor definido como o interesse
apenas significa duradoiro, porque cada unidade política mostra que variou
no tempo, de interesse fundamental. Todavia é válido para a comunidade inter~
nacional, como para a interna, que o interesse é a essência da política, e que,
como já afirmava Tucídides, "a identidadede interessesé o maissegurodosvínculos
entreEstadosou indivíduos".
Por seu lado, Max Weber escrevia que (materiais e ideais), não ideias, dominam directamente as acções dos homens. Mas as imagensdo mundocriadas por
esta ideia têm servido em muitos casos de indicadores para determinar as vias
em que o dinamismo do interesse mantinha as acções em movimento".
Mas o interessepermanenteou, melhor, interesseduradoiro,muda. O interesse
duradoiro das potências europeias da frente marítima (Inglaterra, França, Alemanha, Espanha, Portugal), traduzido em construir e manter um impériocolo11ial,
desapareceu depois da guerra mundial de 1939-1945. Tal interesse anda a
ser substituído pelas solidariedades europeiase atlânticas.
Também o mesmo relativismo deve ser adaptado para lidar com o conceito
de poder. Entendido este como a capacidade de estabelecer e manter o controlo
do homem sobre o homem, ou de uma entidade política sobre outra, analisa-se
num conjunto de elementos, desde a violência física aos meios de constrangimento económico e financeiro, aos métodos da engenharia social que induzem
a adesão e obediência da sociedade civil.
De acordo com as épocas e lugares, o poder varia de composição: o poder
militar é o decisivo em certas épocas e circunstâncias, o poder científico, tecnológico, financeiro, económico são predominantes noutras.
Por outro lado, o conceito nominativo mais específico de interesse, na nossa
em vista da regra que no Ocidente
época, é ainda o chamado interesse11acio11al
proclama que a Nação deve coincidir com o Estado. Embora esta concordância
seja uma excepção no mundo, a semântica trata o caso como uma regra geral.
é um pro·
Todavia, ainda assim temos de reconhecer que a conexão Estado-Nação
134
INTRODUÇÃO
d história, e que pode desaparecer ou passar para segundo plano, dando
d~to ªa outras relações, como a do interesse-grande espaço: é o caso das alianorig;lll adoiras (NATO-Pacto de Varsóvia), e dos grandes espaços económicos
ças /r a renderem para políticos - União (Política) Europeia. A perspectiva
(CE_\ aceita esta evolução e prospectiva. Mas encara a evoluçãoreformistacom
reahs\ sempre que é equacionada em função de um ideal abstracto: pretende
reserv re em conta a v1scos1
·
"dad e e res1stenc1a
· • · que d envam
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d o que ch ama, com
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.
opriedade mas s1gm 1cat1vamente, as eis a rea 1 a e po l'1t1ca.
tlllP:)0 realismo político entende que a acção do Estado está submetida a uma
l deresponsabilidade
e não a uma moralde convicção.
Os agentes da política
mora
. . . etpereatmundus.O o bº1ect1vo
.
. rnacional não po d em a d enr. a, regra fizat;ustztza
;t~nteresse nacionalobriga a sacrificar a moral individual da responsabilidade
0
favor da acção que realiza, defende ou desenvolve aquele interesse. O gover::nte pacifista terá de recorrer à guerra. Poderíamos talvez dizer que entende
ue a ética de convicção julga da conformidade das acções com a lei moral, a
itica da responsabilidade (política) julga a acção pelas suas consequências, pelo
que a prudênciaé, nessa concepção, a maior das virtudes. Lincoln disse a tal
propósito: "Faço o melhor que sei e o melhor que posso, e assim me proponho
seguir até ao fim. Se o resultado me dá razão, o que se tiver dito contra mim
não terá significado, se o resultado não me der razão, dez anjos que jurassem
que a razão me pertencia não teriam significado."
S) A posição relativista da perspectiva realista leva eventualmente a confun dir a identi ficaç ão do interesse nacional com o bem comum da Humanidade, e
a ética nacional com a ética universal. Existe um abismo entre a crença de que
todas as nações estão submetidas ao julgamento de Deus, e a convicção de que
Deus está semp re do nosso lado. O conceito que define a cena internacional
como um encon tro de interesses por vezes contraditórios evita esses ideologismos, e int roduz a moderação
como critério de busca de equilíbrios pacíficos.
6) A especifi cidade da política, e, dentro desta, das relações internacionais,
define uma teo ria de perguntas autónomas, conforme as disciplinas . Assim: o
economista per gunta em que medida uma acção afecta o bem-estar da sociedade; o jurista pergunta se tal acção está de acordo com o direito; o moralista,
se está de acord o com a moral de convicção; o politólogo realista pergunta qual
o reflexo dessa acção no poder nacional. É por isso que o internacionalista realista rejeita a pe rspectiva legalista-moralista da política internacional 119 •
O ataque da URSS à Finlândia, em 1939, é apresentado como exemplo. Juridicamente, a resposta era que violava o Pacto da Sociedade das Nações; politi119
Morgenchau,"Another Great Debate: the national interest ofthe United States", in The American
Po/iticalScic11cc
Rcvic1v,XLVI, 1952, p. 979 .
135
--
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
camente afectava o equilíbrio de interesses que respeitava, designadamente
à França e à Inglaterra. Estas não intervieram na guerra a favor da Finlândi~
porque necessitariam de atravessar o território da Suécia, e esta recusou corn
o fundamento jurídico da soberania. A resposta jurídica foi considerada sufi.
ciente para, com oportunismo, não assumir responsabilidades políticas.
Nesta orientação podem situar-se outros autores significativos, corn0
Schwartzenberg e, com alguma originalidade, McDougall 120 • Este último avança
no sentido de ultrapassar as definições formais dos intervenientes no processo
internacional, visto que o poder de decidir não reside sempre, e de facto, nos
órgãos institucionalmente apontados. Coloca como princípio que as relações
internacionais não repousam em regrasde direitomas sim em decisões.
Estas são
tomadas em função dos objectivos políticos pelos decisionistas
que não são necessariamente os suportes legais dos órgãos de soberania. Numa época em que tern
ganho importância o fenómeno da clandestinidade
doEstado,este ponto de vista
deve ser retido dentro da perspectiva realista.
A perspectiva realista assumiu relevo sobretudo no clima de Guerra Fria
em que se viveu no último meio século. Uma corrente do pensamento europeu
tornou-se realista moderada e de grande projecção, a que foi representada por
Raymond Aron. O seu livro Paz e GuerraentreasNações,de que existe tradução
portuguesa, influenciou uma geração inteira de politólogos 121•
Mas é num estudo publicado a propósito da crise do regime americano
causada pelo conflito entre o Presidente Truman e o General MacArthur em
decorrência da guerra da Coreia, que Aron fez uma síntese da sua posição 122•
Considera Morgenthau e G. F. Kennan como os representantes mais destacados da chamadaRealpolitik,para a qual a rivalidade dos Estados é um dado permanente, o poder é inseparável dela, acontecendo que algumas vezes o poder
deixa de ser um meio para ser um fim em si mesmo . A defesa dos interesses
nacionais é a essência da política externa.
Deste modo, para um realista como Morgenthau, só existem duas soluções
para um conflito de interesses: a negociação
ou a guerra.Uma das sugestões de
Aron, tendo em vista a Guerra Fria entre os blocos ocidental e soviético, é que
existe uma solução de compromisso
semacordonegociado.
Assim, designadamente,
explicava que a divisão da Alemanha em dois Estados tinha o acordo não negociado dos ocidentais, que não o podiam confessar.
120
Schwarczenberg, Po111er
Politics,a study of I11tematio11a/
Society,Londres, 1964. McDougall, Laiva11d
Minimum WorldPublicOrder,Yale, 1961.
121
R. Aron, Paze Guerrawtre asNações,Brasília, 1962.
122
R. Aron, "Une philosophie de la politique extérieur", in RevueFrançaisedeSciencePolitique,III, 1953,
pp. 69-91.
136
INTRODUÇÃO
ncorda em que se uma grande potência está decidida a obter cer· d a comum'd ad e mternacional,
·
Mas co
fícios, mesmo contra as normas e 1eis
a
s
bene
.
d'
,
e
d'
co .
neira de a impe ir e empregar a 1orça ou estar 1sposto cre d'1velmente
, nicama
,
,
. d .
. /
naczona
, pergunu
á-la.Considera porem eqmvoco o conceito e interesse
a ei11Pr?esignadamente,qual é o interesse nacional da Jugoslávia, da Finlândia
candºairmânia. Considera ultrapassado o ponto de vista generalizado no século
ou da uito difundido pelos pensadores alemães, de que o interesse nacional
:xteriormente sobre as divergências internas dos partidos.
prim a a guerra é certamente o facto autonomizador das relações internaAgor,
.
. . mas O conflito central e determinante desapegou-se dos chamados
c1ona1s,
. ob.
. comunsd e gran d es espaços ou
es nacionais, para ter em vista
')ect1vos
interesS
.
.
_
. ões, onde um poder tende para ser dommante e d1rector. Nao pode falarco!igaç
R, . .
. l
R, .
., .
m interesse permanente para a uss1a 1mpena e para a uss1a sov1et1ca,
-see
·
' . do
emanha do Kaiser
e a Aleman h a d e H.it ler. Isso sena. o contrario
para a Al
lismo.Mas, no século actual, a conjugação de poderes tem de fazer-se para
, . deb'/'
.
rea irumprojectocomum: "nosecu
, /oXX,umagrandepotenc1a
11ta-sesere11unciar
serv
d
d ..
. . ld
,
ervirumaideia."Talvez eva a mmr-se que a prmc1pa emonstração e que o
0
~amadointeresse
permanenteé afinal variável no tempo, e que a diferença está no
~empo
demorado
e no tempoacelerado.
Os interesses que se inscrevem no primeiro
é que parecem permanentes, mas todos variam de estrutura e de definição.
XI~,:
z.Perspectiva marxista
- perspectiva russa
Apenasse fala numa perspectiva marxista das relações internacionais porque
os regimes políticos que se reclamam dessa matriz não podem deixar de ter
umapolítica para as relações internacionais, e a sua conduta não vai deixar de
se reconduzir a pontos de vista com a probabilidade de serem contraditórios
comos ocidentais. Propriamente de Marx, não existe uma perspectiva das relaçõesinternacionais, embora forneça elementos fundamentais para uma teoria
dessasrelações: todas as sociedades de classes engendram a guerra, as guerras
são conflitos entre as classes dirigentes que utilizam as massas como instrumentos, pelo que é da futura sociedade sem classes que virá a solidariedade
entre os povos, sendo a vitória final do proletariado o facto do qual decorrerá
a paz entre as nações. Daqui resultou a posição dos estudiosos soviéticos das
ciênciassociais em geral, e das relações internacionais em particular, no sentido de que a ciência ocidental é apenas um capítulo da propaganda dos Estadoscapitalistas, sem qualquer valor científico. Por seu lado, o sovietismo erigiu
em.trave-mestrada sua teoria das relações internacionais a doutrina leninista
do imperialismo.
~us~entavaLenine que a expansão das soberanias e interesses dos países
capitalistaspor todo o mundo, submetendo este a um esquema imperialista,era
137
TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
a última fase do capitalismo. O sistema estava condenado aos conflitos inter,
nos das potências, determinados pela concorrência em relação aos mercados
às fontes de matérias-primas, às oportunidades de investimento, à mão-de~
-obra barata. A guerra mundial seria inevitável em prazo não longo, e tal guerra
daria aos povos explorados do mundo e ao proletariado a oportunidade, espe,
cialmente no mundo colonial, de derrubar o capitalismo e de estabelecer 0
socialismo.
A doutrina leninista converteu-se assim numa ideologia do comunis 1110
vitorioso na URSS, mas isso não resolveria o problema das relações entre os
dois mundos socialistae imperialista.Era necessária uma estratégia, com suporte
científico em vista do carácter atribuído aos pressupostos marxistas. Todavia
enquanto que Lenine repetidamente falou da inevitávelluta entre soviéticos ~
imperialistas, Estaline mencionou algumas vezes a coexistência
pacífica,ou então
o perigo da agressãocapitalista,ou a inevitabilidade
daguerraentre Estados capitalistas e Estados proletários. A hesitação é reflexo da variação da conjuntu ra,
que incluiu uma guerra mundial na qual a URSS esteve ao lado dos países que
qualificava de capitalistas, e isso não parecia previsto na teoria. Finalmen te
Kruchtchev, proclamando que o poderio atómico soviético era suficiente para
dominar ou paralisar os países imperialistas, afirmou que a doutrina leninis ta
da inevitabilidade da guerra estava superada pelos factos. A coexistência
pacífica
e a passagem não violenta do capitalismo para o socialismo eram agora possíveis e preferíveis, afastando-se a possibilidade de um conflito armado que
poderia representar a extinção da Humanidade. A competição seria económica e ideológica.
Esta orientação suscitou críticas do marxismo na sua versão chinesa, então a
mais poderosa em vigor, porque Mao Tsé-tung sempre destacou a necessidade
da violência e da ajuda às forças revolucionárias de todo o mundo. A diferença
é de táctica, não é de princípios 123•
A construção de uma teoria das relações internacionais, a partir da concepção dita científica marxista, revelou-se incoerente quanto às doutrinas desenvolvidas com menor pretensão de infalibilidade. Do que se tratou foi de um
realismomarxista,que pretendeu congregar num só conceito o interessenacioproletário,subordinando esta componente àquela.
nal mais o internacionalismo
Recordando a natureza do normativismo internacional considerado como uma
superestrutura destinada a proteger os interesses das soberanias imperialistas,
,:, Brzezinski, The sovietbloc:unity and coeflict,N.Y., 1961. Goodman, The sovietdesignfor a WorldState,
N.Y., 1961. Lowenthal, WorldCommunism:the desi11tegratio11
of a secularfaith, Oxford, 1964. Chih-yu
foreign policy,Londres, 1990, p. 62. Vladimir Bukovski, URSS: de l'utopieau
Shih, The spirit of chi11ese
désastre,Pais,1990, p. 159.
138
INTRODUÇÃO
sumiram como moralde responsabilidade
comunista era conhecido
. que as
•
•
d
d
como razãodeEstado.E esta passou a ser a matnz onenta ora a
qu11º.
ocidente . , .
no
tiva sov1et1ca.
oria da razão de Estado encontra as suas raízes nos livros I e II da
l'erspec
ora a te
, .' de Platão, envolvendo a questão de saber se, para defender aquilo
R,epubh~a
chamamos o interesse público, a "mentira real" é justa. Moralistas
que hot nt recusam absolutamente admitir uma resposta afirmativa, mas
·
· d a a corrente de pensamento que
'º m0 -.K~ªquiavel que se encontra sistematiza
desdeina
a defendaneira
e.
· · d a a d e fcesa amora l d a pos1çao
. - suprema d o eventua l
gera l e, reie1ta
vem
·
-"'d"fc
tor do poder, mas as c01sas sao Jª 1 e rentes quan d o se trata ddfc
a e esa d o
dete:o e da preservação dos objectivos colectivos que este deve servir. Há até
Estatentativa de d outnna
. para a segun d a h"1potese,
,
. 1·
em que a d"1sc1p
ma mora l
u~:ídi ca é abandonada para a defesa dos interesses estaduais . A clandestini~!~e do Estado, a que já nos temos referido, é toda inspirada pela supremacia
da razão de Estado.
Ora, 0 Relatório de Kruchtchev ao XX Congresso do PCUS (1956), denunciando os crimes e erros de Estaline para manter a ditadura sobre o partido e a
destesobre o Estado, é uma demonstração de que a razão de Estado, em ambos
os sentidos mencionados, foi a matriz da perspectiva política do sovietismo.
Aquilo que a razãodeEstadoacrescenta à perspectivarealistaé que esta é um
ponto de vista metodológico, e aquela também é, além disso, um princípio de
acção.A metod ologia desdobra-se numa apologética 124 •
Isto não significa que a política internacional não tivesse, na orientação
académicae na acção prática, referências normativas e valorativas. Mas não são
referênciasao sistema de valores e normas ocidentais, consideradas superestruturas de justificação da condenada sociedade capitalista. A revisão de Gorbatchov,que colocou de novo o voluntarismo no centro da dinamização da política,
repudiando a causalidade social marxista, sem repudiar ainda expressamente a
apologética,obrigou a rever também a perspectiva soviética das ciências sociais,
agoraa evolucionarem no sentido de uma convergência com as escolas de pensamento ocidentais. Abandonado o império, o realismo encaminha a Rússia
para assumir, da herança e prática soviéticas, tudo o que considera pertencer
aos seus interesses permanentes.
"• Nicolau Maquiavel, Le Pri11cc
suii•ide l'Anti-Machiai•elde FredericII, Paris, 1968. Lenine, L'État et la
Paris, 1971. Martim de Albuquerque, A SombradeMaquiavele a Ética TradicionalPortuguesa,
Re"volutio11,
Braga,1974. Ilretton et Chaudet, La coexistence
pacifique,Paris, 1971. Adam Schaff, EI marxismoafi11al
desiglo,Ilarcelona, 1994, sobre o que morreu e sobrevive no marxismo.
139
TEORIA DAS RELAÇÕES INTCRNACIONAIS
3. Perspectiva europeia
Podemos falar de uma perspectiva europeia porque aqui nasceram todos os
problemas que viriam a constituir aquilo que hoje autonomizamos com o nollle
de relações internacionais, e as tentativas de, por um lado, disciplinar o seu
conhecimento teórico e, por outro, deduzir regras orientadoras de acção. Talvez a mais antiga matriz europeia seja o voluntarismoque radica na autonomia
da vontade política a definição dos objectivos e dos métodos de acção, ficando
a variedade de comportamentos dependente do tipo de criatividade do home 111
ou grupo de homens a quem pertencer o exercício do poder.
A doutrina dos heróis, a referência dos tempos históricos à mudança das
lideranças ou chefias políticas, são expressões dessa perspectiva que recorre
às leis do comportamento individual ou à sua tipologia para encontrar algu111
ponto de apoio para as previsões ou prognósticos. Por isso, talvez, e depois da
guerra, o mais antigo capítulo autonomizado das relações internacionais é a
diplomacia,definida como uma artedenegociação.
A sistematização dessa arte, já praticada por gregos e romanos, deve urna
grande contribuição a Veneza que, como vimos, seguindo a tradição de Bizâncio, foi o primeiro Estado a preservar os seus arquivos de maneira sistemática.
Na Itália do século XVI, a fraqueza de cada um dos Estados italianos, o equilíbrio de impotência em que geralmente se encontravam, a precariedade das
alianças, tudo encaminhou no sentido de desenvolver a famosa arte de Combinazione.Maquiavel é o analista da época e César Bórgia o modelo de homem
de Estado voluntarista, calculista e amoral.
O voluntarismo continua a ser o princípio dos governos personalizados,
não institucionalizados ou democráticos, que são mais numerosos do que as
constituições admitem.
O marxismo, que teoricamente se pretendeu científico e vincula o poder
político a interesses independentes das concepções individualistas dos gestores do poder político, na prática produziu o cultodapersonalidade,
a proeminência do conducator,
a ditadura de um homem (Secretário-Geral) sobre o partido,
e do partido sobre o país.
O voluntarismo foi sempre uma característica do sistema, que se reflecte
nas perspectivas da análise e da apologética, porque não deixam de apare·
cer estudos que frequentemente começam pelo tributo da referência à lide·
rança política em vigor. Em todos os regimes de poder pessoal acontece coisa
semelhante, independentemente da latitude ou do sistema cultural em que
se inscrevem.
Progressivamente, o valorinstitucionalda Naçãoveio marcar a perspectiva
europeia, assente na generalizada convicção da excelência do Estado nacional,
140
INTRODUÇÃO
ual viria a ter expressão no princípio de que cada Nação deve corresponder
aq E do12s
um sra
·
ª A uando da elaboração do Programa dos Comunistas por Bukharine em
qele escrevia ali: "Não se trata do direito das nações (quer dizer do con18
~9 t~ dos trabalhadores e da burguesia) a dispor de si próprios, mas do direito
iun {assetrabalhadora.
Isso significa que a dita vontade da Nação não é sagrada
da e no's" Deste modo identificava a perspectiva essencial da Europa a que se
para
·
opunha.
por outro lado, a razãodeEstadonasceu e desenvolveu-se nessa mesma comu"dadede nações, evidenciando aquilo que parece mais característico na persn~ctivaeuropeia, e que é a tentativa de compatibilizar a tradiçãopersonalistae a
p adiçãomaquiavélica,
o compromisso ou alternância entre a moralde convicção
e
trmoral
deresponsabilidade,
a proclamação de grandesprincípiose valoresabsolutose
: simultâneo uso da força como argumento supremo independente da justiça
dos interesses.
Daqui o peso da disciplina da História no domínio das relações internacionais, 0 método comparativo que permite sugerir as decisões alternativas, sem
nunca desaparecer a tendência para formular teorias gerais, que parecem mais
adjuvantesou guias do que expressões de uma relação necessária entre modelos de acção e consequências.
A criatividade na origem do processo político internacional e a novidade
semprecedentes nos efeitos procurados ou produzidos parecem sempre admitidas nas perspectivas europeias. Trata-se de uma ambivalência entre o idealismo e o realismo 126
.
A tentativa de fixar grandestendênciasque inspirem soluções analógicas,
encontrou um dos melhores representantes em Arnold Toynbee, o famoso autor
de A StudyofHistory127•
No que respeita às relações internacionais, as suas contribuições foram
sendo desenvolvidas no SurveyoflntemationalAffairs,publicação anual do Royal
Institute.Evidencia ali que o equilíbriodepoderesé um princípio que entra em
funcionamento sempre que uma sociedade se articula numa série de Estados
independente s, e que tal equilíbrio desliza do centro de um sistema político
para a periferi a. Admitiu ser um erro considerar estanques os agrupamentos
de problemas internos e problemas internacionais, porque a sua interpenetração é uma regra. Acontece que o modelo da relação entre poderes da mesma
125
Harold Nicolson, The EvolutionofDiplomaticMetlwd, Londres, 1953.
swald Spengler, The declineofthe West,N.Y., 1926-28. Raymond Aro n, La Théoriede l'Histoiredans
l'A/emagne
Co11temporai11e
Paris 1938.
127
'
'
A. Toynbee, A Study of History,Londres, 1943.
1260
,
141
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
área cultural não tem correspondência no modelo de relação entre poderes
de áreas culturais diferenciadas. Admitiu que a sociedade internacional obe.
dece todavia mais aos preceitos de Maquiavel do que aos preceitos de Grotius
De facto, Toynbee procura combinar as duas tradições referidas de uma filoso:
fia do poder e de uma filosofia moralista. A técnica de equilíbrio dos poderes
aparece como a mais apoiada na prudência governativa 128 •
4. A perspectiva neutralista
A questão da perspectiva neutralista surgiu apenas com o fim da Segunda
Guerra Mundial, e o programa descolonizador da paz, sobretudo inspirado
pelos EUA, mas não faltaram perspectivas ideológicas anteriores que serviralll
para alimentar os novos poderes instalados nas antigas colónias. Assim como a
independência dos EUA foi ocasião para a formulação de um panamericanismo
plural, mas sempre dirigido contra a presença ou retorno das soberanias europeias ao continente, também as formações políticas da África e da Ásia descolonizadas tinham a sua herança de antieuropeísmo, de antiocidentalismo, de
repúdio cultural ou étnico dos estrangeiros agressores 129•
Desde 1815 que Bolívar, tentando manter a unidade antes assegurada pela
soberania colonial, desenvolveu aquilo que foi chamado o sonho de Bolívar.
Tratava-se de conseguir a federação das antigas colónias espanholas, tal como
tinham conseguido no Norte as antigas colónias inglesas.
Mais ambicioso, mas sempre contestado dentro do continente, foi o projecto
norte-americano que proclamou que "a integração é um dos objectivos do sistema interamericano", tal como foi definido, em 1967, na Terceira Conferência lnteramericana Extraordinária. Tratava-se então de um pan-americanismo
desenvolvimentista, que viria a ser abrangido pelo conceito de neocolonialismo, uma das componentes da ideologia de contestação sustentada por Che
Guevara e Fidel Castro, este conservando até hoje o governo de Cuba. A priLatino-Americanade Solidariedade,
que os castristas reuniram
meira Conferência
em Havana em 1966, produziu uma declaração geral que preconiza a violência
revolucionária, a guerra da guerrilha, e que a revolução cubana seja considerada a vanguarda do anti-imperialismo latino-americano.
Por outro lado, na faixa muçulmana que divide o Norte do Sul do mundo,
desde Gibraltar até à Indonésia, o pan-arabismo e o islamismo juntam-se para
definir uma reacção ao mesmo tempo baseada na fé, na cultura e num patriotismo abrangente, contra o sistema euromundista, e suas implantações cultu·
"" Quincy Wright, A study ofn•ar,Chicago, 1942, II, p. 755.
"' F.Fanon, Lcsdamnésdcla Terre,Paris, 1958, produziu uma das mais influentes an:ílises identificador.is
desse espaço colonial, sem acesso ao di:ílogo internacional.
142
INTRODUÇÃO
.
o!íticas. O Manifesto do Comité Nacional da Síria, de 1936, dava esta
ra15e,P_0 • "a Nação árabe é a população que habita sobre o território árabe e
defini~:~nida pela comunidade da língua, da mentalidade, das recordações
q~e ~~ cas, dos hábitos e costumes, dos interesses, das esperanças ... A pátria é
h15t0r~ pelas regiões que estão compreendidas nos seguintes limites: ao norte,
fortll:t: Taurus e o Mediterrâneo; ao sul, o Oceano Arábico (Índico), as mono M~ da Abissínia, as Cordilheiras do Sudão e o Sahara; a oeste, o Oceano
5
ra~. ªtico, e sobre as costas da Síria, o Mediterrâneo; a leste, as montanhas do
0 Golfo de Bassorah (Golfo Pérsico)".
Jra~embre-se finalmente que o pan-africanismo também forneceu um antece te ideológico importante ao anticolonialismo posterior à guerra finda em
d;:s. Desde a Conferência de Londres de 1900, convocada pelo advogado das
~ tilhas, Henry Sylvester, e da doutrinação fundamental de Burghart Dubois,
:fessor na Universidade de Atlanta nos fins do século XIX, abriu-se um cami~ho que passou pela Negritudede Aimé Césaire e Leopold Senghor, e de que a
revistaJeuneAfriquefoi suporte. Fanon apreendeu bem o sentido do movimento
uando, no citado LesDamnésdela Terre,escreveu que "a adesão à cultura negro!fricana, à unidade cultural de África, passa primeiro por um apoio incondicional à luta de libertação dos povos" 13º.
Esta vastíssima área tem uma unidade exterior que foi expressão da submissão a poderes coloniais, todos ocidentais, a maior parte deles sediados na
Europa, o resultado de um processo que começou com o Tratado de Tordesi lhas de 7 de Junho de 1494, e anunciou a meta final na Conferência de Berlim
de 1885, onde os ocidentais decidiram a ocupação total do continente africana131.
Internamente, a unidade da área foi sempre um projecto político e não um
resultado de condicionamentos estruturais. A desmobilização começa talvez
com uma decisão americana baseada na percepção de que as potências coloniais tinham esgotado as suas capacidades necessárias para manter a logística
dos império s, tudo ao contrário dos desígnios que alimentaram quando decidiram resist ir à ameaça do nazismo. O famoso John Foster Dulles, Secretário de Estad o dos EUA, escreveu o seguinte: "quando as batalhas da Segunda
Guerra Mundial se aproximavam do fim, o problema colonial passou a constituir o maior problema político do período. Se o Ocidente houvesse tentado
perpetuar o statu quodo colonialismo, a revolução dos países coloniais e a der-
A:ª:
30
' Fanon, cit., p. 35. Mamadou Dia, Réflexionssur /'iconomiedel'AfriqueNoir,1953 .
.,, Adriano Moreira, "Da Conferência de Berlim de 1885 ao moderno Anticolonialismo", in Legado
Político
do Ocidente,Lisboa, 1995. G. Hanataux, Le partagede l'Afrique,Paris, 1909. Santa-Rita, Estudo
sobrea Co11ferêl!cia
deBerlimde 1885, Lisboa,1916.
143
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
rota ocidental teriam sido inevitáveis. A única política que poderia ter êxito
seria a de conceder, pacificamente, a independência aos mais adiantados dos
700 milhões de indivíduos dependentes 132•
A Carta da ONU deu expressão jurídica a esta orientação, organizando nos
Capítulos XI e XII a administração dos territórios não-autónomos e a respon.
sabilidade das potências administrantes, que os deveriam encaminhar para
um modelo político democrático e para a autodeterminação. Rapidamente foi
entendido que todos os povos estavam em condições de serem autodeterminados, entrando-se num período de acelerada retirada das soberanias coloniais
com a clara excepção da URSS e dos EUA que não encontraram nada para auto~
determinar dentro das suas fronteiras políticas.
A chegada destes países ao diálogo internacional em que, como regra, nunca
tinham participado, orientou o processo internacional no sentido de dar e reconhecer identidade à vasta zona geográfica que vizinhava com as fronteiras de
segurança dos blocos em formação, um que assumia o legado político ocidental
(NATO), outro que assumia a revolução marxista mundial (Pacto de Varsóvia).
Os analistas puseram em evidência circunstâncias identificadoras que se
repetiam em toda a área. Foi assim que, na linha de Pierre Moussa (1959) que
a considerou dividida em naçõesproletárias,a proposta de Fourastié e Vimont,
largamente acolhida, a descreveu nestes termos: natalidade forte, mortalidade
elevada, fraca esperança de vida, intuicionista e tradicionalista, sem iniciativa
empresarial, estruturas políticas arcaicas, sem classe média, mulheres submetidas, instrução deficiente e falta de quadros, desemprego, subemprego, fraca
taxa de investimento, fraca capacidade financeira, fraca poupança, agrária,
produtividade baixa, autoconsumo, exportação de matérias-primas, dependentes do estrangeiro 133•
Eles próprios, usando o método das conferências, e aproveitando a oportunidade única que a ONU fornecera de todos se encontrarem com todos, forjaram
uma identidade que Alfred Sauvy, inspirado pela brochura de Sieyes - Qu'est-ce
quele TiersÉtat?- chamou de Terceiro
Mundo,em processo de definição perante
os dois blocos existentesm.
A primeira e histórica conferência foi a de Bandung, na Indonésia, realizada
cm 1955, com forte intervenção da União Indiana. Ali, o Presidente Sukarno,
132
John Foster Dulles, Waror Peace,N.Y., 1950, p. 76. Adriano Moreira, A comunidadeinternacionalem
mudança,cit., p. 89 e sgts.; Adriano Moreira, Relaçõesentreas GrandesPotências,Lisboa, 1989, p. 92 e
sgts.
13
'- Fourastié e Vimont, Histoircde Dcmain, Paris, 1956. Adriano Moreira, A ComunidadeIntcmacional
cm Mudança,cit., p. 90.
LH Balandier (e outros), Le TicrsMonde, Paris, 1956. Adriano Moreira, CiênciaPolítica,Lisboa, 1995,
p. 372.
144
INTRODUÇÃO
. da reunião, chamou povosmudosdomundoaos que até então sempre
detro
.
nospe .do representados por um soberano colomzador, e que todos se reco. 11amsi
t1° .
como povosde cor.
oheciamis na Conferência do Cairo de 1957, com Nasser a desempenhar um
vepo
'
. . p 1ano, proc 1amaram que era a antiga
. situação
.
. rnacional
de primeiro
el 1nte
_
.
paP . ue os unia, mesmo que nao fossem povos de cor, e que todos deviam
1
colon!
~ qr-se contra as antigas soberanias opressoras, porque todos contestaobt1iza
.
.
m
mesmas coisas, que todas eram ocidentais.
va~~~almente, na Conferência de Havana de 1966, acolhidos por Castro que
fiavaO poderio dos EUA, acrescentaram que os que agora se tornavam indedes~~ncestinham em comum, com os que tinham ganho a liberdade no século
pen •or a circunstância de serem povospobres,uma condição da responsabili1
. .
antert '
, . .
. .
. h
dade das antigas pote~cias imperiais: ~ue ma?ti~ am contra e es a agress~vid de porque inerente a filosofia e pratica capitalistas. Os povosdecor,os antigos
~onizad
os,os pobresdestemundo,começam a exercer uma política concertada,
~o
rmal ou informalmente, em todas as grandes questões internacionais.
0
Interpretando e desenvolvendo osguidingprinciplesda
Carta da ONU, conseguiram algumas Declarações da Assembleia Geral que fixaram as linhas essenciaisda perspectiva neutralista ou terceiromundista. A primeira foi a chamada
Declara
çãosobre a outorgada independência
aosterritóriose aospovoscoloniais,de 14
de Dezembro de 1960. A segunda foi chamada Programadeacçãoparaa aplicação
integraldasdeclaraçõessobrea ou:orgada independência
aosterritóriosepovoscoloniais,
de 12 de Dezembro de 1970. E nesta última que se afirma que "todos os povos
têmo direito à autodeterminação e à independência, e que a sujeição dos povos
ao domínio est rangeiro constitui um grave obst áculo para a manutenção da
paze da segurança internacionai s e para o desenvolvimento das relações pacíficasentre as nações".
Finalmente, a importante Resolução que aprovou a Declaraçãorelativaà SoberaniaPermanen
tesobreosRecursosNaturais, de 1966, e a CartadosDireitoseDeveres
Económicos
dosEstados,esta aprovada em 12 de Dezembro de 1974135• A Declaração de 1960 foi chamada, com propriedade, CartaMagnada Descolonização,
e nela é que se afirma que o atraso cultural, político ou económico não pode
entravar a descolonização.
Foi sobretudo na ONU, usando o poderdo númerona Assembleia Geral, que
a perspectiva terceiromundista se desenvolveu, podendo talvez caracterizar-se
pelas seguint es referências: a) assumem um capital de queixas contra o Ocidente colonizad or, especialmente contra as soberanias europeias imperiais,
acusadas de tere m abortado o desenvolvimento autónomo das suas áreas cul135
Celso Albuquerque , "Autodeterminação", in LegadoPolíticodo Ocidente, cit.
145
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
turais, de terem confiscado os seus recursos naturais, de os submeterem a regi.
mes de discriminação racial e de opressão política; b) assumem um critério d
dupla medida em relação aos 12 e 22 Mundos, sempre mais benevolentes corn 0~
soviéticos, em grande parte porque a Rússia nunca exerceu a soberania naque.
las áreas; e) afirmam-se com um direito natural às reparações pela intervenção
colonial passada, e geralmente entendem as ajudas internacionais, ou bilaterais
como obrigações dos doadores; d) declaram a legitimidade da guerra de liben:a:
ção, dizendo Fanon que "nos países coloniais só o campesinato é revolucionário
Não tem nada a perder e tudo a ganhar"; e) a contribuição chinesa acrescentou·
com Lin Piao, que "é da luta revolucionária dos povos da Ásia, África e Améric~
Latina, onde vive a esmagadora maioria da população mundial, que depend e a
causa revolucionária mundial; f) afirmaram-se neutrais quanto ao conflito bipolar, mas nunca foram pacifistas, foram apenas contra as formas de guerra que
não estão ao seu alcance, tendo concluído na primeira Conferência de Solidariedade dos povos da Ásia, África e América Latina, reunida em Havana de 3 a 15 de
Janeiro de 1966 que: 1)o imperialismo, incluindo a versão do colonialismo e do
neocolonialismo, desenvolve uma agressão continuada contra os países pobres·
Z) o imperialismo, que os EUA especialmente representam, não renuncia volun'.
ta riamente aos seus objectivos; 3) os movimentos, para conseguirem a realin dependência política, devem recorrer a todas as formas de luta, incluindo a luta
derespos
ta.
armada, porque a violênciaimperialistalegitimaa violênciarevolucionária
Homens como Nasser (Egipto), Keniata (Quénia), Chu En-lai (China), Giap (Vietname), ou mais moderados como Eduardo Mondlane (Moçambique) e Amílcar
Cabral (Guiné), ou humanistas como Leopold Senghor (Senegal) ou Houphouet-Boigny (Costa do Marfim), ou pacifistas com Gandhi (Índia), ou revolucionários fundamentalistas como Mao (China), introduziram no processo global um
inevitável protagonismo, frequentemente o culto da personalidade, que multiplicou as facetas plurais do desenvolvimento da matriz neutralista.
5. Perspectiva internacionalista
A perspectiva internacionalista é também plural, e corresponde a mais de uma
opção. O que une todas é a convicção de que a actividade política internado·
na! deve ser examinada em relação a uma condição humana universal, e não em
relação com os limites acidentais que decorrem das fronteiras geográficas, da
história, ou das constituições e regimes políticos. A concepção medieval de uma
lei natural esteve associada a uma visão internacionalista da condição humana,
assim como à jurisdição, cimeira às divisões políticas, da Igreja católica. O con·
ceito medieval da República Cristã correspondia a essa atitude, assim como 0
conceito de povo de Deus se traduz num internacionalismo que atravessa as
fronteiras políticas.
146
INTRODUÇÃO
projecti stas da Paz foram adeptos de uma perspectiva internacionalista,
Os ando a salvaguarda de um interesse geral e superior ao das unidades
• • • escritores,
•
e •
, . s que era a paz d os povos. U m d os pnnc1pa1s
que reienProcur
~~'
.
P
res foi Kant (1724-1804), que em 1795 apresentou um Proiecto de Paz
inos an
' qual procurava esta b e1ecer uma espec1e
' · d e remo
· gera 1 em que a
, rua no
perpeania fosse a razão. A prmc1p10
· ' · entusiasmou-se
·
- Francesa,
com a Revo1uçao
'
M as dep01s
. vo1tau a'
sober.maginou como um passo a camm
· ho da paz perpetua.
que;icção de que uma monarquia moderada é a melhor forma de governo para
con imperfeitos. A sua filosofia moral fornece as bases do internacionalismo
seres
. . d .
.
, .
e
1 ,
d
ue advoga. O pnme1ro os imperativos categoncos que 1ormu a e que eveq agir de modo a que a nossa acção possa corresponder a uma lei universal,
mos
atando todos os homens como fins e não como instrumento, membros de um
tr
comum de fina l"d
1 ad es ".
Uma lei é universal quando se dirige apenas à razão, não fazendo distinção
entre seres racionais, mas apenas entre o bem e o mal. Tal lei não fere a liberdade dos que por ela são governados, porque apenas contraria os seus desejos
condenáveis. O liberalismo é uma consequência da doutrina, sem necessidade
de mencionar qualquer fundamento religioso destinado a não obstar à realizaçãopessoal. No que se refere às relações internacionais, tinha como objectivo a
abolição das jurisdições estaduais e a adopção de um corpo de leis aceites por
todos, e de aplicação vigiada por um congresso das potências.
O marxismo, como vimos, é também um internacionalismo de base e objectivosdiferentes.
Finalmente, a evolução do fenómeno da solidariedade e interdependência
de todos os Estados e outros agentes da cena internacional conduziu a um internacionalismo que se tornou progressivamente importante depois da fundação
da ONU. Trata-se de, por um lado, considerar a paz como um bem indivisível da
Humanidade, que o Conselho de Segurança deveria preservar, mas, por outro
lado, de definir um verdadeiro património comum da Humanidade, ao qual
pertencem já o mar alto, a Antárctida, os corpos celestes, tudo a reclamar instituições com um poderfuncional,que não é a soberania, mas limita a soberania:
é o caso das organizações especializadas da ONU 136• Todas estas perspectivas
condicionam, respectivamente, as escolas que as adaptam, não apenas naquilo
que em cada uma se encontra sempre de apologético sobre as políticas recomendadas, mas também no levantamento dos dados considerados relevantes
para a compreensão da conjuntura, e para a formulação das tendências, possibilidades e probabilidades da evolução.
136
Keiscn, cit. Yves Lacoste, Co11tre
lesa11ti
-tiers-111011distes
et co11tre
certai11s
ticrs-111011distes,
Paris, 1986.
Serge Larouchc, Lafinde la SociétédesNations, in Traverses 33-34, Paris, 1985.
147
--
TEORIA DAS REL AÇÕES INTERNACIONAIS
6. A perspectiva da Santa Sé
Não é possível separar a história do Euromundo da intervenção da Igreja cató.
lica, em todos os domínios, quer dizer, desde a formulação dos critérios que
definem a dignidade do homem como pessoa, ou que consagram a distinção
entre a sociedade civil e o Estado, fornecem as referências da legitimidade de
origem e exercício do poder, propõem o modelo da comunidade internacional,
aos que tentam assegurar a paz pelo direito.
No que respeita à identificação das perspectivas que estão vigentes na comunidade internacional, e sempre com o risco do arbítrio, talvez seja razoável
para a actualidade, procurar caracterizar a da Santa Sé a partir da total perd~
de poder temporal sobre os seus Estados italianos, consequência da unificação
da Itália, que o rei Vítor Emanuel II concretizou em 2 de Julho de 1871 quando,
estabelecendo a corte no Palácio do Quirinal, pronunciou estas famosas palavras: "estamos em Roma e aqui permanecemos" 137•
Tratava-se de uma época em que o mundo político ocidental tinha o liberalismo, nas suas diferentes versões, como ideologia dominante, hesitava entre
a soberania popular (Rousseau) e a soberania nacional (Sieyes), decidia a experiência colonial das potências europeias da frente marítima, e desencadeava 0
pluralismo dos projectos que incluem o anarquismo do Estado supérfluo, as contra-revoluções, os totalitarismos, o sindicalismo e, sobretudo, o marxismo.
As questões políticas que a Santa Sé teve de enfrentar muito concretamente
em relação ao novo Estado italiano, tiveram o seu ponto final com os Acordos
de Latrão, assinados em 11 de Fevereiro de 1929, pelo Secretário de Estado de
S.S. Pio XI e por Mussolini, chefe do governo fascista italiano, no palácio que
o Papa Sixto V mandou construir em 1586.
A nova definição internacional da Santa Sé, que assume um protagonismo
específico na vida internacional, vai basear-se não em qualquer poder político,
mas sim e apenas na autoridade,isto é, uma proeminência institucional reconhecida que permite influenciar as condutas e as decisões.
A mensagem evangélica interessa, no plano das relações internacionais , não
como uma revelação, mas como uma proposta que na origem se perfilou como
revolucionária em relação ao mundo antigo 138•
Os princípios fundamentais são os seguintes: a)a primazia da pessoa humana,
titular de direitos inalienáveis, com a vocação da imortalidade; b)daqui decorre
uma nova percepção das relações entre o Estado e o homem, com a evidência de
que a organização política é transitória, instrumental e contingente; e) a ideia
117
Alfred Stern (e outros), HistóriaUniversal,como VIII, Liberalismo
y 11acio11a/ismo
(1848-1890), Madrid,
1960, p. 314.
'~ João Paulo II, VcritatisSplwdor,Roma, 1995 .
148
INTRODUÇÃO
nidade, do povo inteiro sem distinção de etnias ou culturas, porque
- ha, mais. JU
. d eus, nem gentios,
.
da f-luillª
ão filhos de Deus: d.isse S. Pau 1o que "nao
rodos ~ uncisos e nem circuncisão, nem bárbaros nem pagãos, nem escravos,
Ill ctrC
•
•
ne h ens livres"; d) de acordo com o Evangelho segundo S. Mateus, foi Cnsto
neltl ~:terrogado sobre o dever de pagar tributo, separou o que é de César do
que~d~ Deus, fixou a dualidade do poder político e do poder religioso, baseou
que e ra distinção entre o direito público e o direito privado 139• Acrescendo o
a futude que o po d er po l mco
' . contmgente
.
,
se exerce d entro d e uma area
tern-.
fac~olem relação à qual a fronteira geográfica é um elemento definidor essencoria'
- e, dºiviºdºd
. po l'iticas,
.
. a comunida d e d os crentes nao
i a por essas f:ronteiras
ou,
eia'1 utras palavras, o povo d e D eus apoia
· um mternactona
.
.
1·ismo supera d or d as
f.°ri~ações estaduais. Durante centenas de anos a dualidade da organização
i~ídca e da organização religiosa, com as suas incidências na vida interna dos
~~tados (auton?mia da s~cied~d~ civil) e na vida internaci?nal (autoridade do
Pontífice) inspirou conflitos senos entre o Estado e a Igreia.
No século V,a Carta do Papa Gelásio ao Imperador Anastásio, diz claramente:
"Duascoisas há pelas quais é regido este mundo, principalmente a sagrada autoridade dos Pontífices , Imperador Augusto, e o poder dos reis. Nelas é tanto mais
importante o prestígio dos sacerdotes, que até, em vez dos próprios reis, eles é
que vão prestar contas ao Senhor no divino tribunal. Sabes , efectivamente, que
embora estejas à frente do mundo inteiro do meu tempo, inclinas reverentemente a tua fronte ante os juízes nas coisas da religião e a eles pedes os meios
para a tua salvação, ó meu filho elementíssimo, apesar da tua alta dignidade" 140 •
Adoutrina das duas espadas, exposta por Bonifácio VIII, em luta com Filipe IV
de França, na Bula Unam Sactam,pretendia que "na Igreja existem duas espadas",a espiritual e a temporal, "mas esta tem de esgrimir-se em favor da Igreja,
e aquela pela própria Igreja"H 1•
As crises foram frequentes entre a Igreja e o Estado, e muito discutidas pelos
escritores medievais, destacando-se Dante que, no De Monarchia(1309) , propunha assim a limitação recíproca: a Igreja, que exprime a vontade de Deus no
mundo, pede-nos que reconheçamos que a sua autoridade se baseia no amor,
e que não pode impor-se pela força sem contradições; distingue-se do poder
temporal dos príncipes, mas a legitimidade destes depende da concordância
com o primeiro, sob pena de ser perverso.
A questão da relação entre a Igreja e o Estado não é exclusiva da Igreja cató lica,mas a evolução dessa específica relação teve uma importância mundial, não
'"Marcel Prélot , Histoiredesidéespolitiques, Paris, 1961, p.134
e sgts .
Alejandro Bugallo , "Teor ia das duas espadas", in LegadoPolíticodo Ocidwte, cit., p. 81 e sgts.
111
A· Bugallo, cit ., p. 94. Joseph Lortz, Historiadela Jglesia,Madrid, 1962, p. 307.
140
149
--
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
apenas pela acção missionária da Igreja que assim se defrontou com a variedade
dos poderes políticos no mundo, mas também porque os poderes ocidentais
organizaram eles um mundo que se manteve politicamente submisso aos seus
padrões até meados deste século.
Uma Igreja pode organizar-se para viver sob a autoridade do poder político
que existir, ou constituir-se como instituição autónoma, exibindo uma fonte
de legitimidade e autoridade específica e privativa, que rivaliza com a política.
Algumas orientações doutrinais, como foi o caso de Hobbes (1588-1679) que
publicou o Leviathanem 1651, entenderam que uma autoridade independente
dentro do Estado impede que este tenha um poder soberano. Quando Hen.
rique VIII se proclamou chefe supremo da Igreja de Inglaterra (1534), desligando-se do passado credo católico, porque a Igreja católica recusou anula r 0
seu casamento com Catarina de Aragão, adaptou por antecipação esse ponto
de vista, embora a experiência tenha vindo a estabelecer um equilíbrio entre
a Coroa e a Igreja anglicana.
Depois da Revolução de 1917,e até 1984, o governo soviético da URSS assumiu o poder de governar a estrutura e liturgia da Igreja ortodoxa, proibind o a
educação religiosa e adaptando o ateísmo como ideologia do Estado.
No Ocidente católico, a doutrina claramente procurou racionalizar e legitimar a dupla fidelidade, ao Estado e à Igreja, separando as áreas de juris dição, mas sem poder evitar conflitos, designadamente quando o Estado proíbe
à Igreja acções necessárias para o exercício da sua missão.
Não faltam exemplos de a cooperação consentida se traduzir numa mais
valia da acção, servindo de exemplo a actividade missionária desenvolvida nos
territórios onde se verificou a expansão colonial portuguesa 142 •
O facto é que, no Ocidente, o Cristianismo entendido ou como doutrina da
fé ou do comportamento, e a Cristandade definida como povo de Deus unido
para além dos modelos políticos e suas fronteiras, foram referências fundamentais de toda a doutrina dos direitos do Homem, da sociedade civil, do Estado,
do estatuto das várias outras Igrejas, da comunidade internacional, e do edifício normativo que procura disciplinar as relações entre todos os instrumentos
deste complexo processo.
Do ponto de vista da comunidade internacional, e sobretudo a partir do
momento em que a expansão marítima agudizou a questão das relações com os
infiéis, a perspectiva católica tomou expressão cimeira na definição de um jus
Adriano Moreira, "Tratado de Tordesilhas", in LegadoPolíticodo Ocidente,cit., p. 98 e sgts. Adriano
Moreira, PolíticaUltramarina,Lisboa, 1961. Joseph Lortz, Historia de la Iglesia,Madrid, 1961, p. 305 e
sgts .
141
150
INTRODUÇÃO
naesocietatís,
um direito da sociedade humana
43
1 •
Um núcleo matricial de
hll~a os juristas assume a definição das matrizes do direito internacional, desteÓº~o-se Francisco de Vitoria (1492-1546), Soto (1494-1560), Luis de Molina
ta~;:. 1soO),Francisco Suárez (1548-1617), seguidos por juristas como Hugo
(l tius (1583-1645) com o seu DeJureBelli ac Pacis,aparecido em 1620, Frei
Gro fim de Freitas que publicou em 1625 o Dejusto ímperíolusitanorum asiatico,
sera
d John Selden que em 1635 fez aparecer o seu Mare Clausum.
e Os continuadores de Grotius definiram o critério mais seguro de identifi ação dos ocidentais, e a sua contribuição mais duradoira para uma Ordem
1
~ndial sempre em mudança, que é o direito internacional. Uma longa cami!Ilhadaem que avultam Wolff (1679-1754), autor do conceito de civitasmaxima,
;attel (1714-1767), autor do conceito de sociedadedas nações,Pufendorf (1692_1694),Tomásio (1655-1728), e finalmente os que, sobretudo a partir do século
XIX,consagram a autonomia científica da disciplina 144 •
A evolução da perspectiva internacionalista, apoiada pelo conceito transestadual do povo de Deus, e da doutrina paulina das relações com os poderes instituídos, parece recolher os dois elementos fundamentais da posição romana.
o ponto da situação deve ser feito, para este fim de século, a partir do ConcílioVaticano II, que João XXIII convocou. No que respeita à evolução do conceito
paulino sobre as relações com os príncipes temporais, talvez deva distinguir-se entre aquilo que respeita ao poder político instituído, e o que concerne à
sociedade civil que governa.
Nas relações com os príncipes temporais, a Santa Sé viveu séculos em intensa
ligação com o poder político, que dela recebia a legitimação, até que as mudanças liberais a afectaram, proclamando, sobretudo a partir da Revolução Francesa, o Estado laico, e retirando-lhe os próprios territórios em que exercia a
soberania temporal.
Depois da referida tomada de Roma e até 1929 (Latrão), o Papa considerava-se prisioneiro, mas nesta última data, e na lógica da acção iniciada por Pio XI,
voltou a incitar os católicos a participarem na vida pública, e adoptou o modelo
das Concordatas sempre que possível, para regular as suas relações com o poder
político. Est as Concordatas foram especialmente importantes em relação aos
Estados com responsabilidades coloniais, e Portugal assinou uma, e mais um
Acordo Missionário, em 1940, para associar a Igreja à missionação e ensino no
Ultramar, regime que durou até à revolução portuguesa de 1974.
3
Antonio Truyo l y Serra, F1111damentos
dedcrcchoi11tcmacional
público,Madrid, 1970, p. 172 e sgt~.
'" Adriano More ira , A Europacm Formação,cit ., p. 93 . Arthur Nussba um, Historiadei dercc/10
i11tcma,
cio11a/
, Madrid, 1963 (actualização de Luis García Arias). Sanei Roman o, Corsodi diritto i11tcmazio11alc
Pádua, 1962, p. 21 e sgts .
"
15]
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Finalmente, a dolorosa experiência da guerra de 1939-1945, a campanha
contra a crítica posição de Pio XII em relação à Alemanha nazi e ao holocausto
o movimento da descolonização que a Carta da ONU consagrou, a chegad~
de um vasto mundo colonizado e não cristão ao diálogo internacional, tudo
encaminhou o Concílio Vaticano II para que fosse agora a Igreja a afastar-se do
Estado e dos poderes políticos, recusando-se a admitir que qualquer deles se
possa apresentar como um filho dilecto da Igreja, mesmo as formações políticas que se identificam como culturalmente cristãs. Define-se como uma fonte
de doutrina que pode e deve aproveitar a todas as forças em conflito, rnas a
cada uma delas, e aos seus seguidores, pertence a responsabilidade das opções
e acções.
Isto significa que a Santa Sé não assume programas específicos a respeito
dos problemas da comunidade internacional ou da sociedade civil de cada
Estado.
Pelo que toca à comunidade civil, e desde o regresso iniciado em Latrão
aperfeiçoou a doutrina para os direitos do Homem, a qual foi recolhida na Decla:
ração Universal da ONU de 1948, ofereceu uma doutrina para as relações com
a sociedade civil, e enfrentou a justiça social com numerosas Bulas, desde Leão
XIII (RerumNovarum,1891), passando pelos Documentos conciliares (ApostolicamAutoritatem,Ad Gentes,ChristusDominus,DignitatisHumanae)e culminando
com a extraordinária doutrinação de João Paulo II.
7. O mundialismo
Neste fim de século, a mudança em curso da estrutura para o modelo de comunidade internacional revela um conflito de tendências referentes à moldura do
futuro relacionamento entre os agentes da vida internacional, mas também um
conflito que se traduz na resistência das estruturas que entraram em crise mas
não perderam um poder de intervir. Existe uma aceleração da história e como
que uma contracção do mundo.
Primeiro, o processo de eliminação do isolamento das comunidades diferenciadas e distintas no tempo cultural ou no espaço físico parece ter chegado à
consumação. A grande tarefa dos Descobrimentos, em que Portugal teve papel
proeminente, termina com os homens a conhecerem, como disse Paul Valéry,
os limites terrenos do seu reino.
Mas, simultaneamente, a velocidade das comunicações, para as tarefas da paz
e para as tarefas da guerra, como que reduziu as dimensões do mundo. Leva-se
menos tempo de avião de Lisboa a Nova Iorque do que de automóvel de Faro a
Bragança. O conflito entre a URSS e os EUA sobre a colocação dos mísseis de
médio alcance na Europa, e que antecedeu de pouco a queda do sovietism 0 ,
diria respeito ao ganho de alguns minutos na rapidez de atingir o adversário.
152
INTRODUÇÃO
to que as campanhas de Napoleão decorriam à velocidade máxima
e,nqua;alos podiam atingir, as superpotências podiam agredir o territóque os c~versários, transpondo o Atlântico e a Europa, em poucos minutos.
ª
' · comprova d a por d uas guerras ch amari·o dosdialização
do teatro estrateg1co,
A mun ndiais, a mundialização do sistema de comunicações por satélite, a mundas?1u ão dos mercados, a mundialização da informação, a mundialização dos
~iahzaderivadosdos avanços científicos e técnicos aplicados para fins bélicos
nsco~ficoscomo acontece com a energia atómica, tudo leva a desmoronar as
aCI 1
,
e P uras do passado que duraram seculos.
estrut
.d.d
' . oc1.
A. mesmo tempo, Ber 1·
1m esteve d.1v1
1 a ate' 1989 entre as potencias
\ e a URSS, assim como o Vietname e a Coreia foram divididos politidenta1
. d a v1a,ar-se
. .
d.irectamente d e Israe 1para os
ente em Estados; não po d e am
camdos árabes vizinhos; os Estados interferem nas comunicações radiofónicas
Esta
·
,. sem prece d entes, mas
ara que não sejam capta d as; a pro d ução atmge
01ve1s
p rava-sea distância entre países ricos e países pobres; a relação entre recursos
ag opulações faz reaparecer a importância da geografia da fome.
·
ep Na defin1çao
· - concreta d os mo d e1os po l'.1t1cos,ao mesmo tempo que existe
um claro movimento de reconhecimento da incapacidade do Estado clássico
pararealizar as finalidades e objectivos que o fizeram nascer, aparecendo grandes
espaços
organizados que tendem a superar essa incapacidade, também se verificaque o nacionalismo renascido, as diferenças étnicas, culturais e religiosas
lutam pelo reconhecimento da sua especificidade e até autonomia de gestão
e representa ção internacionais. Foi o que aconteceu na dissolução da com plexaURSS,onde estão abrangidas nacionalidades, etnias, culturas e religiões
correspondentes às que inspiraram as autonomias, independências e Estados
nacionaisdo Ocidente.
Esta ten dência para a pulverização de um grande espaço político, que formalmente tem correspondência na pulverização dos impérios coloniais ocidentais depois da última guerra mundial, parece exprimir um fenómeno de
divergência e pluralismo contrário ao fenómeno de convergência e unificação
dos grandes espaços que ficou referido.
Linhas de evolução aparentemente tão contraditórias, que vão do nacionalismo,ao internacionalismo e ao mundialismo, devem corresponder a exigências
diferentes. Numa primeira aproximação parece evidente que a convergência
para os grandes espaços segue o método do consentimento, da complementaridade, da igualdade das unidades políticas integradas, e que a pulverização se
dá nos modelos políticos de matriz imperial, onde o consentimento dos povos
foisubstituído pela imposição em regra militar, onde a hierarquia interna dos
grupos diferenciados é estrutural e com expressão nas hierarquias políticas e
económicas.A natureza imperial não estava presente apenas nos sistemas colo153
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
niais das potências da Europa da frente marítima, também o esteve na DRss
nas suas relações jurídico-políticas com os satélites .
e
Um grande escritor do nosso tempo, o jesuíta Teilhard de Chardin, foi u
dos observadores que melhor e antecipadamente se apercebeu deste fenómen:
O mundo atingiu uma interdependência que não era presumível no começo d ·
0
século. Os fenómenos são tendencialmente planetários e a guerra, a fome
explosão demográfica, o perigo atómico ou das guerras química e bacteriol~~
gica, a luta pelo espaço exterior, tudo são demonstrações da planetização dos
fenómenos políticos. Fala-se, por isso, na PátriaPlanetária.
Deixou de haver nações, países, regiões, indiferentes para o resto da Bu rna.
nidade, o que se exprime numa tendência para a unidade política do mundo
Por outro lado, verifica-se uma proliferação dos centros de decisão de arde~
política, militar, económica ou religiosa, com uma multiplicação acelerada dos
Estados , que parece um princípio de dispersão.
Ambos os princípios, convergência e dispersão, originando uma multiplicação quantitativa e qualitativa das relações entre os vários centros decisór ios
decorrentes da indutável interdependência mundial. Foi para tentar exprimi;
cresesta evolução, e na linha de Chardin, que temos falado na leidacomplexidade
centeda vidainternacional,significando, como explicámos antes, que a marcha
para a unidade do mundo vem acompanhada de uma progressiva multiplica ção
quantitativa e qualitativa dos centros de decisão (divergência), e de uma multiplicação quantitativa e qualitativa das mútuas relações (convergência), tudo
originando novas formas políticas (grandes espaços) e órgãos supranacionais de
diálogo, cooperação e decisão (unidade). Era perante esta evolução que Chardin
falava na necessidade da criação de uma Frente Humana, uma espécie de força
de intervenção política que compreendesse os fenómenos da mundialização,
da complementaridade, da interdependência, superando as antigas divisões e
formas políticas de o rebanho humano responder aos desafios 145•
Tudo isto teve uma tradução importante num fenómeno que por sua vezse
querendo com tal expressão significar que a luta
chamou a mortedasideologias,
ideológica, que foi dominante a partir das revoluções americana, francesa e
soviética, teria perdido o sentido, a violência e a actualidade, e que as circunstâncias encaminhariam o mundo para um pragmatismotecnocrático
que submete
todos os problemas à disciplina da ciência e da técnica sem dependência das
inúteis ideologias.
Mas o fenómeno parece outro. As velhas ideologias, o liberalismo, o sovietismo, o legitimismo, o nacionalismo, o socialismo, todas foram criadas para
145
Teilhard de Chardin , L'Avenirdel'Homme,Paris, 1959. Claude Soucy, Pensielogiqueetpenséepolitiqui
chcz Tei/1,ard
de Chardin,Paris, 1967. Louis Pésillier, La patrieplanetaire,Paris, 1977.
154
INTRODUÇÃO
ra mundial que entretanto desapareceu, em parte por influência
.
.
l e interno,
.
ufllª esrrutu
.deologias. Mud ad a a estrutura d o mun d o mternac1ona
as
1
daquelas elhas perderam actualidade e utilidade, pelo que são novas ideolo ostaSvtão em formação para co b nr. o vazio.
. Este vazio
. parece em gran d e
prop
· 'fi1co e tecmco
' ·
· s que'bestário do facto d e que a ace leração d o processo c1ent1
g1a
parte ~ri ~mpanhada por uma evolução correspondente da ética , pelo que o
nã0 foi actro é hoje evidente e gritante. Mas a indiferença tecnocrática perante
·
' · e aos resu lta d os econom1cos
' ·
desencons para olhar exclus1vamente
a' e fi1cac1a
e
1 '
d
h
d'
,
.
. e
0 s va• ore não
te m dimensão capaz e preenc er a 1stanc1aentre uma c01sa
réc111COS
,
out:·tre as novas solidariedades, afinidades e semelhanças que determinam
urações das sociedades que ultrapassam a clássica dimensão nacional,
con, igico-linguíst1ca,
· ou re 1·
·
·
·
'fi1ca,
1g10sa,
esta' Justamente
a capac1'd ad e c1ent1
~~
, ica e económica de responder aos desafios, e uma certa convergenc1a nas
~ec:as de responder, desactualizando as velhas clivagens ideológicas, eviden~r do a necessidade de criar ideologias novas, ou novas concepçóes concor c1an
entes do mundo e da vida.
r Recordem os que, na caracterização de Raymond Aron, que foi um dos
maiorespolitólogos europeus deste século, se configurou uma distinção entre
sociedades
industrializadase sociedades
agráriasque ultrapassa os quadros políticos tradicion ais. As primeiras, que se desenvolveram sobretudo no Norte do
mundo, caracterizam-se pela divisão do trabalho, pela substituição do músculo
pela máquina, e pela substituição da memória pelo computador . Esta característica, com os seus corolários na maneira de viver dos povos, projecta no mapa
uma sombra que cobre os territórios do Norte do globo, desde a Rússia ao continente americano, incluindo portanto os EUA e o Canadá .
Na mesma linha, lembremos que Galbraith fala nas sociedades afluentes,
situadas na mesma zona geográfica, e que se caracterizam pelo facto de terem
recursospara todos os projectos, desde o domínio do fundo dos mares ao domínio do outer-space.Ainda, mais pessimista porque se dedicou a pôr em relevo o
passivodas sociedades ricas, Marcuse falava nas sociedades que produziram o
homemu11id
imensional,isto é, com uma só dimensão que é a de consumidor , a
dimensão conveniente para uma sociedade de consumo. Sociedade esta de consegundo o qual
sumo que inventara, nesta região do mundo, o modelodemercado,
a procura deter mina a oferta. Agora, para sustentar os mecanismos empresariais da oferta e o respectivo lucro, era a tal oferta que condicionava a procura,
criando necessidades e dependências artificiais. O sistema social, incluindo o
proletariado, estaria corrompido pelos electrodomésticos, o automóvel e a televisão, necessid ades que o impedem de qualquer autêntico intervencionismo
revolucionário.
(i
•
A•
155
T EORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Pelo contrário, no Sul do mundo, as sociedades agrárias, independent
mente das diferenças étnicas, culturais e de localização geográfica, são caract
rizadas por monoculturas, fraco investimento, deficiência de quadros, ausênc~de espírito empresarial, urbanismo limitado, fraca expectativa de vida, trabaih a
0
de menores e estatuto social diminuído das mulheres, doença e subaliment
ação, dentro de uma fronteira de fome que Josué de Castro foi um dos prillle'1·
rosa identificar 146•
Deste modo, uma distinção entre o Norte e o Sul do planeta, reclamando
uma solidariedade de que o Concílio Vaticano II assumiu a defesa, deu origelll
a um problema mundial entre áreas que ultrapassam as tradicionais divisões
políticas, e que se exprimiu falando no conflitoNorte-Sul, no diálogoNorte-Sul
ou na cooperação
Norte-Sul, conforme a matriz ideológica do autor é marxista'
liberal, ou humanista cristã.
'
Por outro lado, existem correntes de unidade Norte-Norte, e Sul-Sul, corn
expressão política que se manifestou primeiro nas áreas pobres. Aqui, recordamos que desde a Conferência de Bandung, na Indonésia, realizada em Abri)
de 1955, não faltaram os projectos de unificação política. Nesta conferência
o factor de solidariedade foi a cor da pele; eram os povos de cor em luta contr~
a etnia branca que deteve longamente o poder colonial. Um racismo de sinal
contrário ao que sempre fora invocado tornou-se orientador da luta política.
Depois, em 1958, reuniu no Cairo a Conferência de Solidariedade Afro-Asiática,
onde Nasser foi a figura dominante. Agora era não já apenas a cor, mas a antiga
situação de colóniaque aparecia como cimento da solidariedade. Finalmente,
a Conferência de Havana, de 1966, onde o líder foi Fidel Castro, ligou o anticolonialismo do século XIX ao anticolonialismo do século XX, e apelou para a
unidade baseada na condição geral de pobreza. Era a solidariedade dos povos
de cor, colonizados pelos ocidentais, e pobres, que se afirmava, dando origem
a uma atitude internacional comum dos povos do também chamado Terceiro
Mundo, que foi o neutralismo.
Essencialmente, esta linha significou a neutralidade em relação à competição dos blocos do Norte do mundo (NATO - Pacto de Varsóvia), procurando
recolher cooperação de ambos os lados, mas tendo sempre uma atitude mais
favorável para a URSS que nunca exerceu o poder político naquelas áreas. Mao
Tsé-tung haveria de doutrinar uma solidariedade mais forte daquilo que chamava a área dos 3 A (Ásia -África -América Latina), que constituiriam o campo
da cidade planetária situada no hemisfério Norte. Como demonstrara na China,
e ao contrário da convicção tradicional, o campo pode vencer a cidade, pelo que
o campodo Sul da Terra poderia vencer a cidadeplanetáriado Norte 147•
"' ' Balandier (e outros), Lc TicrsMonde, Paris , 2' ed., 1961.
em Mudança, Lisboa, 2 1 ed ., 1982, p. 128 e sgts .
,., A. Moreira, A ComunidadeInterrracional
156
INTRODUÇÃO
Existem outros projectos, também de perfil ideológico, que apelam para
lidariedades que não respeitam as tradicionais divisões políticas, como é o
50
do fundamentalismodo Irão, ou do imperialismo vietnamita, ou, no plano
0
'ª~rural, os da hispanidade e do lusotropicalismo.
cu Desmentindo as teses da morte das ideologias, a conjuntura deste fim de
,culo começa a tornar evidente uma nova constelação de valores, inspiradora
~: uma renovação ideológica mais caracterizada pelo internacionalismo, pelas
. terdependências a caminho do mundialismo. Deste modo, vão-se definindo
:otradições e sínteses que têm efeito nos alinhamentos de forças na balança
·oternacional
de poderes.
1
Parece importante, e muito apoiada pela UNESCO, a vertente do diálogodas
em vez do conflito, amparado na aceitação da coexistência
e da converculturas,
gênciatendencial. Esta não parece incompatível com à defesa da identidadeculturaldos grupos, antes se afigura um processo de enriquecimento pelas trocas
recíprocas de padrões.
Deste modo, a estrutura seria definida no sentido de repudiar o colonialismo
e O neocolonialismo:
o primeiro, caracterizado pela imposição de uma soberania
alienígena a um povo e seu território, com a característica geral de o colonizador levar a técnica e o capital, e o colonizado fornecer a terra e a mão-de-obra,
tudo segundo um estatuto de subordinação política; o neocolonialismo, que
é um fenómeno subsequente à descolonização moderna, e que se traduz em
impor um domínio económico, financeiro e até cultural a um povo de estruturas mais fracas e geralmente de cultura diferente, sem necessidade de impor a
soberania, uma situação da qual muitos países sul-americanos se queixam em
relaçãoaos EUA, e de que muitos países que foram colónias europeias sequeixamem relação às antigas metrópoles.
Nesta redefinição de condutas entre povos de cultura e etnias diferentes,
aparecem condenados os crimes contraa Humanidade:o principal deles é o genocídio,que se traduz na extinção programada de um povo inteiro. Foi o que aconteceu com os judeus vítimas do programa nazi da última grande guerra, é o que
está a acontecer aos timorenses invadidos pela Indonésia, foi o que aconteceu
aos ibos que se revoltaram contra a Nigéria na década de sessenta, é o que os
sérvios praticam na Bósnia com o nome de limpeza étnica.
Um dos conflitos do acomodamento em curso é o do patriotismoe internaciovisto este implicar redefinições do poder político soberano que o sennalismo,
timento patriótico histórico não aceita sempre ou não aceita facilmente.
Talvezpor esta resistência inevitável é que os movimentosrevolucionários
tendem para o mundialismo, como foi o caso da revolução
proletáriapregada pelo
leninismo histórico e pela versão guerrilheira de Che Guevara. No sentido de
desarmar os conflitos clássicos, acontece que os próprios revolucionários, que
157
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
adoptam formas terríveis de luta como o terrorismo,apoiam e exigem uma Pofí_
ticade desarmamentoentre os blocos, e a pazpelodireitocresce como ideal colec,
tivo da Humanidade, muito apoiado pela série de papas conciliares, em que
avulta João Paulo II.
Não apenas as sociedades internas, mas a sociedade internacional, movelll,
-se doutrinalmente para serem sociedadesde opiniãoem que as armas da paz
substituem as armas da guerra, o métodocontratualsubstitui a imposição,o diá,
logotoma o lugar do combate,ajustiça substitui a simples ordemimposta pelos
vencedores.
De novo as Declarações dos Direitos do Homem, americana de Filadélfia
francesa da Revolução, universal da ONU, se transformam num ponto de refe~
rência geral dos poderes políticos, ainda que divirjam no elenco dos direitos e
no conteúdo de cada um. O valor da soberania, que desde Bodin (1530-1596)
é um dado fundamental da organização mundial, e se apoia frequentemente
mas não sempre, no patriotismo e no nacionalismo, está em processo de revisão'
renuncia a faculdades em favor de entidades supranacionais, admite a incapa~
cidade de continuar a assegurar isolada os objectivos das comunidades, e não
voltará provavelmente a ter o conteúdo do passado.
Questões como a condição da mulher e das crianças, da liberdade da informação, da liberdade de criação artística, da justiça social, da ecologia, da criminalidade internacional, deixaram de pertencer à jurisdição interna para se
transformarem em problemas internacionais.
Uma clara linha de evolução é que a clássica distinção entre os problemas
internos,problemas internos internacionalmenterelevantes,e problemasinternacionais,se mantém as fronteiras formais, mudou o conteúdo de cada uma das
categorias, porque existe um trânsito evidente dos problemas de internos para
internacionais.
A comunidade internacional é um meio social onde todas estas tensões e
correntes se entrecruzam, aparentando algumas características fundamentais
que apesar de tudo permanecem desde o século XV, época da formação dos
grandes Estados modernos. As sociedades são compostas por indivíduos, mas
a sociedade internacional caracteriza-se pela existência real de corposintermédios,dominantemente os Estadossoberanos.
Esta última característica, embora a soberania esteja em evolução, traduz-se numa sociedade internacional ainda em estadodenaturezapor não existir um
poder,ou seu equivalente, garante da observância do normativismo da comu·
nidade internacional. A voluntariedade dos elementos do conjunto ainda é a
regra. Daqui resulta que a eficácia das normas em mudança depende do con·
sentimento do Estado em mudança, tudo caracterizando uma época de planos
decontingência.
158
INTRODUÇÃO
do da fundação da ONU, o direitode veto foi introduzido no estaf\qua~onselho de Segurança, com o declarado fundamento de que uma
curodo tência não se subordina, em questões do seu interesse fundamengrande Pº 0 dos pequenos. Foi por exemplo, em 13 de Julho de 1961, o que
,
0 vot
ca1• ~ . I(r uchtchev quando declarou que "mesmo que todos os pa1ses do
.,pruniu
. - que nao
- estivesse
.
d e acor d o com os mteres.
e.d dop rassem uma d ecisao
mun ~RSS e ameaçasse a sua segurança, a URSS não reconheceria tal decisesda apoiando-se na sua força sustentaria os seus direitos". Tudo significa
·
d epen d enc1a
• . d os interesses,
.
.
São' mas
/idariedadedefiacto,b asea d a na mter
e' mais
d
E
d
d
.
.
.
'dº
p
que aso
e do comportamento os sta os o que o normat1v1smo JUrt 1co. or
~e::~:cke escrevia que "os príncipes e os magistrados dos governos indepen,s s que se encontram no universo vivem num estado de natureza", candente
iro ainda actual.
ce /\ permanência destas características não desmente a evolução interna do
. tema a que temos feito referência. Assim, o quadro geral das relações intersi;cionais foi euromundistaaté ao fim da Segunda Guerra Mundial, mas esse
nredomínio director das potências europeias foi substituído pelo bipolarismo
URSSe EUA. Esta transformação teve, entre as suas consequências, a multiplicaçãoacelerada das independências e a já notada complexidade crescente
das relações internacionais sem que as características gerais tenham desaparecido ou sido substituídas. Assim, o problema da distância entre a proclamada
regrada igualdade dos Estados frente à lei internacional, e a real hierarquia dos
Estados segundo o seu poder, de facto tornou-se mais grave e complexa com
a corrida armamentista e a alteração qualitativa das armas. Como sempre, vai
demorar a harmonização, numa nova Ordem, entre aquilo que permanecerá
do passado, e aquilo que corresponderá às respostas inovadoras. Mas estas são
urgentes para acolher as exigências de um globalismo que inclui uma série de
riscos
maioressem precedente na História.
A Conferência das Nações Unidas sobre o ambiente e o desenvolvimento,
chamada Cimeirada Terra,e que reuniu no Rio de Janeiro de 3 a 14 de Junho de
1992, foi uma das melhores expressões internacionais da progressiva tomada
de consciência do mundialismo e da marcha para uma definição comunitária
da estrutura mundial. Tratou-se de conseguir uma associação global de países afluentes e pobres no sentido de responderem em comum aos desafios
comuns, entre eles o do próprio destino do planeta, uma só Terra para todos
os homens. Os factos, mais uma vez, ultrapassaram em velocidade a mudança
cultural necessária, e por isso não foi possível que os do Norte mostrassem uma
sériadisposição para rever o seu método e sistema de desenvolvimento, e os do
S~Imostrassem que renunciavam ao direito de poluir para se desenvolverem.
Ficouem todo o caso o sentimento da necessidade de definir o desenvolvimento
t
159
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
em termos de ser "socialmente
equitativo,ecologicamente
viável,conscientemente
efi
1
•
caz, e capaz de reequilibrar as relações Norte-Sul" 148 •
§ 6º
Desenvolvimento
dasPerspectivas
1. Desenvolvimento da perspectiva realista
As perspectivas dominantes no campo das relações internacionais lidam todas
com o facto do poder,e todas se confrontam com as teorias,a maior parte das
vezes desdobradas ou complementadas por doutrinas,que procuram racionalizar tais relações ou torná-las coerentes com um sistema de valores. Algumas
destas teorias e doutrinas incorporam-se mesmo no sistema cultural de vastas
áreas e por isso receberam uma apreciável adesão dos Estados na sua conduta.
Vamos examinar o desenvolvimento concreto das principais perspectivas em
confronto com as teorias e doutrinas dominantes, começando pela perspectiva realista.
Indica-se esta em primeiro lugar, que é geralmente qualificada de anglo-saxónica e hoje representada pelo americanismo. Não se confundindo com uma
simples powertheoryou Realpolitik,por isso mesmo não sustenta a indiferença
perante os valores e os ideais, ou perante a lei internacional. Mas orienta -se
pela convicção de que o interesse nacional deve ser suficientemente forte para
o poder ser então usado em nome dos valores . Depois da guerra, o citado Morgenthau, e outros críticos, acusaram a política americana de falta de realismo
por ter assumido uma pregação legal-moralista no mundo, com tendência para
ignorar a balança de poderes 14 9 • Foi esta consideração que inspirou uma constelação de princípios que dão conteúdo ao americanismo, que condicionaram
a expansão do poder americano, e que ainda hoje estão presentes no incerto
conflito ideológico mundial.
Assim, e para começ ar, a Revolução Americana consagrou, com a Constituição assinada em 17 de Setembro de 1787, o direitoà revoltaem nome da
autodeterminação nacional, o que faria larga carreira até aos nossos dias, mas
representou um corte definitivo com o legitimismo que dominava a Europa de
então, e da qual os EUA se separaram. Por outro lado, anunciando assim limi·
tes novos à acção interna e externa do poder , introduziu o princípio e a técnica
" " M. Barri:re (coord.), Terrcpatrímoi11c
co11111m11.
La scienceauservicedel'environnementet du développement,
Paris, 1992. S. Faucheux, J.F. Nocl. Lesmwacesg/oba/ess11rl'e11viro11nement,
Paris, 1992. PNUD, Rapport
Paris, 1992.
111011dial
s11r/e dé1>eloppe111e11t
h11111ai11,
'" H. J.Morgenthau, Another GreatDebate,cit.
160
INTRODUÇAO
ão dos Direitos do Homem (Filadélfia, 1776), que ficou para sem-
Ç
. 1"deo 1og1ca
, . em re 1açao
- as
, areas
,
. on d e d om1.
cu 1tura1s
da Declarauma ban d eira
preco:;res políticos autoritários, ou totalitários, que os não reconhecem ou
natllp itam.
nã0 respe realismo orientou outras definições de políticas destinadas a con_Mas:Estado, o seu interesse e o seu poder. Reclamando o direito à revolta
sohdar distante metrópole, a consolidação interna do Estado primou sobre a
co~dtr~:da Declaração dos Direitos do Homem, que não foram reconhecidos
vah ª'!hões de escravos que continuaram
·
- nem aos m
' d'10s, pn-.
nessa con d"1çao,
15
ªº.5~;s senhores do território, que foram eliminados º.
nunv
· · mternac10na
·
·
1proc 1ama d o e a con d uta
Esta discordância· entre o d 1re1to
. na foi salvaguardada pelo conceito de jurisdiçãointerna,a qual definia os
- aos quais. nao
- e, l'1c1ta
. a mtervençao
.
- d e qua 1quer Esta d o
inter
blemas em re 1açao
~:ºorganização internacional, princípio ainda consagrado no artigo 2 S 7 da
Carta da ONU.
É isto que explica que, por exemplo, a grande Coligação Democrática que
anhou a guerra de 1939-1945 tivesse incluído talvez uma dezena de ditaducompreendendo eventualmente a URSS. A convergência
democráticadizia
respeito aos objectivos externos e à Ordem internacional a estabelecer , não
ao regime interno. Tratou-se de preservar um poder que era essencialmente
da etnia branca.
Depois, em busca de uma dimensão territorial suficiente, definiram a sua
primeirazona de influênciaproclamando a chamada DoutrinadoDestinoManifesto:
tratava-sede considerar manifesto que a fronteira natural do novo Estado se
encontravano Pacífico, e nessa direcção marcharam sem respeito pelas populaçõesindígenas nem pelas soberanias estabelecidas .
Acrescentaram a definição da sua segunda zona de influência com a chamadaDoutrina deMonroe:este presidente, na mensagem ao Congresso de 2 de
Dezembrode 1823, afirmou o isolamento dos EUA em face das questões europeias;a oposição ao restabelecimento de qualquer soberania europeia no continente em decorrência do legitimismo proclamado no Congresso de Viena de
1815;a exclusão da intervenção europeia nos negócios do continente americano .
Isto foi possível porque, com apenas quarenta anos de existência, os EUA eram
já o mais pode roso Estado da área.
A reserva da área deixou de inspirar quaisquer dúvidas quando o Presidente
Theodore Roosevelt, na mensagem ao Congresso de 1904, definiu a doutrina
chamada do bigstick: os EUA declaravam-se decididos a exercer, contra vontade, o dever de polícia internacional sempre que a instabilidade das repú-
;as,
"ºtocquev1·11e, De la démocratieer, Amérique,Paris,
1951, 1, p. 353 .
161
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
blicas sul-americanas o aconselhasse. O respeito pela jurisdição interna dos
outros cedia perante o interesse dos EUA, o que provocou grandes reacções
no continente.
Este realismo traduz-se portanto em assumir que compete aos EUA defi_
nir os seus interesses vitais, a área reservada à sua influência, os limites do
respeito pela jurisdição interna dos outros, proclamando esses princípios
em função das capacidades que em cada momento integram o seu poder
Na política de blocos, os EUA, bem como a antiga URSS, sempre distingui~
ram a área dos seus interesses
mundiaisde que se ocupavam em diálogodirecto,da
área dos interesses regionais a que dão apoio, como acontece com a Aliança do
Atlântico. Esperaram sempre que fosse evidente que não tomavam compromissos a favor dos interesses regionais que ferissem os seus interesses e responsabilidades mundiais.
É fácil a tentação de alargar esta concepção realista a todos os Estados, como
fazem os que assumem tal perspectiva como base da análise das relações internacionais. Mas parece que este realismo é inerente à detenção de uma posição
razoável na hierarquia do poder das potências, e que os Estados mais desfavorecidos de capacidades tendem para assumir posições e propostas e actuações
mais normativas, apologéticas, jurídicas.
Tal realismo americano veio a ter expressão na Carta da ONU, entrada em
vigor em 24 de Outubro de 1945. Não obstante a afirmada fé na pazpelodireito,
as duas superpotências de então proclamavam que um grande país não consentiria, nas questões que respeitassem aos seus interesses fundamentais, subordinar-se ao voto das pequenas potências.
Por isso mesmo, no Conselho de Segurança da ONU, responsável pela paz e
segurança internacionais, ficou definido um mecanismo que consagra o chamado direitode veto.Trata-se de que as decisões do Conselho são tomadas por
maioria dos membros, mas é necessário que nessa maioria estejam os chamados cincograndes:URSS, (hoje a Rússia) EUA, Inglaterra, França e China. Tam·
bém não tiveram hesitação em conferir votos separados à URSS, Bielorrússia e
Ucrânia, o que significou dar três votos à URSS, contra o princípio de que cada
Estado, independentemente do seu tamanho, tem um voto.
O mesmo realismo, no domínio da aplicação do princípio da autodetermi·
nação dos povos e do anticolonialismo, acelerou a retirada das soberanias euro·
peias de todas as suas colónias, mas não encontrou nenhuma colónia dentro
do império soviético.
No que respeita aos EUA, a ONU votou a integração do Hawai e do Alasca
como Estados federados, não obstante a separação geográfica e até étnica;
entregou-lhe, na dependência do Conselho de Segurança onde dispõe de veto,
162
INTRODUÇÃO
.
issos que necessitava para fins de segurança na Micronésia, e nada de
tideicom te foi autorizado em relação a outra soberania.
semelhanto já no domínio da Sociedade das Nações, que durou no intervalo
Deres uerr
' as mun d'1a1s,
· o C onse lh o tm
· h a nove mem b ros, d os quais. cmco,
.
duasg
_
.
das F nça Itália, Japao e Inglaterra senam permanentes. Os EUA nunca
EVA, ra ' .
ram a Sociedade.
integra utro lado, o reconhecimento da hierarquia dos Estados levou à criação,
O
por
· ·
.
pe lo qua l um Esta d o d o concerto oc1SdN dos mandatos.E ra um instituto
pela se,viaconfiado a administração de um outro Estado, território ou povo
1
d:nta nsiderado em condições de civilização e cultura para assumir o tal lugar
naoc:do e independente na comunidade das nações. Estavam nessa situação
separ
·
.
. d epen d enc1a
• . em
a Síria, a Pa lestma,
o LI'b ano e, u' ltimo
a ob ter a m
MarroCos,
, a Namíbia que era um mandato confiado à Africa do Sul.
1989
J\paz acordada no fim da guerra de 1939-1945, e realmente baseada na Nova
dem intern acional, hoje em crise, determinada pelo acordo URSS - EUA,
0
:deu rodo o Leste europeu à URSS, imperativo de um julgamento realista sobre
: dimensão dos poderes em presença. O realismo não repudia os princípios,
assumeou proclama a não-exigibilidade da sua observância em face de circunstânciasconcretas em que a equação dos interesses, e a balança de poderes, não
consentem ir mais longe do que reconhecer que o reino de Deus não é deste
mundo.A hierarquia das potências é admitida como um facto permanente.
2. Desenvolvimento da perspectiva marxista
Pormuito que o marxismose reclame de científico, os desenvolvimentos políticossão tributários evidentes do insubstituível voluntarismo,e a versão soviética
da URSSdeveu muito ao pensamento e vontade de Lenine, presidindo à formaçãode muitas lideranças do terceiromundismo. É por isso importante meditar
algumascorrecções que introduziu na doutrina mais académica do inspirador
da escolae recordar que a queda do sovietismo e a dissolução da URSS em 1989
nãoeliminaram a presença do património ideológico e cultural criado, em meio
séculode hegemonia, numa vasta área do mundo. A referida diferença de velocidades entr e o processo político e o processo cultural exige atenção para a
presença da perspectiva marxista na problemática internacional.
Primeiro, chefe de um movimento em luta pela aquisição do poder, Lenine
assumiuuma posição maquiavélica, porque definiu os padrões da conduta do
partido e das massas sem submissão à ética e ao direito tradicionais da comu~id~deocidental. Anunciou aos marxistas-leninistas que a sua moralidade é
m~eiramentedefinida em função dos interesses do proletariado, sem compromissoscom os valores da sociedade burguesa. É por isso que os meios a empregar podem contrariar esta última moral considerada convencional, mas estão
163
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
justificados pelos fins prosseguidos: tudo o que serve a causa do proletariad
0
está justificado. O motor da luta pelo poder e da construção do Estado pro}
tá rio será o partido ao qual pertence a representação dos interesses da maje.
ria, que é proletária mas não tem consciência da classe à qual efectivamen~pertence. O movimento é conduzido por revolucionários profissionais que
falam em nome dos proletários e conduzem o Estado em função dos interes~
ses dos mesmos.
_
Para assegurar a eficácia do partido, instaurou a regra do centralismode1110
cráticoque significa a concentração total dos poderes na direcção do partid o
Rejeitou qualquer evolucionismo ou reformismo socialista, mantendo intran:
sigentemente a luta de classestal como fora afirmado no ManifestoComunista
publicado em 1848 por Marx e Engels.
'
Pelo que toca à conjuntura mundial em que assumiu o poder, no fim da
guerra de 1914-1918,interpretou-a à luz da teoria do imperialismo, último estádio do capitalismo, teoria exposta num ensaio com esse nome, e que é indispensável conhecer. Neste trabalho procura explicar algumas evidentes contradi ções
entre a previsão teórica de Marx e Engels e a situação da Rússia imperial: porque
é que a revolução apareceu na Rússia onde todavia a concentração de capital
não chegara ao ponto de crise; porque é que numa sociedade pré-capitalis ta a
revolução foi contra a burguesia e o capitalismo; porque é que ainda assim era
o primeiro passo para a vitória mundial do proletariado.
cultural,acrescenta ndo
Também foi Lenine que iniciou a teoria da revolução
ou corrigindo a teoria de Marx. O marxismo clássico descreve as condições
objectivas da revolução, mas Lenine acrescentou que para além dessas condições
objectivas que se traduzem na transformação material, é necessária a revolução cultural que altera as condiçõessubjectivas,isto é, a percepção da realidade social. É necessário quebrar o suporte cultural da velha ordem burguesa.
Modernamente, o famoso Gramsci, com a sua teoria da hegemonia, deu nova
culactualidade à revoluçãoculturalna temática marxista. A chamada revolução
tural chinesa, conduzida por Mao dentro do próprio regime, aparentemente
contra a burocracia e o elitismo, em 1967-68, tinha em vista criar as condições
subjectivas necessárias ao desenvolvimento do Estado e da sociedade soda·
lista de modelo chinês.
A sua teoria do imperialismo descreve o sistema da comunidade internado·
nal como construído e mantido em favor das burguesias capitalistas, organiza·
das estas em Estados, e estes hierarquizados de modo que um pequeno número
de potências ocidentais, em que avultam a Inglaterra, a França, a Alemanha, já
os EUA, constituíam um Directório informal. A hierarquia das potências era
afirmada também nesta percepção. Contrariando orientações sustentadas por
Rosa Luxemburgo (1870-1919) e Trotsky (1879-1940), porque a primeira defen·
164
INTRODUÇÃO
ito pela vontadedospovoscom a consequência da autodeterminação e
diaO resde defendia a revolução
mundialpermanente,Lenine de facto defendeu a
o segun ºão da estrutura histórica do Estado cujo governo assumia (fronteira,
Jllanute~~ objectivos estratégicos), criou a doutrina do socialismo
cercadonumsó
populaçafi
u,ndamentos da política internacional derivada do princípio de que a
5' eos
Pª'
. , pátriadostrabalhadores
de todoo mundo.
Rúss e: modo alterou completamente o conceito básico de Estado que domiDeSrrganização da comum'd ad e mternac10na
.
.
l pe los oc1'd enta1s.
. Enquanto
nou ª ~es entenderam o Estado mantido por uma fidelidade vertical de todos
que es os internos ao po d er nac10na
.
l, e a orgamzaçao
. - po l 1t1ca
' . propna
, . (p luos grup
·
·
) como d e exclus1va
. iuns
. . d'1çao
- mterna,
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. 0 autoritarismo,
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.
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.
ismo-leninismo a 1rma a I e I a e vertzcae a;uns zçaointernacomo prm. do cons01arx
. , . mas enten d e que o proletarza
, •os que protegem o Esta d o sov1et1co,
c!P\ uma unidade de classe ao redor da Terra, que deve politicamente unir-se
t,~letáriosdet~doo mundo,uni-vo.s!),
e assumir_º°?ª ~de!idade h~rizontal or~e~[ada, sem distmção de soberanias, em relaçao a Russta, definida como patrza
dostrabalhadores
detodoo mundo.
Do ponto de vista leninista, a intervenção de qualquer grupo proletário
na luta contra o Estado nacional em que não está integrado não é ingerência na vida interna deste último, é defesa do valor revolucionário mundial.
Adiferença de atitude exigida em relação à URSS vinha ideologicamente justificada com a versão de que a URSS era já um Estado a caminho do socialismo, no qual os interesses proletários eram proeminentes, enquanto que
nos outros Estados, capitalistas, o poder nunca está justificado porque é
opressor.
Como é difícil negar o facto da nacionalidade,a doutrina do Estado marxista-leninista, agora pela mão de Estaline, definiu-se no sentido de aceitar a
identidade etno-linguística como base da organização interna em repúblicas
federadas, mas negou-lhes a autodeterminação no sentido de sair da União,
embora a tenha reconhecido a qualquer povo no sentido de entrar na União.
A doutrina precisou de ser complementada quando, depois da guerra, vários
Estadosda Europa de Leste ficaram ocupados pelas tropas soviéticas, segundo
um estatuto em que foram designados por satélites.
Esta concepção levou à divulgação da tese ocidental de que a URSS não
era um Estado como os outros, e os ocidentais fizeram seguir a Revolução de
1917de um cordãosanitário,isto é, uma conjugação de atitudes, desde o corte
de relações diplomáticas à intervenção militar, no sentido de impedir a exportação da revolução. Tal cordão não durou, e rapidamente o velho modelocontratual,por via dos tratados, foi aplicado à definição das relações da URSS com os
restantes Estados do mundo.
'ª
165
---
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Mas esta :specializou_ uma actividade do Estado que _secham~ estratég
iaindi.
recta,um con1unto de me10s de acção (em regra clandestina) destinados a cori:
a fidelidade vertical das populações ao seu governo legítimo, e os ocide nta~r
procuraram organizar instrumentos idênticos, enfrentaram a gestão de u~s
forma renovada de relacionamento internacional que é a perigosa clande
st;/
dadedoEstado,mas salvaguardaram, sempre que possível, uma área de tra nsp rarência submissa às tradicionais regras diplomáticas e jurídicas.
Pelo seu lado, a URSS agiu sempre coerentemente com a perspectiva leni.
nista, e durante e depois da guerra de 1939-1945 tornou-se mais evide nte
consistente a persistência de métodos. Primeiro quando enfrentou o plan:
nazi de hierarquizar os povos da Europa, sob a regência ariana dos alemães, por
mil anos. Neste caso, Hitler (1889-1945) tinha exposto num livro célebre, lvfein
Kampf,um programa de reabilitação da Alemanha vencida na guerra de 1914.
-1918. Firmado no mito da superioridade da raça ariana, proclamou a conciliação do Herrenvolk(povo superior) com a doutrina do Lebensraum(espaço vital),
anunciando a acção militar para definir este espaço em função das necessida des
daquele povo alemão. Proclamando ainda a doutrina do Führerprinzip,
apresentou-se a si próprio como líder carismático esperado pela Nação, ao qual devia
ser reconhecida totalautoridadepara assumir totalresponsabilidade.
Assim definiu a ditadura de um homem sobre o partido nacional-socialista, deste sobre o Estado, e do Estado sobre a sociedade civil que não tinha
autonomia perante o poder totalitário. Um modelo com muitas semelhanças
com o leninismo, que levou à ditadura do Secretário-Geral sobre o partido,
deste sobre o Estado, e do Estado sobre toda a sociedade civil, étnica e culturalmente plural, existente dentro das fronteiras.
A guerra aparece imediatamente legitimada na doutrina hitleriana para
libertar os grupos do povo alemão submetidos à chamada indignidade do poder
de uma soberania de povos inferiores, e para impor uma definição territorial
que desse ao povo alemão o espaço vital necessário. Complementarmente, a
violência estava legitimada, internamente, para libertar o povo ariano da proclamada agressão de minorias que manchavam a Nação e o Estado, sendo os
judeus os mais notórios e numerosos. Por isso foi adaptado o programa chamado solução
final que se traduziu na tentativa de os liquidar fisicamente a todos,
tendo massacrado seis milhões.
Este projecto, que falhou com a derrota da Alemanha na guerra de 1939-1945, possibilitou todavia um desenvolvimento do conceito e modelo soviéticos. O primeiro importante facto deste drama mundial deu-se quando, em 4
de Fevereiro de 1938, Hitler assumiu o comando supremo das forças armadas,
afastando, com ignóbeis ameaças, o Ministro da Guerra Marechal von Blomberg,
e o Chefe de Estado-Maior General Werner von Frich. A fraqueza das demo·
166
INTRODUÇÃO
.
.dentais, e a rápida progressão das tropas alemãs, tornaram possível,
,raciasdoclgosto de 1939, a assinatura de um Pacto germano-soviético de nãoetll 23 _e que permitiu à URSS dividir com a Alemanha o território da Poló-agressao,r a Carélia separada da Finlândia, e estabelecer as suas posições nos
·a ocupa
, . L , . L' , .
111 '
Bálticos - Estoma, etoma e ttuama.
Estªd~:via, em 22 de Junho de 1941, a Alemanha iniciou a confrontação miliTo tra a URSS sem prévia declaração de guerra, e esta aliou-se à Coligação
carcon ra'tica ocidental, terminando a guerra com os exércitos ocupando o que,
vemoc
.
, , ueda do Muro de Berlim em 1989, se chamou a Europa de Leste. Orgaa~eª qum sistema de satélites,cuja situação internacional foi caracterizada pela
mz;;;nada soberanialimitadaformulada pelo Secretário-Geral Leonid Brejnev,
douual é uma versao
- pragmat1ca
' · d a d outnna
· d as nac10na
.
l'd
1 ad es d e E sta 1·
me,
ª ;da aquando da organização constitucional do Estado leninista.
us A estrut ura do bloco pelo método da imposição tornou mais nítidos os contornos da doutrina sobre o imperialismo,
que foi a trave-mestra da visão leninista
da comunid ade internacional. O conceito operacional de imperialismoé o da
imposição do poder soberano
pelaconquistaou da imposição do poderhegemónico
globalque equivale à soberania.
Foi a política proclamada por Joseph Chamberlain em 1880 para a Inglaterra que dinamizou o vasto Império Britânico. A crítica deste método, pela sua
natureza exploradora dos povos e terras submetidos, foi assumida por Lenine
no citado trabalho de 1917,Imperialismo,últimoestádiodo capitalismo.Chamou-lhe estádio porque considerou esse patamar como inevitável para a economia
capitalista, e tendo como sequência a guerra entre os Estados expansionistas, a
guerraimperialista
entreEstadoscapitalistas,
para assegurar a exploração de recursos
e o domínio dos mercados. Na mesma linha, um dos famosos líderes da revolta
africana, N. Nkrumah (1909-1972) escreveu em 1956 um manifesto intitulado
Neo-Colonialism.
The Last Stageof Imperialism,onde denuncia os métodos não
militares de os Estados capitalistas dominarem os subdesenvolvidos aos quais
formalmente davam a independência. Para o marxismo-leninismo a expansão
da soberania
ou da influênciaglobaldos Estados da sua linha, por meios militares,
ou não-militares, não é imperialismo, é libertaçãodosproletáriosoprimidos.
O fenómeno maoístafaria intervir nos desenvolvimentos do marxismo, em
relação à comunidade internacional, a necessidade de reconhecer outros valores para além dos proletários, designadamente os nacionais e culturais. Mao
tornou-se lendário sobretudo pela chamada LongaMarcha.Em 1934, à beira
da derrota interna pelas tropas governamentais do Kuo Min-tang chefiadas
por Chang Kai-shek, levou um exército de 50.000 homens para o refúgio de
Chen-ci, a 10.000 quilómetros de distância. Assumiu que a guerra é um instrumento necessário e não dispensável enquanto o capitalismo for activo: "Nós,
167
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
comunistas chineses, opomo-nos a todas as guerras injustas inimigas do Pro.
gresso, mas não somos opostos às guerras justas favoráveis ao progresso. Elll
vez de nos opormos a esta última forma de guerra, nós, comunistas chineses
tomaremos nela uma parte activa. Somos partidários da eliminação da guerra'
e não queremos a guerra. Mas é somente pela guerra que podemos eliminar~
guerra. Se queremos abolir as espingardas, devemos pegar nas espingardas
Quando a Humanidade tiver progredido ao ponto de ter eliminado as classe~
e eliminado o Estado, somente então não haverá qualquer guerra."
Mas a China maoísta não aceitou o conceito hierarquizante da Rússia pátria
dos trabalhadores de todo o mundo; assumiu a herança histórica das reivindicações territoriais contra a URSS, e procurou uma função directora no Pacífico
talhando para si própria uma área, com fundamento histórico, onde a responsa~
bilida de de superpotência lhe devia ser reconhecida. Nas suas Memórias,Andrei
Gromyko escreve: "Não me proponho comentar as políticas domésticas de Mao
Tsé-tung. As suas actividades tiveram um grande impacto na situação interna da
China e foram amplamente avaliadas pelo Partido Comunista da União Soviética e outros partidos irmãos; menos foi escrito acerca da influência de Mao nas
relações internacionais; todavia, a política externa da China foi inteiramente
dirigida, durante várias décadas, pelas suas ideias e perspectiva filosófica 1s1_tt
Teve uma clara noção do conflito Norte-Sul,e procurou desenvolver o seu espaço
no sentido Sul-Sul,mobilizando os povos dos 3A (Ásia, África, América Latina),
todos pobres e agrários, contra o bloco Norte -Norte, industrializado e rico. Por
isso as relações sino-soviéticas não foram sempre amenas.
Finalmente, o marxismo-leninismo
expandiu-se num vasto espaçoideológico
que
inclui muitos países do chamado Terceiro Mundo, na área dos 3A. A população
de cor identificava facilmente os colonosbrancoscom os capitalistase a si própria
como composta pelos proletários;a URSS nunca exercera um poder político
nessa área, e por isso não tinha ali um capital de queixas; servia de exemplo de
como uma sociedade
agráriapodia dar o salto para a industrialização, atribuindo
a causa ao regime soviético.
A herança da perspectiva não desapareceu das políticas em exercício nessas
áreas. Por seu lado a China, sob a direcção de DengXiaoping, assumiu uma nova
aproximação ao mundo ocidental com a definição de um socialismode mercado
para dinamizar a economia, e uma construção nova do Estado para responder
151
Gromyko, Memories,Londres, 1989, p. 318. Gorbatchov, Memoriade losanosdecisivos,(1985-1992),
Madrid, 1993. Li Zhisui, La vieprivéd11Présidc11t
Mao,Paris, 1994. François Fejtõ,Lafinedclledemocrazit
sroriaddla
popolari,Milão, 1992, p. 284e sgts. sobre a evolução depois de 1989. Martin Gilbert, Lagra11de
scco11da
guerramondialc,Milão, 1989, p. 234, sobre a invasão da URSS. Alexander Dubcek, C'csr/'espoir
qui mcurtc11dcmicr,Paris, 1993, p. 238, sobre o uso do poder militar soviético. Mikhail Gorbatchov,E/
pon•enirpacíficode 1111estro
planeta,Barcelona, 1986, sobre a revisão da logística do império.
168
INTRODUÇÃO
,
doissistemas:um o das regiões que, como Taiwan, Macau e Hong
a,s
com
·
d e a d mmistraçao
· ·
a uTIIP
•vem com uma economia· d e merca d o e regimes
convi
. - su b meti'd as a uma economia.
descentralizada, e outro o d as reg10es
púbhcaA uestão dos direitos do Homem está a revelar-se a variável que desaesrat:l. ; nas a viabilidade do novo sistema, mas a manutenção das estruturas
fia0 ª0 .ª~ do marxismo. O massacre de Tiananmen deixou a opinião pública
1s2
essenciais
. 1em suspenso .
d
un
111
f{oll.g
'ª
nvolvimento do europeísmo
3,pese eísmo deve ser considerado pelo menos em relação a dois períodos, um
oeurop
. . , . . C om as d uas componenansãoe outro d e regresso
a, p 1ata tiorma ongmana
'd
l
h
.
. ,1zca,
. que encontraram smte,
de exp
do seu legadooc, enta, a umamstae a maqu,ave
ces normativismo do direito internacional , e num conjunto de instituições
sesno
lares, teve um momento em que o concerto dos poderes europeus, de facto
~vaerial detinha o efectivo governo do mundo. A Conferência de Berlim de
. negra, corresunp5, na 'qual os pa1ses
, europeus d eciºdºiram a parti ºlh a d a A,fnca
188
onde certame nte ao ponto alto desse sistema. O ponto crítico do arranque tal~ezpossa ser estabelecido pelo Tratad? de T?~desilhas, de 7 de Junho de 1494,
peloqual D. João II de Portugal e os Reis Catohcos Fernando e Isabel de Castela
assentaram na linha divisória das zonas de expansão respectivas 153•
OsLusíadaspodem ser lidos como um manifesto político do Ocidente cristão,visto que ali se aponta Lisboa como uma Nova Roma, destinada a dar leis
melhoresao mundo inteiro 15 +.Ao mesmo tempo que a crise da Reforma terminavacom a aparência de um poder espiritual do Papa acima dos principados
políticos, estes transformavam a RepúblicaCristãno OcidentedosEstados.Bodin
(1530-1596)e Maquiavel (1459-1517) são os escritores dessa crise de mudança
para o cresci mento e expansão. O primeiro, no seu Six livresde la République
(1576),examina o conceito de soberania que define como "o mais elevado e pe rpétuo" pode r numa comunidade, cujo titular tem o absoluto direito e dever de
fazerleis. As leis são a expressão dessa vontade e todos lhe devem obediênci a
sem necessidade de terem consentido na sua promulgação.
Osvalores do Estado, da soberania, da jurisdição interna, da Nação, do tratado, da
guerrajusta, as técnicas e artes da diplomacia e da estratégia, o objectivo da paz pelo
direito,tudo foram criaçõesdo espírito europeu.
"2Deng x·1aoping,
. SelectedWorks(1975-1982), Pequim, 1984.
153
LegadoPolíticodo Ocidente,cit, p. 97.
"'A · More1ra,
· O ManifestoPolíticod'Os Lusíadas,Braga, 1964.
169
TEO RIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Sempre cultivando a vontade do poder, maquiavelicamente, como not
lucidamente Paul Valéry e André Siegfried 155 • Mas este logo acrescenta "quª~
necessário não esquecer, no outro prato da balança, a beleza moral de tan: e
homens da nossa raça que, seja nas missões, seja na administração colonial os
exército ou mesmo na simples colonização, não se deixaram conduzir se~~o
pela nobre ambição de tornar a Humanidade mais civilizada, isto é, nos:º
li
pensamento, melhor" 156•
O direito internacional é talvez o melhor critério cultural da identificaçã
do europeísmo político, que nele estabeleceu a síntese de todas as suas con~
tradições. As contradições que fizeram nascer o Euromundo num processo d
guerra civil entre os europeus, e que, em duas guerras civis, a que chamamo:
mundiais, consumaram a liquidação dos impérios que tinham sido construídos
a partir desta plataforma europeia.
O Euromundo teve um livro de referência que foi a Bíblia,com leituras dife.
rentes, mas para todos o mesmo. Politicamente definiu uma comunidade internacional que não dava estatuto de igualdade às outras regiões e povos. Forte nas
suas tradições judaico-cristãs, grega e romana, usou afórmula do impériopara
disciplinar, em regime de subordinação, os Estados e povos que encontrou no
processo das Descobertas e expansão.
Sempre que o equilíbrio da balança de poderes o exigiu, recorreu à técnica
do Directório,e mais de uma vez um restrito grupo de potências assumiu o poder
e o direito de governar a comunidade internacional: foi assim no Congresso
de Viena de 1815, que reorganizou a Europa depois da queda de Napoleão, e
na qual se formou a chamada Pentarquia que abrangeu as grandes potências
da época; foi assim na Conferência de Berlim de 1885; foi esta a tradição recolhida no Conselho de Segurança da ONU. Não hesitou em fazer vigorar, ao lado
da igualdade da lei para os Estados, a desigualdade do estatuto político dos
mesmos Estados. As designações império, reino, principado soberano, ducado
soberano, exprimem semanticamente uma hierarquia de poder que se manteve
para além da quebra do sistema feudal. Categorias como as de Estado vassalo,
protectorado, mandato, corresponderam a essa hierarquia que também dava
superioridade global aos Estadoseuropeusem face de todos os outros. A comunidade euromundista assumiu o direito de reconhecer a personalidade internacional dos Estados 157•
Neste contraditório processo, é certo que os grandes princípios que regem
a comunidade internacional mundial, e que estabelecem um travejamento polí155
Paul Valéry, Regardssur /e mondeactuel,Paris, 1941. André Siegfried, La crisedel'Europe,Paris, 1935.
Siegfried, cit., p. 66.
157
Adriano Moreira, A Europaem Formação,Lisboa, 3' ed., 1987.
15
''
170
INTRODUÇÃO
. 'd' co superior às diferenças de perspectivas e seu desenvolvimento, são
. , .
.
. JUíl 1 europeísmo. Ü s prmcip10s
t1coestruturantes que regem o sistema
mun,idosao
.
. _
.
lações internac10nais sao os segumtes:
de,
dia!das re
c(pioda igualdade
1
I- pr ns Estados são juridicamente iguais, o que não se confunde com a /zierarO
fo~~s oderque ficou referida. As relações
depodernão obedecem a essa regra jurí0
p s O princípio-guia, ainda consagrado no artigo 2 S 1 da Carta da ONU é:
dica.m~zação
funda-senoprincípioda igualdade
soberanadetodososseusmembros."
~Aoga;incípio
daimunidadedecorre da igualdade
soberana, porque deste último
resulta a consequência de um Estado não poder ser submetido à
~o~c~içãode outro Estado. Tem cada um imunidadedejurisdição,pelo que os
JU~~:naisde um Estado não podem julgar as actividades soberanas de outro.
rrt exemplo, os tribunais de um Estado não podem julgar a nacionalização
.
d os seus nac10nais.
.
.
dPorbens decretada por outro Esta d o e que fiiram mteresses
OeEstado a que estes pertençam tem de recorrer ao direito de protegerdiplomaticamente os seus nacionais e entrar em negociações.
Esta imunidade não se aplica quando o Estado aparece a agir nos domínios
dodireito privado, por exemplo, como comerciante, o que era frequente em vista
dosregimes socialistas existentes. Mas os Estados beneficiam da imunidade de
execução,isto é, os seus bens não podem ser apreendidos e executados.
Acrescentam-se as imunidadesdiplomáticas
conferidas aos agentes dos Estados estrangeiros. Esta matéria está hoje regulada na Convenção de Viena de
18de Abril de 1961. Entre as imunidades, e a título de reciprocidade, conta-se
a imunidade das comunicações que não permite examinar nem reter a correspondência ou os correios diplomáticos; o privilégio da cifra,ou seja, de codificar as comunicações; a inviolabilidade dos locais da missão diplomática, sem
queisso signifique extraterritorialidade; certas imunidades jurisdicionais, que
subtraem os diplomatas ao julgamento pelos tribunais do Estado onde estão
acreditados.
O princípioda reciprocidade
diz respeito à igualdade concreta das relações:
um Estado garante a outro e aos seus nacionais um tratamento igual ao que o
outro Estado lhe dispensar e aos seus nacionais. Ambos procurarão pragmaticamente assegurar um comportamento que se traduza em igualdade efectiva
de compromissos e desempenho.
O corolário deste último princípio é o princípiode não-discriminação.
Trata-se de cada Estado não recusar a certos Estados os direitos ou vantagens que
concedeua outros Estados. É um princípio de aplicação tendencional, que tem
em_contaas circunstâncias. Assim, no tratado do GATT, que estabeleceu um
regime geral de comércio e tarifas, a construção do sistema assentou na abri-
q~'ª.
{to
171
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
gação que cada Estado assumia de reservar um tratamento similar para tod
Os
.
_
..
os Edsta os com os quais entra em re 1açoes comerciais.
Acontece que este princípio, não tendo em conta a condição real dos Est
dos, levaria a consequências perversas e não queridas. É por isso que nas ret'
ções entre países industrializados e países em vias de desenvolvimento est:·
últimos preferem o que se chama uma dualidadede normas:afastam o princíp· s
.
~
da não-discriminação nas relações entre os dois grupos ?e Estados, e aplicatn.
-no no interior do grupo dos países em desenvolvimento. E o que acontece desd
1968, quando a CNUCED (Conferência das Nações Unidas sobre o Corné:
cio e o Desenvolvimento) estabeleceu um sistemageneralizadodepreferência
s.
A Declaração de 1 de Maio de 1974 (instauração de uma nova ordem econórnica
internacional) reclama para os países do Terceiro Mundo um "tratamento pre.
ferencial e sem reciprocidade".
II - Princípioda independência
Este princípio foi-se tornando complexo com a evolução da conjuntura: trata-se do direito de cada povo a dispor de si próprio; do direito, proclamado pelos
antigos colonizados, da soberania permanente sobre os recursos naturais; e
do princípio da não-intervenção de terceiros na vida interna de cada Estado.
Comecemos pelo último.
foi afirmada no artigo 15 S 8 do Pacto da Sociedade das
A não-intervenção
Nações, e no artigo 2 S 7 da Carta da ONU. Mas é frequentemente violada. Na
Guerra Civil de Espanha, entre 1936 e 1939, a SdN viu-se obrigada a invocar
repetidamente o princípio sem conseguir evitar que as potências que se defrontariam na guerra de 1939-1945 interviessem respectivamente a favor dos nacionalistas revoltados, e dos republicanos que detinham o governo legítimo.
Depois da guerra as grandes potências intervieram frequentemente na vida
interna de outros países, mas as pequenas e médias potências também o fazem,
como acontece diariamente no Médio Oriente. Discute-se se o princípio é válido
quando se trata de uma intervençãohumanitária,por exemplo para proteger os
próprios nacionais, como fez a França no Zaire em 1978; como fez Israel em
1976 quando libertou em Entebe (Uganda) os passageiros de um avião que
fora desviado; como tentaram, sem êxito, os EUA em 1980, quando quiseram
libertar os seus diplomatas sequestrados no Irão. Em 1989, os EUA invadiram
o Panamá, com a operação que chamaram justa causa,para prenderem o Gene·
ral Noriega, antigo Presidente da República e Comandante-em-Chefe do Exér·
cito, porque este era acusado de utilizar o aparelho de Estado para canalizar o
comércio de drogas para os EUA, e o princípio também foi invocado. As reac·
ções da comunidade internacional são contraditórias, e o drama da dissolução
da Jugoslávia, ou a tragédia do Ruanda (1994), estão a servir de dinamizadores
172
INTRODUÇÃO
_ do direito e obrigação da intervenção humanitária da própria
forrnuladǪ?ternacional, até agora usando a legitimidade que vai reconheuni·da e tn
vosà autodeterminação,
que não vinha no Pacto da SdN, está hoje
nd0 à ~NdUs.po
O
d're1to
•
•
I
O
a Cart a da ONU, sendo uma das medidas destmadas a favorecer a
presso n de garantir aos povos a opção pela independência, e a sua proclaA Resolução
z. frata -seefoi a outra face da proclamação contra o colonialismo.
1
~w~
.
snaçaXV)de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia Geral da ONU, chama-se
158
• Depois,
J514( _ sobrea outorgada independência
aospaísese aospovoscoloniais
IJtcfar:~ºaResolução 2625 (XXV), que foi chamada Declaração
sobreosprincípios
em~9 . '-nternaci
onalrelativosàs relaçõesinternacionaise à cooperação
e11tre
Estados,
4od1re1to'
. , .
volveuo pn nc1p10.
desen Iicação do princípio defrontou-se sempre com grandes dificuldades. Foi
efectivo em todos os territórios submetidos ao poder colonial dos Estacorn;uropeus. Não foi aplicado a nenhum território sob a soberania da URSS
dosdosEUA.Também não foi considerado aplicável aos países integrados num
:ado nascido da descolonização, porque os países do Terceiro Mundo todos susntamO carácter definitivo das suas fronteiras. Foi o caso do Biafra integrado na
teigéria.É a regra proclamada pela OUA (Organização de Unidade Africana) 159•
A soberania
permanentesobreosrecursosnaturaisfoi objecto do estudo de uma
Comissãoda ONU criada em 1958, objecto de várias resoluções, e finalmente
explicitadana Declaração de 14 de Dezembro de 1962. Então foi estabelecido
queos investimentos estrangeiros deviam ser garantidos, e que, no caso de expropriação,sempre por motivos de utilidade pública, devia ser dada uma indemnização.Todavia, depois de 1974, a reivindicação de uma novaordemeconómica
tem levado a maior radicalismo dos Estados que foram colónias, os
internacional
quaisreivindicam o direito absoluto da expropriação dos estrangeiros sem obrigaçãode indemnizar. O acordo internacional sobre este ponto não existe 160 •
O europeísmo,
que deixou este legado em vigor no mundo, primeiro dividiu-se
internamente com os desviacionismos que foram o americanismo
e o sovietismo,
e depois sofreu um processo de recuo determinado pelas guerras mundiais, de
modoque as soberanias europeias regressaram todas à plataforma originária,
tal como as legiões romanas um dia regressaram a Roma 161•
AÂo
Guilhaudis, Le droitdespeuplesà disposerd'eux-mêmes,Grenoble, 1976 .
. H. Thierr y, Droit internationalpublic,Montchrestian, 1981, p . 473. Fawcett, lnterventionin InternallonalLall',RCADI, 1961, II , ol., pp. 342-421. Fisher, La souverainctésur les ressourm 11aturelles,
AFD,
1962, pp.517 528.
<}a
;: ln LegadoPolíticodo Ocidente, cit ., Celso de Albuquerque, Autodeterminação,p. 265.
d Verevoluç:ioem A. Moreira, A EuropacmFormação,3' ed., Lisboa, 1987; Adriano Moreira, Oshorizontes
ª Europa,in Verbo, vol. 23, 1994, p . 305.
173
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
. Desde então, o europeís~o_passou, progre~sivamente, a de.sig?ar out ro Pro.
iecto. Este assenta na conv1cçao de que os pa1ses europeus tem mteress es _
interdependentes e modelos culturais dominantes tão comuns, que nenhutao
acção política pode ter êxito sem uma integração que acabe com as frequ:ª
tes guerras civis do passado. O ideal da Nação-Estadodeve ser superad o Pe~criação de instituições legais, políticas e económicas comuns. A organ iza _ª
dinamizadora deste novo ideal tem sido a Comunidade Económica Eurotº
(CEE), hoje União Europeia, que foi instituída pelo Tratado de Roma de 25~:
Março de 1957.
Baseada embora no projecto inicial de um mercadocomum,tem evoluído
sentido de assumir uma unidadepolíticaainda sem projecto ~armai bem de~~
1
nido, um objectivo tornado inevitável pelo chamado Acto Unicoassinado n
Luxemburgo em 1986, e assumido finalmente pelo Tratadode Maastricht do
' e
1992. O movimento tende para fazer desaparecer as condições que animarall!
os conflitos internos do passado, para unificar a sociedade civil euro peia, e
para estabelecer finalmente um poder político supranacional. Este movimento
europeísta de novo sinal exerceu uma forte atracção e influência no Leste europeu submetido ao regime dos satélites, e o projecto da casacomumeuropeia,
também de contornos mal definidos, exprimiu esse ideal de uma união final
dos países europeus desde o Atlântico aos Urales. A herança do Ocident e dos
Estados implica um conflito não superado entre um proclamado patrio tismo
europeu, sem passado, e um passado histórico vinculado ao patriotism o dos
vários povos europeus.
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4. Desenvolvimento da perspectiva neutralista
A Carta da ONU também inclui, com definição dispersa pelos seus capítulos,e
pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, um modelodedesenvolvimento
político.Trata-se da concepção democrática do Estado, que foi parte essencialda
m
ideologia da Aliança que ganhou a guerra, à qual a tradição americana, inglesa
e francesa deram a contribuição mais significativa 162 • A Carta, no artigo 73b),
tÍ'
impunha à potência administrante o dever de ajudar os povos dos territórios
-r
não autónomos a conseguir "um desenvolvimento progressivo das suas livres
o
instituições políticas".
n:
Todavia, alguns factos talvez indutáveis, porque com os factos não se dis·
cute, impuseram com excessiva frequência trajectos históricos não concor·
dantes com a previsão da Carta. Em primeiro lugar, afronteira, mais naquelas
regiões do que agora se doutrina para as antigas metrópoles, é um elemento
1•! Adriano Moreira, PolíticaInternacional,Porto, 1970, p. 289 e sgts., sobre os "sistemas políticos da
conjuntura".
174
19
INTRODUÇÃO
enta l do Estado, e ali foram traçadas pelo acordo dos antigos colofundªtn s sem ter em conta as realidades históricas, culturais e étnicas das
. adore ,
.
• .
.
ntZ
ões. Por isso, a referencia que se tornou dominante no processo des1
com o traçadodasfronteiras
popu .ªç dor foi a de Jazercoincidiras independências
lon1za
, .
co . . Assim a Indones1a, por exemplo, sempre declarou na ONU, antes da
1
cofont
ª s.ãoPortuguesa de 1974, que não tinha reivindicações sobre Timor1
uçque agora ocupa e .d ec l,ara mt~gra
.
d o no ~eu ternt~no.
. ' . D e.ste mo d
.Re"º
este,
º:
/ismoestadual neutraltstae expressaodopluralismoco/oma/anterior, e não e
0 Puranhecime nto de realidades institucionais resultantes ou equivalentes
L/
0
r~~~adonacional. Foi por esta razão que a OUA (Organização de Unidade
~~ricana),criada e~ ~ddis-Abeba em 25 de Maio de 1963, assentou em que
fi onteirassãodefimttvas.
as ~a herança colonial, além das fronteiras,teve lugar de destaque a línguado
lonizador, que ficou como instrumento indispensável de comunicação geral
c:rre os grupos integrados dentro das fronteiras, e assim ficou a África divi~idapor áreas que falam português, francês ou inglês, tal como no continente
americano se implantara uma geografia do inglês, do francês, do castelhano
e do portu guês .
Quanto ao modelo de desenvolvimento político interno, talvez seja reconhecívelo facto de que a experiência
históricacolonialfoi uma herança mais referenciada do que a propostaideológica
da Carta da ONU.
A tradição política dessas áreas, com diferenças essenciais entre cada um
dos3A(Ásia - África -América Latina) não tem paradigmas históricos coincidentescom os ocidentais 163• O salto imposto da sua realidade histórico-cultural
paraa moderni dade ocidental , que a Carta consigna, tem como referência existencialo própri o modelo colonial de exercício do poder político. E tal modelo,
qualquerque fosse a soberania imperial , não respondia ao constitucionalismo
das democracias estabilizadas da frente marítima europeia que detinham as
maioressupremacias coloniais.
A Inglater ra, a França, a Holanda, a Bélgica, Portugal, em toda a parte mantiverama concentração de poderes, regressaram com os governadores e vice·reisao funcionário do legitimismo anterior às revoluções liberais, substituíram
o princípio da lei igual para todos pelos estatutos diferenciados, distinguiram,
nas declarações de direitos, os direitos essenciais dos direitos instrumentais
queos condic ionam, admitiram mas tutelaram os direitos políticos apenas em
relaçãoàs comu nidades tradicionais.
163
Balandier, Sociologie
actuellede l'AfriqueNoire, Paris, 1955; Balandier(e outros) /e TiersMonde, Paris,
1956.
175
T ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A luta, algumas vezes pacífica mas frequentemente armada, pela independê
eia, mostrou objectivamente que os movimentos queriam, com ela, obter ta 11•
bém e exactamente o poder integral, concreto e sofrido, que se lhe opunha lllA lei da homologiafuncionou, amparada na sua aplicação pela larga ade~ideológica à proposta marxista do partido e do Estado, na qual o centra/isª0
' · fi01· sempre um e1emento estrutura 1.
ll!o
democratico
Em países onde a imagem democrática foi mais preservada, como no Seneg
1
na Costa do Marfim, os presidentes Senghor e Houphouet-Boigny foram che~'
vitalícios, exactamente como aconteceu em toda a parte onde o centralisrn s
democrático foi invocado. Apersonalidade
dolíder,o cultodapersonalidade,
o partido
0
único,o partido-sistema,o tribalismo,mantiveram-se em proporções diversas lll
raras vezes terão deix~do de impor_os seus reflexos na realidade política, qu:
se trate do Norte de Africa ou da Africa negra, do antigo Império das Índiar
s
ou da Asia, com excepções muito contadas. Neste desabar da velha Ordem elll
que nos encontramos, uma das questões essenciais, sem resposta coerent e e
viável conhecida, é a de saber como conciliar o exigido respeito mundial pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem, esta sempre com leituras não-uniformes, com modelos políticos mais próximos das realidades culturais nativas, mas afastados da proposta da Carta da ONU.
Algumas intervenções humanitárias ocidentais, tal como na Somália (1993),
no Ruanda (1994), no Haiti (1994), viram-se frustradas talvez em parte pela
falta de resposta para esta questão. Quando, em 1991, o Iraque foi confronta do
com uma coligação de trinta e dois Estados, liderada pelos EUA, para retirar do
Koweit que invadiu e anexou em 2 de Agosto de 1990, operação conhecida por
Tempestade no Deserto, o Presidente Saddam Hussein, responsável por vários
graves atentados contra a Ordem internacional, sobreviveu apoiado num consenso internacional, que não pediu, em favor do statu quo.Continuou implacável
no esmagamento da oposição, na destruição dos chiitas do Sul e, de caminho,
de bairros inteiros de Bassorah, de Kerbala e Nadjat, matando cinquenta mil
pessoas e fazendo exilar sessenta mil, ao mesmo tempo que continuava com a
repressão brutal dos curdos e mantinha o projecto de conseguir fabricar armas
atómicas. Outros exemplos documentam esta situação de impotência da comu·
nidade internacional para submeter o desenvolvimento político ao modelo ocidental recolhido pela lei internacional.
A luta interna pelo poder usando a violência armada, depois da independência, foi uma prática repetida, designadamente no Líbano, na Somália, no Sri
Lanka, no Cambodja, na Indonésia, na Libéria, no Irão, no Zaire, no Burundi,
no Sudão , em Angola, em Moçambique. A legitimidaderevolucionáriasupera a
legitimidade democrática, assim como a legitimidadeda vitóriadispensa outras
consagrações.
176
INTRODUÇÃO
rnamente, o princípio da legitimidade
daguerradelibertação
cobriu operaExte se inscrevem entre as maiores tragédias militares da história. Na noite
-~que
.
ço de Junho de 1950, fortes contmgentes norte-coreanos atravessaram o
5
de 2 lo 38, linha em que se tinha fixado a fronteira dos ocidentais com os sovié1
~araeNa suas Memórias, o General MacArthur, que comandava no pacífico,
ricos. a· "Senti um calafrio. Nove anos antes, em 7 de Dezembro de 1941, tamin,for:~ingo, outra chamada anunciou-me o ataque japonês a Pearl Harbour, e
bet11escutava de novo o som da guerra" 164• O tratado de paz seria assinado em
ago;; Julho de 1953, mas de facto tratou-se apenas de um armistício ainda em
2 r e que manteve viva a questão da reunificação de ambas as Coreias.
vig~~ Indochina, tornou-se lendário Ho Chi Minh, uma das personalidades
is ricas de todo este período. Fracassada a negociação com a França para que
m:a abandonasse voluntariamente o território, assumiu, com a cooperação do
~eneral Giap, uma das maiores revelações militares do século, a luta armada.
Estaterminou para a França com o desastre de Dien Bien Phu, onde durante 55
diasos seus exércitos foram massacrados, capitulando em 7 de Maio de 1954.
Terminou assim a guerra da Indochina, mas o mundo ainda havia de viver a
guerra no mesmo território, então chamado de Vietname. Fora em 26 de Abril
de1954que se iniciara a Conferência de Genebra e onde se tratou da divisão da
Alemanha,da divisão da Coreia, e da divisão da Indochina. O General Giap compareceuem posição de superioridade, uma experiência nova para os ocidentais. A
delegaçãofrancesa, chefiada pelo ilustre mas efémero Mende-France, concordou
nadivisãodo ter ritório pelo paralelo 17,reconhecendo-se a República Democráticade Ho Chi Minh. Enquanto Foster Dulles, Secretário de Estado americano,
consideravao colonialismo francês um obstáculo para a paz, e se congratulava
porque"se tin ha obtido a independência do Cambodja, do Laos e do Vietname
do Sul",os marxistas nacionalistas do Norte não escondiam o objectivo da unificação.Em 20 de Dezembro de 1960 foi anunciado que algures fora celebrado
um Congresso para a formação de uma Frente Nacional para a Libertação do
Sul,mais tarde conhecida por Vietcong,visto que congsignifica comunista.
Em 1961começou a guerra civil no Vietname dirigida pelos comunistas, e o
PresidenteKennedy resolveu cumprir a promessa de Eisenhower no sentido de
que ajudaria "o Governo do Vietname a impedir a subversão e a agressão com
todos os meios militares necessários".
O envolvimento americano foi total, para sofrer a primeira derrota da sua
história, crian do um complexo nacional nunca absorvido, incluindo a dúvida
colectiva sobre a justiça da guerra e a justificação dos custos em vidas humanas,
mutilações, dest ruição de bens e da natureza, derrocada dos valores morais.
?
,.. M
acAnhur, Memories,N.Y., 1964.
177
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Pela segunda vez, um exército de guerrilheiros camponeses batia irremedi
ave1.
mente uma potência industrial colocada no topo do poder militar.
Quando, em 27 de Janeiro de 1973, por iniciativa do Presidente Nixon, ft.
ordenado o cessar-fogo, o balanço da guerra registava a perda de 56.000 GI n °•
total de meio milhão de homens, uma despesa avaliada em 135 mil milhões'%
dólares, uma desoladora experiência no uso das armas químicas, uma hu d~
lhação nacional, e nenhum problema resolvido. A incerteza do sentido da nI'lltOrdem, da qual pouco se pode prognosticar com segurança, o desenvolvirne~"a
das perspectivas neutralista e terceiromundista, mais do que da americana to
europeia, defrontam-se com um mundo onde se desvaneceu o adversário qou
estava identificado pela colonização anterior e próxima, para buscar orientaç~e
num ambiente do transitório, do instável, do equívoco. A democracia inscrito
na Carta da ONU como modelo de desenvolvimento político é mais invocadª
para fins de imagem do que como projecto em vias de execução. Assim coll.l
ª
o desamparo ideológico derivado do afundamento do sovietismo acelerou~
rumo em direcção ao populismo que salvaguarda a estrutura política da obrigação de assumir um debate político autêntico 165•
O Prémio Nobel Wóle Soyinka, o primeiro escritor africano que, em 1986
obteve essa consagração, e que está rapidamente a ser traduzido em todo~
mundo, disse da Nigéria que esse país "é uma grande Nação aprisionada por
um grupo de militares violentos e primitivos". E todavia, de acordo com a sua
própria literatura, não é uma excepção.
No livroAPlay ofGiants,submete ao ridículo, mas do ponto de vista dos critérios ocidentais que presidem ao uso, considerado excelente, que faz da língua
inglesa, alguns dos mais típicos dirigentes africanos, como Idi Amin (Uganda),
Bokassa (Rep. Centro-africana), Mobutu (Zaire), Nguema (Guiné). As suas histórias trágicas, como O homemmorreu,Aflorestadosmil demónios,ou o biográfico
Aké, documentam a distância entre o ocidentalizado que ama a sua pátria, e o
regresso do aparelho político às heranças tribalistas.
O panorama é diferente nas áreas culturais da Ásia oriental, a partir da qual
o maoísmo pretendeu unificar a zona dos 3A. Talvez mais exactamente nos países do Budismo, do Confucionismo e do Taoísmo, onde, no dizer de Edward N.
Luttwak, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington,
"a educação é a verdadeira religião que recebe a devoção que os monoteístas
reservam para a sua fé" 166 •
"''J. M. Robercs, Historyofthc World,N.Y., 1987, p. 935 e sgts., sobre a marcha da revolução asiática. Paul
Johnson, UneHistoircdu 111011dc
modcme,Paris, 1985, II vol., p. 47 e sgts., sobre a geraçãode Ba11dung.
"''' Edward N. Lumvak, I 11uo1•i
protagonisti,in Ulisse 2000, Outubro, 1994. Kissingcr, Mis Memorias,
Madrid, 1979, p. 169 e sgts., sobre "a agonia do Vietname". David Me Cullough, Truma11,
N.Y., 199Z,
p. 821 e sgts., sobre a crise MacArthur.
178
INTRODUÇÃO
. de um lugar foi possível verificar que o desenvolvimento
políticoe o
(llalS
J3!ll . ntoeconómico,
de acordo com os padrões da ONU, se deram paralejt5t111'º/vime
ue noutros casos, o desenvolvimento económico foi possível com
e
q
' autontanos.
· ' · O processo que, const"deran d o espec1'fi1caa recunte,
e
Jant _
)íticos
padro~s~~ Japão, transforma a Coreia, Singapura, Taiwan, Tailândia, e União
peraçao mbém alastrou à China e à Indonésia. O mecanismo dos chamados
- · orienta
·
l co 1oca perguntas d e resposta d"f'
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Jndiana,taonómicosda Asta
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dentais q ia· saber se os oc1"dentats,
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readas à expansao c mesa e m 1ana, como aconteceu com a Japonesa,
~~
.
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arávelda questão do desemprego crescente; depots, se o processo absore1nsep
·
·
•rnensidão da Ch"ma e d a 1·n d"1a,e' mqmetante
prever o que acontecera ' ao
ver:i:nre global, quando dois biliões de chineses e indianos participarem no
am urno dos poluentes. A iminência dos conflitos de interesses, ou do agraconsento dos existentes,
.
e
d a mu d ança d e prospect1va
. d e socze.
e, um d os 1actores
vam
.
. l.
dade
internacio
nal para a d e comum"dade znternaczona
s.Desenvolvimento
internacionalista
Nadécada de sessenta houve uma espécie de revisão da tradição liberal dos
séculos XVIII e XIX,ao mesmo tempo tributária do utilitarismo anglo-saxónico
e do utopismo. Tratou-se geralmente de pôr em evidência que o paradigma do
Estadoagente das relações internacionais em função dos seus interesses permanentes, como por exemplo entendia o citado Hans Morgenthau, não correspondia à estrutura nova das relações internacionais, que tinham ultrapassado
0 estarismo para fazerem avançar a intervenção das empresas multinacionais e
transnacionais, dos indivíduos, dos poderes erráticos, das Igrejas, das organizações internacionais não-estaduais como as internacionais políticas, ou profissionais, ou culturais, ou científicas. Falou-se então de transnacionalismo,
significando que a sociedade internacional não é apenas internacional, tem
interesses que excedem tal formato; não é a simples expressão da coexistênciados Estados, é também o conjunto das relações estabelecidas entre organizações e homens a despeito das barreiras estaduais. O jurista Philip Jessup
foi um dos conhecidos teorizadores, mas juntam-se nomes como os de Robert
0 'Keohane e Joseph Nye, ou Arnold Wolfers e Wilfred Jenks 167•
Jessup. Tra11s11atio11al
Law,1956 . Arnold Wolfers, The actorsi11ivorldpolitics,Discordand Col/aboration,
Beldinorcs, 1962. Wilfred Jenks, E/ dercc/10
comú11
dela Huma11idad,
Madrid , 1968 , e bibliografia citada .
Politics:Essay011thcco11verge11ce
ofNationalandInternationalSystem,N.Y., 1969. E.
JamesRo~cnau, Li11kage
Morse,Modcmizationand the transformationof intemationalrelations,N.Y., 1976 . K. Deutsh e D. Singer ,
Multipolar
PowcrSystcmand b,temational stability,WorldPolitics,XVI, 1964.
i.,
179
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A época em que os Estados monopolizaram as relações clássicas da dipl
macia, da paz e da guerra, terá desaparecido porque os Estados perdera lllo.
monopólio das relações exteriores. Na linguagem de Nye e O'Keohane, trat a. º
8
de substituir um modelo de statecentricparadigm,por um modelo de world
ticsparadigmem que o uso da força, ou ameaça dela, já não será o facto esse~.
eia! das relações internacionais, mas sim o fenómeno de bargainingou troe
entre uma pluralidade de agentes, nem todos estaduais. Um Estado, sem Pes;
na balança estratégica dos poderes militares, desempenha eventualmente um
papel essencial pela sua capacidade financeira ou intervenção ideológica, colllo
acontece respectivamente com a Suíça e Cuba. Esta perspectiva internaci ona.
lista ou transnacionalist~ inspirou corre~tes ~cadémicas i~p?r~antes, desig.
nadamente a cada vez mais presente teona da mterdependenc1a mternaci onaJ
de Cooper, Morse e Bergsten, e a teoria da informação de Karl Deutsch.
Esta perspectiva não deixou de enfrentar a resistência da escola clássica
designadamente de Kenneth Waltz, quando doutrinou sobre o mito da inter~
dependência, sustentando que o fenómeno transnacional não apaga o facto
dominante de que o Estado, monopolizador do jogo diplomático e estratég ico,
continua a ser o agente principal das relações internacionais.
Trata-se portanto, essencialmente, de um conflito de perspectivas sociológicas sobre a função real do Estado: para os clássicos, o Estado é o agente das
intervenções determinantes, causais, das relações internacionais, gerind o as
relações dos poderes soberanos e o risco da guerra; para os transnacionalis tas
ou internacionalistas, o sistema da interdependência mundial crescente relativizou o papel do Estado porque os indivíduos e as organizações não-estatais
influenciam a conduta dos Estados e geram um modelo que é sobretudo de
interdependência, trocas e serviços.
No espaço europeu, foi Marcel Merle quem melhor assumiu esta posição,
sustentando que o Estado é muito frequentemente uma simples máscara que
não deixa ver a real acção dos actores supostos secundários e que o poder político não controla. Adaptando a metodologia sistémica, afirma a existência de
um sistema internacional cujo elemento mais importante são as forças transnacionais.
Parece existir muito de verdade na perspectiva transnacional, a qual começa
já a ter concretização no aparecimento de modelos políticos de grandes espaços,
que procuram suprir a insuficiência do Estado para responderem ao fenómeno
da interdependência. As doutrinas de Vitoria e Suárez, o conceito de comunidade mundial, a realidade de um património comum da Humanidade, estão
na linha de pensamento agora renascida com o nome de internacionalismo ou
transnacionalismo, mas para enfrentar a novidade do globalismo, que excede
pa/
180
INTRODUÇÃO
ão internacionalista, porque mais uma vez o facto da mudança poliapercep~e em velocidade a resposta cultural.
·ca exce
ti
da Guerra Fria: contingência e Ordem
6
6,O °:e endentes revoluções de 1989 puseram todos os Estados do planeta
P..5 surpea evidência de que a única coisa certa, a respeito da Nova Ordem mun. sem que os ana 1·
. .
d e previsao,
. - os serperant
. é ue ruiu a antiga,
1stas, os mstitutos
d!al, ;t aduais, ou os governos, tivessem pressentido aquilo por que lutavam
v,çose
.
. , 1
'dente havia me10 secu o.
o OCI
n Ao redor da Terra, o florescimento dos desafios que eram relegados para
umbra pelo conflito central da Guerra Fria não anuncia sempre a espea pen de que a paz para os nossos dias seja necessariamente o ponto ómega do
rança
ocesso em curso.
pr Para além da renovação chinesa, da queda do Muro, da revolução romena,
da invasãodo Koweit, da Tempestade no Deserto, do golpe de Estado na URSS,
ontos críticos que concentraram a informação e as inquietações dos povos,
~ fogo lento e persistente das ameaças menores continuou alimentado com
explosõesameaçadoras. Devem mencionar-se algumas crises !nternas, internacionalmente relevantes, como a liquidação do apartheidna Africa do Sul, o
estado de sítio na Argélia, a desordem na Argentina, o desastre sempre anunciadoda administração no Brasil, a crise federalista no Canadá, a agonia teimosaem Cuba, a instabilidade na União Indiana, o alerta para a paz em Israel,
a incerteza em Marrocos, os limites de sobrevivência em África, a desorientaçãona Polónia, a tragédia da Bósnia, o massacre no Ruanda.
Talveza percepção mais realista, e resguardada dos excessos inevitáveis da
competição pelo domínio da informação e das imagens com peso no ambiente
decisório,seja a que reconhece nesta longa teoria de conflitos menores a teia,
queo conflito bipolar ou estimulava ou continha, mas cuja expansão em grande
medida controlava .
A primeira evidência que emergiu no novo quadro resultante da implosão
soviética foi a da urgência de um plano de contingência,que não existia, para a
súbitatransformação da estrutura mundial. Mudança carregada de pormenores de uma nova justiça internacional, mas privada dos termos de referência
respeitantes à identificação e hierarquia dos poderes políticos.
No processo em curso talvez seja portanto útil distinguir o plano de contingênciado projectoda Nova Ordem,no sentido de racionalizar com alguma
credibilidade a questão dos EUA como única superpotência em exercício,
0
convívio das grandes e médias potências em face de desafios graves, o
encontro de todas as perspectivas com o mesmo desafio da comunidade
mundial.
181
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
De facto, a primeira importante decisão dos EUA, depois de a URSS t
arreado a bandeira em cima do Muro de Berlim, foi a de acrescentar, à lict
er
rança da defesa ocidental, a responsabilidade de preencher o vazio estratégi~
mundial.
Admitindo que a revisão da logística do império que os factos impusera
aos soviéticos tem equivalente nas circunstâncias especificamente americ:
nas, todavia foi contida a tentação isolacionista em favor do envolvimento no
processo da inesperada mudança, responsabilizando-se pela elaboração e exe.
cução de um plano de contingência.
Até à cimeira da NATO, realizada em Londres em 6 de Junho de 1990 n
' a
qual a URSS deixou de ser considerada o inimigo e foi proclamada a necessidade de um novo atlantismo", os EUAasseguraram uma liderança que permitiu
o acordo final entre Moscovo e Bona, e imprimiu a confiança que lhes consentiu
organizar e executar, com legitimidade adquirida no Conselho de Segurança,
a intervenção contra o Iraque agressor.
Não faltam comentários no sentido de concluir que destes factos decorre
o projecto de uma Nova Ordem mundial traduzida numa Pax Americana, herdeira nacional do extinto condomínio bipolar.
Algumas expressões, fundadamente eufóricas, do Presidente Bush, que não
sabia que ia perder a reeleição, são invocadas para abonar o entendimento,
designadamente da União Europeia, da declaração feita no Congresso, em 11
de Setembro de 1990, no sentido de que a crise "oferecia uma rara oportunidade de avanço para uma Nova Ordem mundial".
É difícil aceitar, sem grandes dúvidas, a razoabilidade deste conceito que
leva directamente à identificação da função americana como sendo a de gendarmemundial,uma anotação que, em vários lugares, tende para enriquecer o
antiamericanismo.
Ao contrário, a análise das correntes do pensamento que animou o debate
interno americano, a ponderação do quadro de diligências em que se empenham como medianeiros e não como directores, as propostas apresentadas
aos aliados e concorrentes, designadamente a União Europeia e o Japão, tudo
parece apontar para a distinção entre o plano de contingência em que estão
comprometidos e a Nova Ordem da qual se distinguem apenas anúncios de
algumas linhas de força.
A resposta americana para a inesperada contingência do arrear da bandeira
soviética não se confunde com a reorganização mundial em que entende participar, e pelo que toca a esta é que assumem importância primordial as correntes de opinião interna que podem alterar a política pela alteração da vontade
do eleitorado.
182
INTRODUÇÃO
a do declínio, assumida por Paul Kennedy no já famoso The rise
" iftheGreatPoivers,aponta para a concentração nos problemas internos,
O
andfall der que os EUA sofrem de imperialoverstretche não podem continuar
r enten
- 16s
p0 rtar a tensao .
asuPº. confiantes no poder americano, advogaram alguns o unilateralismo,
Mais ântica do iso
· lac10msmo,
· ·
· A menca
· fizrst,second and
com uso d o conceito
ovasem
·
d
n·
d"
·
fc
•
11• • entendem que a maior parte os con 1tos mun iais nao a ectam o mteth1rd·mericano, e que, quando o afrontam, os Estados Unidos não necessiressedaaliados, têm capacidade de agir unilateralmente, tudo de acordo com
ta!Il e lho conselho no sentido de que "quando a Guerra Fria acabar, a Améo seu ve
"
. devevoltar para casa .
ric~este caso trata-se de um unilateralismo
que não tem qualquer correspondên. om O conceito e função de Estadogendarme,e tem muito que ver, para bem
onderação dos interesses permanentes, com a lembrança de atitudes de
ªc~sacomo a de Espanha ou da Grécia, a partir da necessidade das bases, em
rerna com O antiamericanismo europeu que pesa na vontade dos eleitores. MuiSll
'
.
'
d o u ltrapassa d o merca d o comum,
ospoderão
tamb'em mvocar
o europeismo
~ojeUnião Europeia, que daria aos americanos a justificação de já terem realizadoO objectivo de fazer recuar o sovietismo e ajudar a reabilitar a Europa.
Tudo ponderado, nesta data parece dever concluir-se que os EUA, que não
podemevitar serem a única superpotência sobrevivente, recusarão o papel de
gendarme
na futura Nova Ordem, mas não dispensarão as alianças exigidas pela
interdependên cia mundial e por alguns objectivos que integram o seu interessenacional.
O unilateralismo não parece compatível com a democracia
globalque alguns
identificam como propósito nacional estratégico da procurada paz. O predomínio mund ial americano será, nessa linha, o da generalização do ideal da
democracia liberal, dos Direitos do Homem e da economia de mercado, temas
do famoso livro de Francis Fukuyama, TheEnd ofHistoryand theLast Man.
Mas a reali zação deste objectivo, longe de ser prosseguido na função de
Estado director, usando em relação ao mundo o bigstickcom que historicamente
ameaça o continente americano, levou a definir uma política de intervenção
baseada no valor reconhecido da interdependência, o que implica admitir a
permanência do interesse americano na Europa, na manutenção do Tratado
do Atlântico, na defesa de um pilar europeu, no reconhecimento de uma responsabilidade a estender às questões out of area.
Ao contrário da ambição dagendarmerie,parece crescer a vontade de racionalizar a contribuiç ão autónoma dos aliados, o interesse de partilhar o fardo
,\ fi1osofi
te
168
Pau1Kennedy, The riseandfali ofthe GreatPowers,Londres, 1988.
183
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
da ordem e da segurança, sem naturalmente renunciar à proeminência Poli .
que decorre do facto da hierarquia do poder das potências.
tica
O desaparecimento da ameaça soviética também implicou que o pana ra
internacional dos conflitos exibisse um novo perfil, porque os desafios co lll_a
dos pela ordem militar do bipolarismo ganham dinamismos imprevistos nt,.
.
. a ser a N ova O rd em.
que
exigem
respostas d aqui'l o que vier
Em primeiro lugar, a implosão do império soviético obriga a prepar ar
quadros de acolhimento do regresso da Rússia à categoria de Estado cornoos
outros, com debilidades preocupantes, e ameaças decorrentes dos separat~s
1s.
mos em cadeia.
Os equilíbrios internacionais do novo século são imprevisíveis, porqu
na sequência da política de Gorbatchov, que deu uma imagem confiável ae,
programa de transição, o preço da mudança inclui o renascimento da Europ~
Central, com a libertação dos Estados satélites, a reunificação da Alemanha,a
desintegração do COMECON e do Pacto de Varsóvia, o afastamento dos anti.
gos aliados, a perda do estatuto político de superpotência tornada evidente pela
crise do Golfo; o conflito entre a Arménia e o Azerbeijão, os georgianos e os
assetas, os quirguizes e os uzbeques, os moldavos e os gagauzes, demonst ralll
que o poder interno não mantém a eficácia, que é discutível a alegada manutenção do controlo dos arsenais militares, e que o próprio inverno pode serulll
adversário para o qual aquilo que resta do Estado não tem resposta.
Substituir a finda ordem dos Pactos Militares, em derrocada desde 1989,é
uma das exigências às quais tem de responder a Nova Ordem, que não pode ser
indefinidamente substituída pelo plano de contingência em que vivemos, nem
parece susceptível de submissão a um modelo de gendarmerieamericano.
Esta chegada à vida internacional de novos intervenientes, cuja experiência do exercício de soberania foi interrompido por variáveis mas sempre longos
períodos, fez com que a explosão dos nacionalismos, ou das reivindicações de
identidade, acentue uma linha de divergência que parece o oposto do caminho
para os grandes espaços, para os internacionalismos institucionalizados, para
uma nova definição moderadora do Estado e da soberania.
Todavia, esta tendência, por vezes com rompimento da paz, corresponde
por outro lado a um possível alargamento da vigência do direito internacional,
porque se trata de restituir a voz aos povosmudosdo mundoque a velha Ordem
submetia.
Não obstante ir a caminho das duas centenas o número de Estados reconhecidos pela Ordem internacional em revisão, foi fundada na Haia, em 11de
Fevereiro de 1991, urna associação chamada Unrepresented Nations and Peo·
pies Organization (UNPO), que reclama a representação de 50 milhões de pes·
soas distribuídas por vinte e seis nações sem voz internacional.
184
INTRODUÇÃO
. . .ativa apoia-se nas diásporas desses povos, designadamente arménios,
Aintc~orígenes da Austrália, papuas, emigrantes de Taiwan, do Turquestão,
,ur~º~'ªda Crimeia, das Malucas, do Tibete, de Zanzibar, do Ruanda.
daS•~ª' bstant e o princípio da autodeterminação inscrito na Carta da ONU,
Na?ºentos como o que foi iniciado pela famosa Conferência de Bandung
e rno~; essas nações pertencem ao passivo da velha Ordem, e Timor, agredido
de19 donésia que albergou a referida e histórica conferência, é a última e uma
pelaln is sangrentas manifestações dos conformismos que levaram as potências
dasmasáveis pela Carta da ONU a tratar vários povos como povosdispensáveis.
resr:es mobilização do conflito bipolar coloca os arquitectos da Nova Ordem
estação perante a necessidade de liquidar esse processo que adquiriu voz
e~~ fendas do sistema em desagregação, assim como perante a urgência de
ªinar as guerrasporprocuração
que pontuaram a fronteira das passadas áreas
~;:fluênci a dos blocos: Angola e Moçambique inscrevem-se nesse rosário de
. srrumentalização dos povos, mas o ponto crítico, que permite ter a noção da
:edida da guerra que estava em curso, foi avaliado por inteiro na Conferênciade Madrid (1991) em que, pela primeira vez, e por gestão dos EUA, árabes e
israelitasiniciaram o diálogo que recusavam havia décadas, com intervenção
de sírios, libaneses, jordanos, palestinos e russos.
Além da questão da terra própria e da paz entre os dois povos, trata-se de
eliminaro foco do qual decorrem nacionalismos irredutíveis e fundamentalismosreligiosos armados, o choque petrolífero, o alastramento do uso das técnicasterroristas, a desenfreada e perigosa corrida armamentista.
Um dos aspectos mais graves do conflito do Golfo foi justamente a evidênciade que os ocidentais lutavam contra um adversário que apenas eles próprios
armaram,a caminho de poder fazer a guerra química, biológica e nuclear, só
porque a mão invisível da teologia do mercado pudera agir à margem das cautelasgovernativas, das limitações legais, e da esquecida ética.
Por toda a América do Sul, como escrevia recentemente o Senador Anselmo
Sule,"o gasto em armas chegou a cifras insuportáveis por países com tantas
carências,mas manteve-se até ao momento em que os governos centro-americanos,na culminação de um processo iniciado com as gestões pacificadoras do
Grupo de Contadora, que evitou a guerra, concretizaram acordos de paz que
baixaramo perfil da área e tornaram possível a continuidade de governos eleitos por sufrágio popular". A tensão permanente entre democracia, exigências
sociaise militarização, precisa de ser substituída por uma relação equilibrada
entre democracia, justiça social e integração. Um dos principais receios, do
qual assumiu voz a Conferência Permanente de Partidos Políticos da América
Latina(COPPAL),é o de que o extinto bipolarismo seja substituído pela hegemoniade uma só potência.
Pt
185
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
No caso do direito internacional poder ser considerado como uma referên,
eia normativa de vigência resistente à mudança da ordem política, poderíalllo
encontrar até princípios gerais para antecipar as novas concretizações dos sis~
temas e da balança de poderes.
Mas o direito internacional é um instrumento da política, cujo sentido e
eficácia variam antes em função do equilíbrio de poderes alcançado.
Em 1982, depois da invasão do Sul do Líbano por Israel, o Conselho de
Segurança adoptou 16 resoluções e nenhuma foi observada, não obstante sereill
obrigatórias.
Mas na questão do Koweit, os mecanismos da paz, previstos desde 1945 pela
Carta da ONU, foram utilizados com rigor e celeridade. E não foi necessário instituir o Comité de Estado-Maior da Organização que deveria assumir a direcção
estratégica. As tropas foram sem discussão colocadas sob comando americano
e a Tempestade do Deserto foi um triunfo nacional, e não internacional.
'
Ficou porém claro que o princípiode não-ingerêncianos negóciosinternosdos
Estadosestáassediado
por várioslados,e que, por exemplo, as intervenções humanitárias não são condenadas quando visam socorrer os sofrimentos dos povos
e dos homens. A questão é a de chegar a uma definição que impeça os excessos
de ordem política.
A balança de poderes que se desenha, com rejeição do modelo de Estado
gendarme,e tendo em conta os protagonismos em exercício nos conflitos surgidos desde 1989, aponta para poderes emergentes em várias áreas, mas 0
essencial da questão tudo encaminha para o situar por agora num espaço
euro-atlântico.
No exercício do plano de contingência, os EUA viraram-se sempre para os
que, em todo
aliados europeus, procurando eventualmente manter o leadership
o caso, não provocara grandes sobressaltos de gestão política, ou na cadeia de
comando, em cerca de meio século de aliança no Tratado do Atlântico, e com o
resultado histórico de a organização ter mantido a paz nessas dezenas de anos,
e concorrido em primeira linha para a implosão do adversário.
É inegável que a NATO tem assegurado a primazia dos EUA no mundo atlântico, mas não se trata de um Estado director proteger os outros: trata-se de a
aliança ter protegido todos.
O súbito alargamento da Europa ao espaço que vai até aos Urales, com o desaparecimento da ameaça soviética, talvez devesse colocar em primeiro plano a
questão da segurança da Europa toda, agora reencontrada, uma questão enfrentada no âmbito da OSCE e proclamada prioritariamente naActa da Conferên·
eia de Helsínquia de 1 de Agosto de 1975.
Acontece porém que, ao mesmo tempo que a OSCE vai criando mecanismos
que exigirão os habituais anos de rodagem, no espaço euro-atlântico que era
186
INTRODUÇÃO
la linha Oder-Neisse crescem as iniciativas e tendências em favor
1iJt1Ítad~'dpefesa
europeia", as quais, na sua forma mais extremista, tratam os
ma
e
, 1.
deu . nos como povo d"1spensave
Jllerica. como a proposta americana de 18 de Junho de 1991 pretende esten Eassim idade euro-at 1·
· d e Vancouver a VIad"1vostoque, a iniciativa
. . . .
ant1ca
comu n
derª 1 mã de Dezembro de 1990 e Fevereiro de 1991, em favor de uma defesa
",ranco-a
, . europeu, nao
- apenas
. ede facto aponta para um novo po, 1o estrategico
europeia.pilar europeu de defesa, encarado este originariamente como uma
urn
. - d
Para
. uitativa repartiçao e encargos.
rnaise~ a Nova Ordem manterá o seu pilar fundamental no espaço euro-atlân. Quque a história, a dignidade dos povos e o interesse maior de todos, não
uco, :padece com unilateralismos, parece nesta data resultar da conjuntura.
secoé difícil aceitar
· que expenencias
·• · curtas, apenas vivi
· "das d es d e 1989 , pos,Masfornecer a lição de que é necessário substituir o património criado em
e
sam
.
. "d os em comum, por uma m
. d epen d.encia. d e1en. quenta anos d e nscos
vivi
:;: a respeito da qual ninguém forneceu ainda a tabela dos riscos e das ameaçasa enfrentar.
A questão do Golfo não se define como um argumento bem construído,
porque ela foi entendida como uma agressão à segurança mundial, não à segurança dos países geograficamente mais próximos.
Por isso a legitimidade foi encontrada no Conselho de Segurança, a liderança
nãoteve a necessidade de formalização em tratados, e os europeus participantes
nãose encontraram depois entre os críticos que também podiam ter assumido
os riscos e agora lamentam que a Europa estivesse ausente. A fala tem mais o
aspecto de discurso eleitoral destinado a capturar consentimentos, do que de
discurso de governo destinado a gerir interesses fundamentais.
Por outro lado, o facto de se tratar de uma agressão à segurança global
também não configura o acontecimento como justificativo da necessidade de
uma força independente para projectar o poder europeu em qualquer parte
do mundo.
A Europ a não esteve no Golfo, nem estava habilitada a projectar autonomamente o pod er fora da sua área, porque a Europa desse discurso não existia:
existia a Europa da NATO, da UEO, da CSCE, da EFTA, da CEE, em busca de
uma unida de política que não tem ainda modelo, mas cujo preferível modelo
não é talvez o do império, ou da superpotência, ou do complexo militar-industrial do qual se lamentavam as lideranças nos dois lados da desaparecida cortina
de ferro. Temos uma Nova Ordem a construir, não temos um património para
arrasar; temos instituições para redefinir, não temos um deserto para urbanizar.Também aqui é oportuno recordar a humildade do sábio: se pude ver mais
longe, é porque trepei aos ombros de gigantes.
187
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Todos os países, independentemente da sua posição na hierarquia dos Pod
res estaduais, serão envolvidos pela teia da Nova Ordem em formação, porq e.
o mundialismo é a consequência da interdependência comandada pelas revlle
luções globais, especificamente a da informação, a da ciência e tecnolo giao.
, .
,a
d o merca d o, a d os teatros estrateg1cos.
A capacidade de gerir esse mundialismo, ao qual não corresponde a velh
invenção do Estado soberano organizado para voos mais limitados, é a maioª
exigência da interpelação de Morin para que consigamos definir a manei ra dr
,
e
entrar no seculo :XXl169 .
A interpelação envolve, muito concretamente, a decisão de aderir aos gran.
des espaços que, tantas vezes sem nome, organizam a resposta que supera as
insuficiências das soberanias clássicas, ou assumem os interesses novos que
nunca estiveram a cargo daquelas soberanias.
A degradação para a situação tecnicamente chamada de Estado exíguo vai
seguramente atingir muitas das entidades políticas, tal como acontece u no
passado não muito longínquo com velhos reinos e principados europeus rapidamente esquecidos.
Seria porém ousado prever esse resultado em função da dimensão dos elementos do Estado, porque, historicamente, não foram necessariamente os mais
pequenos que desapareceram absorvidos em entidades mais vastas, nem serão
necessariamente os maiores que vão renascer para a supremacia internaci onal
passando pelas fendas abertas pela derrocada do bipolarismo.
A identidade e a vontade desempenham um papel essencial nesse processo,
e as duas parecem sobejamente exemplificadas no caso português em resposta
às aceleradas e pesadas mutações a que foi submetida a definição do Estado nas
últimas décadas. A evolução das fronteiras, desde a fundação da NATO, representou para Portugal um desafio sem equivalentes fáceis de encontrar, e foi
ocasião de uma das mais sólidas demonstrações de firmeza da identidade.
Essa identidade e essa vontade apontam para uma soberania de serviço à
comunidade internacional, na qual os factos mostram que não dispensará a
intervenção portuguesa na Nova Ordem, nos dois Atlânticos, na Europa e na
Euráfrica. É certamente este o conceito estratégico constitucional, porque a
definição dos objectivos supremos do Estado, e a adesão aos princípios do mundialismo, apontam ali para um protagonismo oposto a qualquer demissão ou
passividade. Tendo sido a variável comum dos sucessivos conceitos estratégicos
'"ºEdgar Morin, ParasairdoséculoXX, Rio de Janeiro, 1981. Ali escrevia, salientando a necessidade de
prever "uma grande hegemonia imperial que possa estender-se à totalidade do globo", que, ao lado
do g igantesco poder militar, a URSS era "de uma fraqueza inaudita", e que "bastaria uma dilacera·
ção ou ruptura a partir da cúpula para uma desintegração em cadeia atingir todo o sistema", como
aconteceu (p. 338).
188
INTRODUÇÃO
verno, definidos nos muitos programas sucessivos, e independentemente,
de go onto, das diferenças partidárias dos suportes dos órgãos do Estado, não
...esse
'd o conceito
· estrateg1co
' · nac1ona
·
I.
•·
d ráP estar ausente num fiuturo re d e fi101
Pº;orque a soberania de serviço também é, há séculos, um imperativo do con. estratégico nacional português, a que os outros dois, o constitucional e
ceitooverno, se su b or d'mam, que esse nen h um regime
.
.
po d e impor,
e nen h um
de g rno decreta, porque é a síntese da experiência secular vivida em comum, o
go::eúdo da vontade de viver em comum, o projecto do futuro para a vida em
::mum, a própria definição de Nação: ou, no caso concreto, da maneira poresa de estar no mundo.
cugu
_perestroika: a conjuntura estratégica
7
Aconjuntura mundial foi dominada, sobretudo no que respeita à dissolução do
bipolarismo de meio século, pela nova linha definida por Mikhail Gorbatchov,
seu livro Perestroika,subintitulado, na versão portuguesa de 1987, Anos de
00
transformação
e deesperança
paraa URSS eparao mundo.
Antes de tecer alguns comentários sobre tal fim da conjuntura, devemos
esclareceruma posição metodológica, como é sempre aconselhável nestas matérias, e que não pode deixar de reflectir-se na análise que sempre se pretende
objectiva, mas é sempre condicionada pela perspectiva adoptada.
O ponto que aqui interessa diz respeito ao critério orientador dos algumas
vezeschamados historiadores do presente, os quais, como George Berlia, Maurice Flamont, René Remond, Christian Zentner, Jean Beauté, Paul Johnson,
procuram racionalizar os factos que ainda pesam no ambiente das decisões
políticas em curso, reconduzindo-os a categorias definidas como patamares
ultrapassados pela evolução 17º.
Falam, a partir da ruptura da Grande Aliança que se seguiu à chamada paz
de 1945, de períodos autónomos de competição estratégica marcados pela
mudança qualitativa das armas, de períodos de relacionamento entre as superpotências caracterizados, sucessiva e evolutivamente, pela Guerra Fria, pela
dissuasão, pela distensão, pela cooperação, e assim por diante.
Estamos mais inclinados a entender que lhes foi possível definir, com maior
ou menor rigor, um conjuntodetécnicascaracterísticas que são usadas conforme
as exigências da arte diplomática e os objectivos da estratégia indirecta, e não
110
Mikhail Gorbacchov, Perestroika,Lisboa, 1987. Georges Berlia, Coursdesgra11ds
problemespolitiques
contemporai11s,
(pai.), Paris, 1967-1968. Maurice Flamont, Coursd'hístoiredesJaits iconomiquesft sociaux,
(pol.),Paris, 1968-1969. René Remond, Histoiregé11iralepolitiqueetsociale,
(pai.), Paris, 1967-1968. Christian Zentner, Lasguerrasde la posguerra,Barcelona, 1973. Jean Beauté, Relatio11s
I11tcmatio11a/cs,
(pai.),
Paris, 1983. Paul Johnson, Unehistoircdu mo11de
moderne,1917-1918, Paris, 1985 .
189
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
apreender uma racionalizada série de fases históricas que não voltam a rep
tir-se. A competição armada, se possível por entreposta entidade, repet iu.:·
sempre que necessário (Indochina - 1947, Coreia - 1950, América Cent ra)~
1962, Golfo - 1987), as técnicas de apaziguamento foram utilizadas em cad
conflito marginal sem coincidência temporal, a ententeexistiu na aventu rada
Suez - 1956, nas tentativas comunistas da Grécia -1948, em Praga - 1948, e n
revolta da Hungria -1956, assim como a Guerra Fria foi também chamad a, e~
primeiro lugar por Nixon, o começo da terceira guerra mundial171•
Nesta perspectiva, a Perestroikadeve em primeiro lugar ser examinad a, n
data, como uma técnica inspirada pelos interesses permanentes da URss, eª
não como o marco de uma nova fase que os historiadores do presente se pre.
parariam para imediatamente conceptualizar no sentido de fixarem um novo
patamar das relações entre as superpotências, com os seus reflexos inevitáveis
sobre o resto do mundo, e sem retorno.
A questão a colocar é, portanto, a de saber por que razões foi utilizad a de
novo, com diferente nome, a técnica do apaziguamento, e se haverá previsões
animadoras sobre uma marcha positiva para o final estabelecimento da paz
pelo direito, o tal ponto ómega sempre sonhado e nunca conseguido, depois
de séculos de Projectistas da Paz e de organizações internacionais.
Talvez possa ajudar-nos a aproximar uma visão mais clara da situaç ão 0
facto de a mensagem da Perestroika ter aparecido ao mesmo tempo que 0
livro de Federico Mayor Zaragoza, Maí'ianasiemprees tarde,quando assumiu
a direcção geral da UNESCO, e o livro do Conde de Marenches, Secreto
s de
Estado,quando abandonou a direcção dos serviços de informação externos
da França 172.
O primeiro, que se coloca na perspectiva universalista de Chardin, e na
prospectiva de Fourastié, aproveitando os instrumentos de análise global que
as organizações da ONU colocaram à disposição dos seus agentes, define algumas das ameaças, ou das manchas comuns a toda a população da Terra, independentemente da circunstância política de cada região, ou povo173•
Depois de termos vivido a maior explosão técnico-científica da história,
de termos acumulado a maior quantidade de inteligências de sempre porque
nunca existiram tantos homens vivos, de podermos totalizar em cada instante
as correntes de informação que exprimem a situação unitária do mundo, de
°
1• 1 Richard
M. Nixon, La verdaderagucrra,
Ilarcelona, 1980, fazia suas estas palavras de Harold MacMillan:
"apenas nos podemos salvar olhando para a realidade e organizando a resistência que temos de criar
se não queremos perder na Terceira Guerra Mundial aquilo que ganhámos nas duas anteriores" .
1 ' Fedcrico Mayor Zaragoza, Mm1a11a
sicmprces tarde,Madrid, 1987. Conde de Marenches, Secretos
de
Estado,Madrid, 1987 (trad . do francês, Da11s/esccrctdcsprinces,Paris, 1986).
1
' · Fourastié, bnie11tario
deiporvcuir- las 40000 horas,Madrid, 1965 .
190
INTRODUÇÃO
...-.osactualizado o mapa da oferta e da procura em todos os domínios,
anter ...
uimos, com todos esses dados, traçar uma geografia da angústia que
conseg
· o a florar t1m1
' 'd o d o rosto d a esperança que mais
·
assa, nos tons som b nos,
ulrra~eziluminou o mundo no fim da guerra de 1939-1945: as grandes liberurn; 5 fundamentais contra o medo e contra a miséria, os Direitos fundamend~ eeinatacáveis do Homem, a igual dignidade das etnias e das culturas, o
.
cais
·
- e ao governo pe 1o consentimento,
. ito à auto d etermmaçao
aso l'd
1 ane. d ad e
direpovos e d os governos, o d'1re1to
· a' 1e
e 1·
'd
d
.
d'
'd
1
1
. a pos1c1 a e m 1v1 ua e co ect1va,
dos ação da guerra, o direito positivo deduzido do direito natural comum a
cerg
.
dos os seres vivos.
to Ao contrário dos projectos e das esperanças, aquilo que se desenvolveu foi
ma competição estratégica mundial que nos presenteou com um então não
il revisto mundo bipolar, com uma nova variável estrutural da vida internacional
pue é O medo do holocausto final, com uma teoria sempre crescente de conrlitos regionais a servirem de transitórias válvulas de segurança à tensão que
ameaçacom o conflito maior, tudo suportado por uma sociedade civil global ao
redor da Terra, onde sectores privilegiados da população vivem materialmente
melhor do que outros, mas todos vivem uma angústia comum que, nesse plano,
não distingue entre dominadores e dominados.
Um dos traços mais salientes, e ameaçadores desta evolução, é que a técnica excedeu a ética em todos os domínios, desde a investigação biológica às
formasde fazer a guerra, tendendo as coisas para a implantação do real estado
de natureza de que falavam, mas apenas hipoteticamente, os contratualistas
como Rousseau, Hobbes e Locke 174• O direitointernacional
perdeu importância
a favorde uma políticado direitointernacionalem busca de um conjunto de normasque exprimam, não necessariamente uma nova justiça, mas um novo equilíbrio de forças.
Aguerra deixou de ser, demonstradamente, o combate artesanal que o direito
já disciplinara em muitos aspectos, com a necessidade de uma abundante mão-de-obra, que eram os vastos exércitos, porque cada homem transportava um
limitado poder de destruição; deixou de ser uma guerra económica, limitada à
obtenção de objectivos concretos, destinada a terminar à mesa da conferência
entre vencedores e vencidos, e poupando, sempre que possível, as destruições
inúteis das cidades, das populações civis, das mulheres e das crianças.
Em sua substituição temos a guerra que tende, como as sociedades ricas,
para pós-industrial, substituindo o homem pela máquina e a memória pelo computador, definitivamente de desperdício, aniquilando massas e cidades para
quebrar a vontade do adversário rápida e amarguradamente, não querendo a
rn
17
' Adriano
Moreira, CiênciaPolítica,Coimbra,1995, sobre as ideologias.
191
TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
paz dos bravos mas sim o desaparecimento do adversário, com a mesa da e
ferências de paz substituída pelo tribunal que julga os vencidos antecipa~lla.
mente condenados pela derrota.
A sociedade civil mundialmente produzida, e angustiada pela variável d
medo, tem estes traços enumerados por Mayor Zaragoza: 570 milhões de p 0
soas submetidas; 800 milhões de analfabetos adultos; 250 milhões de crian es.
- esco lanz_a
. d as; 1.500 mi"lhões d e pes_soassem serv~ço_s
·
· , · adequa.
Ças
nao
san_itanos
dos; 1.300 milhões de pessoas com rendimento per capitamfenor a 90 dólar
anuais; 1.300 milhões de pessoas sem casa adequada.
es
Por outro lado, no quinquénio de 1975-1980, deram-se cerca de 100.0oo
mortes anuais de crianças entre O e 4 anos de idade; 150.000 entre 5 e 9 ano .
e 66.000 entre 10 e 14 anos. Existem países vários em que a taxa de mortat'.
1
dade infantil supera 100 por 1.000 de nados vivos.
As deficiências nutritivas afectam principalmente a infância. A anemia nutricional aparece em alguns países da América Latina com uma população equivalente a 56% do total do subcontinente, em percentagens que oscilam entre 3
e 10% da população. Mas entre pré-escolares, estas percentagens variam entre
14 e 41%, sendo similares as cifras para os escolarizados. Quanto às mulheres
grávidas, varia de 22 a 62% segundo as áreas.
Em 12 países da região, a desnutrição em menores de 5 anos supera os 40%
e na maioria dos casos o problema não se origina na falta de alimentos, ou d~
potencialidade para os produzir, antes na reduzida capacidade de compra das
maiorias, na ignorância e nas más condições médico-sanitárias.
Hoje sabemos que cincode cadaseisdestasmortesde criançaspodemsertecnica-
menteevitadas.
O facto da ética não ter acompanhado a explosão técnico-científica permite que a organização política e social mundial aceite viver uma situação
que comporta, segundo notícia, os seguintes factos: que 6% da população do
mundo consome 35% dos produtos de base; que o rendimento per capitade
alguns países seja 250 vezes superior à de alguns outros; que se gaste 70 vezes
mais a armar os soldados do que a educar os estudantes; que o produto das
exportações de numerosos Estados não chega para cobrir as suas necessidades básicas de alimentação e o juro das dívidas; que os excedentes de alimentos de algumas regiões se acumulam e até são destruídos, enquanto noutros
lugares se morre de fome; que a produção industrial se reduz de forma planificada por falta de uma procura sobrante, enquanto 2/3 da Humanidade
vivem em extrema pobreza; que a ignorância aumenta em números absolutos,
em vez de diminuir.
Não é difícil concordar com Federico Mayor Zaragoza, na linha do texto
constitucional da UNESCO, que "a soluçãodesteestadodo mundo,tão insatisfató·
192
INTRODUÇÃO
cheiodeameaças,exigeuma análiseprofundadasrelações
queexisteme dasque
0
rio'º~xistir entrea ciência,a éticae a política"175•
deve~uando
poré m examina~os ~s depoime_n~o~dos ho~e.ns aos qu~i~t~m per'do mais ou menos trans1tonamente, dmg1r os negocios mundiais a frente
enct '
.
.
.
t
nidades de poder que amda chamamos Estados, verificamos facilmente,
dasusempre com aprazimento,
·
• · fcoram o mteresse
•
que os seus va1ores essenciais
ne~onal enten dido em função de conceitos elaborados para uma conjuntura
nactdial que d e fim1t1vamente
..
d esapareceu, a manutençao
- ou crescimento
.
de
munoder nacional à medida das metas estabelecidas a partir dessa base, e tamu~ pos interesses
geraisdaHumanidade:mas estes parecem um elemento do chabe~o discursoeficazdestinado a obter a adesão ou passividade da geralmente
~;eliz sociedade civil mundial, constituída pelas salamandras cuja revolta jul1:m necessário evitar ou conter, mais do que anúncios de objectivos destinaâos a transformar-se em esperança concreta neste mundo 176 •
As desaparecidas repúblicas soviéticas, a mortandade da Indochina e da
Coreia,o genocídio na Ind~nésia, na Índia e na Nigéria, as guerras terroristas
permanentes mantidas em Africa, na terra dos bascos, dos irlandeses e dos hispano-americanos da América Central, a guerra civil dos muçulmanos em nome
do fundamentalismo e do petróleo, o fantasma do Afeganistão, todos são factosque podem ser filiados em projectos imperialistas exógenos que incidentalmente aproveitam ânsias justas de redenção colectiva que se esmagam contra
estruturas de poder que obedecem a uma conceptologia política dominadora.
O Estado soberano de Bodin já não corresponde às exigências que andam
a configurar a implantação de grandes espaços, mitos da superioridade cultural e étnica já não correspondem à interdependência mundial, as fronteiras
físicasjá não satisfazem as urgências de defesa mas apenas da identidade que
é fonte de criatividades úteis, o excesso de poder político internacional torna-sevulnerável aos poderes funcionais e erráticos que quebram a paz sem grandes despesas, a variação da decisão e credibilidade das populações pode levar
à falência dos aparelhos militares sofisticados.
Mas são este s que dominam o esforço produtivo regido pelos poderes políticos, que implicam a vigência da viciosa relação entre armamento e desenvolvimento,que nos condenaram a assentar o poder de destruir o mundo na
miséria do mundo ameaçado de destruição, que vitalizam o crescimento da
droga, comércio de armas, guerrilha.
políticasse fazem em tempo
Temos algumas vezes salientado que as revoluções
e que as revoluções
culturaisse fazem em tempodemorado.
acelerado,
,75Cit., p. 36 .
176
Karel Capek , A revoltadassalama11dras,
Lisboa, s.d .
193
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A última guerra mundial foi uma revolução política da estrutura internac·
10
nal, num tempo que não pareceu acelerado apenas porque os sofrimentos for •
excessivos nesse período, mas que tem essa natureza insofismável quando reªIli
ramos em que destruiu, em poucos anos, uma Ordem política e jurídica munJ.ª·
que levara séculos a construir, com justiça ou sem ela, que fez afundar o Eu:ª 1
mundo vigente desde o começo do movimento das Descobertas, que apeo o.
etnia branca do governo do mundo que obtivera, que destruiu os quadros~ a
organização económica apoiada numa política de armamento alfandegário d a
fronteiras, que redefiniu a hierarquia real das potências, que construiu e d as
truiu um mundo estrategicamente bipolar em cujo horizonte se perfila, co;s0
uma das hipóteses, o verdadeiro império, que por definição é mundial.
Para que tivesse coerência com o ideário da grande coligação democrática
que se pretendeu e supôs vencedora, levando a convicção ao ponto de o insere.
ver na Carta da ONU, seria necessário que o provável império mundial viesse
a ter forma no governo mundial pelo consentimento, decorrente da interdependência e socialização de todos os povos, de acordo com o legado humanista
ocidental e a filosofia democrática consagrada nos textos como a formulação
que melhor presidiria à reorganização do mundo.
Acontece que a antevista mudança assentava numa indispensável revolução
cultural de dimensão mundial, que esta nunca se faria senão em tempo demorado, e que os factos têm demonstrado que esse tempo não decorreu, que a
revolução prevista foi retardada pela sobrevivência dos conceitos da estrutura
política que morreu com a guerra, e que a predominância constante dos factos
estratégicos torna frequentemente mais provável o projecto de império imposto
do que consentido, com um perfil autoritário e não democrático, tudo à custa
de um preço que é pago pela sociedade civil mundial reproduzida no quadro
alarmante que ficou referido.
Para documentar esta tensão entre a revolução política que a guerra produziu e a revolução cultural que a chamada paz não proporcionou, basta-nos lembrar os depoimentos de alguns dos mais directos intervenientes na evoluçãodo
último meio século, quer no exercício do poder, quer no exercício do magistério
da inteligência que procura falar inutilmente ao ouvido dos príncipes.
Com o risco de erro inerente às amostras selectivas, pensemos que as memó·
rias de Henry Kissinger, que interveio no Watergate, na guerra do Médio Oriente
em 1973, na crise do petróleo e no diálogo Norte-Sul, na questão da descolo·
nização, no processo da África, na queda de Salvador Allende, na definição da
política americana para a África do Sul, na guerra da Indochina, nas negocia·
ções sobre o SALT-11,na retoma das relações com a China, no enfraquecimento
do presidencialismo que vai de Gerald Ford à proeminência do Congresso dos
nossos dias, tem como conceito básico, intelectualmente inspirador, o do Con·
194
INTRODUÇÃO
d Viena, o equilíbrio dos poderes, a proeminência de potências direcgresso eesolução dos interesses de todos como decorrência do acerto das
coras,.ª r de interesses de cada vez menos intervenientes 177•
. teiras
,
tr00 _ teve por exemplo um dossier sobre a Africa, não acompanhou a derroN~~ império português, não previu as alterações profundas do que se chacad~ Terceiro Mundo, escapou-lhe a evolução de Angola .
..,aria
o
• . absorveu-o, e a cnaçao
. - que supun ha esta,,. diálogo
entre as superpotenc1as
dora de um terceiro pólo pela China decorreu da mesma perspectiva, não
bihza u atenção às solidariedades Sul-Sul que se desenvolviam em resposta e
resto
,
.
.
P tamento as sociedades ncas do Norte.
afiron
.
Nesta região não estava o po d er como class1camente
o enten d"1a,estava apea revolução política cultural em marcha que haveria de transferir algum do
nas
·
' . entre as d uas guerras, d e Moscovo
sentimento
de cerco, que d ommou
a Russia
ra Washington.
pa Peguemos nas memórias de Reza Pahlevi, chamado nesses tempos o gendarmedo Golfo, e escritas a despedir-se da vida, portanto num momento em
que os nossos critérios ocidentais nos levam a aceitar que um homem está a
dizer a sua verdade .
Asua verdade, quando se autojustifica, mas também quando opta, baseado
nos contactos e experiência pessoal, é que "não foi Churchill, sem dúvida, o
grande vencedor da Segunda Guerra Mundial, mas sim Estaline.Nas conferênciasde Teerão, de Yalta e, finalmente, de Potsdam, foi ele e sempre quem puxou
peloscordelinhos. E foi ele quem impôs a 'paz soviética' em que vivemos há 35
anos".E acrescenta, referindo-se aos últimos dias do império: "Desde há muito
tempo, perto de dois anos, parecia-me que a atitude de certos americanos era
inquietante (...) Alguns meses depois, teria a oportunidade de encontrar-me
como meu grande amigo Nelson Rockfeller. 'Pode-se conceber', perguntei-lhe
à queima roupa, 'que os americanos e os soviéticos tenham partilhado o mundo
entre si'? 'Decerto que não', respondeu-me ele. Mas depois acrescentou: 'Pelo
menos que eu saiba ..." 178•
Por seu lado, o grande mestre do nosso tempo que foi Raymond Aron, o idealista céptico que anotou diariamente o declínio do Euromundo, que morreu a
falar do fim de uma geração, aquela que viveu a ambiguidade da guerraimprováveledapaz impossível,
diz o seguinte: "Nietzsche, o último metafísico do Ocidente segundo Heidegger, e aquele que procura o sentido da nossa época por
referência à história da filosofia, acrescenta uma dimensão suplementar aos
nossosdiagnósticos históricos. Ensina-nos alguma coisa sobre o nosso futuro?
..º
177
Henry Kissinge r, Mis Memorias,Madrid, 1979.
Mohamed Reza Pahlevi, Respostaà História,Lisboa, 1980, pp. 164 e 215.
178
195
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O destino da Europa Ocidental depende principalmente do apagamento do
deuses ou da quebra demográfica? Guardo suficientemente o gosto da espe~
culação filosófica para não dar uma resposta categórica a estas questões. p0
outro lado, se se trata de apocalipses possíveis, das ameaças que pesam sobr;
a Humanidade, sei onde procurar a fé e a esperança. Contra os males da civili.
zação industrial, as armas nucleares, a poluição, a fome e a explosão demo grá.
fica, não tenho o segredo dos remédios miraculosos. Mas sei que as cre nças
milenaristas ou as racionalizações conceptuais não servirão para nada; pre firo
a experiência, o saber e a modéstia.
Se as civilizações, todas ambiciosas e todas perecíveis, devem realizar num
tempo longínquo os sonhos dos profetas, que vocação universal as poderia unir
fora da razão? 179 "
A razão parece não ser abusivo entender que a traduz na revolução cultu ra]
que substitua uma conceptologia política construída para uma época acaba da
de Estados soberanos absolutos, desejando o isolamento e a auto-suficiênci a.
Mas aquilo que nos documenta o livro de Marenches, é uma contínua luta
dos poderes, um desenvolvimento aterrador da estratégia indirecta, uma sobrevivência dos modelos imperiais do passado, o sonho de novos impérios regionais como o fundamentalista, a clandestinidade do Estado, o objectivo da força
à margem das contingências, misérias e exigências da sociedade civil mundi al,
todo o caminho do modelo imperial imposto. E não lhe ocorre senão aconselhar um "plano mestre do Ocidente" decadente, centrado na constituição de
um exército europeu com material estandardizado, com armas nucleares, com
forças expedicionárias altamente móveis, com uma retaguarda consolidada,
e constituir com os países do Magrebe (Marrocos, Argélia, e Tunísia) um "Par
South"que desse à Europa as mesmas oportunidades das superpotências 180•
Os conceitos são exactamente os de 1939-1945, adaptados às circunstâncias
da debilidade europeia, e da movimentação bilateral ou solitária das superpotências. A intimidade longa com a clandestinidade do Estado não lhe indicou
qualquer sinal de uma revolução cultural em marcha a exigir a mudança do ins·
trumental clássico da luta por um peso na balança internacional de poderes.
É a manutenção do conceito da chamada terceira
guerramundialem curso,como
lhe chamou Nixon, e em que avulta a estratégia indirecta, a qual se salda, no
seu ponto de vista, por sucessivas perdas ocidentais.
É neste contexto que aparece a mensagem de Mikhail Gorbatchov, que uns
procuraram inserir na estratégia indirecta desmobilizadora do Ocidente; que
17'' Raymond Aron, Mémoircs,Paris, 1983, p. 729. Raymond Aron, Plaidoyer
pour l'Europedécadc11te,
Paris,
1979, onde desenvolveu a tese da "Europavítima desiprópria",p. 333 e sgts.
'"" Marenches, Secretosde Estado,Madrid, 1986, pp. 219-220 .
196
INTRODUÇÃO
s entenderam como fixando um ponto de reflexão imposto pela variável
outr:do e suas causas, e o início da abertura dos caminhos à revolução cultural
do t11orne poss1ve
' 1a rea d aptaçao
- d os mstrumentos
.
. ao mun d o anguspo 1'mcos
.
q.uedot que pós-guerra pro d uzm.
O
ua facto de ambas as superpotências terem anunciado em Washington um
O
ordo tendo por objectivo o início da desnuclearização do arsenal militar (INF),
ac ou evidente que a análise das razões que levaram a este acto não podia limicorn a um d os mtervementes,
.
.
car-se
tem d e procurar tentar apreen d er o processo
de mudança em ambos.
E esta primeira observação também evidencia que ambasas superpotências
giamcomoEstadosdirectores,cientesda suaproeminênciana hierarquiaefectivados
~stados,e dequeosseusinteressesmundiaisnãose confundiamcomos interessesregionaisaosquaistentamdaro seuapoioe solidariedade.
Finalmente, e ao contrário do disposto na Carta da ONU, foi anunciado
que O acordo tinha disposições secretas, quando o artigo 102 da referida Carta
manda que os tratados sejam registados e publicados pelo Secretariado, sendo
até lá inoponíveis.
Estamos portanto claramente numa área reservada da política de ambas as
superpotências, com exclusão da interferência da comunidade internacional em
qualquer forma das suas organizações. Por isso é necessário procurar entender
a expressão que cada uma delas adaptou do seu interesse nacional.
a)Pelo que toca à URSS, era evidente que nunca antes abandonara uma posição adquirida, ou satelização, no processo de Estadoem movimentoque a própria
Constituição consagrava; e que nunca, até então, praticara qualquer acto político que significasse o abandono do processo colonial que herdou do regime
anterior, mantendo a definição territorial do império, com diferente organização administrativa e nova semântica, na qual avulta o conceito de nacionalidades.
Este conceito, que atendeu sobretudo à identificação linguística, foi coberto
pela regra da unidade indivisível do Estado, e pela política de assimilação que
levouBrejnev a falar de uma repúblicadopovointeiro.
Pondo de lado a semântica, não é difícil reconhecer que, proclamando ideologia diferente, esta política foi tentada sem êxito por outros Estados no passado,designadamente pelo Império Austro-Húngaro da última fase, pela França
no Norte de África, e por Portugal em todo o seu Ultramar.
A diferente ideologia, a diferente estrutura do poder político, a natureza
continental do império, a contiguidade geográfica, o isolamento de cada nacionalidade em relação ao mundo exterior, a auto-sustentação do poder nacional
com ligeiras dependências externas, parecem razões explicativas para o facto
de o movimento descolonizador mundial da ONU não ter atingido severamente
aquela região.
197
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
É todavia admissível considerar que todos os factores da internacionalizaçã
0
e interdependência mundiais, que atingiram globalmente as democracias bra
das, e derrubaram os regimes autoritários da sua área, tinham atingido intt
namente a população soviética, manifestando-se mais tarde do que nas regiõ:8
livres do mundo, mas estendendo os seus efeitos à inevitável mudança gerac 1•
0nal, à alteração do perfil da composição étnica do império onde os brancos est
avam a ficar em minoria, à necessidade de corresponder assim a novas exigência
8
internas como outros regimes totalitários se viram compelidos a fazer.
Um regime sem instrumentosde absorçãodos efeitos da mudança não s
reforma facilmente sem ruir, e não é invulgar que adapte a fuga para a frentee
mobilizando os sentimentos mais profundos do nacionalismo para o conflit~
exterior, como exemplificou Péricles em lição que deu frutos; ou que procure
sem alterar a estrutura de domínio, conseguir o reforço da obediência passiv~
por intermédio de uma política de desenvolvimento que vai ao encontro das
necessidades sempre adiadas do consumo, o que implica um abrandamento do
esforço externo, e uma transferência de recursos das indústrias pesadas para
as indústrias ligeiras.
A necessidade de responder às tensões internas seria explicação razoável
para uma linha de apaziguamento externo, para uma política de conten ção
da corrida armamentista, com um desarmamento equilibrado que não afecta
a segurança do adquirido, não renega a ideologia, não abandona a confia nça
na lógica objectiva da história, não precisa de abrandar a convicção da queda
inevitável dos sistemas diversos do marxismo-leninismo, por muitas que sejam
as variantes ocasionais deste.
não de um
Tratar-se-ia portanto de ser oportuna a técnicado apaziguamento,
patamardemudança,ou de uma alteraçãoideológica,
tudo com inteira salvaguarda
e até com eventual aumento do peso negocial posterior em
do valordasegurança,
relação à Europa Ocidental 181•
b) Este aumento do poder negocial inscrevia-se na lógica, até então bem
retribuída, da estratégia indirecta que o poder soviético manejou com inegável superioridade em relação ao seu adversário americano.
'"' Emmanuel Todd, La clmtefi11ale,
Paris, 1976, foi um exemplo raro de previsão dos efeitos implosivos
de um político reformista na URSS, sustentando que "uma reforma do sistema comunista não pode
deixar de destruir os fundamentos da centralização imperial russa e libertar as tendências centrífu·
gas das repúblicas periféricas da URSS", síntese do prefácio da reedição de 1990, p. IV. No mesmo
sentido Andrei Amerik, L'URSS survivra-t-ellew 1984?, Paris, 1977, com prefácio de Alain Besançon,
Por seu lado, Vladimir Bukovski, URSS:del'utopieau désastre,Paris, 1990, ao analisar "/esmalheursdela
p. 222 e sgts., debruça-se sobre os efeitos não queridos ou nem sequer previstos, a partir
Perestroi"ka",
da confissão de Gorbatchov, que o seu "novo pensamento" semeava a desorientação nos soviéticos.
Daqui a hipótese de que a evoluçãose afastou radicalmente do projecto.
198
INTRODUÇÃO
É certo que a variável do medo, a que nos referimos e que se tornou estrul pesou demasiado sobre as novas gerações europeias, que não possuem
• . da
tllra,ória da guerra, e possuem to d a a m1ormaçao
. e
sob re as consequenc1as
t11elll
•
.
das guerras atomica,
' . qmmica
' . e bacte"da armamentista,
sobre os nscos
corri
• Jógica.
rio
.
.
1o processo mternaciona
.
. 1cuias
. consequencias
• . herConsideram irrac1ona
..,.,têm em desfavor progressivo o dever militar, aceitaram a filosofia do
darau,,
d senvolvimentismo e do bem-estar, compreenderam que existe uma relação
~ •osa e contraditória entre armamento e desenvolvimento.
'ka ve10
. ao encontro d e aspi.
viciDo ponto d e vista
. d o d"iscurso e fiicaz, a p erestroz
rações profun?~s d~s sociedades oc_identais abert:s, fortaleceu a :end~ncia
ara a desmobihzaçao das democracias brandas, ammou todas as disposições
favoráveisà aceitação da autenticidade da política anunciada.
Os inquéritos de opinião da época mostram que a popularidade de Gorbatchov,proclamado homem político do ano pelas sondagens, cresceu desmedidamente em relação às dos líderes ocidentais, o que comprova que o crédito da
autenticidade foi alargando, por muito que os responsáveis europeus insistam
erndistinguir o desarmamento da segurança, sendo este o valor de que aquele
é instrumento, e por muito que esclareçam que o acordo entre as superpotências aumentava a superioridade militar soviética em relação à Europa, quer
ernarmas convencionais quer no que respeita às armas químicas e talvez bacteriológicas.
O caminho para a receada finlandização dependeu sempre mais dos termos
do acordo eventual das superpotências do que da vontade política e recursos
para construir uma autonomia europeia estratégica. Não era seguro que todos
e cada um destes recursos pudessem ser reunidos em termos de evitar o alargamento e efectivação do primeiro cenário. Na percepção dessa data não esteve
incluída a dissolução eminente da URSS182 •
c) Estas eventuais consequências para a situação da Europa Ocidental não
podem ter deixado de ser tomadas em conta no processo de decisão americano,
e se o passado comum ocidental apontava no sentido de que as recusavam e
de que o acordo se basearia na convicção de que seriam evitadas, também era
necessárioque o interesse nacional americano fosse compatível nessa data com
tal decisão e firmeza.
111
Vladimir Bukovski, URSS: de /'utopieau disastre,Paris, 1990, p. 222 e sgts., analisa a percepção do
próprio Gorbatchov, no início do processo, salientando a sua declaração à imprensa de 23 de Maio de
1988:"a direcção soviética actual é incapaz de outra coisa que não seja desenvolver o nacionalismo".
O desenvolvimento objectivo do processo afastou -se radicalmente do programa de governo, que visava
reorganizar a defesa dos interesses permanentes da Rússia . Objectivo que foi claramente retomado,
depois da queda do regime, pela nova administração em exercício.
199
--
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Na tendência mundial para a formação de grandesespaços,superadores d
insuficiências do Estado para enfrentar a mudança do mundo para a qua} n~
foi criado, o Atlântico Norte parece um Mediterrâneo mais perfeito do quª0
clássico, porque em ambas as margens florescem os mesmos valores, idênti; 0
sociedades civis, as tradições que deram raízes à nova superpotência. l\fas as
esta descoberta tomou forma expressa em tratados (NATO), e na inesquecívse
intimidade que foram duas guerras mundiais, ela contraria a tradição polít· e(
ICa
e processo de formação dos EUA.
Da Europa que consideraram dissoluta emigraram os americanos e, Para
salvar a pureza dos costumes, não deveriam envolver-se em questões do con,
tinente de origem, segundo a recomendação da despedida de Washington
O destinomanifestodo novo povo, segundo a doutrina que se tornou nacional, er ·
o Oeste, as margens do Pacífico. O herói popular da juventude é o homem qu:
marchou nessa direcção, limpando o território dos primitivos donos, e fazendo
florescer uma nova civilização. O mar nacional é o Pacífico, e nas suas margens,
não obstante as enormes distâncias, é que estão as grandes oportunidades de
investimento, os mercados ávidos de consumo, os concorrentes que ajudaram
imprudentemente a crescer. O futuro tem ali domicílio.
Por outro lado, a sua área natural de influência, assim reclamada e proclamada com a doutrina do bigstick,é todo o continente americano, por cuja ordem
se disseram espontaneamente responsáveis, no qual declararam, contra os legitimistas de Viena de 1815, que não admitiam soberanias alienígenas 183•
O êxito da passada estratégia indirecta da URSS, a resistência às reformas
dos governos locais, a miséria estrutural da região, tudo encaminhou para uma
revolta de que Cuba é o símbolo, de tal maneira que é provável que a fronteira
da liberdade, proclamada por Kennedy, fosse mais visível, para o americano
médio, na América Central do que no Muro de Berlim. A negociação do apaziguamento, neste último ponto, poderia ser indispensável para tentar restabelecer a segurança perdida na área histórica de exclusiva influência.
O envolvimento americano na reconstrução e segurança europeias, e depois
do cordão sanitário dos Pactos Militares ao redor da URSS, com as guerras mar·
ginais da Coreia e do Vietname, e o financiamento das resistências esporádicas
em África, no Golfo, e outros lugares, foram pesando negativamente na deter·
mi nação da sua sociedade civil, cansada de ver morrer os seus jovens na propor·
ção em que crescem os seus impostos, para colher mais reveses do que êxitos e,
sobretudo, do que reconhecimento e agradecimentos mundiais.
Não faltam razões, históricas, presentes, e de perspectiva do futuro, para
que o eleitor americano estivesse disposto a festejar a autenticidade da nova
183
O Presidente Clinton retomou a doutrina com a intervenção no Haiti, em 1994.
200
INTRODUÇÃO
·nha russa, a admitir que ela servia os seus interesses nacionais permanentes
h ue falavaMorgenthau, e que uma nova modesta Yalta poderia ser um prode qo idóneo para servir os seus objectivos e dos seus aliados, quando a Rússia
cess
operar e se a separação da Europa se acentuar.
recparece indiscutível que a solução de Yalta foi conseguida à custa dos inteses alheios, traduzidos na perda de liberdade dos povos do Leste europeu,
res
·
· ' I traçar uma nova 1·
e.
d aque 1a, ao menos
as agora era 1magmave
m h a d'11erente
lll troço da linha Oder-Neisse. Mas não basta a convicção da autenticidade no
,
• , 1
noomento do acor d o, porque o e.
1 uturo nunca e prev1s1vecom segurança, pare~ndo-lhes que é tempo de os europeus europeízarem a defesa, como foi tempo
~e os vietnamitas vietnamizarem a guerra que finalmente perderam.
Por outro lado, a função de Estado director desempenhada ao longo de
meioséculo ao redor da Terra, exigiu um tal esforço na defesa, muito superior
ao da URSS, que a economia dava sinais de ser também necessário diminuir a
viciosarelação entre armamento e desenvolvimento, transferindo os recursos
paraO último sector. O sistema financeiro dá sinais de crise preocupante, a alienação em devedores insolventes, como é o Brasil, acentua-se, o dólar perdeu
a sua função de moeda de referência, e a evolução do sistema político mostra
0 sintoma habitual da debilidade do poder nacional, que é a proeminência do
Congresso e um Presidente fraco.
O regime americano, sem tocar na expressão formal da Constituição, conseguiuuma alternância no governo das forças políticas agrupadas em dois partidos hegemónicos, o democrata e o republicano.
Mas a alternância mais característica foi entre o governo pelo Presidente
e o governo pelo Congresso, o primeiro em épocas de expansão, o segundo
em épocas de recessão. Os presidentes fortes puderam usar impunemente a
clandestinidade do Estado, procurar no tesouro abundante os recursos para
a agressividade, e retribuir com a glória a confiança não inquisidora da Américanos seus órgãos de soberania; o Congresso sempre exigiu a transparência,
cuidou de limitar as verbas, reclamou os privilégios dos Estados federados,
falouao mundo pelas suas comissões, e desautorizou as iniciativas presidenciaisquando a debilidade do poder nacional obrigou à moderação e a cuidar do
fortalecimento da frente interna. Aos presidentes fortes como Roosevelt, corresponde a alternativa de fracos como Ford. Não acontece tão frequentemente
que o mesmo Presidente, como Reagan, possa vir a protagonizar as duas situações,começando por jurar, no momento da posse, que ia restaurar a grandeza
da América, para terminar cedendo o passo ao Congresso preocupado com a
debilidade da América.
As sondagens, mesmo americanas, sobre a popularidade dos líderes internacionais, deixaram Reagan a grande distância de Gorbatchov, um mau sinal
201
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
de que era a mensagem deste que ia ao encontro da vontade de mudança d
eleitorado soberano, da juventude com aspirações novas, do contribuinte e 0
.
.
o~
mqmetações crescentes.
Que termine a corrida armamentista, que se desnuclearize o mundo q
e.
• ' 1d o me d o, que se e 1·
.
' lle
se araste
a vanave
1mmem
as ameaças d as guerras quíllli
e bacteriológica, que se caminhe para a paz pelo direito, que se libenelll ca
recursos indispensáveis para o desenvolvimento, que a explosão técnica e ci/s
tífica seja envolvida pelo programa da ética, que se reconheça a unidade efe°'
tiva do mun_do e a unidade r:al do género humano, que.º ~~nse~timento pe~~
razão substitua o constrangimento pela força, que a m1sena seia substituíd
pela dignidade da forma de viver, são valores ocidentais que progressivament a
animam a vontade política dos povos, e que levam a festejar todas as mensagene
de esperança concreta para o mundo de hoje.
s
Mas é necessário que tais valores, como pregam a ONU e a UNESCO, sejam
um património comum da Humanidade e, sobretudo, que os governos, ou os
que por eles têm o real poder de decidir, sejam a voz tribunícia dessas aspirações, e não os agentes de uma política de domínio, herdeira do legado maquiavélico e não do legado humanista.
O acordo que se ia desenvolvendo tinha prováveis exigências internas de cada
uma das superpotências que o tornaram plausível e desejável, tendo uma delas
caído de estatuto, mas não com um preço composto pelos interesses alheios
como frequentemente aconteceu no passado, e neste caso não pode ser omitid~
a dolorosa experiência europeia. A mensagem que o propiciou não era nova,
era apenas o aproveitamento, para 1987, do discurso dos Projectistas da Paz
que se fez ouvir em todas as crises, e a nossa história é uma marcha de crise em
crise. O que significa que, à crítica, as soluções parecem sempre conjunturais,
segundo o critério do legado humanista, compassos de espera para a continuidade da marcha recorrente do legado maquiavélico.
Faltou sempre que a autenticidade se transformasse na variável estrutural
permanente da vida internacional, agora em substituição da variável estrutu·
raldomedo.
O primeiro acto soberano de reconhecimento da autenticidade da proposta
soviética foi a assinatura do Presidente dos Estados Unidos da América no tra·
tado de Washington, de INF, mas com as cláusulas secretas, cuja natureza viola
o direito internacional que tem como objectivo a paz pelo direito. Talvez que a
parte publicada correspondesse à coacção normativa dos factos que obrigaram
as duas superpotências a mudar de rumo, e a parte secreta à dúvida que guarda
a raíz de todos os medos e riscos em que temos vivido. Finalmente, a evolução
interna da detenção, exercício e salvaguarda do poder, tem acidentes a con·
siderar em qualquer processo de mudança, e, como aconteceu na URSS, com
202
INTRODUÇÃO
. certamente inesperados, na evolução da revisão da logística do império.
ef~ttO~,
são do império soviético, que colocou um ponto final na intervenção
Atl11P~sta de Gorbatchov, mais uma vez demonstrou a debilidade dos instrurefort11t
de análise e previsão. Nesta data, a Rússia de Ieltsin tenta regressar ao
111entos
, como os outros, e o processo e, d'fi
'to de um pais
i erente.
concet
overnoda globalidade
8•O gdas as latitudes, indiferentemente pelo que respeita aos conflitos em
De to chegam contn 'b mçoes
· - para tentar respon d era' pergunta fiormu 1ad a, entre
curso,
'd a maneira
'd e sair
'd o secu
'l o XX. Trata-se
os por Edgar M'onn, a respeito
outr ' nte de uma 10
· d agaçao
- sob re as possi'b'l'd
d
. d e superar as
i i a es e me10s
justa]11e
aças que parecem semeadas pelas revoluções que desencadeámos a partir
~Jll:onhecimento geográfico dos limites da Terra, pelo fim de novecentos, e
t:mbém de uma antecipação utópica da nova sociedade tocada pelo milagre
do milenarismo.
Entre as múltiplas interrogações e perplexidades que a conjuntura de
das interdependências
que conduza uma
mudança suscita, destaca-se a aceleração
evidente
erosãodasoberania,esse elemento fundamental da antiga estrutura política da comunidade internacional.
Não pode ignorar-se, por exemplo, que as multinacionais económicas, que
foramo pesadelo de muitas crises políticas das últimas décadas, aparecem frequentemente como as organizações que desafiam mais severamente o conceito
tradicionaldo Estado soberano.
Tais empresas desenvolveram influências poderosas que escapam ao controlo dos governos, e frequentemente foram conceptualizadas como um capitalismointernacional que tomava o lugar e a função do imperialismo político
emretrocesso.
Não faltam casos em que o envolvimento das multinacionais na luta pelo
poder, a participação em golpes de força, ou na corrupção do aparelho de
Estado,foram alegados, insistindo-se em que a submissão delas a várias jurisdiçõessoberanas lhes facilita escapar à intervenção de todas. Recordemos que,
para enfrentar esta acusação, a própria OCDE - Organization for Economic
Cooperation and Development - tentou organizar códigosde boacondutapara
multinacionai
s, de modo a impedir a relação viciosa entre o poder económico e
o poder político.
É porém un ilateral entender que a principal causa da crise da soberania, e do
processode redefinição em que se encontra, esteja na reestruturação dos mercados,que dariam origem a uma nova concepção de fronteira, embora pareça
exactaa relevância da internacionalização acelerada dos fluxos financeiros e
das actividade económicas.
203
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A explosão científica e técnica ocupa uma posição causal importante
processo, organizando novos centros dominantes e novas dependências llo
quais tornaram obsoletas todas as políticas de suficiência nacional nessa á; as
Talvez possa admitir-se, sem o discutir aqui, que a NASA é provavelmente uea.
nova forma de universidade que nenhuma outra soberania isolada poderá t llla
.. e que a coniugação das so b.eramas europeias
'd as comunidadel\.
tar repro duzir,
- tem capac1'd ad e para 1gua
· lar.
es
nao
Nos claustros das nossas universidades nacionais, começam a definir gr
des e destacadas manchas coloridas as insígnias dos títulos que os seus se~~1
dores obtiveram no estrangeiro, um fenómeno raríssimo e contrariado ent •
, am
. d a d urante to d a a pnme1ra
. . meta d e d este secu
' lo.
re
nos
Esta explosão científica e técnica atingiu os Estados, entre outros vári
08
' · na area
'
d a d e fiesa e d a segurança, o que s1gn1
· 'fi1catocar num dos po .
d omm10s,
tos mais sensíveis da soberania, tal como é classicamente entendida.
n
A evolução geral das sociedades do Norte do mundo para o modelo ind11s.
triai, afluente e de consumo, desactualizou o anterior modelo do exército artesanal, herdado e próprio das sociedades predominantemente agrárias.
Também tais exércitos, como as actividades económicas, necessitavam deum
contingente avultado e não muito dispendioso de servidores. Os instrumentos
de trabalho não representavam, cada um, um grande poder de destruição dos
inimigos, e a necessidade de uma numerosa mão-de-obra, não especializada
era inegável. O dever militar, o serviço militar obrigatório, a longa duração d~
submissão às fileiras, a função pedagógica do quadro permanente, conceitos
como era o do espelho da Nação que se aplicava às forças armadas, tudo estai•a
inteira, lógica, e coerentemente relacionado com o sagrado das fronteiras fisj.
cas, o tipo agrário da comunidade nacional, as possibilidades técnicas ao dispor do braço armado do Estado.
A explosão científica e técnica, em parte determinada pela corrida armamentista, e por outro lado desactualizando rapidamente os conceitos estratégicos e as artes militares, fez com que o modelo dos exércitos evolucionasse
para o de exércitos de laboratório. A qualificação técnica dos agentes tem de
acompanhar a sofisticação dos instrumentos, com exigências crescent es de
capacidade para investir na investigação, na aplicação, no adestramento para
a utilização.
Gradualmente desapareceu a suficiência soberana na área da defesa, inde·
pendentemente da hierarquia do poder das potências. As próprias superp otê~cias necessitaram de organizações colectivas permanentes, dentro das quais
procuraram uma posição directora mais ou menos dominante, como tem sido
o caso, neste último meio século, da NATO e do agora dissolvido Pacto de Var·
sóvia (1991).
204
INTRODUÇÃO
Masa agregação na defesa distribuiu funções, entre os Estados, que não são
. s às capacidades científicas, técnicas e financeiras, e o realismo aconseaJbel:xaminar o caso em termos de hierarquia real dos poderes, o que signiJba:evisão do conceito de soberania. O modelo do complexo militar-industrial
fie~ definido não deixa de reproduzir a mesma hierarquia relativa dos podeassim
.
estaduais envolvidos.
res conflito do Golfo foi apenas um dos últimos a demonstrar esta evolução
O
ue ficou referida nos seus traços essenciais, e os efeitos sobre as concepções
lo dever militar, da constitucionalização tradicional desse dever, do regime do
rviço militar obrigatório, também entre nós estão a manifestar-se.
se poderá ainda notar-se, a propósito das consequências deste conflito, que
ão apenas o vasto mercado ligado à segurança e à defesa é condicionado pela
~ierarquiadas potências no complexo militar-industrial, como surgiu uma nova
uestão: a mesa da paz não coloca já no primeiro plano as compensações terAtoriaise as indemnizações de guerra, porque esses temas foram substituídos
pelapartilha do mercado da reconstrução do campo de batalha.
Ainterdependência mundial, por outro lado, faz transformar em fundamental a questão do desafio do fraco ao forte. A crise do petróleo desencadeada pela
OPEPem 1973 foi um anúncio e um aviso que não puderam ser desprezados.
Apartir de 1975, as conferências cimeiras dos Chefes de Estado e de Governo
dos principais países industrializados foram o reconhecimento da necessidade de uma coordenação de resposta. Na crise do Golfo, é certo que o direito
internacional tinha sido gravemente violado, que os direitos dos povos e dos
homens foram severamente esmagados, mas não fora a dependência do petróleo,se não estivesse em causa o poderfuncional intolerável de um país agressor
que ameaçaria o regular funcionamento dos sistemas ocidentais e mundiais,
a reacção não teria ultrapassado o patamar diplomático e o clamor da opinião
pública, como aconteceu tantas outras vezes.
Suposta a paz, a hierarquia das potências sofreu uma drástica revisão em
função dos critérios económicos. As armasdapaz afectam tão radicalmente as
balanças internacionais do poder como as armasdaguerra,com inegável superioridade. Os países da Europa Ocidental reconhecem uma ameaça no dinamismo japonês, juízo partilhado pelos EUA surpreendidos pelo seu inimigo
vencido na guerra. O Acto Único europeu abriu caminho às urgências, agora
manifestasdepois da assinatura do Tratado de Maastricht de o Mercado Comum
marchar para a uniãopolíticae para a unidadede defesa,aproximando-se assim,
na intenção dos promotores, que também aqui os factos podem contrariar, e
se a evolução prosseguir, de um modelo de Estado plural, com projecto ainda
mal definido.
205
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Os EUA, a única superpotência militar que resta, não pode deix ar d
manifestar, do alto da sua função a caminho talvez de gendarmedo mund e
preocupação com o que chama a fortaleza europeia,que alinha com a ameo, a
japonesa 184 •
ªça
Em suma, são muitos, variados e importantes, os sinais de que a pri mei
inquietação da conjuntura internacional se encontra na busca de novasJrontr~
, .
1
.
ez.
rasde novos gran des espaços, que não são as etmco-cu tura1s, nem as histó .
cas, nem as da antiga segurança militar, nem dos fundamentalismos, nem ri.
linguísticas: são sobretudo as económicas, ou, talvez mais realisticame nte as
simplesmente económicas em competição com as dos complexos industr i;i:~
-militares, com fenómenos de homologia e concorrência entre os modelos
como se passa com os EUA a formalizarem o mercado que integra o Canad á O'
EUA e o México; com a União Europeia a mostrar tendências para ultrap as~a;
a fronteira simplesmente económica, adquirindo uma capacidade de defesa•
com a Rússia desmobilizada de superpotência, decidida a recuperar a sua zon~
próximo,e na qual a coede influência exclusiva, à qual chama hoje estrangeiro
são do conjunto era antes mantida pela força. Neste caso foi a falência da economia que provocou o descrédito do modelo social e político, e determi noua
marcha hesitante e sinuosa para uma ambicionada economia de mercado, sem
abandono dos interesses geopolíticos.
O prognóstico reservado sobre esta evolução de uma superpotência militar
totalitária para um modelo de Estado que reconhece as identidades nacionais,
e revoluciona o modelo económico, também se reflecte em incertezas sobre0
futuro da Europa e, nele, o futuro e o papel da Alemanha, ou da coligação da
Alemanha com a França ambicionando uma posição directora da Europa inte•
grada 185 •
De tudo resulta que a procurada Nova Ordem, cujas fronteiras internas
estão por decidir, faz nascer uma questãoexigenteque é a dogovernodaglobalidadeem que se encontram, e se confrontam, tantos projectos e tamanha falta
deles.
O governo da globalidade foi o elemento da ideologia do império, em todas
as suas históricas manifestações, que animou os movimentos destinados a
,.. P. Lellouche, Lc 110uveau
monde:del'ordrcd'Yaltaau désordrcdesnations,Paris, 1992, descreve este fim
da velha Ordem, para a qual A. Valladão, LeXXI siccleseraaméricain,Paris, 1993, contribui com a visão
do gendarme.
15
Bun·
• Na exposição organizada pelo Bundcstag,e documentada pelo livro publicado pelo Deutscher
destag,Bona, 1992, sob o título Fragenan die deutsclieGesc/1ichte,
faz-se um esforço considerável para
firmar a imagemde uma participação na gestão europeia com total repúdio das experiências passadas
deste século . Trata-se mais uma vez da construção do discursoeficaz,ao qual o europessimismo coloC3
fortes objecções.
206
INTRODUÇÃO
rar a fronteira da soberania na maior distância possível, e introduziu o
1an
'lllP
1 bo
_ a esfera armilar - , entre os símbolos do P?der em expansão.
gloNo ponto alto d~ ma~cha para a ocupação da Afric~, no fim do século J_CIX,
h Chamberlam f01 o seu expoente, contra os /zttle englander,oposição
Josep
· em to d os os paises
'
d a frente mantima
' ·
·
. rna que se repro d uzm
europeia.
,nt~uando, em 1902, J. Hob~on criticava o imperiali~mo co~o um~ for~a
exploração, que usava o metada dos mercados captivos, abna cammho as
de becidas teses de Lenine de 1917, sobre o imperialismo como forma mais
con
. 1d
. 1·
desenvolvidae termma
o capita ismo.
Esta contraposição ideológica não eliminava o método, e sobre os destroos daquilo que foi um Euromundo político, desfeito pelas suas duas guerras
çivis,chamadas mundiais, de 1914-1918 e 1939-1945, a Nova Ordem internacio:al dos Pactos Militares, que durou meio século, fez derivar a situação de paz
impossívele guerra improvável da ameaça recíproca de duas superpotências: a
República Imperial dos EUA (Aron), e o Império Soviético, cada uma delas no
exercício de um desviacionismo do Euromundo matricial, e assumindo a responsabilidade da intervenção na totalidade do globo.
Não foi previsto, na análise desse período, que o conflito bipolar terminasse
pela implosão de um dos oponentes, abrindo à superpotência sobrante a hipótese da responsabilidade global. Foi a situação que André Fontaine detectou
e analisou logo em 1991, procurando antever a reacção e os resultados de uma
política dos EUA surpreendidos pela nova conjuntura. A percepção é a de um
desafio da Alemanha e do Japão na balança do poder económico, mas sem um
inimigo, ou assimilado, que pareça influenciar o processo decisório: l'un sans
/'autre.Um vazio de estruturas onde avultam, entre outras, estas questões: o
destino dos "náufragosdoplanetaMarx";afixação dafronteira europeia,por exem-
plo,nosUralesou em Vladivostoque;
a vingançadas naçõesna áreado recuosoviético;
papelrenovadodoIslão,e do dinamizadorquesãoosárabes;a chegadadoHinduísmoe
186
doJudaísmoà cenainternacional
•
Um optimista como Teilhard de Chardin não pôde ainda assim evitar aprevisãode que a alternativa do futuro estava entre o triunfo definitivo e violento
de uma só potência, e a instauração do governo da globalidade pelo consentimento.
Aqui, na segunda alternativa, a globalidade muda de sentido e de conteúdo,
a resposta muda de método, e o desafio é percebido com outro perfil.
O primeiro factor destas mudanças, que pressentiu, foi o nascimento de
uma sociedade
civilmundial,uma realidade que nem sequer parece a réplica factual de centenárias doutrinações sobre a igual dignidade de todos os homens,
1116
André Fontaine, L'un sansl'autre,Paris, 1991, p. 253 e sgts.
207
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
etnias, e culturas, embora esta perspectiva lhe forneça enquadramento étic
Parece antes o resultado da submissão da totalidade do rebanho humano~consequências estruturais das mesmas revoluções mundiais.
as
Em primeiro lugar talvez pelo efeito dinamizador de uma consciência unive
sal, a da referida revolução
dosteatrosestratégicos
militaresque, com uma demonstr::
ção nas duas grandes guerras, uma ameaça duradoira do holocausto resultant
da confrontação entre os blocos, e exemplificação nas guerras territorialrnent e
contidas, da Coreia, do Vietname, do Afeganistão e do Golfo, ensinou que e
paz é estruturalmenteindivisível.O pensamento secular dos Projectistas da Paz ª
instituições do tipo da ONU que tinham sido negligenciadas, voltam a rne;e~
cer uma atenção urgente em nome das exigências da globalidade, que já não ,
dos projectos das soberanias imperiais.
e
Outra revolução que vem talvez em segundo lugar na percepção polít ica
mas que, como antes vimos, condicionou o percurso da revolução estratég ica'
foi a explosão científica e tecnológica, que tornou perversamente possíveis~
formas de guerra atómica, química, biológica, A biologia molecular arrancou
a investigação espacial permitiu visitar todos os planetas por intermédio da~
sondas, a genética, a neurofisiologia, a cosmologia, a mecânica quântica, a genealogia humana, a inteligência artificial, são vários dos campos onde o avanço
foi balizado por uma série de descobertas assinaladas, designadamente, pelo
Prémio Nobel,
Mas a totalidade do rebanho humano, a maior parte dele sem acesso directo
e imediato aos benefícios dessas conquistas, tomou porém consciência do risco
maior a que ficou globalmente submetido. Os acidentes de Three Mile Island
nos EUA (1979) e de Tchernobyl na URSS (1986) causaram um alarme e produziram riscos mundiais que já não puderam ser eliminados pela amenidade com
que anteriormente tinham sido tratados os acidentes precursores de Windscale
na Inglaterra (1957) e Kychtym na URSS (1957).
Sobretudo o acidente de Tchernobyl (26 de Abril), implicando um número
avultado de mortes imediatas, um número maior de mortes causadas por seque·
las, a necessidade de deslocar mais de 100.000 pessoas, e a perda para qualquer uso, por muitos séculos, de centenas de quilómetros quadrados de terra,
foi uma grave advertência à sociedade civil mundial. A ameaça visa um valor
supremo, uma só Terraparaum sópovo.
O espírito de comunidade mundial apoia-se, por outro lado, na sempre pre·
sente revolução das comunicações, antes descrita, que produziu o fenómenoda
instantaneidadee ubiquidadeda informação,transformando a população mundial
numa só audiência, com os efeitos perversos inevitáveis.
A censura dos Estados pode ser ultrapassada, os centros de decisão política
comunicam com os eleitorados depois da informação ter chegado, e a informa·
208
INTRODUÇÃO
_0 chega aos centros de decisão antecipando
a capacidade
dosultrapassados
serviços
Contra e~t~ forma ~e domínio hierarquizado das ~ociedades estaduais:
~faciais.
da sociedade clVllmundial, os povos do chamado Terceiro Mundo lutam, ate
e ora sem êxito, por uma nova ordem da informação.
ag por mmtas
· outras causas, mas tam b em
' porque a m
. fiormaçao
- e' um po d er
ue fragiliza a consistência do tradicional saber secreto de grupos, de institui\es e de poderes políticos, a nova categoria da globalidade teve resposta em
~ovimentos que atacam as velhas estruturas políticas tributárias do modelo
imperial, animando os nacionalismos, os regionalismos, as identidades culturais, os particularismos.
A mais saliente das facetas dessa renovação e revivalismo chamou-se anticolonialismo,que avançou a velocidade variável em função da viscosidade das estruturas atacadas, sendo a velocidade maior nas áreas das democracias da Europa
da frente marítima, e menor nos impérios terrestres como o soviético.
Esta sociedade civil mundial, que já reclama um património e um domínio
comum da Humanidade com expressão jurídica (o mar alto, a Antárctida, o
espaço, a gestão das reservas de matérias-primas, o controlo de energias) é talveza principal causa, poucas vezes reconhecida, do debate aberto e em curso
sobre o papel e funcionamento do Estado.
Este parece ter vivido os seus últimos anos gloriosos na década de sessenta,
planificando e possuindo na área soviética e no Terceiro Mundo, prometendo o
pleno emprego e o enquadramento das economias nacionais nos países desenvolvidos.
Mas na última década tornou-se evidente que a velha invenção declina em
facedas instituições, supranacionais, privadas e públicas, que ignoram as fronteiras,também em consequência das exigências das regionalizações e dos poderes locais que o esvaziam pela descentralização, finalmente em resultado da
renovaçãodos movimentos institucionais.
Muitas organizações políticas, e todos os debates eleitorais, se concentraram
eventualmente sobre a questão de ter melhor Estado, ou menor Estado, mas
finalmente a questão parece ser a de saber que nova invenção vai gerir as partes e o todo da nova sociedade civil que é mundial, cujo tecido está unificado
pelas dependências e interdependências, mas que apresenta novas formas de
conflitos que não dispensam regulação e arbitragem, que exige a preservação
do planeta como património comum insubstituível, que não pode dispensar
0 controlo efectivo dos riscos maiores, que assumiu a unidade da segurança e
tem de evitar as disfunções militares que facilmente se transformam em conflitos mundiais.
O apocalip se é possível, como resultado perverso de todas as ameaças acumuladas;a gestão vai frequentemente deslizando para uma tecnocracia dedi209
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cada a uma teoria dos jogos, que esta não tem referências éticas ou cultur .
· po der po Imco,
' · e o re 1ac10namento
·
encontrar uma e1orma nova de genro
dais,·
poderes, é uma urgência que a globalidade torna aguda.
Os
A queda do modelo bipolar, que já parecia estrutural pela longa dura _
. - entre os superÇao'
. .
pareceu e11mmar
o temor d e Ch ar dºm que era a competiçao
deres pelo exclusivismo imperial, mas lançou a problemática do Estado p~f1
cia mundial, com pretendida manifestação no conflito do Golfo, já charnact •
0
. . guerra d o secu
' 1o XXI .
ª
primeira
Existem porém anúncios mais esperançosos na experiência deste fim d
século. Por um lado, a formação de grandesespaços
que aparecem como a primei e
forma de superar as insuficiências do Estado conhecido, grandes espaços q ra
· d e segurança.
Ue
- d e ar d em econom1ca,
' . d e or d em po I'mca,
sao
As novas criaturas políticas, em desenvolvimento, não anunciam a dispens
do poder, mas já deixam supor que pretendem ser uma alternativa para a solu~
ção imperial, um limite para o Directório decorrente da hierarquia das potências, e que implicarão a criação de uma forma, ainda mal pressentida, de poder
não correspondente à soberania do Ocidente dos Estados, esta em processo de
funcionais,que retiram a soberania aos Estados, sema
mudança: as autoridades
assumirem, para ordens concretas e restritas de problemas, foi uma das sugestões sábias de Jean Monnet, pensando designadamente no carvão e no aço,e
agora ou nos rios navegáveis, ou nas fontes de energia.
Neste contexto tem-nos parecido apropriado insistir no conceito defederalismofuncional,uma das formas de responder à perda de soberania e à interdependência, com respeito pela regra do consentimento. A organização da ONU
tornou relevantíssimo o ponto de vista, dado que os fundadores fizeram convergir no mesmo texto o legado maquiavélico e o legado humanista que temos
referido.
Na área da política ou, talvez mais expressivamente, na área do exercício
da lógica do poder militar, ficou claro que as grandes potências não aceitariam decisões maioritárias que contrariassem os seus interesses vitais. Daqui
o chamado direitodeveto,uma faculdade que possibilita paralisar o Conselho de
Segurança, porque não consente a imposição de qualquer decisão da maioria,
todavia sempre indispensável para agir.
Não foi assim na área da cooperação económica e social, a respeito da qual
o artigo 55 foi expresso no "propósito de criar as condições de estabilidade e
bem-estar necessários para as relações pacíficas e amistosas entre as nações,
baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da livre deter·
minação dos povos". As organizações especializadas, designadamente a OIT
- Organização Internacional do Trabalho, FAO - Alimentação e Agricultura,
UNESCO - Educação, Ciência e Cultura, ICAO -Aviação Civil, OMS - Saúde,
210
INTRODUÇÃO
WJPÜ- Marcas e Patentes, AIEA - Energia Atómica, agem mundialmente sem
berania, mas com autoridade que limita a área de intervenção das soberanias.
50
acidentes frequentes na área política e estratégica não se verificam nestes
os
- consegue, vmcu
.
lad a a' fiunçao
- espec1'fi1ca,evitar
. ou u 1trad rnínios. Afiederaçao
187
ºssar as questões derivadas do conceito de Estado soberano •
Pª0 problema maior com que se entra no próximo século é talvez, portanto, o
do governo da globalidade, pregado sem_recomp~n~a pela longa teoria de Pro. ctistas da Paz, quando faltavam os me10s face a dimensão do desafio, e que
ieora aparece como um desafio em parte suscitado pela enormidade dos meios
- d a so b erama. cl'ass1ca.
.
ague não po dem ser con fi1ad amente entregues a' gestao
q A ordem pela solução imperial continua a ser um projecto cultivado por
váriasinstâncias, que evitam a semântica, em qualquer das formas integradoras
ou de simples policiamento, mas parece desafiada e rejeitada pelo revivalismo
das comunidades históricas de base, pela assumida consciência de sociedade
civilmundial, pela experiência acumulada do risco para a paz a que historicamente tem conduzido.
A ordem pelo consentimento, que progride em adesões neste fim de século,
anda a multiplicar as experiências e, com elas, as frustrações e as esperanças,
dos organismos de diálogo, de cooperação, de coordenação, que desarmam
as soberanias sem as substituírem, e que obrigam estas a uma redefinição de
objecto e de meios, no patamar intermédio dos grandes espaços.
a)A globalidade do património cultural: Relatório de 1995 da UNESCO
A fundação da ONU, na data em que a velha ordem filiada na SdN tinha sido
varridapela Segunda Guerra Mundial, foi orientada pelo ambicioso projecto de
fazercoincidir, e conciliar, no mesmo texto, dois legados que não são apenas de
origem ocidental, mas que pertencem à herança ocidental: o legado maquiavélicoque fia da superioridade do poder a defesa dos interesses, e o legado humanístico que apela ao consentimento em nome dos valores participados.
O primeiro legado foi recolhido no Conselho de Segurança, com as intervenções eventualmente confiadas a forças postas à sua disposição para executar as decisões que são obrigatórias para os Estados; o segundo recolhido
pela Assembleia Geral, e com a execução confiada às organizações especializadas em que a UNESCO se inscreve.
No primeiro caso foi reconhecido que existe uma hierarquia das potências,
negadora nos factos da igualdade proclamada em sede de princípios, e daqui
187
Santiago S:ínchcz González e Pilar Mellado Prado, Sistemaspolíticosactuales,Madrid, 1992, especial mente sobre a Lei de Bona, para aproximação com os projectos federais das forças políticas europeias,
p.126.
211
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
decorreu o chamado direito de veto, e as novas majestades das superpotêncj
no caso do legado humanístico, as organizações especializadas organizara 111
~s;
segundo um princípio de federalismo funcional, ficaram sempre dependen/e
de uma estratégia de financiamento que não ignorava as diferentes capacidades
dos Estados membros, mas que preservava a igualdade de voto consagrada es
na
. , . essenc1a
. 1.
earta como pnnc1p10
As funções do Conselho de Segurança ficaram como que suspensas em vist
do aparecimento dos Pactos Militares, a NATO e o Pacto de Varsóvia, que puse~
ram entre parêntesis, durante meio século, o programa da Carta, de modo qu
foi realmente a Ordem dos Pactos Militares que vigorou até 1989.
e
No entretanto, e talvez sobretudo como efeito da revolução da informação
a opinião pública mundial passou a ter a realidade que apenas era suposta pela'
ilusões do Presidente Wilson no fim da guerra de 1914-1918.
s
Lidar com os valores, aferir a relação das políticas com os princípios, ensinar a autenticidade e a defesa dela, tudo assumiu progressivo relevo para essa
opinião pública vinculada à decisão e credibilidade de que dependeu a eficácia
das alianças, e a intervenção da UNESCO entrou em linha de colisão com 05
interesses das grandes potências directoras dos Pactos Militares.
Foi assim que, por fins de 1983, a Embaixadora Jeane Kirpatrich, inspirada
pelo mau humor dos EUA, afirmou na ONU que, pelo que tocava à UNESCO
"os que pagam a factura não têm voz, e os que têm voz não pagam a factura"'.
O conflito de interesses e de percepção teve como protagonista pela UNESCO
o Director-Geral Bedjaoui, e como principal crítico os EUA, que acusaram a
UNESCO de prosseguir uma "política desastrosa", desenvolvendo "programas tendenciosos", e exercendo "uma gestão extravagante".
Por essa data já o globalismo económico tinha adquirido direito a ser reconhecido como estrutural, e o FMI e o Banco Mundial exerciam nessa área um prota•
gonismo que não escapava ao controlo dos grandes países industrializados.
Independentemente das circunstâncias da intervenção e do tipo de personalidade dos responsáveis da época, pareceu evidente a muitos observadores
que os EUA não desejavam apoiar uma organização especializada cujo processo
decisório lhe escapava, e que lhe parecia ir à deriva no sentido de privilegiar
valores contrários aos sustentados pelo institucionalismo ocidental, de mos·
trar sinais de compromisso ideológico, de politização.
Foi um incidente em que a preferência então demonstrada pela coopera·
ção bilateral nas áreas da cultura e da ciência, privilegiando os países amigos
EUA como eram o Egipto, a Turquia e o Paquistão, assentou muito provavel·
mente no desencontro entre os conceitos com que as superpotências raciona·
lizaram o bipolarismo, e a mudança em tempo social acelerado das estruturas
mundiais.
212
INTRODUÇÃO
A.evolução que cumulou com o fim da Guerra Fria em 1989, aquilo que mosé que se estava a caminho do ponto crítico em que todas as áreas culturais
cro:undo falariam finalmente com voz própria, uma novidade tão alarmante
do O influente Samuel Huntington abalaria a polemologia ao prognosticar que
queonflito das civilizações será a linha de batalha do futuro".
"oC
Estava esquecido de que a UNESCO, ao executar o projecto de escrever uma
I-Iistóriada Humanidade, cuja publicação se ini~io~ :m 1963, era da perspec·vaglobalista que se ocupava, em busca do patnmomo comum dos homens, e
tlor isso o projecto se diferenciava da historiografia anterior ao concentrar-se
~o desenvolvimento cultural e científico, isto é, da "consciência do universal
no homem".
Embora o alarme ainda se inscreva na linha do entendimento que os EUA
manifestaram no sério incidente de 1983, o ensaísta deixa transparecer a esperança quando escreve: "Todavia, o Ocidente também deve desenvolver uma
compreensão profunda dos fundamentos religiosos e filosóficos das outras
culturas, e pelos métodos segundo os quais os povos desses países definem os
seus interesses".
Uma referência esta que deveria aconselhar o regresso à UNESCO, e à linha
do aprofundamento do conhecimento recíproco de todas as diversidades étnico-culturais em que se analisa o género humano concebido como uma unidade.
Recordaremos, como uma das contribuições mais valiosas, a investigação
ordenada pela UNESCO em 1949, destinada a inventariar e difundir "os dados
científicos pertinentes às questões raciais", e a preparar "uma campanha de
educação baseada nesses dados".
A participação multidisciplinar foi exemplar, e a proclamação de 18 de Junho
de 1950 permanece como um texto fundamental de referência quando reaparecem, em mais de um lugar, as manifestações racistas, os fundamentalismos
xenófobos,as leituras restritivas e desencontradas dos direitos do Homem, com
o Estado em crise de soberania, com as fronteiras a mudarem de definição e
de função, com a sociedade civil a mundializar a sua dimensão, com a cultura
transnacional e crescer de importância no património mundial.
Pela data do inquérito e da Proclamação de 1950, o tema da descoloniza~ãoocidental, tendo sobretudo em vista a retirada das soberanias europeias de
Africa, e a eliminação do apartheidna África do Sul, pareciam ser os pontos críticos da discriminação e dos mitos raciais, aparecendo logo a seguir, na tabela
das inquietações, a situação dos aborígenes da América Latina, o tema dos civil
rightsna América do Norte, e o estatuto das minorias nos vários orientes que
iam chegando ao diálogo internacional.
Talvez não tenha sido geralmente pressentida a evolução que conduziu, em
meio século de concorrência entre o magistério dos valores e os factos do pro213
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cesso político, a que Estados ciosos da homogeneidade cultural, da circuns ,
eia nacional da sua identidade, e que defendiam essa condição pelo cont tal\.
das migrações nas fronteiras e pela discriminação interna, tivessem de evr~lo
0
cionar para multiculturais.
liEste foi um efeito de muitas causas, entre elas o funcionamento do mercad
de mão-de-obra barata e sem protecção social, mas também do alargamento d0
direito de ir pelo mundo, e do processo de transparência das fronteiras den
tr 0
dos grandes espaços.
Um primeiro caso que serve de exemplo é o dos próprios EUA, hoje talv
definitivamente um país bilingue, com a hispanidade a progredir da costa le ei
em direcção ao Atlântico, e com o movimento dos civilrigtlzsa triunfar na ord:e
política e na mentalidade da sociedade civil.
ll!
Outro caso é testemunhado pela evolução europeia, em cujo território O isl .
mismo é professado por milhões de imigrantes que já representam a segun;
religião de França, por povos que no flanco sul da NATO obrigam à revisãodª
conceito estratégico, que no plano mundial exigem uma reflexão e uma nov:
atitude no convívio com uma cultura que se alarga por um cinturão que vaidas
Colunas de Hércules à Indonésia, dividindo o Norte do Sul do globo.
As perturbações do processo de adaptação dos conceitos e dos comportamentos a esta nova irreversível situação, tornam-se mais agudas quando se soma
depois da queda do Muro em 1989, aquilo que já se vai chamando a revolta da~
nacionalidades a Leste, o despertar da outra Europa, a das regiões, das minorias nunca completamente integradas num modelo de Estado nacional, das
identidades etno-culturais, dos separatismos como aconteceu na Checoslováquia e ameaça acontecer na Itália, da violência que se eterniza com os bascose
na Irlanda do Norte. Sempre o pluralismo que enriquece quando converge,e
que dinamiza as cóleras quando é a força que decreta as estruturas da subordinação, e da exclusão.
Por isso, a iniciativa do Ano da Tolerância, em 1995, veio corresponder a uma
exigência aguda da nova conjuntura, obrigando a meditar sobre o pluralismo
étnico, cultural, religioso e político, com uma nova dimensão, agora internacionalizada, e que o PNUD problematizou com os seus Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, o último tornado público em 11 de Junho de 1997.
Convergindo com o pensamento da UNESCO, este documento proclamao
seguinte: "a pobreza tem muitas faces, é muito mais do que baixo rendimento.
Ela reflecte também educação e saúde escassas, privação de conhecimento e
comunicação, falta de condições para exercer os direitos humanos e políticos
e a ausência de dignidade, confiança e respeito próprio".
.
A generalidade dos temas da educação que implicam com a pobreza de muitas faces está abrangida pela intervenção da UNESCO, desde a educação para
°
214
INTRODUÇÃO
à educação para a cidadania, fazendo constantemente a navegação entre
aP~zemas observantes propostos e os sistemas observados na realidade social
s s1st
. ,
_
rase revela, ora resiste a percepçao, que desperta para a mudança ou que
.
queºrma de fundamenta 1ismo.
seª Do Relatório agora publicado, destacamos a educação para a paz, os direido Homem e a democracia. Quanto à paz, é no acto fundador da UNESCO
tOS se afirma que a guerra começa no coraçao
- dos homens, e nesta area
'
- se
nao
queontrou polemologia que adiantasse mais do que aquilo que Gandhi sabia,
encdo que Santo Agostm
· h o ensmou
.
.
sob re a guerra. Mas o d esastre em que viveouosé que não foi suspeitado pelos que viam na queda do Muro em 1989 o iní~0 da distribuição dos dividendos da paz.
ct Na área que ainda há poucos anos chamávamos do Terceiro Mundo, e que
)amavapor educação, instalaram-se sociedades de guerra, isto é, que apenas
c
. d .
conhecem a guerra como maneira e viver.
De acordo com um recente projecto de investigação da Universidade de
Leyden,só no período entre 1995 e 1996, isto é no espaço de tempo a que se
refereo Relatório da UNESCO que apreciamos, verificaram-se vinte conflitos
maiores,uma classificação que se refere a confrontos que tenham causado mais
de 10.00 mortos num ano, designadamente no Burundi, Ruanda, Tchechénia,
Bósnia-Herzegovina, Afeganistão, Argélia, Iraque, Sri Lanka, Turquia, Serra
Leoa, Libéria, Índia, Paquistão, Colômbia, África do Sul, Cambodja, Angola,
Sudão,Tadjiquistão, Zaire.
Ascausas são de identificação aleatória, mas a combinação de factores étnicos,culturais, religiosos, está presente com frequência, e a pobreza parece uma
moldura que potencializa a conflituosidade. Acontece porém que não se trata
apenas dessa pobreza como facto, acrescem sentimentos de privação superior
à de outros grupos étnicos ou culturais, por vezes porque um rápido desenvolvimento económico e social abriu feridas no tecido social, separando grupos
que tinham coexistido em paz. Que o radicalismo político-religioso venha dar
uma cobert ura ao mesmo tempo de justificação e de incitamento à violência
não é raro, como demonstram os conflitos entre muçulmanos e hindus no subcontinente indiano. Mas o fundamentalismo também se manifesta em comunidades cristãs e judaicas, embora a regra no Ocidente seja a de que actuam
com respeit o pelo observância das normas democráticas.
Constru ir os alicerces de uma paz generalizada, que finalmente exclua a
anarquia madura em que vivemos, cada vez mais parece depender, não sobretudo das relações bilaterais, não da ajuda traduzida na doação de bens e serviços, mas sim da cooperação, e esta tendendo para multilateral e, portanto,
como que despersonalizada.
0
215
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Esta ajuda multilateral foi o método logo preconizado pela ONU na d
da fundação, com esperanças depositadas na OIT, na OMS, na FAO, na Üf\.ªta
e na Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultu C:i,
UNESCO.
ra...
A tolerância aparece como um val~r de implant:ção prévia, e~pécie de Pedr
fundamental, porque sem ele não se vislumbra pacifismo de proJecto que Po a
levar ao resultado do pluralismo convergente, interdependente, e pro dutor~sa
futuros participados.
e
Não tem sido fácil implantar a convicção de que o verbo, instrument o ess
cial da educação, é um elemento poderoso contra a violência que mais con~no poder material de impor uma ordem, submissões, regimes políticos, eq ~~
. d e po d eres mun d"ia1s.
·
Ui
l1'b nos
Mas conviria reforçar a confiança despertada pela queda do Leste soviético, recordando o que foi a saga dos resistentes da Europa Central, os obrj.
gados pela Carta 77, aqueles que, como Havei, acreditaram no poder dos que
não têm poder, e com a palavra foram disfuncionando o sistema político que
subjugava os seus países e os seus concidadãos, mas não as suas inteligências
e mesmo as suas consc1encias.
A experiência dos últimos decénios, que foi tornando mais amplo o saber
a respeito da globalização, parece ter mostrado que a educação em matéria de
direitos humanos é uma das exigências prioritárias para que se possa gerir em
paz o processo integrador e mundializante.
Foi nesse sentido que se posicionou a Conferência Mundial sobre os Direitos
Humanos, reunida em Viena de Áustria em 1993, cuja Declaração e Programa
de Acção recomenda aos Estados uma intervenção responsável e consistente
no sentido de assegurar "uma educação na matéria e a difusão de informação
junto do público tendo particularmente em conta as necessidades das mulheres a esse respeito".
Desejaria contribuir para salientar que se trata hoje fundamentalmente da
inadiável necessidade da educação para o que podemos chamar o exercício de
uma cidadania mundial.
Muitas das discriminações de que a UNESCO se ocupa, e que procura eliminar, tiveram reflexo numa contradição duradoira entre os direitos do Homem
afirmados nas Declarações de sentido mundializante, incluindo a das Nações
Unidas, e a abrangência dos direitos, liberdades e garantias consignados nas
constituições políticas para os cidadãos.
Estes últimos, que no mundo anglo-saxónico foram chamados civilrightse
civilliberties,foram muitas vezes reservados apenas a uma parte do povo, corno
aconteceu logo em Filadélfia na data da independência dos EUA, que deixa·
ram fora do direito à felicidade, proclamado para os americanos, os escravos
• li.
216
•
'
INTRODUÇÃO
tão andavam por três milhões, e os aborígenes que sobravam do genoue en
q, . entretanto executado.
.
.
crdto mesmo aconteceu por to d o o contmente
que segum. o mo d e lo constttu0
. al do Norte, e haveria de verificar-se no vasto império colonial europeu do
0
'.ºnlo XIX,quando as democracias estabilizadas da frente marítima europeia
f.
secu
.
"diram ocupar o contmente a ncano.
dectEntretanto, os catac 1·
.
ismos m1·1·1tares, em que se a fun dou o sistema
euromun. a levaram a suprir as insuficiências do Estado soberano pela organização
..
.
, .
d1st ,
d grandes espaços, uns m1htares como a NATO, outros amda apenas econom1\ como o Mercosul, finalmente a caminho de assumir completa identidade
~
. E
.
olítica como a Umão urope1a.
P A liberdade de circulação e fixação legalmente definida, como acontece
nesta área europeia, ou simplesmente os factos do mercado de trabalho, comeam a impor a consagração do direito de intervenção na gestão pública com
~ase na vizinhança, e por isso se fala já na cidadania europeia, efectiva nas
administrações locais.
Por outro lado, no plano da mundialização, todo o intervencionismo que a
comunidade internacional assume e legitima em nome dos interesses da Humanidade, tende para tornar insustentável a contradição entre os civilrightsdas
constituições nacionais, e os direitos do Homem que se afirmam sem limitações de soberanias ou de fronteiras.
Digamos que a educação na área dos direitos humanos, tendo em conta
todos os aspectos parcelares mas exigentes que os programas da UNESCO
corntemplam, terá de tornar coerente a cidadania estadual com a cidadania
do grande espaço, e finalmente com a cidadania mundial que se expressa nas
Declarações mundiais.
Uma evolução e uma exigência de grande alcance, porque a própria revisão da
Declaração Universal da ONU terá de incluir novos direitos individuais ali não
previstos. Por exemplo, o direito a exigir o cumprimento dos tratados pelos Estados dificilmente será negado, para ser exercido pelos que desfilaram em protesto
nas várias praças do mundo, abalado no passado pelo tratamento dos tratados
cornosimples pedaços de papel; ainda o direito à preservação do ambiente global, o direito à defesa e conservação de patrimónios comuns da Humanidade, e
finalmente o direito à paz como direito fundamental dos homens.
A pedagogia terá de definir-se, a responsabilidade de cada instância terá
de alargar-se, a competência global da UNESCO não poderá deixar de assumir
essa dimensão em prioridade.
Finalmente, deixarei ainda um comentário sobre a educação naquilo que
respeita a intervenção dos meios de comunicação, sobretudo da televisão, e que
0 ensino oficial adaptou moderadamente no chamado ensino à distância.
217
TEO RIA DAS RI:LAÇÔES INTERNACIONAIS
Quando se refere a modéstia da intervenção oficial não se tem em vist
qualidade, mas sim a dimensão do alvo a atingir. Os grandes grupos multi mé~-ª
parecem ter assumido a criação de uma cultura transfronteiriça, com públj ta
competição por alianças, tomada de posições accionistas, usando essa noca
forma de conquista que se chama OPA.Os ganhos não têm fidelidades nacion:ª
. necessanas,
, . e ateo log1a
. d o merca d o, que recompensa os virt
. uosoIS
ou cu ltura1s
da crença com o domínio das audiências, é que orienta a competição.
s
As especificidades culturais defrontam-se com as campanhas chamada
globais, de modo que os Dallase Dinasty,e as reacções, desenham agora hierar~
quias de centros de e_missãomoldados em termos que recordam a antiga hierarquia das potências. E de lembrar que não foram apenas os Estados do Norte d
mundo que entraram nessa competição em nome das suas identidades e inte~
resses, também o Terceiro Mundo se apercebeu da necessidade de lutar, selll
êxito, por uma Nova Ordem mundial de informação, a questão que esteve na
base da crise da UNESCO de 1983.
Esta revolução da comunicação teve um efeito notável na área da política
internacional, que foi o de violar o regime de censura dos Estados totalitá rios
e permitir aos mecanismos oposicionistas desenvolverem redes de informaçã~
paralelas que combateram a imposição sistémica oficial.
Até os procedimentos dos governos se alteram, porque os dirigentes dos
grandes e pequenos países recebem a totalidade da informação em tempo real,
mas quando decidem já a opinião pública os condiciona porque reagiu mais
rapidamente do que os aparelhos burocráticos.
Todavia, esta intervenção que se mundializa e que cobre todas as áreas da
responsabilidade da educação, tem certamente uma vinculação domina nte
à referida teologia de mercado, mas é duvidoso que por isso a tenha sempre
em relação aos valores da paz, do desenvolvimento equitativo, da luta contraa
pobreza nas suas várias frentes, da tolerância que deve responder ao encontro
de todas as áreas culturais, da situação das mulheres e das crianças, da elirni•
nação das sociedades de guerra , do fortalecimento da família em função de
cada área cultural, da consideração de cada ser humano como um fenómeno
que não se repete na história da Humanidade, da educação para a cidadania
mundial em função da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Reco·
nhecendo os dados altamente positivos desta revolução da informação, e a sua
contribuição para o processo da mundialização, designadamente porque foiela
que tornou possível avaliar o passivo global da nossa responsabilidade, é tempa
de a análise científica e pedagógica, da competência da UNESCO, encarar e
definir remédio para os defeitos das virtudes desta intervenção informal no
processo educativo.
218
INTRODUÇÃO
~
tobalidade do passivo: povos mudos - povos dispensáveis
b) ~rnos de referência mais abrangentes da conjuntura deste fim de século,
ºI
c;010 resulta da crescente bibliografia que tende para adoptar uma unidade
ca c odeio, são o globalismo e os direitos do Homem. A percepção teilhardiana
de :rnplexidade crescente tem sempre resposta no primeiro dos referidos conda_c
os O qual cobre um sistema observado que por sua vez se desdobra em várias
ce~ts· ~ sistema observante que a Carta da ONU e o ideário ocidental da guerra
c~;;tam como bandeira, tendo recebido expressão formal na Declaração Unia sal dos Direitos do Homem de 1948, reconhece-se com mais dificuldade na
ver
ealidade que entretanto se desenvolveu.
r Em grande medida, a evolução no sentido da submissão do globo a um sistema, que em muitos aspectos substituiu pela submissão as prometidas autonomias das comunidades e das pessoas, implicou o sacrifício de valores que
amparavam a promessa de que nem os homens nem os povos voltariam a ser
usadoscomo instrumentos de projectos alheios.
Trata-se, em suma, de ter acontecido uma vez mais que entre as promessasdos dividendos da paz, e a sua realidade implantada, se verificou uma falta
de coincidência e uma distância que fizeram permanecer, com nova medida e
com novo perfil, a falta de autenticidade que deu carácter ao intervalo entre
as duas guerras mundiais.
No que respeita aos valores que se congregaram na ideologia ocidental da
guerra, basta consultar as prospectivas e as avaliações globais para verificar
facilmente que andam afastadas dos critérios, dos modelos, e dos objectivos
então proclamados. Em plena Guerra Fria, quando ninguém se atrevia a prognosticar a queda do Muro de Berlim em 1989, o famoso Hudson Institute, com
o qual pontificaram Herman Kahn, William Brown e Leon Marte!, traçava um
cenário para os próximos duzentos anos, o qual se ocupava das perspectivas
dosempregos, do consumo, da energia e seus custos, das profecias e realidades
relativasao petróleo, do custo dos metais, do crescimento da população mundial, do produto mundial bruto por habitante, custo do controlo da poluição
em relação ao produto nacional bruto, e nada a respeito da paz, da autodeterminação dos povos, dos direitos do Homem, da relação do desenvolvimento
com a equidade.
Todavia estávamos em 1976, e dois anos antes Soljenitsine tinha sido expulso
da União Soviética, por coisas como ter publicado em 1958 Um dia de Ivan
ficando obrigado a publicar apenas no Ocidente os seus maniDenissovitclz,
festos posteriores; em 25 de Abril desse ano dera-se a Revolução portuguesa
que desencadeou efeitos consideráveis na estrutura internacional, incluindo
o destino de Timor; o Presidente Richard Nixon evitava o impeaclzment
anteci-
219
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
panda a demissão; começara em 1975 o desastre do Líbano; os cubanos tinh
desembarcado nesse ano em Angola; os EUA festejavam o bicentenário da in~lll
pendência. Parecia indutável ter recordado a Declaração dos Direitos de
délfia, e oportuno avaliar a medida em que se tinha projectado na realid;;mundial, mas essa preocupação não recebeu forma no texto que entretanto e
Se
tornou famoso.
Talvez deva recordar-se, para avaliar tal alheamento, que a Carta da ÜNlJ
naquilo que diz respeito à ordem e segurança mundiais, tinha sido posta ent '
parênteses pela ordem dos Pactos Militares (NATO-VARSÓVIA) que duran:e
cinquenta anos se manteve em vigor com base na dissuasão nuclear, isto é, co e
tn
base no medo recíproco, uma variável nova na história mundial.
No entretanto, mantida, com alguma fragilidade, a área de intervenção da
organizações especializadas, e, logo depois de finda a Guerra Fria, a ONU anun~
ciou o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, cujos Relatórios
desde o início, em 1990, procuraram "acabar com a incorrecta avaliação do
progresso humano apenas através do crescimento económico".
Uma das repetidas conclusões é que "o desenvolvimento que perspectiva as
desigualdades actuais não é sustentável nem merece ser sustentado".
Esta afirmação não pode deixar de lembrar que o conceito de desenvolvimento acolhido na Carta da ONU era integrador de três vertentes inseparáveis, desenvolvimento político, social e económico, e não apenas do último
que tanto inspirava a filosofia desenvolvimentista e a frustrada ideologia das
p·t
raisingexpectations.
No centro da problemática das vertentes do desenvolvimento político e
social, está a questão dos direitos do Homem.
Acontece que a Declaração de 1948 foi, com algum fundamento, considerada dependente das escalas de valores e modelos europeus, e por isso consi•
derada de difícil entendimento coincidente nas áreas, por exemplo, de cultura
islâmica, ou do humanismo oriental.
Todavia, essa avaliação dirigida aos direitos do Homem da primeira geração, contidos na Declaração de 1948, muda de sentido em face da codifica ção
feita pelo Tratado sobre direitos civis e políticos de 1969, entrado em vigor dez
anos depois, quando finalmente estava ratificado por 35 Estados.
Não apenas parece infundado alegar a vinculação europeísta de tais direitos, como parece claro que os direitos do Homem correspondem a um sistema
baseado na lei internacional, como sublinhou Volkmar Koler, com precedê ncia
sobre o direito interno. O que significa que não é lícito invocar a inviolabilidade
da jurisdição interna para cobrir os abusos. Acresce que, depois da declaração
final de 1993, feita pela Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, também
os direitos chamados de terceira geração, todos relacionados com o desenvol·
220
INTRODUÇÃO
. ento com equidade na orientação de Patrício Aylwin, foram incluídos num
1, smtese
'
.
vunsenso umversa
·
proposta, como fc
01• o b serva d o, d a tra d"1ção cnstã,
d'
.
.
I'
.
d
h
.
fi
.
.
con
d cranscen enc1a 1s am1ca, e o umamsmo con uc10msta.
ª Em nenhuma
área cultural do mundo é hoje lícito, para qualquer sobera. invocar a filiação ocidental dos textos legais sobre os direitos humanos, e
111
ª1'amar uma leitura objectivamente diferenciada para legitimar as sua práti-
rec
as abusivas.
e Élamentável, mas indispensável, ter de reconhecer que também neste domí-
io é larga a distância entre o modelo observante elaborado pela legislação e
~esoluçõesdas instâncias supranacionais e o modelo observado da realidade
•ncernacional.
1
Por isso, num mundo em que a sociedade civil evolucionou para transnacional, muitas organizações não-governamentais assumem a voz dessa solidariedade nova e horizontal que se eleva contra as soberanias múltiplas e relutantes,
e acusam a falta de meios e métodos para forçar à efectiva vigência dos direitos
humanos juridicamente reconhecidos.
Quando da recente reunião da Comissão da ONU para os Direitos Humanos, em Genebra, ainda, por exemplo, foi possível ao governo da China evitar resoluções críticas usando o veto ou solidariedades de interesses .
Mas já não é possível às soberanias, mesmo privilegiadas com a majestade
do veto, evitar que a Amnistia Internacional, e outras organizações humanitárias,mantenham na agenda da opinião pública mundial práticas que especialmente dizem respeito à República Popular da China, à Colômbia, à Nigéria, à
Turquia, e à Indonésia e a Timor.
Deste modo vai sendo possível evitar que a falta de vontade política suficiente para que a Comissão dos Direitos do Homem da ONU decida livremente em função da realidade degradante, autorize o silêncio e a prescrição
pelo esquecimento.
No longo entretanto, como consta do recente relatório do International
Committee da Cruz Vermelha, consagrado à avaliação do respeito pelo direito
humanitário internacional, verifica-se que foi alcançado "um nível sem precedentes de barbaridade" nos conflitos em que intervém a força militar.
Esta situação parece ter relação com o facto de a Carta da ONU ter sido um
exercíciofrustrado no sentido de conseguir a coexistência, e harmonia, entre
0 legado maquiavélico ocidental que reconhece a hierarquia das potências no
Conselho de Segurança, e o legado humanista relegado para a Assembleia Geral
sem poder decisório.
Foi o primeiro que conduziu à substituição efectiva do modelo proposto
para a ordem e segurança mundiais pela referida Ordem dos Pactos Militares
que vigorou até 1989.
221
TE ORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A revisão da estrutura colonial euromundista em que se viveu até à Segund
Guerra Mundial, ficou condicionada pela avaliação da balança de poderes rnu ª
dial em formação. Por isso, se todos os impérios da frente marítima europe~1
ª
.
d e sub meter-se a'd esco 1omzaçao
· - programa d'a, e certo que nem os EDA
tiveram
nem a URSS encontraram, na sua vasta área de soberania, nenhum povo Para
autodeterminar.
Muito pelo contrário, os EUA seriam autorizados a integrarem o Hawai e
Alasca no seu território nacional, coisa não consentida a qualquer outro Estad:.
a URSS, detentora do maior império terrestre e colonial, manteve Íntegra '
doutrina das nacionalidades que o próprio Estaline elaborara, até que a Peres~
troika permitiu finalmente olhar para dentro das coisas.
Os limites da tolerância existentes e respeitados durante o meio século de
ameaça recíproca entre os blocos, permitiram uma política de metades: duas
meias Europas, duas metades de Berlim, duas Coreias, dois Vietnames, dois Iémenes; consentiram liberdades unilaterais como na Grécia, na Hungria, na Checoslováquia, no Afeganistão; e além disso promoveram a existência, para além da
situação dos direitos do Homem, de duas categorias de povos, às quais foi negado
o direito à autodeterminação, que são os povosmudose os povosdispensáveis.
Nos primeiros se incluem, como exemplo significativo, os vinte e três milhões
de curdos que teimam em subsistir: 12 milhões na Turquia, onde representam 20% da população; 4,5 milhões no Iraque, atingindo 25% da população;
1 milhão na Síria, correspondendo a 9% da população; ainda, uma diáspora no
martirizado Líbano, cuja reabilitação internacional acaba de ser pregada por
João Paulo II.
Todavia, e não obstante as declarações de princípios e as práticas descolonizadoras da ONU, os curdos são referidos sempre como minoria dos vários
territórios onde se encontram as parcelas em que os dividiram, e não são autorizados a falar por si próprios ao mundo, em nome da unidade do povo. Desde
1995 que a questão dos curdos é o problema principal da Turquia, onde uma
guerra contra o chamado Partido dos Trabalhadores do Kurdistão (PKK)procura dominar o separatismo, matou mais de 20.000 pessoas, levou trinta mil
homens das forças armadas a invadir o Norte do Iraque para tomar as bases e o
santuário assegurados pelos que vivem nesse lado da fronteira. Podemos lem·
brar os tamils de Sri Lanka, os tutsis e os hutus do Burundi e do Ruanda, sem
esquecer os irlandeses do norte e os bascos peninsulares.
Deles falam alguns, em vez deles falam as soberanias interessadas, mas eles
próprios são oficialmente mudos por razões de interesses alheios.
Neste fim de século, ao qual foram prometidos os dividendos da paz, os
povos mudos ainda tendem para serem considerados povos dispensáveis, víti·
mas de eliminação programada.
222
INTRODUÇÃO
Aexperiênci~ do passado, não m_uitolo~gí_nq~oe datad~ ~té pelas a~to?eter. çõeSliberais e pela proclamaçao do direito a revolta e a mdependenc1a que
(!llnaersonalidade aos Estados de todo o continente americano, conheceu essa
de~ica de que foram vítimas os aborígenes. Desse modo desaparecem as pode. , . entre o At 1ant1co
• . e o p ac1'fi1co,um f:acto
prat tribos que povoavam o terntono
5
rosa documentado por Tocqueville em algumas das suas páginas dramáticas.
Iog~uando a guerra de 1939-1945 viu incluir a solução final entre os objectidaAlemanha,que para isso exterminou seis milhões de judeus, toda a pregação
:ológica foi desenvolvida em torno do conceito de povo dispensável, e até da
1
igência e justificação de o dispensar.
ex A condenação mundial de semelhante prática, a incriminação do genocídio e dos crimes contra a Humanidade, a criação do Tribunal de Nuremberga,
execução humilhante dos responsáveis alemães, a criação de santuários nos
~ugaresdos sacrifícios, a construção dos museus da memória, a responsabilizaçãodos aparelhos educativos pelo alerta da consciência das novas gerações,
nada foi suficiente para que a categoria dos povos dispensáveis fosse definitivamenteeliminada. O legado maquiavélico guardou a sua área de vigência com
êxitoem relação às pretensões do legado humanista.
Lembremos, como exemplo significativo, a guerra do Biafra que, durante
dois anos e meio, massacrou a população dessa província que pretendia exercer a autodeterminação em relação à Nigéria. Em meados de Janeiro de 1970
0 chefe da revolta, general Philip Effiang, ofereceu a rendição sem condições
ao governo de Lagos. Nessa data os observadores anunciaram que tinham sido
mortos dois milhões de ibos, habitantes do Biafra, numa população de catorze
milhões de pessoas. Foi inútil que a Cruz Vermelha, logo em 1968, tornasse
públicoque eram eliminadas 8.000 a 10.000 pessoas diariamente, descrevendo
o sofrimento sem igual das crianças, e salientando que a maior parte das vítimassucumbia pela fome nos campos de concentração.
Apaz e o silêncio desceram simultaneamente sobre o território, com os interessesdominantes pacificados pela redução de um povo dispensável.
Sugerimos que é neste vasto passivo da Ordem finda dos Pactos Militares
que se inscreve o drama de Timor. Com fortes pressões sistémicas no sentido
de reduzir os timorenses à situação de povo mudo, e ao tratamento de povo
dispensável por parte da Indonésia.
Esta percepção não veio atenuar nenhuma responsabilidade histórica de Portugal, que conduziu de forma deficiente o processo de retirada da soberania.
Massem eliminar essa responsabilidade de um país de condição exógena em
relaçãoao sistema mundial então vigente, parece seguro que Timor foi vítima,
por duas vezes na vida da mesma geração, de genocídio executado no interesse
dos grandes poderes concorrentes na área.
223
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Durante a guerra de 1939-1945, Timor ainda era considerado um territó ,
de importância estratégica para a segurança da Austrália, e por isso as forrio
australianas o invadiram, violando a neutralidade portuguesa, com prude Ças
• . do governo.
nte
s1·1encw
A invasão consequente pelos japoneses, que expulsaram os aliados, deixo
população entregue a uma violenta ocupação militar, a qual praticamente dliª
truiu o território, em termos de corresponder à definição dos crimes con:sa Human!dade. Ficou dessa época a lendária gesta de D. Aleixo, contada pe;a
Capitão Oscar Ruas, primeiro governador português a retomar o exercício~
soberania depois da derrota do Japão e seus aliados.
As coisas mudaram entretanto radicalmente no período em que vigorou
Ordem dos Pactos Militares, em parte porque Timor deixou de interessar ª
ªº
conceito de segurança australiano, bastando como razão a evolução da arte da
guerra.
Durante o período da descolonização e da consolidação do estatuto internacional da Indonésia independente, o Presidente Sukarno, o mesmo da geração de Bandung, declarou mais de uma vez que o seu país apenas pretendia o
território da antiga soberania colonial holandesa, e que não tinha pretensões
sobre Timor-Leste.
Esta boa conduta estava de acordo com a orientação da ONU que era no
sentido de manter as fronteiras territoriais sem revisão, um ponto expressamente acatado pela Carta da Organização da Unidade Africana (OUA),e posto
em causa pela primeira vez, perigosamente, na crise dos grandes lagos neste
ano de 1997.
Por outro lado, a proclamada obediência ao preceito também amparavaa
pretensão da Indonésia no sentido de obter a tranquila entrega de Irian Jaya,
a metade ocidental da ilha da Nova Guiné, cuja parte oriental forma a Papua-Nova Guiné.
Ali também vigora uma violência extrema, e notícias veiculadas pela Igreja
católica falam de trinta e sete mortos em 1994-1995, havendo informação sobre
a acção independentista da OPM (Organização para a Independência da Papuásia) e as violências que recrudesceram em Março de 1996: é um caso que pode
suspeitar-se de povo mudo, que o descaso internacional poderá deixar tratar
como povo dispensável.
Mas aquela boa conduta de Sukarno foi abandonada pelo actual regime
do general Suharto, chegado ao poder com a bandeira do anticomunismo e
com escassa economia das vidas dos adversários, liquidados por centenas de
milhares.
Com o expresso proclamado receio de que a Revolução portuguesa de 1974
entregasse o governo de Timor-Leste a um governo marxista, e invocando apre·
224
INTRODUÇÃO
~ anunciou que não assistiria pacífico a essa tentativa, numa mensagem
venǪ0 '
•
,
}lida pelo governo portugues da epoca.
01ªEm1975 invadiu, ocupou, e integrou Timor-Leste no seu território, comedo assim três violações do direito internacional.
re\ reacção das potências tem sido lenta, porque é a Realpolitikque principalnte orienta os comportamentos: a Austrália, agora em processo de asiatifica~: do seu conceito estratégico nacional, assume uma definição de segurança
ç~argadaque inclui a defesa das boas relações e solidariedade com a potência
ª ilitar regional que é a Indonésia; os EUA, em crise de solidão depois da queda
: Muro em 1989, têm a Indonésia como principal aliado militar nesse vasto
0
pacífico,e cala ali o discurso humanista que entretanto vai fazendo pela Amé.caLatina, e que também coloca em surdina quando chega a Pequim, uma des;aça que acontece aos povos pobres, Timor tem petróleo e isso conduz mais
rapidamente ao acordo dos interesses, do que ao interesse pelos direitos dos
povose pelos direitos do Homem.
Tudo circunstâncias que explicam porque é que uma situação tão profundamente em desacordo com o direito internacional, foi também objecto de um
processo de deturpação da imagem para a fazer perceber como um diferendo
entre a Indonésia e Portugal.
Realmente é uma grave questão entre a Indonésia e as Nações Unidas, isto
é, entre a Indonésia e a comunidade internacional, da qual não podem licitamente alhear-se nem o Conselho de Segurança, nem a Assembleia Geral, nem
a Comissão de Direitos do Homem, nem o Conselho de Tutela.
Portugal, sejam quais foram as suas responsabilidades históricas, é hoje apenas potência administrante, legitimado pela Carta da ONU para representar
e defender os interesses e direitos dos timorenses, como povo e como pessoas.
Nisso não pode Portugal transigir, porque não cura de interesses próprios,
cumpre sim um dever jurídico para com a comunidade internacional, assume
um dever moral e internacional para com os timorenses, não recusa a responsabilidade histórica que lhe pertence, e nem beneficia de inventário.
Esta autenticidade de conduta, que obteve adesão unânime das forças políticas, das instituições e da sociedade civil portuguesas, não teria certamente
sidosuficiente para evitar que sobre Timor continuasse descendo a cortina do
esquecimento destinada aos povos tratados como mudos e dispensáveis, se o
tribunal da opinião pública mundial, hoje de facto afirmado na sociedade civil
transnacional que se organiza com voz própria, não tivesse sido alertado pelos
meios da comunicação social que surpreenderam a violência, pelos timorensesque no exterior fizeram o clamor pela justiça, pela Igreja católica portadora
da herança dos teólogos juristas que aqui mesmo, nas nossas Universidades,
designadamente Suárez e Molina, mais os seus discípulos da nossa Escola de
225
--
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Direito Natural de Évora, lançaram os fundamentos dos direitos dos Home
ns
e dos povos.
A campanha que o Prémio Nobel recompensou, e fortaleceu, é verdadeir
amente uma demonstração do poder do Verbo, do poder dos que não têm pode
da capacidade que a palavra inspirada tem de disfuncionar um sistema violen/
em favor da justiça. Que será feita, segundo nos diz a esperança que sustento
todos os que participam neste bom combate.
ª
e) Educar para a cidadania mundial
A questão da educação para o exercício da cidadania, que foi escolhida para
tema inicial do encontro promovido pelo nosso Conselho Nacional da Educação em 1997, está evidentemente situada entre os mais desafiantes temas da
crise do sistema educativo.
Talvez dela possa dizer-se, com maior propriedade do que a respeito das
muitas outras, que todos os seus termos de referência aparecem condicionados
pela regra segundo a qual os factos se alteram em tempo social acelerado, e os
conceitos operacionais se modificam em tempo social demorado.
Lembramos que o uso do conceito assentou também, entre várias razões
numa preferência ideológica contraposta, desde as Revoluções Americana~
Francesa, à qualificação de súbdito, entendendo-se que a última implica uma
submissão que aquele conceito rejeita.
A envolvida concepção de lealdade em relação a um Estado não abrangeu
porém toda a população, e o seu conteúdo considerou-se vinculado à existência de uma Constituição que inclui uma enumeração dos direitos e garantias
do cidadão.
Este conceito sempre consentiu na existência de grupos submetidos ao
Estado, mas sem acesso à cidadania, como aconteceu designadamente com
os escravos, com os aborígenes da América, e, menos agressivamente, com os
estrangeiros residentes ainda que permanentemente.
Estávamos longe da cidade grega, mas não tão longe de Aristóteles, com o
Estado soberano a imprimir um carácter atomístico à semanticamente chamada comunidade internacional.
Esta distância contribuiu para enriquecer o pluralismo conceituai que distingue por um lado os direitos cívicos (civilrights)que são inerentes à qualidade
de cidadão, e que na literatura por vezes também são chamados liberdades cívicas (civilliberties),e por outro lado os direitos humanos que pertencem a rodo
e qualquer homem independentemente do lugar e condição de cidadania elll
que se encontre.
A pretensão dos Estados racionais-normativos, cujas constituições têm sem·
pre uma declaração de direitos, liberdades e garantias, é a de concordância
226
INTRODUÇÃO
cial entre os direitos civis e os direitos do Homem, mas movimentos chacendendos civil rightsque apareceram nos EUA mostraram, ainda neste século,
mado~otinh a desaparecido a necessidade de impor o respeito efectivo dos
11
q~e. os, liber dades e garantias previstas na Constituição, designadamente em
diret~oaos negros. O CivilRigthsAct de 1964 deu sentido à evolução a favor da
relaça
tendcidad e.
au Não obsta nte a perspectiva mundialista e ecuménica que se traduziu na
laraçáo Universal dos Direitos do Homem da ONU (1948), o conceito e a
pe~idade do Estado soberano, que dominaram a vida internacional até ao fim
~easegunda Guerra Mundial, sobreviveram no tempo social demorado, ensombª ndo a percepção de que a referência dos direitos do Homem tendeu para
~:rapassar a limitação conceituai dos direitos, liberdades e garantias, ligados
~a Cl"dadania, à medida que as interdependências e dependências mundiais se
consolidaram, e que o mundialismo se firma ao mesmo tempo como modelo
bservante e como realidade observada.
0
Para a realidade observada, tornou-se geral o conceito de aldeia global entendida como mundialização ecológica, do económico, e do político, o todo apelando para o que alguns chamam uma democracia avançada, por incertos que
sejamas análises e pressupostos organizativos.
Talvez não seja ousado identificar a crise do Estado soberano como elemento essencial da nova conjuntura, o que significa estarem em causa áreas de
intervenção dessa criatura, os seus limites espaciais de acção, as capacidades
disponíveis,as lealdades dos indivíduos, os valores de referência, incluindo os
que dizem respeito à cidadania, às formas que esta pode revestir e aos termos
do respectivo exercício.
Pode filiar-se na mudança das estruturas mundiais, que definitivamente
afectaramo papel do Estado soberano, o facto, que parece bem identificado, de
osdireitos do Homem tenderem para ocupar a proeminência que pertencia aos
direitoscívicos, no sentido de eliminar, ou ao menos de progressivamente esbater,a distinção entre uns e outros, com reflexos expressos em novos conceitos de
cidadania,de sociedade civil, de liberdade de circulação e fixação de residência
no mundo, de participação na gestão local e nacional, e, finalmente, na revisão
da própria enumeração dos direitos do Homem, que enfrenta as exigências de
reformulação inevitáveis em cada mudança importante da conjuntura.
Não parece difícil reconhecer que a década de oitenta, deste século a findar,
foimarcada pela questão dos direitos do Homem, os quais, como foi observado
por Paul Thibaud, foram reconhecidos como referência básica das legitimidades políticas e sociais, apoiadas em movimentos políticos como a dissolução
do sistema soviético, usando organizações como a Amnistia Internacional, e
movimentos humanitários como o da medicinasemfronteiras.
227
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Isto ao mesmo tempo que a crítica do projecto da sociedade reconciliact
conduzida por Cornelius Castoriadis, alinhava as debilidades do maneis a,
do Estado, e que Paul Ricoeur remetia o conceito para o capítulo das utotº
1
baseadas na suposição de que o poder político será alguma vez alheio a in ª8
.
~
resses e preconceitos.
Pelo menos no espaço ocidental, a velocidade da mudança concorreu P
que os direitos do Homem se perfilassem como o ponto de referência; e
partida, para ultrapassar os antagonismos de interesses e as ameaças deu e
poder político incontrolado, visando um pluralismo democrático solidamen:
apoiado no entendimento de que tais direitos do Homem são oponíveis a qua~
quer regime e em qualquer lugar da Terra.
Foi uma previsão de Norbert Elias, em cujos ensaios, escritos entre 19
39
e 1987, sobre a sociedade dos indivíduos, antecipou que a interdependênci
entre o homem e a sociedade se tornaria planetária.
a
A velha referida temática da relação entre os direitos e liberdades cívicas, e os direitos do Homem, ganhou novos contornos, muitos reconhecendo
que findara a época em que os Estados soberanos monopolizavam as relações internacionais, substituindo por um modelo de worldpoliticsparadigm
0
antigo state centricparadigm,para usar a linguagem de Nye e O'Keohane. Mas
sobretudo tornou-se evidente, para observadores como Philip Jessup, Robert
O'Keohane, Arnold Wolfers, Wilfred Jenks, que na sociedade internacional
emergiam interesses que excedem o conceito clássico, e que se apoiam em
relações estabelecidas entre homens e organizações sem limitações possíveis
pelas barreiras estaduais.
A resistência da escola clássica, bem representada por Kenneth Waltz coma
sua crítica ao que chamou o mito da interdependência, sustentando que o transnacional ismo não diminuiu a dominância do Estado, tem certamente alguma
exactidão para potências do topo da hierarquia, mas parece mais corresponder
àquele ponto do tempo tríbulo em que inevitavelmente vivemos, e que representa a presença do que resta do passado em cada época de mudança.
Finalmente globalizada a estrutura mundial na sequência das revoluções
científica e técnica, dos teatros estratégicos, do mercado transnacional, das
comunicações, os conceitos de património comum da Humanidade ao serviço
do género humano sem distinções, encontram apoio na realidade de uma cons·
tituída sociedade civil mundial, contratual e exigente perante as velhas e múlti·
pias soberanias, criando voz própria nas organizações não-governamentais de
múltiplas espécies, empenhadas na prevenção e defesa do planeta Terra, queé
a casa comum dos homens.
Ao mesmo tempo que tardam os dividendos da paz esperados desde 1945,
vão aparecendo novas e talvez utópicas propostas como a da União Federal do
:a
228
INTRODUÇÃO
• cicoNorte, de Clarence K. Streit, a da Constituição Mundial em que trabap.tlan!11os professores da Universidade de Chicago em 1945, ou do Movimento
Jharadialpara o Governo Federal Mundial que se organizou no Luxemburgo
?JUO
m1946.
e Também começam a merecer mais do que uma distraída atenção, reflexões
a do visionário Robert Muller, ao elaborar uma ladaínha de lamenta0
c~~ em que anota a divisão do planeta em centenas de fragmentos territoriais
çoe qualquer lógica geográfica, ecológica, ou humana, cada fragmento proclase:do-se como mais importante do que o planeta ou o resto da Humanidade,
maeforçaro armamento de cada um deles para defender a sua integridade, ou
ª rrescentar o seu espaço; condenando a acção dos cientistas, industriais, cons:urores, economistas, militares, que vão destruindo os recurso s fundamentais,
não-renováveis, do nosso planeta.
Trata-se de enunciar as disfunções do Estado soberano como modelo geral
de organizaç ão política, de reconhecer o desafio que tende para ser resol vido fazendo coincidir os clássicos direitos cívicos enumerados nas Constituições nacio nais com a definição dos direito s do Homem, de concluir por
alongar a list a destes últimos direitos em função da evolução do globalismo
estrutural.
Por isso se fala no direito individual à paz, porque este não deve ser o privilégiode poucos, deve ser a condição de todos; para isso se sustenta o direito
individual de exigir um planeta desarmado, começando por se dirigir ao seu
governo;o direito de ver os seus governos a cumprir os tratados e o direito internacional,designadamente com o corolário do direito de recorrer à intervenção
da comunidade internacional contra a violação da regra; o direito a uma educaçãoglobal que elimine a programação para a xenofobia, para a agressividade,
parao interesse armado; e por isso o direito a uma informação objectiva e global para cada um poder exercer a intervenção democrática que lhe incumbe;
e finalmente o "direito a uma cidadania mundial e governação do mundo", no
exercíciodo direito igual de todos os seres vivos ao seu planeta, lembrando Muller as conhecidas palavras de Benjamin Franklin: "Deus permita que não apenaso amor da liberdade mas também o conhecimento dos direitos do Homem
impregnem todos os países do mundo, de modo que um filósofo possa descolar-separa qualquer lugar e dizer que está no seu país".
O Estado soberano, perante este ambiente do globalismo, perde competênciaspelas cúpulas a favor de organizações supra-estaduais, perde capacidades
efectivasna relação entre objectivos e meios, cede à divisão interna de poderes
ª favorde autonomias territoriais de variada espécie.
Asociedade civil é transnacional, multiplica as fidelidades horizontais pelo
contratualismo, cria instrumentos próprios para exercer uma voz autónoma e
229
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
independente em relação às soberanias que se debilitam, vai enriquecend
experiência com o método das conferências mundiais, desde a Cimeira da 'l'e; ª
do Rio de Janeiro, à Conferência de Pequim, onde foi a sociedade civil mundi:
e não as soberanias, quem ousou falar claro.
'
Talvez não seja audacioso entender que estamos perante a exigência do rec
nhecimento de uma cidadania mundial, que coincide com a definição muodiai dos direitos do Homem, que mais se exerce no ambiente da socieda:civil mundializada do que em relação às soberanias envolvidas e limitadas Poe
este novo tribunal da opinião pública mundial para o qual o Presidente Wi!~
son pensou equivocadamente, em 1919, que já podia apelar a favor da paz
que encontrou na falta dela a variável que sobretudo lhe dinamizou a compie~
xidade e a consistência.
O ensino para a mundialização, para a intervenção responsável e individuai
no processo dessa sociedade civil, para enfrentar o passivo da nova condição
do planeta, é um desafio incontornável da tal cidadania emergente: o crescimento demográfico, a degradação dos recursos não renováveis, a ameaça
à biodiversidade, a miséria de parte da Humanidade, a recusa de voz a povos
mudos do mundo como os curdos, o tratamento de povos como dispensáveis
reservado às vítimas do genocídio como os ibos e os timorenses, tudo exige
uma resposta do processo educativo, do qual a aldeia global é uma responsabilidade.
Não parece coerente admitir geralmente a validade deste cenário, para negar
que no espaço europeu, onde esteve sediado por séculos o governo do mundo,
também o Estado soberano está em crise, também a organização de um grande
espaço, novo patamar intermédio entre o modelo estadual e a globalidade, exige
revisão dos conceitos dependentes do tempo social demorado para racionalizar a mudança das estruturas, feita em tempo social acelerado.
A Segunda Guerra Mundial destruiu o sistema euromundista e, com ele, os
pressupostos da soberania absoluta e suficiente. Ainda que sem plano, os grandes espaços multiplicam-se, alterando completamente a primeira e essencial
referência da soberania e da cidadania, que é a fronteira, sagrada pela escala
de valores históricos e patrióticos. Portugal tem disso uma experiência sem
equivalente, porque a mesma geração viveu pelo menos três realidades: a das
fronteiras imperiais que, até à década de sessenta, eram todas com soberanias
ocidentais, com excepção do então irrelevante caso de Macau; depois, a des·
colonização deu-lhe por fronteiras novos países que nenhum deles pertencia à
área ocidental, mudando radicalmente a definição da vizinhança; finalmente,
depois de 1974, ficou com uma só fronteira geográfica, esta europeia.
Mas aconteceu-lhe que a fronteira ao mesmo tempo se foi multiplicando,
num processo sustentado que vinha de antes, e que teve que ver com os
230
INTRODUÇÃO
spaços. Deste modo, a fronteira de segurança passou a não coincidir
gi-andesegráfica, porque é a da NATO em lonjuras mal sabidas pelo contingente
colílªge~iros; a fronteira económica transferiu-se para as comunidades euroconscbmetendo a econonua. mterna
.
.
- contra Ia; a
a constrangimentos
que nao
de
5
peͪ fisunteirapolítica anda a ser redefinida na CIG-Conferência lntergovernaoova ~ode1996, e a fronteira cultural teve um primeiro ensaio de fixação com
mentado que instituiu a Comunidade de Estados de Língua Portuguesa.
0 f~t:ca foi tão evidente o facto de que o sistema, a que o país pertence, ultraueJJlmuitas direcções o regime constitucional, entendido este como a
P~::nsão da capacidade de regência de uma parte apenas do sistema.
dt Na sociedad e civil que preenche o espaço europeu, tão recortado por fron•
várias, vive uma exigência histórica dirigida ao sistema de ensino, e que
5
ce1ra
.
E d
d .
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raduz em consegmr que os sta os europeus eixem e ser mimigos muset para se tra ns1ormarem
r
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1·
d
·1
em parceiros: o que imp ica que, os quatro pi ares
05
; educação, aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, e
\ender a ser, os dois últimos apontam especiais exigências.
ap Educar para a unidade mundial, reduzindo a distância entre países ricos
e geografia da fome, eliminando as ameaças inerentes, exige a capacidade de
educarpara o pluralismo do grande espaço, neste caso europeu, e ensinar para
a salvaguarda das identidades mesmo que se agrave a crise do Estado soberano.
Porquea crise deste não é o mesmo que a crise do Estado nacional, não são as
naçõesque estão em crise, o Estado é uma forma contingente de servir as comunidades, e terá de adaptar-se aos constrangimentos do processo globalizante
emcurso, para defesa apropriada das identidades nacionais, incluindo as outras
Europas às quais a história negou voz, salvaguardando a igual dignidade de
todas contra as ameaças tradicionais de uma hierarquia de poderes políticos.
O conceito de cidadania europeia, antes de ter uma expressão normativa
moldadaem função do institucionalismo da União, é uma versão da cidadania
mundial, uma regionalização apropriada da Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma participação activa na sociedade civil internacionalizada,
algumasvezes surpreendida por uma política furtiva de executivos.
A maior parte dos Estados, ainda os que não são nações, tiveram a ambiçãoda homogeneidade cultural, e algumas vezes a supuseram pelo método de
alienar minorias. Mas a livre circulação pelo mundo, no exercício do direito
básicode estar, de andar, e de ir de um lugar para o outro, multiplicou as minorias étnico-culturais, ao mesmo tempo que o avanço na concepção das várias
cidadanias vai derrogando antigos conceitos excludentes, defensores do jus
por vezes nacionalistas, algumas vezes xenófobos e violentos. As catesaguinis,
gorias estão em mudança, e recentemente Thomas Hammar falou no denizen
typecomo realidade situada entre o cidadão e o estrangeiro, um compromisso
231
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
que vai respondendo às chamadas colónias interiores que as imigrações vcriando, sobretudo por causa do mercado de trabalho.
ª0
Os postulados de uma cultura homogénea da população do Estado es _
'
e
- h 01e
· mu lttcu
· ltura1s,
· e a educatao
postos em causa, patses
que 1oram
nações sao
_
deste fim de século não o pode ignorar.
Çao
As responsabilidades do aparelho educativo são hoje desafiadas não
uma ordem mundial estabilizada, por unidades políticas consolidadas, por~or
sistema observante racionalizado, ou por um sistema observado de estrutu lll
sabida, antes acontece que da Nova Ordem apenas sabe que acabou a anti ra
do Estado soberano tem notícia que está em crise, do globalismo vai recebeu~ª•
0
manifestações desintegradas, das dependências e interdependências mu
diais sabe que foram desencadeadas mas não as sistematiza. De tudo resuJ:·
que se, pela lição de muitos como Theillard de Chardin, Robert Muller, Simoª
Weil, Mortimer Adler, o mundialismo é uma perspectiva que domina toda:
problemática, o desagregar das estruturas aponta mais uma vez para o homein
kantiano como valor supremo, que procura encontrar nos grandes espaços 0
amparo político.
Foi esta percepção que orientou o europeísmo de pensadores como Jacques
Maritain, François Perroux, Denis de Rougemont, e sobretudo do muito esquecido Richard de Coudenhove-Kalergi, iluminando a decisão de Jean Monnet
Robert Schuman, De Gasperi, Adenauer.
'
No entretanto, os conceitos de Estado, de cidadão, de soberania, de direitos do Homem, de federalismo, de jurisdição interna, de comunidade internacional, de sociedade civil, de paz e de guerra, ainda quando se mantiveram em
circulação, foi apoiando uma pluralidade de equívocos. O aparelho do ensino,
desamparado dos apoios institucionais seculares, foi somando alguma aprendizagem: aprendeu que a suficiência do Estado soberano, que eliminou a tradição medieval da livre circulação de professores e estudantes, tem de ser
substituída pelo regresso à internacionalização dos padrões, às solidariedades científicas sem fronteiras, à comunhão nos projectos e nos resultados; a
função de serviço à comunidade fez-lhe encontrar a problemática da cidadania global, antes tema de utopistas com tradução na Declaração dos Direitos
do Homem, e grande incerteza quanto à metodologia da intervenção; nesta
incerteza avulta o desafio para lidar com realidades novas como são a sociedade civil transnacional, as fidelidades horizontais que defrontam e afron·
tam os poderes clássicos; o patamar dos grandes espaços, que na antiga sede
do governo do mundo se chama União Europeia, fá-lo deparar com a crise do
Estado soberano, com a redefinição do conceito de fronteiras, com o alarga·
mento do exercício do direito básico de ir pelo mundo, aproxima-o do mui·
ticulturalismo, da cidadania exercida em função da vizinhança e não da
232
INTRODUÇÃO
·onalidade, da dialéctica entre o direito de emigrar e o direito de imigrar.
oac'a-seenfim de assumir uma perplexidade que nunca teve resposta satisfa'
•
• d
frat
· )Untas,
·
, .. apren d er a viver
numa "r.terra umca,
consegum
o perce b er com
toflªfinalidades, e o que fazer. É à participação activa nessa dinâmica de incerque ue chamamos c1'd adama.
.
tezaS q
233
Capítulo
li
Teoria
doPoder
§ 1º
A NaturezadoPoderInternacional
1.Conceito operacional de poder
Associedades organizadas em Estados evolucionaram, no espaço ocidental, para
umracionalismo expresso num sistema jurídico que, por um lado, disciplina o
poder
políticoe, por outro lado, encontra no poder organizado o instrumento destinado a fazer observar o norma tivismo jurídico. Os textos jurídicos fundamentaisque codificam as normas disciplinadoras da organização do poder político,
da produção das regras de direito, e da intervenção do poder para assegurar a
observância da legalidade, são as constituições políticas. Por isso mesmo, no
querespeita à explicação e justificação do exercício do poder político interno,
asteorias dominantes são as teorias
jurídicasdopoderpolítico.
Estas teorias usam conceitos normativos como direito, obrigação, lei, hierarquiadas normas jurídicas, legalidade, inconstitucionalidade, competência,
considerando-se reprovável o poder que se afasta da pré-definição jurídica e
do respeito pelos direitosdoHomem,aproximando-se dos modelos clássicos do
Estadodegenerado,
o despotismo, a oligarquia, a demagogia ou, na designação
maisabrangente de hoje, do totalitarismo.
O constitucionalismo moderno, de origem ocidental, desenvolve teorias jurídicaspara racionalizar o fenómeno político, invocando autoridades como as de
Aristóteles (384-322 a.C.), Locke (1632-1704) e Hegel (1770-1831). O conceito
central parece ser o de Kant (1724-1804), que sustenta que todo o ser humano
235
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
deve ser tratado como um fim em si mesmo, e nunca como um meio, sendo
o valor fundamental que a razão obriga a respeitar.
este
daPaz
Os idealistas, com a sua ascendência nos recordados Projectistas
pretendem disciplinar a vida internacional aplicando a mesma perspectiv~ dlle
teorias jurídicas do poder, também são inclinados a racionalizar as rela _as
.
.
. d os po d eres po I'1t1cos
.
- d e um qua d ro normativoÇoes
mternac1ona1s
em fiunçao
direito internacional, ao qual falta um poder especificamente ao serviç~ ~li
garantia da sua eficácia; todavia, alguns procuram fazer equivaler a esse el ª
menta, o poder, o simples sentimentointernacional
de que se trata de normas ju ~dicas obrigatórias, ou o poderdescentralizado
que se traduz na legitimidade de ca~IEstado recorrer à guerrapara defender o seu direito violado ou ameaçado.
ª
É precisamente a circunstância de não haver um poder organizado, ao co
trário do que acontece na vida interna, que seja destinado à função de gara::
tir o direito, que faz recorrer ao conceito de estadode natureza,no modelo de
Locke, para caracterizar a vida de relação no plano internacional. E como 0
poder actua independentemente
de aceitar um direitonaturalou um conjunta
de valoressuperiores e anteriores ao Estado e ao poder político, um realismo
metódico obriga muitos juristas e filósofos a sustentar que o direito é expresso
apenas pela lei positiva, isto é, trata-se realmente de uma ordemou ordenamento
que resulta da vontadedopoderou da convenção
ou acordo a que chegam poderes concorrentes.
O facto relevante é, nessa orientação, que as pessoas na vida interna, e os
Estados na vida internacional, possam ou não ser obrigados a observar tal normativismo, sendo irrelevante qualquer pretensão de afirmar direitos originários anteriores a tal ordenamento, ou um direito natural que tal ordenamento
deveria respeitar.
A nossa concepção ocidental dominante, com a melhor expressão nas Declaraçõesde Direitosdo Homem, as quais obtiveram progressivamente uma adesão
que tende para mundial e assumiram hoje a dignidade de ponto de referência
para avaliar a legitimidade da acção do poder político em toda a comunidade
internacional, é a de um direito anterior e superior ao Estado, um direito natural mesmo de matriz indefinível, um conjunto de valores expressos na síntese
que se chama a dignidadedo homem.
Todavia, na vida internacional como regra, e na vida interna com demasiada frequência, o poder actua de acordo com a convicção de que os princípiosguiase o normativismo jurídico são um produto da vontade normativa do
Estado, determinada pela gestão de objectivos que formula e relaciona, sem
obediência a qualquer direito natural, direitos originários do homem ou valores
absolutos. Os totalitarismos caracterizam-se por essa atitude. Por outro lado,
ainda quando os agentes das relações internacionais aceitam a existência desse
236
TEORIA DO PODER
jvismo superior e anterior, desses direitos originários do Homem, desoorfllt res absolutos, é no seu próprio poder que têm de apoiar, antes de mais,
ºa dos seus interesses e do normativismo que consideram justo.
a de esa corrente, que tem Marx como o teórico matricial, considera por isso
V~o O normatismo jurídico e todos os direitos individuais ou das entidades
quecoivassãoconsequência
desubjacentes
relações
deforça.Deste modo, o direito de
· d o seu d omm10,
' · ou d e o E sta d o exc1mr. terceiros
.
coJectrietário exc1mr· terceiros
0 pro~território, é explicado por Hegel em termos de direitodepropriedade
ou de
1·
d
dose
·
M
·
d
d'
.
. itodesoberania;
para arx, os mvoca os ireitos sao exp ica os em termos
direodersediado nas relações de produção 188•
de~ conceito operacional de poder, em qualquer das orientações, acaba por se
velarfundamental para a racionalização e teorização das relações internaciore.5 Por isso deve ser examinado independentemente da posição que se tome
nat
. a sua re 1açao
- com os va1ores, o d.1re1to
· natura 1, os d'1re1tos
. d o H ornem, ou
bre
so
.
l
direito internac1ona .
0
Que devemos entender por podernas relações internacionais é um conceito
certamente em relação com o que deve entender-se por poder na ordem interna.
Narecordada definição de Max Weber, o poder é sempre a capacidade
de obrigar
ou,como diz Walter S. Jones: ''A capacidade
deum agentedasrelações
internacionais
ses;
parausarrecursose valoresmateriaise imateriaisde maneiraa influenciara produção
deeventos
internacionais
em seuproveito"189• Deste modo, o poder é o produto de
recursos materiais (tangible)e imateriais (intangible),
que se integram à disposiçãoda vontade política do agente, e que este usa para influenciar, condicionar,
congregar,vencer, o poder de outros agentes que lutam por resultados favoráveisaos seus próprios interesses.
Desta definição operacional, isto é, destinada a ser um instrumento útil
de trabalho sem compromisso com a essência das coisas, resulta que o poder
é instrumental, destinado à realização de objectivos. Isto não é incompatível
coma degenerescência interna ou externa que se traduz em considerar o poder
comoum valorem si próprio.Mas a natureza do poder é ser instrumental, o que
também imediatamente evidencia que o poder não é uma coisa mensurável em
termos quantitativos, o poder é sempre uma relação: a capacidade de realizar
objectivosé sempre função das capacidades opostas.
Na competição militar contemporânea encontram-se flagrantes exemplos
demonstrativos desta circunstância. Assim, na guerra do Vietname, os EUA, a
maior potência militar ocidental em termos quantitativos e qualitativos, não
conseguiu o objectivo de vencer o Vietname do Norte, um poder qualitativo e
118
Hegel, Filosof{a
deiderecho,introdução de Karl Marx, Buenos Aires, 1944.
"'Walter S. Jones, T/,elogicofi11ternational
relations,Boston, 1988, p. 257.
237
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
quantitativo fraco, expressão de uma sociedade agrária e pobre. Parece que
factores imateriais, relacionados com a determinação e vontade das popui°s
ções, foram superiores na sociedade pobre aos que se manifestaram na so .adade afluente com a qual entrou em conflito, vencendo. Na relação, o po:edos EUA foi inferior ao do Vietname.
er
O mesmo aconteceu no Afeganistão com a invasão da URSS. De novo u
sociedade industrializada, sustentando o poderio quantitativo e qualitat:a
0
de uma superpotência, foi vencida pela determinação e vontade da sociedad
pobre. Na relação estabelecida, o poder da URSS foi inferior.
e
Em ambos os exemplos não podemos ignorar que os vencedores tiveram
ajuda respectiva de uma outra superpotência, mas isso iguala eventualmen/
quantitativa e qualitativamente os termos de referência, mantendo-se a evidên~
eia de que o poder é uma relação.
Em termos estáticos, isto é, considerando apenas a percepçãoque cada urn
dos intervenientes tem do poder do outro, e portanto sem acção demonstrativa, também se encontram exemplos concludentes. Assim, fala-se da finlandizaçãopara designar a relação entre Estados, equivalente à que se verificava
entre a URSS e a Finlândia, e que se traduz em que este último país não tinha
poder para arquitectar e prosseguir políticas que contrariassem os objectivos
da URSS. Mas o Principado do Mónaco, por exemplo, tem menos poder quantitativo e qualitativo do que a Finlândia, e todavia nunca foi obrigado a subordinar as suas políticas às da URSS. A situação geográfica altera os termos da
relação, e a URSS não tem poder em relação ao Mónaco. Todavia, este Principado já não dispõe da mesma situação em relação à França, cuja política não
pode atrever-se a contrariar 19º.
Destes exemplos decorre que nem toda a relação entre poderes pode ser
medida, por exemplo, em termos de armamento, ou, mais claramente, que não
há coincidência entre poder e força. Ao dizer isto usamos ocasionalmente a
expressão força para dimensionarquantitativamentee qualitativamenteos recursos
à
disposição
davontadepolíticadoagente;e a expressão poderpara designara capacidade
de influenciara condutade terceiros,nostermosantesreferidos.
Este poder não é exclusivamente militar, antes o recurso aos meios militares é excepcional. Sendo certo que o poder (capacidade militar, económica,
financeira, ideológica, cultural, etc.) está sempre em exercício na vida interna·
''"' A. F. K. Organski e Jacek Kugler, "Davids and Goliaths: predicting the outcomes ofincernational
wars", in ComparativePoliticalStudies,1988, pp. 141 e 180, ensaiam dar uma expressão matemática à
avaliação do poder dos adversários. David A. Baldwin, "Power analysis and World pol itics: new trends
versus old tendencies", in WorldPolitics,1979, pp. 161-194, dá o sumário de vários estudos sobreª
comparação de poderes, fazendo uma avaliação crítica das contribuições.
238
TEORIA DO PODER
seu métodonormale contínuoé o dapersuasão,quese traduzem concretizar
10
i;ionª : ia em resultados
peloexercícioda razão.
a;,ifluencazão
pode também, talvez mais apropriadamente, chamar-se razoabif;sta r
.
rque O método envolve continuamente a ofertade vantagensou desvanfidade,
;; primeiras como estímulo e as segundas como sanções, que obrigam
~ager1sderação
dos interesses que devem ser equacionados, e à aceitação de um
3 P~~'brioconsiderado razoável para as circunstâncias. Oferecem-se vantagens
equie,rciais,ajuda técnica ou financeira em troca das facilidades militares procoJlldas·ou ameaça-se com a ruptura de relações diplomáticas, com restrições
cura eiais
' ou de financiamento
.
ou, finalmente, com o usodafiorçaque e, uma
r
co111e
b'daaosextremosdousodopoder.
su ~e tudo resulta que, sendoopoderuma relação,a superioridade de um agente
. rernacional sobre outro pode não ser uniforme, isto é, manifesta-se em rela· d o tipo
· d e con fl'1to d e interesses,
.
determina
mas acontecen d o que a
çosiçãorelativa é inversa noutro tipo de conflito de interesses. Até 1989, a URSS
~evesempre superioridade sobre os ocidentais em relação ao Muro de Berlim
e à situação da cidade, mas não a teve quando pretendeu instalar mísseis em
Cuba (1962)durante a presidência de Kennedy.
inão a um
2. Qualificaçãodo poder
o facto de o poder ser uma relação, e também o facto de esta relação não ser
necessariamente global porque varia em função das situações dos agentes e
dos conflitos de interesses, torna imediatamente inteligível que o poder tem
sedeseventualmente diferentes conforme o tipo de conflito, e usa faculdadesou
componentes
diferentes conforme as circunstâncias. Daqui várias qualificações
do poder conforme a sede em exercício, a componente utilizada, ou o método
ou forma escolhida para o seu uso.
Vimos que o poderprocura em regra o consentimentoobtido pela razoabilidade, e que apenas excepcionalmente recorre à coacçãoque pode ser finalmente militar.
Acontece assim, quanto à forma do uso, e com mais frequência na vida
interna do que na internacional, que o poder de um líder assenta no carisma,
isto é, numa qualidade ou dom pessoal que induz à obediência por adesão;
trata-se do exercício do poder, melhor designado por autoridadeneste caso,
pelo consentimento; o tirano,isto é, o que assume o poder sem legitimidade e
o usa para fins que não coincidem com os que a comunidade considera justos
191
• Na vida internacional, o poder é exercido por
e desejáveis, utiliza a coacção
"' Adriano Moreira, O carismae a lei da homologia,in Comentários, 2' ed., Lisboa, 1992, p. 135. Max
Weber,Economiae Sociedade,lº vol., México, 1944, p. 244.
239
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
influênciaou pe_rsuasão, ou pelo controlo:no p_rimeiro ~aso º.tratadoé a expres.
são do consentimento; no segundo pode facilmente mtervir um tratado lll
é a hierarquia que funciona, como no caso dos satélites soviéticos, ou n~ t as
tado de paz que se segue à imposta rendição sem condições, como foi O c ra.
as0
das guerras de 1914-1918 e de 1939-1945.
Em qualquer das referidas formasdeexercício
dopodera componente ou facu.
1
dade utilizada não é a mesma: o poder será económico
quando se traduz na cap
cidade de controlar especialmente os meios de produção; político,quando le:ao controlo dos órgãos competentes dos legislativos e executivos; mi/itarquand e
consegue, pela ameaça ou uso da força, paralisar a capacidade alheia de reco~
rer à força.
A importância do poder,e das suas várias formas, na vida política, leva a corrente de pensamento alemã chamada Machtpolitik,termo equivalente do conceito inglês de powerpolitics,a entender que, no processo político interno e
externo, não existe outro factor envolvido além do poder.Deste modo, os gru.
pos sem podernão têm de ser considerados, e os que possuem podersão relevantes apenas e na medida em que pesam na balança interna ou externa dos
poderes. Tal corrente, que abstrai completamente dos valoresou de um normativismoanterior e superior ao poder, também é chamada corrente da Realpo/itik, ou do realismopolítico.
Diferencia-se porém da perspectiva realista chefiada por Morgenthau, e que
ficou referida, visto que esta não exclui os valores do condicionamento e definição dos interesses nacionais e procedimentos adoptados pelo Estado 192•
A Realpolitiknão atende a nenhum dos direitosoriginários
doshomensou das instituições,mas apenas aos poderese aos interesses,
que eventualmente são direitos,
polímas o que os torna relevantes é serem interesses. A perspectiva do realismo
ticoreconhece direitos, designadamente define o interesse nacional em função
de direitos que também reconhece a terceiros: direito à integridade nacional,
direito à livre navegação, direito à soberania. Por exemplo, a perspectiva realista americana inclui a defesa de uma concepção democrática da vida interna
e da vida internacional, ideologia que faz parte do interesse nacional: isto tem
reflexo nos métodos políticos usados, nas formas de poder seleccionadas para
agir, na autolimitação do exercício interno e externo do poder político.
A Realpolitiknazi definiu os interesses do Estado e construiu o poder de os
realizar ignorando o direito internacional que subscreveu (os tratados, disse,
192
Hans Morgenthau, ln defe11se
ofthc 11atio11al
interest,N.Y., 1950, pp.120-121, adverte contra "a inabi·
lidade para distinguir entre o que é desejável e o que é possível, e a inabilidade para distinguir entre
o que é desejável e o que é essencial". Karl von Clausewitz, Da Guerra,Brasília, 1979, p. 189, adverte
que "toda a acção tem ... de ser planeada numa simples penumbra, que ... tal como o efeito do nevoeiro
ou do luar, dá às coisas dimensões exageradas ou uma aparência irreal".
240
TEORIA DO PODER
os de papel), negando direitos às minorias que liquidou (judeus, dimiedaç
~o p físicos) desmembrando outros Estados {absorção dos sudetas da Che'doS i
'
,
•
•
11111 , uia): a regra e apenas a de que quem tem poder decide para realizar os
cost~va~ressessem autolimitação pelo reconhecimento de qualquer normatise115
int perior ou direitos alheios daqui derivados.
5tJl0
vi
comanda a formulação do normativismo objectivo, que é um sistema
ditado
a partir da posição de proeminência, o qual sistema melhor se
1 0
jufl \á uma ordemqualificada pela origem: o nazismo pretendia estabelecer
challlª
E ropa uma or d em nazi. para m1·1anos.
na ; dramático é que a hierarquia das potências é um facto permanente, dessa
minência decorre sempre uma ordem marcada pela superioridade efectiva,
proerisso existiram uma ordemromana,uma ordembritânica,uma ordemsoviética,
e p: ordem
americana,
conforme as épocas e as regiões. Que a Realpolitiknão tenha
11111
a presença na definição de qualquer delas, é impossível de afirmar.
11111
A questão é a de tal Realpolitikser a regra adaptada pelo poder, ou antes, a
ventualfalta de autenticidade em que todos os poderes incorrem, adaptando
: comportamento de proclamar uma coisa e fazer outra. Quando em Filadélfia05 fundadores dos EUA proclamaram os direitos de todos os homens livres
e iguais, não suprimiram a escravatura que então era a condição de uns três
milhõesde negros. A França da Revolução, da liberdade de todos os homens,
haveriadepois disso de construir um império colonial. O ideário aliado da
guerra de 1939-1945 não impediu que o acordo URSS-EUA para a paz europeiaincluísse um traçado artificial e injusto das fronteiras de vários Estados.
Umacoisa é porém o compromisso ou transigência da corrente humanista com
a Realpolitik,
outra coisa é ter esta Realpolitikcomo princípio que não transige
como respeito por valores e normativismos.
De qualquer modo, ainda é necessário dar lugar ao fenómeno de uma políticasempoder,que abordaremos, e que Havei referenciou na Carta 77 e no ensaio
sobreopoderdossem-poder.
:~er
,~?
3. Componentes do poder: naturais e sociopsicológicos
Vimosque o podernãoé uma coisa,é uma relaçãoentrevontadesqueutilizamrecursos
àsuadisposição.
Todavia, quando se pretende fazer uma determinação e identificaçãodos poderes em confronto, a primeira aproximação olha cada um dos
termos da relação estatisticamente, e portanto como uma coisa.
É a este momento que corresponde a abertura do capítulo X do Leviathande
Hobbes:"O poder de um homem ... consiste nos meios para obter qualquer aparente vantagem futura." Tal chamada vantagem,que objectivamente é um resultado,qualifica-se pelo domínio onde se pretenda que seja produzido: domínio
dasaúde, da educação, do acrescentamento do território, do esmagamento das
241
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
forças militares inimigas. A definição do poder e seus componentes faz-se
função do campo de acção onde os efeitos devem ser produzidos. No mome elll
do exame estático do poder (força) não se examina todavia a relaçãocausa/cnto
o comportamento do poder contrário em cujo âmbito de acção se prete :lll
interferir. É um elemento de exame posterior 193•
n e
dopoderdividem esses elementos em inter
Os estudos sobre os componentes
, .
.
. .
.
p
nos
d
,
ou domest1cos e mternaczona1s
ou exteriores. or outro 1a o, e quanto as caract
rísticas dos componentes, classificam-nos em naturais,sociológicos
e sincrético
eQuanto aos recursos ou componentes naturais do poder, primeiro tracts.
zem-se na posiçãogeográficae territorialque condiciona pesadamente, nos do~sentidos, o poder nacional. Designadamente, é uma variável que determinais
extensãodasfronteirase a conflitualidade
da vizinhança,com imediato efeito sobrª
a definição dos instrumentos de defesa nacional.
e
A extensão geográfica da Rússia determinou a derrota de Napoleão em 1812
e de Hitler século e meio mais tarde. Mas o efeito dos riscos da defesa de tã~
extensa fronteira, como também acontece com a China, é evidente. A estabilidade de Israel, embora seja um pequeno território, é condicionada pela posição geográfica que lhe dá fronteiras conflituosas e dificilmente sustentáveis.
Independentemente de uma qualquer possibilidade de quantificação, a posição
geográfica condiciona positiva ou negativamente o poder nacional.
Ao contrário, Portugal, na sua definição geográfica actual, retira dela um
poder- poder funcional - que é a posição do chamado triânguloestratégico
(território europeu mais arquipélagos), importante para a defesa ocidental com
expressão na NATO e para a reavaliação depois do fim da Guerra Fria.
A geopolítica
procura exprimir em leistendenciaisa relação entre a geografia e
o poder. Assim, o famoso Halford Mackinder, que formulou em 1914a doutrina
do heartland,firmava esta conclusão: "He who rules Eastern Europe commands
the World Island ofEurope, Asia and Africa; and he who rules the World Island
commands the World" 194 • Por seu lado, Alfred T. Mahan afirmava, no fim do
século passado, que o controlo dos mares é decisivo na balança geral de poderes, assim como alguns teóricos explicam o dinamismo histórico russo como
determinado pela busca de saídas para os mares quentes 195 •
Não parecem demonstrados os teoremas extraídos da situação geográfica,
mas é inegável a importância da situação geográfica, e da definição territorial e
marítima dos Estados, para a comparação do poder: o Suez, o Panamá , o Golfo
Pérsico, o estreito de Gibraltar, os Dardanelos, Malaca e Ormuz são elemen·
193
Walter S. Jones, cit., p. 257 e sgts.
Halford Mackinder, DemocraticIdeaisand Rea/ity,N.Y., 1919, p.150.
115
' Alfred Mahan, The influenceof SeaPo1ver
uponHistory,Boston, 1890.
114
'
242
TEORIA DO PODER
ente presentes na avaliação dos poderes em conflito, competição
cularrn
d
, d" d" .
, .
e
sass eração. Os portos _e ~ue_um pais . 1spoe con 1c10na~ ~ comercio, a
o co~Pa ão oceânica, a ex1stenc1a de serviços que pesam posmvamente nos
. vescig ç
, .
11'1
dispon1ve1s.
,ecorsos undo componente do poder, com directa relação com a posição geol]rnseg
d
. d es1gna
.
d a mente matenas-przmas
,.
.
, conjunto e recursos
naturais,
e ener0
gráfica,eegoria de superpotência
reconhecida pela comunidade internacional à
fª·~c~tes de 1989, e que a Rússia tenta recuperar agora, e aos EUA, apenas foi
VR5 ªda pela suficiência em recursos naturais que ambos os Estados enconaJcanǪ
f
.
dentro das suas ronte1ras.
era~ charnado choque petrolífero mostrou facilmente como este elemento
diciona positiva e negativamente o poder de agir no comércio internacioco~Entre 1973 e 1983, a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróusando o aumentodepreços,provocou uma crise no sistema produtivo dos
e~igos poderes coloniais, acumulou reservas desproporcionadas de divisas
tetradólares), financiou os seus planos de desenvolvimento privativos, sus~ncoua subida da conflituosidade dos Estados árabes contra Israel, utilizou
: capacidade de embargar o fornecimento de petróleo para forçar os Estados
ocidentais a modificarem as suas políticas na área.
É todavia evidente que a simples detenção dos recursos naturais, ou a sua
falta,não é suficiente para se reflectir no poder nacional: o Japão, deficiente
emmatérias-primas, foi um dos maiores poderes militares deste século e adquiriu,depois de derrotado, o estatuto de uma das mais poderosas potências económicas;a Indonésia, rica em minérios estratégicos, é um actor secundário na
balançade poderes mundial. A capacidade de mobilização dos recursos é indispensável,e a dependência alheia em relação a tais recursos tem de ser mane jada,o que exige capacidade de gestão.
Finalmente, a população é um elemento fundamental componente do poder.
Umalarga população é que permite o recrutamento dos quadros necessários
e o florescimento das iniciativas indispensáveis para promover a capacidade
industrial, mobilizar os recursos naturais, dar conteúdo ao braço militar.
Mas,também aqui, o factor quantitativo tem de ser complementado pelo qualitativo que se traduz em preparação técnica, desenvolvimento social e político, produtividade, coordenação entre recursos humanos e recursos naturais.
AÍndia não tem um poder correspondente à dimensão quantitativa da sua população,porque não tem a correspondente dimensão qualitativa 196 •
Entre os componentes sociopsicológicos
do poder indica-se sempre um elemento não quantificável, que é a imagemassumida pela população, as suas atitudes
tj
t9<.
WalterS. Jones, cit., p. 259 e sgts. Organski, Populationand Wor/dPower,N.Y., 1960.
243
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
e expectativas.Quando a população se assume como devendo apoiar ofardo
homembranco,um destinomanifesto,ou defender a sua purezaracial,o efeito d do
tas ideias na capacidade é comprovado. Respectivamente o Império Britâni es.
os EUA, a Alemanha, assumiram os objectivos expressos naquelas forlllu~o,
ções, de natureza mítica, e o movimento inevitável do Estado foi considerá a.
• . d a imagem
.
. d"1atamente e1az compreen d era 1mportanc1a
o que 1me
colecf VeI
·
mente recolhida dos adversários e aliados. Daqui a crescente intervençã~~propagandano sentido de firmar a imagem dos outros que seja conveniente pa ª
.
do po d er.
ta
os proiectos
No conflito Leste-Oeste do último meio século, o cuidado recíproco co
a definição de uma imagem ameaçadora de cada adversário nunca abranctt
A política de distensão, iniciada pela Perestroika de Gorbatchov, desencadeou.
uma evidente batalha no sentido de alterar as imagens recíprocas que estivera u
em vigor tão longamente. A engenhariasocialconsegue hoje, em pouco telllp:
radicar e destruir imagens que antes tinham por vezes uma vigência secula '
•
t
E o problema geral da percepção,
submetida a condicionamento orientador.
A atitude recíproca na relação população-governo
é um fundamental componente sociopsicológico. A adesão ou repulsa entre ambos tem efeito imediato
sobre o poder efectivo. Diversos interesses produzem, designadamente, em
tempo de guerra, as quintas colunas que ou colaboram directamente com 0
adversário, ou debilitam a capacidade do aparelho político. A consistência da
relação é um facto a averiguar e que não depende directamente da espécie de
regime político : é inegável que a população alemã seguiu Hitler de 1933 a 1945,
e que a população francesa, no regime democrático, apoiou mal o governo que
perdeu a guerra.
Do que se trata, sobretudo no conflito militar , é da dimensão da decisão
popular no sentido de mobilizar recursos e suportar sacrifícios em função do
resultado visado. Durante a última guerra mundial, Churchill mobilizou os
ingleses e contou com a sua adesão total, prometendo-lhes sangue,suore lágrimaspara finalmente obterem a vitória e a preservação da sua liberdade nacional e teor de vida.
Finalmente, é corrente considerar a liderança
e o seu maior ou menor carisma.
Não obstante o fenómeno que Ortega y Gasset chamou a rebeliãodasmassas
e
a massificação
doprocesso
político,casos como os de Napoleão, Hitler, Roosevelt,
Charles de Gaulle, Churchill, Mao, Castro, Estaline, demonstram a importância
da liderança personalizada. Muitos analistas contestam este facto. Mas parece
que não é explicável de outro modo a capacidade mobilizadora de um Churchill quando proclamou: "We shall fight on the beaches, we shall fight on the
landinggrounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fighrin
the hills; we will never surrender."
244
TEORIA DO PODER
onentes sincréticos do poder
4,co:P
dos componentes chamados naturais e sociopsicológicos, existem
O
Aºla entes que se apresentam como uma ordenada combinação da capacicolllP~n
mana e recursos naturais que habilitam o Estado a agir. É assim que
dade ~adeindustrialaparece como um elemento definidor da própria hierarll c~P~:s
potências. A evolução da arte de fazer a guerra é tributária da condiq~iafluente da sociedade, isto é, da relação entre os seus recursos e os seus
窺.ªtos em termos de que os primeiros respondem sempre às exigências
proJec
egundos.
dosAs guerra mo d erna exige
· uma so fi1st1ca
· d a capac1'd ad e c1ent1
·
'fi1ca, tecmca
' ·
. dustrial coroando recursos naturais avultados. A vitória dos aliados na
e 10 oda Guerra Mun d'1a1fi01,. entre outros f:actores, consequenc1a
• . da sua capasrae de produzirem armas em quantidade e qualidade largamente superiores
1
~ dos seus adversários. Avalia-se friamente a relação entre o custo do invesª~mentoem cada soldado e o número de mortes e destruições que causa ao
:~versário,para medir a produtividade da máquina de guerra. A corrida armamentista,neste último meio século, implicou o investimento de recursos incalculáveisna produção das armas nucleares e nos sistemas de protecção, de tal
modoque os projectos desenvolvimentistas foram sacrificados brutalmente .
Umaabundante produção de investigadores vai concluindo pela importância
dacapacidade industrial como um dos factores mais determinantes da hierarquiados poderes 197 •
De todos os factos ou componentes do poder que ficam indicados, a capacidadeindustrialé a variável económica mais importante, e a qualidadeda liderança
é a mais importante variável política. É esta que se responsabiliza pelo julgamentoda relação entre os meios e os objectivos estratégicos assumidos, decidindo os termos da acção.
São muitas as formas que, nas relações internacionais, pode revestir o uso
do poder, e os componentes deste podem ser usados separadamente. O poder
económico é frequentemente usado, proporcionando ou suprimindo ajudas ,
cooperação e vantagens a terceiros, para que estes sejam induzidos a adaptar
umaconduta satisfatória.
O poder cultural traduz-se em dar oportunidades a estudantes ou investigadores,em alimentar os meios de comunicação social ou de preenchimento
dos lazeres, na actividade editorial, na cooperação no domínio dos equipamentoscientíficos e pedagógicos. A opinião pública pode ser influenciada de
"'Tornaram-se autoridades Clifford German, A Tentative EvaluationofWor/dPower,Journa/of Conflict
Resolutio11
, 4, 1960. Harvey Starr, WarCoalitions,Lexington, 1973. Bruce Russet, Internationa/Regions
andtheIritemationa/ System,Chicago, 1967.
245
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
longe, designadamente, pela rádio ou pela transmissão das imagens à distâ .
1
A venda ou doação de armamentos é constantemente denunciada, e a de:~
• afcecta o processo.
Un.
eia
A força física não deixa de intervir, independentemente do recurso à guerr
Mas esta, como veremos, ainda em épocas chamadas de paz, como aconte
com o meio século decorrido desde o fim da Segunda Guerra Mundial, con~~
nua a ser um instrumento frequente. Trata-se sempre de resolver pretensõe
exclusivas em relação a um objectivo, designadamente um pedaço de territ's
0rio, ou o domínio de um grupo populacional, ou o acesso a certa área do glob
que é necessário avaliar: afor:·
Neste caso da guerra existem duas capacidades
isto é, a capacidade a usar para vencer o adversário ou destruir os elemen;o'
do seu poder; o custoda tolerância,isto é, a medida da capacidade de absorver a:
sanções e destruições que o adversário imporá com a sua resposta. O poderda
guerraassenta portanto em factores militares, mas também em factores políticos que dizem respeito à decisão e credibilidade da liderança e das populações
envolvidas. O custoda tolerânciapode traduzir-se em que uma sociedade menos
desenvolvida vença a sociedade mais desenvolvida. Foi assim que, na guerra
do Vietname, Ho Chi Minh afirmou, e os factos confirmaram a previsão: "ln
the end the Americans will kill ten patriots for every American who dies, but
is they who will tire first" 198•
Num conhecido estudo sobre quarenta guerras, Rosen conclui que metade
delas foram ganhas pela parte que sofreu mais. É por isso que os comandos árabes se chamamfedayeen,isto é, os votados ao sacrifício. Os terríveis bombardeamentos de Londres pelos alemães na última guerra tiveram o efeito de estimular
a decisão de resistir. Sobre o Vietname escreveu James Cameron: "Longe de
atemorizarem e quebrarem o ânimo das gentes, os bombardeamentos parece-me que estimularam e consolidaram esse ânimo" 199•
Isto torna clara a dificuldade de avaliar a capacidade relativa de poderes
em confronto, mesmo no caso da subida aos extremos da guerra. Durante a
guerra do Vietname, o Secretário para a Defesa Robert McNamara utilizou os
mais sofisticados computadores e uma equipa altamente qualificada de cientistas para avaliarem os possíveis resultados de várias estratégias alternativas.
As previsões falharam para total desmoralização da técnica e dos cientistas.
O ponto de partida mais aconselhado é a comparação de índices mensuráveis
do relativo produto nacional bruto das partes envolvidas. Mas os factos demonstram a importância de factores não susceptíveis de medida, designadamente
o desenvolvimento político e a qualidade da liderança. Não faltam tentativas,
ª·
ª·
198
190
Walter S. Jones, cit., p. 270.
James Cameron, Hcrcisyourrncmy,N.Y., 1966, p. 66.
246
TEORIA DO PODER
ito animadoras, de introduzir uma ordem matemática na avaliação do
rnu
· · · a que tem d e somar-se os f:actores vm
· d os do
·o
oa 'nterno de cad a m1m1go
odert
n
. ..200
r r1or ·
este davia, o insucesso de McNamara tornou evidente que o poder não pode
roliado apenas em f unçao- de componentes mensuravets,
' . porque e'f un d aserav:lO peso de elementos motivacionais e rigor das percepções sobre o adver~e~t pelo sentido de abrangência de todos estes elementos, tornou-se muito
sart~~cidaa chamada fórmula de Cline,profundamente estudada entre nós por
'ºf'bio Valente de Almeida, que é a seguinte: Pp = (C+E+M)x {S+W).Aqui,
po ~ 0 poder suposto; C é a massa crítica da população e território; E e M as
PPacidades económica e militar, respectivamente; Sos objectivos estratégicos;
ia vontade de executar as estratégias nacionais 201 • Em síntese, esta fórmula
fúicas e das capacida. nifica assumir que o poder é o produto das capacidades
sig
·
d
·
·
'
·
fi
b'l"d
despsicológicas,
tornan o assim mmto precana a con 1a 1 1 ad e d os resu 1ta d os
u pelo menos, fornecendo dados para muito curto prazo, e exigindo uma
o '
,
verificaçãocontinua.
Assim, depois da guerra do Vietname, embora as capacidades físicas dos
americanosfossem altamente superiores às ajudas soviéticas, a superioridade
da vontade dos vietnamitas para se mobilizarem no sentido de executar as
estratégias nacionais dava-lhes um total muito superior ao dos EUA no mapa
comparativodo poder respectivo, avaliado pelo conjunto dos factores físicos e
psicológicos.Passado algum tempo, a percepção da população americana assumiu a derrota do Vietname como indicação de que o intervencionismo não é
aconselhável,e certamente a distância entre a URSS e os EUA, no que toca à
vontadede prosseguir as estratégias nacionais, diminuiu.
Pelo que toca à URSS, provavelmente o desastre da intervenção no Afeganistão afectou o nível da determinação soviética e talvez tenha motivado a revisãoda logística do império. Finalmente, vista a necessidade das alianças, e dos
blocoscontraditórios, a avaliação do poder tem de ser tentada por conjuntos,
não em relação a poderes individualizados. É o poder da NATO e não o poder
dosEUA, era o poder do Pacto de Varsóvia, não o poder da URSS.
De tudo resulta que é tão incerta a avaliação dos poderes em confronto
como a prospectiva da evolução e dos resultados futuros, não podendo todavia evitar-se a circunstância de que a acção política tem de ser planeada com
base na percepção da realidade actual e na prospectiva do futuro. A conclusão
a que se chega é sempre insegura, e a acção baseia-se necessariamente em pre00
Organski and Jacek Kugler, "Davids and Goliaths", in Comparative
PoliticalStudies,1978, pp.141-180.
de Almeida, Do poderdo pequenoEstado,Lisboa, 1988. Ray S. Cline, WorldPoiver
Assessment:
A calculusofstrategicdrift, Washington, 1975. Walter S. Jones, cit.,p. 271 e sgts.
'
'º' Políbio Valente
247
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
sunções. Tudo significa que a decisão, em cada patamar, é tomada em face d
alternativas positivas e negativas.
e
Quando Hitler invadiu a Checoslováquia e a Polónia, concluíra que a ln
g1a. - d .
.
terra e a França não estavam em con d1çoes e intervir e enganou-se. A anã]·
s
dos factores do poder não tinha certamente dispensado nenhuma das refer: e
cias necessárias. Finalmente, em todos os casos se evidencia que opodern::~
uma coisa,é uma relaçãovariável,aparecendo como elemento essencial, e difici)~
mente avaliável, a percepção que cada interveniente na relação tem do Poder
do outro.
5. Política de equilíbrio
Para avaliar a correlação dos poderes em acção na comunidade internacional
e determinar um ponto de equilíbrio que evite o recurso à guerra, os analistas
recorrem ao conceito da balançadepoderes,elaborado no século XVIII e dominante, como princípio-guia das políticas internacionais, durante todo o século
x1x202_
Recordemos que a política de equilíbrio tem os seguintes principais objectivos: garantir a independência e sobrevivência dos Estados; salvaguardar O sistema em que o Estado se inscreve; impedir a dominância de qualquer membro
do sistema. Por isso, como vimos, teóricos como Vattel, Centz e Wolff, e estadistas como Talleyrand, Metternich e Castlereagh, definem a guerra como um
instrumentodestinadoa defenderou restaurara balançadepoderes.
Trata-se portanto de uma política conservadora dos sistemas, obviamente
contrariada sempre por qualquer Estado revisionista, ou animado por um projecto de expansão. Conceitos como os de zonadeconfluênciadepoderes(onde convergem os interesses de mais de um Estado), de zona de influência(reservadaa
um Estado), e de zonasmarginais(livres para a expansão), destinam-se a tornar
flexível o conservadorismo da balançadepoderes.Nas primeiras zonas a guerra
é um instrumento utilizado, e nas últimas os acordos são prováveis. Na actual
situação mundial, o continente americano é uma área de influência dos EUA,
a antes dividida Europa recupera de ser uma área de confluência de poderes,
que incluem os EUA e a Rússia. O Vietname, a Coreia, a África negra, são áreas
marginais onde as superpotências combatem frequentemente usando para isso
interpostos agentes, designadamente os movimentos armados 2º3. É costume
representar assim, figurativamente, a balança de poderes:
202
A. Moreira, Políticalllternacional,
Lisboa, 1968, p. 58. Edward Vose Gulick, Europe'sC/assical
Balance
of Power,N.Y.,1955, capítulo!: enumera vários conceitos da balança de poderes.
203
Gordon A. Cr:iig e Alexander L. George, Forceand Statecraft:diplomaticproblemsof ourtirne,N.Y.,
1983, mostram como o sistema pode comportar alterações do equilíbrio. Assim, entre 1815-1878, 2
248
TEORJA DO PODER
BalançadePoderes
A
_ ponto de equilíbrio
_ pratos da balança
_ Fiel da balança
/i~
B
D
C
acesso aos pratos da balança pode respeitar a um só Estado ou a vários
0
dos, configurando as hipóteses de conflito entre dois actores, de um
13st
ªr contra vários, ou de alianças em cada um dos lados. Existem con~ctºuras em que um Estado, ou um grupo de Estados (Directório) assume
iu;cnção de fiel da balança,e sempre que esta se desequilibra para um lado,
~ ~ auxílio ao outro para restabelecer o equilíbrio. Um escritor anónimo
;; século XVIII, citado por Hoffmann, escreveu: "A experiência e a razão
habilitam-nos a entender que um poder geralmente persuade os outros
não cometerem erros, e este poder é chamado, penso que não sem razão,
: fiel da balança. Seguramente, uma muito honrosa e louvável função."
A Inglaterra desempenhou o papel de fiel da balança por mais de um século
emrelação aos poderes europeus, talvez até que a sua adversária Alemanha
alcançoua capacidade de cortar a ligação vital da ilha com o mundo exterior.
SegundoEpstein, o submarino e o avião marcaram o desaparecimento daquela
função204 •
É certo que, historicamente, o conceito foi especialmente usado com referênciaao equilíbrio dos poderesmilitares.Mas tem utilidade para avaliar o poder
totale as alternativas do seu uso, especialmente em épocas de GuerraFriaou de
equilíbrio
peloterrorcomo os que dominaram a cena internacional do último meio
século.Assim, durante este período, embora a capacidade militar da URSS e
dosEUAse tenha equilibrado, a balançadepoderesfavoreceu os EUA pela superiorcapacidade no domínio dos recursos económicos, técnicos e científicos, e
dastécnicas da sua utilização.
O uso do conceito operacional da balança de poderes tem de ser feito considerandopelo menos as seguintes condicionantes metodológicas, que resultamdas considerações até agora feitas: a)o poderé um instrumento destinado
a promover interesses ou alcançar objectivos, não é, salvo em circunstâncias
pouco frequentes, um fim em si mesmo; b) o poder não é uma coisa, é uma
Inglaterra é reguladora, entre 1878-1890 é a Alemanha, entre 1890-1914, de novo a Inglaterra. Vid,
capítulo3, "Balance ofpower, 1815-1914: Three Experiments".
""In RoyC. Macridis (edt.), ForeignPolicyin WorldPolitics,Washington, 1958. Adriano Moreira, Política
cit., p. 78 e sgts. Kaplan, "Balance of power, Bipolarityand other Methods oflnternational
Internacional,
8Ystems", in American Politica/ScienceReview,1957, p. 684.
249
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
relação entre capacidades opostas; e) o poder varia pela agregação ou subtrac _
de componentes naturais, sociopsicológicos ou sincréticos, internos ou ex;ªº
nos; d) nas relações internacionais é permanente a possibilidade do conf1•er.
que pode subir aos extremos da guerra; e) o objectivo da política da hala~to,
de poderes não é eliminar os poderes mas sim mantê-los em relacioname Ça
nt0
pací fico 205 •
Esta última nota torna evidente que se trata apenas de um instrumento d
análise dos efeitos do equilíbrio e desequilíbrio, e não de um instrumento de
apologética política: procura-se determinar a evolução dos factores de ordemª
desordem no sistema, a participação de cada Estado nessa evolução depende doe
seus objectivos e capacidades que são objecto de análise diferente, e requerellls
da parte dos outros, a definição de políticas apropriadas. Em face da evoluçã'
dos factores de equilíbrio e desequilíbrio que a balança de poderes demons~
tra, cada Estado deve, possivelmente, responder com razoabilidade a pergun.
tas deste tipo: é necessário aumentar o nosso poder, ou a situação não exige tal
esforço? As nossas relações, designadamente com os Estados fronteiriços, exigem uma alteração da balança? A balança desequilibrou-se a favor dos competidores, e o equilíbrio tem de ser restabelecido? Nestas avaliações nunca pode
ser confundido o poderpotencialcom o podereftctivo.
Países como o Brasil têm um poderpotencialimportante, em vista dos recursos materiais na sua posse. Mas a falta de capacidade para desenvolver, coordenar e mobilizar tais recursos com uma adequada vontade política não lhe dá
acesso correspondente aos pratos da balança de poderes. Quando esta carência
for suprida, terá então um poder efectivo, supostas a decisão e credibilidade,
que afectará a balança de poderes. Esta lida portanto com poderesmobílízáveis,
não com poderespotenciais.
Tal poderassume a natureza de forçainterventora quando usa drasticamente
a guerra, ou a ameaça crível dela, para alterar a balança de poderes. A forma
mais significativa desse passo é a guerrapreventiva.Um Estado, antes que outro
o agrida, ou alcance condições de alterar o equilíbrio em seu favor, antecipa-se atacando para privar o concorrente da possibilidade de adquirir um maior
peso na balança. Tem sido frequentemente a motivação de Israel ao desencadear ataques contra os Estados vizinhos. Estas acções são baseadas em cálculos
que assumem grande risco de erro, para qualquer dos lados.
Antes da extinta URSS firmar o seu poder estratégico nuclear, nos EUAfoi
advogado o ataque preventivo contra ela. A mesma espécie de movimento se
verificou quando a China se mostrou capaz de entrar no clube atómico. Quando
Walter S. Jones, cit., p. 286 e sgts. George Liska, lnternational Equilibrium,Cambridge, 1957•
pp. 36 e 37.
205
250
TEORIA DO PODER
atacou Pearl Harbour em 1941, provocando a entrada dos EUA na guerra
oJaP~ial,a sua acção militar preventiva destinou-se ao efeito de privar os EUA
flltlnualquer capacidade de retaliação em face dos planos expansionistas do
de ~ na Ásia e no Pacífico.
JaPªºsramente porque a competição mundial se desenvolve hoje com o uso de
tres diferentes do poder militar, a balançadepoderesé usada para determinar
Pº :cidadedegerira influênciainternacional
de cada Estado, ou grupo deles, sobre
acap
os diferentes Estados e grupos, traçando a balança mundial dos poderes
outr
- fimance1ro,
· c1ent1
·
'fi1co, tecno log1co,
' ·
Jjadosem separa d o ou em com b.maçao,
ava ercial, 1·deo l'og1co,
· cu 1tura 1.
_
0
co~ Japão, antes da guerra, era considerado na balança de poderes militares
1110um sério adversário. Depois de perder a guerra, não tem presença na
~:lança de poderes militares, mas o seu peso na balança global é enorme, vista
asuacapacidade económica e financeira. Fenómeno semelhante se passou com
a Europa que, até ao início da guerra, foi o centro principal do poder político
mundial. Depois disso, a Europa foi sobretudo o eventual campo de batalha ou
a moeda de troca entre as superpotências. Todavia, a presente conjuntura de
revisãoda logística dos impérios russo e americano, que coloca o poder estratégiconum plano secundário, fez pesar decisivamente a capacidade económica
da União Europeia nos pratos da balança de poderes globais em confronto.
A estrutura da balança, e portanto o seu modelo, varia no tempo e também, quando as áreas estratégicas podem ser consideradas autonomamente,
em relação a cada uma das áreas. Enquanto a balança de poderes se mantém
estável,o conceito de sistema pode ser utilizado para o exame do seu funcionamento, visto que encontramos uma sériede elementos(Estados)interligados
por
umfeixederelações(umasjurídicasoutrasdefacto),dentrode umafronteiraqueexclui
parao ambientea interacçãocomelementosestranhos.
Deve notar-se que o conceito de balançadepoderesaparece estudado como
categoria histórico-política desde o Congresso de Viena de 1815 até ao fim da
Primeira Guerra Mundial que viu desaparecer a função que a Inglaterra assumia de fiel da balança.A balançadepoderesdo bipolarismo, onde avultaram, em
cada prato dela, as superpotências, não tinha fiel da balança.
Ora, na data em que foi identificada como um modelo actuante, a balança
de poderes não era mundial, porque os teatros estratégicos não eram mundialmente comunicantes, isto é, as competições e conflitos da área europeia não
se repercutiam no continente americano ou na Ásia. Hoje, as competições são
tendencialmente mundiais e a balança mudou de perfil.
Podemos admitir que, na forma mais simples mas com correspondência
nos factos, trata-se de um Estado maximizar o seu poder para realizar os seus
objectivos, acabando por colidir com os interesses de outro: a rivalidade histó251
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
rica entre a França e a Casa de Áustria correspondeu a tal modelo. A luta P
equilíbrio decorre entre ambos os Estados.
elo
Rapidamente, cada um procura alianças e a balança diz respeito a coJi
ções de Estados, o exemplo mais frequente na história dos conflitos europega.
corresponde a uma preferência pela pazem desfavor da gue:s,
O valordoequilíbrio
assim como a luta pelo desequilíbrio tem o significado contrário. O prime·ra,
1r0
valor pode levar a fazer entrar um novo elemento num dos pratos da halan
para restaurar um equilíbrio perdido, ou a que um dos elementos se transfjÇa
para o outro grupo com a mesma finalidade. Mas o objectivo de desequilibra;ª
balança recorre aos mesmos métodos, sendo o resultado exibido que comprovª
as intenções políticas. Os analistas do modelo indicam vários métodos de man~
ter ou recuperar o equilíbrio de poderes, designadamente vigilância, coliga.
ções, defesa da solidariedade da coligação, e finalmente a guerra limitada Por
tal objectivo. Mas o conceito e função de fiel da balançaparece mais eficaz206
A Inglaterra, geralmente apontada como um fiel clássico da balança, forn~ceu também, durante um século, a tipologia mais geral indicada para que um
Estado possa desempenhar essa função: deve ter uma posição elevada na hierarquia das potências; o equilíbrio deve servir os seus interesses fundamentais
como no caso inglês em que serviu os seus desígnios imperiais; deve ter grand~
mobilidade de acção, e um sentido de autolimitação do uso do poder que possui. O habitual cepticismo sobre a possibilidade de estabelecer neste domínio
tendências duradoiras ou modelos sempre utilizáveis inclina para considerar
a hipótese viável em aleatórias épocas e conjunturas 20 7•
Morton A. Kaplan, que estudou o período novecentista em que há convergência na afirmação de que o modelo funcionou, pretende que a experiência
sugere os seguintes princípiosguiaspara que o equilíbrio seja eficaz na preservação da paz:
1) Os participantes aumentarão as suas capacidades, mas devem aceitar a
responsabilidade de negociar as suas divergências em vez de combaterem.
2) Desde que o aumento das capacidades é o primeiro motivo da política
internacional, os Estados devem estar prontos a lutar, se necessário, mais do
que renunciar a maior desenvolvimento.
3)Havendo guerra, os Estados devem estar preparados para terminar o com·
bate, mais do que destruir os fundamentos de equilíbrio eliminando um par·
ticipante. Isto é importante porque o modelo é construído no pressuposto de
haver pelo menos cinco participantes.
'°''Gulick, cit., cap. 3.
207
Organski, WorldPolitics,N.Y.,1968, pp. 282-299, onde considera a hipótese válida para o período
de 1824 a 1914.
252
TEORIA DO PODER
da participante no equilíbrio contestará qualquer tendência para pre4~~a por qualquer Estado ou coligação.
1~~to que o sistema é construído na base do poder dos Estados, os partiJol11
1
5) devem contrariar tendências na direcção de uma organização supraip~nte~ou de organizações que alterem o estatuto soberano dos participantes
nac1ona
sistema.
. .
.
.
no ) cada part1c1pante deve consentir que derrotados elementos 1mportan6 taurem as suas pos1çoes,
. - e encoraiar
. agentes menores a ob terem o estaresre;e participantes plenos. Todos os elementos maiores devem ser tratados
~uto]mente como participantes aceites no desempenho 208 •
igu~Segunda Guerra Mundial acelerou o processo, que começara na Primeira,
estringir o número das grandes potências, acabando por aparecer um sis- resu 1tau d a posse d o ioga
e
dera bipolar d e superpotenczas,
' · cuia
· nova ape 1açao
c:]ear. Esta bipolarização foi acompanhada de uma competição ideológica
11
sentido de conquistar a adesão das populações dos adversários, multiplin:ndoas formas de hostilidade.
e A direcção bipolar deixou formalmente fora do sistema poucos países neutrais(Suécia,Suíça, Áustria), ou zonaspobresde neutralistas.Este período assistiu a acontecimentos fundamentais, muitas vezes levando à beira do conflito
centralentre as superpotências, como foram o bloqueio de Berlim, a chegada
de MaoTsé-tung ao poder, as guerras da Coreia, do Vietname, a intervenção
soviéticana Hungria, na Checoslováquia, a guerra do Afeganistão, o conflito
permanente no Médio Oriente, a revolução fundamentalista do Irão.
O bloco liderado pelos EUA abrangeu uma cadeiade alianças, cada uma delas
ligadacom as outras no sistema mundial: Organização dos Estados Americanos(22 membros, datada de 1947, recebendo forma no chamado Pacto do Rio
deJaneiro ou Tratado lnteramericano de Assistência Recíproca); Tratado de
Segurançado Japão (1952, dois membros); Tratado de Segurança com aÁustráliae a Nova Zelândia (1951, trilateral); Tratado de Defesa Mútua com a Coreia
doSul (1953, bilateral); Tratado de Defesa Colectiva do Sudeste da Ásia (1954,
oitomembros);Tratado de Defesa Mútua de Taiwan (1954, bilateral). Acrescem
tratados sobre bases e estacionamento de tropas, o que se traduz tudo num
envolvimentode talvez quarenta e seis Estados, ao redor do mundo, nos mesmosobjectivos apoiados no poder militar.
A URSS, com o Pacto de Varsóvia (1954) que englobava todos os satélites
europeus, complementado embora pelas acidentadas solidariedades com a
China,teve uma expressão formal mais regional.
,.. K
. aplan, Systemsand processin intcmational re/ations,N.Y., 1957, p. 23. Walter S. Jones, The logicof
mternat
iona/rclations,cit, pp. 292-293.
253
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Mas os factos demonstram que a bipolaridade e o equilíbrio não elCi
igualdade absoluta de poder, bastando que a força seja suficiente para ufelli
passar o custodetolerânciado adversário. A situação, em contraste com o tno;ra.
do século XIX, aponta para o facto de que a maior diferença foi a falta deJi ~lo
balança,e de que nenhum Estado ou grupo de Estados podia aspirar a eJCe;dq
tal função. Parece de reconhecer que a paz dos últimos cinquenta anos deccer
reu_antes de u,m_equilíbrio
de terr~re ~u_e,em 1990, ~h~gámos a um período ~r~
revisão da log1st1cade ambos os 1mpenos, sem prev1sao sobre a nova defini .
·
·
l que aparecera.,
Çao
mternacwna
Jones dava a seguinte expressão gráfica às tensões que pareciam anuncia
uma balançadepoderesmultipolar,mas não previu a implosão da URSS que lançor
o sistema mundial numa turbulência de disfunção, de prospectiva incerta. u
...•···············
O panorama do fim do século é muito mais complexo, indicando-se pelo
menos trinta e oito conjuntos geopolíticos em definição, desde a América do
Norte ao Pacífico, considerado este o berço do futuro.
Qualquer das superpotências, na vigência do modelo bipolar que ruiu, recorreu à força para manter a área de influência: os EUA em Cuba (1961), na República Dominicana (1965), no Panamá (1989); a URSS na Hungria (1956), na
Checoslováquia (1968), no Afeganistão (1979) 209 • Esta questão do poder nas
relações internacionais tornou-se dominante e clássica a partir das análises de
Max Weber, e o tema deve grande parte da sua actualidade académica a Lasswell,
que viu no poder o elemento mais específico do fenómeno político 210•
20
2
''
"'
Jacques Huntzinger, Introductio11
aux relatio11s
intemationales,Paris, 1987, p. 257 e sgts.
Lasswell e A. Kaplan, Poteree societá,Milão, 1979.
254
TEORIA DO PODER
poleJllO
logia
6·
dissemos,
politólogos da reputação de Raymond Aron encontram ape0
Collla guerra o facto determinante da autonomia das relações internacionais.
5 11
11a isso a gue rra e' um tema d ommante
·
·• ·
no vasto campo d e estu d o d a c1encia
po~ídca,examinado do ponto de vista ético, jurídico, sociológico e, naturalPº nte, polític o. Vamos indicar as principais teorias que intentam explicar as
in:salidades da guerra, investigação que anda a ser objecto de uma nova discic~ina,que Bouthoul chamou polemologia 211• Várias publicações são dedicadas
P rmanenteme nte a este tema, destacando-se os Journalof ConflictResolution
r~anadá),Journa/ of PeaceResearch(Noruega), PeaceResearchReview(Canadá).
conceito operacional de guerra, que preside às várias teorias, é o de hosti0
lidades entre Estados ou grupos sociais conduzidas por forças armadas que
manejama organizada violência possível.
1-Assimetria depoderes
uma teoria é a da assimetriadospoderes,com expressão em antigas máximas
comoa que diz - se queres a paz, prepara a guerra. Trata-se de conceber uma
estratégia de um poder expansivo que visa interesses titulados por outro poder
(umterritório, por exemplo), e a perspectiva da Realpolitiksustenta que o poder
conservador está ameaçado se admitir uma desfavorável assimetria de poder.
Nestecaso a balança de poderes é insuficiente para manter a paz, a superioridade é a única garantia.
Quando Winston Churchill, em 1946, denunciou a cortina de ferro que os
soviéticostinham feito descer sobre a Europa, também sustentou que apenas
a superioridade militar ocidental os faria parar, porque qualquer outra relaçãode forças ofereceria "temptations to a triai of strength". Não é fácil admitir que a teoria ofereça uma explicação geral para as causas da guerra, antes
parece aplicar-se apenas a alguns casos de guerra. Uma variante desta teoria,
sustentada por Organski, é chamada teoria power-transitionda guerra. Insiste
mas sim as assiemque o facto determinante não são as assimetriasestabelecidas,
metriasemergentes
e em evolução,evolução cujo ritmo pode inclinar os Estados a
desafiar o statu quo.A eficiência causal, nesta visão da power-transition,assenta
na admissão de que todo o statu quoestável se traduz em Estadospoderosose com
objectivos
realizados(EUA, Inglaterra, França). Um súbito desenvolvimento das
capacidades dos revisionistas levará a desafiar a Ordem internacional estabelecidae à guerra 212 •
™G
•
.
aston Bourhoul, Elemcnts
dePolémologie,
Pans,
1951.
i120
k"
rgans 1, cit., capítulos 7 e 8.
255
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
II - Nacionalismo
a) Irredentismo
A Nação tem um sentido fixado, na cultura ocidental, por Renan, que a defini
como um grupo com história comum, um presente participado, e aquilo quu
Malraux chamou uma comunidade de sonhos, tudo implicando normalment~
a vontade de constituir um Estado independente. Mas também designa algu.
mas vezes o povo do Estado sem Nação, como acontece com a generalidade dos
Estados da África negra; ou grupos identificados pela etnia, ou pela religião
ou por modelos culturais, que apenas reclamam o respeito pela diferença se~
todavia existir uma vocação para a independência política. Em todos os casos se
quando uma alienação efectiva, imposta por grupo ou
fala da guerra nacionalista
poder político diferente, não lhes parece deixar outra alternativa. Esta guerra
reveste duas formas principais: irredentismoe separatismo.Pelo que toca ao irredentismo,acontece que o território mundial está praticamente dividido na sua
totalidade entre Estados soberanos. Estas fronteiras dividem frequentemente
grupos étnico-linguísticos ou culturais entre soberanias diferentes: é o caso
da Irlanda do Norte em relação à Inglaterra e à Irlanda; de Caxemira absorvida
na Índia e reclamada pelo Paquistão; os curdos estão divididos entre o Iraque,
o Irão e a Turquia; os bascos estão divididos entre a Espanha e a França, etc.
O irredentismo é uma luta pela unificação do povo, e chama-se irredento a um
território onde está estabelecida uma parte do grupo, e que este considera perdido ou arrancado pela força por uma soberania ilegítima. Alguns dos conflitos
graves do nosso tempo têm essa causa.
é animado pela citada regra, acolhida expressamente nos 14
O nacionalismo
Pontos do Presidente Wilson, na guerra de 1914-1918, segundo a qual a Nação
tem direito a constituir um Estado independente, e entende-se que abrangendo
toda a Nação. Desde 1969, pensa-se que 70% dos mais de centena e meia de
conflitos identificados radica em questões nacionais. A circunstância determinante da guerra é geralmente o facto de a Naçãoestar abrangida pela soberania de um Estado que repudia. De facto existe uma identidade fundamental
entre irredentismo e nacionalismo. Mas a diferença mais saliente é que neste
último caso pretende-se fundar um Estado nacional, e naquele caso existe em
regra um Estado que reclama uma parte do território de outros Estados onde
alega viver parte da sua Nação. A luta pela independência, para ocupar um lugar
igual e separado na comunidade dos Estados, como disse Jefferson, é a expressão mais lídima da guerra nacionalista.
256
TEORIA DO PODER
atismo e independência
b)ser•~a de guerra que corresponde a situações que cruzam as anteriormente
VJll~~as é O separatismo. Um grupo com identidade pretende separar-se de um
jnd1~ existente e assumir o lugar independente e separado para o qual sente
0
listª _0 e capacidade. Não se trata de reclamar a união a Estado diferente, ou
vocaçaEstad o reclamar território de outro. O caso dos curdos ou dos bascos
de umponde a este modelo. Existem no mundo vários focos de conflito separac~rr~:s ibos pretendem separar-se da Nigéria, e sacrificaram talvez um milhão
0st
~das a essa luta depois da independência do Estado, após a guerra de 1939d~:5. 0 Bangladesh separou-se, pela guerra vitoriosa, do Paquistão; os bascos
-l «:para se separarem da Espanha, e a Catalunha manifesta igual disposição;
luta
. os s1ºkh s 1utam contra o centracroatas contestavam a ab sorção na Jugos l'avia;
mo da União Indiana; o Ulster católico luta contra a Inglaterra; Timor-Leste
tra contra a Indonésia; o Quebeque francês contesta a unidade do Canadá; o
;bete foi absorvido pela força pela China; os curdos lutam simultaneamente
contraO Iraq ue, o Irão, a Turquia que os dividem entre si. Muitos outros focos
menorespod em ser enumerados.
r
III- Darwinismo internacional
Umaconcepção darwinista do poder tem sido uma causa ideológica da guerra.
Trata-sede assumir que as sociedades, tal como as espécies, progridem pela competiçãoe selecção, pelo que a guerra é pregada como uma nobre forma de vida.
o fascismode Mussolini sustentava, pela voz do seu líder, que "o fascismo acima
de tudo não acredita nem na possibilidade nem na utilidade da paz universal.
Porisso rejeita o pacifismo que apenas esconde a submissão e a cobardia" 213•
Maso ponto de vista foi desenvolvido até aos extremos pelo nazismo de Adolf
Hitler,que proclamou o mito da raçaariana,o objectivo de organizar hierarquicamente os povos da Europa sob a sua direcção, e mandou executar o projecto
chamado SoluçãoFinalpara liquidar definitivamente os judeus, dos quais morreram uns seis milhões. As raças superiores, dizia, não podem entregar-se à
"cegueira pacifista para renunciar a nova aquisição de território" 214•
Os marxistas, que enfrentaram a invasão nazi durante o último conflito
mundial, e que sustentam que a guerra é um fenómeno radicado na diferença
de classespara além das divisões de fronteiras, interpretam o darwinismo social
como mais uma forma do ideologismo burguês para esconder a realidade da
luta de classes 215•
"'c-l[ , por Christensen,
Ideologies
andModem Politics,N.Y., 1971, p. 70.
I
er, Mei11
Kampf,Boston, 1943, pp. 134-157.
BryanBeau, ProblemsofWar and Peace:a CriticaiAnalysisof BourgeoisTheories,Moscovo, 1972.
lHff
!IS
lt
257
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
IV - Erro depercepção
A revolução das comunicações deu origem a que a cenografia entrasse nas P
re.
apareces
ocupações da ciência política, e que o chamado Estadoespectáculo
como a expressão das técnicas usadas na implantação da imagemdesejada pei~e
líderes, pelas instituições políticas, e pelos Estados nas relações internac 1· s
0nais. Todo o ritual da Coroa britânica se inscreve hoje nessa engenharia socj
1
da imagem útil para os fins e objectivos do Estado. Trata-se de um fenómenª
antigo, ao qual o avanço das tecnologias veio dar uma nova dimensão. Gran/
parte daquilo que se chama a estratégia
indirectaé uma luta de cada poder polític:
para enfraquecer a lealdade das populações submetidas à soberania adversária, denegrindo-lhe a imagem e implantando uma beneficiada imagem própria
Por exemplo, a campanhapacifistadesenvolvida pela estratégia indirecta sovié~
tica entre os países ocidentais na década passada, para enfraquecer a lealdade
à NATO, foi pelos próprios classificada como a maior campanha de sempre no
sentido de conquistar os corações dos povos europeus 216 •
Acontece que a sofisticação e a velocidade das armas foi acompanhada da
sofisticação dos meios de comunicação ao serviço da engenharia da imagem, pelo
que os riscos do erro de comunicação são ultrapassados pelos riscos da errada
imagem assumida dos intervenientes na vida internacional, dos seus objectivose
das suas condutas, erro que pode ser induzido. Quando o processo da subida aos
extremos da guerra se desencadeia, há uma escalada na movimentação dos meios
bélicos para o confronto. Dessa escalada faz parte, e muitas vezes acentuada, uma
escalada na comunicação, porque o combate tem muito de verbal e simbólico.
O conhecido Herman Kahn ocupou-se largamente deste problema da escalada217.
V - Competiçãoarmamentista
A corrida armamentista é apontada como uma causadaguerraou um substitutivo daguerra,segundo a famosa conclusão de Samuel P. Huntington. Numa
interpretação
conspirativa,que teve curso nos próprios EUA depois da Primeira
Guerra Mundial, as indústrias do armamento seriam muito responsáveis pela
organização de lobbiesda guerra. Durante o último meio século, a competição
armamentista entre os dois blocos traduziu-se, por um lado, na estabilidade
216
Anato! Rapoport, "Perceiving the Cold War", in InternationalConflictand BehavioralScience(Robert
Fisher, edt.), N.Y.,1964, que analisa a principal literatura. Karl Deutsch, Análisedasrelaçõesinternacio·
nais, Brasília, 1968, p.147 e sgts.
"' Herman Kahn, Thinking aboutthe Unthinkable,N.Y., 1984, p. 96, sobre o uso das armas nucleares
mostra, com a enumeração dos cenários, a fragilidade da percepção das intenções do adversário. J.
David Singer, "Threat Perception and Nacional Decision-Makers",Journa/ ofConflictReso/ution,195B,
pp . 90-105.
258
TEORIA DO PODER
edo recíproco, e no desenvolvimento não apenas das armasestratégicas,
pel0 Il1mbém das capacidades de desenvolver a guerrabacteriológica
ou a guerra
..,asta
.
d
. l
••·, ·ca fazendo aumentar enormemente os nscos
a guerra por s1mp es erro
.. . ' .
q no ou de fiic1encia
tecmca.
hU~arece inegável que a corrida armamentista pode ser causada por conflito
~amente existente; que pode acelerar a subida aos extremos até pelo uso
· que po d e manter um eqm'l'b
· pe lo me d o o qua l evita
· a
Previ
uerra preventiva;
1 no
dagrra, e sempre se traduz, em todos os casos, numa incompatibilidade entre
gue ir uma políticaarmamentistae conseguir sustentar uma políticadesenvolvimenQuer o aumento do risco, quer as incidências orçamentais, implicaram o
a.
d e teorias
. mternac10na1s
.
.
. d e controIo de armamentos.G ran d e
dtissenvolvimento
\ce das negociações ininterruptamente mantidas pelos blocos ocidental e
~: Leste, neste longo período de confrontação, disseram respeito ao controlo
,,,,n,'
s~r
218
dearmamentos .
Aimplosão da URSS tornou mais urgente o processo das negociações sobre
desarmamento porque, com o desaparecimento de um Estado no antigo Leste
0
soviético,surgiam quatro potências nucleares, que são a Rússia, a Ucrânia, o
Cazaquistão e a Bielorrússia, que tornaram problemática a execução dos acordosde redução das armas estratégicas (START)de 29 de Julho de 1991, os quais
previama eliminação de 30% do arsenal atómico global. Em Maio de 1992 foi
assinado em Lisboa um acordo pelo qual as várias potências aderiram ao tratado START,e se obrigaram a observar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear
(TNP).Em Junho seguinte, numa conferência em Washington, George Bush,
então Presidente dos EUA, e Boris Ieltsin, Presidente da Rússia, concordaram
em que, até 2003, reduzirão as cabeças nucleares de cada lado a 3500, que eliminarãoos mísseis de cabeças múltiplas instalados no solo, e que desenvolverão
umsistemaglobaldeprotecção(GPS) antimísseis, renovando o antiquado tratado
ABMde 1972 (mísseis antibalísticos). Em Junho de 1992, em Oslo, os antigos
treze membros do Pacto de Varsóvia obrigaram-se a observar o tratado de redução dos armamentos convencionais na Europa (CFE). Finalmente, o Tratado
CéuAberto,assinado em Helsínquia em 24 de Março de 1992, abriu o acesso ao
espaço aéreo de "Vancouver a Vladivostoque". Em Julho de 1992 foi acordada
a redacção final do Tratado sobre interdição de armas químicas com a adesão
de 50 Estados, e a China, em 10 de Março de 1992, assinou o Tratado de Não-ProliferaçãoNuclear (TNP), seguida pela França em 3 de Agosto 219 • Todavia, o
218
Marek Thee (edt.}, Armaments,arms co11trol
and disarmament,UNESCO, 1981. Swadesh Rana (edt.},
Obstac/es
to disarmamenta11d1vaysof overcomingtlum, UNESCO, 1981.
219
Lellouche, Lc NouveauMonde:de /'ordrede Yaltaao desordredesNations, Paris, 1992. GRIP, Mimcnto
Dife11sc
Désarmcment,1992 (anual, Bruxelas, 1992). SIPRI Yearbook, 1991, WorldArmamerllsand Disarmame11ts
(anual}, Oxford, 1991. Em 1993-1994 foi a recusa da Coreia do Norte em autorizar as ins259
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
comércio das armas, e o ciclo droga - armas - guerrilha, continuam a ser Ull)
ameaça que escapa ao controlo internacional e alimenta grande parte dos co a
flitos regionais, das guerrilhas internas, e do terrorismo mundial.
n-
VI - Afuga para afrente
Uma causa da guerra, já anunciada por Péricles, o teórico da democracia, é
0
intencional uso do conflito externo para resolver problemas internos 22º.
A política de Bismarck, que entre 1866 e 1871 provocou três guerras Par
acelerar a integração dos vários Estados alemães na unidade, é citada colllª
exemplo. Assim como a proposta do Secretário de Estado William Henry Sewar~
ao Presidente Abraham Lincoln no sentido de que este provocasse uma guerra
externa que unisse a Nação e impedisse a guerra civil. A análise estatística não
comprova todavia esta causa senão como uma manifestação ocasional, porque
é rara a coincidência entre um conflito interno e uma guerra externa.
Ao contrário, parece mais frequente que um conflito interno atraia a intervenção externa, e que desta resulte o conflito. Os exemplos antigos e recentes
são numerosos. A guerra do Vietname, que durou de 1950 a 1973, envolveu
primeiro os franceses e depois os americanos. Em 1984, os EUA intervieram
na Nicarágua contra os sandinistas, e em El Salvador para manter um governo
que lhes era favorável. A URSS interveio na Checoslováquia (1968) e na Polódo
nia (1981). No Médio Oriente as intervenções abrigadas na clandestinidade
Estadosão contínuas, da parte de terceiros, que assim conduzem uma competição armada por entreposta entidade.
Em 1994 os EUA intervieram no Haiti, autorizados pela ONU, para derrubar
a Junta Militar e restabelecer o Presidente eleito, sem que tenha sido possível
encontrar motivos lógicos para esta intervenção selectiva num mundo de ditaduras (Iraque, Indonésia, República Dominicana, Cuba, etc.), salvo pretender
restituir crédito interno ao Presidente dos EUA, Bill Clinton.
VII - O instinto de agressão
Alguns teóricos desenvolvem uma popular teoria ligando a guerra a um natural instintodeagressão
nunca eliminado pelo progresso da sociabilidade. Muita
pecções da Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA), o maior alerta na área do controlo de
armamentos. A convenção internacional banindo as armas químicas, devia entrar em vigor em 1de
Janeiro de 1995, mas não obteve as 65 ratificações necessárias dos 160 Estados aderentes . Os Tratados
START-1(1991) e START-11(1993) de redução de armas estratégicas estão igualmente pendentes da'.
ratificações . O Tratado sobre as Forças Convencionais na Europa (DCE), para vigorar em 1995, e~ta
ameaçado pelo pedido de rescisão da Rússia . A decisão francesa (1995) de reiniciar as experiências
nucleares perturba todo o ambiente de confiança .
20
'
ln LegadoPolíticodo Ocidente,cit., O discursodePéric/es.
260
TEORIA DO PODER
literatura usa o método comparativo recorrendo ao exame do comportadestª animal de várias espécies. O mais conhecido dos analistas destes comJllent:entos nos tempos modernos foi Konrad Lorenz, que estudou a lógica e
- em d"C
' • animais
• • 221.
11erentes especies
Porta-es da agressao
funbº;,nperativo
territorial,ou a reserva de um espaço, aparece como fundamenl sustenta que ao lado da agressividade
cada espécie desenvolve uma inibição
ca· 0 uso da violência, que se manifesta quando a vítima da agressão dá um
~ar~de submissão. Aplicando as suas conclusões à agressão humana, parece-lhe
sinaa falta que os h omens tem
'd as armas naturais. que outros animais
..
possuem
que como consequência um moderado nível de inibição, e o uso das capacida..
dcetll
s intelectuais. para desenvo 1ver armas arti"fiiciais.
e Parece certo, independentemente
do rigor da transferência dos conceitos para o exame da conduta humana, que os cientistas sociais não encontram
esta orientação a explicação ou o paradigma da transformação do instinto
~ndividualem movimento político que sustente e racionalize o uso da guerra.
Poroutro lado, os fenómenos estudados por Lorenz animam acidentalmente
sectores racistas que deixaram o registo histórico de calamidades que a organizaçãointernacional condena e não quer repetidas 222 •
VIII- Osciclosdaguerra e dapaz
Talcomo acontece na teoria da cultura, e na teoria económica, também neste
domínio apareceu uma teoriade ciclos,ou de uma curvadaguerra.Os estudos
quantitativos são numerosos, mas as divergências de conclusões mantêm-se 223 •
Umahipótese aponta para um ciclo de vinte e cinco anos antes de 1680 e um
ciclode trinta e cinco anos posteriormente. Além da questão do ritmo, fica a
difícil questão das causas do ritmo. Uma hipótese corrente apela para modelosda psicologia e liga os ciclos à memória dos sofrimentos da guerra: quando
se apagam, o recurso à violência reaparece, e transforma-se o horrorem glória.
Outra hipótese baseia no ciclo da substituição das lideranças políticas os ciclos
de recurso à violência, porque cada geração de dirigentes tem a sua guerra.
A ideia de periodicidade continua a ser de difícil demonstração.
IX- O complexomilitar-industrial
Estacausa da guerra tomou relevo político, entre outras razões, porque o Presidente do EUA, General Eisenhower, definiu desse modo o Estado que dirigira
221
Konrad Lorenz, On Agression,N.Y., 1966.
Konrad Lorenz, E/ comportamiento
animale humano,Barcelona, 1977.António Marques Bessa, Quem
Lisboa, 1993, um recente estudo da teoria das elites.
governa?,
223
Uma das teorias que impulsionaram a indagação foi a do famoso Oswald Spengler, Declineof the
West, N.Y.,1926, I, p.109 e sgts.
222
261
----
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
politicamente. A tese sustenta que poderosos grupos, com interesses domina
tes na indústria da guerra, exercem a sua influência para criar, manter, e agrat·
ar
as tensões. É uma versão da teoria conspirativa da história e da política.
Tal espécie de grupos seria composta por militaresprofissionais,donosead,n.
1
nistradoresde indústrias militares.funcionárioscujas carreiras estão ligadas , despesas militares, pessoalpolíticocujo eleitorado tem interesse em project~s
de defesa. A solidariedade e força destes grupos seria apreciável, e apelam Pars
nacional,usando várias organizações quª
valores como o patriotismoe a segurança
funcionam como aparelhos ideológicos. Esta teoria não distingue entre Esta~
dos capitalistas e Estados socialistas 224 •
Não pode omitir-se a importância do complexo militar-industrial den.
tro da teoria geral dos grupos de pressão, embora o dimensionamento da sua
influência seja questionável em função de cada Estado, forma de regime e conjuntura.
Embora evitando qualquer incursão na área da política, foi John Kenneth
Galbraith um dos que primeiro conceptualizou e analisou o comportamento
do Estadoindustrial,inquirindo sobre os efeitos da autonomia da tecnoestrutura. Perguntava-se: "a questão seguinte, importante tanto para as sociedades
socialistas como não-socialistas, refere-se ao que busca a tecnoestrutura fazer
com a autonomia que exige. Quais são os seus objectivos? Concordam eles com
os objectivos da sociedade? Qual é a interacção entre os dois? 225
Durante a Guerra Fria o questionário foi naturalmente dirigido para
os objectivos do Estado e sua acção externa, ofensiva e defensiva, e daqui a
influência da mensagem de Eisenhower. O livro do General Villegas sobre a
guerra política ficou como uma análise, ideologicamente comprometida, da
percepção de um complexo militar-industrial soviético, fortemente dependente
de uma opção ideológica. A alternativa formulada por Lenine - "ou triunfa o
Governo soviético em todos os países avançados do mundo, ou triunfa o mais
reacionário imperialismo" -, explicaria a submissão das repúblicas ao complexo militar-industrial afeiçoado pelo conceito estratégico revolucionário, e
o desenvolvimento da acção externa continuada traduzir-se-ia em dividendos
de obediência interna 226 •
"'Wright Mills, Thcpowerelite,N.Y.,1956, fornece uma importante base teórica à perspectiva.
225 John Kenneth Galbraith, O 11ovo
Estadoi11dustria/,
Rio de Janeiro, 1968, p. 120. Burnharn, Themana·
geria/rcvolution,Bloomington, 1960, deu estatuto académico à questão da tecnoesrrurura.
m General José Díaz de Villegas, La guerrapolítica,Madrid, 1966, p. 49.
262
TEORIA DO PODER
_ 0 Malthusianismo
conomista Thomas Malthus (1766-1834) escreveu um livro clássico, Essay
O e ipu/ation,onde sustenta que a população cresce em progressão geométrica
011
Pºrecursos alimentares em progressão aritmética, produzindo uma ameaça
e º}ome e uma necessidade de reajustamento. A análise política do problema
de dui pela necessidade do controlo do crescimento da população.
conJ\lgunssustentam que a guerra é um regulador dos excedentes. Nota-se que
d sde 1900 viveram mais homens na Terra do que a soma de todas as gerações
essadas,e que tal número duplicará ou quadruplicará no próximo século. MalP:us antevia cataclismos, guerras e fomes como eliminadores do excesso de
teres vivos em relação à capacidade de os manter. A teoria de Hitler do espaço
:iral necessário ao povo, que se obtém e mantém pela guerra, encontrou fundaroento nestas proposições. Não obstante as terríveis mortandades, que progressivamente aumentam de dimensão, causadas pela guerra e progresso dos
roeiostécnicos de a fazer, a taxa de eliminação de homens vivos não corresponde
à função correctora que esta perspectiva lhe atribui 227•
Tendo em conta a estrutura colonial, com expressão por vezes imperial sem
definição formal, mais os conflitos religiosos, culturais e étnicos, e os efeitos
secundários da competição entre os blocos das potências, a questão demográfica aparece como uma das mais críticas na relação Norte-Sul, que o ConcílioVaticano II definiu como das graves do nosso tempo. O Norte do mundo
caracterizado por economias industrializadas
(Aron), afluentes(Galbraith), e de
consumo
(Marcuse), vivendo em cidades, substituindo o músculo pela máquina
e a memória pelo computador, com crescente expectativa de vida; o Sul do
mundo caracterizado por uma economia agrária, sem excedentes, de monocultura, com deficiência de quadros técnicos, rendimentos de miséria, fraca
expectativade vida, povos de cor, colonizados, dependentes, definindo aquilo
queJosué de Castro chamou a geografiadafome"228 • Tudo parecendo obedecera
umatendência segundo a qual os ricos tendem para ser mais ricos, e os pobres
para ter mais filhos.
A revolta da área dos 3A (Ásia, África, América Latina), contra o Norte,
incluiuestas referências nas ideologias de justificação.
Acontece que ao mesmo tempo que crescem as desigualdades entre o Norte
e o Sul, também se acentuam dentro de cada país. Em 1993, o Banco Mundial
informou que, numa população de cerca de 5,3 mil milhões de habitantes, o
t
227
Malthus, Principesd'économie
politique,Paris, 1969; no clássico Essay011theprincipleofpopulation(1798),
analisaas causas que determinam a relação entre a população e os recursos existentes.
228
F,Fanon, LcsdamnésdelaTerre,Paris, 1958. Pierre Moussa, Lesnationsproli taires,Paris, 1959. Mannoni,
Psychologie
dela colonisation,Paris, 1950. Josué de Castro, Géopolitiquedelafaim, Paris, 1952.
263
--
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
planeta tinha, em 1991, cerca de 1,16 mil milhões de pobres, isto é, pessoas qu
não dispõem de mais do que 370 dólares por ano.
e
A enorme massa de pobres vive no hemisfério sul, sendo a África, hoje, a Illai
preocupante, embora conte apenas 12% da população mundial. Os analistas qua~
li ficam a década de 80 como umadécada
perdida,sugerindo que o peso da dívida ,e
políticas de ajustamentoestruturalinadequadas, foram responsáveis pelo regresso
da miséria, do analfabetismo e da mortalidade infantil, acrescendo as guerras
locais por procuração. As migrações descontroladas, que designadamente agravam a segurança europeia, são frequentes e dramáticas 229 • O controlo da natalidade aparece assim como uma políticadesegurança
dos países ricos, que por vezes
remete para segundo plano a percepção da sua relação com o desenvolvimento.
Na importante Conferência do Cairo, de Setembro de 1994, sobre o desenvolvimento do Terceiro Mundo, os EUA foram acusados de a terem promovido
com uma finalidade de defesa e segurança, procurando o aborto como instrumento regulador do crescimento demográfico da área da geografia da fome.
As confissões religiosas, com proeminência para a Igreja católica, à qual se juntaram os islâmicos, opuseram a defesa dos valores de cada área cultural e, para
os crentes, o respeito pelos credos respectivos, obtendo vencimento 23º.
A questão é a do chamado crescimento
demográfico
zero,sustentado por economistas como Kenneth Boulding, Nicholas Georgescu, Roegen, Robert Heibroner e E. J.Mishan. A ameaça que examinam é a de existirem na Terra seis mil
milhões de pessoas no ano 2000, 9,5 mil milhões em 2025 e 15 mil milhões em
2050. O seu argumento ético é o de evitar os sofrimentos humanos e os prejuízos ecológicos que resultarão de o ajustamento vir a ser feito pela fome e pela
doença. Os opositores alegam a confiança na criatividade humana, capaz de
encontrar meios que respondam ao crescimento da população, que será finalmente limitado pelo desenvolvimento 231•
A guerra é ainda um instrumento de resolução dos conflitos pela força, mas
a sua explicação causal e a racionalização do seu uso continuam obscuras.
7. A jurisdição penal internacional
1 - O 11 de Setembro foi referenciado como tendo mudado a circunstância
mundial, e certamente a enormidade da agressão obrigou a várias reflexões e
intervenções, as quais todavia não levam a concluir que se trata de acontecimento desligado de raízes passadas.
"'' S. Bessis, Lafairn dans/e monde,Paris, 1991. PNUD, Rapportmondialsur /edéveloppernent
humaiu,Paris,
1992.
2311
231
Adriano Moreira, "Uma semana em Setembro", in DiáriodeNotícias,27/9/94.
Alfred Sauvy, Zero Growth?,N.Y., 1975. Julian Simon, The ecouornics
ofpopulationgrowth,N.Y.,1977,
264
TEORIA DO PODER
rrorismo de Estado faz parte do legado maquiavélico da história políO ;e ta pela autodeterminação dos povos levou a teorizar o terrorismo como
rica,ªd~s sem poder, o refinamento da tecnologia das armas permitiu obter
ar!ll~ issão das sociedades civis e dos governos pelo exercício da destruição
a su -~ade cidades, tudo numa época que antecedeu visivelmente a da Guerra
111
~ss~stamesma caracterizada pelo medo recíproco do holocausto, uma variáfrtª• va na história da Ordem internacional, e tendo o Estado soberano como
velno .
ferênc1a.
re Asnovidades mais salientes da brutalidade do ataque às torres foram, em priiro lugar, o facto de os EUA serem atacados dentro do seu território, e depois
meeO ataque fosse desferido por um podererrático,organizado em rede, evenqua!rnentereduzindo um Estado a hospedeiro, e usando meios rudimentares em
t~rnparaçãocom a sofisticação do aparelho de segurança e defesa do agredido.
e Subitamente foi crescendo o entendimento de que a globalização tinha desrerrirorializado a defesa, e que muito institutos jurídicos organizados tendo o
Estado soberano como actor principal, exigiam revisão ou recriação: o exercícioda legítima defesa foi reformulado para enfrentar um chamado eixo do mal;
a questão da legitimidade, sem a qual não existe apoio da sociedade civil para
os combates, viu nascer uma dialéctica entre a legitimidade global da ONU, a
legitimidade da organização regional de defesa que é a NATO, a legitimidade
individual dos EUA.
Estes últimos, desafiados pelo unilateralismo que se apoia no facto de terem
recebido a agressão, mas talvez sobretudo pela supremacia tecnológica do seu
aparelho militar, fizeram não obstante a invocação do artigo V do Tratado da
NATO.
Por esta disposição, todos os membros da Aliança estavam obrigados à solidariedade perante a agressão, mas com a dificuldade de concordarem com uma
interpretação do texto que consagrasse a desterritoria lização desse dever, que
admitisse um novo tipo de agressor - o poder errático, a par do Estado das origens do tratado, e ainda capacidade para acompanhar o processo decisório da
cadeia de comando da potência ao mesmo tempo agredida e dominante.
Os meios de comunicação acentuaram a sua urgência de conhecer respostas,
imaginando algumas, mas os Estados Maiores precisam de algum tempo para
renovaros conceitos estratégicos, e sobretudo os pequenos países são forçados
a repensar a soberania de serviço que lhes cabe nesta movediça conjuntura.
A frente militar organizou-se no modelo clássico da coligação sem coincidência com o enquadramento da NATO, e entretanto a União Europeia, enredada nas dificuldades de definir e montar uma política de segurança e defesa
própria, mais uma vez está obrigada a medir as limitações da sua capacidade
estratégica.
265
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Todavia, teve a oportunidade, por iniciativa do Comissário António Vit
rino, de autonomizar o problema da redefinição da frente jurídica, e desta:·
.
e
ocupare1.
2 - O direitos humanos são o núcleo duro da relação contraditória entr
soberanismo
e o internacionalismo,
tema que atingiu um ponto crítico no decurs e
trajecto fica a ;volução i_nt~rn~no se~tido de reco_n~ecerqu~
do sé~ul? ~- N?
uma 1unsd1ção independente e a garantia 10d1spensavel da efect1V1dadeda
8
declarações de direitos.
Quando a Revolução Francesa (1789) proclamou os Direitos do Homem
do Cidadão, confiou à Assembleia o desenvolvimento dos preceitos, mas ced~
o Terror contrariou a convicção de que tais direitos eram naturais, inalienáveis
e sagrados. Nos EUA, o Bill of Rights viu confiada ao poder judicial indepen.
dente, com influência reconhecida do ChiefJusticeMarshall(1803), "o remédio
contra a violação de um direito reconhecido por lei".
Esta experiência doméstica, numa época de indiscutido soberanismo, não
oferecia fundamento e exemplo para uma definição de causas e meios que legitimassem a violação da jurisdição interna por poderes alienígenas, mas fornecia
a experiência da necessidade da jurisdição independente para que as declarações de direitos fossem efectivas.
Foi por isso que, no século XIX, as intervenções pioneiras da linha actual
foram baseadas sobretudo em impulsoshumanitáriosque acabariam por apoiar
o desenvolvimento de um novo direito internacional.
O primeiro impulso humanitário em importância disse respeito à escravatura e ao tráfego, com expressão no Acto de Berlim de 1885, segundo o qual "o
tráfego de escravos é proibido em conformidade com o direito internacional",
embora ficasse excluída a avaliação da situação interna dos Estados, um tema
que ainda por meados do século XX preocupava a comunidade internacional,
e que só em 1970 viu o Estado de Oman anunciar o fim da escravatura.
Depois a experiência de Gladstone (1880) no sentido de obrigar a Turquia
a respeitar as minorias cristãs da Bulgária, e o conflito dos EUA com Espanha
por esta ofender em Cuba "o senso moral do povo dos Estados Unidos", encaminhou para a declaração de Theodore Roosevelt de 1904, sobre "O estado da
União", acrescentando referências ao massacre dos judeus em Kishenet e dos
arménios na sua própria pátria, para afirmar que "a intervenção humanitária
em casos extremos pode ser justificada e apropriada".
Finalmente, a tradicional corrida armamentista obrigou a considerar a economia de vidas em conflitos, e daqui a fundação da Cruz Vermelha (1863) por
Henri Dunant, a Conferência de S. Petersburgo de 1868, e as da Haia de 1899
e 1907, estabelecendo limites ao uso dos gases e balas explosivas.
266
TEORIA DO PODER
_ Tais impulsos humanitários, mais fund~dos na carid~de do que e~ prinrídicos, não encontraram desenvolvimento suficiente na Sociedade
ip10s J~es, cujo tratado todavia previa "um tratamento justo para os naturais
Ja5 N:i~nias",permitiu fundar o BIT como agência de direitos universais, mas
Jas ~ a punição de crimes de guerra porque, segundo os EUA de então, as
rcjetro_u
s das ]eis da Humanidade apenas podem ser punidas por Deus. Talvez
,,jo)aço;çãodas minorias raciais, linguísticas e religiosas, tenha ficado como a
..• prote
.
.
1·
.
d e mter.
. ira manifestação d e um pensamento mternac1ona
ista ap01ante
prun~ s na então considerada jurisdição interna, tema de que o Tribunal Perençoe
"
nte de Justiça Internacional se ocupou algumas vezes.
fllane
·
· como o d e manter su b missas
·
provavelmente, mteresses
esta d uais,
as popuões nativas das colónias europeias, ajudaram a não enfrentar a perseguição
Jaç •udeus na Alemanha, ou a liquidação dos Kulaks e de milhões de cidadãos
ao;~sovietismo, uma situação denunciada por H. G. Wells quando, em 1939,
pemeçada a Segunda Guerra Mundial, advogou, no jornal The Times,fazer de
c:a Declaração de Direitos efectiva o objectivo dos combates, com base na
:mples afirmação de que, "desde que um homem vem a este mundo sem decisãosua",está legitimado para aquela protecção. O livro de H. G. Wells, On The
RightsoJMan,
traduzido em dezenas de línguas, inspirou o seu amigo Presidente
Franklin Roosevelt a apoiar a proclamação aliada no sentido de que "a completavitória sobre os seus inimigos é essencial para preservarosdireitoshumanos
e a justiça nos seus territórios assim como noutros territórios".
A experiência da guerra viria a reflectir-se na Carta da ONU (1945), mas
sem conseguir eliminar o conflito entre o soberanismo e a internacionalização.Em 8 de Agosto de 1945 foi proclamada a NurembergClzarter,e tem interessedetectar no discurso do ClziefUSProsecutorno Tribunal Internacional de
Nuremberga, Robert H. Jackson, a então importante linha divisória da jurisdiçãointerna e da internacionalização. Autor dos indispensáveis TlzeCaseAgainst
theNaziWarCriminais(1946) e The NurembergCase(1947), disse o seguinte no
tribunal: "Nem antes nem agora necessitamos discutir os méritos das suas obscurase tortuosas filosofias. Não os julgamos pela posse de absurdas ideias. É o
seu direito, se assim decidirem, renunciar à herança hebraica pela civilização
de que a Alemanha era parte. Também não é problema nosso que igualmente
repudiem a influência helénica. A falência intelectual e a perversão moral do
regime Nazi poderia não ser uma questão do direito internacional se isso não
tivessesido utilizado para empurrar a Herrenvolkatravés das fronteiras internacionais. Não são os seus fundamentos, são os seus actos que incriminamos.
O seu credo e doutrinas são importantes apenas como evidência dos motivos,
propósito, conhecimento e intenção".
!.
267
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A Carta da ONU recebeu assim dois legados: o legadomaquiavélico
que ate
ao poder efectivo e foi recolhido no Conselho de Segurança; o legadohurnan~de
st
que atende aos valores e teve sede principal na Assembleia Geral.
' ª
O art. 2 (7) sagrou o respeito pela jurisdição interna com o conteúdo herd d
de antes da guerra, e a DeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos,adaptadaª 0
48 votos em 10 de Dezembro de 1948, ficou longe da declaração de Trulll.Por
ao encerrar a Conferência de S. Francisco, quando disse: "temos boas raz:n,
para esperar uma declaração internacional de direitos que seja tão parte da vi;s
internacional como o nosso Bill ofRights é parte da nossa Constituição". Vai ª
l?ena lembrar que se abstiveram a URSS, Checoslováquia, Polónia, Jugosláv~aª
Africa do Sul e Arábia Saudita.
'
A interpretação do art. 55 da Carta era fixada no sentido de se dispor de um
declaração de princípios guias não imperativos, não derivados da natureza ne ª
da divindade, mais ligados ao imperativo categórico de Kant: não garantia:
direitos, apelava à sua promoção pelos Estados membros à luz do respeito pela
dignidade humana, sendo esta a referência chave do conceito.
O proclamado respeito pela jurisdição interna não impediu que o conteúdo
fosse sendo objecto de reduções e violações efectivas. A Comissão de Direitos
Humanos não teve comentários úteis a fazer sobre o derrube de Allende, nem
sobre o Vietname, nem sobre Granada, nem sobre a doutrina Brejnev, nem sobre
a invasão da Checoslováquia e da Hungria, nem sobre as selváticas governações
de Bokassa, de Idi Amin, ou de Pol Pot. Como também foi irrelevante a crítica
à larga recusa de ratificação das TivinCovenantsde 1966, e de outros tratados
que lidam com os direitos humanos. Governos da África e da Ásia invocaram
as culturas regionais como limitativas do globalismo da Declaração Universal,
mas casos como os de Banda no Malawi, Marcos nas Filipinas, e Ershad no Bangladesh, mostram que os povos conseguem dar um sentido partilhado à dignidade humana que orientou a Declaração da ONU.
Nesta linha da dignidade humana, intervenções carismáticas como as de
Andrei Sakharov ou VáclavHavei, ajudaram a dinamizar leituras da Carta à luz
da renovada meditação sobre o art. 28 da Declaração, segundo o qual "cada
pessoa tem direito a uma ordem social e internacional na qual os direitos e
liberdades contidas nesta Declaração possam ser completamente realizados".
A Conferência de Viena de 1993 foi organizada para representar a apoteose do
conceito de uma Nova Ordem mundial centrada sobre o respeito pelos direitos
humanos, embora o Dalai Lama tenha sido excluído por imposição da China.
outro lado, a experiência europeia foi dando luz a um corolário essencial de
todo este processo. Em 1950 foi promulgada a Convenção Europeia dos Direi·
tos Humanos, com o objectivo de concretizar para este espaço os princípi~s
da Declaração Universal. A instituição do Tribunal de Estrasburgo aberto ª
268
TEORIA DO PODER
er pessoa, organização não-governamental ou grupo" (art. 25), levou
qualqUencer resistências soberanistas, e a tornar evidente que também inter:in0~ ª v }mente é exacto que semjurisdiçãoindependente
nãoexisteefectivorespeito
aciona
n d'reitos
humanos.
I
pefoserimos que esta demonstração ajudou a ultrapassar o conceito de Nuremsugelll que a jurisdição dependeu da vontade dos vencedores da guerra de
berf 945, em que o princípio de não retroactividade das leis penais foi igno193 elll que o cumprimento de ordens deixou de excluir a responsabilidade.
i
rad~~routro lado, as atrocidades do fim de século tenderam para redefinir o
eito substantivo da jurisdição interna a favor do direito de intervenção
concanitária:o Conselho de Segurança criou em 1993 um tribunal penal interbu!Il
· 1gar os cnmes
·
. Jugoscontra a Humam'd ad e cometi'd os na antiga
ionalpara JU
nac
- na Sorna'1'1a,com a Oiperaçao
- R estorenope,
u
·
, ia•a intervençao
cnou
o ch ama d o
1
;g;dishufactor (1993), e a insistên~ia na guerra cirúrgica, uma consequência
delasendo o massacre de Srebremca, em Julho de 1995, quando o General
.Mladiado exército sérvio da Bósnia executou 7.000 muçulmanos e deslocou
jovens, mulheres e crianças, num exercício de limpeza étnica, com limi23.ooo
tadoreceio do Tribunal da Haia.
Não vale a pena insistir na enumeração dos desastres humanos que despertaram a consciência de que a realidade nova, que Edgar Morin chamou
tinha preparado a opinião mundial para que a
recentemente sociedade-mundo,
monstruosidade terrorista de 11 de Setembro fizesse emergir uma forte correntede apoio e de exigência no sentido de enfrentar pelas armas uma ameaça
global- ao que correspondeu a coligação liderada pelos EUA - e de organizaruma Frente Jurídica de resposta em que por uma vez a iniciativa europeia
sedestacou.
O estatuto do Tribunal Penal Internacional, de 1999, define uma competênciapara julgar os seguintes casos: genocídio, crimes contra a Humanidade,
crimesde guerra, crimes de agressão.
Por experiência recordada, os direitos humanos, filiados todos no valor central da dignidadehumana,apenas se tornam no eixo da roda quando uma jurisdiçãoindependente os sustenta.
Neste caso, o soberanismo desenvolveu a oposição às adesões ao Tratado
invocando:a eventualidade da extradição de nacionais para a jurisdição do
TPI;as penas que se afastam das definições nacionais, designadamente a pena
de morte e a prisão perpétua.
Talvez deva meditar-se sobre o mundo de múltiplas vozesdo conceito da
UNESCOpara admitir que não são modelos culturais nacionais que estão em
causa,é sim o encontro das várias áreas culturais que apenas no século XX
todastiveram voz própria, e neste encontro se apoiam as decisões normativas,
269
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
necessariamente inovadoras; que a extradição é um conceito de relação ent
Estados e neste caso é da sociedade-mundo que se trata; que o Tribunal Pe re
. 1não e' um tn "buna I d e vence d ores, e' sim
· mst1tu1
· · 'd o por acorct
nal
lnternac1ona
Finalmente deveria meditar-se sobre a diferente natureza das coligações lll.
11)tares e das frentes jurídicas transnacionais.
A experiência dos conflitos armados entre as potências industria lizacta
8
e os países em via de desenvolvimento, pobres estes por definição e de regr
saídos do regime colonial, regista fracassos históricos das primeiras. Na Indo~
china e na Argélia saíram vencidos os franceses, na versão Vietname os ElJA.
sofreram a primeira derrota da sua história, no Afeganistão desabou o illlpério da URSS. A experiência tem de reflectir-se na estratégia em curso contra
0
Afeganistão, não apenas na disciplina da comunicação social, mas também na
prudência respeitante à previsão do tempo necessário para uma modalidade
de intervenção que evite os riscos do passado.
Parece ter sido a avaliação da experiência tida na área das intervenções
designadamente humanitárias, que levou à formulação do conceito de interven~
ção cirúrgica, com a primeira intenção de assegurar ao eleitorado que as tropas
nacionais não sofreriam perdas, e não para garantir que as coisas se passariam
sem o sacrifício de inocentes, um preço de todos os combates agora semanticamente amenizado com a designação de efeitos colaterais.
Na complexa teia de motivos e objectivos de cada intervenção armada, esta
última formulação responde à verificação de que as sociedades civis informadas esperam por intervenções rápidas às quais fornecem o indispensável apoio,
e que este apoio se deteriora quando o tempo excede as expectativas criadas,
os custos humanos e materiais se acumulam, a insegurança começa a semear-se nas retaguardas. caso do Afeganistão o governo dos EUA tornou claro que
a luta contra o terrorismo internacional será longa, visando prevenir assim os
desânimos da população, mas também declarou que a intervenção contra o
Estado que lhe fornece apoio estaria terminada rapidamente, e aqui as medidas do tempo arriscam-se a ser diferentes para os responsáveis políticos e para
os cidadãos.
Ora, a luta internacional contra o terrorismo, um objectivo que rapidamente
conseguiu uma adesão alargada dos antigos inimigos da Guerra Fria, não está
necessariamente no mesmo plano de adesões à intervenção militar contra Esta·
dos cúmplices.
As redes e a interligação entre as redes violam a segurança global e forçamª
hospedagem não consentida, exigem uma actividade de informação preventiva
transnacional, implicam a organização de uma investigação criminal e de uma
justiça sem fronteiras impeditivas, uma problemática autónoma em relação às
intervenções militares que possam verificar-se no decurso da batalha legal que
?·
270
TEORIA DO PODER
, será longa, dolorosa, difícil, dispendiosa, podendo criar dificuldades
talllbe~uradas alianças determinadas pelos conflitos.
1estruteropos dos combates militares e os tempos da batalha legal não são
Os
. - e
. embora eventua 1mente se cruzem como acontece no Afiegamstao,
iguais,ter fundamento procurar evitar que os esforços da batalha legal possam
paretctados pela relação da opinião pública com as contingências militares.
~nião Europeia, que nesta ocasião parece ter assumido que a sua capa·d de estratégica é um conceito nominal sem conteúdo à altura de sucessici ªdesafios, dos quais ao mesmo tempo se tem mantido ausente e lastimosa,
v~s erdeu a oportunidade de assumir a urgência da batalha legal, e por isso a
' · mternac10na
·
· 1sem depen d.encia
. do percurso
naoP
·
ência de organizar
a 1og1st1ca
urg
..
d intervenção m111tar.
ª De facto, é uma criminalidade transnacional que está em curso, infelizente um conceito mais vasto que o do terrorismo. Trata-se de um flagelo
~paz de desestabilizar os governos, de afectar os seus valores, de perturbar o
~uncionamentoda economia, de parasitar os rendimentos, de explorar viciosamenteos avanços científicos e técnicos, de paralisar o desenvolvimento, de
dinamizar uma atitude securitária que atinja os direitos, liberdades e garantiasdos cidadãos.
o patamar da iniciativa europeia deve ser um impulso que ajude a acelerar a
intervençãoda ONU, que tem à disposição um texto importante, a Convenção
Contrao Crime Transnacional Organizado, assinada por 124 países em Palermo,
no dia 15 de Dezembro de 2000. A rapidez com que o acordo foi conseguido
tempoucos precedentes, mas é necessário não perder de vista que se trata do
interessegeral da comunidade internacional, que esse interesse deve ser prosseguido independentemente da estratégia contingente privativa de qualquer
Estado,sem consentir que o tempo da frente jurídica tenha um ritmo dependentedo ritmo das intervenções militares. Faz parte dessa exigência ratificar as
convençõesda ONU que lidam com a questão, e não esquecer que a jurisdição
penalinternacional não deve ser rejeitada por nenhum Estado, porque parece
um elemento indispensável para que a opinião pública mundial acompanhe a
mundialização efectiva da frente jurídica.
4- Em 11de Abril de 2002 foi criado oficialmente o Tribunal Penal Internacional,com cerimónias simultâneas em Nova Iorque e Roma, com pelo menos 56
ratificações anteriores a mais sete entregues no acto. Portugal, que modificou
a Constituição para esse efeito, aderiu em Fevereiro de 2001. Entrará em funçõesno dia 1 de Julho do ano corrente, mas tem de salientar-se que faltam pelo
menosdois elementos essenciais: a definição da agressão, de facto dependente
aindade uma qualificação pelo Conselho de Segurança; incluir o crime de terrorismona competência do Tribunal depois de os Estados membros concluírem
ser;
271
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
uma convenção abrangente dos vários actos em apreciação; finalmente, que
08
Estados Unidos da América, a Rússia e Israel, ratifiquem o texto que assinara
em Roma, porque a guerra justa exige autenticidade.
lll
§ 2º
A RacionalizaçãoTeórica
1. A Antiguidade clássica
No persistente estado de natureza da comunidade internacional, o podere a
força, com a subida aos extremos da guerra,continuam a ser os fenómenos que
teóricae um normativismoético-jurídicoaceite e eficaz.
desafiam a racionalização
Na antiguidade clássica, possivelmente é Tucídides o primeiro a quem se deve
uma meditação teórica sobre as relações internacionais a partir da experiência
que teve da guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas (431-404 a.C.). O seu
é o primeiro ensaio da nova disciplina 232 •
livro A guerradoPeloponeso
Depois de descrever a luta desencadeada entre duas cidades com vocação
imperial, luta que considerou a maior de que havia memória, considera-a de
explicação obscura porque ambas as cidades eram florescentes e dispunham de
abundantes recursos. A dinâmica da guerra implicou que todas as cidades da
Grécia alinhassem com uma das potências directoras. Porque é que estas recorreram à guerra, tendo cada uma delas condições necessárias para o desenvolviadversário
que chama "a causa
mento pacífico? Encontra a causa no imperialismo
mais verdadeira", e que podia hoje filiar-se na doutrina da "assimetriadopoder".
A guerra deriva do excesso de poder, e a aquisição de um império envolveo
Estado numa dinâmica imperial, transforma-o num Estadoem movimentocom a
permanente necessidade de colocar a fronteira dos seus interesses mais longe.
Por outro lado, as outras cidades, afligidas pela assimetria do poder, são compelidas a assumir a defesa, e o conflito agudiza-se pela formação de grupos
opostos. Para explicar o conflito concreto, o nosso autor estabelece uma das
primeiras doutrinas do estadode natureza,do imperialismo, das relações entre
as cidades independentes, e da função da guerra.
Este pensamento não teve continuidade na antiguidade clássica porque
os pensadores gregos e romanos se debruçaram muito sobre a vida interna da
cidade, e pouco sobre as relações internacionais, talvez porque os grupos eram
por regra incomunicantes, e a guerra a forma mais frequente dos contactos
com exclusão da coexistência, interdependência, cooperação e permanência
das relações.
m Tucídides, La guerradeiPeloponeso,
2 vols., Barcelona, 1963.
272
TEORIA DO PODER
, ecessário abrir uma excepção para o estoicismoque fez emergir o prin. d o genero
'
h umano, oposta ao prmc1p10
. ' . do
.E nda unida d e mora 1e po l'1t1ca
~íp'ºesse supremo da cidade que se encontra na doutrina democrática de Péri,ncerOs estoicos, ao contrário, consideram cada cidade um elemento do edifí c~es.ue é O género humano, do Estado abrangente do mundo inteiro, e que um
c~ºd1reito
naturaldeve reger. Esta pregação começa com Zenão no ano 300 a.C.
50
~cenas, e vai ser continuada por Epicteto e Marco Aurélio em Roma. Indeeflldentemente das suas posições sobre o materialismo e a razão (logos), aquilo
penpoliticamente releva é que foram universalistas, apelaram para a natureza
qu\nal do homem, e definiram este como um cidadão do mundo.
rac~esta linha se inscreveu o famoso Cícero (106-430 a.C.), grande orador e
cadista romano, defensor do direito natural e do mundialismo, cosmopoli e_s
rno ou diríamos hoje, Estadomundial.Com variantes, o universalismoteocrá;;;0
d~ Santo Agostinho, o impériomundialde Dante, a pazperpétuade Kant são
filiadosnessa visão básica.
z.o legado humanista: a unidade cristã do género humano
A concepção cristã da unidade do género humano, que S. Paulo exprimiu ao
dizerque "não há mais diferença entre judeus e pagãos, circuncisos e não-circuncisos,bárbaros e gregos, escravos e homens livres" era o oposto da concepçãoda cidadeautárquica da Grécia, e teve uma expressão efectiva na República
233
Cristã medieval, com a sua doutrina das duasespadas
•
O poder religioso, investido no Papa, compreende uma larga jurisdição sobre
ossoberanos cujo poder se afirmava vindo de Deus, situação que a referida dou trina apoiara na OitavaCartaaoImperadorAnastásio,enviada pelo Papa Gelásio
I (492-496), onde se afirma a separação e coexistência do podertemporale do
poderespiritual,mas com supremacia deste.
Na Bula UnamSanctamafirma: "Uma e outra espada, pois, estão na potestade
da Igreja,a espiritual e a material. Mas esta tem de esgrimir-se em favor da Igreja;
aquela, pela própria Igreja. Uma pela mão do sacerdote, outra pela mão do rei e
dossoldados, embora com a indicação e o consentimento do sacerdote." A divisãodos homens em comunidades não afasta a circunstância de estarem unidos
poruma comunidade de destino espiritual, pelo que, como nota Marcel Prélot:
"alógica é que a Humanidade esteja submetida a uma só lei e a um só governo,
que ela forme a primeira dessas universalidades
imaginadas pelo direito romano
e cuja noção assumirá na Idade Média uma tão grande importância" 234 •
: Documentação em LegadoPoliticodo Ocidente,cit., p. 81 e sgts.
Marcel Prélot, Histoiredcsidéespolitiques,Paris, 1975, p. 140.
273
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A ideia da comunidade universal é uma das contribuições fundament .
ª15cl.º
· ' . cu 1tura 1com~~ d a H. um.a~,'d ad e. A vigên
o pa_tnmomo
do pnnc1p10 na area cnstã, durante a Idade Media, for facilitada pelo fac eia
·
·' • e o coneto.ela
·
d os po d eres po J'mcos,
pu 1venzação
que fc
ez esquecer a expenenc1a
romano do imperium.Em contraposição era a ideia da monarquiauniversalqueito
poderia ter desenvolvido, como nota Visscher, se a evolução não se tivesse a e se
ntes
encaminhado para o modelo do Estadosoberanoe do Estadonacional.
S. Tomás de Aquino (1226-1274), na articulação da passagem do Feuc1
lismo para o Renascimento , vem enriquecer a doutrina de uma ordem rn adiai, que sobrevive à viragem da evolução dos modelos políticos, com a de;nda existência de um direito natural anterior e superior às decisões normattª
·s ustenta que existem
. quatroespectes
''dl' e eis: a leietern
Vas
d os po d eres temporais.
que é um nome para a concepção de Deus sobre os fins da criação; a leinatu~~
composta pelos princípios que os seres racionais reconhecem e aos quais obª_
decem por natureza, visto ser parte da lei eterna revelada aos homens na Terr:.
a lei divina,expressa nos comandos divinos revelados nas escrituras; a /eiposi~
tiva,formulada pelos homens para racionalmente assegurarem o bom governo
das suas comunidades. Aplicando a sua concepção à comunidade internacional, discutiu a submissão de todos os príncipes (imperium)à autoridade divina
(sacerdotium),
e deduziu normas para as relações justas entre os Estados. Deu
assim uma contribuição para a definição da guerrajusta, distinguindo entre a
causajusta da guerra Uus ad bellum)e a condutajusta daguerraUus itzbello),que
ainda hoje vigora no direito internacional. Meio século depois, Dante (1265-1321) escrevia, em De Monarchia(1309), que a única esperança para a paz
mundial residia na consolidação do poder do Imperador, e defendia o ideal da
monarquia universal 235•
A evolução da comunidade internacional para o modelo do Estado nacional, a quebra da unidade da República Cristã, designadamente pelo movimento
reformador que negou a autoridade espiritual do Papa, a implantação da doutrina política de que o rei é imperador no seu reino, tudo exclui a submissão
geral a uma autoridade espiritual. Mas nunca foi eliminado o projecto de obter
a paz pela convergência numa instituição laica, que assumisse ao menos uma
autoridadegeral.Os planos dos chamados ProjectistasdaPaz,e instituições como
a Sociedade das Nações (SdN) e a Organização das Nações Unidas (ONU) correspondem a esse legado.
. . .
enst~am,s~o
Pª:ª
m George H. Sabine, A historyofpoliticalthcory,N.Y., 1961, p. 257.
274
TEORIA DO PODER
ado maquiavélico
1
3, O egiavelismo,antes de ser uma apologética amoral de métodos pragmáti0 ,,~q:onduzir a vida internacional e a vida política interna, sem respeito por
,as e morais é uma teoria do poder e do relacionamento dos poderes inter. jces
'
htJl. almente, baseada na observação dos comportamentos.
ºª'~;ando Maquiavel publicou O Príncipeem 1527, fez a primeira análise glol da sociedade internacional a partir do conceito de estadodenatureza.Depois
ba uinze anos ao serviço de Florença, usou a sua própria experiência para
deÂuzirO fenómeno da luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder
eraJítico.Começa por recor dar que os prmctpa
· · dosnao
- recon hecem 1·
e1ou po der
P:e lhe sejam superiores, declarando assim a inutilidade da herança cultural
. - me d'1eva1.
dq Repúb1·
1caCnsta
ª De facto autonomiza a análisedos factos em face da apologética,
e conclui que
relações
entre
os
principados
são
reguladas
pelo
equilíbrio
dos
poderes, e
5
ª ue a força é o elemento fundamental. O facto é sempre reunirasforçassuficientes
~araalcançar o objectivo:se aquelas existem, o principado passa à acção; se não
existem,tem de abster-se. Afirma: "A guerra é a verdadeira profissão de quem
governa;é por terem negligenciado as armas e terem-lhe preferido as delícias
do ócio que vimos soberanos perderem os seus Estados."
Cada principado prossegue portanto os seus objectivos usando o poder, e
só um poder superior o poderá travar. As relações internacionais, sem lei nem
autoridade específica, assentam no medo, na intimidação, no estratagema e no
constrangimento: "Dois receios devem ocupar um príncipe: o interior dos seus
Estados e a conduta dos súbditos são objecto de um; o exterior e as ambições
das potências vizinhas são o objecto do outro. Para este, o meio de se prevenir
é ter homens armados e bons amigos, e ter-se-ão sempre bons amigos quando
se possuem boas armas".
É por isso que dedica o capítulo XXI a explicar "como é que deve conduzir-seum príncipe para adquirir reputação", analisando a neutralidade, a aliança,
a inversão das alianças, o prestígio, a dissuasão, como instrumentos entre os
quais escolherá o mais adequado para realizar os seus intentos 236 • Testemunha
do nascimento do Estadosoberano,sustentou a teoria clássica da sociedade internacional assente sobre o interesse fundamental de cada Estado, a conflituosidade do estado de natureza, as relações de força, a relação entre diplomacia e
estratégia. Era já a perspectiva realista que lhe servia de referência, como em
nossos dias fazem Morgenthau e Aron, e fizeram Hobbes e Clausewitz 237•
216
Maquiavel, cit., capítulo XXI.
Jacques Hunczinger, Introductionaux relationsintemationalcs,Paris, 1987, p. 27 e sgts.
237
275
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Thomas Hobbes, ao qual fizemos oportuna referência, parece o continuad
de Maquiavel quando , no Leviathan,considera o estado de natureza caracte ~r
zado pelo homohominilupus. Na vida internacional, igualmente, não encont
qualquer princípio de sociabilidade. Ao contrário, segundo escreve, é o dolllr~
a desc tnio por excelência das três causas humanas de discórdia: a competição,
Jiança,a glória.Os Estados e os homens combatem-se pelo proveito, para im;no domínio sobre os outros, para se defenderem, por sinais de glória. Como or
comunidade internacional não existe um Leviathan,é a anarquia maquiavélj~a
que vigora, cada Estado soberano intervindo até onde o poder de constrange:
lho permite 238 •
4. A comunidade internacional
A concepção cristã da unidade do género humano, que vimos corresponder à
supremacia pontifícia e ser vencida pelo aparecimento do Estado nacional, veio
inspirar os jusnaturalistas dos séculos XVI e XVII, em que se destacaram Francisco de Vitoria, dominicano professor em Salamanca, e o jesuíta espanhol Suárez, que foi professor da Universidade de Coimbra durante a dinastia filipina.
Viram a grande época dos Descobrimentos peninsulares, e tiveram de enfrentar os problemas suscitados pela questão da legitimidade de adquirir as terras
descobertas e povoadas, e ainda a definição das relações a estabelecer com os
principados dos povos e terras encontrados.
Vitoria é fundador do direito internacional moderno, preocupado com a
definição das regras jurídicas (direito das gentes) que obrigam os Estados e
as comunidades antigas e descobertas, apelando de novo para o conceito de
comunidade universal.
Defende uma função instrumental do Estado, uma concepção inserida na
indivisão originária e natural da comunidade dos homens. O planeta é também
naturalmente indivisível. A divisão feita pelos Estados por fronteiras foi uma
necessidade destinada a amparar a fragilidade dos homens, a providenciar sobre
a sua defesa e segurança . Isto não suprimia a comunidade originária, e daqui
o direito que cada homem tem de estar , andar, ir
deriva o jus communicationes,
de um lado para o outro ao redor da Terra. Há um direito natural superior às
prerrogativas e direito positivo de cada Estado, do qual decorrem regras que
garantem a paz internacional2 39 •
'-'"Marcel Merle, Sociologiedesrclatio11s
i11ternationales,
Paris, 1974, p. 24e sgts.
2 19 Francisco de Vitoria, Relectiode Jndis (o libertadde los índios),Madrid, 1967, I Parte (co11
quederecho
•
e II Parte (quepodertienenlos rqes deEspalÍasobrelosindios
ha11l'e11ido
losbárbarosa poderdelosespa1iolcs?)
en lo temporal)'cn lo civil?).
276
TEORIA DO PODER
eu Jado,Suárez também sustenta a unidade superior do género humano,
:te do preceito do amor e da caridade mútua que se estende mesmo aos
resLlta eiros240 • Já então advoga o valor da interdependência dos principados,
estrªº!ndo num dos seus textos mais citados: "Nunca com efeito estas comue~cr~espoderão bastar-se a si próprias isoladamente a ponto de dispensarem
111
~ª da recíproca, a associação, a união, seja para o seu progresso e utilidade,
ª ~JLlor causa de uma necessidade ou de uma indigência moral, como a expe~ia demonstra." Por estes motivos, têm necessidade de um direito que
r1en
.
,
d e re 1açao
- e d e necess1.
dirige e as or d ena convementemente
neste genero
~sde. o seu apelo já não é, como em Vitória, a um direito natural e ao modelo
dª urnasociedade perfeita anterior e superior aos Estados. Parte antes da intere endência necessária dos principados, um conceito que fará carreira entre
dep
' . Mas as d uas v1soes
. - sao
- comp 1ementateóricos d o rea 1·
ismo ang 1o-saxomco.
5
;es, porque não há co~tra_dição en~re conceito de comunidade _u?iversal_eo
facto da interdependenc1a dos prmc1pados em que aquela se d1v1de.A diferença está talvez em que no primeiro caso o direitodasgentesou internacional
verndeduzido do afirmado direitonatural;e no segundo o direito internacional
é a expressão, em primeiro lugar, do costume estabelecido e consentido pelos
Estadosna sua relação.
o século XX tem mostrado um interesse crescente pelo tema do governo
mundial.Baseando-se na tradição nacional americana, apareceu o movimento
dos UnitedWorldFederalists.
Menos ambicioso o movimento WorldPeaceTlzrouglz
World
La1v,cujo objectivo é a pazpelodireitomundiale não o federalismo internacional.Os reformistas como Lester R. Brown, procuram desenvolver a cooperação internacional na área do "inventory of mankind's problems", incluindo
ambiente, ricos e pobres, desemprego, urbanização e fome. A SdN e a ONU
foramas expressões institucionais destas correntes 241 •
pr
5~!ª O
?
5. As utopias do fim do século e as previsões metódicas
Pormuito próximo que esteja o fim do século XX, as previsões a respeito de uma
NovaOrdem do terceiro milénio fazem-nos regressar ao mundo da utopia.
Isto porque as perspectivas adiantadas, ao menos em parte substancial da
suadefinição, dizem respeito a uma teoria desconhecida, no sentido de que não
dispomos de informação suficiente, nem sobre os factos, nem sobre as variáveis,para antever o controlo do seu desenvolvimento.
uºSuárez, De Legibus, Madrid, 1971, I, p.11 e sgts.
Edith Wynner, WorldFederalGovcrmnwt in Maximum Tcrms,N .Y., 1954, p. 38. Richard B. Gray (ed.),
lnter11atio11a/
SecuritySystems,)rasca, 1969, p. 61. Grenville Clark e Luis B. Sohn, WorldPeaceThrough
WorldLaw,Cambridge, 1966. Lester R. Brown, Worldwitlwut borders,N.Y., 1972, p. 11.
4
' '
277
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Parece interessante lembrar que foram Karl Marx e Frederico Engels q
contribuiu para colocar os utopistas no plano não confiável do total corte llelll
' · concepçoes
- a autorictcolll
a rea l1'd ad e, procuran d o concentrar nas suas propnas
.
'fi1ca.
~
c1ent1
Para além do Manifesto Comunista, o estudo de Marx intitulado The l
strugglesin France(1850), e o estudo de Engels chamado Socialism,Utopia/ ass
Scientific(1850), estabeleceram o quadro dessa qualificação, confiados em terªnd
descoberto as leis da História, para termos verificado em nossos dias que alguelll
•
fcoram mais• exactos nas prev1soes
• - 242 .
ns
utop1stas
Nada disto infirmava a definição de Thomas Nipperdey, segundo a qua)
utopia significa "um projectoliteráriopara um mundoproblemático
... quecanseiª
u:-
tementeexcedeoslimitesepossibilidades
de qualquerrealidadeexistentee enuncia
ordemsubstancialmente
diferente".
ª
De facto, a distância entre a realidade e a utopia não impede que esta tenha
uma íntima consistência, que o decorrer do tempo obriga a examinar segundo
o critério do Padre António Vieira a respeito das profecias, cujo enunciado
mudaria de sentido à medida que a História se distancia do seu aparecimento.
Vejamos alguns exemplos abonatórios da oportunidade e da utilidade do exercício proposto pelo tema deste curso.
Comecemos até por um texto qualificado de distopia, porque inspirado pela
falência das promessas revolucionárias de 1917.Trata-se da novela de Zamyatin,
chamada Wena tradução que apareceu nos EUA em 1924.
A visão que descreve é a de um benefactor impiedoso que controla totalitariamente a vida da sociedade e dos indivíduos, regulamentados e obedientes
desde o nascimento à morte, desde o acordar ao dormir. O globalismo que anuncia traduz-se num Estado abrangente da Humanidade, onde desapareceu a surpresa da novidade, uma possibilidade anulada pela administração minuciosa.
É preocupante notar que os mais conhecidos e divulgados Huxley e Orwell
também anteciparam a mesma espécie de totalitarismo, não obstante terem
raízes em sistemas culturais e políticos bem diferenciados do sovietismo de
1920 em que se filiava a experiência de Zamyatin.
No BraveNew Worldde 1932, de Huxley, é o WorldSupervising
Boardque administra o WorldState, assim como no NineteenEighty-Fourde 1949, de Orwell, éo
BigBrotherque controla absolutamente os povos e territórios da Eurásia.
Nestas várias obras, está sempre previsto um núcleo da velha Humanidade,
os selvagens que vivem para lá do GreenWallde Zamyatin, os selvagens das reservas de Huxley, os excluídos de Orwell, mudos e dispensáveis pelo sistema, mas
em todo o caso guardando os restos da antiga individualidade.
242
Wolfang Bergsdorf, "The age of utopianism in retrospect", in GermanCommcnts,n 2 38, 1995, P· 86·
278
TEORIA DO PODER
:Notemosque Huxley emerge de uma sociedade de abundância, e por isso
•fica a beatitude futura com o consumismo sem insatisfações, com a eli·delltl
.
d
• .
1 • ção do sofrimento
e as carenc1as.
1111
~aso contrário de Zamyatin, que tem o sovietismo na sua circunstância,
ell é de uma linha desgostosa com a evolução do sistema político do socia~rWoreal, condicionado pessoalmente por uma sensibilidade pessimista que
. • . ao s1s.
)lslll
· a1·1mentar esperanças d e me lh ona. pe 1a res1stenc1a
_ lhe permite
11ao
celllª·
.• · d e H'1t1er e d e Esta 1·
Testemun h a d as expenenc1as
me, com uma sau'd e d'b'l
e 1
uito sublinhada por Anthony West, também apreciou a versatilidade de con~cções que permitiu a aproximação e ruptura da aliança de ambos os ditado;es, a transferência da solidariedade da URSS para os aliados, o acordo entre as
duas proclamadas incompatíveis concepções do mundo e da vida, no sentido
de partilharem, em Teerão e Yalta, as esferas de influência sem audiência dos
povosabrangidos pela divisão.
Tudo confirmando a experiência que analisava da guerra de Espanha, e
fortalecendo o antitotalitarismo que lhe inspirou o livro que chamou Animal
Farm,expressão do horror que lhe causaram as atrocidades progressivamente
reveladas,e sobretudo o poder assumidosobre o que o totalitarismo chamou a
verdade objectiva, isto é, a submissão do relato histórico às versões e correcções exigidas pelos interesses políticos de cada data.
Entretanto, os Estados foram-se reconciliando com o complexo de Savanarola(1452-1498),cujo profetismo o levara à fogueira, reencontrando no Capítulo
LVIdos DiscorsisopralaPrimaDecadi Titi Livio,de Maquiavel, a preocupação de
racionalisar a previsão do futuro.
Foi assim que Ossip Flechteim por 1943 divulgou o conceito de futurologia,
que Bertrand de Jouvenal acrescentou a sua bibliografia com um livro intitulado L'Artdela Conjecture,e que em 1962 o governo da França encarregou um
chamado Grupo1985 de estudar, "sous l'angle des faits porteurs d'avenir", o que
fosseútil saber sobre a situação que se enfrentaria vinte anos mais tarde 243 •
De então em diante a análise prospectiva viu nascerem autoridades como
Herman Kanh e Anthony J. Wiener, Fourastié e Vimont, Alvin e Heidi Toffler,
instituições como o Clube de Roma, observatórios estaduais, designadamente
nos serviços militares envolvidos no confronto da Guerra Fria 244 •
E foi justamente o inesperado ponto final posto nesse confronto, pela queda
do Muro de Berlim em 1989, que demonstrou a fragilidade, simultaneamente,
Paraum Ministérioda Ciência,Lisboa, 1967, pg. 205.
Paris 1967; Fourastié e Vimont, Histoirededemain,
Paris, 1956; Alvin e Heidi Toffler, Creatinga neivcivilizations,N.Y., 1995.
m ln Adriano Moreira, O tempodosoutros,ensaio
2
« Herman Kahn e Anthony
J.Wiener, L'.An2000,
279
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
dos profetas, dos utopistas, e dos dispendiosos serviços de prospectiva
0
que nenhum governo, nenhuma instância de segurança, nenhuma Uni~: ~dade, nenhum observatório, nenhum analista, previram um acontecime rsi.
que havia meio século traduzia o seu objectivo estratégico e o cerne das snto
.
.
llas
mqu1etações.
No rescaldo do desaparecimento da Ordem dos Pactos Militares (N,tro
-Pacto de Varsóvia) em que vivemos cinquenta anos deste século XX, desta ·
ram-se duas previsões a curto prazo, esse exercício arriscadíssimo dos queca.
preparam para serem desmentidos em vida pela história.
se
Em primeiro lugar o famoso ensaio de Francis Fukuyama, TheEnd oJEistor
andtheLastMan, sendo que esta última expressão - o últimohomem- era o títu?'
que Orwell primeiro teve intenção de dar à sua utopia, onde o protagonista
ª
Winston Smith foi criado como representando o "last man in Europe".
Este texto, que teve a repercussão habitual das escolhas que as editoras Il1ttltinacionais decidem impor, dá por assente que não resta à Humanidade Il1ais
do que um projecto, o do bloco sobrante à queda do Muro, liderado pelos EUA
em risco de solidão na hierarquia das potênciasm.
A paz e os seus dividendos estão, profetiza utopicamente, ao alcance de um
mundo definitivamente submisso à economia de mercado, à democracia política, e ao respeito geral pelos direitos do Homem.
Os factos teimam em não ser promissores no que respeita à efectivação da
leitura, de qualquer das proposições.
No que toca à democraticidade geral, o conceito abstracto varia pelo menos
entre a observância da vontade da maioria, a protecção dos interesses da maioria, e a proeminência dos interesses maiores, o que deixa espaço para muitas
variações entre a intervenção do voto livre e o autoritarismo mais ou menos
próximo do totalitarismo.
Pelo que respeita à economia de mercado, é difícil admitir que o modelo
teórico seja implantável em vastas regiões do globo, na Ásia, na África, na América Latina, onde não existe uma sociedade civil que corresponda à hipótese
do modelo. Um desenvolvimento com equidade, que supõe alguma tutela ética
da mão invisível do liberalismo das grandes potências económicas, parece uma
exigência crescente por essas latitudes também chamadas da geografia da fome,
desde que Josué de Castro a identificou e baptizou.
Finalmente, os direitos do Homem começam por ser objecto de leituras
divergentes em cada sede de culturas autónomas, bastando recordar as dificuldades constantes com que se embaraçam os estadistas das democracias ocidentais quando visitam Pequim, e ali em regra moderam ou calam o discurso
m Francis Fukuyama, The wd ofhistory a11d
/e last man, N. Y., 1992.
280
TEORIA DO PODER
.
alista que exercitam nas competições domésticas pelo poder. Longe
prognosticada, talvez tendo em vista uma liderança mun• .
b .
.
.
e •
da on1
. da da superpotenc1a so revivente, esta a viver o 1so1amento que 101 o
6
di~ltz;odo est udo de André Fontaine, L'un sansl'autre(199l)H • Tinha proclaobJ~cRonald Reagan o seguinte:"sempre acreditei que este continente era um
O
ma excepcion al cujo destino era excepcional. Creio que o nosso destino é ser
tur~l da espera nça de toda a Humanidade". 247
0
ª;or seu lado Paul Kennedy, depois de ter meditado sobre The riseandfali of
h eatpower
s (1988), decidiu juntar-se aos que preferem uma metódica percept _e~lobalista, nimbada de europeísmo, para desacreditar a futurologia neste
ça~os: "Permanece o facto de que, em vista de não conhecermos o futuro, é
~:possível dizer com certeza se as tendências globais conduzirão a um terrídesastre ou serão dominadas por surpreendentes avanços na adaptação
t1111
ve~}ormização
:e1
"248
humana.
Um dos elementos da utopia de Orwell era a previsão de um globo não divididopelo atomismo dos Estados soberanos, mas sim dividido em três grandes
espaços,um tema sobrevivente na análise corrente da conjuntura, e derivadas
previsões,levadas a cabo pela perspectiva liderada por Samuel P. Huntington,
249
autordo famoso The clashof civilizations.
Trata-se de um ensaio que toca a polemologia e no qual a visão cataclísmica
parte da hipótese de a identificação dos grandes espaços, aptos politicamente,
e eventualmente decididos a subir aos extremos da guerra, ser dependente da
comunidade de civilização.
A linha-mestra da perspectiva pode talvez identificar-se com a premissa que
alguns enunciam no sentido de que, estando globalizado o contacto das áreas
culturais, a cadeia articulada de cultura-democracia-paz internacional e ordem
mundial, só tem significado dentro de cada contexto sociocultural.
Segue-se em geral uma afirmação de facto, embora de discutível exactidão, a
qualse traduz em concluir que é difícil um processo de troca de modelos entre
culturas, pelo que o diálogo é a única possibilidade de preservar a paz.
Daqui a conclusão de que o diálogo entre religiões é seguramente o maior
desafio,possível e desejado, porque na opinião do teólogo Hans Kung é necessárioinsistir na necessidade da paz entre as religiões para conseguir uma Nova
Ordem mundial pacífica.
"' André Fonraine, L'u11sam /'autre,Paris, 1991.
ambigue,Paris, 1996, pg.141.
"'T. D. Allman, Un desti11
mp I
•
•
au Kennedy, Preparmgforthe tiventy-firstcentury,N.Y.,1993, pg. 348. Paul Kennedy, The nse and
faliofthegreatpowm, Londres, 1998.
z◄ o s
amuei P. Hungtington, "The clash ofcivilizations?", in ForeignAffairs,1993 .
281
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Na contribuição proposta por Huntington afirma-se pois que uma P ,
tica global será condicionada pelo choque de civilizações, sendo que, colll oii0
hábito, se verifica uma incerteza na utilização dos termos.
de
Neste caso trata de identificar vastas áreas culturais pela hegemonia de e
cepções religiosas, e assim anteviu conflitos maiores entre o Ocidente e O Isl~nentre o Islão e o Hinduísmo, entre o Islão e a Ortodoxia eslava, entre a área e~~•
1
nesa e o Japão. No que respeita à Europa vê a linha divisória principal entr •
Cristandade ocidental e ortodoxa, por um lado, e o Islão pelo outro.
ea
Em suma, diz, "asgrandesdivisõesdaHumanidadee afonte principaldeconf!it
, na cu1tura.
os
estara
OsEstados-nação
continuarãoa serosmaispoderosos
actoresnasrelações
mundiai
mas osprincipaisconflitosdaspolíticasglobaisverificar-se-ão
entrenaçõesegrupos:•
diferentescivilizações".
e
Estas proposições, cujas bases não esgotam as perplexidades que animam
diferentes prospectivas, chegam para evidenciar que o primeiro dos factos que
desafiou não só a velha Ordem finda em 1989, mas também o rigor e utilidade
de muitos e respeitáveis conceitos, é o do globalismo. Trata-se, em primeira
aproximação, de uma versão do ponto ómega terrestre de Teilhard de Chardin
porque todos os povos e áreas convergem num sistema unificado de interde~
pendências.
Conviria talvez clarificar a pluralidade de sentidos da globalização, ela própria uma expressão que sucedeu ao comum uso anterior da mundialização.
Esta última expressão, muito ligada entre nós à gesta das descobertas e doação de novos mundos ao mundo, punha em evidência uma espécie de governo
euromundista, em que participaram as soberanias ocidentais, especialmente
as da frente marítima europeia.
Durante séculos, tal situação de globalização da gestão política pelos ocidentais, não correspondia a uma interdependência mundial que seria resultado das revoluções técnico-científica, dos teatros estratégicos, dos mercados,
da informação.
Duas guerras chamadas mundiais pelos efeitos, mas exclusivamente ocidentais pelas origens, destruíram aquela mundialização política de gestão quando
justamente as referidas interdependências de todas as áreas e povos se consolidaram.
Durante meio século, que decorreu entre 1945, fim da guerra, e 1989,
queda do Muro de Berlim, o projecto de acudir a tal derrocada com um novo
modelo expresso na Carta da ONU, foi de facto posto entre parênteses na área
da paz e segurança, porque o que vigorou foi uma Ordem dos Pactos Milita·
res, assente no medo recíproco, causado este pela posse das armas estratégicas, até que o esgotamento das capacidades logísticas da URSS desmoronou
282
TEORIA DO PODER
, io soviético, e nos conduziu para um tempo de anarquia madura, na
o illlPe~espeitoda nova ordem, a única coisa que continuamos a saber é que
.
qual,a
boUa antiga.
ste período de anarquia madura, prefigura-se uma mudança essencial
e ureza dos agentes da vida chamada internacional, sendo a primeira a
11:in~~zrespeito ao Estado soberano, em crise por vezes chamada crise do
quedo nacional, o que não é exacto. As nações são raras, por isso corresponEstª a valores cimeiros, mas o Estado soberano corresponde a muitas e variadelllfidelidades ou imposições, e a soberania, essa novidade renascentista
dasonhecida por Maquiavel e Bodin, é que em geral se degrada: pelo topo,
re~que os Estados são compelidos a transferir competências para organisp:s supranacionais; pelas bases porque os separatismos se multiplicam, e as
:escentralizações, desconcentrações e regionalizações vão tornando elásticasas supremacias internas até eventual final ruptura; pela perda de poderes,
orque para muitos enfraquecem ou desaparecem capacidades de exercício
~esmo nas áreas de interesses que lhes ficam, designadamente na defesa, e
nasegurança interna e externa.
Daqui decorre o aparecimento de um novo actor de perfil ainda mal definido, mas certamente um grande espaço com gestão autónoma, nuns casos
supletivodas unidades menores que lhe são integradas, noutros casos revelandoum fenómeno de coacção que devemos chamar política, ou de coacção
sistémica.
Trata-se, por exemplo, de as alianças militares deixarem de ser temporárias
emfunção de uma ameaça, para se institucionalizarem como a Aliança Atlântica que permanece fazendo apelo dominante ao consentimento, ou como se
passoucom o Pacto de Varsóvia que se organizou com base na hierarquia directivada Rússia.
Trata-se de a Europa, desde o Ano Zero que foi 1945, caminhar para uma
União Política Europeia, tendo passado pelo projecto do simples mercado,
pela fase da subsidiariedade em que se encontra, a caminho de uma política
externa e de segurança comum, de uma moeda única, de uma função internacionalunitária.
Trata-se da Euráfrica reaparecer nos projectos informais tímidos e na acção
formalizada nos quadros da Convenção de Lomé. Trata-se de Orwell merecer
ser revisitado no que toca à previsão da repartição do globo em grandes espaçoscom identidade política.
Parecendo evidente a crise do Estado soberano, a estruturação dos grandes espaços não poderá ser alheia ao fenómeno historicamente permanente
da hierarquia dos poderes políticos dentro de cada grande espaço, e por isso,
designadamente, um dos mais sérios problemas do processo europeu é o de
:a'\r
283
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
evitar o aparecimento de um Directório ou de um Estado director, talco
1110o
.
.
.
- d o bzg
· stick
continente
americano
se continua
a d e firontar com as versoes
d
EUA, tal como os vários Pacíficos terão de acomodar-se com a existência os
da
China ou do Japão.
O que significa que a crise da soberania não afecta por igual os modelo
.
s~
Estado existentes, porque alguns deles correspondem, pelos seus elemento ,
8
própria definição do grande espaço: os Estados Unidos, a Rússia, a China : a
. _
.
•nao
enfrentam a mesma defimçao da cnse que afecta os Estados europeus, 0
aconselha a transferir para o plano do globalismo, em que convergem todo~Ue
questão da hierarquia e do Directório, neste caso a tríade com a qual já pare' a
ocupar-se a imaginação de alguns responsáveis.
ce
Um tema muito íntimo do desafio da anarquia madura em que vivemo
e que mostra a emergência de poderes informais, como o G-7, ou os poder:•
erráticos e violentos, à espera da racionalização que supere a teia de planos d;
contingência em que vivemos.
Procurando sintetizar este encontro globalista na área dos poderes políticos, depara-se com uma realidade que é o património comum da Humanidade
incluindo designadamente bens materiais como o mar alto, a Antárctida, 0 ~
satélites, bens imateriais como a paz, bens sincréticos como o desenvolvimento
humano, a biodiversidade e o ambiente.
Alguma sede terá de ser encontrada para responder em comum às exigências, e nesta data é na reforma da ONU que se concentram as atenções, sobretudo do Conselho de Segurança que é onde se reflecte a hierarquia dos poderes
políticos.
Neste ponto, talvez a observação mais necessária, e mais óbvia, seja a de quea
reformulação da intervenção globalizada, designadamente reformando a ONU,
não resulta da própria organização, é imposta sim pelas mudanças substanciais
da realidade mundial, para além da crise do Estado soberano.
Em primeiro lugar o facto, inteiramente descurado e imprevisto na data da
fundação da ONU, de que, pela primeira vez na história da Humanidade, todas
as áreas culturais do mundo falam pela sua própria voz, o que implica a desocidentalização das estruturas, e mais o diálogo que enriqueça a compreensão e
defina a área de tolerância indispensável para a preservação da paz.
Trata-se do grande desafio da interculturalidade mundializada, a partir das
pequenas células que as migrações vão espalhando por todas as latitudes.
Uma questão esta ligada com o processo de desvalorização das fronteiras
físicas animada pela revolução da técnica, dos mercados e da informação, e
que deu origem a uma realidade que é a sociedade civil transnacional, recid_a
de fidelidades horizontais que enfraquecem ou quebram as fidelidades verti·
cais com os poderes políticos estaduais.
284
TEORIA DO PODER
nova realidade é que serve de apoio e de inspiração a uma perspectiva
13st
ªnvolvimento humano, na previsão de uma nova arrumação dos pode-
do dese ..
mund1a1s.
resN 5 últimos anos, o mundo acentuou a polarização económica, de modo
e aºdesigualdade entre países ricos cuja riqueza cresce, e países pobres cuja
qu lação aumenta, se torna desafiante para a paz.
poP;uito por este último facto, também ganha consistência a percepção de
ao globalismo económico deve corresponder um globalismo de responsaq~J~dade
pelo passivo dos povos mudos, dos povos tratados como dispensáveis,
1
bt populações que vivem
·
· ' · d as soc1e
· d a d e d e guerra, d os con fl'1tos
das
na m1sena,
armados.
Os Relatórios do PNUD, especialmente o de 1996, mostram a relação entre
crescimento económico e desenvolvimento humano, que é necessário fazer
convergira longo prazo. Ali se escreve que "o documentoparao desenvolvimento
humanonoséculoXXI aindanão estáescrito.Começaráa sê-lopelasescolhas
políticas
quefizermos,atémesmonofim doséculo.Idealmenteestasescolhasaceitarãoaprevisão
dequeaseconomiasexistemparaaspessoas- nãoaspessoasparaas economias".
Por isso a UNESCO lançou o desafio da educação para o exercício da cidadania, que agora deve começar a ser encarada como mundial. Trata-se de em
primeiro lugar compreender que a contradição entre os civilrightsque as constituições limitam por vezes a uma parte da população, e as Declarações Universaisdos Direitos do Homem, se defrontam com as exigências de autenticidade
da sociedade civil transnacional, que encontra voz pacífica nas ONG, e agressivaem poderes erráticos que desafiam o pacifismo da evolução.
Sejaqual for o sistema de poderes que finalmente venha a enquadrar o globalismodo século XXI, o regresso ao homem kantiano, como valor fundamental,
parece anunciado na área da autenticidade; a perspectiva da responsabilidade
globalpelo passivo da Humanidade, parece a caminho; a dúvida sobre se, ainda
assim, poderemos finalmente distribuir os dividendos da paz, não foi dissipada.
6. Tópicos da nova democracia
a)O modelo democrático observante e a multiplicidade dos modelos observados
Apenas no sentido de limitar os termos de referência dos temas para os quais
especificamente pretendo chamar a atenção, referirei brevemente alguns conceitos operacionais que ficam excluídos da reflexão.
Por isso mesmo lembraremos apenas que, literalmente, a democracia significa o governo pelo povo como um todo, remetendo para uma discussão inter285
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
minável o acordo sobre a identificação do povo e dos actos de govern
realmente lhe pertencem, à luz do conflito de pelo menos dois critérios~ 9ue
0
choice)que diz respeito à identificação dos parti~• da
escolha colectiva (collective
tes, e o dos interesses visados pela decisão (socialchoice).Realmente uma ~?ªngência sobre o conceito de maioria que nas democracias ocidentais atenct'"er.
primeiro critério - maioriadevotos-, que nas antigas democracias popular/ ª0
Leste atendera ao segundo - maioriadeinteressados,
e que as correntes auto s_d_o
maiores.
rita.
rias pretenderam substituir pela proeminência dos interesses
Vinculando o conceito à herança de Péricles, que considerava indignos d
cidadania ateniense os que não participavam na decisão política, ficam ar ª
dados da meditação conceitos que contaminam o valor nuclear do legado. F~edemocrático,
o qual teve origem na doutrinação sov·~ª
assim excluído o centralismo
tica, e que, na orientação do Komintem(1919),significava que "o Partido Co~enista apenas será capaz de cumprir o seu dever se a sua organização for t:centralizada quanto possível, se prevalecer uma disciplina de ferro" (Twentyonº
ConditionsofAdmissionto Komintem).
e
Também excluímos aquilo que Tocqueville (L'ancienregimeet la Révolution
1856), chamou o despotismodemocrático,
quando referiu a versão fundamenta~
lista do princípio da soberaniadopovo,e que parece corresponder à degenerada
demagogia identificada por Aristóteles.
Partiremos da proposta das Nações Unidas, cujo texto fundamental, neste
domínio, é o artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, segundo
o qual "cada pessoa tem direito a uma ordem social e internacional na qual os
direitos e liberdades contidos nesta Declaração possam ser completamente
realizados". Definidos estes nos chamados Twin Covenantsde 1966, abriram o
caminho para que a Conferência de Viena de 1993 fosse organizada para representar a apoteose do conceito de uma Nova Ordem mundial centrada sobre o
respeito pelos direitos humanos, valor cimeiro da perspectiva democrática ocidental que orientou a construção da ONU.
Não pode esquecer-se que a Aliança Democrática que ganhou a guerra de
1939-1945 abrangia cerca de uma dezena de ditaduras, mas foi o conceito ocidental de democracia que organizou o espaço e a luta contra a área do centralismo democrático soviético, prometendo a implantação do seu conceito de
liberdade desde o Atlântico até aos Urales.
No conjunto de países que correspondiam ao conceito de satélites da análise ocidental, a aspiração ao modelo fez parte da ideologia da resistência
daqueles que deram direito de cidade ao conceito do poderdosquenãotêmpoder.
O destacado e líder Václav Havei, no discurso pronunciado já na qualidade de
Presidente da Checoslováquia em 1 de Janeiro de 1990, disse o seguinte, recordando Comenius e repetindo Masaryk: "o teu poder, povo, voltou às tuas mãos".
286
TEORIA DO PODER
e mesmo ano que Mikhail Gorbatchov, falando no Comité Central do
foi nt:m 5 de Fevereiro, disse: "na sociedade renovada, o partido não pode
p~V.'e desempenhar a sua função de vanguarda se não for uma força demoe"1st1r
. mente recon h ec1'd a,,.
cra~c;amosoAdam Michnik já em 1956 tinha proclamado (Pcnserla Pologne,
/eetp0 /itiquedela résistance,
Paris,1983): "a única via a tomar pelos dissidenpaíses de Leste é a de, um~ luta incess,a~te a favor d~s ,reforma~, a favor
te ma evolução que alargara as liberdades clVlcase garantira o respeito pelos
d~\os do homem". Por seu lado, o Manifesto da Carta dos 77 (1 de Janeiro de
n
I nternaczona
. 1sobre osD zrez. .
direi), invocand o os Jª
" cita
· d os 11
· Covenants- -'-acto
wm
977
l Cívicos
ePolíticos,e PactoInternacionalsobreosDireitosEconómicos,
Sociaise Cul1
"
·
d
d
'd
d'
tos
rais_ proc amava que, a partir esta ata, os nossos c1 a aos tam b'em tem
:direito, e o Estado o dever, de se conformar com eles".
A queda do Muro em 1989 definiu o segundo patamar do alargamento do
conceitodemocrático ocidental ao espaço dos antigos satélites, uma realidade
saudadapor François Furet (Le Mondede la RévolutionFrançaise,nº 7, Julho de
!989),com estas palavras: "quais são as ideias que nos chegam hoje de Moscovo,
de Varsóvia,de Budapeste, ou, ontem, da Praça de Tiananmen? Nós conhecemo-las,são as nossas, as das democracias modernas, desde o fim do século
XVIII:os direitos do Homem, as eleições, a liberdade das pessoas compreendendo o mercado".
A euforia desta anotação anunciava um terceiro patamar de projecção do
conceito ocidental da democracia em resposta ao fenómeno da globalização.
O seu doutrinador mais conhecido é Francis Fykuyama (The end of historyand
thelastmen, 1992), que, em face da não prevista queda do muro de Berlim e
da catástrofe do regime soviético, anunciou que a mundialização do conceito
ocidental, nimbado de americanismo, era a única alternativa sobrante com os
seus componentes de democracia política, direitos humanos, e economia de
mercado.
Esta conclusão académica talvez tenha como apoio circunstancial a supremaciados EUA, e uma referência cultural à ideia, de Guizot e Tocqueville, de
que a revolução que instituiu a liberdade política e a igualdade civil é o facto
central da história da Europa moderna (Raynaud), desenvolvida na perspectiva
de fim de século abrangente da grande maioria de doutrinadores e analistas
ocidentais, segundo os quais a democracia corresponde ao modelo mais desejávelde regime, ainda que as definições continuem múltiplas (Rosanvallon).
Os desastres das guerras que se prolongaram nas áreas coloniais para além do
fim da Segunda Guerra Mun dial, a multiplicação de regimes totalitários ou
autoritários, os genocídios múltiplos, as guerras internas que criaram associedades de guerra, a dimensão dos crimes contra a Humanidade, tudo remete a
M::os
287
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
preferência pela democracia ocidental para a categoria de modeloobservante
proposta de vocação globalizante para todos os modelosobservados,
mas dl~~a
mente se pode considerá-lo como a proposta sobrevivente que, nesse sent~ci].
1
' ·
do,
sena· o fi1m da h"1stona.
As perspectivas liberal e democrática, que marcam a ruptura do fim
século XVIII ocidental, e que referem o indivíduo como elemento fundalll do
tal da problemática política, nunca abandonaram a perspectiva subjacenttl·
Nação, que emergiu como um valor específico no decurso da revolução. L da
em 1789, quando Emmanuel Sieyés escreveu - Qu'est-ceque/e tiersétat?,ali a?iº
mava que "a nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo. A sua vontat
é sempre legal, ela é a própria lei". Carl von Savigny, autor De la vocationdenote
tempspour la législationet lasciencedu droit(1814), ensinava que "as relações or ~e
nicas entre o direito e o carácter essencial de uma nação devem ser conservga.
adas na marcha do tempo".
Experiente da guerra de 1914-1918, e participante na defesa dos ideais demo.
cráticos dos aliados, o notável Coudenhove-Kalergi, ao advogar os Estados Unidos da Europa foi para salvar as nações porque "a união da Europa sob o signo da
liberdade, da fraternidade, da igualdade, poderia trazer um tempo novo, mais
belo para a França, a Europa, e o mundo". As 14 Reivindicações de Budapeste, de
22 de Outubro de 1956, exigiam a democracia que serviria a nação restituída à
sua dignidade. De facto, é a referência a um tecido cultural específico, orientador da formação de juízos colectivos sobre o que é justo e virtuoso como decisão
sobre os interesses divergentes e sobre os interesses comuns, de modo a governar o pluralismo em paz, fazendo da tolerância um padrão geral, e da mudança
uma consequência do diálogo entre as flutuantes maiorias e minorias.
O conflito em curso desde 11 de Setembro colocou no primeiro plano das
inquietações governativas e doutrinais, esta questão dos padrões culturais, que
fazem apelo ao alargamento do conceito de Nação (Nação árabe, por exemplo)
ou às solidariedades de grandes espaços como a Europa ou o Ocidente. Nesta
linha se desenvolveram o patamar nacional que se tornou visível em Valmy,o
patamar do grande espaço da cidadania europeia de Victor Hugo, a dimensão
ocidental da ordem dos Pactos Militares que terminou em 1989, a proposta
mundializante ligada ao unilateralismo americano.
A democratização da comunidade internacional, cujo paradigma foi o tra·
tado negociado com igual liberdade de consentimento entre os Estados, tevea
metodologia do diálogo codificada pela arte diplomática. Esta arte autonomizou uma área da hierarquia das potências, e da subordinação entre elas, onde
o diálogo foi substituído pela imposição com desenvolvimento em vários regi·
mes, tudo abrangido no vasto conceito de colonização.
288
TEORIA DO PODER
eriência actual dos fundamentalismos, com expressão aguda nos comeXP
' .
' d o d o ter!11curso contra os po d eres erraticos
que a d optaram o meto
b:tt~S e evidenciou o limite à tolerância e à ambição globalizante do fim da
,or1s!llº•
j\
bis~r;:~damentalismo, inimigo da democratização da vida internacional, tem
premissa a oposição proclamada insanável dos modelos culturais de comcolllºrnento, condicionamentos da racionalidade variável das decisões, e incluiu
port~ática internacional a questão da governabilidade do pluralismo, dos limi11ate
. d . . .
d d
.
da tolerância e os m1m1gos a emocrac1a.
cesTudo igualmente desafios da governabilidade democrática das comunidades
ais que foram designadamente enquadrados pelo relativismo de Kelsen
estadu '
(Lademocratie,
sa natu~e, valeur,_
Pa_ris,:988). Rec~r~emos um dos s~us t~x~os
ignificativos: "o domm10 da ma10na, tao caractenstico da democracia, d1stms e-se de qualquer outro porque, na sua essência mais profunda, não somente
~surne por definição, mas também reconhece politicamente e, pelos direitos
e liberdades fundamentais, pelo princípio da proporcionalidade, protege uma
oposição- a minoria ... Tal é o sentido verdadeiro deste sistema político que chamamosdemocracia e que não temos o direito de opor ao absolutismo político
senão porque ele é a expressão de um relativismo político".
o critério da tolerância, como recorda Patrice Rolland, assenta em ultrapassar a confiança com que Carl Schmitt entendia que o liberalismo democrático ignorava a ideia de inimigo, e aceitava apenas a de concorrência, porque a
tolerância transforma o inimigo em adversário. As circunstâncias aconselham
a não confundir a opinião com os actos, e a não confundir a tolerância com a
indiferença ou a habituação.
Na vida interna, como aprofundaram Habermas e Dewey, são o diálogo, o
debate, cada vez mais densos na sociedade de informação, que revelam princípiosde validade geral, e aplicações condicionadas pela cultura cuja importância
foidesignadamente recolhida no conceito de comunidade nacional.
Acontece que o facto do pluralismo, tornado sempre presente pela doutrinação de Rawls, é na circunstância cultural que encontra os limites mais rígidos para a tolerância, pelo que as sociedades políticas ocidentais de facto não
eliminaram sempre as colónias interiores, embora os valores do liberalismo, da
democracia, dos direitos humanos, orientassem o pensamento no sentido da convergência de padrões da maneira comum de a sociedade civil estar no mundo.
Mas assim como a globalização levou ao confronto de áreas culturais irredutíveis, impedindo que o mundo de múltiplas vozes de que fala a UNESCO seja
apenas de adversários e não de inimigos, assim também a circulação de pessoas,
mercadorias e capitais, muito sob a inspiração de uma teologia de mercado, está
a reproduzir, nos antigos espaços estaduais, as sociedades
cosmopolitas.
!ª
289
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A relação entre o fenómeno transestadual que agora se desenvolve em gu
e a mudança interna, sobretudo no espaço ocidental, leva a inverter os tererra,
de uma temática clássica. Foram séculos em que a presença dos ocidentaislllos
trópicos prendeu a atenção de teólogos, juristas, politólogos, mas entramo nos
milénio a lidar com o quadro da presençadostrópicosnaEuropa,designadam: no
pela dependência migratória da Europa em queda demográfica.
nte
O notável Gilberto Freyre fez circular os temas do lusotropicalismo, do ib
rotropicalismo, e do eurotropicalismo, mas não viveu o tempo da inversão de.
Os
• •
termos d a re fc
erenc1a.
O modelo europeu da cultura homogénea, que gradualmente alarga a cid
dania e a amolda aos grandes espaços em formação, depois de superar o moder
0
medieval do pluralismo das comunidades submetidas ao centralismo do pode
regressa às sociedades
cosmopolitas.
r,
Os fenómenos das colónias interiores, os milhões de imigrantes vindos do
sul e do cordão muçulmano que vai de Gibraltar à Indonésia, a frequência dos
incidentes violentos, tudo exige o regresso à meditação da tolerância, à preven.
ção activa contra o renascer dos mitos raciais e dos fundamentalismos culturais, à relação destas realidades com as crises económicas, que podem apelar à
facilidade das respostas securitárias, e ao fraccionamento da sociedade civil.
A UNESCO não se atrasou ao apelar ao estudo das novas condições do exercício da cidadania. Talvez mais preocupante do que o remédio securitário seja0
descaso em relação à mudança da sociedade civil.
b) A crise da sociedade civil nacional
É comum abordar a evolução do nacionalismo europeu e ocidental, tendo em
vista os excessos dos regimes políticos que designadamente foram responsáveis pela Segunda Guerra Mundial, e o culto das soberanias absolutas agora
em processo de desmobilização em consequência das crescentes interdepen·
dências mundiais.
Mas é necessário abordar outra face do problema que se traduz na crise
de uma política que secularmente procurou uniformizar os padrões cu!·
turais, e até étnicos, da comunidade submetida ao mesmo poder político,
adaptando um modelo observante e um resultado procurado, que é a comunidade nacional. Não será necessário recordar os grandes teorizadores desse
processo, que foram Renane Liszt, o primeiro mais atento ao processo histórico, o segundo mais inclinado pelas circunstâncias a considerar as afinidades étnicas.
De facto, as soberanias procuravam conduzir para um modelo convergente
de valores e condutas os grupos humanos que submetiam, e isso teve expressões
semânticas muito significativas: os reis chamaram-se católicos ou fidelíssimos,
290
TEORIA DO PODER
roclamaram a comunhão na fé, os conceitos estratégicos nacionais
P
ovos
- e a ass1m1
. ·1açao.
P , (11 a evange 1·1zaçao
1ra
1u
d
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· porque os Esta dos nac1ona1s
·
· sao
111c_ foram numerosos os casos e ex1to
Nªº mas não é escassa a adesão ao objectivo e à proclamação de o resulassos,
.
,
esc
sido obndo, para alem dos factos comprovados.
~~
1:1 ,
ortuno lembrar, nesta data marcada pela chamada globalização, que
. E feridos modelos ocidentais foram implantados no imaginário político dos
ca~s
~eos colonizados pelos europeus, sendo que o continente americano foi o
cr~::iro grande cenário dessa acção, com uma multiplicidade de soberanias
P'1 do norte ao sul do continente, proclamaram o valor da Nação.
querodaviaentramos no terceiro milénio com a evidência incontornável de
os genocídios, ou intencionais ou colaterais, devastaram os aborígenes que
quemos donos dos territórios, e que os sobreviventes em regra não integram a
er:clamada nação de cada um dos Estados soberanos existentes.
pr Do norte do continente americano sempre serão lembrados os iroqueses
de cujo drama foi deixado o testemunho de Tocqueville, ao divulgar a petição
ue, em fins do século XIX, dirigiram ao Congresso dos EUA para serem eludidadossobre se os últimos da sua raça também teriam de morrer.
Ainstituição que se demonstrou mais eficaz e vigilante nesta área, durante
século
passado, foi o BIT - Repartição Internacional do Trabalho, o orga0
nismoda Sociedade das Nações que teve uma trajectória mais sólida e se manteveinterveniente depois da criação da ONU.
Aproximou-se lentamente de uma perspectiva englobante dos aborígenes
dosEstados independentes do continente americano, e dos indígenas das colóniasafricanas, tendo como principais os temas da liberdade e direito de trabalho,de que foi expoente a Convenção
sobreo trabalho
forçadode 1930; pressionou a
adopçãode uma política social nos territórios não metropolitanos, formulando
váriasconvenções em 1947, onde a supressão de qualquer discriminação entre
trabalhadores, fundada na raça, cor, sexo, crença, pertença a um grupo tradicionalou filiação sindical, era repudiada, firmando uma orientação que viria a
dar sentido às intervenções do Conselho Económico e Social da ONU.
Terá vantagem aprofundar a acção posterior do BIT, mas sobretudo deve
notar-seque a distância entre essas propostas e os factos, na torturada América
Latina,tem hoje expressão gritante na saga do Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN), que compareceu na Praça do Zócolo, no centro da cidade do
México,depois de anos de luta, e vindo do reduto de Chiapas. Liderados pelo
famoso Comandante Marcos, proclamaram com simplicidade o objectivo de
terminar com "cinco séculos de infâmia".
Lucidamente, o antropólogo André Auburg nota que "o que pede Marcos não
é O mar para o beber. Organizando esta marcha, intima o Presidente Vicente Fox
.
291
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
a declarar que espécie de nação mexicana pretende construir. Marcos recJa
llla
simplesmente que os índios façam parte dessa Nação".
Por seu lado, Marcos declarou firmemente os seus motivos quando afi
1
mau o seguinte: "De todos os habitantes do México os índios são os lll ~esquecidos. São considerados como cidadãos de segunda classe, mas in ª~s
modos para o país. Ora nós não somos restos. Fazemos parte de povos c:ouma história e uma sabedoria milenárias. Povos que, mesmo espezinhadoslll
esquecidos, não morremos. Aspiramos a ser cidadãos como os outros, quere~
mos fazer parte do México, e isso sem perder as nossas particularidades, se
sermos obrigados a renunciar à nossa cultura, numa palavra, sem deixarlll:
8
de ser indígenas".
Esta situação multiplica-se pelo globalismo do que já foi chamado inútil"
uma expressão que pretende abranger a série de conflitos cuja causa está na~
exclusões de várias espécies. As identidades étnicas ou tribais queixosas c01110
em Cabinda ou na Costa do Marfim, a desagregação imperial com expressão
em desordem que abrange a Arménia, a Geórgia, a Tchetchénia, os genocídios
como aconteceu com os ibos, tudo são fenómenos de exclusão que de maneira
geral seguem pela linha horizontal dos 3A (Ásia, África e América Latina).
Muita desta fenomenologia anda ao cuidado de uma tropicologia que tenta
compreender, depois dos factos, o passivo da herança deixada pelo império
euromundista em toda essa vasta zona do globo que apenas recentemente ascendeu ao protagonismo internacional. Uma área onde as estratégias nacionalistas,
desenhadas tendo como modelo os conceitos ocidentais, orientaram projectos de poder que não tinham qualquer realidade nacional para lhes servir de
suporte.
Ao contrário, pelo norte do mundo, sede das antigas soberanias coloniais,
a afirmada ambição de correspondência das comunidades políticas ao modelo
da Naçãofoi geral, com desmobilização dos conceitos definidores do nacionalismo político.
Acontece porém que o tão presente globalismo, que sobretudo corresponde
a uma espécie de teologia de mercado, desenvolveu uma tal mobilidade das
populações, em busca da subsistência, que nesta data a situação parece invertida. Ao mesmo tempo que em territórios como a África do Sul e o Zimbabué
renascem os projectos da uniformização étnica, mobilizando as cóleras contra
os europeus que recordam a antiga subordinação colonial, os trópicos instalam-se no Norte do mundo, e particularmente na Europa.
Durante séculos, a acção colonizadora ocidental nos trópicos orientou-se
pela ideia de que as populações locais poderiam ser objecto de uma moldagem
assimiladora, reconhecendo tarde que os modelos culturais são mais resistentes
do que as substituições modernizantes das técnicas. Os progressos materiais
292
TEORIA DO PODER
~oforam, em vários territórios, acompanhados pelo sincretismo cultural, prosituações de discriminação ou apartheid.
duZNestecomeço de milénio os trópicos instalaram-se nos territórios ricos do
Norte do m_und?,.obrigando a rever muita da conceptologia organizada antes
do fim dos 1mpenos.
Em primeiro lugar, pela acção convergente da desordem política instalada
m vastas regiões desse antes chamado Terceiro Mundo, e depois pelas exigêne·asda economia de mercado, a imigração para o espaço europeu tem aumen~:do em termos de colocar em discussão o antigo modelo de uniformidade
cultural. Os Estados são obrigados a encarar uma definição multicultural e
multiétnica da sua população, um facto renovado e estrutural.
A experiência de meio século tem esta circunstância por irreversível, e
eoquanto que pelo vasto continente americano os restos de povos, e os antigos acrescentamentos demográficos, exigem a integração política em pé de
igualdade, na Europa são os trópicos que se instalam multiplicando as diversidades étnicas e culturais para as quais por seu lado contribui a liberdade de
circulação comunitária.
A Europa, ao tentar definir uma Nova Ordem descobriu-se múltipla, e ao
reconstruir a economia de mercado encontrou-se semeada de colóniasinteriores,
maisidentificadas etnicamente do que pelos modelos culturais.
Alguns valores fundamentais da cultura ocidental, que também estiveram
presentes no período imperial euromundista com violações frequentes, foram
trazidos para o primeiro plano da temática da Nova Ordem em formação. Insistimos em que as mesmas causas dominantes da discriminação nos trópicos
coloniais,e que a UNESCO identificou no histórico inquérito de 1950, acompanharam a imigração dos trópicos para o Norte afluente, industrializado e
detrabalhoe as relações
sexuaisinter-étnicassão as mais
rico,de modo que as relações
civilintegradaepacífica.
perturbadoras do pretendido modelo de sociedade
É inevitável que a tipologia dos conflitos seja revisitada, dando voz à que
alguns autores chamam a outraEuropa,a das minorias que não tiveram voz na
vigênciadominante do projectadoEstadonacional.
Destaca-se neste plano a CartaEuropeiaparaaprotecçãodaslínguasregionaisou
minoritárias
(Estrasburgo 05/11/1992), que entre nós teve expressão no reconhecimento do mirandêscomo língua nacional, e que também cobre o facto das
sociedades nacionais transfronteiriças politicamente divididas.
Mas é a mobilidade das populações que sobretudo reclama atenção, porque
é a principal fonte dos contactos multiculturais e étnicos com todos os riscos
dos conflitos raciais e das discriminações.
A questão dos mitos raciais é certamente a mais inquietante, e daqui a vigilância da ComissãoEuropeiacontrao Racismoe a Intolerância(ECRI), atenta aos
11ª indo
293
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
procedimentos intra-europeus sobre o racismo, a xenofobia, o anti-semitis
e a intolerância, na perspectiva da protecção dos direitos humanos. Os faclllo
considerados pelos seus relatórios dizem respeito à raça, à cor, à língua, à r tfs
gião, à nacionalidade e origem nacional ou étnica.
e 1•
Não pode ignorar-se que a discriminação racial é a mais ameaçadora da
civil, como foi reconhecido pela Resolução 2106 (XX), de 21 de DezembroP~z
e
1965, da Assembleia Geral da ONU.
Progressivamente, outros tópicos convergem no sentido de alguma orien.
tação ser adaptada na área de exercício do poder político, e nesta perspecti
talvez seja útil aproximar as temáticas da Carta SocialEuropeia,um tratado
Conselho da Europa assinado em 1961, e revisto em 1996, na linha da Convenção
paraa Protecção
dosDireitosHumanoseLiberdades
Fundamentaisde 1950; a Conven~
sobre
çãoEuropeiasobreoEstatutodosTrabalhadores
Migrantes,de 1977; a Convenção
a Participação
deEstrangeiros
na VidaPúblicaa NívelLocal,de 1992; e finalmente a
ConvençãoEuropeiasobreNacionalidades,
também do Conselho da Europa, assinada em 6 de Novembro de 1977.
Da legislação interna destacamos a que diz respeito às condições de entrada
permanência, saída e afastamento dos estrangeiros do território nacional,~
último sendo o Decreto-Lei n 2 4/2001, de 10 de Janeiro, acrescentando as preocupações, de origem religiosa, tornadas públicas sobre a ponderação na abertura das fronteiras.
Esta problemática parece reconduzir-se a um núcleo central que é o da cidadania, um dos conceitos fundamentais do direito público, e hoje também a
exigir revisão. Recordemos que a cidadania está ligada à nacionalidade, mas
historicamente não se verifica necessariamente a coincidência entre os dois
círculos, quer por exclusão de etnias (caso dos indígenas das antigas colónias,
e dos aborígenes do continente americano), quer pela discriminação dos sexos,
quer finalmente pelas exigências da maturidade.
As revoluções liberais fizeram da cidadania uma defesa da dignidade
humana, no que se refere à sua face defensiva contra os abusos do poder, e um
instrumento de participação na gestão política.
Uma evolução, que conviria lembrar, designadamente sistematizada por
Marshall, faz considerar três dimensões dessa cidadania, a civil, a política, e a
social, tendo como ponto de partida as declarações de Filadélfia (1776) e a da
Declaração Francesa (1789).A primeira, eminentemente liberal quanto à ideo·
logia, diz sobretudo respeito às liberdades pessoais de pensamento, de associa·
ção, de religião, e aponta para uma sociedade contratualizada; a segunda, que
Pé rieles considerava a mais nobre componente da cidadania, diz respeito à capacidade de escolher e ser escolhido para o exercício da soberania, e enriquecer
concepções de identidade nacional; a terceira, mais apoiada na solidariedade,
;a
294
TEORIA DO PODER
lidou-se no século XX, levou a desenvolver o Estado providência, que teve
consoos seus condicionamentos as devastações das guerras mundiais, as descoent~:ações,as confrontações sociais, a intervenção sindical, a crescente urbani)oJl~ as migrações internas e externas, a nova função da opinião pública.
zaçao,
parece ter de reconhecer-se que, ao mesmo tempo que a definição substan. da cidadania se alargou pelas três referidas vertentes, a civil, a política, e
t1"ªcial também se foi debilitando a sua vinculação original ao Estado sobeaso '
ran~a origem, as diferenças sociais e políticas internas não tinham expressão na
aldadevertical e exclusiva à soberania, absoluta por definição, exercida dentro
1
:e uma fronteira destinada a garantir a inviolabilidade da jurisdição interna.
Mas grande parte das causas que desenvolveram a vertente social da cidadania, também se reflectiram causalmente na debilitação do Estado soberano
clássico,obrigado a reconhecer a necessidade de integração nos grandesespaços
políticos, a caminho de terem uma ainda mal definida identidadepolítica,como
aconteceu com a União Europeia.
assinado
Textos como as referidas ConvençãoEuropeiasobrea Nacionalidade,
em Estrasburgo em 6 de Novembro de 1987, e a ConvençãosobreParticipação
dosEstrangeiros
na VidaPúblicaa NívelLocalassinada na mesma cidade em 5 de
Novembrode 1992, dizem respeito a este fenómeno. A CartadeDireitosda União
Europeia,
aprovada no Conselho de Nice, é o documento mais expressivo da evolução,que terá esta evidente consequência estrutural: a necessidade de articular
a cidadania
verticalmente fiel ao Estado clássico em perda de soberania, com a
cidadania
que se traduz em fidelidade ao grandeespaçopolítico de integração.
Este facto dinamiza uma realidade nova que é a da sociedade
civiltransfronteiriça,progressivamente apoiada na livre circulação de pessoas que vai reduzindo
asfronteiras geográficas a simples apontamentos administrativos. E que aponta
também para uma dissociação das várias componentes da cidadania, para além
da sua evolução desencontrada no tempo.
É por isso que análises como as de Marshall (1950), Bottomore (1996), Mozzinacional,vão sendo acompanhadas
cafreddo (1997), mais vinculadas à sociedade
pela perspectiva da sociologia relacional que permite dar acolhimento racionalizado a esta evolução.
De facto, a nova realidade da sociedadeciviltransnacional,que cresce de evidência nos grandesespaços,
desenvolve-se em linha de apoio às respostas que os
excluídos estão a dar ao globalismoeconómico,
como recentemente aconteceu no
Canadá com os violentos protestos contra a instituição do espaço económico
americano, patrocinado e desenvolvido pelos EUA.
Causas homólogas das que levaram à autonomização da vertente social da
cidadania nacional, apontam para uma terceira definição: a definição de uma
295
....
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cidadaniasocialuniversal,directamente apoiada na Declaração de Direit
ONU, e de resposta ao mundialismo do mercado e dos seus por vezes ch:s da
dos efeitos colaterais, que são os da exclusão, o da exploração de comun~a1
des e indivíduos, o da criminalidade internacional que designadamente e
uma revisão da organização internacional contra a escravatura e formas
valentes.
q 1O facto relevante, que tem a mais significativa expressão na doutrin
prática das intervenções humanitárias, é que, em função da Declaração
versai dos Direitos do Home~ se vai definindo u~a :idadaniasocialuniver:~que ganha corpo e desenvolvimento sem dependenc1a da evolução das cl, '
sicas vertentes políticas da cidadania nacional, mas como resposta à necesas_dade de defesa da dignidade humana, sem diferenças de etnia, de religião,~~
cultura, de lugar.
Um conceito que arma os direitos do Homem contra os passivos da globalização, à margem dos Estados e dos grandes espaços em que estes tendem
para se agrupar. A ConferênciaMundial contraa discriminaçãoracial,xenófobia
e
intolerância(Durban, 2001), orientou-se realmente por este conceito, que todavia aguarda expressa formulação, para além das discussões sobre a natureza
puramente ocidental da Declaração Universal dos Direitos da ONU, assumindo a necessidade de introduzir nas definições o valor das especificidades
culturais. A cidadaniasocialuniversal,de algum modo correspondente à terceira
geração de direitos do Homem, separa -se da soberania clássica para agrupar
os direitos individuais à paz, ao ambiente, ao património comum da Humanidade, à igual dignidade na sociedade civil transfronteiriça e transnacional a que a mundialização conduziu, e que não pode ser violada por nenhum
poder político. 250
?ª-
/!:
t/:
250
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CPLP,ComunidadesdosPovosdeLínguaPortuguesa,I.B.R .I., Brasília, 2001.
296
TEORJA DO PODER
§3º
A RacionalizaçãoSistémica
tlletodologia dos sistemas
1,f,pacífica, como logo resulta da pluralidade de perspectivas identificáveis,
J,jaO
eão pelos factos mais relevantes na dinâmica das relações internacionais.
ª_opÇ}ificando,o método adoptado pode concentrar-se no estudo dos agentes
su:nP
. - co 1ect1vas,
.
. d'viduais
que aparecem em representaçao- de orgamzaçoes
como
,n;stado, as multinacionais, as internacionais políticas. Esta visão implica a
0
éviaadopção de uma matriz voluntarista, que seria documentada no estudo
~: própria História, a qual era dividida em períodos marcados pelo reinado ou
hefia política obtida a outro título.
c Cada época, ou o comportamento de cada entidade colectiva, são assim
caracterizadas pela personalidade e comportamento do agente. Ainda agora,
autores na linha de Duguit insistiram em que o realismonão identifica senão
homens
a relacionarem-se entre si, e nunca entidades abstractas como o Estado
ou a multinacional. perspectiva, dominante no jornalismo,faz apelo às leis da
políticas, como o bonapartismo, o maoísmo,
psicologia,tenta por vezes tipologias
0 gaullismo, não para designar uma doutrina, mas sim para designar um padrão
ao qual compara outros padrões individuais de comindividual
decomportamento
portamento, fazendo análises e previsões quanto às decisões que são de esperar.
Asbiografias são uma fonte importante de informação para este método.
De facto, é o mesmo método que se torna mais complexo quando se assume
queogrupoé o agente mais frequente do processo político interno e internacioexistem porta-vozes de
nal,porque, entende-se, não existem agentesindividuais,
grupos de indivíduos ligados por interesses, convicções, objectivos. Não chega
analisar o comportamento do representante,
é necessário analisar o comportamento do grupo, porque se intercondicionam, pelo que a sociologia faz a sua
intervenção: grupos de interesses, grupos de pressão, grupo director. É todavia
a interacção das personalidades individualizadas, com uma resultante de compromisso
mais ou menos voluntário, que nessa perspectiva permite descrever,
compreender e prognosticar. Um governo não é uma entidade com um comportamento pautado abstractamente por regras constitucionais, é um grupoque
varia de comportamento conforme a sua composição real, dentro do mesmo
condicionalismo constitucional, partidário e programático.
ou grupal,que são compatíveis com as várias
Às metodologias individualista
matrizes ideológicas, opõe-se uma metodologia instituciona/ista.
Esta parte da
convicção de que a vida social exibe duas referências fundamentais, os homens
e as ideias: os primeiros perpetuam-se pela reprodução,
as segundas pela tra297
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
dição,palavra que significa a passagem de mão em mão, neste caso de ger ,
em geração. Para se perpetuarem, as ideias organizam um conjunto de Illª~ao
humanos e materiais ao seu serviço, de modo que a instituição, na sua fo<:!Ios
mais perfeita, é uma ideiadeobraou deempresa,queserealizae duranum meiosot~a
Uma Universidade, uma Nação, uma Igreja, correspondem a tal fenóill eia/.
A instituição tem uma objectividade,
isto é, um conjunto de regras pelas qua~no.
seus membros se regem; uma hierarquia,que corresponde a uma distribu/ ~s
de funções; uma intimidade,que se traduz na pressão e marca que impriille Çao
membros da instituição; uma ideiadirectora,que torna funcionais ou instrurnnos
tais as vontades individuais.
en.
As instituições têm uma personalidade diferente da dos seus membros
vontade que se exprime em seu nome não coincide com a vontade que os age'~
tes exprimiriam para servir interesses próprios, a personalidade individunJ
tem importância, mas não existem homens insubstituíveis para a instituiçã:
que dura no tempo para além dos indivíduos que morrem e são substituídos'
•
Esta é a doutrina de Hauriou, Prélot e Renard 251 •
Este último sintetiza dizendo que "a instituição encontrou a sua força vital
na pessoa humana, e a pessoa humana recolheu-se no seio da instituição".
Nenhuma destas posições metodológicas pode considerar-se excludente
das outras, porque o que cada uma faz é dar proeminência a um tipo de agente
das relações políticas internas e internacionais, mas nenhuma pode ignorar a
pluralidade de tipos de agentes que são intervenientes. O seu peso relativo tem
que ver com a teoria da causalidade nas ciências sociais, mas todas são formas
de intervenção voluntarista num processo condicionado por muitos factores
naturais geográficos, económicos, ecológicos, sociais, tipo de sociedade, etnia,
religião, modelos culturais.
Aquilo que a proposta da metodologiasistémicavem trazer de novo é um
modelo de racionalização de todos esses factores complexos, ajudando a apreender a realidade, descrevê-la e prognosticar os comportamentos dos agentes e
do conjunto.
A utilização do método é antiga, mas a definição operacional do conceito
varia conforme os autores e as épocas. Em primeiro lugar, o conceito sistémico
um ponto de vista segundo o qual certem de ser aproximado do organicismo,
tas entidades sociais, como poderiam ser as instituições, são suficientemente
orgânicas para serem compreendidas em função das leis que regem os organismos vivos. Na forma mais razoável, terá de entender-se que se faz uma aplicação
analógica dessas leis. Trata-se de um ponto de vista geralmente sustentado por
concepções políticas conservadoras.
251
Adriano Moreira, CiênciaPolítica,Lisboa, 1995, p. 56; idem, DireitoCorporativo,Lisboa, 1954.
298
TEORIA DO l'ODER
davia, 0 organicismo, entendido com inteiro repúdio da aproximação da
fo cial da vida orgânica, é uma variante do holismo,isto é, a suposição de que
\,id:t~ºersoobedece a uma tendência no sentido de sintetizar as unidades em
o ll~~~adesorganizadas. Hegel chamava-lhe "a transição da quantidade para a
cotª/dade". Daqui se parte para a afirmação de que a sociedade é alguma coisa
1
q~ª nte da soma dos indivíduos que lhe pertencem, pelo que tem caracte. e as mst1tu1çoes
. . . - que a caracterizam,
.
d1fere
, . as e capac1"dad es espec1'fi1cas.As 1eis
stl
· d"1v1
'duos.
íl c assam e su bmetem os m
ulrraP
d
b
.
• concor d.anc1a,
• pensa d ores corno Bur ke
peste mo o, em ora sem inteira
ontheRecent
_97),que é um dos fundadores do conservadorismo (Rejlections
729
~ volutioninFrance,1790), Hegel (1770-1831), fundador do moderno idealismo,
eJgunsmarxistas, concebem que o homem recebe parte da sua maneira de ser
~: totalidade histórica a que pertence: a Nação, a classe, a Igreja. A convicção
de que o comportamento da parte apenas pode ser explicado por referência às
regrasque governam o todo, é um corolário desta atitude.
Ametodologia sistémica nas ciências políticas decorre porém directamente
dacibernética,
que é o estudo do controlo interno dos sistemas em que as várias
operações interactuarn reciprocamente e sistematicamente, como acontece
nasmáquinas que possuem a chamada inteligência artificial.
o termo parece ter sido inventado por Norbert Wiener e Arthur Rosenthal,
admitindo-se que os sistemas podem ser mais ou menos imunes às influências
externasou ambiente, e que é possível enunciar algumas leis de valor geral sobre
0 funcionamento dos sistemas. A expressão feedbackexprime o retorno do output
do sistema, como input, de natureza positivaou negativa,exprime os apoios ou
exigênciasrecebidos. Os primeiros são estabilizadores do sistema porque reduzemas exigências, e os segundos podem ser destrutivas pelo efeito contrário.
Nabiologia, o critério foi enunciado por Bertahanffy, que o usou para os seus
trabalhos sobre a célula, partindo para a teoriageraldossistemasque inspirou a
fundação, em 1956, da Societyfor the Advancementof GeneralSystemsResearch.
Aperspectiva parece ter sido importada para as ciências sociais porTalcott Parsons, célebre sociólogo americano, e aplicado nos domínios das ciências políticas por David Easton e Karl Deutsch 252•
Pelo que toca às relações internacionais, a expressão sistema também tem
mais de um sentido para além daquele que lhe corresponde como designação
de uma metodologia de aproximação.
Os historiadores falam em geral de sistemasinternacionais
para darem a fotografia de uma área política em certa época, descrevendo as relações diplomáticas, ou outras, estabelecidas e o seu fluir. Fala-se assim do sistema do Tratado
u,
Adriano Moreira, CiênciaPolítica,cit., p. 98 e sgrs .
299
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACION AIS
de Westefália do século XVII, ou do sistema do concerto das nações do .
XIX, ou do bipolarismo do século XX.
sec1.11
0
Não se trata porém de investigar regrasdo funcionamento inerentes
tema, ou de modelos de funcionamento. Ora, a noção de sistema é us: sis.
convicção de que é possível afirmar a existência de "relações regulares ª na
o comportamento dos Estados e o tipo de ambiente em que se encontra e~tre
rn is1
.
No modelo de Easton, ca da agente esta dua 1apresentar-se-ia condicionaa ·
ºda
seguinte maneira 25.i.:
SISTEMA
POLITICO
SISTEMA ECOLÓGICO
SISTEMA BIOLÕGICO
SISTEMA DE
PERSONALIDADES
SISTEMAS SOCIAIS
AMBIENTE
INTER IOR
...
RETRACÇÃO
DA INFORMAÇÃO
..
.....
~,-.
.."
5
UJ
z
UJ
Q.
;!;
ãi
CONVERSÃO
DAS
EXIGÊNCIAS
EM OUTPUTS
:.
<
SISTEMAS POLITICOS
INTERNACIONAIS
SISTEMAS
INTERNACIONAIS
ECOLóGICOS
·- -.
AMBIENTE
EXTERIOR
·-.-.
cn
UJ
o
ê3
ir
~
RETROACÇÃO
DA INFORMAÇÃO
SISTEMA SOCIAIS
INTERNACIONAIS
Trata-se de verificar, por exemplo, que os Estados não se comportam igualmente conforme o ambienteé bipolar ou multipolar. A análise sistémica fundamenta-se portanto na distinção entre o sistemae o ambienteou contexto.O sistema
é formado pelo conjunto de elementos ligados por um feixe de relações, interdependentes, e com uma fronteira, que o separa do campo global das forças
(actores e factores) que se situam fora das relações que se pretendem estudar
(ambiente ou contexto).
Para o estudo das relações internacionais, ou reduzimos o sistema às relações entre os governos dos Estados (Morton Kaplan), ou autonomizamos subsistemas,e então temos um ambienteexternoa considerar, ou estudamos o sistema
internacional
global, e então admitimos que existe ambienteinternomas não existe
ambienteexterno.
Jacques Huntzinger, cit., p.159 .
Easton , A SystemsA11alysis
of PoliticalLife, N.Y.,1967. ). W. Depierre, L'A11a9•se
desSystemcsI'olitiques,
Paris , 1973.
1.<3
1..
300
TEORIA DO PODER
ndo a orientação de Raymond Aron, uma aproximação sócio-histórica
seg~lemas do sistema rejeita análises apriorísticas e parte dos exemplos fardosrºs pela experiência de sistemas do passado. Por outro lado, porque iden11ec1 a guerracomo facto autonomizador das relações internacionais, Aron
cific?U
0 critério para estabelecer a fronteira do sistema nestes termos: "Um sis·
1e' constitui
· 'd o pe 1as um"dad es po l'1t1cas
. que mantem
• re 1ações
llsaria
internac1ona
relllªlares,e que são susceptíveis de serem implicadas numa guerra generaliref,, Não aceitava que fosse possível prever os acontecimentos diplomáticos
za ª~sà análise do sistema, mas este método permitia identificar os constran~açentos sobre o Estado e a parte que o determinismo social desempenha
girnrelaçõesinternacionais. Historicamente, identificava o exemplo fornecido
- entre as monarquias
. europeias
. cl'asszcas,
.
nas
lascidades
gregas,o exemp 1o das re 1açoes
Leste-Oestedo século XX.
peociedade europeia do séculoXIX, as relações
5
a .MortonKaplan é mais radical255• Em vez de uma perspectiva sócio-histórica,
ornaa posição de proceder a uma análise a priorida teoria geral dos sistemas
: da análise sistémica. Não esconde o carácter imperfeito dos esquemas apriorísticos,mas considera que os elementos históricos disponíveis são pobres, e
que,portanto, a teorização das relações internacionais exige que se parta de
um quadro teórico para chegar à realidade. Esse quadro teórico é um sistema
observante,
construído para responder a estas perguntas gerais: porqueé queum
°
sistema
sedesenvolve,
comofunciona o sistema,e porqueé queo sistemadeclina.
Identificou como variáveis dos sistemas as regrasessenciais
dosistema,as regras
declassificação
dosactores,as capacidades,
a informação.
As regrasessenciais
do sistema
descrevem
a relaçãoentreos actoresou agentes,cujo comportamento se considera
maisdependente da natureza do sistema do que da sua espontaneidade; as
procuram exprimir a capacidade do sistema se adaptar
regrasde transformação
e de
àsmudanças do ambiente, pelo que cada sistema terá regrasdetransformação
adaptação;
finalmente os caracteres
estruturaisdosagentese a hierarquiaque existe
entre eles, a qual influencia o seu comportamento .
Fazendo uma aplicação ao sistema internacional em que vivemos até 1989,
e que ajudará a compreender o método, e também o muito que tem de simplesmenteoperacional e conveniente, Marcel Merle especifica os caracteres do sistema internacional nos termos seguintes:
1- É um sistema global e fechado sobre si mesmo. Esta primeira afirmação
baseava-sena distinção entre o sistemae o ambienteou contexto.Parece apenas
o reconhecimento da evidência, mas esta evidência implica também verificar
que a mudança de dimensãoprovoca uma mutação nas relações entre os elementos componentes do sistema. A mudançaqualitativaprogressiva traduziu-se na
tlS
Kaplan,Processa11dSystemi11I11temationalRelatio11s,
N.Y., 1967.
301
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
definição de um teatro estratégico mundial, na instantaneidade da info
ção, na mundialização dos mercados, na participação de uma crescente rltta.
de centros de decisão política que se vão ligando a órgãos de diálogo, coo rede
ção e decisão. Pode talvez resumir-se falando na simultaneidadeda confroPera.
de todos os agentes das relações internacionais. Afirma Mede que o sisttªfiio
eilla·
fechado no sentido de que ocupa todo o espaço terrestre, sem zonas margi _e
de expansão livres de conflito possível.
na,s
Z - O facto de o sistema não ter ambiente exterior implica uma intensifi
sobreopatrimóniocomca.
ção do domínio dos actores sobre os espaços, e expressão
da Humanidade,levando a uma maior complexidade das relações referente "111
mar alto, aos fundos marinhos, ao outer-space,à ecologia. Mas na ordem ps
0
•·
tica, a alteração qualitativa também é de monta.
A função que o limesromano exerceu em relação aos bárbaros, foi també
pelo concei~
desempenhada pelo conceito de infiéis,pelo conceito de selvagens,
0
de Estadosburguesesou de Estadoscomunistas,pela Muralhada China.Para alé
dessas fronteiras ficava o ambienteexterno ao sistema de onde vinham ame:
ças, exigências, colaborações e apoios. Isto desapareceu ou tende para o rápido
desaparecimento em face da mundialização. O fluxo de exigências e apoiosé
de um ambiente interiorizado. Também não existem agentesexternos.
3 - Sintetiza Mede: "O exemplo da distribuição dos recursos e da repartição dos poderes mostra bem que o sistema internacional absorveu o ambiente.
De então em diante podemos extrapolar a partir destas constatações e afirmar
que as relações internacionais se desenvolvem em circuito fechado: os inputsque
afectam o ritmo (por exemplo a pressão demográfica, a difusão das ideologias,
a aspiração ao bem-estar e ao desenvolvimento) partem de diversos pontos situados no interior do sistema (o que permite falar em ambiente interno); quanto
aos outputs,quer dizer as reacções do sistema, não mais poderão, como aconteceu muitas vezes no passado, escapar à cadeia de retroacção para transferir
a outros os encargos necessários à satisfação da demanda. Por outras palavras,
o sistema internacional, pelo facto do seu carácter global e fechado, não fecha
mais as portas às suas contradições. É obrigado a assumi-las ele próprio, o que
submete cada uma das suas unidades constitutivas a uma pressão muito mais
forte que no passado" 256 •
4 - O sistema é heterogéneo
porque o feixe de relações contínuas e não-intermitentes entre os seus elementos, sendo de evidenciar a informação simul·
tânea, liga intervenientes de poderdesigual.Acresce a diversidade de tiposde
agentes,porque ao lado do Estado é necessário colocar as organizações
intemacio·
políticas,as multinacionais,os poderesespirituaisins·
naisestaduais,as internacionais
;?
25
''
Merle, cit, p. 333.
302
TEORIA DO PODER
. l'zados,
os podereserráticos
ou, de maneira geral, as forças transnacionais.
I
•
c1ona
fi
d'
· a to d as as espec1es
' · d e actores,
1
ptt 'd riedades e con rontos 1zem respeito
sob ª nas aos Estados. Algumas vezes definem-se grandesespaçosinterméoã0 apr: 0 velho Estado e o mundialismo, como são as alianças militares per-
' ·
·
d os Esta d os Amencanos,
·
1 ent s ou os espaços econom1cos:
uJ'os
Orgamzação
mane~teaç'
ão de Unidade Africana, Comunidade Económica Europeia, NATO,
organtZ
de Varsóvia.
pac;a_por isso, a mundialização do sistema tornou mais difícil e complexa a
A falta deste é também uma caracterísem de um mecanismoregulador.
inontag
.
.
. do sistema que se formou. E aqm que tem actuahdade o pensamento dos
ct~~osProjectistas da Paz, e as teorias sobre o estado de natureza. O mais próv~ 0 de um mecanismoreguladorinformal foi durante meio século o verdadeiro
x•~omíniode responsabilidade EUA-URSS, agora em revisão desde que se deu
'º;rnplosãoda URSS. O sistema entrou em disfunção.
ª Esta aproximação é diferente da abordagem sócio-histórica de Raymond
Aron,mais relativista, mais operacional e menos dogmática. Mas foram comlernentaresa partir de alguns traços metodológicos comuns: ambos recorrem
tipologia, e procuram determinar as regras do seu funcionamento, Aron por
urnprocesso histórico, Kaplan por via lógica e apriorística; ambos admitem a
possibilidadede detectar regularidades no comportamento dos agentes; ambos
admitem que os sistemas são finalmente controlados por uma co-responsabiJidadedos mais poderosos (oligopólio); admitem a pluralidade de tipos de sistemasinternacionais.
Kaplan,por seu lado, estabeleceu seissistemasracionais
de relações internacionais,dois históricos(século XIX) e quatronominaisporque são intelectualmente
constituídos ou, noutra terminologia, sistemasobservantes.
Tais sistemas são: de
veto,de equilíbrio,bipolarflexível, bipolarrígido,universale hierarquizado.
No sistemadevetocada agente tem o poder de bloquear o sistema, mas também cada agente tem o poder de resistir à pressão do veto. O sistema de equilíbriodepoderescaracteriza-se pela multipolaridade que se organiza para manter
umabalança de poderes equilibrada. O sistemabipolar
flexívelfaz coexistir agentes
e actores supranacionais, como as alianças, e actores universais como
estaduais
a ONU. Se os dois blocos tendem para uma hierarquização interna, também
o bipolarismo se torna rígido, fazendo desaparecer oa agentes não-alinhados
admitidos ainda pelo bipolarismo flexível. O sistemauniversalé um modelo confederal que confere ao agente universal o principal papel: este sistema exige
uma grande homogeneidade do meio internacional, e uma relação de solidariedade entre os agentes e o agente universal. Finalmente, o Estadouniversal,
objectivo dos impérios, seria o sistema hierarquizado, e portanto com uma centralização muito maior do que a do sistema universal de inspiração confederal.
r
303
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Na convicção de Kaplan, estes modelos devem abranger toda a experiê .
histórica, a realidade da conjuntura, e o futuro. Coloca assim um limite nc,a
fundamento, à criatividade da história, o que não acontece com a aborda' selll
gelll
de Raymond Aron.
2. Aron e Kaplan: o funcionamento dos sistemas
A dualidade das abordagens referidas, a sócio-histórica e a racionalista, leva
um afastamento nítido, não obstante as referidas atitudes comuns, quando a
trata de enunciar as possíveis regras de funcionamento dos sistemas. Para R se
ay.
mond Aron, muito consciente sempre das limitações da nossa capacidade d
racionalizar as conjunturas, não é possível chegar à formulação de regras gerat
de funcionamento dos sistemas, apenas é possível racionalizar cada sisterns
concreto, historicamente vigente, e assim mesmo limita-se à análise do sistem:
multipolare do sistemabipolar.Para cada sistema procura estabelecer o padrão
da relação de forças e o carácter homogéneo ou heterogéneo do sistema.
A primeira indagação, relação
deforças,destina-se a averiguar a hierarquia dos
poderes intervenientes, e a repartição das forças entre os agentes hegemónicos
e a multipolaridade
correspondem
e entre estes e os secundários. A bipolaridade
aos dois grandes tipos de relação de forças.
O carácter homogéneo ou heterogéneo do sistema diz respeito à definição
ideológica
dos intervenientes: se o princípio é o legitimismo, o sistema é homoo sistema é heterogéneo.
A homogéneo; se uns são legitimistase outros democráticos,
geneidadeprovocaa moderação,
a heterogeneidade
provocaa conflituosidade.O sistema
europeudo séculoXVIII foi homogéneoe multipolar,enquantoque o do séculoXX foi
bipolare heterogéneo.
No sistemapluripolarpodeaparecero fiel da balança, o quenão
épossívelqueaconteçano bipolarismo.
Porseu lado,MortonKaplanprocuradeterminaras regrasessenciais
para o equilíbriode cadasistemaidentificado, as regrasde transformação
e as estruturasde cada
agente.
Quanto ao sistemamultipolar,apura seisregrasque considera rigorosas e aplicáveis a todos os actores desse sistema: 12 cada agente procura realizar os seus
objectivos estratégicos sem subir aos extremos da guerra, porque esta pode
desequilibrar o sistema (concerto europeu do século XIX);211quando necessário para a protecção dos seus interesses, cada agente recorrerá à guerra (Europa
dos séculos XVIII e XIX); 3 2 a guerra visa realizar o interesse e não eliminar
outro agente, porque o número de elementos tem relação com o equilíbrio do
sistema; 42 luta contra a instauração de uma hegemonia dentro do sistema;
52 recusa um agente supranacional, regra que complementa a anterior no sentido de manter o equilíbrio do sistema (luta contra o projecto napoleónico);
62 reintegra os vencidos no normal posicionamento do sistema, evitando a evo304
TEORIA DO PODER
para o bipolarismo (recuperação da França vencida pelo sistema do Conso de Viena de 1815).
caracteriza-se por dois blocos que se impõem, pela
gre~ sistemabipolarmaleável
. arquiado poder, aos restantes agentes secundários. Se os dois blocos se manh'.elí
sem a supremacia
de um deles, as regras de funcionamento aproximam-se
ce!lldo modelo multipolar. Se uma hierarquia acaba por ser estabelecida, as
das
.
' ºdo.
as passam a ser as d o bºzpolansmo
ng1
•
!llǪ 0
re~s regras comuns a todos os sistemas bipolares maleáveis são estas: competi•o pela supremacia de cada um dos blocos; cada bloco subordina os objectivos
~asagentes económicos aos seus interesses, e procura subordinar os do bloco
-~alaos interesses do suposto agente universal; cada bloco procura aumentar
1
: sua clientela de aliados, mas cultiva a tolerância para com os não-alinhados
ara que se conservem nesta situação. O sistema é muito instável e a evolução
Podedar-se quer para o multipolarismo quer para o bipolarismo rígido. A estahilidade do bipolarismo repousa_ essencialmente no equilíbrio do poder, que
pode ser o equilíbrio do terror. E evidente que a multipolaridade tem o risco
por exemplo da proliferação horizontal das armas nucleares e a multiplicação
de conflitos limitados. Mas o bipolarismo parece exceder em riscos todos os
sistemas.As hipóteses que são formuladas nesta linha de análise, sobre as vantagens e riscos comparados do bipolarismo e do multipolarismo, passam em
regrapela extrema abstracção lógica, que procura fazer intervir uma suposta
maturidade dos agentes no cálculo dos riscos e dos ganhos derivados da subida
aosextremos da guerra. Nessas hipóteses não cabem as novas ideologias agressivas,os nacionalismos, os fundamentalismos, o medo, a competição, o racismo,
o conflito étnico e cultural subitamente desencadeado. Afinal tudo parece
repousarna relação de forças, e o uso destas depende de um voluntarismo que
aceitaou rejeita o statuquo.As regras são mais de prudência por um lado documentada, e por outro aconselhada, tudo na base da possibilidade e da probabilidade,nunca da certeza, porque o regresso ao estado de natureza, na forma
maisaguda que é a guerra, é um risco permanente 257•
;.Merle, cit, passim. Brzezinski, The Soviet Bloc, Unity and Conflict, Harvard, 1960. Buchan, Change
1th0
ut War,Londres, 1974. Reuter, Institutions lllternationales,Paris, 1972. Morgenthau, cit., passim.
305
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
§ 4º
O Regresso
aoEstadodeNatureza
1. A filosofia do uso da força
Até à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não existia uma proibição do Usod
força nas relações internacionais, e a segunda Convenção da Haia de 1907 ap a
nas limitava o recurso à força para a cobrança de certas dívidas contratuais eOs Estados incluem o direito de fazer a guerra no seu estatuto internacion~J
a situação foi classicamente retratada por Clausewitz ao escrever: "Aguerra nãe
é somente um acto político mas um verdadeiro instrumento político, o prosse~
guimento de relações políticas, uma realização destas por outros meios"2Sa
A filosofia de Clausewitz, nascida num Ocidente dos Estados, tinha sob~etudo em vista a Prússia e o seu destino num sistema de egoísmos estaduais
Numa época em que os exércitos eram artesanais quanto aos meios, e as mas~
sas não participantes na decisão política, a guerra total (absoluta) não ultrapassava a concepção da necessidade de destruir a máquina de guerra do inimigo,
destruição à qual se seguia a assumida capacidade de ditar a paz. Os princípios
fundamentais da filosofia clausewitziana podem talvez enumerar-se da seguinte
maneira, seguindo a síntese de Anatole Rapoport: 1) O Estado é uma entidade
personalizada (viva),com empreendimentos bem definidos e dotada de inteligência para promover e examinar os meios de os levar a cabo. 2) O Estado é
soberano, isto é, não reconhece qualquer autoridade acima dele. 3) Visto entre
os objectivos de todos os Estados figurar o de aumentar o seu próprio poder
à custa de outros, os interesses dos Estados estão sempre em conflito, independentemente de qualquer excepção acidental e efémera. 4) Os choques de
interesses entre dois Estados são tipicamente resolvidos pela imposição da
vontade dum sobre a do outro. Portanto, a guerra é uma fase normal das relações entre Estados 259
.
A Primeira Guerra Mundial obrigou a meditar sobre a necessidade de introduzir na filosofia e na teoria a perspectiva dos interesses da Humanidade que
ultrapassam os do Estado soberano. A interdependência fazia crescer rapidamente o número de intervenientes na guerra que se tornou mundial; o desenvolvimento das técnicas de combate, apoiadas em potenciais industriais,
científicos e tecnológicos, alargou o objectivo militar, que devia ser destruído, aos centros nevrálgicas do adversário, implicando o ataque às populações
civis e às cidades.
25tt
259
Clausewitz , Da Guerra, Brasília, 1979.
ln Prefácio à edição brasileira Da Guerra, cit .
306
TEORJA DO PODER
bora Clausewitz fosse um conservador e tivesse a preocupação do perigo
f,!11 de um exército de massas, não ignorou o processo de democratização
incer:~rainiciado pela Revolução Francesa e continuado por Napoleão. Entend~guorémque os exércitos se manteriam no plano da execução da vontade do
dt3 Pdo com supremacia do político sobre o militar, uma presunção a que os
E,sta ,
s deixam frequentemente de corresponder.
factoexército revo1·uc10nano
'ºf. rances, e d.ep01s napo l'ºeomco, nao
- era composto
0
recrutas sem acesso ao entendimento dos objectivos e práticas de guerra, mas
~e de patriotas que lutavam por convicções, alguns pelos direitos do Homem
silllera O Iegitimismo, todos pelos ideais da Revolução. Napoleão compreen~~: a importância dos factores imponderáveis, como a intuição ou percep.0 popular da situação, o moral, a decisão popular, a credibilidade. Quando
riausewitz dizia: "dêem a guerra ao povo! O Estado é o povo!", parecia ter uma
visãoorganicista do Estado, e não lhe ocorria que um camponês ou um operário armado, e com uma visão da situação política, podia começar a pensar
na relação da guerra externa com a situação interna modificável também pela
força.Um problema maior desta democratização da guerra será a manutenção
da fidelidade das armas ao objectivo estratégico do Estado. A experiência tem
mostrado que é problemática, com projectos ideologicamente incompatíveis:
0 ideal democrático contra o ideal totalitário, o ideal nacional contra o ideal
soviético,a libertação colonial contra a missão civilizadora, o método da guerrilha contra os exércitos clássicos.
Os custos da guerra, porém, facilmente demonstram a vencedores e vencidos
a igualdade da condição de desastre a que chegam, à medida que a guerra caminhapara existencial por simples consequência dos meios a utilizar. A domesticaçãoda energia atómica foi o alarme supremo.
Uma linha de pensamento neoclausewitziana e pessimista considera que
os factos não consentirão nunca banir a guerra, e inspirou uma sociologiamundialdas relações internacionais, cujo representante mais notável foi Raymond
Aron,grande comentador de Clausewitz, e que sintetizou o seu pensamento
em Paze GuerraentreasNações260 • Um weberiano cartesiano, atento à complexidade da vida internacional que Clausewitz não conheceu, apenas na guerra
encontrou o fenómeno autonomizador das relações internacionais como disciplina científica.
Aceitou como pressupostos, que lhe pareciam evidências historicamente
comprovadas, os seguintes: a violência esteve na origem dos Estados, a violência foi sempre a última instância das relações entre os Estados, a prospectiva
não permite antever outra situação.
l6o
Raymond Aron, Paze Guerraentreas Nações,Brasília, 1962.
307
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Debruçado sobre a conjuntura, e tendo sido testemunha participante d
queda da Ordem anterior a 1939-45, e do estabelecimento da Ordem dos :p a
tos Militares, duvidando da eficácia dos métodos que procuram banir ague ac.
pela lei (ONU, Tribunal Internacional de Justiça, acordos de desarmamen;r)
caracterizou o conflito central como uma defesa da civilização ocidental coº'
tra o comunismo soviético, e avaliou a possibilidade de controlar a intensida:da guerra pela dissuasão, evitando o holocausto. O equilíbrio do terror foi u e
dado permanente na época que manteve sob observação constante, e nun rn
alterou o seu diagnóstico de guerra improvável, paz impossível.
ca
Esta visão académica da guerra, que identificou os interesses da Humanidade
com a percepção ocidental, esta com a tradição europeia, coerente com a versã
americana, foi acompanhada de uma versão dos aliados, mas dirigida mais a~
grande público como é exigido numa época de democratização da guerra, e que
teve a sua figura importante em Herman Kahn, cujos livros são já clássic08 2G1
Enfrentou sem ambiguidades o facto de o equilíbrio mundial estar penden~e
das duas superpotências nucleares, não sendo de excluir que o confronto viesse
Tratou então de racioa verificar-se. Convidou portanto a pensarno impensável.
nalizar a escalada provável do confronto, definindo quarenta e quatro pataNesta escolástica, a separação rigorosa
mares, dos quais vinte e novenucleares.
entre o estadodeguerrae o estadodepaz não é possível, e de facto não tem viabilidade a guerra rápida e decisiva, ainda conseguida no século passado. Também
não existe mais distinção qualquer entre o diplomatae o militar,porque a política acompanha imparavelmente toda a escalada do conflito, excepto naturalmente no último patamar - a guerraespasmo.O controlo é possível, a catástrofe
não é impossível, o conflito é permanente, a política internacional é um contí-
nuo delutapelopoder.
Esta corrente diferencia-se da que tem sido chamada escatológica
e queresponde ao facto de a conquista ou expansão ser assumida como um objectivo
do poder político, em especial dos Estados totalitários: por exemplo, a missão
civilizadora que no Oriente inspirou o projecto da Área da co-prosperidade da
Ásia dirigida pelo Japão militarista; o renascimento do espíritoimperialromano
assumido por Mussolini e pelo fascismo; o arianismo de Mein Kampf de Hitler
e do nazismo no poder; a libertação dos proletários de Lenine.
Na versão leninista, a doutrina de Clausewitz recebe algumas correcções
fundamentais: o interessenacionalnão lhe parece senão o interesseda classe
gover"'' Herman Kahn, Thinkingaboutthc Unthinkab/c,N.Y., 1962, On Thc nuclcanvar,Princeton, 1960. Linus
Pauling, No moreivar,N.Y., 1958. Quando teve notícia da experiência atómica de Alamogordo (1945),
Churchill disse: "O que era a pólvora? Uma banalidade. O que era a electricidade? Uma insignificân·
eia. Esta bomba atómica é a ira num segundo", in John Keegan, Historiade laguerra,Barcelona, 1955•
p. 451.
308
TEORIA DO PODER
ue não coincide com o interesse da classe explorada; a guerra que o
q
,,ante
· que ten d"1a para o
era! estudou sena· antes um con n·1to entre burgues1as,
Geºemo do conflito imperialista, última fase do capitalismo; os verdadeiros
·
e~trres desta guerra eram as e/assesgovernantesou capita
· 1·
1stas oc1"denta1s.
:icto
d
·
d
d.
.
d
E
d
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1·
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d
.
.Anatureza a mter epen enc1a os sta os capita 1stasretirava to a a rac10Jidadeà guerra, porque as nações são impelidas por forças que os aparelhos afio~.s não dominam (teoria conspiratória), e a guerra leva a resultados não queridos,
1
' ª~0 foram a dissolução dos impérios centrais na Primeira Guerra Mundial, as
'ºvoluções internas não previstas, a revisão final da hierarquia das potências.
re .Afastadaa propaganda antimilitarista com que os soviéticos ajudaram adesruir O exército imperial, regressaram à necessidade de um braço armado e de
conceito estratégico que incluísse a legitimação da guerra em termos mobilizadores da população. Não obstante ter sido politicamente vencido, foram
os ideais de Trotsky que estiveram presentes na redefinição levada a cabo por
Estaline. Um exército com todos os ingredientes clássicos - hierarquia, cadeia
de comando, identificação exterior dos postos, condecorações, privilégios maisum objectivo patriótico (herdado) acrescido do internacionalismo proletário (missão). Mas a contribuição leninista parece ter acrescentado, ao modelo
clausewitziano, a noção da pátria dos trabalhadores de todo o mundo e não um
Estado-Nação como os outros, a de instrumento mundial da lutadeclassese não
apenasde interesses estaduais, e paz mundial. Mas que paz mundial?Talvez seja
de aceitar que, na primeira versão leninista, a paz era o resultado de um conflito final vitorioso, e confundia-se com a ordemsoviéticamundiallibertadora.
Todavia,para um Estado organizado e responsável, a guerra passou a ser mais
considerada, como diz Rapoport, como um desastre ameaçador examinado do
pontodevistacataclísmico
e que deve ser evitado. A visão escatológica da guerra
pareceu transferir-se para a China de Mao.
A filosofia cataclísmica avalia a guerra em relação à Humanidade como um
todo, e não como um fenómeno determinado por um interveniente - o Estado
ou a classe. Não encontra nenhuma racionalidade nessa subida aos extremos
porque, seja qual for o interesse procurado e até realizado pelo agente, do ponto
de vista geral da Humanidade há sempre uma perda. O problema que suscita
como fundamental não é o da relação da guerra com os objectivos do poder, é
sim o da relação da guerra com a paz, e a descoberta das condições para evitar
aquelecataclismo. A investigação das condições capazes de evitar a guerra segue
duas linhas de trabalho: uma sistemático-teórica e outra empírica 262 •
:rn
262
A. Moreira, Relaçõesentreasgrandespotências,curso de mestrado de 1984/85, Lisboa, 1989, p. 62,
sobre a peaceresearch.José Adelino Maltez, O imperial-comunismo,
Lisboa, 1993, p. 349 e sgts., sobre
"darevolução
aomar,darinato".
309
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A primeira, que teve como pioneiro Lewis F. Richardson, aplicou a te .
dos sistemas de um ponto de vista cataclísmico, examinando a estabilidactºria
modelo construído hipoteticamente, com grandes vantagens para o treino edo
fissional mas sem utilidade para estabelecer uma teoria.
Pro.
Acompanhada pela investigação de Quincy Wright, esta linha talllb.
seguiu a via empírica de estudar "as querelas sangrentas", descobrindo evelll
tuais correspondências, de mod? a evidenciar a repetição de certas con~~:
ções que as precederam ou segmram. Os chamados peaceresearchers
elll
se distinguem Galtung, James Clarke, Rapoport, Glover e Brown, pare~lte
. em contraponto com a po/emo1·
. 1·
querer dfi
e mir,
ogza,uma zrene
ogza,ou ciêne111
.
da paz. Alguns institutos, como o Research Institute de Oslo (1966), 0 s~'ª
0
ckholm International Peace Research Institute (1969), o Center Research ~
Conflict Revolution da Universidade de Michigan (1959), e o Canadian Pea;
Research Institute (1964), dedicam-se a essa investigação sem fornecere~
grande terapêutica.
Pondo de lado a pretensão da teoria cataclísmica de apreender o fenómeno
em sínteses equivalentes às das ciências da natureza, de facto todos acabam
por reconhecer que o jogo de forças na comunidade internacional depende da
intervenção voluntarista de homens, agindo em função das suas matrizes valora tivas, objectivos e percepções.
2. A prevenção dos conflitos
A primeira forma de prevenção dos conflitos que examinaremos é a que recorre
ao normativismo, e que se desenvolve numa série de propostas: condenação
jurídica da guerra Uus contrabellum);regulamentação do direito excepcionalà
guerra Uusadbellum);regulamentação do exercício da guerra Uusin bello);
punição dos actos de guerra Uuscriminisbelli);institucionalização de uma autoridade
internacional ou transnacional. Mesmo as formas repressivas ou institucionais
agem como preventivas, pelo simples facto da sua existência.
I) A restrição jurídica - jus ad bellum
A tradição ocidental da condenação da guerra tem grandes fundamentos católicos. Santo Ambrósio é dos primeiros doutrinadores apontados como tentando
definir as ideias de paz justa e guerra justa, um tema com que toda a Idade
Média se preocupa.
Mas é Santo Agostinho, no século V, quem, para responder à questão
de saber se os cristãos podiam fazer a guerra sem pecar, e vivendo a con·
juntura da queda do Império Romano, distingue a guerra justa da guerra
injusta, sendo necessário, para estarmos perante a primeira, a iniquidade
do inimigo.
310
TEORIA DO PODER
São Tomás, que sistematizou o pensamento tradicional, exigiu três condi- para que a guerra fosse justa: 1) declarada por autoridade competente;
Çoes
·
- que se tra d uz em evitar
· o ma l mut1
· ' 'l .
om justa causa; 3) recta mtençao
Z)cOs juristas vão receber esta tradição teológica, com Vitoria e Suárez, a ques- mais difícil sendo a definição da justa causa. Por isso, o Ocidente dos Estafezcom que nos séculos XVII, XVIII e XIX tenha havido um retrocesso na luta
ºra restringir ojus adhei/umque cada Estado assumiu sem limites. Os juristas
conjuntura, como Grotius, Bynkershoek, Pufendorf, Wolff, Vattel, Martens,
:conhecem um direito ilimitado ao Estado para recorrer à guerra. Entretanto, o
~cto da interdependência, a mundialização dos teatros da guerra, a sofisticação
dosmeios de a fazer, tudo inclinou, desde o começo deste século, à formulação
deumjus contrahei/um,e à definição de meios preventivos e repressivos.
o primeiro passo desta evolução no século XX é marcado pela Conferência
da Haia de 1907: exigia a declaração prévia de guerra (declaração formal ou
ultimatumcondicional) e restringia drasticamente o direito de fazer a guerra
para cobrança de dívidas.
O Pacto da Sociedade das Nações, depois da Primeira Guerra Mundial,
condenou as seguintes guerras: 1) as guerras de conquista (art. 10); 2) guerras
começadas sem prévio recurso à arbitragem, solução judicial ou exame pelo
Conselho da SdN, ou antes de terem decorrido três meses sobre decisão judicial ou do Conselho dando razão ao agressor (art. 12); 3) a guerra contra um
membro da SdN que se comprometesse a cumprir de boa-fé as sentenças (art.
17);4) a guerra contra um membro da SdN que tivesse aceitado a decisão unânime do Conselho, com exclusão dos votos das partes interessadas (art.15) 263 •
Antes da guerra de 1939-1945, o último passo foi o famoso Pacto Briand-Kellogg,assinado por quinze Estados em Paris, em 27 de Agosto de 1928. Logo
no artigo 1Q se proíbe a guerra, sem excepção, como instrumentodapolíticanacional.Deste modo ficaram fora da proibição: a) a guerra de legítima defesa; b) a
acção armada decidida pela Sociedade das Nações; c) finalmente, o Pacto não
abrangia as guerras entre Estados não signatários, e entre um Estado signatário
e outro não-signatário. Somando a isto as reservas postas por alguns signatários,
e a falta de um critério de guerra justa, resultava um mecanismo frágil.
A guerra de 1939-1945 foi um regresso mundial ao estado de natureza e,
depois de terminada, a Carta da ONU (art. 2 S 4), diz imperativamente que:
"osmembros da Organização, nas suas relações internacionais, abster-se-ão de
r:
r
263
José Luis Fernández-Flores, DeiDerechodela Guerra,Madrid, 1982, p.135 e sgts. Wehberg, La Proibició11
deiusodelaJuerzay la Protección
dela integridadterritorialsegúnla Cartadela ONU,Madrid, 1957,
1,p. 338. Veremos a definição nova proposta pelo Secretário-Geral da ONU, Boutros-Ghali, in An
a11d
political
Agenda
for Peace,Nações Unidas, 1992. Para uma visão global, Paul Ramsey, Thejustwar,Jorce
N.Y., 1968, com análise da intervenção do Concílio Vaticano II, p. 369 e sgts.
responsibility,
311
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a ind
pendência política de qualquer Estado, ou em qualquer outra forma incorn. e.
tível com os propósitos das Nações Unidas".
PaA Carta todavia considerou legítima a guerra de legítimadefesa,a guerrad
determinada pelo Conselho de Seguran e
libertação
nacional,a acçãointernacional
ou pela Assembleia Geral. Pela Resolução 3314 (XXIX),de 14 de Dezembro ~a,
1974, definiu o que deve entender-se por agressão. O fenómeno da interd e
ependência levou ao predomínio da legítima defesa colectiva que é invocad
por todos os pactos militares vigentes até 1989, com especial relevo para O lr ~
tado do Atlântico Norte (4 de Abril de 1949) e Pacto de Varsóvia (14 de Maio:
1955). Esta legítimadefesacolectivacontra hipotética agressão tem determinad:
a corrida armamentista que caracteriza a nossa época, e o aparecimento de
a guerra
novas formas de fazer a guerra - a guerraatómica,a guerrabacteriológica,
química,a guerrameteorológica.
II) O desarmamento
O desarmamento, como já vimos, ganhou progressivo relevo no capítulo da prevençãodaguerraà medida que os meios de a fazer ganhavam em poder de destruição e ameaçaram com a catástrofe geral, estando em causa asarmasatómicas
A questão é d~
as armasquímicas,as armasbacteriológicas
e as armasconvencionais.
saber se a corrida armamentista pode ser controlada e como. Do ponto de vista
da racionalidade nenhum analista deixa de admitir que não tem sentido tal corrida que constantemente eleva o patamar do desafio com ressalva impossível
do equilíbrio permanente. São três as principais razões que militam em favor
do controlo do armamento, e do desarmamento: 1) diminuir a probabilidade
de guerra; 2) diminuir a extensão da destruição em caso de guerra; 3) reduzir
os custos financeiros da defesa. Os esforços desenvolvidos visam: a) abordar o
aspecto qualitativo do armamento, impedindo a progressiva sofisticação (proliferação vertical); b) diminuir quantitativamente as espécies de armas.
O primeiro Strategic Arms Limitation Treaty (SALT-1),por exemplo, assinado em 1972 entre os EUA e a URSS, limitou o número de ICBM, cabeças
nucleares, e MIRV, ou foguetes de cabeças múltiplas. Também limitaram as
defesas antimísseis respectivas, oferecendo cada potência à outra alvos desO que se tinha em
protegidos, porque o receio recíproco assegurava a dissuasão.
vista não era a redução, era contrariar a competição em espiral. A redução propriamente das armas é um acordo mais complexo. Isto foi considerado possível
na época chamada da distensão do Presidente Nixon dos EUA.
Os desenvolvimentos tecnológicos (aumento da potência dos MIRV,os submarinos americanos Trident, os mísseis Cruise), e as dúvidas aliadas sobre se
o acordo EUA-URSS não afectaria a segurança europeia, levaram o Presidente
312
TEORIA DO PODER
cera preparar a negociação SALT-11que nunca chegou a um acordo. A inva~Mdo Afeganistão, a lei marcial na Polónia, a crítica pública ao SALT-11,fizeram
530
que o Presidente Reagan iniciasse outra política de limitação de arma-
corocoque se chamou START- Strategic Arms Reduction Talks. Tratava-se de
(lle:ara corrida, e de diminuir as armas estratégicas instaladas. O objectivo
rnou-se opção zero-zero, porque a redução acabaria na eliminação mútua
ªarmas atómicas. A complexidade do problema conduziu a que, no fim da
Geerra Fria, estivessem em curso várias negociações: START, sobre a globalid udedos problemas estratégicos; INF, sobre forças nucleares intermediárias;
JBFR, sobre a redução mútua e equilibrada de forças convencionais. A instalaáOpela NATO dos mísseis Cruise e Pershing, e a instalação pela URSS de mís~eisSS-20e SS-4, perturbaram as negociações. Entretanto, o Presidente Reagan
anunciouo seu programa chamado correntemente guerradasestrelas(IDS). Em
!986, Reagan e Gorbatchov encontraram-se em Reykjavik na Islândia, e uma
novafase começou, com um inicial confuso período de acertos e desconfianças,até que as negociações START recomeçaram em 1987, sem resultados significativos, e com uma importância diminuída pela proeminência e evolução
da Perestroika.
Todo este período foi dominado, politicamente, por um conceito de balança
depoderes.
O principal factor relacionado com a paz no que respeita ao conflito
foi o equilíbrio das percepções americana, dos seus aliados, da Rússia,
central
da China, do Terceiro Mundo, sobre o risco do holocausto 264 • O conceito fundamental é que as negociações sobre o desarmamento são negociações sobre
a forma de fazer a guerra. Daqui a importância dos esforços para eliminar a
guerra química, e para eliminar os ensaios nucleares, uma política de novo
desafiada pela França em 1995.
e;
~
3. Oproblemático restabelecimento da Ordem
O desequilíbrio e disfunção dos sistemas, cuja mais grave manifestação é a
guerra, exige que o estado de natureza seja eliminado ou contido por uma Nova
Ordem.
Esta ordem é desejável, porque na expectativa dos povos consolida um futuro
período de paz que corresponde a um sentimento de justiça compartilhado
pelaspopulações e Estados interessados. Mas a regra é que, devido ao facto de
'" Desenvolvimentos em RaymondAron, Lasociétii11dustricl/c
etlagucrrc,Paris, 1959. Charles Chaumont,
LasuuritédesÉtats et la sécuritidu monde,Paris, 1948. Pierre Célerier, Géopolitiqueet Giostratégic,Paris,
1955.Coressi e Wint, TotalWar,N.Y., 1972. Marek Thee (edt .), Ar111a111e11ts,
armsco11trol
a11d
disar111amc11t,
UNESCO,1981. SIPRI - Yearbook 1993 , WorldAr111amc11tsa11d
Disarmamc11ts(anual,
Oxford University
Press, 1993). P. Boniface (dir.), L'A11néestratégique
1994. LcsÉquilibrcsMilitaircs,Paris, 1994 . Esta matéri~
est:ídesenvolvida em Adriano Moreira, Relaçõesentreasgrandespotências, Lisboa, 1989, p . 59 e sgts .
313
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
haver vencedores e vencidos, a Nova Ordem seja exclusivamente o espelho
real hierarquia de poderes, e portanto reflectindo a concepção dos vencedda
0
res. Sempre que a paz foi estabelecida nestes termos, a Ordem teve essa na .
d
tu.
reza d e um d 1ta o.
A Ordem europeia, agora em revisão, começou por ser o ditado das Potê
cias vencedoras na guerra de 1939-1945, reflectindo de resto o equilíbrio ale nçado para as rivalidades e os objectivos contraditórios das potências vencedo:nMas a Ordem anterior, com expressão na Sociedade das Nações, fora a substituas.
da Ordem saída do Congresso de Viena de 1815, onde o ditado foi feito peJta
cinco (pentarquia) potências principais que derrotaram o plano napoleóni/s
Temos por isso que prever mais de uma evolução possível, desde a violação
0
sionalda Ordemà destruiçãoda Ordem.
tª
Convém, portanto, não esquecer que a Ordemreinantetem sempre na has
uma hierarquia e equilíbrio de poderes estaduais. Por outro lado, pode ser ume
Ordemregionalou a Ordemmundialque está em causa.
ª
O direitointernacional,com a precária eficácia que referimos, é a expressão
mais vasta de uma Ordem mundial. Mas esta desdobra-se em ordenamentos
mais ou menos abrangentes, que não obedecem todos necessariamente ao~
imperativos do direito internacional geral ou que pretendem alterar mesmo
o direito internacional. Porque a guerra é o regresso ao estado de natureza
a paz raras vezes deixa de ser a submissão dos vencidos, e a sua manutenção é
confiada a uma Ordem ditada pelos vencedores, acordada entre as potências
dominantes, ou definida por um Estado director. Durante o período da proeminência da Inglaterra, o qual acabou com as duas guerras mundiais, falou-se
na PaxBritannica;os EUA contribuem para que se fale na PaxMercatoriacorrespondente ao modelo económico mundial que pretendem implantar; os marxistas falaram sempre da Pax Sovieticaparecendo que esperavam novidades da
sua metodologia; a Ordem do último meio século foi a dos PactosMilitares,com
a componente da pazpeloterror.A referência ao poder e à sua física está sempre
implícita. A pazpelodireitotem o objectivo, não alcançado, de referir a Ordem
a valores essenciais de justiça entre os povos, e a observância dela ao consentimento dos Estados, mas esse projecto, que era o da ONU, esteve entre parên·
tesis até 1989.
De qualquer modo, a paz é surpreendentemente a situação normal entre os
Estados, e a guerra uma situação temporária. O retorno à paz pode dar-se por
três maneiras diferentes: 1)os beligerantes deixam de praticar actos de guerra
e vão retomando as relações pacíficas sem estabelecerem um tratado de paz;
2) estabelecem as condições da paz em tratado especial; 3) um dos interve·
nientes no conflito absorve o outro. A primeira hipótese verificou-se várias
vezes: em 1716 a guerra entre a Suécia e a Polónia; em 1720 entre a Espanha e a
314
TEORIA DO PODER
. em 1801 entre a Rússia e a Pérsia. A opinião mais geral é que a situação
fra;Ç:~ existente quando as relações pacíficas recomeçam, e não a anterior às
de -~idades,é que prevalece.
- d o adversano
, . tem como pnmetro
. . passo a conbostt
A anexação ou su b'iugaçao
. t Esta pode todavia ser apenas de uma parte do território inimigo, e está
quis
:mada com a operação efectiva. A paz também fica assim estabelecida se
5
•
A conqmsta
· tota 1, mesmo com o amqut
· ·1amento de
con
hostilidades termmarem.
asdas as forças inimigas, também não é anexação se o vencedor entender cont~ ir um tratado de paz e restituir o vencido à soberania. A anexação implica a
~ ~orporação do território do vencido no território do vencedor, por decisão
10
ilateral deste. A unificação da Itália, por exemplo, foi o resultado da anexa0
u_odo Reino da Sardenha, do Reino das Duas Sicílias (1859), do Grão-Ducado
ça
da Toscana, dos Ducados de Parma e Modena e, finalmente, dos Estados do
papaem 1870.
A forma mais corrente de terminar com o estado de guerra é o tratadodepaz:
depoisda corrida à sorte das armas, um acordo mútuo define as condições de
de Estados
estabelecimento da paz. Frequentemente, os bonsofíciose a mediação,
neutros em relação ao conflito, intervêm para que as negociações sejam entabuiadas e prossigam. Normalmente segue-se um período chamado de armistício em que se suspendem as hostilidades para negociações, mas em que não
se extingue o estado de guerra. Estas negociações podem ter lugar por troca
de notas entre os governos beligerantes ou por intermédio de negociadores
especiais, e podem decorrer em território neutral ou no território de um deles.
Em qualquer caso, os negociadores têm imunidade diplomática. Frequentemente a negociação passa por dois patamares: os preliminares, que são objecto
de um primeiro acordo; o tratado final, que incorpora o primeiro dos preliminares. O direito internacional não tem regras especiais para os tratados de
paz26s.
m Oppenheim, Intm1atio11al
Laiv,Londres, 1921, II, p. 356 e sgts.
315
Capítulo
Ili
OsIntervenientes
§ 1º
O Estado
1.Conceito operacional
Amundialização do teatro das relações internacionais é acompanhada da manutenção de uma componente essencial, herdada da época em que o mundo se
dividiaem áreas não-comunicantes, e que é a fragmentação em sociedades com
identidade separada, projectos autónomos e percepções diferenciadas do conjunto a que pertencem. O que atribui também um carácter específico ao que
se chama comunidade internacional, porque, no sentido técnico corrente, lhe
faltou sempre a solidariedade e o projecto de fututro comuns, sendo mais evidentes a interdependência mesmo não querida nem assumida, e a multiplicação dos poderes de intervir sem coordenação.
O Estado moderno, criação do Renascimento, é todavia o herdeiro de um
fenómeno que acompanhou sempre a sedentarização dos grupos sociais. Para
enfrentar uma série inevitável de problemas organizacionais, a sociedade estabilizou-se de acordo com um modelo em que se encontram três elementos: território,
população,
principado.O perfil de cada um dos elementos varia no tempo
e no espaço, o relacionamento entre eles ou a estrutura de cada um também
varia, mas existem sempre.
Na área ocidental, a queda do Império Romano levou à sociedade feudal em
que o poder se desfaz em migalhas, em que as relações pessoais são as dominantes, em que falha o sentimento de pertença a grandes unidades. No mundo
de matriz oriental, ao contrário, continua o modelo dos impérios dirigidos
317
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
por cidades-Estado, como Bizâncio, Bagdade e Córdova. No Renascirn
estrutura-se o OcidentedosEstados:cada um destes é uma entidade dota~llto,
um poder que não reconhece igual na ordem interna nem superior na or~ ele
externa, poder chamado soberania. Este modelo alcançou uma projecção eltt
dia! e está vigente desde a Florença do século XV até às mais recentes ind;un.
dências do Terceiro Mundo.
Pen.
O conceito de soberania é o elemento organizador, ao mesmo tempo id
lógico e estrutural. Trata-se do "poder absoluto perpétuo de uma Repúbitº:
(Bodin), esta última palavra significando Estado. O seu corolário é a inde/ª
jurídica.A evo!ue~.
dênciade cada um em face de todos, e portanto a igualdade
.
.
.
b
'
"d
1
'
1
- do modelo pÇao
seguinte mais importante, e tam em oc1 enta , e a evo uçao
ara
66
Estadonaciona/2 •
Na citada obra de Maquiavel (O Príncipe),o patriotismo já aparece como u
cimento importante da solidariedade do povo. Vem talvez preencher O vaz~
causado pela quebra das fidelidades espirituais a Roma, e harmonizar a sociab:
!idade com o humanismo laico, fornecendo um valor superior de referência.
Parece que, em regra, foi o Estado que forjou a Nação, como notou Lord
Acton, sendo menos comum que a Nação tivesse dado origem ao Estado. As
grandes revoluções americana e francesa alargaram essa fidelidade ao grupo
alargado que Renan caracterizaria, e que no imaginário revolucionário existira
desde sempre e para sempre: as nações existem no estado originário. "ANação
existe antes de todas as coisas: está na origem de tudo, a sua vontade é sempre
legal; ela é a própria lei; antes dela e acima dela existe apenas o direito natural"
(Sieyes).No século XIX o ideal nacional cobre toda a Europa, embora apenas no
ideário da guerra de 1914-1918, nos 14 Pontos de Wilson, se tenha consagrado
a regra de que a cada Nação deve corresponder um Estado.
Todavia, nem sequer na Europa o princípio foi regra sem excepção, porque
a sua efectivação depende da verificação de um requisito, a viabilidadeem face
da conjuntura. Muitos Estados são plurinacionais e algumas nações estão divididas entre mais de um Estado.
Mas o modelo corresponde de tal modo às necessidades dos povos que o
Estado-Nação foi adoptado como projecto ideológico das independências anticoloniais deste século. As elites condutoras do processo revolucionário, ou as
que foram compostas de europeizados pelas universidades, ou as que vieram
dos quadros militares e do sindicalismo, associaram o poder como um projecto
11acio11al.
Trata-se de reproduzir, pelo uso intencional do poder, o fenómeno que
o Estado naturalmente produziu na Europa colonizadora contra a qual se revoltaram. Tais novos Estados não governam uma Nação, mas têm um projecto de
""' Hans Kahn, Natio11alis111:
its 111ca11il1ga11d
history.Princeton, 1955, p.122e sgts.
318
OS INTERVENIENTES
d a evolução do agregado populacional para esse modelo. Desenvolfllª11ª\nda este ponto em relação com os tipos de Estado 267•
remos~o resulta que o Estado, com múltiplas formas, mas sempre com os
De cuelementos estruturais, é ainda hoje o principal agente das relações
(!les!llº~ionais.O príncipe pode ser o rei legítimo (monarquia europeia), um
inrernªarismático, um ditador, um partido hegemónico, um poder democrácbefee s tal elemento existe sempre. Aquilo que não existe é uma igualdadereal
rico,maondente à desejada igualdade
jurídica,porque a hierarquiadaspotênciasfoi
corres!permanente na comunidade internacional. E a soberania, como verea regr
.
.
•á não correspon d e ao conceito
renascentista.
(!!OS,)
_Reconhecimento
1
É•ustamente pelo facto da soberaniae pela importância que por natureza tem
Jsrelações internacionais, que a comunidade internacional submete a regras
nareconhecimento
d a existencia
.,.d
e um Edsta o.
0
A primeira dificuldade é estabelecer as regrassegundo as quais o reconhecimentodeve ser concedido ou negado. A importância do facto resulta de que
umEstadoapenasadquireapersonalidade
internacionalepodeexercerasinerentesprerrogativas
setiversidoreconhecido
pelosoutrosEstados;cadaEstadoé livrede reconhecer
ounãoreconhecer
um Estadoqueaparece.
Este enunciado mostra logo que o simples e primeiro acto de que depende
a legitimação da intervenção soberana na vida internacional é uma eventual
causada anarquia, porque a atitude dos Estados pode não ser uniforme, e o
novoEstado ser reconhecido por uns e não reconhecido por outros.
A doutrina jurídica, para responder a esta questão, divide-se: uma corrente
entende que o poder de reconhecer é discricionário; outra corrente entende
quecada Estado deve limitar-se a verificar os factos - se existe um Estado - sem
fazerintervir julgamentos valorativos ou de interesse próprio.
Em termos de conduta-padrão, só a Inglaterra aplica habitualmente a regra
objectiva;os EUA, pelo menos no que respeita à mudança de regimes, costumamverificar se foi democrática, de acordo com os seus padrões. Na realidade,
trata-se apenas de uma política relacionada com a influência que os Estados
querem defender ou incrementar.
Uma das consequências desta situação quanto ao reconhecimento é que, de
facto,os Estados invadem a jurisdição interna dos outros, designadamente para
avaliarda democraticidade dos processos políticos. Por outro lado, a relação do
reconhecimento com apolíticadeinfluênciaconduziu a diversificar o conteúdo do
acto de reconhecimento: reconhecem não um Estado, mas umaNaçãoem pro267
Ernest Gellner, Naçõese Nacionalismo,Lisboa, 1983, p. 133 e sgts.
319
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cesso de independência, como foi o caso da Polónia reconhecida pelos AI.
1
na guerra de 1914-1918; reconhecem governosnoexílio,anunciando que esp ªd 0 &
a libertação dos territórios e povos de uma situação afirmada ilegítima eralli
foi o caso dos Estados invadidos pelos alemães na guerra de 1939-1945'. collio
.
.
d. . ,
1
e. •
'reco
·
n h ecem movimentosque mvocam o 1re1to a revo ta, como 101o caso da G
Civil espanhola; assumem o direito de reconhecer ou não os governos,p;erra
cada Estado reclama o direito de apreciar livremente as condições em queque
poder se apresenta a querer exercer competências internacionais.
uni
é uma arma usada na competição interna .
Em resumo, o reconhecimento
.
-· mternacioncio.
na 1. Deste mo d o, ate, a entra d a como mem bdro as orgamzaçoes
.
se politizou. Juridicamente, a entrada na ONU depende de um juízo fortna~ts
corresponde a uma aceitação geral da personalidade de qualquer Estado· tn e
a entrada foi frequentemente condicionada por juízos políticos sobre O ~qu~~
líbr~o d~ votos na Assembleia Geral, e a inerente influência nas relações inte~nac1ona1s.
II - Estatuto
O Estado assume a totalidade das prerrogativas que a comunidade internacional lhe atribui, a maior parte delas consagrada no direito internacional,
A síntese desse conjunto de prerrogativas foi tradicionalmente chamada a soberania. Este conceito significava a total liberdade do Estado no sentido de que
nenhuma obrigação lhe podia ser imposta, já que nenhum poder superior e
exterior era reconhecido.
A evolução já referida tornou os Estados geralmente incapazes de realizarem
isolados as finalidades ou objectivos que lhe foram assinados, alguns devendo
considerar-se exíguos,isto é, definitivamente incapazes de realizarem todas as
finalidades estaduais, e obrigados a alienarem em terceiro Estado, ou em organização internacional, tal função.
É por isso que, não obstante a expressão soberania ser ainda a corrente, e
designadamente a recolhida no artigo 2º da Carta da ONU, começa a ser corrente definir o estatutodoEstadocomo o conjuntodecompetências
internacionais
que
lhepertencemdeacordocomo direitointernacional.Deste direito, especialmente do
costume internacional, deriva o conteúdo dessas competências.
a) Competência interna
As competências chamadas internas têm relação com o estatuto internacio·
nal dos Estados, embora a regra seja a da liberdadede acçãono interiordoEstado.
A questão internacional que imediatamente surge é a das fronteirasque limitam
essa interioridade. É regra que as fronteiras terrestres
efluviaisse encontram deli·
mitada s com rigor, mas ainda não é esse o caso das fronteirasmarítimase aéreas.
320
OS INTERVENIENTES
_ stá decidida a questão da extensão das águas territoriais (Conferências de
Naº;brade 1958 e 1960), isto é, as águas sobre as quais o Estado exerce poderes
Ge\alentes aos que exerce sobre a terra firme; não estão definidos os poderes
equt/íciaque os Estados exercem sobre a zonacontígua,ou zonaeconómicaexclud~pourna área marítima que se estende para lá das águas territoriais; não estão
5,va,
· d e exp loraçao
- d as riquezas
.
d o mar e d o contro lo marmmo
' .
entes os d"1re1tos
assssasáreas para além das águas territoriais; o aparecimento dos engenhos
necra-atrnosféricos deu origem à definição do espaço aéreo como a porção da
exrnosfera situa
. da so bre o terntono.
. , .
at A definição da nacionalidade,
que identifica a comunidade humana corresondente ao Estado, é uma competência de cada Estado. Mas as dependências
?nternacionaissão várias. Em primeiro lugar pode acontecer que os critérios de
~adaEstado concorram no sentido de que uma pessoa tenha mais do que uma
nacionalidade
ou nenhuma(apátrida).
por outro lado, quando a residênciafaz coincidir a competência territorial
e pessoal, não aparecem obstáculos ao pleno exercício das competências dos
Estados;mas se a residência dissociar as duas competências, surgem eventualmente questões de ordem internacional.
Se um português reside em França, conserva a totalidade dos seus direitos
como português; mas não está em condição de os exercer sem se conformar
com o direito interno francês que pode impedir tal exercício, por exemplo do
direito de votar. Por isso, aparecem os tratados que regulam bilateralmente a
situação dos residentes estrangeiros.
O citado artigo 2 S 7 da Carta da ONU diz que "nenhuma disposição da
presente Carta autoriza as Nações Unidas a intervir nos negócios que dependem essencialmente da competência nacional de um Estado." A interpretação
desta disposição não é pacífica e sabemos que é variável em função da evolução
da conjuntura. A questão dos direitos do Homem mostra como a comunidade
internacional fez variar, em geral no sentido restritivo, o âmbito da competência
exclusivados Estados. Neste fim de século, o direito de ingerência humanitária
(Bósnia,Ruanda) progressivamente restringe a área da jurisdição interna.
De qualquer modo, as competências
internasobedecem ainda à regra da liberdade do Estado, que se manifesta por exemplo na organização constitucional,
na forma do regime político, ou nos modelos de vida jurídica privada. É recente
a afirmação de uma competência
críticada comunidade internacional em relação
à conformidade da vida interna com padrões internacionalmente aprovados,
designadamente quando se trata de repudiar o totalitarismo ou o desrespeito
dos direitos do Homem, e isto não deixará de criar uma limitação à regra da
liberdade interna dos Estados. Talvez possa dizer-se que a tendência, consequência da interdependência crescente, é que os problemasinternostendem com
321
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
frequência crescente para se transformarem em internacionalmente
relevantes
que estes por sua vez tendem para internacionais.
'e
b) Competência externa
As competências
externassão integradas pelas prerrogativas
atribuídasaosEstad
paraagiremna comunidadeinternacional.
os
A primeira é o direitoderepresentação
activa e passiva, que exercem por interO pessoal diplomático, constituindo uma carreir
médio das missõesdiplomáticas.
hierarquizada, destina-se a exercer essa função. O embaixadoré o representant a
oficial de um Estado junto de outro Estado: a importância das funções exige
que o Estado hospedeiro dê o seu acordo (agrément) que pode revogar a tod~
o tempo declarando-o personanongrata.
O embaixador, por sua vez, entra em funções solenemente entregando as
cartas que o acreditam na sua qualidade e função - lettresde créance.O embaixador, os seus colaboradores e os seus familiares, bem como os lugares de trabalho e os serviços, gozam de uma série de imunidades (jurisdicionais, fiscais
e aduaneiras) para lhes garantir a liberdade de acção, tudo sujeito ao princípio
da reciprocidade.
relacionadas com a representaA missãodiplomáticatem funçõesprotocolares
ção do país nas cerimónias oficiais;funçãoderelação,pela qual conduz as negociações, as discussões, as trocas de pontos de vista entre os governos usando as
comunicações
escritase verbais;uma função deinformação,mantendo o seu governo
actualizado quanto ao conhecimento do que de relevante se passa no país onde
está acreditado;função deprotecçãodos nacionais.
diplomáticascorresponde a um estado de tensão gravee,
A rupturade relações
designadamente, precede usualmente a declaração de guerra. Um acto menos
grave, e que pode anteceder aquele, é a chamadado embaixador,que pode suspender de facto as relações diplomáticas directas. Os Estados costumam, nestas hipóteses, recorrer a um terceiro Estado para os representar.
Os recursos técnicos de todas as formas de comunicação, a rapidez das
mesmas, e a multiplicação das relações internacionais que não são exclusivamente políticas, estão a condicionar a função tradicional da missão diplomática
em dois sentidos: o relacionamento técnico, científico, económico e militar,
multiplica os especialistas (conselheiros e adidos) que integram o pessoal do
ministério e a missão; as facilidades de comunicação multiplicam os contactos directos entre os governantes, e o uso da missão com a simples função de
correio (nuntius).
Por outro lado, a Guerra Fria intensificou a função da informação em termos que se aproximam com frequência da clandestinidade, o que implicarestrição, sempre melindrosa, da circulação dos diplomatas e uma vigilância que
322
OS INTERVENIENTES
·Jrnente fere a dignidade das missões e dos Estados. O declínio das funções
missão diplomática parece certo, mas não podem ser dispensadas,
, •
•
,
• 26s
P s pelo contrario,
como mstrumento tecmco .
que historicamente são anteriores à missão dipl~máant~s serviçosconsulares,
aosnacionaisdoseuEstado.E um
. desempenham umafunçãodeajudaeprotecção
tica~ionário designado pelo Estado para exercer funções noutro Estado onde
fu? tem colónias de emigrantes, ou com o qual existem relações de ordem ecoexts
.
.
órnica, podendo ser que se recorra a um nac10nal do Estado de acolhimento,
11
geral quando os interesses não são de grande monta. O cônsul funciona
01
e0010 oficialde registocivil(casamento, registo de nascimentos, emissão de cercidões e passaportes, documentação comercial), de notário(contratos, testa~entos, etc.), de funcionáriojudicial (notificação), de informador em matéria
económica, e autoriza a entrada de estrangeiros no seu país concedendo o visto.
Asua função é administrativa, não política.
Uma das prerrogativas mais importantes do Estado é a que os ingleses chamam treaty-makingpower:
qualquer Estado pode iniciar negociações com outro
ou vários Estados até chegar a um tratado. De facto, este poder traduz-se em que
osEstados são legisladores, e apenas obedecem às regras que criam. Um tratado
é um acordoentreEstadoscomo objectodeproduzirefeitosdedireito.O Estado tem o
direito de recorrer à justiça internacional, tem legitimidadepara isso, embora a
jurisdicionalização das relações entre os Estados seja extremamente deficiente.
O Tribunal Internacional de Justiça, previsto no artigo 92 da Carta da ONU, e
com sede na Haia, tem competência, segundo o artigo 36 do seu Estatuto, que
"seestende a todos os litígios que as partes lhe submetam, e todos os assuntos
especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou nos Tratados e convenções vigentes." A regra é, portanto, a da voluntariedade da submissão.
É por isso que o direitode celebrartratadose o direito de estaremjustiça não
conseguiram até hoje eliminar o direitode recorreràforça e portanto a competênciadefazeraguerra.É verdade que o Pacto da Sociedade das Nações restringiu
o conceito de guerra legítima, e que o chamado Pacto Briand-Kellogg (1928)
condenou o recurso à guerra. Foi a partir deste texto que os aliados, no fim da
guerra de 1939-1945, instituíram o Tribunal de Nuremberga e o de Tóquio para
julgar os dirigentes políticos e militares das potências vencidas e considerados
responsáveis pela Segunda Guerra Mundial.
A Carta da ONU também diz (artigo 2 S 3) que "os membros da Organização se abstêm, nas suas relações internacionais, de recorrer à ameaça da força
ou ao emprego da força". Acontece porém que algumas acções de força são consideradas legítimas (legítima defesa, libertação colonial, acção do Conselho
1
faC , icas da
o 11t
' '" Marcel Merle, La vie internationale,Paris, 1963, p. 29 e sgts.
323
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
de Segurança para eliminar a ameaça de guerra ou a agressão em curso, ac _
de polícia da ONU), e na aplicação desse conceito fica muita margem par Çao
conflitos armados, acrescendo o arbítrio que não pode ser eliminado porª os
é uma decorrência do poder que o Estado possui efectivamente.
que
Na situação actual do mundo, os Estados continuam a poder decidir recor
, e
,
• d f:
,
. ,
l
ter
a 1orça, e a competenc1a e azer a guerra e uma prerrogativa a qua renuncia
apenas em face de circunstâncias que raras vezes se reúnem. Assim, a neutra/ida:
ordinária, ou decisão de não intervir num conflito armado, é sempre possívet
permanenteé um estatuto adaptado por vári '
e sempre revogável. A neutralidade
Estados: Suíça (Declaração de 20 de Março de 1815), Áustria (Constituição ~s
1955), Laos (21 de Julho de 1966). No passado foi tentada, antes da guerra de
1914-1918, pela Bélgica e pelo Luxemburgo. Mas os factos mostram que, se:
interesse dos agressores o exigir, não hesitam em violar a neutralidade. O que
significa que não é neutral quem quer, só é neutral quem pode.
Deste estatuto se distingue o neutralismo,uma atitude política dos países do
Terceiro Mundo que se concertaram, durante o bipolarismo e a Guerra Fria
para não alinharem com nenhum dos blocos, ocidental ou soviético. Mas nã~
renunciam à competência de fazer a guerra, à qual recorrem com frequência.
e) Igualdade e independência
No sentido de compensar a desigualdade
dopoder,os Estados viram reconhecidas
pela comunidade internacional duas condições que são garantiase não direitos
ou liberdades: a igualdadee a independência.
Existem várias tentativas de justificação destas garantias, que se traduzem em aplicar ao Estado as considerações
que justificam os direitos individuais inalienáveis e iguais das pessoas. Podem
em todo o caso ser entendidas como garantias destinadas a salvaguardar um
bem comum que é a paz geral. O artigo 2 S1 da Carta da ONU diz que a Organização se funda sobre a igualdade soberana de todos os seus membros.
A independência
é um corolário da igualdade, e também se confronta com a
realidade das interferências de uns Estados no processo da formação da vontade
dos outros. Basta reparar em que a independência não se verifica em isolamento,
mas sim em interdependência, para reconhecer que essa independência, quando
respeitada, e sem interferências provenientes de uma relação de poder, significa
uma discricionariedade dentro dos limites fixados pelo direito internacional.
Esta independência cede por vezes à interdependência
crescente e ao facto
variável da hierarquia dos poderes, dando assim origem, por vezes, a estatutos
jurídicosque exprimem a restrição da capacidade: o regime chamado de capitulaçõesque, a partir do século XVI, deu às comunidades cristãs estrangeiras,
instaladas na Turquia, um estatuto que as excluía da jurisdição territorial; 0
regime de porta abertaimposto à China pelas potências ocidentais no século
324
--
OS INTERVENIENTES
e que abria o seu mercado às iniciativas daquelas potências; o regime de
,(IX,sãoa soberaniasestrangeiras,
permitindo-lhesa instalaçãodeverdadeiros
enclaves
cotice:andes
cidadeschinesas;osprotectorados
dosocidentais,ou os mandatosda SdN,
,,as~ftdeicomissosda ONU, tudo são fórmulas de limitação das independências
d ., •
. 'dicamente ese1ave1s.
Jllr~bolidas tais formas jurídicas, nunca foi abolida a hierarquia de facto: a
granssificação, não apoiada em qualquer texto jurídico, de superpotências,
1
~ ª médiasepequenaspotências,Estadosexíguose micro-Estados,
corresponde a esse
ues,
' . e m1·1·1tar.
facto,basean d o-se sob retu d o na capac,'d a d e estrateg,ca
011°
z.os tipos de Estado: estrutura
0 Estado aparece na cena internacional como uma unidade, fonte de decisões,
masisso não significa que todos os Estados tenham a mesma estrutura, e a diferença das estruturas tem relevância para a vida internacional.
o Estadounitáriotem a soberaniaque o caracteriza externamente, e internamente não tem pluralidade de poderespolíticos.Mas existem modelos ou históricosou actuais em que as coisas se passam diferentemente.
No passado foram conhecidas as uniõespessoais,que se verificavam quando,
por aplicação das regras dinásticas, mais de um Estado ficava com o mesmo
soberano: foi o caso de Portugal e Espanha entre 1580 e 1640, da Grã-Bretanha e de Hannover entre 1714 e 1838, da Holanda e do Luxemburgo entre 1815
e 1890. Os Estados não perdem a sua personalidade internacional, mas é evidente que surge um factopolíticonovo com projecção nas relações.
A uniãorealresulta de uma decisão entre Estados habitualmente vizinhos,
os quais guardam a personalidade internacional, mas transferem certas competências para órgãos comuns, designadamente a defesa e os negócios estrangeiros:foi o caso da Suécia e Noruega entre 1815 e 1907, da Áustria e da Hungria
entre 1867 e 1919, entre a República Árabe Unida e o Iémen segundo a Carta
efémera de 8 de Março de 1958. Esta solução nunca teve existência duradoira
na vida internacional.
Já não acontece o mesmo com a confederação de Estados e com os Estados federais. Entre 1778 e 1787 os EUA foram uma confederação; a Suíça entre
1815e 1848; a Alemanha entre 1815 e 1871. Historicamente encontra-se uma
evolução normal da confederação para a federação. Na confederação a personalidade internacional dos Estados é mantida, e a forma assumida traduz-se
em transferir para órgãos comuns (a Dieta germânica, o Congresso dos EUA)
um certo número de competências internacionais. Isto significa que as confederações não coincidem no mesmo modelo, mas todas se caracterizam pelo
acordo de Estados soberanos no sentido de exercerem em comum certas competências internacionais.
325
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
As modernas organizações de defesa permanente, como a NATO, ªPro .
mam-se desse modelo que se caracteriza pelo exercício em comum de um c lCI,
d e competenc1as.
, .
el'to
numero
Finalmente, o regime federal, de que os EUA são o exemplo mais im
externas,e
tante, transferepara órgãoscentraiso monopóliodascompetências
269
• O modelo federal mo ar.
quizafinalmentea relaçãodospoderespolíticosestaduais
stra
portanto um governo central (ou federal), que coexiste com governosestadua·
ambos com um braço legislativo e outro executivo. Os dois governos estão su~~
metidos à mesma Constituição Federal, mas cada um deles é supremonas áre
da sua competência, e a legitimidade é popular e independente. Deste moct:s
opoderpolíticoestadualnão é uma delegação do poderpolíticofederal.
'
Trata-se por outro lado de um ponto em que se encontra um importante
elemento de meditação sobre a diferença entre a imagemque o Estado cuJ.
tiva e de que naturalmente a Constituição é simples elemento cenográfico, e
a realidadeda estrutura do poder político. Assim, a Constituição da URSS era
aparentemente mais larga nas atribuições de competências às repúblicas que
constituíam a União do que a dos EUA. As repúblicas soviéticas podiam teoricamente fazer a guerra, e algumas, como a Ucrânia e a Bielorrússia, tinham
representação internacional na ONU e o poder de celebrar tratados. De facto
a unidade do poder era assegurada pelo monopólio do partido comunista, ~
o Estado funcionava como unitário, com a descentralização e a desconcentração administrativas necessárias. Algumas correntes do europeísmo em vigor
são advogadas do federalismo europeu, que consideram a única forma política
superadora dos antagonismos do passado e das insuficiências de cada Estado
para encarar separadamente os desafios do futuro.
hitºr-
3. Sistemas políticos e regime político
As expressões Estado,sistemapolíticoe regimepolíticoaparecem por vezes usadas
como sinónimos, diferenciando-se pela caracterização ideológica acrescentada: socialista, liberal, comunista, teocrático, democrático, totalitário. Existem todavia questões que exigem uma definição operacional dos conceitos que
os autonomiza, as quais dizem respeito à própria identificação do objecto da
ciência política e, portanto, ao âmbito do fenómeno político.
O fenómeno essencial do Estado, na observação que se confirma desde Trasímaco na Repúblicade Platão, até às investigações sucessivas de Schaeffle, Max
"'ºAdriano Moreira, "Sistemas Políticos da Conjuntura",
in LegadoPolíticodo Ocidente,cit. Karl Lõwenstein, Teoríada la constitución,Barcelona, 1979, p. 23 e sgts., sobre o processo político e os tipos de
governo. Jean-François Revel, Le regaindémocratique,Paris, 1992, p. 457, sobre a tese do movimento
para a democracia mundial.
326
OS INTERVENIENTES
Gaetano Mosca, Heller, Thomas I. Cook, Catlin, Lasswell, Morgenthau
.
.
D ugmt,
. uma d·c
"'eber,
vY'
ond Aron, e, o poder e, portanto, como smtettzou
uerene.Rª!::ntre fortes e fracos, entre os que mandam e os que obedecem. Acontece
ciaǪ te fenómeno permanente não se manifesta apenas na organização social
quee~ determinado período histórico foi chamada Estado,porque designadaqueee foram realidades diferentes, com igual caracterização, a polisna Grécia,
. . me d'1eva1.
lflent
. . ehrzstiana
. eriumem Roma, a CIVltas
0
,,nÍor
isso, o Estado é uma espécie do género organização
políticadassociedades,
ta de acordo com aquilo que Zubiri chama o fenómeno da homologia,tem
ees rocura
'
· ' · abrange uma popu 1açao
- e pro duz um po der, vanan
. do
um terntono,
oupdefinição d o sistema
.
/'
.
d
.
/'
.
po 1tzcoe o regimepo 1t1co.
na O Estado soberano é uma forma de organização política ocidental que se
desenvolveuna Europa a partir do século XIII até ao fim do século XIX, e que
eOlcomo características específicas, em relação às formas anteriores, a passat em do senhorio
territorialpara a soberaniaterritoria!,a alteração da relação entre
~ poderespirituale o poderpolíticoque a Igreja introduzira para firmar a supremacia do primeiro, o primado da política no sentido de organizar e satisfazer
as necessidades terrenas da comunidade, a progressiva despersonalização do
comando pela evolução do conceito de ojficiume, finalmente, como escreveu
MaxWeber, a acentuação do monopóliodaforça legítima,que receberia a designação de soberania.
As definições do Estado, que atendem apenas aos elementos estruturais e
permanentes de qualquer das formas de organização política das sociedades,
usam colocar o acento tónico em um dos elementos: a) "o Estado somos nós",
disse Kelsen ao definir a democracia como o governo do povo pelo povo; "o
Estado é a forma viva do povo ... É o próprio povo", disse Herder na orientação
do nacional-socialismo; b) evidenciando a permanente diferenciação entre
governantes e governados, o Estado é visto como a sede do governo efectivo:
"nous avons vu que tout l'État est en la personne du prince" (Bossuet): "L'Érat
c'est moi" (Luís XIV); o dominador soberano confunde-se com o Estado, concluiu Bornhak; e) embora desde Bodin a Kant as definições do Estado não dêem
primazia ao território sobre o qual a comunidade existe, deve recordar-se com
Jellinek que a teoria patrimonial da Idade Média atendia sobretudo ao território e fazia derivar o poder político da propriedade do solo; d) o poder político
caracteriza outra linha de definições, para a qual o Estado é um certo governo
de vários grupos e do que lhes é comum, usando um poder soberano, perspectiva que informa toda a obra de Jouvenel.
É em relação com o elemento poderpolítico,que aparece em todos os tipos de
organizações políticas das sociedades, que se perfilam os conceitos de sistema
políticoe de regimepolítico.A utilização actual do conceito mais vasto de organi327
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
zaçãopolíticaé imposta porque o próprio Estado, depois do seu aparecirnen
sofreu variações consideráveis, sobretudo a partir do século XIX, e o fenórn/º•
da luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder político excede extetº
.
..
"d esse po d er: apareceu um Feudna
e internamente
os qua d ros orgamzac1ona1s
lismo interior dos poderes de facto no mundo do trabalho, das empresas daideologias, dos partidos, das internacionais políticas; estruturam-se depenct, as
cias e solidariedades externas na defesa, na economia, na ciência, na cultu:nna política, que afectam os conteúdos e definições da soberania e a função d~
aparelho que a exerce.
A primeira necessidade de limitar operacionalmente os conceitos de siste,n
políticoe regimepolíticodecorre da verificação de que o Estado, entendido comª
aparelhodopoder,não coincide necessariamente com o sistemapolíticointegral,
ne;
interna nem externamente, porque os contrapoderes internos têm de ser considerados, e porque frequentemente se articula com uma organização política que
o excede internacionalmente, mesmo sem o consentimento da soberania.
A noção teórica de sistema, como vimos, é, nesta área da ciência política, a
mesma utilizada nas outras áreas das ciências sociais: um conjunto de elementos com identidade própria, interdependentes por um feixe de relações, e que
se perfilam dentro de uma fronteira. Uma corrente de inputs(apoios e exigências) e outputs(decisões) estabelece a relação do sistemacom o ambiente,em cujo
ambiente se inscrevem outras organizações políticas, e a comunidade internacional no seu conjunto.
Mas o sistema pode ser considerado em dois planos: uma hipóteseinte1pretacomo acontece com o sistema marxista teórico; o contiva (sistemaobservante),
junto dasefectivasrelações
de interdependências vigentes, dentro de uma situação
concreta, e que constituem um sistemaespecífico(sistemaobservado).
No mundo actual, o sistema político observado abrange frequentemente elementos exteriores ao Estado, de modo que a fronteira do sistema não coincide
sempre com a fronteira do Estado. A forma como os vários elementos do sistema
interactuam, definindo um status e desempenhando funções, que produzem
resultados finais ou decisões, dá vida a vários tiposde regênciadossistemas,que
devemos chamar políticos porque é o fenómeno da luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder que constitui o elemento dinâmico do sistema, e
é para impor uma forma de regência do sistema que se ocupa o poder, fazendo
com ele variar as relações.
Justamente porque a questão do poder de reger o sistema é central, a definição do regime exprime-se num norma tivismo que visa disciplinar as relações
entre os elementos do sistema, e esse normativismo nunca é exclusivamente de
meios-fins, não é na totalidade eticamente neutral, tem apoios e contestações
internos e externos, decorrentes das diferentes escalas de valores, objectivos,
328
OS INTERVENIENTES
sses concepções do mundo e da vida que se colocam desafiantes perante
iotereões 'da tota l"d
. . - que constituem
.
1 ad e d os h omens e d as .mst1tu1çoes
a orgaasopÇ
l' .
. ção po 1t1ca.
oiz~ facto de o sistema político exceder hoje frequentemente o Estado enten·do como aparelho do poder soberano, tem consequências na qualificação
dt te na comunidade internacional, umas vezes sem expressão jurídica, outras
de~ ela: as designações de superpotência, grande potência, média potência
co Estado exíguo, correspondem ao primeiro caso; as designações de Estado
oussaloou Estado protegido corresponderam ao segundo, mas se os estatutos
:cíclicos caducaram, os factos produziram realidades equivalentes.
J o regime político pode, portanto, não abranger a regência de todo o sisceJlla,nem interna nem externamente, e os elementos que ficam subtraídos a tal
regênciarepresentam, no ambiente decisório do poder político, limitações que
fazeJllcom que as expressões Estado, soberania e poder político não tenham o
Jllesmoconteúdo para todos os regimes observáveis e formalmente equivalentes, designadamente possuindo constituições escritas coincidentes.
Por outro lado, as disfunções possíveis do sistema, resultantes da variação
dasmaiorias, ou do recurso à força, como as greves, os golpes de Estado, as revoluções,as ameaças ou pressões e agressões externas, implicam que, na luta pela
aquisição,manutenção e exercício do poder político, tenham de aparecer concepçõesdiferentes sobre a pilotagem e funcionamento do sistema, com expressões normativas, valorativamente comprometidas, que entendem impor uma
formade regência do sistema e não outra, o que necessariamente exige uma definiçãovariável dos vários statusefunçõesdos elementos componentes, formuladas
de uma perspectiva conservadora, reaccionária, reformista ou revolucionária.
Por isso, sendo a força inerente ao fenómeno político, o regimepolíticose traduz, no dizer de Jiménez de Parga, "na solução que se dá defacto aos problemas
políticos de um povo".
Estas circunstâncias fazem com que o sistemapolíticoe o regimepolíticopossamnão coincidir, na medida em que o segundo, embora proclamado e modernamente com expressão numa Constituição, pode não ter assumido a efectiva
regência do sistema ou da sua totalidade. A guerra civil duradoira, que caracteriza muitos Estados actuais, corresponde a esse facto.
Haverá eventualmente então um fenómeno de falta deautenticidademedida
pela distância entre o proclamado e a realidade; também acontece que o regime
político proclamado é intencional e puramente semântico, isto é, verbal e para
fins de imagem, porque o regime real é outro. Quando um regime se proclama
democrático e redige uma constituição semanticamente correspondente à
matriz invocada, mas vive dezenas de anos em ditadura de partido único, o
regime político real não é o invocado. Quando um regime se proclama sacia329
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
lista, mas vive em economia de mercado paralela às leis, a falta de autentic·
é evidente. O normal, porém, é que o regime proclamado corresponda à tdade
cie de voluntarismo que pretende reger o sistema, e por isso as definiçõeespé.
s dos
regimes políticos não omitem tal perspectiva.
Assim, o Dizionariodi politicafascista (Roma, 1940, Vol. IV, pp. 31-3S) .
.
. tres
• e1ementas no regime:
.
· b) a massa•dis
a) o capoe a c1asse po l'1t1ca;
)·
tmgu1a
fórmula. Isto correspondia à famosa definição de Chiarelli: "um comple;oc ª
instituições coordenadas no sentido do desenvolvimento de uma determin de
concepção do Estado e da Sociedade". Não é realmente diferente a forrnadiª
,
d emocrattca.
'.
Ass1m,
. o acata d o Bur d eau escreve que"ua.·
ção que vem d a area
regime político é o estado de equilíbrio em que se fixa num momento d~lll
uma sociedade estática e que se caracteriza pelas soluções que adapta quan
à fonte, objecto e modo de estabelecimento do direito positivo". Para Duvto
ger, "um conjunto de instituições políticas funcionando em determinado pa~:em certo momento, constitui um regime político".
'
Em qualquer dos tipos se encontra sempre uma referência ideológica (liberal, socialista, comunista, democrática, fascista, terceiromundista) ou uma ideologia de recusa; um modo concreto de organização (Estado unitário, regional
federal) em que têm especial relevo as estruturas, função e objectivos dos par~
tidos políticos; e uma visão da estrutura social.
As exigências principais de método estão em considerar no conceito de
regimeapenas o Estadocomo aparelho do poder definido, por exemplo, numa
Constituição, e no de sistema a estruturapolíticaintegral,incluindo por exemploos
partidos proibidos, os poderes de facto ou externos, e os contrapoderes, sendo
que esta última perspectiva é mais abrangente, tendo em vista os fenómenos
da falta de autenticidade e a variação de conteúdo daquela realidade básica.
O regime político traduz-se assim no conjunto de instituições, nem sempre com
expressão normativa, que regulam a luta pela conquista e exercício do poder de
reger o sistema, na totalidade se possível, em função dos valores que animam
as instituições participantes.
Vimos que os sistemas políticos homólogos têm mais de uma alternativa
no que respeita ao regime político, sobretudo no que toca à estrutura01ganizativa do poder político, que assegura a selecção da classe política em exercício,
os status e função dos componentes desta, utilizando processos destinados a
garantir a regularidade dos comportamentos em função dos valores ou concepções de vida adaptados.
Trata-se portanto de condicionar a formação da vontade política, e os regimes são objecto de uma tipologia, que é plural em função do critério adaptado. A mais antiga tipologia foi herdada de Aristóteles, que atendia apenas
à estrutura organizativa, e distinguia entre a) monarquia,ou governo por um
°
330
OS INTERVENIENTES
. ) aristocracia,
ou governo por alguns; e) democracia,
ou governo por todos.
so;b or assente que a concepção fundamental da vida era comum aos interª"ª
p no processo po l'mco,
. e o mteresse
.
. do po der, cons1.
. ntes
gera 1o ob"iecuvo
º
ve11':doque cada uma das formas tinha um equivalente degenerado quando
derales pressupostos eram abandonados pelos governantes: a tirania,a o/igar3que
.
. e a demagogia.
qu,a,
·
A teoria das elites,
que sustenta que o po der, mesmo na chama da monar. pertence sempre finalmente a um pequeno grupo seja qual for o regime,
qu1a,
duziu a tipologia a puramente formal.
re Daqui resulta a importância que assumiu a perspectiva já sociológica de
Montesquieu, que distinguia entre república,monarquiae despotismo,atendendo
à combinação de dois critérios: a naturezae o princípiodogoverno.A primeira
atendeao número de detentores do poder (todos na república, e apenas um na
monarquiae no despotismo) e à forma de exercício (o monarca está submetido
a leis,o déspota usa o arbítrio) ; o princípio do governo, correspondente ao que
hojechamamos valores orientadores , tem que ver com a teoria da obediência,
e conclui que a república assenta na virtude,a monarquia na honra,e o despotismono medo,pelo que se pode entender que este engloba a generalidade dos
regimesdegenerados de Aristóteles.
O desenvolvimento da perspectiva sociológica conduziu a relacionar os tipos
dosregimes com as diversas formas de luta para adquirir e manter o poder político,e estas com o condicionalismo social e político, interno e internacional, em
queessa luta se desenvolve, tendo essa perspectiva a sua expressão mais saliente
em duas orientações: o materialismohistóricoe a razãodeEstado.
A primeira faz depender o tipo de regime político da evolução do modo
de produção, e assim tipifica a democracia apenas dos homenslivresna cidadeburguesa,o
-Estado,o despotismooriental,o feudalismo,a democraciarespresentativa
socialismo
proletário.
As críticas a este critério, que, sendo embora de fundamentação variada,
todas podem reunir-se na perspectiva geral da razãode Estado,não ignoram a
importância do sistema de produção e do acesso à distribuição da riqueza, mas
sustentam que outros factores, incluindo o sistema cultural, os fins da comunidade e seu condicionamento, e designadamente o papel do Estado na vida
internacional, estão incluídos na explicação do tipo de regime adoptado. Por
exemplo, a estrutura organizativa do poder na Inglaterra, caracterizada pelo
autogoverno local e pelas liberdades públicas, tem relação com a insularidade
que dispensava a centralização e o militarismo para que foram conduzidos,
por razões internacionais, os poderes continentais, como a França, a Espanha
ou a Alemanha.
331
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Os novos Estados, nascidos da descolonização moderna, assumem tip
autoritários de regime, entre outras razões que decorrem da falta de identida~s
nacional das populações e do seu pluralismo étnico e cultural, porque um ~
grupo (partidoarmado,Jorças
militares,grupoétnico)assume o poder e o objecti:o
0
da unidade, e esse grupo não teria, mesmo que o pretendesse, recursos humano
8
para responder às exigências de um regime baseado na divisão de poderes.
Daqui uma relação entre o subdesenvolvimento
e a concentração
do poder (reg·.
1
mes de partidoúnico,poderpessoale autoritarismo)e entre as sociedades
afluentese
descentralização
e desconcentração
depoderes(federação,
Estadosregionalizados,
pode:
local,instituiçõesdemocráticas).
Pressupondo que existe e pode ser graduado o desenvolvimento político
tendo como padrão de referência as democracias ocidentais (especialmente 0 ~
EUA, a Inglaterra e a França), aparecem as tipologiasdesenvolvimentistas,
a mais
divulgada delas sendo a que Edward Shills apresentou em 1950 ao Committee
on Comparative
Politics:a)Democracias
políticas:diferenciação de funções e espeexecutivosejudiciais,partidospolíticos
cialização das estruturas (órgãoslegislativos,
gruposdeinteresses,
órgãosdeinformação).
b)Democracias
tutelares:concentração d~
poder no executivo, apagamento do poder legislativo, dependência do poder
judiciário, falta de alternância, tudo com o proclamado objectivo de conduzir o
modernizantes:
não existe autenregime para a democracia política. e) Oligarquias
ticidade, forma constitucional nem alternância no poder, o regime é ditatorial,
e o seu objectivo proclamado é o desenvolvimento económico. d) Oligarquias
totalitárias:de partido único, ou chefia personalizada, sem alternância e com
imposição de uniformidade ideológica, que compreendiam os regimes soviéticos das várias tendências e os extintos fascismo italiano e nazismo alemão.
e) Oligarquiastradicionais:a elite dirigente recruta-se na base do parentesco e
do status,tem geralmente forma dinástica, e apoia-se no costume mais do que
em qualquer constituição racional-normativa. Outros autores, como Gabriel
Almond e Bingham Powell, introduziram variações na tipologia sem abandonar o critério.
Partindo da teoria da obediência, a qual procura determinar as razões pelas
quais a regência do sistema é acatada com esporádica intervenção da força, aparecem dois grandes tipos: democracias e monocracias 270 • As democracias são
regimes que se orientam pelo objectivo de estabelecer juridicamente as "técnicas da liberdade" individual, de modo que o poder se baseará no consentimento
n o E. Shills, Politicaldevelopmrnti11theNeivStates,Haia, 1962. Olivier Duhamel, Lesdémocratics,
régimes,
histoire,éxigrnces,
Paris, 1993. Antoine de Baecque (dir.), Unehistoiredeladémocratiern Europe,Paris, 199l,
p. 74, onde vem o estudo de René Girault, 1989:lesrévolutionsdémocratiques,
sobre o processo democrá·
rico na URSS e satélites. M. Jiménez de Parga, Los régimrnes
políticoscontemporáneos,
Madrid, 1965.
332
OS INTERVENIENTES
d 5 ficando as maiorias obrigadas a respeitar os direitos das minorias,
de ro ºu;ada a alternância no exercício do poder. As "técnicas da liberdade"
e :1s~eg
em a uma tipologiaconstitucional,falando-se em regimes presidencialistas,
,on ~:bleiasparlamentares,
ou dualistas,variantes orientadas pela mesma condeas: de vida, cujo principal texto são as Declarações de Direitos do Homem.
0
cepǪcepçãodos direitos do Homem inspira uma nova tipologia, que se orienta
A~o~istinção entre garantia das liberdades
formais (democracia clássica) e efec~eª ão dos direitossociais(democracia progressiva).
uva~osregimesmonocráticosé eliminada a necessidade do consentimento de
dos como condição de legitimidade do poder e da obediência voluntária,
co luiu-se a alternância, e em vez da vontadeda maioriafala-se nos interessesda
(sovietismo) ou nosinteresses
maiores(nacionalismo) como fonte de legitiex~oria
m~dade.A monocracia pode ter sede num chefe(regime de poder personalizado,
:rno no III Reich), num partidoúnico(sovietismo, fascismo), nas forçasarmadas
{terceiromundismo),numa instituição(teocracia iraniana). Quando a monocraciaimpõe uma concepção ideológica fala-se de totalitarismo,e quando apenas
propõe tal concepção fala-se de autoritarismo,embora a diferença de teses não
conduzasempre a hipóteses diferenciáveis.
o conceito de totalitarismodeve ser aproximado dos conceitos de ditadura,
despotismo,
absolutismo,autocraciae autoritarismo.A palavra ditadura é empregue
primeiro no sentido romano (órgão extraordinário, designado constitucionalmente, por tempo determinado, para debelar um perigo ou crise transitória
externa ou interna). No sentido moderno, designa os governosdecrise,previstos
designadamente no art. 48 2 da Constituição de Weimar, e transitórios; ou o conjunto de regimes antidemocráticos ou não-democráticos, segundo o modelo
ocidental, sem fundamento constitucional anterior, por tempo indeterminado,
sem poderes limitados pela duração e definição de uma emergência, designadamente a guerra, sendo portanto um regime ilimitado no tempo.
Enquanto que as duas primeiras formas (ditador romano, governo de crise)
podem chamar-se constitucionais porque derivam da lei existente e visam salvaguardar a forma e objectivos do regime que voltará à plena vigência debelada
a causa da instituição, a terceira parece ter-se autonomizado com a instauração
do governo da Convenção Francesa de 10 de Outubro de 1793, invoca a legitimidade revolucionária, e considera-se legitimamente em exercício até à imposição da utopia directora, assumindo portanto poderes constituintes.
Neste caso, o poder não está necessariamente nas mãos de um homem (ditador),mas pode antes estar nas mãos de um grupo (convenção,
assembleia,
partido)
ou, na pretensão teórica de Marx, nas mãos de uma classe (proletariado).
A expressão despotismo,no sentido clássico de Aristóteles, designa ou a ditadura própria dos povos orientais, cujo regime era então assimilável ao da relação
333
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
entre senhor e escravo, ou a degenerescência dos regimes monárquicos oc·
tais no sentido dos séculos XVII e XVIII. Servia para designar as manar Id~n9~1as
de poder ilimitado, podendo embora ser um despotismoesclarecido
ou despo
legal,guiados pela razão e noção de progresso. Neste sentido, despotistisnio
llloe
.
_
.
. , .
ab so lutismo sao praticamente smommos.
A palavra autocracia, usada especialmente pelos monarcas russos, teve .
nificado variável, mas designa um grau máximo de poder absoluto (autocr sig.
independente dos súbditos ou de qualquer outra instituição. Autores c~ta),
Hans Kelsen simplificaram a classificação, considerando autocráticostodo:º
regimesnão-democráticos.
O mesmo aconteceu com a expressão autoritaris os
.
.
-d emocrático
ll'lo
empregue frequentemente para des1gnar
to dos os regimes
nao'
Todavia, no uso mais corrente, fala-se de autoritarismosem oposição a totalits~
rismos,como espécies de regimes não-democráticos: os primeiros caracte ~
r1zar-se-iam por uma moderação no que respeita à mobilização das massas e ,
penetração política da sociedade, designadamente por aceitarem limites éticoª
exteriores e superiores ao Estado, exógenos ao sistema, por exemplo a mora~
tradicional do país (católica), como se passava com o regime da Constituição
política portuguesa de 1933; os segundos não aceitam tais limites éticos superiores, exógenos.
Classicamente, falou-se de totalitarismoem Itália, na década de 20, para
caracterizar o chamado Estadofascistaitaliano em contraposição ao Estadoliberal.A Enciclopédia Italiana (1932),e Mussolini, afirmam a novidade de "umpartido quegovernatotalitariamenteuma Nação".Na Alemanha de Hitler, para todos
totalitária, preferia-se a expressão Estado autoritário, mas o totalitarismo ficou
deuma ditaduradepartido,incluindo o comunista. Assim concomo a designação
cluíram George H. Sabine, Carl J.Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski.
Na talvez mais divulgada e aceite caracterização, que é de Hannah Arendt, o
de onde deriva com absoluta certeza a totaregime totalitário tem uma ideologia
lidade do curso da história, destruindo os grupos e instituições que compõem
o tecido da vida privada, usando o temor como instrumento para obter a obediência, procurando traduzir nos factos a própria visão ideológica sem admitir
contradição de qualquer pluralismo. Cria por isso a categoria de inimigosobjectivos,isto é, todos os que podem ser obstáculo ao desenvolvimento do projecto
ideológico, mesmo que não sejam inimigos reais,isto é, os opositores conscientes à restauração do regime, e tal como aconteceu com os judeus exterminados
na Alemanha e os pequenos agricultores liquidados na URSS271 •
' " HerbertSpiro, Totalitarismo,in E11ciclopedia
IntemacionaldelasCienciasSociales,vol.10, 1974. Hannan
Arendt, The originsof totalitarism,N.Y., 1994. Carl J.Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski, Totalitarian
DictatorshipandAutocracy,N.Y., 1956. R. Aron, Démocratiect totalitarisme,Paris, 1965.
334
OS INTERVENIENTES
xpressão organizativa do Estado totalitário é geralmente definida nesA emos: a) uma ideologia oficial que não reconhece validade ao pluralismo,
cesternge todos os aspectos de vida do homem, sem distinguir sociedade civil
, . como mstrumento
.
d e d omm10,
, . gma. d o por um
e abra
ado; b) um parti "do umco
e Es;eou ditador; e) a salvaguarda policial que tem como inimigos não apenas
~b;•víduos,mas grupos em relação aos quais funciona a noção de culpa abstracta
111 1
guês, judeu, agricultor) e não da culpa concreta de cada homem (inimigos
(t~;ctivos); d) monopólio da informação e das forças armadas; e) serviço ceno 1.zado da economia, sob dependência burocrática; f) utilização programada
1
era,
da propaganda e do terror.
para Arendt, são elementos essenciais a personalização do poder (com o
derivado do culto da personalidade) e o objectivo de transformar a natureza
humana para obter a obediência sem réplica (os asilos psiquiátricos para internar os opositores), e apontando como exemplos apenas a Alemanha hitleriana
(depoisde 1938) e a Rússia soviética (depois de 1930), enquanto que Friedrich
e Brzezinski acrescentam o fascismo italiano, o comunismo chinês e os satélites soviéticos.
Por seu lado, o famoso Raymond Aron caracterizava o totalitarismo pelo partido único monopolista do poder, pela ideologia que exprime a verdade oficial,
e O controlo da sociedade civil pelo terror policial e ideológico.
A novidade do totalitarismo, na forma que assumiu neste século, não impediu os autores de indagarem por antecedentes históricos. Assim, Neumann
chamou ditaduras totalitárias ao regime franquista de Espanha e ao império
de Diocleciano em Roma; o tradicional despotismo oriental, tantas vezes referido pelos clássicos, foi lembrado por Karl A. Wittfogel, assim como o regime
de Calvino (1555-1564) em Genebra foi recordado por Moore.
Existem traços de semelhança irrecusáveis nestes recordados modelos, mas
o totalitarismo moderno tem pontos originais, designadamente a mobilização
política permanente e total da sociedade civil, a transformação social imperativa,a fusão entre o público e o privado.
Por outro lado, as condições do mundo moderno produziram factores que
determinam as características do totalitarismo contemporâneo, designadamente: a sociedade de massas; a tendência para a criação de grandes espaços
políticos; a divisão mundial consequente em vastos teatros estratégicos, económicos e ideológicos, em busca de pilotagem ou direcção política; a submissão à
tecnologia; a industrialização destrutiva das antigas instituições que deixa isolados e permeáveis os indivíduos ao cimento das ideologias políticas; a constante
preparação bélica; os meios técnicos disponíveis para a direcção centralizada
das massas e da economia. A organização destes espaços pelo consentimento
(Mercado Comum, por exemplo) é a alternativa democrática.
335
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A costumada luta semântica, sobretudo depois do início do período q
foi chamado Guerra Fria, transformou a expressão totalitarismonum elemenue
.
. contra o ad versano,
' · e fi1couparticul to
permanente d o d 1scurso
e fi1cazpo l'1t1co
mente abrangente dos regimes de inspiração marxista, mas o seu traço do;~nante parece ser a total indiferenciação, perante o poder político, do púbH/
e do privado, isto é, do Estado e da sociedade civil. Por isso a ideologia exciu ?
vista e excludente do pluralismo, o partido único, o ditador e o terror, são el::
mentas constitucionais que permitem identificar o totalitarismo.
4. Nação e povo
As palavras Naçãoepovosão frequentemente empregues como sinónimos, talvez porque as relações entre a realidade que com elas se pretende exprimir, e 0
poder político, nunca podem ser rigorosamente delimitadas, e as fidelidades
que este exige não apelam sempre para os mesmos valores. Nota Shafer que, na
Idade Média, um homem deveria sentir-se primeiramente cristão, depois burguinhão, e finalmente francês, em sentido inteiramente diferente do actual.
A hierarquia das fidelidades foi alterada pelo tempo, ao menos no Ocidente
de tal modo que a Nação se transformou num valor cimeiro determinante d~
organização política, do direito internacional, e até de orientações ideológicas.
Mas continuamos a lidar com realidades chamadas globalmente Naçãoárabe,
assim como Gioberti fala da Naçãoeuropeia,
outros em Naçãoeslava,sem que a unidade política ou o sentimento popular cubram o fenómeno a que as expressões
se referem, e na tradição americana usa-se a expressão the Nation and theStates
para designar uma comunidade nacional pluriestatal embora federativa.
Daqui resulta que a palavra povo tem aparentemente mais relação com a submissão ao mesmo poder político, sem que necessariamente constitua uma Nação,
e esta é ainda a regra no mundo contemporâneo. O povodo Estado soberano da
Califórnia é parte da Nação americana, os povosdos Estados resultantes do anticolonialismo moderno não são nações, e a Naçãoalemãesteve dividida em dois
Estados com o respectivo povosubordinado a fidelidades políticas diferentes.
Sendo certo que a Revolução Francesa de 1789 marca o início da importância actual do princípio das nacionalidades, a hesitação da mudança encontra-se
na incerteza da linguagem com que divulgou os seus princípios. A Encyclopédie
tinha proposto, no século XVIII, que a expressão Naçãodesignasse o conjunto
de povossubmetidos ao mesmo governo, de modo que se tratava de uma síntese
que absorvia os regionalismos culturais e políticos, problema que enfrentaram
as monarquias centralizadoras, e que constitui hoje objectivo fundamental dos
Estados que foram colónias das soberanias europeias.
Mas a definição, nestes termos, refere-se mais a um projectonacionalque anima
um programa político, do que a uma realidade cultural existente. Quando 0
336
OS INTERVENIENTES
•
32 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791, afirmou
0
arug"oprincípiode todaa soberaniaresideessencialmente
na Nação",provavelmente
. o coniunto
.
d os tresestadosrepresenta d os na eonst1tumte,
. .
q.ueda tinha em vista
um corpo moral com identidade, isto porque, nas constituições de 1793,
e º:no III, do ano VIII, de 1852, se fala na soberaniadopovo,e o povo é definido
doscidadãos.
do1110a universalidade
co O fundamental é, nesta fórmula última, a relação entre o poderpolíticoe o con, todaspessoasqueabrange,não o é a natureza das relações que eventualmente
carácter nacional a tal conjunto de pessoas porque o Estado pode ser mul0
inacional, ou não corresponder a uma nacionalidade. Todavia, o princípio das
t acionalidades tornou-se num princípio-guia do legado político ocidental, o
nual princípio outras áreas culturais procuraram adaptar, de tal modo que se
;eivindica que exista uma relação de coincidência entre a Nação e o Estado, e
apenas nessa hipótese se afirma que uma Nação é livre, em face da comunidade internacional; é um problema diferente o de saber se os seus membros
são livres dentro do Estado, e aqui está a sede das questões referentes à participação na direcção política. Surgem portanto os problemas de saber o que é a
Naçãoque anima o princípio das nacionalidades independentes, porque é que
calprincípio se tornou dominante no legado político ocidental, e que aplicação concreta encontrou.
Em primeiro lugar a filosofia liberal, que sempre hesitou entre considerar o
votocomo um direito ou uma função, talvez devesse logicamente reconhecer-lhea primeira qualidade, o que significaria colocar a estabilidade e dimensão do
corpo político em constante discussão, contrariando a obra da monarquia centralizadora que procurou dar realidade espiritual e continuidade histórica aos
povosconduzidos para a unidade nacional, tornando permanentemente latentes
asquestões dos regionalismos, e dos interesses transitórios de quem vota tendo
em vist a objectivos contraditórios com a manutenção dessa unidade; o voto
como função já implica o reconhecimento de um interesse comum e superior
aosinteresses privativos dos eleitores, interesse comum que se trata de defender
e preservar pela vontade maioritária manifestada, e não apenas de exprimir uma
coligação dos interesses específicos dos votantes que formam a maioria.
Esta questão não escapou a J.Stuart Mill, que concluiu: "existe uma nacionalidade onde se encontram homens unidos por simpatias comuns que não existem ent re eles e outros homens, simpatias que os levaram a agir de concerto,
maisvoluntariamente do que o fariam com outros, a desejar viver sob o mesmo
governo, e a desejar que este mesmo governo seja exercido exclusivamente por
eles próprios ou por uma parte deles".
A origem deste sentimento de nacionalidade, que dá unidade existencial ao
grupo com interesses próprios exigindo um poder político nascido do seu seio,
A
atr\
1;:
337
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
atribuiu-a a uma pluralidade de causas, agindo cumulativamente ou sepa
mente, no todo ou em parte, designadamente a etnia, a língua, a religi;ªda.
limites geográficos, a história comum, o orgulho e a humilhação partilho, 0 s
.
.
.
ados
h 1stoncamente em coniunto.
Podem verificar-se todos os elementos referidos sem que se manifes
exigência do governo próprio, e nesse caso o fenómeno cultural não será ete ª
plementado por uma vocação política de independência internacional, rnorn.
revolução interna, dirigida contra o AncienRégime,também necessitou de aasa
lar para uma fonte de legitimidade política, e foi na Nação, por vezes charn~;~
povo soberano, que a encontrou.
O povo soberano chega ao poder, no Ocidente, pela mão de precurso
res
como foram Espinosa ou Bayle, e de pensadores como foram Montesquie
Voltaire, Rousseau, Diderot, D'Alembert. Quando o abade Sieyes apresent/'
novosoberanono famoso ensaio Qu'est-ceque/e TiersÉtat?(Janeiro, 1789),coloc:
a Nação no centro da problemática política, partindo da oposição, formulada
pelo abade de Mably, entre os direitosdosoberanoe os direitosda Nação,apelando
para a vontade desta contra as ordens e os privilégios.
A definição deste corpo histórico ficou no Ocidente, na linha formulada
por Renan, com o acento tónico não na língua ou na etnia, mas sim no passado
comum e na vontade de realizar tarefas colectivas comuns agora e no futuro
uma espécie de plebiscito contínuo. Esta orientação subjectiva,da qual seria~
tributários Mazzini e Malraux, não foi independente do facto de ter em vista um
de
poder político consentido, e acentuou, na fórmula do último, "a comunidade
sonhos",que o aparelho político deve servir e não contrariar. Quando, na batalha
de Valmy, os soldados gritavam vivaa França,e não já vivao Rei, Goethe anotou
que assistira a um facto histórico de grande importância 272 •
Mas o conceito de Nação também se tornou importante, em vista da acção
devastadora de Napoleão, porque os alemães invadidos e humilhados não dispunham de um poder político unitário que defendesse o interesse comum dos
vários povos germânicos submetidos a centenas de soberanias. Aqui se verificou a validade do conceito do maquiavélico Morgenthau: "a Nação precisa de
um Estado. Uma Nação - um Estado é assim o postulado do nacionalismo, o
Estado nacional é o seu ideal".
Por isso se diz que Napoleão fez nascer um novo poder ao atacar a Nação na
Rússia, ao libertá-la na Itália, ao desafiá-la na Alemanha e em Espanha. Foi assim
272
Ernest Renan, Qu'est-cequ'unenation?,in Discourset confirrnces,Paris, 1887. Émile Bure (org.), Ernest
Renan et l'Allemagne,N.Y., 1945. C. J.H. Hayes, The historicalevolutionof modem nacionalism,N.Y.,J93l,
ne/suosviillppostorico,Florença, 1956.
H. Nohn, L'ideadei11azio11alismo
J.S.Mill, "Representative government", inAmericanStatePapers,Londres, 1952, cap.16, "OfNarionality,
as connected with representative government", p. 424.
338
OS INTERVENIENTES
Ficbte, vivendo as amarguras das guerras napoleónicas e as desventuras da
qlleão alemã, abandonou as suas críticas anteriores ao princípio das naciona~aÇdes e, nos célebres Discursosà Naçãoalemã,apelou para a unidade nacional
1idaO única base de reorganização do Estado e salvação da Alemanha.
corn
· a' vonta d e d os vivos,
.
.
' . e a cu 1tura h erOs [acrores alh e10s
a ongem
etmca
da parecem avultar na sua orientaçãoobjectivatalvez porque eram os que mais
da r;ntemente permitiam quebrar as fidelidades dos vários povosalemãesem
coleçãoaos váriosEstados,e ligar a fidelidade nacional a um Estado unitário e
re a
ficientemente poderoso.
su O processo político de unificação alemã foi por este caminho, com vicissiudes várias, incluindo o racismo que no século XX daria a tónica ao nacional~socialismo,o qual ~nexou violentamente ao III Reich territórios como o dos
sudetas e a própria Austria porque objectivamente os proclamavam habitados
or alemães. Exactamente o contrário do preceito de J. Stuart Mill, que dizia:
flogo que o sentimento de nacionalidade existe em algum lugar, há uma razão
primafade para unir todos os membros da nacionalidade sob o mesmo governo
que lhes pertença; isto é o mesmo que dizer que a questão do governo deveria ser resolvida pelos governados. Não se vê o que é que um grupo de homens
deveriaser livre de fazer, salvo procurar com quais dos diversos grupos colectivosde seres humanos pretende associar-se".
Se a Nação, quando se transforma num valor político, fica assim ligada a
uma certa atitude de exclusão em relação aos grupos diferentes, não se segue
que necessariamente inspire um nacionalismo agressivo. Enquanto entidade
colectivacom um valor próprio, é acolhida neste divulgado conceito de Joseph
de Maistre: "As nações são qualquer coisa no mundo, não é permitido ignorá-las, afligi-las nas suas conveniências, nas suas afeições, nos seus interesses
maiscaros".
Mas o acrescentamento jacobino da intolerância para com o estrangeiro,
já em 1798 era denunciado pelo abade Barruel, que usa a palavra nacionalismo
para designar a atitude que "tomou o lugar do amor geral". Então foi permitido desprezar os estrangeiros, enganá-los e ofendê-los. Esta virtude foi erradamente chamada patriotismo. Isto é diferente da consequência geralmente
admitida de que uma Nação, assumindo o nacionalismo, tem o dever patriótico de se armar e de se defender contra a opressão, e não tem relação lógica
ou valorativa com o nacionalismo, muito inspirado por Maurras, que coloca as
minorias culturais internas em situação de desigualdade, e anima a aversão e
agressividade contra o estrangeiro.
Passando dos conceitos ao comportamento, como faz Albertini, identifica·se a Nação pelo comportamento dos indivíduos que possa qualificar-se como
um comportamento nacional, com o que não se adianta muito sem uma prévia
339
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
definição dos critérios de referência. O critério principal é o da fidelidact
uma entidade chamada Portugal, ou França, ou Brasil, acompanhada de fid~
dades a valores de outra natureza, mas primando aquela sempre sobre diver : 1•
cias de grupo ou individuais, como a classe, a região, o estrato social, 0 grgen.
.
llpo
d e mteresses, o partido.
Fica ainda por definir então o valor cimeiro de referência do compor
menta, o que e' Portuga 1, o que e'F rança, o que e' Bras1·1, e daqm. partem correntta.
críticas actuais no sentido de fazer coincidir a Nação com um elemento ideot~
gico, subjectivamente ligado a um mito, objectivamente ligado eventualmen
.
d
., .
te
a um Esta do que proJecte o seu po er nas consc1enc1as.
Esta perspectiva parece favorecer a oposição entre os jogosdopodere a po
vezesnegadarealidadenacionalsubjacente, com predominância para os primei:
ros, e designadamente não explica as lutas pelas independências nacionais ,
margem das formações políticas ideológicas, e tira ou altera o significado d~:
heróis nacionais. Isto não quer dizer que a Nação não possa ser considerada
como elemento de uma ideologia, em mais de um caso, mas tem de aceitar-se
como uma realidade.
Em primeiro lugar, como se torna evidente no processo da Revolução Francesa, mas também é evidente na evolução do Estado para centralizado e burocrático antecedendo o seu aparecimento sociológico, a formação da Nação pode
ser o elemento de um projecto de apenas um sector do povo que deseja desencadear a solidariedade nacional pela miscigenação cultural e física de todos os
grupos politicamente unificados (integração, aculturação, miscigenação, sincretismo), e pode ser o projecto exclusivo do poder político (projecto nacional)
que tem como elemento estrutural afronteirafísica e pretende dar unidade, pela
criação de um sentimento nacional, à população que lhe fica submetida.
Nesta linha, como também se passa com os novos Estados de expressão oficial portuguesa, quando o regime soviético proclamava ter construído finalmente o Estadodopovointeiro(1983),estava a exibir uma pretensão dessa espécie
em relação ao pluralismo nacional, cultural, étnico e religioso que há séculos
existe dentro das fronteiras imperiais da Rússia.
Mas os grandes construtores dos Estados nacionais modernos, usando a centralização do Estado e a destruição dos poderes feudais e dos regionalismos,
pretenderam o mesmo e conseguiram fazer nascer a Nação pela transformação
qualitativa das solidariedades do povo submetido ao mesmo poder.
É neste sentido que se pode falar da Nação como ideologia do Estado buro·
crático centralizado, parecendo todavia que não há fundamento demonstrado
para entender, em vista dos exemplos de épocas diferenciadas, que a Revolu·
ção Industrial criou modos de produção que exigiam a definição de mercados
alargados à dimensão nacional, que assim seria o seu efeito, quando demons·
.ª
°
340
OS INTERVENIENTES
d mente a Nação como realidade precedeu em muitos lugares, como Portuªreferida Revolução; algumas nacionalidades modernas bem identificadas,
n:il,ª a Ucrâma,
· viveram
.
. exteriores;
.
i,submeti.das por po deres po 1'1t1cos
outras,
co!ll~0 Laos, ganharam a independência sem terem atingido a industriali' . d e po d eres mvasores
.
' agranos;
' .
colll
~ e perderam-na pe 1o d omm10
tam b em
0
z~çan~,como os palestinianos, perderam o território, do qual foram expulsos,
ª guO efeito de se intensificar o sentimento nacional; casos como o do Reino
~7do da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, parecem traduzir a lealdade geral
fidelidade à Coroa, mas sem perderem o sentido nacional de Inglaterra, de
E5cócia, de Gales e de Irlanda.
Se a causalidade parece ser diversificada para o aparecimento de cada
fenómeno nacional, a principal parece sempre política, e tem que ver com o
voluntarismo mobilizador de circunstâncias favoráveis não necessariamente
económicas mas também religiosas, étnicas, de simples defesa, perante uma
ameaçacatalisadora de grupos naturalmente diferenciados.
ANação pode ser pois um elemento da ideologia do Estado, como se disse
e está a acontecer com os projectosnacionaisdos Estados nascidos na sequência
do anticolonialismo contemporâneo, todos agrários, como acontece com os
Estados chamados de expressãooficialportuguesaque apenas dispõem das fronteiras físicas e da língua geral herdadas do colonializador, mas não de uma
Naçãoconstituída, porque a tal modelo não corresponde ainda o aglomerado
de etnias que compõem o povo respectivo.
Mas aconteceu também que à Nação, como ideia de obra ou de empresa
incorporada por uma comunidade que já atingiu tal forma, se agregam elementos ideológicos privativos apenas do regime eventualmente instalado, ou também participados pela comunidade. Deste modo, o racismoariano,e a missão
desta chamada raça, foi adaptado pelo nazismo com as conhecidas consequênciasna Segunda Guerra Mundial, incluindo a chamada SoluçãoFinalem que se
traduziu a liquidação de uns seis milhões de judeus (genocídio); o imperialismo
detradiçãoromanafoi adaptado pelo fascismo italiano, com as consequências
verificadas na guerra da Etiópia e na participação na Segunda Guerra Mundial;
serapátriadostrabalhadores
detodoo mundofoi acrescentado pelo Estado soviético
ao nacionalismo russo; descobrire missionaras terrasegentesdo Ultramarapegou-seao idealismo da Nação portuguesa durante séculos; ofardodohomembranco,
traduzido na obrigação de civilizar as terras e gentes conquistadas, completou
o nacionalismo da Coroa britânica; transformarosAndesnumaSierraMaestrafoi o
aditamento revolucionário acrescentado ao nacionalismo marxista de Cuba.
As lealdades nacionais, em todos os casos, foram utilizadas pelo Estado para
o desenvolvimento desses objectivos ideológicos, quer estes se tenham ou não
tenham incorporado à comunidadedesonhosnacional.
tíll
n:
341
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Também em cada comunidade nacional os seus elementos valorizarn ct·
1
rentemente os factores que compõem o ideário nacional comum, e po . fe,
Fernando Pessoa podia dizer "a minha pátria é a língua portuguesa", 08 j;~sso
durante séculos se despediam na diáspora dizendo "em Jerusalém, no ano eus
vem", uns falam na sua "terra de Nossa Senhora", alguns na sua "terra da
dade", outros na "terra dos meus antepassados".
rAssim como a Nação é um produto cultural, também acontece que a 8 r
dariedade nacional desaparece, ou muda de sentido, ou perde a vocação / lo exercício de um poder político privativo e nativo. O princípio das nacion
dades nunca teve aplicação generalizada e constituem uma minoria os Estadalos
do mundo que correspondem ao modelo. Algumas vezes porque tal princí .
e • sempre 1·
. d o pe la via
. b1·t·d
·
· a Estóniapio
101
1m1ta
1 ade em f:ace d a coniuntura,
e assim
Letónia e a Lituânia puderam ser independentes entre as duas guerras rnu'~
diais, mas foram absorvidas pela URSS no começo da segunda dessas guerra:
sem terem podido recuperar até 1992 o estatuto anterior.
'
Mas países como o Luxemburgo ou a Bélgica lograram encontrar viabilidade, o que não aconteceu durante a Guerra Fria com nenhuma das cinco
nacionalidades incorporadas na Jugoslávia. Nestes casos , a Nação existe com
destino político variável conforme a variação do ambiente político externo, e
assim checos e eslovacos encontraram algum tempo a viabilidade querendo
viver num só Estado, até à separação, tal como acontece com os cantões suíços. Mas verifica-se que a perda da viabilidade da independência, por razões
endógenas ou exógenas, conduz eventualmente à morte da consciência nacional, como aconteceu com várias comunidades europeias que já constituíram
Estados independentes, algumas sobrevivendo com um sentimento puramente
regional dentro de grandes nacionalidades contemporâneas.
Um dos problemas da evolução da comunidade internacional do nosso
tempo é que as exigências e desafios da mundialização, do internacionalismo
e da interdependência gerais estão a fazer aparecer afinidades novas, formais
ou informais, com o nome de grandesespaços,
os quais podem condicionar negativamente a viabilidade independente de várias nacionalidades, e até fazer nascer novas espécies de solidariedades que releguem para segundo plano nuns
casos, e façam desaparecer noutros, a Nação até agora viável e independente
no concerto internacional2 73 •
li:e
ª;.ª
'"' Durand, Confédérationd'États et Étatfédéra/,Paris, 1955, p. 180. Guggenheim, Traitédedroitinterna·
tiona/public,Genebra 1953, I, p. 582, e II, p. 583. Paul Reuter, Droit intemationa/ public,Paris, 1958,
p. 436. Visscher, Théorieset réa/itésC11droitilltemationa/public,Paris, 1953, p. 445.
342
OS INTERVENIENTES
oderes erráticos
S,os1'xperiência imemorial da perturbação interna de um Estado, suscitada
13,cis~e
;a armada, e com ulteriores repercussões na vida internacional. É o caso
pela~rra civil em que os insurgentes podem dominar partes significativas
da gu ritório, por exemplo dominando portos, aeroportos e linhas férreas de
~ote:tância internacional, o que obriga os Estados a um reconhecimento de
illlPºdestepoderefectivoque intervém também na ordem internacional. O fim
facto
ontenda levantará a questão do reconhecimento do novo governo como
dac'tt'mo e o d esaparec1mento
.
d o antigo,
.
, em causa a contmm. .
tu d o sem por
Jeg1 ' , .
d de do propno Estado.
ª Embora haja uma certa discricionariedade no reconhecimento, não existe
maarbitrariedade: os Estados orientam-se pela regra fluida de que "um governo
uue goza da habitual obediência da população com uma razoável expectativa
de permanência, pode dizer-se que representa o Estado em questão e como tal
está qualificado para o reconhecimento" 274 •
o mesmo acontece com um Estado que aparece de novo na vida internacional, designadamente um território colonial que se tornou independente
(Angola,Moçambique, etc.), ou que se separa do domínio de outro Estado, como
conseguiram várias das repúblicas soviéticas. Hoje, quando as independências
seguem os trâmites fixados na Carta da ONU, designadamente os territórios
coloniais que chegam à independência, o reconhecimento daquela organização vale como reconhecimento geral.
A experiência da última guerra, que pode infelizmente repetir-se em maior
ou menor extensão, fez surgir a figura do reconhecimento dos governosno exílio,
e que representavam, para os parceiros da coligação militar, os Estados de que
provinham mas que estavam ocupados pelo inimigo invasor. Foi o caso de praticamente toda a Europa Ocidental, ocupada pelas tropas nazis, e cujos países
tiveram governos no exílio.
Este reconhecimento poderia, como regra, ser apenas simbólico e não ter
nada a ver com o poderque actua na vida internacional. Mas não é defacto assim.
Por um lado a intervenção do governo no exílio é entendida como assumindo
compromissos que obrigam o Estado para além da libertação e do retorno ao
normal exercício da soberania. Por outro lado, foi a primeira vez que o fenóse tornou relevante no sentido de que afronteiranão reserva
meno transnacional
o espaço para a exclusividade de intervenção do governo que exerce o poder
no território.
Os meios de comunicação, designadamente a rádio e hoje a televisão por
satélite, somaram-se à clandestinidade das comunicações, para tornar efectivo
:" Lauterpacht , Oppenheim's i11ternatio11al
la1v,N.Y., 1948, p.127.
343
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
o facto de que um povo pode ser dirigido do exterior em vários domínios
ticipar em acções importantes para o esforço conjunto da guerra.
'e Par.
Desenvolveu-se porém um fenómeno mais importante e com poucos
dentes, que foi o método da guerrilha.Era historicamente conhecido, fora~rece.
no Brasil por nós contra os holandeses que ocuparam Pernambuco e, só por e sado
plo, na península Ibérica contra os franceses. Mas o movimento descoloniz:~nipodendo aliás invocar o direitoà revoltaque vinha da tradição da independê ~t,
americana e que a Carta da ONU aceitou, utilizou e aperfeiçoou aguerrilha
c~cia
instrumento de luta, esta transformou-se em instrumento na vida internacio lllo
•
. que nao
- pode serctnaJ'
.
d,ef;actopassou a ser uma categoria
e o recon
heczmento
po l'mca
1
conhecida, mesmo que não tenha sido assumida a natureza do reconhecime esjurídico. Os grandes técnicos desta forma de combate armado foram Mao ,:-t,o
lSe-tung, o general V.N. Giap, Che Guevara e Carlos Marighella.
Mao concentrou-se na questão da conquista do poder interno, e por iss
definiu as características da guerrapopular,tornando famosa a fórmula segund~
Procurou mobilizar as massas campoa qual "opoderestánapontadasespingardas".
nesas, afirmou e demonstrou que o campo pode vencer a cidade, transformando
essa gente numa "muralhaverdadeiramente
indestrutível"contra a superioridade
técnica do adversário. ém Giap, no Vietname, partiu da mesma premissa, estabelecendo que a guerrilha é a forma de combate conveniente para um país economicamente pobre. Trata-se de uma guerra de movimento, em que o domínio
clássico do território não é fundamental, embora seja utilizada, se possível, a
técnica de possuir umfoco (foquismo) de onde o domínio se espalhará como
nódoa de azeite. Mas o mais importante é ter pelo menos um santuário,mesmo
fora do território em discussão, para preservar a direcção, reservas, contactos
e refrescamento. De resto, se o inimigo é forte, evita-se, se é fraco, ataca-se; ao
armamento moderno responde-se com o terrorismo, coordenando as acções
militares com as acções políticas e económicas; a linha de batalha está onde
estiver o inimigo.
A solidariedade internacional, por vastas áreas, ou ocidentais, ou soviéticas,
ou neutralistas, internacionalizou este problema por várias razões. A questão do
santuárioem território estrangeiro implica o consentimento do soberano deste
território de abrigo; o Estado contra o qual a guerrilha combate não pode deixar de assumir que o fornecedor do santuárioparticipa na acção de agressão,
mas frequentemente não pode cortar as relações com tal Estado por motivo
de outro interesse. O reconhecimento da situação de facto implica a definição
internacional de um agenteque procura, desenvolve e executa actos eficazes na
ordem internacional.
A questão é ainda geralmente mais complexa porque o conflito permanente
entre blocos de potências implicou em regra que cada um dos lados auxiliava a
344
OS INTERVENIENTES
ilha com meios técnicos e funcionais, e o facto, que facilmente se repete,
goerr acionaliza mais o problema. Portugal teve experiência desta situação
incerntea chamada guerracolonialque durou de 1960 a 1974. Depois, o movidora:oda UNITA em Angola herdou e reproduziu toda esta situação. Manteve
111
ejõcoque tinha condições para servir de santuário,que é a Jamba; recebeu
uJll'lio de potências exteriores, mantendo representantes em mais de um país,
au~teactuaram como agentesdiplomáticos
de facto; conduziu aguerrilhaque, neste
, •
on
.
1ass1ca.
evoluc10nou
para
uma
guerra
c
cas0Este
' méto d o d e com b ate d'a ongem,
.
.
pe Ios caracteres que vimos
resumm• d o
omando, a uma forma de poder que chamamos o podererrático.Tal poder não
5
e 111necessariamente território próprio, precisa de um hospedeiro que forneça
:esantuário,mas procede nos moldes de um Estado: é obedecido por largas massasda população, alimenta o orçamento de maneira violenta ou consentida,
sustenta forças armadas, leva a guerra sob a forma de terrorismoa vários territóriosde Estados diferentes, tem eventualmente um projecto de estabilização
finalsob a forma de Estado clássico.
Éo caso da Organização de Libertação da Palestina, cujo dirigente foi recebidona ONU, foi tratado como Chefe de Estado por vários países, teve santuário na Jordânia que ia destruindo para ocupar ali o poder, e tinha o projecto
de conseguir fundar um Estado da Palestina, projecto posto finalmente em
execução em 1994, com negociações directas entre Israel e Arafat, dirigente
dos palestinianos. O seu poder é erráticoquanto à base de apoio e à frente de
combate, mas a comunidade internacional não pôde desconhecer este facto do
podercom relevância internacional.
O podererráticopode ter menor sistematização organizacional e projecto
menos específico e algumas vezes até difícil de compreender, assumindo a
formade terrorismointernacional.
Sempre que um governo é obrigado a negociar
comesses grupos, a estabelecer e cumprir acordos para a libertação de pessoas
ou de meios e instalações técnicas, reconhece defacto um interlocutor na cena
internacional. É assim o complexo mundo em que vivemos, e que não encontra
expressão em fórmulas jurídicas respeitadas 275 •
6. A crise do Estado soberano
Este tema está submetido, sobretudo desde 1989, a uma variação constante dos
termos de referência internacionais, e parece destinado a ser um dos mais perturbantes, ao menos ideologicamente, no processo de refundação da Ordem
internacional em que nos encontramos.
m Adriano Moreira, CiênciaPolítica,1995, p. 211 e sgts.
345
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Por necessidade de algum conceito organizador, que sirva de guia às
tações necessárias numa conjuntura de mudança, lembremos a discutíve~edi.
nição operacional, da autoria de Roger Scruton, que tem sido utilizada. defi_
Este começa por afastar o conceito de Nação que chama vago, mas gen
zado, e que significa "qualquer Estado soberano com autonomia política :ra)j.
ritorial definida"; depois assenta em que, sociologicamente, "a Nação con ~er.
st
num povo, que possui uma língua comum (ou dialecto de uma língua com: e
com um património de costumes e tradições, os quais podem ter sido inte ~),
rizados a ponto de os considerarem obrigatórios, e que reconhece intere rio.
sses
. propna
, . "276 .
comuns e a comum necess1"dad e d e uma sob erama
Tal conceito operacional abstrai, pela sua natureza técnica, das divergêncj
históricas entre as citadas formulações de Ernest Renan (1823-1892)e Johan G as
tlieb Fichte (1762-1814),tributários de circunstâncias ambientais diferentes~t0 discurso político mais corrente no processo internacional, e até nos d"ISCurSOS políticos internos, é aquele que Scruton afasta por vago e não-operacional, isto é, aquele que confunde a Nação com um Estado soberano com
autonomia política e território definido.
De facto, uma breve análise semântica quantitativa dos discursos facilmente
evidencia que a avaliação da crise da velha Ordem é geralmente referida à crise
do Estado-Nação e, em corolário, à crise da soberania do Estado nacional.
Temos por certo que se trata de mais um dos erros induzidos a favor das
necessidades e objectivos, ou da captação das vontades ou da justificação
perante os eleitorados, a que o discurso político dá forma, mas que arrastam
consequências que não podem ser minimizadas.
O certo é que a experiência vivida, e de novo trazida para o plano dos projectos pela moderna teoria dos grandes espaços, é que as fidelidades à sede da
soberania podem ter uma origem diferente da nacionalidade, que as legitimidades políticas não são necessariamente nacionais, e que as nações não exibem
necessariamente a ambição de assumirem uma soberania própria e exclusiva.
Por outro lado, independentemente da coacção exterior, ou da circunstância envolvente adversa, as identidades comunitárias não são necessariamente
nacionais, porque esta realidade é uma criação da cultura ocidental, e a sua
implantação noutras latitudes, como veremos, não se faz sem adaptações, por
vezes essenciais, do modelo originário.
É por isso que uma das variantes mais importantes do nacionalismo,
que parte
do conceito segundo o qual o Estado e a Nação devem coincidir, entende que
a identidadenacionalexprime uma dinâmica acrescentada ao conceito socioló-
"º Roger Scruton,
346
A dictionaryofpoliticaltlwught,N.Y., 1982.
OS INTERVENIENTES
•
de Nação, que implica o movimento no sentido de obter e garantir uma
0
gic ania completa, e eventualmente uma expansão .
·
·
1·ismo e' com b at1.d o pe las d outnnas
.
Saber
Éneste últtmo
ponto que o nac10na
que
. róprias se chamam universalistas e se afirmam adversárias quer do parti. l quer d o 1mpena
.
. 1·ismo.
a s1prismo nac1ona
1
cu ~a ordem definida pelo direito internacional clássico, nascido para reger o
·dente dos Estados , a primeira fidelidade mais geral do povo, base da obeoci
. entao
- ab so lutas, 101
.: . a d.masttca,
, . que fi1cou como a travet•ncia
às sob eramas
,eestrado Congresso de Viena de 1815.
-!11A progressiva substituição, em regra revolucionária, dessa legitimidade pela
legitimidade democrática, embora tenha implicado a generalização do uso,
elo discurso político, do conceito nominativo de Nação, encontrou mais frepuente referência, embora não certamente mais clara, na vontadedopovo dos
q
liberaise contratua 1·
1stas.
Aextinção da velha Ordem, simbolizada na queda do Muro de Berlim, deixou
um mundo no qual as identidades políticas obedecem a várias legitimidades e
modelos, tudo o contrário da proclamada malha dos Estados nacionais.
Avultam alguns grandes poderes - EUA, Alemanha, Japão, Rússia, China - e
dificilmente pode dizer-se que todos correspondem ao modelo Estado nacional, tantas são as minorias internas que se chamam nacionais, ou os grupos
étnico-culturais submetidos ao Estado sem consentimento.
tendencialmente conglomeDepois, temos o fenómeno dos grandesespaços,
rados de nações, ou grupos étnico-culturais, ou regiões que não se definem
pela identidade da população, e que ainda não constituem Estados no sentido
clássico, mas assumem um protagonismo político de nova invenção e de que
são exemplos as Comunidades Europeias que evoluíram já para a União Europeia, pelo Tratado de Maastricht.
O resto do mundo que os europeus criaram, porque foi obra dos soberanos
europeus a engenharia política que ali se consolidou, é um mostruário de Estados não-nacionais: a América Latina com poucas excepções, o Médio Oriente
decretado pelas concorrências ocidentais, o desagregado império soviético, a
África negra onde a herança colonial das fronteiras constrange as comunidades tribais no sentido de evolucionarem para aceitar o Estado que exibe um
projectonacional.
De tudo resulta que o Estado-Nação, ambicionado por se ter demonstrado,
historicamente, como o modelo mais capaz de mobilizar as solidariedades e de
apoiar os projectos de futuro colectivo, ocupa um espaço reduzido no sistema
das relações internacionais.
Talvez por isso seja mais exacto dizer que a Nova Ordem se defronta com
uma crise do Estado soberano, que sempre tem um povo, e não afirmar apres347
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
sadamente que está em crise o Estado nacional. Não se pode tomar a Par
todo, sobretudo tendo em vista, neste fim de século e fim do último i te~ela
europeu, a revolta das comunidades submetidas que pertenciam aos povo~Perio
do mundo, e que levou alguns observadores a falar também genericarne tn"do1
.
das naczona
. fI'dades,com o seu correio
. d e 1·
' . fundarnnte na
vingança
1mpeza etmca,
lismo, racismo e xenofobia.
enta.
A crise do Estado nacional tem porém alguma realidade, certamente
· d o mundoPreo.
. . d o espaço ocupa d o na geogra fi1apo l'mca
cupante, e o seu 11m1ta
_
está necessariamente ligada à crise internacional do Estado soberano.
nao
Talvez a racionalização do fenómeno possa começar pela distinção e
cidadão activo e cidadão passivo do constitucionalismo liberal, o qual rern:tre
, ... mmonas etmco-cu
,.
l.tura1s para o mesmo cong l omera dd'
teu_
vanas
o as mcapacid
des políticas. O movimento das independências novecentistas do continen ª
americano, animado pelo exemplo anterior dos EUA, todo foi exclusivamen;e
de europeus emigrados, muitos legalmente deportados, e todos responsávei:
pela expropriação dos territórios aos nativos, e pela extinção tantas vezessistemática desses aborígenes 277•
Quando, no Inverno de 1831, Alexis de Tocqueville se encontrava em Memphis, Tennessee, escreveu sobre os índios escorraçados das suas terras: "os índios
levaram consigo as suas famílias, e incluíram na sua caravana os feridos e os
enfermos, com os meninos recém-nascidos e os velhos à beira da morte"; "três
ou quatro mil soldados empurraram à sua frente a vagabunda raça dos aborígenes. Vêm depois os pioneiros brancos que atravessam os bosques, espantam
os animais de caça, exploram os cursos dos rios interiores e preparam a marcha triunfal da civilização através do deserto." Aconteceu que os índios eram
espoliados "com estranha comodidade, tranquila e legalmente, filantropicamente, sem derramar sangue e sem violar um só dos grandes princípios morais
aos olhos do mundo"; pareceu-lhe impossível exterminar com "mais respeito
pelas leis da Humanidade" 278 •
O impériodabranquidade,
incluindo a construção do império russo em direcção às profundidades da Ásia, teve as mesmas frequentes consequências, e recorreu a métodos não muito variados, em todos os lugares que considerou vazios
de poder legítimo.
Todavia, não apenas a evolução cultural e da economia, mas sobretudo
os aspectos específicos da emigração e dos desiguais movimentos demográ·
de Tocqueville, De la démocratiew Amérique,2 volumes, Paris, 1961, continua a ser um documento indispens:ível sobre as origens e desenvolvimento da democracia americana.
178
Ver Paul Johnson, E/ 11acimirnto
deimundomodemo,Buenos Aires, 1992, p. 209 e sgts. Walter La Feber,
The 11rn
>empire: a11i11terpretation
ofAmerica11
expansio11,
1860-1898, N.Y., 1963. William A. Williams, The
rootsof the modernAmcrica11
empire,N .Y., 1969.
277 Alexis
348
OS INTERVENIENTES
estão a obrigar à revisão do conceito e da realidade do Estado nacional
ftcos,
,
ários pa1ses, a começar pe 1os EUA.
c!ll;s independências foram baseadas na convicção, proclamada pelo venedo Jefferson (1743-1826) de que, pela vontade de Deus, chega um dia em
rao um povo tem o direito de reivindicar um lugar igual e separado na comuque
_
·dade das naçoes.
01
Mas esse povo, em todo o continente americano, foi apenas o dos europeus
igrantes, e seus raros assimilados, a longa mão do império da branquidade
c!lleem muitas latitudes, designadamente no Brasil, se proclamou nativa conq: a metrópole longínqua.
cr Neste fim de século, os EUA defrontam-se com a hispanização da sua sociedade, e já não podem, nem legal nem realmente, considerar os negros como
apeculiar
institutiondos Estados do Sul a que se referiam nos trabalhos constitucionais.
Teminteresse, agora que tanto se menciona a crise do Estado nacional, recordarque a Nação foi então a que proclamou a independência. O conceito parece
que se tornou claro durante o Grande Debate do Missouri, que se desenrolou entre 8 de Dezembro de 1919 e 26 de Fevereiro de 1821, dando origem ao
famoso do Missouri". No seu diário escreveu John Quincy Adams, em Fevereiro de 1820, que, no Congresso, "os oradores mais eloquentes" estavam "do
ladoesclavagista", e Monroe, na mesma data, em carta para Jefferson, escreveu:
"nunca vi um problema que ameace tão gravemente a tranquilidade e inclusivamentea manutenção da União, como este." Foi observado por Paul Johnson,
que o uso da expressão peculiarinstitution,destinada a evitar a clara referência
à manutenção da escravatura, marcou um novo estilo do discurso político: "a
utilização de eufemismos haveria de tornar-se numa característica do mundo
moderno que estava a nascer, e em nenhuma área se utilizou mais assiduamente
do que na defesa sulista do trabalho escravo."
Aconteceu portanto que os europeus, e apenas eles, ligados por interesses
comuns e pela revolta anticolonialista, puderam encontrar-se na situação que
Jefferson invocou para legitimar a independência, e essa realidade nacional
talvez não possa ser posta em dúvida durante a longa caminhada que levou os
EUAà majestade de superpotência 279 •
Todavia, analistas que tornaram actuais os temas da decadência e do fim
da História julgam-se obrigados a discutir a questão de saber se os EUA não
são já um Estado pós-moderno, distinto do modelo que actuou na cena internacional entre 1890 e 1960, de Theodore Roosevelt até John Kennedy, com o
:.... P. Lellouche, Le nouveaumonde:del'ordredeYaltaaudésordre
desNations,Paris, 1992. L. La'idi, L'Ordre
mondia/
re/âché.SensetpuissanceapreslaguerreJroide,Paris, 1992.
349
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
seu ponto mais alto na Segunda Guerra Mundial, e a maior liderança nas mde Franklin Roosevelt. No conceito que propõem, a dimensão cultural já ª~s
é caracterizada por escolas comprometidas com a tarefa da educação das ;ao
.
sas e com a a1ta cu 1tura, porque se tornaram dommantes
os massmed"za,cria asd
uma n?v~ cultura pop_ular_inte_rnacional;a dimens~o mi~i~ardeix?u d~ se ªP~ia~
em exerc1tos convenc10na1salimentados pelo serviço m1htar obngatorio, e e ,
st
· 1·
- econón..• ª
· e qua d ros espec1a
agora a cargo d e tecno 1ogias
1zad os; a dº1mensao
.
•111ca
perdeu o modelo do mercado nacional, e desenvolve-se em operações multinacionais para um mercado global.
Nesta percepção, toda ela tributária da mundialização característica d
época, a principal observação é porém, supomos, a que se traduz em afirma:
que os Estados Unidos já não são um Estado-Nação. Talvez nunca o tivesse
sido completamente, nem quando eram uma sociedade moderna. De qualqu:
modo, desde 1960, progressivamente tornaram-se menos uma Nação e mais
uma sociedade multicultural.
Talvez a já referida hispanização, a chegada de negros e porto-riquenhos
à cidadania activa, sejam fenómenos que estão relacionados com a mudança,
dando um sentido novo à tradição federalista. Também no Brasil foi possível
afirmar que os negros são a parte não integrada da Nação brasileira, mas a situação geral dos índios que sobram na América do Sul reconduz-se a essa mesma
questão da falta de integração nacional de grupos reduzidos, durante séculos,
à situação de povos mudos do mundo, e que agora recuperam a sua voz interna,
dentro do quadro de Estados que apenas foram nacionais por referência à etnia
que se reservou fornecer os cidadãos activos 280 •
Este aspecto do fenómeno do povo multicultural de uma superpotência
torna bem evidente que a crise do Estado nacional e a crise do Estado soberano
não se confundem, nem são necessariamente interdependentes.
A crise do Estado soberano no espaço europeu parece conduzir para um
grandeespaçode modelo político multicultural, ao mesmo tempo que Estados
multiculturais europeus, como a Checoslováquia, se fraccionam, estão em processo de dissolução como a Jugoslávia, ou revelam fracturas importantes como
a Itália ou a Espanha.
O elemento sempre comum, e em crise, é o da soberania, que varia em termos
de responder às exigências tanto dos Estados multinacionais ou multiculturais,
como às dos raros Estados nacionais, mas em nenhum caso parece ser capaz de
manter a definição que lhe foi dada para fundar o Ocidente dos Estados.
'"ºElise Manienstras,
Nous/epcuple. Lesorigi11es
du 11atio11alisme
américain,Paris, 1988. Claude Fohlen,
L'Amirique deRoosevelt,Paris , 1982. Paul Kennedy, Naissanceet déclindesgrandespuissances,Paris, 1989.
pluralismand civicculture,Middletown, 1990.
Lawrence Fuchs , TheAmericanKaleidoscope:
350
OS INTERVENIENTES
rise do Estado soberano, não obstante o fim da velha Ordem, parece
13scaC
.
volver-se em termos de pretender manter o consentimento dos povos
desenfundamento da legitimidade das mudanças, repudiando a conquista,
cofllºe são exemplos Goa, Timor e o Koweit, embora não possa esquecer-se a
deq~dinação da justiça ao normativismodosfactos.
5tl
b~esta força normativa dos factos cabe a perda de capacidade do Estado para
lizar os objectivos para os quais tal entidade foi inventada. Algumas sobre~ªências históricas, como Andorra, o Mónaco ou São Marino, podem servir de
viv rência para ava1·
·
• · crescente d o mo d e1o d e Esta d o ex1guo,
'
1ara 1mportanc1a
que
6
reerostambém chamam PotiemkineStates,envolvidos num jogo de let'spretend.
0 ut
Teoria do Estado exíguo
: Quando a aventura napoleónica recebeu um ponto final em Waterloo, o mais
1
eminente dos construtores da Nova Ordem, que foi Metternich (1773-1859),
figura dominante do Congresso de Viena de 1815, definia os seus conceitos
operaciona~se ~nuncia~a a estratégia dominante a partir de uma longa experiênciada vida mternac1onal.
Tinha representado um pequeno poder político, o dos Condes de Westphalia, no Congress~ de Rastadt em 1797, subira de perspectiva ao negociar
a aliança de 1805 da Austria, da Prússia e da Rússia, contra a França, e, entre
1806e 1809, estudou o futuro adversário na qualidade de embaixador da Áustria em França.
Coube-lhe a responsabilidade de conduzir a política externa austríaca no
decurso da campanha imperial de Napoleão, vindo a ser o ideólogo da Santa
Aliança responsável por um novo modelo da relação entre as soberanias.
Nas Memoiresde 1844, formulava o seguinte conceito-chave do sistema:
"Como não existe um Estado isolado ... não devemos perder de vista a sociedade
dosEstados,esta condição essencial do mundo moderno. Cada Estado tem, para
alémdos seus interesses específicos, outros interesses que são partilhados, quer
com todos os outros Estados reunidos, quer com simples grupos de Estados.
Os grandes axiomas da ciência política derivam do conhecimento das verdadeiras políticas de todos os Estados: é sobre estes interesses gerais que repousa
a garantia da sua existência".
Adversário dos chamados nacionalismos alemães, nesse século em que des
pertaram as vocações das comunidades agredidas pelos exércitos da Revolução
Francesa, o Estado soberano foi o seu valor de referência, e não lhe ocorreu fazer
derivar a sua legitimidade da coincidência entre a Nação e o Estado.
Parece mais leitor do Conde-Duque de Olivares, certamente presente nas
memórias da Casa de Áustria, e que em 25 de Dezembro de 1632 escrevia a Filipe
IV o seguinte: "o negócio mais importante da nossa Monarquia é que Vossa
7
351
TEORIA DAS RCLAÇÔES INTERNACIONAIS
Majestade se faça Rei de Espanha. Quero dizer, Senhor, que Vossa M:aje
não deveria dar-se por satisfeito com ser Rei de Portugal, de Aragão, de Val:~ª?e
e Conde de Barcelona, mas trabalhar abertamente e em segredo para rectCt~,
esses reinos de que a Espanha é composta ao estilo e leis de Castela, se Uzir
haja qualquer diferença no aspecto das fronteiras, dos postos aduaneir: 9Ue
poder de convocar as Cortes de Castela, de Aragão e de Portugal sempres,do
desejável, e a nomeação sem restrições dos ministros das diferentes naçõque
Se Vossa Majestade fizer isso, será o príncipe mais poderoso do mundo"2a1es...
Parecendo exacto que a agressão francesa despertou os nacionalismos ·
nova força estruturante na ordem internacional, o Estado-Nação não foi o,vUra
fundamental da nova ordem, e teria de esperar pelos 14 Pontos de Wilsonª or
rescaldo da guerra de 1914-1918,para receber uma consagração directiva m'no
, as
não absoluta.
Não faltam pela mesma época continuadores da doutrinação dos Projectistas da Paz, bastando recordar Benjamin Constant (1777-1830), firme adversário
do militarismo ou democrático ou totalitário, e portanto da soberania agressiva, sustentando que "o fim único das nações modernas, é o repouso, com este
a abundância, e, como fonte da abundância, a indústria. A guerra é cada vez
menos o meio mais eficaz de atingir tal fim" 282.
A referência à Nação continuaria equívoca até aos nossos dias, usada certamente pelo geral reconhecimento do seu valor especial, mas significando mais
vezes o povo objecto da soberania que identificava cada Estado, do que uma
comunidade que correspondesse à identidade nacional.
O Estado soberano é que foi o paradigma da nova ordem, as fidelidades
em que assentava eram de mais de uma espécie, incluindo um projecto de vida
comum, a comunhão na fé, a vinculação dinástica, e superioridade racial, o
serviço de uma classe, com vozes justificativas que faziam da razão de Estado
o paradigma do arbítrio das soberanias.
2. As identidades dos grupos culturais submetidos à soberania de um Estado
não foram sempre ignoradas e portanto também a identidade nacional teve um
papel na logística dos Estados plurais que constituem a regra da organização
internacional.
Os impérios que morreram com a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918,
designadamente o Império Austro-Húngaro, foram exemplo dessa circunstância corrente, e o Reino Unido só neste fim de século começou a dar mostras
'"' J.H. Elliott e J.F.La Pena. Memoria/esy cartasdei conde-duquede Olivares,Madrid,
p. 95.
m Benjamin Constant, De l'Espritde Conquete,Paris, 1813.
352
Alfaguara, 1978,
OS INTERVENIENTES
sido atingido pela fadiga o enquadramento monárquico das suas três
de rer
. nalidades.
pac: dinâmica imperial europeia no século XIX, mantendo a lógica do patri, iode experiências imperiais do Ocidente desde os romanos, não mostrou
~ººrepâncias, entre as democracias da frente marítima em expansão, quanto
discbJ.
ectivo de submeter povos, culturas, etnias, a uma fidelidade igual à sobeªºº ia conqmstadora.
.
ranO Estado soberano foi o actor das relações internacionais progressivamente
nsformadas no tecido de malha apertada das dependências e interdepenr;ncias, em termos de a frequente conflitualidade armada ter levado os teoriadoresmodernos, como Aron, a concluir que a guerra é o facto autonomizador
~a disciplina científica correspondente. O incontornável Max Weber (1864_1920)tinha ensinado que "todo o Estado é fundado sobre a força", disse um
diaTrotsky em Brest-Litovsk. Com efeito, é a verdade. Se não existissem mais
do que estruturas sociais sem qualquer violência, o conceito de Estado teria
desaparecido e não restaria senão o que chamou, no sentido exacto do termo,
a".A violência não é evidentemente o único instrumento normal do Estado issonão é duvidoso - mas ela é o seu meio especifico" 283 •
Os totalitarismos, em todas as latitudes, e não apenas na Europa do nazismo,
do sovietismo, tornaram esdrúxulo o valor da soberania, com os seus valores,
muitosdestes organizados tendo por vector principal a nação e o nacionalismo,
umasemântica que frequentemente não tinha correspondência no pluralismo
étnico, cultural, religioso, do povo acantonado dentro das fronteiras que se
queriam invioláveis, tornando insulares as jurisdições internas.
O Estado forte era o tipo de referência, o que na ordem externa significava,muitas vezes sem fundamento, a capacidade de impedir a proeminência
de um poder externo dominante, e internamente uma capacidade de obrigar
sem desafios, num crescente de intervenções nas áreas da segurança, da cultura, da justiça, do desenvolvimento.
A autonomia estratégica foi a escala de referência da inevitável hierarquia
das potências, que a domesticação da energia atómica completou com a criação contemporânea da majestade das superpotências.
Deste modo, a balança de poderes, que até à Segunda Guerra Mundial foi
europeia, era a melhor garantia da paz, e a percepção da soberania como um
poder indivisível, e também não analisável em componentes, era a corrente.
Tal Estado soberano foi-se afirmando pela absorção de entidades políticas
múltiplas, simplificando os actores da vida internacional, impedindo a multiplicação pelo exercício do modelo do império em todas as latitudes para onde
'1J Max Weber,
Lesavantet lapolitique,Paris, 1959.
353
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
se expandia o poder dos responsáveis pelo que o estatuto do Tribunal 1
cional de Justiça (art. 38º/l) chama "os princípios gerais de direito rec nterna.
dos pelas nações civilizadas".
ºnhecj.
A época dos impérios da frente marítima europeia, que alcançou O seu
alto entre a Conferência de Berlim de 1885 e a derrocada causada pela gu Ponto
erract
1939-1945, teve o Estado soberano como modelo observante, o império
e
paradigma do triunfo supremo do modelo, a supremacia estratégica lll c~'.11°
pela capacidade militar.
e 1da
Foi esta supremacia estratégica, medida pela capacidade de domesti
· nuc 1ear, que ongmou
· ·
•
d e d as superpotenc1as,
• · e deu ecara
energia
a nova maiesta
,
ter à Ordem dos Pactos Militares que teve o seu ponto final com a quedar~cª 0
Muro de Berlim em 1989, e a dissolução do império soviético.
3. Esta subida aos extremos do modelo do Estado soberano, que termin
deixando uma única superpotência, os EUA, em crise de solidão no vasto de~~
fio do globalismo, também foi acompanhada, de acordo com a lógica da lei;
complexidade crescente, pelo desagregar das grandes unidades imperiais da:
democracias europeias, pela multiplicação dos actores intervenientes nos fora
internacionais, e finalmente pela crise do Estado soberano, talvez erradamente
chamada crise do Estado nacional em consequência dos equívocos que rodearam este qualificativo nobilitante.
A evolução e descrédito do Estado soberano, que foi o garante da liberdade
do mercado entre os ocidentais, o gestor da economia na área soviética, oresponsável pelo desenvolvimento no Terceiro Mundo, foram sublinhados vigorosamente quando em 1996, no tradicional discurso sobre o Estado da Nação, 0
Presidente Clinton proclamou "o fim do Estado forte", porventura o primeiro
anúncio de que os EUA também encaram a revisão da logística da República
Imperial, como lhe chamou Aron.
Talvez a primeira alteração, em ordem de importância naquilo que respeita
à vida internacional, tenha sido a substituição da balança de poderes ocidental pela balança de poderes mundial, agora completamente desequilibrada
pelo desaparecimento da Ordem dos Pactos Militares ao fim de meio século
de vigência, mas um desequilíbrio que não implicou substituição de parceiros,
traduziu-se antes num buraco negro que ameaça as resistências e capacidades
da superpotência sobrevivente, ao mesmo tempo solicitada para o exercício
dagendarmeriemundial,e repudiada pelos múltiplos e diversos poderes que lhe
temem o controlo.
Na medida em que esses múltiplos poderes ainda possuem base política territorial, vão compondo as debilidades pela agregação em grandes espaços, os
quais, pelo método da subsidiariedade, quando é o consentimento que preva354
OS INTERVENIENTES
tendem para o exercício de funções que foram antes do Estado soberano,
Jece, se passa com a União Europeia.
co~~lvez se trate apenas de um conflito inerente ao tempo tríbul? de todas
. stituições, o facto desses grandes espaços tantas vezes ressuscitarem, no
1
as :esso de formação, os apelos à grandeza, a uma espécie de patriotismo do
pr~cdvo, substituto do que foi inseparável da soberania estadual, como a União
coeopeia fez na crise do Golfo, na crise do Kosovo, e faz na discussão sobre o
r:ur
jectado pilar europeu da defesa.
proDe qualquer modo, o tambor e a bandeira tendem para mudar de ritmo e de
r porque a defesa e a segurança dependem de um conceito mundializado em
~:;ca de apoio institucionais, e parecem fora do tempo os Estados que sacrifi caramO desenvolvimento à busca de uma posição entre as potências nucleares,
ara de facto alcançarem o estatuto de perturbadores e não o da supremacia.
p Esta situação equívoca tem expressão no facto de que os conflitos armados
nãopararam no último meio século, mas também não houve uma declaração
deguerra.
Todas as alterações que de algum modo são corolários da transformação da
balançaocidental de poderes em balança mundial, se reconduzem afinal à mundializaçãodas dependências e interdependências, e à exigência da globalização
dasgestões, sem Estado, para além do Estado, e também com o Estado .
Como sublinhou lucidamente Alain Touraine, no modelo internacional dos
Estados soberanos, "o poder estava nas mãos dos príncipes, das oligarquias,
daselites dirigentes. Definia-se como a capacidade de impor a sua vontade aos
outros, de modificar os seus comportamentos. Esta imagem do poder não corresponde à nova realidade. O poder está em toda a parte e em parte alguma:
está na ponderação, nos fluxos financeiros, nos modelos de vida que se generalizam, no hospital, na escola, na televisão, nas imagens, nas mensagens, nas
próprias técnicas ... O grande problema não é "tomar o poder": é recriar a sociedade, inventar de novo a política para impedir a luta cega entre os mercados
excessivamente abertos e as comunidades muito fechadas e a desagregação
das sociedades onde cresce a distância entre os incluídos e os excluídos, os in
e os out"284 •
Existem redes transfronteiriças de capitais, da informação, das religiões, do
crime, da defesa, que organizam centros de poder difusos ou formalizados, ao
mesmo tempo que no interior dos velhos Estados se multiplicam as regiões, as
descentralizações, as seitas, os corporativismos.
21
'
Alain Touraine, Lettre à Léo11el,
Miclzel,Jacques,Martine,Bernard,Dominique... et vous,Paris, 1995,
p.36.
355
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Talvez tenha de admitir-se que o conceito weberiano do Estado como d
· 1encia
• · 1eg1t1ma
' ·
d entro d e um espaço terntorial
·
eten·
tor d o monopo'1·10 d a v10
tector da jurisdição interna, não corresponda à realidade da multiplic Pr~.
de poderes que se cruzam e o limitam. Por isso tem fundamento que Be,tº
Buli, na época da globalização, fale de uma "forma neomedieval da ordem
tica universal" 285 , numa linha de pensamento em que se encontram Gictdº 1·
Guéhenno, Held, e o autorizado Castells 286 •
ens,
Todos parecem admitir que, seja qual for a doutrina adaptada sobre a ori
do Estado, a teoria do Estado soberano tem por quadro de referência a Nag~rn
e por isso falam da crise do Estado nacional. Admitindo que tem fundamtº•
a observação de que essa formulação confunde o conceito de povo com O /to
ceita de Nação, de facto o acordo será sobre a crise do Estado soberano q:nno que respeita à capacidade de gestão interna, quer no que toca à capacida;r
e
.
.
1
de gestão mternac10na .
No que concerne à primeira, a dissolução dos impérios que multiplicaram
as independências, a desagregação dos Estados multinacionais, a reivindicação
do regresso de competências aos Estados federados em detrimento do Estado
federal, as regionalizações ou as zonas especiais, tudo parece encaminhar para
reconhecer ao valor da identidadeuma precedência sobre o valor das fidelidades
verticais à soberania, o que significa que a crise é do Estado soberano e não do
Estado nacional.
Mas é sempre portanto a crise do Estado, tal como o identificou a percepção maquiavélica, que está em curso, num fim de século que viu aparecer um
número de Estados sem precedente histórico, definindo uma teoria longa de reivindicações de independências que parecem orientadas pelo velho modelo.
Todavia, sendo as identidades que avultam como valor cimeiro das reivindicações, a nova hierarquia das potências parece ter como critério orientador,
tal como é proposto por Castells, "a capacidade de controlar o instrumento que
são as redes mundiais em nome das identidades específicas", enquanto que os
valores mundiais pretendem "submeter todas as identidades para alcançar os
objectivos utilitários transnacionais" 287•
Trata-se certamente de uma nova percepção do poder, que deixou de ser
visto como uma realidade polifacetada mas densa, para se analisar em componentes separáveis.
Por isso não estamos perante uma balança de poderes, mas de balanças de
poderes que funcionam conforme as conjunturas, e rareiam os Estados que
?
285
Hedley Buli, The anarchicalsociety,Londres, 1983 .
Manuel Castells, Lc pouvoirde/'ídentíté, Paris , 1997.
287
Lug. Cir., p. 369.
281
'
356
OS INTERVENIENTES
balll lugar em todas elas, ou sempre com a mesma hierarquia. Servindo de
ceflmplo, a posição do Japão na balança económica não tem réplica na balança
e1'~• ar assim como a presença da União Indiana na balança militar não tem
11t '
1111
' •
, !ica na balança econom1ca.
rePEnquanto que, na vida interna, os laços do poder com a sociedade tendem,
países desenvolvidos, para a contratualização, colocando o consentimento
5
no lugar da imposição, na vida internacional os factores exógenos tendem para
fl~balizar os constrangimentos do ambiente, reduzindo em alguns casos a
g ~iga soberania à mera capacidade de representar a identidade, como aconaflcecom alguns pretendingstatesdo Pacífico.
te Em síntese, à medida que é a marcha para a mundialização das dependências
interdependências, que faz apelo à globalização das gestões, o Estado sobe:ano é compelido pelos factores exógenos do ambiente a redefinir a soberania,
a contratualizar as relações com os centros de decisão emergentes, a multiplicar as balanças de poder, a seleccionar as capacidades que reserva, a transferir
parcelas do poder, a alienar áreas de gestão, medindo a exiguidade pela diminuição da área em que tais factores exógenos não lhe deixam outra escolha.
Asimples representação directa da identidade, perante a comunidade internacional, parece ser o conteúdo residual da capacidade do Estado exógeno.
Esta condição não tem relação necessária com a natureza nacional do
povoenvolvido, mas é difícil admitir que alguns Estados-Nação não venham a
ser afectados pela degradação dessa relação entre meios disponíveis e finalidades.
Na previsão do citado James Kurth, que não inova em relação à doutrina
mais generalizada sobre os grandes espaços em formação ou existentes, para
muitos Estados "as efectivas organizações, porque são elas que efectivamente
actuam nas áreas da cultura, da segurança, e da economia, serão os globalmedia,
as forças militares, e as empresas multinacionais, que se projectam a partir dos
países pós-industriais e industrialmente avançados". A talvez humilhante, mas
realista distinção entre construtores (makers)e aproveitadores (takers)da história, já não atende sequer à clássica hierarquia das potências, que sempre se
verificou não obstante a proclamada igualdade dos Estados.
Agora, também é necessário contar com as empresas multinacionais de todas
as matrizes, as quais, em regra nascidas da iniciativa da sociedade civil dos grandes Estados, como que desmontam o Estado à medida que desenvolvem uma
filosofia política original. Muita da doutrinação da paz pelo consenso, da livre
empresa, da livre circulação das pessoas, mercadorias e capitais torna impossível montar uma política industrial, uma política financeira, uma política de
defesa, uma política cultural, baseada na soberania clássica ou entregue aos
órgãos tradicionais da soberania do Estado.
357
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Em resumo, a crise do Estado soberano é o principal desafio político d
fim de século, e o modelo político a reinventar não afecta o valor da 'N e~te
obriga sim a rever os modelos políticos para responder simultaneamente:~ª?•
valores essenciais: o respeito
pelasidentidadesnacionais,étnicase culturais,e a D 018
d
D
·
·
d
u
ec/a.
raçao os 1re1toso nomem.
Os povosmudosdomundo,os povostratadoscomodispensáveis,
os povossubmetid
ainda não sendo Nações, todos dinamizam o fenómeno recente que foi charn ~s•
0
a vingançadasnacionalidades.
O que significa que o valor da Nação perman:c
O que não permanece é a funcionalidade do Estado soberano, que não é s e.
pre a resposta procurada para a defesa da identidade nacional.
elll-
§ 2º
AsInstituições
Internacionais
1. As estruturas das instituições internacionais
O Ocidente dos Estados, mesmo referindo-nos apenas à Europa, viveusem qualquer instituição internacional que correspondesse à necessidade de tornar 0
diálogo colectivo e permanente, ou de cooperação ou, finalmente, de decisão.
Para enfrentar circunstâncias excepcionais, convocaram-se grandes reuniões
a que geralmente se chamou Congressos (Congresso de Westefália, Congresso
de Viena), designando-os pelo nome da cidade onde se reuniam. Mas, obtido 0
resultado, que em geral dizia respeito ao traçadodas fronteirase equilíbriodeforças,supunha-se que a estabilidade estaria assegurada por um período longo, e
o Congresso dissolvia-se.
A complexidade crescente das relações internacionais e as muitas dependências progressivas foram apontando para a institucionalização, a princípio
informal, por que se traduziu, na Europa, no aparecimento de um Directório,
isto é, o concerto de várias potências que assumem de facto o poder directivo
da comunidade em vários domínios.
A aventura napoleónica levou à formação da chamada Santa Aliança,que
coligou as monarquias legítimas,contra o Imperador, incluindo a Inglaterra,
a Prússia, a Áustria, a Rússia, depois a França e Estados menores. Esta Santa
Aliança, que ideologicamente se erguia contra o ideário da Revolução Francesa e defendia o legitimismo tradicional e a concepção cristã da vida tal como
a entendiam, para além da acção militar usou o método dos Congressos para
acertar a política: Congressos de Troppau, Laibach, Verona, e até determinou
intervenções armadas em Nápoles e Espanha para defender o legitimismo.
O facto é que o sistema definido pelos Acordos de Paris de 26 de Setembro
358
OS INTERVENIENTES
5 e 20 de Novembro de 1815 teve origem na Rússia de Alexandre, onde,
181
de 84, Nicolai Novikov publicou uma obra afirmando ser "o Czar o vigário
17
efJlCristo na Terra". Aqui está a origem da Santa Aliança, da qual Alexandre
de eveu: "é a obra imediata de Deus. Foi ele que me elegeu seu instrumento.
~sc~rele que realizei esta grande obra" 288 • Não importa ver agora a história da
EPta Aliança, nem do Congresso de Viena que reorganizou a Europa depois
san
- mas apenas notar como a tecmca
, . do D'1rectono
, . (cond queda de Napo 1eao,
ªrto de um restrito número de países), que aqui foi a chamada Pentarquia,
cearece para respon d er a' crescente mter
·
d epen d'enc1a
. e a' f:a 1ta d e uma auton-.
1
ap
.
dade supranac10na .
ourante o período de supremacia nazi na Alemanha, fazia parte do seu pro·ecto assumir a função de Estadodirectorna Europa, admitindo essa função para
~ Japão na Ásia, e tudo terminou com a derrota de 1945. A doutrina americana
do bigstick é uma forma de assumir a função de Estado director. A doutrina
da soberania
limitadaque Brejnev enunciou para definir a situação dos satélites
em relação à URSS, no Pacto de Varsóvia, é uma afirmação de Estadodirector.
Emvez de um grupo de países, um país assume a supremacia directora, usando
a hierarquia do poder.
Aliquidação da Santa Aliança, à qual Jacques-Henri Pirenne chamou "organizaçãoeuropeia da paz mundial", deu-se sem que tenha havido um corte formal.
o último Congresso foi o de Verona de 1822289 • Todavia o seu desaparecimento
deixou em funcionamento uma espécie de concertoeuropeuque Lenine identi290
ficaria com as grandes potências industrializadas ao escrever o Imperialismo
•
o mecanismo informal da cooperação herdado permitiu gerir uma Ordemrelativamente estável durante um século. Mas os processos eram os encontrosentre
responsáveis, e a diplomacia.
Não havia um mecanismo institucional. As primeiras instituições permanentes aparecem justamente no domínio das comunicações:União Telegráfica (1865) e Postal (1874),Convenção Europeia do Danúbio
(1856),e a União para a protecção internacional da propriedade industrial (1833).
Limitadas a questões técnicas sem afectarem os interesses que os Estados então
consideravam vitais, não foi talvez previsto que a cooperação técnica era a primeira fase para a cooperação política institucionalizada.
O Tratado de Paz assinado em Versailles, pondo fim à guerra mundial de
1914-1918,incluiu nos seus preceitos 26 artigos, o Pactoda SociedadedasNações.
Era a institucionalização de um organismo destinado a salvaguardar a paz e a
observância do direito internacional. Assim nasceu também o estatuto do Tri288
ln LegadoPolíticodo Ocidente,cit., Celso de Albuquerque, A SantaAliança,p.138 e sgts.
Celso Albuquerque, cit, p. 141.
290
Lenine, L'Impérialisme,stadesupreme du capitalisme,Paris, 1956.
289
359
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
bunal Permanente de Justiça Internacional (artigo 14 do Pacto) e da Organi
ção Internacional do Trabalho (artigo 38). Uma convenção da mesma data (19:a9
instituía a Convenção Internacional da Navegação Aérea, e depois foi criado )
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (1924). Os secretariados _0
8 0
.
. /d esenvo lve-se, os serviços
.
. t·ismomternacwna
permanentes, um fiuncwna
aum ª
tam de ritmo, a autoridade das instituições vai crescendo. Nasce uma redee;relações internacionais que é sobreposta à ideia de relações directas entre e
Estados. Hoje, as instituições internacionais atingem duas centenas e exerceos
111
uma função medianeira permanente entre os Estados.
Todas as instituições internacionais são organismos
interestaduais,
emregraco
personalidade
jurídicainternacional,
competência
especializada
e nãogenérica,instituía:
pelosórgãossoberanos
decadaEstadomembro.
por tratadossujeitosà ratificação
Isto mostra que a participação de cada Estado fica sujeita à regra da liberdadedeparticipação,o que não significa obrigatoriedade para a instituição de 0
receber. A ONU com frequência tem feito demorar, por vezes anos, como aconteceu com Portugal, a admissão solicitada. Esta liberdade tem como corolário
afaculdadedeabandonoda instituição. Os casos de abandono são cada vez mais
raros, sinal de que a interdependência crescente aconselha os Estados a manterem a filiação. É claro que isto não significa que se possa obrigar o Estado
membro a participar na actividade da organização, e a URSS paralisou o Conselho de Segurança da ONU pelo simples facto de não comparecer. Todavia,
a doutrina inclina-se no sentido de que a liberdade de não exercer os direitos
não afecta a obrigação de cumprir os deveres, por exemplo financeiros. Assim
como a admissão depende do acordo dos membros da instituição, a exclusão
por causa estatutária, ou a suspensão, também é competência das instituições,
que raras vezes a usam. Mas a SdN expulsou a URSS em 1939, a Organização
ser
dos Estados Americanos expulsou Cuba em 1961. Não obstante a liberdade
a regra, é certo as instituições mundiais, como a ONU e as suas agências especializadas, tenderem cada vez mais para a universalidade.
A regra é que cada Estado tenha um voto, de acordo com o princípio da igualdade dos Estados. Mas existem várias modalidades ou práticas que realmente
restringem aquela igualdade por homenagem à real hierarquia dos poderes.
Uma delas é a constituiçãodosórgãosrestritosmais adequados para as funções executivas. Para evitar a falta da voz dos Estados que não tenham cadeira no órgão,
usa-se acordar em indicar um representante por grandes áreas geográficas ou
culturais: um Estado pela área latino-americana, pela Europa Ocidental, pela
Europa de Leste, pelos Estados árabes, etc. É assim que se passa com o Conselho de Segurança da ONU, onde as cinco grandes potências têm lugar permanente, e direito de veto, e os outros membros são escolhidos por áreas que
geográfica.
asseguram a equitativarepresentação
360
---
OS INTERVENIENTES
cro dos métodos destinados a acolher a realidade da hierarquiadopoder
:cessidade de todos manterem o direitode ter voz é o regime da ponderae_ª~ lugaresou cadeiras(pondérationdessieges).Neste caso procede-se como na
fªº ~bleia Consultiva do Conselho da Europa, onde as grandes potências têm
J\~S~to
a 18 lugares, as médias a 6 e as pequenas a 4 ou 3. O método pode ter
dire expressão diferente, que é a desigualdade
devotosem função da importância
ulllªEstados,como no Conselho da União Europeia. Ou, como no Conselho de
do~rança da ONU, através do vetode algumas grandes potências, neste caso
SeEVA,Rússia, Inglaterra, França e China.
os Não obstante a cooperaçao
- ser ca d a vez mais
. o obº1ect1vo
. que se procura torar dominante para a comunidade internacional, em vez da competição
pelo fornalecimento dos elementos clássicos do Estado, é ainda o peso da tradicional
militar,que inspira
~ierarquia das potências, em função da relativa capacidade
rodasestas fórmulas de compromisso entre o princípioda igualdadee o realismo
da capacidade
diferente.A pertença às organizações internacionais que lidam
comas questões dependentes das soberanias, e que exigem estas ponderações
e acordos, é um privilégio exclusivo dos Estados. Tal privilégio é exercido pelos
órgãos de poder soberano de cada Estado, sem que as instituições tenham de
julgar da forma de regime interno que condiciona o acesso ao poder. Assim,
no caso de uma mudança revolucionária do regime, ou mesmo pacífica, com
mudança de orientação política, o seu regime tem de ser reconhecido e a sua
orientação acatada.
Aquando da invasão da Hungria (1956) pela URSS, a Assembleia Geral da
ONUreprovou a intervenção e a imposição de novo governo ao povo húngaro,
mas admitiu os delegados indicados por este em substituição dos antigos.
A única excepção dos tempos modernos foi a da representação da China na
ONU:durante muitos anos, foi o governo de Chang Kai-shek, que se refugiara
na Formosa, que representou a China na ONU, e não o governo comunista que
ocupara o poder. Mas a situação acabou por ser reconduzida à normalidade, e
hoje é o governo de Pequim que ali tem lugar, estando Taiwan numa ambígua
situação.
Todavia, sempre como efeito da crescente internacionalização e interdependência, o facto da internacionalização da vidaprivadacomeça a reflectir-se em
certas excepções ao monopólio estatal de representação. A primeira excepção
(p. ex. Conselho da Europa), é que nas assembleias deliberativas das instituições internacionais estão representados os parlamentaresdos Estados pelo que
a representação já não é uma competência exclusiva do executivo (Governo);
deste modo, indirectamente, consagra-se uma representação directa do povo
de cada Estado, independentemente de os deputados pertencerem ou não a
partidos políticos no exercício do poder.
0
361
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O mais expressivo sinal de mudança encontra-se na Organização
Interna.
na/ do Trabalho(OIT), onde as delegações são compostas por represent cio.
dos patrões e representantes dos trabalhadores . Outras instituições, coªntes
própria ONU, atribuem um estatutoconsultivoa organizações não-governa lllo a
tais (artigo 64), designadamente junto do Conselho Económico e Social ;en.
st
exemplos denunciadores de uma mudança em curso não invalidam que~ r es
ainda seja que a estrutura e política das instituições internacionais é da cegra
0
1llpetência dos Estados 291•
2. Modelos organizacionais e funcionamento
As instituições internacionais, não obstante as especificidades de cada u
podem agrupar-se por modelosorganizacionais
que correspondem a um grau~ª•
cedência da liberdadetotal dos Estados em favor da cooperação imposta pet
interdependência.
Podem indicar-se três modelos principais: modelo de Asse ~
bleia;modelo executivo;modelo governativo.
m
No primeiro caso (Assembleia ou Conferência), a regra é que todas as competências estejam centradas no plenário dos Estados, seja qual for o método
de ponderação dos votos. Existe um secretariado que exerce, com maior ou
menor complexidade de acção, funções de apoio e burocráticas. A Liga Árabe
funciona assim.
No segundo caso (executivo), existe uma complexidade maior do aparelho
permanente da organização, para assegurar a execução das decisões, que não se
limitam a reconhecer conflitos de interesses, traçam programas para o futuro
que exigem acção. O Pacto da SdN correspondeu a esse modelo, que é também
o da ONU: Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Conselho de Tutela,
Conselho Económico e Social, Secretariado.
O terceiro modelo (governativo) já entrega a órgãos permanentes a formulação das políticas e o seu prosseguimento. É o que acontece com a União Europeia, onde a Comissãofunciona em muitos aspectos como um Governo, e o
Parlamentoactua em função dos interesses da União e não dos interesses de
cada país onde os eurodeputados são eleitos . O método da separação
depoderes,
que informa o constitucionalismo ocidental, começa a manifestar-se ali com
importância.
A permanência e periodicidade das reuniões dos órgãos das instituições
internacionais é função do seu peso e capacidade de intervenção na vida internacional. A história dos parlamentos demonstra que a permanência é uma arma
2
i11ternationalcs
, Paris, 1961.A revista InternationalOrga11izatio11,
Boston,
'" Pierre Gerbet, Lesorga11isations
da World Peace Foundation , fornece os dados sobre esta questão. Hans Kelsen, T/zelawof tlzeUnited
Natio11s,
N.Y., 1952.
362
OS INTERVENIENTES
, . importante, e as instituições internacionais, que obedecem à regra de
.
, . ten d em sempre para instaurar
.
pºhttCª
do O grupo ena. interesses
propnos,
essa
qoe'ºda permanência. No modelo da Assembleia a periodicidade normal é o
regra as pode acontecer que seja maior como acontece frequentemente com
311
º:esco,e a União Postal. Enquanto que as conferências diplomáticas do
i ,ú lo passado eram grandes acontecimentos, actualmente tendem para a regusecU
• •
·dade rotineira.
tar\~,dsteporém uma consequência importante desta regularidade, e que é
. tauração de uma diplomaciaparlamentar.O processo diplomático clássico
3
msegociação,
e do modelocontratualdo acordo, está a ser gradualmente substida'~o vista a natureza colegial dos órgãos das instituições internacionais, por
tlll
'
•e
.
1, na cnaçao
• - d e com1ssoes
. processo
par/ amentar.Este man11esta-se
no ntua
u:manentes ou temporárias especializadas, na discussão plenária dos relató~ os técnicos, na condução dos debates, na publicidade e, em alguns casos, na
ri
• •
•
•
divisãopor ma10nas e mmonas.
É muito inconclusivo o debate sobre as vantagens e inconvenientes deste
processo,mas não parece que possa ser abandonado em favor do secretismo tradicionalque rodeava a política internacional. A principal questão que o método
dadiplomacia parlamentar evidencia é a do voto. Todas as razões que levaram
jurídica com a desigualdade
defacto tornam-se aqui
3 tentar conciliar a igualdade
evidentes.A regrada unanimidade,que salvaguarda inteiramente a igualdade
jurídica,de facto contraria o princípio político de que os grandes Estados não se
subordinam ao voto dos pequenos nas questões que consideram importantes
para os seus interesses. É porém mantida em numerosos casos.
Oprincípiodamaioria,sem qualificação de votos, agrava ainda o conflito com
a referida regra política, visto que os pequenos países são quantitativamente
esmagadoresem relação às grandes potências e superpotências. É porém aceite,
em função dos interesses em causa. Na ONU, por exemplo, e exceptuando o
Conselho de Segurança onde vigora o veto,o princípio da maioriasimplesou
maioriaqualificada(conforme a questão) é o da Assembleia Geral, e também é
sem restrição o dos restantes conselhos e comissões. A defesa da hierarquia
são indicativas(guidingprincipies)e não
das potências está em que as resoluções
imperativas.
A evoluçãoda internacionalização mostra um fenómeno que é o inverso do que
se passou na história da formação do Estado centralizado e burocrático. Neste,
(Weber)a racionalização do exercício do poder político centralizado implicou a
criação,desenvolvimento e especialização de um aparelho burocrático cada vez
mais sofisticado. Na comunidade internacional, a criação, desenvolvimento e
racionalizaçãode um aparelho burocrático progressivamente complexo antecede
a visíveltendência para o aparecimento de poderes supranacionais.
363
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
É por isso um problema de importância crescente o da lealdade dos fun .
nários internacionais às instituições que servem, mesmo por indicação dos cio.
governos, a qual pode entrar em conflito com a lealdade nacional.
seus
O aparelho burocrático internacional tem condições para a neutralia d
em face dos Estados dos quais os funcionários são originários? E ao mesª e
lllo
.
d . . . _
tempo, de não ser neutro em re 1ação aos interesses a mst1tmçao que serv
2
Casos como o do Secretário-Geral da ONU são paradigmáticos. Mas não po;·
ser ignorado que a burocraciainternacional,seja qual for o modelo das instit _e
ções, é um poderdefacto no panorama geral dos intervenientes nas relaçõUi•
•
• 292
es
mternac10na1s .
3. A função e poderes das instituições internacionais
As atribuiçõesdas organizações internacionais e transnacionais são normalmente definidas em termos muito vagos nos respectivos estatutos, pelo que
as funçõesvêm a sofrer de igual incerteza. Basta ler o artigo 10 e seguintes da
Carta da ONU para verificar como a área reservada à sua competência parece
sem limites. De facto, e pondo de lado a excepçãoda competênciareservada
que
cada Estado pode sempre levantar como um travão, as definições estatutárias
são termosde referência,
que parecem uma moldura a ser preenchida pela jurisprudência política de interesses que os Estados vão desenvolvendo. O conteúdo não é realmente definido aprioristicamente, é construído em resposta às
exigências evolutivas da conjuntura.
No caso da ONU, pode verificar-se que a invocação da competênciareservada
nunca foi praticamente acolhida, pelo que a dinâmica da Organização tende
para ser dominante. Os casos da descolonização da Indonésia, ou da Argélia,
ou do Ultramar português, são demonstrativos. O que tudo encaminha no
sentido de que os mecanismos das instituições internacionais tendem para ser
complementados por uma jurisdiçãoque arbitra os conflitos com a excepção
da competência reservada. É o caso do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Esta situação quanto às atribuiçõese funções que tendem para serem alargadas não tem correspondência nos poderesdas organizaçõesinternacionais.
Um parecer importante do Tribunal Internacional de Justiça, de 11 de Abril
de 1949, diz o seguinte: "ACarta não se limitou a fazer da Organização criada
por ela um centro da harmonização dos esforços das Nações Unidas para os
fins que ela define; deu-lhe órgãos, atribuiu-lhe uma missão própria ..." De
facto, as organizações internacionais exercem competências
semelhantes às dos
292
Huillier, Lcsinstitutions intcmationalcsct trarisnationa/cs,
Paris , 1961. Galliard, Iristit11tio11s
i11tematio·
nalcs,Paris, 1956.
364
OS INTERVENIENTES
dos, exercem o direito de representação, estabelecem acordos interna6stª .5 obrigam -se aos seus tribunais internos. Mas estão muito deficiente·011a1,
ct e providas de poderesque assegurem o respeito pela sua autoridade para
lfle~d~r.
controlare sancionar.No primeiro domínio (decisão), a sua competênJec1, ,
,
. fica-se
em regra pela recomendação
ou resolução,como e o caso da Assemeia 1
l . Geral da ONU.
b e~uando lhes compete verdadeiramente a decisão,podem dar-se várias hipóuando a decisãotem de ser tomada por unanimidade,trata-se verdadeirareses. Q
nte de uma forma ou processo de estabelecer um tratadoou contratoentre os
JJl:mbrosda organização, como acontece na NATO. Tem a vantagem da cele~dade,da transparência e da condução sustentada de uma política. Mas, ver~adeiramente, são pseudodecisões dos Estados, como lhes chamou Colin, que
escapamao controlo dos parlamentos e assim vão configurando uma espécie
de executivo da instituição.
A decisãoé executada por um órgão que exerce o poder delegado ao qual
osmembros da instituição devem obediência . O típico é o Conselho de Segurançada ONU, em relação ao qual diz a Carta (artigo 24): "Os membros conferemao Conselho de Segurança a responsabilidade principal da manutenção
da paz e da segurança internacional e reconhecem que ao cumprir as decisões que lhe impõe esta responsabilidade, o Conselho de Segurança actua
em seu nome", e acrescenta (artigo 25) que "os membros da Organização
concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança de
acordo com a Carta".
Também o executivo da União Europeia toma decisões que são imediatamente exequíveis dentro do território dos Estados membros, designadamente
em relação às empresas económicas. É isto que atribui o carácter transnacional
a uma organização: as decisões dirigem-se, imperativas, à própria sociedade
civilsem necessidade de intervenção da soberania local.
de algumas insDeste tipo de decisõespodem aproximar-se os regulamentos
tituições internacionais técnicas (União Postal Universal - UPU, Organização
daAviaçãoCivil Internacional - OACI, Organização Mundial de Saúde - OMS)
osquais, sendo aprovados por maioria,são aplicáveis em todos os Estados membros, embora, o que torna o mecanismo imperfeito, os Estados possam tornar
pública a sua recusa total ou parcial do decidido, o que não acontece com as
decisões do Conselho de Segurança.
A falta de um poder coercitivo anda a ser preenchida por outros métodos.
Umdeles é o controlodo cumprimento das decisões, que implica o fornecimento
de dados estatísticas, e até, em alguns casos como o da Agência Internacional
da Energia Atómica (AIEA), inspecções locais. Este método mobiliza o apoio
dos Estados e a opinião pública contra o infractor e coage no sentido do cum365
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
primento. Quanto aos próprios Estados, a aplicação de sanções tem de se fi
pelo patamar disciplinar
dentro da organização em causa: privação de Voto tear
pensão ou exclusão, recusa de serviços. A natureza soberana dos Estados 'sus.
selha que a negociação tome o lugar das sanções 293 •
acon.
Chaumont, L'ONU, Paris, 1957. Goodrich e Hambro, Charterofthe UnitedNatio11s,Londres, 1949Errera, Euratom,Bruxelas, 1958.
293
366
Capítulo
IV
AsForças
emAcção
§ 1º
OsPoderesEstaduais
t. A lógica do poder militar
a)Supremacia militar
Vimosque o conceito tradicional do poder internacional tem que ver com a
capacidade militar, e que o conceito de balançadepoderesé ao mesmo tempo
metodológico e político, isto é, observante e observado. Também vimos que,
nesseaspecto, o teatro estratégico se mundializou, que a balança de poderes
temsido bipolar vai para meio século, sem fiel da balança, e traduzindo-se num
equilíbrio de terror desde a domesticação da energia atómica.
Este enquadramento do teatro estratégico mundial não eliminou a existênciade guerras marginais, ou de tensões regionais que, por sua vez, implicam o
usoregional do conceito de balança de poderes, e a tentativa de uma definição
das áreas estratégicas regionais.
Este poder militar funcionou como uma advertência a maior parte do tempo,
nãoteve faculdades integradoras do poder dos Estados que normalmente assumiram uma acção bipolar, e portanto grupal, de resposta, em que os EUA e a
URSSapareceram todavia como Estados directores. A definição das áreas em
conflito encontrou as suas raízes nas consequências da Primeira Guerra Mundial.
sanitárioocidentaldestinado a conter a exporA URSS, submetida a um cordão
tação da Revolução de 1917, organizou-se com base no conceito de socialismo
367
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
cercadonum sópaís, e procurou o desenvolvimento pela definição do que
mau uma NovaEconomiaPolítica(NEP).
cha.
A anormalidade de relações com os outros Estados não foi porém durad .
então e, liquidado o contencioso com os países bálticos cuja independê º'~a
reconheceu, e depois de regulados os conflitos com a Polónia e a Romé/c,a
URSS começou a sair do isolamento diplomático. Uma primeira aproxim:ª~ ª
com a Alemanha resultou de ambos os países terem uma posição de resist~ao
eia às pretensões dos vencedores no domínio das indemnizações de guer en.
reembolso de infra-estruturas; em 16 de Abril de 1922 assinaram o acord~~ e
Rapallo, que liquidava o contencioso entre ambos os países e originava u e
cooperação militar. Rapidamente o governo trabalhista de MacDonald
de Fevereiro de 1924, o governo italiano em 8 de Fevereiro, a França em 28 d
Outubro, o Japão também nesse ano, os EUA em 1933, reconheceram O nov~
regime. Em 15 de Setembro de 1934 a URSS entrou na SdN.
O perigo nazi acelerou este processo na década de trinta, e o medo da agressão encaminhou no sentido das alianças defensivas. Foi Lavai, que viria a ser
punido pela cooperação com os alemães invasores da França, quem concluiu
em 1933 o pacto franco-soviético.
Todavia, os acordos de Munique (Setembro de 1938), que permitiram salvar episodicamente a paz na Europa, traduziram-se em que a França e a Inglaterra abandonaram a Checoslováquia à ambição de Hitler. O resultado foi que a
URSS, desaparecida a coerência de uma estratégia comum contra a Alemanha,
procurou aproximar-se desta assinando o Pacto Molotov-Ribbentrop, em 13de
Agosto de 1939. Nesta data não existia ainda um aparente conflito de influência política, nem um confronto militar, e apenas a Europa parecia em questão.
Mas estavam lançadas as bases da guerrade religiãoque dividiu os dois blocos,
depois do intervalo da aliança para vencer o nazismo.
Nos anos que se seguiram à paz de 1945, o mundialismoque inspirou a ONU
foi perdendo em eficácia, ao mesmo tempo que se organizava um sistemabipolar
(Ordem dos Pactos Militares) que dominou a política internacional, com um
factor dinamizador que foi a corridaarmamentista.
O Conselho de Segurança não pôde exercer os poderes que lhe confiou o
Capítulo VII da Carta, incluindo as sanções económicas e militares contra os
transgressores da paz, justamente porque as superpotências nunca deixaram
de apoiar uma das partes em conflito e, consequentemente, de exercer o veto.
Não obstante ter criado os instrumentos dos observadores
e das forçasdemanutençãodapaz, que usou nos conflitos do Congo (1960), de Chipre (1964), do
Sinai (1967) e do Líbano, a ONU apenas em 1987, na sequência da nova atitude
soviética, retomou uma intervenção significativa na vida política internacional.
Podem indicar-se as seguintes acções relevantes: cessar-fogo entre o Irão e 0
e:;
368
AS FORÇAS EM ACÇÃO
ue (1988); negociação de Genebra para terminar o conflito do Afeganistão
rraq rribuição da Missão de Bons Ofícios das Nações Unidas (UNGOMAP) no
econanistãoe no Paquistão; esforços semelhantes no Sahara Ocidental, CamfJed~ Médio Oriente e América Central. O agente desta mudança foi o SecrebO
, .•Jª•
Geral J.Perez de Cuellar.
cario
· - e' um mo d e1o b'1po1ar d e regenc1a
• · d os
Entretanto, o que esta' em rev1sao
ócios mundiais, com os EUA liderando um dos blocos, e a URSS liderando
:e!utro, sistema que findou em 1989, deixando os EUA como superpotência
obrante.
Este modelo bipolar de direcção pusera no lugar do mundialismoda ONU,
herdeiroeste dos Projectistas
daPaz,o conflito imperial entre os EUAe URSS que,
evolução
sinuosa,
teve
o
condomínio da regência mundial, ou como objec001
~jvoou como consequência da lógica dos factos. Paralelamente, e a demonstrar
a insuficiência da velha invenção que é o Estado soberano para responder às
exigênciasdas comunidades, o fenómeno dos grandesespaçosrepartiu o mundo
em 3 áreas (12Mundo: EUA e Aliança Atlântica; 22 Mundo: URSS; 32 Mundo:
neutralista), onde funcionaram subsistemascondicionados sempre pela co-responsabilidade
mundialdas superpotências.
5
b)Política de desarmamento
Durante meio século, que terminou em 1989 com a queda do Muro de Berlim,
0 mundo viveu submetido a um regime de bipolarismo, e sempre ameaçado pela
destruição da Humanidade no caso de as duas alianças, a do Atlântico e a de
Varsóvia,decidirem subir aos extremos e utilizar as armas estratégicas. O medo
recíproco era uma variável estrutural da Ordem mundial, porque nenhuma
das regras éticas ou jurídicas, que pretendiam regular o comportamento dos
adversáriosno combate, dava resposta às tentativas de previsão do temido apocalipsemilitar. O estado de natureza, conceito ao qual Locke recorre para descrever a situação da comunidade internacional, parecia o mais indicado para
racionalizar as interdependências contraditórias, e por isso McDougall, com
alguma originalidade, anotava que as relações internacionais não assentavam
em regras, mas sim em decisões 294 •
Não obstante os solenes princípios recolhidos em documentos tão fundamentais como a Carta da ONU, nesses anos que vão de 1939 a 1989 os
poderes comportavam-se frequentemente como se estivessem convictos de
que actuavam referindo-se a princípios-guias (guidingprincipies),formulados
para a gestão de objectivos definidos pelos Estados sem qualquer obediência a um direito natural, a direitos originários do Homem, a valores abso'" McDougall, Laivand Mi11imumWorldPub/icOrder,Yale, 1961.
369
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
lutos. O poder apareceu de novo consagrado como um valor em si pró .
10
,
uma insubstituível capacidade de obrigar (Max Weber) ou, como diz
S. Jones: "Acapacidade de um agente das relações internacionais agir e a ter
proveito". Qualquer das superpotências recorreu à força para manter: seu
área de influência: os EUA em Cuba (1961), na República Dominicana (l 9~ua
no Panamá (1989); a URSS na Hungria (1956), na Checoslováquia (196s) S),
'no
Afeganistão (1979) 295 •
Entre as várias causas da guerra, que uma incipiente polemologia procur
identificar, aparece como vimos a competição arma mentista, que exige de fa ou
- com o tema d a paz pe 1o d'1re1to.
· Isto porque tal comCto
autonomia· em re 1açao
tição é animada pela revolução técnica e científica que desenvolveu os s~eefeitos distanciando-se perigosamente da ética, a qual, nesta matéria, tend Us
.
'dd a es agranas.
,.
para estacionar
nas respostas aos mo dld
e os as soc1e
Foi a estreu_
tégia baseada nos exércitos artesanais, ainda dominante no início da guerra d:
1914-1918, e exigentes de grande quantidade de mão-de-obra, que inspirou 0
direito internacional, desmoralizado este pelos exércitos de laboratório que
tiveram as armas estratégicas nucleares como argumento supremo, e a ameaça
do holocausto como dissuasor permanente.
A capacidade de fazer a guerra química e a guerra bacteriológica acrescentou a distância temível entre a técnica e a ética. Para uma teoriaconspfrativa,
que
teve curso nos próprios EUAdepois da Primeira Guerra Mundial, as indústrias
do armamento seriam responsáveis pela organização dos lobbiesda guerra. Esta
interpretação foi revigorada pelo facto de o Presidente Eisenhower, ao despedir-se do poder, ter definido o Estado que governou como um complexo militar-industrial no qual, portanto, grupos dominantes das indústrias de guerra
teriam uma influência capaz de criar, manter e agravar as tensões. Usando a
perpectiva de Wright Mills, tais grupos seriam compostos por militares profissionais, donos e quadros das indústrias militares, funcionários dependentes
das despesas militares, políticos em ligação com um eleitorado interessado nas
actividades da defesa 296 •
A autonomia relativa, mas importante, deste facto que, na sua forma extrema,
tem a natureza de um complexo militar-industrial, também autonomizou o
desarmamentocomo correspondendo a um capítulo fundamental da prevenção
daguerra:o risco do holocausto estava filiado, sem distinção, na decisão sobe·
rana ou no simples erro. A proposta feita por Kennedy, em 12 de Dezembro de
1962, no sentido de instalar uma linha telefónica directa entre a Casa Branca
,l~
,.,, Jacques Hunczinger, Introductio11
aux relatiorzs
i11ternatio11ales,
Paris, 1989, p. 257 e sgts. Dew Acheson,
Prese,ztat the creatio11,
myyearsin the State Department,N.Y., 1969.
2
"" Wright Mills, Thepowerelite,N.Y., 1956.
370
AS FORÇAS EM ACÇÃO
rnlin, correspondeu à percepção de que aquela situação exigia uma poHe_0
~r:o-responsabilidade,
sobretudo pela identificação do chamado riscomaior,
1,ca,eum riscocriadocujocontroloescapaeventualmenteaosresponsáveis
originários,
ist0 e;contece
comas catástrofesdasinstalações
nucleares.
com;
risso assumiram tanta importância
O
as negociações sobre o desarmamento,
. d endentemente das exigências decorrentes da necessidade de enfrentar
til ep
, 1de manter uma po l'1t1ca
. armament1sta
. e uma po l'ltlca
. de
efa imposs1ve
a carnvolvimento. U m pouco mespera
.
d amente, as consequenc1as
• . d a d esagredes:o da URSS, e o facto de tal acontecimento ter produzido uma proliferação
gaç
· nuc 1eares, passaram a d ommar
.
. - d e d esarmamento
d potências
as negoc1açoes
e artir de 1991-1992: ao lado da Rússia, perfilam-se a Ucrânia, o Cazaquistão
ap
, .
a Bielorruss1a.
e os acordos soviético-americanos de redução de armas estratégicas (START),
de 29 de Julho de 1991, depois de longas negociações, foram assinados pelos
quatro herdeiro~ d~ forJa nuclear soviética, :m Lisboa, em Maio de 1992.
Asnovas republicas mdependentes tambem aderem ao tratado de não-proliferaçãodas armas nucleares (TNP). Na cimeira de Washington, de 16 de Junho
de 1992, os Presidentes Bush e Ieltsin decidiram ultrapassar o acordo START,
comprometendo-se a reduzir drasticamente as cabeças nucleares, e a participar
noglobal de protecção" (GPS) antimísseis, com revisão do acordo ABM (mísseis
antibalísticos) de 1971. Em Julho de 1992, em Oslo, os treze países do extinto
Pacto de Varsóvia (findo em 1991) aderiram ao Tratado de redução de armamentos convencionais (CFE) e, seguidamente, assinaram um Acordo CFE-lA
para a redução dos efectivos militares.
O tratado chamado Céu Aberto, assinado em Helsínquia em 14 de Março
de 1992, e que actualiza os acordos militares de Vancouver e Vladivostoque,
completou o programa de desarmamento europeu.
Em Julho de 1992 foi redigido o tratado de interdição de armas químicas, ao
qual declararam aderir cinquenta Estados. Um acordo de 3 de Março de 1992
comprometeu 17 países industrializados a limitar a venda de material utilizávelno fabrico de armas atómicas e a China, em 10 de Março de 1992, assinou
finalmente o tratado de não-proliferação nuclear (TNP). Todoestemovimentoé
importante,mas nãopodefazer esquecerqueo desarmamentonão é a paz, é um acordo
sobrea maneiradefazer aguerra297 •
A importância e autonomia do armamento, e a tentativa de controlar este
juridicamente, teve relação com diversas percepções do fenómeno da guerra:
uma, representada pelo famoso H. G. Wells, identifica a vontade que decide
"' Sobre a evolução da arte de fazer a guerra no Ocidente, Archer Jones, The art oJWarin the Westem
World,Londres, 1987.
371
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
o conflito, e assim explica a Primeira Guerra Mundial como o resultad
O
ambições do Kaiser e da casa Krupp 298
; outros, como Max Scheler, entende das
"a guerra não é mera expressão de violência física, à qual abandona O seu cmque
a espiritualidade racional quando se sente impotente, é antes uma disp ªrnpo
Utad
.
h
poderes e vontades entre as pessoas co1ect1vas que c amamos Estados"299 d e
tas percepções recorta a guerra como um fenómeno com especificidade n~ , es.
· vasta d a v10
· 1enc1a,
' · que aparece como um ac1·d ente quan d o o Estadoarea
mais
,
entidade em movimento dinamizadora da história, em luta pelo alargam.ee a
do poder ou liberdade política, à margem e acima das limitações jurídicas nto
A defesa da guerra, feita na orientação de Scheler, traduz-se em suste ·
que ela outorgaaosEstadososdireitoscorrespondentes
ao seupoder.Não pode :t~r
tir-se ~ not~ de que o Estado é consider_ado,ju~tificado pelos _resultados, e p~;:
tanto 1dent1ficado como um valor em s1propno, do qual denva a legitimidad
da ordem que vier a impor. O próprio Ortega, aliciado em certa medida por est~
perspectiva, recomendava a interpretação da acção de Castela, durante a reconquista, à luz de um sentido de Estado, contrário ao particularismo doméstico
de outros povos peninsulares como os leoneses, galegos, aragoneses, catalães
e, sem o dizer, portugueses 300 •
Mas isso não o impediu de condenar o conceito de Scheler, segundo o quala
guerra é um juízo de Deus, que "manifesta todas as forças essenciais de um povo
ou Nação". Os factos foram sempre demonstrando que, ao contrário, a subida
aos extremos da guerra apenas foi legitimada ao serviço da justiça.
A corrida armamentista, e a proliferação vertical e horizontal das armas
atómicas neste século, ao mesmo tempo que tornavam esdrúxula a ameaça
de qualquer conflito, também contribuíram para desvalorizar o conceito da
guerra como violência específica dos Estados, eventualmente legitimada por
um transpersonalismo estadual. A violência da guerra teve de ser assumida
como um conceito abrangente de conflitos entre Estados, mas também de
conflitos entre movimentos internos e Estado, de agressão de poderes erráticos contra Estados e sistemas, tudo alimentado por uma circulação de armamentos que ameaça não reservar nenhuma espécie deles ao acesso privativo
das soberanias formais.
Daqui resultou que o pacifismo, independentemente das eventuais vinculações ideológicas, se alargou objectivamente a uma teoria geral de acções não- violentas, que deve importante contribuição aos especialistas da peaceresearch.
298
H. G. Wells, Laguerrequitueralaguerre,Paris, 1915.
Max Scheler, Dergwius desKriegeszmdderdeutscheKrieg,1915, in José Ortega y Gasset, Elgwio dela
guerra)'laguerraalema11a,
Obras Completas, 22 volume, Madrid, 1983.
300
Ortega, lug. cit., p. 218, nota 2.
299
372
AS FORÇAS EM ACÇÃO
s a guerra passou a ser examinada de um ponto de vista cataclísmico,
que
1
pore e de em relação à Humanidade como um todo, e não como um fenómeno
,ent~ºnado com um instrumento, o Estado ou a classe. Nesta linha, escritores
1ac10
d s como Galtung, Conway, Glover, Brown e Rapoport, contrapõem uma
à mais antiga polemo/ogia,
criando centros já referidos.
cita ;,enelogia
110v;odos finalmente reconhecem que o jogo de forças da comunidade inter. nal depende de um voluntarismo, agindo em função de matrizes valoratipact:bjectivose percepções. À proclamação do acto constitutivo da UNESCO
vas,gundoa qual as guerras começam no coração dos homens - correspondeu
-seorização
dasacçõespacíficasparaobteros resultados
justos secularmente
procura: ~pelaguerra.Destaca-se a obra de Gene Sharp, Thepoliticsof nonvio/entaction,
0
cluindo especificamente "acção convencional militar, luta de guerrilha, regie;dio,tumultos, acção policial, ofensiva e defesa privadas armadas, guerra civil,
cerrarismo,bombardeamentos aéreos convencionais ou ataques nucleares, ou
t
formas
seme lh antes "301 .
Nesta perspectiva globalizante, o Estado continuou a intervir como o inscrumentoda violência organizada, com tendência monopolizadora, mas dependente do risco que está na disponibilidade dos outros agentes da violência que
tiveremacesso à intervenção na comunidade internacional.
De novo a família dos Projectistas da Paz, em que se destaca Kant com o Projectoda Paz Perpétua, volta à actualidade para lidar com a autonomia da intervençãoque o Estado mantém em posição privilegiada, mas agora sem dispor
de uma doutrina e de uma técnica que obtenham a submissão dos outros agentes aos programas de acção não-violenta. Sobretudo porque o Estado deixou
de poder ser definido como o monopolizador da força, e também não parece
fácilsubordinar os factos ao entendimento de Max Scheler sobre a guerra, ou
dosvários transpersonalismos que pregaram a dignificação da guerra e do seu
agente soberano.
Ao contrário de a guerra poder ser definida como uma espécie nobilitada,
de identidade específica, dentro da complexa área da violência, aconteceu que
uma série de formas de violência reivindicam os atributos e finalidades com
os quais se pretendia caracterizar a guerra como um instrumento do Estado
ao mesmo tempo soberano e agente da História. É por isso que os conceitos
operacionais clássicos, usados para lidar com o fenómeno da guerra, foram frequentemente excedidos pela evolução.
Assim, a tradicional definição da guerra como "um conflito entre Estados
com o objectivo de cada um subjugar o outro pela força armada para assegurar certas exigências ou reivindicações" (Scruton), também se aplica sem difi-
r:
301
Gene Sharp, Nonvio/c11t
action,Boston, 1973.
373
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
culdade aos movimentos terroristas , a alguns fundamentalismos, a agen
internacionalismos ideológicos.
tesde
As guerras entre Estados também não resultam sempre de políticas te .
. . expans10mstas;
. .
na1s
ra d.1cam eventua 1mente, como acontece com as guerrrrito·
religião, em duradoiras contradições culturais. O mapa dos conflitos em asde
' · o nsco
· frequente d e se a1argarem a vastas reg1oes,
•- as capacidcurso
ou poss1ve1s,
d
militares que se multiplicaram, o policentrismo atómico, as formas de guª es
química ou biológica ao alcance de várias entidades não-estaduais, tudo pa:rra
ten?er para el!mi~ar o s~mântico desvelo pelo alegado pr~ncípio inato da b:~~
gerancia, que msp1rou Nietzsche e Sarei, porque a generalizada consciência do
risco faz apelo a outros valores 3º2 •
e) O armamento moral - a nova Mensagem de Assis
Não é fácil racionalizar a nova conjuntura usando os conceitos operacionais d.ISponÍveis, e que foram elaborados, com dificuldades similares, para entender
Ordem finda. Admitamos porém que está consumada uma mudança da estru~
tura da comunidade internacional, de tal modo que o Estado em transição sofre
a competição de outros agentes das relações do poder, e que a comunidade civil
mundial tende a definir-se com esquecimento das fronteiras políticas.
Em tal novo contexto, a guerra perde a sua definição qualitativa e estrutural específica , dentro da problemática geral da violência, e todos as formas de
violência se revelam interdependentes ou conjuntamente instrumentais para
a realização do mesmo objectivo político.
Nos conflitos concretos é mesmo frequentemente impossível manter adistinção entre meios violentos e não-violentos de acção. Por isso convém deixar
aqui um apontamento sobre a tradição cristã de apoiar as intervenções não-violentas contra as injustiças sociais, a manifestação de uma linha em relação
com situações de guerra declarada, e alguns equívocos que aparecem a coincidir com esta nova referida conjuntura em que a guerra se autonomiza mal no
quadro geral do excesso da acção violenta e não-violenta.
Da investigação do citado Gene Sharp podemos recolher alguns exemplos
de apoio a acções não-violentas, admitindo que este conceito abrange todos
os "métodos de protesto, não -cooperação e intervenção" que recusam o uso da
violência física contra as coisas e contra as pessoas. Neste domínio tem de reconhecer-se o papel cimeiro de Gandhi, que deu certamente a maior contribuição
individual para a definição e consolidação da perspectiva pacifista e das acções
não-violentas destinadas a alterar a ordem estabelecida. Os seus primeiros exer-
30
'
Nietzsche, TliusspokeZarathustra,Berlim, 1883. Sorel, Rifbions sur la vio/ence,Paris, 1908.
374
AS FORÇAS EM ACÇÃO
. na África do Sul, a transformação do satyagrahano método por excelência
ertação da Índia, são marcos na história da acção não-violenta 303 •
cíc1?bs
' o recurso a' fc'
. • . naoda hpentro desta, porem,
e no senti'do de amparar a res1stenc1a
joJentatem u~. lugar part!cular, e c~m _ante:e~ent:s que ~an_ibém,incluem
-'-1 istãos de vanas confissoes. A proc1ssao rehg10sa e um class1co metodo de
os~:tência e de protesto, usada em várias ocasiões e diferentes épocas. A massa
reSIularque, em 1905, se dirigiu ao Palácio de Inverno em S. Petersburgo, tomou
Pfirma de uma procissão dirigida pelos clérigos, exibindo cruzes e ícones,
ªentºoando cânticos religiosos: cerca de uma centena de pessoas foi morta pelas
opas, e umas trezentas ficaram feridas.
tr Actosreligiosos e preces públicas tiveram exemplo na Polónia ocupada pelos
alemãesem 1942. Em 1959, quando a polícia sul-africana, em Ixopo, ordenou a
urnamultidão de mulheres que debandassem, elas "caíram de joelhos e começarama rezar", desorientando a força pública. Em 1963, durante o confronto
budista com o regime de Diem, o padre católico Cao van Luan, reitor da Universidadede Hue, conduziu os estudantes ao pagode Tu Dam para rezarem em
solidariedade com o protesto budista.
Talvezum grande símbolo da resistência pacífica, eficazmente desafiadora
do poder, tenha sido, neste século, o Cardeal Mindszenty, Primaz da Hungria.
Assuas Memórias, publicadas no exílio, são um documento de referência fundamental para a doutrina cristã da resistência. Os anos que passou nas prisões marxistas, diariamente punido fisicamente, e os longos anos que esteve
em reclusão na Embaixada dos EUA para que a sua presença animasse o povo,
definem uma clara distinção entre a resistênciae a violência,mostrando como
a primeira não está necessariamente associada à segunda. A importância da
distinção está a ser posta em evidência em Timor, onde a proclamada extinção
da guerrilha pelas forças da Indonésia não pode ser confundida com o fim da
resistência.
Esta ligação com a resistência, sempre em nome de valores cristãos, tem
eventualmente revestido a condição de voz tribuníciados povos ou extractos
sociais alienados, algumas vezes claramente invadindo as áreas da política.
As revoluções pacíficas da Europa Central, e muito especificamente a resistência e independência final da Polónia, na sequência do desmoronamento do
império soviético, tiveram na Igreja uma voz tribunícia, naturalmente acusada
de ultrapassar essa função. No caso de Timor, a voz do Administrador Apostólico D. Ximenes Belo tem sido uma voz tribunícia para o exterior, sendo de
admitir que anima a resistência sem intervir na acção armada.
303
É indispensável acrescentar hoje a variante de Nelson Mandela, Longocaminhoparaa liberdade,
autobiografia, Lisboa, 1994.
375
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Talvez seja a dificuldade de manter bem separado o envolvimento na r .
tência, e uma recusada participação na acção violenta, que contribui p es,s.
perplexidade relacionada com a acção da Igreja na torturada América La:~aa
com expressão visível na teologia da libertação e na acção de alguns dos 'na,
teóricos, como o Pe. Boff.
seus
Independentemente da presença de referências à metodologia mar .
.
.
.
Xista
nas perspect1vas que adopta, talvez mais recolhidas de Rosa Luxemburgo do
que de outro qualquer autor dessa área, parece que o formulado preceito
· capitalista
·
- d as comum'dadesde basea lºb
- d a v10
· 1·
espera d a acçao
I ertaçao
enc1a
eque
d
violência marxista precisa de um complemento de modo.
a
Não sendo desconhecidos os métodos postos pela experiência à disposiçã
das acções de libertação, sendo actualíssima a problemática da distinção entro
meios pacíficos e meios violentos, e dara a diferença entre resistência e com~
bate armado, é de notar que não se encontra na doutrina, destinada às comunidades de base, nem a invocação de qualquer dos pacifistas que dominam 0
pensamento contemporâneo, nem o conselho de recorrer à violência. A lógica
do discurso é posta em suspenso, deixando assim inevitavelmente o caminho
livre à lógica da acção libertadora, que não exclui a violência 3° 4 •
Vimos que a lei da complexidade crescente da vida internacional, de acordo
com a qual se multiplicam as dependências e interdependências dos Estados,
parece aconselhar no sentido de usar um conceito operacional da violência que
negue à guerra dos soberanos uma definição específica e numa valoração privativa. As ameaças e as agressões, com eventuais efeitos generalizados, podem
ter origens bem diversas, desde o acto isolado do assassinato de um líder que
desencadeia uma guerra civil, à sublevação civil que sobe ao extremo de exigir
a intervenção da comunidade internacional. Nos dias recentes, a África do Sul
e a Jugoslávia serviram de exemplo ameaçador.
De acordo com a nova estrutura da comunidade civil mundial e da comunidade internacional, a explosão técnica e científica entregou à liberdade dos
Estados o poder de destruir a Humanidade, e as crises das estruturas políticas,
desagregando as cadeias de comando tradicionais, multiplicam os centros de
decisão capazes de terem acesso às armas de destruição maciça, e às formas de
guerra total dos pobres, que são baseadas nas armas químicas e biológicas.
Daqui a importância da intervenção da doutrina católica sobre a guerra,
renovada a partir da Segunda Guerra Mundial, e concretizada, pelo que res·"'' Leonard Iloff, O caminhoda Igrejacomosoprimidos,Rio de Janeiro, 1980; Teologiado cativeiroe da
libertação,Petrópolis, 1980 . Meira Penna, O evangelizo
segundoMarx, S. Paulo, 1982. A. Moreira, De
Bandu11g
aosproblemasNorte-Sul,in Comentários, Lisboa, 1992. Gandhi, An Autobiography
ort/rcstor)'ºÍ
my cxperimentswitlztruth, Navajivan Publishing House, 1956. George Mikes, T/relzungaria11
rcvolution,
Londres, 1957. Miller, No11violc11ce:
a ChristianInterpretation,N.Y.,1964.
376
AS FORÇAS EM ACÇÃO
·caaos princípios guias, no Concílio Vaticano II. A Constituição Pastoral
pe• A IgrejanoMundoModerno(Gaudiumet Spes),proclamada por Paulo VI em
so;repezembro de 1965, foi considerada por muitos como o maior resultado
8 ~oncílio, e mesmo uma viragem importante na avaliação da guerra como
do , rneno, e da justiça dela como doutrina.
fen;Jaborada no período crítico da competição bipolar, teve apoio em textos
eriores de grande significado. Conviria lembrar a Encíclica Pacemin Terrisde
an~ :XXIII,de 11 de Abril de 1963; antes, o Discorsode Pio XII de 30 de Setemde 24 de Dezembro de 1955; e, finalmente,
Jo~ºde1954 e o seu Radiomessagio
!rhistórico Discurso à Assembleia das Nações Unidas, proferido por Paulo VI
4 de Outubro de 1965.
111
e Talvezo ponto essencial seja, como sustenta Dominique Dubarle, a "reformulaçãoda teologia da guerra justa" 3º5•
A doutrina clássica era tributária dos três princípios enunciados por S.
Tomás:a iniciativa devia ser de uma autoridade competente, por uma causa
justae com recta intenção, isto é, respeitando a justa medida na condução das
operaçõesmilitares 306 • A guerra era, na doutrina comum, um meio de restabelecerum direito injustamente violado. Tendo em conta a evolução da comunidade
internacional, das formas de guerra possíveis, e das múltiplas novas oportunidades de resolver pacificamente os diferendos, o texto conciliar, recolhendo
a anterior doutrina dos pontífices, apenasaceitoua legítimadefesados interesses
vitaisde uma Nação, designadamente o direito à independência ameaçada.
A passagem da perspectiva da teologia da guerra justa para a perspectiva da
legitimidade da guerra defensiva foi baseada, desde Bento XV a Paulo VI, na
própria evolução da conjuntura: tratou-se, como salienta Dubarle, de reconhecer a ambiguidade das justificações enumeradas para as guerras modernas, da
perigosidade dos meios técnicos disponíveis, da importância e oportunidades
crescentes dos modelos de negociação. A restrição estabelecida à condenação
absoluta da guerra (não se pode negar aos governos o direito de legítima defesa,
79-2),deriva da necessária transigência com as realidades, que obrigam a considerar simultaneamente "a condenação absoluta da guerra e a acção internacional para a evitar". Na distância que fica entre as condenações e a acção solicitada,
os problemas novos é certo que não encontram respostas inequívocas.
O texto do n 2 79 faz menção da guerra "mais ou menos latente", procurando
abranger as formas de guerra subversiva e revolucionária, mas não pareceu possívelir além da teologia tradicional e da valoração do direito à autodetermiJ-Os
ln La Chiesanel mondocontemporaneo,
edição organizada por Enzo Giammancheri, Brescia, 1966,
p.288.
J-Oc,S. Tomás, Sum. Theol.,II- II, q. 40, art. l.
377
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nação. Considera contrários ao direito natural os chamados crimes de g
e assim deixa aberta a legitimação de Nuremberga.
Uerra,
Mas sobretudo foi necessário enfrentar a capacidade militar de destru· _
em massa e indiscriminada das cidades e populações do adversário.
'Çao
Nunca foi fácil, no longo período da ameaça ~ecíproc~ ~e destruição
ambos os blocos, condenar absolutamente a doutrma da utilização das ar de
estratégicas, porque ela tinha relação evidente com a legítima defesa. o a lllas
ao sentido de medida, que já Pio XII fazia no discurso de 30 de Setembr~~o
1954 dirigido à XIII Assembleia da Associação Médica Mundial, inscrevi e
' . d efcesa. Mais
. tar d e, nas vesperas
'
d a reeleiçãoa-se
. class1ca
' . d e 1eg1t1ma
na d outrma
d
0
Presidente Reagan e da política da guerra das estrelas, a Conferência Episco
.
fc'
• concreta na sua con d enaçao
- d as armas atom1cas.
'·
pa1
Amencana
01mais
Por outr
lado, a própria guerra das estrelas, que teria um efeito causal importante n
fim da Guerra Fria, ficava abrangida pela reprovação completa e segura da co:
rida aos armamentos, um preceito da maior actualidade nos dias que estamos
viver. O Concílio foi claríssimo em proclamar que não devem abandonar-se a:
esperanças de que a Humanidade chegue a um ponto em que a guerra não seja
apenas deplorada e condenada, mas também eficazmente interdita. O efeito
é
mais imediato e credível do espírito pacífico, enunciado em Pacemin Terris,
sem dúvida o desarmamento. Mas a doutrina ensina, antes do texto constitutivo da UNESCO, que a guerra começa no coração dos homens.
E por isso a intervenção de João Paulo II, com a Mensagem de Assis, representa a mais elevada contribuição no sentido de criar as condições que excluam
das
o recurso à guerra. Em 9 e 10 deJaneirode1993, a reuniãodoslíderesespirituais
°
grandesconfissõesreligiosas,
paraquetodosconvirjamnasprecese napedagogianosentido de eliminaraguerrado coraçãodospovos,foi oponto maisaltoda intervenção
destinadaa conseguirquetodosospovospeçama inspiraçãodivinaque iluminea maneira
deentrarnoséculoXXI.
É a segunda vez que João Paulo II escolhe Assis e a invocação de S. Francisco para desenvolver a doutrina da paz à qual pretende que seja referida a
Nova Ordem mundial. A imprensa internacional deu um excepcional relevo ao
encontro cujos resultados estão a ser divulgados e meditados, tendo de sublinhar-se a coerência com a intervenção histórica na mudança na área dos antigos satélites, e a articulação com os esforços no sentido de vincular a futura
Ordem internacional a valores éticos de projecção mundial.
Desta feita, é particularmente a Europa que serve de tema, porque esta reincide na tradição de ser ao mesmo tempo a matriz de todo o direito internacional, e a responsável por algumas das suas mais graves violações. É por causa
dos povos da Europa, e já não em benefício das áreas da colonização ocidental, que voltam a ser proclamados estes valores: cada Nação tem direito à auto·
378
AS FORÇAS EM ACÇÃO
rrninação como comunidade; trata-se de um direito que pode realizar-se
e d eração
dete
· · so b erama· po l'1ttca,
·
· me d"1ante uma 1e
. rnediante uma pnvattva
seia
se):onfederação com outras nações.
ou Aproclamação, não de coisas novas, mas feita de novo, tem como causa pró. a O drama da dissolução da Jugoslávia, que suscitou esta questão na Mensade Assis: "Poderia ter sido preservada uma ou outra modalidade entre as
geções da antiga Jugoslávia? É difícil excluir tal possibilidade. Todavia, a guerra
º:e se desenrolou parece ter afastado tal solução. E a guerra está em curso.
~urnanamente falando, parece difícil antever o fim dela". Sobretudo, parece
difícil prever a modalidade de paz que virá a reinar sobre o território onde se
mistura o sangue derramado por todas as comunidades sem excepção.
A autoridade que o europeísmo dos valores reclama para intervir no mundo
e na definição da Nova Ordem é gravemente posta em causa pela negação dos
mesmos valores em terras e por povos europeus que praticam entre si todas as
violações condenadas pelo direito internacional que formularam e impuseram
mundialmente.
Não faltaram os depoimentos que, no encontro, deram testemunho da quebra do respeito pela dignidade humana, e talvez seja paradigmática esta declaração de um representante da comunidade católica de Banja Luka: "vivíamos
na grande diáspora, conjuntamente com os fiéis da Igreja ortodoxa sérvia e da
comunidade islâmica, na parte norte-ocidental da actual República da Bósnia
e Herzegovina ... (Sofremos) mortes e massacres de crianças indefesas, violação
de mulheres e raparigas, pesadas agressões psíquicas e físicas de religiosos, prisões, tortura, e ainda mortes de sacerdotes, destruição sem motivo de numerosas igrejas e mesquitas, centros pastorais e edifícios privados dos nossos fiéis,
dramática expulsão de fiéis de muitas paróquias, generalizados saneamentos
de postos de trabalho, constrangimentos para participar na guerra contra o
próprio povo ..."
A lição é de humildade para a arrogância que renasce em várias sedes políticas europeias, e por isso o encontro de Assis novamente apela ao ecumenismo
superador das diferenças, respondendo ao mundialismo das interdependências
com a busca e formulação dos valores universais. Tem importância, para avaliar
do significado do encontro, recordar que estiveram presentes delegações católicas de trinta e dois países e do ConciliumConferentiorum
Episcopalium
Europae,
delegações da diocese de Banja Luka, das arquidioceses de Sarajevo e Belgrado,
delegações interreligiosas de Mostar e Skopje, de várias comunidades eclesiais
cristãs, designadamente ortodoxos, anglicanos, metodistas, luteranos, e ainda
representantes do Hebraísmo e do Islamismo. Não pode deixar de salientar-se
que o pluralismo das representações confessionais é limitado, no significado,
pela restrita área geográfica da proveniência.
~1:
379
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Provavelmente o interesse da opinião pública fixou-se, por isso mes
para além da Jugoslávia, na questão de Israel, em vista da identidade dos~o, e
gados. Todavia o problema é mais vasto, e a necessidade de persistir ineg· ele.
Talvez baste recordar que vivem cerca de 10 milhões de muçulman:"el.
Europa Ocidental, dos quais três milhões se encontram em França, dois mi!~-na
na Alemanha, outros dois milhões na Inglaterra e meio milhão, respec/es
1
"amente, na Holanda, Bélgica, Itália e Escandinávia.
A coexistência, neste fim de século, com essas e outras colónias interior
já demonstrou dificuldades suficientes em vários países, e parece realme es,
aconselhável tentar que a razão desenvolva urgentemente processos que nt:
" . dos fiéisevi. 1·1caçao
- e agravamento d e con firontos. A convergenc1a
tem a mu 1ttp
d
tantas confissões, e a resposta que deram, comparecendo, anima no sentido de
aceitar que, tal como foi proclamado, não se trata de uma esperança superficia~
nem de uma concessão a optimismos fáceis. E, antes de mais, trata-se da cora~
gem de afirmar, em conjunto, que "usar a religião como desculpa para a injustiça e para a violência é um terrível abuso que deve ser condenado por todos os
verdadeiros crentes em Deus".
Recordando a Mensagem da Jornada para a Paz de 1970, de novo se condena
uma paz obtida pela força, mas, tal como disse um humilde fiel, lembrado da
guerra mundial e agora vítima dos confrontos: "espero que o perdão permaneça no meu coração ... todos aqueles mortos ... aquela violência feroz ... como
então ... pior do que então. Façamos com que, pelo menos, à geração dos vossos
filhos não aconteça, rapazes".
Todas as confissões presentes convergiram nesta afirmação de João Paulo
II: "viemos em peregrinação a Assis para invocar Deus: abater as barreiras do
ódio ... abrir caminho à paz". Na longa teoria dos Projectistas da Paz europeus,
o pensamento cristão é dominante, mas muitas outras áreas culturais enriquecem esse legado da luta pela paz pelo direito, e pela concórdia. A Mensagem de Assis convoca todos os que se reconhecem herdeiros de uma pregação
comum, para que se reencontrem numa oração comum, capaz de dinamizar
uma comum acção destinada a implantar a concórdia. Trata-se, sobretudo, de
convocar para a acção.
No entretanto, ao longo deste meio século de conflito bipolar, os conceitos
de fronteiras,de jurisdiçãointerna,de soberaniae de forças
de defesa,de segurança,
armadassofreram uma radical modificação, porque os factos o exigiam.
Ainda no começo deste século, quando se deram por estabilizados os impérios coloniais das democracias europeias, as forças armadas correspondiam aos
modelos e valores das sociedades agrárias.
O patriotismo, que é uma virtude de camponeses, e nasceu do trabalho da
terra, do amor à terra, e do regresso final ao pó da terra, era um valor funda380
AS FORÇAS EM ACÇÃO
al mesmo das sociedades industrializadas, porque a mudança cultural se
sempre em tempo demorado.
fazfoi durante o processo da Revolução Francesa que Goethe, assistindo à
talha de Valmy,anotou, como vimos, ter assistido a uma mudança essencial,
ba ual era a de os soldados combaterem gritando viva a França, e não já dando
aq
.
·vasao Rei.
vi A mudança da matriz da fidelidade política, que alastraria a todo o espaço
cidental onde o legitimismo foi progressivamente substituído pela democraº·a
deu ainda maior relevo aos valores de Nação e de Pátria, que contrariaram
1
: a~anço de todos os internacionalismos até à unificação dos teatros estratéicos e às guerras mundiais.
g Rara fronteira ocidental, se alguma, deixou de ter origem na guerra, de ser
violadaem guerra, de ser restaurada pela guerra. Quando os governos ocidentais se racionalizaram em função das premissas dos regimes democráticos, os
ministérios
daguerraforam todavia de modelo comum a todos os países. A expansãocolonial do século XIX, que definiu a forma última do Euromundo, por iniciativadas democracias europeias da frente marítima (Alemanha, Inglaterra,
França, Holanda, Bélgica), não apoiava um conceito de forças armadas apenas
defensivas, assim como a experiência histórica, a antiga e a recente, semeada
de conflitos armados aos quais o projecto napoleónico acrescentou a dinamizaçãodos teatros estratégicos, fizera considerar cada Estado vizinho como um
inimigo íntimo.
A guerra, à qual Clausewitz (1780-1831) deu um estatuto académico, foi o
factosocial determinante, segundo o já citado Aron, da autonomia científica das
relações internacionais 307 • Na tradição de Maquiavel, portanto, todo o Estado
deve estar preparado para a guerra, isto é, para um confronto violento com o
objectivo de submeter outro Estado pela força armada, com vista a assegurar a
ratificação de exigências, ou para se opor a elas. A força é usada com violência,
isto é, viola, quebra e destrói os valores, humanos e materiais, contra os quais
é dirigida. Porque é que a natureza humana requer frequentemente uma decisão violenta dos conflitos, é uma questão não resolvida.
Filósofos como Nietzsche (1844-1900) e Sorel (1847-1922) consideram
o recurso à violência como o resultado de um louvável instinto. O primeiro,
no famoso Thus spokeZarathustra(1883-92), Assimfalava Zaratustra,atacou o
legado humanista cristão que acusou de responsável por uma corrente "moral
de escravo", e defendeu a realização individual do tipo do Übermensch(supert
111ell
J-OIKarl von Clausewitz, Da Guerra,Brasília, 1979. Raymond Aron , Penser
laguerre,Paris, 1985, dedicou-lhe uma análise escolástica que o coloca na matriz de todas as escolas de pensamento posteriores. Foi
0 clássico de referência, nas escolas militares de ambos os blocos, durante a Guerra Fria.
381
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
-homem), que cultiva a força, o poder e a vitalidade "além do bem e do
título de um escrito de 1886.
IllaJ~,
O segundo, que influenciou o pensamento político moderno com as
Reflexõessobrea violência(1908), sustentava que a violência não é um fenó suas
acidental ou de crise, é acolhido no domínio dos princípios da moral e dIlleno
gião, e na área das instituições sociais e políticas, pelo que a confrontaç: re_liO
tónica de todo o processo político, pelo que toda a oposição respeitável te e a
' . eLormade v10
. 1enc1a.
• . A soc10
. b"101og1a,
. na me d"ida emmde
d esenvo 1ver a sua propna
pretendeu esclarecer o comportamento das sociedades humanas recorreniu~
0
analogia com as determinantes biológicas do convívio dos animais, animo ª
0
relevo a dar a um primitivo instinto de território próprio, uma perigosa evu
tual contribuição para o racismo.
en.
Os estudos antropológicos não parecem abonar a sociobiologia, porq
.. sistemas dhe onra, que persistem
.
"ddd
ue
encontram mais
nas soc1e
a es esenvolvi308
das, do que outras motivações •
Entre a apologética da violência que regimes políticos (Hitler-MussoliniLenine-Mao) adaptaram, e as incertas conclusões sobre a natureza humana
permanecem ofacto daguerra,a debilidade
dapolemologia,
a vontadepolíticadecisiva'
o sistemade valoresadaptado,as soluçõesorganizacionais.
'
Os referidos exércitos das sociedades agrárias foram chamados, designadamente em Portugal, espelho da Nação, e tornou-se paradigmática a afirmação
de Mouzinho de Albuquerque (1855-1902) - estepaís é obradesoldados.
A integração social dos jovens, como vimos, assentava essencialmente e primeiro na intervenção da família, depois na escola que não dominava o analfabetismo, na Igreja e, finalmente, nas Forças Armadas, porque o serviço militar
era geral e obrigatório. Os exércitos necessitavam de uma grande quantidade
de mão-de-obra, porque os instrumentos ao seu dispor eram tecnicamente de
eficácia limitada. Os contingentes era nas fileiras que recebiam a doutrina e a
prática, ambas orientadas por um sistema de valores patrióticos, que de algum
modo colmatavam as insuficiências de intervenção das outras instituições.
O espelho da Nação era realmente o corpo permanente dos oficiais e sargentos.
A total ocupação do globo pelas soberanias, com reserva do património
comum da Humanidade, a mundialização dos teatros estratégicos, a explosão
'º"A sociobiologia. que estuda os fundamentos biológicos do comportamento social de homens e
the new-synthesis,Harvard, 1975. Os eco·
animais, foi autonomizada por Edward Wilson, Sociobiology:
animale
logistas, bem representados por Konrad Lorenz, prémio Nobel de 1975, E/ comportamie11to
Barcelona, 1977, fornecem apoio a urna renovada tendência política no sentido de dar relevo
huma110,
a urna ideologia ambientalista, negadora da primazia dos factores culturais. Ver Alain de Benoist,
NovaDireita- NovaCultura,Lisboa, 1981, p.136 e sgts. António Marques Bessa, Quemgoverna?,Lisboa,
1993, p. 494 e sgts.
382
AS FORÇAS EM ACÇÃO
. a e científica causada e aplicada à própria guerra, fez evoluir os exércitos
céC~~~os
para exércitos de laboratório, que exigem uma alta formação técnica
agra uadros, e reduzem as exigências de mão-de-obra não-qualificada. A fund~Sdo espelho da Nação desaparece perante a integração assumida por orgaç~ºções políticas de juventude ou sindicais.
niza dever m1·1·1tar ten d e para ser d esconst1tuc10na
· ·
1·1zad o e o recrutamento
0
d pta as formas do voluntariado e do contrato, salvo o caso de emergência.
:1 ºonceito
daguerraevolui, por deslocação do acento tónico, para um conceitode
~;sa eseguranç~,
o que significa uma mudança no quadro dos valores int_erna.'onais,no senudo de repensar as guerras de agressão. Por sua vez, o conceito de
~~fesadeixa de estar centrado no braço militar para abranger complexivamente
odos os recursos económicos, científicos, técnicos, financeiros, ideológicos,
~omsedes de responsabilidade diferentes das forças armadas, e que são todas
envolvidaspela ruptura da paz, ou pela ameaça da ruptura da paz.
o objectivo é a segurança, tlzeguaranteeofsafety,evitando a subida aos extremosda guerra que, em vista dos meios técnicos ao dispor dos governos - guerra
atómica,guerra química, guerra bacteriológica - ameaça com o holocausto da
Humanidade.
Este equilíbrio instável, da guerra impossível e paz improvável no dizer de
Aron,que caracterizou o comportamento dos blocos até 1989, acabou por receber o nome de GuerraFria,uma expressão criada por Bernard Baruch em 1947,
e cornada de uso mundial pelo famoso jornalista Walter Lippmann.
O fim da Guerra Fria não diminuiu os riscos porque a crise da cadeia de
comando dos antigos exércitos soviéticos multiplicou os poderes políticos com
acesso às armas estratégicas, e os conflitos regionais deixaram de estar contidos pela antiga Ordem. O facto é que os Estados e os povos suportam cada vez
com maiores dificuldades as despesas e encargos militares, os grandes poderes
procuram diminuir os orçamentos respectivos, as chamadas armas inteligentes
exigem a revisão das doutrinas estratégicas, as armas estratégicas disseminam-se vertical e horizontalmente. A doutrina que procura condenar e eliminar
toda a forma de guerra continua desafiada pelos factos 309 •
2. A lógica do poder económico
Amaior parte das relações entre os povos e entre os Estados são hoje de natureza
económica, embora a política económica e as políticas do poder actuem inter309
António Emílio Sacchetti, EstratégiadeDissuasão,JSCSP, Lisboa, 1989. RomeDeclaratio11
on Peaceand
Meeting of the North Atlantic Council in Rome, (a 7 e 8 de Novembro de 1991},NATO
Cooperation,
Office oflnformation and Press, Bruxelas . Harry Gelmon, "Rise anf fali of détente", in Problemsof
Communism,Mar.-Abr., 1985, p. 5 e sgts . Richard Ned Lebow, "Deterrence reconsidered : the challenge
of recem research", Surviva/,1985, p. 20 e sgts.
383
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
ligadas, como aparece evidente no que respeita ao comércio de armas. Mas
exemplo crítico é apenas um sector limitado de um complexo de relaçõeseste
que a política determina largamente a moldura das relações económicas, e e elll
st
estão relacionadas com os objectivos políticos do poder3 10• O movimento coI ~
1
zador que teve a referência na Conferência de Berlim de 1885 foi deterrnin principalmente por razões económicas - a busca de mercados e de matéria/ ?
mas-, e a descolonização, depois de 1945, foi igualmente muito deterrnin~~ipela filosofia americana de livre acesso aos mercados e matérias-primas.
a
Trata-se de um problema essencialmente relacionado com a lógica da Iu
pela posição na balança internacional de poderes, que subordina a política ec!~
nó mica a uma lógica subordinada àquela. Assim como a luta puramente polític
conduziu às instituições internacionais e à transnacionalização dos processosª
assim também a área das relações económicas deu origem a um conjunto de ins:
tituições governamentais internacionais. Problemas de segurança do comércio
como acontece com a rota do Atlântico, têm imediatos reflexos na área militar'.
A políticaeconómicainternacionalé assim,no conceito de Gilpin, a recíproca
edinâmicainteracçãonas relaçõesinternacionaisem buscade riquezaepoder.Deste modo
o poder económico pode compensar, na balança de poderes e suposta a paz,~
ausência ou perda de poder político.
Num livro que fez carreira, Akio Morita, lidando com a dimensão actual do
chamado milagre japonês depois de o país ter sido vencido pelos EUA e proibido de ter forças militares, acentua a necessidade de avisar os americanos no
sentido de não descansarem na imagem de superpotência, para que se concentrem na recuperação da economia. Nota, por exemplo, que sem os semicondutores produzidos pelo Japão, a eficácia dos mísseis estratégicos americanos não
pode ser garantida. Sublinha que se o Japão suspendesse a venda de alguns elementos aos EUA e tivesse passado a vendê-los à URSS, o equilíbrio estratégico
mundial teria sido afectado. Concentra-se também em tentar demonstrar que os
americanos orientaram a sua economia pela noção do lucro imediato, jogando
com o dinheiro, enquanto que os japoneses se preocupam com a produção e
com a planificação. Desta afirmada superioridade espiritual e industrial não
se podem deixar de tirar imediatamente conclusões políticas, entre elas a de
que o Japão é um pilar da era moderna, que a dominância da etnia branca se
extinguiu, que a revogação do tratado nipo-americano é um acto de sabedoria,
que o Japão pode organizar uma defesa militar eficaz, que a capacidade tecnológica do Japão é a base da sua defesa 311•
°~
110
Robert Gilpin, USPolllera11dthe 111ulti11atio11al
corporatio11,
N.Y., 1980, p. 21.
Akio Morita, Noto JeruNippo11,
trad. ing., N.Y., 1989. G. Friedman, M. Lebard, The comi11g
J11ar
with
Japa11,Londres , 1991. K. Postel-Vinay, La révolutio11
si/endeuseauJapo11,
Paris, 1994.
111
384
AS FORÇAS EM ACÇÃO
Estadosna ordemeconómicainternacional
1~ osdemeconómica internacional, os Estados desempenham um papel diver~:iordo em função da própria ideologia que os orienta. Os Estados de orientas1?c~beralou neoliberal fazem uma política económica que confia nas regras
ç:io ercado,
de modo que o intervencionismo do poder destina-se sobretudo a
domegerO jogo transparente da lei da oferta e da procura. Naturalmente é outra
prº~ria das políticas dos Estados socialistas e terceiromundistas, a qual, muitas
11
ceessem racionalidade económica, procura criar correntes de trocas a partir do
vezO Num campo socialista a divisão internacional do trabalho não resulta do
1,er•
. d os acor d.os mternac10.
•
do merca d o e d as vantagens compara d as mas sim
0
JºJs definidos em função de objectivos volumaristas. Para os países do Terceiro
~undo, trata-se de eliminar as desigualdades entre os Estados desenvolvidos e
osEstados em desenvolvimento, pelo que a recusa do livre funcionamento das
leisdo mercado é um princípio de justiça e orientador das políticas.
Uma das principais funções dos Estados na vida económica internacional
resultade serem os autores principais do direito aplicável à economia internacional,direito que é fundamentalmente de origem convencional e com expressãoem tratados. Estes tratados são de várias espécies: a)normativos:como regra
elaboramum sistema específico (monetário, comercial ou financeiro), confiado
a uma instituição internacional - Fundo Monetário Internacional - FMI, Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD, Organização Europeia de Cooperação Económica - OECE/OCDE; b) bilaterais:prosseguem por
vezesos mesmos objectivos, mas entre dois Estados; e) casuísticos:
regulam um
caso particular, por exemplo, a exploração do petróleo e a sua comercialização, como a Organização dos Países Exploradores de Petróleo - OPEP. Estas
convenções afectam em regra as entidades privadas que actuam na vida económica internacional.
A intervenção do Estado na vida económica internacional varia conforme
planificadacentraladopta uma concepção de economiademercado,ou de economia
mente,ou de Estadoem viasdedesenvolvimento.
O Estado capitalista, que tem uma concepção de economia de mercado,
actua orientando-se para uma distância entre o poderpolíticoe o podereconómico:
assume o primeiro, e aceita que o segundo é próprio dos agentes da sociedade
econócivil,indivíduos ou sociedades. O interesse públicoé diferente dos interesses
micos
privados,embora as interferências sejam frequentes. Deste modo, quando
o Estado capitalista intervém na vida económica internacional, em regra é para
acordar o quadro jurídico em que se desenvolverão a livre concorrência e a competição dos agentes privados. Por isso, a ordem internacional neoliberal elaborada depois de 1945 pelos Estados capitalistas vencedores da guerra não tem
385
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
carácter directivo, e baseia a sua lógica no pressuposto de que a maximiza _
.
. su fi1c1ente
.
- economicas
'
Çaoc1
lucro e' um mcent1vo
para d esenvo lver as re laçoes
. o
nacionais e chegar a uma divisão internacional racional do trabalh O 312_ Inter.
Os Estados chamados socialistas, e que são os que adoptaram o model . .
1
ciado pela Revolução Russa de 1917,baseiam-se em princípios exactamente ~ n1tos: não há separação entre poder político e poder económico, nem disti P~sentre interesse público e interesse privado. As acções económicas inter:Çao
externas são actos públicos do Estado, que substitui a lei do mercado pelap/a e
' . O comerc10
' . externo e' portanto estatiza
· d o, e as trocas do EstniJ,.
caçãoeconom1ca.
cl
0
socialista com outros Estados submetidas a um regime de direito público. a
O Estado também coopera, por necessidade, na elaboração de um quad
jurídico internacional, mas é ele que executa e não entidades da socieda~º
civil. Em resumo, domina todo o processo dos fluxos económicos, porque e
planificação integral da economia interna tem como consequência a submiss· ª
, .
l
.
ao
d as reações
l
econom1cas externas ao Pano. E por isso que os tratadosbilatera·
são mais utilizados do que os tratadosnormativos.É por isso que a articulaçã~
do mundo socialista com o mundo neoliberal foi difícil, visto que os critérios
marxistas, aplicados à organização do Estado, são um entrave à livre circulação
de capitais e mercadorias, e contrariam os investimentos estrangeiros. Ora, a
livre circulação de capitais e mercadorias, a segurança dos investimentos, são
pilares das concepções e políticas capitalistas. O resultado objectivo foi que os
países capitalistas, no fim da Guerra Fria, detinham 70% das trocas mundiais,
e os países socialistas não possuíam mais de 10%313 •
O conceito de paísesem viasde desenvolvimento,
que abrange normalmente
todo o Terceiro Mundo, é relativamente recente, tendo aparecido a circular na
década de sessenta. O referido desenvolvimento económico é também relacionado por alguns autores com o desenvolvimento
culturale o desenvolvimento
político.A teoria do desenvolvimento cultural é a que encontra mais dificuldades, quando entendida não como instrução, mas como modelos de conduta da
comunidade, porque estes não são alguma coisa por natureza em progresso, o
qual não coincide com a mudança. Mas para o desenvolvimento político, critérios ideológicos permitem traçar uma teoria do desenvolvimento: por exemplo
o desenvolvimento da divisão de poderes e limitação do arbítrio do Estado, o
desenvolvimento da representação política e do regime democrático, o desenvolvimento do respeito pelos direitos do Homem.
ª~
312
Bertrand Bellon, L'interventionismelibéra/,Paris, 1986. Kempf, Lacorne, Toinec, Le libira/ismeà
l'américaine:
l'État et /e marché,Paris, 1989. Thomas McGraw, Profitsof regulation,Cambridge, 1984.
313
Wlodzimierz Brus, Kazimierz Laski, FromMarx to Market:socialismin searchof a11economicsystem,
Oxford, 1989. Bernard Chavance (dir.), Régulation,cycleset crisesdans/es économiessocialistes,Paris,
1987.
386
----
AS FORÇAS EM ACÇÃO
0 desenvolvimento económico tem critérios objectivos mais evidentes, e
malmente é uma expressão usada para designar um processo de crescinornto econom1co
' · expresso no ren d"1mento per capita,
. e mu d anças fun d amenfll~ na estrutura económica que dão origem a tal crescimento. Estas mudanças
~ª~uem geralmente a industrialização, a emigração da força do trabalho do
znrnpo para áreas industriais, a divisão do trabalho, a revisão das relações de
caodução especialmente no que se refere ao acesso à propriedade da terra e
p:rnento de investimento 314.
ª A teoria da história de Marx baseia-se na convicção de que o crescimento das
[orçasprodutivas determina a mudança das relações de produção, com a consequênciade obrigar à mudança de toda a superestrutura social. Antecedendo a
entrada em circulação do conceito de países em desenvolvimento, teve grande
projecção a teoria de Rostow sobre os patamares do crescimento. Seriam eles
os seguintes: 1) economia tradicional na qual os usos e costumes impedem o
desenvolvimento; 2) pré-condições para o take-off,designadamente as disposiçõespara o moderno desenvolvimento tecnológico; 3) take-off,o estádio em
que a economia gera um surplussuficiente para sustentar o próprio desenvolvimento;4) a viragem para a maturidade, em que há um salto das importações
para a exportação; 5) maturidade económica; 6) alto consumo de massas 315•
Também Marx distingue seis estádios, embora referidos sobretudo a uma
parte da história da Europa: comunismo primitivo, escravatura, feudalismo,
capitalismo, socialismo e comunismo final. Os factos não estão a demonstrar
a justeza da previsão, tendo em conta a evolução do Leste europeu. É corrente
distinguir os patamares de crescimento nos países em desenvolvimento, dos
patamares de desenvolvimento em países de capitalismo consolidado no pressuposto de que as condições dos primeiros são dependentes das condições já
adquiridas pelos segundos. A classificação de Rostow tem recebido um apreço
sobretudo pedagógico, e de facto auxilia na compreensão da diversidade das
políticas económicas dos Estados 316•
A aplicação desta moldura aos Estados concretos não é fácil, não apenas
pela dificuldade de apreciar os factos, mas também porque afectam os valores referentes à dignidade nacional, e alguns não aceitam o qualificativo. Foi
por razões deste último tipo que a designação de paísesatrasadosfoi afastada da
linguagem diplomática e académica. De modo geral, segundo os estudos de
31
'
E. J.Mishan, The costof economicgroivth,1969, para uma crítica da política de investimento para o
crescimento, em prejuízo do consumo imediato.
315
W.W. Rostow, Stagesofeconomicgrowth,
N.Y., 1960.
310
Adriano Moreira, A comunidadeinternacionalem mudança,S. Paulo, 1967; CiênciaPolítica,Coimbra,
1995,p. 371 e sgts. Relatóriodo GATT. que é publicado cada dois anos. UNCTAD, TradeandDevclopment
Repori,N.Y.,1989.
387
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Fourastié, os economistas e os sociólogos atribuem-lhes as seguintes e
' .
fraco pro duto nac1ona
.
1bruto, ba1xo
· ren d"1mento per capita,
· indaraci:_ensttcas:
lização insuficiente, base elevada de analfabetismo, mulheres dependu sttia.
trabalho de menores, partido único.
entes,
Mas a regra que de facto vigora na vida internacional é a do sist
ernad
autoqualificação,com a reserva de os outros Estados poderem não a ac . e
;ttar.
A importância da qualificação é que os Estadosem viasde desenvolvimento
l
h
d
d'
.
.
ecla.
positi
mam gera 1mente um estatutopart1cuar com as c ama as tscnmmações
destinadas a aproximar as suas condições das que naturalmente já possue Vas,
outros Estados. Mas não há um conceito pacífico, operacional ou jurídic: ~s
' e
país em vias de desenvolvimento 317•
O princípio da dualidadedenormas,resultante da exigência de um estatuto
p
ticular,deu origem a um direitododesenvolvimento
porque os Estados desenvo!a~Vtdos vão concordando, porque os subdesenvolvidos recusam a ordem económic
internacional neoliberal, e o facto da solidariedade e interdependência mundia~
exige essa articulação especial sob pena de as relações não terem o pacifismo
desejável. Os factos parecem abonar esta solução proteccionista, visto que a
parte destes países no comércio mundial tem decrescido continuadamente e
são tributários de uma degradação
dostermosdetrocaporque assentam geralmente
a sua economia na exportação de matérias-primas cujo preço não acompanha a
dos produtos industriais que inevitavelmente precisam de importar3 18•
II - Os organismoseconómicosinternacionais
A interdependência e a mundialização tiveram especiais efeitos no domínio
das relações económicas, que são as mais numerosas, e por isso também o fenómeno da institucionalização se manifestou largamente. Uma tentativa de classificação funcional atenderia ao objecto das instituições, que seriam comerciais,
financeiras, monetárias. Acontece porém que muitos organismos, sobretudo os
regionais, têm objectivos complexos, pelo que é mais fácil classificá-los segundo
a sua vocação seja mundial ou regional.
Na Conferência de Bretton Woods, em Julho de 1944, antes do fim da guerra,
os aliados decidiram criar três institutos de vocação mundial a integrar no sistema das Nações Unidas: FundoMonetárioInternacional-FMI; BancoInternacional
317
Jean Fourastié, Jr,ventariodeiporvenir- las40000 horas,Madrid, 1965. Louis Armand, PlaydoJ•er
pour
/'avenir,Paris, 1961.
3 Banco Mundial, Rapportsur lediveloppement
dansdemonde,Washington, 1989 {anual}.Pascal Arnaud,
'"
La dettedu tiersmonde,Paris , 1988. Sus:in George,Jusqu'aucou,rnquetesur la dette du tiersmor,de,Paris,
1988. M. Bassoni, A. Beitone, Problcmesmonitaircsinternationaux,Paris , 1989. Wladimir Andreff, "Les
politiques d'ajustement des pays en développement à orientation socialisteff, Revue Ticrs-Monde,
p. XXX, Paris, 1988 .
388
AS FORÇAS EM ACÇÃO
Reconstrução
e o Desenvolvimento
- BIRD; uma organização comercial que,
Pª'~
ªrarde, acabou por ser o AcordoGeralde Tarifase Comércio-GATT.
fllª~ primeiro (FMI) foi encarregado de gerir um "código de boa conduta dos
s" em matéria monetária, e ajudar os Estados a vencer dificuldadestemfsta do '
,,;ascom a balançadepagamentos.
segundo (BIRD) devia enfrentar as dificuldades a longo termo, de natua estrutural,financiando capitais de investimento aos Estados nessas condir::s. Combinam-se assim os objectivos inseparáveis do equilíbrioa curto prazo
ç~esenvolvimento
a longo prazo. Por isso um Estado tinha que pertencer a ambas
instituições para beneficiar do sistema. Nos termos dos artigos 57 e 63 da
Carta da ONU, e por uma convenção-quadro,
deviam ser instituições da ONU.
A terceira instituição deveria ser a Organização Internacional de Comércio
(OIC),cujos estatutos chegaram a ser aprovados em 1948 (Carta de Havana), mas
Senado dos EUA opôs-se à ratificação. A título provisório, que permaneceu,
0
tinha sido criado em 1947, em Genebra, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio
(GATT),a única instituição comercial de vocação mundial3 19•
Dizem-se instituições de vocação mundial porque foram estruturadas para
acolherem todos os países do mundo, mas o conflito de orientações entre os
países que sustentam uma ordem neoliberal, e os restantes, desencorajou a participação de socialistas e neutralistas.
As fronteiras nacionais introduzem o que se chama descontinuidade nastrocas comerciais e movimentos dos fac tores de produção. Não apenas a doutrina
do comércio livre que os EUA, por exemplo, sempre advogam, mas a tendência
verificada para a constituição de grandesespaços
que supram as insuficiências do
Estado, teriam a sua expressão institucionalizada no regionalismo
económico,
que
atinge países capitalistas, socialistas, e em vias de desenvolvimento.
Tais regionalismos servem, em conjunto ou separadamente, as finalidades
da cooperação
e da integração.
Visaram essencialmente a cooperação as citadas
OECE/OCDE e o COMECON que fazia parte da estrutura soviética. O regionalismo económico da integração orienta os países desenvolvidos que aderem
à União Europeia. Este último não utiliza sempre a mesma forma política: uma
vezesusa as zonasdelivretroca,nas quais são suprimidas as restrições comerciais
e os direitos aduaneiros entre os participantes; na uniãoaduaneiraexiste uma
tarifa comum exterior; nos mercadoscomunstodos os factores de produção cir-
Pº'~
:s
319
Michel Rainelli, Le commerce
internationa/,Paris, 1988. Rapportdu GATT, que aparece cada dois anos.
Desde 1947 até 1993, o GATT foi objecto das seguintes negociações multilaterais: Génova (Abril-Outubro de 1947); Annecy (1949};Torquay (1950-1951};Dillon Round (1961-1962};Kennedy Round
(1964-1967}; Tokyo Round (1973-1979}; Uruguay Round (1986-1993). O GATT foi substituído pela
Organização Mundial de Comércio (OMC) em 1 de Janeiro de 1995. D. Clerc, H. Delorme, Lesaccords
duGATT, Paris, 1995. P. Rainelli, Le GATT, Paris, 1994.
389
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
culam livremente. Apontam-se ainda formas superiores de integração: as ._
económicas,dentro das quais os Estados harmonizam as políticas econó u?'0es
monetárias, fiscais e sociais; as uniõessupranacionais,nas quais os Estadoilltc~s,
nam a soberania económica a favor de autoridades comuns com poder d: ~he.
ciso·· ob ngatono
·
, · 320 .
no
Existem finalmente instituições que se enquadram mal nas categorias. .
.
.
. · de naturezaeco
Jur,.
d .1cas existentes:
são os estabelec1mentos
pu'b/'1cosmtemac10na1s
,
mica, criados para desempenharem funções específicas que não se adap no.
às molduras tradicionais: é o caso do Banque de Reglements Internaciontain
(BRI), criado em Bâle em 1930, dos bancos centrais comuns aos países da D ~~Jc
Monetária Oeste-africana e aos Estados da África central (BCEA e BCE~~o
Os bancos regionais de desenvolvimento entram geralmente nesta categoria~·
Todos estes organismos são exemplos de organização baseada na igualdade
dos Estados, ou de ponderação,pelo número de votos, da importância de cad
membro. O traço mais comum entre eles é que frequentemente possuem
podernormativoquase legislativo, visto que os seus actosunilateraissão fonte de
direito aplicável. O Fundo Monetário Internacional (FMI) tem mesmo um poder
quasejudiciário,visto que lhe compete interpretar os seus próprios estatutos e
resolver os conflitos relativos à sua aplicação.
u;
III - As empresasmultinacionais
O fenómeno das empresas hoje chamadas multinacionais é antigo, mas no
último meio século transformou-se num dado fundamental das relações internacionais. Fazem-se vários exercícios pedagógicos para mostrar a importância
das multinacionais, mas eles geralmente dizem respeito à sua dimensão, e o
importante é a função e as políticas de que se rodeiam. Por exemplo, a GeneralMotors,tendo em conta o PNB dos Estados, classifica-se em 13º lugar entre
o México e a Suécia. Os seus empregados excedem em número a população
nacional do Luxemburgo. Os activos líquidos da Standard Oil (ESSO) ultrapassaram em valor a reserva de ouro dos EUA, e a sua frota tem tonelagem superior à da Grécia.
Normalmente têm sede nos países que seguem o modelo neoliberal, com
grande vantagem numérica para os EUA. A explicação estrutural, e não conspiratória, está em que a internacionalização, a interdependência, o recurso aos
grandes espaços, tem uma resposta adequada nas multinacionais. É problema
diferente o dos métodos que utilizam eventualmente na sua política, e o nível
de justiça que acompanha a sua actividade económica. É por isso que a ONU,
3"' J. Rideau (edt.) Lesaspects
juridiquesdel'i11tégration
économique,Colónia, 1971. Carreau e Juillard, Droit
111/enzational
Économique,Paris, 1980, p. 29 e sgts.
390
AS FORÇAS EM ACÇÃO
ocDE, e alguns parlamentos lhe dedicam uma crescente atenção 321• O próa .0 conceito de empresa multinacional é difícil de estabelecer pacificamente:
corporação?
Deve ~izer-se multi~:~edizer-se fir":ª• empresa,uni~ade,companhia,
ou transnaczonal?
Tornou-se corrente o conceito do Consecional,internaczonal
11ª
, •
. 1C.1rances: as soc1ed ades cuia. se de soc1a
. 1esta, num pais
,
Jbo
Econom1co
e socia
determinado e exercem as suas actividades num ou vários outros países, por
. cermédio de sucursais ou filiais que coordenem" 322 •
10
As relações das multinacionais com os Estados da sede e com os restantes
coroam-seextremamente complexas, e daqui a sua importância no panorama
mundial das relações internacionais. Preocupações nacionalistas levam uma
corrente, representada por F. Perroux, a entender que elas são sempre o aliado
irresistível do governo do seu país de origem 323 • Outros detectam sobretudo
relações
deconflitoporque minam a autoridade e poder do Estado, pelo que Veremperigo(sovereignty
at
non se celebrizou com um trabalho chamado a soberania
bay).
Casos de grande projecção política mundial, como o derrube e morte do
presidente Allende no Chile, foram relacionados com interesses de uma multinacional pela opinião pública. A conclusão de Carreau e Juillard é que "a tendência é mais no sentido dos conflitos do que no do acordo sem nuvens."
Não nos interessam aqui os conflitos correntes com os governos dos países
da sede, mas sim o seu papel nas relações económicas internacionais e os conflitos típicos com os países de acolhimento das suas sucursais e filiais.
Antes convirá dizer que a presença de uma multinacional num país em
desenvolvimento tem vantagens iniciais: os investimentos melhoram a balança
de pagamentos internacionais do país hospedeiro, aumenta as exportações e
a distribuição dos rendimentos, cria empregos, transfere tecnologias novas.
Todavia,os mesmos países consideram-se rapidamente defraudados pela razão
de troca das matérias-primas de que as multinacionais se apoderam, acusando-as de pôr em causa a soberania do Estado sobre os recursos naturais. Todos os
países africanos que foram colónias fazem esta reclamação. Algumas vezes a
actividade da multinacional entra em conflito com a planificação económica do
Estado hospedeiro, assim como não transfere sempre uma tecnologia que não
seja obsoleta. A mão-de-obra empregue causa eventualmente tensões sociais
porque é mais bem remunerada que a mão-de-obra empregue por empresários
locais. Os efeitos na balança de pagamentos podem ser negativos, pela necesA
"
•
321
OCDE, Investissementinternationa/etfirmes multinationales,Paris, 1976 .. Goldman (edt .), L'Entreprise
multinationa/e
face au droit,Paris 1977.
312
Carreau, cit, p. 46.
m Perroux, L'lndépendence
dela Natio11,Paris,1978, p. 179-180. Wladimir Andreff, LesMultinationales,
Paris, 1990. Charles-Albert Michelet, Le capitalisme
mondia/,Paris, 1985. ONU, Lessociétéstransnationa/es
dans/edéveloppement
mondial.Tendances
etpmpectives,N.Y.,1988.
391
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
sidade de transferir rendimentos e capital. Os países do Terceiro Mundo
sua debilidade, enfrentam mal as organizações como as multinacionais 'r:Pela
,
,e ac·1
mente ficam dependentes delas. E deste facto que deriva a expressão rep'b .1 •
dasbananasaplicada a repúblicas sul-americanas que foram dominadas po" lica
multinacional americana do ramo.
rurna
No campo da estrutura das relações internacionais, as multinacionais a
e contribuem para a divisãointernacio/;ntuam o fenómeno da interdependência
trabalhocom a qual se optimizam os recursos mundiais. Hoje dominam pª ~o
camente o comércio mundial, grande parte dele entre estabelecimentos, si:ati' . pa1ses,
'
d a mesma mu ltmac10na
.
.
l, esta b elecen d o uma corre ua.
d os em vanos
comercial fechada. Deste modo podem falsear a lei da oferta e da procurante
. a economia. d e merca do, b a1xar
. os preços na ongem,
.
que se b ase1a
fazendo-elll
os
.
d
.
.
d'
su bir no estmo, e assim por 1ante.
O peso das multinacionais no sistema financeiro internacional também .
importante, em vista da sua interferência na corrente dos investimentos, apro~
veitando da diferença de sistemas legais e modelos fiscais e financeiros. Existe
a convicção de que a maior parte dos financiamentos das multinacionais americanas na Europa foi realizada com recurso aos contribuintes indígenas e não
com importação de capital. Também é frequente que instalem as sedes em
paraísos
fiscais- Suíça, Liechtenstein, Antilhas Holandesas, Panamá, Bermuda
Singapura - fazendo discriminações financeiras entre os Estados.
'
Dispondo de uma liquidez considerável, as multinacionais também influenciam a política monetária internacional, porque devem colocar essas reservas
nos mercados monetários, fazendo circular rapidamente grandes somas de um
mercado para outro. Os Estados são muitas vezes, em consequência, obrigados
a desvalorizar ou reavaliar as suas moedas, com as perturbações consequentes.
Diz-se que o abandono das paridadesestáveisprevistas pelo acordo de Bretton
Woods de 1944, e a sua substituição por um sistemadetaxasde câmbioflutuantes,
foi uma resposta necessária dos Estados ao desafio das multinacionais.
Pelo que toca às integrações
regionais,o papel das multinacionais não é claro.
Por um lado a sua acção parece coincidente com o movimento da abolição das
fronteiras a que corresponde a integração regional. Mas a acção das multinacionais favorece mais a integração mundial. Antes da aproximação política entre
a CEE e o COMECON, verificou-se que havia anos que as multinacionais atravessavam as fronteiras entre os dois blocos. Trata-se portanto, como diz Car·
reau, de verdadeiros poderesprivadostransnacionais.
Daqui, um problema internacional que já parece um confronto de poderes,
e que é o da necessidade de uma regulamentação internacional das multinacionais. A atitude que pode surpreender-se no comportamento dos Estados não
aponta para uma convergência próxima de pontos de vista. Um grupo impor392
AS FORÇAS EM ACÇÃO
de Estados de economia de mercado não se sente inclinado para estabec:intecontrolos sistemáticos, e nesse grupo se contam os EUA, a Alemanha, a
JeCrnda e a Suíça; outros como o Japão, e os países de economia planificada,
rl0 ªram-se reticentes quanto às multinacionais, não aceitam filiais no seu ter~o,s;iocom 100% de capital estrangeiro, e preferem a associação com a firma
rito maioritária. Algumas vezes os Estados excluem os capitais estrangeiros
Joca1
, .
'd"
d certos sectores, como a aeronaut1ca e a ra 10.
e A capacidade de reacção dos países em vias de desenvolvimento é sempre
enor,enquanto que a sua necessidade de investimento externo é relativamente
:aior. Uns lançam-se na atitude liberal porque reconhecem que não possuem
ondições para um controlo; outros defendem a soberania sobre os recursos
eaturais e lançam-se nas nacionalizações, demonstrando que estas podem ser
:ma arma dos fracos e não dos fortes. A linha que parece mais equilibrada, para
progressiva
no capital de
ospaíses em vias de desenvolvime?to, é a da participação
filiaislocais das multinacionais. E claro que a dificuldade é sempre a mesma,
isto é, a capacidade de financiar a participação estadual ou privada.
Por seu lado, as multinacionais procuram responder ao clima internacional,
naquilo que tem de adverso para elas, instituindo um código de boa conduta,
queteve o seu paradigma no "guiaparaosinvestimentos
internacionais"
apresentado
e!Il1982 pela Câmara de Comércio Internacional. A OCDE tem feito esforços
no mesmo sentido, e em 27 de Junho de 1976 tornou pública uma declaração
com os "princípios
directivos"
análogos aos da CCI. Embora não se trate de princípios
jurídicos,são guidingprincipiesque vão sendo geralmente observados. "A
tendência para o estabelecimento de um estatuto internacional das empresas
multinacionais é cada vez mais forte, porque não obstante a importância política da figura da multinacional, o direito positivo actual não conhece empresas
com estatuto internacional" 324 •
3. O liberalismo: 1815-1914
Não obstante o Congresso de Viena (1815)legitimista, a época que se segue é
submetida a regras
liberais
do ponto de vista económico. Existem proteccionistas
como Friederich List na Alemanha e Carey nos EUA, por razões de debilidade
dos respectivos Estados. Mas o princípio dominante, interna e externamente,
era o famoso "laissez
faire,laissezpasser",com o corolário de que governa melhor
o governo que governa menos . O país que mais persistentemente aplicou a doutrina foi a Inglaterra, justamente porque a superioridade relativa lhe garantia
32
'
Carreau, cit., p. 62 e sgts. Charles-Albert Michelet, Le capitalísmemondial,Paris, 1985. ONU, Lcs
sociitéstransnacionales
da11s
/e développement
mondial.Tendencesetperspectives,
Centro sobre as sociedades
transnacionais da ONU, N.Y.,1988.
393
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
um avanço sobre os outros, e condenava muitos destes a especializarelll
agricultura ou no fornecimento das matérias-primas. Na actualidade ·se na
flito reacendeu-se com os países chegados à independência e que atribu: con.
111
mais desenvolvidos a intenção, e muitas vezes o êxito, de conseguire 111i aos
111
tar um neocolonialismo.
Plan.
De qualquer modo, a ordem económica liberal internacional supunh
o instrumento jurídico da vida económica era o contratoe que os agentesª que
· d as. A s trocas comerc1a1s
· · eram 1·
·
empresas pnva
1vres,o movimento
de ca eralll
. .
b,
E
Ptta
.
.
.
•
.
era 11vre,os mvesttmentos estrangeiros 11vrestam em. m resumo, liberd 18
contratual internacional, liberdade de trocas comerciais, liberdade de p ade
mentos, liberdade de movimento de capitais, com garantia dos Estados Eaga.
· stes
exerciam raros controlos, de acordo com a filosofia do Estadogendarme.
O liberalismo, que moldou o Estado racional-normativo ocidental, o cons .
1
tucionalismo e as garantias dos direitos individuais, teve doutrinadores co; •
Espinosa, Locke, Montesquieu, Kant, Bentham, J. Stuart Mill, Jefferson, Mad~
son, pelo que a riqueza e diversidade de correntes é muito grande. O núcleo
dos seus valores característicos é porém claramente identificável, e entre eles
se destacam o valor da pessoa, os direitos naturais do Homem, o valor supremo
da liberdade, uma visão antropocêntrica da vida, a perspectiva universalista dos
direitos e dos deveres, a tolerância moral e religiosa.
Os seus modelos mais importantes, que a corrente liberal implantou na vida
internacional, foram: a livreempresa,o mercadolivre,a liberdadede comérciointernacional.A implantação internacional destes modelos teve como instrumento
a cláusulada naçãomaisfavorecida,que pela primeira vez aparece no tratado de
aliança e comércio de 6 de Fevereiro de 1776 entre a França e os Estados Unidos. Embora fosse condicional e começasse por se referir a uma situação privilegiada, tornou-se tão geral e costumeiraque Nole escreveu que "o tratamento
de nação mais favorecida ou o tratamento igualitário (pode) ser considerado
como a regra geral das trocas" 325 • Naturalmente os Estados alternaram com
frequência entre a liberdade de comércio e o proteccionismo, conforme a evolução das suas capacidades e necessidades.
No campo ocidental, depois do chamado Kennedy Round (1963-1967), a
tendência é para abandonar a protecção tarifária. Esta orientação convive com
a necessidade de um políciaeconómicaque evite que as organizações poderosas
falseiemascondições
deconcorrência,
e com a referida cooperação que promova um
estatuto internacionalmente válido para as multinacionais. Foi caract erístico
desta época o padrãoouroque produzia ajustamentos automáticos e rejeitava
Carreau, cic, p. 69. Guy Sotman, La solutio11
libérale,Paris, 1984, p. 149. Michel Crozier, 011nechange
pas la sociétépar décret,Paris, 1979.
325
394
AS FORÇAS EM ACÇÃO
intervencionistas. Todavia, os empréstimospúblicosinternacionaisnão
1·1vres, e os mvestzmentos
·
·
d'll'ectosprzva
· dos,sen do 1·
1vres, nao
1ora:r~m intervenções de países estrangeiros para protegerem os capitais dos
st
:ifil acionais contra abusos de nacionalizações ou expropriações dos goverseus países do investimento. Na América Latina, tradicional devedora e
1105
edeira de capitais estrangeiros, e também com uma vida política interna
0º5tstados tradicionalmente inquieta, nasceu a doutrinaCalvo,que procurava
~osedir ali o direitodeprotecçãodiplomáticainvocado pelos Estados dos investi:;es. Não foi geralmente acolhida, e houve exemplos de intervenção militar
dosEstados dos credores para proteger estes, como aconteceu com o bloqueio
daVenezuela em 1920.
, •
1
O
ht
p
5
'ª•nteiramente
:os
4. o nacionalismo da paz instável
0 período que decorre entre as duas guerras mundiais tinha sido previsto pelos
vencedoresde 1918 como de um liberalismo internacional. O artigo 23 do Pacto
daSociedade das Nações dizia que "os vencedores tomarão as disposições necessáriaspara assegurar a garantia e a manutenção da liberdade de comunicação
e do trânsito, assim como um tratamento equitativo do comércio de todos os
membros da Sociedade, ficando entendido que as necessidades especiais das
regiões derrotadas durante a guerra de 1914-1918 deverão ser tomadas em consideração."
Mas logo em 1917 se verificou a revolução soviética que pôs em circulação
efectivaa categoria do Estadocomerciante;
o nacionalismo renascente da Alemanha e da Itália não se compaginava com o liberalismo; a grandecrisede 1929 pareceu a derrocada final do projecto liberal. O Estado aparecia a intervir interna
e externamente, a guerraeconómicaera uma característica da conjuntura da paz
militar.
Depois de 1930, o proteccionismo
aduaneiroteve a mais significativa expressão na tarifa americana chamada Smoot-Hawly, ainda hoje aplicada aos países
que não são membros do GATT, ou que não assinaram com os EUA tratados
com a cláusula da nação mais favorecida.
A política de subsídiosà exportaçãoe as práticasde dumpinggeneralizaram-se,
com a contrapartida defensiva dos countervailing
duties,e dos direitos aduaneiros
antidumping,das restriçõesquantitativasou contingentesde importação. A moeda
passou a ser frequentemente manipulada, procedendo os Estados a desvalorizaçõescompetitivase recorrendo às taxasdecâmbiomúltiplaseflutuantes. A moeda
foi uma arma comercial e os Estados defenderam-se com a regulamentação
dos
câmbios
.
Também controlaram os investimentos, procurando que não fossem feitos em países não considerados seguros. A segurança era medida pelo risco
da instabilidade política, das nacionalizações, do congelamento dos créditos
395
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
externos, da proibição do repatriamento. O resultado foi que, em ve
.
.
.
l gera l d e comercio,
' · se d esenvo lveu o rnetodo
'
regime
mternac10na
de z deu ll\
bilaterais de Estados.
acordos
A Sociedade das Nações empreendeu vários esforços para reconduzir .
1
ção ao modelo do seu Pacto, convocando várias conferências entre 1920 ª ~tua.
sempre com o intuito de restabelecer o padrãoouroe depois urna orderne933,
micamundialconvencional.
Mas o mais característico da época, em contra:?~óda política da SdN, foi o aparecimento de blocosem regra correspondente içao
8
impérios de cada urna das potências ocidentais: a Inglaterra criou azo aos
libra esterlina, a França organizou um regime aduaneiro e monetário pnada
' le e co l'omas,
· Portuga l e os pa1ses
'
sua rnetropo
escan d"mavos 1·
1garam-se à ara
z a
do esterlino, fixando urna relação cambial das suas moedas com a libra e ona
liberdade de pagamentos e transferências dentro da área.
urna
Foi em 1936 que os EUA, a França e a Inglaterra, firmando um "acordo t .
partido", iniciaram um movimento de retorno ao liberalismo internacion:;incitando ao desmantelamento dos regimes de contingentação e controlo d~
divisas. A nova guerra , e o clima que a antecedeu, não consentiram grandes
progressos. Entre as duas guerras, a soberania económica foi exercida descoordenadarnente e subordinada a um conceito nacionalista.
5. A paz de 1945
Os vencedores assumem sempre o privilégio de estabelecer a Nova Ordemque,
no fim da guerra de 1939-1945, foi naturalmente de inspiração americana paraa
área que ficou aos ocidentais. Durante o período das operações, o diálogo sobre
o futuro foi apenas entre os EUA e a Inglaterra, porque esta era a única que não
tinha sido ocupada. Em Agosto de 1941, algures no mar, o Presidente Roosevelt
e o Primeiro-Ministro Churchill assinaram a famosa Carta do Atlântico 326 •
Para a Inglaterra, as questões fundamentais eram o crescimento, o pleno
emprego, a segurança social; para os EUA eram a liberalização internacional do
comércio, a livre empresa multinacional, que serviam a sua capacidade supe·
rior. Naquele documento ficava expresso o objectivo de "no quadro das suas
obrigações existentes, promover para todos os Estados, grandes e pequenos,
vencedores e vencidos, um igual acesso ao comércio e às matérias-primas mun·
diais necessárias para a sua prosperidade económica"; ainda "assegurar para
todos condições melhores de trabalho, desenvolvimento económico e segurança
social". Sublinharam mais de urna vez (Hull, Weller) que se tratava de princípios
universais válidos para todos os povos.
m, ln LegadoPolíticodo Ocidcute,cit ., p. 228 .
396
AS FORÇAS EM ACÇÃO
carta da ONU, assinada em São Francisco em 26 de Junho de 1945,
filava-se que a cooperação
económicaé um dos fundamentos da organização
dec!ara ), instituindo um Conselho Económico e Social, apoiado no princípio
3
(arcigºvizinhança
económicaentre as nações. Nos capítulos IX e X perspectivavadaboariaçãode instituições internacionais especializadas, que viriam a incluir
.seª edo Monetário Internacional - FMI e o Banco Internacional para a Recons0 ~0
1.
R
_ e Desenvo v1mento - BI D.
0
rruÀnovaordem económica implicou uma perda da antiga soberania em nome
reconhecida interdependência dos povos. O exercício da soberania quer-se
~~ 0 em cooperação
e não em conflito. Esta cooperação leva a uma institucio1e1t
.
· ·
lização representa d a por orgamzações
como as re fien"das antes, e que v1g1am
n:la observância de um códigode boaconduta.Em vez dos acordos bilaterais do
passado,o multilateralismoassegura a liberdade e a não-discriminação. O sisfemaé essencialmente capitalista.
Esta nova ordem pareceu largamente triunfante em 1990, quando comparada com a ordem económica soviética. Alguns dos mecanismos não funcionaramsem percalços, como aconteceu com o sistema monetário instituído em
Bretton Woods em 1944, que ruiu em 1973. Mas, elaborada em bases neoliberais para os países desenvolvidos e com economia de mercado, a nova ordem
acentuou a divisão do mundo por áreas, suscitando a contestação socialista e,
sobretudo, do Terceiro Mundo que a acusou de impor a lei do mais forte e de
perpetuar a situação dos subdesenvolvidos. Por isso serão estes os principais
defensores de uma novaordemeconómica,relacionada não apenas com a riqueza
mastambém com o poder.
De facto, nos países capitalistas, a aplicação do neoliberalismo traduz-se em
que a intervenção do Estado visa a obtenção, manutenção e exercício do poder
em primeiro lugar, e apenas secundariamente a riqueza; a sociedade
civil,com os
seus instrumentos de acção internacional, procura o crescimento da riqueza
ou poder económico, objectivo que relaciona com o poder político na medida
em que necessita da protecção deste. No mundo socialista, esta distinção operacional não tem utilidade.
Para avaliar o comportamento de cada Estado, e do sistema, é útil o guia
de referência proposto por Walter S. Jones: I - Áreapolítica:primazia do sector
público.A- Políticasdopoder:1 - actividadesde expansão:a) ajuda militar e comércio de armas; b) políticas hegemónicas; e) intervenção e agressão; d) actividades
clandestinas; e) políticas regionais. 2 - Actividadesde Protecção:
a) modernização militar; b) alianças; e) manutenção da estabilidade militar; d) segurança
das fronteiras; e) espionagem; f) controlo das exportações. 3 -Actividadescodificadas:a) leis do mar; b) leis da guerra; e) leis regulando a agressão: Carta da
ONU. B - A luta pela riqueza:1 - actividadesde expansão:a) ajuda económica;
397
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
b) comércio internacional e assistência técnica; c) imperialismo e neo
1
lismo; d) intervenção e agressão; e) intervenção internacional; f) diplom:º .ºnia.
a) restrição ao comércio; h)~ªdas
matérias-primas. 2-Actividades deprotecção:
dos recursos naturais; c) leis do trabalho; d) políticas monetárias e fisc _efesa
18
Actividadescodificadas:a) comércio internacional; b) dívida externa; e) :
1
aduaneiras; d) código de conduta. II -Área económica:
primaziadosectorp,~ºes
A - A realização
da riqueza:1 - actividadesde cooperação:
a) troca de bens e tªd?·
:!'
ços; b) trocas culturais e educacionais, turismo. 2 -Actividadesdecompeti;~ 1utilização dos recursos do Terceiro Mundo; b) desenvolvimento tecnoli ~-a)
c) competição pela qualidade; d) exploração dos mercados financeiros.
lutapelopoder:1 - actividades de cooperação: a) defesa e implantação da id ;\
logia do lucro; b) resposta às necessidades económicas do governo; e) respoeo.
st
' necess1'd a d es econom1cas
' .
d os governos a l'1ados; d) expansao
- d o empre ª
as
2 - Actividadesde competição:
a) comércio internacional de armas; b) protec;:dos mercados mundiais e recursos naturais; c) manutenção de condições come~
ciais favoráveis327•
A construção neoliberal da ordem económica internacional do Ocidente
revela a importância fundamental da balança de poderes económicos e financeiros. A projecção das políticas internas nessa área das relações internacionais
dos imperativos e exigências domésticos e dos grupos económicos nacionais,
evidente. Um conceito de economiaglobalpara abranger a linhapúblicae a linha
privadade intervenção é indispensável. O comérciointernacionale o sistemamonetáriointernacionalsão aspectos relevantíssimos dessa economia global328•
:~o;
é
6. A nova ordem económica internacional
A necessidade de uma nova ordem económica internacional foi em primeiro
lugar exigida pelo Terceiro Mundo, a partir, historicamente, da Conferência
de Bandung de 1955. A ONU criou a Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) que, como todas as organizações
da ONU, se transformou num forum para a definição e propaganda do pensamento desse grupo internacional numeroso e de presença recente na balança
de poderes internacional. Em 1967, o então Grupodos 77 adaptou em Argel
uma Cartaque era o manifesto reivindicativo contra os países desenvolvidos.
Walter S. Jones, cit., p. 456. Mohammed Bedjaoui, Towardsa neivinternationaleconomicordcr,Paris,
1979, foi o Director-Geral da UNESCO afastado por pretender uma ordem mundial da informação
favorável aos subdesenvolvidos, e que neste livro acusa o que chama, p. 23, uma economia predatória
e a lei internacional da indiferença.
328
Myrdal, Uneiconomieinternationale,Paris, 1958.
327
398
AS FORÇAS EM ACÇÃO
ovirnento acabou por levar a Assembleia Geral da ONU a aprovar, em 1974,
Otll carta de Direitos e Deveres Económicos dos Estados 329 •
1.1tll~o
mesmo ano, e pela segunda vez, a ONU aprovava os princípios gerais de
a ordem económica internacional", completada, em 1975, por uma resolu11~sobre o "desenvolvimento e cooperação económica internacional." Tratava~::.por então, de um p_rogra'?a de ac?ão que, se d:senvolvido, imp!icaria u'?a
, cervenção da comunidade internacional no sentido de que os pa1ses em vias
: desenvolvimento reconquistassem a independência
económicarealem face do
chamam as imposições do neocolonialismo.
q Trata-se de rejeitar a coacçãoeconómicados poderosos sobre os fracos, sem
ue se defina o conteúdo daquela, de reduzir as desigualdades entre os Estados com uma política de igualdadepreferencial,de desenvolver uma relação de
direito
deajudae de obrigação
deassistênciaque solidarize os ricos com os pobres,
330
Norte
com
o
Sul
do
mundo
•
0
:e
a)o liberalismo e a globalização económica
Adoutrina do liberalismo económico levou a que um tema principal do fim do
século seja, como incidentalmente temos referido, a globalização dos mercadose da economia, de modo que a um mercado mundializador correspondem
soberanias em crise que apenas geremumaparcelaterritorialdesse mercado.
O FMI define a mundialização da economia como "a interdependência
económicacrescente
doconjuntodospaísesdo mundo,provocadapelocrescimento
do volumee
davariedade
dastransacções
transfronteiriças
de bense de serviços,assimcomodosfluxosinternacionais
decapitais,ao mesmotempoquepeladifusãoacelerada
egeneralizada
331
datecnologia".
Os dois princípios orientadores dessa política derivada do liberalismo foram
a liberdade
dosmercados(laissezfaire)e a livrecirculação(laissez-passer).
No exercício de uma espécie de teologiademercado,que reverencia a mãoinvisível,progrediu a convicção de que uma desregulamentação das trocas comerciais e a total liberdade dos mercados conduzirão a um nível de vida superior
em todo o mundo, e a uma sociedade mundial mais justa.
O exame da conjuntura, a partir dessa perspectiva, assumida por órgãos de
comunicação tão influentes como o FinancialTimese o TheEconomist,apela para
exemplos comparativos como entre a antiga Alemanha de Leste e a originária
m ln LegadoPolíticodo Ocidente,cit., p. 289.
°Carreau, cit., p. 89. ONU, La situationiconomiqueen Europe-1993-1994, Genebra, 1994. Banco
dans/emonde,Paris, anual. P. Hugon, L'Économie
del'Afrique,Paris,
Mundial, Rapportsur/ediveloppement
1993.
331
Fundo Monetário Internacional, Lesperspectives
del'iconomiemondiale,Washington, Maio, 1997.
33
399
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
República Federal Alemã, entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul e
. contmenta
.
1e Ta1wan.
.
' ntre a
eh ma
Comparações que se pretende que tenham influenciado a evolução da Ch.
para o modelo de um Estadoedoissistemas,que a URSS se tenha dissolvido 1na
o eleitorado do Reino Unido vote a mudança apoiado no chamado Novo':C)lle
lhismo(1997) de Tony Blair332•
raba.
Sobretudo depois do Uruguay Round do GATT de 1993, o liberalismo p
ceu afirmar-se como o único critério do politicamente correcto, apoiado n:re.
informação de mercado favorável e dirigida por famosos controladores
meios de comunicação, como Bill Gates, Rupert Murdoch, Jean-Luc La os
dere, Ted Turner, Conrad Black, uma das causas da crise da UNESCO de 1:;;·
quando o Terceiro Mundo ali exigiu uma Nova Ordem da Informação, e os ED,'\
abandonaram por isso a organização. O conceito de modernidade que domin
este unilateralismo traduz-se, como escreveu entre outros Serge Halimi, a fazê~
-la depender da aceitação da livre circulação de pessoas, capitais e mercadorias
da moeda única, da desregulamentação, da privatização, da informação, tud~
reproduzido no conceito de uma Europa do mercado, da desregulamentação,
das privatizações, da informação, da moeda única.
Do ponto de vista do modelo do desenvolvimento político, concluiu-se
nessa orientação, que os Estados que resistiram à mundialização foram obriga~
dos a assumir modelos repressivos e a impor teores de vida sem qualidade e de
penúria, dando origem a uma atitude reaccionária caracterizada pelo Estado
providência, garante da segurança e da propriedade, entregando a defesa dos
interesses sectoriais aos sindicatos, e esperando a fidelidade aos valores do
nacionalismo populista.
Esta atitude demonstraria, na orientação por exemplo de Martin Wolf, que
a integração económica mundial pode ser evitada pelo voluntarismo político
contra os constrangimentos internacionais, recusando desarmar as barreiras
aduaneiras e abandonar o controlo dos câmbios.
As teorias, uma dos resultados excelentes da globalização económica que se
afirma modernista, e outra da reacção nacionalista acusada de arcaica e reaccionária, não são conciliáveis, até porque o apelo aos factos não pode, em cada
uma das percepções, alhear-se de ideologismos.
Na percepção globalista salienta-se que ela implica uma cooperação transfronteiriça e transnacional, que vai amortecendo o conflito Norte-Sul, que contribuiu para a queda do sovietismo e para a moderação do regime chinês.
:a
332
Martin Wolf, Maispourquoicettchainedesmarchés?,
Peter Martin, Uneobligationmora/e,Bernard Cassen,
Poursauvcrlasociété,Serge Halimi, Faceaujoumalismedemarché;encourager
ladissidance,
Guy de Jonquiéres,
"Des reformes quine sont pas allées loin", in Le MondeDiplomatique,Junho de 1997.
400
AS FORÇAS EM ACÇÃO
dependentemente do crescimento económico, afirmam por isso que a
111ção do g lob a1·ismo economico
' . tera' um preço po l'ittco
. e socia
. l tra d uzi.d o
,on~e~taçãosevera da liberdade dos indivíduos, na regulamentação agressiva
h~iedade civil, na criminalização das actividades económicas, na politiza5
d~ ~e rodas os processos, nos excessos da xenofobia, do medo da competição,
çaº ravamento de um sentimento geral de insegurança.
doag
' · afitrmam, os que aceitaram
·
' .
pelo contrario,
o preço d a l"b
i er d ad e economica,
eram sinais evidentes de progresso, apontando-se como exemplo o cresJllOS
•
d
,
. ento impressionante de rendimentos os Dragões da Asia do Sudeste, o
e •
d e to d os os passivos,
.
- d o G ana e
ct!ll
• "todo C h"l
i e, e ate,' na A,trica
as excepçoes
eXI
do Uganda.
Todavia,a crítica do modelo ganha relevo crescente, não apenas no quereseita à teoria dos resultados, mas também no que concerne à unilateralidade
~aglobalização económica.
Quanto ao primeiro aspecto, o Relatório de 1996 do Programa das Nações
Unidaspara o Desenvolvimento (PNUD) apoia a conclusão de que a globalizaçãoeconómica, longe de provocar uma mundial elevação do nível de vi~a, faz
cresceras desigualdades tanto entre os países como dentro deles. Em Africa,
cujasinfra-estruturas deixadas pelas soberanias coloniais têm sido brutalmente
destruídas pelas guerras locais, os investimentos directos caíram 27% de 1994
a 1995,e, por todo o Terceiro Mundo, as políticas de ajustamento estrutural do
FMIe do Banco Mundial, são acompanhadas, nos últimos dez anos, do alastramento da pobreza na mesma África, na América Latina, nas Caraíbas. Mesmo
nospaíses desenvolvidos, como a Inglaterra e a França, mas agora geralmente na
Europacomunitária, cresceram os desempregados que rondam os 18 milhões,
e apareceu uma nova categoria de trabalhadores que os sociólogos chamam os
workingpoor,
os que empobrecem trabalhando.
É assim que cresce a exigência da introdução de cláusulassociaisno comércio internacional, também muitas vezes reclamadas, não apenas em nome da
equidade, mas igualmente em nome dos valores liberais da concorrência leal e
da transparência na formação dos preços.
Uma das questões que exigem exame rigoroso é a que se traduz em averiguar
sea aproximação a uma globalização económica inspirada ideologicamente pela
teologia de mercado, visando uma elevada eficácia tecnocrática e competitividade, implica tornar impossíveis ou mesmo inapresentáveis outras formas de
racionalizar o governo do globalismo incluindo variados outros sectores.
A observação das estruturas dá resposta negativa, porque milhares de organizações não-governamentais comprovam a vocação da sociedade civil transnacionalpara ordenar a rede mundializada, e os Estados multiplicaram processos
de intervenção cooperativa na área militar (alianças como a NATO, tratados
ºª
401
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
de fiscalização contra a proliferação nuclear e no sentido do desarma 111
na área do ambiente (Conferência do Rio de 1992), na área alimentar (~nto),
para socorrer os estimados oitocentos milhões de subalimentados, no di . AO)
1
entre as áreas culturais (UNESCO). Tudo isto entra em conflito eventua; ºgo
o reengineering
da moderna gestão globalizante do mercado, em busca de colll
seguir "o bom recurso, vindo do bom lugar, para o bom produto, sobre O ~on.
mercado e no bom momento para o consumidor", pretendendo introdu ?lll
equidadeno desenvolvimento mundial, e também, parece-nos, fazer do Pt~ a
.
ssivo
.
humano,sem fronte1ras,
uma responsa b"l"d
1 1 ad e mun d"ia 1·
tza d a mseparáveJ
d
a
globalização dos mercados 333 •
b) Relação entre a globalização económica e a globalização da segurança
A questão da globalização do mercado, num tempo em que os Estados apena
gerem individualmente parcelas do todo, desenvolveu-se em paralelo com:
questão da globalização da segurança, esta com expressão formal na Agenda
para a Paz do anterior Secretário-Geral da ONU, e suscitando uma das querelas ideológicas do fim da Guerra Fria, a de eliminar as despesas militares e 0
serviço militar obrigatório, em nome do pacifismo e a favor do aumento dos
recursos a investir no desenvolvimento.
Em primeiro lugar conviria fazer alguma meditação sobre a relação das lógicas dos poderes económico e militar.
Esta questão tem uma expressão aguda no que respeita à relação interna,
na Aliança Atlântica, entre o antecipadamente chamado pilar europeu e os
EUA juntos com os nunca expressamente mencionados outros aliados do continente americano.
Aquele pilar juridicamente não existe, mas politicamente tem anúncio na
vertente da Política Externa e da Segurança Comum do Tratado de Maastricht,
e manifestação concreta no por vezes chamado exército europeu, uma expressão que abrange forças organizadas e invoca uma futura função europeia integrada da UEO.
m PNUD, RelatóriodoDeswvolvimentoHuma,w,1996, Lisboa, 1997, p.11, sobre "osresultados
cspectacularn
dodesenvolvimento
humano- e osdesastres".Margarec Thaccher repetia que não tinha ideia do que fosse
uma sociedade, e que apenas conhecia indivíduos, uma percepção absolucória da responsabilidade glo·
bal pelo passivo da globalidade do mercado. O livro de Norberc Elias, La sociétédesindividus,Paris, 1991,
reúne dos ensaios mais importantes desce século, baseados na experiência da guerra, do holocausto,
e da Guerra Fria, sobre o conjunto das interdependências entre uma realidade e outra. Na linha do
regresso ao Estado-Nação como elemento fundamental, contra o globalismo, Charles Pasqua, L'ardeur
nouvelle,Paris, 1985, p. 197, visando repor a França como potência mundial. Alain Peyrefitte, Lasociété
Paris, 1995, ensaia definir historicamente o facto da confiança como o único que assegura
deconfia11cc,
du développement,Paris, 1968, sobreª
o desenvolvimento com equidade. Paul Borel, Les 3 révolutio11s
interdependência das revoluções técnica, económica, política e cultural, depois da guerra.
402
AS FORÇAS EM ACÇÃO
debate interno da Aliança, que muito se desenvolve usando foros margi0
. às instâncias da organização, tem uma premissa, nem sempre enunciada,
11ª1sé a de o globalismodasegurança
serhegemonicamente
geridopelosEUA.
qileEmtermos históricos, o chamado Acto Fundador assinado entre a NATO e
Rússia~m Maio de 1997, para defini~ uma co-responsabilidade na gestão da
ª depois da queda do Muro de Berlim em 1989, marca para alguns o recoP~:cimento de um regime de PaxAmericana,derivado, como parece a Francis
;ukuyama, de ser a única superpotência, e não obstante a crescente relutância
docongresso e dos cidadãos em apoiar despesas de intervenção externa, tendo
elocontrário imposto uma redução de 40% do orçamento da defesa.
p Em rodo o caso, o antiamericanismo sempre latente na evolução europeia,
comvisívelraíz gaullista na área da segurança, parece sobrepor-se com frequênciaà corrente à qual parece que o curso da evolução aponta para a preservaçãoda unidade atlântica, uma linha em que se inscreve Jean-Marie Guéhenno,
inseguro quanto à persistência da vontade americana de continuar a suportar
05 encargos de /eadership.
Os factos porém mostram que o alargamento da NATO a Leste se faz mais
rapidamentedo que o alargamento da UE, e isso não resulta demonstradamente
de uma vontade americana de impor a sua gendarmerie,parece derivar da distância de efectivação a que se encontra a aspiração de François Mitterrand de
vera Europa unida a exercer um papel mundial334 •
Tem muitas vertentes a questão da relação da economia com a segurança,
incluindo a doutrina a consagrar no que respeita ao papel das forças armadas,
este muito dependente hoje da percepção que a opinião pública tenha da conjuntura.
O último elemento tem agora uma incidência muito diferente, qualitativamente, da que lhe foi atribuída no conceito clausewitziano respeitante à decisão e credibilidade do Estado, porque entretanto se autonomizou, ou ficou
dependente de vectores que o Estado não controla, a relação do sentimento
popular com tais forças, especialmente pelas decisões que vai tomar nas consultas eleitorais.
Tratando-se de um dos objectivos essenciais do Estado, o de assegurar a
defesa e segurança do país, também ele está envolvido no processo acelerado
de mudança que estamos a viver, perfilando-se em termos específicos em
relação à chamada crise da soberania, porque se trata antes da impossibilidade crescente em que o Estado se encontra de manter este sector abrigado
'" Pierre Marion, Lepouvoirsansvisage,Paris, 1990 , analisa a questão do complexo militar-industrial
europeu, com acento tónico na política francesa, e com inevitável reflexo em qualquer conceito de
autonomia estratégica da União Europeia .
403
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
pela reserva tradicional, que tornava indiscutidas a necessidade e a fu _
e indiscutíveis os valores que justificavam a organização, os sacrifício nçao,
s, e o
encargos.
s
Nesta data, a revolução da informação deu outra dimensão à opinião públ·
e está a condicionar pesadamente o processo de funcionamento dos gove lca,
democráticos, e também, embora diferentemente, os que se afastam da rnos
modelo que a Carta da ONU, e a doutrina que nela se apoia, desejam mu~~:le
l~ad~
~Independentemente de qualquer relativismo filosófico, a alteração tec
, . d a Inlormação,
. e
1og1ca
e a sua re lação com o merca d o, promovem objectino.
mente o confronto das tendências, e a sua avaliação pelo público destinatár~aintroduzindo a exigência da crítica e da opção como elemento permanente:•
ª
sociedade civil e do potencial eleitorado.
Ainda em meados deste século, independentemente do carácter mais 0
menos autoritário dos regimes, o processo decisório dos órgãos de soberani~
exigia o paciente percurso burocrático dos actos de informação e de inteligência, até que os responsáveis fossem habilitados a decidir, condicionando assim.
os apoios da opinião pública e as variações dela. A acelerada propagação dos
efeitos da referida revolução da informação conduziu a uma situação em que a
opinião pública organiza uma percepção da corrente de notícias que lhe chegam em tempo real, escuta simultaneamente os técnicos chamados a depor e
os fazedores de opinião encarregados de discursar em regime de contraditório,
e firma uma orientação que vai ela estar já presente entre as condicionantes do
executivo, atento aos efeitos eleitorais de cada decisão.
Esta dependência não prevista pelos textos, que cada vez se torna mais
pesada, configurando em novos moldes o perfil dos gestores dos meios de informação, vai também alargando a área da democracia contratualizada, do crescimento da tabela de questões que os responsáveis remetem para o plano do
consensualismo, excluindo-se das responsabilidades da decisão solitária.
Tenta-se esbater a hierarquia de poderes e responsabilidades entre maiorias
e minorias, resolvendo, pelo método da negociação e do consenso, a questão
velha, e sem resposta satisfatória, de saber como é que as minorias são livres
obedecendo à decisão das maiorias.
Por muitos lugares crescem, em paralelo com esta evolução, as observações
críticas sobre a debilidade ou ausência do Estado, sendo por isso agora menos
frequentemente referido o conceito que pela década de sessenta, fortalecendo
o confronto ideológico dos blocos militares, inspirava a exigência de ter menos
Estado e melhor Estado.
Ao contrário, uma insegurança crescente e causada por formas de agressão
que ou são excedentes da experiência passada ou refinam experiências antes
404
AS FORÇAS EM ACÇÃO
. das e esporádicas, levam a repensar as formas democráticas de agir, e a
como comuni,Vlld'política agindo na cena internacional, como sociedade civil que deseja
~e ervar os seus modelos de comportamento, e como homens que exigem
.
a
res
d
d.
.
..
,
.
P
. egridade os seus ireitos ongmanos.
111
cl]m conjunto apreciável de problemas relacionados com esta questão cenl da relação entre o Estado e a nossa liberdade naquelas diversas vertentes,
eraá indisso 1uve1mente re 1ac10na
· do com o pape 1novo d a opimao
. ·- pu'bl' ica que
estces referimos,
.
.
1
e mmto c aramente com a percepçao que esta vai. ten d o d a
::gurança e do papel reservado e esperado das Forças Armadas, numa situação
deescassez de recursos, e de crescentes preocupações de ruptura do Estado
providência.
com variações significativas das experiências recentes, todos os países que
escavamenvolvidos nos pactos militares em que se traduziu a Ordem mundial até
1989,têm memória activa dos sacrifícios que foram exigidos pela guerra mundial,
pelasguerras coloniais, pela competição estratégica entre os blocos, pelas guerras marginais que foram pontuando a história da vida daquelas organizações,
pelo custo das intervenções assumidas na sequência do fim da Guerra Fria.
Tudo circunstâncias que forçam a orientação das opiniões públicas no sentido de admitir que a queda do Muro significou o fim do confronto e o desaparecimento do inimigo, levando comentadores celebrizados, como Fukuyama,
a anunciar o fim da História.
Este fim da História, assumido com pretendido rigor filosófico, não é de
conteúdo muito diferente do alívio em que se firma a opinião pública que antecipa uma distribuição dos dividendos da paz, em que se inclui a drástica redução dos aparelhos militares e dos seus custos.
Digamos que é um problema de gestão por objectivos, antes de ser um problema económico, e que tende frequentemente para ser definido a partir da
convicção de que se extinguiram as ameaças, e portanto também a necessidade
dos custos de as enfrentar.
Talvez a primeira observação prudente a acrescentar seja a de que a segurança é inevitavelmente definida por um quadro de incertezas, bastando não
esquecer que nenhum governo, observador, ou analista, previu o fim da Guerra
Fria, embora esse fosse o resultado pretendido durante cerca de meio século
de esforços e de sacrifícios.
Acontece porém que o quadro da pacificação mundial não é animador, acontecendo que se diminuíram estatisticamente os conflitos armados entre Estados, é todavia crescente o número de conflitos dentro dos Estados.
Esta observação será talvez mais exacta se tivermos em conta que decorre
da velha classificação de conflitos armados, hoje de duvidosa utilidade por-
liitlt:r
em que medida o Estado faz parte da nossa liberdade,
405
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
que todos os conflitos internos conhecidos têm repercursões ou são efi .
menos parcial, de circunstâncias internacionais.
eito, a0
De acordo com um projecto de investigação da Universidade de L
durante o ano que decorreu entre meados de 1995 e meados de 1996, de?den,
pelo menos 20 conflitos que causaram vítimas em número superior a 1.oo;lll-se
tos: Burundi, Ruanda, Tchechénia, Bósnia-Herzegovina, Afeganistão, Ar ~~r1
Iraque, (curdos, shiitas), Sri Lanka, Turquia (curdos), Serra Leoa, Libéria
'.a,
Paquistão (Caxemira), Paquistão (Karachi), Colômbia, África do Sul (I<.~a;diª•
-Natal), Cambodja, Angola, Sudão, Tadjiquistão e Zaire. Estes conflitos e u u.
.
ausaram uma perda de 162.600 vidas, tendo que acrescentar-se 31 conflitos men
que, em todo o caso, causaram entre 100 a 1.000 perdas de vida cada um. ores
A sementeira destes conflitos por áreas geográficas do Terceiro Munct
0
pode induzir um reforço da percepção do fim da História, ao menos no No
.
,
. d
,.
ne
d o mun d o, JUStamente na area em que estava situa o o ponto cnt1co do co _
fronta entre os blocos, ocidental e soviético.
n
Por isso mesmo parece conveniente, sempre tendo em conta esse elemento
essencial da opinião pública, meditar sobre as causas de tais confrontos, e tentar alguma reflexão a respeito da questão da segurança nesse Norte do mundo
depois do fim da Guerra Fria.
'
A análise disponível aponta para múltiplas causas, por vezes para uma concorrência delas, ao mesmo tempo étnicas, culturais e religiosas. A questão
demográfica é uma, porque todos os anos se somam 81 milhões de pessoas à
população mundial, una média que será provavelmente sustentada até ao ano
2025, data em que é possível que se inicie um declínio.
Um dos efeitos é que as fronteiras entre as áreas ricas, com relativa pouca
população, e as zonas pobres com excesso dela, como acontece no Rio Grande
e no Mediterrâneo, são continuamente objecto de pressões migratórias, que
podem levar as tensões a extremos.
Não é improvável que a luta pelo domínio de recursos naturais escassos, por
terra e água, provoque conflitos, que as correntes de refugiados, como acontece
agora nos Grandes Lagos, suscitem massacres, que a pobreza e a superpopulação, como no Leste europeu, ou no Bangladesh, impliquem violentas reacções
contra os deslocados.
No plano das diferenças étnico-culturais, temos recente experiência de que
o radicalismo islâmico tem sérias consequências relacionadas com a "falta de
distinção entre o sagrado e o profano e entre o doméstico e o político", como se
viu no Irão e na Argélia, fazendo ressaltar uma ameaça dirigida contra a influência ocidental, em todos os níveis, desde o cultural ao político e económico.
O fundamentalismo religioso não é exclusivo de nenhuma crença, e tem
eventuais manifestações entre os cristãos, os judeus, os muçulmanos, os hin-
t
406
AS FORÇAS EM ACÇÃO
, as, de tal modo que o influente Huntington adiantou a convicção de que
,
· d o pe lo ch oque d as c1v1
. ·1·
du1stroidma uma epoca
que sera' caracteriza
1zaçoes,
se apeitOque no seu pensamento dá especial relevância às diferenças confescoJlC
• ais.
51011
/is generalizadas profissões de fé no pacifismo das relações internacionais
aginam-se mal com a corrida armamentista de povos economicamente
P
colll
·
' . ou b"10l'og1cas,
.
d 'beis mas ans10sos
por d"1sporem de armas nuc 1eares, qmm1cas
emose viu na guerra entre o Irão e o Iraque, como se evidencia na rivalidade
cotre a União Indiana e o Paquistão, como se demonstra com a procura de uma
e:pacidade atómica pela economicamente deprimida Coreia do Norte.
e Supor que existe uma geografia do conflito, como há uma geografia da fome,
as quais se desenvolveriam pelas margens de um Norte do mundo finalmente
destinado ao diálogo proposto durante séculos pela teoria dos seus nativos Projectistasda Paz, parece sem qualquer fundamento, não podendo remeter-se para
esquecimento que nesse espaço é que deflagraram, na mesma geração, duas
0
guerras mundiais pelos efeitos, mas exclusivamente ocidentais pelas causas.
Foi essa experiência que levou os modernos construtores da Europa a escutar as doutrinações de Coudenhove-Kalergi, e, pela acção de Jean Monnet, e
dosdirigentes das democracias-cristãs da Itália, Alemanha, e França, designadamente De Gasperi, Adenauer e Schuman, a organizar as comunidades europeias de modo a substituir pela cooperação institucionalizada as rivalidades
cataclísmicas do passado.
O grande modelo foi o da economia de mercado, e depois de 1989 tem sido
frequente atribuir a esse mecanismo a vitória ocidental na Guerra Fria.
Talvezseja uma visão frágil da evolução, porque não há livre mercado propiciadordo crescimento económico sem estabilidade e segurança, e a estabilidade
e a segurança foram uma contribuição da NATO, sem a qual não existiriam os
pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento económico, para a consolidação dos regimes democráticos, para o reforço das solidariedades europeias,
para a transformação desse território, devastado pela guerra de 1939-1945, na
sede de um conjunto de sociedades geralmente afluentes.
Os custos do aparelho militar dissuasor do bloco do Leste, não são um passivo do progresso económico e social europeu, fazem parte do investimento
retribuído pela confiança, pelo crescimento e finalmente pela vitória sobre o
adversário de meio século.
Quando o Secretário-Geral da ONU Boutros-Ghali publicou a Agenda para
a Paz, traçando uma estratégia de resposta à instabilidade mundial e aos conflitos armados, de facto pretendeu organizar, com perspectiva globalista, uma
intervenção que generalizasse a mesma segurança sem a qual não há desenvolvimento económico sustentado.
407
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Por isso mesmo, a queda do Muro em 1989 levou rapidamente ao 'f
de Maastricht, agora em revisão pela CIG, e nela tomou relevo a vert ratado
ente d
defesa e segurança comum.
a
A relação entre a segurança e o crescimento sustentado inspirou a Polít"
de uma europeização da segurança dentro da NATO, talvez nem sempre 1ca
prudência mais desejável, e o projecto de definição de uma braço armad coma
a enfrentar perplexidades, mas não parece que esteja a perder credibilido destá
.
Talvez possa dizer-se
com algum fiundamento que se os povos da geoga e
.
f:
.
rafia
da fome se dilaceram em termos de azerem nascer sociedades de guerra
vários lugares do mundo, o Norte afluente tem conseguido estabelecer uem
sociedade de paz, embora competitiva, porque organizou a protecção milima
· 1um
· entre os custos necessanos
' · para a1cançar ague 1e ob.Jectivo.
· Nãotar
e a me
trata de ignorar que de regra é difícil compatibilizar uma política desenvol:~
1
mentista com uma política armamentista, mas esta observação diz respeito
um erro de gestão, frequente no Sul pobre, que se traduz em ignorar que umª
coisa é a segurança, outra uma política baseada na preservação ou conquist:
do poder pela força, usada internamente contra o adversário, usada externamente contra terceiros.
A experiência do Norte ocidental, agora expressamente recolhida e invocada pelos antigos satélites do Leste que pedem a adesão, é que a segurança
depende de alianças institucionalizadas, como tem sido a NATO, como pretende ser a UEO.
E se essa solidariedade institucionalizada foi animada pela existência de
um inimigo visível, que naquela encontrou o obstáculo essencial para que não
pudesse prejudicar o crescimento económico, a recuperação da democratização geral, a efectividade da protecção dos direitos do Homem, é difícil ignorar
que os desafios mudaram de perfil, mas não desapareceram.
Por um lado, e com isto lembrando a mais pessimista das faces destaquestão, a chamada outra Europa das minorias, das fronteiras mal traçadas, dos
irredentismos, dos patrimónios de queixas, encontrou novos mecanismos de
expressão , e não pode acríticamente confiar-se em que nenhuma dessas questões tem possibilidades de ultrapassar os limites do diálogo para prosseguir a
política por outros meios.
A recuperação do Leste para os modelos ocidentais de governo, para a recuperação e desenvolvimento económico, exigem a manutenção dos mecanismos
de segurança, como demonstram ser a sua percepção, quando simultaneamente
solicitam a entrada não só na União Europeia, mas também na NATO. Esta solidariedade dos vectores não deriva apenas de uma memória histórica em relação
à atitude da Rússia, que até pode não fazer justiça ao novo conceito estratégico
que esta diz adaptar, mas está de acordo com a dolorosa experiência vivida e
408
AS FORÇASEM ACÇÃO
uecida; também radica, em vários casos, na história das relações entre
11ãº
es_q
os satélites, todos submetidos à regra europeia de que os Estados vizianr1g
. . .
, .
oS . 0 frequentemente m1migos mttmos.
nb0 s saoutro lado, o corredor do Norte de África e o Médio Oriente são áreas
por
.
.
d
stradamente mqmetantes para os Esta os europeus, e para as suas
def!lº~zaçõescolectivas, pelo que progridem políticas no sentido de apoiar a
org:ib~lidade
ao longo dessa linha, prevenindo agressões não necessariamente
esta '
•ucares.
1111
A Conferência de Barcelona, que pretendeu levar a cabo uma parceria
omediterrânica, foi clara quanto à percepção assumida, apontada para a
}iutssária organização de um vasto leque de instrumentos de ajuda, comér11ece
. investimentos, e enquadramento de segurança, que não pode alhear-se de
cio,
.
.
venruaisdescontrolas de migrações, rupturas de cadeias de comando, agreseõeSpor poderes erráticos, solidariedades transfronteiriças entre movimentos
:nternos dos povos do Sul e colónias interiores estabelecidas no Norte.
Digamos que sem integração em grandes espaços não há desenvolvimento
económicopossível (NATO, UE, Mercosul, OVA, ALADI, MCCA, CARICOM,
ASEAN,OSCE), desenvolvimento que depende da segurança, a qual nas circunstânciasactuais inclui uma vertente militar, a nível regional - NATO e UEO
_ a caminho de uma globalização como pretende a ONU na sua nova versão.
Umavertente, esta, cuja importância cresce justamente porque é diminuta a
eficáciada cooperação económica regional na área dos 3A, Ásia, África, América
Latina,que não respondem favoravelmente aos modelos ocidentais de desenvolvimento, muito orientados para a industrialização. Em muitos países do
anteschamado Terceiro Mundo foram as instituições nascidas dos acordos de
Bretton Woods (1944) que dominaram inteiramente as políticas domésticas
(FMIe Banco Mundial), e os resultados desanimadores incitam a procurar um
modelo de intervenção alternativo.
No entanto, a vertente da segurança, sem a qual não há desenvolvimento
económico nem político, exige a formulação de um instrumento e de uma doutrina que legitimem e tornem eficazes as intervenções em nome dos interesses
gerais da Humanidade.
O facto é que parece de esperar que o Conselho de Segurança continue a
desempenhar um papel crescentemente activo nas operações de paz, recorrendo com frequência a organizações regionais.
Não é portanto apenas no plano lógico da organização de modelos observantes da evolução internacional, é sobretudo no plano realista dos modelos
observados, que a relação entre a variável económica e a variável da segurança
se mostra essencial e determinante para assegurar um desenvolvimento sustentado, global, regional, e dos territórios. A experiência atlântica, que cobriu a
409
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
extraordinária recuperação política, económica e social da Europa Ocide
concludente no sentido de demonstrar que sem a NATO não teria sido nta),
tal recuperação, e ainda menos o resultado final do fim da Guerra Fri~Ossível
A leitura feita pelos antigos satélites vai nesse sentido, e por isso ·
simultaneamente a integração na UE e o alargamento da NATO, esta a ~edellt
• estrateg1co
' · para a1argar a area
'
d e responsa b"l·d
evero
conceito
1 1 ad e.
A institucionalização das alianças, o revigoramento do centro glob
1
referência que deveria ser o Conselho de Segurança reformulado, compra de
a tendência da evolução no sentido de que sem integração em grandes es ovalll
não há nem segurança nem desenvolvimento, e que o recuo da integraçã:ªÇos
tiplica os perturbadores e os focos de disfunção, sobrecarregando as mi·srn_ul.
soes
e encargos da segurança global.
A pressão sistémica desta evolução não consente a nenhum país alhearda relação entre as duas variáveis, a económica e a da segurança, embora l~e
seja sempre possível desistir de estar presente no processo decisório, com e
as
naturais consequencias.
No caso português, em que o qualificativo corrente de país periférico vem
das perspectivas economicistas alheadas das variáveis da segurança, parece de
primeira evidência a necessidade de as avaliar em conjunto para tentar obter
uma percepção tão próxima da realidade quanto possível, em vez de partir da
escassez de recursos para dispensar mais esforços de análise.
O desenvolvimento económico da UE não dispensa uma vertente de segu.
rança comum, como foi decidido em Maastricht, tal como a chegada ao patamar
da União dependeu da segurança garantida pela NATO durante meio século.
Acontece que a primeira questão do novo tratado em revisão é o de europeizar a defesa, e não o de a dispensar, pelo que Portugal estará sempre na fronteira da articulação entre o pilar europeu e o pilar americano. Tal como está
na fronteira de articulação com a sua moldura da segurança mediterrânica. Tal
como estará na fronteira da articulação com o mecanismo de segurança integrada que venha a ser construída para o Atlântico Sul.
A história irrecusável também o situa no plano do globalismo da segurança
que a ONU assume, por enquanto nos moldes da Agenda para a Paz, porque no
antigo império, em Angola e Moçambique, é o passado comum que o indica para
a participação activa nas missões de reimplantação da paz e da segurança.
Não parece uma conclusão de primeira evidência supor que um país possa
estar inevitavelmente integrado em espaços económicos, a caminho da integração política, e ainda assim possa evitar o envolvimento nas responsabilidades
da segurança sem a qual não existe mercado, crescimento, desenvolvimento.
A gestão dos recursos é evidentemente exigível para não exceder as capacidades, mas a mobilização das capacidades depende de uma atitude que se tra•
410
A
•
AS FORÇAS EM ACÇÃO
m querer estar presente nos centros de decisão para não ser apenas um
dllZ~natáriodelas. A nova geografia das fronteiras, o novo globalismo da segudest~ a nova regionalização dos espaços, encontram o país nos pontos críticos
rattÇriculação. A exigência estratégica é a de definir e assumir a medida em que
dearbérll não renuncia· a estar presente nas d ec1soes
· - e nas responsa b"l"d
1 1 ad es.
ca!tl
conselho de Segurança informal
70
· ando as principais potências industriais começaram a tentar definir uma
Q:rdenação que desse previsibilidade à economia mundial, estávamos em
~;SS,e a primeira reunião teve lugar no velho Hotel Plazza de Nova Iorque.
porentão a segurança mundial dependia do acordo não negociado em que se
traduziu a Ordem dos Pactos Militares, cujo colapso ninguém previu, e que se
verificouem 1989 com a queda do Muro de Berlim.
Os países que tomaram parte nessa primeira reunião foram os Estados Unidos,o Reino Unido, a França, o Japão e a RFA. Em 1987, os acordos do Louvre
aprofundaram o projecto, e o Canadá e a Itália juntaram-se aos fundadores,
aparecendo assim o grupo dos G-7.
Todos estes países eram orientados pela convicção da excelência da economiade mercado, mas pretendiam ainda assim corrigir os desequilíbrios que a
mão invisível não conseguia evitar, não obstante a preocupação concentrada
no comportamento da massa monetária.
O objectivo claro para todos os observadores era o de regular a economia
mundial, com uma intervenção derivada dos princípios da teologia de mercado,que por esse tempo tinha fronteira na linha geográfica do Pacto de Varsóvia.
Do que se conhecia resultava que os objectivos imediatos incluíam fazerdescera cotação do dólar em termos de melhorar a balança comercial americana,
reduzir a taxa dos juros, limitar a flutuação das taxas de câmbio, e sustentar o
crescimento da procura mundial. O resultado útil e primeiro a conseguir era o
de evitar a inflação moderando a velocidade do crescimento da procura global,
mas em termos de a quebra desse crescimento não se traduzir em recessão.
Na década de oitenta não se encontram notícias de que a organização informaldesses países, conhecidos como os mais ricos, tivesse objectivos que transcendessem os de ordem económica tornados públicos, o exercício mediático
não fazia supor ambições de intervir na globalização da ordem internacional, e
eram ocidentais as interrogações sobre se viria a institucionalizar-se no campo
de intervenções que o vira aparecer.
Depois de 1994, quando a tarefa de ajudar a Rússia a regressar ao estatuto
de país igual aos outros tinha sido geralmente assumida como fundamental,
ela foi convidada a participar nas reuniões anuais, e a cortesia internacional
411
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
começava a falar no G-7+1,como se tivesse sido iniciado um período d
cumenato, em que o antigo inimigo daria provas de entendimento e ac ~ Cate.
da economia de mercado.
eitaçã0
A questão do Kosovo, que colocou em suspenso a credibilidade do qu
do órgão cimeiro de intervenção na gestão da ordem internacional vei·e resta
0 sub·
'
tamente colocar no primeiro plano da teatrologia em curso, uma espé . 1•
nova vocação, ou a revelação de uma efectiva presença anterior menos s:~~de
do informal, rico e mediático G-7, do qual não se conhece sequer a exist' tda,
de um secretariado.
encia
Pode recordar-se que a proeminência dos Estados Unidos teve mais deu
vez ocasião de não deixar esquecer que o poder financeiro está em exerct°:ª
no que respeita à defesa da sua posição. Foi assim que na crise da UNES~~
ficou claro que não admitia estar numa organização em que os que decide
não pagam, e os que pagam não decidem, retirando-se.
Ili
Na ONU, quando a braços com a difícil submissão do secretariado, adaptou
o esquecimento bem lembrado de não pagar as contribuições, condicionando
a agilidade da organização.
Neste ambiente talvez se encontre um princípio de racionalização da súbita
transferência do G-7 para as responsabilidades estratégicas, que a Carta da
ONU reservou para o Conselho de Segurança.
Este andou tão posto entre parênteses durante cinquenta anos de conflito
bipolar, que a questão da legitimidade da intervenção no Kosovo foi esquecida,
e o ardor da acção encaminhou a definição do novo conceito estratégico da
NATO no sentido de passar sem ela, sempre que a própria Aliança entendesse
que o seu juízo sobre os fundamentos das intervenções tinha consistência.
Uma das ligeirezas da intervenção traduziu-se em ignorar o esforço desenvolvido nos últimos anos em relação à Rússia, e ao Leste em geral, no sentido
de criar uma teia de parcerias que protegesse a paz geral e a reorganização da
Ordem internacional.
Não era necessário muita perspicácia para admitir que a Rússia, mal reconciliada ainda com a desagregação do império soviético, e com forças armadas
a interiorizarem com dificuldade a mudança de estatuto, teria possivelmente
de adaptar alguma medida de salvação da imagem.
Ora, tal como aconteceu com o ditado da paz, tal como se passou com a
reposição do Secretário-Geral da ONU nas negociações, tal como está a passar-se com a definição do programa da reabilitação do Kosovo, foi o G-7 que
dinamizou a integração da Rússia no processo decisório, crismando-se em
G-8, e anunciando assim que a perspectiva económica do grupo se alargou a
planos mais vastos, originariamente da responsabilidade suspensa do Con·
selho de Segurança. O que obriga a indagar sobre a sede real do poder emer412
AS FORÇAS EM ACÇÃO
obre a escala dos valores proeminentes do obscuro projecto, sobre os
11t_e,
~os da reforma da ONU, se alguns, sobre a nova hegemonia das potên(.lfll111 virá a impor-se. E, para começar, sobre a questão de saber o que é o
. 5 que
. ereto G-8 ·
faltam homens devo~ado~ao progresso das garantias da paz, que tentam
dtSJ-1áO
reender a complexa teta de mteresses que tão frequentemente sobem aos
co!llP
rnos da guerra, e que são orientados pelo entendimento de que não lhes é
., .
eXtre
ávelident1'fi1carem to d as as vanave1s.
ro"
d
.
.
, . d as
P Ernpenha os nas mtervençoes, tantas vezes com nscos
const"derave1s,
·ssões internacionais, contribuem para que a opinião pública mundial se
rn:bilize a favor da implantação dos grandes princípios, e para que a resigna~ºnecessária para enfrentar os custos humanos e materiais dessas campanhas
çejarecompensada pela convicção da grandeza das causas.
5
De rodas as instituições vinculadas a essa tarefa da paz pelo direito, a ONU
é a rnais ambiciosa quanto ao projecto assumido, a mais debilitada pelos desviosde meio século de Guerra Fria, a mais necessitada de recuperação para
orientar as respostas aos desafios do fim do milénio. Não é por isso a mais
auspiciosadas notícias, quando as incertezas rodeiam todas as diligências em
curso em mais de um continente, saber-se que as grandes proclamações, os
solenesanúncios, os projectos assumidos, continuam a aproximar-se de serem
um manto diáfano da fantasia, a esconder uma realidade que excede os pessimismosmais lúcidos.
O livro que recentemente foi publicado por Boutros-Ghali, intitulado Unvanquished:
a US-UN Saga,(N.Y.,1999) é provavelmente um dos mais desgostantes
textos que podiam ser lançados no mercado nesta data.
Não porque seja alguma vez inoportuno desvendar realidades do funcionamento das organizações internacionais, mas porque a realidade apenas é
finalmente mostrada quando o responsável pelo mais importante dos postos
da ONU se viu forçado a não continuar no cargo pela intervenção, de legalidade
discutível, da superpotência sobrante.
Não pode recusar-se a importância do que é revelado, não pode esconder-se
a perplexidade com que se verifica que se tivesse havido composição de interesses, a revelação não seria provavelmente feita. No livro trata-se agora de tornar
pública a campanha, imputada aos EUA, e destinada a impedir a reeleição do
autor para um segundo mandato.
Com motivos tão distantes dos objectivos da ONU, como o que se traduziu
em impedir substituir homens por mulheres em cargos directivos, porque a
nacionalidade dos propostos teve mais importância do que os princípios.
''ª
413
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O que significa muito claramente que nem todos esperam que os f, •
nários internacionais tenham como primeira fidelidade aquela que d Unc,o.
instituição, e não a que os liga aos Estados de origem.
evelllà
No livro o autor recorda que, quando foi eleito em 1992, cinquenta por
do pessoal da ONU era americano, embora os Estados Unidos pagasserncento
nas vinte e cinco por cento dos encargos orçamentais.
ªPeDenuncia a percepção da administração americana, que terá permitid
presidente Clinton, quando tomou posse em 1993, exigir a substituição de~ª?
1
subsecretários da ONU que tinham sido apontados pelo presidente Bush i ~•5
cando homens vindos das fileiras da nova maioria.
' n 10 autor não se esquece de lembrar que ambos eram, pelo menos teori
mente, funcionários responsáveis apenas perante a organização. Entre outcaras
desgostantes lembranças, recorda que o seu antecessor Perez de Cuellar tinh
sido acusado de ser "insuficientemente atento aos interesses dos EUA",e tor a
público que foi pressionado para declarar que não seria candidato à reeleiçã:a
O que teria recusado porque "não se pode demitir o Secretário-Geral das Naçõe~
Unidas por uma imposição unilateral dos Estados Unidos, esquecendo os direitos dos restantes membros do Conselho de Segurança".
Declara-se finalmente vítima de uma bem estruturada campanha conduzida por Albright, campanha que terá desenvolvido "com determinação, não
perdendo uma oportunidade de demolir a autoridade do Secretário-Geral".
É útil ter base documental para avaliar o nível da luta pelo poder dentro das
organizações internacionais, podendo comparar a retórica das lideranças sobre
os desafios do fim do milénio com a realidade dos interesses que os animam.
A mudança de patamar, subindo das disputas domésticas para a globalização, não muda os procedimentos, nem os padrões de referência dos intervenientes. Incluindo o autor, que teria prestado melhor serviço aos membros da
ONU e seus povos, no caso de ter enfrentado os factos publicamente ainda no
exercício do cargo que abandonaria. O manto diáfano da fantasia teria ficado
mais transparente, e o depoimento mais autorizado.
A intervenção do informal G-8 no processo do Kosovo parece ser um acontecimento de significado relevante neste fim de século, a sugerir alguma tentativa
de leitura dos sinais dos tempos, pelo menos na área de intervenção dos poderes
emergentes que assumirão o papel hegemónico da Nova Ordem em formação.
É notório que este grupo de potências economicamente poderosas, e que se
mantiveram antes na área de vigilância do mercado mundializado, não deixa·
ram saber que tenham mudado de premissa, e desta deduziram a necessidade
e a capacidade de intervir para ditar os termos da paz, para repor a ONU no
processo das negociações, para retomar o processo de integração da Rússia no
414
AS FORÇAS EM ACÇÃO
ro de Estado igual aos outros, um esforço que no entretanto da guerra
•
•
ficado perigosamente entre parenteses.
c1ll~ príncipes da supremacia do desenvolvimento
económico, discretos
; ao funcionamento interno do ambicioso Directório, tiveram esta pri0
qu~n manifestação de autoridade na data em que o PNUD, seguindo o ritual
lflei:meiro, dava publicidade ao seu Relatório de 1999, documentando mais
vez que o passivo do desenvolvimento humano também tem de ser ava~~o com critérios de mundialização e de globalismo.
(laTrata-se aqui de uma área onde as agências especializadas da ONU desenlveramintervenções altamente meritórias, mas cuja contribuição foi limitada
vo grande parte pela paralisação do Conselho de Segurança, com as inevitáe:s consequências na inoperância da organização.
v Bastaexaminar a lista das declarações e recomendações da ONU nesta década,
araverificar que não tiveram sequência, ou porque a estratégia de limitar o paga~ento das contribuições devidas foi suficiente para lhe marcar o ritmo, ou porque mais claramente a vontade política não acompanhou as promessas.
Vistos os grandes anúncios que foram as cimeiras de Nova Iorque sobre a
Infância, do Rio de Janeiro sobre a Terra, de Viena sobre os Direitos Humanos,
do Cairo sobre a População e Desenvolvimento, de Pequim sobre o Estatuto
das mulheres, de Copenhague sobre o Desenvolvimento, de Roma sobre a Alimentação, e aproximando as propostas do referido levantamento constante do
Relatório do PNUD sobre a situação do desenvolvimento humano, facilmente
se compreende o cepticismo com que grande parte da opinião pública avalia o
limitado caminho andado.
E por isso aumentam de importância as reacções da sociedade civil, que não
se limita a visivelmente reduzir a confiança que dispensa aos poderes políticos
domésticos, antes também parece que, em contraponto, vai aprofundando a
consciência da sua natureza transfronteiriça, transnacional, mundializada.
Até agora, a principal expressão desta resposta, mais pública e documentada
do que tem sido a do G-8 na área dos poderes políticos, foi dada pelas organizações não-governamentais (ONG), que desta vez anunciam uma reunião em
Seoul, a realizar entre 10 e 16 de Outubro, de 1999, com o objectivo de avaliar a
situação do desenvolvimento humano neste fim de século, e definir uma estratégia para o próximo milénio.
Talvez o anúncio mais significativo seja que insiste na necessidade de reforçar a cooperação das ONG com a ONU, o que muito simplesmente implica
assumir a urgência de a reformar, e de enfrentar a questão básica de identificar,
reconhecer, e dar forma à sede real do poder, uma tarefa da qual, com alguma
relevância, foi o G-8 que se ocupou. Tem certamente significado o facto de
Boutros Boutros-Ghali ter declarado que vaticina uma intervenção mais imporcatll
S
e_
,os:
415
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
tante da sociedade civil nas decisões do futuro próximo, porque a exp .•
· me
· 1UI· o con fl'1to entre a autonomia· d a ONU e a vocaçãerien
·
. eia
em que se apoia
0
direc.
tora da superpotência sobrante que são os EUA.
Em relação ao projecto dos fundadores, debruçados sobre as ruí
mundo de 1945, mudaram evidentemente dois elementos essenciais unasdo
é o da renovação do colégio dos príncipes que não reconhecem as sup~e rnq~e
de então, outro que é o da sociedade civil mundializada, a qual preten~acias
consistência à intervenção reformada da ONU, que avalia as insuficiênc·e dar
,
.
iasdo
passa d o e suas causas, que regressa a utopia para avançar com um projec
mundo novo, e cujas lideranças vão anunciando que o século XXI será "'a
to de
... rcad
0
pela sua intervenção renovadora.
Por isso a Conferência de Seoul é descrita como uma excelente oport .
Uni.
.
d a d e d e encontro que f:aça convergir as perspect1vas Leste-Oeste e Norte-S
1
A sociedade civil transfronteiriça, transnacional, mundializada, procura as suu·
vozes tribunícias para o diálogo da globalização. O solitário Secretário-Gera~
Kofi Annan fez um sóbrio comentário: "as ONG estão frequentemente no te:.
reno humanitário antes que a comunidade internacional dê mandato à ONU"
O projecto de intervenção parece mais vasto.
·
§ 2º
As ForçasTransnacionais
1. As internacionais políticas
Entre os agentes da cena internacional merecem destaque autónomo os que são
protagonistas das forças transnacionais, independentes do Estado e intervindo
na luta pelo poder no interior de cada Estado. Compreendem solidariedades
políprofissionais(internacionais
ticas(internacionais partidárias), ou solidariedades
sindicais), ou solidariedades
religiosas
(Igrejas), ou solidariedades
científicasouhumanitárias(institutos, academias, associações como a Cruz Vermelha). A novidade
está em que o confronto das ideologias e interesses que representam deixou de
ter sempre os Estados como intermediários; antes estes passaram a ser frequentemente condicionados pela acção daquelas forças transnacionais.
Uma das forças transnacionais políticas mais importantes é a das internacionais dos partidos políticos. A iniciativa pertenceu neste domínio às forças
comunistas, com a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores
de 1864, mais tarde conhecida como Internacional, em seguimento da publicação do Manifesto de Marx e Engels. As dissidências que levaram à disso·
lução da I Internacional em 1876, e à efémera tentativa da II Internacional
que se mostrou incapaz de impedir a guerra de 1914, deu oportunidade a um
416
AS FORÇAS EM ACÇÃO
lo diferente: a III Internacional fundada em Moscovo em 1919, e apoiada
., .
sov1et1co.
o0 ~t m O nome de Komintern(Internacional comunista), cortando com a corºsocial-democrata, foi um instrumento do governo soviético no sentido
. os parti.d os comumstas
.
d os outros pa1ses.
,
rentebordinar e gmar
de~crise da última guerra não deixou subsistir formalmente um instrumento
cção tão contrário ao espírito de uma aliança militar, e por isso foi dissold_~ªe substituído pelo Kominform,em 1947, oficialmente uma organização de
:f:rmação dos partidos comunistas, de facto tentando continuar na linha da
1 anizaçao
- an t ecessora.
orgEml956 fc
•d. 1 .d
l
.
.fc - d d'
fi
01 isso v1 o, ta vezparaev1taramam estaçao e 1vergenc1ase,o 1jaJmente,o governo da URSS passou a usar as Conferências
dos partidos irmãos.
dos81 Partidosde 1960, em Moscovo, foi declarado no comuni~a Confarência
cadofinal: "Os partidos comunistas e operários declaram, por unanimidade,
queO Partido Comunista da União Soviética é, e manter-se-á, como a vanguarda
universalmente reconhecida do movimento comunista mundial, enquanto destacamento mais experiente e mais agressivo deste movimento" 335 •
Logo depois da Primeira Guerra Mundial, os socialistas que não aceitaram
ascondições do PCUS procuraram reactivar a II Internacional, o que conseguiramem 1923, em Hamburgo. Não puderam impedir o triunfo do fascismo na
Europa,e também não levaram a resultado positivo as tentativas feitas, depois
de 1945, para um entendimento entre os partidos socialistas ocidentais e os
do Leste, porque os primeiros nunca puderam aceitar as "vintee uma condições
de
f1)0
ado
A
•
paraa admissãoaoKomintern."
Em 1947, os trabalhistas britânicos fundaram o Committee of the International Socialist Conference (COMISCO), mas apenas em 1951 foi lançada
a actual Internacional Socialista, que agrupa uma meia centena de partidos
nacionais. O modelo é federal, ao contrário do centralismo do Leste, e proclama o anticomunismo, o reformismo político e democrático, a planificação
económica.Não acontece que todos os partidos socialistas alinhem sempre pela
mesma orientação nos problemas de relevância internacional, mas é um lugar
de encontro e a Internacional não actua dentro dos países senão por intermédio dos partidos nacionais.
A União Internacional dos Partidos Democrata-cristãos, sob a influência da
doutrina do Vaticano, foi pelas outras chamada a "internacional negra". Durante
algum tempo o elo de ligação entre os partidos democrata-cristãos foram as
m Em 1938 os seguidores de Trotsky fundaram uma IV Internacionalque subsiste na América do Sul.
Sobre a evolução do sistema político, o lúcido estudo do Prof. Doutor José Adelino Mal tez, O Imperial·Comunismo,Lisboa, 1993.
417
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Novas Equipas Internacionais, fundadas em Março de 194 7. A doutrina é
trina social da Igreja, mas esta, segundo orientação clara do Concílio Va: dou.
II, não opta por qualquer formação política, dirige-se a todas. Existe ho· icano
.
1d as D emocrac1as. C nstas.
. Je111lla
I nternactona
A Internacional Liberal, fundada em 1947, tem expressão mais modest
que funciona, ao que parece, mais como um clube de personalidades cuida~ Por.
da sua independência. No caso de se consolidarem os grandes espaços, e asas
designadamente a União Europeia, é de prever que as internacionais ten~lllo
um peso crescente na vida internacional3 36 •
ªtn
2. As internacionais sindicais
Por seu lado, o movimento sindical também assumiu a internacionaliza _
Em 1945 foi fundada a Federação Sindical Mundial, que foi dominada
sua extrema esquerda (1947), e se afirma como representante de mais de
100
milhões de trabalhadores de 35 países.
A Confederação Internacional dos Sindicatos Livres, que nasceu da cisão
de 1947, e foi constituída em Londres em 1949, fixando a sede em Bruxelas
representa cerca de 60 milhões de trabalhadores filiados em quase meia cen~
tena de associações espalhadas por dezenas de países.
A Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos, fundada em 1920
na Haia, afirma representar cerca de 10 milhões de trabalhadores espalhados
por meia centena de países.
Embora o movimento sindical seja conceitualmente apolítico, e reivindique
essa condição, parece mais certo entender que cada uma das organizações obedece a uma opção política. A divisão do mundo em blocos estratégicos tornou
nesse período mais aparente a adesão ideológica das internacionais sindicais.
i:~~
3. As forças religiosas
As grandes religiões afrontaram-se tradicionalmente ao longo dos tempos mobilizando os Estados para tal efeito. A geral separação das Igrejas dos Estados,
com a gritante recente excepção do fundamentalismo do Irão, não eliminou
a presença dessas correntes na cena internacional. As mais importantes são o
Cristianismo(católicos, ortodoxos, anglicanos, luteranos, reformados, metodistas, baptistas), o Islamismo,o Judaísmo,o Hinduísmoe o Budismo.
Da Cristandade, a Igreja católica tem a adesão de metade, e a outra metade
é partilhada pelas restantes Igrejas. O catolicismo é dominante na Europa Oci33
Française,T. X, Secção B" Alfred Grosser, "Les internationales des partis politiques", Encyclopédie
Cap. l. Julius Braunthal, Yearbook
oftheInternationalSocialistLabourMouvemwt.M. Vaussard, Storiade/la
democraziacristiana,Bolonha, 1956.
418
AS FORÇAS EM ACÇÃO
1e na América do Sul; o protestantismo tem mais implantação na Europa
dellt:al e na América do Norte, enquanto que a Igreja ortodoxa guarda a Europa
cent
, .
. nral e a Russ1a.
orieIslão esten d e um cmturao
·
- d es d e G.b
' . entre os para1 ra 1tar ate' a' I n d ones1a,
0
i !Oe 40. O Hinduísmo implantou-se no subcontinente indiano, enquanto
(eosoConfucionismo e o Budismo ocupam zonas limitadas do Oriente. É eviquete que a organização institucional aumenta a influência das correntes relid~:as, sendo a mais perfeita, nesse aspecto, a Igreja católica. Desde 1870, com
gt:unificação da Itália, que a Santa Sé tem apenas à disposição, pelos Acordos
~r Latrão de 1929, a chamada Cidade do Vaticano.
e A crise religiosa pode ser causa de grandes perturbações internacionais,
comoaconteceu com Lutero e as guerras de religião e dos camponeses, e está
agoraa acontecer com o fundamentalismo a partir da revolução no Irão.
A evidência primeira é que o Estado ocidental não tem grande possibilidade de mobilizar as instituições religiosas. Existe um esforço continuado das
váriasconfissões cristãs no sentido de reencontrarem a unidade perdida, movimento muito evidente nas exortações que vão sendo conhecidas com origem
noVaticano, e sobretudo demonstrado no empenhamento da dinastia de Papas
humanistas deste século.
A reunião, presidida por João Paulo II em Assis, de todos os líderes religiosos sem distinção de crenças, foi dos mais importantes acontecimentos da
época, no domínio da luta pela reposição de um princípio ético na condução
das relações entre os povos.
Na América Latina, a acção do Pe. Camilo Torres na Colômbia, decidindo
juntar-se à guerrilha com a qual morreu, tem ainda grande importância simbólica. Quando um Cardeal Mindszenty não cedeu e se deixou espancar diariamente na prisão na Hungria dominada pelos soviéticos, transformou-se num
sério obstáculo para o progresso da ideologia que combatia. Quando Martin
Luther King, pastor protestante, assumiu a luta pela integração social nos EUA,
sendo assassinado, mudou a política do país. Também deve ser levada em conta
a acção das várias ordens religiosas, conforme o seu escolhido campo de acção.
O Vaticano, que não dá privilégios a nenhuma força política interna dos países, excluindo apenas com irredutibilidade as formações soviéticas, toma partido nas questões internacionais com frequência, e continuadamente doutrina
sobre a paz em geral, os conflitos concretos e as ameaças que espreitam uma
sociedade mundial em que a ciência e a técnica não foram acompanhadas pela
evolução da ética 337•
337
Guerry, L'Égliseet la commur1auté
despeuples,Paris, 1958. Base, La sociétéinternationalect /'églisc,Paris,
1961.Delavignette, Christianismcet colonialisme,Paris, 1960. Pierre Rondar, L'Islamet les musu/mans
419
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
4. Os interesses privados
O Anuáriodas Organizações
Internacionaismantém uma informação actu .
11
sobre as mais de mil e quinhentas organizações não-governamentais que ª Zada
.
.
1, I"dentlºfi1cand o o campo espec1'fi1cod a intervenção:
·
actua
b. _lll
na v1"da mternac10na
1
grafia, imprensa, religião, ciências sociais, relações internacionais, pol 10direito e administração, ajuda social, comércio e indústria, agricultura ltica,
nicação e turismo, técnicas, ciências exactas, saúde, educação e juv~~ºlllu.
desportos, literatura, etc. O que significa que a internacionalização d:u~e.
privada tende para invadir todos os campos tradicionalmente reservad Vida
osªº
,.
po derpo 1mco.
A importância que assumiu é que explica que o artigo 71 da Carta da ON
estabeleça que "o Conselho Económico e Social pode tomar todas as disp ~
ções úteis para consultar as organizações não-governamentais que se ocuposi- re 1aciona
.
das com a sua competenc1a
, . "A
.
de questoes
. s organizações
nestas e e111
<lições- ONG - podem enviar observadores às reuniões públicas do Conse~:e_das _comissões. Esta política generalizou-se a outras organizações interna~
c10na1s.
As organizações com fins lucrativos, com a natureza de multinacionais
mantêm uma tendência natural para tratar com os governos em pé de igual~
dade, sobretudo com os dos países recentemente independentes. O economista F. Perroux fala mesmo de efeitosde domínio,querendo abranger na
expressão fenómenos semelhantes ao do extinto protectoradopolíticointernacional.
Sobretudo quando se trata de matérias-primas fundamentais, como 0
petróleo, as multinacionais desenvolvem entre si uma actividade semelhante
à actividade diplomática dos Estados, e usam designadamente os acordos,
que funcionam como os tratados, e a repartição de áreas de actividade que
são equivalentes às zonas de influência reclamadas pelas soberanias. A Standard Oil, a Royal Dutch Shell, a ITT, os fabricantes de aviões e de armamento, são referências indispensáveis para o estudo de qualquer conjuntura.
Acontece até que, algumas vezes, os grupos financeiros são a longa mão dos
governos.
No conflito de 1951-1953 entre o Irão e a Anglo-Iranian Society, que levou
à demissão do Primeiro-Ministro iraniano Mossadegh, aquela companhia era
controlada pelo governo britânico. Tem-se verificado que não foi possível até
hoje um monopólio mundial de um grupo privado em qualquer domínio de
~!
d'a11jo11rd'h11i,
Paris, 2 vais., 1958-1960. Adriano Moreira, CiênciaPolítica,Coimbra, 1995. Paul Balta,
L'Is/amdans/e mo11de,
Paris, 1986. Bruno Étienne, L'islamismeradical,Paris, 1987. Paul Ladriere, René
Luneau (dir.), Le retourdcscertitudes,Paris, 1987. Mazowiecki, Un autrevisagede l'Europe,Paris, 1989.
420
AS FORÇAS EM ACÇÃO
·vidade, e que a competição tem sempre um papel. Acontece porém com
,crtuência que os meios de acção são tão libertos de ética como a conduta do
fre,q cipe de Maquiavel, e que a corrupção é uma arma sempre à disposição.
11
P;' irnente, tais agrupamentos ainda não dispensam a necessidade de recorf1narn última mstanc1a
. • . aos seus governos para a protecçao
- d os interesses
·
que
rere
33s
Sseguem .
pro
338
BullctindesOrganizationsNon-Gouvernementales,
Bruxelas, mensal.
421
Capítulo
V
AOrdem
eosPlanos
deContingência
§ 1º
A Perplexidade
Crescente
1.A NATO e os planos de contingência
Alinhade orientação política que, dentro do conceito estratégico da NATO, era
caracterizada como advogando a europeização da defesa, mudou de significado
depois de 1989. Até então, e certamente sofrendo a influência da viragem que
ficou conhecida como vietnamização da guerra, talvez possa dizer-se que não
se tratava senão de uma redefinição de encargos e de riscos, sem alteração da
concepção da ameaça nem da filosofia da resposta.
O risco do holocausto estava presente, o inimigo estava identificado, a solidariedade dentro da aliança derivava da percepção da conjuntura, uma experiência de cerca de meio século deixava pressentir a poucos, se alguns, que os
factos podiam alterar-se significativamente.
E todavia, com surpresa confirmada por todos os governos interessados, a
queda do Muro não foi antecipada por nenhum governo ou serviço, a superpotência sobrante e solitária rapidamente sentiu que a autoridade de que até
então dispunha se diluía mais rapidamente do que o seu poder efectivo deixava
supor, e a europeização da defesa, que doutrinava, começou a parecer mais um
desafio do que uma questão de filosofia organizacional.
Parece útil, no sentido de tentar apreender o sentido da mudança da conjuntura europeia e das novas leituras da solidariedade atlântica, lembrar que sempre
se passeou, pelas cidades deste velho continente, um antiamericanismo de ressentidos, que a recordação da ajuda na guerra estimulava em vez de amenizar.
423
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Talvez um afloramento daquele velho conceito segundo o qual exist
política favores que nunca se desculpam, e a libertação do nazismo, a c:1ll na
ção do avanço soviético, a ajuda à reconstrução, a estaca destinada a n~en.
que a árvore fosse abanada deixando cair os frutos nas mãos do adversá:.vitar
Leste, tudo seria excessivo para a sensibilidade das antigas grandes pot• 1º ~o
enc1
europeias.
as
As campanhas pacifistas, demonstradamente inspiradas pela URss
mobilizaram multidões em todas as grandes capitais europeias durante a
década, nunca deixaram de explorar essas contradições emocionais qu'llla
' e as
necessidades de segurança e defesa continham finalmente dentro de lilll'
, . 339
ttes
razoave1s •
Todavia, depois da queda do socialismo, da implosão do império soviétic
e do renascimento da Europa Central para o protagonismo histórico, a eur
peização da defesa perdeu os constrangimentos estruturais que derivam ;
bipolarismo, e o antiamericanismo apareceu em patamares mais visíveisd~
contencioso político internacional.
De todos os acontecimentos que foram empurrando a europeização da
defesa para um novo conceito, provavelmente é o conflito do Iraque aquele
que deve considerar-se mais significativo. Há vantagem, supomos, em seleccionar alguns elementos do processo que militarmente conduziu à operação
Tempestade no Deserto (1990-1991), e que, se a selecção tiver fundamento,
ajudam a compreender a mudança que está em curso.
Em primeiro lugar, tratou-se de, pela primeira vez, o Conselho de Segurança da ONU legitimar uma intervenção militar com a unanimidade dos cinco
grandes, entre os quais estão duas potências europeias, a França e a Inglaterra,
que não tiveram nem na decisão da intervenção, nem na participação material,
nem na imagem mundial, qualquer peso equivalente à importância formal de
cada uma dispor do direito de veto. Por outro lado, a superpotência sobrante,
se bem que tenha assumido, sem contestação, o directório da intervenção,
todavia não dispensou a ajuda financeira dos antigos vencidos, muito concretamente o Japão e a Alemanha.
A surpreendente argumentação emocional que foi elaborada para construir o discurso de uma nova versão da europeização da defesa, reproduziu
na essência os discursos do nacionalismo que, agora europeu, algumas versões europeístas usam condenar como prejudiciais para o bom entendimento
dos povos.
úi?J.e
º:
339
Roger Caillois, L'hommeet /esacré,Paris, 1950. Gandhi, Non-violence
in peaceand war,Londres, 1942.
Brejnev, E/ programadepazparala décadadei 80, Moscovo, 1981. Gromyko, L'essencie/
estdepréserver
la
paix,Moscovo, 1981.
424
A ORDEM E OS PLANOS DE CONTINGÊNCIA
A areceu a lamentação sobre a imagem de incapacidade que fora produzida
pecundarização ou omissão dos Estados europeus, salientou-se a depen5
- aos americanos,
•
e
Iaram-se advertenc1as
• · contra o desampela•aem relaçao
1ormu
d'11CI
e 00 caso de retirada do aliado, falou-se de uma Europa que de facto não
- po l'1t1ca
. assumi"da, tivesse
.
Paro
. tia e era d uv1"doso que, mesmo na fi1cçao
a 1gum
1
~" :re;se específico exclusivo na questão do Golfo.
intrern fundamento, segundo entendemos, insistir em que a questão do Koweit
fc•urna ameaça à segurança global, e por isso a intervenção militar teve aquela
1
itirnidade e aquela estrutura, pelo que não era a proximidade geográfica
1
e;eservia de elemento diferenciador, podendo acrescentar-se que dos Estados
~uropeussó não participaram na força de intervenção aqueles que não quiseralll•Ainda que esse seja o facto, politicamente foi a versão da honra e da glória,
a exigência do tambor e da bandeira, que ganharam peso no discurso mobilizadordestinado a conseguir fazer aceitar a afirmada necessidade de uma nova
europeização da defesa.
Os factos mostram-se porém mais consistentes do que aquele discurso, o
qual nunca se preocupou com a exigência lógica, incontornável, de seriar as
ameaçase os riscos especificamente europeus, e por isso não abrangidos pelo
conceito estratégico da NATO, nem pelo anterior conceito de segurança e paz
mundiais da ONU.
A implosão soviética todavia autonomizou, a par dos conflitos nacionalistas e étnicos que pontuam a dissolução do império, a questão da falta de uma
cadeia de comando capaz de controlar as armas estratégicas que tinham sido
a expressão da força da URSS, e são agora um risco maior ao alcance de poderes sem experiência nem credibilidade. Finalmente, a dissolução da Jugoslávia,
o genocídio em curso na Bósnia, os crimes contra a Humanidade executados
à sombra da jurisdição interna e da incapacidade internacional, de facto e de
direito, para organizar uma intervenção eficaz, tudo ajudou a trazer à superfície da memória europeia a lembrança do Ano Zero, que foi 1945. Esta memória foi reactivada pela repetição das barbaridades de que o território da extinta
Jugoslávia fora teatro durante a guerra mundial, mas também porque a Alemanha retomou um protagonismo que é usual minimizar, ou então mencionar
adiantando que a democracia de hoje não consente qualquer paralelismo com
passados excessos. O facto é que, já na vigência do Acto Único é que se processou a reunificação da Alemanha, a fixação da fronteira na linha Oder-Neisse, a
formulação da política em relação ao Leste, e que para isto não foi necessário
fazer intervir a política externa comum da Comunidade.
No caso da Jugoslávia, onde as repúblicas do Norte foram historicamente
marcadas pelo germanismo, também foi a decisão alemã que definiu o calendário do reconhecimento da Eslovénia e da Croácia. No caso de o novo protago-
°
425
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
nismo alemão acordar a lembrança do Ano Zero europeu que foi 1945, talllb,
é porém certo que faz parte dessa memória o saber que o mais importante en-i
blema europeu, desde há séculos, é o de acabar com a guerra civil entre os Pto.
povos, guerra civil que, pelo menos duas vezes, se transformou em mun~~s
pelos efeitos e pela dimensão do teatro da operação.
ia}
Guardaremos para outra oportunidade a apreciação deste discurso e
cional esquecido do direito internacional, para salientar que parece ter~0
esta teia de factos que mudou definitivamente o conceito da europeização' d
defesa e acrescentou à lógica do poder económico, que ainda caracterizav ª
CEE do Acto Único, a lógica da segurança e defesa que levou ao salto qua~i~
tativo ~o Trat~do da União de Maastricht, agora em discussão e experiência
europeia gerais.
A causa próxima desta concretização do acrescentamento da lógica da segu.
rança à lógica do poder económico, que marca o salto qualitativo do Acto Único
para a União, é reforçada pelo cada vez mais !atamente interpretado dever de
assistência humanitária: basta lembrar que a Sérvia, conduzida barbaramente
pelo Presidente Slobodan Milosevié, pretende fundar uma terceira Jugoslávia
que inclui o Montenegro, e arrasta o desaparecimento da Bósnia e Herzego:
vina do mapa político. O preço até agora estimado é de cinquenta mil mortos
mais as cidades mártires como Sarajevo e Gorazde.
'
O risco do exercício do dever de assistência humanitária está na frequência com que a intervenção militar aparece na lógica irrecusável das coisas e
dos sentimentos, levando a esquecer o princípio fundamental de respeito pela
jurisdição interna e a exigência essencial da legitimidade que deve cobrir a
intervenção, e esta apenas com probabilidade de êxito.
A experiência ensina que a comunidade internacional desculpa facilmente
uma intervenção rápida e com êxito, baseada em justa causa, mas a doutrina
confia apenas em intervenções institucionais, decididas não por potências mas
sim por organizações internacionais.
Acontece que, de acordo com a Carta da ONU, a legitimidade para decidir
uma intervenção em qualquer parte do mundo, com o objectivo de restaurar
a paz, eliminar ameaças contra a paz, ou pôr um ponto final a crimes contra a
Humanidade, pertence ao Conselho de Segurança da ONU. O caso do Iraque é
o único em que os detentores do poder de veto se puseram de acordo para legitimarem uma intervenção, mas as circunstâncias do mundo, onde a interdependência crescente transforma a paz e a segurança num concreto bem comum da
Humanidade, porque toda a ruptura da paz tem a potencialidade de alastrar,
apontam para uma racionalização indispensável dos mecanismos interventores, globalista para ser eficaz.
426
A ORDEM E OS PLANOS DE CONTINGÊNCIA
desenvolvimento desta conjuntura, imprevisível em 1989, passa por uma
a qual tem elementos emocionais depenla entre atlantistase europeístas,
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quere
es de antigas
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1 a d es, tem e 1ementos racionais
dentofiaorganizacional, e elementos míticosque envolvem a discussão da verftl~:ira fronteira europeia, da constelação dos valores especificamente euroda 5 da concepção do mundo e da vida em que deveria assentar a decisão e
pe:dlbilidade da unidade possível.
cr O adantismo tem essencialmente a ver com o futuro da NATO, e este não
enas é dependente da evolução europeia, também depende da própria evoap
.
ção amencana.
1
u E esta, para além das teses desanimadoras do declínio, e dos factos preoupantes a respeito do modelo de sociedade inacabada que evidencia, mostra
~ndíciosde que os velhos temas isolacionistas voltam a preocupar o eleitorado,
de que o FarwellAdressde George Washington é um texto com nova actualidade, de que o Pacífico reclama o título de berço do futuro, de que cresce o
cansaçoperante os encargos mundiais da majestade da superpotência, e de que
afloraalguma reacção negativa ao antiamericanismo europeu persistente, tudo
a contribuir para moderar o envolvimento transatlântico, e para tentar manter
0 estatuto de proeminência sem prejudicar a transferência maior de encargos
para a europeização da defesa.
Por outro lado, o desaparecimento da ameaça não se traduz apenas na viabilizaçãode uma política mundial de desarmamento, a favor de um maior empenhamento na solidariedade, na cooperação e no desenvolvimento. A racionalização
dos efectivos, do dispositivo militar, dos encargos no exterior, são corolários
organizacionais inevitáveis, e a questão da desmobilização das bases inscreve-se neste plano, com os Açores dentro deste quadro.
Pelo que toca aos elementos míticos, sem os quais não parece que se formule
um programa de Estado mobilizador, talvez não seja infundado dizer que um
dos aspectos importantes da reformulação em curso da Ordem internacional
se traduz num conjunto de políticas em busca de uma ideologia, uma questão
que implica com a exigência, vinda dos factos, de um mundialismo assumido,
coordenado e participado.
A mudança pode ser esquematizada em função de duas variáveis: a primeira
delas com expressão na substituição da ameaça antiga por uma série de desafios ainda mal catalogados; a segunda diz respeito à percepção variável dessa
mudança pelos agentes sobreviventes responsáveis pela antiga Ordem, e à multiplicidade de comportamentos novos, e não necessariamente coordenados,
que adaptem.
Assim como a redefinição eventual do comportamento da superpotência
sobrante afecta todo o velho sistema de que foi directora durante meio século,
0
427
TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
assim também os países europeus da NATO tendem para substituir 0
1
lismo estadual da intervenção na Aliança pela identidade do pilar eut llra.
com expressão institucional. Deste modo, a política da europeização da /Pell,
que os próprios EUA doutrinaram, recebe uma resposta diferente da si efesa,
repartição nova de encargos e de riscos, porque abrange uma nova fil:Ples
organizacional e um diferente conceito estratégico comum de segurançaSofia
defesa. Teríamos por errado que estas novidades se traduzissem na extinçãe de
Aliança Atlântica, porque meio século de experiência sem conflitos deriva~da
da hierarquia real das potências envolvidas, e com um resultado histórico os
foi vencer a Guerra Fria, tudo corresponde a um valor do património ocide que
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Mas a identidade europeia de defesa ultrapassa em muito, na doutrina e n
prática posteriores a 1989, o diálogo sobre a repartição das responsabilidad/
dentro da NATO. Embora a doutrina publicada a partir da guerra do Go!f;
tenha em geral negligenciado esta
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