FAUSTO DE QUADROS PROFESSOR CATEDRÁTICO DA FACULDADE DE DlREnU DA UNIVERSIDADE DE LISBOA DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO DA UNIÃO EUROPEIA 3.' edição íJ1X ALMEDINA 2013 DUPLICADO -------------------r À memória de Ininha Mãe DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA r, AUTOR FAUSTO DE QUADROS EDITOR EDIÇÕES ALMEDINA, SA Rua Fernandes Tomás, n. 76, 78 e 79 3000-167 Coimbra Tel: 239 851 904· Fax: 239 851 901 www.almedina.nel·editora@almedina.net U ' DES1GN DE CAPA rBA PRE_IMPRESSÃO EDIÇÕES ALMEDINA. SA IMPRESSÃO I ACABAMENTO NORPRINT Fevereiro de 2013 DEPÓSITO LEGAL 354973{l3 Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade do seu Autor. Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor e do Autor, é ilícita e passível de procedimento judicinl contra o infractor. Biblioteca Nacional de pOI·tllgal- Catalogação na Publicação QUADROS, Fausto de, 1944Direito da União Europeia: Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia. - 3a edição ISBN 978-97240-5071-3 CDU 34(4-67UE) I I I I l, I Às minhas Netas NOTA PRÉVIA À TERCEIRA EDIÇÃO Antes de mais, impõe-se um esclarecimento. Di:::.emos que esta é a terceira edição deste livro porque, de facto, ele já teve duas edições. A primeira, consistiu no livro com a mesma epígrafe deste, editado em Portugal, em 2004, pela editora Almedina. A segunda, foi o livro intitulado Droitde J'Union européenne - Droit constitu- tionnel et administratif de I'Union européenne, editado em Bruxelas, em 2008, pela editora Bruylant. Não consistiu numa tradução da edição em língua portuguesa, porque levou em conta todas as modificações introduzidas Oli projetadas para a União Europeia entre 2004 e 2008. Por tudo isto, dizemos que esta é a terceira edição do livro. As duas edições anteriores tiveram muito bom acolhimento da parte dos estudiosos do Direito da União. Quanto à primeira edição, não obstante o elevado número de exemplares da primeira impressão, ela teve de ser reimpressa várias vezes para dar resposta à procura do livro em Portugal e no estrangeiro. Particular realce merece o facto de o livro ter despertado grande interesse no estrangeiro, como o prova, desde logo, a circunstância de ele ter merecido recensões e citações da parte da doutrina de vários Estados, quer Estados-membros da União, quer outros Estados. Quanto à segunda edição, ela deu satisfação à procura do livro um pouco por todos os continentes e tambén-l teve que ser reimpressa. Na Ordem Jurídica da União Europeia produziram-se importantes alterações desde as edições anteriores. Entre elas merece destaque, sem dúvida, a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. 7 Direito da União Europeia Mas não se podem subestimar os novos contributos relevantes fornecidos pela doutrina e pela jurisprudência do Direito da União. Impõe-se, pois, que atualizenlOs o nosso livro. É o que aqui fazemos. A primeira finalidade do livro continua a ser de ordem didática. Este livro foi escrito a pensar, antes de mais, nos muitos Estudantes e Investigadores que connosco trabalham neste ramo do Direito, em Portugal e no estrangeiro, dentro ou fora da União Europeia. Mas quisemos, também desta vez, ir para além de um simples manual universitário, de modo a que o livro seja útil a todos aqueles, teóricos e práticos, que pretendam inteirar-se das matérias cobertas pelo título e peIo subtítulo do livro. Foi esse o objetivo que, inclusivamente, presidiu tanto ao plano da obra como à definição do vasto âmbito de matérias que ele cobre. Desde o infcio, quisemos que o livro abordasse as matérias mais importantes do sistema jurídico da União Europeia. Nessa linha de orientação mantivemos, no essencial, o plano das edições anteriores. O bom acolhimento que elas tiveram deixa em nós a convicção de que esse plano foi de encontro às necessidades do ensino e da investigação, tanto ao nível da graduação, como ao da pós-graduação, assim como deu resposta às inquietações dos teóricos e dos práticos do Direito, incluindo os tribunais. Por isso, conservámos as mesnUls matérias sobre as quais nos debruçámos nas edições anteriores, com alguns acrescentos e, obviamente, com os aprofundamentos que a evolução do Direito da União impunha. Agradecel1lOs todo o contributo que para esta nova edição resultou da troca de impressões que fomos tendo com Colegas, Amigos, Colaboradores, Assistentes e Estudantes. Fazemos votos para que este livro continue a ser útil a todos aqueles que, de algum modo, têm de lidar com este cada vez mais importante e complexo ramo do Direito. Colares, 31 de outubro de 2012 8 NOTA PRÉVIA À PRIMEIRA EDIÇÃO Em 1972, no início da nossa actividade académica, publicámos as primeiras lições sobre Direito Comunitário, incluídas no nosso ensino da disciplina de Relações Económicas Internacionais do 4.° ano da Licenciatura em Finanças (hoje, Gestão) do então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (hoje, Instituto Superior de Economia e Gestão) da Universidade Técnica de Lisboa (Relações Económicas Internacionais, edição da Associação de Estudantes, 1972-73). Dez anos mais tarde, em 1982-83, editámos os nossos Sumários desenvolvidos de Lições sobre Direito das Comunidades Europeias, elaborados na disciplina de Direito Internacional Público II, do 5. o ano da menção de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (edição da Associação Académica, 1983). Tratou-se, aliás, da primeira tentativa de ensino, com autonomia, de Direito das Comunidades Europeias no plano de estudos daquela Faculdade. Nunca aprofundámos ou actualizámos, por via escrita, essas Lições. E houve duas razões para que tal não acontecesse. A primeira, foi a de que os nossos Alunos nunca tiveram dificuldade em conhecer o nosso pensamento acerca das matérias fundamentais da disciplina, dado que ele se encontra divulgado por via monográfica. Mas a segunda razão é mais importante e explica, por um lado, a nossa progressiva perda de entusiasmo pelo livro didáctico de tipo do manual e, por outro lado, o facto de no estrangeiro haver, em todos os ramos de Direito, inclusive em Direito da União Europeia, um elevado número de professores universitários que nunca escreveram as suas Lições. É que entretanto constatámos, sem querermos 9 Direito da União Europeia Nota prévia à primeira edição discutir aqui as causas desse fenómeno, que um número cada vez maior de Alunos não se preocupa em estudar, numa disciplina de Direito, para além da "sebenta" do regente. Ora, não havendo o livro de tipo do manual, a experiência mostra-nos que o Aluno é obrigado a criar bons hábitos de investigação pela doutrina que o regente indica e, dessa forma, acaba por estudar mais da disciplina e de forma mais diversificada. Todavia, agora somos levados a mudar de opinião. De facto, o Direito da União Europeia está a tomar-se cada vez mais complexo. Estamos numa fase de reordenamento e reelaboração substancial do sistema jurídico da União Europeia. Essas transformações vieram pôr em causa a própria designação tradicional dessa disciplina - "Direito Comunitário" - nos planos de estudos das Faculdades de Direito. Ora, isso vai tornar cada dia mais difícil (mas, por isso, também mais aliciante) ensinar-se bem (e estudar-se bem) este ramo de Direito. Acontece, porém, que não existe ainda em Portugal uma obra de carácter geral que abranja todo o conjunto amplo de matérias às quais este livro se dedica e que, para o efeito, atenda ao estado actual do progresso do Direito da União Europeia, tomando inclusivamente em conta, para esse fim, a evolução mais recente da doutrina e da jurisprudência. Porque é preciso não nos esquecermos de que desde o início da última década do século XX assistimos a profundas alterações na dogmática clássica do sistema jurídico das antigas Comunidades Europeias, hoje, da União Europeia, entendida esta no seu sentido amplo. Foram estas razões que nos fizeram publicar agora este livro. Como não podia deixar de ser, trata-se de um livro com uma função eminentemente didáctica, embora se não tenha esquecido a utilidade que ele pode fornecer aos teóricos e práticos do Direito, inclusivamente, ao Legislador, à Administração Pública e aos Tribunais. Como tal, o livro está concebido para um programa que seja susceptível de ser leccionado em disciplinas tanto da licenciatura como de níveis de pós-licenciatura, desde logo, na Escola principal onde o autor ensina, isto é, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. O tempo dar-nos-á ensejo de alargarmos o elenco das matérias versadas, sobretudo se a este ramo de Direito for reconhecida, nos planos de estudos das Faculdades de Direito, a enorme importância que ele tem na formação do jurista do século XXI. Neste livro foi levado em conta o Direito da União Europeia em vigor à data da sua publicação, na base, portanto, da revisão dos Tratados realizada pelo Tratado de Nice, e tendo-se tido já em consideração o recente alargamento da União. Ou seja, o livro está plenamente actualizado. Num ou noutro ponto mais importante levou-se em conta o Projecto de Tratado que estabelece a Constituição Europeia, apesar de, à data da conclusão do livro, ele não ter ainda sido aprovado pela Conferência Intergovernamental e, portanto, não possuir ainda uma versão definitiva, além de, como é sabido, o Tratado Constitucional, que daí vai sair, ir levar muito tempo a entrar em vigor, para além de algumas das suas disposições serem de aplicação diferida no tempo, como, aliás, já acontece com o Tratado de Nice. Dedicamos este livro, de modo especial, a todos aqueles que, ao longo de muitos anos, em Portugal e no estrangeiro, connosco colaboraram ou têm vindo a colaborar, no âmbito do ensino deste ramo de Direito, como Assistentes ou Investigadores, bem como a todos aqueles que, em Portugal e no estrangeiro (mas, sobretudo, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), portugueses, brasileiros, ou doutras nacionalidades, foram nossos Alunos, a diversos níveis da licenciatura ou de pós-licenciatura, ou de nós receberam orientação no plano da investigação. Mas este livro tem também uma outra dedicatória, não menos sentida. Já na fase da sua composição na editora, fomos surpreendidos pelo brutal desaparecimento de António de Sousa Franco. Nele admirávamos o Universitário rigoroso e sempre actualizado; nele tínhamos, há mais de quatro décadas, um bom Amigo. A matéria da integração europeia era, há muitos anos, um dos temas preferidos no nosso convívio. Sousa Franco tinha nesse dominio ideias profundas, claras e objectivas. Recordamo-lo com saudade. 10 II Lisboa, 31 de Maio de 2004 NOTA PRÉVIA À SEGUNDA EDIÇÃO AVANT-PROPOS Ce livre a pour base I'ouvrage de l'auteur intitulé Direito da União Europeia, qui a été publié en portugais, en octobre 2004, par l'éditeur Almedina, de Coimbra. Le fait que le livre en langue portugaise ait été bien accueilli par la doctrine des autres États membres justifie notre volonté de le publier en français. Les changements survenus depuis dans I' ordre juridique de I'Union européenne et les nouveaux apports de la doctrine et de la jurisprudence du droit de I'Union sont également pris en compte dans cette version française de ce livre. Le présent ouvrage est actualisé par rapport au droit de I'Union en vigueur. En effet, ii a pour fondement le traité sur I'Union européenne et le traité instituant la Communauté européenne, avec les modifications apportées par le traité de Nice et complétés par les deux traités d'adhésion entre-temps conclus, en 2003 et en 2005, et, par conséquent, prend en considération l'élargissement de l'Union à vingt-sept États membres, qui s'est réalisé le I" janvier 2007. Comme on le sait, le traité constitutionnel européen, signé en 2004, n'est pas entré en vigueur et a été écarté par le mandat approuvé par le Consei! européen de juin 2007. Ce mandat conserve, cependant, une paltie substantielle du contenu du traité constitutionnel. Par conséquent, dans ce livre, on fera référence aux modifications apportées aux traités, dans les matiéres les plus importantes, par le traité constitutionnel. Ensuite, et dans une partie finale, la Cinquiéme Partie, on indiquera queJles sont les principales innovations apportées par le mandat de juin 2007. 13 Direito da União Europeia Autrement dit, ce livre a pour objet le droit de I'Union tel qu'il est en vigueur. Par ail1eurs, iI prend déjà en considération les modifications projetées. En d'autres termes, ce livre est parfaitement à Jour. L' auteur étant un Professeur, iI est naturel que la premiere finalité de ce livre soit d'ordre didactique. Ce livre condense, de façon actualisée, I'enseignement du droit communautaire mené à bien par I' auteur durant ces trente-cinq dernieres années, au Portugal et à l'étranger. Mais )'intention a été d'en faire un peu plus qu'un simple manuel universitaire, de maniere à ce que cet ouvrage puisse donner aux lecteurs une vision globale de I' ordre juridique communautaire. Ceci a été I'objectif qui a présidé aussi bien au choix du plan de ce livre qu'à la définition du domaine tres vaste des matieres qu'il recouvre. On a souhaité que ce livre aborde les matieres les plus importantes du systeme juridique de I 'Union européenne, actuel1ement comme dans le futuro II nous faut remercier les éditions Bruylant, en particulier leur Président Directeur Général, Mr. Jean Vandeveld, pour s'être intéressé à la publication de ce livre. On veut également exprimer notre profonde reconnaissance à la Fundação Calouste Gulbenkian et à la Fundação para a Ciência e a Tecnologia, ayant toutes deux leur siege à Lisbonne, pour la subvention accordée en vue de la publication de ce livre. Enfin, on voudrait remercier I'excel1ent travail de traduction effectué par Maitre Samantha Cyrne, avocate à Lisbonne. Sintra, 30 juin 2007 BIBLIOGRAFIA GERAL I - Os clássicos CONSTANTlNESCO, L.-l. - Das Recht der europaischell Gemeinschaften, t. I, Baden-Baden, 1977. 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Por isso, houve a preocupação de nele se indicar só bibliografia selecionada. Num livro deste género, os leitores não estão à espera de que o autor indique toda a bibliografia, geral ou especial, que existe sobre as matérias versadas. Essa bibliografia também eles a sabem encontrar nos bancos de dados. Do que eles estão à espera num livro deste tipo é que o autor lhes sugira bibliografia, geral ou especial, que seja a melhor, a mais adequada ao plano do livro, e a mais atual para O estudo das matérias de que o livro se ocupa. É o que fazemos. A bibliografia citada neste livro divide-se em bibliografia geral e bibliografia especial. A bibliografia geral, que ficou atrás indicada, encontra-se separada, como se viu, em três partes: aquilo a que chamamos os clássicos, isto é, as obras que, em nosso entender, na primeira fase da integração europeia, marcaram, de modo determinante, a formação da doutrina de base do Direito Comunitário e a sua elaboração dogmática, e que, por isso, influenciaram muito a nossa própria formação neste ramo de Direito; depois, as obras de caráter geral que levámos em conta neste livro; por fim, os Comentários aos Tratados. Toda a bibliografia geral que ficou citada foi levada em consideração ao longo deste livro. Por isso, ela não terá citação especial nas páginas do livro a não ser, excecionalmente, quando qualquer das obras nela incluída assuma uma relevância muito especial para o tratamento de alguma matéria concreta sobre a qual estaremos debruçados. 19 Direito da União Europeia Além disso, a propósito de cada capítulo, e, exceciona!mente (dada a importância ou a novidade do assunto), a propósito de algumas divisões inferiores aos capítulos, será indicada bibliografia especial sobre a respetiva matéria. Também aqui houve a preocupaçâo de selecionar a bibliografia melhor e mais adequada ao respetivo assunto, sem menosprezo para a demais. Essa bibliografia especial será indicada por ordem cronológica, de forma a permitir ao leitor acompanhar a evoluçâo progressiva da doutrina do Direito da União, e, dessa forma, apreender a própria evolução gradual do sistema jurídico da União Europeia. Quando for citada bibliografia em nota de fundo de página, ela sê-Io-á apenas pelo nome do Autor quando se tratar de uma obra que conste da bibliografia geral, ou, se não constar dela, que conste da bibliografia especial sugerida para o respetivo capítulo. Se, constando uma obra do respetivo Autor da lista de bibliografia geral e outra do respetivo rol de bibliografia especial, se quiser citar esta última, ou se da lista de bibliografia especial constar mais do que uma obra de um mesmo Autor, a obra da bibliografia especial que quisermos citar será expressamente identificada, ainda que de modo abreviado, mas de forma a o leitor poder facilmente identificar a obra citada. Se, em nota de fundo de página, for citada bibliografia que não constar, nem do rol de bibliografia geral, nem das listas de bibliografia especial (o que só acontecerá excecionalmente, e em funçâo do grande interesse da obra para um assunto muito específico), nesse caso a obra citada será integralmente identificada. Foi nossa preocupação indicar bibliografia em várias línguas, porque entendemos que o estudo do Direito da União se enriquece se se tomar em consideração a doutrina diversificada do maior número possível de Estados e no maior número possível de idiomas. 20 MODO DE CITAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Ajurisprudência da Uniâo será citada ao longo do livro a~avés da data do Acórdão (ou Parecer, ou Despacho), do caso, do numero do processo (que constitui a chave para ~ sua consulta através do sítio oficial na Internet) e da sua pubhcaçao ofiCial. 21 ABREVIATURAS UTILIZADAS ADL = Annales de droit de Louvain AFAl = Annuaire trançais de Droit Intemational AJCL = American Journal of Comparative Law AJDA = Actualité Juridique - Droit Administratif AJIL = American Joumal of Intemational Law AõR = Archiv des õffentlichen Rechts APD = Archives de Philosophie du Droit AVR = Archiv des Võlkerrechts Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra BFDC BJE = Bul1etin des juristes européens Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts BVerfGE = CDE = Cahiers de droit européen Tratado que instituiu a Comunidade Europeia ou Comunidade CE = Europeia Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do CECA = Aço ou Comunidade Europeia do Carvão e do Aço Tratado que instituiu a Comunidade Económica Europeia ou CEE = Comunidade Económica Europeia Tratado que instituiu a Comunidade Europeia para a Energia CEEA = Atómica ou Comunidade Europeia para a Energia Atómica i; r y CJA = Cadernos de Justiça Administrativa cLJ = The Cambridge Law Journal CMLR = Common Market Law Review CPA = Código de procedimento Administrativo Código de processo nos Tribunais Administrativos CITA , I ! t:, DJ = Direito e Justiça 23 r f Direito da União Europeia DJAP Dicionário Jurídico da Administração Pública DõV :::;: Die õffentliche Verwaltung DP Diritto pubblico DPCE Diritto pubblico comparato ed europeo DUE = Il diritto dell'Unione Europea DV = Die Verwaltung DVBl == Deutsches Verwaltungsblatt EDP Europa e diritto privato EJIL == European Joumal of Intemational Law ELA = European Legal Affairs ~t Abreviaturas utilizadas NJW Neue juristischeWochenschrift OC obra coletiva QC RAE Quaderni costituziona1i Revue des affaires européennes RAP Revista de Administración Pública RBDI Revue belge de droit international RCADI RDCE Recueil des Cours de l' Académie de Droit Intemational Revista de Derecho Comunitario Europeo RDE Rivista di diritto europeo RDP Revue du droit public et de la science politique EU European Law Joumal REDA Revista espafiola de derecho administrativo ELR European Law Review REDC Revista espafiola de derecho constitucional European Law Reporter REDP Revue européenne de droit public ELRep EPIL = Rudolf Bemhardt (ed.), Encyclopedia of Public lntemationa! Law,4 vols., 1992-2003 EPL :::; European Public Law ETAF :::; Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais EuGRZ Europãische Gmndrechte Zeitschrift EuR :::;: Europarecht EWS :::; Europãisches Wirtschafts und Steuerrecht FIU :::; Fordham International Law Joumal HIU :::; Harvard Intemational Law Joumal HRU :::; Human Rights Law Joumal JCMS :::; Joumal of Common Market Studies JCP Jurisclasseur périodique, Édition générale JDI :::; Joumal de Droit International JS Juristische Schulung JT ::::; Joumal des Tribunaux JZ Juristenzeitung LPA Les Petites Affiches MJ :::; Maastricht Joumal of European and Comparative Law NILQ :::; Netherland Intemational Law Quarterly NYIL NetherJands Yearbook of Intemational Law 24 RFDA :::; Revue française de droit administratif RFDC Revue française de droit constitutionnel RFDUL :::; Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa RIDC :::; Revue Internationale de Droit Comparé RIDPC Rivista italiana di diritto pubblico comunitario RIE :::; Revista de instituciones europeas RMC = Revue du Marché Commun RMU Revue du Marché Unique Européen ROA :::; Revista da Ordem dos Advogados RPP Revue de Philosophie Politique RTDE Revue trimestrielle de droit européen RTDP Rivista trimestriale di diritto pubblico RUDH = Revue universelle des droits de l'homme SD = Studia diplomática SI Scientia Iuridica SIE SL Scripta iuris europaei = Saint Louis University Law Journal StIE = Studi sull'integrazione europea TDP = Tribune du droit public TFIJE = Tratado de Funcionamento da União Europeia 25 Direito da União Europeia TUE ;::;: Tratado da União Europeia UE ;::;: Tratado da União Europeia ou União Europeia VVDStRL ;::;: Verõffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer YEL ;::;: Yearbook of European Law ZaõRV = Zeitschrift mr aus r'ao d'ISC hes õffentliches Recht und Võlkerrecht INTRODUÇÃO ZG ;::;: Zeitschrift für Gesetzgebung ZP = Zeitschrift für Politik CAPÍTULO I ZWR = Zeitschrift für Wirtschaftsrecht QUESTÕES PRELIMINARES I. Direito da União Enropeia, Direito Comunitário, Direito Europeu Comecemos por explicar a epígrafe deste livro, Desde a criação das Comunidades até à entrada em vigor do Tratado da União Europeia, em 1993, o ramo de Direito que vamos estudar ueste livro foi designado unicamente por Direito Comunitário ou Direito das Comunidades Europeias, Nós próprios, no ano letivo de 1982-83, escrevemos sumários desenvolvidos de Lições sob a segunda das referidas designações I. E era essa a designação das disciplinas que em Faculdades de Direito tinham aquele ramo de Direito como objeto. Era uma altura em que só havia as três Comunidades - a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA ou Eurátomo) - e, portanto, em coerência, a Ordem Jurídica que as regia intitulava-se Direito Comunitário. Com o Tratado da União Europeia, esta passou a euglobar, entre o mais, aS três Comunidades. Por isso, passou-se a falar no Direito da União Europeia para designar o ramo de Direito que disciplinava o conjunto global da União Europeia, e em Direito ComuI Direito das Comunidades Europeias, Sumários desenvolvidos de Lições, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1983. 26 27 Introdução Questões preliminares nitário para se referir o ramo de Direito que se ocupava, dentro da União, das três Comunidades. Quando se chegou ao Tratado de Lisboa, a CECA já se havia extinguido em 2002 e a CE fora dissolvida na União Europeia, pelo que das três Comunidades só subsistiu a CEEA. O que hoje temos, portanto, é a União Europeia mais a CEEA. Em bom rigor, terá que se falar no Direito da União Europeia para se referir a Ordem Jurídica da União Europeia no seu todo, e em Direito Comunitário para se designar somente o sistema jurídico da CEEA. E é assim que procederemos. Neste livro estudaremos o conjunto da Ordem Jurídica da União Europeia, chamando-lhe Direito da União Europeia. revistas de Direito da União Europeia, a Europarecht. Mas trata-se, então, de um sentido vocacional, não objetivamente atual. Empregaremos a expressão Direito Comunitário, ou para nos refe- tucional da União Europeia para nos referirmos aos Tratados da rirmos ao sistema jurídico que, antes do Tratado de Lisboa, era específico das Comunidades ou de alguma delas, ou para nos referirmos, depois do Tratado de Lisboa, apenas ao Direito da CEEA - o que, prevenimos desde já, só faremos excecionalmente, devido à pequena importância desta Comunidade. Nunca utilizaremos a expressão Direito Europeu para nos referirmos ao ramo de Direito que vamos estudar neste livro. De facto, mesmo abstraindo do sentido juscomparatista que por vezes é dado àquela expressão - o Direito Europeu visto como o Direito Comparado dos Estados do continente europeu ou, pelo menos, dos grandes sistemas jurídicos que vigoram na Europa -, no plano transnacional Direito Europeu é o somatório dos sistemas jurídicos dos vários espaços regionais, sujeitos de Direito Internacional, que coexistem no continente europeu, alguns deles em regime de crescente complementariedade: a União Europeia, o Conselho da Europa, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a União da Europa Ocidental (UEO), a Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), a Organização de Segurança e Cooperação Europeia (OSCE), o Benelux, o Conselho Nórdico, etc. Ou, então, de Direito Europeu fala-se num sentido menos jurídico, para se referir o sistema jurídico, com vocação federal, de uma União Europeia pré-federal: é o sentido utilizado como título de algumas obras gerais sobre Direito da União Europeia na doutrina de língua alemã e o que dá a denominação a uma das mais antigas União como tratados-constituição, isto é, como os tratados que instituíram a União e que, como tais, lhes fixaram os órgãos e definiram o respetivo Direito primário. É nesse sentido que, de~~e sempr~, a Carta das Nações Unidas é apresentada como sendo a Conslltmção" daquela Organização. . ._ . Mas a expressão Direito ConstitucIOnal da Umao Europe!a ganha muito maior propriedade porque, como veremos, a Umao Europeia já tem uma Constituição material. FOI nesse sentido q~_e, muito cedo, como mostraremos, o Tribunal de Jusllça da Umao Europeia, então, das Comunidades Europeias, passou a qualificar o antigo Tratado da Comunidade Económica Europeia como a "Carta Constitucional" daquela Comunidade. Aliás, foi nesse sentido, e só nesse sentido, que no início deste século foi redigido um. Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, que tambem fiCOU conhecido por Tratado Constitucional Europeu. Com base nesse Tratado, o Tratado de Lisboa veio reforçar, no núcleo essenCIal dessa Constituição material, uma identidade constitucional da União, composta, desde logo, pelos valores da União, que passaram a constar do artigo 2.° do Tratado da União Europeia (TUE ou UE). Ou seja, em sentido material já existe Direito Constitucional da União Europeia', embora ainda não o haja em sentido formal, desde 28 29 2. Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia Mas este livro também tem uma subepígrafe, que nos diz que nele vamos estudar o Direito Constitucional e o Direito Administrativo da União Europeia. . O que é o Direito Constitucional da União Europei~? Num sentido tradicional, poderíamos falar em Direito ConstI- 2 Ver também as obras, designadamente, de VON BOODANDY, GARCiA DE LoUIS/RoNSE, pgs. 110 e segs., 1. WEILER/M. WIND (eds.), European ENTERR(A, Introdução Questões preliminares logo, porque ainda não existe, em sentido jurídico, um povo europeu, com poder constituinte próprio'. Veremos tudo isto com desenvolvimento ao longo deste livro. E o que é o Direito Administrativo da União Europeia? A expressão Direito Administrativo Europeu, com o sentido de Direito Administrativo das Comunidades Europeias, e, depois, Direito Administrativo da União Europeia, foi utilizada pela primeira vez na doutrina por um autor francês, COLLIARD, para designar a organização interna das Comunidades Europeias'. Sem prejuízo dos novos sentidos que a evolução do Direito Administrativo e do Direito Comunitário deu àquela expressão, e que examinaremos no local próprio deste livro, por Direito Administrativo da União Europeia queremos significar aqui a estrutura orgânica e institucional da União (sobretudo da Administração Pública Comunitária, que tem no seu topo a Comissão, como órgão predominantemente executivo da União) e toda a vasta problemática ligada à aplicação do Direito da União. Para designar o que nÓs entendemos neste livro como Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia, as obras gerais, sobretudo de língua francesa, servem-se, por vezes, da expressão Direito Institucional da União Europeia. Só que, na linguagem jurídica, o substantivo instituição e o adjetivo institucional são palavras muito vagas. Por isso. a expressão Direito Institucional é, a nosso ver, substituída com vantagem (quer pela sua amplitude, quer pelo seu rigor científico) por Direito Constitucional e Administrativo. É essa, aliás, a orientação que adotam, para as matérias tratadas neste livro, algumas das obras gerais que nele vão indicadas, como é o caso dos manuais de HARTLEY e de CHm. Este último, aliás, estuda todo o chamado Direito Institucional sob o título global de Direito Administrativo Europeu. Ou então, é o método que, sem o transporem para as epígrafes dos seus livros, seguem alguns outros Autores quanto à substância do Direito da União, como é o caso de SIMON'. Constitutionalism beyond the State, Cambridge, 2003, e J. WBILER/G. DE BÚRCA (eds.), The Words of European Constitutionalism, Cambridge, 2012. Em Portugal, veja-se, sobretudo, CANDTlLHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7." ed., Coimbra, 2003. pgs. 207 e segs. e 1372 e segs. 3 É a posição que temos defendido em diversos estudos, que serão citados ao longo das páginas seguintes, sobretudo a partir do nosso Relatório Direito Comunitário I - Programa, conteúdos e métodos de ensino, Coimbra, 2000, pgs. 44 e segs.. sobretudo. 50-53. 4 C.-A COLLlARD, Cours de Droit Administratif Européen, Paris, 1967-68, pg.4. 30 3. Primeira noção do objeto deste livro Para a correta compreensão do objeto deste livro, impõe-se que desde já fique esclarecido, ainda que de modo apenas embrionário, o que é que nele se vai estudar. O Direito da União Europeia consiste, como já dissemos, e numa ideia ainda inicial, na Ordem Jurídica da integração europeia. Pese embora a existência já de alguns espaços vocacionados para a integração à data da criação das Comunidades Europeias, nos anos 50 (como era o caso do Benelux), estas traduziram-se na primeira tentativa, na História Universal, de criação, no plano transnacional, de um espaço geo-político com vocação para a integração plena, quer dizer, para a integração, não apenas económica, mas também política. Até então a Comunidade Internacional conhecia quase apenas relações jurídicas interestaduais, de mera coordenação horizontal das soberanias dos Estados. Por isso, a sua Ordem Jurídica, o Direito Internacional, era, quase SÓ, uma Ordem Jurídica vocacionada para dirimir conflitos entre Estados, ditados pelo individualismo destes no plano internacional. Foi a fase do Direito Internacional como, predominantemente, Direito da Paz e da Guerra. Designadamente, o indivíduo era mais um objeto de um dever de proteção da parte dos Estados do que um sujeito autónomo do Direito Internacional, titular de direitos conferidos diretamente pelo Direito Internacional. , Pg.451. 31 Introdução Questões preliminares Desta vlsao societária tradicional do Direito Internacional afastou-se o Direito Comunitário, opondo-lhe uma conceção comunitária das relações entre Estados, baseada, não no individualismo destes, mas na solidariedade entre eles, que visava a criação, entre os Estados envolvidos, de um espaço de integração. A palavra integração não fora até então conhecida no plano transnacional, porque constituía monopólio do Direito Constitucional interno e da Teoria do Estado, ao dar forma ao conceito de Estado'. Mas, embora se possa conceber o fenómeno da integração alheado de aspetos políticos e virado apenas para a Economia (e, assim, se falou até ao Tratado da União Europeia, de 1992, em integração europeia quase limitada aos aspetos económicos), desde o Plano Schumann, de 1950, que para a integração europeia está fixado o fim último da federação política. A integração europeia não dispensa, porém, o papel dos Estados, nem faz desaparecer o conceito de soberania: apenas consagra a teoria da limitação da soberania estadual. Dito doutra forma, o motor da integração vai ser a bivalência - melhor: a dialética entre, por um lado, a integração e, por outro, a soberania ou a interestadualidade. Eessa construção, ainda que sempre tenha encontrado expressão nos Tratados, obteve neles uma concretização ainda mais acentuada a partir do Tratado da União Europeia, de 1992, quando este veio criar a União através de um diálogo entre a integração (expressa no pilar comunitário) e a interestadualidade (materializada nos seus dois pilares intergovernamentais). A partir do Tratado de Lisboa, como veremos, esta separação entre pilares esbateu-se muito, sem, contudo, desaparecer, mas, mesmo assim, aquela bivalência manteve-se, porque é da essência do processo de integração. É este o pano de fundo sobre o qual se desenvolve hoje a Ordem Jurídica da União Europeia, como ficará demonstrado ao longo das páginas que se seguem. Sublinhe-se, entretanto, e só de passagem, que o próprio Direito Internacional tem vindo, há muito tempo, a abandonar gradualmente a sua natureza de Ordem Jurídica de coordenação das soberanias estaduais para se deixar imbuir, em largos domínios, pelo espírito de solidariedade e de integração, e, portanto, para admitir, também ele, a limitação da soberania dos Estados e a colocação destes numa relação de subordinação (e não de mera cooperação intergovernamental) em relação ao Direito Internacional. Para além do exemplo clássico, porque antigo, da submissão dos Estados ao poder sancionatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas, isso nota-se, de modo particular, na valorização do indivíduo como sujeito do Direito Internacional, especialmente no quadro da proteção internacional dos Direitos do Homem, de que constituem principais sintomas o crescente alargamento do ius cogens internacional, sobretudo através da progressiva universalidade dos Direitos do Homem, e a mais recente evolução do Direito Penal Internacional'-8. 6 Vejam-se sobre esta matéria, as obras clássicas de G. JELLINEK, Allgemeine Staatslehre, 4. a 00., Berlim, 1922, e H. KELSEN, Der Staat ais Integratian, Viena, 1930. 7 Nesta aceitação pelo Direito Internacional Público do princípio da limitação da soberania dos Estados teve importante influência o Direito Comunitário vejam-se as obras citadas na nota seguinte e também FROWEIN (ed.), The contributioll ofthe European Unioll to lhe Public Internalianal Law, Oxford, 2002, pgs. 171 e segs., e GAUTRON, L'ardre juridique conullunautaire et le tiroU international: quelles articulariam?, in Droit communautaire et globalisation, Tunis, 2003, pgs. 43 e segs. 8 Sobre a matéria deste número, ver a obra básica de PESCATORE, Le drai!, e, com citação de muito boa doutrina, a nossa dissertação de doutoramento, Direito das Comunidades Europeias e Direito Internacional Público, Lisboa, 1984, reimpressa em 1991, sobretudo pgs. 250 e segs., 336 e segs., 379 e segs. 32 33 CAPÍTULO II A HISTÓRIA DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA Bibliog especial: P. REUTER, Le Plan Schuman, RCADI rafla 1952-Il, pgs. 519 e segs.; JEAN MONNET, Les États-Unis d'Europe ont commencé. La Comnumauté européenne du charbon et de {'acia. Discours et allocutions 1952-1954, Paris, 1955; B. VOYENNE, Histoire de l'idée européenne , Paris, 1964; J. LECERF, Histoire de ['unité européenne, Paris, 1965; W. HALLSTEIN, Der unvollendete Bundesstaat, Viena, 1969; J.-B. DUROSELLE, L'idée d'Europe dans I'Histoire, Paris, 1965; JEAN MONNET, Mémoires, Paris, 1976; R. ARON, Defesa da Europa decadente, Lisboa, 1977; JOÃo AMEAL, História da Europa, 5 vals., Lisboa, 1982-84; F. DE QUADROS, Direito das Comunidades Europeias e Direito Internacional Público, dissertação, cit., sobretudo pgs. 115 e segs., 129 e segs. e 259 e segs.; F. DE QUADROS, Recordando Jean Monnet, Lisboa, 1989; J. BOUDANT e M. GOUNELLE, Les grandes dates de l'Europe comnmnautaire, Paris, 1989; DENIS DE ROUGEMONT, 28 sii~cles d'Europe, Paris, 1990; S. WOOLF, Napoléo n et la conquête de l'Europe, ne Paris, 1990; A.-I. ARNAUD, pour une pensée juridique européen , Paris, 1991; D. SIDJANSKI, L'avenir fédéraliste de ['Europe, Paris, 1992; JAC1NTO NUNES, De Roma a Maastricht, Lisboa, 1993; R. PÉREZ_BUSTAMANTE, Historia política de la Unión Europea, 1940-1995, Madrid, 1995; N. DAVIES, Europe -A History, Oxford, 1996; P. HABERLE, Europdische Rechtskultur, Baden-Baden, 1997; M.-T. BlscH, Histoire de la construction européenne, Paris, 1999; COM1SSÃO EUROPEIA (ed.), Retire et compléter la Déclaration du 9 Mai 1950, Bruxelas, maio de 2000; V. CONSTANTINESCO, Vers quelle Europe, Europefédérale, confédération européenne, fédération d'États nations, Les cahiers français 2000, pgs. 298 e segs.; FL. CHALTlEL, La souveraineté de l'État et l'Union européenne, l'exemplejrançais, recherches sur la souveraineté de l'État membre, dissertação, Paris, 2000; G. BossUAT, Lesfondateurs de I'Europe [mie, Paris, 2001; G. BOSSUAT e outros (ed.), Dictionnaire 35 Introdução juridique de l'unité européen, Bruxelas, 2001; P.-F. SMETS, Les peres de I'Europe: 50 ans apres, Bruxelas, 2001; A. ALcocK, A short History of Europe - From the Greeks and Romans to the presente day, Londres, 2002; MARIA MANUELA TAVARES RIBEIRO (coord.), Identidade europeia e multiculturalismo, Lisboa, 2002; D. WU.LOWEIT e U. SElF, Europiiische Verfassungsgeschichte, Munique, 2003; A. LEVADE-CASSIN (dir.), La Constitution européenne, Bruxelas, 2004; A. LAMASSOURE, Histoire secréte de la Convention européenne, Paris, 2004; A. WILKENS (dir.), Le P/an Schwnan dans /'histoire. Intérêts nationaux et proje! européen, Bruxelas, 2004; O. DE SCHUTIER e P. NIHOUL, Une Constitution pour l'Eurape, Bruxelas, 2004; G. REALE, Les racines culturelles et spirituelles de l'Eurape, Paris, 2005; C. ZoRGBIBE, Histoire de I'Union européemle, Paris, 2005, e muito boa bibliografia complementar; F. DE QUADROS, Les scéllarios pour sortir de l'impasse du Traité Constitutionnel européen, Europe's challellges in a globalised world, Global Jean Monnet Conference, 8th ECSA World Conference, Bruxelas, 23 e 24-11-2006, ww. ec.europe/education/programmes/ajmlorganisatioll/globalised_world/index_en.htrnl; B. VAYSSIERE, Vers une Europe fédérale?, Bruxelas, 2006; F. LAURSEN (ed.), The rise andfall afthe EU's canstitutional treaty, Leiden, 2008; F. DE QUADROS, Vinte e cinco anos de aplicação do Direito da União Europeia em Portugal, Europa - Novas Fronteiras, 2010, pgs. 73 e segs.; Direção-Geral de Educação e Cultura da Comissão Europeia, The European Union afier the Treaty of Lisbon, ed. bilingue, Bruxelas, 2011. SECÇÃO I Da AntiguIdade até ao fim da Segunda Grande Guerra 4. A ideia da Europa ao longo da História Desde tempos imemoriais que poetas, romancistas, pensadores, filósofos, historiadores, politólogos e sociólogos, se ocupam da ideia da Europa. Numa obra de elevado rigor no plano da investigação, DENIS DE ROUGEMONT mostra-nos que esse trabalho já vem de há vinte e oito séculos (contados até ao século XX). Foi o poeta HESfoDO, no século VIII a.c., quem, na Teogonia ou O Nascimento de Deus, utilizou pela primeira vez a palavra 36 A História da integração europeia Europa. Foi seguido nisso por HIPÓCRATES, que distinguiu a Europa da Ásia, por HERÓDOTO, por SÓCRATES, por ARISTÓTELES e por PLATÃO. Foram, portanto, os Gregos que, na Antiguidade, criaram uma noção geográfica da Europa: um espaço vasto, ainda pouco definido nos seus contornos, mas que era apresentado como indo do Atlântico aos Urais e englobando diversos povos e raças, com diferentes línguas e culturas. Fenómenos de vária ordem, designadamente de natureza climatérica, levaram muitos povos a mudar de local, e, inclusivamente, cedo conduziram a um intercâmbio com povos distintos, até da Ásia. Portanto, o primeiro sentimento de unidade em torno da Europa foi o dessa unidade geográfica. A Antiguidade Clássica difuncliu, nestes moldes, a palavra Europa, para o que contou com o apoio da mitologia. De facto, segundo a lenda, uma jovem e bonita fenícia, filha de Ajenor (Rei de Tiro e de Fenícia e descendente de Neptuno e de Teléfasa), foi raptada por Zeus, tendo-se depois transformado num grande touro branco e conduzida a Creta, onde se converteu em Rainha e Mâe dos Reis da Dinastia de Minos. Por sua vez, a Bíblia, nos Capítulos 9 e 10 do Géneses, tem permitido a alguns historiadores uma construção diferente: os três filhos de Noé, ou seja, Sem, Cam e Iafet, ter-se-iam espalhado pelo mundo, ficando a Ásia para Sem, a África para Cam e a Europa para os descendentes de Iafel. Com base no pensamento dos Autores acima referidos, o Humanismo greco-latino começa a dar um conteúdo ideológico à ideia de Europa. CARLOS MAGNO (768-814 d.C.) é o primeiro chefe político a interpretar, nesses termos, a unidade da Europa. A Europa identifica-se, desse modo, na Idade Média, com a Cristandade. É logo então que se afirmam as raízes cristãs da Europa: a "Europa Cristã" é a Respublica Christiana, que nos surge também como o berço do Direito Internacional'. Nesta construção é determinante o contributo dos Doutores da Igreja, designadamente S. TOMÁS DE 9 Veja-se, nesse sentido, A. TRUYOL Y SERRA, Génese e! fondements spirituels de {'idée d'une COlJlmul1auté Universelle, Lisboa, 1956. 37 ~'; Introdução A História da integração europeia AQUINO. A Europa ganha, pois, unidade ideológica, ou, se se preferir, unidade espiritual, como, aliás, já em \308 era reconhecido por DANTE, no seu Tratado De Monarchia 10. Contudo, na viragem da Idade Média para o Renascimento, a Europa divide-se: no plano político, através da afirmação enfática da soberania dos Estados e dos conflitos que daí decorreram; no plano religioso, por intermédio da Reforma; no plano económico, mediante o crescimento do nacionalismo e, por isso, da concentração das rivalidades económicas. Perante esse movimento, fracassaram o Projeto para a Paz Perpétua, de JEAN JACQUES ROUSSEAU, de 1760, o Plano para uma "Paz Perpétua", de EMANUEL KANT, de 1795 (que propunha a criação de uma Confederação de Estados europeus fundada numa Constituição republicana), bem como o Plano para uma Paz Universal e Perpétua, de JEREMIAS BENTHAM, de 1843. Para obviar aos inconvenientes dessa situação, a Inglaterra veio defender o "equilíbrio europeu", como fórmula de se resolver os litígios que fossem ocorrendo na Europa. O século XIX nasce com o escrito de SAINT SIMON e THIERY intitulado" Da organização da sociedade europeia ou da necessidade e dos meios de juntar os povos da Europa numa só unidade politica, conservando em cada um a sua independência nacionaf'. É com o mesmo espírito que, no rescaldo do Congresso de Viena, as cinco potências da época (a Inglaterra, a França, a Áustria, a Prússia e a Rússia), às quais se junta depois a Turquia, criam o "concerto europeu", como herdeiro da Santa Aliança. Ele duraria até à cisão entre, por um lado, a Inglaterra, a França e a Rússia, e, por outro lado, a Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Tudo isto significa que, na época do Renascimento, a Europa, com todas essas limitações, foi construindo uma identidade cultural, com os contributos referidos e também com os de GÓRRES, LEIBNITZ e VICTOR HuGO. E que, nos séculos XVIII e XIX, nos surgem as primeiras manifestações de uma solidariedade política entre os Esta- dos soberanos da Europa, ainda que, como se mostrou, marcada por profundas divisões. No dealbar do século XX, aprofunda-se o exacerbamento dos nacionalismos, iniciado nos finais do século XIX. Tendo como traduções o empolamento do jus belli e o livre-cambismo económico, ele desemboca na La Grande Guerra, de 1914-18. A divisão vencera os esforços para a criação de uma unidade na Europa 11. 10 Vej a-se a História, particularmente desse período, bem retratada em R. Geschichte der Staatsideen, lO,a ed., Munique, 2003, pgs. 48 e segs .. ZIPPELIUS, 38 5. Os projetos de integração europeia após a 1." Grande Guerra No rescaldo da Guerra, os Estados europeus tomam consciência da sua fragilidade e dos perigos da sua desunião. Por isso, pela primeira vez surgem propostas para a associação dos Estados da Europa. HEERFORDT sugere a Europa Communis; COUDENHOVE-KALERGl apresenta a proposta da Pan-Europa; diversos escritos políticos defendem a criação, como condição para a Paz na Europa, de uma "Nação europeia" e do "federalismo europeu", sem que, todavia, estas noções apresentem grande rigor jurídico. Contudo, este movimento aprofunda-se com a divulgação do Manifesto Pan-Europeu, em Viena, em 1927, no mesmo ano em que o alemão WLADIMIR WOYTINSKY publicava em Bruxelas o seu livro Les États-Unis d'Europe. Era a primeira vez que, no vocabulário político, se ia tão longe, embora a proposta contida no livro - de uma União Aduaneira Europeia como transição para uma "União Europeia de tipo confederal" - contivesse elementos muito confusos à luz dos conceitos dos nossos dias. Com o andar do movimento acabado de referir, não surpreendeu que um estadista de renome na época, o Primeiro-Ministro francês ARISTIDES DE BRIAND (o mesmo que em 1928 apresentara, com KELOGG, Secretário de Estado norte-americano, o célebre Pacto Briand-Kelogg, que assinalou um passo importantíssimo para a Paz no Mundo), tivesse divulgado, em 1929-30, o Memorando Briand, onde propunha para a Europa "uma espécie de união federal", por li BOSSUAT, Vejam-se, sobre a matéria deste número, sobretudo, ROUGEMONT, Les fondateurs, DAVIES, ALCOCK, VOYENNE. 39 AMEAL, Introdução A História da integração europeia influência manifesta do sistema federal norte-americano. Essa proposta veio, contudo, e infelizmente, em má altura: em 1929 iniciava-se a Grande Depressão nos Estados Unidos, que depressa se contagiou à Europa. Mostra-nos a História que em época de depressão económica é difícil falar-se de solidariedade ou de união entre os Estados atingidos, porque a depressão fomenta a adoção pelos Estados de medidas egoístas e unilaterais de defesa em face da crise, o que os faz fecharem-se sobre si próprios e, dessa forma, estimula os nacionalismos. Foi O que aconteceu. A Grande Depressão terminou em 1932, mas ficara aberto o caminho para os nacionalismos, no pior sentido da expressão, sobretudo na Alemanha, mas também na Itália, que conduziriam à 2.' Grande Guerra. Por isso, os esforços de grandes pensadores como PAUL VALÉRY, ORTEGA YGASSET e MIGUEL DE UNAMUNO, no sentido de injetarem uma componente humanista e social nos esforços de união na Europa, não tiveram seguimento. Em face das destruições da Guerra, que não haviam poupado nem vencedores, nem vencidos, nem em meios materiais, nem em vidas humanas, WINSTON CHURCHlLL, num discurso proferido em 19 de setembro de 1946, na Universidade de Zurique, lança um veemente apelo à reconciliação franco-alemã e convida à criação dos "Estados Unidos da Europa". Convém ler-se o discurso de CHURCHILL na íntegra 13, para se compreender que ele deixava em aberto o preenchimento desta noção, em termos tanto políticos como jurídicos, embora se reclamasse do pensamento de COUDENHOVE-KALERG1, já acima referido. O discurso de CHURCHlLL obteve eco. É assim que, em 17 de dezembro desse mesmo ano, é fundada em Paris a União Europeia dos Federalistas, que pouco depois se transformou, como veremos, no Movimento Europeu. Essa União, logo nessa altura, anuncia a sua vocação federalista. Ela agrupava numerosos movimentos federalistas, que entretanto se tinham formado na Europa ocidental e entre os emigrados da Europa oriental. Dentro desses movimentos destacavam-se, desde logo, personalidades tão diferentes como HENRI FRENAY, ALTlERO SPINELLI e HENRY BRUGMANS, entre outros. Alguns meses mais tarde, a 5 de junho de 1947, é proposto o Plano Marshall. A recusa do bloco soviético em participar nesse Plano marca a cisão entre os dois blocos, o ocidental e o de leste, e o início da guerra-fria. Em 16 de abril de 1948, dezasseis Estados instituem a Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE). Já antes disso, porém, em 1 de janeiro desse ano, entrara em vigor a Convenção Aduaneira entre a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo (o Benelux), que criava uma pauta aduaneira externa comum, embora se mantivessem obstáculos às trocas entre os três Estados, e, em 17 de março do mesmo ano, era assinado OTratado de Bruxelas, que instituía a União da Europa Ocidental (UEO), entre a Bélgica, a França, o Luxemburgo, os Países Baixos e o Reino Unido. SECÇÃO II Do fim da Segunda Grande Guerra até aos nossos dias 6. O início da integração europeia Por isso, a integração europeia, tal como a vivemos hoje, só se iniciou depois da 2." Grande Guerra. Ou seja, a História da integração europeia acaba por se diluir na matéria mais vasta da História Política e Económica da Europa na segunda metade do século XX e até hoje. Não cabe na índole deste livro proceder-se aqui ao estudo dessa História, que se traduz numa p81te importante da História Universal do século passado. Além disso, a História Política e Económica da Europa após a Guerra de 1939-45 deve fazer hoje parte da cultura geral do cidadão europeu I2 • 12 também especial Ver sobre esse período as obras gerais indicadas no início deste livro e GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 575 e segs.. Dentro da bibliografia V., de modo especial, BiTSCH. 40 13 D. CANNADINE Ced.), Tlte Speeches 01 Winston Churchill, Londres, 1990, pgs. 310 e segs. 41 Introduçao I ] Aquele Tratado previa assistência mútua entre os Estados signatários em caso de agressão. Entretanto, entre 8 e 10 de maio do mesmo ano de 1948, reúne-se, sob a presidência de CHURCHILL, o Congresso de Haia, onde participam oitocentos delegados, vindos de dezanove Estados. No seguimento deste Congresso, no mesmo ano, em 25 de outubro, é criado, em Bruxelas, o Movimento Europeu, já atrás referido, que teria como presidentes honorários CHURCH]LL, LEüN BLUM, PAUL-HENRY SPAAK e ALCIDE DE GASPERI. O Congresso de Haia faz sua a proposta de criação dos "Estados Unidos da Europa", de CHURCHtLL, mas claramente no sentido do Memorando Briand, isto é, sob forte influência do sistema federal norte-americano. Note-se que a República Federal da Alemanha só teria a sua Lei Fundamental em 1949, pelo que o federalismo alemão do pós-guerra não podia ainda, nesta fase, servir de modelo de inspiração para os adeptos da integração europeia. Pouco depois, a 28 de janeiro de 1949, por iniciativa do Reino Unido, este, a França e os três Estados do Benelux deliberam instituir um Conselho da Europa, cuja sede é estabelecida em Estrasburgo. O respetivo Estatuto viria a ser assinado em 5 de maio, em Londres. Poucos dias antes, em 4 de abril, fora assinado, em Washington, o Tratado do Atlãntico Norte, que criava a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Se a OECE dava corpo à cooperação económica entre os Estados da Europa Ocidental, com o pretexto de gerir o Plano Marshall, o Conselho da Europa e a OTAN (esta, ainda que não fosse uma Organização apenas europeia) visavam servir de suporte à cooperação política e militar entre eles. O bloco de leste, por sua vez, responderia a este reforço de cooperação entre os Estados ocidentais com a instituição, também em 1949, do Conselho de Assistência Econ6mica Mútua (CAEM, ou também COMECON, sigla derivada de Communist Economy). 42 A História da integração europeia 7. Do Plano Schuman à criação das Comunidades A criação do Conselho da Europa, numa base essencialmente de cooperação intergovernamental, retirava, pelo menos no imediato, do processo de integração, o elemento político. Por isso, os fundadores da integração europeia decidem começar o processo pelo método funcional, ou funcionalista, ou da integração sectorial'4. Assim, em 9 de maio de 1950, o Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, ROBERT SCHUMAN, propõe o Plano Schuman. Este Plano visava "colocar o conjunto da produção franco-alemã do carvão e do aço sob uma Alta Autoridade comum, numa organização aberta à participação dos outros Estados europeus". Por que é que se começava pelo carvão e pelo aço? Por duas razões: primeiro, porque era uma forma de aproximar a França e a Alemanha, o que, como veremos, o Plano Schuman concebia como um meio fundamental de se criar uma Paz duradoira na Europa; segundo, por uma elevada razão simbólica, que residia no facto de que eram esses os dois setores económicos que mais tinham alimentado o esforço da Guerra. O Plano Schuman deve ser visto, pois, como a verdadeira Carta fundadora da Europa Comunitária. O Plano Schuman inspirava-se no Plano de modernização e de equipamento francês, elaborado por JEAN MONNET, em 1945, e, mais proximamente, num memorando redigido pelo mesmo estadista em 3 de maio de 1950. Daí que seja correto afirmar-se que o verdadeiro autor daquele Plano foi JEAN MONNET 15 • O Plano Schuman definia, simultaneamente, o modo de integração proposto e os fins que se lhe apontavam. Quanto ao modo proposto, ele adotava, como se disse, o método funcional, começando pela integração ao nível do carvão e do aço. Correspondentemente, a integração proposta era gradual ou evolutiva. Dizia-se naquele Plano: "A Europa não se fará de ime14 Sobre aquilo em que este método consistiu e como ele evoluiu, ver a boa bibliografia citada na nossa dissertação de doutoramento, atrás referida, sobretudo pgs, 115 e segs" e o que nós próprios aí escrevemos sobre a matéria. 15 Veja-se o nosso ensaio Recordando Jean Monnet e também a nossa dissertação de doutoramento, pg. 120, n. 337, 43 Introdução A História da integração europeia diato, mas numa construção conjunta; ela far-se-á através de realizações concretas, pela criação, para começar, de uma solidariedade de facto". Quanto aos fins da integração, o Plano era claro ao ligar as causas da integração aos objetivos prosseguidos, imediatos e mediatos. Defendia ele que era urgente consolidar-se a Paz na Europa. Para tanto, era necessário começar por se pôr termo à "oposição secular entre a França e a Alemanha": de facto, "foi porque a união da Europa não foi antes alcançada que tivemos a Guerra" (a 2.' Grande Guerra). Por isso, da execução do Plano, dizia ele, resultariam "os primeiros passos concretos para uma Federação isso, em 27 de maio de 1952 assinam em Paris o Tratado que criava a Comunidade Europeia de Defesa (CED). Note-se que a criação desta Comunidade fora estimulada, de modo especial, pela OTAN, na reunião do seu Conselho que teve lugar em Lisboa, em fevereiro desse ano. Preocupada com o rumo dos acontecimentos, o Reino Unido tenta alterá-lo. Para tanto, faz a Assembleia Consultiva do Conselho da Europa aprovar o Plano Eden, segundo o qual o Conselho da Europa absorveria as Comunidades supranacionais já criadas ou a instituir. Mas a Alemanha e a Itália vetam esse plano no Comité de Ministros do Conselho da Europa e ele, por conseguinte, é abandonado. Com o estímulo que advinha da assinatura do Tratado CED, a Assembleia ad hoc, criada em 10 de setembro de 1952, aprova o projeto de Tratado que instituiria uma Comunidade Política Europeia (ComPE). Essa Comunidade teria como objeto salvaguardar os Direitos do Homem, garantir a segurança dos Estados-membros contra qualquer agressão, coordenar a sua política externa e estabelecer progressivamente um Mercado Comum. Ela absorveria, desse modo, a CECA e a CED. Ou seja, o método funcional seria substituído, na integração europeia, pelo método global, que, aliás, fora o único pensado no Congresso de Haia 17 • O projeto do Tratado ComPE ficou redigido em 15 de março de 1954. Todavia, já depois de todos os outros parlamentos nacionais o terem aprovado, a Assembleia Nacional francesa, em 30 de agosto de 1954, recusa a ratificação do Tratado que criava a CED. Esse facto leva ao abandono do projeto do Tratado que instituiria a ComPE: não fazia sentido uma Comunidade Política Europeia sem a integração no plano militar, ou seja, sem a criação de um "exército europeu" com um comando unificado. Na sequência destes acontecimentos, JEAN MONNET, que, por escolha dos Estados, era o primeiro Presidente da Alta Autoridade da CECA, pede a exoneração do cargo e retira-se da vida política. europeia indispensável à preservação da Paz" e "assente na Paz, na solidariedade europeia e no progresso económico e social"l'. O Reino Unido reage, logo em 2 de junho, ao Plano Schuman: ele rejeita a ideia de uma entidade dotada de poderes supranacionais. Mas, no dia seguinte, a Alemanha, a Itália e os três Estados do Benelux resolvem aderir àquele Plano. Das negociações então iniciadas resultaria a assinatura, pelos Seis, em 18 de abril de 1951, do Tratado que instituía a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), cuja entrada em vigor ficou marcada para 25 de julho de 1952. Mas a clivagem entre o Reino Unido e os outros Estados da Europa Ocidental ir-se-ia agravar. Em lO de dezembro de 1951, SPAAK abandona a presidência da Assembleia Consultiva do Conselho da Europa em sinal de protesto contra a atitude muito reservada do Reino Unido em relação à integração europeia. Ele proferiu na altura esta declaração, que ficou célebre: "Para a Europa, a alternativa é simples: ou alinhar-se pelo Reino Unido e renunciar à construção da Europa, ou tentar-se construir a Europa sem o Reino Unido. Eu, pelo meu lado, escolhi a segunda hipótese". Entusiasmados com a criação da CECA, os Seis decidem retomar a componente política do processo de integração, que fora sugerida pelo Congresso de Haia mas havia sido abandonada pela criação do Conselho da Europa numa base intergovernamental. Por 16 Sobre o Plano Schuman, V., especialmente, a análise que dele faz REUTER, Le Plan Schuman, e, mais recentemente, WILKENS. 44 17 Veja-se, outra vez, a nossa dissertação de doutoramento, loco cif.. 45 Introdução A História da integração europeia Convencidos de que não estavam ainda preparados para a integração em domínios políticos, os Seis regressam à integração sectorial. Por isso, resolvem relançar a integração económica na Conferência de Messina, de junho de 1955. Aí é aprovada a criação de um "Mercado Comum Europeu" e de uma Comunidade para a energia nuclear. Na sequência disso, o Relatório Spaak, de maio de 1956, inclui os projetos de dois Tratados, visando criar, respectivamente, a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA ou Euratom). As negociaçães em torno dos dois projetos andam depressa e, em 25 de março de 1957, são assinados em Roma, dois Tratados, que criam aquelas Comunidades, embora só o que criou a CEE tenha ficado conhecido por Tratado de Roma. Subsidiariamente, na mesma data e no mesmo local, é assinado um terceiro Tratado, em bom rigor, o terceiro Tratado de Roma, intitulado Convenção relativa a certos órgãos comuns às Comunidades Europeias, que criou para as três Comunidades uma única Assembleia, um único Tribunal e um único Comité Económico e Social. Era o primeiro "Tratado de fusão" de órgãos comunitários. O segundo Tratado de fusão, verdadeiramente o único conhecido como tal, viria a ser o Tratado que cria um Conselho único e uma Comissão única para as Comunidades Europeias, e seria assinado em 8 de abril de 1965. Os três Tratados de Roma entram em vigor em I de janeiro de 1958. Nessa data, com a existência das três Comunidades, fica definido o esqueleto da integração que iria durar até I de janeiro de 1993. Logo a seguir, os Seis escolhem para primeiro presidente da Comissão da CEE o alemão WALTER HALLSTEIN, Professor de Direito Público em Heidelberga e que fora Ministro dos Negócios Estrangeiros de ADENAUER. Comunidades, o Reino Unido toma a iniciativa de criar uma simples zona de comércio livre. Convence a aderir a esse projeto Estados que, por razões económicas e políticas, não aspiravam a aderir às Comunidades, pelo menos no imediato: era o caso da Áustria, da Dinamarca, da Noruega, da Suécia, da Suiça e de Portugal. Todos estes Estados e o Reino Unido assinam, em 4 de janeiro de 1960, a Convenção de Estocolmo, que cria a Associação Europeia de Comércio Livre (EFrA, na sigla inglesa, AELE, na sigla francesa). Nesse mesmo ano, a OECE dava por esgotado o seu objeto - a recuperação da Europa, destruída pela Guerra, e a administração do Plano Marshall- e cedia o seu lugar à OCDE. Esta nova Organização era muito mais ambiciosa do que a sua antecessora: não era uma Organização meramente europeia e estava aberta a todos os Estados de Economia de Mercado; preocupava-se, de modo especial, com o desenvolvimento; e não prosseguia finalidades meramente económicas. Entretanto, em 5 de setembro de 1960 o Presidente CHARLES DE GAULLE surpreendia os seus parceiros das Comunidades ao propor o reforço da cooperação política entre os Seis e a instituição, para o efeito, da União Política Europeia, a criar mediante um referendo europeu. Esta ideia dava corpo à conceção da "Europa das Pátrias"". A proposta de DE GAULLE encerrava, em si mesma, uma contradição substancial. De facto, ao mesmo tempo que defendia a "unificação" da Europa, ela aceitava que os órgãos da União tivessem só atribuições "técnicas", nos domínios da Política, da Economia, da Cultura e da Defesa, e recusava que eles exercessem "autoridade sobre os Estados". Foi esta conceção de DE GAULLE que se materializou num projeto de tratado que ficou conhecido por Plano Fouchet. Este defendia a criação de uma União Política confederal, melhor dito, uma união indissolúvel dos Estados-membros, com personalidade jurídica própria, e "baseada no respeito pela personalidade dos Povos e 8. Da criação das Comunidades ao primeiro alargamento ! Pressentindo os efeitos perniciosos para si, do facto de ter ficado à margem da CEE, mas, ao mesmo tempo, continuando a não estar disposto a aceitar a conceção supranacional que presidia às três 18 Constitui um erro histórico muito frequente atribuir-se esta conceção a DE. GAULLE: o seu autor foi o Primeiro-Ministro francês MICHEL DÉBRÉ, em 1959 - veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pg. 146, n. 400, e demais bibliografia aí citada. 46 47 :I 1 '. , I Introdução A História da integração europeia dos Estados-membros". Era a segunda tentativa - a primeira ocorrera, como vimos, em 1952 - de se criar uma Comunidade Política Europeia de caráter global. Mas também esta tentativa não teve sucesso, porque a ideia da União Política não foi aceite por alguns dos outros Estados-membros das Comunidades. Dela, todavia, a França e a Alemanha aproveitam, num plano puramente bilateral, a ideia da cooperação política, que se materializou no Tratado de Amizade e Cooperação entre aqueles dois Estados, assinado em Paris por DE GAULLE e ADENAUER (dois dos estadistas europeus carismáticos do pós-guerra), em 22 de janeiro de 1963 (também conhecido por Tratado do Eliseu). no fim da década de 90, e que o Plano Tindemans viria a estar presente em todas as tentativas posteriores de criação e de aprofundamento da integração política LO. Entretanto, a Grécia tornava-se, em 1981, no décimo membro das Comunidades, após cinco anos de negociações. Nesse mesmo ano, os Ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e da Itália, respetivamente, HANS-DIETRICH GENSCHER e EMILlO COLOMBO, apresentam, a título pessoal, o Plano Genscher-Colombo, visando dessa forma relançar e aprofundar a integração europeia. A grande novidade desse Plano residia no facto de ele trazer anexo a si uma proposta de um "Tratado sobre a União Europeia". Bem aceite nos seus aspetos políticos, este Plano não teve, no domínio jurídico, melhor sorte do que o Plano Tindemans. Nem mesmo chegou a ser aprovado como declaração de princípios pelo Conselho Europeu, como era desejado pelos seus autores. Maior retumbância teve o chamado Tratado Spinelli. Ele resultou de uma iniciativa do eurodeputado independente, eleito na lista do Partido Comunista italiano, ALTIERO SPINELLl. Este apresentou ao Parlamento Europeu um Projeto de Tratado sobre a União Europeia. O Projeto retomava muitas ideias do Plano Tindemans e, sobretudo, alargava substancialmente as atribuições das Comunidades, que seriam substituídas pela "União Europeia", e os poderes do Parlamento Europeu. Mas a maior inovação do Projeto residia no facto de ele, no art. 82.°, par. 2, permitir que, assim que o Tratado tivesse sido ratificado por uma maioria de Estados-membros das Comunidades cuja população englobasse dois terços da população global das Comunidades, os Estados que honvessem ratificado o Tratado se reunissem para decidir sobre "os procedimentos e a data de entrada em vigor" do Tratado. Todavia, era pacífico na doutrina que os Estados que tivessem ratificado o Tratado não podiam, em qualquer caso, pô-lo em vigor para aqueles que o não tivessem ratificado 20 • 9. Do primeiro alargamento à criação da União Europeia Em face da evolução do processo da integração europeia, o Reino Unido decide pedir a abertura de negociações com as Comunidades com vista à sua adesão. Por duas vezes - em 1963 e 1967 a França opôs-se a essa adesão. Só depois da renúncia de DE GAULLE, em 1969, a Cimeira de Haia desse ano, ao aprovar o tríptico "alargamento, aprofundamento, acabamento", dá uma resposta positiva ao pedido britânico, donde resulta que o Reino Unido, a Dinamarca e a Irlanda aderem em 1 de janeiro de 1973 às três Comunidades. A Noruega, que também negociara a adesão, vê-se obrigada a ficar de fora, porque o povo norueguês recusou, em referendo, o projeto do Tratado de adesão. A Europa dos Seis passava, dessa forma, a Europa dos Nove. Tentando acelerar o processo, a CEE resolve preparar uma União Económica e Monetária. Contudo, três tentativas nesse sentido - o Plano Barre, de 1969, o Plano Weriler, de 1970, e a Iniciativa Jenkins, de 1977 - fracassam, por falta de vontade política. Igual destino teve novo esforço no sentido de se criar uma União Política: o Relatório Tindemans sobre a União Europeia, de 1975. Diga-se, todavia, por respeito pela verdade histórica, que os Planos Barre e Werner se revelaram de grande utilidade na inspiração da União Económica e Monetária, que seria alcançada, como veremos, 48 19 Para ZORGBIBE, o Plano Tindemans representa a primeira tentativa de se dar uma "perspetiva constitucional" à integração europeia - pg. 164. 20 Assim, sobretudo, o Comentário de CAPOTORTl/HJLFIJACOBSIJACQUÉ, Le Traité d'Unioll Européenne, Bruxelas, 1985, pgs. 281 e segs. 49 Introdução A História da integração europeia o Projeto foi aprovado pelo Parlamento Europeu em 14 de fevereiro de 1984. Todavia, também esta iniciativa não teve seguimento, apesar de alguns Estados não terem hesitado em ratificá-Io2l. Em 12 de junho de 1985, Portugal e a Espanha, respetivamente, em Lisboa e Madrid, assinam, com as Comunidades, o respetivo Tratado de adesão. Portugal havia requerido a abertura de negociações em março de 1977 e a Espanha em julho do mesmo ano. O Tratado de adesão entrou em vigor em I de janeiro de 1986. Construía-se, desse modo, a Europa dos Doze, com 320 milhões de cidadãos. Com a entrada dos dois Estados da Península Ibérica aprofundou-se a distância entre os Estados ricos e pobres das Comunidades e, por isso, não admira que tenha sido então que começaram a surgir no léxico da integração europeia expressões como "integração a duas velocidades", "Europa de geometria variável", "Europa à carta", etc. Essas expressões exprimiam a conceção segundo a qual os Estados mais ricos deviam assumir a função de "locomotiva" da integração e gozar das regalias a isso inerentes, podendo, inclusivamente, avançar na integração mais depressa do que os outros 22• Por outro lado, os sucessivos alargamentos das Comunidades haviam tornado imperiosa e urgente a reforma do seu processo de decisão Uá então designada de "reforma institucional") e, ligado a ela, também o aprofundamento da integração. É nesse quadro que surge o Ato Único Europeu. Ele foi aprovado na reunião do Conselho Europeu no Luxemburgo, em 2 e 3 de dezembro de 1985 (ainda com dez Estados-membros), e assinado, já pelos Doze, no Luxemburgo e em Haia, respetivamente em 17 e em 28 de fevereiro de 1986. Ainda que consistisse na primeira revisão substancial dos Tratados de Paris e de Roma, a ele presidiu o critério do "minimalismo pragmático"", de modo a tomar possível a sua ratificação pelos Doze. Mesmo assim, o AUE só entrou em vigor em I de julho de 1987. A principal inovação do AUE residia na previsão da criação do Mercado Interno Comunitário para 1993, dispondo sobre os meios de ele ser alcançado. O Mercado Interno era definido, na redação que o AUE dava ao novo artigo 8. o_A, parágrafo 2, do Tratado CEE, como "um espaço sem fronteiras internas". Ver o texto do Tratado em 10 TI. o C 77, de 19-3-84, o estudo de lACQUÉ, The treaty establishing lhe European Uniol1, CMLR 1985, pgs. 19 e segs., e o citado Comeotário de CAPOTORH et aI. 22 Sobre o alargamento das Comunidades a Portugal e à Espanha, ver QUADROS, Les problemes politiques et constitutionnels de l'élargissement, in J. W. Schneider (ed.), FIOm Nine to Twelve: Europe's destiny?, Alphen ao den Rijo, 1980, pgs. 163 e segs. 21 50 10. A União Europeia: de Maastricht a Nice I - O Tratado de Maastricht Entretanto, com a aproximação de 1993 e, consequentemente, o esgotamento do objeto do AUE, o Conselho Europeu, na sua reunião extraordinária de Dublin, de 28 de abril de 1990, resolve, dando seguimento à iniciativa conjunta do Chanceler HELMUT KORL e do Presidente FRANÇOIS MlTERRAND, de 19 do mesmo mês, convocar duas Conferências Intergovernamentais, visando criar, uma, a União Política, outra, a União Económica (englobando a União Monetária). Dessas duas Conferências Intergovernamentais resulta a aprovação, na Cimeira de Maastricht, de 9 e 10 de dezembro de 1991, de um único Tratado, o Tratado da União Europeia (TUE). A fusão dos dois Projetos de Tratado num só Tratado ficou a dever-se a duas razões: a necessidade de se mostrar que a União Económica e Monetária (UEM) e a União Política eram incindíveis e, concretamente, que a primeira só seria sustentável com a segunda; e o desejo de se evitar vinte e quatro ratificações, o que tornaria penoso, e de resultado incerto, o processo de conclusão dos dois Tratados, pelos então doze Estados-membros. 23 WERNER WElDENFELD, Was ist die Idee Europas?, in Aus Politik und Zeit- geschichte, vo1. 23-2411984, pg. 7. 51 Introdução A História da integração europeia Esse Tratado da União Europeia viria a ser aprovado pelo Tratado de Maastricht, assinado naquela cidade holandesa já durante a presidência portuguesa das Comunidades, em 7 de Fevereiro de 1992. O Tratado de Maastricht levou a cabo a mais profunda e ampla revisão dos Tratados Comunitários desde os Tratados de Paris e de Roma. A grande ambição que o moveu encontra-se bem documentada no primeiro considerando do seu preâmbulo, onde os Estados se declaram, através desse Tratado, "resolvidos a assinalar uma nova fase no processo de integração europeia iniciado com a instituição das Comunidades Europeias" (itálico nosso). Podemos resumir as grandes novidades do TUE às seguintes: ele previa a conclusão da União Económica e Monetária para 1999-2002; as atribuições da integração, elencadas, até então, sobretudo no artigo 2.° do Tratado CEE, deixavam de ser essencialmente económicas, para se estenderem aos domínios social e cultural, como se pode ver pela redação dada pelo Tratado de Maastricht aos artigos 2.° e 3.° do Tratado CE [daí, inclusivamente, o facto de à antiga Comunidade Económica Europeia ter sido retirado o qualificativo de "Económica" e ela ter passado a designar-se apenas por Comunidade Europeia (CE)]; criava-se a "cidadania da União" (Parte II do Tratado CE); era instituída a Política Externa e de Segurança Comum (PESC), ainda que, fundamentalmente, numa base intergovernamental, mas incluindo já a previsão da criação, 4'a prazo", de uma política 'comum de defesa (Título V do Tratado UE); criava-se um mecanismo de cooperação, também de caráter intergovernamental, em matéria de justiça e de assuntos internos, com a sigla ClAI (Título VI do TUE); aprofundava-se a integração em matéria de processo de decisão ao nível comunitário (a chamada "reforma institucional" das Comunidades), atribuindo-se ao Parlamento Europeu um poder de co-decisão em relação ao Conselho e o poder de investir a Comissão, e alargando-se a regra da maioria qualificada nas votações do Conselho em detrimento da regra da unanimidade. O Tratado de Maastricht entrou em vigor em I de novembro de 1993. Entretanto, e também durante a primeira presidência portuguesa das Comunidades Europeias, mais concretamente, a 2 de maio de 1992, era assinado no Porto o Acordo que criou o Espaço Económico Europeu (EEE), que viria a entrar em vigor em I de janeiro de 1994. Esse acordo aprofundava as relações, que já existiam, entre, por um lado, a Comunidade Europeia e os seus Estados-membros, e, por outro lado, a EFTA e os seus Estados-membros: então, a Islândia, o Liechtenstein, a Noruega, a Áustria, a Finlândia e a Suécia. A Suiça, apesar de ter assinado o Acordo, não o ratificou, por o ter recusado por referendo de 6 de dezembro de 1992. O EEE apresenta como sua grande originalidade o facto de os seus Estados se regerem pelo Direito Comunitário na matéria das "quatro liberdades" (de circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais). Ele vinha instituir um espaço económico homogéneo, assente em regras comuns e condições iguais de concorrência, que facilitassem, no futuro, a adesão à União Europeia dos Estados da EFTA. Com a adesão à União Europeia, em 1995, da Áustria, da Finlândia e da Suécia, o EEE viu a sua importância reduzida. Entretanto, com a adesão desses três Estados, a União passou a ter quinze membros. A Noruega, mais uma vez, viu-se impedida, por referendo nacional, de aderir. Na sequência das profundas alterações geopolíticas provocadas na Europa Central e do Leste após o derrube do Muro de Berlim, em 1989, e o desmembramento da ex-União Soviética, em 1991, e da consequente democratização dos Estados que compunham o bloco soviético, muitos desses Estados apressaram-se, logo no início dos anos 90, a manifestar a sua vontade de aderir à União Europeia, não tardando em tornar-se membros do Conselho da Europa (e, mais concretamente, em ser partes na Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e em aderir à OTAN ou em estabelecer com ela laços estreitos. 52 53 II - O Tratado de Amesterdão O TUE previa a sua revisão em 1996 (artigo O). Dai resultou a assinatura do Tratado de Amesterdão, que teve lugar naquela cidade, em 2 de outubro de 1997, como fruto da Conferência lnter- Introdução A História da integração europeia governamental que iniciou os seus trabalhos em 1996, na sequência do programa de revisão fixado pelo Conselho Europeu, na sua reunião de Turim, de 29 de março desse ano. O Tratado de Amesterdão entrou em vigor em I de maio de 1999. Não foram grandes as modificações trazidas pelo Tratado de Amesterdão ao TUE. Na sua preparação imperou um forte pragmatismo: à beira de se entrar na União Monetária, o que aconteceu em I de janeiro de 1999, convinha evitar que se aprofundassem as feri- mental de 2000 preparou uma nova revisão dos Tratados, que desembocou no Tratado de Nice, aprovado naquela cidade francesa na Cimeira de 10 e II de dezembro de 2000, e assinado mais tarde, também em Nice, em 26 de fevereiro de 2001. O Tratado de Nice entrou em vigor em I de fevereiro de 2003. À margem daquela Cimeira, em 7 de dezembro de 2000, mediante uma proclamação conjunta, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão Europeia aprovaram a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Essa Carta não foi incorporada nos Tratados. das abertas pelos avanços, considerados, por alguns Estados, exces- sivos, que haviam sido trazidos pelo Tratado de Maastricht. Todavia, não é correto afirmar-se, como se faz por vezes, que a revisão de Amesterdão absorveu os "restos" de Maastricht, isto é, apenas incluiu nos Tratados o que não havia sido objeto de acordo na revisão de 1992. Trata-se de uma visão demasiado redutora da revisão de Amesterdão. Ela foi mais longe, porque veio criar um "espaço de liberdade, segurança e justiça" (expressão que, entretanto, se tornou emblemática para a União Europeia), através do reforço do pilar comunitário em detrimento do terceiro pilar ou seja, da CJAI. Além disso, ela consagrou avanços em matéria de simplificação, aperfeiçoamento e eficácia do poder de decisão na União (tendo já, para o efeito, em vista os seus futuros alargamentos), de maior aproximação da União quanto aos cidadãos, de reforço do caráter democrático da União e de aumento da sua capacidade de intervenção nas relações externas. II. O Tratado Constitucional Europeu Bibliografia especial: ANA MARTINS, O Projecto de Constituição Europeia, 2. 3 ed., Coimbra, 2004; o número monográfico de O Direito, 2005, IV-V; V. CONSTANTINESCO, Y. PETIT e V. MICHEL, Le Traité établissant une Constitution pour l'Europe - analyses et commentaires, Estras~ burgo, 2005; M. DONY e E. BRlBOSlA, Conunentaire de la Constitution de ['Union européenne, Bruxelas, 2005; J.-c. PIRIS, Le traité cOl1stitution/leI pour ['Europe: une analyse juridique, Bruxelas, 2006. Aproximavam-se, contudo, os novos alargamentos, que se sabia que iriam ser maciços e que iriam abranger Estados, sobretudo da Europa Central e do Leste, muito diferentes entre si, e, seguramente, muito diferentes dos Quinze. Mas não tinham ficado concluídas na revisão de Amesterdão as modificações, no plano institucional, que se julgava serem adequadas e necessárias para adaptar a União a esses alargamentos. Por isso, a Conferência Intergoverna- Todavia, a União Europeia entendia que chegara a hora de aprofundar a integração política. E por duas razões. Primeiro, para se dar base de sustentação à própria União Económica e Monetária já alcançada. De facto, sentia-se há muito que os progressos alcançados na integração económica e monetária não tinham correspondência na integração política. A União tinha alcançado, portanto, como se dizia de modo feliz, o estádio de "um gigante económico mas um anão político". Daí resultava mesmo uma ameaça séria à União Económica e Monetária que, para sobreviver, precisava de uma maior integração política que lhe servisse de suporte. A segunda razão para se aprofundar a integração política residia no facto de ser necessário compensar o efeito diluidor que à integração ia ser trazido pela adesão maciça de tantos e tão diferentes Estados. 54 55 III - O Tratado de Nice Introdução A História da integraçüo europeia Para tanto, a União decidiu atuar em duas fases. Numa primeira fase, e na sequência das conclusões da reunião do Conselho Europeu de Gotenburgo, de julho de 200 I, o Conselho Europeu, na Cimeira de Laeken/Bruxelas, de 14 e IS de dezembro do mesmo ano, aprovaria a constituição de uma Convenção para debater o "futuro da Europa". Por isso, ela veio a chamar-se Convenção sobre o Futuro da Europa (abreviadamente, Convenção Europeia). Essa Convenção, com a qual se quis repetir a experiência da Convenção que havia preparado em 2000 a Carta dos Direitos Fundamentais, e que dera bons resultados, foi composta por cento e cinco membros efetivos (e outros tantos suplentes), que lhe davam tratado internacional que dava corpo a uma Constituição material, como veremos ao longo deste livro. O Tratado foi assinado pelos vinte e cinco Estados membros em Roma, em 29 de outubro de 2004. A assinatura em Roma ocorreu a pedido da Itália, para, simultaneamente, se assinalar o regresso às origens (fôra em Roma, como se viu atrás, que haviam sido assinados, em 1957, os Tratados CEE e CEEA) e a refundação do processo de integração europeia, agora na era constitucional. O Tratado saído da CIG continha algumas alterações em relação ao Projeto aprovado pela Convenção sobre o Futuro da Europa. . Pode dizer-se, em síntese, que o Tratado dava à União Europeia o salto qualitativo que foi possível, isto é, que pôde reunir o consenso dos que participaram na sua feitura. Isso não impedia que se reconhecesse que, no plano substancial, ele ficava aquém das necessidades da União Europeia em face dos desafios que ela então tinha de enfrentar, nomeadamente, nos dOITÚnios da segurança, do combate ao terrorismo, da defesa e da globalizaçãO. Iniciou-se então o processo de ratificação do Tratado pelos Estados, em conformidade com as respetivas normas constitucionais. O início desse processo augurava um percurso não complicado: o Parlamento da Lituânia aprovou o Tratado para ratificação logo em II de novembro de 2004, e, no primeiro referendo a que o Tratado foi sujeito, na Espanha, 76,7% dos votantes aprovaram o Tratado, com uma taxa de participação de 42,3%. Todavia, a França, onde o Presidente da República tomara a iniciativa de referendar o texto do Tratado em 29 de maio de 2005, 54,8% dos cidadãos pronunciaram-se contra o Tratado, sendo o referendo vinculativo. Dias depois, em I de junho, também o povo dos Países Baixos Se pronunciou, em referendo, contra o Tratado, por 61,7% de votos. Aqui, o referendo não era vinculativo, mas o Parlamento havia deliberado previamente que seguiria o sentido de uma composição mista: representação dos governos e dos parlamen- tos nacionais; representação dos órgãos da União e dos Estados-membros. Também participaram nela os treze Estados candidatos à adesão, embora sem o poder de impedir o consenso que se viesse a estabelecer entre os Estados-membros. Desse modo, a Convenção veio a ser composta por, para cada Estado, um representante dos Chefes de Estado ou de Governo (15+13) e dois delegados dos parlamentos nacionais (30+26), e por 16 deputados do Parlamento Europeu e 2 representantes da Comissão. A Convenção apresentou em 20 de junho de 2003, ao Conselho Europeu, reunido em Salónica, o seu Projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. Passou-se, então, à segunda fase, que consistiu na discussão desse Projeto por uma Conferência Intergovernamental convocada para o efeito. Essa CIG iniciou os seus trabalhos em 6 de outubro do mesmo ano e quis terminá-los na Cimeira de Bruxelas, de Dezembro também de 2003, onde, todavia, se constatou que não havia acordo entre os Estados sobre alguns pontos concretos do Projeto. Por isso, os trabalhos da CIG continuaram em 2004, tendo eles desembocado na aprovação, na reunião do Conselho Europeu, em Bruxelas, de 18 de junho de 2004, durante a presidência irlandesa da União, do texto do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, que ficaria conhecido por Tratado Constitucional Europeu ou apenas Tratado Constitucional. Não era, pois, uma Constituição da União Europeia em sentido formal, mas apenas um 56 voto expresso no referendo. Em face da situação criada, o Conselho Europeu, na sua reunião de 16 e 17 de junho de 2005, decidiu levar a cabo uma "reflexão" sobre as inquietações expressas pelos cidadãos franceses e 57 Introdução holandeses, embora deixando claro que o processo de ratificação não seria interrompido. Tomando consciência de que era improvável que a posição dos cidadãos franceses se alterasse antes das eleições presidenciais de 2007, o Conselho Europeu, na sua reunião de 15 e 16 de junho de 2006, resolveu prolongar por mais um ano essa pausa para reflexão. Isso não impediu que muitos Estados, em 2005 e 2006, fossem ratificando o Tratado. Em junho de 2007 (veremos adiante por que razão esta data era um importante ponto de referência) dos vinte e sete Estados-membros dezoito tinham ratificado o Tratado, inclusive Portugal. Sabia-se, porém, que o Tratado não seria ratificado por todos os Estados signatários, desde logo, porque a França o não iria ratificar. De facto, o novo Presidente da República, NICOLAS SARKOZY, tinha afirmado, na campanha eleitoral de 2007, que considerava o Tratado "morto" após o voto negativo do referendo na França. Por tudo isso, a data de I de novembro de 2006, que, em princípio, e sem caráter vinculativo, tinha sido, quando da assinatura do Tratado, prevista como a data da Sua entrada em vigor, foi definitivamente abandonada. É certo que na Declaração por ocasião do 50. o aniversário da assinatura dos Tratados de Roma, mais conhecida por Declaração de Berlim, assinada pelos Estados-membros em 25 de março de 2007, estes comprometiam-se a prosseguir "o objetivo de, até às eleições para o Parlamento Europeu de 2009, dotar a União Europeia de uma base comum e renovada". Só que nada ficou estabelecido então sobre o modo de se alcançar esse objetivo dentro desse prazo, nem ficou definido o que se entendia por "base comum e renovada". Todavia, parecia ser evidente que qualquer alteração a introduzir no Tratado Constitucional já assinado, ou qualquer tratado que Oviesse a substituir, a título provisório ou definitivo, teria de obedecer a um novo processo de ratificação pelos vinte e sete Estados-membros. 58 A Histó/-ia da integração europeia 12. Da Europa de Quinze à Europa de Viute e Sete Abrimos aqui um breve parêntesis na evolução dos Tratados para referir que, entretanto, em I de maio de 2004 aderiram à União dez novos Estados. Foram doze os Estados que negociaram conjuntamente a adesão à União, mas a Bulgária e a Roménia não concluíram as suas negociações a tempo de subscreverem, em 16 de abril de 2003, o Tratado de adesão que englobou os outros dez24 Em I de maio de 2004 tornaram-se, por conseguinte, membros da União, a República Checa, a Estónia, Chipre, a Letónia, a Lituânia, a Hungria, Malta, Polónia, a Eslovénia e a Eslováquia. Repare-se que este segundo alargamento abrangeu oito Estados chamados da Europa Central e do Leste, que, até ao início da década de noventa, eram Estados ditatoriais ou faziam parte integrante da antiga União Soviética. Portanto, este alargamento teve especial significado político para a União, porque se traduziu, antes de mais, numa forma de esta ajudar à reconstrução da Democracia nesses Estados". Isso não significa, contudo, que este alargamento não tenha colocado inúmeros e complexos problemas à Uniâo, alguns dos quais ainda não estão resolvidos. A Roménia e a Bulgária concluíram, entretanto, as Suas negociações para a adesão, de forma a tomarem-se membros da União em I de janeiro de 2007, o que efetivamente aconteceu. O respetivo Tratado de adesão foi assinado em 25 de Abril de 2005 26 • Entretanto, a 3 de outubro de 2005 iniciaram-se formalmente negociações para a adesão da Croácia e da Turquia. O mesmo aconteceu pouco depois com a Macedónia. Desses três processos está concluído o da Croácia, que se tornará no vigésimo oitavo me,mblro da União em I de julho de 2013. O respetivo Tratado de adesão foi assinado em 9 de dezembro de 20 li". " JO de 23-9-2003. Ver GAUTRON, L'élargissement de I'Uniol1 européelllle aux pays de I'Eu~ rape centrale et orienta/e, RAE 1995, pgs. 105 e segs.; M. LEFEBVRE, Le grand bonei vers ['est: une nouvelle Europe, RMC 2004, pgs. 281 e segs. " JO L 157, de 21-6-2005. " JO L 112/21, de 24-4-2012. 25 59 Introdução Este alargamento era inevitável. Como dissemos atrás, em grande parte os novos Estados-membros entravam para a União em busca da consolidação do seu regime democrático, conquistado poucos anos antes e depois de terem vivido durante muitas décadas sob regimes autoritários. Mas a quase duplicação, num ápice, de 2004 a 2007, do número de Estados-membros, de Quinze para Vinte e Sete, tomava mais imperiosa a revisão dos Tratados, que estava em curso, de modo a que estes pudessem dar a resposta adequada nos planos institucional, económico e político, às novas exigências da União alargada. 13. O Tratado de Lisboa Bibliografia especial: além dos Comentários aos Tratados posteriores à assinatura do Tratado de Lisboa, l-C. PIRIS, The Lisbon Treaty - A Legal and PoliticaI Analysis, Cambridge, 2010; P. GRAIG, Tlle Lisbon Treaty - Law, Politics and Treaty Reform, Oxford, 2010; R. STREINZ, C. OHLER e C. HERRMANN, Der Vertrag von Lissabon zur Reform der EU, 3 3. ed., Munique, 201O~ O Tratado de Lisboa, Cadernos O Direito, n,o 5, 2010; LUISA DUARTE, Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2010; M. 1. RANGEL DE MESQUITA, A União Europeia ap6s o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2010; ANA MARTINS, Ensaios sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2011; NUNO PIÇARRA (coord.), A União Europeia segundo o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2011~ INSTITUTO DE C1I::NCIAS JURfDICO-PoLíTICAS DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, O Tratado de Lisboa, Coimbra, 2012. Retomemos então a História dos Tratados depois do fracasso do Tratado Constitucional. A presidência alemã da União Enropeia (qne decorreu no primeiro semestre de 2007) e a Comissão Europeia passaram a interpretar o objetivo, fixado pela citada Declaração de Berlim de 25 de março de 2007, de dotar a União Europeia de uma "base comum e renovada", como querendo ele significar que, até à reunião do Conselho Europeu de 21 e 22 de junho de 2007, este devia aprovar um "mandato claro e preciso" para que fosse convocada uma Conferência Intergovernamental que _ _ _ _ _ _ _ _A:.:.::Hc:ic:stc:ó~n~·a~d::.a~1.:::·llt.eg.~ra::!ç,..ã::'o ..e,..1l.ra2P'":e">ia'-. aprovasse um novo Tratado que ultrapassasse o impasse do Tratado Constitncional. E foi o que aconteceu. Naquela reunião, e após porfiados esforços da presidência alemã, foi possível aos Estados-membros chegarem a acordo sobre o "Projeto de Mandato da CIG", que no léxico da União ficou conhecido também por Mandato de junho de 2007. Esse Mandato encarregava a CIO de elaborar um novo Tratado, que se chamaria "Tratado Reformador". O objeto desse Tratado seria o de manter os Tratados que estavam então em vigor mas introduziria neles as inovações resultantes da CIO de 2004, isto é, constantes do Tratado Constitucional. Ou seja, o Tratado Reformador, embora ." pusesse de lado o Tratado Constitucional, aproveitaria as inovações trazidas por este. O TUE manteria a sua denominação mas o Tratado CE passaria a ser designado de Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). O Projeto de Mandato já trazia anexas a si as alterações a introduzir ao TUE e ao Tratado CE. Na edição anterior deste livro, em língua francesa, analisámos o conteúdo desse Mandato". Agora ele passou à História. Na sua sequência, logo no início da presidência portuguesa da União, que teve lugar durante o segundo semestre de 2007, foi convocada a nova CIO a fim de ser elaborado o novo Tratado que desse execução ao referido Mandato. Essa CIO desembocou no Tratado de Lisboa, que foi assinado em 13 de dezembro de 2007, no Mosteiro dos Jerónimos. O método escolhido pela CIO, na sequência do Mandato que recebera, foi, como se disse, não o de substituir os Tratados então em vigor por um novo e único Tratado, como fôra o caso do Tratado Constitucional, mas de, mais modestamente, introduzir alterações nos Tratados existentes: o Tratado da União Europeia, o Tratado CE (que, como ficou referido, passava a chamar-se Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia - TFUE) e o Tratado Euratom. Cumprindo o que ficara estipulado no Mandato, o Tratado de Lisboa respeitou grande parte das disposições constantes do Tratado 28 60 _ Ver a Parte V dessa edição. 61 Introdução A História da integração ewvpeia Constitucional. Foram, todavia, eliminadas do texto dos Tratados as disposições de caráter formalmente constitucional, designadamente, a referência à "Constituição" na epígrafe do Tratado, bem como aos "símbolos" da União. Ou seja, a ousadia do Tratado Constitucional de enveredar pelo método constitucional foi substituída pelo regresso tímido ao método comunitário. Por outro lado, a subsistência de dois Tratados permitiu, não a eliminação completa dos pilares, como pretendera o Tratado Constitucional, mas a manutenção, ao lado do pilar comunitário, agora dissolvido na União, salvo no que respeita à sobrevivência da Euratom, também do segundo pilar, agora chamado de Ação Externa, e com um regime especial centrado no TUE, ainda que com autonomia menos vincada do que no TUE na versão de Nice. O processo de ratificação do Tratado de Lisboa conheceu dificuldades. Os Estados, de um modo geral, optaram pela via parlamentar para se vincularem ao Tratado. Isso permitiu, desta vez, uma fácil ratificação do Tratado pela França e pelos Países Baixos. Mas não impediu que a Irlanda, onde pela Constituição era obrigatório referendar o Tratado, o rejeitasse por referendo levado a cabo em 12 de junho de 2008. Como sempre aconteceu com referendos sobre assuntos ligados à integração europeia, era difícil averiguar-se se essa rejeição tinha a ver com o Tratado de Lisboa ou se com questões de política interna. O processo de ratificação correu depressa noutros Estados-membros, salvo na Alemanha, onde havia sido suscitado perante o Tribunal Constitucional federal o problema da constitucionalidade do Tratado, e na Polónia e na República Checa, que tinham feito depender da ratificação pela Irlanda a sua própria ratificação por via parlamentar. No que toca à Alemanha, o Tribunal Constitucional federal, pelo seu denso e profundo Acórdão de 30 de junho de 2009, declarou a constitucionalidade do Tratado, ainda que sujeita à aprovação pelo Parlamento de medidas complementares. Quanto à Irlanda, ela, depois de obter concessões da parte do Conselho Europeu, organizou um novo referendo sobre o Tratado em 2 de outubro do mesmo ano, que deu resultado positivo. Por conseguinte, a Polónia e a República Checa ratificaram logo de seguida o Tratado. Desse modo, este pôde entrar em vigor em 1 de dezembro de 2009. 62 63 14. A crise economlca e financeira e o Tratado Orçamental Europeu de 2012 O Tratado de Lisboa não podia prever a crise económica e financeira que se abateria sobre muitos Estados-membros a partir de 2009-2010, pondo em causa, designadamente, a subsistência da União Económica e Monetária. Essa crise, que atingiu alguns Estados-membros, particularmente dentro da União Económica e Monetária (especialmente, a Irlanda, Grécia, Portugal, Itália e Espanha), veio colocar, em certos meios políticos e económicos, a questão de saber se o Tratado de Lisboa não deveria ser revisto de modo a permitir à União e aos seus Estados-membros reagir de modo mais célere e eficaz perante esta crise e as suas consequências no contexto alargado da União. Isso obrigaria, segundo os mesmos meios, a aprofundar-se a integração económica até ao ponto de haver o que se começou a chamar de "governo económico europeu", e também a avançar-se na integração política, na medida em que ela fosse necessária para que a União Económica e Monetária funcionasse de modo mais eficaz. Daí resultaria "mais Europa", traduzindo-se isso, desde logo, na atribuição de mais poderes à União para impor maior disciplina na Zona Euro, isto é, no interior da União Económica e Monetária. A União pensou em 201\ em rever os Tratados por forma a prever e reger essa disciplina. Mas, na ausência de acordo da parte do Reino Unido e da República Checa nesse sentido, optou-se por um tratado internacional entre os outros vinte e cinco Estados. Foi assim que esses Estados assinaram, em 2 de março de 2012, em Bruxelas, o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, que passou a ser conhecido abreviadamente por Tratado Orçamental Europeu. Este Tratado, portanto, não alterou os Tratados em vigor. Ele próprio prescreve, no seu artigo 1.0, que tem de ser interpretado e A História da imegração europeia Introdução aplicado em conformidade com os Tratados da União. Contudo, ele prevê, no artigo 16.°, que dentro de cinco anos seja integrado no Direito da União. Este Tratado decorreu das novas atribuições de coordenação que o Tratado de Lisboa veio conferir aos Estados no artigo S.o, n.o 1, pars. 1 e 2, TFUE, e que se encontram pormenorizadas nos artigos 121.°, 126.° e 136. do mesmo Tratado. O Tratado Orçamental Europeu entrará em vigor em 1 de janeiro de 2013 desde que doze Estados da Zona Euro o tenham ratificado (artigos 14.°, n.O' 2 e 3). Esse Tratado veio reforçar a obrigação comum dos Estados de não porem em perigo a realização dos objetivos da União Económica e Monetária (S.o considerando do Preâmbulo); e veio consolidar o vetor económico da UEM, promovendo a disciplina orçamental quanto aos Estados que fazem parte dela, a coordenação das suas políticas económicas e o melhoramento da governação da Zona Euro, conciliando esses objetivos com o crescimento sustentável, o emprego, a competitividade e a coesão social (artigo 1.°). Para tanto, o Tratado estabelece uma "regra de equilíbrio orçamental", que se traduz nos novos limites de O,S% do Produto Interno Bruto para o défice estrutural e de 60% do PIB para a despesa pública dos Estados (artigo 3.°, n.o 1, b e d). Pelo Tratado, os Estados signatários obrigam-se a incorporar depressa esses limites na sua ordem interna através de "disposições vinculativas, permanentes e, de preferência, a nível constitucional", que deverão ser respeitadas pelos orçamentos nacionais. O cumprimento dessa obrigação será fiscalizado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que, para o efeito, dispõe de um poder sancionatório (considerandos 16.° e 17.° do preâmbulo e artigos 3.°, n.o 2, e 8.°). Portugal foi dos primeiros Estados a ratificar esse Tratado". 0 I I I I: ,i IS. Conclusão Para a evolução do estudo do objeto desta obra é importante este bosquejo histórico. Ele será aprofundado nas páginas seguintes, quando tal se mostrar uecessário. O importante, a reter por agora, é que a criação e a evolução das Comunidades Europeias e, depois, da União Europeia, tem sido um processo contínuo e gradual, que formou as suas raízes há muito tempo, particularmente após a 1." Grande Guerra, mas que ganhou os atuais contornos só após a 2.' Grande Guerra, mais concretamente, nos anos SO. De então para cá o processo de integração europeia andou paulatinamente, por entre avanços e recuos, sucessos e insucessos, oportunidades aproveitadas e oportunidades perdidas. Mas avançou. E a pouto de se poder dizer que entre as três Comunidades que, com seis Estados-membros, na década de SO, pretenderam começar por uma zona de comércio livre, e a União Europeia, que hoje, com vinte e sete, quase vinte e oito, Estados-membros, alcançou a fase da União Económica e Monetária e avança, ainda que timidamente, na União Política, vai uma distância enorme. Mas a integração europeia é um processo que envolve Estados democráticos. Por isso, o futuro da União (a começar, pelo modelo de integração política a adotar) será aquele que os povos dos Estados-membros quiserem. O processo de ratificação do Tratado Constitucional Europeu e, depois, do Tratado de Lisboa, constituiu um bom exemplo das dificuldades e dos desafios que a integração europeia coloca à vontade dos povos dos Estados. Por sua vez, como se disse atrás, a crise que, já depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, veio a atingir gravemente alguns Estados-membros, suscita a questão de saber se os Tratados fornecem à União os meios adequados para se ultrapassarem situações iguais a essa. É um debate que irá continuar nos tempos mais próximos. 29 Para a compreensão das muitas questões jurídicas que o Tratado Orçamental Europeu coloca veja-se o extenso acórdão do Tribunal Constitucional federal alemão, que se pronunciou pela sua constitucionalidade, com condições Ae. 12-9-2012, Proe. 2 BvR 1390/12 e outros, EuGRZ 2012, pgs. 569 e segs. 64 65 PARTE I A UNIÃO EUROPEIA Ili i' lI! 'I CAPÍTULO I DEFINIÇÃO E CARACTERIZAÇÃO GERAL DA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: L.-J. CONSTANTINESCO, La nature juridique des Communautés européennes, Liege, 1980; D. CAPOTORTI et aI., Le traité d'Union Européenlle, Bruxelas, 1985; J. DE RUYT, L'acte unique européen, Bruxelas, 1987; H. 1. KUSTERS, Fondements de la CEE, Paris, 1990; Y DOURIAUX, Le traitê Sl/r [,Uniou européenne, Paris, 1992; U. EVERLlNG, Reflections 011 lhe structure 01 lhe European Uniol!, CMLR 1992, pgs. 1057 e segs.; A. PUAKOS, La nature juridique de l'Unton eurapéenne, RTDE 1993, pgs. 187 e segs.; J. eLOOS, G. REINESCH e D. VIGNES, Le traité sur f'Uniol1 curopéenne, Bruxelas, 1993; D. CURTIN, The constitutiolIal structure of lhe UI11011: a Europe of bits and pieces, CMLR 1993, pgs. 17 e segs.; ANA MARTINS, O Tratado da União Europeia - Contributo para a sua compreensão, Lisboa, 1993; F. LOUREIRO BASTOS, A União Europeia, Lisboa, 1993; X. VOLMERANGE, Le fédéralisme allemand et l'intégration européenne, 1994; F. DE QUADROS e F. LOUREIRO BASTOS, A União Europeia, DJAP, vol. VII, Lisboa, 1996, pgs. 543 e segs.; P. MANIN (diT.), La révision du traité sur ['Union européenne, perspetives et réalités, Paris, 1996; J.-v. LoUIS, Le traité d'Amsterdam. Une occasion perdue, RMUE 1997, pgs. 5 e segs.; A. DUFF, The treaty of Amsterdam, Londres, 1997; AA.VV., Le traité d'Amsterdam, número especial da RTDE 1997, pgs. 709-1102; Y. LEJEUNE (eoord.), Le Traité d'Amsterdam, espoirs et déceptiol1s, Bruxelas, 1998; A. PREDlERI e M. T=ANO (dir.), II Trattato di Amsterdam, Milão, 1999; M. PANEBIANCO e C. RISI, Il nuovo diritto dell'Unione Europea, Nápoles, 1999, pgs. 39 e segs.; G. VERDERANE, Le Traité d'Amsterdam et ses suites: instruments de réalisation d'une identité européenne dans le domaine de la politique extérieure, RMU 1999, pgs. 15 e segs.; ANA 69 Definição e caracterização geral da União Europeia A União Europeia MARTINS, A natureza jurídica da revisão do Tratado da União Europeia, diss., Lisboa, 2000; P. MAGNETIE e E. REMACLE, Le nouveau modele européen, 2 vols., Bruxelas, 2000; P. MAGNElTE, La constitution de I'Europe, Bruxelas, 2000; 1. L. QUERMONNE, Le systeme politique européen. Des Comnul11autés européennes à l'Union erlropéenne, Paris, 4. a ed., 200 1; C. CANCELA OUTEDA, EI proceso de constitucionalización de la Unión Europea -De Roma a Niza, Santiago de Compostela, 2001; V. CONSTANTlNESCO, Y. GAUTIER e D. SIMON (dir.), Le Traité de Nice premieres analyses, Estrasburgo, 2001; G. ISAAC, Le "pilier" communautaire de ['Uni01l européenne, un "pilier" pas comme les autres, CDE 2001, pgs. 45 e segs.; J. SCHWARZE, Europãische Verfassrmgsperspektivell l1aeII Nizza, NJW 2002, pgs. 993 e segs.; E. GARCiA DE ENTERRfA e R. ALONSO GARCíA (dir.), La encrucijada constitucional de la Unión europea, Madrid, 2002; E. MAuLlN, L'ordrejl1ridiquefédéral. L'Étatfédéral authentique, Droits 2002-10, pgs. 41 e segs.; E. DENZA, The intergovernmental pillars ofthe European Union, Oxford, 2002; l-L. QUERMONNE, Le systeme politique de I'Union européenne, S,a ed., Paris, 2002; E. ALBERTI ROVIRA (dir.), EI Proyecto de nueva Constitución Europea, Valência, 2004; C. DENIZEAU, L'idée de puissance publique à ['épreuve de ['Unio11 européemze, dissertação, Paris, 2004. 16. As noções de "Comunidade" e de "União" A definição e a caracterização da União Europeia assentam, antes de mais, nas noções de Comunidade, de que o processo de integração europeia se serviu durante décadas, e, depois, de União. Por isso, o estudo da União Europeia tem de começar pelo enquadramento juridico-político daqueles dois conceitos. Não foi por acaso que nos anos 50 se escolheu a designação de Comunidade para qualificar as três Comunidades que vieram a ser criadas, mais as duas Comunidades que não chegaram a ver a luz do dia. Por trás dessa designação havia toda uma carga sociológica, filosófica e jurídica, que é indispensável ter em conta para se compreender o processo da integração europeia. Explicámos tudo isso, de modo desenvolvido, no nosso manual de Direito Internacional Público30 • Agora, vamos sintetizar aqui o essencial do que nos interessa. o conceito de Comunidade, valorizando a ideia de solidariedade e de coesão entre os seus membros, como espelho da prevalência dos interesses que são comuns a eles sobre os interesses que os separam, impõe um poder integrado, que seja, simultaneamente, a expressão das referidas ideias de solidariedade e de coesão e o modo de afirmação destas, e que se traduza em relações de subordinação entre a Comunidade e os seus membros, melhor, subordinação dos Estados-membros da Comunidade em relação a esta. A noção de Comunidade rompe, portanto, com a noção de Sociedade Internacional (mal designada vulgarmente por Comunidade Internacional), que, na formulação clássica que lhe deu o Direito Internacional, assentava em interesses predominantemente conflituantes entre os Estados, como fruto do individualismo internacional destes, expresso nas respetivas soberanias absolutas, ou ilimitadas, ou indivisíveis. Ao Direito Internacional assim concebido, pOltanto, como uma Ordem Jurídica de mera coordenação horizolltal de soberanias estaduais, opôs o Direito das Comunidades Europeias, logo quando da criação destas, uma Ordem Jurídica essencialmente de subordinação dos Estados-membros à Comunide "soberanias subordinadas normativamente"31, sem prejuízo de não ignorar áreas e instrumentos de mera cooperação entre aqueentre si, e entre aqueles e a Comunidade. É nesta coexistência, vrU~Jm Jurídica Comunitária, de subordinação e cooperação, que reside o motor da integração: ou seja, e como atrás dissemos, a teno dualismo, a bivalência, entre integração e interestadualidade, entre poder integrado e intergovernamentalidade, que tem raiz federal. Voltaremos a este assunto neste livro". O conceito de União mantém íntegra toda essa construção e aprofunda-a de modo a aproximá-la da construção federal. O mIJd"lo seguido aqui, foi o da União norte-americana ou dos Estados Unidos da América. Não quer isto dizer que a União Europeia uma Federação acabada ou, sequer, que ela tenha de alcançar int,eir:amente a fase federal, não obstante não ter sido nunca abando31 30 GoNÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 32 e segs., com vasta bibliografia citada. 70 32 Ver a nossa dissertação de doutoramento, atrás citada, pgs. I S8 e segs. Infra, n.o 37. 71 A União Europeia Definição e caracterização geral da Ul1iüo Ewvpeia nada formalmente a previsão no Plano Schuman, como vimos, da Federação como objetivo político último do processo de integração. Mas a noção de União apresenta, em relação ao conceito de Comunidade, a característica de um maior aprofundamento da solidariedade e da coesão interna e, por força disso, das relações de subordinação no seio da União. fracassada a tentativa de retomar o método global, quando do insucesso do projeto de criação da CDE e da ComPE, consolidou-se o método funcional através da criação, em 1957, de mais duas Comunidades sectoriais, a CEE e a CEEA. Como atrás já se explicou, a criação da União Europeia pelo TUE, em 1992, veio trazer alterações ao método funcional na integração europeia, ao criar a União com um sentido amplo, que incluía nela as Comunidades Europeias. Dispunha, de facto, o artigo A, par. 3, do TUE, na sua versão inicial, que "A União funda-se nas Comunidades Europeias, completadas pelas políticas e formas de cooperação instituídas pelo presente Tratado". Desta forma, ficavam definidos os três pilares da União. Todavia, não é correto afirmar-se que o método funcional tenha sido então definitivamente abandonado. De facto, e como já estudámos, as Comunidades continuaram a ter autonomia e individualidade no seio da União, formando um seu pilar próprio, o pilar comunitário. Esta situação sobreviveu aos Tratados de Amesterdão e de Nice. 17. A criação das Comunidades pelo método da integração funcionai Como já ficou demonstrado na Introdução deste livro, por duas vezes se tentou no século XX alcançar a integração europeia segundo o modelo americano, isto é, o modelo federal, que se traduziria na criação de "Estados Unidos da Europa". A primeira tentativa nesse sentido foi realizada com o Memorando Briand, do qual já falámos atrás. Como então dissemos, ele não foi por diante especialmente porque surgiu no início da grande depressão de 1929-32. A segunda tentativa traduziu-se na "Mensagem aos Europeus", aprovada pelos representantes dos movimentos federalistas dos dezanove Estados que participaram no Congresso de Haia, de 8 a 10 de maio de 1948. Esta tentativa fracassou, porque o Reino Unido, exatamente para travar a concretização das ideias aprovadas naquele Congresso, promoveu a criação, em 1949, do Conselho da Europa, numa base de simples cooperação intergovernamental. O método da integração global, pensado no Congresso de Haia, teve, pois, de ceder o lugar ao método da integração funcional. Ou seja, abandonou-se o projeto de uma imediata integração política, que assentaria numa integração do conjunto global da Economia, para se caminhar para uma integração sectorial, ou seja, por setores, e moldada por um figurino jurídico de tipo supranacional. Era uma solução pragmática: a divisão havida após o Congresso de Haia mostrava que a Europa não estava ainda preparada para se abalançar diretamente a uma integração global e política. Foi nesse quadro que o Plano Schuman optou pelo método funcional, ao propor uma Comunidade só para o Carvão e o Aço. E, O Tratado de Lisboa alterou significativamente o regime até então vigente na matéria. É certo que ele não foi tão longe como pretendera o Tratado Constitucional, onde a União Europeia iria absorver todas as Comunidades (salvo a CECA, que, como dissemos, se extinguira em 2002). Mas, de qualquer modo, pelo Tratado de Lisboa, a União Europeia viu dissolver-se nela a CE, fazendo com que o pilar comunitário, traduzido na União, passasse a ser praticamente o único pilar desta, com a única especialidade que w.',,,uu na intergovernamentalidade que perdurou parcialmente na e sem nos esquecermos da subsistência residual da Euratom pilar comunitário. Com estas ressalvas, pode-se, por conseguinte, dizer que O métoclo funcional foi definitivamente abandonado pelo Tratado de para dar lugar à União Europeia. 72 73 o abandono do método da integração funcional A União Europeia 19. Génese e evolnção da União Europeia Depois da criação das Comunidades e até ao Tratado de Maastricht, foram várias as vezes que em documentos oficiais foi utilizada a expressão "União Europeia": concretamente, na Cimeira de Paris de outubro de 1972; na Declaração de Copenhaga sobre a Identidade Europeia, de dezembro de 1973"; no já referido Relatório Tindemans sobre a União Europeia, de 1975; na Declaração sobre a União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu na Cimeira de Estugarda, de 1983 34 ; no já referido Tratado Spinelli, de 1984; no Ato Único Europeu, de 1985. Em nenhum desses documentos se propunha a criação da União Europeia como uma entidade que se substituísse às Comunidades, ou sequer, que lhes acrescentasse qualquer coisa de formalmente autónomo. Neles, defendia-se apenas um aprofundamento das Comunidades, em termos tais, que estas alargassem o âmbito das suas atribuições e os poderes dos seus órgãos. A única exceção ao que acaba de se afirmar era o Tratado Spinelli (o qual, em bom rigor, seria o primeiro Tratado da União Europeia), que, na realidade, propunha a extinção das três Comunidades e a sua substituição por uma União Europeia, que, entre outras características, teria uma política externa própria e poderia ter uma política de defesa comum. Essa União Europeia seria dotada de uma Constituição própria, que aquele Tratado incluía". Mesmo o Ato Único Europeu, posterior a esse Tratado, não viria pretender criar uma União Europeia, limitando-se a afirmar que "as Comunidades Europeias e a Cooperação Política Europeia visam contribuir em conjunto para fazer progredir concretamente a União Europeia" (artigo 1.0, par. I) (itálico nosso). Isto quer dizer que o nascimento da União Europeia como realidade diferente das Comunidades (veremos em que medida) só ocorreu com o Tratado da União Europeia, cujo projeto, como atrás 33 V/leme Rapport général sur l'activité des Communautés européennes, 1973, pgs. 511 e segs. 34 Buli. CE. n." 6/83, ponto 1.6.1. 35 Ver, por todos, CAPOTORTI et aI. 74 Definição e caracterização geral da União Europeia dissemos, foi aprovado pelo Conselho Europeu, na sua reunião em Maastricht, de 9 e 10 de Dezembro de 1991. O Tratado da União Europeia veio a refletir uma série de compromissos que estiveram na sua origem, o maior dos quais terá sido a fusão, como atrás se disse, decidida na Cimeira de Maastricht, num só projeto de Tratado sobre a União Europeia, de dois projetos de dois Tratados, que sempre foram negociados separadamente, ainda que em paralelo, até àquela Cimeira: um projeto de Tratado sobre a União Económica e Monetária (UEM), prometido já pelo Relatório Delors, de maio de 1989, e um projeto de Tratado sobre a União Política (UP). Esses compromissos, tantas vezes divergentes, quando não antagónicos, entre si, geraram um projeto de Tratado da União Europeia que ficou eivado de várias incoerências internas, que se agravaram pela pressa com que o Tratado foi negociado em Maastricht e, depois, redigido em menos de dois meses. Essas incoerências ficaram a manifestar-se tanto na estrutura do Tratado (um texto que, na sua versão de 1992, ocupava cento e doze páginas do Jornal Oficial das Comunidades Europeias, e que incluia, em anexo ao Tratado, mas fazendo parte integrante dele, dezassete Protocolos e trinta e três Declarações), como na sua redação, inclusive na sua numeração com letras ou números ou, simultaneamente, letras e números, A União Europeia, tal como foi criada pelo Tratado de Maastricht, representou um denominador comum entre as orientações preconizadas pelo Relatório Tindemans e pelo Tratado Spinelli. O Tratado da União Europeia, na redação que lhe deu o Tratado de Maastricht, qualificava-se a si próprio, como ainda hoje se qualifica, como "uma nova etapa no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa" (atual artigo 1.0, par. 2, UE). Desse modo, o Tratado não comprometeu o modelo político em que culminaria essa evolução. Esse modelo ficou em aberto, sobretudo depois de, na Cimeira de Maastricht, por exigência, especialmente do Reino Unido, ter sido eliminada a referência à "vocação federal" da União, que se continha no projeto de Tratado sobre a UP, Isto não prejudicava, obviamente, o facto de, como demonstrámos atrás, desde o Plano Schuman estar apontado um destino federal para o processo de integração europeia. 75 A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia Note-se, todavia, que o Tratado de Maastricht não transformou as Comunidades em União, afastando-se aqui do Projeto de Tratado Spinelli. A União e as Comunidades coexistiam, fundando-se aquela, desde logo, nestas, e tendo a União, como se verá, personalidade jurídica própria, ainda que para efeitos de se lhe atribuir uma capacidade jurídica embrionária e de conteúdo muito restrito. O Tratado da União Europeia não acabou, pois, como se disse, com o método funcional na integração europeia. Desta coexistência da União e das Comunidades resultava que o Tratado da União Europeia era um verdadeiro Tratado de Tratados. Ou seja, ele englobava os Tratados institutivos das Comunidades Europeias, com as alterações que neles introduzia, além de algo mais que de seguida se referirá36 • O Tratado Constitucional veio pretender dar uma sistematização e uma arrumação muito clara, nesta matéria. Para tanto, passava a haver só um Tratado, que criava uma nova União Europeia. A CE era diluída na União e a Euratom subsistia residualmente. O Tratado de Lisboa manteve essa orientação, embora com uma alteração no plano formal. Dele resultaram dois Tratados e não só um: o Tratado da União Europeia, que, ao mesmo tempo que absorveu a CE, veio regular os aspetos intergovernamentais da Ação Externa da União (conceito novo, que abarca toda a "ação da União na cena internacional", como diz o artigo 21.°, 0.° 1, UE, e dentro da qual se integra, como subespécie, a PESC), e o Tratado de Funcionamento da União Europeia, expressão pouco feliz que veio designar o antigo Tratado CE, agora adaptado à União. Das antigas Comunidades manteve-se apenas, e a título meramente residual, repetimos, a Euratom, regulada no Protocolo n. ° 2 anexo ao Tratado de Lisboa. 20. A estrutura da União Europeia. O domínio material do Tratado da União Europeia até à Convenção sobre o Futuro da Europa Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, veja-se, especialmente, anotações ao artigo 1.0 UE, DOURIAUX, EVERLlNG, ISAAC, pgs. 9 e segs.• e PANEBIANCo/R1SI. 36 GRABITZlHILF/NETIESHEIM, 76 Estudar a estrutura, ou, se se preferir, o conteúdo da União Europeia significa apreender o ãmbito ou o domínio material coberto pelo TUE. Acerca dessa matéria, o Tratado UE, já antes do Tratado de Lisboa, continha um preceito básico. Dispunha, de facto, o artigo 1.0, n." 3, UE, na versão de Nice: "A União funda-se nas Comunidades Europeias, completadas pelas políticas e formas de cooperação instituídas pelo presente Tratado. A União tem por missão organizar de forma coerente e solidária as relações entre os Estados-membros e entre os respetivos povos". Com base neste preceito, a União Europeia era assimilada mais vulgarmente à arquitetura de um templo grego, cuja estrutura apresentaria três pilares. O TUE começava com um jrontispício, inserido, pensando sempre na versão da revisão de Nice, no seu Título I, onde se enunciavam as "Disposições comuns" a toda a União Europeia, vista no seu conjunto. Eram os artigos 1.0 a 7.° do Tratado, que disciplinavam a criação da União Europeia, fixavam os seus objetivos, definiam os seus princípios fundamentais e estabeleciam quais eram os seus órgãos. Digamos que essas disposições comuns eram o arco que cobria os três pilares. Seguiam-se, então, os três pilares em que se desdobrava a União. O primeiro pilar, que era o pilar central e o mais importante, era o pilar comunitário, que em 1992 era composto pelas três Comunidades, na sequência da lógica do artigo 1.0, par. 3, UE. Assim, o artigo 8.° (Título II UE) absorvia o Tratado CE, que conservava autonontia; o artigo 9.° (Título III UE) incorporava o Tratado CECA que, também, à data conservava autonomia; por fim, o artigo 10.° (Título IV UE) acolhia o Tratado CEEA, que, também, mantinha autonomia. A lógica deste primeiro pilar inseria-se, como há pouco se disse, na continuação do método funcional, idealizado pelos funda77 A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia dores das Comunidades e vazado no Plano Schuman. Ele resultava da sedimentação dos Tratados institutivos das três Comunidades, com as alterações que até ao TUE eles haviam sofrido. Este pilar comunitário era o pilar integrado da União Europeia, aquele onde, portanto, encontrávamos os traços federais que a União Europeia progressivamente foi criando, como iremos vendo ao longo deste livro. O Tratado de Amesterdão, ao dar nova numeração a todo o TUE, através, sobretudo, da eliminação dos preceitos caducados ou abrogados e de preceitos identificados por letras, ou por números e letras, alterou a numeração originária dos preceitos do Tratado CE, mas manteve a dos preceitos dos Tratados CECA e CEEA. O Tratado de Nice não modificou essa estrutura do primeiro pilar, a não ser pela absorção de algumas matérias que até então estavam no terceiro pilar. Entretanto, em 24 de julho de 2002, deixou de existir a CECA. Isso aconteceu pelo facto de o respetivo Tratado ter cessado a sua vigência, que o seu artigo 97.° fixava em cincoenta anos desde a entrada em vigor do Tratado. Por conseguinte, o primeiro pilar da União Europeia passou a englobar apenas a CE e a CEEA. Ficou, dessa forma, aberto o caminho - que alguns gostariam de ter percorrido mais depressa - para a eventual fusão das duas Comunidades, através da integração da CEEA na CE. Esse caminho não parecia difícil, dada a grande semelhança, em matérias essenciais, entre os respetivos Tratados. Ao contrário do primeiro pilar, o segundo e o terceiro pilares da União tinham natureza intergovernamental. Estavam, também eles, previstos na fórmula geral do artigo 1.°, par. 3, UE". O segundo pilar encontrava-se regulado nos artigos II.' a 28.°, na versão de Nice (Título V do TUE): ocupava-se da PoUtica Externa e de Segurança Comum (PESC). Este segundo pilar tinha vindo põr termo à "cooperação política europeia", que o artigo 30. do AUE acolhera, depois de ela ter nascido à margem dos Tratados, e veio substitui-Ia por uma "política comum", cujos objetivos e instrumentos de atuação constavam dos citados preceitos do TUE. O desenho inicial da PESC, criado pelo Tratado de Maastricht, foi reforçado pelo Tratado de Amesterdão, em especial, ao incluir nela a "definição gradual de uma política de defesa comum", que "poderá conduzir a uma defesa comum" (como se passou a dizer no artigo 17.°, n.o I, par. I), e ao incluir a UEO na União (artigo 17.°, n.o I, par. 2), o que implicaria o desaparecimento da UEO, a prazo, como Organização Internacional autónoma, e a atribuição à União Europeia de uma "capacidade de atuação autónoma baseada em forças militares credíveis" (como se afirmava nas conclusões da Cimeira de Colónia, de junho de 199938). Estavam, assim, criadas as bases de uma Política Europeia Comum em matéria de Segurança e de Defesa, com a sigla PECSD". No que dentro da PESC dizia respeito especificamente à defesa, a PESC consistia numa recuperação da Comunidade Europeia de Defesa, que, como vimos, não chegou a existir juridicamente nos anos 50. Por outro lado, a UEO devia colaborar com a OTAN, que fora reformada em 1990, por forma a que a defesa europeia se articulasse e se complementasse com a defesa no quadro da OTAN (artigo 17.°, n.O I, par. 3, UE, e Declaração anexa ao Tratado de Amesterdão com o n.o 3, ponto 12). O Tratado de Nice veio alterar o sistema assim delineado, na medida em que do artigo 17.0 UE desapareceu a integração da UEO na União Europeia. A Declaração n.o I, anexa àquele Tratado, veio prometer para 200 I a definição das novas condições de operacionalidade da PESC40 . Por sua vez, o terceiro pilar estava disciplinado nos artigos 29.' a 42.' (Título VI do TUE) e regulava a Cooperação policial e 0 37 Ver DENZA. 78 Anexo III, 0.°5 1 e 5. Veja-se, sobre esta matéria, SIMON, pgs. 51-52. 40 Sobre o alargamento a vinte e sete e a PESe, ver LA SERRE, L'élargissement à l'Est de l'Union européel1ne: quelles perspetives paul' la PESe?, Études Gau3S 39 tron, pgs. 701 e segs.. Sobre o estado do segundo pilar depois do Tratado de Nice, ver R. GOSALBO BaNO, Some reflectians 011 the CFSP legal arder, CMLR 2006, pg5. 337 e segs. 79 A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia judiciária em matéria penal (CPJMP), que continuava a ser conhe- As matérias que sobraram do terceiro pilar continuaram no Título VI do TUE (artigos 29." a 42.°), que, como se disse, passou a ter a epígrafe mais ambiciosa de "cooperação policial e judiciária em matéria penal". A nova redação dada a esse Título VI mostrava-nos que o Tratado de Amesterdão aprofundou a atuação no quadro deste pilar e reforçou os respetivos meios e que, nessa linha de orientação, veio apontar à União a prossecução de um objetivo que, pela felicidade da fórmula encontrada, como atrás se disse, depressa se tornou nurn fim emblemático da União:'um "espaço de liberdade, segurança e justiça" [artigo 29.", par. I, já pré-anunciado no artigo 2.", 4.° travessão, UE, também na redação dada pelo Tratado de Amesterdão ]4l. Da aplicação conjugada do novo Título IV CE e do novo Título VI UE resultou, como já se disse, o lançamento das bases de um "espaço judiciário europeu"42, O Tratado de Nice veio reforçar ainda mais este terceiro pilar, sobretudo através da criação da Eurojust (Unidade Europeia de Cooperação Judiciária) e do aprofundamento dos meios de cooperação judiciária em matéria penal, tais como eles passaram a ser regulados nos novos artigos 29.°, par. 2, 2.° travessão, e 31.°, UE43. Sublinhe-se outra vez que, ao optar pela estrutura dos três pilares, tal como a descrevemos acima, a União Europeia não repudiou em definitivo o método funcional, ou funcionalista, de JEAN MONNET, que depois inspirou o Plano Schuman e presidiu à criação das três Comunidades e que, portanto, após o Tratado de Maastricht, só subsistiria no primeiro pilar. De facto, prosseguindo a orientação já iniciada no AUE, a União Europeia conciliava o método funcional, cida pela sigla CJAI, que, como atrás dissemos, lhe advinha da designação que esta forma de cooperação tinha tido no TUE antes da revisão de Amesterdão, e que era a de Cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos. Este pilar havia sido introduzido pelo Tratado de Maastricht no TUE como uma consequência da criação da liberdade de circulação e da eliminação de fronteiras internas dentro da União. O preço a pagar por isso foi o de se antecipar, com o Tratado de Amesterdão, a criação de um "espaço de liberdade, segurança e justiça" e de um "espaço judiciário europeu" - ou seja, um espaço em que a liberdade de circulação fosse efetiva e, por isso, ficasse garantida, mas, simultaneamente, não fosse utilizada para fins criminosos. Ou seja, liberdade de circulação, sim, mas não para o crime. Por isso, este pilar, logo no início, passou a englobar matérias tão difíceis e complexas como o asilo, a imigração, os vistos, a luta contra a criminalidade transfronteiriça, designadamente, o tráfico de pessoas humanas (especialmente mulheres e crianças), de armas, de estupefacientes, de obras de arte, o branqueamento de capitais, a fraude fiscal, etc. Como se disse, este pilar, tal como o segundo pilar, era de mera cooperação intergovernamental. Por isso, foi-se concretizando, logo após o Tratado de Maastricht, por acordos bilaterais ou multilaterais entre os Estados-membros (que eram puros tratados internacionais), alguns dos quais deram corpo ao "sistema Schengen", ainda que este tivesse nascido num primeiro Acordo assinado pelos Estados do Benelux, pela França e pela Alemanha, em 1985. O bom funcionamento da cooperação intergovernamental em algumas matérias deste terceiro pilar levou o Tratado de Amesterdão a comunitarizar, ou seja, a passar para o primeiro pilar, o domínio dos vistos, do asilo, da imigração, e de outras políticas relativas à livre circulação de pessoas, que, por isso, passou a ser disciplinado no novo Título IV do Tratado CE (artigos 61.° a 69.°, na versão de Nice). Entre as matérias que passaram para o primeiro pilar figurava o "Acervo Schengen" (Protocolo n.o 2 anexo ao Tratado de Amesterdão). 80 41 Sobre esse "espaço", veja-se o exaustivo estudo de KERCHOVE, in Y Lejeune (coord.), pgs. 383 e segs. 42 DE GOUITES, Variations SUl' {'espace judiciaire européen, chron. Dalloz 1998, XLI. 43 Especificamente sobre o terceiro pilar, veja-se J. MONTAIN-DoMENACH, L'Europe de la sécurité intérieure, Paris, 1999, CULLEN/JUND, Criminal Justice Co-operation in tlle European Uniofl afta Tampere, ed. trilingue, Colónia, 2002, e KERCHOVEfWEYMBERGH, Sécurité et justice: enjeu de la politique extérieure de I'Union européenne, Bruxelas, 2003. 81 A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia presente no pilar comunitário, de pura integração, com o método de mera cooperação intergovernamental (que dava corpo aos segundo e terceiro pilares), tentando conceder-lhes um caráter unitário e coerente, para o que apelava a segunda frase do citado artigo 1.0, par. 3, UE. Esse caráter unitário resultava da natureza indissociável da União: esta formava um todo e, em particular, nenhum Estado podia aderir apenas a uma das suas componentes com exclusão das outras. A maior expressão do referido caráter unitário residia no quadro institucional único da União, que constava do artigo 3.° UE. Nas edições anteriores deste livro subestimámos conscientemente o segundo e o terceiro pilares tais como eles constavam do TUE na versão de Nice, e por diversas razões: o seu já referido caráter intergovernamental, o que fazia deles mais matéria de Direito Internacional Público do que de Direito da União; a estreiteza material de ambos, o que fazia prever o seu caráter provisório e a sua progressiva comunitarização, que, particularmente quanto ao segundo pilar, se tornava urgente, de modo especial para o combate ao terrorismo global, que já então ameaçava fortemente os Estados da União Europeia; e a natureza eminentemente didática desta obra, que, por isso, tinha de fazer opções quanto ao seu âmbito, o que, obviamente, nos levava a concentrarmo-nos no pilar central, o da Comunidade Europeia. Todavia, mesmo hoje, o aprofundamento do estudo histórico dos segundo e terceiro pilares pode ser levado a cabo através da doutrina pós-Nice, que, aliás, sobre essa matéria nunca foi vasta44 • Além das obras já citadas neste número, ver também GRABITZlHILF/ anotações aos artigos do TUE e do TFUE que estão em causa, e SCHROEDER, in von Bogdandy (ed.), pgs. 373 e segs. Para uma visão fortemente crítica quanto à estrutura dos três pilares, ver, sobretudo, CURTIN, pgs. 69 e segs. tendia coerente. Para tanto, a nova União Europeia sucedia juridicamente à União Europeia que então existia e absorvia as duas Comunidades que subsistiam (a CE e a Euratom) bem como o segundo e o terceiro pilares. Esse esforço de simplificação terminaria com a entrada em vigor de um só Tratado, o referido Tratado Constitucional, com Protocolos e Anexos, que faziam parte integrante do Tratado (artigo IV-442.0). E, de facto, o Tratado Constitucional veio abrogar todos os Tratados anteriores no seu artigo IV-437.0, com referência no n.o 2, par. 2, desse artigo a duas únicas exceções. Contudo, por força do Protocolo n.o 36 anexo àquele Tratado, continuaria em vigor o Tratado CEEA, ainda que com as alterações nele previstas. Isso significa que o Tratado Constitucional, como se disse, veio criar uma nova União Europeia (artigo 1_1.°), a qual, por disposição expressa, sucedia, em termos de "continuidade jurídica", à anterior União e à anterior Comunidade Europeia, conforme dispunha o seu artigo IV-438.0. Também por este preceito ficava, portanto, salvaguardada a continuação em vigor do Tratado CEEA, embora nos termos acima referidos. Podemos, portanto, dizer que, se ressalvarmos a sobrevivência reduzida da CEEA e do respetivo Tratado, passávamos a ter um só Tratado para uma só União Europeia. Tratava-se, na realidade, da refundação da União Europeia, porque o Tratado punha praticamente fim ao método funcional na integração europeia. Foi objeto de grande polémica, durante a Convenção e depois dela, a verdadeira natureza desta nova União. Para alguns, ela era equiparada a um Estado, baseando-se esta corrente, fundamentalmente, nos seguintes argumentos: o Tratado, na sua epígrafe, afirmava que estabelecia uma "Constituição" para a Europa; o Tratado passava a atribuir "símbolos" à União (artigo 1-8.°) e esses símbolos, dizia-se, eram estaduais; o Tratado consagrava o primado do Direito da União sobre o Direito estadual (artigo 1_6.°) e esse primado, afirmava-se, era de tipo federal; e o Tratado incorporava a Carta dos Direitos Fundamentais da União (Parte II). Estndaremos mais adiante a natureza jurídica da União e da sua Ordem Jurídica. Mas dizemos, desde já, que nenhum dos referidos argumentos procedia. 82 83 21. A estrutura da União Europeia no Tratado Constitucional Um dos objetivos da Convenção sobre o Futuro da Europa era o de dar arrumação e simplificação à União Europeia. Por isso, o Tratado Constitucional criava só uma União Europeia, que se pre44 INETIESHEIM, A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia o Tratado não afirmava que era uma Constituição, embora alguns Como se disse, a Convenção sobre o Futuro da Europa deu lugar a um só Tratado: o Tratado Constitucional. Enquanto que o Tratado de Lisboa gerou dois Tratados: o TUE e o TFUE. Porquê? Exatamente pela diferente conceção que o Tratado de Lisboa adotou quanto à União Europeia. De facto, enquanto que o Tratado Constitucional criava uma União Europeia que englobava todos os pilares então existentes - a Comunidade Europeia, a PESC e a Cooperação Judiciária e Policial em Matéria Penal (CJPMP), deixando de fora, quase apenas, a Euratom, o Tratado de Lisboa resolveu manter com um regime especial O antigo segundo pilar, ou seja, a PESC, agora integrada numa nova realidade, mais ampla, chamada de "Ação externa da União". É matéria de que se ocupa o Título V do TUE46. Para tanto, o TUE, na sequência do seu preâmbulo, contém "Disposições comuns" a toda a União nos primeiros quatro Títulos do Tratado UE, dispondo a seguir, no Título V, sobre a Ação externa. Esta, como veremos adiante, no Capítulo sobre as atribuições da União, é disciplinada pelos Tratados como uma realidade híbrida, dentro da qual a PESC continua a apresentar uma natureza predominantemente intergovernamental, como se pode ver pelo Capítulo II do Título V do Tratado UE. De seguida, surge-nos, com igual valor jurídico que o TUE (artigo 1. par. 3, TFUE), o Tratado de Funcionamento da União Europeia. Este Tratado não se podia designar de Tratado da Comunidade Europeia, como sucedia antes da revisão de Lisboa, pela elementar razão de que, por força do artigo 1.0 , par. 3, parte final, TFUE, a Comunidade Europeia foi extinta pela sua dissolução na UE. Mas o conteúdo material do TFUE, ainda que obviamente ampliado e atualizado, corresponde ao do antigo Tratado CE. Por dos seus preceitos pudessem gerar essa confusão (veja-se, logo, o artigo 1_1. n. o 1). Ao contrário, o Tratado afirmava-se como "Tratado", embora acrescentasse que "estabelecia" uma Constituição para a Europa. Aliás, a sua principal característica era a de um tratado internacional: aquele Tratado só entraria em vigor, se, e depois de ratificado por todos os Estados-membros e segundo as respetivas Constituições. Além disso, os símbolos não são uma característica de um Estado. Qualquer pessoa coletiva de Direito público autónoma (região autónoma, município, associação ou fundação) costuma ter ou pode ter os seus próprios símbolos. Depois, o primado do Direito da União sobre o Direito estadual não é de tipo federal, como mostraremos neste livro4S • Por fim, a simples inclusão de um Código de direitos fundamentais num tratado não lhe dá, só por si, caráter estadual. Mas, se ainda subsistissem dúvidas, o próprio Tratado Constitucional nunca utilizava, para caracterizar a União, os vocábulos "Estado", "estadual", "federação" ou ~'federal". Pelo contrário, evitava-os de modo ostensivo quando, no seu artigo 1_1. 0 , n. o I, estabelecia que a União exerceria em "moldes comunitários" (itálico nosso), e não em moldes estaduais ou federais, as suas atribuições. 0 , 0 22. A estrutura da União Europeia no Tratado de Lisboa Bibliografia especial: M. CREMONA, The Two (or Three) Treaty Solution: The New Treaty Strueture o/ the EU, in A. Biondi, P. Eckhout e S. Ripley (eds.), European Union Law after the Treaty of Lisbon, Oxford, 2012. Se é verdade que, como já foi dito, em parte muito significativa, o Tratado de Lisboa, na sequência do Mandato de junho de 2007, seguiu muito de perto o Tratado Constitucional, não menos certo é que um dos pontos de divergência entre os dois, residiu exatamente no conceito e no ãmbito da União Europeia. 4~ Infra, n. o 201. 84 , 46 Não é pacífico na doutrina o entendimento acerca do regime da PESC depois do Tratado de Lisboa: alguns Autores não notam nela qualquer especificidade, outros estão na nossa linha, isto é, referem-se ao seu "regime especial", outros entendem que a PESC continua a ser um pilar autónomo, ainda que de modo reduzido, em relação à UE - ver, por todos, JACQUÉ, pg. 17, e CROWE, pg. 167. 85 A União Europeia isso, foi encontrado para ele a designação, convenhamos que algo bizarra, de Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Este Tratado ocupa-se do antigo pilar comunitário (como se disse, agora integrado totalmente na União), do antigo terceiro pilar, agora sob a epígrafe de "O espaço de liberdade, segurança e justiça" (expressão criada pelo Tratado de Amesterdão), e que, como atrás sublinhámos, agora é plenamente integrado no antigo pilar comunitário (Parte III, Título V), e de alguns aspetos da Ação externa (Parte V, Títulos II a VII), sem esquecer o regime especial que o TUE dá à PESC, como atrás se disse47 • Fora da UE continua também a Euratom com o seu Tratado próprio, modificado pelo Protocolo n.o 2 anexo ao TFUE, por força do artigo 4.° do Tratado de Lisboa4'. À margem da sua estrutura, tal como a definimos, a União engloba, desde o Tratado de Amesterdão, a cooperação reforçada entre os Estados-membros que desejem avançar mais rapidamente, entre si, na integração, acentuando-se dessa forma a integração diferenciada entre os Estados. Essa matéria está hoje regulada no Título IV do Tratado UE e na Parte VI, Título III, TFUE, sob a epígrafe, no plural, de cooperações reforçadas. Estudá-las-emos adiante. O Tratado UE engloba também "Disposições finais" (Título VI UE), que regulam, entre o mais, a personalidade jurídica da União, os processos de revisão do Tratado, as novas adesões, a abrogação e a denúncia do Tratado, o regime dos Protocolos e Anexos, a vigência do Tratado, as línguas oficiais, etc. 47 Quanto ao que se afirma no texto, no que respeita à relação entre a União e a Ação externa, incluindo a PESC, ver a recente monografia de MARTA JosÉ RANGEL DE MESQUITA, A Actuação Externa da União Europeia depois do Tratado de Lisboa, Coimbra, 2011. 48 Ver a versão consolidada do Tratado CEEA depois do Tratado de Lisboa no 10 C 84, de 30-3-20tO. 86 Definição e caracterização geral da União Europeia 23. Os objetivos da União antes do Tratado de Lisboa Os fins primários ou principais da integração europeia foram sempre fins políticos, como se apreende pela leitura do Plano Schuman e dos preâmbulos dos primeiros Tratados4'. Esses fins políticos eram, uns, imediatos, outros, mediatos ou de longo prazo. Os fins políticos imediatos da integração, quando foi criada a primeira Comunidade, a CECA, na sequência do Plano Schuman, eram a prossecução da Paz, pela abolição, como dizia SCHUMAN, da "oposição secular entre a França e a Alemanha" e pela criação de imediato de uma "solidariedade de facto" entre os Estados europeus (acrescentava-se no Plano Schuman: "foi porque a união da Europa a não foi antes alcançada que tivemos a guerra", ou seja, a 2. Grande Guerra). Mas a integração europeia, logo nos anos 50, elegeu um claro fim político, que chamaremos de mediato ou de longo prazo: o Plano Schuman deixou claro que da sua execução resultariam "os primeiros passos concretos para uma Federação europeia indispensável à preservação da Paz". Tendo-se optado, no Plano Schuman, como atrás se viu, pelo método funcional para o início da integração europeia, os seus fins secundários (secundários, em face dos fins principais acima referidos), mas imediatos, eram fins fundamentalmente económicos - a criação de um mercado comum -, completados, nos Tratados institutivos das três Comunidades, pela referência, ainda que embrionária, a alguns objetivos de índole social: a melhoria das condições de vida e de emprego e a garantia da estabilidade social. Com o Tratado de Maastricht o Tratado UE e o Tratado CE passaram a impor à CE e, numa visão mais ampla, à própria UE, como veremos, a prossecução, ao lado de fins económicos, de objetivos de natureza social, cultural e política. 49 Ver Comissão Europeia (ed.), Retire et compléler la Déclaration du 9 Mai 1950, Bruxelas, maio de 2000. 87 A União Europeia o Tratado UE tem, desde o seu início, vindo a enunciar, numa fórmula sintética, o objetivo global da União Europeia: a "criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa" (desde o artigo A, par. 2, UE, na redação de Maastricht, até ao atual artigo \.0, par. 2, UE, após o Tratado de Lisboa). Este objetivo global assinala, ao mesmo tempo, o caráter muito abrangente dos fins da integração europeia na sua atual fase, isto é, dos fins económicos aos fins políticos. Depois, procurando dar arrumação aos objetivos já afirmados no longo preâmbulo do TUE, e, simultaneamente, tentando concretizar o referido artigo \.0, par. 2, o artigo 2.° do TUE passou a definir com pormenor os objetivos que cabe à União Europeia prosseguir. Dispunha ele, na versão de Nice: Artigo 2.° Definição e caracterização geral da União Europeia necessário rever as políticas e formas de cooperação instituídas pelo presente Tratado, com o objetivo de garantir a eficácia dos mecanismos e das Instituições da Comunidade. (...) (itálicos nossos). Ou seja, já antes do Tratado de Lisboa, para além da consolidação da União Económica e Monetária, alcançada plenamente em 2002, a União prosseguia fins da maior importância nos domínios social, cultural e político, designadamente, um espaço de liberdade, de segurança e de justiça; a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos dos Estados-membros; a cidadania da União; e uma política externa e de segurança comum, que poderia conduzir a uma política comum de defesa. 24. Os objetivos da União depois do Tratado de Lisboa A União atribui-se os seguintes objetivos: - a promoção do progresso económico e social e de um elevado nível de emprego e a realização de um desenvolvimento equilibrado e sustentável, nomeadamente mediante a criação de um espaço sem fronteiras internas, o reforço da coesão económica e social e o estabelecimento de uma união económica e monetária, que incluirá, a prazo, a adoção de uma moeda única, de acordo com as disposições do presente Tratado; a afirmação da sua identidade na cena internacional, nomeadamente através da execução de uma política externa e de segurança conwm, que inclua a definição gradual de uma po[{tica de defesa comum, que poderá conduzir a uma defesa comum, nos teImos do disposto no artigo 17.°; o reforço da defesa dos direitos e dos interesses dos nacionais dos seus Estados-Membros, mediante a instituição de uma cidadania da União; a manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asiJo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade; a manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu desenvolvimento, a fim de analisar em que medida pode ser 88 O Tratado de Lisboa foi ainda mais longe na definição dos objetivos da União Europeia, tendo sabido condensar os fins que historicamente a integração europeia se tem vindo a propor prosseguir e, simultaneamente, atualizar os objetivos que, na Europa atual e no mundo moderno, ela pretende alcançar. Assim, diz o artigo 3.°, n.o I, UE, os três grandes objetivos da são: a paz, os valores enunciados no altigo 2.° e que o 2.° COlnS1Clel:an.C1o do preâmbulo qualifica de "valores universais", e o beln-,"t,," dos povos. Depois, o mesmo artigo pormenoriza e desdobra esses objetivos nos seguintes fins: um espaço de liberdade, segurança e justiça, nos termos explicados no artigo 3.°, n.o 2, e que depois nos vai aparecer regulado nos artigos 67.° e seguintes UE; um mercado interno; o desenvolvimento sustentável da Europa, com os fundamentos indicados na 2.' parte do artigo 3.°, n.o 3, inclusive uma Economia Social de Mercado que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social; 89 Definição e caracterização geral da União Europeia A União Europeia o progresso científico e tecnológico; o combate à exclusão social e a todas as formas de discriminação; a promoção da justiça social e da proteção social; a igualdade entre homens e mulheres; a solidariedade entre as gerações; a proteção dos direitos da criança; a coesão económica, social e territorial; a solidariedade entre os Estados-membros; o respeito e a preservação da diversidade cultural e linguística entre os povos europeus; a salvaguarda e o desenvolvimento do património cultural europeu, o que tem de ser conjugado com a fidelidade ao património cultural, religioso e humanista da Europa, do qual emanam os valores referidos no artigo 2.°, e que o preâmbulo, como vimos, considera ~~valores universais"; - a União Económica e Monetária, cuja moeda é o euro. Nas suas relações com o resto do mundo, a União prossegue esses mesmos objetivos (com exceção, obviamente, da UEM) e o respeito pelo Direito Internacional, a começar pela Carta das Nações Unidas. Como se vê, a nova sistematização dada pelo Tratado de Lisboa aos objetivos visados pela União Europeia não é diferente apenas no plano formal: ela pretendeu também, e antes de tudo, ampliar ainda mais os objetivos da União no campo social e cultural. A União já alcançou a União Económica e Monetária, isto é, está praticamente concluída a Europa económica. Agora, o TUE pretende avançar para a Europa cultural, fundada na diversidade cultural dos povos europeus e respeitadora do seu património cultural, religioso e humanista, e para a Europa social. Esta última constitui a grande ambição do TUE e, por isso, é visada de modo especial no artigo 3.° UE. O TUE pretendeu deixar, no seu texto, demarcado e definido o modelo social europeu, que, para ele, não se confunde com o modelo liberal nem com o modelo intervencionista. Por isso, o artigo 3.°, n.o 3, enuncia com clareza os traços do modelo social 90 europeu: uma Economia Social de Mercado altamente competitiva, que vise alcançar o pleno emprego e o progresso social; um desenvolvimento sustentável, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade de preços; a eliminação da exclusão social e de todas as formas de discriminação; a justiça e a proteção sociais; a igualdade entre homens e mulheres; a solidariedade intergeracional; a proteção dos direitos da criança; a coesão, não só económica e social (como até então diziam os Tratados), mas também territorial, que reduza a disparidade entre os níveis de desenvolvimento das diversas regiões do território da União e o atraso das regiões menos favorecidas (ver artigos 174.° e seguintes TFUE). No campo político, os Tratados continuam a não se pronunciar sobre o futuro modelo da União. Mesmo a inócua referência aos "moldes comunitários" do artigo l-I. ° do Tratado Constitucional não foi acolhida pelo Tratado de Lisboa. Mantém-se, por isso, sem alteração, a referência à decisão dos Estados-membros de "continuar o processo de criação de uma União cada vez mais estreita entre os povos da Europa" (considerando 13 do preâmbulo do TUE), o que, convenhamos, não os compromete com qualquer fórmula concreta para o futuro modelo político da União, nomeadamente quanto ao modelo federal, sem prejuízo, como veremos, de todos os traços federais que a União já apresenta e que o Tratado de Lisboa reforçou. De qualquer forma, com a frase transcrita, a União continua fiel ao método gradualista, que desde sempre, e por definição, tem sido co-natural ao processo de integração europeiaso . 25. A relevância dos objetivos da União no plano do Direito Os objetivos fixados pelo TUE para a União assumem enorme importância para ela no plano jurídico. De facto, privilegiando a Ordem Jurídica da União a interpretação teleológica, ou evolutiva, oufinalista, os objetivos assinalados 50 Sobre esta matéria é muito útil o Comentário de pgs. 34 e segs. 91 PRIOLLAUD/SIRITZKY, A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia no TUE ganham grande significado, quer na determinação do sentido a dar às regras contidas nos Tratados e no demais Direito da União, quer na interpretação das lacunas que este apresente. O Tribunal de Justiça tem usado frequentemente a interpretação teleológica. E foi nesse quadro que, quanto à CEE (mas devendo-se entender que o mesmo vale hoje para o conjunto global da União Europeia), muito cedo ele entendeu que os preceitos dos Tratados sobre os objetivos que eles fixam têm "natureza constitucional", constituem "Direito imperativo" e gozam de efeito direto, podendo, portanto, ser invocados pelos particulares perante os tribunais nacionais. Os primeiros Acórdãos nesse sentido foram os proferidos logo ela, em seu entender, aproximava a União do modelo estadual, exigiu que, pelos mesmos motivos, fosse retirado do texto do Tratado o artigo sobre os símbolos. Convenhamos que as razões dessa oposição aos símbolos não eram minimamente convincentes. Como já atrás dissemos, as regiões autónomas, os municípios, as instituições científicas, como as Universidades, para não irmos mais longe, têm, em todos os Estados-membros da União, a sua bandeira, o seu Dia anual, o seu hino e o seu lema, e nem por isso alguém as confunde com um Estado. De qualquer forma, essa con'ente, pelo menos formalmente, triunfou. Ou seja, a CIG de 2007 retirou do texto do Tratado o artigo 1'8.°. Todavia, na Declaração n. O 52 anexa ao Tratado de Lisboa, dezasseis Estados, incluindo Portugal, reconhecem que os símbolos que constavam do citado preceito do Tratado Constitucional "continuarão a ser, para eles, os símbolos do vínculo comum dos cidadãos à. União Europeia e dos laços que os ligam a esta". no início da integração, nos casos Hauts jorneaux e Bonnhoffl.52. 26. Os símbolos da União Europeia A União Europeia tem, desde o início das Comunidades, os seus símbolos próprios. Assim, a União tem uma bandeira, composta por um círculo de doze estrelas douradas sobre fundo azul. Depois, a União tem o seu hino próprio. Ele foi extraído da Ode à Alegria, que constitui um magnífico excerto de uma das mais belas peças da música clássica, a Nona Sinfonia de Beethoven. A União tem também o seu dia: o Dia da Europa, que é celebrado a 9 de maio, aniversário da Declaração Schuman, ou Plano Schuman. A Convenção sobre o Futuro da Europa decidiu incluir no Tratado Constitucional um preceito específico sobre os símbolos: foi o artigo 1_8. Esse preceito acrescentava aos símbolos acima referidos, mais dois: o lema da União "Unida na diversidade" e o euro como moeda da União. Todavia, a mesma corrente que se opôs a que o Tratado Constitucional utilizasse na sua epígrafe a palavra "Constituição", porque 0 • IVAN " Acs. 21-6-58, Procs. 8/57 e 13/57, Rec., pgs. 225 e segs. e 263 e segs. 52 Sobre este número, ver, por último, JACQUÉ, pgs. 45 e segs. e LENAERTS/ NUFFEL, pgs. 106 e segs. 92 27. A personalidade jnrídica da União Bibliografia especial: G. RESS, 1st die EU einjuristische Person?, Europa 1995, pgs. 27 e segs.; A. VON BOODANDY e M. NETIESHEIM, Ein einheitlicher Verband mit eigener Rechfsordnung, EuR 1996, pgs. 25 e segs.; P. DE NERVIENS, Les relations exterieures, RIDE 1997, pgs. 801 e segs.; R. A. WESSEL, The 1nternational Legal Status of the EU, ELR 1997, pgs. 109 e segs.; N. NEUWAHL, A Partner with a Troubled Personality: EU Treaty - Making in Malters of CFSP and lHA after Amsterdam, ELR 1997, pgs. 177 e segs.; M. DONY (ed.), Relations extérieures de [,UE apres Amsterdam, Bruxelas, 1998; A. TlZZANO, La personalità internazionale deU'Unione europea, in R. Adam et aI., Il Trattato di Amsterdam, Milão, 1999, pgs. 123 e segs.; J. CHARPENTIER, De la personalité juridique de l'Union européenne, Mélanges Peiser, pgs. 93 e segs.; M. PACHINGER, Die VOlkerrechtspersonlichkeit der europiiische Union, Francoforte, 2003. Ao contrário do que o Tratado CE fazia com a Comunidade EuroDeia no seu ex-artigo 281. em nenhum preceito o TUE, antes Tratado de Lisboa, reconhecia expressamente personalidade jurí0 , 93 A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia dica à União. Daí, que a doutrina dominante sustentasse que a União não gozava de personalidade jurídica própria, distinta da das Comunidades. Nunca fomos dessa opinião. Dos trabalhos preparatórios do Tratado de Maastricht tínhamos dificuldade em extrair a conclusão de que, mesmo 110 puro plano político, não se quis atribuir à União autonomia em relação às Comunidades, isto é, não se havia querido reconhecer individualidade própria em relação a estas. Só assim se compreendia que o artigo B, UE, na redação de Maastricht, no seu 2. 0 travessão, tivesse incluído como um dos objetivos da União "a afirmação da sua identidade na cena internacional", portanto, identidade da União. Ou seja, a identidade da União não era afirmada através das Comunidades, designadamente, através da CE, mas era afirmada pela própria União. Contudo, colocado o problema no plano jurídico - e é esse que fundamentalmente interessa ao jurista - entendíamos que do TUE resultava com clareza, ainda que na ausência de preceito expresso sobre a matéria, que a União gozava de personalidade jurídica própna. Comecemos, mais uma vez, pela interpretação histórica do Tratado de Amesterdão. O Relatório do Grupo de Reflexão, ou Grupo Westendorp, deixara escrito, durante os trabalhos preparatórios daquele Tratado, que a maioria dos membros daquele Grupo entendia que a recusa de personalidade jurídica à União seria uma "fonte de confusão no plano externo e enfraqueceria o seu (da União) papel no plano interno"53. Mas o elemento histórico de interpretação só reforçava a interpretação literal do Tratado. Quando a um ente se reconhece capacidade jurídica de gozo ou de exercício, ainda que limitada, essa capacidade jurídica tem forçosamente como pressuposto a suseetibilidade de ele ser titular de direitos e de obrigações, isto é, tem como pressuposto a sua personalidade jurídica. A capacidade jurídica pressupõe, portanto, a personalidade jurídica. Ora, o TUE atribuía à União capacidade jurídica própria, pelo menos para celebrar, ela própria, acordos internacionais. Era o que resultava do artígo 24.° UE, na versão de Nice, e do âmbito material definido nos dois parágrafos desse artigo. Ora, o reconhecimento dessa capacidade jurídica, desse jus troetu",n, implicava, só por si, a atribuição de personalidade jurídica própria à União". Mas também num outro domínio aparecia-nos confirmada a personalidade jurídica própria da União. Toda a pessoa coletiva tem órgãos próprios. Ora, a União tinha órgãos que lhe imputavam a ela, autonomamente, direitos e deveres próprios, isto é, que atuavam como órgãos da União e não das Comunidades, exercendo eles, nesse quadro, a sua competência específica, que o Tratado lhes conferia. Era o que decorria, num plano geral, sobretudo, do ex-artigo 3.°, par. I, e do ex-artigo 5.° UE, com a particularidade de este sublinhar que os órgãos aí indicados atuavam também no quadro próprio da União e não eram apenas órgãos das Comunidades. Mas era o que encontrávamos também no âmbito da PESC, onde o TUE atribuía expressamente competência a órgãos para atuarem em nome da União: era o caso do Conselho Europeu e do Conselho (ver, especialmente, o ex-artigo \3.°, n.o I, e n.o 3, 3.° travessão, UE), da Presidência da União (ex-artigo 18.°, ex-artigo J.8, n." I e 2) e do Alto-Representante para a PESC (ex-artigo 18.°, 53 Relatório de 5 de dezembro de 1995, pg. 150. 94 ° 3). Podia-se, pois, concluir dizendo que a União tinha personalijurídica própria". Acrescente-se que nenhum argumento se podia extrair, contra esta conclusão, da estrutura da União segundo o modelo do templo acima referido. A coerência interna de todo o conjunto em 54 Assim, expressamente, RESS, pgs. 28 e segs., e autores aí citados. 55 A favor da personalidade jurídica da União, nessa fase, veja-se RESS, pgs. 27 e segs., JACQUÉ, pgs. 186 e segs., ISAAC, pgs. 9 e segs., RIDEAU, pgs. 283 e ~egs., SIMON, pgs. 72-73, MANIN, pgs. 89-90, CHARPENTlER, pg. 93, VON BOGDANDY/ fNETIESHmM, pgs. 25 e segs., TIZZANO, sobretudo, pgs. 126 e segs., DE NERVIENS, 801 e segs., WESSEL, pgs. 109 e segs., e PACHINGER. Posição contrária, embora argumentos nem sempre coincidentes, tinham, por exemplo, NEUWAHL, pgs. 177 e segs., e GRABITzlHILF/NETT8SHEIM, anotações ao artigo 1.0 UE. 95 A União Europeia Definição e caracterização geral da União Europeia nada ficava afetada pelo facto de a União ter personalidade jurídica própria e autónoma em relação a cada uma das Comunidades. Pelo contrário: essa coerência impunha que a União tivesse a sua personalidade própria. O problema ficou resolvido, em definitivo, com o Tratado de Lisboa, que introduziu no TUE o novo artigo 47.°, que dispõe: "A União tem personalidade jurídica". UE, tenha eliminado a referência à competência dos órgãos, pode entender-se que quis dispor no mesmo sentido do ex-artigo 7.°, n.o 1, par. 2, UE. Isto quer dizer que, para além de a União se encontrar limitada pelo princípio da especialidade das suas atribuições, os seus órgãos têm de se conter dentro dos limites dos poderes que os Tratados lhes conferem. Mas se, pelas duas vias acabadas de referir, a União vê a sua capacidade demarcada e limitada, o Tratado admite a possibilidade de ela f~er expandir os poderes dos seus órgãos (não as atribuições da Umao), para se adaptar essa capacidade àquelas que forem, em cad~ momento, as necessidades da integração. Há dois meios pelos quaIs se consegue atingir esse resultado. Primeiro, o artigo 352.° TFUE, que contém uma cláusula que não consta dos tratados institutivos das Organizações Internacionais clássicas, e pela qual o Conselho pode criar novos poderes para os órgãos da União. Depois, a teona dos poderes implícitos, tal como a conhecemos de outros ramos do Direito, inclusive do Direito Internacional. Adiante estudaremos esses dois meios. Resta acrescentar que a capacidade jurídica da União é de Direito interno, o que lhe permite atuar na sua ordem interna e de Direito Internacional, o que a autoriza a agir na ordem internacional. 28. A capacidade jurídica da Uuião Mas cabe logo de seguida perguntar: qual é a capacidade jurídica, de gozo e de exercício, da União? Essa capacidade encontra-se condicionada por três fatores. Em primeiro lugar, como acontece com todas as pessoas coletivas, salvo com o Estado enquanto pessoa de Direito Constitucional, que tem uma capacidade geral, a capacidade jurídica da União está limitada pelo princípio da especialidade, que o Tratado UE chama de princípio da atribuição. É o que estabelece hoje, desde logo, o artigo 5.°, n.o 1, UE. Veremos isto melhor quando estudarmos as atribuições da União. É claro que, dada a vastidão dos objetivos e das atribuições que o Tratado UE impõe à União, sobretudo após as Comunidades terem deixado de prosseguir apenas fins económicos, não é fácil aplicar, na prática, à União o princípio da especialidade. Mas, à partida, este princípio rege a sua capacidade jurídica. O que significa que serão inválidos os atos praticados pela União, melhor, pelos seus órgãos, fora das suas atribuições e para prosseguir objetivos que não lhe estão confiados (ou que ainda não lhe estão confiados) pelos Tratados. Em segundo lugar, a capacidade da Uuião está condicionada pelo princípio da competência de atribuição dos seus órgãos. Era o que estipulava o ex-artigo 7.°, n.o 1, par. 2, UE, na versão de Nice, cujo teor era o seguinte: "Cada Instituição atua nos limites das atribuições e competências que lhe são conferidas pelo presente Tratado" (itálicos nossos). E, embora o atual artigo 13.°, n.o 2, L' parte, 96 29. A uatureza jurídica da Uuião: remissão Qual é a natureza jurídica da União Europeia? Pela nossa parte, mantemos a orientação que seguimos nas duas anteriores edições deste livro. Ela consiste em estudarmos a natureza jurídica da União a partir da natureza jurídica da sua Ordem Jurídica. Por isso, remetemos o leitor para o que sobre isso din~m()s na Parte II, dedicada ao Direito da União". 56 Ver infra, n,OS 162-165. 97 Definição e camcterização geral da União Europeia A União Europeia 30. A integração diferenciada Bibliografia especial: E. GRABITZ (ed.). Abgestufte lntegration, Kehl, 1984; P. MANIN e l.-V. LOUIS, Vers une Europe différenciée, possibilités et limites, Bruxelas, 1996; V. CONSTANTINESCO, Les clauses de "coopération renforcée", RTDE 1997, pgs. 751 e segs.; C.-D. Difjérenciation, jlexibilité, coopération renjorcée; les nouvelles dispositions du traité d'Amsterdam, RMU 1997, pgs. 53 e segs.; G. GAJA,Lacooperazione ra./forzata,DUE 1998, pg. 315; H. KORTENBERG, Closer cooperation in the Treaty of Amsterdam, CMLR 1998, pgs. 833 e segs.; W. WESSELS. Flexibilité, dif/érenciation et coopération renforcée _ Le traUê d'Amsterdam à la lwniere du Rapport Tindemans, in M. EHLERMANN, Westlake (dir.), L'Union européenne au-delà d' Amsterdam. Nouveaux concepts d'intégration européenne, Bruxelas, 1998, pgs. 133 e segs.; F. CHALTIEL, Le traité d'Amsterdam et la coopération renforcêe, RMC 1998, pgs. 289 e segs.; H. LABAYLE, Amsterdam ou I'Europe des coopérations renforcées, Europe, março de 1998, pgs. 4 e segs.; E. CANNIZARO, Sui rapporti fra il sistema della cooperazione rafforzata e il sistema delte relazioni esterne delta Comunità, DUE 1998, pgs. 331 e segs.; F. TUYTSCHAEVER, Difterentiation in European Union Law, Oxford, 1999; H. BRlBOSIA, De la subsidiarité à la coopération ren/oreée, in Y. LEJEUNE (dir.), Le traité d' Amsterdam, Bruxelas, 1999, pgs. 23 e segs.; B. DE D. HAUF e E. Vos (eds.), The Many Faces of Di./ferentiation in EU Law, Antuérpia, 2000; S. RODRIGUES, Le traité de Nice et Zes coopé· rations renforcées au sein de l'Union européenne, RMC 2001, pgs. 11 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Le proeessus décisionnel et I'aecomplissement des coopérations renforcées, in Constantinesco, Gautier e Simon (dir.). Lie Traité de Nice, cit., pgs. 115 e segs.; A. STUBB, Negotiating Flexibility in the European Uniol1, Nova Iorque, 2002; C. GUILLARD, L'intêgration diftérendée dans ['Union européel1ne, diss .. Tours, 2003. WITIE, Há muito tempo, particularmente após o Ato Único Europeu ter acelerado o passo da integração europeia rumo ao Mercado Interno, a atingir, como se atingiu, em I de janeiro de 1993, que se começou a verificar que nem todos os Estados-membros das Comunidades se encontravam em condições de progredir no processo de integração de modo igual, isto é, com o mesmo ritmo e em todas as matérias. Logo nessa altura se sentiu, portanto, a necessidade de se preverem mecanismos e condições que permitissem a alguns Estados, que esti98 vessem preparados para o efeito, avançar na integração mais depressa do que outros, pelo menos em algumas matérias. Retomou-se, por isso, então, a velha corrente doutrinária da "diferenciação", ou "integração diferenciada", ou "flexibilidade", ou "geometria variávef', ou da "Europa a duas, ou a várias velocidades", etc.. Todavia, só com o Tratado de Amesterdão é que essa corrente ficou consagrada nos Tratados, concretamente, no TUE, e sob a designação de "cooperação reforçada". O Tratado de Lisboa passou a falar dela no plural, utilizando a expressão "cooperações reforçadas". Elas visam permitir, portanto, que, verificadas determinadas condições, certos Estados avancem mais rapidamente do que outros, em domínios concretos da integração, sem que para tanto possam ser impedidos pelos outros Estados. Estamos, por conseguinte, perante a aceitação formal, pelo TUE, da integração diferenciada, ou a várias velocidades, ou, se se preferir, da existência de vários circulos concêntricos de Integração, numa Europa integrada de geometria variável. As cooperações reforçadas foram incluídas no TUE por iniciativa da França e da Alemanha, para acudir ao estado que já então atingira o processo de integração, mas, sobretudo, para prevenir o aprofundamento do desnível entre Estados desenvolvidos e Estados menos desenvolvidos, que iria ser provocado pelos alargamentos da ocorridos neste século, principalmente a Estados do Centro e da Europa. No fundo, as cooperações reforçadas constituem tentativa - talvez a única possível- de compatibilizar dois objenecessários e inevitáveis, mas também, à partida, antagónicos, ml:egraç:ao europeia: o do aprofundamento e o do alargamento. Os Tratados sujeitam as cooperações reforçadas a um regime e a regimes especiais. Vamos estudar um e outros. a) Regime geral O regime geral das cooperações reforçadas encontra-se defino Título IV do TUE, composto pelo artigo 20.° UE, e está de:senlvolvido nos artigos 326.° a 334.° TFUE. Esses preceitos sujei99 A União Europeia k I' I~ tam as cooperações reforçadas à verificação dos seguintes requisitos: elas não podem abranger as atribuições exclusivas da União e devem respeitar o regime especial definido para a PESC no artigo 331.0 TFUE (artigos 20.°, n.o 1, par. 1, UE, e 329.° e 331.° TFUE); elas visam favorecer a realização dos objetivos da União, preservar os seus interesses e reforçar o processo de integração (artigo 20.°, n.o 1, par. 2, UE); elas estão abertas a todos os Estados-membros e a todo o momento (artigos 20.°, n.o 1, par. 2, UE, e 328.°, n.o 1, TFUE); elas devem ser utilizadas apenas em "último recurso", quando o Conselho se certificar de que os objetivos por elas visados não podem ser alcançados, num prazo razoável, pela União no seu conjunto (artigo 20.°, n.o 2, par. 1, UE); elas devem ser decididas por, pelo menos, nove Estados-membros, devendo, todavia, tentar-se alargá-las ao maior número possível de Estados (artigos 20.°, n. o 2, UE, e 328.°, n.o 1, TFUE); elas devem respeitar os Tratados e o demais Direito da União, inclusive, portanto, o adquirido comunitário (artigo 326.° TFUE); todos os membros do Conselho podem participar nas deliberações sobre as cooperações reforçadas mas só os Estados-membros que participem nestas é que têm direito de voto (artigos 20.°, n.o 3, UE, e 330.° TFUE); os atos aprovados no ãmbito de uma cooperação reforçada só vinculam os Estados que nela participem (artigo 20.°, n.o 4, UE); as cooperações reforçadas devem atender às atribuições, aos direitos e aos deveres dos Estados que nelas não plUticipem, não podendo, todavia, estes impedir que elas sejam efetivadas (artigo 327.° TFUE); elas não podem pôr em causa nem o mercado interno, nem a coesão económica, social e territorial dentro da União, do mesmo modo como não devem conduzir nem a uma restrição, nem a uma discriminação às trocas entre os Estados-membros e não devem causar distorções à concorrência entre eles (artigo 326.° TFUE). O procedimento de instituição de uma cooperação reforçada sujeita ao regime geral encontra-se c1isciplinado nos artigos 329.°, n.o 1, e 330.°, TFUE. Por aí se vê que esse procedimento segue a forma de um processo legislativo especial com aprovação do Parlamento Europeu. Todavia, por força da chamada cláusula passerelle, estabelecida no artigo 333.°, n.o 2, TFUE, o Conselho, deliberando 100 Definição e caracteriz.ação geral da União El/ropâa por unanimidade, formada nos termos do artigo 330.°, pars. 1 e 2, do mesmo Tratado, pode deliberar que o procedimento a adotar será o de processo legislativo ordinário. Diferentemente, o procec1imento para a participação numa cooperação reforçada já iniciada está regulado no artigo 331.°, n.o 1, do mesmo Tratado. A participação de um Estado nessas condições pressupõe a aceitação, da sua parte, dos atos que já tiverem sido adotados no âmbito da respetiva cooperação reforçada (artigo 328.°, n.o 1, par. 1,2.' parte, TFUE). b) Regimes especiais Para além desse regime geral, os Tratados, como se disse, preveem quatro regimes especiais de cooperação reforçada. O primeiro regime especial relativo às cooperações reforçadas apllical-se à PESe. A cooperação reforçada nesta matéria está sujeita mesmos requisitos substantivos do regime geral, mas encontra eSIJecifiloidades no que toca ao seu procedimento. A instituição, ou criação, de uma cooperação reforçada no domínio da PESC encontra-se sujeita ao procedimento regulado no 329.°, n.o 2, TFUE, e a participação numa cooperação já insnesse domínio rege-se pelo procedimento disciplinado no 331.°, n.o 2, do mesmo Tratado. Curiosamente, o Tratado de regrediu nesta matéria por confronto com o Tratado de Nice. facto, enquanto que o artigo 27. o-C UE, na versão de Nice, COlltentalva-se com a deliberação do Conselho por maioria qualifios preceitos citados do TFUE exigem para o efeito deliberação Conselho por unanimidade. Esta deve ser calculada à luz do 330.°, par. 2, TFUE. Todavia, por efeito da cláusula passeestabelecida pelo artigo 333.°, n.o I, o Conselho pode delibepor unanimidade, que a unanimidade exigida nos referidos 329.°, n.o 2, e 331.°, n.o 2, TFUE, para as deliberações do .C,om;eUlo, é substituída pela maioria qualificada. O segundo regime especial é o da cooperação estruturada 0<.,en'1laneJ"te. Ela encontra-se prevista no artigo 42.°, n.o 6, UE, e no 101 Definição e caracterização geral da União Europeia A União Europeia Protocolo n. o 10 anexo ao Tratado, relativo à cooperação estruturada permanente. É o regime da cooperação reforçada que o Tratado de Lisboa criou para o domínio da defesa, no qual até àquele Tratado não era admitida cooperação reforçada. Essa cooperação desenvolve-se no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). O regime da cooperação estruturada permanente tem de ser visto como um regime de exceção e, por isso, os únicos requisitos que ele impõe são os seguintes: só podem criar essa cooperação, ou participar nela, os Estados que reunam os requisitos do referido artigo 42.°, n.o 6, UE, e do citado Protocolo, independentemente do seu número; esses Estados têm de assumir os compromissos constantes dos artigos 1.0 e 2.° do referido Protocolo, deixando, todavia, os Tratados claro que a PCSD não afeta o caráter específico da política de segurança e defesa dos Estados-membros (artigo 42.°, n. o 7, infine, UE, e considerando 4.° do citado Protocolo). O procedimento da criação de uma cooperação estruturada permanente, bem como da participação nela, rege-se pelo artigo 46.° UE. O Conselho delibera aqui por maioria qualificada, após consulta ao Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança (artigo 46.°, n.o 3, pars. 2 e 3, UE). O terceiro domínio onde é possível criar-se uma cooperação reforçada sujeita a regime especial é o das missões no exterior no domínio da PCSD, referidas no artigo 42.°, n.o 1, UE. O conteúdo e os objetivos dessas missões encontram-se definidos naquele preceito bem como no artigo 43.°, n. o 1, UE. O Conselho, respeitado o procedimento dos artigos 43.°, n.o 2 e 44. UE, pode confiar uma missão desse tipo a um grupo de Estados, independentemente do número, que reuna as condições do artigo 44.°, n.o 1, UE. A coordenação dessas missões cabe ao Alto Representante, sob a autoridade do Conselho e do Comité Político e de Segurança, e aos Estados-membros (artigos 43.°, n.O 2, e 44.°, n.o 1, UE). Também é possível aos Estados participarem na Agência Euro· peia de Defesa - e este é o quarto regime especial em matéria de cooperações reforçadas. Aquela Agência está prevista no artigo 42.°, n.O 3, UE. As suas atribuições encontram-se definidas nos artigos 42.0, n. o 3, par. 2, e 45.° do mesmo Tratado, e no artigo 3.° do 0 tocolo n.O 10. Ela está aberta aos Estados que nela queiram participar, a fim de reforçar as suas capacidades militares, independentemente do seu número. São estes os mais importantes regimes especiais de cooperações reforçadas previstos hoje nos Tratados da União depois do Tratado de Lisboa". c) Conclusão As cooperações reforçadas ou a integração diferenciada apresentam o grande risco da quebra da coesão económica, social e territorial entre os Estados-membros. Ora, essa coesão constitui um dos objetivos fundamentais da integração. O TUE acolhe expressamente, como dissemos, essa preocupação. De facto, e como vimos, o TUE proíbe as cooperações reforçadas nos casos em que elas puserem em perigo aquela coesão. Não vai ser fácil haver várias reforçadas, segundo o regime geral e segundo os regimes especiais, e, ao mesmo tempo, preservar-se um elevado nível de coesão, sobretudo, se as diversas cooperações reforçadas não engloum muito grande número de Estados-membros. Por isso, vai ser aliciante verificar-se como é que as cooperações reforçadas, de diluirem a integração, irão "reforçar o processo de integra, o que é exigido pelos Tratados, como atrás mostrámos. À ~aI llua, a integração diferenciada não é repelida pela essência da integr'aç;ão.Há Estados federais que a aceitam e a praticam: para não mais longe, veja-se o moderno Estado federal alemão, onde, de vinte anos após a reunificação das antigas duas Alemanhas, COlltirma a haver uma diferenciação acentuada entre os wnder da Alemanha Ocidental e os Liinder que pertenceram à antiga A11~maulla de Leste. Não tendo, todavia, a União Europeia os mesmecanismos integradores de uma Federação Uustamente por não ter atingido esse estádio), ela só deve aceitar as coopera57 Ver os Comentários aos Tratados UE e TFUE, mas, especialmente, pgs. 106-108. 103 102 A União Europeia ções reforçadas, como dissemos, mesmo em "último recurso", como vimos ser exigido pelo TUE, evitando-se que se institucionalize, com caráter mais ou menos definitivo, uma União mais estreita, ou várias Uniões mais estreitas, dentro de urna União mais diluída. Sobretudo no momento da atual crise económica pode haver a tentação de se caminhar nesse sentido. Nesse caso, as cooperações reforçadas dificilmente viriam consolidar a integração e poderiam, ao contrário, transformar-se num irreversível fator de desintegração da União. CAPíTULO II PRINCípIOS CONSTITUCIONAIS E VALORES DA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: FRITZ MÜNCH, FoderalislIlus, Volkerrecht und Gemeinchaften, DôV 1962, pgs. 649 e segs.; W. HALLSTEIN, Zu den Grundlagen und Verfassungsprinúpien der europãischen Gemeinschaften, Festschritft Ophüls, pgs. 1 e segs.; M. EM1LlOU, The principIe of Proportionality in European Law, Londres, 1966; C. ALDER, Koordination und lntegration ais Rechtsprinzipien, Bruges, 1969; J. SCHERER, Die Wirtschaftsverfassung der EWG, Baden-Baden, 1970; W. HALLSTEIN, Die Europãische Gemeinschaft, Dusseldórfia, 1973; P. 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GOMES, A natureza constitucional do Tratado da União Europeia, Lisboa, 1997; D. RITLENG, Le contrôle de légalité des actes communautaires par la CJCE et Fc TPI, diss., Estrasburgo, 1998; K. BOSKOVITS, Le juge communautaire et l'articulation des compétences normatives entre la Communauté européenne et ses États membres, diss., Estrasburgo, 1998; El principio de proporcionalidad, número monográfico dos Cuadernos de Derecho Publico 1998, ll. o 5, especialmente pgs. 75 e segs.; F. TUYTSCHAEVER, Difterentiation in Europeall Union Law, cit.; M. VERDUSSEN (dir.), L'Europe de la subsidiarité, Bruxelas, 2000; F. SUDRE, L'apport du droit international et européen à la protection communautaire des droits fondamentaux, in Droit international et droit communautaire ~ perspetives actuelles, Paris, 2000, pgs. 169 e segs.; C. CANCELA OUTEDA, Il proceso de constitucionalización de la Unión Europea ~ De Roma a Niza, Santiago de Compostela, 2001; D. 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TRlDIMAS, The General Principies of EC Law, 2. ed., Oxford, 2006; C. KADDOUS e A. AUER (eds.), Les principes !olldamentaux de la Constitution européemle, Genebra, 2006; J. DUARTE NOGUEIRA, Direito Europeu e identidade europeia, Lisboa, 2007; D. SlDJANSKI e F. SAINT-OUEN (dir.), Dialogue des cu/tures à l'aube du XXli!me siecle, Bruxelas, 2007; L. PECH, The European UlliO/l and its constitution:.from Rome to Lisbon, Dublin, 2008; G. DE BÚRCA e J. H. WEILER, The Worlds Df European Constitutionalism, Cambridge, 2012, 31. Introdução: os princlpIOs constitncionais e valores como elemento nnclear da Constituição material da União A União Europeia assenta em alguns princípios fundamentais. Por isso, chamamos-lhe princípios constitucionais da União. São princípios estruturantes do conjunto da União e do seu sistema jurídico e por isso se deve entender que integram o património constitucional europeu e fazem parte do núcleo da Constituição material da União. Como já se disse, se é evidente que a União não tem uma Constituição formal, não é menos certo que ela possui uma Constituição material. É verdade que o TI cedo começou a caracterizar os Tratados institutivos das Comunidades como "Carta Constitucional" ou "Carta Constitucional de uma Comunidade de Direito"58, como "Constituição interna da Comunidade" ou "Constituição da Comunidade"" e que a doutrina cedo passou a encontrar nos Trata58 Para começar, as conclusões do Advogado-Geral LAGRANGE no caso CostalENEL, Ac. TJ 15-7-64, Proc. 6/64, Rec., pgs. 1.141 e segs.; mais tarde, Ac. 23-4-86, Les Verts, Proc. 294/83, CoI., pgs. 1.339 e segs., e Parecer C-1/91, 14-12-91, Espoço Económico Europeu, CoL, pgs. 1-6.079 e segs. 59 Parecer n. O 1176, 26-4-77, FOllds européen d'immobilisation de la navi· gatioll illtérieure, Rec., pgs. 741 e segs. 107 A União Europeia Princípios constitucionais e valores da UI/ião Europeia dos a "Constituição económica" das Comunidades 60 quando a integração europeia se limitava às Comunidades e estas prosseguiam objetivos meramente económicos. Mas hoje é demasiado redutor querer ver na Constituição material da União apenas o "Direito interno" da União 6 1, ou algo de análogo, por exemplo, com a chamada Constituição material das Nações Unidas, que se pretende encontrar nos primeiros artigos da Carta da ONU. A Constituição material da União Europeia vai muito mais longe: ela cria a União; define os princípios de base e os valores que a regem, a ela e aos Estados-membros; aponta-lhe os objetivos; fixa-lhe as atribuições; disciplina as suas relações com os do preâmbulo do TUE de "valores universais", e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que está anexa ao Tratado de Lisboa e que, por força de disposição expressa do TUE (o artigo 6. n. ° I), faz parte integrante deste Tratado. Por conseguinte, os princípios que vamos de seguida estudar ocupam um lugar central na Constituição material da União: eles são princípios que, por serem fundamentais do ponto de vista axiológico, dão corpo, no plano da Filosofia Política e do Direito, às opções básicas da União e aos valores que ela escolheu para regerem a sua existência e a sua atividade63 • Em suma, opções e valores que compõem a identidade da União, ainda melhor dito, a identi- Estados-membros; dá à União um aparelho orgânico e institucional dade constitucional da União 64 . para atuar; cria os mecanismos necessários para a interpretação e a aplicação do Direito da União, isto é, para a efetividade do Direito da União; regulamenta as fontes formais do Direito da União; salvaguarda os direitos fundamentais dos cidadãos europeus; estabelece os meios que vão garantir a legalidade comunitária. Ou seja, criou-se na União Europeia uma Constituição material que, no plano substantivo, se aproxima da Constituição estadual e que toma como referência o modelo político estadual6'. O Tratado de Lisboa, na sequência do Tratado Constitucional (artigo 1_2.° e Parte II), alargou de modo significativo o conteúdo e o âmbito dessa Constituição material através da inclusão nela dos "valores da União" (artigo 2.° UE), alguns dos quais são qualificados pelo segundo considerando Por isso, esses princípios constitucionais dão corpo ao que podemos designar de ius cogens europeu, ou ius cogens da União. Ou então, podemos dizer que eles fazem parte da ordem pública da União, por analogia com o conceito de ordem pública internacional, que HERMANN MOSLER introduziu no Direito Internacional". Eles ocupam o lugar cimeiro entre as fontes do Direito da União, e constituem, portanto, autênticos limites materiais à revisão dos Tratados da União. Como ius cogens, pode entender-se que a sua violação pelos tratados gera a nulidade destes, por força do artigo 53. 0 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados'6. Note-se que a importância desses princípios fundamentais em nada fica diminuída pelo facto de alguns deles serem princípios gerais de Direito e de, como tais, nós os irmos reencontrar mais tarde como fonte, e fonte importante, do Direito da União - é o caso, por exemplo, dos princípios da proporcionalidade e da não-discriminação. Estamos nesse caso perante princípios gerais de Direito que 0 , Ver, especialmente, SCHERER. Sobre o conceito, criado na Escola de Viena por ALFRED VERDROSS, de "Direito interno das Organizações Internacionais", veja-se a nossa já citada dissertação de doutoramento, sobretudo, pgs. 171 e segs., e bibl. aí cit., e confronte-se também a sua pg. 185. 62 Dentro das obras gerais mais atuais, veja-se esta matéria desenvolvida, na doutrina francesa, por lAcQuÉ, pgs. 95 e segs.; na doutrina alemã, por HÃBERLE, na sua obra básica de Filosofia Política e do Direito, Europaische Verfassungslehre, 5.a ed., Baden-Baden, 2008, e VON BOGDANDY; na doutrina britânica, por GRAíNE DE BURCA, The Constitutional Limits ofEU Action, Oxford, 2000; e, em Portugal, por CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. u ed., Coimbra, 2003, pgs. 824 e segs. e 1139, e "Brancosos" e interconstitucionalidade, Coimbra, 2006, pgs. 199 e segs. Cfr. também ANA MARTINS, pgs. 125 e segs. Assim, por todos, lAcQuÉ, loe. cit., e CERUTIJ, pgs. 5 e segs. Sobre o conceito de identidade constitucional da União ver, nos Mélanges P. Manin, Paris, 2012, os artigos de NABLI, CONSTANTINESCO e LEVADE; e o nosso trabalho L'identité cOl1stitutionnelle de l'Union et les valeurs comnUlnes. 65 The /nternational Society as a Legal Community, RCADI 1974-IV, pgs. 1 e segs. Ver também a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 358-359 e 399. M Veja-se sobre a matéria BLECKMANN, pg. 45. 108 109 60 61 6J 64 Princípios constitucionais e valores da União Europeia A União Europeia o Direito da União ergue a mais do que isso, porque os adota como Direito fundamental da União·'. Os princípios constitucionais que aqui vamos estudar não podem ser vistos apenas como produto de uma abstração normativista. Como logo de seguida veremos, e já demonstrámos nas duas edições anteriores deste livro, ainda antes do Tratado de Lisboa, eles não são apenas princípios, são verdadeiros valores, no mais profundo sentido filosófico da palavra. Por serem inerentes às características essenciais e específicas da Ordem Jurídica da União, eles presidem à existência e à atividade da União. Como tal, compõem, na feliz expressão de BLANCHARD68 , o "património constitucional comum" da União e dos Estados-membros. Já nas edições anteriores deste livro nós sublinhávamos a incidibilidade no moderno Direito da União entre princípios constitucionais e valores. O Tratado de Lisboa, na esteira do Tratado Constitucional, ergueu alguns daqueles princípios à categoria autónoma de valores e elencou-os, como tais, no artigo 2. 0 UE. Essa autonomização teve apenas a intenção de sublinhar a maior importância, no plano ontológico, de alguns dos princípios constitucionais mas não significa que eles não devam continuar a ser vistos como princípios constitucionais, ou seja, como princípios integrados no cerne da Constituição material da União. De qualquer modo, mesmo assim, o percurso dos valores no Direito da União foi diferente do dos demais princípios constitucionais, como vamos de seguida demonstrar. 32. Idem: em especial, os valores da União Bibliografia especial: INSTITUTO EUROPEU DA FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA, BRITISH COUNClL, GOETHE-INSTITUT LISSABON e INSTITUT FRANCO-PORTUGAIS, Uma Constituição para a Europa, Lisboa, 2004, 67 Sobre a matéria deste Capítulo, ver, das obras gerais, especialmente, SIMON, pgs. 83 e segs., e bibl. aí cit., JACQUÉ, pgs. 50 e segs., BORCHARDT, pgs. 35 e segs. e 56 e segs., e, com uma grande amplitude, VON BOGDANDY (ed.), pgs. 149 e segs. e TRlDIMAS. 68 Pgs. 111 e segs. 110 Actas do Colóquio Internacional de Lisboa, organizado em conjunto por aquelas quatro entidades em maio de 2003, obra coordenada por Paulo de Pitta e Cunha e Fausto de Quadros, com prefácio de António de Sousa Franco, em especial as comunicações de V. CONSTANTINESCO, Valeurs et contellu de la Constitutiol1 européenne, pgs. 161 e segs., e F. DE QUADROS, O conteúdo e os valores da Constituição Europeia, pgs. 189 e segs.; G. CAVALLAR, Die europiiische U11io11 - von der Utopie zur Friedens- und Wertegemeinschajt, Viena, 2006; F. CERUITI (ed.), The search for a European identity; values, policies and legitimac.v of the European Union, Londres, 2008; M. DELMAS-MARTY, Vers une commlf~ naufé de valeurs?, Paris, 2011; F. DE QUADROS, L'identité constitlltiOI1nelle de [,Union européenne et les valeurs commUlles, in L. Potvin-Solís (ed.), Valeurs communes dans l'Union européenne, no prelo. Vejamos, para começar, como nasceu esta conceção dos valores no Direito da União até os Tratados, pela revisão de Lisboa, lhes concederem guarida de modo expresso. O conceito de "valores comuns" da União tem uma história muito rica. Já as Comunidades Europeias se afirmavam como subordinadas a determinados valores comuns aos Estados-membros embora os Tratados não se referissem a eles. O primeiro documento oficial sobre essa matéria foi a Declaração sobre a Identidade Europeia, aprovada pela Cimeira de Copenhaga, de 14 de dezembro de 197369 • Nessa Declaração, os então nove Estados-membros reconheciam a necessidade de as Comunidades afirmarem a sua identidade própria, que lhes permitisse exprimirem-se melhor nas suas relações com outros Estados do mundo, bem como quanto às suas responsabilidades nas grandes questões mundiais. Essa identidade englobava o reconhecimento de uma herança comum dos Estados-membros; o reforço da sua coesão perante o resto do mundo; a salvaguarda dos valores de ordem jurídica, política e moral aos quais eles estavam ligados; a preservação da rica diversidade das suas culturas nacionais, a afirmação de uma 6'l Bull. des Communautés européennes, dezembro de 1973, 127-130. 111 fi. o 12, pgs. A União Europeia ri I mesma conceção de vida, fundada na vontade de construir uma sociedade imaginada para estar ao serviço da Pessoa Humana; o respeito pelos princípios da democracia representativa, da salvaguarda dos Direitos do Homem, do primado da lei, da justiça social como fim último, e não como mero meio, do progresso económico. A Declaração de 1973 inspirava-se no Estatuto do Conselho da Europa, de 1949, portanto, um quarto de século anterior àquela. Esse Estatuto afirmava que os Estados-membros se encontravam "indissoluvelmente vinculados aos valores morais e espirituais que constituem o património comum dos respetivos povos e que para ele eram, desde logo, os princípios da liberdade individual, da liberdade política e do primado do Direito, sobre os quais se funda toda ~ verdadeira Democracia" (itálicos nossos). Note-se que estes pnncIpios foram recordados, com todo o vigor, pelo Conselho da Euro~a, quando ele teve que decidir, a partir da década de 90, sobre a admIssão como seus membros dos antigos Estados comunistas da Europa Central e do Leste, após a sua democratização. O TUE, aprovado pelo Tratado de Maastricht, veio retomar a referência aos "valores comuns" da União como objetivo a prosseguir pela PESC (artigo J.l, n." 2, 1." travessão). O Tratado de Amesterdão manteve essa posição (artigo 11.", n." 1, 1." travessão). Além disso, aquele Tratado veio erguer a "valor comum" da União, a função que passaram a exercer os serviços de interesse económico geral (artigo 16.° CE). O Tratado de Nice não trouxe qualquer modIficação ao referido artigo 11.°, n.o 1, 1.0 travessão, UE. Todavia, a referência aos valores seria extremamente reforçada pelo Anteprojeto da "Constituição da União Europeia", apresentado pela Comissão Europeia à Convenção sobre o Futuro da Europa e conhecido por Documento Penélope 70 , quando ele definia a União como uma "Comunidade de valores" (artigo 1.0, n.o 1), incluindo nesses valores "valores espirituais e morais" (artigo 1.0, n.o 2). O Tratado Constitucional, na sua redação final, era menos ambicioso do que o Anteprojeto da Comissão. Na sequência dos '" Doe. de 4-12-2002. 112 Princípios constitucionais e valores da União Europeia dois primeiros considerandos do seu preâmbulo, esse Tratado afirmava, no seu artigo 1_1.°, n.o 2, a existência de "valores" da União, elencava, no artigo 1_2.°, os "valores da União", que, dizia, são "comuns aos Estados-membros", e impunha à União o objectivo de promover "os seus valores" (artigo 1_3.°, n."' 1 e 4). Não aparecia nele, todavia, a proclamação formal da União como uma "Comunidade de valores", como pretendera a Comissão. O conteúdo do referido artigo 1_2." do Tratado Constitucional foi assimilado, no essencial, pelo artigo 2.° do Tratado UE após O Tratado de Lisboa. Os valores aí definidos são os seguintes: o respeito pela dignidade da pessoa humana (por influência manifesta da Lei Fundamental de Bona, artigo 1.0), a democracia, a liberdade, a igualdade, o Estado de Direito, o respeito pelos Direitos do Homem, inclusive pelos direitos de pessoas pertencentes a minorias. Para o Tratado, esses valores têm de ser comuns a todos os Estados-membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, pela não-discriminação, pela tolerância, pela justiça, pela solidariedade e pela igualdade entre homens e mulheres (o que tem de ser interpretado como novos valores que se adicionam aos valores definidos na primeira parte do preceito). Sublinhe-se que a circunstância de esses valores serem assumidos, de modo expresso, não apenas como valores da União, mas também como valores "comuns aos Estados-membros", assume uma enonne relevância. Isso quer dizer que, independentemente d'a União como uma pessoa jurídica autónoma, os Estados-membros se comprometem a respeitar esses valores na sua ordem interna e nas suas relações entre si e com a União. Note-se que, se o artigo 2.° ganha importância pelo facto de enunciar os valores que o Tratado quis impor à União, o 2.° considerando do preâmbulo do Tratado tem uma ambição ainda maior, que decorre do seu teor: ele obriga os Estados a "inspirarem-se" no "património cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanam os valores universais que são os direitos invioláveis e indeclináveis da Pessoa Humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e O Estado de Direito" (itálicos nossos). Com esta redação, o preâmbulo do Tratado é muito mais ambicioso e abrangente 113 A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia do que o artigo 2.°, particularmente quando, com fidelidade objetiva à História da Europa, reconhece que esta tem um património comum de índole cultural, religioso e humanista, que a União deve respeitar e ao qual ela tem de ser fiel. Neste aspeto, o Tratado UE inspira-se no 2.' considerando do preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamentais da União. Mesmo assim, há que enfatizar que, nesta matéria, tanto o Tratado Constitucional como o Tratado de Lisboa ficaram aquém do desejado pelos trabalhos preparatórios da Convenção sobre o Futuro da Europa. De facto, como há pouco mostrámos, o Anteprojeto do Tratado Constitucional apresentado pela Comissão qualificava expressamente a União Europeia como uma "Comunidade de valores", e de "valores espirituais e morais"71. enunciados no considerando n.O 2 do preâmbulo e no artigo 2.° do Tratado UE". Quanto à força jurídica dos valores da União há duas observações a fazer. A primeira é a de que temos quanto a isso que atender ao que dispõe, de modo expresso, o Tratado UE, no seu artigo 3.°, n.o 1, já citado. De facto, aquele preceito impõe à União, como um dos seus primeiros e principais objetivos, a promoção dos valores da União. Isto quer dizer que estes constituem "parte da substância intrínseca" da União73 • Ou, dito talvez de forma mais expressiva, e como já escrevemos noutro local", os valores da União fazem parte da "identidade constitucional" desta e, como tais, integram-se na Constituição material da União. Ou seja, os valores da União impõem-se a esta Direito imperativo. Fazem, portanto, parte do Direito imperativo da União, melhor, do ius cogens da União. Veremos adiante ml:!h()r o que isto significa. Haverá, por ora, apenas que sublinhar entendidos dessa forma, os valores transmitem ao Direito e à Pollítiloa da União a conceção de que os Tratados impõem uma União fUlld"da na superioridade e no primado dos valores e, concretamente, O""l;O'" a subordinação da Economia àqueles valores". A segunda observação é a de que, ao inscreverem no Tratado os valores são "comuns aos Estados-membros", os Estados sig;natários do Tratado de Lisboa comprometeram-se a conformar a Ordem Jurídica interna, bem como a sua prática política, com esses valores 76. 33. Idem: a relevância jurídica dos valores da União A enunciação dos valores referidos no artigo 2.° não é meramente programática: eles obrigam a União, como, logo a seguir, estabelece o artigo 3.', n.o I, UE. A sua violação grave e persistente, ou o mero risco manifesto da sua violação grave, por um Estado-membro, pode acarretar para ele a aplicação das sanções previstas no artigo 7.°, n." 1 e 2, UE. Particular destaque concede o Tratado UE, de modo enfático, à sujeição da ação da União na cena internacional aos valores referidos (artigos 3.', n.o 5,21.', n.o 2, ai. a, e 32.', par. 1, UE). A inclusão em preceito expresso dos Tratados da referência aos valores da União, particularmente a imputação desses valores ao seu património cultural, religioso e humanista, tem uma importância muito grande. Ela significa que os Tratados concebem a União como uma entidade não asséptica e neutra no plano ideológico, mas, pelo contrário, como um produto histórico do património cultural, religioso e humanista da Europa, materializado nos valores Veja-se esta questão mais desenvolvidamente, por exemplo, em pgs. 26 e segs. Aí encontra o leitor, de modo particular, as vicilSsil'ud,,, por que passou o processo de revisão do Tratado de Nice no que toca reconhecimento do património religioso da Europa. 73 PIRIS, pg. 72. Note-se que o Autor, na sua qualidade de Diretor do Serviço do Conselho, acompanhou de perto todo o processo que culminou com a 72 ct'RlO'LL,.UDf~lI'ITl(ZY, < ',lahora,;ão do Tratado de Lisboa. L'identité constifufionnelle de l' Union, cit. Ver QUADROS, Conteúdo e valores, cit., pgs. 190-191. 76 Ver a referência aos "valores" da União Europeia, com esta amplitude, "",10'0," nos livros, já referidos, de BLANCHARD, sobretudo pgs. 65 e segs. e 111 e e TRID1MAS, pgs. 14 e segs. 74 75 71 Sobre a "Comunidade de valores", veja-se na doutrina, por todos, MAS-MARTY. 114 DEL- ...• 115 A União Europeia 34. Sequência Vamos, pois, estudar em conjunto os princípios constitucionais da União Europeia, incluindo aqueles que o Tratado UE, no seu artigo 2.°, qualifica de valores. 35. A) O princípio da integração o primeiro e o mais importante princípio constitucional da União Europeia é, sem dúvida, o princípio da integração. Como logo no início deste livro explicámos", em termos clássicos a fórmula e o modelo de integração estavam reservados apenas ao Estado. A União Europeia obrigou a repensar esta conceção. De facto, enquanto que o Direito Internacional clássico visa apenas coordenar horizontalmente as soberanias dos Estados como expressão que elas são do individualismo internacional em que aquele Direito ainda em grande parte se funda e que faz dele um Direito fragmentário, a União Europeia e a sua Ordem Jurídica têm por objetivo primordial fomentar a criação de interesses comuns entre os Estados e, depois, valorizá-los e ampliá-los. Por isso, à visão societária do Direito Internacional opõe a União Europeia uma conceção comunitária das relações entre os Estados e entre eles e os indivíduos, isto é, ela visa criar entre estes uma margem tão ampla quanto possível de solidariedade, que impõe a criação de um poder integrado, de relações verticais de subordinação entre esse poder, por um lado, e os Estados e os seus sujeitos internos, por outro, e de um Direito comum. Assim entendido, o princípio da integração constitui um princípio constitucional da integração europeia desde o seu início. De facto, em 25 de julho de 1950, ao desenvolver perante a Assembleia Nacional francesa, em nome do Governo, o Plano que apresentara em 9 de maio desse ano, SCHUMAN resumia desta forma a sua proposta nesta matéria: "O essencial da nossa proposta é a de criar, 7i Supra, n.o 3. 116 Principias constitucionais e valores da União Europeia acima das soberanias nacionais, uma autoridade supranacional, uma autoridade comum aos países participantes, uma autoridade que seja a expressão da solidariedade entre esses países e em cujas mãos eles levam a cabo uma fusão parcial das suas soberanias nacionais" (itálicos nossos)78. Foi, pois, para explicar esse fenómeno que cedo nasceu no léxico jurídico da integração europeia a palavra "supranacionalidade". E a doutrina depressa começou a teorizar essa supranacionalidade como a "ordem das soberanias subordinadas normativamente" (itálico nosso)79 ou como "a suscetibilidade de imposição do poder público comunitário contra o poder estadual" (itálicos nossos)80. Nós aderimos, em 1984, a essa corrente, chamando, a este fenómeno de subordinação, "superioridade hierárquica do poder snpranacional sobre o poder estadual"81-82. O princípio da integração encontra-se presente, obviamente, em todo o TUE: para começar, na sua epígrafe, depois, no vocábulo "União", inserido nos considerandos 1.0 e 15. 0 do seu preâmbulo e no artigo 1.0, par. I, e, depois, no artigo 1.0, par. 2, quando este assinala como finalidade do Tratado "uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa". Uma das manifestações mais importantes do princípio da integração reside no princípio da solidariedade, que, pela sua importância, estudaremos separadamente. Logo a seguir, e com igual importância, surgem-nos, como expressões do princípio da integração, sobretudo enquanto gerador 78 Ioumal Officiel de la République Française, Débats Parlementaires, Assemblée Nationale, premiere sessioll legislative, sessão de 1950, pgs. 5.943. 79 HÉRAUD, L'inter-étatique, le supranational et Jeféderal, APD 1961, pgs. 179 e segs. 80 H. P. IrsEN, pgs. 66 e segs., especialmente pg. 68. 81 Nossa dissertação de doutoramento, pgs. 158 e segs., e bibl. aí selecionada. 82 Sobre a construção dogmática do princípio da integração na integração europeia, ver as obras fundamentais de ALDER, de IpsEN e de PESCATORE, Le droit l'illtégration. Hoje, veja-se, especialmente, SIMON, pgs. 83 e segs., e, como ponte entre o Direito e a Ciência Política, a obra de M. W1ND, Sovereignty and European Integration, Houndmills, 2001. 117 A União Europeia de relações de subordinação entre a União e os Estados-membros, os princípios da efetividade, ou da plena eficácia, do Direito da União, e o princípio da sua uniformidade, concretamente, na sua interpretação e na sua aplicação. Estes dois princípios constituem dois alicerces essenciais de todo o sistema jurídico da União". O princípio da efetividade postula que o Direito da União seja aplicado de modo eficaz pela União e pelos Estados-membros, com respeito pelas suas características próprias. Tendo estado sempre claro no acervo dos princípios fundamentais do Direito da União tal como a jurisprudência da União o interpretava, ele encontra, depois do Tratado de Lisboa, expressão escrita nos Tratados, mais concretamente, no artigo 291.°, n.O 1, TFUE. O princípio da uniformidade, por sua vez, impõe que a Ordem Jurídica da União seja interpretada e aplicada de modo uniforme no espaço da União e, concretamente, na ordem interna de todos os Estados-membros. Todavia, esta uniformidade é relativizada pelo próprio Direito da União, quer através do princípio da subsidiariedade, quer através do modo como aquele Direito disciplina o seu Direito derivado. Estudaremos isso na altura próprIa. 36. B) O prinCIpIO do respeito pela identidade nacional dos Estados-membros O segundo princípio constitucional da União consiste no princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados-mem0 bros. Ele foi integrado no texto dos Tratados através do artigo 6. , 0 n. o 3, UE, após a revisão de Amesterdão. Hoje figura no artigo 4. , n. 0 2, UE. Este princípio tem estado presente na integração europeia desde o seu início. Já JEAN MüNNET afirmara, numa frase que ficou célebre, que "a Europa não se fará sem os Estados e muito menos 83 Assim, de modo especial, STRuys/FLYNN, in Marc Verdussen (dir.), pgs. 239 e segs., e FINES, L'applicatioll uniforme du droit communautaire dans lajuris~ prudence de la COllr de Justice des Communalltés européennes, Études Gautron, Principios constituciollais e valores da União Europeia contra os Estados". Este princípio queria dizer então, como quer dizer hoje, que no processo evolutivo da integração será preservada e respeitada a identidade própria de cada Estado. É por isso que ele tem de ser estudado logo a seguir ao princípio da integração. O que significa respeito pela "identidade nacional" dos Estados-membros? Na redação dada ao artigo 4.°, n. o 2, UE, pelo Tratado de Lisboa, significa respeito pelas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada Estado, incluindo no que diz respeito à autonomia local e regional, e pelas funções essenciais do Estado, nomeadamente as que se destinam a garantir a sua integridade territorial, a manter a ordem pública e a salvaguardar a segurança nacional. Ou seja, e visto tudo isto com mais pormenor, a identidade nacional significa identidade política, jurídica (incluindo a identidade constitucional) e cultural. A identidade política quer dizer que os Estados-membros conservam a sua individualidade no plano político, ainda que com a sua soberania progressivamente limitada por efeito do gradualismo da integração. O respeito da parte da União pela identidade nacional dos Estados-membros impõe, designadamente: que ela respeite a Kompetenz-Kompetenz ("competência das competências") de cada Estado-membro, isto é, o direito de cada um deles definir a sua organização política e administrativa interna, inclusivamente, a nível local e regional, salvo quando o contrário for imposto pelas necessidades da própria integração; que ela respeite, e que os Estados-membros se respeitem entre si, as fronteiras políticas dos Estados, portanto, a sua integridade territorial; e que, sempre sem prejuízo das obrigações assumidas pelos Estados-membros no quadro da integração, a União observe o direito (e ü dever) dos Estados de garantirem a sua segurança interna, a sua defesa externa e de adaptarem as suas relações externas aos seus interesses específicos. Nesse aspeto merece realce o facto de o Tratado de Lisboa, no referido artigo 4.°, no seu n.o 2, ter vindo conferir aos Estados a responsabilidade exclusiva da manutenção da sua segurança nacional. No plano jurídico, o respeito pela identidade nacional dos Estados exige que a União preserve a "especificidade" dos Direitos 2004, pgs. 333 e segs. 118 119 A União Europeia Princfpios constitucionais e valores da União Europeia nacionais dos Estados-membros. Esta orientação é muito cara à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, que a desenvolveu nos casos Solange I", Solange 11" e Maastricht'6.". Mais recentemente, no caso Lisboa'8, em que se discutia a conformidade do Tratado de Lisboa com a Lei Fundamental de Bona, aqnele Tribunal foi mais longe e elaborou densamente o conceito de identidade constitucional nacional dos Estados no seio da União Europeia, aplicando esse conceito à Alemanha. Essa identidade abrange, além dos princípios específicos da ordem constitucional alemã, referidos no artigo 23.°, n.o I, da Lei Fundamental de Bona, e que aquele artigo manda preservar quando autoriza que a Alemanha participe na União Europeia, também os princípios da Democracia e do Estado de Direito e direitos sociais. Conjugado com o princípio da subsidiariedade, que adiante estudaremos, tudo isto quer dizer que a harmonização das Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da União Europeia, imposta pelo princípio da integração, deve, em toda a medida do possível, respeitar o caráter específico e peculiar dos sistemas jurídicos nacionais. Por sua vez, a preservação da identidade cultural exige que a União respeite a língua, a História (inclusive, as tradições) e a cultura de cada Estado-membro, inclusive as suas religiões e as suas minorias, como se encontra, aliás, estipulado, de modo expresso, no 6.° considerando do preâmbulo do TUE e no artigo 2.° do mesmo Tratado. A obrigação de a União respeitar a identidade nacional dos Estados não dispensa estes - pelo contrário, reforça-o, no quadro da integração - do encargo de preservarem e defenderem a sua própria identidade nacional. Não podem aí contar com a União para suprir insuficiências ou omissões próprias nem podem responsabilizar esta por erros e omissões só a si imputáveis 89 • 84 Despacho de 29-5·74, BVerfGE 37, pgs. 271 e segs. "' Despacho de 22-10-86, BVerfGE 73, pgs. 339 e segs., ou, em tradução francesa, RTDE 1987, pgs. 545 e segs. 86 Ac. 12-10-93, BVerfGE 89, pgs. 155 e segs. 81 Cfr. o nosso estudo O princípio da subsidiariedade, pgs. 40-41. .. Ac. 30-6·2009, BVerfGE 123, pgs. 267 e segs. 120 37. Continuação: relação entre os princípios da integração e do respeito pela identidade nacional dos Estados Os princípios da integração e do respeito pela identidade nal:ional dos Estados não se excluem. Pelo contrário: completam-se. O motor da integração europeia reside, exatamente, na cons"tensão dialética" entre a integração e a interestadualidade, para utilizarmos uma expressão que vimos usando desde 198490 Hoje, JACQUÉ" refere-se, de modo muito feliz, ao "dinamismo comunitário", para exprimir essa relação entre a "integração" e a Esta tensão dialética entre a integração e a interestadualidade, entre integração e soberania, esta visão dualista ou bivalência do prclce~;so de integração, caracteriza o método federal. E ela foi acopelos autores dos Tratados exatamente para corroborarem a voca\:ão federal das Comunidades, que ficara anunciada logo no Schuman, como vimos. De facto, tanto o federalismo norte-am,erit;an'J,que inspirou O Tratado CECA, de 1951 (quando o fede'''I.I>11IU alemão, moldado pela Lei Fundamental de Bona, de 1949, não tivera tempo para dar provas), como o federalismo aleque inspirou o Tratado CEE e CEEA, de 1957 (quando já provado que o modelo federal desenhado pela referida Lei FUind[lmt:ntal de 1949 era equilibrado e estava a contribuir para a recuperação económica e social da Alemanha depois das de'vas,ta\:ões da Guerra), encontram-se estruturados segundo o refedualismo, desde logo no exercício do poder legislativo. De Sobre a matéria deste número, ver BADURA, A "identidade nacional" dos 110 Constituição da Europa, in Uma Constituição para a Europa, Colóq,uiolnternacional de Lisboa de 2003, cit., pgs. 71 e segs. 90 Ver a nossa dissertação de doutoramento, cit., sobretudo, pgs. 251 e segs. e segs. 91 Pgs. 20 e segs. 89 121 A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia facto, o poder legislativo federal está entregue, num caso e noutro, a duas câmaras: nos Estados Unidos, à Câmara dos Representantes, que representa a integração, o interesse integrado da União, porque é eleita por sufrágio direto e universal dos cidadãos da União, e ao Senado, que representa os Estados federados, porque é composto por delegados destes; na Alemanha, ao Bundestag, que representa a Federação, porque emana do sufrágio direto e universal dos cidadãos da Federação, e ao Bundesrat, que representa os Estados federados (Liinder), porque é composto por mandatários destes. Isto Os "soberanistas" não podem ignorar que, mesmo no Direito Internacional, a soberania dos Estados já não é absoluta e indivisível. A evolução do Direito Internacional após a 2: Grande Guerra e, especialmente, nas últimas duas décadas, prova-o à saciedade. Ou seja, o individualismo dos Estados, expresso na respetiva soberania, não ignora, no moderno Direito Internacional, áreas progressivamente vastas de solidariedade e de integração93 • Por seu lado, os "federalistas" não podem esquecer-se de que uma das características marcantes do federalismo alemão, que, significa que, através da chamada lei de participação, que constitui um traço característico das federações, os Estados-membros da federação (pelos menos nos dois sistemas federais referidos, que têm servido de modelo, hoje, mais o alemão do que o norte-americano, à integração europeia) participam no exercício do poder legislativo federal e, dessa forma, participam ativamente no dinamismo do exercício do poder político da União ou da Federação". De harmonia com essa construção da bivalência cumulam-se no sistema jurídico da União, como veremos ao longo deste livro, situações de integração e de interestadualidade, ou, dito doutra forma, de subordinação e de cooperação. É o caso da convivência do regulamento, ato de subordinação, com a diretiva, ato de cooperação; é o caso das relações entre os tribunais da União e os tribunais nacionais, relações essas que, tendo laivos de subordinação, são, essencialmente, relações de cooperação; é o caso da subsidiariedade nas relações entre os Estados-membros e a União. O erro de não se compreender esta coexistência entre a integração e a identidade nacional está na base da divisão, no mundo da Política e de alguma Doutrina Jurídica, entre "comunitaristas" e "constitucionalistas" ou "internacionalistas" (ontem) ou entre "federalistas" e "soberanistas" (hoje). Trata-se de uma oposição sem sentido. Veja-se esta matéria desenvolvida na nossa referida dissertação de doutoramento, pgs. 121 e segs. e 324 e segs., com apoio em bibliografia muito expressiva, inclusive da doutrina inicial do Direito da União Europeia. Na doutrina moderna, ver LENAERTS/vAN NUFFEL, pgs. 59 e segs. como se disse, tem vindo a servir progressivamente de principal modelo para a integração europeia, é, exatamente, a tensão dialética entre a integração, por um lado, e a individualidade e especificidade de cada um dos Liinder, por outro. É essa a tensão que faz progredir a integração, com o reforço suplementar da construção do federalismo cooperativo, típica do federalismo alemão". Ou seja, o federalismo constrói-se pela potenciação, no todo federal, da especificidade e da identidade própria de cada Estado federado. Por isso, se e quando a União Europeia se integrar num modelo político de tipo federal (o que só é prenunciado, mas ainda não se encontra concretizado), a construção jurídico-política do federalismo não imporá uma incompatibilidade entre os princípios da integração e do respeito pela identidade de cada Estado-membro. Pelo contrário: os Tratados já deixaram ressalvada esta identidade, como mostrámos. A necessidade, imposta pelos Tratados, de, no processo da integração europeia, se conciliarem a integração e a identidade nacional dá cobertura à diversidade entre os Estados e ao caráter relativo da uniformidade do Direito da União Europeia. 92 122 93 Ver, outra vez, a nossa dissertação de doutoramento, sobretudo pgs. 385- 94 Veja-se sobre isso o nosso O prindpio da subsidiariedade, pg. 79, e bibl. -403. aí cito 123 A União Europeia Prin.cípios constitucionais e valores da União Europeia 38. C) O princIpIo do respeito pela diversidade cultural dos povos enropeus ram, como membros, Estados que, uns mais do que outros, entroncavam a sua civilização e a sua cultura no humanismo greco-latino. Ao contrário, alguns dos Estados que aderiram em 2004 e 2007, e os atuais candidatos à adesão, têm raízes culturais que, sendo muito antigas, são também muito diferentes, ou, pelo menos, albergam no seu território minorias muito marcadas do ponto de vista étnico. É o caso, por exemplo, da República Checa, da Polónia, da Hungria, da Roménia, de Chipre, da Croácia, da Sérvia, mas, sobretudo, da Turquia. Ora, o TUE quis, simultaneamente, assegurar a esses Estados o respeito pela sua especificidade histórica e cultural e reconhecer às suas minorias o direito a preservarem a sua diversidade. Este princípio, em parte, concretiza e desenvolve o princípio anterior, embora, há que o sublinhar, o princípio de que agora nos ocupamos se refira aos "'povos europeus" e já não, como o anterior, aos Estados-membros. Tem, por isso, um valor acrescido em relação ao princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados-membros. Este princípio tem de ser extraído da parte final do 6. ° considerando do preâmbulo do TUE, do artigo 3.°, n. o 3, par. 4, daquele Tratado, do seu novo artigo 2. na medida em que manda preservar os direitos das pessoas pertencentes a minorias, e do artigo 13.°, TFUE, quando impõe o respeito pelos costumes dos Estados-membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional. Ele quer dizer que a União Europeia não se fará sobre a unicidade cultural dos diversos povos europeus, mas, ao contrário, sobre o seu pluralismo. Isto é, a União respeitará a especificidade das culturas dos seus povos e, portanto, a sua diversidade. E ao falar-se, neste caso, em "povos" e não em Estados, quere-se dizer que a União Europeia pretende preservar a cultura própria, não apenas dos Estados, como também dos outros grupos, como é o caso, por exemplo, agora expressamente referido nos Tratados, como se disse, das minorias e das pessoas integradas em minorias. E tudo isto manda o Tratado UE que se faça num espírito de pluralismo, de tolerância, de justiça, de solidariedade e de igualdade, designadamente, entre homens e mulheres (artigo 2.°, infine, UE), e sem prejuízo da salvaguarda e do desenvolvimento do património cultural europeu visto em conjunto (citado artigo 3.°, n.o 3, par. 4, infine). Ou seja, e numa palavra, a União Europeia não será só de Estados, mas de Estados e de povos. Não foi por acaso que este princípio foi integrado no TUE e aprofundado agora pelo Tratado de Lisboa. Para além da sua relevância para o princípio da subsidiariedade, como se verá adiante, quis-se tranquilizar os novos Estados aderentes e os candidatos à adesão à União Europeia. De facto, até 2004 a União e as Comunidades tive0 • 124 Ou seja, a União Europeia não poderá forçar a sua unicidade; ao contrário, progredirá, enriquecer-se-á e valorizar-se-á na sua diversidade e no seu pluralismo", num diálogo entre culturas", até porque, como atrás demonstrámos, por força do novo artigo 2. o UE, terá que o fazer no quadro de recíproca tolerância, de justiça e de solidariedade. É bom recordá-lo, num momento em que em certas zonas da Europa têm nascido, esperemos que provisoriamente, inesperados problemas com minorias, embora não nos caiba julgar aqui das causas e dos responsáveis por esses problemas. Importante corolário deste princípio encontramo-lo no artigo 6.°, n.o 3, UE, que prescreve o respeito pela União dos direitos fundamentais "tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, (...)"". 39. D) O princípio da preservação do património cultural, religioso e humanista da Europa Na sequência do princípio anteriormente referido o Tratado UE passou, com o Tratado de Lisboa, a estipular que os Estados95 96 Sobre este ponto, ver lAcQuÉ, pgs. 89 e segs. Sobre o diálogo intercultural, ver a obra dirigida por SlDJANSKI e SAINT- -OUEN. 91 por M. Veja-se o contributo dado em Portugal a estas questões pela obra editada R1BETRO. MANUELA TAVARES 125 A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia -membros se "inspiram" no "património cultural, religioso e humanista da Europa", do qual, aliás, "emanaram os valores universais", que são alguns dos valores que se encontram elencados no artigo 2."., UE. É o que dispõe o 2.° considerando do preâmbulo do Tratado UE.. Esse trecho deve ser entendido como a expressão da vontade dos autores dos Tratados de que a União e os Estados preservem e respeitem aquele património .. Este princípio quer dizer que a União e os Estados-membro!,' não renegam a sua História nem os valores que presidiram ao seo passado nos dOITÚnios cultural, religioso e humanista. Por isso,- os valores enunciados no artigo 2.° UE devem ser interpretados em sintonia com aquilo que constitui esse património e a existência e a atuação da União devem evoluir com respeito por esse património. 40. E) o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana!:. . A União deve respeitar a dignidade humana ou, talvez melhor' dito, a dignidade da pessoa humana. Di-lo, hoje, de modo expresso,;;'. o artigo 2.° UE ao erguer aquele respeito a valor da União, na esteira.!: do considerando 2.° do preâmbulo do Tratado. Como dissemos atrás, os autores dos Tratados foram buscar,': este valor à Lei Fundamental de Bona, mais concretamente, ao seq"\ artigo 1.0, que serviu de fonte a diversas outras Constituições esta-·, duais, como, por exemplo, à Constituição Portuguesa (artigo \.0). A dignidade da pessoa humana, embora tenha estado sempre: presente no sistema de proteção dos direitos fundamentais da União'i desde o início da integração, passa agora, portanto, por força da letra!;; dos Tratados, a condicionar toda a integração e a pré-determinar 0;( conteúdo de toda a Ordem Jurídica da União, desde logo, os pró-~. prios Tratados. De facto, com ela quere-se significar que, no pro-\ cesso de integração, a Pessoa Humana está antes e acima de tudo','D inclusive antes da Economia, do Mercado. Como ensina KANT, a1i pessoa ~'não tem preço", tem "dignidade"98. E, assim entendida, nwq União a dignidade acompanha a Pessoa Humana ao longo de toda a sua existência. J; • Toda a construção do sistema de proteção dos direitos fundap;smentais na União Europeia decorre também deste valor, embora não ':;0. esgote. Veremos isso daqui a pouco. Aliás, e como se disse, é !:'correto afirmar-se que na proteção dos direitos fundamentais na lXjUnião esteve sempre presente, ainda que implicitamente, a ideia do ;iJJrimado da dignidade da Pessoa Humana. o princípio da solidariedade Como atrás se disse, este princípio constitui um corolário do rincípio da integração. Esses dois princípios, conjugados entre si, lllpem com as conceções clássicas do Direito Internacional (como monstrámos atrás, a propósito do princípio da integração) e, só ~ . si, constituem, simultaneamente, a razão de ser e a característica terminante da União e do seu sistema jurídico". O TUE refere-se à solidariedade, desde logo, no 6.° considedo, 1." parte, do preãmbulo, no artigo 2.°, 2." parte, no âmbito dos ," alares da União, no artigo 3.°, n.o 3, par. 2, sob a forma, nova no 'qii-eito da União, da "solidariedade entre as gerações", no mesmo ~ilI'tigo 3.°, n." 3, par. 3, como solidariedade entre Estados, e n." 5, '9?1ll0 solidariedade entre povos. Encontramos várias concretizações ';aY~lsas desses preceitos gerais ao longo do Tratado, como, por ;e~~mplo, na matéria da PESC, no artigo 24.°, n.o 2 (na fórmula mais :j'ebuscada de "solidariedade política mútua entre os Estados-mem:prqs", com itálico nosso), e, de um modo geral, sempre que se apela ';;::Fa"a"coesão económica, social e territorial" (maxime, artigo 3.°, ,:';~(3, par. 3, UE, onde ela é erigida a um dos objetivos da União). ~," '~'~:Y) o 99 Para além das ops. cits. supra, no fi. 35, veja-se, de modo especial, Soli,?jJ~lta{als Veljassungspdnzip der Europiiischen Unioll, in VON BOGDANDy/KADEL»~c~;pgs. 42 e segs., CALLlESS, pgs. 167 e segs., e ZULEEG, Wl1at ho/ds a Nation ibQ~ther? Cohesion and Democracy in the United Stafes of America and tn the 98 GrundJegr/l1g zur Metaphysik der Sitten, 7. n ed., Hamburgo, 1994, pg. 58.<;,, ':,~~opeall Union,AJCL 1997, pgs. S05 e segs. .,', 126 127 Princípios constitucionais e valores da União Europeia A União Europeia A solidariedade na União (entenda-se: solidariedade entre os Estados e entre estes e a União) quer dizer que existe um interesse comum, um interesse geral, um interesse comunitário, cuja prossecução constitui o primeiro objetivo da União. Ou seja, esse interesse comum, visto como interesse global da União, não se confunde com a soma dos interesses particulares dos Estados-membros e deve prevalecer sobre esses interesses particulares. A criação das Comunidades e, depois, da União significou, da parte dos Estados, a aceitação desse "contrato social", segundo o qual o interesse da União, se sobrepõe aos interesses específicos dos Estados, sendo os sacrifí- .~ cios concretos, impostos a estes, compensados pelas vantagens que . daí advêm ao interesse de todos. A jurisprudência da União já afirmou várias vezes este princípio e por diversas formas: ou simplesmente invocando a existência de um "interesse comum", que transcende os interesses próprios dos l, Estados-membros lOo ; ou reconhecendo que incumbe aos Estados "tomar plenamente em conta o interesse comunitário", o que supõe eles absterem-se de toda a medida "contrária ao interesse comum" ou ao "interesse global da Comunidade" (o que estabelece uma)' conexão entre o princípio da solidariedade e os princípios da boa-fé-e da lealdade comunitária)lol.102; ou definindo, de modo expresso, que "o facto de um Estado romper unilateralmente, conforme a' concepção que ele adota do seu interesse nacional, o equilíbrio entre', as vantagens e os encargos decorrentes da sua pertença à ComunV-, dade põe em causa a igualdade dos Estados-membros perante o Direito da União Europeia" (... ) e que "o desrespeito pelos deveres" de solidariedade aceites pelos Estados-membros pelo facto da suai <' Ac. TI 10-5-60, Compagnie des hauts forneaux et fonderies de Givors;§ Proes. 27 a 29/58, Ree. 1960, pgs. 503 e segs. '" Aes. TJ 24-2-87, De!ifil, Proe. 310/85, CoI., pgs. 901 e segs.; e 20-9-90,.' Comissão c. Alemanha, Proe. C-5/89, CoI., pgs. 1-3.437 e segs. 102 Sobre o conceito de "interesse comum" ou "interesse geral" da Umão' Europeia, veja-se a excelente dissertação de KAUFF-GAZIN, 100 128 adesão às Comunidades afeta as bases essenciais da Ordem Jurídica Comunitária"lo,. G) O princípio da lealdade na União Este princípio sempre constou dos Tratados. Hoje encontramo-lo no artigo 4.°, n.o 3, par. 1, UE, sob o rótulo, criado pelo . d~ LIsboa, de princípio da "cooperação leal". Ele consagra obngaçao de lealdade, ou fidelidade, ou boa-fé, na União (a , análoga à que vigora nos Estados federais "Bundestreue") 104. Este princípio está intimamente ligado, se dIsse, ao anterior. O princípio da lealdade na União assume uma importância na definição das relações entre a União e os Estados-membros. impõe uma obrigação negativa e uma dupla obrigação positiva. A obrigação negativa exprime-se pelo artigo 4.°, n.o 3, par. 3, parte, UE, quando este proíbe que os Estados-membros "adotem medida suscetível de pôr em perigo" a realização dos objedo Tratado (itálico nosso). A dupla obrigação positiva desdobra-se numa obrigação de res',[ta'do (obrigação para os Estados de "tomar todas as medidas ou específicas adequadas para garantir a execução das obridecorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituida União" - artigo 4.°, n.o 3, par. 2, UE) e numa obrigação de ío"'""" (os Estados "facilitam" à União o "cumprimento da sua mis- o mesmo artigo 4.°, n.o 3, par. 3, 1.' parte, UE). Neste último e como nos demonstra um dos grandes pioneiros da doutrina l.J1reH.U da União, IpsEN, num pensamento que continua sempre o princípio da lealdade na União aproxima-se, muito concreAc. TJ 7-2-73, Comissão c. Itália, Proc. 39172, Rec., pgs. 101 e segs. antes deste, o Ac. TJ 10-12-69, Comissão c. França, Procs. 6 e 11169, pgs. 523 e segs. 104 Ver a articulação entre a Gemeinschajtstreue e a Bundestreue, antes de nos grandes clássicos da União, e, logo para começar, em H. P. IpsEN, 217. 103 129 A União Europeia tamente, do princípio, ainda que não escrito, provindo do Direito Constitucional alemão, do comportamento amigo da Federação ("bundesfreundliches Verfahren") 105 O Direito derivado e acordos concluídos entre Estados-membros têm vindo a pormenorizar a exigência do respeito por este princípio em diversas matérias concretas, como, por exemplo, na luta contra a fraude e na proteção dos interesses financeiros da União 106• O TJ tem sido muito exigente no respeito por este princípio, sobretudo sob a forma do dever dos Estados-membros de prestarem à Comissão informações por esta solicitadas ou que eles devam prestar-lhe espontaneamente de modo a que a Comissão possa fisca-107Nte . lizar o cumpnmento pelos Estad os d as suas ob' ngaçoes . o -se, todavia, que este dever é dispensado por preceitos expressos dos Tratados, de entre os quais se destaca o artigo 346.° TFUE. O Tratado de Nice, na Declaração a ele anexa com o n. ° 3 e relativa ao então artigo 10.° CE, hoje, art. 4.°, n.o 3, par. 1, UE, extraía do princípio da lealdade um "dever de cooperação leal", que estendia às relações entre os próprios órgãos comunitários, e que podia levar à celebração de "acordos interinstitu~ionais" entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão. E matéria à qual voltaremos quando estudarmos aqueles acordos entre as fontes do Direito da União lO'. lOS Ver H. P. 1pSEN, pgs. 217 e segs., e bibL aí cit. Esse princípio foi acolhido pelo Ac. TJ 14-11-88, Comissão c. Grécia, Proc. 68/88, JDI 1990, pgs. 453 e segs., com anotação de V. CONSTANTlNESCO. 106 Veja-se SlMON, pgs. 97-98 e 106 e segs. lO? Por todos, Aes. 22-3-94, Comissão c. Espanha, Pree. C-375/92, Cal., pgs. 1-923 e segs., e 24-3-94, Comissão c. Reino Unido, Prac. C-40/92, Cal., pgs. 1-989 e segs. Ver, sobre esta matéria, J. T. LANG, The development by the Court of Justice ofthe duties of cooperation of national authorities and Community institlltions lInder Article 10 EC, FIU 2007-2008, pgs. 1483 e segs. lOS Sobre este princípio hoje, ver R. LANCEIRO, O Tratado de Lisboa e o prindpio da cooperação leal, O Direito 2010, págs. 283 e segs. 130 Princípios constitucionais e valores da União Europeia 43. H) O princípio do gradualismo Este princípio assume duas vertentes. Por um lado, ele quer dizer que o processo de integração europeia deve ser paulatino e progressivo, ou seja, não deve saltar sobre fases, o que poderia pôr em risco todo o processo da integração; mas, por outro lado, ele pretende significar também que a integração não deve parar ou não se deve interromper. Ou seja, ela é, por definição, um processo dinãmico e evolutivo. O gradualismo na integração europeia ficou logo definido na Declaração de Schuman, de 1950, quando ele afirmou, como vimos na Introdução deste livro, que "A Europa não se fará de uma só vez, mas através de realizações concretas, que criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto". Esta ideia foi glosada desde então pela doutrina. E, de várias expressões célebres que esta utilizou ao longo dos tempos para, de forma sintética, exprimir essa mesma realidade, escolhemos a seguinte, de um dos primeiros nomes da doutrina do Direito da União Europeia, L.-I. CONSTANTINESCO: "A integração europeia não é um ser mas um fazer-se; ela não é uma situação acabada, mas um processo; ela não é um resultado, mas a ação que deve conduzir a um resultado"'09. E tem de se dizer que esta regra tem vindo a ser observada, ainda que com alguns pequenos desvios à pureza dos conceitos. Assim, seguiram-se sucessivamente a zona de comércio livre, a união aduaneira e o mercado comum. A formação deste último foi, porém, interrompida pela afirmação da necessidade de se atingir, em 1 de janeiro de 1993, o "mercado interno". A este, seguiu-se a União Económica e Monetária, que foi alcançada em 1999-2002. A outra vertente do princípio do gradualismo estabelece que o processo da integração, consumada que está a integração económica, deverá ser completada por um grau análogo de integração política. Qual seja esse grau de integração política, é algo que os Tratados não dizem. Designadamente, e como já sublinhámos atrás, eles nunca empregam os vocábulos "federalismo" ou "federal". Apenas se sabe que, como já recordámos, a Declaração de Schuman 109 La nature juridique des Communautés européennes, Liege, 1980, pg. 2. 131 A União Europeia apontava para a integração europeia a meta_ da "Fede:ação Europeia", como não se pode negar que a Umao EuropeIa apresenta hoje manifestos traços federais. Todavia, os Tratados nunca ~ft~ma­ ram, por palavras expressas, o federalismo como obJellvo ultImo. Depois de o Tratado CECA, e só ele, se ter servido do adJetlvo "supranacional", mesmo esse adjetivo foi retirado daquele Tratado, devido às divisões que provocou entre os Estados-membros e na doutrina 11O • O princípio do gradualismo encontra-se consagrado em diver" sos preceitos do TUE: no seu preâmbulo, considerand~ 1, consIderando 3, parte final, considerando 13, 1." parte, e consIderando 14; e no artigo 1.0, par. 2, 1.' parte. As fórmulas neles vazadas mostram-nos que os autores dos Tratados mais não quiseram do que~mcular os Estados a "continuar o processo de criação de uma umao cada Ve" mais estreita entre os povos da Europa" (considerando 13 do pr~âmbulo do TUE, com itálico nosso). Todavia, tudo o mais ficou por decidir. Note-se que o Tratado Constitucional, não obstante ter-se cha' mado Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, mantinha a mesma prudência quanto ao gradualismo. Apesar de reafirmar "a vontade dos cidadãos e dos Estados da Europa de cons-,. truirem o seu futuro comum" e de "forjar o seu destino comum" (respetivamente, artigo 1.0, n.o I, e considerando 3 do preâmbulo~,.S aquele Tratado evitava qualquer referência ao concreto modelo pO~I-E tico que se pretende para a União. O Anteprojecto da Comlssaq .{ referia-se ao exercício pela União de atribuições "em formas fede,.;: rais" ou "dentro de linhas federais" (itálicos nossos). Mas mesmo;; essas expressões foram substituídas no Projeto de Tratado saído da) Convenção e, depois, no Tratado, nos respetivos artigos 1.", n." I, e'f 1_1.0, n.o 1, pela referência vaga a "moldes comunitários" - o que., nada adiantava quanto ao modelo político da União. Por ISSO, o Tra-, tado de Lisboa resolveu não incluir no texto dos Tratados aquelas' expressões. Princfpios constitucionais e valores da União Europeia 44. I) O princípio do respeito pelo adquirido da União Este é outro dos princípios fundamentais da União Europeia e que, também ele, não encontra similar no Direito Internacional clássico. Ele decorre do princípio da lealdade na União, mas também, de certo modo, do princípio do gradualismo e do caráter dinâmico e evolutivo que este impõe à União. Este princípio só passou a constar dos Tratados da União e das Comunidades com o TUE, embora tenha sido inserido em todos os Tratados de adesão. De facto, o TUE, aprovado pelo Tratado de Maastricht, acolheu-o no artigo 2.°, 5.° travessão (sob a fórmula de "manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu desenvolvimento"), e no artigo 3.°, par. 1. Por sua vez, o Tratado CE consagrou-o no artigo lll.o, n.o 5, na versão de Nice. O Tratado de Amesterdão acrescentou uma nova referência ao adquirido comuni". tário, no seu novo artigo 299.", n.o 2, par. 4, CE. Aí se vinha dispor que o regime das regiões ultraperiféricas (que estudaremos adiante, •..• mas que englobam, entre outros, os Arquipélagos da Madeira e dos Açores) não podia pôr em causa "a integridade e a coerência do ordenamento jurídico comunitário" (itálico nosso). O Tratado de Lisboa, dos preceitos referidos, só conservou o .. !Htimo, que agora é o artigo 349.°, par. 4, TFUE, e onde a expressão ~f"ordenamento jurídico comunitário" foi substituída por "ordena!I:mento jurídico da União". ",; Este princípio postula que o processo de integração se deve .\\considerar, a todo o momento, como definitivamente consolidado e "*!jPortanto, tem de ser encarado como jurídica e politicamente irrever~ :)lsível. Por conseguinte, os Tratados, os objetivos aí estabelecidos, o ;;j)ireito derivado já aprovado, as opções já realizadas - tudo isso tem :,?qe ser entendido, em cada momento, como irreversível e sedimen\;f;t~do de modo definitivolll. Pode-se progredir na integração, não se *'Bode regredir nela. No fundo, é uma questão de respeito pelos prinI~.?ípios da boa-fé e pacta sunt servanda. Foi devido a esta evidência '!.~ue o TUE e o TFUE, depois do Tratado de Lisboa, deixaram de "'0,.; 110 Ver a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 129 e segs. 132 li! Neste sentido, por todos, PESCATORE, Aspectsjudiciaires, pgs. 617 e segs. 133 Principios constitucionais e valores da União Europeia A União Europeia insistir no respeito pelo adquirido da União como faziam os Trata· dos anteriores: se qualquer Estado-membro não se sente em condi-i, ções de cumprir as suas obrigações para com a União, passa a poder,,! aliás, sair livremente da União, como dispõe agora o artigo 50.° UE.' O princípio do respeito pelo adquirido comunitário foi aco'); lhido muito cedo pela jurisprudência do TJ, desde logo, num excerto; célebre do Acórdão por ele proferido num dos primeiros e maisN' notáveis casos: o caso Costa/ENEL. Aí se dizia que "A transferência,:: levada a cabo pelos Estados, da sua Ordem Jurídica interna para !t e: Ordem Jurídica comunitária, de direitos e obrigações corresponden'),Y'l: tes às disposições do Tratado, implica (... ) uma limitação definitiva.> dos seus poderes soberanos contra a qual não se poderá fazer pre-'} valecer um ato unilateral posterior incompatível com a noção de'E Comunidade"112. .< Esta doutrina seria retomada pelo TJ em vasta jurisprudênci%'~ posterior l13 • • Com base nesta orientação, tem-se entendido que é a própria)" noção de Comunidade (que atrás estudámos a propósito do princípio;l· da integração) que impede qualquer ato, unilateral ou coletivo, dO$;. Estados-membros, que atente contra o adquirido da União. Quantç';' à atuação coletiva, fica apenas por esclarecer se também fica proF,): bida a dissolução da União, por comum acordo, e quando ela for~ levada a cabo com respeito pelo processo de revisão dos Tratados 01{.. pelas regras contidas na Convenção de Viena sobre o Direito do,:; Tratados. Mas não é questão que caiba discutir neste lugar, nem a; hipótese se coloca h o j e . ' , O TJ tem considerado como contrário a este princípio, e, por;[' tanto, proibido por ele, qualquer costume contra legem que se pre;:, tenda ver constituído contra os Tratados. Ou seja, os Tratadoss6·' podem ser revistos pelos processos de revisão nele previstos, nunc~; ,)1 Ac. 15-7-64, Proe. 6/64, Rec., pgs. 1.141 e segs. O itálico é nosso. ,,,' I]) Ver, sobretudo, Despacho de 22-6-65, San Michele, Peocs. apensas 9,~~ 58/65, Rec., pgs. 65 e segs.; e Ac. 17-12-70, Internationale Handelsgesellschaft," ll2 Proc. 11170, Rec., pgs, 1125 e segs .. Sobre esta matéria, ver GONÇALVES PERE1RA(. IQUADROS, pgs. 127~128, e bibl. aí citada. 134 por um costume constitucional contra legem '14 • Do mesmo modo, !ctem sido entendido que toda a "renacionalização" ou "descomunitarização" de atribuições já comunitarizadas pela via dos mecanis;'mos próprios do Direito da União Europeia também infringe o "princípio do adquirido da União l15 • Note-se, todavia, que, quanto a esta renacionalização, ela não será ilegal quando resultar do funcionamento normal do princípio da subsidiariedade, como adiante mostraremos. O respeito pelo adquirido da União comporta duas exceções. A primeira consiste nos períodos de transição concedidos aos 'jJ3stados aderentes nos respetivos Tratados de adesão. Durante a '.Vigência desses períodos, nem os Estados aderentes se encontrarão subordinados ao Direito da União nas matérias em questão e nos termos definidos nos respetivos Tratados de adesão, nem os Estados . ,Já membros terão que respeitar, também nas matérias em causa e nas ..90ndições acordadas, o Direito da União nas suas relações com os spetivos Estados aderentes. 'i:"" A segunda exceção traduz-se nas cláusulas de proteção ou de ~~lvaguarda. Elas eram admitidas de modo expresso pelos Tratados, 'rnbora cada vez com maiores reticências. Na versão de Nice, o xemplo principal dessas cláusulas era o artigo 134.°, par. 2, CE. O tatado de Lisboa fez desaparecer esse artigo. Todavia, não se vê a.zões, à partida, para se recusar liminarmente a existência desse ;pode cláusulas no processo de integração. Elas trazem a esse pro.;,~sso um desvio menos profundo do que as formas de integração '.ferenciada, que estudámos atrás"'. 114 Por todos, Acs. 14-12-71, Comissão c. França, Proe. 7171, Rec., pgs. 3e segs.; 15-11-94, Parecer 1/94, CoI., pgs. 1-5.267 e segs., ponto 52; e 11·95, Atemanha c. Conselho, Proc. C-426/93, CoI., pgs. 1-3.723 e segs. ,\15 Para maiores desenvolvimentos sobre o princípio do adquirido da União, 'a;sea já referida obra de PESCATORE; SIMON, pgs. 108 e segs.; e GRAB1TZlHILPl ~HEIM, comentário aos preceitos em eausa dos Tratados UE e TFUE. 116 Vejam-se as anotações ao citado ex-artigo 134.°, par. 2, CE, nos ComenpSGRAB1TZlHILF/NETTESHE1M, STREINZ e CONSTANTlNESCO CE. ::, 135 A União Europeia Principios constitucionais e valores da União Europeia 45. J) O princípio da Democracia. A noção de "União de Direito" da própria União e dos seus órgãos (considerando 7.° do preâmbulo do TUE). O TI já defendeu que a eleição do Parlamento Europeu por sufrágio direto e universal havia dado um forte contributo para o princípio da Democracia como princípio constitucional da o princípio da Democracia é outro dos princípios constitucionais da União Europeia. Ele enforma toda a União e a sua Ordem Jurídica. Mais do que isso, aliás: ele é um dos valores comuns da União, elencados no artigo 2.° UE. Hoje, ele encontra a sua consagração expressa no 2.° conside. rando do preâmbulo. Depois, integrado no acervo dos valores da j' União, a Democracia aparece-nos como objetivo da União (artigo " 3.°, n.o I, UE), como princípio que deve reger a ação externa da União (artigo 3.°, n.O 5, UE) e, sobretudo, como ideia com o rico conteúdo que lhe dá o Título 11 do Tratado UE. Ao longo da História da integração europeia e, concretamente; dos Tratados, o princípio e o valor da Democracia têm-nos apare-, cido divididos em várias ideias-motoras: a Democracia propria- '~ mente dita; a liberdade; o respeito pelos direitos fundamentais; o,;' pluralismo; a tolerância; e a justiça. Estas ideias surgem-nos hoje';; proclamadas como valores da União pelo artigo 2.° U E . S Em sentido estrito, a ideia de Democracia quer dizer, na inte-'F gração europeia, antes de mais, paz. Como atrás se afirmou, e, desde;; logo, com base na Declaração de Schuman, de 9 de maio de 1950,; a obtenção de uma paz definitiva para a Europa foi um dos primei.) ros objetivos, se não o primeiro, que se quis prosseguir com a inte-> gração europeia, para o que era necessário, para começar, e como se'" enfatizava naquela Declaração, pôr termo à "oposição secular entre,:)' a França e a Alemanha". ' Hoje, a paz na Europa e no Mundo figura no TUE como obje-" tivo da União (considerando 11.°, parte final, do preâmbulo, e artigoÇ 3.°, n.O 5, U E ) . ; ; Essa Democracia, em sentido estrito, que a União defende, é) uma Democracia política, económica e social (retomando ideias dg; Plano Schuman, o TUE prefere falar em "progresso social" - artiggg 3.°, n.o 3, par. I, UE -, ao qual acrescentou agora referência aO"f bem-estar dos povos dos Estados - o mesmo artigo, n.o I, UE). E é:; uma Democracia que tem de começar pelo funcionamento internq~ 136 União l17 • A segunda ideia em que se divide o princípio da Democracia, entendido agora em sentido amplo, é a de liberdade. Também ela constitui hoje um valor comum da União, confonne dispõe o artigo , UE. Atualmente, a maior expressão desse princípio é a da transforma.ção da União num "espaço de liberdade, de segurança e de justiça", valorizado profundamente nos Tratados (artigo 3.°, n.' 2, UE, e Parte III, Título V, TFUE). A terceira ideia postulada pelo princípio da Democracia é a do respeito pelos direitos fundamentais, igualmente previsto nos Tratados como valor comum (artigo 2.° UE) e depois enfatizado nos considerandos 2.',4.° e 5.° do preâmbulo, e no artigo 6.°, UE, bem 'como nos artigos 17.° a 25.' TFUE, quando criam a "cidadania da União". Há que atender, nesta matéria, de modo muito especial, à "Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, agora incorpo, radajuridicamente nos Tratados (artigo 6.°, n.o I, UE). Dentro do respeito pelos direitos fundamentais, os Tratados destacam agora a salvaguarda dos direitos das minorias e das pessoas nelas integradas (artigo 2.° UE). Neste domínio, pode-se, pois, dizer hoje que já existe uma ""'sólida "União de direitos". Depois, o princípio da Democracia impõe a ideia de Estado de Direito, significando este, na fórmula de rule 01 law ou Rechts'staatsprinzip, o primado do Direito e da legalidade comunitária. Também o Estado de Direito passa a ser um valor comum da União (!!fligo 2.° UE). A ideia de Estado de Direito prende-se com vários utros princípios gerais de Direito que, como veremos, são fonte do Direito da União, o principal dos quais é o princípio da segurança 1I7 Ac. 29-10-80, Roquette e Maizena c. Conselho, Proe. 138179 e 139/79, pgs. 3.333 e segs. (especiatmente, 3.360 e 3.424). Veja-se também BLECKpg. 123. 137 A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia jurídica e da confiança legítima, muitas vezes traduzido pela fórmula, cara ao Direito alemão de princípio da tutela da confiança ("Vertrauensschutz") I IS. O Tribunal Constitucional alemão reconhece que o princípio do Estado de Direito é um dos princípios constitucionais do Direito da União Europeia e aplica-o como tal na ordem interna, como se vê, como mostrámos atrás, pelo caso Lisboa"'. Por fim, a Democracia impõe o respeito pelo pluralismo, a tolerância e ajustiça. O pluralismo na conceção política, económica e social da sociedade, a tolerância perante ideologias. culturas e etnias diferentes, uma justiça eficaz e igual para todos. Todos estes princípios encontram-se hoje erguidos à categoria de valores da União pelo referido artigo 2.° UE. Entendido com este conteúdo muito vasto, o princípio da Democracia presidiu, de modo constante, à atuação das antigas Comunidades e preside agora à atuação da União. Foi assim que as Comunidades nunca encararam a hipótese de terem como membros Portugal e a Espanha enquanto estes viveram sob regimes autoritários; foi assim que a própria Grécia viu as negociações para a sua adesão interrompidas durante a "ditadura dos coronéis", de 1975 a 1980; é assim que a União tem condenado, de modo igual, todas as ditaduras que ainda subsistem pelo mundo fora, independentemente da sua cor política (numa linha de coerência que tem faltado a alguns Estados-membros); é dessa forma que a União tem dedicado especial atenção à proteção das minorias nos Estados do leste europeu ou na África l2O; e tem sido assim que o respeito pela Democracia, em toda a sua extensão, tem constituído, juntamente com outros valores do artigo 2. ° UE, um dos requisitos exigidos para a adesão de novos Estados (artigo 49.°, par. 1, UE). Alguma doutrina, sobretudo de raiz alemã, caracterizou a CE como uma "Comunidade de Direito" ("Rechtsgemeinschaft"), enquanto que hoje a expressão" União de Direito" vai começando a fazer carreira. O próprio TJ já qualificou o Tratado CE como a "Carla Constitucional de uma Comunidade de Direito" 121 , como atrás salientámos. Por União de Direito pode querer-se dizer uma coisa mais simples: que, paralelamente à integração económica, social e política, tem de correr a integração jurídica da União, isto é, a elaboração de uma Ordem Jurídica para a União que suporte e alimente o estádio de desenvolvimento da integração económica, social e política já alcançado. Assim entendida, a União de Direito deve muito ao labor da jurisprudência da União. Mas por União de Direito vem-se, há muito, a querer dizer também, algo de muito mais profundo: que a União possui uma Ordem Jurídica que está assente numa Constituição material, moldada por uma "escala de valores", como hoje o reconhece, de modo expresso, o artigo 2.° UE. Esses valores, a somar à proteção e à garantia dos direitos fundamentais e ao princípio da Economia Social de Mercado, do qual falaremos adiante, inserem-se no núcleo essencial da Democracia e do Estado de Direito, que enformam na União Europeia a tal ideia de "Comunidade de Direito"122 Também por aqui, portanto, se robustece o princípio da Democracia como princípio e valor constitucional da União e do seu sistema jurídico. 118 W. FRENZ, Grundrechtlicher Vertrauensschutz: nicht nur eill allgemeiller Rechtsgmndsatz, EuR 2008, pgs. 468 e segs. 119 A Alernanha é, sem dúvida, o Estado-membro da União onde o princípio do Estado de Direito tem tido mais denso tratamento dogmático - veja-se, por último, BADURA, Staatsrecht, 5. a ed., Munique, 2012, pgs. 363 e segs. 120 Ver GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 387 e segs., e QUADROS, Der Min~ derheitenschutz im modernen Volkerrecht, in Festschrift Herbert Schambeck, Berlim, 1994, pgs. 853 e segs. '" Ae. 23-4-86, Les Verls, Proe. 294/83, CoI., pgs. 1.339 e segs. Esta conceção de Comunidade de Direito deve-se, antes de todos, a um dos mais importantes nomes dos chamados "pais-fundadores" ("foundingfathers") das Comunidades, WALTER HALLSTEiN, que foi o primeiro Presidente da Comissão das Comunidades após a entrada em vigor dos Tratados CEE e CEEA - Die Europaische Gemeinscltaft, pgs. 31 e segs, e Europãischen Reden, Estugarda, 1979, pgs. 341 e segs. Modernamente, duas das melhores aplicações da noção de "Comunidade de Direito" à União Europeia encontramo-las em SIMON, pgs. 96 e segs., com muito boa bibliografia complementar af citada, e RIDEAU, De la CommUllauté de droit à I'Uniofl de droit, Paris, 2000. 138 139 122 Principios constitucionais e valores da União Europeia A União Europeia A conceção da União de Direito, assim entendida, teria ficado adequadamente refletida no atual Tratado UE caso nele houvesse sido ·vertida a noção de "Comunidade de valores" que, como atrás mostrámos, fora proposta pela Comissão Europeia. Assim, tivemos que nos contentar com o arrolamento dos valores comuns da União no artigo 2.° UE em complemento do considerando 2.° do mesmo Tratado. 46. L) O princípio da subsidiariedade Também constitui um princípio constitucional da União o princípio da subsidiariedade. O seu estudo mais desenvolvido será levado a caho adiante, quando nos ocuparmos da repartição de atribuições entre a União e os Estados-membros, que constitui a matéria em que mais acentuadamente aquele princípio se espelha. Aqui só nos referiremos a ele na medida em que ele tem de ser visto, em geral, como princípio constitucional da União Europeia. O princípio da subsidiariedade entrou para os Tratados, como cláusula geral, pela via do artigo 3. 0 _B, par. 2, CE, introduzido no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht. Quanto à União Europeia no seu todo, embora desde então o TUE contivesse referências específicas à subsidiariedade, esta, como princípio autónomo, só passou a constar formalmente desse Tratado com a revisão de Amesterdão. De facto, de harmonia com o artigo 2.°, último parágrafo, UE, após essa revisão, os objetivos da União Europeia seriam prosseguidos com respeito pelo princípio da subsidiariedade. Quer pela remissão do artigo 2.° UE para o artigo 5.° CE, na versão de Amesterdão, quer pela sua função própria, a subsidiariedade veio fundamentalmente disciplinar o exercício das atribuições concorrentes, ou partilhadas, da União, isto é, daquelas das suas atribuições que tanto podiam ser exercidas por ela como pelos Estados-membros. E veio dizer que a União só podia exercer essas atribuições se demonstrasse que os Estados não eram capazes de as exercer de modo suficiente e que ela, a União, era capaz de o fazer melhor a fim de alcançar os objetivos dos Tratados. Em rela140 ção àquelas atribuições, este princípio conferia, portanlo, prioridade, ou preferência, à intervenção dos Estados. Hoje, aquele princípio enconlra-se dessa forma regulado no artigo 5.°, n.O 3, UE. O princípio da subsidiariedade é, pois, também ele, um princípio jurídico, embora possua um grande alcance político. E por duas razões. A primeira é a de que aquele princípio adota uma filosofia descentralizadora nas relações entre a União e os Estados, ampliando, em cada caso concreto, a soberania dos Estados, em detrimento da ação da União, sempre que os Estados revelem capacidade e suficiência para alcançar os fins dos Tratados. A segunda razão, que, aliás, completa e desenvolve a anterior, é a de que o princípio da subsidiariedade relativiza o âmbito da soberania 'que cada Estado- -membro vai conservando no processo da integração europeia. O Estado guardará, ou reterá para si, tanto maiores parcelas de soberania quanto mais capaz se vier a revelar, em cada caso concreto, e em cada momento, de exercer, sozinho, as atribuições concorrentes e, por conseguinte, puder evitar, e dispensar, nas respectivas matérias, a intervenção da União. Como se disse, hoje a sede principal do princípio da subsidiariedade nos Tratados é o artigo 5.°, n.o 3.°, UE. Além dele, há outros preceitos específicos que a ele se referem, e que adiante analisaremos. Na base daquele citado preceito, foram produzidos vários documentos, sobretudo pela Comissão Europeia, e, ainda nos anos 90, foi celebrado um Acordo Interinstitucional entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão sobre os procedimentos a adotar para a aplicação daquele princípio l23 . Todavia, pode dizer-se que o posterior Protocolo n.o 7 anexo ao Tratado de Amesterdão, relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, veio codificar todas as disposições e os textos antes aprovados sobre a subsidiariedade e constituiu até ao Tratado de Lisboa a base jurídica daquele princípio, que desenvolvia e aplicava o artigo 5.°, par. 2, CEI24. O novo Protocolo relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, que ficou anexo ao Tra123 124 Boletim CE 10/93, ponto 2.2.2. Veja-se CONSTANTINESCO, Les clauses, pgs. 751 e segs. 141 A União Europeia tado de Lisboa com o n. o 2, manteve-se fiel às grandes linhas orientadoras daquele primeiro Protocolo, mas veio modificá-lo na perspetiva da sua nova preocupação: a de fazer participar os Parlamentos nacionais no controlo do princípio da subsidiariedade. Ao conferir prioridade aos Estados no exercício das atribuições partilhadas da Comunidade a ideia de subsidiariedade dá aos Estados-membros oportunidade de manter e reforçar a sua especificidade e, concretamente, a especificidade do seu ordenamento jurídico e dos princípios e valores que o regem. É o que dispunha, aliás, o n.o 7, particularmente na sua segunda frase, do citado Protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão, que sobreviveu ao Tratado de Nice e que não se deve considerar abrogado pelo Protocolo n." 2 anexo ao Tratado de Lisboa, apesar de este não se referir de modo expresso a este ponto. A prova de que essa ideia continua a ser cara aos Tratados depois da revisão de Lisboa reside no facto de eles, em preceitos concretos, mandarem atender aos sistemas jurídicos próprios dos Estados-membros. É o que faz, por exemplo, quanto ao espaço de liberdade, segurança e justiça, o importante artigo 67.° UE, no seu n.o 1, infine. Digamos que a ressalva das especificidades dos ordenamentos jurídicos nacionais coloca-nos perante a maior amplificação possivel do princípio da subsidiariedade. Por isso, a subsidiariedade deve ser concebida como tendo uma conexão muito forte com o princípio, atrás estudado, da salvaguarda da identidade nacional dos Estados-membros e, mais concretamente, deve ser valorizada por cada um dos Estados-membros como sendo uma das vias mais importantes para a preservação e a defesa, no conjunto da União, dessa identidade própria. Por outro lado, ao descentralizar, por essa forma, nos Estados o exercício das atribuições concorrentes, a subsidiariedade aproxima o poder dos cidadãos, o que expressamente assumido pelo artigo 1.0, par. 2, in fine, UE. Desse modo, o princípio da subsidiariedade vem fazer da União Europeia uma União de Estados. de povos e de cidadãos!". Princípios constitucionais e valores da União Europeia 47. M) O princípio da proporcionalidade Até ao Tratado da União Europeia o apelo ao princípio da proporcionalidade no Direito da União Europeia pela doutrina e pela jurisprudência (que lhe davam especial importância no Direito da União Europeia da Agricultura!26) era feito na base da ideia de que aquele princípio era um princípio geral de Direito que, portanto, também como tal, era fonte do Direito da União Europeia, ainda por cima no quadro da elevada importância que os princípios gerais de Direito assumem como fonte formal do Direito da União, como veremos quando estudarmos as fontes do Direito da União. Na jurisprudência do TJ, a proporcionalidade impunha, então, sobretudo a demonstração da necessidade de proibições ou restrições trazidas às qllatro liberdades 127 • A maior parte dessa jurisprudência era consaao atual artigo 42. TFUE (ex-artigo 30.° CE)!28. O Tratado da União Europeia valorizou profundamente o prinda proporcionalidade, tomando-o Direito escrito e numa matéessencial à União: o exercício das atribuições da União. De facto, então artigo 3. _B, par. 3, CE, veio dispor que "A ação da Comunidade não deve exceder o necessário para atingir os objetivos do pre',ente Tratado". Hoje, o TUE diz praticamente o mesmo quando estabelece que virtude do princípio da proporcionalidade, o conteúdo e a da ação da União não devem exceder o necessário para alcanos objetivos dos Tratados" (artigo 5.°, n.o 4, par. 1, UE). Esta ideia de proporcionalidade como, simultaneamente, llel~essidlade da medida e também proibição do seu excesso, foi, tarnb.ím ela, inspirada fortemente no Direito Constitucional e no Administrativo da Alemanha. Sobretudo no quadro do artigo 5. ° CE, mas também do atual artigo 5.°, n.o 4, UE, ela 0 0 126 NÉRI, pg. 653. Veja-se o estudo muito pormenorizado do artigo 5.°, n.o 3, UE, em GRA~ em anotações àquele preceito, para além da bibliografia que será indicada adiante, quando do estudo mais demorado do princípio da subsidia~ riedade - infra, 0.° 86. Um dos primeiros Acs. na matéria foi o de 13-5~71, lnternational Fruit COIl1P'IIlY, Procs. 41 a 44170, Rec., pgs. 411 e segs., e conclusões do Advogac'U-\Jera' ROEMER, pg. 430. 128 Ver, por ex., Ae. 8-11-79, Firma Denkavif, Proe. 251178, Rec., pgs. 3.369 e conclusões do Advogado~Geral W ARNER, pg. 3.397. 142 143 121 125 BlTzJHILF/NETTESHEIM, A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia constitui um princípio autónomo, ainda que complementar, em relação ao princípio da subsidiariedadel29.13o.13I. Foi como tal que também o seu regime esteve codificado pelo mesmo Protocolo, atrás referido, anexo ao Tratado de Amesterdão, que se ocupava do princípio da subsidiariedade, acontecendo o mesmo com o citado Protocolo n.o 2 hoje anexo ao Tratado de Lisboa 132 • condições de manter o mesmo ritmo de integração. É necessário, todavia, como também explicámos na devida altura, que, sobretudo pelo respeito pelos requisitos aos quais os próprios Tratados UE e TFUE sujeitam a flexibilidade na integração, se atenuem os inconvenientes que provêm da diferenciação da integração para a coesão económica e social no seio da União e para o princípio da uniformidade da Ordem Jurídica da União'34. 48. N) O princípio da integração diferenciada Já estudámos atrás a integração diferenciada. Como então vimos, este princípio também aparece designado doutras formas, inclusive, por princípio da flexibilidade. Mas pensamos que a expressão "integração diferenciada", de entre aquelas que têm sido utilizadas, exprime melhor o que se pretende aqui significar 133 O princípio da integração diferenciada permite que alguns Estados possam avançar na integração mais depressa do que outros. Por isso, beneficia tanto esses, que não têm de ficar à espera dos outros, como os que se encontram mais atrasados, porque não lhes impõe, no quadro da integração, obrigações e sacrifícios para cujo cumprimento eles ainda não se encontram preparados. Trata-se, fundo, de aceitar, pela positiva, a velha tese da "Europa a duas velocidades", ou "Europa a várias velocidades", ou "Europa de geometria variávef', ou "Europe à la carfe". A integração diferenciada constitui, como atrás uma inevitabilidade: com os sucessivos alargamentos da Europeia aumentou a distância que separa os Estados-membros grau do seu desenvolvimento, pelo que nem todos eles estão 129 130 Ver infra, 0.° 87. Neste sentido, o Ac. TJ 12-11-96, Reillo Unido c. C-84f94, Rec., pgs. 1-5.755 e segs. 131 Ver, especialmente, PAPADOPOULOU, pgs. 243 e segs. l32 Ver CONSTANTINESCO, Les clauses, pgs. 751 e segs. e., por último, O) O princípio do equilíbrio institucional É vulgar ser considerado como princípio constitucional da União também o princípio chamado do "equilíbrio institucional". não nos afastaremos dessa orientação, embora tenhamos de sul)lillh~lr o caráter relativo deste princípio. Os Tratados institutivos das Comunidades adotaram, na sua Ol:ganizaç'ío interna, o princípio da separação de poderes, o que não .aCl)ntlece nas Organizações Internacionais clássicas. Mas, por vontade expressa dos fundadores das Comunidades, Tratados recusaram-se a estabelecer um simile entre o sistema de rellartiçãio de poderes que adotaram e o sistema estadual. O sistema consagrado é um sistema de "pesos e contrapesos", pretende respeitar nas relações entre os vários órgãos, especial!';me:ntl'. entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, um entre os vários interesses em presença - o dos povos dos gElstacdo:s, o dos Estados e o da integração. E, no que toca à participados Estados nos órgãos, o sistema adotado respeita uma proporentre os Estados grandes, médios e pequenos. O que o princípio do equilíbrio institucional pretende signifié que os Tratados devem manter essa relação de "pesos e contra_"0_0" e, por conseguinte, os órgãos devem respeitar reciprocamente sua competência e a relação que entre eles se estabelece por via DANWITZ. J33 de Ver a bibliografia atrás citada a este propósito, em especial, a mcmoJ~ralj, e a dissertação de GurLLARD. TUYTSCHAEVER 144 1.'4 Assim, muito especialmente, B. DE WI1TE et al., The Many Faces of IJUle"n""atlc>Jl in EU Law, cit., pgs. 41 e segs. 145 A União Europeia dos Tratados, inclusive no que toca ao peso relativo dos Estados, no processo de decisão na União. Dissemos que este princípio tem um earáter relativo. Com isto pretendemos significar que aquele princípio não será infringido quando uma revisão dos Tratados, levada a cabo em conformidade com o que estes dispõem, alterar o sistema institucional da União e, concretamente, a relação de poder que se estabelece entre os vários órgãos, sempre que essa alteração for imposta pelo progresso da. integração, isto é, pelo respeito por outros dois princípios constitucionais da União: o da integração e o do gradualismo. 50. P) O princípio da transparência Durante muito tempo este princípio assumiu um caráter secun- " dário no Direito da União, porque dizia respeito apenas ao acesso à ,i? informação e aos documentos da União bem como à codificação e à qualidade na feitura do Direito derivado, Quanto ao primeiro aspeto, e de harmonia com a Declaração n.' 17 relativa ao direito de acesso à informação, que esteve anexa ao Tratado de Maastricht, o Conse-, lho e a Comissão aprovaram, em 8 de dezembro de 1993, um'; Código de conduta relativo ao acesso do público aos documentos,:; do Conselho e da Comissão 135. E a jurisprudência comunitária} depressa viria a considerar aquele direito, bem como os seus limites" e as suas excepções, suscetíveis de fiscalização por via judicial]36. :.:~ Todavia, como o TJ tivesse posto em causa o valor e o ãmbito,!, desse direito de acesso porque ele não tinha fundamento nos Trata-; dos 137, o Tratado de Amesterdão decidiu consagrá-lo como verda-!, deiro direito subjetivo, mas dando-lhe uma grande amplitude e:;:' definindo-o para o conjunto global da União. De facto, o artigo LO.,\ m lO L 340/41, de 31·12-93, . '" Ao, TPI 19-10-95, John Caroel, Proe. T-194/94, CoL, pgs. 11-2.765." Veja-se também, por ex., o Despacho do Presidente do TPI 3-3-98, Carlsell, Proe.?; T-61O/97, CoL, pgs. 11-485 e segs, 137 Ae. 30-4-96, Países Baixos c. Conselho, Proe. C-58/94, 1-2.169 e segs. 146 Princípios constitucionais e valores da União Europeia UE, depois dessa revisão, veio dispor que na União "as decisões serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível". Este princípio, assim enunciado, ultrapassava bastante as matérias específicas da informação e do acesso a documentos para englobar o conjunto global do exercício do poder político na União. Por isso, houve quem lhe chamasse princípio da abertura, em lugar de princípio da transparência]38. É com este alcance que ele passou a ter de : ser visto como um princípio constitucional da União. A questão concreta do acesso aos documentos foi absorvida pelo texto dos Tratados, através da inclusão, pelo Tratado de Amesterdão, no Tratado CE, do seu novo artigo 255.'. Além disso, a ; transparência aparecia referida nas Declarações anexas ao Tratado de Amesterdão com os n." 39 e 41. A primeira tinha por objeto uma "~"~o das modalidades do princípio da transparência na União Europeia :,c' que é a "qualidade de redação da legislação comunitária". O Tratado de Nice, através da Declaração a ele anexa com o n.'23, e respeitante "ao futuro da União", não se esqueceu da transig'parência e prescreveu que o debate sobre o futuro da integração, que i{\\'então se iria iniciar, desde logo, a propósito do alargamento (que Z\então já se sabia que iria começar em 2004), incluísse a "simplifica';'Xão dos Tratados, a fim de os tornar mais claros e mais compreensí'j;veis, sem alterar o seu significado". " O Tratado de Lisboa veio condensar o princípio da transparênsi,eia no Tratado UE, no âmbito dos "princípios democráticos", mas !"~umentando-lhe significativamente o seu âmbito e o seu alcance. { Os preceitos-base nesta matéria são os novos artigos lO.' e 11.' 1'. ..: O artigo 10.', depois de dispor, no seu n.' 1, que o funciona,"lOento da União se baseia na democracia representativa, estabelece, ~".Jll) n.' 3, que "todos os cidadãos têm o direito de participar na vida 5':?emocrática da União. As decisões são tomadas de forma tão aberta }i'.~ tão próxima dos cidadãos quanto possível" (itálicos nossos). 'tif,i, •. Este artigo encontra-se concretizado nos quatro muito exigen~2t!1~números do artigo seguinte, o artigo 11.' do TFUE. Assim, esse r j 138 Por ex., ISAAC, pg. 87. 147 Principios constitucionais e valores da União Europeia A União Europeia artigo obriga as instituições e os órgãos da União a criar as condições adequadas para que as associações representativas dos cidadãos e, em geral, a sociedade civil se possam exprimir sobre todos os domínios de atividade da União e trocar, nessa matéria, publica" mente, os seus pontos de vista com essas instituições e esses órgãos, , (n. o 1); impõe-lhes um "diálogo aberto, transparente e regular" com},. essas associações e com a sociedade civil (n. o 2); estabelece que a:\. Comissão consultará, de forma ampla, todas as partes interessadas"} (n. o 3); e reconhece, no âmbito da cidadania da União, o direito de'· iniciativa popular (n. o 4, que será estudado adiante, no quadro da-: cidadania da União). " Depois, o artigo 15.° TFUE regulamenta, em termos amplos, 01, princípio da transparência, sob as formas de "princípio de abertura"]. (n. o 1 desse artigo), do carácter público das sessões do Parlamento;, Europeu e das reuniões do Conselbo em que este delibere e vote"'!,;, sobre um projeto de ato legislativo (n. o 2), do direito de acesso aos/.! documentos (o que veio reformular aquilo que se dispunha no TUE1p antes do Tratado de Lisboa - n. o 3, pars. 1, 2 e 3), da transparência;; dos trabalhos de todos os órgãos e instituições, inclusive do TJUE e,~ do BCE, na medida prevista no n. o 3, par. 4 (n. o 3, pars. 3,4 e 5). " O princípio da transparência tem ganho especial relevância no::; exercício do poder político no seio da União, tanto através da cres-'; cente participação nesse exercício de entidades nacionais (inclusiva-'t mente de grau infraestadual, como Estados federados, regiões' políticas ou administrativas, municípios, associações representati-,;' vas de interesses nos domínios do ambiente, da proteção dos consll":i midores, da saúde pública, e outros), quer através do reforço dos:" meios de fiscalização da utilização pelos Estados de auxílios estatai~·, ou de dinheiros públicos com fonte na União ou, num plano mais7 geral, da sua gestão orçamental e financeira no quadro da UEM,:' (veja-se, sobre este último ponto, o artigo 126.° TFUE). Des#:, forma, o princípio da transparência tem vindo a obter especial;; importância no Direito Administrativo da União, que disciplina ri} procedimento administrativo no seio da União, isto é, a execução dod Direito da União Europeia por via administrativa ao nível da União. Dele nos ocuparemos no local próprio. ,,'}. 148 51. Q) O princípio da Economia Social de Mercado. O modelo social enropeu Desde muito cedo que se começou a falar no Direito Comunina "Constituição económica" das Comunidades'''. Com isso qualificar o sistema económico das Comunidades. a criação da União Europeia o problema passou a colocar-se : quanto ao conjunto global da União. ? O sistema económico da União é, antes de mais, o da Econo, mia de Mercado. Foi com base nela que se ergueu a União Económica e Monetária e é com fundamento nela que se desenvolve todo >:o:'--Direito material da União, composto, sobretudo, pelas quatro liberdades, pelo Direito da Concorrência e pelas políticas comuns. Mas é preciso ir-se mais longe e dizer-se que não é uma qualquer Economia de Mercado: é uma Economia Social de Mercado. •Foi deste modo que colocámos o problema nas edições anteriores <leste livro, apesar de não ser essa a metodologia adotada pelas obras gerais sobre Direito da União, salvo algumas da doutrina alemã. Hoje, o problema está resolvido pelo Tratado de Lisboa no ,sentido que propugnámos no nosso ensino ao longo de muitos anos. Na definição de Economia Social de Mercado como sistema 'económico da União houve manifesta influência do sistema alemão paSoziale Marktwirtschajtl4O, que foi posto em vigor pela Lei Fun"<lamental de Bona, de 1949. O criador desse conceito foi ALFRED 'MÜLLER ARMAcK 14I , Professor de Economia, que nesta matéria ~fluenciou o Chanceler LUDWIG ERHARD, com quem trabalhou uando este foi Ministro da Economia. ERHARD incluía a sua conce,ão de Economia Social de Mercado no seu lema "Bem-Estar para qdos" ("Wohlstandfür alie"), que lhe valeu ser considerado o autor ,_,O.,"milagre alemão" depois da 2.' Grande Guerra, pela sua ativi, ade, primeiro, como Ministro da Economia de KONRAD ADENAuER, e 1949 a 1963, e, depois, como Chanceler, de 1963 a 1966. O sis139 Por todos, veja-se SCHERER, L.-I. CONSTANTINESCO, La Constitution, e LEEG, 140 141 Nesse sentido, ZULEEG. Wirtschaftslcnkung rmd Marktwirtschaft, Gõttingen, 1947, pg. 88. 149 A União Europeia Princípios constitucionais e valores da União Europeia tema da Economia Social de Mercado veio permitir urna rápida recuperação económica e a paz social na Alemanha após as maciças destruições da Guerra. A Economia Social de Mercado caracteriza-se, na Alemanha, pela dimensão social da Economia e pelo papel interventor do Estado de modo a assegurar o funcionamento leal das regras de mercado l4'. Ou seja, não estamos perante uma Economia nem de pendor coletivista nem de tipo liberal: o Estado tem um forte papel de regulação e de controlo do funcionamento do mercado e da concorrência por forma a prevenir e a reprimir distar- artigo 49.°, par. I, 1.' parte, UE, na redação de Nice. Hoje deve entender-se que essa exigência se mantém quando o atual artigo 49.°, par. I, 1." parte, UE, remete para os valores do artigo 2.°, particularmente, neste caso, a dignidade da pessoa humana, a igualdade, o Estado de Direito, a não discriminação, a justiça (também justiça social), a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres. Note-se que o Tratado de Lisboa não escapa a algumas contradições na matéria, que convém que sejam corrigidas numa próxima revisão dos Tratados. De facto, o artigo 119.° do TFUE, integrado no Título intitulado "A Política Económica e Monetária", define por duas vezes, como princípio norteadar daquela Política, o "mercado aberto e a livre concorrência" (n."' I e 2 do citado artigo, com itálico nosso). Todavia, uma conceção puramente economicista e liberal para a aquela expressão poderia empurrar o intérprete é afastada pela cOllsagnlçã.o, logo no início do TUE, como princípio constitucional União Europeia, da "Economia Social de Mercado" (artigo 3.°, ° 3). Esta interpretação é reforçada pela ligação que aquele preestabelece entre essa Economia e o "pleno emprego", o "prosocial", o "elevado nível de participação e de melhoramento qualidade do ambiente", o combate à "exclusão social" e às "disclimdn:açêies", a promoção da "justiça e proteção sociais", da "ig.ua:lda.de entre homens e mulheres", "da solidariedade entre gera, a defesa da "coesão económica, social e territorial" (artigo 0, n.'" 3, 4 e 5). Ou seja, em face de tudo isto, é legítimo afirmar-se, insistimos, hoje, pela letra do Tratado UE, o sistema económico da União sões a um sistema de concorrência sã e leal, bem como a impor que mercado atenda ao valor da justiça social. Também na União Europeia, a Economia Social de Mercado foi desde o início marcada pela sua componente social (daí, em 1950, o Plano Schuman, e, mais tarde, os Tratados falarem conjuntamente em "progresso económico e social" e "coesão económica e socia!"), pelos limites colocados às quatro liberdades e pelos mecanismos previstos para se evitar que se falseasse a concorrência. Não é, portanto, correto, desde logo no plano jurídico, reconduzir-se levianamente o sis" tema económico da União a qualquer modelo de tipo liberal ou neoliberal'43. O caráter constitucional para a União Europeia do princípio da Economia de Mercado é comprovado pelo facto de a União ter imposto aos Estados do Centro e do Leste da Europa, cuja adesão se iniciou em 2004 e 2007, a demonstração prévia de eles respeitarem as regras do sistema da Economia de Mercado, que se considerava integrado no quadro dos requisitos estabelecidos para a adesão pelo O 142 Por todos, ISENSEE/KIRCHHüF (eds.), Handbuch des Staatsrechts, Heidelberga. vol. I. 1987, pgs. 1.080 e segs., e vol. II, 1992, pgs. 431 e segs., a STOBER, Allgemeines Wirtschaftsverwaltungsrecht, 3. ed., Munique, 2002, pg.43. hoje, 143 Nesse sentido, exaustivamente, as obs. cits. de SCHERER e L.-I: CONSTAN· TINESCO. Colocando a Economia Social de Mercado como expressão da "dimensão social da integração europeia", veja-se S. GIUBBONI, Diritti sociali e mel'cat,o, Bolonha, 2003. Ver também MÜLLER-GRAFF, L'économie de marché concurrell- tielle comme principe constitutionnel commun dans l'Union européenne?, Gautron, cit., pgs. 479 e segs. 150 sistema em que o mercado e a livre concorrência se entrecru- com o social, isto é, estão subordinados ao primado da Pessoa HUlmima e da justiça social, cabendo à União (e também aos Estaneste caso por respeito pelo princípio da subsidiariedade) assea coerência deste sistema. Como bem notam PRIOLLAUD e foi intenção dos autores do Tratado compor, com aqueles el(~mlontos, o modelo social europeu. Isto significa que a Economia de Mercado, começando por dar corpo ao sistema económico União, acaba por definir também o modelo social da União Euro151 Princípios constitucionais e valores da União Europeia A União Europeia meramente económica, tinha de ser vista como um princípio geral de Direito da União Europeia e de natureza constitucional. E, se de início foi pensada como proibição de discriminação de estrangeiros em benefício de nacionais, mais tarde teve de ser entendida também como proibição de discriminação de nacionais em relação a estran;'geiros (a chamada discriminação inversa ou à rebours)'48. Aliás, o 'próprio Direito Internacional moderno, com força de ius cogens, . proíbe a discriminação também de nacionais em relação a estrangeiros e de tal forma que todos os Estados-membros da Comunidade Internacional (portanto, também os Estados-membros da União) são obrigados a conceder aos seus nacionais o mais elevado nível de peia. Há, pois, uma Europa social e agora com consagração nos Tratados. Tal como acontece, portanto, com o sistema económico, também o modelo social europeu não pode ser classificado como modelo liberal ou afim. De qualquer modo, há que sublinhar que dele ficaram excluídos, por ora, o acesso à educação, à formação e aos serviços de interesse económico geral de qualidade, como chegara a ser proposto na Convenção sobre o Futuro da Europa 1"-"'. 52. R) O princípio da não-discriminação .t; O princípio da não-discriminação nasceu na Constituição económica das Comunidades. Achamos melhor falar na não-discrimi- ~ nação do que em igualdade já que, em sentido abstrato, os Estados não estão em pé de igualdade no Direito da União. Uma das características específicas do Direito da União reside exatamente no facto de ele haver rejeitado, como ponto de partida, o princípio um Estado, um voto, que caracteriza o Direito Internacional Público,<; clássico com fundamento na igualdade soberana dos Estados, prin-'~ cípio que hoje o próprio Direito Internacional aceita afastar l46· i ' Embora nascido, como se disse, como princípio de índole eco"!' nómica, o princípio da não-discriminação sempre teve um alcance -i; geral e quis dizer, desde logo, que, salvo razões objetivamenIeidemonstradas, situações idênticas ou análogas, em qualquer domi-i' nio da integração europeia, não podiam ser tratadas de modo difei rente l47 . Uma das maiores manifestações deste princípio residiu n~:.:> proibição da discriminação em razão da nacionalidade, que veio da/r' versão original do Tratado CE até ao artigo 12.° daquele Tratado n~)j_; versão de Nice. A não-discriminação em razão da nacionalidade;", embora pensada para a CE quando a CEE era uma Comunidade]: 144 145 146 CONV 516/1/03: Relatório do Grupo de Trabalho XI, Europa social. Ver PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 35. Ver a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 377 e segs., especialment~,'j 385 e segs. 147 Assim, Ac. TI 5-3-80, Ferweda, Proe. 265/78, Rec., pgs. 617 e segs. 152 ;'prbteção que concedem a não nacionais, e mesmo fora do âmbito de aplicação estrita do Direito Internacional (portanto, também fora do âmbito de aplicação do Direito da União). Em Portugal, esta cons',> trução torna-se ainda mais clara e premente porque ela decorre do ~sistema de proteção dos direitos fundamentais consagrado na Constituição da República'49. O Tratado de Lisboa ampliou ao máximo O princípio da não-discriminação. Para além das várias referências específicas já átadas à igualdade entre homens e mulheres e à não-discriminação, Aquele princípio encontra guarida, como princípio geral e universal da União, no artigo 9.°, 1." parte, UE, quando ele estabelece que i'Em todas as suas ativídades, a União respeita o princípio da igual; ~ade dos seus cidadãos, que beneficiam de igual atenção por parte das suas instituições, órgãos e organismos" (itálico nosso). Vai na mesma linha, embora com um àmbito mais delimitado, o artigo 10.° "TFUE. Ele dispõe: "Na definição e execução das suas políticas e ;~;;ações, a União tem por objetivo combater a discriminação em razão ";(dO sexo, raça ou origem étnica, religião, ou crença, deficiência, ,;;;i~ade ou orientação sexual". 4?~ ",.,..~--- ~f>'/:' 148 Ver nesse sentido a jurisprudência do TJ: Acs. 31-3-93, Kraus, Proc. ';Ç-19/92, CoI.. pgs. 1-01.663 e segs.• e 2-12-2010, lakubowska. Proc. C-225109, i/Çol., pgs. 1-12.329 e segs. ,~~~;:: 149 Veja-se esta questão desenvolvida no nosso livro A proteção da proprie- ,l~f"tfr1de privada pelo Direito Internacional Público (com sumário em inglês), Coim- ;;bra, 1998, sobretudo, pgs. 561-563. 153 CAPÍTULO III A CIDADANIA DA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: FEDERICO DE CASTRO, La nationalité, la double nationalité et la supranationalité, RCADI 1961-1, pgs. 515 e segs.; K. PORTER, A Hlstory of Suffrage ln the United Slates, Nova Iorque, 1969; G. DEL VECCHIO, La Déclaration des Droits de l'Homme et dll Citoyen dans la Révolution française, Roma, 1979; C. LUCAS, The French Revolution and lhe creation ofmodern politicaI cu/ture, vaI. 2, Oxford, 1988; A. EVANS, Nationality Law and European lntegration, ELR 1991, pgs. 190 e segs.; I. IBANEZ GARClA, Dereeho de petición y derecho de queja, Madrid, 1993; J. VERHOEVEN, Les citoyens de l'ElIrope, ADL 1993, pgs. 165 e segs.; R. KOVAR e D. 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No plano filosófico, a cidadania da União vai beber ideias à de JEAN BODIN sobre as relações entre a soberania e os cidaà Revolução Francesa e à sua Declaração dos Direitos do Hi:)mem e do Cidadão, de 1789, ao pensamento de JEAN-JACQUES KOUS~;EA.U e ao Direito Naturajl52-153 Natureza e valor jurídico da cidadania da União 53. Origem e significado Nas suas "Disposições comuns" o TUE (portanto, após a revisão de Maastricht aos Tratados institutivos) veio impor à União objetivo do "reforço da defesa dos direitos e dos interesses dos nacionais dos seus Estados-membros, mediante a instituição de cidadania da União" (à data, artigo B, 3.° travessão). Por conseguinte, o Tratado de Maastricht veio incluir no Tratado CE uma Parte II, intitulada "A cidadania da União" artigos 8.° a 8. o _E). Tratando-se de cidadania da União e não só CE, como o próprio TOO começaria por reconhecer no seu retefl(10 artigo B, essa matéria deveria ter ficado disciplinada, não no tado CE, mas nas referidas "Disposições comuns" do TUE. twmv"mos perante uma incoerência intema do TUE. O facto de os Tratados se terem começado a preocupar com cidadania da União a partir do TUE constituiu um bom sinal intenção deste Tratado de, como já foi referido, inocular na rntegr'a-'';, ção uma forte componente social e humanista, deixando a rnli~g"a­ ção de ser concebida como um processo quase excltlsivame:nte económico, como, pelas razões já explicadas, aconteceu 156 O grande problema que cedo suscitou a interpretação dos citapreceitos do Tratado CE foi o de saber em que é que consistia cidadania da União. Dito doutra forma: era a cidadania da uma cidadania nova, autónoma em relação à cidadania estaque, por isso, fazia nascer, em sentido jurídico rigoroso, cidaeuropeus, no sentido de povo europeu? A resposta a esta pergunta é negativa. E ela é-nos dada hoje artigo 20. o TFUE, que, no essencial, não modificou o artigo 17.° 150 Veja-se a História da "cidadania europeia" em BLÁZQUEZ PEINADO, 23 e segs. e 44 e segs., e no Comentário de GRABITZ/HILFINETTESHEIM, anotaaos atuais artigos 20. 0 a 25. 0 TFUE. 151 Sobre a "Europa dos cidadãos", ver, por todos, a dissertação de GAROT, i{!pl,retudo pgs. 169 e segs. e 335 e segs., e a citada monografia de BLÃZQUEZ PEIpgs. 27 e segs. 152 Ver GAROT, pgs. 174,226 e segs. e 335 e segs.; e DEL VECCHIO, pgs. 5 e 153 Das obras gerais veja-se, especialmente, VON BOGDANDY (ed.), pgs. 539 e (o artigo de KADBLBACH), e GRABITzJH1LFINETTESHEIM, as anotações aos preque estão em causa. Da bibliografia especial, veja-se a muito boa monograCARABOT. 157 A União Europeia do TUE, na versão de Nice, que, por sua vez, era herdeiro dos artigos 8.° CE, na versão de Maastricht, e 17.° CE, na versão de Amesterdão. De facto, o artigo 20.°, n.o 1, TFUE, depois de nos dizer que "é instituída a cidadania da União", acrescenta o seguinte: 1. (...) É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacio/lalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui (itálicos nossos). Na versão que lhe fora dada pelo Tratado de Maastricht, o artigo 8.° CE não incluía a última frase transcrita (que, por sna vez, foi modificada pelo Tratado de Lisboa), mas já então a doutrina não tinha dúvidas, desde logo com base nos trabalhos preparatórios '" "i daquele preceito, de que a cidadania da União não pretendia ser uma:;, nacionalidade autónoma em relação à cidadania dos Estados-mem.,;'· bros. De facto, a cidadania da União era conferida pelo facto de um; dado indivíduo ter a nacionalidade de qualquer dos Estados-memc ) bros, isto é, niio lhe advinha separada e autonomamente. Ou seja, o"?, Estado-membro, ao determinar, no exercício da sua soberania, quem';" é seu nacional''', era ele que também estava a dizer quem era cidacj" dão da União'''. Note-se que esta relação estreita entre a naciooali<Ti dade estadual e a cidadania da União o Tratado de Maastricht for~ buscá-la ao Tratado Spinelli, de 1984, cujo artigo 3." dispunha: Os cidadãos dos Estados-membros são, por esse simples facto,_,'?,. cidadãos da União. A cidadania da União está ligada à qualidade de um'i~ Estado-membro; ela não pode ser adquirida ou perdida separadamente.,,::\.\ (itálicos n 0 5 5 0 5 ) . > : 0 , 154 Está-se a partir aqui do princípio de que, em conformidade com as regras'::~t clássicas do Direito Internacional, os Estados têm competência exclusiva pará:~ definir as regras de aquisição e conservação da sua nacionalidade. O TI aceitoll~"" este princípio, com referência à matéria que se estuda no texto, pouco depois da!;'" assinatura do Tratado de Maastricht - Ac. 7 ~ 7-92, Micheletti, Proc. C-369/90, Col:j;:i" pgs. IA.239 e segs.. .: 155 Assim, também, por todos, JACQUÉ, pgs. 123 e segs., GRABIWHILFI/" NETIESHEIM, anotações ao artigo 20.°, n.O 1, TFUE, e BLÁZQUEZ PEINADO, pgs. 62J: e segs. 158 A Cidadania da União Europeia Mas o Tratado de Amesterdão tornou essa interpretação ainda mais clara, ao acrescentar ao citado n. ° 1 a indicação de que a cidadania da União era "complementar" da cidadania nacional e '"não a substitui" (itálicos nossos). Particularmente o caráter "complementar" da cidadania da i'; União permitia-nos concluir que não se tinha querido criar uma cidadania europeia que se sobrepuzesse e que se cumulasse, como cidadania autónoma, com a cidadania estadual. Mas, se é assim, é legítimo chegarmos às duas seguintes conclusões. A primeira é a de que não podemos reconduzir a União Europeia a um modelo de tipo estadual, dado que o primeiro elemento constitutivo do Estado é a existência de um povo, com a cidadania própria do Estado. Ora, não existindo uma cidadania europeia autónoma, não há um povo europeu em sentido jurídico, portanto, não existe um poder constitninte próprio da União e, sendo assim, a União não é um Estado. , .A segunda conclusão é a de que, ao contrário do que sucede nas ;. Federações, não existe na União Europeia a Hdual citizenship" .' ("dualidade de cidadanias" ou "dupla nacionalidade"), isto é, a ',sobreposição de duas cidadanias ou nacionalidades diferentes: a :Y,;oacionalidade do Estado federado e a nacionalidade federal"'. Por;±;tanto, e desde logo por aqui, para além de a União Europeia não ser g'J1m Estado, ela também não é uma Federação. Todo este raciocínio é confirmado pela função que os Tratados j',têm atribuído ao Parlamento Europeu. Apesar de ser eleito por '6:~W'rágio direto e universal, ele não representa O "povo europeu", ':'9~ejuridicamente não existe, mas os "povos dos Estados reunidos Y;paComunidade" - é o que dispunha o ex-artigo 189.°, n.o 1, CE-, ',':BOOS "cidadãos da União" - é o que estabelece hoje o artigo 14.°, ':)J,," 2, L' parte, UE. E, note-se, esta alteração trazida pelo Tratado de ~~!~boa não tem qualquer relevância prática. f) De tudo o que fica dito é legítimo chegarmos a este importante .~r~8ultado, que assume grande relevância para o Direito Constitucio- di!i, 'k: :;i1!,.,\ ,,156 O conceito de dual dtizenship ficou estabelecido em definitivo nos ,ie~~os 'Unidos com a aprovação da 14. a emenda à Constituição, em 1868. Sobre T~:,:watéria, e no sentido do texto, ver, por último, as obras de HANSEN, MONAR, ':~\rPOLlS, especialmente, pgs. 61 e segs., e GAROT, pgs. 226 e segs. t59 A Cidadania da União Europeia A União Europeia !I nal. Pelo menos, a partir da entrada em vigor do TUE, não é possível"~"'f equiparar-se no Direito Português os cidadãos dos outros Estados-;' -membros da União aos estrangeiros. Em termos jurídicos, estraw} geiros serão os cidadãos de Estados terceiros que não têm nenhuma:; nacionalidade em comum com os cidadãos portugueses. Ora, OS'); cidadãos dos outros Estados-membros da União, conjuntamente,; com os cidadãos portugueses, têm de ser tratados pelo nosso Direito,' como cidadãos da União ou cidadãos comunitários, nunca como~;~ estrangeiros, porque têm em comum a cidadania da União, embora" com o valor jurídico que esta tem. É assim que procede, e bem, 0/ artigo 15.°, da Constituição, quer na sua epígrafe, quer no seu n.o 5i: enquanto que a referência a "estrangeiros" no n.o 4 do mesmo artig% só estará correta caso o legislador constituinte tenha querido incluir'; naquele substantivo também cidadãos de Estados terceiros. Mesmo' assim, não teria ficado mal distinguir, nesse n. ° 4, os estrangeiros e' os cidadãos da União. Voltaremos a estes preceitos daqui a pouco." 55. Os direitos reconhecidos no âmbito da cidadania da União';:::' Este direito consiste numa evolução da liberdade de circulação de pessoas, que provém da versão original do Tratado CEE como uma das "quatro liberdades" de conteúdo económico Com o TUE ';i,'P direito de circular e de permanecer no espaço da União nã~ !idepende do exercício de uma atividade económica e vale para qual:~,quer actividade, mesmo, por exemplo, para uma presença para fins Ii.·•d. e estudo, ou de turismo. Podemos dizer que de direito económico ;;,ele se transformou num direito pessoal ou num direito civil. '; Em bom rigor, este direito subdivide-se em dois: o direito de flc:ircular pelos Estados-membros e o direito de permanecer, inclu;;sive o de residir, em algum, ou alguus deles. ' . Compete ao Parlamento e ao Conselho, ou só ao Conselho ",gefrnir as condições de exercício desse direito, podendo eles, para ~ ,!isefeito, se for necessário, adotar as medidas previstas no artigo 21.°, ';,n.'" 2 e 3, TFUE. O exercício desse direito encontra-se sujeito às '~aimitações constantes do Tratado (nomeadamente, as de ordem :4Pública, saúde pública e segurança pública) ou impostas pelo ',%)?ireito derivado (por exemplo, a pessoa em causa tem de estar sem}!;pre na posse de um documento de identificação válido)'''. ~!, .. I - Introdução III - O direito de eleger e ser eleito O artigo 20.°, n.' 2, TFUE reconhece que o estatuto da cidada: nia da União se desdobra em direitos e deveres. Quais são os direi;: tos conferidos pela cidadania da União? A resposta encontramo-Ia hoje nos artigos 20.' a 24.° TFUE 11 .0, n.o 4, UE. E desde já se diga que o Tratado de Lisboa alargoH: o elenco dos direitos que vinha desde o Tratado de Maastricht e qt{S' estudámos nas edições anteriores deste livro. r' II - O direito de circular e permanecer O primeiro direito do cidadão da União é o de "circular e pe~~ manecer livremente no território dos Estados-membros" (artigq~ 20.°, n.o 2, aI. a, e 21.°, TFUE, com itálico nosso). 160 O segundo dos direitos incluídos na cidadania da União consta Âgôs artigos 20.°, n.o 2, alo b, e 22.° TFUE: o direito de eleger e ser !~leito (portanto, capacidade eleitoral ativa e passiva) nas eleições Rllfa o Parlamento Europeu e nas eleições municipais do Estado de 'ffsidência, nas mesmas condições em que o podem fazer os nacio~~is desse Estado. O segundo dos referidos preceitos prevê o modo »e,se disciplinar o exercício desses direitos e admite disposições :geITogatórias a esse exercício sempre que o Estado-membro em ,ç~usa fundadamente o requeira à União. C,, 157 Ver a Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de , 9+2004, lO L 158, de 30-4-2004. ' 161 A Cidadania da União Europeia A União Europeia -----~~===------~/, Para alguns Estados, este direito trouxe pouco de novo: assiI'!h\ por exemplo, na França e no Luxemburgo, a lei já reconhecia anã?; nacionais capacidade eleitoral ativa e passiva em eleições para aso autarquias locais. ,":W" Alguns Estados tiveram que rever as respetivas Constituiçõ~~. para acolher este direito: foi o que fez Portugal quanto ao alUar' artigo 15.°, n." 4 e 5, da Constituição, na revisão constitucionald.~ 1~2 4 IV - O direito à proteção de autoridades diplomáticas"é;r consulares . O terceiro direito conferido ao cidadão da União é o de pod~i.· requerer, no território de Estados terceiros em que o Estado-mem~~:. de que é nacional não se encontre representado, proteção da parteª.~! autoridades diplomáticas e consulares de qualquer outro Estaªo,' -membro, nas mesmas condições dos nacionais desse Estn49. (artigos 20. 0 , n. o 2, aI. c, e 23. 0 TFUE). y. Trata-se de uma profunda alteração na regra do Direito Intcr, nacional clássico, segundo a qual um Estado só deve proteção diPl~.·oo mática e consular aos seus próprios nacionais. ooi Este direito beneficia especialmente os nacionais dos Estado~' -membros que têm poucas representações diplomáticas e consula.rc~. em Estados terceiros, particularmente em pequenos Estados, oUc\!l Estados longínquos, da África, da Ásia, da América ou da OceanW e que, desta forma, podem beneficiar, nesses Estados terceiros; proteção diplomática e consular de Estados-membros como o Reio,9 Unido, a França e a Alemanha, que se encontram representados p?, o embaixadas em quase todos os Estados da Comunidade Intemacig! nal e possuem uma vasta rede de c o n s u l a d o s . ' ; ! 0 O Conselho pode, nos termos do artigo 23. , par. 2, TFUê; aprovar diretivas que permitam a coordenação e a cooperaçãoJ1ilo efetivação desse direito. 00 162 V - O direito de iniciativa popular ·k!. Este importante direito foi criado pelo Tratado de Lisboa e "'/consta do artigo 11.°, n. o 4, UE. .;,.;.; . Ele consiste no direito reconhecido aos cidadãos da União, em ;i'~\Ímero igualou superior a um milhão, e desde que sejam cidadãos .~':-~~ um "número significativo" de Estados-membros, de tomarem a .;iniciativa de convidar a Comissão Europeia, dentro da sua compe'!!\~ncia, a apresentar uma proposta adequada sobre questões para as $!9uais eles entendam que é necessário um ato jurídico da União para ';',~c cumprirem os Tratados. As condições de exercício deste direito @'cncontram-se reguladas no artigo 24. 0 , par. I, TFUE. Aí se prevê, '/.;pomeadamente, o modo como se determinará o número mínimo de '~:§stados aos quais devem pertencer os cidadãos que queiram exercer :.cste direito. ·~iii.' Ao contrário do princípio da democracia representativa que os .ir~tados escolheram para regra orientadora do funcionamento da ~~I)i.ão, e que encontra o seu apogeu na eleição pelos cidadãos euroJpeljs do Parlamento Europeu, este direito dá corpo ao princípio da .cmocracia participativa, ao pretender associar diretamente os cidada União (e, deste modo, a sociedade civil) ao exercício do er na União. Desta forma, está a aproximar-se ainda mais a 'ão em relação aos seus cidadãos. Note-se que o convite dirigido à Comissão, no ãmbito deste ~ito, não obriga a Comissão a apresentar a proposta. Mas é assim ,$'plano estritamente jurídico. No plano político, será muito difícil .·i~?tnissão recusar-se a fazê-lo, sobretudo se os cidadãos que toma~messa iniciativa pertencerem a muitos Estados. ,fL'\,', VI - O direito de se dirigir a qualquer órgão ou instituição da União '.. ..'r.'·.' f-'ii6'", ~'r· Também este direito foi criado pelo Tratado de Lisboa. Ele dos artigos 20. n. o 2, aI. d, 3.' parte, e 24. par. 4, TFUE. :~';" Ele confere aos cidadãos da União a faculdade de se dirigirem, .Jl1.qualquer das línguas dos Tratados, aos órgã<!s referidos nos cg~sta 0 0 , , 163 :1' ",' A Cidadania da União Europeia A União Europeia n,o, 1 a 4 do artigo 13.° UE, sobre qualquer assunto da respetiva competência, e de receberem uma resposta escrita, na mesma língua. Também este direito constitui uma expressão do princípio da democracia participativa. VII - O direito de petição ao Parlamento Europeu Os direitos acabados de referir têm um conteúdo eminentemente substantivo. Para além deles, porém, o Tratado CE estabelece, no quadro da cidadania da União, dois direitos de natureza predominantemente adjetiva, ou instrumental, ou procedimental. O primeiro deles consta do artigo 20.°, n.o 2, aI. d, l.a parte, TFUE. Consiste no direito de petição ao Parlamento Europeu. O objeto deste direito, bem como os termos do seu exercício, encontram-se regulados no artigo 227.° TFUE. Merece destaque, neste último preceito, o amplo âmbito do direito de petição: ele pode incidir "sobre qualquer questão que se integre nos domínios de atividade da União e lhe (ao peticionário) diga diretamente respeito" (itálico nosso). VIII - O direito de queixa ao Provedor de Justiça O outro direito de natureza adjetiva traduz-se na queixa ao Provedor de Justiça. Ele está previsto no mesmo artigo 20.°, n.o 2, aI. d, mas na 2.' parte, TFUE. O exercício desse direito está disciplinado no artigo 228.° TFUE, merecendo referência especial o seu objeto: ele pode dizer respeito à violação do dever de boa administração (casos de "má administração") na atuação de instituições, órgãos e organismos da União, com exceção do Tribunal de Justiça da União Europeia quando este atue no exercício das suas fUllçõ'es jurisdicionais. O Estatuto do Provedor de Justiça que está em vigor foi aprovado por Resolução do Parlamento Europeu de 18 de junho de 2008 L5 '. '" JO C 286E, de 26-11-2009, pg, 172. 164 56. A extensão desses direitos Resta um ponto importante a sublinhar quanto aos direitos acabados de referir: é o da extensão desses direitos. Este problema tem de ser estudado em dois planos: o da extensão subjetiva dos dIreItos e o da sua extensão material. Comecemos pela extensão subjetiva. , Alguns dos direitos estudados - o de livre circulação e permanencla, mcluslve resIdência, o de petição ao Parlamento Europeu e o de queIxa ao Provedor de JustIça - não são exclusivos dos cidadãos da União. No que diz respeito ao primeiro desses direitos, ele fOI estendido a alguns familiares dos cidadãos da União, mesmo que eles, por não terem a nacionalidade de qualquer dos Estados-membros da. Un~ão, não possam ser considerados, eles próprios, cidadãos da Umao: e o caso do cônjuge, ou equiparado, do cidadão da União, e dos descendentes e ascendentes do cidadão da União e do seu , . d J. cO~Juge ou eqUIpara o . Essa extensão encontra hoje cobertura no artigo 45.°, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e é pe~feitamente compreensível porque, pretendendo reagrupar as famílIas, vIsa preservar a sua unidade e estabilidade. Por seu lado, o direito de petição e o direito de queixa foram reconheciem função, não só do estatuto da cidadania da União como também da residência ou da sede estatutária no espaço da 'União, que gozam daqueles direitos tanto os cidadãos da União mesmo que não ~esidam no território da União, como também qual: quer pessoa Jundlca que resida ou tenha a sua sede estatutária território, ~esmo que não seja cidadão da União. Hoje a extemiãodesses dOIS dIreItos, nos termos referidos, é levada a cabo artIgos 43. 0 e 44.° da Carta dos Direitos Fundamentais da Europeia J6O. Passemos agora à extensão material dos direitos. Esta matéria encontra-se hoje regulada na citada Diretiva 2004/38/CE. ~~ Par~ uma análise mais pormenorizada dos direitos incluídos na cidadania Umao, vejam-se, sobretudo, as obras de GAROT, BLÁZQUEZ PEINADO, BEENEN 159 COlml\NTIINE'ICO e CARABüT. ' 165 A União Europeia A cidadania da União não se esgota nos direitos tipificados nos artigos 20.° a 24.° TFUE e 11.°, n.o 4, UE. De facto, o artigo 25.° TFUE contém uma cláusula de extensão material desses direitos. Com efeito, aquele preceito vem permitir que o Conselho, respeitado que seja o procedimento aí previsto, aprove as disposições destinadas "a aprofundar os direitos" previstos nos artigos antecedentes ("completar os direitos", diz a versão francesa do TFUE). Por "aprofundamento" dos direitos deve ser entendido, não apenas o enriquecimento do conteúdo dos direitos referidos nos citados artigos dos Tratados UE e TFUE, como também a criação de novoS direitos que derivem diretamente daqueles. Note-se, todavia, que, de harmonia com a parte final do citado artigo 25.° TFUE, essas disposições só entrarão em vigor depois de elas terem sido aprovadas pelos Estados-membros em conformidade com as respetivas regras constitucionais, o que não acontece com o núcleo central dos direitos de cidadania acima estudados e que vinculam os Estados por força direta dos Tratados. A Cidadania da União Europeia Tanto no plano do Direito, como no da pedagogia cívica, seria bom que fIcasse claro que, também no quadro da cidadania da União Europeia, todos os cidadãos têm tanto direitos como deveres e que, dentro destes últimos, existem importantes deveres para com o interesse geral da coletividade. 57. Os deveres incluídos na cidadania da União Como se disse atrás, o artigo 20.°, n.o 2, TFUE, estabelece que o estatuto da cidadania da União se desdobra em direitos e deveres. Contudo, tanto as quatro alíneas desse n.o 2 como os artigos 21.° a 24. 0 TFUE e o artigo 11.°, n.o 4, UE, só enunciam os direitos incluídos na cidadania. O Tratado esquece-se, pois, dos deveres dos cidadãos da União, o que leva VLAD CONSTANTINESCO a afirmar, com muita propriedade, que "falta à cidadania europeia a segunda dimensão", dado que os direitos foram outorgados "sem a habitual contrapartida reconhecida, explícita ou implicitamente, aos deveres"l6l. Em nosso entender, é legítimo esperar que o aprofundamento da cidadania da União venha a ocorrer através também da enuncial62 ção clara dos deveres incluídos no estatuto de cidadão da União . 161 162 La citoyenneté, pg. 27. Assim, J. VERHOEVEN, Les citoyens, pg. 190. 166 167 CAPÍTULO IV ~ 1 :i: I, I "; A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: P. PESCATORE, Les droits de ['homme et ['intégration européenne, CDE 1968, pgs. 629 e segs.; P. PESCATORE, La Cour de Justice des Communautés européennes et la Convention européenne des droits de l'hom11le, Mélanges Wiarda, pgs. 441 e segs.; G. C. RODRIGUEZ IOLESIAS et aI., EI derecho comunitario y las relaciones entre el Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas, el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, e los Tribunales Constitucionales nacionales, RDCE 1997, pgs, 329 e segs,; P, WACHSMANN, Les draits de l'homme, in Le Traité d' Amesterdam, separata da RTDE 1997-4, pgs. 175 e segs.; H. LABAYLE, Un espace de liberté, de sécurifé et de justice, ibidem, pgs. 105 e segs.; J. RlDEAU, Le rôle de I'Union européenne en matiere de protection des draits de l'hol1ll1le, RCADI 1997, pgs. 79 e segs.; H. LABAYLE, Droitsfondamentaux et droit européen, AIDA 1998, número especial, Les droits fondamentaux, pgs. 75 e segs.; E SUDRE, La Communauté européenne et les droits fondmnentaux apres le traité d'Al1lsterdal1l, lCP 1998-1, pgs. 100 e segs.; O.c., La protectionjuridictionnelle des droits dans le systeme communautaire, Bruxelas, 1999; A. CHUECA SANCHO, Los derechos fundamentales en la Unión Europea, z.a ed., Barcelona, 1999; E SUDRE eH. LABAYLE (ed.), Réalité et perspectives du droit communautaire des droitsfondamentaux, Bruxelas, 2000; l.-E AKANDlI-KoMBÉ e M.-I. REDOR (eds.), L'Union européenne et les droits fondamentaux, Bruxelas, 1999, especialmente o artigo de l-E FLAUSS, Droits de l'homme et relations extérieures de l'Unioll européenne, pgs. 137 e segs.; l-E FLAUSS (dir.), Les droits de l'homme dons l'Ullioll eurapéenne, LPA juill. 1999, n."' 147, 148 e 149; E SUDRE, L'apport du droit international et européen à la proteetion communau169 i A União Europeia taire des droits fondamentaux, cit., com excelente bibliografia; J. RIDEAU, De la Communauté de droit à I'Union de droit, cit.; LulsA DUARTE, A União Europeia e os direitos fundamentais. Métodos de protecção, Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, Coimbra, 2000, pgs. 11 e segs.; F. SUDRE, Le renforcement de la protection des droits de l'homme au sein de I'Union européenne, in Rideau (dir.), De la Communauté de droit à I'Union de dro!t, pgs. 207 e segs.; K. LENAERTS, Fundamental rights in the European Union, ELR 2000, pgs. 575 e segs.; F. MODERNE, La notion de droU fondamental dans les traditions constitutionnelles des États membres de l'Union européenne, in Sudre e Labayle (dir.), Réalités et perspectives du droit communautaire des droits fondamentaux, cit., pgs. 35 e segs.; A. SALINAS DE FRIAS, La protección de los derechos fundamentales en la Unión Europea, Granada, 2000; P. QUASDORF, Dogmatik der Grundrechte der europiiischen Union, Francoforte, 2001; G. GORI e F. KAUFF-GAZIN, Les droits de I'Homme à Nice, in V. Constantinesco, Y. Gautier e D. Simon (diL), Le Traité de Nice - premieres analyses, cit., pgs_ 231 e segs.; C-P. BIENERT, Die Kontrolle mitgliedstaatlichen Handels anhand der Gemeinschaftsgrundrechte, tese, Gõttingen, 2001; K. LENAERTS e E. DE SMIITER, A "Bill ofRights" for the European Union, CMLR 2001, pgs. 273 e segs.; H. C. KRÜGER e J. POLAKIEWICZ, Proposals for a Coherent Human Rights Protection System in Europe, HRL 2001, pgs. 1 e segs.; A. DUSCHANEK e S. GRILLER (eds.), Grundrechte für Europa, Viena, 2002; G. a COHEN-JONATHAN, Aspects européens des droits fondamentaux. 3. ed., Paris, 2002; ANA MARTINS, A Carta dos Direitos Fundamentais e os direitos sociais, Estudos de Direito Público, Coimbra, 2003, pgs. 13 e segs.; G. COHEN-JONATHAN, Universalité et singularité des droits de l'l1omme, RTDE 2003, pgs. 3 e segs.; G. COHEN-JONATHAN e J. DUTHEiL DE LA ROCHERE (dirs.), Constitution européenne, démocratie et droits de [,homme, Bruxelas, 2003; J. ANDRIANTSIMBAZüVINA, Droits fondanumtaux communautaires et champ d'application personnel du droit commullautaire, RAE 2003-200411, pgs. 55 e segs.; F. SUDRE, Droit européel1 et international des droits de I'homme, 7.° ed., Paris, 2005; D. a EHLERS (ed.), Europiiische Grundrechte und Grundfreiheiten, 2. ed., Berlim, 2005; F. DE QUADROS, Constituição europeia e Constituições nacionais - Subsídios para a metodologia do debate em torno do Tratado Constitucional Europeu, O Direito, 2005, pgs. 687 e segs.; PATRfclA MARTINS, Da Proclamação à garantia efectiva dos direitos fundamentais, Lisboa, 2006; C. BLUMANN, Les compétences de I'Union européenne en matiere de droits de I'homme, RAE 2006, pgs. 11 e segs.; 170 A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia D. MARTIN, Égalité et non-discrimination dans la jurisprudence communautaire, Bruxelas, 2006; F. SUDRE (coord.), Droit communautaire des droits fondamentaux, 2. a ed., Bruxelas, 2007; 1.-E RENUCCI, Traifé de droit européen des droits de l'homme, Paris, 2007; 1. RIDEAU, La protectiol1 des droits fimdamentaux dans I'Union européenne - Perspectives ouvertes par le Traitê de Lisbonne, RAE 2008, pgs. 185 e segs.; F. DE QUADROS, A difícil adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Estudos Jorge Miranda, vol. V, Coimbra, 2012, pgs. 87 e segs. 58. Preliminares A evolução do sistema jurídico da União Europeia a partir dos anos 90 tornou a matéria da proteção dos direitos fundamentais na União Europeia numa questão nuclear daquele ordenamento jurídico, e por razões que, em grande parte, já ficaram referidas nas páginas anteriores deste livro. Isso explica, inclusivamente, o facto de esse ser, a par da questão constitucional da União, o domínio onde mais e melhor bibliografia se tem produzido nos últimos anos no Direito da União Europeia (com reflexos diretos no Direito Internacional Europeu dos Direitos do Homem e no Direito Constitucional Comparado sobre Direitos do Homem!63). Por outro lado, verifica-se que, em muitos Estados-membros, tanto a prática constilucional, como a teoria e a prática da aplicação do Direito, neste último caso, por via tanto legislativa, como administrativa, como judicial, têm tido dificuldade em acompanhar a evolução do Direito da União Europeia sobre direitos fundamentais. É, porventura, o caso também de Portugal. Por todas essas razões dedicaremos a esta matéria uma atenção muito especial. 163 Ver, por todos, COHEN-JONATHAN, pgs. 5 e segs., e SUDRE, Droit européen et international, pgs. 21 e segs. 171 A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia A União Europeia 59. A proteção dos direitos fundamentais na Ordem Jurídica Comunitária antes do Tratado da União Europeia I - Os direitos fundamentais no início da integração europeia A ideia da salvaguarda e da proteção dos direitos fundamentais,." encontra-se presente no processo da integração europeia desde o seu!, início. É certo que não constava dos Tratados institutivos das três,,.' Comunidades, na sua versão original, nenhum preceito específico'" sobre a matéria. Mas isso apenas queria significar que os autores'~ daqueles Tratados não consideravam esse preceito necessário num~;, altura em que se iniciava uma mera integração económica e, ainda.;': por cima, na sua fase inicial e embrionária, que era a da zona de!;'; comércio livre. Mas do silêncio dos Tratados não era legítimo con;"; J'i cluir-se que já nesse período de lançamento e criação das Comuni<: dades a salvaguarda dos direitos fundamentais fosse ignorada pelo~;r fundadores da integração. Várias razões levam-nos a defender eSt;l,? posição. " Primeiro, o Plano Schuman, de 1950, anunciava como objeti,i; vos da integração europeia, como vimos, "a paz e a liberdade" e o·;', Hprogresso económico e saciar'. Depois, os Tratados institutivos das três Comunidades viefllll)1\ a adotar, como núcleo essencial do sistema jurídico comunitário,"ll,: "quatro liberdades": as liberdades de circulação de mercadoriasI§ji;' pessoas, serviços e capitais 165 A essas quatro liberdades podia, ell),!, bom rigor, ser acrescentada, ainda na versão inicial dos Tratadoi;; CECA, CEE e CEEA, uma quinta liberdade: a liberdade de concor,,' rência, o que constitui uma forma como, logo no início, doutrin~l' qualificada passou a estudar o chamado "Direito da Concorrência"j' sobretudo da CEE, e que se encontrava contido, basicamente, fig,' artigo 37.° e na Parte III, Capítulo I, do Tratado CEE. Ou seja,aq; erguerem-se esses direitos económicos a "liberdades", o DireitQ' Parte II, Título l, do Tratado CE. "5 Pmte II, Título II, do Tratado CE, 164 172 Comunitário dava um forte sinal, logo na criação das Comunidades, de querer levar em conta e proteger os direitos fundamentais no espaço comunitário. Essa conclusão é reforçada, se atendermos ao facto de ser exatamente a liberdade de circulação de pessoas aquela que maior profundidade assumia logo na versão inicial do Tratado CEEI66. Em terceiro lugar, varIaS preceitos dos Tratados institutivos ..;;reconheciam, logo no início, importantes direitos fundamentais aos ~!kcidadãos dos Estados-membros: a livre iniciativa privada e a não ,{discriminação em razão da nacionalidade (artigos 7.", 36.°, 2." parte, ;\;;220." e 221.° do Tratado CEE, na sua versão original), o direito de ~;:,;petiÇão (artigo 48.°, par. 2, CECAl, e o direito ao sigilo profissional "'e' (artigos 214.° CE, 194.° CEEA e 47.", pars. 2 e 4, CECAl. Por seu lado, os Tratados reconheciam aos lesados o direito à reparação dos "danos causados pelas Comunidades no quadro da sua responsabili.i"',dade extracontratual (artigo 215.°, par. 2, CEE, 118.°, par. 2, CEEA, ~,e 34." CECAl. Além disso, ainda que implicitamente, o Tratado ,,,;,CEE admitia a existência de direitos sociais (veja-se o artigo 118.", par. 1, CEE). Mas, mesmo que os Tratados CECA, CEE e CEEA não conti,#;vessem uma cláusula expressa sobre a proteção dos direitos funda~lllentais, tinham-na os contemporãneos Projetas do Tratado sobre a '1jOomunidade Europeia de Defesa e do Tratado sobre a Comunidade Sgolítica Europeia, os dois, nos respetivos artigos 3.°. A circunstância ~e esses dois Projetos terem fracassado, nas circunstâncias que já (jnhecemos, não nos impede de os trazer à colação para reforçar a ese de que os direitos fundamentais não eram ignorados ainda na da criação das Comunidades 167. i;. 166 Vejam-se os artigos 48. 0 a 58. 0 da versão inicial do Tratado CEE. 167 No mesmo sentido da nossa posição, ver, entre as obras clássicas, H. P. PSEN, pgs. 727 e segs., e PESCATORE, Les droits de I'homme, pgs. 630 e segs.; pdemamente, ver, por todos, CHUECA SANCHO, pgs. 23 e segs., 1. VERHOEVEN, 34, GRABITZlHILF/NETTESHEIM, anotações ao artigo 6.° UE, e SUDRE, op. cit., 139 e segs. 173 A proteção dos direitos jundamemais /la União Europeia A União Europeia II - A construção pela jurisprudência comunitária da proteção dos direitos fundamentais Não foi preciso esperar muito tempo para que o TJ considerasse os direitos fundamentais como património jurídico das Comunidades. De facto, logo em 1969, no caso Stauder ''', ele acentuava que "o respeito pelos direitos fundamentais (da pessoa humana) faz parte dos princípios gerais de Direito cujo respeito (ele) assegura". Logo a seguir, num dos mais célebres casos da jurisprudência comunitária, o caso lnternationale Handelsgesellschaft'69, aquele Tribunal acrescentava que "a salvaguarda desses direitos, inspirando-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, deve ser assegurada no quadro da estrutura e dos objetivos da Comunidade". A partir do caso Nold '70 , o TJ reforça a garantia dos direitos fundamentais na Ordem Jurídica Comunitária porque, à invocação das Constituições nacionais, acrescenta a referência à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). O mesmo caminho seria seguido, quase em simultâneo, pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão, numa Declaração comum, de 5 de abril de 1977, onde eles se comprometem a, "no exercício dos seus poderes e na prossecução dos objetivos das Comunidades Europeias", respeitarem os direitos fundamentais "tal como eles resultam nomeadamente tanto das Constituições dos Estados-membros como da Convenção Europeia dos Direitos do Homem". O estado atual da jurisprudência da União, enquanto se aguarda pelo seu pronunciamento após as inovações trazidas pelo Tratado de Lisboa, pode ver-se bem retratado no caso Wachaufl7l, e resume-se no seguinte excerto desse Acórdão: "(...) os direitos fundamentais fazem parte integrante dos princípios gerais de Direito, cujo respeito cabe ao Tribunal assegurar. Ao garantir a salvaguarda desses direitos, o Tribunal está obrigado a inspirar-se nas tradições constitucio>o. Ac. 12-11-69, Proc. 29/69, Rec., pgs. 419 e segs. '" Ac. 17-12-70, Proe. 11170, Rec., pgs. 1.125 e segs. '70 Ac. 14-5-74, Proe. 4173, Ree., pgs. 491 e segs. '" Ae. 13-7-89, Proe. 5/88, CoI., pgs. 2.609 e segs. 174 nais comuns aos Estados-membros de tal forma que não são admitidas nas Comunidades medidas incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelas Constituições desses Estados. Os instrumentos internacionais relativos à proteção -dos Direitos do Homem aos quais os Estados-membros aderiram ou com os quais têm cooperado podem também fornecer indicações que convém tomar em conta no quadro do Direito Comunitário" (itálicos nossos) 172. Ou seja, para o TJ o âmbito dos direitos fundamentais que o Direito da União tem de salvaguardar, forma um sistema global e coerente, e é ditado pelas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros 173 e por todos os instrumentos internacionais sobre Direitos do Homem nos quais os Estados-membros sejam partes (inclusivamente, portanto, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os Pactos das Nações Unidas de 1966 e demais tratados multilaterais e bilaterais) ou com os quais "cooperem" (não estando este vocábulo esclarecido mas também não sendo isso relevante), destacando-se, entre eles, a CEDH. No caso Hoechst l74 , o TJ deixou sublinhado que a CEDH se revestia, nas fontes do Direito Comunitário sobre direitos fundamentais, de "um significado muito particular", e, posteriormente, no caso Bausthalgewebe 17S , foi da opinião de que ela não obrigava apenas pela via dos princípios gerais do Direito Comunitário porque constituía uma fonte autónoma do Direito Comunitário l76 • Veremos isso adiante. Ponto 17 do Acórdão. Sobre este conceito complexo de "tradições constitucionais comuns aos Estados-membros", que, nascido na jurisprudência no TJ, como se refere no texto, vai atravessar o Direito das Comunidades e, depois, o Direito da União, até chegar ao atual artigo 6. 0 , TI.o 3, UE, veja-se o muito bom estudo de MODERNE, pgs. 35 e segs. '" Ac. 21-9-89, Proes. 46/87 e 227/88, CoI., pgs. 2.859 e segs. '" Ae. 17-12-98, Proe. C-185195, CoI., pgs.I-8.417 e segs. 176 Sobre a matéria deste número, veja-se, por último, LENAERTS/DE SMIJTER, pgs. 273 e segs. 172 113 175 A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia A União Europeia III - Os direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito Comunitário na perspetiva da jurisprudência consti· tucional dos Estados-membros ,. t Note-se que, pela mesma época, e em paralelo, também a jurisprudência constitucional dos Estados-membros apelava para a necessidade da proteção dos direitos fundamentais no âmbito das Comunidades, indo ao ponto de fazer depender a aceitação do primado do Direito Comunitário sobre os Direitos estaduais da garantia, por parte daquele, de um grau de proteçâo dos direitos fundamentais não inferior ao grau conferido pelos sistemas jurídicos nacionais: foi o que, concretamente, fizeram o Tribunal Constitucional Federal alemão ("Bundesverjassungsgerichf') no caso Solange [177, Maastricht!78 e Bananenmarktordnung ("regulamentação do sector das bananas")!", e o Tribunal Constitucional italiano, nos casos Frontini e Pozzani!8iJ e Granitap"·!82. O Tribunal Constitucional federal alemão aprofundaria essa construção no mais recente, e já atrás referido, caso Lisboa!83.!". m Já citado. Só fonnalmente é que, anos mais tarde, no caso Solange ll, também já citado, o mesmo Tribunal suavizou a posição que adotara no caso Solange I. 178 Já citado. 179 Despacho 6-7-2000, BVerfGE 200, pgs. 147 e segs. Veja~se, por último, STREINZ, pg. 80. ,., Ac. 27-12-73, RTDE 1974, pgs. 148 e segs. '"' Ac. 8-6-84, RTDE 1985, pgs. 414 e segs. 182 Veja-se esta matéria em JACQUÉ, pgs. 5S e segs.. 183 Ac. 30-6-2009, cit., pontos 35 e segs. 184 Um estudo feito com rigor da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão em matéria de direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito da União até ao Tratado de Lisboa, sem ser em língua alemã, pode ver-se emJ. CARLOS CANO MONTEJANO, La integraci6n europea desde el Tribunal Constitucional alemán, Madrid, 2001, pgs. 158 e segs. 176 60. A proteção dos direitos fundamentais após o Tratado da União Europeia Só com o Tratado da União Europeia é que o Direito Comunitário originário viria a ter uma norma escrita e expressa sobre a salvaguarda dos direitos fundamentais. De facto, o artigo F CE, na redação dada pelo Tratado de Maastricht (correspondente ao artigo 6. CE na redação de Nice), estabelecia, no seu n. o 2: 0 A União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto principios gerais do direito comunitário. Como se vê, o TUE acolhia e codificava, no essencial, a jurisprudência comunitária sobre a matéria!". De qualquer forma, o preceito transcrito pouco mais trazia do que esse valor simbólico, dado que ele, por si mesmo, não era suscetível de fiscalização pelo TI, pois o artigo L (depois, artigo 46.°, na versão de Nice) do TUE não lhe atribuía competência para o efeito. No que diz respeito particularmente à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, referida no citado artigo F, n. o 2, na redação de Maastricht, nos trabalhos preparatórios do Tratado de Maastricht havia sido especialmente discutido o modo como a Ordem Jurídica da União passaria a encarar a CEDH: muito concretamente, se a União Europeia deveria aderir àquela Convenção, o que, por mais de uma vez, as Comunidades se haviam recusado a fazer. Também aqui foi então entendido manter-se a posição até à data seguida pelo TI, ou seja, a posição segundo a qual o TUE passaria a afirmar, de forma expressa, que a CEDH vigorava na Ordem Jurídica da União como um conjunto de princípios gerais de Direito Comunitário, mas ficando excluída a adesão da União àquela Convenção. 185 Expressamente nesse sentido, por último, 177 RENUCCI, pgs. 17 e segs. A União Europeia o problema da adesão da União à CEDH foi retomado pouco depois. O TJ, no seu Parecer n. o 2/94 186 , entendeu que a adesão só poderia ter lugar mediante prévia modificação dos Tratados. Por isso, a questão foi discutida, mais profundamente do que nunca, na Conferência Intergovernamental (CIG) que preparou a revisão de o Amesterdão. A CIG resolveu manter intocado o n. 2 do até então artigo F, o que foi interpretado pela doutrinaiS?, e, a nosso ver, bem, como tendo significado uma recusa implícita da adesão da União à CEDH. Todavia, a jurisprudência da União foi entretanto concedendo relevância, na Ordem Jurídica da União, aos direitos elencados na CEDH, embora pela via da fonte dos princípios gerais de Direito Comunitário. As relações entre a União e a CEDH manter-se-iam nesse pé até ao Tratado de Lisboa, que veio impor à União a adesão àquela Convenção. Debruçar-nos-emos adiante sobre essa matéria. 61. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União Europeia após o Tratado de Amesterdão I - Introdução O Tratado de Amesterdão veio reforçar profundamente a proteção dos direitos fundamentais na União Europeia. E fê-lo por várias vias. Vejamos. II _ O novo artigo 6.", n. o 1, do Tratado UE Em primeiro lugar, afirmando, de modo expresso, o princípio do respeito pelos direitos fundamentais como princípio constitucio0 nal da União. De facto, a redação totalmente nova do artigo 6. (ex-artigo F), n. o 1, UE, levou este a dispor o seguinte: I" 28-3-96, CoI., pgs. 1-1.759 e segs. 187 Veja-se, por todos, WACHSMANN, pg. 177, onde também se pode encontrar uma bem fundada apreciação crítica daquele Parecer do TJ. 178 A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia 1. A União assenta nos princípios da liberdade, de democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados-membros (itálico nosso). É certo que estes princípios escapavam ao controlo direto dos Tribunais da União. E isto era assim porque o artigo 46. 0 (ex-artigo L), na nova redação que o Tratado de Amesterdão lhe deu, e à qual nos referiremos daqui a pouco, veio conferir ao TJ competência para fiscalizar a aplicação do artigo 6. n. o 2, mas não do artigo 6. o, n. ° 1. Mas isso, embora fosse evitável, pouco enfraquecia a garantia judicial dos direitos fundamentais no quadro da União, não apenas por força do sistema global dos Tratados em matéria de proteção e garantia dos princípios consagrados no artigo 6. n. o 1, como também pelo que vamos dizer a seguir. 0 , 0 , III - A garantia dos direitos reconhecidos no artigo 6. n. o 2, do Tratado UE 0 , De facto, o artigo 6. 0 , n.O 2, reproduzia o artigo F, n. o 2, que constava do TUE na versão do Tratado de Maastricht, e que atrás transcrevemos. Mas com uma importante novidade: os direitos fundamentais expressamente acolhidos pela União nessa disposição concreta passavam agora a estar sujeitos ao controlo do TJ. Assim vinha dispor, de forma expressa, o artigo 46." (ex-artigo L), na sua alínea d. E esta era a segunda inovação trazida pelo Tratado de Amesterdão em matéria de proteção dos direitos fundamentais. Com essa alteração trazida pelo artigo 46. aI. d, chegava-se a um triplo objetivo. Por um lado, passava a ter fundamento no próprio Tratado a fiscalização pelo TJ do respeito pelos direitos fundamentais pela União e pelas Comunidades. Dava-se, dessa forma, acolhimento expresso à doutrina recordada pelo TJ no seu citado Parecer n. o 2/94, segundo o qual "o respeito pelos Direitos do Homem cons0 , 179 A União Europeia titui (...) uma condição da legalidade dos atas comunitários"I88. E, como bem notam SIMON 1" e SUDRE I90 , daí resultava uma "integração suave" do Direito da CEDH no bloco da legalidade de harmonia com o qual o TJ controlava os direitos fundamentais na Ordem Jurídica da União. Por outro lado, punha-se termo a uma situação absurda, que fora criada pelo Tratado de Maastricht, e que podia ser interpretada como uma subtração ao controlo do TJ da proteção dos direitos fundamentais tal como ela já decorria até então da própria jurisprudência daquele Tribunal. Por fim, ao se alargar, agora, na revisão de Amesterdão, por via do novo artigo 46.°, aI. d, a fiscalização judicial da conformidade dos atas da União e das Comunidades com os direitos fundamentais a que se refere o artigo 6.°, n.' 2, punha-se termo à preocupação dos Estados-membros, que, pelo Tratado de Maastricht, tinham transferido para a União poderes soberanos seus em matéria de direitos fundamentais sem que o exercício desses poderes, desta forma transferidos para a União, tivesse ficado expressamente sujeito à garantia judicial efetiva da parte dos Tribunais da União. Note-se, todavia, que todo esse progresso ficava limitado pelo facto de os particulares não terem visto alargada a sua legitirtlidade ativa para interpor o recurso de anulação, previsto no então artigo 230.° CE, e, concretamente, não ter sido criado um recurso direto para os Tribunais da União pela violação de um direito fundamental (uma espécie de queixa constitucional, à semelhança da "Verfassungsbeschwerde" alemã, ou do recurso de amparo espanhol), como fora proposto pelo Relatório aprovado pelo Conselho Europeu de Florença, de 21 e 22 de junho de 1996 191 . 188 Ponto 34. '" Pg.351. 190 La Communauté européenne, pg. 100. 19' RTDE 1996, pg. 629. 180 A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia IV - O novo artigo 49.°, par. 1, do Tratado UE A terceira matéria em que o Tratado de Amesterdão veio inovar em relação ao texto inicial do TUE em matéria de proteção dos direitos fundamentais foi a constante do seu novo par. 1 do artigo 49.°. Passou a exigir-se que um Estado para aderir à União "respeite os princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.°". Tratava-se, pois, de uma condição para que qualquer Estado se tornasse membro da União. Esse respeito encontrava-se sujeito à fiscalização dos órgãos da União antes da conclusão das negociações de adesão, nos termos fixados no artigo 49.°, par. 1. Esta exigência tinha toda a justificação: já haviam então requerido a adesão, ou iam requerê-Ia, Estados da Europa Central e do Leste, saídos há pouco de regimes ditatoriais, e, nos quais, portanto, o nível de proteção dos direitos fundamentais era ainda muito baixo, a começar em matéria de salvaguarda das minorias étnicas, bem como Estados da bacia mediterrânica, como o Chipre e a Turquia, onde perduravam crónicas situações de insuficiente proteção dos Direitos do Homem. V - O novo artigo 7.° do Tratado UE A quarta alteração introduzida pelo Tratado de Amesterdão no TUE no domínio da proteção dos direitos fundamentais consistiu na introdução do novo artigo 7. 0 no TUE. Esse preceito permitia ao Conselho, se este concluísse que um Estado-membro incorria numa "violação grave e persistente, por parte de um Estado-membro, de algum dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.'" do TUE (ou seja, os princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos fundamentais e do Estado de Direito), aplicar ao Estado em questão a sanção da suspensão de "alguns dos direitos decorrentes da aplicação do (... ) Tratado ao Estado-membro em causa, incluindo o direito de voto" desse Estado no Conselho - foi o que passaram a dispor os n. OO I e 2 desse artigo o. O não respeito por qualquer daqueles princípios (que, todos eles, 181 A União Europeia se prendiam com a proteção dos direitos fundamentais, para além de um deles se referir expressamente a estes) podia, desse modo, afetar a participação plena do respetivo Estado na União. Esses n." I e 2 disciplinavam o procedimento administrativo de aplicação dessa sanção. Ele iniciava-se com a audiência do Estado visado. Finda esta, o Conselho, reunido a nível de Chefes de Estado e de Governo, e respeitado o procedimento regulado no n.o I do artigo, poderia deliberar, se fosse o caso, que existia a referida violação. Essa deliberação teria de ser tomada por unanimidade, para a qual não contava o voto do Estado visado e as abstenções não valiam como voto negativo, como dispunha o n.o 4 do mesmo artigo. Uma vez aprovada essa deliberação, o Conselho, por maioria qualificada (também aqui com respeito pelas regras de votação enunciadas no n.o 4), podia aplicar ao Estado em causa a sanção prevista no n.o 2 do referido artigo 7.°. Uma vez decidida, a sanção podia ser alterada ou revogada nos termos previstos no n. ° 3 do mesmo artigo. A sanção aplicada no quadro da União Europeia ao abrigo do artigo 7.°, n.o 2, do TUE, acarretava ipso iure a aplicação de igual sanção no âmbito da Comunidade Europeia, por força do artigo 309.°, n.o 1, do Tratado CE, e nos termos estabelecidos nesse artigo. Além disso, porém, nos termos do artigo 309.°, n.o 2, CE, o Conselho podia (tratava-se, aqui, de uma faculdade) cumular essa sanção com a suspensão de "alguns dos direitos decorrentes da aplicação do presente Tratado (o Tratado CE) a esse Estado-membro". Essa deli: beração seria tomada por maioria qualificada e, pelo que resultava do n. ° 3 do mesmo artigo, não afetava a condição do Estado como membro da CE. Os n.O; 2 a 4 do artigo 309.° disciplinavam o procedimento da aplicação dessa sanção. A razão pela qual o Grupo de Reflexão que preparou a revisão de Amesterdão (o Grupo Westendorp) propôs a inclusão deste preceito no TUE prendeu-se com o então já previsível alargamento aos Estados do Centro e do Leste da Europa. Criou-se em certos sectores da opinião pública europeia a ideia de que as sanções aplicadas à Áustria em 31 de janeiro de 2000, por ocasião da ascensão ao Governo do Partido Liberal, de direita, e 182 A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia durante a presidência da União por Portugal, o haviam sido ao abrigo deste artigo 7.° UE. Nada de mais errado. Aquelas sanções foram aplicadas, no quadro do puro Direito Internacional, pelos outros catorze Estados-membros da União Europeia, como tais, à Áustria. Trataram-se, pois, de sanções bilaterais aplicadas por esses cartorze Estados-membrosl 92 • Aliás, se essas sanções tivessem sido aplicadas ao abrigo do artigo 7.°, elas s6 o poderiam ter sido com respeito pelo procedimento previsto nos então n.O' I e 2 daquele artigo, o que não aconteceu: nem a Áustria foi ouvida, nem o Conselho se reuniu para tomar as deliberações previstas nos n.O; I e 2 daquele artigo, nem se respeitou a intervenção dos outros 6rgãos da União, nos termos exigidos pelo artigo 7.°, n.o 1. E compreende-se que as sanções contra a Áustria não tivessem sido aplicadas ao abrigo do artigo 7.°. É que este preceito pressupunha, para a aplicação da sanção prevista no então n. ° 2 daquele artigo, a violação por um Estado-membro de algum dos princípios do artigo 6.°, n.o 1, UE. Ora, a Áustria, como Estado-membro, não violara qualquer daqueles princípios, nem alguma vez qualquer dos outros Estados o alegara e demonstrara. O que se havia passado era apenas que um dos partidos da coligação governamental tinha defendido, durante a campanha para as eleições legislativas a nível federal, princípios que feriam os direitos dos estrangeiros. Mas nem esses princípios foram levados ao Programa do Governo, nem eles foram aplicados pelo Estado, como tal. Percebe-se, por isso, que a Comissão Europeia de imediato se tenha recusado a conceber aquelas sanções como sanções da União e, portanto, se tenha recusado a aplicá-Ias. E, pela mesma razão, se compreende também que, meses volvidos, o "Grupo dos Três" criado para estudar da conveniência, da necessidade e da eficácia daquelas sanções, tenha proposto a revogação das mesmas, o que foi )92 Assim, FROWEIN, na op. cil. na nota seguinte, pg. 20 (com a importância especial que o depoimento deste Autor merece, pelas razões que serão daqui a pouco indicadas). 183 A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia feito. Dessa forma repôs-se a legalidade no domínio da interpretação e da aplicação do artigo 7.° UE e, ao mesmo tempo, evitou-se que se criasse o muito grave precedente de se punir um Estado apenas com base nas ideias que um partido político havia defendido numa campanha eleitora!,93. Em contrapartida, merecia destaque a circunstância de os Estados-membros se mostrarem vinculados à Carta Social Europeia, mesmo sabendo-se que o Reino Unido ainda a não assinara à data. Este acolhimento da Carta Social Europeia e da Carta Comunitária dos Direitos Sociais pelo TUE, ainda que nas condições limitadas em que ocorreu, devia ser entendido como englobando todos os direitos sociais nelas assegurados, alguns dos quais se encontravam elencados no artigo 136.°, par. I, CE, e, como tal, vinha reforçar profundamente a dimensâo social da integração europeia. Todavia, a não referência àqueles textos no artigo 6.°, n.O 2, UE, impedia o controlo jurisdicional do respeito por aqueles VI - Os direitos sociais o quinto domínio onde O Tratado de Amesterdão introduziu alterações em matéria de direitos fundamentais consistiu no acolhimento, de forma expressa, pelo TUE, dos direitos sociais. De facto, no novo considerando 4.° do preâmbulo do TUE, acrescentado pelo Tratado de Amesterdão, os Estados haviam confirmado "o seu apego aos direitos sociais fundamentais, tal como definidos na Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989". Recorde-se que a Carta Social Europeia foi aprovada pelo Conselho da Europa e a referida Carta Comunitária foi aprovada pelo Conselho Europeu, na sua reunião em Estrasburgo, em 1989. Note-se, todavia, que o apego, dessa forma manifestado à Carta Social Europeia, não deixava de estar rodeado de alguns equívocos. De facto, o preâmbulo do Ato Único Europeu continha referência àquela Carta; depois, porém, o TUE, na sua versão inicial, ignorou-a, quer no preâmbulo, quer no artigo F, par. 2, quando este se referia à Convenção Europeia dos Direitos do Homem; por com o Tratado de Amesterdão, não podia deixar de causar estranheza o facto de ela, por um lado, ter passado a ser invocada preâmbulo do TUE e, mais tarde, no artigo 136.° (ex-artigo 117.°) CE, mas, por outro lado, continuar a ser ignorada no artigo 6.° n. ° 2, do TUE, voltando a não aparecer aí ao lado da CEDR. 193 Todo este problema encontra-se esclarecido por um dos membros desse "Grupo dos Três", FROWElN, Die Verklammerung der europaischen Union ais fassungsgemeinschaft mit der EMRK, Festschfrift Trechsel, 2002, pgs. 17 e (20-21). 184 direitos 194. VII - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade, segurança e justiça o Tratado de Amesterdão também veio reforçar a proteção dos direitos fundamentais através do alargamento da competência do TJ no domínio da justiça e dos assuntos internos, por força dos artigos 46.°, aI. b, e 35.° UE. A comunitarização de parte do terceiro pilar, isto é, a integração no pilar comunitário de parte do terceiro pilar (ou seja, da cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos interque formavam o Título VI do TUE antes do Tratado de Amester,dã() veio estabelecer uma relação direta entre essa matéria e a liberdade de circulação de pessoas, de forma a se poder alcançar espaço de liberdade, de segurança e de justiça". A definição do OlJllelIvo da prossecução deste espaço constituiu uma das maiores ino,v""Õe" do Tratado de Amesterdão, como se podia ver pelo consid(:rarldo 11.° do preâmbulo e pelo artigo 29.° UE. E o preâmbulo, referido considerando, era muito claro ao afirmar que a criação 194 Sobre este ponto, ver, especialmente, SUDRE, La Communauté européepgs. 9 e segs., e GIUBONN1, Diritti sociali e mercato, Bolonha, 2003, sobretudo 165 e segs. 185 A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia daquele espaço se encontrava ao serviço do aprofuudamento da livre circulação de pessoas'''. assim, merecem referência duas inovações importantes que aquele Tratado trouxe. A primeira consistiu na introdução de um novo n.o 1 no artigo 7.° do TUE, artigo esse que, como atrás mostrámos, havia sido integrado no TUE pelo Tratado de Amesterdão. Enquanto que, na versão inicial, aquele artigo, nos seus n. '" 1 e 2, possibilitava a aplicação de sanções a um Estado-membro apenas em caso de "uma violação grave e persistente" (portanto, uma violação consumada e reiterada), por parte do Estado, de algum dos princípios enunciados no artigo 6.°, n.o 1, UE, ele, com a revisão de Nice, no seu novo n.o 1, permitia a verificação da existência "de um risco manifesto de violação grave" de qualquer daqueles princípios L9'. É certo que dessa forma ficava alargada a proteção dos direitos fundamentais, imposta pelo artigo 6.°, n.o 1. Mas sublinhe-se que, na situação do referido "risco manifesto de violação grave", ao Estado-membro em causa apenas podiam ser dirigidas "recomendações apropriadas", confonne dispunha o novo artigo 7.°, n.o 1, e respeitado que fosse o procedimento aí regulado, do qual se destacava a possibilidade de ser pedido um relatório prévio sobre a situação concreta a personalidades independentes. A aplicação das sanções previstas no artigo 7.°, n.o 3, depois da revisão de Nice (ex-artigo 7.°, n.o 2, após o Tratado de Amesterdão) continuava a só ser possível em caso de violação consumada e reiterada (melhor, "violação grave e persistente") desses direitos: confronte-se o artigo 7.°, n.O' 2 e 3, depois da revisão de Nice, com o artigo 7.°, n.O' 1 e 2, após a revisão de Amesterdão. Por outro lado, enquanto que para a matéria do artigo 7.°, n.o 2, continuava a ser competente o Conselho reunido a nível de Chefes de Estado e de Governo, e deliberando por unanimidade, para o efeito do artigo 7.°, n.o 1, este contentava-se com a intervenção do Conselho, e deliberando pela maioria qualificada aí prevista. Além disso, o Tratado de Nice manteve, nesse artigo 7.°, a previsão da violação dos princípios enunciados no artigo 6.°, n.o 1, quando uma melhor proteção dos direitos fundamentais exigiria a remissão do artigo 7.° também, e explicitamente, para os direitos fundamentais referidos no artigo 6.°, n.o 2. Em contrapartida, por força da nova alínea e do artigo 46.° UE, as "disposições processuais" previstas no artigo 7.° passaram a estar sujeitas ao controlo do TJ. A segunda inovação trazida na matéria pelo Tratado de Nice constava do novo artigo l81.°-A do Tratado CE. Em matéria de "cooperação económica, financeira e técnica com os pafses terceiros", aquele artigo veio estabelecer, no seu n.° 1, par. 2, que "A política da Comunidade neste domínio contribuirá para o objetivo geral de desenvolvimento e consolidação da democracia e do Estado de Direito, bem como para o objetivo de respeito pelos direitos humanos e das liberdades fundamentais" (itálicos nossos). Embora a Comunidade já observasse esta conduta nas relações com Estados terceiros (vejam-se, por exemplo, as Convenções de Lomé com os Estados ACP, isto é, da África, das Caraíbas e do Pacífico), o respetivo Tratado era até agora omisso sobre a matéria. Note-se, todavia, que a Declaração n. ° 10, anexa à Ata Final da Cimeira de Nice, introduzia uma restrição ao disposto no artigo 181.°-A, n.o 1, par. 2, restrição essa cuja razão de ser não se entendia, em face do espírito que presidia àquela disposição do Tratado l• 7• Ver esta matéria desenvolvida, de modo especial, em W ACHSMANN, pgs. 180 e segs., LABAYLE, pgs. 105 e segs., e RENUCCI, pgs. 651 e segs. e 655 e segs. 196 Sobre a génese do novo artigo 7.°, n.o 1, veja-se FROWElN, op. cit., pg. 21. m Para um apanhado global das diversas questões jurídicas suscitadas ao longo dos dois últimos números, os o.OS 61 e 62, veja-se especialmente, até pela sua atualidade, o comentário de GRABlTZ/HILF/NEITESHEIM ao artigo 6.°, n.O'< 1 e 2, UE, bem como aos outros preceitos estudados no texto. 186 187 62. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União Europeia após o Tratado de Nice o Tratado de Nice preocupou-se pouco com a questão dos direitos fundamentais. Os seus autores contentaram-se com as soluções encontradas na matéria na revisão de Amesterdão. Mesmo 195 A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia 63. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: remissão II - O respeito pelos direitos fundamentais como valor da União Entretanto, em 7 de dezembro de 2000, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, através de uma primeira Proclamação conjunta, aprovaram a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A União passava, dessa forma, a ter finalmente, em forma escrita, o seu próprio rol de direitos fundamentais. Dizemos pri" meira Proclamação conjunta porque, como veremos, a Carta volta-, ria a ser novamente proclamada por aqueles três órgãos em 12 de.B: dezembro de 2007 para o efeito de ser incluída nos Tratados pelo i;; Tratado de L i s b o a . \ • . Dada a sua importância, e levando em conta as questoes mUlto,;, complexas e difíceis que suscita, a Carta será por nós estudada, com . pormenor, no Capítulo seguinte. ,',~!, 64. A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia após o Tratado de Lisboa Até ao Tratado de Lisboa, e desde o TUE, o respeito pelos direitos fundamentais já fazia parte da Constituição material da Demonstrámo-lo atrás. E isso já era muito. Mas o Tratado de conseguiu elevar ainda mais o grau daquele respeito no substantivo da Ordem Jurídica da União. De facto, o respeito direitos fundamentais é erguido a valor em que se funda a ,.,'uuoau - di-lo o já nosso conhecido artigo 2.° UE. E isso é obtido, artigo, quer pela referência expressa ao respeito pelos direitos quer através da referência a outros valores aí enuncia- e dos quais o respeito pelos direitos fundamentais tem de ser como um corolário: o respeito pela dignidade humana, a libera Democracia, a igualdade, o Estado de Direito, o pluralismo, justiça. E, tal como já sublinhámos atrás, refira-se que todos esses ;,Xvalores não são apenas valores da União, são "valores comuns" a os Estados-membros. Isto quer dizer que o respeito pelos direitos fundamentais, por V"l"Qfe'a do novo artigo 2.° UE, atinge o superior alcance ontológico valores que constituem o primeiro fundamento da União e do sistema jurídico e político. Mas o significado da inclusão do respeito pelos direitos fundaliiffJne'ltais no artigo 2.° UE não fica por aqui. Esse respeito projeta-se toda a ação externa da União, na medida em que ele, visto como da União, deve ser afirmado e prosseguido por esta nas suas ;relações com todo o mundo. Isso é, de modo muito claro, imposto artigos 3.°, n. 5, e 21. n. o I, UE. O 0 , III - O novo eleuco dos direitos recouhecidos Mas, como se disse, o Tratado de Lisboa também ampliou, de muito sensível, o âmbito dos direitos fundamentais reconhecipelo Direito da União. Estes passaram a ter as seguintes fontes: 188 189 A União Europeia A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia a) Em primeiro lugar, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 6.°, n.o 1, UE). Repetimos: finalmente, a União passou a ter, como há tanto tempo desejava, o seu próprio rol de direitos fundamentais, sem ter que os pedir emprestados ao Direito Internacional e ao Direito Constitucional dos Estados-membros. Como já atrás prometemos, estudaremos a Carta, pela sua importância, em capítulo autónomo, e logo a seguir a este capítulo. Mas diremos, desde já, que ela, pela sua sistematização, pelo elenco dos direitos enunciados e pelo método por ela escolhido para a proteção dos direitos, constitui porventura o documento jurídico mais evoluído em todo o mundo sobre Direitos da Pessoa Humana (expressão que desde há muito tempo preferimos a "Direitos do Homem"). Direito da União provém de uma fonte quádrnpla: a Carta, o Direito Internacional sobre Direitos do Homem, dentro deste último, de modo especial, a CEDH, e as tradições constitucionais comuns aos Estados-membros. b) Em segundo lugar, a CEDH e as tradições constitucionais comuns aos Estados-membros (artigo 6.", n." 3, UE). Na redação do antigo artigo 6.°, n.o 2, UE, na versão de Nice, dispunha-se que os direitos aí reconhecidos vinculavam a União como "princípios gerais do Direito Comunitário". Atualmente, estabelece o artigo 6.°, n." 3, UE, que eles "fazem parte" do Direito da União "enquanto princípios gerais" (itálicos nossos). Os trabalhos preparatórios, quer do Tratado Constitucional, donde esses preceitos provêm, quer do Tratado de Lisboa, não nos pernútem compreender se a diferença de redação foi intencional. E a questão não é irrelevante, porque os "princípios gerais", entendidos como princípios gerais de Direito, são hierarquicamente superiores aos princípios gerais do Direito Comunitário. Todavia, a questão perde relevância prática perante o que dispõe na matéria a Carta: ou seja, que ela "reafirma" (portanto, absorve) os direitos, entre outros, da CEDH e das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros (5.° considerando do preâmbulo da Carta) e, no confronto entre esses direitos, entre outros, e os constantes da Carta, esta respeitará o nível mais alto de proteção (artigo 53.° da Carta). Dos preceitos citados da Carta e dos Tratados resulta que o núcleo essencial dos direitos fundamentais reconhecidos pelo 190 c) Além disso, o Tratado de Lisboa resolveu incluir esparsamente, ao longo dos Tratados UE e TFUE, alguns direitos e grupos de direitos, mesmo para além daqueles que se encontram diretamente integrados na cidadania da União, dos que decorrem dos "princípios democráticos", enunciados nos artigos 9.° e seguintes UE, e dos que constam, de alguma forma, da Carta. Alguns desses direitos já constavam dos Tratados antes do Tratado de Lisboa mas um pequeno número deles viu o seu conteúdo reformulado. Dentro desses direitos merecem destaque: os direitos das pessoas pertencentes a minorias, o que, em nosso entender, tem de englobar os direitos pertencentes às próprias minorias, sobretudo quando se pensa nas minorias étnicas e culturais (artigo 2.° UE), a igualdade entre homens e mulheres (artigo 3.°, n." 3, par. 2, UE), os direitos da criança (artigo 3.°, n.o 3, pars. 2 e 5,UE), os direitos sociais elencados no artigo 9.° TFUE, o direito à não-discriminação (artigo 10.° TFUE), o direito ao ambiente e ao desenvolvimento sustentável (artigo 11.° TFUE), a defesa dos consumidores (artigo 12.° TFUE), o direito à proteção de dados de carácter pessoal (artigo 16.° TFUE), o direito das igrejas, associações e comunidades religiosas, bem como das organizações filosóficas e não confessionais dos Estados-membros, à sua identidade e ao seu estatuto próprio (artigo 17.° TFUE), etc. IV - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade, segurança e justiça Com a comunitarização total do antigo terceiro pilar, o espaço de liberdade, segurança e justiça, tal como ele se encontrava previsto e regulado nos Tratados, na versão de Nice, aumentou o seu campo de aplicação e também as suas ambições. Os autores dos novos TUE e TFUE quiseram reforçar também, e proporcional191 A União Europeia mente, a proteção dos direitos fundamentais naquele espaço. A ideia que preside a este sistema é, sempre, a de se encontrar um permanente equilíbrio entre liberdade e segurança, de tal modo que esses dois pólos se harmonizem e se completem em vez de um deles se sacrificar ao outro, ou seja, em vez de a liberdade ameaçar a segurança ou de esta pôr em perigo a liberdade. Nesse sentido, merecem ser destacados os novos artigos 3.", n. OO I e 2, UE, e 67." TFUE, que, quanto ao espaço de liberdade, segurança e justiça, vieram substituir os antigos artigos 2.", pars. I, 2 e 4, e 29.° UE e 61.° CE, na versão de Nice. Tem que se conceder relevãncia à ênfase que os artigos 3.°, n.o 2, UE, e 67.°, n.o I, TFUE, põem na necessidade de se respeitar os direitos fundamentais na condução e na gestão do espaço de liberdade, segurança e justiça. Os n."' 2 a 4 do artigo 61.° TFUE desenvolvem e pormenorizam essa ideia, pondo especial destaque na necessidade de se proteger de forma "equitativa" os nacionais de Estados terceiros e equiparando a eles os apátridas. Num e noutro ponto, o Direito da União é, por conseguinte, mais generoso do que o Direito Internacional clássico. Compete aos Estados-membros, através dos respetivos sistemas jurídicos nacionais (artigo 67.°, n.o I, infine, TFUE), concretizar da melhor forma possível, e no respeito pelos Tratados, o equilíbrio entre as tendências libertárias e securitárias, para que se alcance o referido equilíbrio proporcionado entre liberdade e segurança, que é desejado pelos Tratados. v - As alterações introduzidas no artigo 7.° do Tratado UE O artigo 7.° do Tratado UE, na versão de Nice, sofreu algumas alterações com o Tratado de Lisboa. Elas podem resumir-se seguinte: o risco de violação ou a violação dos princípios enunciados no antigo artigo 6.°, n.o I, UE, é agora referido aos valores artigo 2.° UE; no quadro do previsto no n.o I, o Conselho passa poder dirigir recomendações ao Estado em falta; houve alterações de índole institucional no procedimento previsto no n.o 2, a importante das quais consistiu na substituição do Conselho 192 A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia Conselho Europeu; o n.o 5 do artigo alterou de modo significativo as regras de votação aplicáveis ao caso. Mas a mais importante das alterações introduzidas na matéria consistiu na atribuição pelo novo artigo 269. ° TFUE de competência ao TI para conhecer da legalidade dos atos praticados ao abrigo do artigo 7.° UE, embora na.s condições aí previstas e com respeito pelos reqUIsitos processuais aí referidos. 65. A Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia Esta Agência foi criada em 2007 pelo Regulamento CE n.o 168/2007, do Conselho, de 15 de fevereiro. Ela veio dar um iIT,lportante contributo para a formação de um Direito Europeu dos Dlr~ltos do Homem fundado na Carta e no conjunto dos demais direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito da União por força do artigo 6.°, n.O 3, UEI9'. . Inicialmente, os órgãos da União, sobretudo a Comissão, haViam pensado para a Agência funções de controlo e de fiscalização. Mas a Agência ficou aquém disso. Ela visa apenas fornecer aos órgãos e às instituições da União, bem como aos Estados-membros, quando apliquem Direito da União, informações "objetivas, fiáveis e comparáveis", e dar-lhes apoio com vista a se respeitar totalmente os direitos fundamentais reconhecidos pelas referidas fontes 199 Desta forma, a Agência sucedeu ao Observatório Europeu dos Fenómenos Racistas e Xenófobos, criado em 1997200 A Agência tem personalidade jurídica própria. Ela deve cooper~ estreitamente com o Conselho da Europa, com as organizações nao governamentais (ONG) e, de uma maneira geral, com a sociecivil, estabelecendo, para o efeito, uma "plataforma de direitos . As suas atribuições poderão ser alargadas no 198 Ver o preâmbulo do Regulamento, n.o 1. "'P " bul o, pontos 2, 4 e 19, e artigo 2.°, 3.°, 4.° e 6.° a 10.° do Regularearn mento. 200 Ver Regulamento CE n." 1652/2003, JO L 245, de 29-9-2003 ponto 33 "'P ' bulo, pontos 8, 19 e 27, e artigos 6.° a 10.° do Regulamento. ' . ream 193 A União Europeia futuro de modo a abarcarem os direitos fundamentais no espaço cooperação policial e judiciária em matéria penal'·'. E ela articular-se, especialmente, com o Instituto Europeu para a Igualdade entre Homens e Mulheres, a ser criado ulteriormente. A Agência atua com independência e encontra-se sujeita à calização do Provedor de Justiça da União'·3 CAPÍTULO V A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA 202 203 Preâmbulo, ponto 32. Artigos 16. 0 a 19. 0 do Regulamento. 194 Bibliografia especial: para além da bibliografia indicada no Capítulo anterior, ver, mais especificamente, A. BLECKMANN, Die Bindung der Europaischen Gemeinschaftandie Europaische Menschenrechtskonvention, Colónia, 1986; F. DE QUADROS, A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, Coimbra, 1998, pgs. 517 e segs.; G. COHEN-JONATHAN, La Charte des droits fondamentaux de I'Union européenne, LPA2000, n.' 127, pg. 4; J. DUTHEIL DE LA ROCHÉRE, La Charle des droits fondamentaux de 1'Union européenne: quelle valeur ajoutée, quel avenir?, RMC 2000, pgs. 674 e segs.; 1. LIMBACH, La coopération des juridictions dans la future arclzitecture européenne des droitsfondamentaux, RUDH 2000, pgs. 369 e segs.; C. GREWE, Les droits sociaux constitutionnels: propos comparatifs à l'aube de la Charte des droits fondamentaux de l' Union européenne, RUDH 2000, pgs. 85 e segs.; F. BENOlT-RoHMER (dir.), La Charte des droitsfondamentaux de I'Union européenne, número monográfico da RUDH 2000, 15-9-2000; H. HAENEL, L'élaboration d'ulle Clzarte des droits fOlldamentallx, cd. do Senado francês, Paris, 2000; European Charter of Fundamental Rights, número especial da revista MJ 2001, TI. o 1; K. LENAERTS e F. SMIJTER, The C/zarter and the role of lhe European Courts, MJ 2001, pgs. 90 e segs.; R. MEDEIROS, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Estado Português. Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976, ed. da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001, pgs. 7 e segs.; C. PICHERAL, L'ordre public européen - droit communautaire et droit ellropéen des droits de 1'honune, Paris, 2001; G. FRANCO FERRARI Ced.), 195 A União Europeia I diritti fondamentali dopo la Carta di Nina - Il costituzionalismo de~ diritti, Milão, 2001; L. FERRARI BRAVO, F. DI MAJO, A. 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MEYER (ed.), Cf1arta der Gnmdrecht der europiiischen Union, 3. a ed., Baden-Baden, 2011; F. DE QUADROS, Rapport introductif: la protection des droits fondamentaux en Europe avallt et apres l'adhésion de I'Union europée1111e à la CEDH, in SIPE, Atas do 8.° Congresso, 2012, no prelo. 66. Introdução No quadro da proteção dos direitos fundamentais na União "Europeia merece importância especial a Carta dos Direitos FundaiJ'entais, por todos os motivos que já foram referidos e por aqueles que adiante ficarão demonstrados. Por isso, vamos dedicar-lhe um 'Çapítulo autónomo. ln. A elaboração da Carta As mesmas razões que haviam levado o TUE a aprofundar no seu texto inicial e nas suas várias revisões, a f9teção dos direitos fundamentais faziam com que os Estados·membros desejassem possuir depressa o seu próprio catálogo de !jireitos fundamentais e integrá-lo no Tratado. Estariam, desse ,m9do, a Hconstitucionalizar" os direitos que pretendiam reconhecer ~os cidadãos da União20', o que significava muito mais do que a sua , ndensação na cláusula do artigo 6.°, n.O 2, UE, na versão de Nice. Jo se tratava de uma ideia nova, dado que pelo menos o Tratado pinelli havia defendido a mesma solução. ., Por isso, o Conselho Europeu de Colónia, de junho de 1999, ,nc,arregou uma "Convenção" de elaborar uma Carta dos Direitos ,\Í11damentais "na qual fiquem consignados, com toda a evidência, 'i)llportância primordial de tais direitos e o seu alcance para os . adãos da União". ,~1Jcessivamente, 204 Já em 1998 havíamos, fundamentadamente, defendido essa orientação a nossa monografia A protecção da propriedade privada, cit., pgs. 529-530. 197 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia o método da elaboração da Carta escapava à diplomacia clássica e era desconhecido do Direito da União. De facto, o Conselho Europeu de Colónia confiara o mandato para o efeito a um "grupo" ou "corpo" ("enceinte", em francês, body, em inglês). Foram os membros do Parlamento Europeu que iriam fazer parte dessa assembleia, particularmente os alemães, que a fizeram auto-intitular-se de "Convenção" ("Konvenf', em alemão).;; Como bem observa um dos mais ativos redatores da Carta, GUY ;'!. BRAIBANT (que participou na Convenção como representante do Presidente da República e do Primeiro-Ministro da França)20', a escolha da palavra "Convenção" significou um "gesto histórico": quis-se aproximá-Ia simultaneamente das convenções revolucionárias francesas e da Convenção que redigiu a Constituição dos Estados Unidos. A Convenção tinha uma composição quadripartida (o que reforçava o seu carácter original no Direito da União): numa Europa de Quinze, ela era composta por representantes dos Chefes d~ '},f Estado e de Governo (em número de 15), do Parlamento Europe~;;:' (16), dos Parlamentos nacionais (30) e por um representante dOá" Presidente da Comissão Europeia, o Comissário António Vitorino.;·~ Tinha, portanto, ao todo, 62 membros. Com o estatuto de observa;}" dores permanentes, com direito ao uso da palavra, participaram nel~.;: dois representantes do Conselho da Europa, e um Juiz e um Advo;f' gado-Geral do Tribunal de Justiça. A Convenção foi presidida por',' ROMAN HERZOG, que havia sido Professor de Direito Constitucion~l,;t Presidente do Tribunal Constitucional Federal alemão e Presidente,i da Alemanha. .1;1 Como se disse, a referida composição mista da Convenção er( original no Direito da União Europeia e conferia à Convenção uma,~ dupla "legitimidade mista": mistura de representantes de órgãoH comunitários e estaduais, por um lado, e de representantes de goveri~ nos e de parlamentos nacionais, por outro, sem qualquer hierarqui~$' entre eles. Designadamente, era a primeira vez que representantes< dos parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu se sentavant;í lado a lado para participarem na prossecução de um projeto comum;. f:. Também o modo de funcionamento da Convenção foi original: os cidadãos europeus e, de um modo geral, a sociedade civil incluindo diversas ONGs, puderam, de modo generalizado e indiscri: minado, tomar parte ativa nos seus trabalhos, através da Internet, tendo a Convenção acolhido muitos contributos obtidos por essa via. A Convenção levou a cabo os seus trabalhos desde dezembro de 1999 até outubro de 2000, após o que concluiu um texto compor um preâmbulo e 54 artigos. As cláusulas finais (conhecidas por "cláusulas horizontais") entre o mais, que a Carta tinha como destinatários as instituições e os órgãos da União, bem como os Estados-membros quando aplicassem o Direito da União, e tinham o cuidado de deixar claro que ela não criava novas atribuições para a União ou para Comunidade, nem alterava as atribuições que estas já tinham 51.°, n.O' 1 e 2) - o que teria exigido uma revisão prévia dos 'Tratad.os. A caracterização da Carta na sua fase inicial Não houve acordo na Convenção para que à Carta fosse dado eal1Ícllerobrigatório, isto é, um efeito vinculativo para os seus desti'na'tários, sem prejuízo do que a esse respeito se dirá adiante, o que logo inviabilizou a inclusão do texto da Carta no TUE, para o se teria aproveitado a revisão levada a cabo no TUE em Nice. isso, ela assumiu a forma de uma Proclamação solene do il'llrl"m"ntoEuropeu, do Conselho e da Comissão, levada a cabo em dezembro de 2000. Aqueles três órgãos introduziram no texto da Carta pequenas alterações por confronto com o texto apropela Convenção. A Proclamação veio a obter, portanto, fontes de Direito da União, a natureza jurídica de um acordo Como tal, a Carta não se limitava a valer como uma mera !gecla.ra\;ão política, despida de valor jurídico206 , mas reconheçamos 2(16 oe, Pgs.20-21. 198 Contra, PIRIS, The Lisbon Treaty, Cambridge, 2010, pg. 148. 199 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia que a sua força jurídica era fraca. Todavia, pela Declaração n.o 23, respeitante ao futuro da Uuião, anexa ao Tratado de Nice, os Esta- " dos-membros comprometeram-se a abordar o estatuto jurídico daUr Carta no quadro do processo de aprofundamento da União Europeia;'; que ficou previsto que se iniciasse na Cimeira de Laecken/Bruxelas,''P de dezembro de 2001, e que deveria concluir-se com a revisão dO',?, TUB. Essa revisão esperava-se então que viesse a ser levada a cabo!;f por uma Conferência Intergovernamental que deveria ser convocada';; em 2004 (nos termos dos n.O' 4, 5 e 7 daquela Declaração). Mas,' ficou decidido na Cimeira de Salónica, de junho de 2003, que o seu", início seria antecipado logo para outubro desse ano, o que de factQ\ aconteceu. expresso do Reino Unido, aceite pela CIG, que essas Anotações foram incluídas no Tratado Constitucional, na referida Declaração, e passaram a ser referidas no 5.° considerando do preãmbulo e no 52.°, n.o 7, da Carta. O objetivo das Anotações era o de, como diz no seu Preâmbulo, valer como "um valioso instrumento de int'~rpretaç1lo destinado a clarificar as disposições da Carta". Melhor elas pretendiam ser um elemento coadjuvante da interpretação Carta pelos Tribunais da União e dos Estados-membros, como expressamente afirmado no artigo 52.°, n.O 7, da Carta. Além dessa alteração, a CIG de 2003-2004 introduziu as seguiint(~s modificações no texto da Carta que havia sido objeto da "";JL~llI~'i~.u de 2000: a) no elenco dos direitos reconhecidos pela Carta, o acesso, aí 69. A evolução da Carta até ao Tratado Coustitucional A Convenção sobre o Futuro da Europa quis resolver depressa,'~ e em definitivo, o problema do estatuto jurídico da Carta e, sobre;;; tudo, o seu grau hierárquico nas fontes de Direito da União. E, deI modo pacífico;, decidiu incorporar a Carta no Tratado Constitucional',;' para que ela tivesse força de Direito p r i m á r i o . , ; ; Foi isso o que ela propôs à CIG. Essa CIG terminou, como j~;ii sabemos, com a assinatura do Tratado" Constitucional, emt Roma, enl'; 28 de outubro de 2 0 0 4 . ; ) . , O Tratado Constitucional continha, na Declaração anexa co1ll3 o n.o 12, Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentai~~ Estas Anotações haviam sido redigidas pelo Secretariado do Praesi;l; dium da Convenção que aprovou a Carta, sob a supervisão desl~;' Praesidium. Esse Secretariado foi assegurado pelo SecretariadR,j; -Geral do Conselho e exercido pelo Professor JEAN-PAUL JACQ~~( que à data era um dos Diretores do Serviço Jurídico do Conselho. ~; intenção dessas Anotações ("Explanations", na sua versão inglesafJ. era a de tornar o texto da Carta mais claro e dar a conhecer melhot> as fontes que haviam sido levadas em conta na sua redação. Depois,;, as Anotações foram aprovadas, com pequenas alterações, pelo Prael,:" sidium da Convenção sobre o Futuro da Europa. Foi a pedido,!' previsto, a documentos do Parlamento, do Conselho e da Comissão, era alargado pelo seu artigo 42." a documentos dos outros órgãos, instituições e organismos da União, "seja qual for o suporte desses documentos"; b) insistia-se (redundantemente, em face do texto do artigo 51. ° da Carta, ao qual já nos referimos) no facto de a Carta não alterar a delimitação de atribuições entre a União e os Estados-membros, nem alargar as atribuições da União. Portanto, não se modificava o regime vigente, segundo o qual a União não tinha atribuições para legislar em matéria de direitos fundamentais, o que, como atrás dissemos, só poderia ser alterado por uma revisão dos Tratados20'; c) no artigo 52.° esclarecia-se a distinção que a Carta estabelecia entre "direitos" e "princípios". A Carta incluiu cerca de cinquenta "direitos", "liberdades" e "princípios", e uma das críticas que cedo lhe foram dirigidas consistia em que ela não distinguia de modo suficientemente claro aqueles conceitos. Agora, o n.o 5 desse artigo 52.° vinha dispor, nas 207 Como bem nota, entre outros, JACQUÉ, '\ 200 pg. 64. O depoimento deste Autor rev,est,'-se de particular importância em função do papel que, como vimos, ele }#e,senlpenh(lU na elaboração da Carta. 201 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia palavras das Anotações acima referidas, e com itálicos nossos, que "os direitos subjetivos devem ser respeitados, enquanto que os princípios devem ser observados (... ). Os princípios podem ser aplicados através dos atos legislativos ou de execução (adotados pela União de acordo com as respetivas competências, e pelos Estados-membros apenas quando estes executem legislação da União); assim, só se tornam relevantes para os tribunais quando há que proceder à interpretação ou à revisão desses atas. No entanto, não podem servir de fundamento a pedidos diretos que exijam a ação positiva das instituições da União ou das autoridades dos Estados-membros (... )". E, como exemplos de "princípios", e não direitos, consagrados na Carta, aquelas Anotações indicavam os referidos nos artigos 25.°, 26.° e 37.° da Carta, louvando-se em jurisprudência já produzida à data pelo TJ. 70. A Carta no Tratado de Lisboa tado Constitucional, que correspondia ao atual artigo 2.° UE. A presidência alemã da União optou, no seu mandato de junho de 2007, por uma solução de compromisso: a Carta não ficaria formalmente integrada no Tratado mas o artigo 6.°, n.O 1, do Tratado UE declararia expressamente que ela teria "o mesmo valor jurídico que os Tratados", entenda-se, o TUE e o TFUE. E assim decidiu a CIG de 2007. Seguindo essa orientação, a Carta foi novamente proclamada, em 12 de dezembro de 2007, pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão, com a redação que lhe havia sido dada pela CIG de 2004, trazendo em anexo as Anotações a que já nos referimos atrás 20S • Também ficou decidido por essa CIG, de 2007, que o mesmo artigo 6.°, n.O 1, teria uma redação que desse a entender que a referência nele à Carta englobava essas Anotações 20'. E foi assim que o artigo 6.°, u.O 1, UE, ficou redigido. Como atrás vimos, estabeleceu-se agora, no artigo 6.°, n.O 3, UE, a vigência na UE dos direitos fundamentais contidos na CEDH enquanto "princípios gerais" por confronto com o ex-artigo 6.°, n.o 2, UE, infine. 'Essá prescrição só faz sentido enquanto a UE não aderir à CEDH. Depois da adesão, os direitos contidos na CEDH obrigarão a União, obviamente, como lei escrita e não apenas como princípios gerais. A CIG incluiu em anexo ao Tratado de Lisboa um Protocolo relativo à aplicação da Carta à Polónia e ao Reino Unido. De harmonia com esse Protocolo, o Direitº intern9,dagueles doisEstados prevalecerá selllpre sobre a Cartá:-Dito de outra f'()rrná:üs direitos, asli!''''cla:<íes~()s_pi}!1ç;míoüe~()'!l1e;'idospela Carta só serão aplicados àqueles dois Estados quando nãü'foremlncoml'atívéiscom o Uma minoria de Estados, com o Reino Unido à frente, atribuiu o fracasso da ratificação do Tratado Constitucional à inclusão da Carta no seu texto. A grande maioria deles, contudo, defendeu que a inclusão da Carta no Tratado constituía uma das grandes mais-valias da revisão dos Tratados que estava em curso e que ela era a única solução compatível com a inclusão do respeito pelos direitos fundamentais como valor da União, no artigo 1_2.° do Tra- Ver os dois textos em JO C 303, de 14-12-2007, pgs. 1 e segs. e 17 e segs. Sobre as vicissitudes da Carta após a sua aprovação pela Convenção que a redigiu e até ao Tratado de Lisboa, ver, das obras mais recentes, PIRIS, op. cit., pgs. 146 e segs., e M. 1. RANGEL DE MESQUITA, A União Europeia após o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2010, pgs. 75 e segs. Nós completámos o que aqui fica dito no texto, com o nosso artigo nos Estudos Jorge Miranda, vaI. V, cit., e com o nosso Rapport introductifao 8.° Congresso da SIPE, cit. 202 203 Dito de outra forma, os princípios têm de ser atendidos na interpretação e na aplicação de atos legislativos e de execução praticados pelos órgãos, instituições e organismos da União e por atos dos Estados-membros quando estes apliquem o Direito da União, no exercício das respetivas atribuições, bem como na fiscalização da sua legalidade. Não podem, todavia, ser invocados como fundamento de pretensões dirigidas aos órgãos, instituições ou organismos da União ou a autoridades dos Estados-membros. 208 209 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia respetivo Direito interno. Vão no mesmo sentido as Declarações n." 62 e 63 da Polónia, anexas ao Tratado de Lisboa. Além disso figura também em anexo àquele Tratado uma outra Declaração, esta, com o n.o 53, da República Checa, que reafirma a intenção da Cartáde'n3:o criar novas atribuições para a União. 71. O conteúdo da Carla. Em especial, os direitós nela reconhecidos I - A importância do conteúdo da Carta A Carta constitui, no plano internacional, sem dúvida, o mais ambicioso e o mais elaborado texto jurídico sobre Direitos da Pessoa _ englobando nós neste lugar, nesta expressão, os direitos, as liberdades e os princípios nela contidos. E por várias razões. Em primeiro lugar, porque é o primeiro texto que compila, simultaneamente, direitos civis, políticos, sociais, culturais e económicos. Daí resulta não apenas a vantagem da amplitude dos direitos reconhecidos pela Carta mas também, e sobretudo, a vantagem da afirmação da incindibilidade desses direitos: no Mundo moderno os Direitos do Homem (e a própria Paz mundial) só ficam devidamente protegidos se se afirmar o carácter inseparável dos direitos civis, políticos, sociais, culturais e económicos da Pessoa Humana. Logo por aqui, a Carta demonstra a sua superioridade em relação a outros textos clássicos do Direito Internacional sobre Direitos do Homem: ela, sozinha, representa o somatório da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e dos Pactos das Nações Unidas, de 1966, mas com a vantagem de que atualiza a formulação, o conteúdo e o alcance dos direitos elencados nesses textos e completa-os com "direitos novos"; ela, sozinha, vai muito para além da C()O\len· ção Europeia dos Direitos do Homem e dos seus Protocolos, que coligem os direitos civis e políticos e, tantas vezes, de modo incom-; pleto, imperfeito e, também aqui, desajustado ao contexto do mundoj, contemporâneo, pese embora todos os progressos registados desde/I, o texto inicial da Convenção, de 1950. Em segundo lugar, o arrolamento dos direitos pela Carta encontra-se, logo à partida, valorizado pelo facto de os direitos fundamentais serem apresentados como emanação de valores-chave que se encontram vertidos, cada um deles, numa única palavra, ~ de forma mUlto expreSSIva, que ultrapassa largamente a já gasta e ultrapassada (e,por isso, já não motivadora) trilogia da Revolução Francesa, da LIberdade-Igualdade-Fraternidade: referimo-nos aos valores da dignidade, das liberdades, da igualdade, da solidariedade, da cidadania e da justiça. Mais do que serem vistos como um modo de agru?ar e aglutinar os direitos reconhecidos pela Carta, esses valores tem de passar a ser considerados como valores básicos . de tod? o ordenamento jurídico da União, reconduzíveis aos valores enunCIados no artigo 2." do Tratado UE. . Em terceiro lugar, é certo que a Carta, logo no seu preâmbulo, afIrma a sua função codificadora e enuncia até as fontes onde foi buscar os direitos por ela reconhecidos. Diz ela no parágrafo 5 do seu ~reâmbulo, "~pr.esente Carta reafirma, no respeito pelas atribUlçoes e comperenclas da Comumdade e da União e na observância do princípio da subsidiariedade, os direitos que decorrem, ~lOmeadamente, das tradições constitucionais e das obrigações InternaClOnalS comuns aos Estados-membros, do Tratado da União Europeia e d~s Tratados comunitários, da Convenção Europeia pa:a a proteçao dos dlYeltos do Homem e das liberdades fundamentalS, das Cartas Sociais aprovadas pela Comunidade e pelo Conselho da Europa, bem como da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comumdades Europeias e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem" (itálicos nossos). Por isso, era desnecessário a Declaração n." I anexa ao Tratado de Lisboa vir reafirmar a função codificadora levada a cabo pela Carta em relação àquelas fontes de direitos fundam~~tais bem como o facto de ela não criar novas atribuições para a Umao. Isto significa que a Carta nasceu com o intuito muito ambicioso de codificar os direitos consagrados nos referidos textos das Nações Unidas, na CEDH e nos seus Protocolos, nos Tratados da Umão e das Com~nidades, na jurisprudência quer do TJ, quer do TEDH, e nas tradIções constitucionais comuns dos Estados-mem205 204 A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia bros. A Carta veio, portanto, integrar no Direito da União todas essas fontes de Direito em matéria dos direitos fundamentais. Por isso, todas elas devem ser consideradas como fazendo parte do adquirido da União no domínio dos direitos fundamentais. No que toca especificamente às tradições constitucionais dos Estados-membros, deve-se entender, como escrevemos noutro lugar2lO , que este é mais um domínio em que não há antinomia, pelo contrário, existe uma relação de complementariedade, entre as Constituições estaduais e o Direito da União. Todavia, nessa função codificadora, a Carta fornece resposta às exigências aruais da proteção dos Direitos da Pessoa, ao acolher, ao lado dos direitos clássicos, os direitos "novos" e até "novíssimos", isto é, direitos que, no seu rótulo e no seu conteúdo, são direitos da 2." e da 3." gerações. Ou seja, a Carta é um texto moderno e foi elaborado para o século XXI. Por fim - e esta é a quarta razão - a Carta não reconhece direi" tos apenas aos nacionais dos Estados-membros mas, sim, a todas pessoas sujeitas à sua jurisdição. É assim que deve ser inlterpn'talio o 7.° considerando do seu preâmbulo, embora ele pudesse ter mais claro, na linha, por exemplo, do artigo 1.0 da CEDH211 . via, dessa extensão subjetiva têm de ficar excluídos os direitos a própria Carta prende à cidadania da União e que, pelo seu estão reservados aos "cidadãos da União": é o caso dos diJ'eitos referidos nos artigos 39.°, 40. e 46.° da Carta. que nos direitos que arrola (ou na sua nomenclatura, ou no seu conteúdo), a Carta apresenta as seguintes inovações"': 0 II - Os direitos reconhecidos pela Carta No que diz respeito aos direitos concretos reconhecidos Carta, e para se comparar o carácter muito evoluído do seu teúdo, se se tomar como referência os textos internacionais referidos, e, particularmente, o que se encontra mais próximo Carta, e que é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 210 211 Constituição europeia e Constituições nacionais, cit., pgs. Assim, por ex., VITORINO, pg. 26. 206 no artigo 1.0, a menção da dignidade do ser humano como um direito fundamental autónomo e como absolutamente "inviolável". Deve-se entender que este direito concretiza o valor da dignidade humana, que, como atrás estudámos, consta hoje do artigo 2. UE; no artigo 2.°, n. o 2, a proibição absoluta da pena de morte e da execução; no artigo 3.°, a consagração do direito à integridade, física e mental, do ser humano, que impõe, no campo da medicina e da biologia, o respeito pelas exigências enunciadas no n. o 2 desse artigo, inclusive a proibição absoluta de práticas eugénicas e de clonagem reprodutiva dos seres humanos 213 ; no artigo 5.°, n.o 3, a proibição do tráfico de seres humanos; no artigo 6.°, o direito de todos "à liberdade e à segurança". A junção num só direito dos dois direitos, um, à liberdade, outro, à segurança, quer significar que a Carta pretendeu encontrar um equilíbrio proporcionado entre os dois: não há liberdade sem segurança, não há segurança sem liberdade; no artigo 7.°, o reconhecimento do direito ao respeito pela vida privada e familiar, inclusive no domínio das "comunicações"; no artigo 8.°, o reconhecimento do direito à proteção de dados pessoais; no artigo 9.°, a menção ao direito de contrair casamento e de constituir família; 0 212 Sobre a fonte de cada artigo da Carta e, concretamente, de cada direito consagrado, veja-se: o documento CONVENT 49, de 19-10-2000; as atrás ,.f,·';"__ Anotações; com a sua experiência da participação na Convenção, VITOpgs. 29 e segs.; FERRARI BRAVO, pgs. 3 e segs.; e o Comentário de MEYER, cit. 213 Veja-se sobre este direito, 1. POUSSON-PETIT, L'identité de la personne nu,maln, - Étude de droit français et de droit comparé. Bruxelas, 2002. 207 A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia no artigo 10.°, n.o 2, a previsão do direito à objeção de cons- no artigo 24.°, o reconhecimento às crianças de um direito ao bem-estar Ce não apenas, como nos textos clássicos, de um direito a uma vaga "proteção"). Este direito tem de ser completado com a proibição do trabalho infantil e da exploração económica dos jovens, constante do artigo 32.°; no artigo 25.°, a concessão às pessoas idosas do direito "a uma existência condigna e independente" Ce não, outra vez, a uma simples e platónica "proteção da terceira idade"); no artigo 26.°, o reconhecimento aos deficientes do seu direito à autonomia, à integração e à participação na vida social Ce não a uma abstrata "proteção"); ciência~ no artigo 11.°, n.o 2, a garantia do respeito pela liberdade e pelo pluralismo dos meios decomunicação soc:al; • no artigo 12.°, a previsão da liberdade de reumao pacIfica e de associação "a todos os níveis", e, no caso dos partidos políticos, especialmente ao nível da União, isto é, partidos europeus; no artigo 13.°, o reconhecimento da liberdade no campo artístico, no da investigação científica e no da "liberdade académica"; no artigo 14.°, a previsão do direito à formação profissional nos artigos 28.° e 30.°, a concessão aos trabalhadores do e contínua e o direito dos pais de assegurarem a formação e o ensino dos seus filhos em plena liberdade, isto é, de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas; . . no artigo 15.°, no n.o I, o reconhecimento do dueIto de tra-i) balhar e de exercer uma profissão que tenha sido livremente); escolhida ou aceite, e, no n.o 3, a garantia, em matéria de:!' condições de trabalho, do princípio da iguald~~e entre nacionais de Estados terceiros e de Estados da Umao; 1. no artigo 16.°, a menção da liberdade de empresa;. , ' , no artigo 17.°, a exigência, em caso de expropnaçao por.o' utilidade pública, de "justa indemnização" Cdeve enten-,? der-se que calculada segundo o valor de mercado do bem,::?: como postula o Direito Internacional) e paga "em tempo!. útil"214, bem como a proteção da propriedade intelectual;: no artigo 18.°, a previsão do direito de a s i l o ; : : : nos artigos 20.°, 21.° e 23.°, por um lado, uma ampla comO,!' plementariedade entre a igualdade e a não-disc.rimimção'J inclusive, a não-discriminação em razão da naCIOnalidade,;; e, por outro lado, a autonomização da igualdade, para todOS!i os efeitos, entre homens e m u l h e r e s ; > ; ! direito à negociação coletiva e, se for caso disso, do direito à greve, bem como da proteção contra os despedimentos sem justa causa; no artigo 31.°, n.O I, o reconhecimento aos trabalhadores de condições de trabalho saudáveis, seguras e dignas; no artigo 32.°, para além do que já se disse atrás, a previsão de proteção especial para os jovens no trabalho; no artigo 33.°, a garantia de proteção plena à família ("nos planos jurídico, económico e social"), do direito de todos poderem conciliar a vida familiar e a vida profissional e do reforço da proteção da maternidade e da paternidade215 ; no artigo 34.°, no n.o 1, a garantia do "direito de acesso" às prestações de segurança social e aos serviços sociais aí previstos, embora se conceda relevância na matéria aos Direitos nacionais; e, no n.o 3, o reconhecimento do direito a uma assistência social que assegure uma existência condigna especialmente aos mais carenciados, e, nomeadamente, o reconhecimento do direito à ajuda à habitação - tudo isto, com vista a "lutar contra a exclusão social e a pobreza"; no artigo 35.°, a previsão de um "elevado" (e não qualquer) nível de proteção da saúde humana; 'r 214 Veja-se o nosso estudo A protecção da propriedade privada, cit., pg~/~ 299 e segs., 354 e segs. e 362 e segs. 208 215 Veja-se, ainda que no quadro da CEDH, a monografia de SUDRE, :cm respect de la vie familiale au sens de la CEDH, Bruxelas, 2002. 209 Le droit A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia no artigo 37.°, o reconhecimento da necessidade de se promover um "elevado" (e não qualquer) nível de proteção do ambiente, mas não o radicalizando, antes pelo contrário, conjugando-o com o "princípio do desenvolvimento sustentável"; no artigo 38.°, o reconhecimento de um "elevado" (e não qualquer) nível de defesa dos consumidores; no artigo 4 (', a previsão do direito a uma boa administração, o que vai muito para além do dever imperfeito (portanto, sem tutela jurisdicional) de boa administração, que o Direito Administrativo de alguns Estados de matriz administrativa francesa impõe às respetivas Administrações Públicas. E note-se no conteúdo particularmente rico que a esse direito é concedido nos quatro números desse artigo; no artigo 42.°, o reconhecimento a todo o cidadão da União e a toda a pessoa, singular ou coletiva, residente na União, do direito de acesso a documentos de todos os órgãos e instituições ou quaisquer organismos da União, "seja qual for o suporte desses documentos" - ou seja, nesta matéria, a mais ampla concretização possível do princípio da abertura e da transparência; no artigo 47.°, indo-se muito mais longe do que nos artigos 6.° e 13.' da CEDH, o reconhecimento de um amplo direito de acesso a qualquer tribunal, para se fazer valer quaisquer direitos subjetivos reconhecidos pelo Direito da União, inclusive, direitos políticos; no artigo 49.', n.O I, a permissão de aplicação retroativa da lei que preveja uma pena mais leve e, no n.o 3, a imposição da proporcionalidade das penas em relação aos crimes; no artigo 50.°, a extensão da proibição do princípio ne bis in idem, em Direito Penal, a todo o espaço da União, isto é, a proibição do julgamento ou da punição penal por delitos pelos quais a pessoa em causa já tenha sido anteriormente julgada ou condenada, mesmo se por outro Estado da União. 210 72. O valor jurídico da Carta Quanto ao seu valor jurídico, a Carta suscitou, entre a sua primeira Proclamação, de 2000, e a sua integração jurídica no Tratado de Lisboa, duas questões importantes e que eram controversas em certos meios jurídicos: a do seu carácter jurídico, ou da sua juridicidade, e a da sua força obrigatória ou vinculativa. Quanto à primeira questão, queria-se discutir se a Carta era um ato jurídico ou uma mera declaração política. Quanto à segunda questão, punha-se em causa se ela obrigava ou se ela, ao contrário, constituía um texto meramente facultativo. Remetemos o leitor para o que, de modo desenvolvido, escrevemos sobre as duas questões nas duas edições anteriores deste livro, ambas dadas à luz, recordamo-lo, antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa. Com a entrada em vigor deste Tratado, essas duas interrogações deixaram de ser objeto de controvérsia e obtiveram uma resposta clara e definitiva. Assim, no que toca ao carácter jurídico ou não da Carta, o Tratado UE é claro. Segundo o já referido artigo 6.', n.' I, a Carta consiste num catálogo de direitos, liberdades e princípios que tem o mesmo valor jurídico do Tratado. Ou seja, ela tem a força de um tratado internacional. Por conseguinte, ela consiste num acordo de natureza jurídica. Por sua vez, quanto à segunda questão, todas as dúvidas que se podelimll colocar quanto ao carácter vinculativo da Carta após a sua pf()c1:lInaç~io de 2000 (e que não nos impediram, nas duas edições anteriores deste livro, de concluir pelo carácter obrigatório da Carta, base inclusivamente na prática da União e na jurisprudência co,nstitlJcional dos Estados-membros 2!6), ficaram dissipadas com o de Lisboa. A Carta obriga nos mesmos moldes em que o Tratad'Js UE e TFUE obrigam. E isso impõe-nos que coloquemos, de imediato, o problema destinatários da Carta. 216 !>lItlTKY. Nas obras recentes pode ver-se essa situação bem retratada em PRIOLLAuol pg. 452. 211 A Carta dos Direitos FUlldamemais da Ulliüo Europeia A União Europeia 73. Os destinatários da Carta Segundo o já referido artigo 51.°, n.o I, da Carta, esta obriga;c;{ antes de mais, todos os órgãos, as instituições e os organismos d~! ' União, no respeito pelo princípio da subsidiariedade. A referênci~:c aqui ao princípio da subsidiariedade tornava-se desnecessária e'l[! face da cláusula do nível mais alto de proteção contida no artigo 53;?:: da Carta. Ou seja, já resultava deste preceito que a Carta só é apU'.; cável à União se for ela - e não qualquer das outras fontes de Direi!9! indicadas naquele artigo - a conceder, no caso concreto, o mais alt!i; nível de proteção ao direito em causa. c'.i!J De qualquer modo, decorre da 2.' parte do mesmo n.o I 10' artigo 51.° e do n.o 2 do mesmo artigo que a aplicação da Carta aq~', órgãos, às instituições e aos organismos da União não deve desresg. peitar a delimitação vigente das atribuições entre a União e O!;: Estados-membros, nem deve levar à criação de novas atribuiçõe§( para a União. Depois, a Carta também se aplica aos Estados-membros, mas/ com uma grande limitação: só quando eles apliquem o Direito ~I' União. Fora dessa situação os Estados não estão obrigados pel~i Carta. '" Logo por aqui se vê que, como observa PIRIS 217 , que, repetimos', participou de modo ativo na redação da Carta, esta ainda está longi de ser a Bill of Rights da União. Para que o fosse, os seus direitoj. deveriam ser invocáveis na União por todos os cidadãos da Uniã? contra qualquer ofensa que contra eles fosse dirigida por qualq~~I. autoridade da União ou dos Estados-membros. Por isso, convém não se exagerar no âmbito objetivo e snbj~} tivo de aplicação da Carta e, por essa via, na sua relevãncia prátiç~, Há aí ainda um longo caminho a percorrer. Nada disso prejudicaip, que atrás se disse: a Carta significou um muito sensível progresf na proteção e na salvaguarda dos direitos fundamentais na Uni~o Europeia. Por fim, são destinatários da Carta todas as pessoas que estiverem sob a jurisdição dos Estados-membros, salvo quanto aos direitos que, pela sua natureza, deverão ser considerados como estando ;.intrinsecamente ligados à cidadania da União, caso em que estes !;deverão ser reservados a quem goze da referida cidadania da União. (Já vimos isso atrás. Problemas específicos da interpretação e da aplicação da Carta Para além do que foi referido no número anterior a Carta sus- etta alguns problemas específicos de interpretação e aplicação que têm de ser analIsados. Eles constam dos artigos 52. 0 e 53.° da Carta . ~vamos examiná-los de seguida. a) Distinção entre direitos e princípios _.. Já atrás nos referimos a esta distinção, que não constava do inicial da Carta. Ela figura na epígrafe do artigo 52.° e no ~.q5 desse artigo. Explicámos como é que os princípios representam .om,. valor menos protegido do que os direitos. t~xto "".'" b) Garantia do conteúdo essencial dos direitos Ocupa-se dela o artigo 52.°, n.O 1. Este preceito revela manista influência da "garantia do conteúdo essencial" ("Wesensehaltsgarantie") do Direito Constitucional alemão, concretamente, artigo 19.°, n.O 2, da Lei Fundamental de Bona'''. Este preceito bém está próximo, no seu conteúdo, do artigo 18.°, n.o 3, da nstituição Portuguesa, que, aliás, revela uma forte influência do smo preceito da Constituição alemã2 !9. Sobre o preceito citado da Lei Fundamental de Bona, ver, por todos, Die Wesellsgehaltsgarantie des Art.19 Abs. 2 GG, 3.~ ed., Berlim, 1983. ,. 219 Ver os nossos estudos Der Einfluss des Grundgeserzes au! die portugieche Verfassung aus der Sic/a eines portugiesischen Verfassungsreclulers, JõR 218 BBRLE, 217 Pg. 160. 212 213 A União Europeia Isso significa que, para estarmos perante uma violação de um direito reconhecido pela Carta, basta que haja interferência na subs' tância ("Substanzverlust", na terminologia alemã) daquele O1I:eIlO, sem ser necessário chegar-se ao extremo da privação ou ablação direito. Não era preciso que a Carta o dissesse, porque isso dos princípios gerais de Direito, mas, dizendo-o, as coisas mais claras220 . c) As Anotações relativas à Carta Já atrás nos referimos a elas, mas agora vamos condensar o que então dissemos. O 5.° considerando do preâmbulo bem como o artigo 52. n.o 7, da Carta, e o artigo 6.°, n.o 1, par. 3, UE, dispõem que os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem interpretados pelos órgãos jurisdicionais da União e dos Estaclos-membros, "tendo na devida conta" as "'adaptações" ou as "0""10. ções" relativas à Carta e que foram introduzidas nela pelo S~"rPto_ riado do Praesidium da Convenção que aprovou a Carta, nos já atrás referidos. Esta via de se fazer acompanhar uma fonte de Direito de tações" acerca da interpretação a dar pelos tribunais a preceitos não era até agora conhecida pelo Direito da União nem, cn:ml)s,'; pelo Direito em geral. Já explicámos atrás o que é que as fez neste caso concreto. 2010, pgs. 41 e segs., e A influência da Lei Fundamental de Bona na Co'n"'ituliçã~'fj Portuguesa, Estudos Gomes Canotilho, no prelo. no As interferências na substância de um direito configuram um ato logo à expropriação ou uma expropriação indireta desse direito. Estes con,ceitai? obtiveram grande desenvolvimento no Direito Internacional Público e no Administrativo alemão, tendo ganho grande impacto no Direito Constitucional no Direito Administrativo de muitos Estados. Nós estudámos com pf(lfUlldi,lad, esta matéria, a partir do Direito Internacional, nomeadamente da jUlris!,ru,lênci.' internacional e da jurisprudência arbitral, na nossa monografia, já cit., A lJrolrecç'ãq; da propriedade privada, pgs. 552 e segs. e 557 e segs. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia Mas convém deixar claros o âmbito e o alcance dessas Anotações, até porque, nem sempre, é o mesmo o modo como elas são , encaradas pela doutrina. Por um lado, o preâmbulo das Anotações dispõe o seguinte: "Embora não tenham em si força de lei, constituem um valioso instrumento de interpretação destinado a clarificar as disposições da Carta" (itálicos nossos). Mas, por outro lado, como se viu, a Carta, tanto no seu preâmbulo, como no artigo 52.°, n.o 7, impõe que na interpretação daqueles direitos se tenham "na devida conta" as referidas Anotações. Ora, porque o artigo 6.°, n.o 1, par. 1, UE, atribui à Carta o mesmo valor jurídico dos Tratados e, porque esse preceito manda atender a essas Anotações (que são aí referidas como "adaptações"), estas, também elas, acabam por ter a dignidade e o valor jurídico de preceitos dos Tratados. Todavia, esta diferente sensibili(lade para a natureza e o valor jurídico das Anotações em causa não deve, a nosso ver, permitir concluir senão que elas pretendem aju" dar o intérprete dos respetivos preceitos a melhor compreender os pormenores do respetivo conteúdo. Essa ajuda é muito valiosa porj.'j;.que vale como interpretação autêntica daqueles preceitos, na medida ii' em que provém dos próprios autores da Carta. Mas nada mais do 'j,que isso. Designadamente, os órgãos e as instituições da União, bem '1 como os Estados-membros, e, mais especificamente, os tribunais, •..•quando, como prevê o artigo 52.°, n.o 7, da Carta, forem obrigados :,' ~ interpretar e a aplicar o conteúdo da Carta, mantêm toda a autono"fj:mia para o efeito e estão obrigados a interpretar e aplicar todos os ;?Fpreceitos da Carta com respeito pleno pelas regras da hermenêutica "'i,!jurídica, bem como com consideração, quer pelo que dispõem aque.f.})es preceitos, quer pelo que estabelece o demais Direito da União ~Uaplicável, sob pena de se constituírem em situação de incumpri;j,;mento do Direito da União, com todas as respetivas consequências 'f~::,J·urídicas221. v " .".+------ ~:\;,(';:',' 221 Sobre as Anotações à Carta, ver 1. ZILLER, Le fabuleux destin des Expli}:patiolls relatives à la Charte des droits fondamentat/x de l'Unioll eurOpéelllle, ~}"'jMélanges Jacqué, cit., pgs. 765 e segs. 'i?; 214 215 A União Europeia d) O nível mais alto de proteção dos direitos Num sistema, também ele, pouco vulgar, quer no Direito Internacional Público, quer no Direito Constitucional estadual, o artigo 53.° da Carta impõe, como já vimos, o grau mais alto de proteção para os direitos que a Carta reconhece. E fá-lo do seguinte modo: a Carta cederá o passo à fonte de Direito (das fontes codificadas pela Carta sobre direitos fundamentais, e que a Carta enumera, como vimos, no considerando 5.° do seu Preâmbulo) que confira, no caso concreto, ao direito em causa, o mais alto grau de proteção. O princípio fica, deste modo, claramente definido, embora desde já possamos adiantar que vai ser muito difícil encontrar-se qualquer direito que se mostre, no seu conteúdo e nos seus limites, melhor protegido por qualquer das referidas fontes do que o é na Carta. Dispõe no mesmo sentido, especificamente quanto à CEDH, o n.o 3 do artigo 52.°, e o mesmo regime deve ser adotado na interpretação do n.O 4 daquele artigo, quanto às tradições constitucionais comuns aos Estados-membros. 75. A Carta e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem Como atrás demonstrámos, a Carta é largamente subsidiária da CEDH, não apenas porque a tomou como fonte (veja-se o 5.° considerando do seu preâmbulo) como também porque a adotou dentro do nível mínimo de interpretação da própria Carta e, por via disso, dentro do nível mínimo de proteção dos direitos por esta reconhecidos (artigo 52.°, n.O 3, e artigo 53.°). Todavia, quando parecia que a Carta, por si, iria resolver, particularmente no dia em que passasse a ter força vinculativa, o problema da ausência na União de um catálogo próprio de direitos fundamentais, ou seja, quando parecia que a aprovação da Carta, especialmente a partir do momento em que ela passasse a ser vinculativa, tinha vindo acabar com a querela acerca da ausência na União de um rol de direitos fundamentais próprio da União, pela outorga a ela desse rol, e, portanto, tinha vindo definitivamente excluir a opção pela adesão da União à 216 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia CEDH, eis que, ao contrário, assistimos ao renascer da questão da adesão da União à CED H. Já nas duas edições anteriores deste livro nos debruçámos, com a profundidade que o assunto merece, sobre esta questão. Agora vamos atualizar o nosso pensamento, não apenas em função dos novos dados surgidos, como também porque a posição que antes adotámos sobre o assunto mudou no essencial 222 • 76. A adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos do Homem I - O estado da questão antes da Carta Esta questão começou a ser discutida nos anos 70 do século passado com o Relatório Bernhardt, de 1976223 , e com o Memorando da Comissão, de 1979224 • Ela foi suscitada por duas razões: na ausência então de um catálogo próprio de direitos fundamentais das Comunidades, elas precisavam de ter um texto de direitos fundamentais que os seus cidadãos pudessem invocar perante as Comunidades mesmo que as Comunidades viessem a ter uma lista própria de direitos fundamentais, os particulares não tinham pelos Tratados, acesso direto pleno aos Tribunais Comunitários para questionarem, em sede de recurso de anulação, os atos dos órgãos que ofendessem esses direitos. O primeiro problema foi resolvido provisoriamente pela jurisprudência do TJ através do já citado caso Internationale HandelsgeseUschaft. Por esse meio, como atrás vimos, a CEDH passou a vigorar na Ordem Jurídica Comunitária pela via dos princípios gerais de Direito Comunitário. O segundo problema nunca foi resolvido e o facto de os particulares terem continuado a ser recorrentes só semiprivilegiados para o efeito da legitimidade para interpor o 222 Ver também os nossos trabalhos mais recentes sobre a matéria citados supra, na nota 209. m Bulletin des Communautés européennes, Supplémeot 0.° 5/76. 124 Bull. CE, supp. N.o 2179. 217 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia recurso de anulação para os Tribunais Comunitários, segundo o artigo que hoje tem o número 263.° TFUE, mostrava que as conquistas obtidas pela via da jurisprudência do TI não eram suficientes para substituir a adesão das Comunidades à CEDH. Como atrás dissemos, o Tratado de Maastricht incluiu nos Tratados, pela primeira vez, a vinculação da União e das Comunidades à CEDH, mas, outra vez, pela via dos princípios gerais de Direito Comunitário. Aliás, também como ficou dito, o artigo 6.°, n.o 1, UE, limitava-se a codificar a jurisprudência comunitária, bem condensada no Acórdão WachauJ, quando este dizia que o acervo de direitos fundamentais das Comunidades era composto pelos direitos reconhecidos pelas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros e pelo Direito Internacional, incluindo a CEDH. Mas os Tratados de Maastricht, de Amesterdão e de Nice não se comprometeram com a adesão da União e das Comunidades à CEDH. Pelo contrário, os artigos 6.°, n." 1, UE, depois do Tratado de Maastricht, ' e 6.°, n.O 2, UE, depois das revisões de Amesterdão e de Nice - já estudámos atrás estes dois preceitos -, não incluíram qualquer referência à adesão à CEDH. O obstáculo que se via à adesão desde o citado Relatório Bernhardt, e que o TJ aceitara no Parecer n.o 2/94225 , era o de que os' Tratados não reconheciam às Comunidades e à União atribuições em matéria de direitos fundamentais. Por isso, estas não podiam' aderir à CEDH, nem mesmo podiam aprovar uma Carta dos Direitos, Fundamentais da União Europeia sem prévia revisão dos Tratados! que o permitisse. Note-se que, no que toca à Carta, isso explica qu ela, para Iloder ter sido aprovada Ilela Proclamação de 2000, ten tido a necessidade de reIletidamente afirmar, como se viu, que )'I, criava novas atribuições Ilara a \Jnião. Com a incorporação, pelo Tratado de Lisboa, da Carta n\)$ tados, ainda que deixando-a formalmente fora dos Tratados,e'~!l autorização dada pelo Tratado UE à adesão da União à C~I(; problema de saber quando é que os direitos fundamentais pas~' a ser competência da União perdeu oportunidade. Todavia'fi1~ ,.,,~~ '" Ac. 28-3-96, CoI., pgs. 1-1.759 e segs., ponto 34. 218 de não ter havido nos Tratados até à revisão de Lisboa nenhum preceito que enunciasse as atribuições da União mas de ter ficado escrito no TUE, no seu artigo 6.°, n.O 1, após a revisão de Amesterdão, que a União assentava, entre outros princípios, no da proteção de direitos fundamentais, levava a interrogarmo-nos legitimamente sobre se desse artigo não teria nascido para a União, ainda que de forma implícita, competência em matéria de direitos fundamentais. Mas esta questão tem hoje interesse meramente histórico, embora mais adiante tenhamos de voltar a ela por um outro motivo'26. II - Os argumentos contra a adesão Na esteira do Tratado Constitucional, o Tratado de Lisboa, como dissemos, incluiu no TUE uma obrigação para a União de aderir à CEDH. Já há muitos anos que, para um certo sector da doutrina, a adesão, ou se defrontava com algumas dificuldades no plano jurídico, ou era desnecessária. Vejamos rapidamente as razões em que se fundamentava essa corrente. Segundo esses autores, as dificuldades jurídicas com que a adesão se defrontava eram as seguintes: não é possível nem é conveniente sujeitar a União à dupla jurisdição do TIUE e do TEDH; a '. aplicação da CEDH como lex scripta vai fazer submeter a União ao Direito Internacional numa matéria muito sensível, como é a dos .direitos fundamentais, o que vai fazer quebrar nessa matéria a auto'nç'mia, a uniformidade e a coesão interna do Direito da União' e ~~a aplicação vai também trazer para o seio da União o princí;io d'B~cessidade de prévia exaustão dos meios internos, que é exigido .ÇEPH, mas que desde os Tratados institutivos das Comunida"recusado pelo sistema de garantias contenciosas no seio das '. nidades e da União 22'. . Ver, contudo, as edições anteriores deste nosso manual, Direito, pg. 167, 'pg.l40. Ver RIDEAU, na 5. a ed. do seu manual, pg. 296. 219 A União Europeia Além disso, para esses autores, a adesão também era desn:ces~ sária, e pelas seguintes razões. Com a força vinculativa atnbUlda a Carta de Direitos Fundamentais e pelo facto de esta codJficar os direitos da CEDH e ir ainda para além dos direitos constantes da CEDH era suficiente recuperar-se a sugestão de PIERRE PESCATORE, em 198822', segundo a qual a União havia sucedido aos Estados-membros como parte na CEDH, de harmonia com as, regras de Direito Internacional sobre sucessão de Estados em matena de tratados, ou então - e esta orientação é muito cara a um sector ~por~ tante da doutrina francesa - devia-se procede.:, ao contr~no, a comunitarização da CEDH, isto é, à incorporaçao dzreta ou a mtegração da CEDH na Ordem Jurídica da União, por outras palavra~, à apropriação ou absorção da CEDH por esta e, po~tanto, ela .sena levada a cabo sem a mediação da fonte dos pnnclplOs gerals de Direito Comunitário. . ., . A teoria da comunitarização da CEDH pelo sistema jundico da União Europeia, embora tivesse sido proposta, ainda que de forma só embrionária, talUbém ela, por PESCATORE, no mesmo estudo,fOl construída logo a seguir por um sector importante da doutnna, muito especialmente por FRÉDÉRIC SUDRE, ~m Fra~ça~29 com ~~:nda­ menta no TUE, e tem sido seguida pela Junsprudencla do TJ . A construção que os autores em questão encontravalU nos Tratados tinha o seu fundamento no artigo 6.°, n.O< I e 2, UE, dep01~ d~ revisão de Amesterdão, e estava próxima da interpretaçã~ q~e nos Ja admitimos atrás para aqueles dois números do artlgo_6. , ViStoS ,em conjunto, para concluirmos que a UE já tinha atnbUlçoes e~ matena de direitos fundamentais a partir da revisão de Amesterdao. Com efeito, a orientação em apreço interpretava aquele artigo 6.°, n."' I 228 La Caur de Justice des Commullautés eurapéennes et a Conventioll européenlle des droits de l'homme, Mélanges Wiarda, pgs. 441 e s~gs .. 229 L'apport du droit international et européen à la protect~on comm~mau. taire des droits fondamentaux, in Société Française pOUl' 1e DrOlt Inter~atlOnal, Droit international et droit communautaire - perspectives actuelles, ParIS, 2000, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 2, UE, em função do seu espírito e da sua teleologia, e considerava-o como um todo, da seguinte fonua. O n.o I do artigo 6." afirmava que os direitos fundamentais eram um fundamento jurídico-constitucional da União. O n.o 2 do mesmo artigo concretizava aquela afirmação por referência, entre o mais, à CEDH. Por conseguinte, embora, formalmente, o artigo 46.°, aI. d, UE, só remetesse para o artigo 6.°, n.O 2 (e, portanto, só para as fontes aí indicadas), e, por conseguinte, não conferisse uma competência geral ao TJ em matéria de direitos fundalUentais, os Tribunais da União estavalU habilitados a entender que os n."' I e 2 do artigo 6.°, vistos em conjunto, lhes conferiam um título jurídico geral, que lhes permitia controlar o respeito dos direitos fundalUentais da parte da União Europeia, dos seus órgãos, e dos Estados-membros. A favor da sua orientação, esses Autores recordavalU que o TJ procedeu à apropriação ou absorção da CEDH, à incorporação direta desta no Direito Comunitário, em muitos Acórdãos, dos quais o mais expressivo foi o Acórdão Baustahlgewebe. 231 Não admira, pois, que o Juiz PUISSOCHET tivesse afirmado em 1996 (portanto, ainda antes da assinatura do Tratado de Amesterdão e, por conse. guinte, ainda antes da integração pelo Tratado de Amesterdão do novo n.o I no artigo 6.° no TUE), que "tudo se passa como se a CEDH seja uma das fontes formais do Direito Comunitário" e que, depois da revisão de Amesterdão, ele tivesse acrescentado, de forma incisiva, que o TJ "aplica diretamente a Convenção Europeia dos Direitos do Homem"23'. Esta construção tornaria possível ao TJ pronunciar-se sobre questões prejudiciais de interpretação direta da CEDH colocadas pelos tribunais nacionais quando aplicassem o Direito da União, po·rqlle a CEDH estaria abrangida pela aI. a do atual artigo 267.° TFUE, como havia sido proposto pelo Advogado-Geral LEGER nas pgs. 169 e segs.. . ' _ d' _ 230 Ver a análise mais ponnenonzada desta onentaçao nas duas e IÇoeS anteriores do nosso manual, respetivamente, pgs. 166 e segs. e 137 e segs.. m Ac. 17-12-98, Proc. C-185/95, CaL, pgs. 1-8.417 e segs., com anotações favoráveis de SIMM, in Europe, fevereiro de 1999, comentário n.o 57, e SUDRE, RTDE 1999, obs. n." 39. 232 ln AA.VV., La protectionjuridictionnelle, pg. 9. Ver esta matéria desenvolvida em SUDRE, op. cit., pgs. 185-186. 220 221 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia conclusões do caso Perfili233 • E tornaria ainda mais premente do que nunca a criação, no Direito da União Europeia, de uma queixa constitucional para o TJUE por violação de direitos fundamentais que fazem parte do acervo da União, incluindo dos que constam da CEDH. Note-se que, dentro dessa orientação, os Tribunais da União seriam, eles, os juízes da conformidade de atas comunitários com a CEDH, porque esta faria parte, por si, do bloco de legalidade do Direito da União. Isto, obviamente, quando estivéssemos no âmbito da aplicação do Direito da União. Convém deixar claro que, por exemplo, quando ao juiz da União fosse colocada uma questão prejudicial de interpretação da CEDH em si mesma, isto é, quando a norma ou o ato nacional cuja relação com a CEDH estivesse em discussão "dissesse respeito a uma situação que não relevava do campo de aplicação do Direito Comunitário", ele tinha que se declarar incompetente para o efeito, como o TI decidiu no Acórdão Kremzow 2J4 • Quando os Estados agissem fora do campo de aplicação do Direito da União (cuja delimitação, aliás, não está isenta de dificuldades, como o TI reconheceu em vários Acórdãos, a começar pelo caso The Society for the Protection of Unbom Children SPUC'''), a atuação dos Estados continuaria sujeita diretamente ao sistema de fiscalização próprio da CEDH. A comunitarização da CEDH foi recentemente defendida pelo Tribunal no seu Documento de reflexão sobre a adesão da União à CEDH, de 5 de maio de 2010, que cita a seu favor o Acórdão Bosphorus, do próprio TEDR236, que, no entender do TJ, teria consagrado essa orientação. m Ac. 1-2-96, Proe. C-I77194, CoI., pg. 14. '" Ae. 29-5-97, Proe. C-299/95, CoI., pgs. 1-2.629 e segs.. m Ae. 4-4-91, Proe. C-159190, CoI., pgs. 1-468 e segs.. Posterionnente, no mesmo sentido, especialmente, o Ac. 12-6-2003, Schmidberger, Proe. C-1l2/2000, CoI., pgs. 1-5.659 e segs.. 236 Ac. 30-6-2005, Rec., pgs. 2005-1 e segs.. Ver sobre ele RENuccl, op. cit., p. 959, e anotações de SUDRE, RFDA 2006, pg. 566, e IACQUÉ, ICP 2005-11-10128. 222 III - A necessidade da adesão Os argumentos em cima referidos contra a adesão, mesmo que alguns deles tenham, e têm, em abstrato, alguma consistência, não são suficientes para afastar a necessidade de a União aderir à CEDH para garantir aos seus cidadãos um mais alto grau de proteção dos seus direitos fundamentais. Há muitas razões que nessa matéria são decisivas. E chamamos a atenção para o facto de, como atrás dissemos, neste ponto termos mudado de posição em relação à opinião que emitimos nas duas edições anteriores deste livro237 . Primeiro, se os particulares só puderem contar com o recurso de anulação para o TJUE, previsto no artigo 263.° TFUE, para impugnarem os atas dos órgãos que violem a Carta, nesse caso não veem plenamente assegurada essa proteção porque, repetimos, eles capacidade judiciária ativa limitada em face desse artigo, são recorrentes só semiprivilegiados 238 • Pouco acrescentam à proteção devida aos direitos fundamentais as questões prejudiciais do artigo 267.° UE. De facto, as partes podem suscitar essas questões, só os tribunais nacionais o podem fazer. Depois, sem a adesão à CEDH, a União nunca se poderá defender quando for dirigida ao TEDH uma queixa contra um Estado com o fundamento de que este infringiu a CEDH através de um seu ato que ele aplicou o Direito da União. E, como entendeu o TEDH Acórdão Mathews 239 , nos casos em que o poder do respetivo não é discricionário, a União é responsável. Em terceiro lugar, e como já estudámos, a Carta dos Direitos FU.ndarrlentaü só pode ser aplicada pelos Tribunais em situações de apl~ca.çãc do Direito da União. Ficam de fora do controlo dos TribuVer, respetivamente, pgs. 171 e 138 e segs. Isso é assim, apesar do recente alargamento da capacidade judiciária dos ,\parti.eulare". à sombra desse preceito, levada a cabo pela jurisprudência da União Despacho do Tribunal Geral 6-9-2011, Kanatani, Proc. T-18/1O, pontos e Ac. do mesmo Tribunal 25-10-2011, Microban 1lltemational, Proe. 1'1'262/110. ponto 21. m Ae. 18-2-99, Ree., pgs. 1999-1 e segs.. 231 238 223 A Carta dos Direitos FUl1damentais da União Europeia A União Europeia nais os casos de violação dos direitos por ela reconhecidos em que não esteja em causa o Direito da União, Mas, além disso, acontece também que algumas críticas de natureza substantiva dirigidas à adesão não procedem. Por exemplo, critica-se a adesão, já o vimos, por submeter a União à dupla jurisdição do TJUE e do TEDH. Há que relativizar esta crítica. lá hoje o sistema de garantias dentro da União Europeia conbece a dupla jurisdição entre os tribunais estaduais, como tribunais comuns do Direito da União, e o TJUE. Portanto, a dupla jurisdição entre o TJUE e o TEDH não será novidade para o sistema jurídico da União Europeia, desde que, como defendemos, O Tratado de Adesão inclua "cláusulas que preservem as características da União e do Direito da União", como é imposto pelo Protocolo n.o 8 e pela Declaração n.o 2 anexos ao Tratado de Lisboa. É o que, aliás, defende o TJUE no seu, em cima citado, Documento de reflexão de 2010, no ponto 4. Também não procede a crítica segundo a qual a adesão vai introduzir a obrigação de exaustão dos meios internos no sistema de proteção de direitos fundamentais na União Europeia. Isso não verdade. A adesão da União à CEDH não vai obrigar os particulares , a esgotar previamente os meios internos do Direito da União pela}!! razão simples de que não há meios internos a esgotar. De facto, e;~ como já em cima sublinhámos, os particulares têm legitimidade::i1, restrita para impugnar para o TJUE atas dos órgãos da União quei,;;; ··f infrinjam os seus direitos e, por outro lado, não têm legitimidade; para, eles próprios, suscitarem questões prejudiciais perante TJUE. Ou seja, não havendo meios internos do Direito da União ao? f dispor dos particulares que sejam adequados para estes verenf garantidos os seus direitos, estes não têm que esgotar quaisqueri!: meios próprios do Direito da União. Isso não impede que se reflita sobre se, como propõe o TJUlS! no referido Documento de reflexão, nos casos em que os particulares; têm legitimidade para impugnar atas dos órgãos da União que violem,i" os direitos da CEDH, não devem primeiro impugná-los para o TJUE" por respeito pelo princípio da subsidiariedade. É uma questão imporl,1, tante, mas que, todavia, ainda não foi suficientemente discutida, ' oii 224 Do mesmo modo, nada obsta também a que se crie um mecanismo através do qual, antes de o TEDH se pronunciar sobre a validade de um ato da União, deve o TIUE ter a oportunidade de se pronunciar sobre ela, por exemplo, a título prejudicial, porque o juiz comum da vahdade dos atas do Direito da União é, e tem de continuar a ser, o TIUE, inclusivamente porque uma solução diferente pana em causa o princípio da uniformidade do Direito da União, No fundo, trata-se de transpor para as relações entre o TIUE e o TEDH a doutrina Foto-Frosf'''', que foi criada para as relações entre os trIbunaIS naCIOnaiS e o TIUE, Também esta é uma das propostas do TJUE no refendo Documento de reflexão e, também ela se reveste do maior interesse. ' Igualm~mte nada impede, antes tudo impõe, que se reveja a forte restrlçao traZida à capacidade da pessoa para dirigir uma queixa ao TEDH traduzida na exclusão dessa capacidade às pessoas euJl~llVa' de Direito Público, como decorre do artigo 34. 0 CEDH, restrição é bem mais aInpla do que os limites contidos no artigo 263,° TFUE à capacidade judiciária do particular para pedir ao TJUE a auulação de atas da União. Por fim, há que estar atento ao facto de o critério de reparação sellUfldo a CE~H, tornado na prática ainda mais restritivo pelo i:'~~:::,~~: conslstu numa mera «reparação razoável» (artigo 50,° da O TEDH tem levado a interpretação deste preceito ao extreme de acel~ar que possa valer como reparação a simples declada vlOlaçao da CEDH pelos Estados. Ora, este critério está ultrallaSsa,tIc pelo moderno Direito Internacional, expresso num mternacional geral ou comum formado com base em jurisprudência arbitral, em tratados bilaterais de investimuitos deles concluídos por Estados da África e da Ásia e Diretivas do Ba?co Mundial sobre Investimento Estrangei;o, consagraIn o cnteno dafttll compellsatioll, ou seja, da reparação de todos os danos emergentes e lucros cessantes pelo valor de '''" Ac, 22-10-87, Proc. 314/85, CoI., pgs. 4.199 e segs.. Sobre este Acórdão infra, 11. 0 230-11. ' 225 A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia mercado dos direitos infringidos24 '. Por sua vez, o Direito da União Europeia, através da jurisprudência do TI, embora não tenha ainda chegado a uma formulação definitiva e geral sobre o conceito e O conteúdo da reparação por responsabilidade civil extracontratual de um Estado-membro ou da União por violação do Direito da União, já enunciou as linhas que devem presidir a essa matéria e que permitem afirmar que o conceito de reparação está para o Direito da União muito mais próximo do conceito moderno de reparação do Direito Internacional do que do conceito de reparação da CEDH. Por isso, há que deixar claro que adotar o critério da simples «reparação razoáve1» nos casos em que um direito fundamental cido pela CEDR seja infringido pela União significará um retrO('eS~lO em confronto com ODireito da União, nomeadamente com a jurisprudência do TIUE. Portanto não resolver antes da adesão todas estas qUlestões. acabadas de referir equivalerá a que os referidos Protocolo n." Declaração n. ° 2 sejam desrespeitados (com todas as jurídicas daí resultantes), a que a adesão assinale uma daquilo que há muito constitui o adquirido da União em matéria proteção dos direitos fundamentais, e também irá provocar,. consequências muito nocivas, um clima de atnto entre o Direito União Europeia e o Direito da CEDR e, concretamente, jurisprudência do TIUE e a do TEOR. Ora, esse não pode ser, caso algum, o preço a pagar pela adesão da União à CEDR. Mas se não procedem muitas das críticas dirigidas à adesão também não devem ser considerados relevantes alguns outros argumentos aduzidos a favor da adesão. Assim, diz-se que, sem aquela adesão, não será possível a aplicação das sanções previstas nos artigos 7.° UE e 309.° CE, na redação do Tratado de Nice, hoje os artigos 7.° UE e 351.° TFUE. Não é verdade. Aqueles preceitos remetem para o artigo 2.° TUE, e este deve ser interpretado, na parte relativa ao "respeito pelos direitos do Homem", como abrangendo também os direitos contidos na CEDR, quer porque a Carta engloba esta, quer porque a referência do artigo 2.° abrange também os direitos referidos no artigo 6.°, n.o 3, UE. Além disso, como nota WEBER242 , o poder sancionatório do artigo 7.° do TUE é "substantivado" sobretudo pelo conteúdo da Carta. Diz-se também que, sem a adesão, haveria, em matéria de direit'ls fundamentais, uma Europa a "duas velocidades": uma, a da CEDH, englobando particularmente a Europa do Leste; outra, a da Carta'43. À partida, trata-se de uma realidade inevitável: por um lado, não é possível a aplicação da Carta a Estados partes na CEDH e não membros da União Europeia; por outro lado, não é legítimo impedir-se aos Estados-membros da União Europeia de, como de,oor:re do citado artigo 52.°, n.o 3, da Carta, acolherem e adotarem na Carta um nível de proteção dos direitos fundamentais superior ao pela CEDR. A pretensão de se admitir a existência de um unifo'rrnle Direito Europeu dos Direitos do Homem, que abarque o cOilJunto dos Estados-membros da União Europeia, mais os Estados são partes na CEDR mas que não são membros da União (ou um total de mais de quarenta Estados), é, pois, pelo menos por impossível de se concretizar. A solução está em, por um lado, interpretar a Carta e a CEDR, somadas às tradições constituciocomuns aos Estados-membros, como um conjunto entre si yomIJlem"ntar, harmonioso e coerente e, por outro lado - o que não ,cOlltUlma ser referido -, em se atualizar, para se aperfeiçoar, a CEDR, 241 Como demonstrámos há mais de uma década na nossa mc,nollral'ia,.iá,! citada, A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional sobretudo, pgs. 424 e segs., especialmente 437-440 e 445-446; pgs. 471 e particularmente 505-513 [onde escrevemos que "Só este Tribunal (o TEDH) adota hoje, no plano do Direito Internacional, o critério da reparação total ou gral dos prejuízos, critério esse que, como mostrámos, a jurisp~udência "'""'.', a prática dos Estados aceita hoje, pacificamente, como sendo Imposto pelo tume internacional geral" - pg. 50?}; pgs. 516 e segs. e 529-530. Esta nossa ção mereceu expressa concordância, na recensão daquele nosso l~vro, ~e um grandes especialistas da CEDH: referimo-nos a JÓRG POLAKIEWJCZ, m ZaoRV pgs. 881-883 (882). 226 Carta, pg. 83. É a opinião, por exemplo, de RENUCCI, pg. 468, MIRANDA, Curso, pg. 314, MEc'EIRc", pgs. 69-70. 242 243 227 A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia que, recordamo-lo, data de 1950 e, como há pouco dissemo mesmo após as importantes reformas nela introduzidas, sobretu~ pelo Protocolo n.o 11, que entrou em vigor em I de no;embro'd 1998, e pelo Protocolo n.o 14, que entrou em vIgor maIs recen, mente, em I de junho de 2010, consagra métodos e princípios q tempo tornou retrógrados, como a referida regra da prévia exau dos meios internos. Não há, pois, qualquer vantagem em, menos por ora, se desejar ver na CEDH uma Bill of Rights com a todos os Estados europeus, dado que isso se traduziria na viola, da 1. 0 parte, infine, e da 2.' parte do artigo 52.°, n.o 3, e do arti. 53.° da Carta e, num plano mais amplo, implicaria a degradação nível de proteção dos direitos fundamentais já alcançado na UriL Europeia com a Carta, como decorre, aliás, dos mesmos preceIto, Diz-se, por fim, que a cabal proteção dos Direitos do Hom na Ordem Jurídica da União impõe que os atas da União sobre dit tos fundamentais sejam apreciados por um tribunal alheio à Uni Não é verdade. Trata-se de uma suspeição prévia e abstrata lanç sobre os Tribunais da União, que estes não merecem. O TJ é idóneo para conhecer dos atas de Direito da União que infrinjall\;.\. acervo de direitos fundamentais que obriga a União como O é pi!ta conhecer de quaisquer outros atas. Questão diferente é a de saber§@ como atrás se disse, os Tratados lhe conferem competência sUft~. ciente para fiscalizar de modo adequado o respeito pelos direito( fundamentais e se, por conseguinte, essa questão não deve ser pO~,}i' derada na reforma do sistema jurisdicional da União, inclusive, daiR; organização judiciária da União. IV - O procedimento da adesão Não vai ser fácil a adesão da União à CEDH em função dai:~i exigências colocadas ao processo de adesão. Ela vai requererR;~ acordo de todos os Estados-membros da União e de todos os mem-" bros do Conselho da E u r o p a . : i Vai requerer o acordo de todos os Estados-membros da União\!; porque o Acordo de adesão (cujo primeiro projeto foi publicad9}c pelo Conselho da Europa em 14 de outubro de 2011) terá de ser .aptovado pelo Conselho por unanimidade (ao contrário do que dispunha o Tratado Constitucional, que se contentava com a maioria . ~alificada), após a aprovação do Parlamento Europeu, e depois terá ~ser ratificado por todos os Estados-membros segundo as respeti. s normas constitucionais. É o que dispõe o artigo 218.°, n.o 6, ;a, ii, e n. ° 8, TFUE. Mas vai também requerer o acordo de todos os Estados que são .:vtes na CEDH do Conselho da Europa, porque a adesão impõe a pnclusão de um novo Protocolo Adicional àquela Convenção, que ',sequência ao artigo 17.° do Protocolo n. o 14 anexo à CEDH, que toriza a adesão 144 • i.. ' O Tratado de adesão da União à CEDH deverá respeitar o Pro. colo n. o 8 e a Declaração n.o 2 anexos ao Tratado de Lisboa, e aos l!ais já fizemos referência. .Rumo a um Direito da Uuião Europeia sobre Direitos Fundamentais A adesão da União Europeia à CEDH não impedirá que a Carta nha a ocupar progressivamente um lugar nuclear num sólido e mbicioso Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais, .uja elaboração deve e há-de continuar a dever-se muito à jurispru~ência da União, com a ajuda, espera-se, dos tribunais constitucioIlais nacionais. Esse Direito da União, assim concebido, dará corpo a uma verdadeira União de direitos fimdamentais, ou, simplesmente, União de direitos. Nesse Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais aCEDH terá menos importância do que por vezes se julga, dado que, por força dos artigos 52. 0 , n.o 3, e 53.°, da Carta, a CEDH traduzirá o ,limite mínimo ("standard minimum") de proteção, ultrapassável pela Carta sempre que esta for mais favorável aos direitos em causa'''. '.~ 228 Veja-se, assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pgs. 45-46. Assim, especialmente, WEBER, Carta, pg. 9], e TULKENS/CALLEWAERT, in arlierlDe Schutter, pg. 228. 244 245 229 A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia A União Europeia E essa ultrapassagem da CEDH pela Carta será mais fácil e mais vulgar do que parece, porque convém outra vez não nos esquecermos dos vícios de nascença da CEDH e dos que, à sombra deles, se foram acumulando. É certo que se pode falar, nas últimas três décadas, de um esforço de "aclimatação comunitária" da CEDH levado a cabo pelo Tribunal de Estrasburgo, que levou este, em alguns processos, a adaptar a interpretação de preceitos da CEDH ao conteúdo do Direito Comunitári0246 • Mas essa "aclimatação" não removeu os pecados originais da CEDH, que se mantêm e que já atrás recordámos: a CEDH só codifica direitos civis e políticos, enquanto que a Carta abarca também direitos sociais, culturais e económicos; a CEDH, devido à época em que surgiu, quase só reconhece os direitos clássicos, enquanto que a Carta inclui direitos novos e novíssimos, isto é, os direitos da 2.' e da 3.' gerações; a CEDH continua a sujeitar a queixa individual ao requisito da prévia exaustão dos meios internos, o que, em princípio, não é compatível com o sistema de garantias judiciais da União Europeia e, por isso, não ficou consagrado na Carta, embora, como ainda há pouco mostrámos, essa questão seja ultrapassável; e, mesmo assim, a jurisprudência do TEDH, pese embora todo o louvável labor por ele levado a cabo durante estes mais de sessenta anos, pratica critérios de reparação inferiores aos impostos hoje, tanto pelo Direito Internacional, como pelo Direito da União, como referimos atrás. Tudo isto, sem pôr em causa as vantagens da adesão da UE à CEDH, relativiza tanto a adesão, em si mesma, como a importância da CEDH perante a Carta e, portanto, a importância da CEDH no ordenamento jurídico da União24'. Note-se que podemos encontrar um caso de incorporação indireta da CEDH no Tratado CE, levada a cabo no artigo único, a!. a, do Protocolo relativo ao direito de asilo de nacionais dos Estados-membros da União Europeia, anexado ao Tratado CE por via do Tratado de Amesterdão e que continua em vigor com o n.O 24. 78. A Carta e as Constituições estaduais A relação entre a Carta e as Constituições nacionais encontra-se regulada pelas cláusulas horizontais da primeira. Como se ~iss~, dispõe o, art~~o 51.°, n.o 1, da Carta que ela só se aplica no amblto da Umao [ apenas quando (os Estados) apliquem o direito da União"]. Acrescenta o artigo 53.° que "nenhuma disposição da presente C~~a deve se~ Interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos reconhecidos, entre outros, pelas Constituições dos Estados-membros. Quer dizer que cada Estado conserva a liberdade de proteger e garantir, como entender, os direitos fundamentais na sua Ordem Jurídica nacional, ou seja, fora do campo de aplicação do Direito da União. Contudo, na prática, esta conclusão está sujeita a dois limites. Em primeiro lugar, como bem observam GaRI e KAUFF-GAZIN 248 através dos princípios gerais de Direito, os Tribunais da Uniã~ podem integrar os direitos reconhecidos pela Carta na Ordem Jurídica da União e verificar se os Estados os cumprem. Fá-lo-ão, acrescentamos nós, sobretudo através do mecanismo processual das questões prejudiciais, via, pela qual, aliás, a jurisprudência da União tem desenvolvido os princípios gerais de Direito como fonte do Direito da União. . . Em seg~ndo lugar, o facto de os Estados deverem respeitar os dlfeltos refendas na Carta em relação aos cidadãos doutros Estados-membros, como decorre do artigo 51.°, n.o I, da Carta, não obriga cada um deles a estender a aplicação desses direitos também aos seus respetivos nacionais? Em nosso entender, sim. A Carta não quis, decerto, a discriminação inversa na sua aplicação, discriminação essa que, aliás, e como atrás demonstrámos, infringe o Direito Internacional e o Direito da União e, nalguns Estados, como é o caso de Portugal, também o respetivo Direito Constitucional24'-250 Pg. 252. Como demonstrámos em A protecção da propriedade privada, cit., sobreludo pgs. 562-564. 250 No mesmo sentido, GORl/KAUFF-GAZIN, loco cit., e MEDEIROS, pg. 3 L 248 246 Veja-se, outra vez, SUDRE, L'apport, pgs. 181-184, com o estudo dajuris~ prudência do TEDH que perfilha essa orientação. 247 Assim, por todos e por último, GORI/KAUFF-GAZIN, pgs. 255-256. 230 249 231 A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia No que coucretamente diz respeito a Portugal, não se anteveem hipóteses de conflito entre a Carta e a Constituição Portuguesa, em que aquela venha a restringir direitos reconhecidos por esta última. O único caso de dúvida, pode ser o do 10ck-out'51. Aliás, subscrevemos a opinião de WEBER2", para quem um conflito entre a Carta e Constituições nacionais será muito difícil de ocorrer, porque a Carta é mais generosa do que a generalidade das Constituições nacionais no conteúdo dos direitos que reconhece25 ]. Não basta ao Legislador nacional ficar à espera de que a Administração Pública e os tribunais do respetivo Estado afastem o respetivo Direito interno em favor da Carta no acatamento do que o artigo 53.° da Carta lhes impõe, Numa manifestação da boa-fé com que o respetivo Estado subscreveu a Carta, o Legislador nacional, constituinte e ordinário, tem o dever de conformar o Direito nacional com a Carta. Esse dever funda-se no respeito pelo artigo 2.° UE, quando prescreve a observãncia dos direitos fundamentais como valor da União; no princípio da cooperação leal entre a União e os Estados-membros e vice-versa, como vimos em devido tempo; e no cumprimento pelos Estados do dever de assegurar a coerência, na Ordem Jurídica nacional, entre o Direito de fonte nacional e o Direito com fonte na União. E, por sua vez, a Administração Pública e os tribunais nacionais têm a obrigação de aplicar a Carta, nos termos nela prescritos, sob pena de incorrerem em incumprimento do Direito da União e em responsabilidade por esse incumprimento, nas condições definidas pelo Direito da União (e não pelo respetivo Direito nacional), 79. A garantia judicial da Carta Após a Carta ter sido integrada nos Tratados, não faz dúvida de que os Tribunais da União aplicá-la-ão como uma fonte formal de Direito, e nos termos nela definidos. No que toca aos tribunais nacionais, não poderão então recusar a sua aplicação quando ela for invocada perante eles, com a única limitação de que só o poderão fazer quando apliquem o Direito da União. Como se disse atrás, o juiz nacional poderá ver-se confrontado com a desigual proteção de direitos fundamentais no respetivo Direito interno e na Carta, que, ainda por cima, pelos motivos atrás apontados, ocorrerá quase sempre a favor da Carta. Convirá que, antes de mais, seja o Legislador, constituinte e ordinário, a resolver esse conflito (é mesmo seu dever fazê-lo, por respeito pelas regras que presidem à aplicação do Direito da União pelos Estados-membros, e que adiante estudaremos), harmonizando os preceitos de Direito interno sobre direitos fundamentais com o nível superior de proteção que a Carta lhes confere. Ver MEDEIROS, pgs. 39-40. Carta, pg. 87. m Sobre a matéria deste número, ver, com respeito a Portugal, M"D",oo:;,;i!, pgs~ 32 e segs. e 41 e segs., bem como o livro editado pela Comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República sobre a participação da Assembleia República no debate da Carta - Carta dos Direitos FUlldamelltais da União pela, Lisboa, 2001. 251 252 232 80. Conclusão: a Carta como núcleo centra! de nm sistema global e coerente de proteção dos Direitos do Homem em todo o continente europeu Como se disse atrás, durante muitas décadas as Comunidades e, depois, a União, ambicionaram ter o seu rol próprio de direitos fundamentais, Têm, finalmente, a Carta. A Carta está destinada a ser o catálogo dos direitos fundamentais da União Europeia, ou seja, a Bill of Rights dos cidadãos dos Estados-membros da União. Repetimos: só pode ter sido concebida como tal, doutra forma não faria sentido, Todavia, pelas razões que atrás indicámos, ainda não o é, Contudo, por expressa vontade dela própria, a Carta não vive só. Os direitos que ela reconhece devem ser interpretados como . fazendo parte do acervo global de direitos consagrados nas fontes, diversificadas, indicadas no 5.° parágrafo do preâmbulo da Carta. Mais especificamente, a Carta, nas suas chamadas "cláusulas 233 A União Europeia A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia horizontais" (artigos 51.° a 54.°), pretende ser o núcleo central de um sistema jurídico global de proteção dos direitos fundamentais em toda a Europa, mas um sistema complementar e coerente entre si, no qual, como decorre dos artigos 52.', n.O 3, in fine, e 53.°, a Carta deseja fornecer o grau mais elevado de proteção254 •255 • Nesse sistema global ocupam lugar de destaque três fontes: a Carta, claro, a CEDH e as tradições constitucionais comuns aos Estados-membros. Será com base nessas três fontes, onde, repete-se, a Carta ocupe um lugar central, que se irá construindo, para já, o Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais, ou, dito doutra forma, o Direito da União Europeia sobre Direitos do Homem, ou, melhor, o Direito da União Europeia sobre Direitos da Pessoa Humana, ao qual já nos referimos atrás. Para que isso aconteça, a primeira condição está alcançada. Ela residia na constitucionalização da Carta. Esta encontra-se consumada com a integração da Carta nos Tratados, por via do artigo 6.° UE, e com a sua consequente força obrigatória. Falta cumprir a segunda condição. Ela reside na necessidade de a Carta passar a prever também os deveres dos cidadãos, ao lado dos seus direitos. Não há liberdade sem deveres, não há democracia sem civismo, não há cidadania sem responsabilidade256 - e a Carta deve, desde logo por razões de pedagogia política, acolher e passar esta mensagem. É certo que no considerando 6.' do preâmbulo da Carta fica reconhecido que "o gozo dos direitos (reconhecidos pela Carta) implica responsabilidades e deveres (. .. )" (itálico nosso). Só que esta ideia não encontra qualquer concretização no articulado da Carta, o que é de lamentar. Quando tudo isto estiver conseguido, o Direito da União Europeia sobre Direitos do Homem, permitirá, simultaneamente, aprofundar ainda mais a "União de Direito" e robustecer o "espaço de liberdade, segurança e justiça", na fórmula feliz que, como já vimos, foi introduzida no TUE pelo Tratado de Amesterdão, e também virá contribuir de modo decisivo para a formação, à escala de todo o continente europeu, e na medida em que isso se vá tornando possível, de um bem estruturado e coerente Direito Europeu dos Direitos do Homem, que fará parte de uma verdadeira "ordem pública europeia" e que reforçará a tentativa de se criar um ius cogens regional na Europa em torno dos direitos fundamentais'''. 254 Esta atitude da Carta é coerente com a posição global que o Direito da União adota perante fontes de Direito que com ele concorrem em matéria de direitos fundamentais. Veremos isso quando estudarmos o primado do Direito da União. Mas deixamos já feita uma referência às "cláusulas de não regressão", que vêm sendo introduzidas nas diretivas sociais comunitárias, desde os fins dos anos oitenta. De harmonia com elas, a aplicação de uma diretiva com aquele objeto não deve servir de instrumento ou justificação para diminuir o grau de protecção já existente, quanto a um determinado direito fundamental, nos Direitos nacionais dos Estados-membros - ver, sobre este ponto, as conclusões do Advogado-Geral TIZZANO no caso Mango/d, Ac. TJ 22-11-2005, Prac. C-144/04, CoI., pgs.1-9.981, pontos 54 e segs. m Entre as obras citadas como bibliografia especial no início do presente Capítulo e do Capítulo anterior ver, sobre este ponto, sobretudo o estudo de KRÜGER e POLAKIEWICZ. 256 Cfr. HEANEL, pgs. 4 e segs. 234 Muito especificamente sobre a matéria deste número, FRANCO FERRARI, Die Zukunft der EU-Grundrechtscharta, in Griller/Hummer (eds.), Die EU nach Nizza, Viena, 2002, pgs. 281 e segs., KRÜGERlPOLAKIEWICZ, pgs. 1 e segs., DRZEMCZEWSKI, The Coul1cil af Eurape s Pasitian with Respect to lhe EU Charte,. o/Fundamental Rights, HRU 2001, pgs. 14 e segs. (26 e segs.), TULKENS, Towards a Greater Narmatíve Coherellce in Europe, HRLJ 2000, pgs. 329 e segs., GaRI! IKAUFF-GAZIN, pgs. 255-256, DUTHElL DE LA ROCHERE, pgs. 675 e segs., e LENAERTS/ IDE SMIITER, pgs. 296 e segs.. Sobre o ius cagens regional, ver o nosso estudo La CO/lvention ElIropéellne des Droits de ['Hamme: un cas de ius cogens regional?, Festschrift Bernhardt, pgs. 555 e segs. 257 WEBER, 235 CAPITULO VI AS ATRIBUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: H. JARASS, Die Kompetenzverteilung zwischen der europiiischen Gemeinschajt lI11d den Mitgliedstaaten, AõR 1966, pgs. 173 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Compétences et pouvoirs dans les CO/11munautés européellnes, Paris, 1974; 1. KAISER, Grenzen der EG-ZustCindigkeiten, EuR 1980, pgs. 97 e segs.; T. HARTLEY, Federalism, Courts and Legal Systems: The Emerging Constitutiol1 oflhe European Community, AJCL 1986, pgs. 229 e segs.; J. TEMPLE LANG, Europeall Community COflStitutiona! Law: The Divisioll of Powers between lhe Commullity and lhe Member States, NILQ 1986, pgs. 209 e segs.; K. LENAERTS, Constitutionalism and fhe Many Faces of Federalism, AJCL 1990, pgs. 205 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Le principe de subsidiarité, un passage obligé vers I' Union européenne, Mélanges Boulouis, pgs. 35 e segs.; F. DE QUADROS, O princípio da subsidiar;edade no Direito Comunitário após o Tratado da União Europeia, Coimbra, 1995; A. GOUCHA SOARES, Repartição de competências e preempção no Direito Comunitário, Lisboa, 1996; LufsA DUARTE, A teoria dos poderes implícitos e a delimitação de competências entre a União Europeia e os Estados-membros, dissertação, Lisboa, 1997; l MARTfN Y PÉREZ DE NANCLARES, El sistema de competencias de la Comw1idad Europea, Madrid, 1997; P. CRAlG e C. HARLOW, Law-making in the European Union, Amesterdão, 1998; l-L. SAURON, La mise en oeuvre retardée du principe de subsidiarité, RMC 1998, pgs. 645 e segs.; 1. PERNICE, Kompetenzenabgrenzung im europaischen Verfassungsverband, JZ 2000, pgs. 866 e segs.; K. FISCHER, Die Rechtsetzung der europiiischen Gemeinschaft im Lichte der Rechtsprechung des europiiischen Gerichtshofs, ZG 2000, pgs. 165 e segs.; A. VON BOGDANDY e 1. BAST, The European Un;on's vertical order of competellces: The current law 237 As atribuições da União Europeia A União Europeia and proposalsfor its reform, CMLR 2002, pgs. 227 e segs.; P. GAUTlER, Horizontal coherence and the external competences of tlle European Union, EU 2004, pgs. 23 e segs.; C. ROBERTA, La Corte di giustizia e la Costituzione europea, Roma, 2004; V. CüNSTANTINESCO, Les compétellces et le príncipe de subsidiarité, RTDE 2005, pgs. 305 e segs.; MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, A Actuação externa da União Europeia depois do Tratado de Lisboa, diss., Coimbra, 2011. 81. A definição das atribuições da União. A repartição de atribuições entre a União e os Estados-membros As atribuições da União Europeia são as matérias em que ela pode agir. O problema não se confunde, portanto, com o de averiguar quais são os objetivos visados pela União, que se encontram boje elencados no artigo 2.° UE: uma coisa são os fins da União, outra são as matérias substantivas que ela pode tomar a seu cargo, embora aqueles possam ajudar a descobrir estas. Quais são então as atribuições da União? Pelo facto de as Comunidades Europeias terem sido criadas segundo o método funcional, como já atrás explicámos, até ao Tratado de Lisboa os Tratados não continham uma cláusula expressa e clara sobre as atribuições da União ou das Comunidades. Designadamente, essas atribuições não se encontravam definidas por categorias de matérias, como acontece nos Estados federais (por exemplo, o comércio, a agricultura, a moeda, a defesa, a segurança, etc.). Disso se vieram a ressentir a precisão e o rigor que o intérprete buscava quando pretendia ver esclarecido um problema tão importante para a integração europeia e para a sua evolução. Todavia, o estudo das atribuições da União significa o estudo do modo como os Tratados procedem à repartição de atribuições entre a União e os Estados. Trata-se, portanto, de uma questão de grande sensibilidade política, porque está fortemente ligada à soberania dos Estados. Desde o Tratado de Maastricht e até ao Tratado de Nice que o Tratado CE se referia às atribuições da Comunidade, e não, note-se, da União, e apenas para definir o princípio da especialidade e para consagrar o princípio da subsidiariedade no exercí238 cio das atribuições concorrentes. É o que fazia, na versão de Nice, o artigo 5.° CE. Designadamente, ficava-se Sem saber quais eram, em concreto, as atribuições da União. O Tratado de Lisboa veio, pela primeira vez, ocupar-se da enunciação das atribuições da União. Fá-lo nos artigos 2.° a 6.° TFUE. Por aí se vê que a União prossegue hoje as seguintes atribuições: a) atribuições exclusivas (artigo 3.° TFUE); b) atribuições concorrentes ou partilhadas (artigo 4.° TFUE); c) atribuições de apoio, coordenação ou completamento da ação dos Estados-membros, que designaremos abreviadamente por atribuições complementares (artigo 6.° TFUE). Para a compreensão daqueles preceitos do TFUE é necessário levar em conta também a Declaração n. o 18 anexa ao Tratado de Lisboa sobre a delimitação de competências. Além disso os Tratados preveem também atribuições exclusivas dos Estados (artigo 4.°, n.o 2, infine, UE). Contudo, para estudarmos com rigor as atribuições da União temos que, primeiro, analisar o princípio da especialidade dessas atribuições. É o que vamos fazer de seguida. 82. O princípio da especialidade das atribuições da União Antes de estudarmos em concreto as atribuições da União, temos que examinar o princípio da especialidade dessas atribuições. Esse princípio, explicámos atrás, delimita a capacidade jurídica de todas as pessoas coletivas, de Direito Público e de Direito Privado, e estabelece que elas só têm capacidade jurídica, de gozo e de exercício, para a prossecução das matérias que lhe sejam expressamente cometidas por lei ou pelos respetivos Estatutos. Este princípio aplica-se também, no plano internacional, às Organizações Internacionais. A única pessoa coletiva à qual não se aplica o princípio da especialidade é o Estado, entendido aqui como comunidade polí239 A União Europeia As atribuições da União Europeia tica e sujeito de Direito Constitucional. De facto, só ele detém uma competência geral (é o que a doutrina alemã designa de Allzustiin- 83. As atribuições exclusivas da União digkeit)258. Pela sistematização adotada pelo TUE, e que já vinha sendo seguida pela doutrina, como se poderá ver pelas edições anteriores deste livro, dentro das atribuições da União há que começar por referir as suas atribuições exclusivas. Quais são as atribuições exclusivas da União? Até ao Tratado de Lisboa, e como acima sublinhámos, os Tratados não o diziam, tanto quanto à União como quanto às Comunidades. Por isso, o TJ teve que suprir essa lacuna dos Tratados. Segundo o TJ, a ex-Comunidade Europeia já tinha competência exclusiva nos domínios da política comercial comum, prevista no ex-artigo 133.° CE, na versão de Nice 25 ', da política de conservação dos recursos de pesca, contemplada no artigo 102.° do Tratado de Adesão de 197226°, e da política agrícola comum26 '. Mas a jurisprudência não tinha o monopólio da definição das atribuições exclusivas da Comunidade. E, por isso, deviam ser consideradas também atribuições exclusivas da Comunidade todas aquelas que constavam da lista apresentada pela Comissão em anexo à sua Comunicação sobre o princípio da subsidiariedade, de 27 de outubro de 1992262 ; além das políticas referidas pelo TJ e acima indicadas, também a supressão de obstáculos à livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais (ex-artigo 4.° CE); as regras gerais da concorrência; e os elementos essenciais da política de transportes (ex-artigo 71.°, n.o 1, aI. a, CE). Era com esta grande amplitude que a doutrina concebia as atribuições exclusivas da Comunidade Europeia antes do Tratado de Lisboa26 '. . ' _. Também a União vê a sua capacidade limItada pelo pnnclplo da especialidade. Isso constitui, aliás, um dos primeiros argumentos para se lhe recusar natureza estadual, ou seja, pa~a se a afastar do modelo jurídico acabado de um Estado. O pnncIplO da espeCIalidade, também chamado princípio de atribuição, encontra-se hOJe consagrado no artigo 5.° n.O I, 1.' parte, UE: Em virtude do princípio de atribuição, a União atua unicamente dentro dos limites da competência que os Estados-membros lhe tenham atribuído nos Tratados para alcançar os objetivos fixados por estes últimos (itálico nosso). ii' Este princípio encontra-se também acolhI'do no artigo 7.° TFUE, quando este dispõe que A União assegura a coerência entre as suas diferentes políticas e açôes, tendo em conta o conjunto dos seus objetivos e de acordo com o princípio da atribuição de competências (itálico nosso). Também tem parcialmente a ver com o princípio da especialidade o artigo 13.° UE, que, depois de no n.o I enunciar os órgãos da CE, estabelece no n. ° 2 que 'i Cada instituição atua nos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados ( ... ) (itálico nosso). Enquanto se refere aos "limites das atribuições" este artigo está a pensar nas atribuições da União (portanto, está a delimitar a capacidade jurídica da União). ° 258 Ver Acórdão Maastricht, já cit., do Tribunal Constitucional federal alemão. Hoje, veja-se, no mesmo sentido, das obras gerais, por ex., ISAAC, pg. 36, e LOUIS/RONSE, pgs. 16 e segs. 240 Parecer 1175, 11-11-75, Rec., pgs. 1.355 e segs. Acs. 14-7-76, Kramer, Procs. apensQS 3 e 6/76, Rec., pgs. 1.279 e segs., e 5~5-81, Comissão c. Reino Unido, Pme. 804179, Rec., pgs. 1.045 e segs. 261 Ac. 14-7-94, Rustica Semences, Pme. C-438/92, CoI., pgs. 1-3.526 e segs., ponto 16. 262 Buli. CE 10/92, pontos 1.1.4 e 2.2.1. 263 Veja-se, sobretudo, Y. GAUTIER, La compétence comnUl11alltaire exclusive, Mélanges Guy Isaac, 2004, pgs. 154-155. 259 260 241 .--------------------_ .... _----- A União Europeia As atribuições da União Europeia Todavia, para que existisse uma atribuição exclusiva era sempre necessário que, como havia proposto a Comissão na Comunicação citada, se reunissem, na matéria em causa, os seguintes dois requisitos cumulativos: a existência de uma obrigação clara e precisa de agir da parte da Comunidade, hoje, da União, e a absorção pela União dos poderes soberanos dos Estados-membros nessa matéria, de tal forma que a perda desses poderes soberanos fosse irreversível264 Como se disse, o Tratado de Lisboa veio estabelecer quais passavam a ser as atribuições exclusivas da União. Fá-lo no artigo 3.° TFUE. E a primeira classificação que ele trouxe foi a das atribuições internas e externas. As atribuições exclusivas internas referem-se ao mercado interno da União. São as elencadas no n.o 1 do referido artigo 3.° TFUE, ou seja: prevista num ato legislativo da União, seja necessária para lhe dar a possibilidade de exercer as suas atribuições internas ou seja suscetível de afetar regras comuns ou de alterar o seu alcance. Especificamente no que respeita à necessidade de concluir acordos internacionais para dar à União a possibilidade de exercer as suas atribuições internas este preceito acolhe a jurisprudência que o TJ definiu pela primeira vez no caso AETR266 • A política comercial comum, enquanto atribuição exclusiva externa, encontra o seu conteúdo desenvolvido no artigo 207.°, n. o 1, TFUE. Desse conteúdo merece destaque o investimento estrangeiro direto (não o indireto)267. A inclusão deste investimento na política comercial comum, em detrimento dos clássicos Tratados Bilaterais de Investimento celebrados entre os Estados, irá certamente implicar consequências profundas no incremento das relações comerciais e financeiras entre a União e os terceiros Estados2" . As atribuições exclusivas da União podem ser exercidas pelos Estados-membros através de delegação neles por parte da União dos poderes necessários para o efeito, ou com o objetivo de dar execução aos atos da União. É o que resulta do artigo 2.°, n.o 1, TFUE. Isso não impede de reconhecer que, como atrás dissemos, a titularidade dessas atribuições passou, de modo irreversível, dos Estados para a União. a) a união aduaneira; b) o estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno; c) a política monetária para os Estados-membros cuja moeda seja o euro; d) a conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum das pescas, devendo, portanto, entender-se que os outros domínios da política das pescas serão objeto de atribuições concorrentes ou partilhadas 26S ; e) e a política comercial comum. Note-se que nesta lista foi omitida referência à política agrícola comum, que, como atrás dissemos, o TJ há muito que considera uma atribuição exclusiva da União, mas que deixa de o ser em face do referido preceito do TFUE. As atribuições exclusivas externas são as que decorrem do n.o 2 do mesmo artigo 3.° TFUE. Ou seja, a União tem atribuição exclusiva para celebrar acordos internacionais cuja conclusão esteja 264 Assim, 265 Assim, PRiOLLAUD/SIRlTZKY, pg. 159. JACQUÉ, pgs. 142-143. 242 84. As atribuições coucorreutes ou partilhadas Antes de mais, uma questão terminológica. Os Tratados, na sua versão portuguesa, designam estas atribuide partilhadas. A bem do rigor jurídico chamamos-lhe prefe", Ac. 31-7-71, Proc. 22170, Rec., ponto 28. 267 Veja-se o nosso artigo O novo regime do investimento estrangeiro e da arl'itr.7g,,," internacional na União Europeia após o Trauu/o de Lisboa, Estudos Luiz Olava Baptista, no prelo. 268 Sobre os Tratados Bilaterais de Investimento, ver a nossa monografia, A ""'teccáo da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, cit., especiallmente, pgs. 48 e segs., 210 e segs., 315 e segs., 362 e segs. e 450 e segs. 243 A União Europeia As atribuições da União Europeia rencialmente atribuições concorrentes, por um simile com a dicotomia atribuições exclusivas/atribuições concorrentes dos sistemas federais norte-americano e alemão e porque foi essa a terminologia que na União Europeia obteve os favores da doutrina depois do Tratado de Maastricht. De facto, as atribuições ditas partilhadas não o são, isto é, não são atribuições que estejam repartidas, em pé de igualdade, entre a União e os Estados, antes são atribuições para as quais concorrem a União e os Estados e para cuja prossecução os Tratados dão primazia aos Estados. O estudo das atribuições concorrentes tem de ser separado em duas fases: a fase anterior ao Tratado de:Lisboa e a fase posterior a esse Tratado. Antes do Tratado de Lisboa, na repartição vertical de atribuições entre a União Europeia e os Estados-membros, e particularmente na relação entre as atribuições exclusivas e concorrentes, a regra era as atribuições serem concorrentes. Queria-se com isso dizer que, em todas as atribuições que coubessem no princípio da especialidade da União e que não se tivessem tornado exclusivas da União, esta e os Estados-membros concorriam entre si, até porque não havia nem atribuições complementares nem atribuições que fossem exclusivas dos Estados-membros. Quanto a estas últimas, a sua admissão, que fora proposta pelo Parlamento Europeu quando aprovou o Relatório Giscard sobre o princípio da subsidiariedade, em 12 de julho de 1990, na fase da preparação do TUE e do TCE, não foi acolhida pelos Tratados'69. Depois do Tratado de Lisboa, as atribuições concorrentes continuam a ser a regra, mas agora nos termos definidos pela parte final do artigo 4.°, n.o I, TFUE. Ou seja, à partida são concorrentes todas as atribuições que aquele Tratado não tenha incluído nas atribuições exclusivas e complementares, nos seus artigos 3.°, 5.° e 6.°. Mas, além disso, são seguramente atribuições concorrentes aquelas que estão elencadas no artigo 4.°, n.o 2, TFUE. Esta enunciação tem de ser considerada meramente exemplificativa até em face da cláusula aberta do n.o I do mesmo artigo, ao qual há pouco nos referimos. Nessa enunciação merece destaque especial a energia, pela importância que essa matéria alcançou contemporaneamente na União. Note-se que a agricultura, e, com ela, a política agrícola comum, devem ser entendidas como sendo atribuições conCOlTentes da União, em face do que dispõe o artigo 4.°, n.o 2, aI. d, não obstante, como se referiu, ser outra a posição do TI. Do mesmo modo, das pescas fica para as atribuições concorrentes tudo o que não couber nas atribuições exclusivas, pelo que resulta do mesmo preceito por confronto com o artigo 3.°, n.o I, d. 269 Veja-se sobre a matéria também o nosso, O princípio da subsidiariedade; pgs. 31-32, e a bibl. aí cit. 244 Há que levar em conta também o Protocolo relativo ao exercí- cio das competências partilhadas e a Declaração n.o 18, acima referida, anexos ao Tratado de Lisboa, devendo todavia, aquele e esta, ser interpretados em sintonia com o artigo 5.°, n. O 3, UE. 85. As atribuições complementares O Tratado de Lisboa criou também, como se disse, atribuições complementares para a União. Elas encontram-se elencadas nos artigos 5.° e 6.° TFUE e disciplinadas no artigo 2. 0 , n."' 3 e 5, TFUE. Essas atribuições são de duas categorias: a) as atribuições de orientação e de coordenação, do artigo 5.°; b) e as atribuições de apoio, coordenação e completamento, do artigo 6.°. As atribuições de orientação e coordenação, do artigo 5.°, são atribuições: a) de orientação das políticas económicas dos Estados-mem- bros (artigo 5.°, n.o I, L' parte). São prosseguidas nos termos do artigo 121.° TFUE; b) de coordenação, de supervisão e de orientação das políticas monetárias dos Estados da Zona Euro, que devem ser exercidas com respeito pelo artigo 136.° TFUE (artigo 5.°, n.o I, 245 A União Europeia 2." parte). No respeito por estas atribuições, o Protocolo sobre o Eurogrupo, anexado ao Tratado de Lisboa com o n.o 3, prevê a eleição de um Presidente do Eurogrupo, com um mandato de dois anos e meio; c) de coordenação das políticas de emprego dos Estados-membros (artigo 5.°, n.o 2, que vem na linha do artigo 2.°, n.o 3, TFUE). Estas atribuições são levadas a cabo nos termos do artigo 148.° TFUE; d) eventualmente, de coordenação das políticas sociais dos Estados-membros (artigo 5.°, n.o 3). Os artigos 151.° e 156.° TFUE desenvolvem estas atribuições. As atribuições de apoio, coordenação e completamelJlo devem ser interpretadas como conferindo uma atuação menos intensa à União. Elas são, antes de mais, as que constam das sete alíneas do artigo 6.° TFUE. Como se notava no Relatório Final do Grupo de Trabalho da Convenção sobre o Futuro da Europa consagrado às atribuições complementares270 , estas atribuições consistem num mero complemento das atribuições dos Estados, que não perdem a sua competência sobre essas matérias. Por isso, estes não transferem para a União o poder de legislar sobre esses domínios, nem mesmo com vista a harmonizar as legislações dos Estados-membros 271 • É o que ficou a dispor o novo artigo 2.°, n.o 5, TFUE. Por isso, e em face da parte final dos n." 3 e 4 do artigo 4.° TFUE, e do seu confronto com o que dispõe o artigo 2.°, n.o 5, par. 1, parte final, TFUE, entendemos que as matérias referidas naqueles dois números do artigo 4. TFUE devem ser consideradas atribuições complementares e não atribuições concorrentes'72. Entre as atribuições previstas no citado artigo 6.° TFUE merecem destaque e educação (foi neste quadro que a União crioú o Programa Erasmus, note-se, sem afetar a competência dos Estados-membros) e também os novos domínios de atribuições da União, 270 211 272 CONV 375102. Ver PRIOLLAUo/SIRITZKY, pgs. 162-163. No mesmo sentido, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 161. 246 As atribuições da União Europeia que são o turismo (ver o artigo 195.° TFUE), o desporto (ver o artigo 165.° TFUE), a proteção civil (ver o artigo 196.° TFUE) e a cooperação administrativa (ver o artigo 197.° TFUE). Nesses novos domínios, agora erguidos a atribuições da União, até agora esta só podia intervir ao abrigo do atual artigo 352.° TFUE, que estudaremos adiante. 86. O princípio da subsidiariedade Bibliografia especial: INSTlTUT EUROPÊEN D' ADMINISTRATlON PUBLIQUE (ed.), Subsidiarité: défi de cllangement, Actes du Colloque Jacques Dellors 1991, Maastricht, 1991; C. STEWING, Subsidiaritat und Foderalismus in der Europaischen Union, Colónia, 1992; V. CONSTANTINESCO, Subsidiarité ... vous avez dit subsidiarité?, RMU 1992, pgs. 227 e segs.; F. DE QUADROS, Das Subsidiaritêitsprinzip im EG-Recht nach Maastricht, Tomuschat/Kõtz/Von Maydell (eds.), Europãische Integration und nationale Rechtskulturen, Colónia, 1994, pgs. 335 e segs.; J. CHARPENTIER, Quelle subsidiarité?, Pouvoirs 1994, pgs. 49 e segs.; FI.D.E. (ed.), Le principe de subsidiarité, Roma, 1994; J. DE OUVEIRA BARACHO, O princípio da subsidiariedade ~ conceito e evolução, Rio de Janeiro, 1996; C. CALLIESS. Subsidiaritêits- und Solidaritiitsprinzip in der ElIropiiischen Union, Baden-Baden, 1996; F DE QUADROS, O princípio da subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União Europeia, cit.; F. DE QUADROS, O princípio da subsidiariedade na União Europeia, in Perfecto Yebra Martul-Ortega (diT.), Sistema Fiscal Espano1 y Armonización Europea, Madrid, 1995, pgs. 209 e segs.; F DE 110 Tratado da União QUADROS, O princípio da subsidiariedade Europeia: contributos para a revisão do Tratado, in AA.VV., Em torno da revisão do Tratado da União Europeia, Coimhra, 1997, pgs. 231 e segs.; H. BRIBOSIA, De la subsidiarité à la coopération renforcée, in Y. I.ejeune, I.e Traité d'Amesterdam, Bruxelas, 1998, pgs. 24 e segs.; R. DOLZER, Subsidiarity: Toward a New Balance among tlle European Commllnity and the Member States?, SL 1998, pgs. 529 e segs.; C. DE MORAIS, A dimensão interna do princípio da subsidiariedade no ordenamento português, ROA 1998, pgs. 779 e segs.; F. DELPÉRÊE, Justice constitutionnelle et suhsidiarité, Paris, 2000; R. ANDERSEN e D. DÉOM (dir.), Droit administratif et subsidiarité. Bruxelas, 2000; M. VERDUSSEN (dir.), L'Europe de la subsidiarité, Bruxelas, 2000; LuíSA BLANCO 247 A União Europeia A aplicação jurisdicional do princípio da subsidiariedade no Direito Comunitário: pressupostos e limites, Estudos João Lumbralles, pgs. 779 e segs.; ROSÁRIO VILHENA, O princípio da subsidiariedade no Direito Comunitário, diss., Coimbra, 2002; MARGARIDA D'OLlVEIRA MARTINS, O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-politica, diss., Coimbra, 2003, e a nossa arguição dessa dissertação (com base no texto policopiado), in BFDUL 2002, pgs. 1.465 e segs.; IDEM, O novo regime do princípio da subsidiariedade e o papel reforçado dos Parlamentos nacionais, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ed.), O Tratado de Lisboa, cit., pgs. 47 e segs. DUARTE, I - Enunciado do problema A intervenção da União na matéria das suas atribuições não exclusivas (portanto, atribuições concorrentes e complementares) rege-se pelo princípio da subsidiariedade. Portanto, tem de ficar claro, desde logo, que aquele princípio não reparte atribuições entre a União e os Estados-membros, mas apenas disciplina o exercício de atribuições que os Tratados previamente repartem como não sendo exclusivas da União. Desde o Tratado de Maastricht até ao Tratado de Nice, este princípio constou de uma cláusula escrita, de âmbito geral, dos Tratados: o artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de Nice. Como o Tratado CE só se referia então às atribuições exclusivas e concorrentes este princípio só regia o exercício destas últimas. Pouco depois da sua introdução no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht dedicámos ao princípio da subsidiariedade dois estudos monográficos"', aprovei173 Das Subsidiaritãtsprinzip e O principio da subsidiariedade. Logo a seguir, escrevemos sobre aquele princípio outros dois artigos, O princfpio da subsidiariedade, publicado em Espanha, e O princfpio da subsidiariedade, a propósito da revisão de Amesterdão. Dada a existência, portanto, de três estudos nossos com a epígrafe que começa em português por O principio da subsidiariedade deve entender-se que quando invocarmos aquela epígrafe estaremos a remeter o leitor, se o contrário não for afinnado, para o livro publicado em Coimbra, em 1995, e que figura no rol de bibliografia com que abre o presente Capítulo. 248 As atribuições da União Europeia tando para o efeito, inclusivamente, a nossa participação nos trabalhos preparatórios do Tratado da União Europeia, como explicámos na apresentação do estudo em língua portuguesa. O que então escrevemos mantém atualidade, apesar de posteriormente vários instrumentos jurídicos terem vindo desenvolver aquele preceito, nomeadamente o Protocolo sobre a aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, que foi anexado ao TUE pelo Tratado de Amesterdão, em 199727'. Acontece, porém, que todos esses instrumentos foram por nós, em grande medida, tomados em consideração nos nossos dois referidos estudos, inclusive o citado Protocolo, dado que este, em bom rigor, começou a nascer na Cimeira de Birmingham, de 16 de outubro de 1992, onde Portugal apresentou um primeiro contributo para o aprofundamento e a densificação jurídica do ex-artigo 3. 0 _B, par. 2, CE, na versão de Maastricht, contributo esse que foi todo incorporado no referido Protocolo. Com o Tratado de Lisboa, o princípio da subsidiariedade, agora estendido, como dissemos, a todas as atribuições não exclusivas da União, passou a ter a sua sede principal no artigo 5.°, n.o 3, UE. Este preceito corresponde ao artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de Nice e, como sucedia com este, é completado, quanto à sua aplicação prática, pelo Protocolo n. ° 2 anexo ao Tratado de Lisboa, relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Por sua vez, o artigo 2.°, n.o 2, TFUE, que é novo, e que tem uma redação menos clara do que o referido preceito do TUB, terá de ser interpretado em sentido conforme com este. Quanto ao referido Protocolo, note-se que a sua redação foi totalmente modificada pelo Tratado de Lisboa. Isso parece não significar que se quis abandonar o que esse Protocolo dispunha antes do Tratado de Lisboa mas apenas que o Protocolo se deixou de preocupar com ques- 274 Os outros documentos importantes são as Conclusões do Conselho Europeu de Birmingham, de 16-10-92, as Conclusões do Conselho Europeu de Edimburgo, de 12-12-92, e o Acordo interinstituciona1 entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, de 1993. Sobre esses e outros textos elaborados no quadro da União sobre a subsidiariedade, ver, por todos, GRABlTzJHILF/NEITESHE1M, anotações ao atual artigo 5.°, n.O 3, UE. 249 A União Europeia As atribuições da União Europeia tões substantivas acerca dos dois princípios em causa para regular apenas questões processuais quanto à aplicação daqueles princípios. Neste livro vamos compendiar o que, de forma mais desenvolvida, escrevemos nos dois citados estudos monográficos, aproveitando a experiência da vigência do princípio da subsidiariedade nos Tratados há já cerca de duas décadas e, claro, tentando atender às inovações trazidas pelo Tratado de Lisboa. artigo 352." TFUE, ao dispor sobre o modo como se pode alargar a competência dos órgãos da União, não está a aplicar o princípio da subsidiariedade, nem tem nada a ver com ele. Aquele preceito, como no local próprio estudaremos, disciplina a criação de novos poderes para os órgãos da União após previamente se ter definido que a intervenção da União era conforme ao Tratado, inclusivamente, que ela era necessária à face do princípio da subsidiariedade ["se uma ação da União for considerada necessária (... )"]275. Por outro lado, o princípio da subsidiariedade é um princípio jurídico, uma regra de Direito, não um princípio meramente político ou programático. Isso ficou claro quando da sua inclusão no TUE'''. Assim entendido, o princípio da subsidiariedade é no Direito da União Europeia, em conformidade com a evolução que sofreu ao longo da História, desde a Antiguidade, um princípio descentralizador. Ou seja, ele confere preferência aos Estados no exercício das atribuições uão exclusivas. A intervenção dos Estados nessas matérias é, pois, a regra; a da União, a exceção277 • Essa ideia é confirmada e reforçada, em total coerência, pela afirmação, feita pelos Tratados, de que a subsidiariedade impõe a maior aproximação possível do poder de decisão em relação aos cidadãos Uá citados considerando 13.° do preâmbulo e artigo 1.0, par. 2, UE). II - Noção e génese Em bom rigor, existem duas versões cumulativas do princípio da subsidiariedade: uma, que apela para o respeito, no processo de integração, pela identidade nacional dos Estados-membros, particularmente da sua História, da sua cultura e das suas tradições; outra, que dá preferência aos Estados na prossecução das atribuições que os Tratados considerem não exclusivas da União. A primeira versão encontramo-la acolhida hoje no considerando 6.° do preâmbulo do TUE e no artigo 4.°, n.o 2, do mesmo Tratado. A segunda versão consta hoje da 2.' parte do considerando 13.° do preâmbulo do TUB e da 2.' parte do artigo 1.0, par. 2, do mesmo Tratado, e, como dissemos, encontra guarida, em termos de cláusula geral, no artigo 5.°, n.o 3, também do TUB. Tanto o Protocolo atrás referido, como a Declaração sobre a delimitação de competências, ambos anexos ao Tratado de Lisboa, devem ser interpretados de modo a não prejudicar o sentido que se extrai desse artigo 5.°, n.O 3, UE. Quando usualmente se fala em subsidiariedade no Direito da União Europeia é sobretudo no segundo dos dois referidos sentidos que se emprega essa palavra. E é esse o sentido que nos interessa neste lugar. Diversos preceitos do TFUE concretizam, quanto a matérias específicas, o princípio da subsidiariedade: é o caso, designadamente, dos artigos 165.°, n.o I, 167.°, n.o 1, 168.°, n.o 1, e 180.°. Como já se disse, o princípio da subsidiariedade regula o exercício das atribuições não exclusivas da União. Não interfere, pois, na atribuição da competência aos órgãos da União. Sendo assim, o 250 III - O conteúdo do princípio Para que a Comunidade intervenha com respeito pelo princípio da subsidiariedade no domínio das atribuições não exclusivas é, pois, necessário, de harmonia com o artigo 5.°, n.o 3, UE, que se 275 Já o demonstrámos em 1995 no nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 24 e segs., com apoio na bibl. cito na sua nota 43, especialmente em V. CONSTANTINESCO e GRABITZlH!LF, e na jurisprudência do Tl Hoje, a posição contrária encontra-se quase isolada - veja-se, por ex., ISAAC, pgs. 37 e segs. 276 Para mais pormenores, veja-se o nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 56 e segs., e JACQUÉ, pgs. 160 e segs. 277 Veja-se no nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 12 e segs., a evolução histórica do princípio, e, a pgs. 24 e segs., a aplicação. do que se diz no texto, à evolução do Direito da União. 251 I, I iii I ! A União Europeia As atribuições da União Europeia verifiquem cumulativamente duas condições: a insuficiência da atuação estadual e a maior eficácia da intervenção da União. Por isso, sem prejuízo de, na sua configuração teórica e dogmática, o princípio da subsidiariedade, como acima se disse, ser um princípio descentralizador, na prática, só em cada caso concreto, e em cada momento concreto, é possível afirmar-se se a sua aplicação leva a alargar ou a estreitar o âmbito de intervenção da União ou, dito doutra forma, se ela vai conduzir, de facto, a uma diminuição ou à manutenção dos poderes soberanos dos Estados-membros. Ou seja: a insuficiência da parte dos Estados alargará a margem de intervenção da União e, correspondentemente, limitará a soberania dos Estados; ao contrário, a suficiência dos Estados restringirá, ou até dispensará, a intervenção da União e, nessa exata medida, conservará nestes os respetivos. poderes soberanos. Essa ideia é levada ao extremo de se poder afirmar que o próprio ãmbito, ou domínio material, do Direito da União é apurado em função da sua subsidiariedade em relação aos sistemas jurídicos nacionais. Nesse sentido, era particularmente expressivo o n.o 7 do citado Protocolo, na redação que tinha no Tratado de Nice, sobretudo no trecho que pomos em itálico: "No que respeita à natureza e ao alcance da ação comunitária, as medidas tomadas pela Comunidade devem deixar às instâncias nacionais uma margem de decisão tão ampla quanto possível, desde que compatível com a realização do objetivo da medida e a observância das exigências do Tratado. Sem prejuízo do direito comunitário, deve ser assegurado o respeito pelos sistemas nacionais consagrados e pela organização e funcionamento dos sistemas jurídicos dos Estados-membros. Quando apropriado, e sob reserva da necessidade de assegurar uma aplicação adequada, as medidas comunitárias devem facultar aos Estados-membros vias alternativas para alcançar os objetivos dessas medidas". Como já atrás defendemos278 , embora este preceito não conste do Protocolo tal como ele foi modificado pelo Tratado de Lisboa, deve entender-se que a ideia que ele exprime continua a ser válida. Note-se que a subsidiariedade, tal como a acabámos de interpretar no artigo 5.°, n.o 3, UE, afasta-se da que constava do ex-artigo 13ü.o-R CEE, introduzido no Tratado CEE pelo artigo 25.° do Ato Único Europeu em matéria de ambiente. De facto, o ex-attigo 13ü.o-R CEE autorizava a intervenção da Comunidade, desde que esta fosse mais eficaz ("melhor") do que a ação estadual, não sendo necessário demonstrar-se cumulativamente a insuficiência da atuação estadual. Aquele ex-artigo 13ü.o-R CEE foi entretanto abrogado pelo artigo introduzido no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht e que foi o antecessor da cláusula geral do artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de Nice. Quais são os elementos do conteúdo do princípio da subsidiariedade, tal como ele se encontra definido no artigo 5.°, n.o 3, UE? Mantemos aqui as ideias que defendemos em 1995279 • Esses elementos são os seguintes, e eles decorrem hoje do disposto no artigo 5.°, n." 3, UE: , ':i I ,I i I ,, :i i'; i I 2?8 a) como se disse, o princípio da subsidiariedade só se aplica às atribuições concorrentes e complementares da União, não às atribuições já tomadas exclusivas da União; b) é necessário provar-se a necessidade da intervenção da Comunidade (até para se respeitar o princípio da proporcionalidade, a que adiante nos referiremos), a insuficiência da intervenção estadual, tanto ao nível central como ao nível regional e local, para prosseguir os objetivos da ação prevista, e a maior eficácia da intervenção da União; c) uma vez iniciada a intervenção da União, cessa a intervenção dos Estados. Ou seja, a intervenção da União exclui a intervenção dos Estados. Isto decorre da própria etimologia da subsidiariedade e é o que resulta hoje da letra do artigo 5.°, n.o 3, UE, como resultava dos artigos que antecederam este nos Tratados anteriores. Por isso, um entendimento diferente, que parece resultar do artigo 2.°, n.o 2, TFUE, 279 O principio da slIbsidiariedade, pgs. 36 e segs., com bibl. aí cito em apoio das nossas posições. Supra, n.o 46. 252 253 As atribuições da União Europeia A União EHropeia sobretudo 1.' parte, ao apontar para uma intervenção conjunta da União e dos Estados, deve ceder o passo à interpretação que se extrai do citado artigo 5.°, n.O 3, UE; d) a insuficiência dos Estados e a maior eficácia da União devem ser aferidas à luz dos critérios elencados no artigo 5.° do Protocolo; e) porque a subsidiariedade assenta na ideia, a que já aludimos, segundo a qual a regra é a intervenção do Estado, a exceção, a intervenção da União, é à União que, em cada caso, cabe o ónus de provar que se encontram preenchidas as condições acima indicadas, na alínea b, e segundo os critérios a que nos referimos na alínea d, e que, portanto, está justificada a sua intervenção; fJ no que especificamente diz respeito ao elemento das "dimensões" e dos "efeitos da ação considerada", mencionados no artigo 5.°, n.o 3, UE, para que a União possa intervir em detrimento dos Estados, ela deverá provar que a ação prevista tem dimensão e produz efeitos a uma escala, no mínimo, tendencialmente comunitária. Ou seja, a insuficiência localizada em apenas um ou poucos Estados não chega para a União se substituir aos Estados. E, mesmo quando, nesses termos, se prove a necessidade da intervenção da União, esta, antes de agir, deverá começar por tentar que os Estados criem, eles próprios, a suficiência necessária para alcançar os objetivos prosseguidos. É neste sentido que devem ser interpretados os critérios do artigo 5.° do Protocol0280 . IV - A aplicação do princípio O respeito pelo princípio da subsidiariedade não tem suscitado dificuldades especiais na União Europeia. O Tratado de Maastricht 280 Cfr. JACQUÉ, pgs. 162 e segs. e o nosso O princípio da sllbsidiariedade, pgs. 46-47. Na jurisprudência do TJ ver sobre esta matéria os Acs. 10-12-2002, British American Tobacco, Proe. C-491101, pontos 180-182, e 22-5-2003, Comissão v. Alemanha, Proe. C-103/01, pontos 47 e segs. 254 ainda não tinha entrado em vigor e o antigo artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de Nice, já era objeto de disposições concretas visando a sua aplicação, como aconteceu, como mostrámos, com as conclusões do Conselho Europeu de Birmingham e de Edimburgo, de 1992. Não obstante essas conclusões, bem como o Acordo interinstitucional entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, de 1993, terem todos tido valor jurídico, como reconheceu o TF81.282, impunha-se que os Tratados densificassem o princípio, como havíamos proposto em 1995 283 , o que foi feito pelo já referido Protocolo anexado ao TUE pelo Tratado de Amesterdão. O respeito pelo princípio da subsidiariedade tem feito parte da fundamentação dos atos de Direito derivado da União, exigida pelo artigo 296.° TFUE. Do mesmo modo, a Comissão tem, na fundamentação das suas propostas, levado em conta aquele princípio. O TJ entende ser muito importante analisar a fundamentação dos atos de Direito derivado a fim de se poder pronunciar sobre o respeito pelo princípio da subsidiariedade284 . A subsidiariedade é reversível. Portanto, não obstante em dado momento ter sido necessária a intervenção da União em consequência da provada insuficiência dos Estados, caso se venha a demonstrar que os Estados entretanto ganharam suficiência para a ação necessária, e se entretanto a atribuição em causa não tiver passado para o rol das atribuições exclusivas da União, voltam os Estados a ter preferência na atuação na matéria concreta. Defendemos essa posição em 1995285 . Depois, ela ficou consagrada, até ao Tratado de Lisboa, no Protocolo, anexo ao Tratado de Amesterdão, no seu n.o 3, parte final. O atual Protocolo, com a sua nova redação, não faz referência expressa a essa matéria mas deve-se entender que esse sistema continua em vigor porque é da essência da subsidiariedade que o nível superior só poderá intervir na medida em que, e durante 281 Ae. 13-5-97, Alemanha c. Parlamemo Europeu e Conselho, Pme. C-233/ 194, CoI., pgs. 1-2.405 e segs. 282 Assim, também, ISAAC, pg. 47. 283 O princípio da subsidiariedade, especialmente, pgs. 43-44. 284 285 Ver, por exemplo, o cit. Acórdão no Proc. C-233/94, pontos 22 e segs. O princípio da subsidiariedade, pg. 45. 255 A União Europeia o período em que, se prove a insuficiência da intervenção do nível inferior. Por conseguinte, não se aplica, no Direito da União, às atribuições não exclusivas, o princípio da preempção do Direito Constitucional dos Estados Unidos. Graças, antes de tudo, à reversibilidade da subsidiariedade, esta e a preempção excluem-se'''. É preciso compreender que a subsidiariedade impõe alguma flexibilidade em dois princípios fundamentais do sistema jurídico da União: O da sua uniformidade e o do seu primado sobre o Direito estadual. Quanto à uniformidade, porque nos Estados cuja atuação tenha sido substituída pela da União por força da subsidiariedade, as matérias em causa poderão vir a estar sujeitas a um regime jurídico diferente daquele que para elas vigora nos Estados que, segundo os critérios do artigo 5.°, n.o 3, UE, não perderam para a União o direito de intervir e, portanto, conservam para si esse direito, desde logo, por via legislativa. Quanto ao primado, porque a subsidiariedade pode excluir o primado do Direito da União, pelo simples facto de não se demonstrado que, no caso concreto, a intervenção da União, pelos critérios do artigo 5.°, n.O 3, UE, deve substituir-se à dos Estados (dito melhor: pelo facto de a União não haver demonstrado que, caso concreto, por aplicação daqueles critérios, a intervenção União deve substituir-se à intervenção dos Estados), portanto, não se colocar o problema de a União ter competência na matéria portanto, de o Direito da União vir a regular a matéria. Por fim, haverá que insistir28? em que a subsidiariedade relações Estados-União só será eficaz e fará sentido se for com~,le­ tada pela subsidiariedade nas relações intraestaduais. Por palavras: a subsidiariedade externa impõe a subsidiariedade mIemla. Dito doutra forma, a subsidiariedade na União impõe a sulJsic:liariedade intraestadual, sobretudo (mas não só) no exercício do Assim, também, entre outros, VON BOGDANDV/BAST, pg. 243. Ver o nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 61 e segs. e 71 e pensando, inclusivamente, no caso concreto de Portugal. As atribuições da União Europeia Administrativo28'. Caso contrário, não só a subsidiariedade comunitária perde coerência, pela recusa de um fluxo contínuo de atribuições descentralizadas, desde a menor comunidade local intraestadual até à União, como ela é subvertida pelo afogamento das instâncias do Poder Central dos Estados, que se verão no meio de dois movimen!os de sentido contrário, ou seja, a descentralização a nível da Umao e a centralização a nível interno. Esta ideia foi reforçada pelo Tratado de LIsboa quando no citado artigo 5.°, n.O 3, par. I, UE, veio valonzar os níveis regional e local interiores ao Estado no exercício do princípio da subsidiariedade. .Quanto ao caso concreto de Portugal, haverá que sublinhar que o adiamento sine die da regionalização administrativa do seu território continental, que continua a ser imposta pela Constituição, fez c.om que Portugal perdesse uma excelente oportunidade de passar a lIrar todas as potencialidades que a subsidiariedade na União lhe oferece, para além de ter colocado sérias dúvidas sobre o respeito pelos artIgos 6.", n.o I, e 7.°, n.O 6, da Constituição. v - O controlo da aplicação do princípio . O princípio da subsidiariedade tem de ser visto no TUE, já O dIssemos, como uma regra jurídica e não como um princípio meramente político (para o que algum sector da doutrina e alguns meios o querem arrastar). Foi assim que ele nasceu no Direito da . ,. Todavia, a fiscalização da sua aplicação pode obedecer a cntenos tanto Jurídicos como políticos. O controlo jurídico da subsidiariedade pode ter lugar a priori ou a posterIOr!. Comecemos por este último. a) O controlo a posteriori O controlo a posteriori da subsidiariedade pode ser um conpolítico. Assim acontecerá por força do artigo 9." do Protocolo 2S6 287 256 288 Sobre a importância da subsidiariedade para o Direito Administrativo moderno, veja-se, especialmente, a obra coordenada por ANDERSEN e DÉOM. 257 A União Europeia As atribuições da União Europeia atrás referido, que impõe à Comissão a obrigação de apresentar, aos órgãos aí indicados, um relatório anual sobre a aplicação do princípio. Mas esse controlo também pode ser um controlo jurídico. Como tal, esse controlo é, normalmente, levado a cabo pelo TJUE, no exercício da respetiva competência, e através dos seguintes meios contenciosos: o recurso de anulação, do artigo 263." TFUE; a exceção de ilegalidade, do artigo 277.° TFUE; as questões prejudiciais, do artigo 264.° TFUE; e a ação por omissão, do artigo 265. oTFUE. Note-se que o controlo através desses meios contenciosos será levado a cabo por aquele Tribunal no exercício por este, dos poderes de cognição que os Tratados lhe conferem no quadro de cada um desses meios contenciosos, com os desenvolvimentos que à matéria foram dados pela jurisprudência do próprio TJUE289. O controlo pelo TJUE através do recurso de anulação encontra-se admitido, de modo expresso, pelo artigo 8.° do Protocolo relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Na medida em que fica aos órgãos da União um largo poder discricionário na definição da subsidiariedade da intervenção da União, o controlo que efetivamente o TJUE pode exercer na matéria é ténue, como ele tem reconhecido 290 • Mas o controlo jurídico a posteriori da subsidiariedade também pode ser levado a cabo pelos tribunais nacionais, caso, perante estes, algum interessado invoque o efeito direto do artigo 5.°, n.o 3, UE. Em conformidade com os critérios definidos pelo TJ para a atribuição de efeito direto a uma norma ou a um ato de Direito da União, e que examinaremos adiante291 , não há razões para se recusar efeito direto àquele preceito, embora, como antes escrevemos logo a seguir à inclusão daquele artigo nos Tratados'92, porventura não vá ser frequente haver interesse em invocá-lo. Uma coisa, todavia, parece certa: mesmo nos Estados que, nas suas Constituições, fazem reger as suas relações com a União Europeia pelo princípio da subsidiariedade, os tribunais nacionais terão competência para julgar a constitucionalidade dos atos nacionais que infrinjam a regra da subsidiariedade mas não terão competência para julgar da legalidade (ou da constitucionalidade) dos atos da União que a violem, pelo simples facto de os tribunais nacionais não serem tribunais da legalidade dos atos da União. 289 Sobre esses meios contenciosos ver F. DE QUADROS/A. MARTINS, Contencioso da União Europeia, 2. a ed., Coimbra, 2006, pgs. 65 e segs. 290 Acs. 12~11-96, Reino Unido c. Conselho, Proc. C-84/94, Rec., pgs. 1-5.793 e segs., 13-5-97, Alemanha c. Parlamento Europeu e Conselho, Pree. C-233/94, Rec., pgs. 1-3.405 e segs., 10-12-2002, British American Tobacco, Proe. C-491/01, Rec., pgs.1-11.453 e segs., e 22-5-2003, Comissão c. Alemanha, Prac. C-I03101, Rec., pgs. 1-5.369 e segs. No mesmo sentido da nossa posição, ver JACQUÉ, pg. 169. 291 [nfra, fi.O S 207-208. 258 b) O controlo a priori Mas o controlo da aplicação do princípio da subsidiariedade também pode ser levado a cabo a priori, ou seja, a título preventivo. Esse controlo pode revestir natureza jurídica ou ser um controlo político. Comecemos pelo controlo jurídico. Ele consiste na exigência de fundamentação, pelas entidades referidas no artigo 3.° do citado Protocolo, de cada projeto de ato legislativo (com o sentido que lhe dá esse artigo 3.°), em termos de ele demonstrar, em cada caso concreto, que respeitou o princípio da subsidiariedade (valendo o mesmo para o princípio da proporcionalidade). Esse controlo encontra-se disciplinado no artigo 5.° daquele Protocolo. De harmonia com este preceito, todos os projetos de atos legislativos incluem uma "ficha de subsidiariedade", que deve conter os elementos referidos naquele preceito. Foi pena que não tivesse ficado consagrada nos Tratados uma outra via de controlo jurídico a priori da aplicação do princípio da subsidiariedade, que fora admitida pela Convenção sobre o Futuro da Europa, e que consistiria num controlo judicial. Seria um sistema análogo ao da fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis que vigora na generalidade dos Estados-membros, e seria determinado pelo nível do mais eficaz desses sistemas. Aos Estados292 Veja-se O princípio da subsidiariedade, pg. 61. Em sentido contrário, ver, sobretudo, GRABITZ!H1LFINETIESHE1M, anotações ao artigo 5.°, 0.° 3, UE. 259 A União E~/ropeia -membros (aos seus Governos, Parlamentos e órgãos políticos dirigentes de entidades políticas autónomas, como Estados federados ou regiões políticas) e aos órgãos legiferantes da União (o Parlamento Europeu e o Conselho) seria reconhecido o direito de requererem ao TIUE, em qualquer momento do processo legislativo, um parecer prévio sobre o respeito do princípio da subsidiariedade por parte da proposta legislativa da Comissão ou de um ato legl~la­ tivo já aprovado em conformidade com o processo legIslatIvo previsto nos Tratados mas ainda não entrado em ~Igor: No ca~o de esse parecer ser negativo, a proposta da Comlssao so poden~ ter seguimento, e o ato legislativo aprovado só podena entrar em vIgor (conforme um ou outro dos casos descritos), após_a revisão d~ :ratado. Já em 1995 nós apresentáramos uma sugesmo mUlto proxlma • 293 E ·t' desta, com fundamento em importante doutnna . ste meIo ena afinidades com aquele que há muito consta dos Tratados acerca dos acordos internacionais que as Comunidades e, depois, a União celebra, e que atualmente se encontra previsto no artigo 218.°, n.o 11, TFUE. VI - Em especial, o controlo pelos Parlamentos nacionais ii 'I:; 11' Na sequência de um tímido controlo pelos Parlamentos nacionais do respeito pelo princípio da subsidiariedade, consagrado no Protocolo relativo ao papel dos Parlamentos nacionais na União Europeia, anexo ao Tratado de Amesterdão, e. que continuou em vigor com o Tratado de Nice, o Tratado de LIsboa velO reforçar substancialmente esse controlo uo novo Protocolo n. o 2 relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, já citado. Esse Protocolo tem de ser hdo e mterpretado sequência do novo Protocolo n. o 1 relativo ao papel dos tos nacionais na União Europeia, em especial, do seu artigo 3.°. 293 O princípio da subsidiariedade, pg. 58 e notas 98 e 99. Veja-se matéria tratada em CALLlES, pgs. 265 e segs., e, de modo particularmente profundo, em STRUysIFLYNN, in Marc Verdussen (dir.), pgs. 201 e segs. 260 As atribuições da União Europeia Os Parlamentos naciouais exercem, antes de mais, um controlo a priori da aplicação do princípio da subsidiariedade. Mas este controlo preventivo é, inevitavelmente, um controlo político. De facto, o artigo 4. 0 desse Protocolo n.O 2 disciplina o envio aos Parlamentos nacionais dos projetos de atos legislativos das entidades referidas no artigo 3.°. Sobre esses projetos cada Parlamento nacional pode emitir o seu parecer (artigo 6.°), que será tido em conta por aquelas entidades nos termos definidos no artigo 7." desse O Protocolo n. 2, conjugado com o referido artigo 3.° do Protocolo n.o 1. Os n.O' 2 e 3 desse artigo 7.° do Protocolo n.o 2 regulam o respetivo procedimento. '. Mas os Par!amentos nacionais também podem controlar a postenon a aphcaçao do princípio da subsidiariedade. Podem fazê-lo à sombra do artigo 8.", par. 1, do Protocolo n.o 2, acima referido, que permIte que um Estado-membro, em seu nome ou no do respetivo Parlamento, ou de uma câmara do Parlamento, recorra para o TIUE pedindo a anulação de um ato legislativo com fundamento na violação do princípio da subsidiariedade. Para o Estado lançar mão desse meio contencioso pode-lhe ser útil o já referido relatório que a Comissão é obrigada a apresentar anualmente, inclusive aos Parlamentos nacionais, sobre a aplicação do princípio da subsidiariedade (citado artigo 9.° do Protocolo n.o 2). Este controlo a posteriori é, pOIS, um controlo jurídico. 87. O princípio da proporcionalidade na atuação da União Já estudámos que o princípio da proporcionalidade constitui u~ dos princ!pios constitucionais que rege todo o ordenamento jurí- dICO da Umao Europeia29'. Ele manifesta-se também, e de modo expresso, no sistema de repartição de atribuições entre a União e os De facto, depois de no n. ° I haver prescrito o princípio da especialidllde quanto às atribuições da União e de no n.O 2 ter vindo 294 Supra, fi,o 47. 261 As atribuições da União Europeia A União Europeia regular o exercício das atribuições não exclusivas, nos moldes atrás descritos, o artigo 5.° UE vem dispor, no seu n.o 4, que "(... ) o c?nteúdo e a forma da ação da União não devem exceder o necessano para atingir os objetivos do presente Tratado". . _ ., Também aqui não estamos perante uma repartlçao de atnbUlções entre a União e os Estados-membros mas, sim, perante a disciplina do seu exercício. Ou seja, quer na prossecução. d~s su~s atribuições exclusivas, quer no desempenho das atnbUlçoes nao exclusivas (e, neste caso, mesmo que, por aplicação da regra da subsidiariedade, se conclua que eabe à União agir), num caso e noutro a ação da União deve restringir-se apenas ao que for necessário. , A conclusão imediata a tirar da interpretação do artigo 5.", n.o 4, UE, é a de que todo este sistema de repartição de atribuições e de disciplina do respetivo exercício, definido nesse artigo 5.°, visto ele em globo, se encontra construído com coerência, e está imbuído , de um forte espírito descentralizador em favor dos Estados. Especificamente quanto ao artigo 5.°, n.o 4, UE, estamos al perante o princípio da proporcionalidade na fórmula da proibição de excesso, construída pelo Direito alemão (" Übermassverbot"), e já 29 admitida pelo TJ no Direito da União Europeia '. . A proporcionalidade tem, portanto, aqui um papel deternunante para se determinar a amplitude possível da intervenção da União, pondo-se o problema, obviamente, de modo especIal, em relação à sua atividade legislativa. Pretende-se evitar o excesso de regulamentação pela União, o que implica que se examine: se não ~á outros meios, em alternativa à legislação que a Comlssao propoe, em cada caso concreto, para se prosseguirem os objetivos da União com os menores sacrifícios ou encargos possíveis para os destinatários das medidas propostas. Note-se, todavia, que, na medida em que O TJ tem vindo a reconhecer aos órgãos da União um amplo poder discricionário em matéria económica, onde, para além disso, nem sempre é possível previamente quantificar com ngor os efeitos das medidas legislativas projetadas, ele, em coerência, tem entendido que, na apreciação do respeito pelo princípio da proporcionalidade, não pode substituir-se aos órgãos da União na determinação da oportunidade e do âmbito das medidas que estes têm em vista. Isso condiciona o poder de fiscalização do TJ quanto ao cumprimento do artigo 5.", n.O 4, UE. Por via disso, a aplicação daquele preceito pelo legislador da União só pode ser considerada ilegal pelo TJ "se ela se revelar manifestamente errada em face dos elementos de que ele disponha no momento da adoção da regulamentação"29ó. O já referido Protocolo n. ° 2, anexo ao Tratado de Lisboa, liga os dois princípios, como se vê sobretudo pelo seu artigo 5.". Embora a redação dada àquele artigo pelo Tratado de Lisboa tenha alterado a redação que tinha antes o n." 6 do mesmo Protocolo na versão de Nice, continua a dever-se aplicar o que neste n.O 6 se impunha, com muita felicidade, quanto ao princípio da proporcionalidade e que a doutrina, depois do Tratado de Maastricht, já extraía isoladamente da subsidiariedade: que "em igualdade de circunstâncias, deve optar-se por diretivas em vez de regulamentos (... )"297. O controlo do respeito pelo princípio da proporcionalidade obedece às mesmas regras que enunciámos para o princípio da subsidiariedade. 88. A especificidade da Ação Externa da União O Tratado de Lisboa veio dar uma maior relevância às relações externas da União sob o novo rótulo de Ação Externa. O essencial dessa Ação consta do Capítulo I do Título V do TUE que contém as "Disposições gerais" relativas a ela. Ac. 5-10-94, cito Veja-se, sobre esta matéria concreta, especialmente, JACQUÉ, pg. 169, e o nosso O princípio da subsidiariedade, pg. 52. Veja-se também o Ac. TJ 12-11-66, Reino Unido c. Conselho da União Europeia, Pree. C-84/94, Rec., pontos 46 e segs. 296 '" Aes. 18-2-91, Conforama, Proes. C-112189, CoI., pgs. 1-991 e segs., e 28-2-91, Marchandise, C-332189, CoI., pgs. 1-1.027 e segs., 27-10-92, Alemanha c. Comissão, proe. C-240/90, CoI., pgs. 1-5.383 e segs., e 5-10-94, Alemanha c. Conselho, Proe. C-280193, CoI., pg'. 1-4.973 e segs. 262 297 263 A União Europeia Dada a sua grande importância para a atividade da União, e a amplitude do seu conteúdo, não deixa de surpreender o facto de, no elenco das atribuições da União constante dos artigos 2.° a 6.° TFUE, os autores do Tratado de Lisboa se terem esquecido de indicar o lugar da Ação Externa. E é pouco dizer-se, até porque não seria correto fazê-lo, que com o seu silêncio eles pretenderam significar que toda a Ação Externa se integrava nas atribuições concorrentes da União ao abrigo da cláusula geral do artigo 4.°, n.o 1, TFUE. Em nosso entender, para situarmos a Ação Externa nas atribuições da União, temos que a dividir em três domínios. Em primeiro lugar, a Política Externa e de Segurança Comum (PESC). Ela tem a sua sede no Capítulo II do Título V do TUE. A PESC tem uma forte matriz intergovernamental. Isso resulta, sobretudo, do artigo 24.° UE. Com efeito, segundo o n.o 1, par. 2, desse artigo, em regra a PESC é definida pelo Conselho Europeu e pelo Conselho; estes deliberam na matéria por unanimidade; não há na PESC atos legislativos; e o TJUE não dispõe de competência na PESe. Esses traços são mais fortes do que as características comunitárias da PESC, que são, sobretudo, as seguintes: apesar de tudo, a PESC aparece-nos como atribuição da União e não dos Estados-membros (artigo 25.° UE); a União tem competência para aprovar decisões nessa matéria, por força, designadamente, dos artigos 25.° b, ii, e 26.°, n.o 2, par. 1, UE, e as decisões são na União atos legislativos obrigatórios, por força dos artigos 288.°, par. 4, e 289.° TFUE. Dentro da PESC, a política comum de segurança e defesa (PCSD) (artigo 41.°, n.O I, 1.' frase) apresenta traços intergovemamentais ainda mais fortes do que o regime geral da PESCo E esses traços são, sobretudo, dois: as decisões relativas à PCSD são tomadas pelo Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta do Alto Representante (que, recorde-se, é o presidente do Conselho dos Negócios Estrangeiros), sem a participação do Parlamento ou da Comissão (artigo 42.°, n.O 4, UE); e, como estudámos atrás, os Estados podem estabelecer entre eles uma cooperação reforçada na forma de cooperação estruturada permanente, sem qualquer número mínimo (artigos 42.°, n.O 6, e 46. 0 UE). 264 As atribuições da União Europeia Compõe também a Ação Externa, e em segundo lugar, a política comercial ~omu~: Ela e:tá regulada dent~o da Parte V do TFUE, que tem por epIgrafe A Açao Externa da Umão", no Título II. Esta polí~ica comum é uma atribuição exclusiva da União. Nesse senl1do e claro o artigo 3.°, n.o I, e, TFUE. Por força do n.o 2 do mesmo artIgo, também são atribuição exclusiva da União os acordos internacionais na matéria da política comercial comum Voltaremos adiante ao estudo deste preceito do TUE. . ._Por fi~, e em terceiro lugar, fazem parte da Ação Externa da Umao tambem as matérias a que se referem os Títulos III, IV, VI e VII,. TFUE. Essas matérias cabem nas atribuições concorrentes ou pa:l1l~adas da União, ao abrigo da cláusula geral do citado artigo 4. ,,no I, TFUE. Quanto aos acordos lllternacionais, a que se refere o TItulo V, o problema não se coloca, por razões óbvias. Eles estão dependentes da qualificação, em sede das atribuições da União das matérias substantivas às quais os acordos se venham a referir. ' Como se vê de tudo o que fica dito, a Ação Externa encontra-se caracterizada nos Tratados como uma realidade complexa e híbrida29B • 89. As atribuições exclusivas dos Estados Têm os Estados-membros da União atribuições exclusivas, que, portanto, excluam a intervenção da União? ,. As atribuições exclusivas dos Estados não são um traço necessano das Federações, embora haja Estados federais que o adotam. Na União Europeia, e como atrás explicámos, houve uma tentativa de se ir por esse. caminho quando da preparação do TUE, antes do Tratado de Maastncht, através do Relatório Giscard. Mas como também já foi referido atrás, essa tentativa malogrou-se e' desde então não foi formalmente retomada. 298 Sobre a Ação Externa, ver, por último, A Actuação externa, cito 265 MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA ' A União Europeia Todavia o Tratado de Lisboa inclui nos Tratados referência a atribuições e~clusivas dos Estados-membros. É o caso, por exemplo, da segurança nacional, por força do artigo 4.°, n.o 2, 3.' parte, UE. Não se sabe se esta orientação terá sido conscientemente assumida pelos autores dos Tratados porque, por exemplo, neste caso concreto, ficou por disciplinar o modo como a atribuição exclusiva dos Estados em matéria de segurança nacional se compadece com a existência de uma Política Externa e de Segurança Comum, que, como vimos, se encontra regulada no Título V, Capítulo II, do Tratado UE. 90. O paralelismo entre as atribuições internas e externas da União Merece referência especial o chamado paralelismo entre as atribuições internas e externas da União. Estamos perante mais uma criação sensata da jurisprudência da União. Entende o TJ que, na medida em que a União tiver definido, num dado domínio material, regras comuns no seu plano interno, ela fica investida de atribuições nesse domínio também no plano externo, podendo, portanto, os seus órgãos concluir acordos internacionais nessa matéria, mesmo na ausência de disposições expressas que lhe atribuam competência para o efeito. Ou seja, O simples facto de a União, por força das disposições contidas no artigo 5.° UE, ter atribuições num dado domínio, faz nascer para ela, implicitamente, as mesmas atribuições na ordem externa ou internacional. É O problema das atribuições implícitas da União. O caso-chave da jurisprudência da União nesta matéria continua a ser o caso AETR''', embora o TI tenha desenvolvido essa orientação em casos posteriores")o. Ac. 31-3-71. Proc. 22170. já citado. 300 Ac. 14~7-76, Kramer, cit., pgs. 1.279 e segs., Parecer 1176, Rec., pgs. 741 e segs., e Parecer 2/94,28-3-96, cit., especialmente, o ponto 3. 2'J9 266 As atribuições da União Europeia , . Note-se qu~ ~ão podia ser doutra forma, porque o próprio exerdas. atnbUlçoes Internas da União ficaria impedido ou, ao menos, dificultado, se ela não pudesse exercer as mesmas atribuições também no plano externo. Todavia, dessa corrente jurisprudenclal resulta, efetlvamente, um alargamento das atribuições da União, embora com tradução apenas no plano externo'o,. A revisão de Lisboa resolveu este problema em sede dos Tratados. Como já dissemos atrás, ficou disposto no artigo 3.°, n.O 2, TFUE, que, no domínio das suas atribuições exclusivas, "A União dispõe (... ) de competência exclusiva para celebrar acordos internacionais quando tal celebração (. . .) seja necessária para lhe dar a possibilü!ade de exercer a sua competência interna (...)" (itálico nosso). E a consagração, na íntegra, da doutrina AETR. Estamos a falar de atribuições implícitas da União. Elas não se confundem, portanto, com os poderes implícitos dos seus órgãos, quant? aos quais se aplica a teoria geral dos poderes implícitos em Drrelto Internacional. Nessa matéria o Direito da União nada CICIO inova302 • ,. G ver so bre es t a matena AUTlER, pgs. 23 e segs. 302 Sobre os poderes implícitos em Direito Internacional, ver ZULEEG fnternational organizations, Implied Powers, EPIL, voI. II, 1995, pgs. 1.312 e s~gs .. 301" 267 CAPÍTULO VII OS ÓRGÃOS E AS INSTITUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: P. PESCATORE, L'exécutlf communautaire: justification du quadripartisme par les traités de Paris et de Rume, CDE 1978, pgs. 387 e segs.; F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit., 1984, pgs. 200-336; H. WALLACE e W. WALLACE, Flying Together iII a Larger arul More Diverse European U11iol1, Haia, 1995; H. WALLACE e W. WALLACE (eds.), Policy-Making ln lhe European Unioll, 3. a ed., Oxford, 1996; J. GERKRATH, L'émergence d'un droi! constitutiOll11el pOlir l'Europe, Bruxelas, 1997; E. NOEL, Les institutions de la Communauté européenne, Bruxelas, 1997; G. BERTRAND, La prise de décision dans I'Ul1ion européenne, Paris, 1998; J. L. QUERMONE, L'U11ion européenne en quête d'institutions légitimes et efficaces, Paris, 1999; ANA MARTINS, O Tratado de Nice - A reforma institucional e o futuro da Europa, Estudos Isabel Magalhães Collaço, vo1. I, pgs. 779 e segs.; F. DE QUADROS, Avaliação global do sistema orgânico e institucional da União Europeia após o Tratado de Lisboa, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ed.), O Tratado de Lisboa, Coimbra, 2012, pgs. 33 e segs. SECÇÃO I Preliminares 91. Introdução. Questão terminológica Uma das especificidades mais marcantes do sistema jurídico da União reside, sem dúvida, no seu sistema institucional. 269 A União Europeia Entendemos como tal o conjunto dos órgãos e das instituições da União. E, a propósito, impõe-se aqui, desde logo, uma precisão terminológica. Para designarmos os centros de imputação de vontade jurídica à pessoa coletiva União falaremos em órgãos. Foi sempre essa a terminologia jurídica portuguesa: desde logo, a Constituição e a lei ordinária referem-se a órgãos de soberania, a órgãos do Estado, a órgãos da Administração, a órgãos das pessoas coletivas, públicas ' das, a orgaos ' - das SOCle 'dd ou pnva a es, e tc. 303 . Para nos referirmos a pessoas coletivas que fazem parte da estrutura institucional da União e que, portanto, não se limitam a exprimir uma vontade imputável apenas à União, porque também, e antes de mais, é imputável a elas próprias, falaremos em pessoas coletivas ou em instituições. Não procedem com este rigor as versões oficiais em língua portuguesa, nem do Direito originário da União (embora a partir das revisões dos Tratados em Maastricht e Amesterdão se tenha atenuado a imprecisão terminológica que vinha das versões portuguesas iniciais, após a adesão de Portugal às Comunidades Europeias), nem do Direito derivado. E não procede assim parte da doutrina. Aquelas e esta têm generalizado o vocábulo instituições para designar o que, em bom rigor, são órgãos da União. Mas, em nosso entender, procedem mal. Nada na integração europeia nos obriga a abandonar a nossa própria e específica terminologia jurídica, sedimentada, quase sempre, há séculos, e, nalguns casos, com raízes no Direito Romano. E o que é institution em francês e em inglês não é o que é instituição em português. Os outros Estados-membros protegem desse modo a sua terminologia; é nosso dever fazermos o mesmo. Já nos havíamos debruçado sobre esta questão na Introdução deste livro, quando explicámos a razão de ser da epígrafe e da subepígrafe desta obra. Assim, por todos, e para nos confmarmos à doutrina juspublicista, ver Manual de Direito Constitucional, 1. V, 3. a ed., Coimbra, 2004, pgs. 43 e segs., FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 3. a ed., 1. I, Coimbra, 2006, pgs. 759 e segs., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.3. ed., Coimbra, 2003, sobretudo, pgs. 555 e segs. Os órgãos e as instituições da Uniao Europeia Aliás, mesmo nas línguas estrangeiras há quem evite o vocábulo vago instituição e se refira a órgãos da União. Faz isso, antes de mais, a versão alemã dos Tratados, que sempre foi tida como uma das mais cuidadas versões do Direito originário da União. Ela refere-se a "Die Organe der Union" (epígrafe do Título III do Tratado UE e o seu artigo 13.°, e epígrafes do Título I e do Capítulo I da Parte VI do TFUE). E faz isso, também, parte da doutrina francesa, que distingue, nos termos por nós indicados, os órgãos e as instituições: ver, por exemplo, ISAAC'04 e MANIN305-306. É, pois, com fidelidade a este rigor terminológico que prosseguiremos o nosso estudo. 92. Os órgãos da União depois do Tratado de Lisboa Como dissemos atrás, se formalmente o Tratado de Lisboa acabou com a distinção entre os três pilares, do ponto de vista substanciai mantém-se, com autonomia, o segundo pilar, agora dedicado, em geral, à Ação Externa. Foi por isso que o artigo 13.°, n.o 1, UE, um pouco à semelhança do que fazia o antigo artigo 3.° UE, na versão de Nice, sentiu a necessidade de deixar claro que "A União dispõe de um quadro institucional que visa ( ... ) assegurar a coerência, a eficácia e a continuidade das suas políticas e das suas ações". Esse quadro institucional é composto pelos órgãos (designados por "instituições") indicados nesse mesmo artigo 13.°, n.o I, TUE. O desejo de com esse quadro institucional único se assegurar a coerência no seio da União, não impede o n.O 2 do mesmo artigo de prevenir que cada órgão atua, dentro de cada um dos dois Tratados. isto é, dentro de cada um dos dois pilares, de harmonia com a com- 303 JORGE MIRANDA, 270 Pgs. 49 e segs. Pgs. 175 e segs. e 179 e segs. 306 Ver, sobre esta questão, também GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, por ex., pgs. 446 e segs., e a nossa dissertação de doutoramento, por ex., pgs. 250 e segs. 304 305 271 A União Europeia petência que aí lhe seja atribuída e segundo o procedimento que aí lhe seja definido. Todavia, agora a situação é bem diferente da dos antigos TU~ e TCE. Enquanto que, antes do Tratado de LIsboa, a UE pedIa emprestados à CE os seus órgãos (salvo o Conselho Europeu, que era órgão próprio da UE embora tivesse competência residual no âmbito da CE), o Tratado de Lisboa, também aqui na esteira do Tratado Constitucional, criou um único quadro institucional para toda a UE, embora os órgãos possam ter competência específica para a Ação Externa. . De harmonia com o artigo 13.°, n. o 2, UE, os órgãos refendos no n.o 1 desse artigo devem cooperar com lealdade. Os órgãos indicados nesse n. ° I encontram-se disciplinados, nos seus aspetos essenciais, nos artigos 14.0 a 19.° UE. Depois, na Parte VI, Capítulo I (artigos 223.° e seguintes) TFUE encontramos a regulamentação mais pormenorizada desses órgãos, bem como dos órgãos secundários e das instituições da UE. 93. O sistema de repartição de poderes A União tem um sistema de repartição de poderes entre os seus órgãos bastante mais profundo e avançado do que o vulgarmente conhecido nas Organizações Internacionais clássicas, por ex(~mIJIO; na Organização das Nações Unidas. Isso deve-se ao facto de órgãos da União serem muitos e de a sua competência ser vasta. O sistema de repartição de poderes na União pode-se qualificar como um sistema quadripartido J07 . Ou seja, é possível encontrarmos, quatro poderes dentro do poder político da União: o poder legisla· tivo, o poder executivo, o poder de fiscalização ou de controlo eo poder judicial. A configuração e a demarcação do poder legislativ9 são particularmente complexas e constituem uma das originalidades:;. do sistema da União. Por outras palavras, o processo legislativo. envolve a participação de vários órgãos e assume, em função disso, diversas modalidades, como veremos. Os órgãos e as instituições da União Europeia Não obstante, isso não é possível, desde logo por vontade expressa dos autores dos Tratados, encontrar um simite entre o sistema de repartição de poderes na União e o sistema estadual J". Nem sequer se podia esperar isso, sabendo-se, como se sabe, que a União ainda não alcançou um modelo estadual. É que, como dissemos atrás, a progressão da integração europeia para uma união política não tem necessariamente que se fazer segundo os modelos clássicos de organização do poder político. Esse é, aliás, para o jurista e para o cultor da Ciência Política, um dos grandes fascínios do processo da construção europeia. Vamos estudar o sistema institucional da União e das Comunidades dividindo-o em duas categorias: a) os órgãos; e b) as instituições. Dentro dos órgãos, os órgãos principais são aqueles que constam do artigo 13.0 UE, isto é, o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Conselho, a Comissão Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia, o Banco Central Europeu e o Tribunal de Contas. A ordem pela qual os órgãos estão indicados corresponde à ordem pela qual eles constam do artigo 13.° UE e à ordem pela qual se encontram mais tarde disciplinados nos artigos 223. 0 e seguintes doTFUE. 94. A tripla legitimidade na titularidade do poder político da União A integração europeia e, mais concretamente, o exercício do poder político da União, assentam numa tripla legitimidade. E esse constitui, sem dúvida, o traço mais marcante da estruturação do sistema institucional da União. Essa tripla legitimidade é-nos dada 308 307 Assim, PESCATORE, L'exécutif, pgs. 388 e segs.. 272 Isto já foi inclusivamente reconhecido, de forma expressa, pelo TJ _ Ac. 6~6-82, Procs. 188 a 190/80, França, Itália e Reino Único c. Comissão, CoI., pg. 2.573. ponto 6. 273 A União Europeia pela legitimidade da integração, pela legitimidade estadual e pela legitimidade democrática. No seu início, a integração fundava-se apenas numa dupla legitimidade: a da integração, representada pela Comissão, e a estadual, representada pelo Conselho. De facto, a Comissão foi criada como órgão independente dos Estados e representante do interesse comunitário, como verdadeiro órgão supranacional. Foi por isso que o Tratado CECA, na sua versão inicial, até ao Tratado de fusão de 1965, apelidava a Alta Autoridade da CECA de órgão "supranacional" (artigo 9.° CECAl. Ao contrário, o Conselho foi pensado como órgão que encarnava e representava os interesses dos Estados-membros. Essa dicotomia integração/interesses dos Estados espelhava a tensão dialética entre a integração e a interestadualidade, que, como já por mais de uma vez dissemos neste livro, preside ao processo da integração. Além disso, ela confirmava a vocação federal das então Comunidades, bem expressa no Plano Schuman, de 1950: de facto, também nos sistemas federais, no exercício do poder político, desde logo, no exercício do poder legislativo, coexistem a representação do todo integrado e a participação dos Estados fede" rados. Já vimos isso atrás. Pense-se nos Estados Unidos, onde o poder legislativo assenta num sistema bicameral, em que a Câmara dos Representantes representa a integração e o Senado é composto por representantes dos Estados federados; ou pense-se na Alemanha, onde o mesmo se passa, respetivamente, com o Bundestag e o Bun·, desrato Com a eleição do Parlamento Europeu por sufrágio direto ~ c';; universal, em 1979, este órgão veio acrescentar à integração euro, . ' peia uma terceira legitimidade: a legitimidade democrática. Até porque logo a seguir, no Ato Único Europeu, de 1985, se iniciaria um processo de progressivo reforço dos poderes do Parlamento, qu~ em 1979 se esgotavam na sua competência consultiva, fora o poder legiferante em matéria orçamental. • É certo que, na legitimidade democrática do Parlamento EunJ,. peu, subsiste o défice resultante do facto de ele não representar o', povo europeu, que no plano jurídico aiuda não existe, mas, colU9 dispunha expressamente o antigo artigo 190.° do Tratado CE, apenil5, 274 Os órgãos e as instituições da União Europeia "os pOVOs dos Estados reunidos na Comunidade", ou, como estabelece hoje o artigo 14.°, n.O 2, UE, os "cidadãos da União". Esta construção é também acolhida por um grande nome da doutrina, DENYS SIMON309 • Este Autor fala até numa quarta legitimidade, que designa de "legitimidade judiciária"3l·, que ele vê concretizada no atual TJUE. Cremos, todavia, que neste caso a expressão legitimidade está utilizada num sentido diferente do que é empregue para designar as outras três legitimidades a que acima nos referimos, e, por isso, evitá-la-emos3l'. SECÇÃO II Os órgãos principais §J.O o Parlamento Europeu Bibliografia especial: l-V. LoUIS e D. WAELBROEK (eds.), La Parlement européen dans l'évolution institutionnelle, Bruxelas, 1988; D. QUINTY e G. JOLY, Le rôle des parfements européen et nationaux dans la fonction législative, RDP 1991, pgs. 436 e segs.; C. BLUMANN, La fonction législative communautaire, Paris, 1995; R. CORBETT, The European Parliament's role in doser EU integration, Londres, 1999; O. COSTA, Le Parlement européen, assemblée déliberante, Bruxelas, 2001; A. KREPPEL, The European Parliament and Supranational Party System, Flórida, 2001; J. ANDRIANT SIMBAZOVINA, Le Parlement européen, "corps legislatif', banalisation hasardeuse ou évolution créatrice?, Mélanges Isaac. pgs. 271 e segs. 309 310 311 Pgs. 183 e segs. Pgs. 230 e segs. Sobre esta matéria, ver também 489 e segs., e ISAAC, pg. 50. 275 LENAERTS/VAN NUFFEL, especialmente, A União Europeia 95. Origem e estatuto Os órgãos e as instituições da UI/ião Europeia 96. Composição o Tratado de Paris chamava a este órgão Assembleia Comum. Depois, os Tratados de Roma designaram-no de Assembleia. Em 1962, ele auto-designou-se de Parlamento Europeu, tendo esta designação obtido consagração no AUE e sendo ela depois mantida noTUE. Desde os Tratados institutivos, coube ao Parlamento a função de representar os povos dos Estados-membros. Por isso, o ex-artigo 189.° CE, na versão de Nice, dispunha que ele era "composto por representantes dos povos dos Estados reunidos na Comunidade". Note-se: dos povos dos Estados, e não do povo europeu. Tínhamos aqui uma boa demonstração de que, para os Tratados, ainda não existia um povo europeu. A situação, do ponto de vista jurídico, em nada mudou com O Tratado de Lisboa. É certo que o TUE passou a dispor, agora no seu artigo 14.°, n.o 2, que "O Parlamento Europeu é composto por representantes dos cidadãos da União" (itálico nosso). Mas não havendo, como já explicámos, uma cidadania da União autónoma da cidadania nacional, falar em cidadãos da União, ou em povos, ou em cidadãos dos Estados-membros, é o mesmo. Todavia, a função do Parlamento Europeu de representar os povos dos Estados ou os cidadãos da União, aliada ao modo atual de desig~ nação dos seus membros, confere ao Parlamento Europeu a missão de simbolizar a legitimidade democrática no processo de decisão da União ou, melhor, no exercício do poder político da União. Para todos os efeitos, é o único órgão da União eleito por sufrágio direto e universal dos cidadãos da União. O Parlamento Europeu está regulado hoje nos artigos 14.°, e 15.° UE e 223.° a 234.° TFUE. Além disso, ele tem o seu próprio, Regimento. O Regimento consta do sítio do Parlamento, www.euro~:.' par1.eu, e está em frequente modificação. O Parlamento tem sede em Estrasburgo, onde têm lugar as" reuniões plenárias mensais. As reuniões plenárias extraordinárias,' bem como as reuniões das comissões parlamentares, têm lugar Bruxelas. Tanto em 1951, como em 1957, os autores dos Tratados (artigos 21.° CECA e 138.° CEE) haviam previsto que o Parlamento Europeu submetesse ao Conselho um projeto que regulasse a sua eleição por sufrágio direto e universal dos cidadãos dos Estados-membros, segundo um processo uniforme em todos os Estados. De harmonia com os mesmos preceitos, ele serIa, entretanto, composto por membros cooptados pelos Parlamentos nacionais entre os seus membros: "A Assembleia é fOlmada por delegados que os Parlamentos designam no seu seio segundo o processo fixado por cada Estado-membro". Em 20 de setembro de 1976, o Conselho aprovou uma Decisão que estabeleceu o sufrágio direto e universal 3l ', seguida do Ato relativo à eleição dos representantes na Assembleia por sufrágio universal e direto. Por isso, em 1979, de 7 a 10 de junho, já foi possível proceder-se às primeiras eleições diretas para o Parlamento, após se ter ultrapassado uma série imensa de obstáculos jurídicos e políticos. Mas até hoje não se conseguiu levar a cabo essas eleições de harmonia com um processo eleitoral uniforme, pelo que as eleições têm lugar em cada Estado em conformidade com o respetivo Direito eleitoral interno. Todavia, de harmonia com o artigo 138.°, n.o 4, CE, na redação que lhe deu o Tratado de Amesterdão, e que corresponde ao atual artigo 223.°, n.o I, TFUE, o Parlamento Europeu está encarregado de elaborar um projeto destinado a permitir a sua eleição "segundo um processo uniforme em todos os Estados-membros ou baseado em princípios comuns a todos os Estados-membros". Por isso, na Resolução de IS de julho de 1998 313 , ele propôs um sistema de tipo proporcional, baseado em círculos eleitorais regionais, deixando, contudo, aos Estados a liberdade de criarem um círculo nacional, de fixarem um limite mínimo para a repartição dos assentos e de autorizarem o escrutínio preferencial. 3D Decisão n.o 761787/CECA, CEE e CEEA, 10 L 278, de 8-10-76, C 292/66, de 21-9-98. m 10 276 277 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia Note-se, todavia, que, hoje, à exceção do Reino Unido, que se mantém fiel ao sistema uninominal a uma volta, todos os outros Estados-membros adotam variantes, mais ou menos próximas entre si, do sistema de representação proporcional. Mas essa diferença tem sido suficiente para que não se chegue a um processo eleitoral uniforme. Acresce a isso, que não é fácil o regime de adoção desse processo uniforme: ele tem de ser aprovado pelo Conselho, por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu por maioria dos membros que o compõem, e depois tem de ser aprovado por todos os Estados-membros segundo as respetivas normas constitucionais (citado artigo 223.°, n.o 1, par. 2, TFUE). Os deputados, como se disse, são eleitos por sufrágio direto e universal no âmbito de cada Estado (artigos 14.°, n.o 3, UE, e 223.°, n.o 1, TFUE). As eleições têm lugar na mesma data em todos os Estados-membros. Os assentos atribuídos aos Estados são repartidos proporcionalmente em função da população de cada Estado, conforme dispõe o artigo 14.°, n.o 2, UE. Note-se, todavia, que o critério da população é aplicado de modo degressivo, como dispõe o mesmo preceito, de modo a, simultaneamente, se evitar a sobrerepresentação dos Estados mais populosos e a subrepresentação dos Estados com população diminuta. Nas edições anteriores deste livro descrevemos as vicissitudes pelas quais passou o número de deputados do Parlamento Europeu no período posterior ao Tratado de Nice e anterior ao Tratado de Lisboa em virtude da necessidade que houve em, por um lado, aco" lher nele os deputados dos doze Estados que aderiram em 2004 e 2007 e de, por outro lado, não se aumentar demasiado o número total de deputados do Parlamento. Essas vicissitudes têm, porém, hoje só interesse histórico. O Tratado de Lisboa veio regular a matéria no referido artigo 14.°, n.o 2, do Tratado UE. Aí passou a dispor-se que o número de deputados do Parlamento Europeu não podia ser superior a setecentos e cinquenta, mais o Presidente, o que, para todos os enmc,s, perfaz o número de setecentos e cinquenta e um'l4. Há um mínimo, de seis deputados por Estado-membro, e um limite máximo, de noventa e seis deputados por Estado-membro. O mesmo preceito remetia para uma Decisão posterior unânime do Conselho Europeu, tomada por iniciativa do Parlamento Europeu sob aprovação do Conselho, a fixação definitiva do número de deputados por cada Estado. E assim aconteceu. Na Cimeira de Bruxelas de 18 e 19 de junho de 2009315 o Conselho Europeu levou a cabo um ajustamento no número de deputados a eleger por alguns Estados. O número de deputados por cada Estado ficou então distribuído do seguinte modo: 314 Ver as Declarações ll.OS 4, 5, 57 e 64 anexas ao Tratado de Lisboa. 278 Alemanha França Reino Unido e Itália Espanha Polónia Roménia Países Baixos Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria e Portugal Suécia Áustria Bulgária Dinamarca, Eslováquia e Finlândia Irlanda e Lituânia Letónia Eslovénia Chipre, Estónia, Luxemburgo e Malta 96 74 73 54 51 33 26 22 20 19 18 13 12 9 8 6 Esta distribuição dá um total de setecentos e cinquenta e um deputados, como impõe o artigo 14.°, n. o 2, UE. Todavia, de facto, o Parlamento Europeu, na atuallegislatura, de 2009-2014, tem setecentos e cinquenta e três deputados. Esta diferença tem uma explicação simples. Por um lado, quando o Tratado de Lisboa entrou em m Conclusões da Presidência, Anexo 4. 279 A União Europeia Os 6rgãos e as instituições da União Europeia vigor já tinham tido lugar, em junho de 2009, as eleições para a atual legislatura, de 2009-2014, do Parlamento Europeu. Ora, a Alemanha, pelo Tratado de Nice, elegeu, nessas eleições, noventa e nove deputados. Não era possível, pois, fazer cessar o mandato a três desses deputados. Aliás, ela foi o único Estado-membro a perder deputados por força da referida Decisão do Conselho Euopeu. Por outro lado, a França ficou a ter transitoriamente menos um deputado, ou seja, setenta e três deputados. Portanto, o Parlamento Europeu só no mandato de 2014-2019 terá setecentos e cinquenta e um deputados. Como se disse atrás, o critério da população é aplicado de modo degressivo. Assim, por exemplo, não obstante a Alemanha ter oito vezes a população portuguesa, não é essa a proporção que separa o número de deputados por Portugal e pela Alemanha: aquele tem vinte e dois deputados, esta, noventa e seis, ou, provisoriamente, noventa e nove. O mesmo vale para o confronto entre Portugal e Malta: Portugal tem vinte vezes a população de Malta, mas tem vinte e dois deputados, e Malta, seis. Chamamos a atenção para o facto de, com o alargamento de 2004-2007, o peso relativo dos Estados grandes no sistema de relação de poder no Parlamento ter diminuído substancialmente, porque aumentou bastante o peso dos Estados médios e pequenos. Assim, e olhando para o quadro que acabámos de mostrar, passámos a ter seis Estados grandes, até à Espanha e à Polónia, dez Estados médios, até à Áustria e à Bulgária, e entre os quais se situa Portugal, e Onze Estados pequenos, que são os outros. O Tratado UE prevê que os deputados tenham um mandato de cinco anos (artigo 14.°, n.o 3). O Regimento do Parlamento prevê esse modo de organização, no seu Capítulo IV, desde a Assembleia da CECA. Os grupos são constituídos em função das suas afinidades políticas. Hoje já não é possível compor um grupo político com deputados pertencentes a um só Estado-membro. Os grupos políticos são frequentemente constituídos no quadro de partidos políticos europeus. Note-se que o TFUE, no seu artigo 224.°, estimula a criação daqueles partidos. Os grupos políticos hoje existentes, depois das eleições de 2009, são os seguintes: 97. Os grupos políticos Uma das maiores singularidades do Parlamento Europeu no contexto internacional reside no facto de os deputados não se encontrarem organizados por delegações estaduais, mas sim por grupos políticos multinacionais. 280 PPE - Partido Popular Europeu (Democratas Cristãos) _ 271 deputados; S&D - Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas - 189 deputados; - ALDE - Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa _ 85 deputados; - Verdes-ALE - Os Verdes/Aliança Livre Europeia - 59 deputados; CRE - Conservadores e Reformistas Europeus - 52 deputados; - GUE/NGL - Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde - 34 deputados; - ELO - Europa da Liberdade e da Democracia - 34 deputados; há deputados não inscritos, que atualmente são 30. Os grupos políticos desempenham uma importante função na condução da política ao nível parlamentar e ao nível da União em geral, sobretudo quando se encontram organizados em partidos políticos. E é bom, sobretudo para os Estados médios e pequenos, ter deputados seus nas bancadas dos grandes partidos europeus ou dos grandes grupos políticos europeus. Dos partidos portugueses, o PSD e o CDS-PP têm deputados no PPE; o PS, na S&D; o Bloco de Esquerda e o PCP, no GUE/NGL. . 281 A União Europeia Não obstante toda essa importãncia, os grupos políticos não atuam em nome do Parlamento e, portanto, os seus atos não lhe são juridicamente imputáveis. Assim já decidiu o TJ316. 98. Competência o Parlamento Europeu é o órgão que mais viu os seus poderes reforçados ao longo de todos estes anos, seja através das revisões de 1985, de 1992, de 1997, de 2000 e de 2007 (isto é, pelo Tratado de Lisboa), seja pelos Tratados orçamentais de 1970 e 1975, seja, de modo menos formal, por via de práticas e de acordos interinstitucionais. Vamos ver os diversos tipos de competência que os Tratados atribuem ao Parlamento Europeu depois da revisão de Lisboa. Antes do Tratado de Lisboa, o essencial da competência do Parlamento encontrava-se referido no artigo 192.° CE. Agora, o essencial dessa competência está elencado no artigo 14.°, n.o I, UE. Dizemos o "essencial" da competência porque esse preceito carece, na sua análise e na sua concretização, de algumas precisões para apreendermos o conjunto global da competência do Parlamento Europeu e a sua importância. Assim, podemos classificar essa competência em quatro grandes categorias: a) competência legislativa; b) competência em matéria orçamental; Os órgãos e as instituições da União Europeia I - Competência legislativa A União possui um poder legislativo. Ou seja, pode-se falar na existência de uma função legislativa da União traduzida na atividade de elaboração de atos que materialmente têm carácter legislativo. O TJ reconheceu-o por diversas vezes, desde logo, quando afirmou a existência de um "sistema legislativo do Tratado""', de um "poder legislativo da Comunidade"'" e de um "legislador comunitário"320. Mas o poder legislativo da União não consiste num simile do poder legislativo do Estado. Por isso, também a competência legislativa do Parlamento Europeu não é homóloga da competência legislativa de um Parlamento estadual, como vamos ver. A competência legislativa do Parlamento Europeu traduz-se na sua participação na função legislativa da União. E essa participação assume manifestações muito diferentes. São elas: a) o poder de iniciativa legislativa indireta; b) o processo legislativo ordinário; c) o processo legislativo especial. Por confronto com as edições anteriores deste livro decidimos retirar da competência legislativa do Parlamento o processo de cooperação, ao qual o Tratado de Lisboa pôs termo32 '. Vamos examinar cada uma das referidas manifestações da competência legislativa do Parlamento Europeu. c) competência política; d) competência em matéria de relações internacionais. Vamos examinar uma a uma estas quatro categorias'!'. 316 Aç. 22-3-90, Jean-Marie Le Pen e Front national c. Parlamento Euro~ peu, Proe. C-20l/89, CoI., pgs. 1-1.183 e segs. 311 Dentro da bibliografia geral, veja~se esta matéria desenvolvida, já do Tratado de Lisboa, sobretudo, em RIDEAU, pgs. 392 e segs., JACQUÉ, pgs. segs., e VAN RAEPENBUSCH, pgs. 281 e segs. 282 a) Poder de iniciativa legislativa indireta Como veremos, o poder de iniciativa no processo legislativo cabe, em regra, à Comissão, através da apresentação de uma pro318 319 3llJ Ac. 17-12-70, Koster, Proc. 25/70, Rec., pgs. 1.161 e segs. Ac. 9-3-78, Simmenthal, Pme. 106/77, CoI., pgs. 629 e segs. Ac. 27-10-92, Alemanha c. Comissão, Proc. C-240/90, Rec., pgs. 1-5.383 e segs. 321 Assim, também lACQUÉ, pg. 431, e PRIOLLAUn/SIRITZKY, pgs. 65 e segs. 283 A União Europeia posta formal. Contudo, o TFUE confere um poder de iniciativa indireta, quer ao Conselho (artigo 241."), quer ao Parlamento Europeu (artigo 225.°). Ou seja, um e outro podem provocar a apresentação de urna proposta pela Comissão e esta, se se recusar a fazê-lo, deve fundamentar a sua recusa. b) Processo legislativo ordinário O processo legislativo ordinário chamava-se no Tratado CE, nas versões de Maastricht a Nice, processo de co-decisão, porque se traduz num processo de decisão conjunta do Parlamento Europeu e do Conselho. Ou seja, os dois co-legislam. Passou a chamar-se, com o Tratado de Lisboa, processo legislativo ordinário (artigo 289.° TFUE). Esse processo legislativo é assim designado porque se quis transformá-lo no processo comum ou geral de a União legislar, o que se traduziu num aumento significativo da competência do Parlamento Europeu no processo legislativo. Corno se disse, o processo de co-decisão foi introduzido no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht e depois alargado pelos Tratados de Amesterdão e de Nice. Até ao Ato Único Europeu, de 1986, os Tratados atribuíam, ao Parlamento Europeu só competência consultiva, se excluirmos a competência financeira e orçamental que lhe foi reconhecida pelos Tratados de Luxemburgo e Bruxelas, respetivamente, de 22 de abril de 1970 e de 22 de julho de 1975. O Ato Único criou o processo de cooperação entre o Parlamento, o Conselho e a Comissão para certas decisões relativas ao mercado interno, visando com isso associar mais estreitamente o Parlamento ao processo legislativo na medida em que ele, em primeira leitura, podia propor alterações a uma proposta da Comissão. Em caso de desacordo entre o Parlamento e o Conselho, este conservava o seu poder de decidir em última instância, como no processo legislativo clássico, embora no processo de cooperação tivesse, para o efeito, de deliberar por unanimidade. Portanto, naquele processo o Parlamento e o Conselho não estavam em pé de igualdade porque a última palavra cabia ao Conselho. 284 Os órgãos e as instituições da União Europeia Com a criação do processo de co-decisão no Tratado da União Europeia, pelo Tratado de Maastricht, e com o seu alargamento progressivo pelos Tratados de Amesterdão e de Nice, o processo de cooperação foi perdendo sucessivamente utilidade e, já com a revisão de Amesterdão, praticamente ficou limitado a algumas deliberações a tomar no âmbito da União Económica e Monetária (artigos 99.°, n." 5, 102.", n." 2, 103.°, n.o 2, e 106.°, n.O 2, CE, após a revisão de Amesterdão )322 Retomando o que estávamos a dizer do processo de co-decisão, ele veio dar satisfação a urna velha aspiração do Parlamento de dispor de um verdadeiro poder de decisão no plano legislativo. Com o poder de co-decisão, passou a haver atas comunitários que tinham de ser aprovados nos mesmos termos tanto pelo Parlamento Europeu corno pelo Conselho. Se persistisse um desacordo entre os dois, o Parlamento podia rejeitar o texto apresentado pelo Conselho. Por conseguinte - e esta era a grande diferença que separava o processo de co-decisão e o processo de cooperação até ao Tratado de Lisboa -, o Conselho, na co-decisão, deixava de ter a última palavra. O processo legislativo ordinário encontra hoje o seu regime jurídico definido no artigo 294.° TFUE. Remetem para ele, quase sempre de modo expresso, os preceitos do Tratado que exigem, para matérias concretas, o processo legislativo ordinário. Ele aplica-se a algumas das matérias que antes estavam sujeitas a um mero processo de consulta do Parlamento Europeu ou ao processo de cooperação, bem como a matérias novas criadas pelos Tratados de Maastricht, de Amesterdão, de Nice e de Lisboa. As matérias às quais se aplica a co-decisão, hoje chamada processo legislativo ordinário, têm vindo a aumentar progressivamente. O Tratado de Maastricht aplicava-a a quinze domínios; o Tratado de Amesterdão alargou-a a vinte e quatro novos casos; o Tratado de Nice veio 322 Uma lista completa dos casos de aplicação do processo de cooperação do artigo 252.° antes do Tratado de Amesterdão, elaborada pelo próprio Conselho em anexo ao seu Relatório sobre o Funcionamento da União Europeia, encontra-se publicada na RTDE 1995, pgs. 343 e segs. (366). Veja-se também SIMON, pgs. 175, nota I, e 176, nota J. 285 A União Europeia aplicá-lo a cinco novas matérias; agora, o Tratado de Lisboa somou-lhes quarenta novos casos 323 • É correto dizer-se que o Tratado de Lisboa generalizou o processo de co-decisão ao dar-lhe a qualificação expressiva de processo legislativo ordinário, o que tornou, portanto, a co-decisão no processo comum de legislar na União. Além disso, como bem se notava, por exemplo, no Comentário Constantinesco CE32', não havia, em bom rigor, simetria absoluta e igualdade, no processo de co-decisão, até ao Tratado de Lisboa, entre o Parlamento Europeu e o Conselho, dado que o Parlamento detinha o poder de impedir que o Conselho decidisse enquanto que só o Conselho tinha a faculdade de decidir. Ao contrário, agora, no processo legislativo ordinário, o Parlamento Europeu e o Conselho são colocados, finalmente, em pé de igualdade. Para tanto, foi determinante o Tratado de Lisboa ter substituído, no ex-artigo 251.° CE, o "parecer do Parlamento Europeu" pela "primeira leitura" perante o Parlamento. Ou seja, enquanto que pelo ex-Tratado CE a primeira leitura competia ao Conselho após parecer do Parlamento (ex-artigo 251.°, n.O 2, CE), agora a primeira leitura ocorre perante o Parlamento. Note-se, todavia, neste pequeno pormenor: a igualdade entre O Parlamento e o Conselho ainda não é total, porque o primeiro pode aprovar a posição do Conselho pela maioria dos votos expressos mas deve rejeitá-Ia pela maioria dos membros que o compõem - o que pode fazer uma grande diferença. Vejam-se os n." 7, c), e 13, par. 2, do artigo 294.° TFUE325. Todavia, e pondo de parte este ponnenor, mais do que acontecia no velho processo de co-decisão O Parlamento e o Conselho são agora, ambos, titulares ao mesmo nível do poder legislativo no processo legislativo ordinário, são ambos co-legisladores da União. Os atos legislativos aprovados por este processo são atos praticados Ver a lista exaustiva dos casos de processo legislativo ordinário em pgs. 366-367. '" Pgs. 657-658. 325 Neste sentido, também PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 367, onde também se encontra um resumo simplificado e sistematizado dos trâmites do processo legis~ lativo ordinário. 323 PRIOLLAUDISIRITZKY, 286 Os 6rgãos e as instituições da União Europeia "conjuntamente pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho" e são assinados pelos Presidentes dos dois órgãos (artigos 289.°, n.o I, e 297.°, n." I, par. I, TFUE). c) Processo legislativo especial O processo legislativo especial constitui uma inovação do Tratado de Lisboa (artigo 289.°, n.o 2, TFUE). Por especial, quer-se aqui significar que esse processo legislativo se afasta do processo legislativo comum da União, isto é, o processo legislativo ordinário, porque, ao contrário do que sucede neste, ele dá corpo a uma relação desequilibrada entre o Parlamento Europeu e o Conselho, embora os dois participem nessa relação. Dentro deste processo legislativo, são em muito maior número os casos em que o Conselho legisla com a participação do Parlamento Europeu em situação de inferioridade (isto é, através de aprovação ou de parecer do Parlamento) do que o contrário. Vejamos alguns exemplos da primeira situação: revisão simplificada dos Tratados (artigo 48.°, n.O 7, par. 3, UE); adesão à União de novos Estados-membros (artigo 49.° UE); saída de um Estado-membro da União (artigo 50.°, n.o 2, UE); medidas contra discriminações (artigo 19.°, n.O 1, TFUE); certos aspetos da política social (artigo 153.° TFUE); e exercício pelo Conselho do seu poder quase-constituinte (previsto no artigo 352.° TFUE). Ao contrário, são três os únicos casos em que o Parlamento legisla sozinho com a participação prévia do Conselho, mediante aprovação: o estatuto e as condições de exercício das funções dos deputados europeus (artigo 233.° TFUE); modalidades de exercício do poder de inquérito (artigo 266.° TFUE); e estatuto e condições gerais de exercício das funções do Provedor de Justiça Europeu (artigo 228.0 TFUE). Vamos estudar as duas formas pelas quais o Parlamento Europeu participa no processo legislativo especial em que é o Conselho que legisla. São eles o processo de consulta e o processo de aprovação. 287 A União Europeia c-I) Processo de consulta Na versão original dos Tratados, a proposta da Comissão, que, em regra, abria o processo legislativo, era dirigida ao Conselho, que a dava a conhecer, por um Jado, ao COREPER, para a preparação da decisão, e, por outro lado, ao Parlamento Europeu, para obter o seu parecer. Era esta, então, a única forma de participação do Parlamento Europeu no processo legislativo. Ela continuou a ter lugar quando os Tratados a impusessem e quando não estivesse prevista outra forma de participação do Parlamento naquele processo. Toda· via, nesta última hipótese, quando não estivesse prevista nos dos outra forma de intervenção do Parlamento Europeu no processo legislativo, o Parlamento foi obtendo progressivamente o direito de ser ouvido em matérias em que a sua consulta não era obrigatória à face dos Tratados, ou verbalmente, sobre as propostas da Comissão, ou por escrito, pelo Conselho. Nasceu, deste modo, um "costume constitucional"32', que ficou consagrado no Código de conduta celec brado entre a Comissão e o Parlamento em 9 de março de 1995327 • O Tratado de Lisboa substituiu a referência ao "parecer Parlamento Europeu" por "consulta ao Parlamento Europeu". Esta . consulta é imposta em cerca de cinquenta casos. Nos casos em que seja obrigatório o Parlamento Europeu ser consultado previamente pelo Conselho ou ser informado previa. r mente da proposta da Comissão, o desrespeito por essa formalidade" gera a ilegalidade do ato legislativo, por violação de uma formali; . dade essencial'28. Se, após o Parlamento Europeu ter sido consultadói pelo Conselho, o projeto de ato legislativo for substancialmente modificado em consequência de alterações sobre as quais o Parlac pg. 172. m Ver esse Código in RTDE 1995, pg. 338. 323 Já assim se pronunciou o TJ quanto à não consulta do PaJ'lanlem\\\ Europeu pelo Conselho: Aes. 29-10-80, Roquette, Proe. 138179, Rec., pg. 2-3-94, Parlamento Europeu c. ConsellIo,.Proe. nO C-316/91, Col., pgs. e segs. Os órgãos e as instituições da União Europeia mento Europeu não fora ouvido, este tem direito a voltar a ser ouvido sobre o projeto dessa forma modificado'29. Por sua vez, o Parlamento Europeu, quando consultado pelo Conselho, deve emitir o seu parecer em prazo razoável de modo a perm~tir ao Conselho deliberar em tempo útil. A tant; o impõe o pnnClplO da colaboração leal entre aqueles dois órgãos33". No exercício da competência que aqui estamos a analisar, o parecer do Parlamento Europeu não vincula o Conselho. Contudo, se este não seguir o parecer daquele, deve fundamentar a sua deliberação. c-II) Processo de aprovação . ? Ato Único Europeu veio admitir, pela primeira vez, a particlpaçao do Parlamento Europeu no processo legislativo traduzida na emissão de um parecer vinculativo ou conforme, dirigido ao Conselho. Por vezes esse parecer era designado de parecer "favorável". O Tratado de Maastricht, mais tarde, alargou o número de casos em que o Parlamento Europeu tinha de emitir um parecer conforme. Nesses casos, o Conselho, para além de ter de ouvir previamente o Parlamento Europeu, tinha de seguir o parecer deste. Ou seja, o parecer do Parlamento Europeu tinha força vinculativa. O Conselho é que praticava o ato legislativo, mas era obrigado a decidir no sentIdo do parecer do Parlamento Europeu, por isso chamado de parecer confonne. O Parlamento dispunha, então, de um verdadeiro direito de veto: se o seu parecer fosse negativo, o Conselho podia aprovar o projeto de ato legislativo. O Tratado de Lisboa, para além de aumentar o número de casos em que o Parlamento Europeu intervém desta forma no pro- 326 SIMON, 288 Ae. TJ 16-7-92, Parlamento c. Conselho, Pme. C-65/90, Cal., pgs. e segs. 329 330 Ae. TJ 30-3-95, Parlamento Europeu c. Conselho, Pme. C-65/93, Col, 1-643 e segs., todavia, com conclusões em sentido contrário do Advogado- TESAURO. 289 A União Europeia cesso legislativo, deixou de falar em parecer conforme ou parecer favorável para falar em "aprovação". A diferença não é despicienda: em Direito Administrativo o parecer é um ato opinativo, a aprovação é um ato integrativo331 • Mas os efeitos de um parecer conforme ou de uma aprovação prévia do Parlamento Europeu sobre a competência do Conselho para decidir são os mesmos: o Conselho, para decidir, tem de o fazer no sentido da aprovação previamente concedida pelo Parlamento. Repete-se, o Parlamento tem aqui um verdadeiro direito de veto. Este direito só não toma assimilável este processo ao processo legislativo ordinário porque, no processo legislativo especial, o Parlamento Europeu não tem o poder de introduzir emendas no projeto de ato do Conselho, nem este ato nos aparece como um ato conjunto dos dois órgãos, mas sim, como um ato do Conselho. Ao longo dos Tratados UE e TFUE ver-se-á que são muitos casos importantes em que eles adotam o processo de aprovação Parlamento. Destacamos, a título de exemplo, a verificação da tência de um risco manifesto de violação grave dos valores ref'eridos no artigo 2.° UE por um Estado-membro (artigo 7.°, n.o I, UE); o exame do pedido de adesão de um Estado à União (artigo 49.°, par. I, UE); a celebração com um Estado-membro do acordo da sua retirada voluntária da União (artigo 50.°, n.o 2, UE); a cooperação. judiciária em matéria penal (artigo 82.° TFUE); a celebraçãodef. acordos internacionais pela União, incluindo o acordo da sua adesão,;" à CEDH (artigo 218.°, n.O 6, TFUE); o quadro financeiro plurianuª,l (artigo 312.°, n.o 2, TFUE); o alargamento dos poderes dos órgãos da União (artigo 352.°, n.o I, TFUE)3J2. c>; Quando a aprovação pelo Parlamento Europeu é exigida pelos Tratados, o ato legislativo praticado pelo Conselho sem a observâJF', cia da formalidade dessa aprovação, ou em sentido divergente dª,' aprovação, é ilegal e, por isso, é contenciosamente recorrfvel para ,c> Tribunal de Justiça nos termos dos artigos 263.° e 264.° TFUE. ' 331 Ver FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vaI. II, 2:~~:} Coimbra, 20 li, pgs. 296 e segs. e 302 e s e g s . , : m Uma lista exaustiva dos casos do processo de aprovação encontram~~~ em PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 66. 290 Os órgãos e as instituições da União Europeia II - Competência financeira e orçamental Depois do Tratado de Lisboa, não é possível estudar-se o Orçamento anual da União, regulado na Parte VI, Título II, Capítulo 3 do TFUE (artigo 313.° e seguintes), sem se compreender o Quadro financeiro plurianual da União (o Capítulo que imediatamente antecede o Capítulo citado do TFUE, isto é, o Capítulo 2 _ artigo 312.°). Segundo o artigo 312. 0, n.° I, par. I, "O quadro financeiro plurianual destina-se a garantir que as despesas da União sigam uma evolução ordenada dentro dos limites dos seus recursos próprios". Isto é, ele disciplina a aplicação, por um longo período de tempo, dos recursos próprios da União, aos quais se refere o artigo 311.0 TFUE, às suas despesas. O Quadro financeiro plurianual é definido para um período de, pelo menos, cinco anos. O Orçamento anual tem de respeitar o Quadro financeiro plurianual (artigo 312.°, n.o I, pars. 2 e 3). A regulamentação do Quadro financeiro plurianual nos Tratados é nova. Por isso, O artigo 312.° TFUE também é novo. Esse Quadro dá corpo nos Tratados à prática das "perspetivas financeiras", que vigora desde 1988 através do Acordo interinstitucional de 29 de junho desse ano e que ficou conhecido por Plano Delors I. Esse Plano previa, pela primeira vez, um sistema de disciplina plurianual de despesas comunitárias sob a forma de perspetivas financeiras para um período de cinco anos, isto é, 1988-1992. O Plano Delors II, aprovado pelo Conselho Europeu de Edimburgo, em dezembro de 1992, já foi elaborado para um período superior, de sete anos (1993-1999). O Tratado de Lisboa alterou substancialmente esse regime. O Quadro financeiro anual, como dispõe o n.o 2 do artigo 312.° TFUE, passa a ser elaborado por um processo legislativo especial, sendo estabelecido por um regulamento do Conselho, adotado por este por unanimidade, após aprovação pelo Parlamento Europeu por maioria dos membros que o compõem (e não apenas pela maioria dos sufráexpressos). Já se vai aqui mais longe na participação do Parlamento Europeu do que na definição do sistema dos recursos que é objeto de um processo legislativo especial onde o 291 A União Europeia Parlamento so e consultado (citado artigo 311.°, par. 2, TFUE). Todavia, na execução desse sistema de recursos próprios a intervenção do Parlamento dá-se segundo um processo de aprovação, aqui por maioria dos votos expressos (artigo 311.°, par. 3, TFUE). As últimas perspetivas financeiras adotadas foram-no para o período de 2007 a 2013 333 . Portanto, só depois de expirado esse período é que se aplicarão as novas disposições do artigo 312.° TFUE para a adoção do novo Quadro financeiro plurianual, que exigem a aprovação do Parlamento antes do ato legislativo do Conselho. Resta apenas acrescentar que o n.O 5 do artigo 312.° impõe ao Parlamento Europeu, ao Conselho e à Comissão, na adoção do Quadro financeiro plurianual, o respeito pelo princípio da recíproca cooperação leal, que, como já estudámos, se encontra definido, como princípio constitucional da União, no artigo 13.°, n.o 2, UE. Passemos agora à competência do Parlamento Europeu no processo legislativo da adoção do Orçamento anual, hoje regulado nos artigos 313.° e 314.° TFUE. Tomando-se como ponto de partida o Tratado de Roma, de 1957, essa competência foi alargada pelo Tratado do Luxemburgo, de 22 de abril de 1970, e, depois, pelo Tratado de Bruxelas, de 22 de julho de 1975, o que ficou a dever-se à substituição das contri' buições financeiras dos Estados-membros às Comunidades pela criação de recursos próprios da União (citado artigo 311.° TFUE, ex-artigo 269.°, par. I, CE, na versão de Nice). Mais tarde, diversos acordos interinstitucionais concluídos entre o Parlamento Europeu,; o Conselho e a Comissão vieram facilitar e simplificar o proce" dimento orçamental. Foi o caso, mais recentemente, do AcordQ . interinstitucional de 6 de maio de 1999 sobre a disciplina orçamenc tal e o melhoramento do procedimento orçamental, que está elXf< vigor desde I de janeiro de 2 0 0 0 . > ; : O Tratado de Lisboa veio alterar profundameute o procedi. mento de elaboração do Orçamento. Este procedimento assentav~,;. m Ver os pormenores dessas perspetivas financeiras em PRIOLLAúóY'" /SIRITZKY, pg. 384. 292 Os órgãos e as instituições da União Europeia desde o citado Tratado de 1975, na distinção entre despesas obrigatórias (DO) e despesas não obrigatórias (DNO). Confinemo-nos ao Tratado CE, na versão de Nice. Com base no anteprojeto de orçamento, que era elaborado pela Comissão fundando-se nas previsões das respetivas despesas apresentadas por todos os órgãos da Comunidade antes de I de julho, era o Conselho quem preparava o projeto de orçamento e o submetia ao Parlamento Europeu (ex-artigo 272.0, n." I, 2 e 3, CE). Era o Conselho que tinha a última palavra sobre as DO enquanto que era ao Parlamento Europeu que os Tratados conferiam competência para deliberar em definitivo sobre as DNO (o mesmo ex-artigo 272.°, n."' 4 a 9). Ao contrário do que sucedia em 1975, durante a vigência do Tratado de Nice as DNO eram de montante superior às DO, em virtude de aquelas englobarem os fundos estruturais e de estas últimas terem diminuído com a redução das despesas agrícolas. Em qualquer caso, era o Parlamento que aprovava, em definitivo, o Orçamento (ex-artigo 272.°, n.o 7, CE). Mas ele podia também rejeitá-lo. Nesse caso, devia rejeitar o Orçamento em globo (como o fez em 1980 e em 1985), pedindo ao Conselho que lhe apresentasse um novo projeto de Orçamento (ex-artigo 272.°, n.o 8, CE). Já no referido Acordo interinstitucional de 1999 era abandonada, no procedimento orçamental, a distinção entre as DO e as ONO. O Tratado de Lisboa eliminou em definitivo essa distinção entre as DO e as DNO e reformulou por completo o procedimento orçamental no novo artigo 314.° TFUE. No par. I desse artigo, estabelece-se que o Orçamento é elaborado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho através de um processo legislativo especial, disciplinado nesse artigo. Todavia, esse procedimento, tal como está regulado no artigo 314.° TFUE, nalguns momentos aproxima-se do processo legislativo ordinário, ou processo de co-decisão entre aqueles dois órgãos. Depois de a Comissão elaborar o projeto de Orçamento (e já não o Conselho, como acontecia antes), a eliminação da distinção entre as DO e as ONO levou a um aumento significativo da competência do Parlamento Europeu. Numa aproximação ao processo 293 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia legislativo ordinário, há uma leitura perante o Parlamento e o Conselho, o que torna o procedimento mais rápido, porque o regime geral do processo legislativo ordinário prescreve duas leituras perante aqneles órgãos. Na fase final do processo legislativo especial, caso o Parlamento, por maioria dos seus membros, rejeite o projeto comum de Orçamento ao qual chegou o Comité de Conciliação, a Comissão deve apresentar um novo projeto de Orçamento, o que significa que a rejeição vale como uma rejeição global. Todo o procedimento orçamental volta, portanto, ao início. Ao contrário, se o Conselho rejeitar o projeto comum de conciliação, o Parlamento Europeu pode, mesmo assim, adotá-Io, desde que delibere por uma dupla maioria: maioria dos membros que o compõem e três quintos dos votos expressos (artigo 314.°, n.o 7, TFUE). Não obstante o próprio Tratado estipular, como vimos, que este processo de aprovação do orçamento é um processo legislativo especial, há quem, como PRIOLLAUD e SIRITZKy334, veja nele uma manifestação do processo de co-decisão, ou processo legislativo ordinário, em que o Parlamento e o Conselho estão "em pé de ignaldade", embora com uma especificidade formal já referida: uma única leitura em cada um desses órgãos e uma duração curta do processo. Nós discordamos dessa opinião. Quer em função da letra do corpo do referido artigo 314.°, quando se refere expressamente ao "processo legislativo especial", quer em função da prevalêncià que esse preceito confere ao Parlamento em caso de divergência entre o Parlamento e o Conselho, parece-nos que é excessivo dizer-se que os dois estão neste processo legislativo "em pé igualdade". Por isso, é legítimo concluir-se que o processo legisla' tivo pensado para o efeito foi mesmo um processo especial e não processo ordinário. Melhor dito: é um processo legislativo '''IP~';j<U com forte participação do Conselho, mas no qual ao Parlrumento pode vir a caber a última palavra. Aliás, só assim é que se compreende que, a final, o Orçamento não seja apresentado como ato de co-legislação dos dois órgãos, mas sim como um ato do lamento Europeu (artigo 314.°, n.O 9, TFUE). A execução do Orçamento compete à Comissão, em cooperação com os Estados-membros (artigo 317.° TFUE). Todavia, o Parlamento Europeu e o Conselho fiscalizam essa execução (artigo 318.° TFUE), da qual o Parlamento Europeu dá quitação à Comissão (artigo 319.° TFUE). O controlo financeiro da execução do Orçamento cabe ao Tribunal de Contas (artigo 287.° TFUE). 334 Pg. 386. 294 III - Competência política Como órgão eleito por sufrágio direto e universal dos cidadãos dos Estados-membros, e, portanto, expoente máximo da ideia de Democracia no sistema institucional da União, o Parlamento Europeu goza, desde o Tratado de Roma, de importante competência política. O Tratado da União Europeia veio alargar essa competência. Agora, o Tratado de Lisboa introduziu no TUE e no TFUE modificações que ainda mais aumentaram os poderes políticos do Parlamento. Essa competência política apresenta duas manifestações: a) competência para a designação e a investidura da Comissão; b) competência de controlo político. a) Competência para a designação e a investidura da Comissão Dentro da competência política do Parlamento Europeu merece destaque, antes de mais, a sua competência para designar a Comissão. O Tratado de Lisboa reforçou também nesta matéria a competência do Parlamento no novo artigo 17.° UE. Antes de mais, ele elege, por maioria dos membros que o compõem, o candidato a Presidente da Comissão proposto pelo Conselho Europeu, deliberando por maioria qualificada. Caso o candidato não obtenha no Parlamento a maioria de votos necessária, o Conselho Europeu indica, por igual maioria, um novo candidato, para ser 295 A União Europeia eleito pelo Parlamento pela mesma maioria da primeira eleição (artigo 17.°, n.o 7, par. I, UE). Mas o Parlamento Europeu também investe a Comissão como órgão colegial. De facto, e em conformidade com o artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, o Presidente, o Alto Representante, enquanto Vice-Presidente da Comissão, e outros membros da Comissão, neste caso depois de escolhidos por mútuo acordo entre o Conselho e o Presidente eleito, nos termos do mesmo artigo 17.°, n.o 7, par. 2, UE, são sujeitos à aprovação do Parlamento Europeu. Trata-se, de facto, de uma investidura da Comissão, como órgão colegial, pelo Parlamento Europeu. Esta competência para a designação e a investidura da Comissão vai-se aproximando cada vez mais da competência de um parlamento estadual para investir o respetivo governo. b) Competência de controlo político Mas o Parlamento Europeu exerce também, dentro da sua competência política, um importante controlo político sobre a atuação de outros órgãos da União. Assim: antes de mais, ele exerce um controlo geral sobre a atividade executiva dos órgãos da União. Ele pode colocar questões, escritas e orais, ao Conselho Europeu, à Comissão, ao Conselho e ao Alto Representante (artigo 36.°, par.' 2, UE, e artigo 230.°, pars. 2 e 3, TFUE). A Comissão tem de lhe apresentar um relatório geral anual sobre a atividade da União (artigos 233.° e 249.°, n.o 2, TFUE). Como vimos já, o Parlamento Europeu fiscaliza a execução do Orçá'. mento pela Comissão (artigo 319.° TFUE). O Conselho;. Europeu submeter-Ihe-á um relatório na sequência de cad~. uma das suas reuniões (artigo 15.°, n.O 6, d, UE). O Altq: Representante informá-Io-á regularmente sobre a evoluçã da Ação Externa (artigo 36.°, par. 1, UE); ele exerce um específico controlo político direto sobre;a atividade da Comissão. Pode fazer cessar o seu mandatá; 296 Os órgãos e as instituições da União Europeia inclusive do Alto Representante, aprovando uma moção de censura contra ela, desde que esta reúna a dupla maioria que os Tratados exigem (artigo 234.° TFUE)3J5; todo o cidadão europeu, no quadro da cidadania da União, bem como qualquer outra pessoa, singular ou coletiva, com residência ou sede num Estado-membro, goza de um direito de petição junto do Parlamento Europeu, nos termos do artigo 227.° TFUE, como estudámos atrás; - um Provedor de Justiça Europeu, eleito pelo Parlamento Europeu, tem competência para receber queixas de qualquer cidadão da União, bem como de qualquer outra pessoa, singular ou coletiva, com residência ou sede num Estado-membro, relativas a atos de "má administração" de qualquer órgão, instituição ou organismo da União, com exceção do TJ e do TPI no exercício das respetivas funções jurisdicionais, de harmonia com o disposto no artigo 228.°, n. ° I, TFUE. Também esta matéria já foi por nós estudada. O Provedor de Justiça pode ser exonerado pelo TJ se o Parlamento Europeu o requerer, nas condições estabelecidas pelo artigo 228.°, n.o 2, par. 2, TFUE; - em caso de infração, ou de má administração, na aplicação do Direito da União, o Parlamento Europeu pode constituir uma comissão de inquérito temporária, exceto se algum tribunal estiver, e enquanto estiver, ocupado com os factos alegados (artigo 226.° TFUE). Merece referência especial o caso do Eurogrupo. Este não é um órgão da União. Ele consiste na reunião informal dos Ministros das Finanças da Zona Euro e está, como tal, previsto no artigo 137. 0 TFUE, que nos remete para o Protocolo relativo ao Eurogrupo, anexo ao Tratado. Não obstante O seu carácter informal, o Eurogrupo tem um Presidente eleito por si próprio por dois anos e meio. Aescolha do Presidente foi antecipada com a eleição de JEAN-CLAUDE JUNCKER, Primeiro-Ministro do Luxemburgo, para iniciar o seu man335 Ver infra, n.o 119. 297 A União Europeia dato em I de janeiro de 2005. Essa eleição tem sido sucessivamente renovada. Ora, como se vê pelos artigos 136.° e 138.° TFUE, o Parlamento Europeu foi posto totalmente à margem do Eurogrupo, cuja principal missão não pode ser menosprezada: como reconhece o artigo 138.° TFUE, ela consiste em "garantir a posição do euro no sistema monetário internacional". IV - Competência em matéria de acordos internacionais A conclusão de acordos internacionais pela União (entendendo-se por acordos internacionais aqui, diga-se desde já, o que para a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, são tratados internacionais, portanto, tanto os tratados solenes como os acordos em forma simplificada) encontra-se hoje regulada no artigo 218.° TFUE. De harmonia com esse artigo, o Conselho tem um papel determinante na celebração desses acordos: é ele que autoriza a abertura das negociações, define as diretrizes da negociação, autoriza a assinatura e celebra os acordos (n.o 2 desse artigo 218.°), podendo também autorizar a aplicação provisória de um acordo antes da sua entrada em vigor (artigo 218.°, n.o 5, in fine) ou a suspensão da aplicação de um acordo que já entrou em vigor (artigo 218.°, n.O 9). A intervenção do Parlamento Europeu na conclusão de acordos internacionais tem vindo a aumentar progressivamente desde o Tratado de Roma. Este contentava-se com exigir a intervenção do Parlamento Europeu apenas em relação aos acordos de associação, sob a forma de um parecer posterior à assinatura dos acordos. Mais tarde, porém, o Parlamento Europeu viu-lhe atribuído poder de ser informado ao longo de todo o exercício do ius tractuum da CEE, tanto em relação aos acordos de associação, como aos acordos comerciais ou económicos com Estados terceiros entretanto, se iam multiplicando e assumindo diferentes formas conteúdos. Nos termos do procedimento conhecido por terterp" (nomes dos dois Presidentes do Conselho que o sulbs<:re've298 Os órgãos e as instituições da União Europeia ram em nome do Conselho)'36, o Parlamento Europeu passou a ser informado sobre o conteúdo do projeto de acordo, pelo que passou a poder pronunciar-se sobre ele, em sessão plenária, mesmo antes da abertura das negociações. Além disso, ao Parlamento foi dado o poder de acompanhar as negociações e de ser informado do conteúdo do acordo assinado, ainda antes da sua conclusão"'. O Ato Único Europeu foi mais longe, ao conceder ao Parlamento Europeu um verdadeiro direito de veto quanto aos acordos de associação, sob a forma de um parecer favorável aprovado pela maioria absoluta dos seus membros (artigo 238.°, par. 2, CE, na redação dada pelo AUE). Cedo se percebeu que esta exigência era excessiva e difícil de preencher"'. Por isso, o Tratado de Maastricht retirou daquele preceito a intervenção do Parlamento. O Tratado de Amesterdão sentiu, por isso, a necessidade de codificar a competência do Parlamento Europeu em matéria de conclusão de acordos internacionais. E veio aumentar a sua competência na matéria. Fê-lo no então artigo 300.° CE. Assim, segundo o n.o 3, par. 2, desse artigo, alguns acordos ficaram sujeitos, antes da sua conclusão pelo Conselho, a um parecer favorável do Parlamento: os acordos de associação, previstos no artigo 310.° CE, na versão de Nice, os acordos que criavam um quadro institucional específico ao organizarem processos de cooperação, os acordos com implicações orçamentais sensíveis para a Comunidade'39 e os acordos que implicassem uma modificação de um ato aprovado de harmonia com o processo de co-decisão. A esses acordos havia que acrescentar, por força do ex-artigo 49. ° UE, os acordos de adesão de novos Estados-membros. Quanto a todos os outros acordos vigorava a regra geral, ou seja, eles careciam de um prévio parecer, que não tinha de ser favorável ou conforme, do Parlamento. Isto é, o Conselho não os podia celebrar sem obter um prévio parecer do Parlamento. Essa PE 62.937, de 8-2-1980. m Veja-se, sobre esta matéria, SIMON, pg. 286, e ISAAC, pg. 79. 33B Veja-se, sobre a primeira aplicação desse direito de veto, SILVESTRO, Les CEE-Israel. RMC 1990, pgs. 462 e segs. 339 Cuja natureza jurídica foi definida pelo TJ no seu Ac. 25-2-99, Parlamento c. Conselho, Procs. C-164 e 165/97, CoI., pgs. 1-1.139 e segs. 336 299 A União Europeia regra só não vigorava para os acordos comerciaiS celebrados a coberto do artigo 133.° CE, na versão de Nice, muito numerosos, é certo, mas também de importância menor, e quanto aos quais não era exigida qualquer intervenção do Parlamento Europeu. O Tratado de Nice aumentou os poderes do Parlamento Europeu quanto aos acordos internacionais da CE, ao conferir-lhe o poder de requerer previamente o parecer do TJ sobre a compatibilidade de um projeto de acordo com as disposições do Tratado CE, implicando um parecer negativo do Tribunal ou o abandono do projeto de acordo ou a revisão do Tratado. Esse poder encontrava-se até então reservado apenas ao Conselho, à Comissão e aos Estados-membros (ver o novo n.o 6 do ex-artigo 300.° CE)'40-34l. O Tratado de Lisboa veio reforçar substancialmente a competência do Parlamento Europeu na celebração de acordos internacionais pela União. Como se disse, é o artigo 218.° TFUE que condensa hoje a disciplina da celebração desses acordos. Continua a ser o Conselho a ter um papel decisivo na matéria: é ele quem autoriza a abertura das negociações para a celebração do acordo, quem define as diretrizes da negociação, podendo dirigi-Ias diretamente ao negociador, que pode ser aconselhado por um comité especial criado pelo Conselho para o efeito, é ele quem autoriza a assinatura do acordo e quem celebra o acordo, podendo, no momento da celebração do acordo, conferir ao negociador poderes, , porventura sujeitos a condições que ele fixar, para aprovar, em nome da União, alterações ao acordo, e, podendo, inclusivamente, decidir a aplicação provisória do acordo antes da sua entrada em vigor oua suspensão de um acordo já em vigor (artigo 218.', n." 2 a 7 e 9). Todavia, passa a ser necessária a aprovação do Parlamentcj'para a celebração, além dos acordos referidos desde o Tratado de Amesterdão e acima indicados, também dos acordos que englobelIl. matérias às quais se apliquem o processo legislativo ordinário, OU\) processo legislativo especial quando seja exigida aprovação d 340 Sobre a dimensão desta modificação do Tratado CE, ver, por todqs, e Comentário Streinz, anotações ao preceito em caus~ Sobre este regime veja-se, especialmente, COSTA, BLUMANN e LOUI GRABlTZ/HILF/NETIESHEIM 341 /W AELBROEK. 300 Os órgãos e a!i instituições da União Europeia Parlamento Europeu (artigo 218.', n.o 6, a-v, TFUE); passa a ser necessária a aprovação do Parlamento para o acordo de adesão da U~ião à ~onvenção Europ~ia dos Direitos do Homem (artigo 218.", n: 6, a, 11, TFUE); contranamente ao que resultava, como acima se disse, desde o Tratado de Amesterdão, do ex-artigo 133.' CE, na versão de Nice, o Parlamento passa a intervir também quanto aos acordos comerciais da União, celebrados no âmbito da política comerciai comum, e através de medidas aprovadas pelo Parlamento e pelo Conselho mediante o processo legislativo ordinário (artigo 207.°, n.o 2, TFUE); quanto a todos os demais acordos (exceto os relativos à PESC, quanto aos quais, por serem celebrados no quadro de um pI!ar I?terg~vernamental, o Parlamento não tem qualquer mtervençao), e eXigido parecer, ainda que não conforme, do Parlamento, embora o Conselho possa celebrar o acordo, caso o Parlamento se não pronuncie dentro do prazo fixado, para o efeito, pelo Conselho (artigo 218.°, n.O 6, b, TFUE). Tudo isto confirma, portanto, que a competência do Parlamento quanto aos acordos da União, como atrás dissemos, aumentou muito significativamente. Não há hoje qualquer acordo celebrado pela União no âmbito do primeiro pilar quanto ao qual o Parlamento esteja impedido de intervir. Além disso, o Parlamento tem o direito de ser imediata e plenamente informado em todas as fases do processo de conclusão de qualquer acordo internacional (artigo 218.°, n.O lO, TFUE). A competência do Parlamento nesta matéria é muito semelha~t: à dos Parlamentos nacionais: veja-se, por exemplo, a ConslitUlçao Francesa, no seu artigo 53. '. Todavia, sublinhe-se que, em matéria de acordos internacionais, a competência dos parlamentos nacionais no processo de conclusão de acordos internacionais relativos à PESC e à CPJMP ao contrário, diminuiu com o Tratado de Lisboa, suscitando event~ais com as Constituições nacionais. De facto, O artigo 24.° no seu n.o 5, na versão de Nice, estabelecia que "Nenhum acordo vinculará um Estado cujo representante no Conselho declare que esse acordo deve obedecer às normas constitucionais do re~petivo Estado; os restantes membros do Conselho podem decidir que o acordo será, contudo, provisoriamente aplicável" (itá301 A União Europeia lico nosso). Ao abrigo deste preceito, por exemplo, só a França e a Grécia não consultaram os respetivos parlamentos quando da conclusão de acordos de entreajuda judiciária com os Estados Unidos, em 25 de junho de 2003, numa Europa de Quinze. Esse preceito do TUE foi eliminado pelo Tratado de Lisboa no atual artigo 37.° UE, que veio substituir o ex-artigo 24.° UE. O Tratado de Lisboa mantém a competência, que, como se viu, o Tratado de Nice veio conferir ao Parlamento Europeu, de requerer previamente o parecer do TJ sobre a compatibilidade do seu projeto de acordo com os Tratados (artigo 218.°, n.o 11, TFUE). Quanto aos acordos mistos, que os Tratados institutivos das Comunidades e da União conheciam desde o início, à partida parece que o Tratado de Lisboa lhes pôs termo ao eliminar o ex-artigo 133.°, n.O 6, par. 2, infine, CE. Todavia, não se poderá negar a sua sobrevivência desde que descubramos casos, ao longo dos Tratados, em que se encontrem reunidos os elementos constitutivos do seu conceito342 • § 2.' o Conselho Europeu Bibliografia especial: E. 1975, pgs. 3 e segs.; P. NOEL, DE SCHOUTHEETE, Le Conseil européen, La coopération politique euro~ péenne, 3.' ed., Bruxelas, 1986; W. WESSELS e S. BULMER, Tile European Council, Londres, 1987; l.-P. lACQUÉ e D. SIMON, The constitutional an~ juridical role of the European Council, in l. M. Hoscheit e W. Wessels (eds.), The European Councit 1974-1986: Evolution and Perspectives, . Maastricht, 1988, pgs. 113 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Cansei! elfro:'T péen, in Répertoire Communautaire, Paris, 1992; J. WERTS,TJ,.{, European Council, Amesterdão, 1992; B. TAULEGNE, Le Consei! euro~ péen, Paris, 1993; H. J. GLAESNER, The European Council, Essa}'s Schermers, vaI. II, pgs. 101 e segs.; F. CAPOTORTI, Le statutjuridique,du" Canseil européell à la lumiere de l'Acte unique eurapéen, Libe.t::.' Pescatore, pgs. 79 e segs.; F. HAYES-RENSHAW e H. W ALLACE, The Catincil of Ministers, Nova Iorque, 1997, pgs. 158 e segs.. Os órgãos e as instituições da União Europeia 99. Génese O Conselho Europeu não se encontrava previsto nos Tratados institutivos das Comunidades. Em bom rigor, ele nasceu da institucionalização das Cimeiras de Chefes de Estado e de Governo, que tiveram lugar em Paris e em Bona, em 1961, em Roma, em 1967, na Haia, em 1969, em Paris, em 1972, em Copenhaga, em 1973, e, outra vez, em Paris, em 1974343 • Na última dessas Cimeiras, por proposta da França, através do seu Chefe de Estado, VALÉRY GISCARD D'EsTAING, ficou decidido344 que o Chefe de Estado francês e os Chefes de Governo dos outros então oito Estados-membros, acompanhados dos respetivos Ministros dos Negócios Estrangeiros, se reuniriam regularmente três vezes por ano, para avaliar e impulsionar, tanto a integração europeia, como a cooperação política entre os Nove. Seria só com o Ato Único Europeu que essas Cimeiras passariam a ter fundamento jurídico nos Tratados, quando o seu artigo 2. ° passou a referir-se ao "Conselho Europeu" e veio estabelecer que ele tivesse, pelo menos, duas reuniões ordinárias por ano. Todavia, a composição do Conselho Europeu, tal como esse preceito do AUE a previa, não coincidia com a dos intervenientes nas referidas Cimeiras, porque ele dispunha que o Conselho Europeu fosse composto não só pelos Chefes de Estado ou de Governo (assistidos pelos respetivos Ministros dos Negócios Estrangeiros) como também pelo Presidente da Comissão (assistido por um membro da Comissão), acolhendo, desse modo, e em síntese, a Declaração de Estugarda, de 19 de junho de 1983, sobre a União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu 34'. Essa Declaração aparecia, aliás, expressamente referida no primeiro considerando do preâmbulo do AUE como uma das suas fontes. Ver RIDEAU, pgs. 391 e segs. Ver o comunicado final da Cimeira, Bull. CE 12n4, ponto 27. '" Bul/. CE 6/83. 343 344 342 Sobre os acordos mistos, ver infra, 188-I1. 302 303 A União Europeia Mais tarde, o TUE viria a acolher em definitivo esse órgão no artigo D (artigo 4.°, na versão de Nice) das snas "Disposições comuns"346. O Tratado de Lisboa, como vamos ver de seguida, veio conce. der-lhe uma importância maior na orgânica da nova União Europeia que veio criar. 100. Estatuto e competência Por vezes, há a tentação de se considerar o Conselho Europeu como uma modalidade especial do Conselho, designadamente ao nível em que O Conselho atua como Conselho de Chefes de Estado e de Governo. Mas é um erro fazê-lo. Em boa verdade, o Conselho Europeu não pode ser confundido com O Conselho, mesmo considerando este ao nível referido. E por mais do que uma razão. Em primeiro lugar, pela sua composição. Recorde-~e que o artigo 16.°, n.o 2, UE, exige que o Conselho, a qualquer mvel, seJ~ composto por um representante de cada Estado-membro, a níveV; ministerial, e com poderes para vincular o Governo desse Estado-. -membro. Ora, o Conselho Europeu, entre os seus membros, incluí': o seu Presidente, que é eleito pelo próprio órgão colegial, o Pres!; dente da Comissão e o Alto Representante da União para os Negq; cios Estrangeiros e a Política de Segurança, também ele eleito peI9. Conselho Europeu (artigo 15.°, n.o 2, U E ) . . : Em segundo lugar, e em consequência, aliás, do que se acab~ de dizer, o regime jurídico que preside ao Conselho Europeu e aq Conselho, mesmo quando este se reúne com Chefes de Estado ou:: Governo, é um regime totalmente diferente, que faz do Consel Europeu e do Conselho dois órgãos completamente distintos e~ si. De facto, enquanto que o Conselho se rege pelas regras que n. Tratados disciplinam com pormenor o funcionamento do Conse!!! 346 Ver Comentário Constantinesco CE, pg. 75, GRABrIZ/]HILF/NETTESH!".~ anotações ao artigo 15. 0 UE, e RlDEAU, loco cito 304 Os órgãos e as instituições da Uniiio Europeia o Conselho Europeu nunca se regula por aquelas regras mas por outras que lhe são próprias e específicas. Até ao Tratado de Lisboa o Conselho Europeu distinguia-se do Conselho por um outro traço: ele não figurava no elenco das "instituições", isto é, órgãos principais, que constava do ex-artigo 5. ° UE e do ex-artigo 7.° CE. Agora, essa distinção desapareceu, porque o Conselho Europeu aparece referido, como dissemos, no atual artigo 13.", n.O 1, UE. Mas se, dessa forma, o Conselho Europeu se distingue facilmente do Conselho, por outro lado, ele aproxima-se do Conselho quanto à natureza intergovernamental deste. De facto, por expressa imposição dos Tratados (artigo 235.°, n.O I, par. 3, TFUE), só votam no Conselho Europeu os Chefes de Estado ou de Governo. Isso faz com que os atos por ele aprovados tenham de ser vistos como exprimindo os interesses dos Estados. Vejamos agora a competência do Conselho Europeu. Já antes do Tratado de Lisboa ele era o órgão supremo da União, o órgão que dirigia esta, que lhe dava impulsos, que fixava os grandes rumos da União, entendida no seu conjunto, definindo as suas orientações e prioridades políticas, incluindo no domínio da PESC - era o que resultava dos ex-artigos 4.°, par. I, e 13.°, n."' I e 2, UE. Só que, como explicámos nas duas edições anteriores deste livro, a competência do Conselho Europeu esgotava-se praticamente nesse conteúdo político. Os atos jurídicos, que concretizavam essa competência política, eram praticados por outros órgãos da União e da Comunidade, dos arrolados nos já referidos ex-artigos 5.° UE e 7.° CE. O Tratado de Lisboa veio regular o Conselho Europeu nos . artigos 15.° e 26.° UE. Mais tarde, a Decisão do Conselho Europeu n.o 2009/882/UE, de 1 de dezembro de 2009, veio aprovar O seu Rf~gijment()347, retificado depois 34'. A sua competência básica continua a ser eminentemente política. Isso resulta, antes de mais, do artigo 15.°, n.O 1, ],' parte, UE, dispõe: "O Conselho Europeu dá à União os impulsos necessá'" JO L 315 de 2-12-2009. ". lO L ]72 de 7-7-2010. 305 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia rios ao seu desenvolvimento e define as orientações e prioridades políticas gerais da União". A redação deste preceito é muito parecida, embora seja mais enfática, com a do antigo artigo 4.°, par. I, UE, acima referido. E tal como sucedia com o TUE na versão de Nice, o comando contido no citado artigo do atual TUE aparece repetido quanto a três matérias coucretas: as referidas nos artigos 121.°, n.o 2, 148.° e 284.°, n.o 3, TFUE. Essa competência política tem uma importante extensão ao domínio do segundo pilar, ou seja, à Ação Externa da União, no Título V do Tratado UE (artigos 21.° a 46.°), como já acontecia antes do Tratado de Lisboa com a PESCo Mas o Tratado de Lisboa alargou a competência do Conselho Europeu ao domínio jurídico. É certo que não lhe dá competência legislativa, como dispõe, de forma expressa, o artigo 15.°, n.o 1, segunda parte, UE. Mas confere-lhe um papel arbitral em situações de impasse no decurso do processo legislativo ordinário na matéria da segurança social (artigo 48.°, par. 2, TFUE) e em matéria penal (artigos 82.°, n.o 3, e 83.°, n.o 3, TFUE). O Conselho Europeu passa a ter competência jurídica também para a prática de decisões. Primeiro, no domínio da PESC, inclusive em matérias com implicações no domínio da defesa. É verdade que o referido ex-artigo 13.°, n.o 2, UE, já se inclinava nesse sentido. Mas o novo artigo 26.°, n.o 1, UE, é muito mais claro em atribuir competência ao Conselho Europeu para a adoção de "decisões", que só podem ser os atos jurídicos previstos no artigo 288.°, par. 4, TFUE. Depois, o novo artigo 236.° TFUE confere-lhe competência para tomar as decisões aí referidas. Note-se que essas decisões não são aprovadas no exercício de qualquer competência legislativa (que, repete-se, o TUE não confere ao Conselho Europeu), porque elas não são atos legislativos já que não são adotadas com respeito pelo processo legislativo ordinário ou especial, regulado no artigo 289.°, n. OO 1 e 2, TFUE. Este artigo define, para este efeito, os atos legislativos por um critério formal: só o são os que são aprovados por um processo legislativo. Como consequência do facto de o Conselho Europeu ter passado a ter competência para a prática de certos atos jurídicos, ele goza de capacidade judiciária passiva perante o Tribunal de Justiça, podendo, portanto, ser interposto dos seus atos jurídicos que produzam efeitos quanto a terceiros o recurso de anulação previsto no artigo 263.° TFUE. A composição do Conselho Europeu já ficou exposta no número anterior. A ideia que presidiu à definição da composição do Conselho Europeu, logo nas Cimeiras dos anos 60 e 70, foi a de ele ter como membros as entidades que em cada Estado-membro, segundo as respetivas normas constitucionais, tinham competência para dirigir, ao mais alto nível, a política externa do respetivo Estado. Em todos os Estados-membros essa competência cabe ao Governo (nuns casos de forma mais clara do que noutros), salvo na França, onde, por o sistema de governo ser presidencialista, é o Chefe de Estado quem tem essa competência. Por isso, o Conselho Europeu tem como membros, antes de mais, o Chefe de Estado francês e os Chefes de Governo doutros Estados-membros, apesar de já ter havido alguns episódicos desvios a esta regra, resultantes da interpretação controversa de preceitos de algumas Constituições nacionais sobre esta matéria. Hoje, além dessa composição, o Conselho Europeu tem como membros também, e como atrás se disse, o seu Presidente, com o novo regime que lhe atribuiu o Tratado de Lisboa, e o Presidente da Comissão, desde o Ato Único Europeu. Além disso, e por força do Tratado de Lisboa, participa nos seus trabalhos o Alto Representante. Portanto, participa, mas não é membro do Conselho Europeu e, portanto, não tem aí direito de voto. É o que dispõe o artigo 15.°, n.o 2, UE. Por força do n.o 3 do mesmo artigo, deixaram de participar, de forma sistemática, nas reuniões do Conselho Europeu, os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados-membros, como sucedia até ao Tratado de Lisboa entrar em vigor. Eles, e eventual- 306 307 10 1. Composição e funcionamento A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia mente outros Ministros, só serão admitidos a participar nas reuniões por acordo do Conselho Europeu e se a ordem dos trabalhos o exigir. Do mesmo modo, o Presidente da Comissão não poderá fazer-se acompanhar, como acontecia até agora, por um membro da Comis, são que não o Alto Representante, que é Vice-Presidente da Comissão, salvo mediante acordo do Conselho Europeu e se a ordem dos trabalhos o exigir. O Presidente do Parlamento Europeu pode convidado para ser ouvido pelo Conselho Europeu (artigo 235.°, n.O 3, TFUE). Resta recordar o que ficou dito no número anterior: no Conselho Europeu não votam nem o seu Presidente nem o Presidente Comissão, por exigência do artigo 235:, n: 1, par. 3, TFUE, nemo Alto Representante, que participa nele, mas não é seu membro, pelo que o direito de voto é apenas reconhecido aos Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros. 102. A presidência do Conselho Europeu A maior alteração trazida pelo Tratado de Lisboa ao estatuto do, Conselho Europeu diz respeito à sua presidência. Até então ele era presidido, em cada semestre, em rotação, pelo Chefe de Estado ou d~ Governo do Estado que assegurava a presidência do Conselho (ex-artigo 4: UE, na versão de Nice). A Convenção sobre o Futur~ da Europa entendeu que uma tão frequente mudança na presidênc" (de seis em seis meses) afetava a eficácia, a continuidade e a coerê cia da atividade do Conselho Europeu. Era, portanto, necessári dar-se ao Conselho Europeu uma presidência estável e de médi prazo. Por isso, primeiro, o Tratado Constitucional e, depois, o' na redação que lhe deu o Tratado de Lisboa, e perante várias proP9 tas diferentes para se resolver o problema no seio da Convenç, sobre o Futuro da Europa ou fora dela34' , optaram por dispor q\l, Conselho Europeu passava a ser presidido, não pelo Chefe de Esci ou de Governo do Estado que semestralmente assegurava a presidt 349 Ver essas propostas em PR10LLAUD/SIRITZKY, 308 op. cit., pgs. 70-71. ela do Conselho (salvo na formação de Conselho dos Negócios Estrangeiros, como veremos), mas por uma personalidade permanente, eleita pelo próprio Conselho Europeu por maioria qualificada, para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez. O Conselho Europeu pode pôr termo ao mandato do seu presidente em caso de impedimento ou de falta grave e segundo o mesmo procedimento. Tudo isto se encontra disciplinado no artigo 15.°, n: 5, UE. A competência do Presidente encontra-se definida no n.o 6 do mesmo artigo IS:. No essencial, ela consiste em presidir aos trabalhos do Conselho Europeu, em assegurar a sua preparação, em zelar pela execução das suas deliberações e em garantir a representação formal da União na matéria da PESC sem prejuízo da competência que, nesse domínio, o novo TOE veio atribuir ao Alto Representante. Ele não pode, porém, ser visto como o Presidente da União. Aliás, os Tratados não preveem no sistema orgânico da União qualquer Presidente da União. Para a preparação dos trabalhos do Conselho Europeu o Presidente conta com a colaboração do Conselho dos Assuntos Gerais (artigo 16.°, n: 6, par. 2, UE) e do Secretariado-Geral do Conselho (artigo 235.°, n.o 4, TFUE), e tanto para a preparação como para a execução das deliberações do Conselho Europeu o TUE garante-lhe a cooperação do Presidente da Comissão (artigo IS:, n.o 6, b, UE). Não é de fácil interpretação o último parágrafo do n: 6 do artigo IS: UE, quando dispõe que "O Presidente do Conselho Euro, peu não pode exercer qualquer mandato nacional". É óbvio que, ,com isso, se quer afirmar que ele não pode acumular o seu cargo ,,,,,com qualquer outro no seu Estado (a nível nacional, regional ou "local) ou de representação do seu Estado (por exemplo, deputado ao ;Parlamento Europeu). Mas pode exercer um mandato da União, à margem da representação do Estado? Por exemplo, pode acumular o cargo de Presidente do Conselho Europeu com o cargo de Presidente da Comissão? A hipótese deve ser rejeitada por duas razões: ,~rimeiro, pelo absurdo da acumulação de duas funções tão exigentes f tão distintas; depois, pelo sistema muito diferente de designação dos titulares dos dois cargos; e, finalmente, porque, ao separar na composição do Conselho Europeu o Presidente do Conselho Euro309 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia peu e o Presidente da Comissão (citado artigo 15.", n." 2, UE), o TUE partiu do princípio de qne os dois cargos são exercidos por duas personalidades distintas. das conversações que a Presidência terá tido na fase da preparação da reunião. As decisões tomadas acerca dos vários assuntos incluídos na ordem dos trabalhos ficam a constar de um documento intitulado "Conclusões da Presidência", que são depois submetidas pela presidência à apreciação do Parlamento Europeu. 103. Funcionamento do Conselho Europeu a Conselho Europeu delibera por consenso, salvo se os Tratados dispuserem o contrário, isto é, se eles se contentaram com a maioria qualificada ou a maioria simples (artigos 15.", n.o 4, UE, e 235.", n." I, par. 2, e n." 3, TFUE). a consenso assimila-se a nma "unanimidade tácita"350, o que significa ausência de votação formal pelo facto de nenhum membro do órgão exprimir, de forma expressa, uma oposição ao projeto de deliheração, não contando a abstenção como recusa de consenso (artigo 235.", n." I, par. 4, TFUE). Todavia, como já se disse, quando houver votação formal, nem o seu Presidente, nem o Presidente da Comissão, votam. Além disso, também o Alto Representante, porque, como já se referiu atrás, participa nos trabalhos do Conselho Europeu mas não é seu membro, não tem direito a voto. a Conselho Europeu tem duas reuniões ordinárias por semestre e reúne-se em sessão extraordinária sempre que o Presidente o entenda (artigo 15.", n.o 3, UE). Apresenta um relatório ao Parlamento Europeu após cada reunião (artigo 15.°, n.O 6, d). As suas reuniões decorrem segundo um ritual já antigo, feito de uma sucessão de costumes de caráter processual há muito estabelecidos, e codificados na Declaração de Londres, aprovada pelo Conselho Europeu, na sua reunião de Londres, de junho de 1977351 , Assim, a reunião formal é imediatamente precedida de dois encon· tros informais e paralelos, um, entre os Chefes de Estado e de Governo e o Presidente da Comissão, e, outro, entre os Ministros e o Alto Representante ou outro memhro da Comissão. Só depois se inicia a reunião formal do Conselho Europeu, que respeita uma ordem de trabalhos definida com grande antecedência, e em função 350 351 Assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, op. cit., pg. 70. BulI. CE 6177. Ver mais pormenores em RIDEAU, pg. 299. 310 § 3." o Conselho Bibliografia especial: R. STREINZ, Die Luxemburger Vereinbarung, Munique, 1984; E. J. KlRCHNER, Decision making in the European Community. The COl/ncil Presidency and European integratioll, Manchester, 1992; C. MESTRE, Cansei! des ministres, in Kovar/Gavalda, Répertoire Dalloz, 1995; M. BANGEMANN, Le vote majoritaire pour l'Union européenne élargie, RMC 3-1995, pgs. 175 e segs.; M. WESTLAKE, The Counci! of the European Union, Londres, 1995; F. HAYES-RENSHAW e H. WALLACE, The Council ofMinisters, Nova Iorque, 1997; E. NOEL, Réflexions sur le processus de décision dans le Conseil des Communautés européennes, Mélanges Teitgen, pgs. 345 e segs. 104. Origem e estatuto a Conselho é composto por representantes dos Estados-membros, atuando como seus delegados. Foi pensado pelo Tratado de fusão de 1965 (artigo 2.°, par. I), como órgão que, na estrutura orgânica das Comunidades, representaria os interesses nacionais dos Estados-membros, isto é, foi criado como câmara federal das Comunidades. Depois do TUE, deixou de ter competência apenas no quadro comunitário para a ter também no domínio da PESC e da CJAI, depois, CPJMP. Foi isso que levou o até então Conselho das Comunidades a alterar, pela sua Decisão n.° 93/591, de 8 de novembro de 1993, a sua denominação para Conselho da União Europeia 3". '" lO L 281,16-11-93. 311 A União Europeia o Tratado de Lisboa designa-o apenas por Conselho (artigo 13.°, n.o 1, UE). O Conselho é o principal órgão de decisão da União. Delibera sob proposta da Comissão e com a intervenção, nas circunstãncias em que em cada caso os Tratados o exigirem ou permitirem, do Parlamento Europeu. O Conselho não tem como vocação aproximar-se de um modelo de governo europeu. Esse papel, como já dissemos, está reservado à Comissão. Diferentemente, o Conselho privilegia um compromisso entre os interesses nacionais, por vezes muito divergentes entre si, e que cada vez se apresentarão como mais divergentes à medida que aumentar o número de Estados-membros da União 353 • O Conselho tem o seu próprio Regimento, aprovado pela Decisão do Conselho n.o 20091937/UE, de I de dezembro de 2009 354, alterada pela Decisão do Conselho Europeu n. ° 2010/5941UE, de 16 de setembro de 2010, que alterou a lista de formações do Conselho35S • 105. Composição Cada Estado tem um representante no Conselho. Por isso, o Conselho é composto hoje por vinte e sete membros. Até ao Tratado de Maastricht, o artigo 146.°, par. 1, CE, por força da redação que lhe dera o artigo 2.° do Tratado de fusão, punha o seguinte: "O Conselho é composto por representantes dos, Estados-membros. Cada governo designará um dos seus membros para nele participar". Note-se que as versões originais daquele Tratado utilizavam as expressões "délegue" (em francês) ou "shal{ delegate" (em inglês), o que tinha a vantagem de querer significar, " como era verdade, que o representante de cada Estado, mais do qu~ seu representante, era, no plano jurídico, seu delegado. 353 Dentro das obras gerais merece particular destaque, sobre o Conselh()'/Z manual de JACQUÉ, pelo cargo que o Autor ocupou durante muitos anos no S'erviç~ Jurfdico daquele órgão, pgs. 284 e segs. "" JO L 325, de 11-12-2009. m JO L 263, de 6-10-2010. 312 Os órgãos e as instituições da União Europeia Todavia, aquela disposição foi modificada pelo Tratado de Maastricht, que deu àquele preceito a seguinte redação: "O Conselho é composto por um representante de cada Estado-membro a nível ministerial, com poderes para vincular o governo desse Estado-membro" (o itálico é nosso). Esta alteração foi exigida, particularmente, pela Alemanha. Ela pretendia que participassem nas reuniões do Conselho, em nome do Estado alemão, também representantes de entidades infra-estaduais (no caso alemão, os Estados federados ou Vinder), sempre que se discutissem matérias que coubessem nas atribuições exclusivas destas, de harmonia com o respetivo Direito interno. Em face da nova redação do ex-artigo 146.°, par. 1, CE (depois, artigo 203.°, par. 1, na versão de Nice), passaram, pois, a ter assento no Conselho "Ministros" que não provêm do governo central dos Estados-membros mas de um qualquer governo regional, por exemplo, do Governo de um Estado federado, ou de uma região política, sempre que as matérias a discutir sejam das atribuições exclusivas da respetiva entidade infra-estadual. O exemplo dos Estados federados alemães foi depois seguido, por exemplo, pelas regiões belgas e pelas Comunidades espanholas. O Tratado de Lisboa não introduziu alterações, senão formais, na matéria. De facto, esta encontra-se agora regulada no artigo 16.°, n.o 2, UE, que passou a dispor o seguinte: "O Conselho é composto por um representante de cada Estado-membro ao nível ministerial, com poderes para vincular o Governo do respetivo Estado-membro e exercer o direito de voto" (itálico nosso). No caso português, a nova redação do artigo 16.°, n.O 2, UE, não autoriza a que se reconheça a membros dos governos das re/;!i)es autónomas dos Açores e da Madeira o direito de vincularem Estado Português no Conselho. Segundo a nossa Constituição, o como uma região autónoma fará valer "as matérias do seu lnl.eresse especifico", ou "as matérias que lhes digam respeito", ao da integração europeia consiste em ela, ou opinar sobre essas matérias, ou participar nas delegações do Estado Português (respetJV;!lmente, aIs. v, infine, e x, do artigo 227.°, n.o I, da CRP), mas em qlla1'qu<~r caso, sem que ao respetivo representante seja atribuído o 313 A União Europeia poder de, por si próprio, representar o Estado Português e virlcula o Governo da República356 • O atual artigo 16.°, n.o 2, UE, parece impossibilitar a do Conselho a nível de Chefes de Estado ou de Governo, porqu~iç Chefe de Estado francês não é ministro, e nem em todos os Estados o Chefe do Governo é considerado um ministro. 106. Os níveis de atuação do Conselho O Conselho encontra-se regulado nos Tratados, no artigo·t UE e nos artigos 236.° a 243.° TFUE, bem como no seu Regilf1~~ Ele reúne-se em diversas formações, segundo o critério'4. matérias tratadas. Duas delas são criadas pelos Tratados:~;4' Assuntos Gerais e a dos Negócios Estrangeiros. As outras são,j , tuídas por Decisão do Conselho Europeu, tomada por maiOl'Ílt lificada. Constam do Anexo I ao Regimento, modificadope referida Decisão do Conselho Europeu n.o 201O/594/UE, de"L setembro de 2010. Assim dispõem os artigos 16.°, n.O 6, UE;.' TFUE, e 2.° do Regimento. O Conselho dos Assuntos Gerais é a formação comumdo', selho. Compete-lhe, antes de mais, assegurar a coerência dos'" lhos das diferentes formações do Conselho e garantir a cool'd~ , geral das políticas e dos dossiês que afetem várias políticas d~" Europeia. Isto implica a coordenação horizontal das matériàsg se ocupam as várias formações do Conselho, o que lhe conf~ importância especial. Cabe-lhe, também, preparar as reury'"" Conselho Europeu e dar sequência às reuniões do Conselho ')1: peu e das diversas formações do Conselho, em articulaçã\l'Ç'Q' 356 Entendemos que por matérias de "interesse especifico'" d matérias "que lhes digam respeito", e matérias de "âmbito regionaf' (arti fi.o 4, e 227.°, 0.° 1, ais. c, t, v e x), a Constituição quer dizer o mesm matérias que respeitem à região respetiva. Mas, se é assim, era de esper, lador constituinte que não utilizasse tenninologia diferente para se refe(' realidade jurídica, dado que isso provoca dificuldades no cOllfrcmtc ção dos preceitos em causa. 314 Os órgãos e as instituições da União Europeia ,Presidente do Conselho Europeu e a Comissão (artigos 16.°, n." 6, {par. 2, UE, e Regimento do Conselho, artigo 2.°, n." 2 e 4). Hoje, ~:}.pelo Tratado de Lisboa, repete-se, o Conselho dos Assuntos Gerais é apenas uma formação do Conselho. 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Por ~oExterna quere-se dizer aqui algo de muito vasto, englobando, lll~adamente, a PESC, a Política de Segurança e de Defesa :lllum, a política comercial comum, a cooperação para o desenI,vimento e a ajuda humanitária (artigo 16.°, n.O 6, par. 3, UE, e gimento do Conselho, artigo 2.°, n.o 5). , É composto pelo Alto-Representante da União para os NegósEstrangeiros e a Política de Segurança e pelos Ministros dos ócios Estrangeiros dos Estados-membros ou pelos Secretários , stado que em cada Estado-membro tenham a seu cargo a gestão questões relativas à integração europeia. Preside a este Conselho "to Representante (artigo 18.°, n.o 3, UE). "As outras formações do Conselho não criadas pelos Tratados .,,) por decisão do Conselho Europeu, nos termos atrás referidos, e ,,~~.,constam do Anexo I ao Regimento, consistem em Conselhos "~p~cializados. Essas formações são atualmente as seguintes: a dos '.;~suntos Económicos e Financeiros, incluindo o Orçamento (o 6,ligo ECOFIN); a da Justiça e dos Assuntos Internos, incluindo a 'Q*ção Civil; a do Emprego, Política Social, Saúde e Consumido~;La da Competitividade (Mercado Interno, Indústria e Investiga- íc 315 A União Europeia poder de, por si próprio, representar o Estado Português e vincular o Governo da República356 • O atual artigo 16.°, n.o 2, UE, parece impossibilitar a reunião do Conselho a nível de Chefes de Estado ou de Governo, porque o Chefe de Estado francês não é ministro, e nem em todos os outros Estados o Chefe do Governo é considerado um ministro. 106. Os níveis de atuação do Conselho O Conselho encontra-se regulado nos Tratados, no artigo 16.° UE e nos artigos 236.° a 243.° TFUE, bem como no seu Regimento. Ele reúne-se em diversas formações, segundo o critério das matérias tratadas. Duas delas são criadas pelos Tratados: a dos Assuntos Gerais e a dos Negócios Estrangeiros. As outras são instituídas por Decisão do Conselho Europeu, tomada por maioria qualificada. Constam do Anexo I ao Regimento, modificado pela já referida Decisão do Conselho Europeu n.° 201O/594/UE, de 16 de setembro de 2010. Assim dispõem os artigos 16.°, n.o 6, UE, 236." TFUE, e 2.° do Regimento. O Conselho dos Assuntos Gerais é a formação comum do Conselho. Compete-lhe, antes de mais, assegurar a coerência dos trabalhos das diferentes formações do Conselho e garantir a coordenação geral das políticas e dos dossiês que afetem várias políticas da União Europeia. Isto implica a coordenação horizontal das matérias de que se ocupam as várias formações do Conselho, o que lhe confere uma importância especial. Cabe-lhe, também, preparar as reuniões do Conselho Europeu e dar sequência às reuniões do Conselho Europeu e das diversas formações do Conselho, em articulação com o 356 Entendemos que por matérias de "interesse específico" das regiões, matérias "que lhes digam respeito", e matérias de "âmbito regionaf' (artigos 112.°, n.o 4, e 227.°, n,o I, aIs. c, t, v e x), a Constituição quer dizer o mesmo, ou seja, matérias que respeitem à região respetiva. Mas, se é assim, era de esperar do legislador constituinte que não utilizasse tenninologia diferente para se referir à mesma realidade jurídica, dado que isso provoca dificuldades no confronto da interpreta~ ção dos preceitos em causa. 314 Os órgãos e as instituições da União Europeia Presidente do Conselho Europeu e a Comissão (artigos 16.", n.O 6, par. 2, UE, e Regimento do Conselho, artigo 2.°, n." 2 e 4). Hoje, pelo Tratado de Lisboa, repete-se, o Conselho dos Assuntos Gerais é apenas uma formação do Conselho. Mas o Projeto do Tratado Constitucional atribuía-lhe a função de um Conselho Legislativo, com competência para, conjuntamente com o Parlamento Europeu, aprovar os atos legislativos europeus. Em suma, aparecer-nos-ia como uma versão acabada de um verdadeiro Senado europeu. Foi por isso que essa ideia foi rejeitada pelos Estados, que não se sentiam ainda em condições de dar esse passo. O Conselho dos Assuntos Gerais é composto por quem cada Estado-membro indicar. Ou seja, os Estados-membros são livres de determinar quem os vai representar nesta formação do Conselho. A outra formação criada diretamente pelos Tratados é a do Conselho dos Negócios Estrangeiros. Compete-lhe elaborar a Ação Externa da União e assegurar a coerência de toda essa Ação Externa, de harmonia com a estratégia definida pelo Conselho Europeu. Por Ação Externa quere-se dizer aqui algo de muito vasto, englobando, nomeadamente, a PESC, a Política de Segurança e de Defesa Comum, a política comercial comum, a cooperação para o desenvolvimento e a ajuda humanitária (artigo 16.°, n.O 6, par. 3, UE, e Regimento do Conselho, artigo 2.°, n.o 5). É composto pelo Alto-Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados-membros ou pelos Secretários de Estado que em cada Estado-membro tenham a seu cargo a gestão das questões relativas à integração europeia. Preside a este Conselho o Alto Representante (artigo 18.°, n." 3, UE). As ontras formações do Conselho não criadas pelos Tratados mas por decisão do Conselho Enropeu, nos termos atrás referidos, e que constam do Anexo I ao Regimento, consistem em Conselhos especializados. Essas formações são atualmente as seguintes: a dos Assuntos Económicos e Financeiros, incluindo o Orçamento (o antigo ECOFIN); a da Justiça e dos Assuntos Internos, incluindo a Proteção Civil; a do Emprego, Política Social, Saúde e Consumidores; a da Competitividade (Mercado Interno, Indústria e Investiga315 A União Europeia ção), incluindo o Turismo; a dos Transportes, Telecomunicações e Energia; a da Agricultura e Pescas; a do Ambiente; a da Educação, Juventude e Cultura, incluindo o Audiovisual. Cabe a cada Estado-membro, segundo as respetivas regras constitucionais e a respetiva orgânica do Governo e da Administração Pública, determinar como é representado em cada formação do Conselho, desde que seja respeitado o artigo 16.°, n.o 2, UE. Depois do Tratado de Lisboa, nem nos Tratados UE e TFUE, nem no atual Regimento do Conselho, está prevista a formação do Conselho como Conselho de Chefes de Estado e de Governo, que existia antes e que não se confundia com o Conselho Europeu. Parece-nos uma decisão acertada, já que, como explicámos nas edições anteriores deste livro, e há pouco repetimos, essa formação existia em infração ao prescrito nos Tratados, que agora impõem que o Conselho seja composto por individualidades a "nível ministerial" . O Anexo I ao Regimento do Conselho permite que em todas as formações do Conselho, portanto, inclusivamente no Conselho de Assuntos Gerais, possam participar "vários Ministros" de cada Estado. 107. A presidência do Conselho Até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa a presidência do Conselho era exercida nos mesmos moldes em que o era a presidência do Conselho Europeu, isto é, semestralmente, por um Estado, em função da rotação fixada pelo Conselho. Como se viu atrás, deixou de ser esse o sistema de designação do presidente do Conselho Europeu, por força do novo artigo 15.°, n.O 5, UE. E a presidência do Conselho, nas suas diversas formações, passou a estar regulada no artigo 16.°, n.O 9, também UE. Vejamos rapidamente a História deste preceito. Até a União Europeia não ter tido mais de doze membros (por, tanto, até 1995), os Estados presidiam semestralmente ao Conselho por rotação determinada pela ordem alfabética da designação de Os órgãos e as instituições da UI/ião Europeia cada Estado na sua língua nacional, embora no segundo ciclo de seis anos (isto é, doze semestres) trocassem, em cada ano, a ordem dos semestres do primeiro ciclo de seis anos (ver o artigo 146.°, par. 2, CEE, antes do Tratado de Maastricht). Este sistema permitia que, em cada troika (palavra criada para designar o trio que, por via consuetudinária, passou a ser composto, em cada semestre, pelo Estado que nesse semestre presidia ao Conselho, mais pelo Estado que havia presidido no semestre imediatamente anterior e pelo Estado que iria presidir no semestre imediatamente a seguir), estivesse presente necessariamente, pela referida ordem alfabética, um dos cinco grandes (incluindo-se entre eles, e já então, a Espanha). Isso só não acontecia na troika composta pelo Luxemburgo, pelos Países Baixos e por Portugal. A presença de um grande na troika dava sempre afirmação e eficácia à presidência. Com o alargamento de 1995, essa garantia, de na troika estar sempre um grande, desapareceu. Pense-se na seguinte sucessão, por ordem alfabética: Luxemburgo, Países Baixos, Áustria, Portugal, Finlândia e Suécia. Por isso, por remissão do artigo 146.°, par. 2, CE, na redação que lhe deu o Tratado de Maastricht, a Decisão do Conselho, n.o 95/2/CE, Euratom, CECA, de I de janeiro de 1995'57, veio estabelecer a nova ordem do exercício da presidência do Conselho. Nessa ordem, a partir da ordem alfabética, dispunham-se os Estados por uma sequência tal, que ficava garantido que, salvo na troika composta pela Irlanda, pelos Países Baixos e pelo Luxemburgo, haveria sempre um Estado grande na troika (artigo \.0, n.o I, da referida Decisão). Com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão o sistema da troika foi profundamente alterado na sua estrutura e na sua composição. O Estado que exerce, em cada semestre, a presidência, passou a ser "assistido" pelo Secretário-Geral do Conselho (o "Sr. PESC") e, "se necessário", pelo Estado que se lhe segue na presidência. Além disso, pelo menos na matéria da PESC, também a Comissão passou a ser "associada" à presidência. Foi o que veio estabelecer o artigo 18.°, n.O' 3 e 4, UE, que não foi alterado pelo 351 316 10 L I. de 1-1-95. 317 Os órgãos e as instituições da União Europeia A União Europeia Tratado de Nice, pelo que continuou em vigor à sombra deste. Na prática, a troika deixou de o ser para passar a ser um quarteto (embora continue a chamar-se troika): o Estado que preside, o Sr. PESC, o Estado que se segue na presidência e a Comissão. À margem dessa troika nasceu, entretanto, sem nada ter a ver com ela, o que informalmente podíamos chamar de trio de presidências. Não tinha base nos Tratados, mas apenas no Regimento do Conselho. Pretendia-se com isso assegurar uma ação coordenada e coerente do Conselho por um período de dezoito meses, isto é, o período de três presidências. De harmonia com este sistema, os três Estados que iriam exercer, durante o período de dezoito meses, três sucessivas presidências do Conselho, elaboravam em conjunto, antes de se iniciar esse período, e em colaboração com a Comissão, um projeto de programa das atividades das três presidências. Ainda antes do início desse período de dezoito meses, o Conselho de Assuntos Gerais e Relações Externas (que então constituía uma única formação do Conselho, e a formação principal) deveria aprovar esse programa. Este sistema começou a ser praticado em I de janeiro de 2007. Antes de se iniciar a presidência alemã, que iria ter lugar no primeiro semestre de 2007, a Alemanha, Portugal e a Eslo" vénia (que presidiriam sucessivamente à União a partir de I de janeiro de 2007) elaboraram um programa conjunto das presidências de I de janeiro de 2007 a 30 de junho de 2008. Tudo isso decorria então, como se disse, do Regimento do Conselho (que vigorava então na versão que lhe fora dada pela Decisão n.o 2006/683/CE, Euratom), concretamente, do n.o 2 do seu preãmbulo e do artigo 2.°, n.o 4. Esse trio de presidências (que, repetimos, não se confundia com a troika) consistia numa tímida e informal antecipação da pre" sidência do Conselho a três, que o Tratado Constitucional e o Tra.,; tado de Lisboa viriam a adotar, como vamos ver de seguida. Após o alargamento de 2004, o Conselho aprovou, pela Deci,' são n.o 2005/902/CE, Euratom"', e à sombra do artigo 203.°, par: 2, CE, a nova ordem do exercício da presidência do Conselho. Mais, tarde, a Decisão do Conselho n.O 2007/5/CE, Euratom''', veio atualizar essa ordem em função da adesão da Bulgária e da Roménia. O Tratado de Lisboa, seguindo, no essencial, também aqui, o Tratado Constitucional, veio introduzir sensíveis alterações nesta matéria ao que dispunham antes os Tratados. Assim, o Conselho dos Negócios Estrangeiros passa a ter um presidente fixo: o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, que é eleito, como já estudámos, pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, para um mandato de cinco anos. Não vingou, portanto, a ideia do Tratado Constitucional de lhe chamar "Ministro dos Negócios Estrangeiros da União" (artigo 1-28.°, n.o 3, desse Tratado). Quanto às outras formações do Conselho, e pelo que resulta das disposições conjugadas dos artigos 16.°, n.O 9, UE, 236.°, b, TFUE, I. ° da Declaração n.° 9 anexa ao Tratado de Lisboa, bem como do Projeto de Decisão do Conselho Europeu incluído nessa Declaração, e do artigo 1.0, n.O 4, do Regimento do Conselho, elas continuam a ser presididas pelos representantes dos Estados-membros, segundo um "sistema de rotação igualitária", que será definido pelo Conselho Europeu. A presidência dessas formações é exercida "por grupos pré-determinados de três Estados-membros durante um período de 18 meses" (itálicos nossos). Esses grupos são formados "tendo em conta a sua diversidade (dos Estados) e os equilíbrios geográficos na União". Desse grupo de três, cada membro preside sucessivamente, durante seis meses, a todas essas formações do Conselho. Os outros membros do grupo apoiam a Presidência com base num programa comum. Como a matéria da presidência das ;formações do Conselho, salvo do Conselho dos Negócios Estrangeiros, é da competência do Conselho Europeu, deliberando por maioria qualificada, todo o regime acabado de descrever, designadamente, a duração da presidência e o carácter rotativo e não fixo da presidên\cia, poderá ser alterado sem a revisão dos Tratados. A existência de presidentes fixos para todas as formações do \WGonselho asseguraria uma maior estabilidade e eficácia ao seu ii' '" JO L 12, de 4-)-2007. ,,. JO L382, de 15-12-2005. 318 319 Os ,órgãos e as instituições da União Europeia A União Europeia funcionamento. Mas é preciso compreender que, uma vez que o Conselho Europeu e o Conselho dos Negócios Estrangeiros já têm presidentes fixos, os Estados, sobretudo os médios e pequenos, perderiam o protagonismo que só a presidência das outras formações do Conselho lhes permite exibir na União. Por outro lado, as soluções de continuidade na presidência dessas formações bem como os inconvenientes de presidências menos bem exercidas - dois argumentos fortes contra as presidências semestrais - são compensados pela existência de um programa comum a três presidências, isto é, para dezoito meses, o que diminui sensivelmente o risco da instabilidade das presidências. Resta referir, o que parece já ser óbvio, qual é a competência do Presidente do Conselho, que será, no Estado que preside, o Ministro do pelouro da respetiva formação do Conselho, salvo no caso do Conselho dos Negócios Estrangeiros, como dissemos atrás. Ao Presidente cabe coordenar e dirigir os trabalhos da respetiva formação do Conselho. Além disso, ele participa nas reuniões do Conselho do Banco Central Europeu, podendo submeter-lhe moções para deliberação (artigo 284.°, n.o I, TFUE). b) c) d) e) 108. Competência do Conselho Depois do Tratado de Lisboa, continua a faltar nos Tratados um preceito que enuncie, de modo sistemático, a competência do Conselho. Por isso temos que a ir interpretar de diversos preceitos diferentes. Assim, compete ao Conselho: a) exercer a função legislativa, conjuntamente com o Parla- mento Europeu, nos termos definidos pelos Tratados. Pode fazê-lo exercendo o seu poder de iniciativa legislativa indireta, pelo qual pode solicitar à Comissão que apresente uma proposta, o que só pode ser recusado pela Comissão mediante fundamentação (artigo 241.° TFUE); através do processo legislativo ordinário, situação em que co-legisla 320 f> g) com o Parlamento Europeu; ou através do processo legislativo especial, quando um seu ato legislativo é precedido de um procedimento de aprovação ou de consulta do Parlamento Europeu ou quando um ato legislativo do Parlamento Europeu é precedido de aprovação do Conselho (artigo 16.°, n.o 1, UE). Já estudámos estas duas últimas situações a propósito da competência do Parlamento Europeu; exercer os poderes que os Tratados lhe conferem em matéria financeira e orçamental nos termos já descritos quando nos debruçámos sobre a competência do Parlamento Europeu (artigos 312.° e 314.° TFUE); definir as políticas da União, subordinadamente à competência conferida ao Conselho Europeu no artigo 15.°, n.o I, UE, e nos termos referidos nos Tratados (artigo 16.°, n.o I, UE), inclusive em matéria de política externa e de segurança comum (artigos 24.°, n. OO 1 e 3, e 26.°, n.o 2, UE); exercer os poderes de coordenação, designadamente em relação à atuação dos Estados-membros, nos termos constantes dos Tratados (artigo 16.°, n.o I, UE); delegar na Comissão o poder de praticar os atos referidos no artigo 290.°, n.o I, TFUE; exercer a competência executiva referida no artigo 291.°, n. ° 2, TFUE, com referência à PESC e nos termos definidos nos artigos 24.°, n.O' 1 e 3, e 26.°, n.o 2, UE; aprovar recomendações (artigo 292.°, 1." parte, TFUE). Pode-se dizer que o Conselho continua a ser o órgão com maior poder de decisão na União: no processo legislativo ordinário, ele co-Iegisla com o Parlamento Europeu, mas no processo legislativo especial, como mostrámos quando estudámos a competência do Parlamento Europeu, são em maior número e mais importantes os casos em que o Conselho decide com a participação do Parlamento Europeu do que o contrário. 321 A União Europeia 109. Funcionamento do Conselho o funcionamento do Conselho (o que engloba a sua organização) encontra-se disciplinado no respetivo Regimento. O TJ entende que o Regimento do Conselho constitui um texto que obriga'60. O Conselho tem a sua sede em Bruxelas. Nos meses de abril, junho e outubro, o Conselho tem as suas reuniões no Luxemburgo. Só em circunstâncias excecionais ele pode reunir-se noutro local (artigo 1.0, n.o 3, do Regimento). Ele reúne-se por iniciativa do seu Presidente, de um dos seus membros ou da Comissão. Esta pode, portanto, participar nas reuniões do Conselho (artigos 237.° TFUE e 1.0, n.o 1, do Regimento). Para cada período de dezoito meses, o grupo pré-determinado de três Estados-membros que asseguram a presidência durante esse período, nos termos do artigo 1.° da Declaração n. ° 9 anexa ao Tratado de Lisboa e do artigo 1.0, n.o 4, do Regimento, redige um projeto de programa das atividades do Conselho para o referido período. No que respeita às atividades do Conselho dos Negócios Estrangeiros no referido período, esse projeto é preparado conjuntamente com o Presidente desse Conselho. Esse projeto de programa é elaborado em estreita cooperação com a Comissão e com o Presidente do Conselho Europeu e apresentado como documento único o mais tardar um mês antes do início do período em causa para que o Conselho de Assuntos Gerais o possa apreciar (artigo 2.°, n.o 6, do Regimento). As reuniões do Conselho são preparadas pelo Comité de representantes permanentes dos Governos dos Estados-membros (COREPER) (artigos 16.°, n.o 7, UE, e 240.°, n.O 1, TFUE). Para se respeitar o princípio da transparência, as reuniões do Conselho são públicas quando ele delibere e vote um projeto de ato.' legislativo, embora nas condições indicadas no artigo 16.°, n.O 8; UE. 360 Ae. 23-2-88, Reino Unido c. Conselho, Proe. n.o 68/86, Cal., pgs. e segs.. 322 Os 6rgãos e as instituições da União Europeia 1l0. Continuação: A) O Comité de representautes permaueutes dos Governos dos Estados-membros (COREPER) Na preparação das decisões do Conselho, ao lado de alguns outros comités de menor importância, ocupa um lugar de destaque o Comité de representantes permanentes dos Governos dos Estados-membros (COREPER). A sua designação advém do facto de ele ser composto pelos chefes das missões permanentes que cada Estado-membro mantém em Bruxelas, junto da União. Cada uma dessas missões permanentes assegura a ligação entre o respetivo Estado e a União. Em regra, o chefe da missão tem a categoria de Embaixador. O COREPER não se encontrava previsto inicialmente nos Tratados, mas apenas no Regimento do Conselho. Depois, passaram-se a referir a ele, primeiro, os artigos 4.° e 5.° do Tratado de fusão, depois, o artigo 151.° CE, após a revisão de Maastricht, depois, o artigo 207.°, após as revisões de Amesterdão e de Nice. Hoje, os artigos 16.°, n.o 7, UE, e 240.°, n.o I, TFUE, compendiam em três categorias a competência do COREPER. Assim, ele: a) prepara os trabalhos do Conselho, a todos os níveis em que ele se reúna; b) exerce os poderes que o Conselho nele delegue; c) pode exercer os poderes de índole processual previstos no Regimento do Conselho36l • 111. Continuação: B) A votação no Couselho I - Generalidades O funcionamento do Conselho e, particularmente, o modo formal de ele decidir dependem, em grande medida, do estilo que nessa matéria lhe queira imprimir o Estado que preside em cada semestre às formações do Conselho, que não o Conselho dos Negócios 36J Ver CONSTANTINESCO/SIMON (dirs.), Le COREPER dans tons ses États, Estrasburgo, 2001. 323 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia Estrangeiros. Por isso, na escolha dos ministros dos Governos dos Estados-membros deve ser levada em conta a capacidade de cada um deles para presidir à respetiva formação do Conselho, quando ao respetivo Estado couber a presidência deste órgão. No que respeita ao Conselho dos Negócios Estrangeiros, obviamente que o seu funcionamento está muito condicionado pelo modo como o seu presidente, o Alto Representante, entenda exercer a sua função. Uma das especificidades do funcionamento do Conselho reside no facto de a presidência evitar recorrer à votação formal Conselho não preveja um diferente sistema de votação (a unanimidade ou a maioria qualificada), a votação por maioria simples é, na prática, excecional. É o que acontece, por exemplo, com a aprovação do Regimento do próprio Conselho (artigo 240.°, n.o 3, TFUE) e com a deliberação pedindo à Comissão que apresente a proposta prevista no artigo 241.° TFUE. A votação por maioria simples impõe que as deliberações do Conselho sejam tomadas por catorze membros em vinte e sete. Portanto, neste sistema de votação os Estados encontram-se em pé de igualdade. sempre que verifica a existência de um consenso. Por outro lado, quando esse consenso não está obtido, a presidência diligencia no sentido de se chegar a ele. Este comportamento faz parte, de certo modo, da função do Conselho, já atrás referida, de compor e conciliar os vários interesses divergentes dos Estados-membros. Formou-se uma prática no Conselho, segundo a qual, quando a presidência verifica que se atingiu a maioria requerida para aquela votação concreta, não se procede a uma votação formal, a não ser que algum Estado expressamente a requeira. Isso não impede a presidência de, mesmo então, proceder a diligências junto dos Es,ta(los postos em minoria, no sentido de se alargar, o mais que for possí'vel, a maioria. II - Sistemas de votação São três os modos de votação hoje no Conselho: a) a maioria simples; b) a unanimidade; c) a maioria qualificada. a) Maioria simples Pela redação do artigo 238.°, n.o I, TFUE, a maioria sinlpl,~s pensada como sistema-regra de votação no Conselho. Mas, que é muito raro que uma disposição do Tratado sobre a 324 b) Unanimidade A regra da unanimidade vai de encontro aos princlplOs da soberania indivisível e, portanto, da igualdade formal entre os Estados, sobre os quais se desenvolveu o Direito Internacional clássico inclusive a Teoria Geral das Organizações Internacionais de mer~ cooperação. Eles impedem que um Estado venha a assumir obrigações sem o seu acordo e, portanto, conferem a cada Estado o direito veto nos órgãos das Organizações a que pertencem. O processo de integração europeia recusou, desde o início, a da unanimidade como única regra de votação no Conselho. é contrária aos postulados em que assenta a integração: a unaniJlJlllalJ~ espelha o individualismo internacional dos Estados, a intereflete a solidariedade entre os Estados e, por conseguinte, a rer'ínr,,,r, limitação de soberania entre eles; a unanimidade fomenta intransigência, a integração funda-se na negociação permanente e procura de compromissos. Por outro lado, convém não sobreva",,,lon:lar, sobretudo para os Estados médios e pequenos, o direito de que resultaria da regra da unanimidade. Vai um Estado médio pequeno vetar uma deliberação no Conselho, deliberação essa interessa aos Estados grandes, para, minutos depois, um desses ~pstado, grandes vetar uma deliberação no Conselho que iria atribuir recursos financeiros ou outros benefícios ao mesmo Estado médio pequeno? 325 A União Europeia Por isso, se já no início das Comunidades a regra da unanimidade não era a única regra de votação no Conselho, com o tempo ela veio progressivamente a perder terreno, sobretudo a favor da regra da maioria qualificada. E por duas razões: primeiro, o próprio aprofundamento da integração e, portanto, a consequente progressiva erosão na soberania dos Estados; depois, os sucessivos alargamentos das Comunidades e, mais tarde, da União. De facto, era difícil dez, doze, quinze Estados porem-se em unanimidade no Conselho. Eram a própria eficiência deste órgão e a sua capacidade de decisão que estavam em causa. Por isso, sobretudo a partir da revisão de Maastricht, os Tratados foram reduzindo progressivamente os casos em que o Conselho devia votar por unanimidade. É certo que na sequência da "política da cadeira vazia", de DE GAULLE, o Conselho aprovou verbalmente, na sua reunião extraordi. . de 1966" . de L uxem b urgo"362 . nária de 29 de JaneIro ,o compromISSO De harmonia com ele, sempre que o Tratado CEE se contentasse com a maioria para o Conselho deliberar, os Estados-membros esforçar-se-iam por encontrar um compromisso comum. Todavia, bastava que um só Estado invocasse um "interesse muito importante", ou "vital", para que a deliberação não fosse aprovada. Não obstante não ter qualquer valor jurídico, porque não podia"' modificar as regras do Tratado CE, o compromisso do Luxemburgo entrou para o "adquirido comunitário"363. Mas, a partir dos meados ,. da década de 70, foi muito poucas vezes utilizado, e, quase sempre,." apenas em matéria de agricultura e de pescas. Depois do AUE pas" sou a ser ainda menos invocado, porque se percebeu que, quandoo. era, levava o Conselho à inação. Com o TUE, aprovado pelo Tra, tado de Maastricht, parecia que ia cair em desuso, embora os Estaf dos nunca tenham aceite formalmente que ele deixara de vigorar; Todavia O Tratado de Amesterdão, nos artigos 23.°, n.o 2, par. 2(' 40.°, n.o' 2, par. 2, UE, em matéria, respetivamente, de segundo:" terceiro pilares, e no artigo 11.°, n.o 2, par. 2, CE, veio dar um nOVe 362 [)(ellle Rapport général sur l'activité de la Communauté économi9 eurapéenne, 1965-1966, pgs. 34 e segs. 363 Assim, RIDEAU, pg. 426, e, antes disso, a nossa dissertação de do~!() mento, cit., pgs. 240 e segs.. 326 Os órgãos e as instituições da União Europeia alento ao direito de veto no Conselho para a defesa de "importantes e expressas razões de política nacional". O Tratado de Nice, contudo, conservou apenas o primeiro daqueles preceitos, mas sem pôr em causa, implicitamente, o "compromisso de Luxemburgo"364. Esse preceito - o artigo 23.°, n.o 2, par. 2, UE, na versão de Nice - foi mantido, pelo que nos interessa aqui, pelo Tratado de Lisboa, que deu àquele artigo o n. ° 31, n. ° 2, par. 2 UE, ainda que com uma pequena alteração na sua redação. De facto, de harmonia com essa norma, no âmbito da PESC, portanto, do segundo pilar, um Estado-membro pode, "por razões vitais e expressas de política nacional" (itálico nosso), impedir uma votação por maioria qualificada. E, embora, se o Estado persistir nessa posição, o assunto se transfira para o Conselho Europeu, o Estado em causa pode ver triunfado em definitivo o seu veto, dado que o Conselho Europeu só pode deliberar por unanimidade. Portanto, parece claro que, neste caso, o Tratado de Lisboa acolheu o "compromisso de Luxemburgo". Isso, aliás, não surporque a Convenção sobre o Futuro da Europa, através do seu Presidente, VALERY GISCARD D'EsTAING, que, quando fora Presida República da França, nunca se manifestara contra o "compnJmisso de Luxemburgo", jamais rejeitou a possibilidade de o Constitucional incluir, em mais do que um caso, aquele compromisso 365 Mais controversos são, em face da redação dos Tratados, os 48.°, par. 2 (matéria de segurança social), 82.°, n.o 3, e 83.°, ° 3 (matéria de cooperação judiciária em matéria penal, integrada Tratado de Lisboa no primeiro pilar), todos do TFUE. Em todos três casos, quando um membro do Conselho declare que o projeto ato legislativo, no primeiro caso, ou de diretiva, nos outros dois prejudica, "aspetas importantes do seu sistema de segurança , no primeiro caso, ou "aspetos fundamentais do seu sistema justiça penal", nos outros dois casos (itálicos nossos), ele pode 364 Sobre esta matéria, veja-se ISAAC, pgs. 55-56, RioEAU, loco cit., 331 e segs., e MAN'N, pgs. 291-292. 365 Como o demonstram PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 81. 327 JACQUÉ, A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia solicitar a intervenção do Conselho Europeu. Este, no primeiro caso, pode, entre as duas deliberações possíveis, devolver o projeto ao Conselho para que este delibere como entender (artigo 48.°, par. 2, a). Nesse caso, o Estado em causa não verá ser atendida a sua invocação do interesse nacional. Diferentemente, nos outros dois casos, se perante o Conselho Europeu o Estado em causa persistir na invocação do seu interesse nacional para impedir uma deliberação por maioria qualificada, pode um mínimo de nove Estados-membros instituir uma cooperação reforçada (artigo 82.°, n.O 3, par. 2, e artigo 83.°, n.O 3, par. 2). Na medida em que por esta via esse Estado pode ver atendida a sua invocação do interesse nacional, esta situação equivale ao exercício definitivo, por ele, do direito de veto. Por isso, parece que, nestas duas situações, estamos perante comportamentos assimiláveis ao do admitido pelo "compromisso de Luxemburgo". Aqui está, todavia, um ponto em que a prática terá de esclarecer a verdadeira intenção dos autores dos preceitos em causa. A dinâmica criada pelo progressivo alargamento da regra da maioria qualificada, em detrimento da unanimidade, cria dificuldades cada vez maiores ao uso do direito de veto no Conselho. Nesse sentido, o Tratado de Lisboa passou a exigir, tanto no TUE como no TFUE, a maioria qualificada em muitas votações para as quaisQ Tratado de Nice ainda requeria a unanimidade3". Isso era imposto, não apenas pelo aprofundamento da União Europeia levada a cabo por aquele Tratado, como também por não ser realista impor-se a unanimidade para muitas deliberações num Conselho compost9 por vinte e sete membros, sob pena de se paralisar o poder de decii são do Conselho. Atualmente, a unanimidade é requerida no TUE . no TFUE apenas nas cláusulas chamadas "constitucionais'~Q~ "quase-constitucionais", que versam sobre matérias essenciais:P8., exemplo, a adesão de novos Estados (artigo 49.° UE), O alargamen\Q de poderes para os órgãos da União (artigo 352." TFUE), intei"ess . essenciais em torno da segurança dos Estados (artigo 346.°, n." TFUE), processo legislativo ordinário (artigo 294.°, n.o 9, TFUE), Como facilmente se compreende, também no sistema de votação por unanimidade os Estados são tratados em pé de igualdade pelos Tratados. 366 Assim, JACQUÉ, pgs. 329 e segs. 328 c) Maioria qualificada o que ficou dito atrás permite-nos afirmar que o sistema de votação no Conselho por maioria qualificada se vai tornando no sistema-regra. Para compreendermos o modo como esse sistema vigora hoje, após o Tratado de Lisboa, temos de estudar o regime a que ele se encontrava sujeito antes dele, isto é, pela revisão de Nice ao Tratado CE. O sistema de voto por maioria qualificada encontrava-se regulado então no artigo 205.°, n.O 2, CE. Para o efeito da votação por maioria qualificada, aquele preceito, na tradição do Direito Comunitário e, depois, do Direito da União, adotava o método de ponderação de votos no Conselho, em função, com maior ou menor rigor"', de um critério demográfico aplicado aos Estados-membros. De harmonia com esse método, os Estados-membros tiveram o seguinte número de votos, quando a EUI'Opa era de Quinze, portanto, até 30 de abril de 2004: Alemanha, França, Itália e Reino Unido Espanha ~élgica, Grécia, Países Baixos e Portugal Austria e Suécia Dinamarca, Irlanda e Finlândia Luxemburgo 10 8 5 4 3 2 De harmonia com o par. 2 do mesmo artigo 205.°, n.O 2, CE, total de 87 votos, as deliberações, para serem aprovadas por maioria qualificada, precisavam de obter, pelo menos, 62 votos, 367 Assim, JACQUÉ, pgs. 329 e segs. 329 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia quando, segundo o Tratado, tivesse de haver proposta da Comissão; nos outros casos, elas precisavam de obter o mesmo número de votos, mas estes tinham de provir de, pelo menos, dez Estados. O que significava que, para se formar a chamada minoria de bloqueio, eram necessários 26 votos contra, ou, no caso de o Tratado não exigir proposta da Comissão, 26 votos dispersos por, pelo menos, seis Estados. Todavia, o chamado" compromisso de Ioanina"'" alterou essa minoria de bloqueio para "de 23 a 25" votos. O Tratado de Nice, contudo, veio prever, no Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, a ele anexo, a alteração deste sistema a partir de 1 de janeiro de 2005. Em primeiro lugar, o artigo 3.°, n.O I, aI. i, desse Protocolo, modificou a ponderação de votos que constava da redação em vigor do artigo 205.°, n.o 2, CE, da seguinte forma: -membros, quando fosse exigida proposta da Comissão, ou 169 votos de, pelo menos, 2/3 dos Estados, nos outros casos. Todavia, essa maioria podia não bastar. De facto, o artigo 3.°, n.o I, aI. ii, do Protocolo, acrescentou um novo n.o 4 ao artigo 205.°. Esse novo preceito veio permitir que qualquer dos Estados pedisse que fosse verificado se os Estados-membros que haviam formado a maioria qualificada, nos termos acabados de indicar, representavam, pelo menos, 62% da população total da União. Se não representassem, devia-se entender que a deliberação não estava aprovada. Esta inovação do Protocolo foi pedida pela Alemanha, e veio a beneficiá-la de modo especial, em função do seu maior peso demográfico por comparação com os Alemanha, França, Itália e Reino Unido Espanha Países Baixos Bélgica, Grécia e Portugal Áustria e Suécia Dinamarca, Irlanda e Finlândia Luxemburgo 29 27 13 12 10 7 4 Pode-se dizer que esta alteração consistiu num aumento de . votos para todos os Estados-membros, que, proporcionalmente, não foi muito diferente de Estado para Estado (até porque tinha de ser comparada com a proporção de diminuição de deputados que os.; Estados sofreriam contemporaneamente no Parlamento Europeu),.. salvo os Países Baixos (que descolaram um pouco da Bélgica, da;' Grécia e de Portugal) e a Espanha, que foi o Estado que, proporcionalmente, mais aumentou o seu número de votos. Para serem aprovadas, as deliberações passaram a ter de obú<r/ da soma de 237 votos, 169 votos, e provindos da maioria dos Estadçs' Decisão do Conselho de 29-3-94, IO n.o C 105, de 13-4-94, Decisão do Conselho de 1-1-95,10 n.o C 001, de 1-1-95. 368 330 outros Estados. Recorde-se que com a reunificação da Alemanha esta passou a ter mais de oitenta milhões de habitantes. Neste caso, a minoria de bloqueio passou a ser composta por 69 votos de, pelo menos, oito Estados, na primeira hipótese acima referida, e por 69 votos de 1/3 dos Estados mais um, na segunda hipótese, ou, simplesmente, ela devia-se dar por adquirida quando os Estados-membros que não aprovassem a deliberação representassem, pelo menos, 38,1 % da população total da União. O regime definido pela versão original do artigo 205.° CE vigorou até 30 de abril de 2004, último dia da Europa a Quinze. No dia seguinte, data do alargamento da União para 25, entrou em vigor um regime transitório, que esteve em vigor até 31 de outubro de 2004. Esse regime transitório foi estabelecido pelo artigo 26.° do Ato de adesão de 2003, que alterou a redação do artigo 205. 0 , n. o 2, CE. Segundo aquele regime, a ponderação de votos passou então a ser a Alemanha, França, Itália e Reino Unido Espanha e Polónia Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria, Países Baixos e Portugal Áustria e Suécia Dinamarca, Estónia, Irlanda, Letónia, Lituânia, Eslovénia, Eslováquia e Finlândia Chipre, Luxemburgo e Malta 331 10 8 5 4 3 2 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia Como se vê, este regime transitório respeitava, na sua base, o critério de ponderação que constava do Tratado CE antes da revisão de Nice. Como dispunha o preceito citado do Ato de adesão, para serem aprovadas, as deliberações tinham de obter, do somatório dos agora 124 votos possíveis, 88 votos quando tivesse de haver proposta da Comissão, e 88 votos de, no mínimo, 2/3 dos Estados-membros (isto é, dezassete), nos outros casos. Isto quer dizer que, para se formar a minoria de bloqueio, eram necessários 37 votos contra, ou, quando o Tratado não exigisse prévia proposta da Comissão, 37 votos dispersos por, pelo menos, nove Estados. Em I de novembro de 2004 passou a aplicar-se o regime definido no Protocolo já referido, anexo ao Tratado de Nice, mas adaptado a uma Europa a 25. Assim, e segundo o n.o 2 da Declaração respeitante ao alargamento da União Europeia, anexa ao Tratado de Nice, a partir de I de novembro de 2004 o sistema de ponderação de votos no Conselho passou a ser o seguinte, excluindo, da lista respetiva, a Bulgária e a Roménia, que, recordamo-lo, não chegaram a concluir as negociações para a sua adesão à União em 2004: Alemanha, França, Itália e Reino Unido Espanha e Polónia Países Baixos Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria e Portugal Áustria e Suécia Dinamarca, Eslováquia, Irlanda, Lituânia e Finlândia Estónia, Letónia, Eslovénia, Chipre e Luxemburgo Malta 29 27 13 12 10 7 4 3 As deliberações passaram, então, a ser aprovadas se obtivessem, da soma de 321 votos, pelo menos 232 votos a favor, da maioria dos Estados-membros, quando, por força do Tratado, deviam ser tomadas sob proposta da Comissão, e 232 votos a favor de, pelo menos, dois terços dos Estados, nos restantes casos. Todavia, mesmo então, qualquer dos Estados poderia pedir que se verificasse 332 se os Estados-membros que formaram essa maioria representavam, pelo menos, 62% da população total da União, o que, a não acontecer, faria com que a deliberação não se considerasse aprovada. A minoria de bloqueio passou, então, a ser composta por 90 votos de, pelo menos, treze Estados, na primeira hipótese a que nos referimos, e por 90 votos de 113 dos Estados mais um, na segunda hipótese, ou, simplesmente, ela era encontrada quando os Estados-membros que não aprovassem a deliberação representassem, pelo menos, 38,1 % da população total da União. A entrada em vigor deste regime (que, na sua estrutura, era idêntico ao definido para uma Europa a Quinze no Protocolo anexo ao Tratado de Nice) ficou marcada para I de novembro de 2004, pelo artigo 12.° do Ato de adesão dos dez novos membros. Essa data veio, desse modo, substituir a de I de janeiro de 2005, que ficara estabelecida no referido Protocolo. Isso ficou a dever-se ao facto de em I de novembro de 2004 iniciarem um novo mandato tanto o Parlamento Europeu como a Comissão (a primeira Comissão Durão Barroso). O Ato de adesão de 2005 veio alterar este regime a partir de I de janeiro de 2007, com a entrada da Bulgária e da Roménia, nessa data, para a União. Assim, o artigo 22.° do Protocolo de adesão, anexo àquele Ato, mantendo o número de votos do sistema de ponderação constante do n. ° 2 da Declaração re;peitante ao alargamento da União Europeia, anexo ao Tratado de Nice, veio atribuir 10 votos à Bulgária e 14 votos à Roménia, como, aliás, já dispunha aquela Declaração. Desta forma, a partir de I de janeiro de 2007, as deliberações passaram a ser aprovadas se obtivessem, da soma de 345 votos possíveis, pelo menos, 255 a favor (e não 258, como estabelecia a referida Declaração), da maioria dos Estados-membros, quando, por força do Tratado, devessem ser tomadas sob proposta da Comissão, e, pelo menos, 255 votos a favor (e não 258, como prescrevia aquela Declaração) de, pelo menos, dois terços dos Estados, nos restantes casos. Continuou a vigorar, na Europa de Vinte e Sete, o n.o 4 do artigo 205.° CE, que, como vimos, foi acrescentado pelo Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, anexo ao Tratado de 333 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia Nice, e reproduzido na Declaração respeitante ao alargamento da União Europeia, anexa ao mesmo Tratado. Ao longo de todo o processo de revisão dos Tratados na versão de Nice e que culminou com o Tratado de Lisboa, logo para começar, na Convenção sobre o Futuro da Europa, esta foi a questão mais controvertida e que, até à última hora, mais dividiu os Estados, tendo, portanto, sido a principal causa do atraso na revisão. Isto fica facilmente demonstrado pela disparidade entre o Projeto de Tratado aprovado pela Convenção sobre o Futuro da Europa, o Tratado Constitucional aprovado pela CIO de 2003 e a versão final do TUE e do TFUE, aprovada pelo Tratado de Lisboa. A grande alteração trazida pelo Tratado de Lisboa foi uma alteração de base: o critério de ponderação de votos, que, aliás, tal como acontecia com a ponderação de deputados no Parlamento Europeu, tinha a presidi-lo o princípio da degressividade proporcional em função da população dos Estados, foi substituído por uma dupla maioria, expressa, não em números fixos, mas em percentagens, e que atendia, uma, à população dos Estados e, outra, ao número de Estados. Três razões levaram a esta mudança de regime. Primeiro, quis-se combinar duas legitimidades diferentes (a democrática, que atende aos cidadãos da União, e a interestadual, que leva em conta os Estados) no sistema de votação por maioria qualificada no Conselho. Ou seja, refletir no sistema de votação no Conselho a dupla natureza da União, como União de povos e União de Estados. Em segundo lugar, este sistema permitia evitar o difícil problema de, quando de cada novo alargamento, se discutir o peso específico dos novos Estados no sistema de votação, o que a experiência tinha demonstrado ser muito penoso. Em terceiro lugar, a perspetiva unicamente demográfica, que estava subjacente ao sistema da ponderação de votos, iria conceder um peso excessivo à Turquia no Conselho, quando e se ela aderir à União. De facto, ela tomar-se-ia depressa no mais populoso membro da União: em 2005 tinha 73 milhões de habitantes e prevê-se que tenha 100 milhões em 2050, enquanto que, na generalidade dos atuais Estados-membros se estima que a população, em número, se estabilize. De facto, a Alemanha, que em 2007 tinha 82 milhões de habitantes, deverá baixar para 79 milhões em 2050, e a França, no mesmo período, deverá passar de 63 milhões para 66 milhões 36'. Na Convenção sobre o Futuro da Europa, fora proposto que, a partir de 1 de novembro de 2009 (portanto, quando o Parlamento Europeu e a Comissão iniciassem um novo mandato), a maioria qualificada no Conselho estaria encontrada quando o ato fosse aprovado por 50% de Estados-membros que representassem, pelo menos, 60% da população da União. Este sistema foi rejeitado liminarmente pela Espanha e pela Polónia a quem, pelo sistema de ponderação de votos, os Tratados conferiam o estatuto de "quase-grandes" ou "subgrandes", com 27 votos cada, ou seja, só dois votos a menos do que a Alemanha, enquanto que a população de cada um deles era em cerca de 50% inferior à da Alemanha. No sentido de tentar superar este impasse, a CIO de 2004 subiu em 5% os dois níveis exigidos para a maioria qualificada. Assim, a maioria qualificada corresponderia a, pelo menos, 55% dos membros do Conselho, num mínimo de quinze, que representassem pelo menos 65% da população da União. Note-se que a exigência do minimo de quinze Estados é redundante numa União de vinte e sete membros, porque 55% dos membros do Conselho corresponde exatamente a quinze. O mandato aprovado pelo Conselho Europeu em junho de 2007, sob a Presidência alemã, e a CIO que, nos termos daquele mandato, foi convocada e que desembocou no Tratado de Lisboa, vieram definir, em termos nalguns pontos diferentes, esta questão, já que durante a CIO, e até à última hora, o sistema da dupla maioria e a data da sua entrada em vigor foram objeto de controvérsia para alguns Estados. O Tratado de Lisboa veio regular esta matéria no artigo 16.", n.~ 4 e 5, UE, no artigo 238.°, n."' 2 e 3, TFUE, no artigo 3.° do Protocolo n." 36 relativo às disposições transitórias, e na Declaração n." 7 anexa aos Tratados. E resulta desses preceitos que a entrada em 334 335 369 Fonte: PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 81, e outros elementos aí citados. A União Europeia vigor do novo regime da dupla maioria, que substituirá o regime que se aplicou até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, se fará progressivamente, e por duas fases: 1." fase: até 31 de outubro de 2014 Continua a aplicar-se neste período o regime que estava em vigor antes do Tratado de Lisboa, portanto, à sombra do Tratado de Nice. É uma fase transitória, por isso ela está prevista no citado Protocolo n.O 36, anexo ao Tratado de Lisboa, no seu artigo 3.°, n.O' 3 e 4, por remissão do artigo 16.°, n.o 5, UE. Assim, por força da conjugação do ex-artigo 205.°, n.o 4, CE, do Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, anexo ao Tratado de Nice, da Declaração respeitante ao alargamento da União Europeia, também anexa ao mesmo Tratado, e dos Atos de adesão de 2003 e 2006, a maioria qualificada é calculada durante esse período em função dos três seguintes critérios: 1. ° - número de votos: do total dos 345 votos ponderados, quando o Conselho tiver que deliberar sob proposta da Comissão são necessários 255 votos e que exprimam a votação favorável da maioria dos Estados-membros. Nos restantes casos, são necessários, na mesma, 255 votos, mas que exprimam a maioria favorável de dois terços dos membros (ou seja, dezassete em vinte e sete). A maioria de bloqueio será, então, de 91 votos; 2. ° - qualquer membro do Conselho pode pedir, quando o Conselho aprovar uma deliberação por maioria qualificada, que se verifique se a maioria obtida representa, no mínimo, 62% da população total da União. Se não representar, considera-se que a deliberação não foi aprovada; 3.° - nos casos em que, nos termos dos Tratados, nem todos os membros do Conselho participem na votação (é o caso, por exemplo, das deliberações sobre a moeda única, em que só votam os Estados da Zona Euro), ou seja, nos casos em que se faça referência à maioria qualificada 336 Os órgãos e as instituições da União Europeia definida nos termos do artigo 238.°, n.o 3, TFUE, essa maioria qualificada corresponderá à mesma proporção dos votos ponderados, à mesma proporção do número de membros do Conselho e, nos casos pertinentes, à mesma percentagem da população dos Estados em causa, referidas nos números anteriores. 2." fase: de 1 de novembro de 2014 até 31 de março de 2017 Dos artigos 16.°, n.o 4, UE, e 238.°, n."' 2 e 3, TFUE, resulta que o regime da votação por maioria qualificada nesta fase será o seguinte: 1. ° - quando o Conselho deliberar sob proposta da Comissão ou do Alto Representante, a maioria qualificada corresponderá a, pelo menos, 55% dos membros do Conselho, num mínimo de quinze, devendo estes representar Estados-membros que reúnam, no mínimo, 65% da população da União. Nesse caso, a minoria de bloqueio será composta por, pelo menos, quatro membros do Conselho, sejam eles quais forem; 2. ° - quando o Conselho não deliberar sob proposta da Comissão ou do Alto Representante, a maioria qualificada corresponderá a, pelo menos, 72% dos membros do Conselho, que devem representar Estados-membros que reúnam, no mínimo, 65% da população da União; 3.° - quando, por força dos Tratados, nem todos os membros do Conselho participarem na votação (é o caso, por exemplo, e como atrás se referiu, das deliberações sobre a moeda única, em que só votam, obviamente, os Estados que fazem parte da Zona Euro), nesse caso a maioria qualificada será obtida da seguinte forma: - a deliberação, para ser aprovada, terá de obter votos favoráveis de, pelo menos, 55% dos membros do 337 A União Europeia Conselho, que devem representar Estados participantes que reúnam, ao todo, no mínimo, 65% da população desses Estados. Isto significa que as percentagens a aplicar são as mesmas das estipuladas pelo regime geral, definido acima, no n." I, salvo a exigência do mínimo de quinze Estados, que aqui não é reclamada. Nesta hipótese, a minoria de bloqueio será composta por, pelo menos, o número de membros do Conselho que represente mais de 35% (isto é, no mínimo, 35, I %) da população dos Estados-membros participantes mais um membro; quando o Conselho não deliberar sob proposta da Comissão ou do Alto Representante, a maioria qualificada corresponderá a, pelo menos, 72% dos membros do Conselho, que devem representar Estados-membros participantes, que reúnam, no mínimo, 65% da população desses Estados. Sublinhe-se que, nesta hipótese, as percentagens são as mesmas das fixadas no regime geral para as votações em que só alguns Estados participem na votação. Note-se, todavia, que os Estados que, na preparação do Tratado de Lisboa, se opunham ao regime da dupla maioria, e preferiam o sistema da ponderação de votos, para além de terem cOllseguiido adiar a aprovação daquele regime para só a partir de I de no'vernor'o de 2014, obtiveram, à última hora, na CIG de 2007, com a sua intran" sigência, uma segunda concessão, que ficou escrita no n." 2 do 3.° do já referido Protocolo n,O 36 anexo ao Tratado de Lisboa. facto, entre I de novembro de 2014 e 31 de março de 2017, . o Conselho tiver que aprovar uma deliberação por maioria qualificada, qualquer dos membros do Conselho poderá requerer que' a votação tenha lugar nos termos do disposto no n. o 3 do artigo 3. desse Protocolo, isto é, nos termos do regime que vigorava antes d entrada em vigor do Tratado de Lisboa em I de dezembro de 2009, e que, no essencial, era o regime estabelecido no Tratado de Nic9' Todavia, ao regime do Tratado de Nice somar-se-á então o dispost 338 Os órgãos e as instituições da União Europeia no n,o 4 do mesmo artigo 3.° do Protocolo, para o qual também remete o n. o 2 do mesmo artigo. Ou seja, nos casos em que, por força dos Tratados, nem todos os membros do Conselho participem na votação (já vimos atrás o que é que isto significa com base no atual artigo 238.°, n,o 3, TFUE), no cálculo da maioria qualificada necessária aplicar-se-á a mesma proporção de votos ponderados, a mesma proporção do número de membros do Conselho e, quando for pertinente, a mesma percentagem da população dos Estados-membros em causa das que ficaram estipuladas no n. ° 3 do mesmo artigo. Isto quer dizer que nesta matéria, e no essencial, o Tratado de Nice poderá continuar em vigor até 31 de março de 2017, isto é, mais de sete anos após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. De qualquer forma, há que sublinhar que o regime da dupla maioria definido no Tratado de Lisboa, e que, como já mostrámos, foi muito difícil de se obter, beneficia os Estados tanto grandes como médios e pequenos. Beneficia os Estados médios e pequenos, desde logo, porque a exigência de um elevado número mínimo de Estados para se formar a maioria absoluta (como mostrámos, ele nunca será inferior a quinze) afasta a hipótese de um "Diretório" dos Grandes na tomada de deliberações pelo Conselho. Mas também agrada aos Estados grandes, na medida em que um pequeno número de Estados pode formar uma minoria de bloqueio. Todavia, as duas situações não são iguais: a minoria de bloqueio bloqueia uma deliberação, isto é, impede que o Conselho delibere; só a maioria qualificada, com a dupla maioria traduzida em percentagens para o número mínimo de Estad()s e o mínimo de população, permite que o Conselho delibere. Em face do que fica dito, o mais tardar em I de abril de 2017 ~Jlllfal'a em vigor o regime de cálculo da maioria qualificada criada Tratado de Lisboa nos artigos 16.0 , n. o 4, UE, e 238.", n."' 2 e 3, ficando definitivamente abandonado o sistema de ponderade votos. Sublinhe-se que em nada interfere com o regime da dupla maIOria o Projeto de decisão do Conselho contido na Declaração 7 anexa ao Tratado de Lisboa (Declaração ad n. o 4 do artigo 16. o Tratado da União Europeia e n. o 2 do artigo 238. o do Tratado o Funcionamento da União Europeia). 339 A União Europeia Os 6rgãos e as instituições da União Europeia Para além de o Tratado de Lisboa ter passado para a votação por maioria qualificada no Conselho um grande número de casos em que ainda vigorava a votação por unanimidade, vários outros métodos foram tentados, desde a Convenção sobre o Futuro da Europa, para se diminuir ainda mais esse número e, portanto, para se retirar ainda mais aos Estados o direito de veto nas votações no Conselho. Assim, por exemplo, chegou a ser admitida a hipótese de votação por maioria "sobre-qualificada", que reunisse 516 de Estados e representasse, no mínimo, 80% da população da União. Previa-se que esta maioria fosse exigida para deliberações sobre matérias muito sensíveis para a soberania dos Estados, como a fiscalidade, a PESC e certos domínios do espaço de liberdade, segurança e justiça. Esta ideia não triunfou e, por isso, o Tratado de Lisboa teve de se contentar com alternativas. A primeira, e a mais importante, é a chamada cláusula passerelle. Ela está consagrada no artigo 48.°, n.o 7, UE. Ela permite Conselho Europeu, votando por unanimidade, e mediante prévia aprovação do Parlamento Europeu, votando este por maioria dos membros que o compõem, aprovar uma decisão que autorize o Conselho a votar por maioria qualificada numa matéria em que, por força do TFUE ou do Título V do TUE (relativo à Ação Externa e a dispo-.·'· sições específicas relativas à PESq, e sem implicações no domínio militar e de defesa, ele deveria votar por unanimidade. Ou permite ao' , Conselho Europeu, também aqui votando por unanimidade, e. mediante prévia aprovação do Parlamento Europeu, obtida por maioria dos membros que o compõem, aprovar uma decisão que autorize.,;' o Conselho a adotar atos segundo o processo legislativo ordinário ente casos em que ele, por força do TFUE, devia fazê-lo segundo o prÚ" cesso legislativo especial. Contudo, se um qualquer dos Parlamentos. nacionais, que têm de ser ouvidos antes da iniciativa do Conselho. Europeu, se opuser a ela, isso é suficiente para que o Conselho Euro! .' peu não possa aprovar essa decisão. Esta competência do Conselh9:' Europeu insere-se nos processos de revisão simplificados dos Trat~;· . 48° °7UEJ70. . dos, e esta- reguId a a, como se d'lsse, no artIgo ., n., 370 Estudaremos essa revisão dos Tratados infra, no 340 0.° l70-C. possibilidade de o Direito positivo da União Europeia prescrever a substituição da votação por unanimidade pela votação por maioria qualificada no Conselho sem a revisão ordinária dos Tratados pode tornar muito mais célere o aumento dos casos de substituição da unanimidade pela maioria qualificada, não obstante, no caso em apreço, seja de esperar dificuldade no consentimento prévio dos Parlamentos nacionais à decisão do Conselho Europeu. Outra alternativa é a da cláusula-travão. Ela permite estender a maioria qualificada a duas matérias nas quais um Estado tem, à partida, o direito de invocar o seu interesse nacional vital para obstar à votação por maioria qualificada, que os Tratados preveem, e exercer um direito de veto. Nesses casos, o Estado em causa pode pedir a intervenção do Conselho Europeu com O fundamento, exatamente, no facto de a votação no Conselho poder afetar o seu interesse nacional. Já estudámos essa matéria atrás, quando nos debrnçámos sobre o "compromisso de Luxemburgo"J71. Nos casos dos artigos 82.°, n.o 3, par. I, e 83.°, n.o 3, par. I, TFUE, se o Conselho puser fim à suspensão do processo legislativo ordinário com respeito pela maioria qualificada, portanto, obtendo o concurso do Estado que invocar o interesse nacional, o dissídio resolve-se com a prevalência da votação por maioria qualificada não obstante as reservas iniciais desse Estado. § 4.' A Comissão Europeia Bibliografia especial: Iostitut International d' Administration Publique, L'administration européenne, 1987; P. HAY, La Commission européenne et l'administration de la Communauté, Luxemburgo, 1989; l-V. LOU1S e WAELBROEK (eds.), La Commission au cour du systbne institutionnel des Comnumautés européennes, Bruxelas, 1989; VAN MIERT, La répartition des portefeuilles au sein de la COl1unission et te probleme de la collegialité, Mélanges Dehonsse, pg. 175; F. VIBERT, The Future Role o/the European Commission, Londres, 1994; M. WESTLAKE, 371 Ver supra, n.O lll-U-b. 341 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia The Commission and fhe Parliament: Partners and Rivais in the Euro- pean Policy-Making Process, Londres, 1994; F. cit., pgs. 37 e segs. DE QUADROS, Avaliação, 112. Génese A Comissão tem a sua origem remota na Alta Autoridade da CECA. Depois, os Tratados CEE e CEEA criaram uma Comissão para cada uma destas duas Comunidades. Por fim, o Tratado de fusão, ao fundir os três órgãos executivos das três Comunidades, criou uma só Comissão para todas elas. A sua designação veio a ser a de Comissão das Comunidades Europeias. Com o Tratado de Maastricht, a Comissão passou a ter competência, no quadro da União, também fora do âmbito das Comunidades. Por isso, ela passou a designar-se de Comissão Europeia ou Comissão da União Europeia. O Tratado de Lisboa manteve a designação de Comissão Europeia (artigo 13.°, n.o 1, UE). A Comissão tem o seu Regimento próprio'72. 113. Composição Segundo o artigo 213.°, n.o I, par. 3, CE, na versão do Tratado de Amesterdão, a Comissão devia ser composta por, pelo menos, um, nacional de cada Estado-membro, não podendo, contudo, qualquer Estado ter nela mais do que dois nacionais. Desta forma, quis-se, desde o Tratado de Roma, dar a possibilidade aos quatro grandes (que, depois, também foi concedida à Espanha), de terem, cada uIll': dois Comissários. Na Europa de Quinze, o número de Comissários era, pois, de., 20: a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália e o Reino Unido tinham, cada um, dois Comissários, e os outros Estados-membrqs m Doe. C (2000) 3614,10 L 308, de 8-12-2000, alterado pela Decisão d Comissão n" 20111737/IE, Enratom, de 9-11-2011, 10 L 296, de 15-11-2011. 342 tinham um, cada. O número de Comissários podia ser livremente alterado pelo Conselho, por unanimidade (o mesmo artigo 213.°, n.o 1, par. 2, CE). Na Cimeira de Maastricht, de dezembro de 1991, chegou a ficar acordado que todos os Estados passariam a ter, cada um deles, apenas um Comissário. Desta forma, dava-se satisfação a alguns Estados não grandes, entre os quais Portugal, que defendiam que, sendo a Comissão um órgão de integração e não uma câmara de representação dos Estados, não fazia sentido que nela os Estados não fossem tratados em pé de igualdade e, ao contrário, ela refletisse as desigualdades demográficas entre os Estados. Essa função devia ficar para o Conselho. Todavia, à última hora, a pedido da Espanha, essa alteração ficou adiada para a próxima revisão. Quando da revisão de Amesterdão, foi junto, ao Tratado de revisão, um protocolo, o Protocolo relativo às instituições na perspetiva do alargamento da União Europeia, que estipulava que, à data futura da entrada em vigor do primeiro alargamento da União, a Comissão seria composta apenas por um nacional de cada Estado-membro (isto é, os Estados grandes e a Espanha perderiam o segundo Comissário), mas, em contrapartida, os Estados que perdessem o segundo Comissário seriam compensados no sistema de ponderação de votos no Conselho. Todavia, segundo o mesmo Protocolo, o mais tardar um ano antes da data em que a União Europeia passasse a ser constituída por mais de vinte Estados-membros, seria convocada uma CIG, que procederia a uma "revisão global" das disposições dos Tratados sobre a composição e o funcionamento dos órgãos. Esse Protocolo prenunciava, deste modo, a revisão do Tratado que seria sempre necessária para que o Conselho deixasse de ter '4C·UU'4U", no exercício dos poderes que o citado artigo 213.° lhe cOlnferia, de fixar o número de membros da Comissão estipulado no ° 1 daquele preceito. Finalmente, o Tratado de Nice veio alterar este sistema a penno alargamento da União. De facto, do artigo 4.° do já referido Protocolo relativo ao alclrl;,am'€nto da União Europeia, modificado pelo artigo 45.°, n.o 2, 343 A União Europeia aI. d, do Ato de adesão de 2003, resultou a seguinte alteração, em duas fases, ao sistema de composição da Comissão: numa primeira fase, a representação igual de todos os Estados; numa segunda fase, a representação rotativa. A nossa posição perante esta matéria encontra-se hoje mitigada por confronto com as edições anteriores deste livro. Entendemos que há argumentos a favor das duas teses, ou seja, por um lado, da Comissão composta por um nacional de cada um e de todos os Estados-membros, por outro lado, da Comissão com uma composição mais reduzida. O grande argumento a favor da tese de que a Comissão deve ter nacionais de todos os Estados é o de que, na prática quotidiana do funcionamento dos órgãos da União, os Estados e os cidadãos europeus sentem que a Comissão, que é um órgão permanente, está muito mais próxima deles e compreende muito melhor os seus problemas do que o Conselho, que nem sequer é um órgão permanente. Além disso, os Estados já perceberam que o seu Comissário nacional, sem prejuízo de ser independente do respetivo Estado, pode chamar a atenção especial dos seus pares para a especificidade dos problemas do seu País na execução pela Comissão do Direito e das políticas da União. E essa atuação dos Comissários, também já o perceberam os Estados e os cidadãos, é por vezes mais eficaz do que a dos respetivos delegados no Conselho. Outro argumento a favor da tese segundo a qual a Comissão deve ter um nacional por cada um e por todos os Estados-membros é o de que a redução do número de Comissários parece não ser nem necessária, nem compatível, com a natureza da Comissão. Não é necessária, porque a Comissão nunca delibera por una' nimidade. Por isso, o facto de os membros da Comissão serem em grande número não afeta o funcionamento e a eficácia da Comissão: Nem se diga que não há pelouros para trinta ou mais Comissários: Também se dizia isso quando a Comissão estava para ter vinte e sete Estados-membros e vemos hoje que os vinte e sete Comissários têm, todos, pelouros relevantes, embora, obviamente, uns mais importan'! tes do que outros. E é sabido que muitos dos atuais Comissários,' ainda têm pelouros muito vastos e complexos, que permitem, se não? 344 Os 6rgãos e as instituições da União Europeia exigem, desdobramentos, para além de o crescente alargamento das atribuições da União, no plano da sua ordem interna e no plano da Comunidade Internacional, e sobretudo após o Tratado de Lisboa, forçosamente ir levar à criação de novos pelouros. Para além disso, porém, esse regime, de um certo ponto de vista, também é incompatível com a índole da Comissão. Como já estudámos atrás, esta encarna a legitimidade da integração, isto é, representa o interesse geral da União, o interesse da integração. Ora, a legitimidade da integração impõe o tratamento igual de todos os Estados-membros. E esse tratamento igual é infringido se há Estados que têm nacionais na Comissão e outros não. É claro que, sob o prisma desta tese, há que ser prudente. Ela não pode ser interpretada como querendo significar que numa União com quarenta Estados-membros a Comissão tenha quarenta membros. Mas, quando a União atingir essa dimensão (o que será um bom sinal), então ver-se-á. Contudo, também há argumentos a favor da tese que defende que a Comissão deve ter uma composição reduzida. O primeiro desses argumentos parte, exatamente, da referida construção segundo a qual a Comissão representa a integração. O artigo 17.", n. o 1, UE, dispõe que "A Comissão promove o interesse geral da União" (itálico nosso), melhor se diria, representa o interesse geral ou coletivo da União. Ora, sendo assim, parece ser legítimo afirmar que os Estados têm de participar, todos, no órgão que os representa a eles e os seus interesses, que é o Conselho, mas não faz sentido que participem todos no órgão que simboliza e representa o interesse geral (que é uma figura abstrata) da União. O segundo argumento tem a ver com a eficácia da Comissão. Os últimos alargamentos mostram que vinte e sete Comissários, provindo de culturas e famI1ias políticas muito diferentes, não dão à \...(Jmlssao a coesão de que esta precisa para atuar depressa e bem. O problema não é da maioria da votação, é da sensibilidade muito diferente dos Comissários para as questões sobre as quais se têm de pronunciar. Nos trabalhos preparatórios do Tratado de Lisboa, e desde a Convenção sobre o Futuro da Europa, os Estados estiveram muito 345 A União Europeia divididos sobre as duas teses que acabámos de expor. Também aqui o Tratado de Lisboa resolveu adiar o problema. Assim, até ao fim do mandato da atual Comissão, a Comissão Durão Barroso II, isto é, até 31 de outubro de 2014, ela é composta por um nacional de cada Estado-membro, incluindo o seu Presidente e o Alto Representante, que é um dos Vice-Presidentes da Comissão. Dispõe nesse sentido o artigo 17.°, n.o 4, UE. Segundo o artigo 17.°, n.o 5, UE, a partir de I de novembro de 2014, a Comissão será composta, incluindo o seu Presidente e o Alto Representante, por um número de membros correspondente a 2/3 do número de Estados, salvo se o Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, decidir alterar esse número. Nesse caso, os membros da Comissão serão escolhidos de entre os nacionais dos Estados-membros, com base num sistema de rotação rigorosamente igualitária entre os Estados, que permita refletir a posição demográfica e geográfica relativa dos Estados-membros no seu conjunto. O artigo 244.° TFUE completa este preceito, reiterando que o referido sistema de rotação é um corolário do princípio da igualdade dos Estados, consagrado no artigo 4.°, n.o 2, I.' parte, UE, e acrescentando, para se alcançar essa igualdade, que nenhum Estado pode ter na Comissão um nacional em mais do que dois mandatos em cada três. As duas alíneas do artigo 244. o TFUE têm, aliás, a mesma redação das alíneas do antigo artigo 4.°, n.o 3, a, do Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, anexo ao Tratado de Nice. Portanto, das duas teses, os Tratados abandonam a primeira para adotarem a segunda a partir de I de novembro de 2014. Os Estados médios e pequenos serão os mais prejudicados com isso, já que os Estados grandes têm uma presença forte na Administração da União, a começar pelo aparelho da Comissão, que lhes permite compensar a ausência de um Comissário, sem embargo, insiste-se, da independência dos Comissários em relação aos Estados e, desde logo, ao Estado de que são nacionais. 346 Os órgãos e as instituições da União Europeia 114. Modo de constituição Durante muito tempo, segundo o ex-artigo 214.° CE, na versão de Nice, os membros da Comissão eram designados, de comum acordo, pelos governos dos Estados-membros. O Tratado limitava-se a exigir que eles fossem escolhidos "em função da sua competência geral" e oferecessem "todas as garantias de independência" (ex-artigo 213.°, n. I, CE). Os governos dos Estados-membros ficavam, dessa forma, com uma larga margem de discricionariedade na escolha dos Comissários. Praticamente não havia regras que presidissem a essa escolha. Alguns governos tinham o cuidado de propor para o cargo de Comissário uma personalidade com experiência já adquirida nas matérias dos pelouros que iriam ser atribuídos ao Comissário. Outros, nem isso. Por seu lado, os Estados grandes pretendiam, quase sempre, que um dos seus Comissários fosse da confiança do partido ou dos partidos no governo, e o outro, da oposição, em regra, do maior partido da oposição. Os Tratados de Maastricht e de Amesterdão limitaram consideravelmente essa discricionariedade dos governos nacionais, ao alterarem substancialmente o ex-artigo 214.°, CE, sobretudo pela mtrodução de um n. ° 2 nesse artigo. O Tratado de Nice, por sua vez, quase que acabou com qualquer intervenção dos governos na matéria: veja-se a redação do ex-artigo 214.° CE. E o Tratado de Lisboa foi ainda mais longe. Hoje, o regime de designação dos membros da Comissão encontra-se regulado no artigo 17.°, n." 7, UE, e é o seguinte. Passou a ser o Conselho Europeu, e não o Conselho reunido a nível de Chefes de Estado e de Governo, como acontecia com o Tratado CE na versão de Nice (artigo 214.°, n. o 2), a escolher, por maioria qualificada, a personalidade que tenciona nomear Presidente da Comissão. Para tanto, ele terá de atender aos resultados das eleições para o Parlamento Europeu. Isto significa que o Tratado de Lisboa, quer que os cidadãos europeus, quando votam nas eleições para o Parlamento Europeu, incliquem ou, pelo menos, sugiram a que parudo querem que pertença o Presidente da Comissão, como o fazem hoje, por exemplo, os eleitores alemães quanto ao seu Chanceler. O 347 A União Europeia Os órgãos e m instituições da União Europeia Esse nome é proposto pelo Conselho Europeu ao Parlamento Europeu. Segundo o artigo 105." do Regimento do Parlamento Europeu, o seu Presidente convidará depois o candidato a proferir uma declaração e a apresentar as suas orientações políticas ao Parlamento. Essa declaração será seguida de debate, no qual poderão participar os membros do Conselho Europeu. De seguida, o Parlamento Europeu, em escrutínio secreto, elegará a individualidade proposta, por maioria dos membros que o compõem, ou seja, por uma maioria difícil. O resultado positivo da votação assume a natureza de verdadeira eleição pelo Parlamento. Essa eleição é transmitida ao Presidente do Conselho Europeu. Se o resultado da votação do Parlamento for uegativo, o seu Presidente convidará o Conselho Europeu a indicar um novo nome ao Parlamento, seguindo-se o mesmo procedimento. Depois, o Conselho, e não o Conselho Europeu, de comum acordo com o Presidente eleito, aprova a lista das outras personalidades que tenciona nomear membros da Comissão. Essa lista será elaborada em conformidade com as sugestões apresentadas por cada Estado-membro - é essa, aliás, a única intervenção que, agora, os Estados-membros, como tais, têm neste processo. A este processo de designação escapa apenas o Alto Representante, que é escolhido pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, e com o acordo prévio do Presidente da Comissão, para presidir ao Conselho dos Negócios Estrangeiros e que, por força dos Tratados, é, ao mesmo tempo, um dos Vice-Presidentes da Comissão (artigo 18." UE). Por força das disposições conjugadas do artigo 17.°, n.o par 2, UE, e do artigo 106.° do Regimento do Parlamento Europeu, de seguida o Presidente do Parlamento Europeu convidará os can<\i, datos indigitados pelo Presidente eleito da Comissão e pelo Conselho, e o Alto Representante, a comparecerem perante as diferentes comissões parlamentares, conforme os pelouros para que tiverelIf. sido indigitados. Essas audições são públicas. Cada candidato indP gitado fará uma declaração perante a respetiva comissão parlamen, tar e responderá às perguntas que lhe forem colocadas. Nessa,S audições vai-se apurar, designadamente, da aptidão e da adequação; de cada candidato, ao cargo de Comissário, no pelouro que lhe está reservado. Este sistema já foi aplicado às individualidades propostas para a Comissão presidida por JACQUES SANTER, por ROMANO PRODl e por DURÃO BARROS0373 • Parece nada impedir que, pelo funcionamento desta regra, o Parlamento recuse a aprovação de um, ou mais, nomes concretos para a Comissão, o que obrigaria o Presidente eleito e o Conselho a proporem outro ou outros nomes para substituir a personalidade ou as personalidades recusadas. Aliás, isso já aconteceu. Quanto ao Alto Representante, a recusa do seu nome para a Comissão forçaria, obviamente, o Conselho Europeu e o Presidente da 348 Comissão a ter de indicar uma outra personalidade tanto para a Comissão corno para presidir ao Conselho dos Negócios Estrangeiros. O Presidente eleito e outros membros designados para a Comissão são, depois, sujeitos, com o respetivo programa, à aprovação, em bloco, do Parlamento Europeu, por voto nominal. Todavia, obtida essa aprovação, todos eles são finalmente "nomeados" pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada (artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, e artigo 106.° do Regimento do Parlamento Europeu). Os novos Comissários iniciam as suas funções no dia seguinte à data em que termina o mandato da Comissão anterior. Por sua vez, os antigos Comissários permanecem em funções, em qualquer caso, até à sua substituição pelos novos Comissários. O mandato dos Comissários foi de quatro anos até ao Tratado Maastricht. Este modificou a duração do mandato para cinco anos (hoje, artigo 17.°, par. 1, UE). A substituição dos Comissários pode ter lugar individual ou colletivame:nt'~, nos termos regulados no artigo 246." TFUE. Em caso de morte, exoneração voluntária, ou demissão, de um Comissário, o Conselho pode substitui-lo ou deixar o cargo vago até termo do mandato. Se o Conselho decidir substitui-lo, o novo completará o mandato do seu antecessor. A intenção medida é a de permitir, no fim do mandato, se assim for entena renovação em bloco da Comissão. O Presidente e o Alto m As audições constam do sítio www.europarl.europa.eu/hearings/com_ 349 A União Europeia Representante, esses, serão necessariamente substituídos e, por idêntica razão, até ao final do mandato. A demissão de qualquer membro da Comissão pode ser levada a cabo pelo TJUE, a pedido do Conselho, deliberando por maioria simples, ou da Comissão, nos termos definidos no artigo 247.' TFUE. Em caso de substituição coletiva, por efeito de uma moção de censura aprovada pelo Parlamento Europeu, como oportunamente estudámos, ou por uma exoneração voluntária dos membros da Comissão, estes continuam em funções até à tomada de posse dos membros que os venham a substituir. Estes limitam-se a concluir o mandato da Comissão cessante. 115. Estatuto dos comissários Os comissários beneficiam de um estatuto que se traduz em quatro características fundamentais: dever de independência e de isenção. Com isto quer-se significar que, de harmonia com o artigo 245.° TFUE, os Comissários devem desempenhar as suas funções com plena independência e no interesse geral da União. Designadamente, eles não recehem ordens ou instruções dos Estados, porque, como já sabemos, eles não representam os Estados mas apenas a União. Por isso, ao assumirem os seus cargos eles comprometem-se, perante o Tribunal de Justiça, a "não solicitar nem aceitar instruções de nenhum Governo ou de qualquer outra entidade". A isenção que lhes é exigida impõe-lhes obrigações mesmo depois de terem cessado as suas funções, como estabelece o par. 2 do mesmo artigo 245.° TFUE; inanwvibilidade, o que quer dizer que só podem cessar as suas funções por qualquer dos seguintes motivos, dos quais nenhum depende da vontade dos Estados: morte ou exone, ração voluntária; exoneração coletiva, por efeito da aprovação pelo Parlamento Europeu de uma moção de censura; demissão, decidida, como dissemos, pelo Trihunal de 350 Os órgãos e as instituições da União Europeia tiça, a requerimento do Conselho ou da Comissão, e fundada em "falta grave" ou no facto de o Comissário em causa ter deixado de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções (por exemplo, incapacidade física ou aceitação de um cargo incompatível); exclusividade de junções, o que inclui a proibição de serem remunerados por conferências ou por atividades académicas, embora possam receher direitos de autor por livros que publiquem, mediante parecer prévio do Parlamento Europeu; privilégios e imunidades idênticos aos que se aplicam ao comum dos funcionários e agentes da União. A remuneração é fixada pelo Conselho e suportada pelo Orçamento da União. O exercício do cargo dá aos comissários direito à pensão. 116. Competência Contrariamente à Alta Autoridade da CECA, que foi criada por JEAN MONNET para ser o principal órgão de decisão naquela Comunidade, na antiga CEE, depois CE, e na CEEA, à Comissão ficou reservado um papel que, no essencial, podia ser designado abreviadamente de órgão executivo daquelas duas Comunidades. Como tal, competia-lhe zelar pelo cumprimento dos Tratados e do demais Direito Comunitário - daí a expressão clássica "a Comissão, a guardas Tratados" ("la Commission, la gardienne des traités"). Com as sucessivas revisões dos Tratados institutivos a Comissão foi, todavia, reforçando a sua competência, que, no entanto, foi sempre predominantemente de execução. Com o Tratado de Lisboa, principal competência da Comissão continua ainda a ser a de exeEla foi, aliás, reforçada. Mas a Comissão viu alargados os poderes a novos domínios. O atual artigo 17.', n." I e 2, UE, pretende definir a competênda Comissão. Fá-lo de modo muito mais pormenorizado do que o fazia o seu homólogo no Tratado CE, na versão de Nice, o artigo 351 Os 6rgãos e as instituições da União Europeia A União Europeia 211.'. Todavia, temos que relacionar esse preceito com outros artigos dos Tratados para ficarmos com uma noção completa dos poderes atuais da Comissão, incluindo no processo legislativo. Assim, à Comissão cabe: a) promover, de uma forma genérica, o interesse geral da União e, concretamente, tomar todas as iniciativas adequadas à prossecução desse interesse geral; b) exercer um direito de iniciativa no processo legislativo ordinário ou especial: os atos legislativos só podem ser aprovados mediante proposta da Comissão (artigo 17.', n.' 2, 1." frase), salvo disposição em contrário e excetuados os casos em que essa iniciativa é conferida pelos Tratados a um grupo de Estados-membros, ou ao Parlamento Europeu, ou ao Alto Representante, ou pode ser substituída por uma recomendação do Banco Central Europeu ou por um pedido do Tribunal de Justiça da União Europeia ou do Banco Europeu de Investimento (artigo 289.', n.o 4, TFUE, aplicado, por exemplo, pelo artigo 294.', n.' 15, do me:smo Tratado); c) exercer um direito de iniciativa nos processos não legislativos nos casos em que os Tratados o prevejam (artigo n.O 2, 2." frase). Tanto na situação referida em cima, alínea anterior, como neste caso, sempre que, por força Tratados, tiver que deliberar sob proposta prévia da ,-,''''''co° são, o Conselho só pode alterar a proposta da Comissão unanimidade, salvo nas situações expressamente co:ntempiadas no artigo 293.°, n.o 1, TFUE (ver este artigo e, cretizando-o especialmente quanto ao processo le!lisllativo.! ordinário, ver o artigo 294.', n.o 9, TFUE); ti) tentar aproximar, no Comité de Conciliação, as po:slçi)eSH. divergentes do Conselho e do Parlamento Europeu longo do processo legislativo ordinário (artigo n.' 11, TFUE); e) praticar os atos delegados previstos no artigo 290.': atos praticados por delegação de um ato legislativo 352 fJ atos não legislativos de alcance geral que completam ou alteram certos elementos não essenciais do ato legislativo. São atos que se situam na fronteira entre atos legislativos e atos de execução. Estudaremos estes atos adiante, quando nos debruçarmos sobre o Direito derivado como fonte do Direito da União; exercer uma vasta competência executiva própria, aumentada e pormenorizada ainda mais pelo Tratado de Lisboa, e sintetizada no artigo 17.', n.o 1, UE. Assim, a Comissão: vela pela aplicação do Direito da União, isto é, aplica e faz aplicar esse Direito, podendo formular recomendações para a boa aplicação dos Tratados nos casos neles previstos ou sempre que julgue necessário; controla a aplicação do Direito da União por todas as entidades que o devem aplicar, contando aqui com a fiscalização do TJUE; executa o Orçamento e gere os programas da União; exerce as funções de coordenação, execução e gestão conferidas pelos Tratados, inclusivamente à sombra do artigo 291.°, n.O 2, TFUE; representa a União no plano externo, sem prejuízo da competência atribuída ao Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e ao Presidente do Conselho Europeu, este último, no domínio da PESC, como já vimos (artigo 15.°, n.O 6, par. 2, UE); toma a iniciativa da programação anual e plurianual da União com vista à obtenção de acordos interinstitucionais, isto é, acordos entre os órgãos da União; g) negociar alguns acordos internacionais em nome da União (artigo 207.°, n.o 3, TFUE) e apresentar ao Conselho recomendações quanto à celebração de outros acordos, inclusive no âmbito da União Económica e Monetária (artigos 218.°, n.o 3, e 219.° TFUE); 353 A União Europeia h) no puro campo das políticas econóI)lica e monetária, exer- cer poderes de recomendação (artigo 121.° TFUE) e de fiscalização (artigos 126.° e 140.° TFUE). A Comissão encontra-se no centro do sistema institucional da União. Em grande parte, a eficácia e a operacionalidade do aparelho institucional da União e, portanto, desta própria, dependem do funcionamento da Comissão. Se somarmos a sua competência, que acabámos de examinar, com a forma da sua designação e da sua investidura e com o seu funcionamento, que vamos daqui a pouco estudar, podemos dizer que ela cada vez mais se aproxima do modelo de um Governo estadual. 117. Em especial, a competência do Presidente Com o evoluir dos tempos, e sobretudo desde o Tratado de Maastricht, a figura do Presidente da Comissão tem vindo a destacar-se no seio da Comissão. Ele é cada vez menos um Comissário, um primus inter pares, e cada vez mais o Chefe de uma equipa. O Tratado de Lisboa reforçou ainda mais esse papel do Presidente''', dando-lhe um estatuto ainda mais específico no seio da Comissão e conferindo à sua competência um conteúdo ainda mais político. Já nos referimos aos aspetos da designação do Presidente e à sua influência na escolha dos outros membros da Comissão. A sua legitimidade ficou fortemente reforçada por ele ser designado pelo Conselho Europeu em função dos resultados das eleições para o Parlamento Europeu, de, depois, ser eleito pelo Parlamento por uma difícil maioria e de ter um papel ainda mais determinante na escolha dos Comissários. Mas também a sua competência aumentou consideravelmente. 374 Reconhece-o PIRIS, que participou nos trabalhos que conduziram à revisão de Lisboa na sua qualidade de Diretor do Serviço Jurídico do Conselho - pgs. 229-230. 354 Os órgãos e as instituições da União Europeia o antigo Tratado CE, depois da revisão de Amesterdão (no artigo 219. '), e, de forma ainda mais expressiva, depois da revisão de Nice (no artigo 217.'), veio atribuir ao Presidente, antes de tudo, a "orientação política" da Comissão. Embora esta expressão tenha desaparecido com o Tratado de Lisboa, este veio aumentar bastante a competência do Presidente em relação à Comissão. A matéria encontra-se regulada nos artigos 17.°, n.' 6, UE, e 248.° TFUE, e, residualmente, no artigo 18.°, n.O' 1 e 4, UE. Assim, compete ao Presidente: a) definir as grandes linhas de orientação da atuação da Comissão. Ou seja, o Presidente coordena a atuação, inclusive, política, de toda a Comissão; b) fixar a organização interna da Comissão, isto é, criar as condições para que a Comissão atue como um órgão coeso, coerente, eficaz e com respeito pela sua colegialidade; c) como se disse atrás, ter um papel importante na escolha, e inclusivamente, dar o seu acordo ao nome que o Conselho Europeu designar para Alto Representante, isto é, para Presidente do Conselho dos Negócios Estrangeiros e Vice-Presidente da Comissão; d) escolher livremente os seus Vice-Presidentes, salvo o Alto Representante, que, como se disse, é designado pelo Conselho Europeu, ainda que com o acordo prévio do Presidente da Comissão, para presidir ao Conselho dos Negócios Estrangeiros e, ao mesmo tempo, para, por força dos Tratados, ser um dos Vice-Presidentes da Comissão; e) exonerar livremente (e já sem necessidade de prévia aprovação da Comissão como órgão colegial, como sucedia por força do artigo 217.°, n.o 4, CE, na versão de Nice) qualquer membro da Comissão (salvo o Alto Representante), apesar da redação simpática do par. 2 do n. ° 6 do artigo 17." que já vem do Tratado de Nice, e que pretende dar a entender que essa exoneração só terá lugar por iniciativa do Comissário respetivo e se o Presidente lho pedir. Quanto ao Alto Representante, apesar da redação pouco clara do 355 A União Europeia li artigo 17.°, n.O 6, par. 2, 2." parte, UE, a remissão aí para o artigo 18.°, n.O 1, UE, mostra-nos que ele só pode ser exonerado pelo Conselho Europeu, ainda que mediante acordo prévio do Presidente da Comissão. Isso pode tornar irrelevante o disposto no artigo 17.°, n.O 6, par. 2,2." parte, UE, porque não é o mesmo o Presidente da Comissão exonerar o Alto Representante e só poder fazê-lo o Conselho Europeu, ainda que com o acordo prévio do Presidente. da Comissão, como é o que acontece, por força do refendo artigo 18.°, n.O 1, UE; embora os Tratados não o digam expressamente, por uma conjugação de circunstâncias resultantes da sua letra é o Presidente da Comissão quem conduz, em última instância, a ação externa da Uniâo. Veremos isto melhor no Capítulo seguinte. Ou seja, e tentando ser rigoroso quanto à letra e ao espírito dos Tratados, se é verdade que, como atrás dissemos, a Comissão, pela sua designação e pela sua competência, se aproxima progressivamente do modelo de um governo estadual, o Presidente, também pelo modo da sua designação e pelos poderes que hoje possui, está cada vez mais próximo do modelo de um Chefe de Governo de um Estado. 118. Funcionamento I - Generalidades A Comissão exerce o essencial da sua competência agindo como órgão colegial. Daqui resulta que, como reconhece o TJ, "todos os membros da Comissão são coletivamente responsáveis, plano político, pelo conjunto das. deliberações to~adas"375 .. Isto não prejudica o facto de o seu PresIdente, como ha pouco VImos, 375 Ac. 23-9-86, Akzo Chemie, Proe. 5/85, CoI., pgs. 2.585 e segs .. 356 Os órgãos e as instituições da União Europeia importante competência própria, designadamente, para a definição da orientação da Comissão e a determinação da sua organização interna (artigo 17.°, n.O 6, UE). Cada Comissário tem um voto. Nos termos do artigo 250.° TFUE, a Comissão delibera por maioria simples dos seus membros. Cada membro da Comissão tem a seu cargo um ou mais pelouros, isto é, uma ou mais áreas de atribuições da União. Não tem sido fácil a repartição de pelouros pelos diversos Comissários, porque os Estados procuram sempre que aos Comissários por si indicados, sejam atribuídos os pelouros mais importantes. Por isso, é o Presidente que, ao ter de definir a organização interna da Comissão, e, mais concretamente, de ter de assegurar "a coerência, a eficácia e a oportunidade da sua ação" (artigo 17.°, n.O 6, b, TFUE), goza de um amplo poder discricionário para a criação dos pelouros, para a sua distribuição por todos os membros da Comissão, inclusive por si, bem como para a sua redefinição e redistribuição durante o mandato - o que ainda mais reforça o poder do Presidente em relação à Comissão. Não é fácil a repartição pelo Presidente de pelouros pelos Comissários. Como se imagina, os pelouros mais importantes _ o mercado interno, a concorrência, as relações externas, a segurança e a justiça... - são os mais disputados, especialmente pelos Comissários dos Estados grandes. Com o tempo têm sido criados novos pelouros para acudir às novas necessidades: por um lado, acompanhar o alargamento progressivo das atribuições da União a novos domínios, o que é ainda mais sensível depois do Tratado de Lisboa, como vimos atrás, no Capítulo dedicado às atribuições da União; depois, encoutrar pelouros com substância, e não meramente decorativos, para vinte e sete Comissários; por fim, desdobrar em dois ou mais, devido ao aumento da sua complexidade, os pelouros clássicos, como, por exemplo, os assuntos económicos, a educação, a cultura... A redução do número de Comissários a partir de 1 de novembro de 2014 irá levar a uma concentração de pelouros em cada Comissário por confronto com a situação atual. 357 Os órgãos e as instituições da União Europeia A União Europeia Cabe a cada Comissário, nos respetivos pelouros, elaborar projetos de propostas a apresentar pela Comissão ao Conselho e, se eles forem aprovados, zelar pela sua aplicação. Cada Comissário gere uma ou mais Direções-Gerais, bem como os demais serviços, relacionados com os respetivos pelouros. A relação entre cada Comissário e os respetivos Diretores-Gerais nem sempre é fácil. Ela depende muito da personalidade e da mentalidade de cada um dos intervenientes, o que pode ser condicionado pela diferente nacionalidade e, por conseguinte, pela diferente cultura de cada um deles, e depende também do protagonismo que cada um deles queira por' ventura assumir no exercício das suas funções. Cada um dos Comissários tem o seu próprio "gabinete". Ele é dirigido por um Chefe de Gabinete e é composto por personalidades escolhidas livremente, dentro ou fora dos funcionários que pertencem aos quadros da função pública da União. Uma das características específicas desses Gabinetes reside no facto de a sua composição ser multinacional, isto é, o Chefe de Gabinete, os Chefes de Gabinete Adjuntos e os Assessores são de diversas nacionalidades. Este facto, não só é mais compatível com o espírito e a natureza União, como também permite aos respetivos membros da Comissão terem uma melhor compreensão global da realidade e dos problé- . mas da União, de todos os Estados-membros e de todos os povos da União. Os Gabinetes dos Comissários, sobretudo se são compostos' por individualidades bem preparadas nos pelouros respetivos, e,' particularmente, o Gabinete do Presidente da Comissão, têm vindo> a ganhar um peso crescente no funcionamento da Comissão. Esse aumento de importância dos Gabinetes dos membros da Comissão.~, ajudado pela circunstância de as reuniões da Comissão serem prece;. didas de reuniões dos Chefes de Gabinete dos Comissários. ., II - A delegação de poderes O avolumar do trabalho da Comissão impôs o recurso, no se,U funcionamento interno, ao instituto da delegação de poderes. Gil. seja, segundo o Regimento da Comissão (artigos 13.° e 14.°), est 358 pode habilitar os seus membros e os seus funcionários a tomar em nome da Comissão e sob a sua fiscalização, "medidas de gestã~ ou de admInistração", com a possibilidade de subdelegação. A delegação de poderes tem sido muito frequentemente utilizada no funcionamento da Comissão. E o TJ considera legais tanto a ~elegação como os atos praticados por delegação, desde que estes nao ultrapassem o âmbito material definido nos referidos artigos 13.° e 14.° do Regimento'76. ES,!lecial referência merece a delegação de poderes pela Comlssao em órgãos subsidiários que ela cria com a missão específica. de s~ desempenharem de tarefas que exigem especiais qualificaçoes lecmcas. O TJ considera legal a criação destes órgãos com a condição de neles serem delegados apenas "poderes de exe~ução claramente delimitados" e nunca poderes discricionários377. 119. A destituição da Comissão Vimos há pouco que o Presidente da Comissão pode exonerar os Comissários. E já antes tínhamos estudado que o Parlamento Europeu pode destituir a Comissão através da aprovação da moção de censura prevista no artigo 234.° TFUE. Quanto a este último ponto, acrescentar~mos agora que, com a aprovação daquela moção, cm t~da a Comlssao, como órgão colegial, mesmo que o visado ou os Visados pela moção de censura sejam apenas um, ou alguns CO.mis:sários Aliás, o Parlamento Europeu pode aprovar uma moçã~ censura quanto a toda a Comissão, como órgão colegial, por ter a confiança só em algum ou alguns Comissários. Nesse ~ Presidente da C~missão deverá ter sensibilidade para, se for diSSO, se antecipar a moção de censura e exonerar previamente os Comissários que estiverem em causa, exatamente para que toda a Comissão seja destituída. 376 377 Ae. 15-6-94, BASF, Proe. C-137/92 P, CoI., pgs. 1-2.555 e seos Ae. 13-6-58, Meroni, Proe. 9/56, Rec., pgs. 11 e segs. {;> 359 • A União Europeia § 5." Os órgãos e as instituições da União Europeia 121. Competência o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança Bibliografia especial: além das obras gerais e dos Comentários aos Tratados posteriores à assinatura do Tratado de Lisboa, F. DE QUADROS, Avaliação, cit., pgs. 42 e segs.; M. J. RANGEL DE MESQUITA, A Actuação externa, cito 120. Origem e modo de designação A Convenção sobre o Futuro da Europa sentiu a necessidade de rever a condução pela União das suas relações externas. Até ao Tratado de Nice, inclusive, tinham competência na matéria três entidades: o Presidente do Conselho então chamado dos Assuntos Gerais e das Relações Externas, que mudava todos os semestres, o Comissário encarregado das relações externas, que, em regra, era um Vice-Presidente da Comissão, e o Alto Representante para PESC, ou seja, o Sr. PESe. Esta dispersão de competência por três entidades retirava coesão e coerência à condução da ação externa da União. Por isso;·a Convenção sobre o Futuro da Europa resolveu concentrar tarefa numa única entidade. Havia várias soluções possíveis atingir esse objetivo. Mas aquela que a Convenção escolheu, e ficou no Tratado de Lisboa, foi a que a seguir se indica. Os Tratados entregam hoje a condução formal (veremos a pouco o porquê deste adjetivo) das relações externas da uma única entidade: o Alto Representante para os Negócios EstnUh geiros e a Política de Segurança, de que se ocupa o artigo 18.° Ele é escolhido pelo Conselho Europeu, deliberando por ria qualificada, e com o acordo do Presidente da Comissão. Pode ser destituído em qualquer altura pelo mesmo procedimento. A duraçãq do seu mandato coincide com o da Comissão. 360 O Alto Representante conduz e executa a Política Externa e de Segurança Comum da União, incluindo a Política Comum de Segurança e Defesa, contribuindo para a definição dessa política - dizem-no os artigos 18.°, n.O 2, pars. 1 e 2, 26.°, n.o 3, e 27.°, n.O' 1 e 2, UE. Para tanto, conta com a definição das orientações gerais dessa política pelo Conselho Europeu (artigo 26.°, n.O I, UE) e, como veremos, é apoiado por um "Serviço Europeu para a Ação Externa" (artigo 27.°, n.O 3, UE). O Alto Representante é, antes de mais, "mandatário do Conselho", portanto, seu delegado, e, nessa qualidade, preside ao Conselho dos Negócios Estrangeiros, di-lo o artigo 18.°, n." 2 e 3, UE. Aliás, é por isso que ele não aparece referido com autonomia na lista de "instituições", constante do artigo 13.°, n.o 1, UE. A tentativa, da parte da Convenção sobre o Futuro da Europa, que ganhara expressão no artigo 1-28.° do Tratado Constitucional, de o designar como "Ministro dos Negócios Estrangeiros da União" esbarrou na oposição de alguns Estados, que entenderam que a designação de "Ministro" era mais um sinal de excessiva aproximação da União em relação ao modelo estadual. O Alto Representante é, simultaneamente, membro da Comissão, sendo um dos seus Vice-Presidentes. Foi com esta coincidência de funções, no Conselho e na Comissão, que, como se explicou, se quis COluce:ntrar na mesma personalidade a condução de toda a ação externa da União. Embora a tenninologia usada pelos Tratados não seja a mesma [como mandatário do Conselho e Presidente do Conselho dos NeJgácíos Estrangeiros conduz a PESC (artigo 18.°, n.O' 2 e 3, UE), e Vice-Presidente da Comissão, pelo menos na letra dos Tratados, vai mais longe, porque "assegura a coerência da ação externa" da (artigo 18.°, n.O 4, UE)] foi intenção dos Tratados atribuir-lhe a pela condução das relações externas da União e garantir coerência e eficácia à atuação da União nesse domínio. Para tanto, o Alto Representante goza de um amplo poder de iniciativa 238.°, n." 2 e 3, b, TFUE) e, como se disse, é apoiado por um "Servic:oEuropeu para a Ação Externa" (artigo 27.°, n.o 3, UE). 361 A União Europeia A competência do Alto Representante que acabámos de referir encontra-se pormenorizada nos artigos 23.° a 41.° UE. Quanto à exoneração do Alto Representante, os Tratados não são felizes na sua conceção e na sua redação. Pelo artigo 18.°, n.o 1,2.' parte, UE, parece que só o Conselbo Europeu o pode exonerar, com o prévio acordo do Presidente da Comissão. Mas isso não corresponde à verdade no sistema dos Tratados. Em primeiro lugar, o Parlamento Europeu pode começar por não aprovar a personalidade indigitada para Alto Representante, à sombra do artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, e, nesse caso, o Conselho Europeu terá que indicar uma nova personalidade para essa função. Em segundo lugar, o Parlamento Europeu, caso vote a moção de censura contra a Comissão, prevista no artigo 234.° TFUE, destitui, com isso, também o Alto Representante, como prescreve, de modo expresso, esse preceito, conjugado com o artigo 17.°, n.o 8, UE. Por fim, também o Presidente da Comissão pode exonerar o Alto Representante, e parece que livremente, por força do artigo 17.°, n.o 6, par. 2, UE, embora a remissão, por este artigo, para O procedimento previsto no artigo 18.°, n.o I, UE, ponha a nu uma incongruência: este último preceito permite apenas ao Conselho Europeu exonerar o Alto Representante, embora mediante acordo prévio do Presidente da Comissão. Vamos a ver como é que na prática se compatibilizam estes dois artigos. 122. Incongruências no estatuto do Alto Representante Como se disse, o Alto Representante tem uma dupla função, vulgarmente chamada de "duplo chapéu": a de Presidente do selho dos Negócios Estrangeiros da União, atuando, portanto, se mostrou como "mandatário do Conselho", ou seja, delegado Estados-m~mbros; e a de membro da Comissão com a função de'; Vice-Presidente para as relações externas e para a gestão da coerên~'. cia da ação externa da U n i ã o . } Como já se explicou, as razões da criação do Alto Represen:' tante foram de louvar. E sem fazer sentido discutir-se aqui se eSSáSt\ 362 Os órgãos e as instituições da União Europeia razões não eram alcançáveis por um outro método mais feliz, o estatuto que para ele foi encontrado pelos Tratados não deixa de criar algumas questões jurídicas de difícil compreensão. Em primeiro lugar, foi sempre um dos princípios básicos e estruturantes das Comunidades e da União, assumido logo pelos pais-fundadores das Comunidades e pelos redatores dos Tratados institutivos nos anos 50 do século passado, a sepal'ação total entre a~ duas legit!midades, a da Comissão e a do Conselho: como já se dIsse neste hvro, aquela representa o interesse geral ou comum da União, este representa os interesses dos Estados. E ao longo destas seis décadas nunca se subestimou essa separação porque, muitas vezes, os dois interesses em causa entravam em conflito. Ora, bole com toda esta conceção - repete-se, estruturante e fundamental para o sistema institucional da União - o facto de uma mesma personalidade fazer parte, ao mesmo tempo, dos dois órgãos. Não se aceita que na mesma semana, ou no mesmo dia, a horas diferentes, o Alto Representante venha a sentir-se obrigado, nos dois órgãos, a defender sobre o mesmo assunto posições divergentes, porque a tanto é forçosamente conduzido pela diferença de interesses que os dois órgãos prosseguem e defendem. Em segundo lugar, o Presidente da Comissão tem de dar o seu acordo à sua escolha pelo Conselho Europeu e pode, sem intervenção dos outros Comissários, dar o seu acordo ao Conselho Europeu para a sua destituição. Pegando mais neste último aspeto, o Presidente da Comissão pode participar na destituição de um membro do vC"'O~W'~ e presidente de uma das formações do Conselho, porque não parece curial que o Alto Representante cesse funções na Comise continue a exercer funções no Conselho, porque os Tratados 'A"5"'" que seja a mesma personalidade a exercer os dois cargos. nunca se julgara até agora que viesse a ser possível o Presida Comissão interferir, aiuda que de forma indireta, na compm;içâio do Conselho. Em terceiro lugar, se o Parlamento Europeu recusar a aprovada personalidade indigitada para Alto Representante como ~o._l-..~ da Comissão, ao abrigo do artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, ela pode exercer funções na Comissão e, portanto, também no Con363 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia selho. Por outro lado, se o Parlamento Europeu destituir a Comissão através de uma moção de censura, em conformidade com os artigos 17.°, n.o 8, UE, e 234.°, par. 2, TFUE, o Alto Representante cessa as funções que exerce na Comissão. Todavia, e não obstante, no plano jurídico a aprovação da moção de censura levar à destituição do Alto Representante só como membro da Comissão, de facto a aprovação dessa moção de censura tem como efeito ele cessar também as suas funções no Conselho, como Presidente do Conselho dos Negócios Estrangeiros 37 '. Com efeito, também por aqui não se concebe que ele cesse uma das funções e mantenha a outra quando os Tratados, repetimos, pretenderam que fosse a mesma personalidade a exercer os dois cargos. Ou seja, contra a letra dos Tratados, que o não preveem, o Parlamento Europeu acaba por ter, se não no plano jurídico, pelo menos no plano dos factos, competêucia, que nunca até agora tivera, para destituir um membro do Conselho, que até é presidente de uma das formações do Conselho. E não vale a pena tentar contrariar a segunda e a terceira razões das acima enunciadas, com a eventual alegação de que, por força da 2. a parte do artigo 18.°, n.o 1, UE, só o Conselho Europeu pode destituir o Alto Representante. Isso é verdade, como atrás demclfisltrámos, não obstante a discrepância, que também apontámos, redação dos artigos 18.°, n.o 1, e 17.°, n.o 6, par. 2, UE. Mas não é menos verdade que só o pode fazer com o prévio acordo do Presidente da Comissão. Por tudo isso, sendo o Alto Representante Vice-Presidente da' Comissão e, portanto, estando ele, nos termos dos Tratados, subordi- i: nado ao Presidente da Comissão e sujeito à coordenação deste, o que resulta do sistema dos Tratados é que é o Presidente da Comissão O primeiro e principal condutor da Ação Externa da União, sem pre,\ juízo de a gestão quotidiana dessa Ação Externa caber ao Alto Repre", sentante. Se fosse verdadeira a frase atribuída ao antigo Secretário de·: Estado norte-americano Henry Kissinger, segundo a qual ele teri~'> perguntado quem era o seu homólogo do lado da UE, ou seja, a quem 378 Assim, também GRABITZ/HILF/NETfSHE1M, n.O 8, UE. 364 anotação 115 ao artigo éque ele se deveria dirigir do lado da União Europeia, quando precisasse de tratar de matérias que tivessem a ver com a condução ao mazs alto nível, da política externa da UE (frase que, segundo g~an­ tem os responsáveis ~elos arquivos da Casa Branca, em boa verdade, Klssmger nunca Ullhzou), a resposta seria a de que, tanto o Presidente dos Estados Unidos, como O seu SecretáIio de Estado, se devem dlflglr ao Presidente da Comissão, sem prejuízo da competênCia corrente e quotidiana do Alto Representante para o efeito. Note-se que: pouco depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa e da deSIgnação do primeiro Alto Representante, os factos vieram confir~ar este nosso raciocínio. Na realidade, foi o Presidente da Comissao quem escolheu o represen~ante da União nos Estados Unidos já no quadro da nova diplomaCIa da União e também foi ele quem nomeou o novo Dlretor-Geral das Relações Externas da Comissão. FICa, portanto, explicado por que é que dissemos atrás'79 que ao ~lto ~epresentante cabia a condução formal da Ação Externa da Umao. E que. a condução superior ,dessa Ação compete, na realidade, ao PreSidente da Comissão. E o que resulta do sistema dos Tratados, como vimos. 123. O Serviço Europeu para a Ação Externa . Este Serviço consiste em mais uma inovação do Tratado de Lisboa. Encontr~-se previsto no já citado artigo 27.°, n.O 3, UE. sua orga~lzaçao e o seu funcionamento encontram-se regulados pela Declsao do Conselho n.O 2010/427/UE, de 26 de julho de 2010'"°. A nosso ver, não pode ser visto como um órgão da União mas apenas como um Serviço, gerido pelo Alto Representante: os Tr~~ados nunca o tratam como órgão ou instituição autóda Umao. Com a sigla,francesa, já comum, SEAE, este Serviço é compor funclOnarIos das Dlreções-Gerais de Relações Externas do Co>osl~lho e da Comissão, incluindo funcionários das representações 379 Supra, n. o ] 20. ,., 10 L 201/30 de 3-8-2010. 365 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia da União em Estados terceiros e junto de organizações internacionais, bem como por diplomatas destacados pelos Estados-membros. Com esta composição os Tratados pretendem obter a convergência da atividade diplomática dos Estados-membros e da União. Do lado da União, o SEAE vai ter relevância para cerca de cento e trinta delegações da União no estrangeiro, cujo número pode, agora, vir a aumentar. Na fase preparatória do Tratado de Lisboa, e mesmo logo a seguir à sua entrada em vigor, foi aventada, em meios da União, a possibilidade de se vir a criar uma Academia Diplomática da União ou, ao menos, de se entregar a formação de diplomatas da União a entidades ligadas à União já existentes, como é o caso, por exemplo, do Instituto Universitário Europeu, de Florença. Todavia, por diversas razões, este projeto foi adiado. O grande problema que a criação do SEAE trouxe a alguns Estados-membros, especialmente o Reino Unido, foi o receio de ele vir a diminuir os direitos dos Estados, particularmente, o jus lionis de que cada um deles goza, incluído na sua capacidade dica como sujeito de Direito Internacional. As Declarações n." 13 14 anexas ao Tratado de Lisboa vieram afastar esses receios, xando claro que O SEAE não afetaria a diplomacia nacional de Estado-membro. Portanto, os Estados-membros da União rnn<f'rv.rão o direito de definir e conduzir a respetiva política externa, consequentemente, de estar representados pelos seus próprios junto de terceiros Estados e de organizações inl:eflla(,iOllai~; sem prejuízo do trabalho de convergência com a nova diplomacia União a que se comprometeram com a criação do SEAE. No quadl·9. dessa convergência, diremos que a presença num terceiro sobretudo de um importante Estado, como os Estados UIllUIJ., China ou a Rússia, ou junto de uma importante organização inte._ cional, sobretudo junto das mais importantes, como as Nações U das e a Organização Mundial do Comércio, de uma represent~ diplomática da União e, simultaneamente, de uma represent~x diplomática de um ou mais Estados-membros só beneficia aquel estes porque os interesses comuns da União e dos Estados-m~ bros, ainda que autónomos, ficam, em conjunto, mais bem prote dos e salvaguardados. E isso favorece, de modo especial, os Estados médios e pequenos, que têm menores disponibilidades para ter mUltas representações diplomáticas nacionais em terceiros Estados ou junto de organizações internacionais. 366 § 6.' O Tribunal de Justiça da União Europeia Bibliografia especial: R. LECOURT, L'Europe des juges, Paris, 1976; M. LAGRANGE, La Cour des Communautés européennes - Du Plan Schwnan à l'Union européenne, Mélanges Dehousse, 1979, tomo II, pgs. 127 e segs.; K. LENAERTS, Le juge et la ConstitutioJ1 aux Étars-Unis d'Amérique et dans l'ordre juridiqlle européen, Bruxelas, 1988; M. BEITATI, Le "law-making power" de la Cour, Pouvoirs 1989, pgs. 57 e segs.; J. P. lAcQuÉ, Le rôle da droit dans l'intégration européenlle, RPP 1991, pgs. 119 e segs.; G. VANDERSANDEN (dir.), La réforme du systeme juridictionnel commllnautaire, Bruxelas, 1994; MIGUEL POIARES MADURO, We, the court, diss., Oxford, 1998; M. SrMM, Der Gerichtshof der Europiüschen Gemeinschaften im J-oderalen Kompetenzkonflikt, Baden-Baden, 1998; R. MEHDI (dir.), L'avenir de la justice COllUllunau~ taire - Enjeux et perspectives, Paris, 1999; G. C. RODRIGUEZ IGLESTAS L'avenir du systerne juridictionnel de I'Union Européenne, CDE 1999: pgs. 275 e segs.; A. RIGAUX e D. SIMON, La réforme du systeme juridictionnel, bilan et perspectives, in V. Constantinesco (dir.), Le Traité de Nice, cit., pgs. 133 e segs.; M. DONY Ced.), L'avenir du systhne juridictionnel de I'Union européenne, Bruxelas, 2002; F. DE QUADROS e ANA MARTINS, Contencioso da União Europeia, 2. a ed., Coimbra, 2007; K. ALTER, The European Court's Political Power, Oxford, 2010; A. SWEET, Governing with Judges, Oxford, 2010; R. BARENTS, The Cal/rt ofJustice afier lhe Treaty o/ Lisbon, CMLR 2010, pgs_ 70 e segs. Preliminares A alteração da epígrafe deste § 6. 0 por confronto com a epíhomóloga das duas edições anteriores"l exige uma explicaEla é o resultado da alteração trazida na matéria pelo Tratado Lisboa, do modo como se vai explicar a seguir. 381 Direito da União, pgs. 281 e segs.; Droit de l'Union, pgs. 250 e segs. 367 A União Europeia 125. Os novos Tribunais da União Nas anteriores edições deste livro"2 explicámos as incongruências que depois do Tratado de Maastricht o Tratado CE apresentava em matéria de Tribunais da União Europeia. De facto, embora só o Tratado de Nice tenha reconhecido formalmente a autonomia entre O TJ e o Tribunal de Primeira Instância (ex-artigo 220.° CE), foi o Ato Único Europeu, de 1985, que permitiu, no artigo 168.0 -A CEE, a criação de um tribunal "associado" ao TJ. Com base nesse preceito do Tratado CE, a Decisão 88/59l/CECA, CEE, CEEA, de 24 de Outubro de 1988, criou o TPI. De qualquer modo, tanto o Tratado de Maastricht como o Tratado de Amesterdão mantiveram o TPI como mero tribunal "associado" ao TJ (ex-artigos 168. 0 -A CE, na versão de Maastricht, e 220.° CE, na versão de Amesterdão). Além disso, o artigo 220.°, par. 2, CE, na versão de Nice, permitia que o TPI tivesse "adstritas" a si "câmaras jurisdicionais". Agora, após o Tratado de Lisboa, o artigo 19.° UE veio criar um grande "Tribunal de Justiça da União Europeia". Ele enco~tra-se previsto, dessa forma, no artigo 13.°, n.o I, UE. Esse. Tnbunal "inclui" diz o referido artigo 19.° UE, o Tribunal de Justiça, o Tnbunal Geral e os tribunais especializados (esta última expressão é muito mais adequada e feliz, desde logo em língua portuguesa, do que a anterior, que era, como vimos, de "câm~ras juri:dicionais", e que, como mostrámos nas duas edições antenores, nao tmha qualquer tradição na tenninologia jurídica). ... , Todavia, a metodologia que o Tratado de Lisboa. ullhzou e difícil de se entender e é complexa. Como órgão da UE, fica-se com a impressão, à partida, de que há um só Tribunal, o "Tribunal de Justiça das União Europeia" (veja-se o citado artigo 13.°, n.o I, UE). Todavia, a verdade é muito diferente. Não há, na realidade, nenhum Tribunal chamado "Tribunal de Justiça da União Europeia". O que há como resulta dos Tratados e do Estatuto daquele Tribunal, aprovado pelo Protocolo n.O 3 anexo ao Tratado de Lisboa (q~e doravante será referido só por Estatuto), é que essa deslgnaçao serve 382 Loc. cito na nota anterior. Os órgãos e as instituições da União Europeia apenas de rótulo, de chapéu-de-chuva, para albergar três níveis de tribunais separados entre si, que, esses sim, existem de facto. São eles o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e os tribunais especializados - que, para confirmar o que dizemos, estão todos "incluídos", com autonomia, no referido "Tribunal de Justiça da União Europeia", como dispõe o referido artigo 19.°, n.o I, UE. Para se acentuar a complexidade da matéria, veja-se que esse artigo 19.°, n.O I, UE, se refere a dois tribunais com o mesmo nome: um Tribunal de Justiça da União Europeia e um Tribunal de Justiça, que está incluído naquele. Compreende-se que os referidos três níveis são separados e autónomos porque os artigos 251.° e seguintes TFUE, 9.° e seguintes, 47.° e seguintes e 62. 0 -C e seguintes do Estatuto, nos mostram que "Tribunal de Justiça da União Europeia" é, como dissemos, apenas um rótulo, que cobre aqueles três níveis de Tribunais, esses sim, os novos, e autónomos entre si, Tribunais da União Europeia, cada um com a sua própria organização e a sua própria competência. Compreendemos as intenções dos autores dos Tratados em, com a expressão "Tribunal de Justiça da União Europeia", quererem dar a entender que havia, como há, um vasto, coerente e coeso poder judicial na União. Mas achamos, com a doutrina que já se pronunciou sobre esta matéria, por exemplo, com PRIOLLAUD e SIRlTZKy383, que o mesmo resultado teria sido alcançado se, em vez daquela expressão, os Tratados utilizassem, por exemplo, a de "sistema jurisdicional da União Europeia" e depois, dentro dele, tivessem integrado os Tribunais que o artigo 19.°, n.o I, UE, inclui dentro do Tribunal de Justiça da União Europeia. Primeiro, foi isso que, de facto, os Tratados quiseram e, depois, evitar-se-ia haver dois Tribunais com a mesma designação de Tribunal de Justiça. Por isso, vamos abandonar, salvo quando for absolutamente necessário, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) para estudarmos, e em conjunto, apenas o Tribunal de Justiça (TJ), o Tribunal Geral (TG) e os tribunais especializados. Os Tribunais da União estão regulados nos Tratados, no referido Estatuto e nos respetivos Regulamentos Processuais. Merece 383 368 Pg. 341. 369 A União Europeia destaque o facto de ter sido recentemente aprovado o novo Regulamento Processual do TJ, que introduziu modificações importantes no Regulamento anterior"4. Por aí se compreende a alteração da terminologia agora adotada na designação dos Tribunais. O novo Tribunal de Justiça corresponde ao antigo TI. O Tribunal Geral corresponde ao antigo Tribunal de Primeira Instãncia. Não podia manter a sua antiga designação porque, depois da criação das antigas câmaras jurisdicionais, havia deixado de ser só um tribunal de primeira instância. Os tribnnais especializados são as antigas câmaras jurisdicionais. Após se ter criado a primeira câmara com a designação de Tribunal da Função Pública, e encontrando-se em preparação a criação de um Tribunal da marca comunitária"', pareceu sensato substituir-se a expressão câmaras jurisdicionais por tribunais especializados, que é o que, eles, de facto, sempre pretenderam ser. Note-se, todavia, que, quando nos referimos a Tribunais da União Europeia, no sentido mais amplo que a expressão comporta, estamos a pensar no conjunto global do sistema judiciário da União, que é composto pelo TIUE (com os Tribunais que o integram) e também por todos os tribunais nacionais dos Estados-membros, na medida em que lhes cabe aplicar, em primeira mão, o Direito da União. Ou seja, também os tribunais dos Estados-membros são tribunais da União, melhor ainda, eles são tribunais comuns do Contencioso da União"" Isso parece, aliás, estar agora, pela primeira vez, escrito nos Tratados, ainda que por forma não direta: no artigo 19.°, n.o I, par. 2, UE. '" De 25-9-2012, 10 L 265, de 29-9-2012, retificado no 10 L 274/34, de 9-10-2012. 385 Já em 23-12-2003 a Comissão apresentou nesse sentido a proposta de decisão COM (2003) 828 final. Todavia, o procedimento encontra-se parado no Conselho pelo facto de nas diversas línguas oficiais não se encontrar consenso sobre a expressão francesa "brevet communautaire". 386 Ver QUADROS/MARTINS, pgs. 23 e 318. 370 Os órgãos e as instituições da União Europeia 126. Génese e evolução histórica Vejamos quais foram os antecedentes do TJUE. Até ao AUE, o TI foi o único Tribunal das Comunidades (veremos adiante por que razão não consideramos o Tribunal de Contas um verdadeiro tribunal). O AUE, porém, e como atrás se explicou, inseriu no Tratado CEE um novo artigo, que passou a ter o número 168.0 -A, em cujo n. ° 1 se dispunha que "(... ) o Conselho (... ) pode associar ao Tribunal de Justiça uma jurisdição encarregada de conhecer em primeira instância" certos meios contenciosos aí referidos. À sombra desse n.o 1 e do n.O 2 do artigo 168. o-A, o Conselho, pela Decisão 88/591/ CECA, CEE, CEEA, de 24 de outubro de 1988387 , criou o Tribunal de Primeira Instância, inclusive batizando-o com essa designação. Estávamos, portanto, perante uma situação em que, juridicamente, havia só um tribunal- o TJ -, no qual, no plano institucional, estava integrado o TPI, como tribunal "associado" ao TI. Esta situação tinha como consequência, no plano funcional, que o TI continuava a ser sempre o tribunal de última instância nas questões de direito, como forma de assegurar a uniformidade na aplicação do Direito Comunitário. Isso foi assim desejado pelo TI, que queria continuar a ser visto como o único Tribunal das Comunidades, mas que sentia que, para descongestionar o trabalho que lhe ia cabendo, carecia de um outro tribunal que o auxiliasse, ainda que com competência limitada. Todavia, no plano dos factos, como atrás dissemos, tínhamos, na realidade, dois tribunais: daí que tenha ficado célebre, para exprimir a relação factual entre os dois tribunais, a expressão "uma jurisdição, dois tribunais"388. Essa situação manteve-se até ao Tratado de Nice. De facto, o ex-artigo 220.° CE, com a alteração que nele introduziu aquele Tratado, passou a dispor que, "No âmbito das respeti387 Essa Decisão foi objeto de várias retificações, a última das quais foi trazida pela Decisão do Conselho 1999!29I1CE, CECA, CEEA, de 26-4-99, 10 L 114, de 1-5-99, pg. 52. 388 De entre as obras gerais, esta questão encontra-se bem explicada, especialmente, em ISAAC, pg. 258. 371 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia vas competências, o Tribunal de Justiça e o Tribunal de Primeira Instância, garantem o respeito do direito na interpretação e aplicação do presente Tratado". Ou seja, o Tratado CE passou nessa altura a ver os dois Tribunais com autonomia e com igual dignidade, deixando, por isso, o TPI de aparecer como um mero tribunal auxiliar ou "associado" ao Tl O citado ex-artigo 220.° CE abrogou, portanto, a referida Decisão do Conselho de 24 de outubro de 1988. Essa autonomização dos dois Tribunais não se limitou ao plano formal, porque o Tratado de Nice reforçou consideravelmente o ãmbito de jurisdição do TPI, fazendo deste um verdadeiro tribunal de primeira instância (e, nalguns casos, um tribunal de recurso) para quase todos os meios contenciosos que o Contencioso da União Europeia conhecia, inclusive, em certas condições, para as questões prejudiciais. Era o que resultava, sobretudo, dos ex-artigos 225.' e 225. 0 -A CE, embora esses preceitos tivessem de ser interpretados em conformidade com o artigo 51.° do citado Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça, anexo ao Tratado de Nice, onde se introduzia alguma limitação à jurisdição do TPI como tribunal de primeira instància, que decorria daqueles dois preceitos do Tratado CE. Esse reforço da jurisdição do TPI tinha correspondência na possibilidade, prevista nos ex-artigos 220.°, par. 2, e 225. -A (repetimos: depois da revisão de Nice), de o TPI passar a ter, "adstritas" a si, aquilo que aqueles artigos chamavam de "càmaras jurisdicionais". Já falámos delas atrás. Essas "càmaras jurisdicionais" não eram Secções do TPI, porque não faziam parte dele: o ex-artigo 220.°, par. 2, como já se disse, dispunha que elas se encontravam "adstritas" ao TPI, e o ex-artigo 225. 0 -A, nos seus pars. I e 3, estabelecia que elas eram criadas autonomamente pelo Conselho e para conhecerem, em primeira instância, à margem do TPI, de certas categorias de recursos, em matérias específicas, podendo das suas sentenças recorrer-se para o TPI, circunstância em que o TPI atuaria como tribunal de recurso. Em bom rigor, eram, portanto, órgãos jurisdicionais autónomos em relação ao TPI, especializados em matérias concretas, e que, julgava-se então, poderiam evoluir para novos tribunais de primeira instância, ainda que em matérias especializadas, passando o TPI a ter, quanto a eles, competência de tribunal de segunda instância. Há uma càmara jurisdicional assim criada, que hoje é um tribunal especializado. É o Tribunal da Função Pública da União Europeia, ao qual já nos referimos. Ele foi instituído, justamente, com fundamento no referido ex-artigo 225. 0 -A, pela Decisão do Conselho n.o 20041752/CE e Euratom 38'. A sua função, como consta do seu Estatuto, que até ao Tratado de Lisboa estava anexo àquela Decisão, é a de decidir, em primeira instância, os litígios entre a União e os seus agentes, quanto aos quais tenha sido atribuída competência ao Tl O Tratado de Lisboa, por sua vez, veio introduzir no sistema judicial da União as alterações que referimos no número anterior. 0 372 127. A função geral dos Tribunais Como adiante se vai demonstrar, existe na União Europeia, como já existia nas Comunidades, um verdadeiro poder judicial, ainda que com as limitações próprias correspondentes ao carácter inacabado da União. Nenhuma outra entidade superior aos Estados, designadamente, nenhuma Organização Internacional clássica possui um sistema judiciál tão elaborado e tão avançado como o da União. Como daqui a pouco explicaremos, em sentido restrito esse poder judicial engloba o TJUE com os Tribunais que inclui. Mas, em sentido amplo, já o dissemos, ele abrange também, além deles, os tribunais estaduais. Neste lugar, por Tribunais da União Europeia entenderemos apenas os Tribunais incluídos no TIUE. Pelo artigo 19.°, n.O I, 2. a parte, ÚE, é cometido ao TJUE o encargo de garantir "o respeito do direito na interpretação e na aplicação dos Tratados". Isto quer dizer que o sistema judicial da União se reveste de importância essencial para a prossecução da "União de Direito" que, como logo no início deste livro explicámos 390 , constitui uma característica fundamental da União e da sua Ordem Jurídica. '" 10 L 333, de 9-11-2004. 390 Supra, sobretudo TI.O 30. 373 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia 128. Um verdadeiro poder judicial Já escrevemos atrás que as Comunidades e, depois, a União, tentaram encontrar um simile com os Estados na repartição de poderes. Um dos poderes, porventura, o poder, mais claramente caracterizado é, exatamente, o poder judicial. De facto, quer na fase da criação das Comunidades, quer na evolução que estas tiveram ao longo das sucessivas revisões dos Tratados institutivos, quer, ainda, por efeito da elaboração doutrinária e jurisprudencial em torno da matéria, houve a consciência de que a efetividade do Direito Comunitário, e, depois, do Direito da União, exigia um poder judicial bem demarcado, coerente e forte. E, como atrás se disse, em nenhuma das Organizações InternacIOnais clássicas, mesmo das mais evoluídas, encontramos um sistema judicial tão elaborado e tão próximo dos sistemas judiciais estaduais. Se não, vejamos. Em primeiro lugar, nunca é demais recordar que o poder judicial da União só em sentido estrito engloba apenas o TJUE e os Tribunais nele incluídos: como já se disse, em sentido lato, ele abrange também todos os tribunais nacionais. Estes são os "tribunais comuns do contencioso comunitário" ou os "tribunais comunitários de Direito comum" (hoje, da União), como já os qualificou o próprio Tp91. A esse conjunto - Tribunais da União mais tribunais nacionais - compete formar um sistema articulado, coeso e harmonizado na garantia da aplicação do Direito da União. O facto de o sistema judiciário da União englobar os tribunais estaduais aproxima-o muito, desde logo por aí, dos sistemas judiciários dos Estados federais, embora o Direito da União até hoje não tenha levado esse movimento até às últimas consequências, por exemplo, não tenha definido segundo o método federal nem a relação entre os tribunais da União e os tribunais estaduais (que, no essencial, é uma relação de cooperação judiciária e não uma relação 391 Ver o nosso A nova dimensão do Direito Administrativo, Coimbra, 1999, pgs. 27 e segs. e 42 e segs., e QUADROS/MARTINS, loe. cito e bibl. aí cit.. Voltaremos adiante a esta matéria Chifra, n.O' 262 e segs.). de hierarquia federal), nem a relação entre o Direito da União e o Direito estadual. É matéria que já vimos e que ainda melhor estudaremos adiante. Em segundo lugar, o poder judicial da União, entendido, desde logo, no referido sentido estrito, reúne diversas características que lhe permitem alcançar o objetivo acima referido, o de assegurar a plena efetividade do Direito da União, em termos desconhecidos do Direito Internacional clássico. Assim, os tribunais da União não são órgãos isolados, como o é, por exemplo, o Tribunal Internacional de Justiça (TU) no quadro orgânico das Nações Unidas. Como se disse, eles fazem parte de um sistema judiciário global e coerente, que se estende aos tribunais nacionais. Além disso, eles são tribunais de jurisdição obrigatória, o que os distingue de todos os tribunais internacionais, cuja jurisdição é essencialmente voluntária (é o caso, por exemplo, do TU), com exceção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas só após a entrada em vigor do Protocolo n.o 11 anexo à CEDH. A simples adesão de um Estado às Comunidades fá-lo sujeitar-se à sua jurisdição e permite aos respetivos cidadãos aceder a eles. São, também, tribunais de jurisdição exclusiva. Isto é, como dispõe o artigo 344.° TFUE, os litígios para os quais têm competência encontram-se subtraídos à jurisdição de qualquer outro tribunal nacional ou internacional, não podendo aqueles deixar de os decidir, sob pena de incorrerem em denegação de justiça'''. Isto não impede que diversos outros tribunais internacionais e tribunais estrangeiros possam vir, pela via do Direito Internacional Privado, a ser chamados a aplicar o Direito da União'''. Depois, são tribunais com acesso direto da parte dos particulares, mesmo se com algumas limitações, que são menores após o Tratado de Lisboa, mas que terão que desaparecer. Isto distingue-os, por exemplo, do TU (onde esse acesso nunca existe), do TEDH (quanto ao qual vigora a regra da prévia exaustão dos meios inter392 393 Assim, Ac. 12-7-57, Algera, Procs. 7/56 e 3 a 7/57, Rec., pgs. 81 e segs. Corno está demonstrado em QUADRos/MARTlNS, pgs. 25 e segs. 374 375 A União Europeia nos) e do Tribunal Penal Internacional (cuja competência é subsidiária em relação aos tribunais nacionais). Por fim, são tribunais cujas sentenças são imediatamente, e por si só, executórias (artigo 280.° TFUE), o que não acontece em qualquer outro tribunal internacional clássico. 129. O âmbito da jurisdição Os Tribunais da União têm uma vastíssima competência. Assim aconteceu para que os fundadores das Comunidades pudessem assegurar ao então TJ (mas isso vale hoje também para os novos Tribunais) a função de verdadeiramente garantir a plena aplicação do Direito da União. Para melhor se compreender a dimensão e a natureza da jurisdição dos Tribunais da União, há que classificá-la. Assim, diremos que eles têm, fundamentalmente, cinco tipos de jurisdição: a) jurisdição constitucional. Nesta medida, eles atuam com competência próxima da dos tribunais constitucionais estaduais, tanto quanto se pode afirmar isso na medida em que a União ainda não tem um modelo de tipo estadual. Cabe-lhes fiscalizar a conformidade do Direito da União, derivado e do comportamento dos Estados-membros e dos particulares com os Tratados, entendidos como lei fundamental das Comunidades, e que, neste contexto, como já vimos, aparecem designados de "Constituição da Comunidade", ou "Carta Constitucional de base", sendo certo, que esses atributos só podem ser entendidos no seu sentido material e não formal. Cabe neste tipo de jurisdição, de modo especial, a fiscalização: da repartição das atribuições entre a União e os Estados-membros, inclusive, o respeito pelo princípio da subsidiariedade; da legalidade dos atos legislativos, inclusive dos tomados em processo legislativo ordinário; do equilíbrio de poderes entre os órgãos da União; e do incumprimento pelos Estados dos Tratados; 376 Os órgãos e as instituições da União Europeia b) jurisdição administrativa. Embora menos importante que a anterior, é, sem dúvida, a mais vasta e a mais ampla, pelo sImples facto de o Contencioso da União Europeia ter sido fortemente moldado segundo o figurino do Contencioso Administrativo, particularmente da França e da Alemanha'94. Importantes meios contenciosos previstos no TFUE, como, por exemplo, o recurso de anulação e a ação de omissão, foram importados do Contencioso Administrativo daqueles Estados'''. Todavia, note-se que o recurso de anulação dos atos legislativos releva mais da jurisdição constitucional do que da jurisdição administrativa dos Tribunais. c) jurisdição internacional. Os Tribunais da União també~ dirimem litígios entre os Estados-membros, como o faz qualquer tribunal de Direito Internacional. É o que prevê o artIgo 273.° TFUE, quando o litígio esteja relacionado com o objeto dos Tratados e se esse litígio for submetido ao TJUE por um compromisso. E é o que resulta também do artigo 259.° TFUE, quando nasce um litígio entre dois Estados-membros por alegado incumprimento do Tratado, e se não se entender, como mostrámos atrás ser a nossa posição, que o incumprimento do Tratado, de um modo geral, deve ser visto como cabendo na jurisdição constitucional dos Tribunais da União· d) jurisdição uniformizadora. E~ta forma de jurisdição em nada fica a dever à importância de qualquer das outras modalidades de jurisdição, já que é ela que permite ao TJUE assegurar o respeito pela essência do Direito da União, da qual faz parte integrante, como já estudámos ao longo deste livro, a uniformidade do sistema jurídico da União. De facto, através desta forma de jurisdição, os Trib~nais da União asseguram a uniformidade na interpretaçao e na aplIcação do Direito da União, quer pelos órgãos da União, quer pelos tribunais e demais autoridades dos 394 395 Assim, QUADROS/MARTINS, pgs. 25-26. • veja-se a op. cIt. na nota anterior, pgs. 135 e segs. e 213 e segs. "l" 377 A União Europeia Estados-membros. Esta forma de jurisdição é garantida, sobretudo, através das questões prejudiciais, reguladas no artigo 267.° TFUE; e) jurisdição com alcance político, na medida em que o TJUE pode demitir os membros da Comissão (artigo 245.°, n.o 2, TFUE), e o TJ pode destituir os Juízes (artigo 6.° do Estatuto), os membros da Comissão Executiva do Banco Centrai Europeu (artigo 11.°, n.o 4, dos respetivos Estatutos) e o Provedor de Justiça (artigo 228.°, n.o 2, par. 2, TFUE), e tem competência, ao abrigo do artigo 269.° TFUE, para controlar a legalidade de um ato praticado pelo Conselho Europeu, ou pelo Conselho ao abrigo do artigo 7.°, n." 1 e 3, UE, já por nós estudado, ainda que este controlo se limite às "disposições processuais" referidas no artigo 7.° UE'96. Além disso, pode aplicar sanções financeiras aos Estados, ao abrigo do artigo 260.°, n.o 2, par. 2, TFUE, e do artigo 8.° do Tratado Orçamental Europeu, de 2012. 130. A "Europa dos juízes" Acerca do âmbito de jurisdição dos Tribunais da União e do modo como eles têm vindo a interpretar a função que os Tratados lhe conferem, tem-se discutido, quase desde o início da integração europeia, e, concretamente, em relação ao TJ, se não vivemos numa União feita pelos juízes. É a conceção da "Europa dos juízes". Esta expressão tem tido duas interpretações opostas: uma, serve-se dela para fundamentar o trabalho da jurisprudência da União na elaboração do Direito da União e, .portanto, para louvar o esforço do TJ no sentido de fazer progredir a integração jurídica na União ao ritmo da integração económica, monetária e política'''; outra, utiliza aquela expressão (ou, em sentido pejorativo, a de Estamos próximos, nesta classificação da jurisdição dos Tribunais, de pgs. 482 e segs. 397 A melhor obra nesse sentido continua a ser a do primeiro Presidente do Os órgãos e as instituições da União Europeia "governo de juízes"39', ou a de ativismo judicial) para verberar o comportamento dos juízes, que acusa de exorbitarem das suas funções e de se substituírem ao "legislador" da União. Enquanto a segunda das duas correntes radica - o que, não raro, acontece - em conceções políticas ou filosófico-políticas que se entroncam numa rejeição da progressão da integração europeia, o problema não merece ser considerado, porque é de raiz emocional ou ideológica. Fora desse quadro, porém, vale a pena dedicarmos-lhe alguns momentos. Os Tratados da União, corno já acontecia com os Tratados Comunitários, particularmente o ex-Tratado CE, são tratados-quadro. Por isso, deixaram intencionalmente uma larga margem de Interpretação ao juiz para este os ir adaptando quotidianamente à teleologia dos Tratados, ou seja, ao progresso da integração - é o tal carácter evolutivo ou gradualista, que é co-natural a qualquer processo de integração, como já estudámos. Por outro lado, colocado perante litígios em torno da aplicação do Direito da União, o juiz da União, corno atrás explicámos, não pode denegar justiça com fundamento na inexistência de um preceito expresso sobre a matéria. Ora, uma e outra razões começaram, muito cedo, a levar o TI a ter de encontrar soluções e a construir conceitos e institutos que não figuravam, de modo expresso, nos Tratados, nem eram previsíveis, em 1951 e em 1957, pelos autores dos Tratados institutivos das três Comunidades: foi o que ele fez, como já vimos, ou iremos vendo, ao longo deste livro, particularmente, com as teorias do primado e do efeito direto, com as atribuições das Comunidades e da União, inclusive com o paralelismo das suas atribuições internas e externas, com os direitos fundamentais, com o equilíbrio de poderes entre os órgãos, com a capacidade judiciária do Parlamento Europeu e dos particulares, com o incumprimento do Direito da União pelos Estados e com os seus efeitos, com as questões prejudiciais, etc., etc. 396 SlMON, 398 Veja-se a problemática acerca desta expressão tratada por l-P. COLIN, Le gouvernement des juges dans les Comnumalltés eurOpéell11eS, Paris, 1964, e por TJ, SWEET. ROBERT LECOURT. 378 379 A União Europeia Os 6rgãos e as instituições da União Europeia o Tribunal Internacional de Justiça, num dos seus mais célebres Acórdãos"', deixou escrito que "um tribunal não é um órgão legislativo. A sua missão é a de aplicar o Direito tal como ele o declara e não a de o criar". É absolutamente exato. Só que aplicar o Direito não pode significar o juiz ser apenas a "bouche de la loi", isto é, resumir-se a aplicar o preceito concreto da lei ao caso submetido ao seu julgamento. Aplicar o Direito pode ter de significar, também, o juiz, partindo da moldura positiva que a lei que o rege lhe fornece, desenvolver os princípios que emanam da lei e que nela se enraízam (neste caso, nos Tratados da União, inclusivamente, com recurso à interpretação teleológica), de modo a encontrar a solução adequada para o caso concreto. Há Estados, como Portugal, onde, por não haver tradição na matéria, é difícil, desde logo para os juízes nacionais (talvez com a única exceção, por vezes, do juiz constitucional), compreender a criação do Direito por via pretoriana, que é no que consiste a tarefa de se encontrar para cada caso a solução contida no sistema jurídico, mesmo se não positivada em preceito concreto e expresso da lei. Mas têm essa tradição, por exemplo, a França, através, sobretudo, do Consei! d'État, a Alemanha, através, principalmente, do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional federal). E tem-na os tribunais da generalidade dos Estados anglo-saxónicos. E é isso que se tem limitado o TJ a fazer desde a sua criação. Isso não é legislar; é, partindo do Direito legislado, descobrir, dentro do sistema jurídico aplicável, a regra que decide o caso concreto ou a solnção implicitamente admitida pelo Direito escrito. Note-se que o TJ sempre recusou, de modo expresso, a titularidade do poder constituinte'OO, do poder político'01, ou do poder legislativo'02. Se, alguma vez, o TJ ultrapassou a função de julgar, entendida esta no sentido que temos vindo a defender, não só é muito difícil demonstrá-lo, como, a ter acontecido, terá ocorrido em casos verda39') 400 40l 402 Ac. 18-7-66, Sudoeste Africano, 2.° fase, Rec. 1966, pgs. 6 e segs. (48). Por todos, Ae. 17-2-77, CFDT, Proe. 66176, Ree. pgs. 305 e segs. Por ex., Ac. 22-11-78, Mattheus, Pmc. 93n8, Rec., pgs. 2.203 e segs. Por ex., Ac. 15-7-70; Chemiefarma, Pmc. 41n9, Rec., pgs. 611 e segs. deiramente excecionais, que, todavia, não são fáceis de ser identificados. Em contrapartida, as Comunidades e, hoje, a União, devem ao TJ o ter ele assumido, muito cedo, o papel de locomotiva da integração jurídica (e, portanto, da criação dajá referida "União de Direito") e de, dessa forma, ter suprido, com o seu labor _ repete-se: se~ se substituir ao legislador -, a inércia e a paralisia dos órgãos po\itJcos das Comunidades e, depois, também da União''''. 131. O estatuto do Tribunal Vamos ver agora qual é o estatuto jurídico dos novos Tribunais da União. Como já dissemos, o TJUE e os Tribunais nele incluídos encontram-se regulados nos artigos 19.° UE e 251.° e seguintes TFUE. Além disso, eles regem-se pelo Estatuto do TJUE, que foi aprovado pelo já referido Protocolo n.o 3, que se encontra anexo ao Tratado de Lisboa, e que foi modificado pelo Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho n.O PE-CONS 28/12, de 13 de julho de 2012. Cada um dos Tribunais incluídos no TJUE elabora as suas próprias regras de processo, isto é, o seu próprio Regulamento Processual. Os Regulamentos Processuais do Tribunal Geral e dos tribunais especializados têm de ser redigidos de comum acordo com o TJ. A final, cada um dos Regulamentos Processuais é aprovado pelo Conselho (artigos 253.", par. 6, 254.°, n." 5, e 257.", par. 5, TFUE). 132. A composição do Tribunal O TJ é composto por um juiz por cada Estado-membro (artigo 19.°, n.o '}, par. 1, UE). Neste momento tem, por isso, vinte e sete Juízes. E composto, também, por oito Advogados-Gerais. Esse número de Advogados-Gerais pode, todavia, ser aumentado pelo '''Sob re es t a mat"ena, ver, nos nossos diaS, . por exemplo, e segs., SIMON, pg. 479, e ISAAC, pg. 318. 380 381 JACQUÉ, pgs. 621 A União Europeia Conselho, deliberando por unanimidade, a pedido do TI (artigo 252.", par. I, TFUE). E a Declaração n." 38, anexa ao Tratado de Lisboa, é mais precisa: se o TI solicitar, à sombra do citado artigo 252.", par. I, 2.' parte, TFUE, que, concretamente, o número de Advogados-Gerais seja aumentado de oito para onze, o Conselho deliberará, votando por unanimidade. Deste modo, a CIG de 2007 quis satisfazer a Polónia, que reclamava um Advoga~o-Geral permanente, como o tinham a Alemanha, a França, a Itália, o Remo-Unido e a Espanha. Por outro lado, aquela Declaração quis que os restantes Advogados-Gerais, que entram num sistema de rotação pelos outros Estados, passassem de três para cinco. Por sua vez, pelos Tratados, o Tribunal Geral não é composto, ao contrário do TJ, por um número fixo de Juízes. De facto, dispõe o artigo 19.", n.O 2, par. 2, UE, que o número dos seus Juízes será de, pelo menos, um por Estado-membro. Ou seja, ele terá hoje, no mínimo, vinte e sete Juízes, podendo ter mais. Não tem obrigatoriamente Advogados-Gerais, sendo o Estatuto a dispor sobre a matéria (artigo 254.°, par. I, TFUE). E o Estatuto vem esclarecer as duas questões. Segundo O seu artigo 48.°, o TG tem vinte e sete Juízes e, de harmonia com o artigo 49.°, pars. I e 4, os Juízes do TG podem ser chamados a exercer as funções de Advogado-Geral, não podendo, nesse caso, intervir como Juízes no respetivo processo. O mandato dos Juízes e dos Advogados-Gerais, tanto do TI, como do TG, é de seis anos, renovável, procedendo-se à substituição parcial de uns e de outros de três em três anos. A substituição parcial incide atualmente em catorze e treze Juízes e em quatro Advogados-Gerais (artigos 253.°, pars. I e 2, e 254.°, pars. I e 2, TFUE, e 9." e 47." do Estatuto). Os Juízes do TG, incluindo os que podem vir a ocupar as funções de Advogado-Geral, são escolhidos pelo mesmo critério previsto para a escolha dos Juízes e Advogados-Gerais do TI nos citados artigos 253.°, par. I, e 255.°, par. I, TFUE. É o que dispõe o artigo 254.", par. 2, TFUE. Os Juízes do TI e do TG elegem entre si o respetivo Presidente e Vice-Presidente, por um período de três anos, renovável (artigos 253.°, par. 3, e 254.°, par. 3, TFUE). 382 Os órgãos e as instituições da União Europeia Segundo o artigo 252.", par. 2, "ao advogado-geral cabe apresentar pubhcamente, com toda a imparcialidade e independência conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Esta~ tuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua intervenção". Por aqui se vê bem que o Advogado-Geral não representa nem defende: o interesse de qualquer parte, concretamente, nã; re~resenta o mteresse da União. Ou seja, não é Advogado de ninguem, nem mesmo da União. Pelo contrário, tem de agir "com toda a lmparclalldade e independência". Assim já o entendeu aliás o '" . TJ404-405 ' , propno . Portanto, percebe-se agora, ainda melhor, a razão pela qual é errado chamar-se-lhe em português Advogado. Como promotor da legahdade que ele é, agindo para tanto com independênCI~ e, po~ ISSO, apresentando tantas vezes conclusões não favoráve:s ao mteresse da União, ele melhor se chamaria em portugues Procurador-Geral, como homólogo do Ministério Público em Portugal. O critério de escolha dos Juízes e dos Advogados-Gerais encontra-se definido no artigo 253.°, par. I, TFUE. Eles são designados por comum acordo entre os Governos dos Estados-membros deven~o, todavia, os seus nomes obter prévio parecer favorável d; c~mlte a que ~e refere o artigo 255.°, par. I, TFUE, sobre a adequaçao dos candidatos ao exercício dessas funções. Esse comité tem uma composição de alt? nível, como o mostra o artigo 255.", par. 2, TFUE. Este parecer fOi uma movação do Tratado de Lisboa e pretende evitar a repetição de alguns casos, sobretudo nos tempos maIS re~entes, em que, por vezes, candidatos que os Governos naCIOnaiS propunham para Juízes e Advogados-Gerais eram escolhi- .". Ae. 4-2-2000, Emesa Sugar, Proe. C-17/98, CoI., pgs. 1-665 e segs sobretudo, pontos 12 e 13_ " • 405 Sobre a comparação das funções do Advogado-Geral com as de entidades Iguais ~u si~ilan:s. dos E~tados que são membros do Conselho da Europa, onde a te,nnmoJogJa utilizada dIstingue o "avocat général" e o "procureur général" ~a~ ~~slgnar, por vezes, o mesmo estatuto, ver Conselho da Europa, L'Europe Judlclalre, Estrasburgo, 2000, pgs. 18,81,113,138 152 177 197 248 287 299 315 e 345. ' , , , , , , 383 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia dos, mais por critérios de índole política, do que em função da sua capacidade para o desempenho das suas novas funções. O Tribunal da Função Pública da União Europeia encontra-se disciplinado, quanto à sua composição, nos artigos 2.° a 4.° do Anexo I do Estatuto do TIVE. Encontra-se previsto no artigo 13.°, par. 1, UE, e está regulado nos artIgos 285.° e seguintes TFUE. Por esses preceitos se vê que ele está pensado pelo Tratado como órgão de fiscalização ou de controlo da União. O Tribunal é composto por um nacional por cada Estado-membro, O que quer dizer que hoje tem vinte e sete membros (artigo 285.°, par. 2, TFUE). Note-se que a palavra "juiz" nunca é utilIzada pelo Tratado para designar os membros deste Tribunal. Estes são escolhidos, para um mandato de seis anos, pelo Conselho, sob c~nsulta do Parlamento Europeu. Gozam de independência, de pnvIleglOs e de Imunidades equivalentes às dos Juízes dos Tribunais da União (artigos 285.°, par. 2, e 286.°, n. OO I a 4 e 8, TFUE). 133. Competência e funcionamento A competência dos Tribunais e o seu funcionamento encontram-se regulados nos artigos 19.° UE e 251.° a 281.° TFUE, bem como no referido Estatuto e nos respetivos Regulamentos ProcessuaiS. A competência dos Tribunais extrai-se do âmbito da sua jurisdição, já atrás estudada, e dos meios contenciosos que têm competência para conhecer, e que se encontram regulados nos artigos 256. o e seguintes TFUE. O estudo pormenorizado da competência e do funcionamento dos Tribunais faz parte de um domínio do Direito da União Europeia chamado Contencioso da União Europeia (expressão mais ampla e, por isso, mais feliz do que Direito Processual da União Europeia). Para tanto, remetemos o leitor para o que escrevemos adiante, no n. o 269. § 7." o Tribunal de Coutas Bibliografia especial: G. ORSINI, La Cour des comptes des CE, Paris, 1983. 134. Estatuto e composição o Tribunal de Contas foi criado por iniciativa do Parlamento Europeu, pelo Tratado de Bruxelas, de 22 de julho de 1975, para substituir os originários Comissário de Contas da CECA e Comissão de fiscalização da CEE e da Eurátomo. 384 135. Competência o Tribunal de Contas não é considerado um verdadeiro tribunal nem, como se disse, o Tratado alguma vez qualifica os seus membros de "juízes". Por isso, tanto a sua designação como "Tribun~l':: como o fa~to de ter sido elevado a órgão principal ("instituiça~ ) da Comun~dade Europeia pelo Tratado de Amesterdão (então, o ~rtlgo~. CE, hOJe, artigo 13.°, n.o I, UE), ficam a dever-se apenas à Import~cIa da competência que lhe cabe: a de assegurar o controlo fmancelro externo da União, ou, por outras palavras, a de exercer a magistr~tura financeira da União (artigos 285. 0 e 287.° TFUE). Nao profere sentenças, como atos jurisdicionais, mas aprova pareceres e relatórios . . O Tribunal de Contas fiscaliza as contas e a totalidade das receItas e das despesas da União, estejam ou não estas orçamentadas (artIgo 287.° TFUE). Isto significa que não estão sujeitas ao seu controlo apenas os órgãos e as instituições da União, mas também os Estados-membros, enquanto cobram receitas da União ou realizam despesas porconta dela. Nesse sentido, existe uma colaboração estreIta entre o Tnbunal de Contas e os organismos nacionais encarregados da fiscalização financeira, a começar pelos Tribunais de Contas dos Estados-membros. E, enquanto o fazem, esses órgãos e 385 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia organismos nacionais atuam como delegados do Tribunal de Contas da União. 1 T'b 1 b rca O âmbito da fiscalização levada a cabo pe o n una a a , a legalidade e a regularidade das receItas e despesas, mas nao apenas . . ° ° 2 TFUE) também a boa administração financeira (artIgo287. , n., . No quadro da promoção do Tribunal reallz.ada pelo T;atado de Amesterd -ao, a, qu ai atrá's aludimos , ele tem legltmudade, 1a face - ddo artigo 263.°, par. 3, TFUE, para interpor recurso de ano. açao os atos de Direito derivado previstos no par. 1 do mesmo artIgo. SECÇÃO III Órgãos e instituições complementares 136. Introdução . '- tAem uma série _ Além dos órgãos principais refendos, a Umao . . - comp1ement ares, que , em face da funçao d órgãos e instItUlçoes q~e lhes está atribuída, se podem dividir em quatro grandes categorias: a) órgãos de fiscalização; b) órgãos consultivos; _ c) instituições com funções de gestao; d) órgãos auxiliares. Vamos ver cada uma destas categorias. SUBSECÇÃO I Órgãos de fiscalização 137. Preliminares Há só um órgão complementar de fiscalização, o~ de con~olo, que é o Provedor de Justiça, sem prejuízo de co~petencla analoga que cabe, como vimos, a alguns dos órgãos pnnclpaIs. 386 § único o Provedor de Justiça Bibliografia especial: A. PLIAKOS, Le médiateurde l'Union europgs. 604 e segs. péenne, CDE 1994, 138. Estatuto O Provedor de Justiça foi criado pelo Tratado de Maastricht. Ele está regulado no artigo 228.° TFUE, como já vimos. Foi inspirado nos mais evoluídos sistemas análogos nacionais, particularmente no Médiateur francês. É eleito pelo Parlamento Europeu após cada nova eleição do Parlamento e pelo período de uma legislatura deste, podendo ser reconduzido (artigo 228.°, n.o 2, TFUE). Exerce as suas funções com total independência, não recebendo ordens ou instruções de qualquer entidade (artigo 228.°, n.O 3, TFUE). O Provedor de Justiça rege-se pelo seu Estatuto, que é aprovado nos termos do artigo 228.°, n.O 4, TFUE4'16. 139. Competência O Provedor de Justiça fiscaliza a "má administração" da parte dos órgãos, das instituições e dos organismos da União, com exclusão do TJUE. Ele não tem competência, portanto, para fiscalizar a atividade dos Estados-membros, mesmo quando estes aplicam o Direito da União, o que deverá merecer reflexão. Quando descubra um caso de "má administração" o Provedor de Justiça deverá atuar nos termos do artigo 228.°, n.o 1, par. 2, 2." parte, TFUE. Em que consiste essa "má administração"? Di-lo o Provedor de Justiça no seu já antigo Terceiro Relatório anual, de 1997, publicado 406 O seu Estatuto foi aprovado por Decisão do Parlamento de 9-3-94, JO L 113, de 4-5-94, e já incorpora as alterações que nele foram introduzidas. 387 A União Europeia em 20 de abril de 1998: ela ocorre "quando um organis~o, p.úblico não atua em conformidade com uma regra ou um pnnclplO que · ~'''407 . tenha força obngatona . . _ O Provedor, antes de mais, recebe queixas de qualquer cldadao d U '-a bem como de qualquer pessoa, singular ou coletiva, que a m o, J' t d' resida ou que tenha a sua sede num Estado-membro. a es u amos isso a propósito da cidadania da União'os. . . . . Mas o Provedor de Justiça pode também tomar a mlclatlva de ,. (rt' °, I par.2, . l' parte'TFUE), . algo 228.° ,n . ..o proceder a mquentos que não acontece com a maior parte dos seus homólogos naCIOnaiS, a começar pelo Médiateur francês. O Provedor de Justiça apresenta ao Parlamento Europeu um relatório anual sobre os resultados dos inquéritos efetuados (artigo 228,°, n.o I, par. 3, TFUE). SUBSECÇÃO II Órgãos consultivos 140. Enunciação O Tratado de Lisboa veio estabelecer nos artigos 13.", n.o 4, UE, e 330.°, n.o 1, TFUE, que o Parlamento Europeu,. oConselho e a Comissão têm dois órgãos consultivos. Eles ja eXlstla.:n ante~ e com essa função, mas sem essa referência expre:sa. Sao eles. o Conselho Económico e Social e O Comité das ReglOes. Um traço comum une esses dois órgãos: eles representam, ao nível da União, interesses que os Tratados conslder'm.:' dever merecer ponderação no exercício do poder político da Umao. Os órgãos e as instituições da União Européa §L" o Comité Económico e Social 141. Estatuto e composição O Comité Económico e Social está regulado nos artigos 300.0 a 304.° TFUE. O Tratado de Lisboa veio dar nova redação ao ex-artigo 257.0 CE quanto aos interesses que estão representados no Comité. Assim, segundo o n.O 2 do artigo 330.° TFUE, este é composto "por representantes das organizações de empregadores, de trabalhadores e de outros atores representativos da sociedade civil, em especial nos domínios sócio-económico, cívico, profissional e cultural". O número de membros do Comité não será superior a trezentos e cinquenta (artigo 301.°, par. 1, TFUE). A composição do Comité deixou de estar definida nos Tratados, onde aparecia repartida pelos Estados-membros segundo o mesmo critério de população que presidia à repartição de deputados no Parlamento Europeu e de votos no Conselho até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa (ver o ex-artigo 258. ° CE). Agora é definida por decisão do Conselho, votada por unanimidade, sob proposta da Comissão (artigo 301.°, par. 2, TFUE). Os membros do Comité são propostos pelos Estados-membros. Depois, essa proposta é submetida ao Conselho, que sobre ela delibera por maioria qualificada, ouvida a Comissão. O mandato dos membros é de cinco anos (artigo 302.°, n. OO 1 e 2, TFUE). Os membros do Comité desempenham o seu cargo com total independência e no interesse geral da União (portanto, não no interesse dos Estados ou das entidades que representam _ artigo 300.0, n.o 4, TFUE). 142. Competência '" 10 C 380, de 7-12-98. 408 Ver supra, 0.° 55-VIII. De harmonia com o artigo 300.°, n.o I, e o artigo 304.°, TFUE, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão têm a obrigação de 388 389 A União Europeia consultar previamente o Comité em todos os casos espeficamente previstos no Tratado. Além disso, podem ouvi-lo mesmo quando o Tratado não imponha essa obrigação. Por sua vez, o Comité pode tomar a iniciativa de emitir o seu parecer sobre qualquer matéria, sempre que O considere oportuno. § 2.' o Comité das Regiões BibliografIa especial: J. VERGES (dir.), L'Union européenne et les collectivités territoriales, Paris, 1997; A. FERAL, Le Comité des régions de I'Union européenne, Paris, 1998. 143. Estatuto e composição O Comité das Regiões está disciplinado nos artigos 300.° e 305.° a 307.° TFUE. A função deste órgão é a de fazer participar as pessoas coletivas autónomas infraestaduais no exercício do poder político da União. Essa função tem de ser devidamente valorizada, porque perntite o aprofundamento do princípio da subsidiariedade e, por via disso, uma maior aproximação da União em relação aos cidadãos no exercício do seu poder político. Reforça, pois, a conceção da União dos povos e dos cidadãos. De facto, segundo o artigo 300.°, n.o 3, TFUE, o Contité é composto "por representantes das coletividades territoriais regionais e locais que sejam quer titulares de um mandato eleitoral a nível regional ou local, quer politicamente responsáveis perante uma assembleia eleita". A versão portuguesa do TFUE refere-se a "autarquias" regionais e locais. Mas estamos perante um erro de tradução. De facto, o Tratado não quis restringir a representação no Contité das Regiões às entidades que, para o Direito Administrativo português, são autarquias locais, ou seja, só os municípios e as freguesIas (já que as regiões adntinistrativas do Continente nunca foram criadas). Ele quis que naquele Contité também participassem represen390 Os órgãos e as instituíções da União Europeia lantes de outras pessoas infraestaduais, como é o caso dos Estados federados e das regiões autónomas ou políticas. Por isso, é mais corr~to falar-se aqui de "coletividades territoriais" regionais ou locaIs, como se pode ver pelas versões francesa ("collectivités") e alemã ("Gebietkorperschajten") do artigo 300.° TFUE. O regime jurídico deste Comité está muito próximo do do Comité Económico e Social, tendo, aliás, os dois, em comum serviços administrativos e de apoio. O Comité das Regiões não poderá ter mais de trezentos e cincoenta membros. Também quanto a este Comité a sua composição passou, pelo Tratado de Lisboa, a ser definida por decisão do Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Contissão (artigo 305.°, pars. 1 e 2, TFUE). , Os Estados propõem os membros do Comité, bem como igual numero de suplentes. Mas, depoIS, esses nomes são objeto de aprovação pelo Conselho (artigo 305.°, par. 3, TFUE). O mandato dos membros é de cinco anos, renovável. Nenhum membro do Comité das Regiões pode acumular essa função com a de deputado do Parlamento Europeu - o que, note-se, não é exigido pelo Tratado em relação aos membros do Comité Económico e Social (o mesmo preceito). . Os membros do Comité exercem as suas funções com plena mdependência e no interesse geral da União (artigo 300.° n.o 4 TFUE). ' , 144. Competência O Comité das Regiões tem obrigatoriamente de ser ouvido pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Contissão nos casos previstos no Tratado (o que engloba o ensino, a cultura, a saúde pública, as redes transeuropeias, a coesão económica e social, os transportes, o emprego, as relações sociais e a investigação) e, além dISSO, nomeadamente, em matéria de cooperação transfronteiriça, sempre que algum daqueles três órgãos o considere oportuno. O Contité pode, também, tomar a iniciativa de se pronunciar sobre 391 A União Europeia qualquer assunto que considere de interesse (artigo 307.°, pars. 1 e4, TFUE). SUBSECÇÃO I1I Entidades com funções de gestão Os órgãos e as instituições da União Europeia 147. O Banco Central Europeu Bibliografia especial: R. CHEMAIN, L'Union économique et monéfaire. Aspects juridiques et institufionels, diss., Paris, 1996; R. SMITS, Tlte European Central Bank - Institutional Aspects, Amesterdão, 1997; l.-V. LOUIS, L'Union européenne et sa monnaie, Bruxelas, 2009, sobre- tudo, pgs. 133 e segs. 145. Enunciação A União Europeia tem entidades com funções de gestão, das quais se destacam duas, a saber, o Banco Europeu de Investimento (BEl) e o Banco Central Europeu (BCE). Não lbe chamamos órgãos, porque de facto não o são: possuem personalidade jurídica própria, sendo, portanto, em bom rigor, pessoas coletivas distintas, ainda que complementares, da União. Têm órgãos próprios. Quanto a essas pessoas coletivas, já se admite que se possa falar, em terminologia jurídica portuguesa, em instituições. 146. O Banco Europeu de Investimento O BEl encontra-se hoje disciplinado nos artigos 308.° e 309.° TFUE e nos seus Estatutos, aprovados pelo Protocolo n.o 5 anexo ao Tratado de Lisboa. Como se disse, tem personalidade jurídica própria, que lbe é atribuída pelo artigo 308.°, par. 1. Reveste natureza similar à de um instituto público no Direito Administrativo interno. São seus membros todos os Estados-membros da União (artigo 308.°, par. 2). De harmonia com o artigo 309.° compete-lhe financiar os projetos aí referidos, sem fim lucrativo, mediante a concessão de empréstimos e garantias, bem como financiar programas de investimento em articulação com as intervenções dos fundos estruturais e dos demais instrumentos financeiros da União'o,. 409 Ver SPIRON, La BEI- Aspects juridiques de ses opérations de jinancemellt, Zurique, 1990. 392 Os Tratados criaram como principal instrumento da política Europeu de Bancos Centrais (SEBC), que esta regulado nos artigos 127.° e seguintes TFUE e no Protocolo n.° 4, 9ue aprovou os respetivos Estatutos. E o SEBC que define e executa a política monetária da União (artigo 127.', n.o 2, TFUE). Ele apoia todas as políticas económicas da União com vista a também estas permitirem alcançar os objetivos ~efImdos no artIgo 3.° UE, sem prejuízo de dar importância especial a estabIlIdade dos preços - dizem-no os artigos 127.', n.o 1, e 282.', n.O' 1 e.2, TFUE. Na sua atuação, dispõem esses preceitos e, por sua reilll~~ao, o arllgo 119.' TFUE, o SEBC deverá estar ao serviço de uma economIa de mercado e de lIvre concorrência", embora, após o Tratado de LIsboa, esta deva ser interpretada, como já dissemos, como ~m sistema de economia social de mercado, que passou a expnmrr o modelo económico e social da União, por força do artigo 3.°, fi.o 3, UE. De harmonia com o artigo 282.°, n.o 1, TFUE, o SEBC é composto pelo Banco Central Europeu e pelos bancos centrais nacionais dos Estados-membros. Portanto, o BCE e os bancos centrais nacionais cuja moeda seja o euro constituem o Eurosistema e conduzem a política monetária da União (artigo 282.', n.o 1, TFUE). O BCE, embora esteja misturado, no artigo 13.°, n.o 1, UE, com órgãos da União, é, não um órgão da União, mas uma pessoa coletiva autónoma (artigo 282.°, n.o 3, TFUE). É ele que dirige O SEBC (artigo 282.°, n.o 2, TFUE). O seu principal órgão é o Conselho, que é composto pelos membros da Comissão Executiva do Banco e pelos Governadores dos bancos centrais nacionais dos Estados·membros cuja moeda monetá~ia da União o Sistema 393 A União Europeia seja o euro. Por sua vez, a Comissão Executiva é composta pelo Presidente do Banco, pelo Vice-Presidente e por quatro vogais, que são nomeados pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, sob recomendação do Conselho e depois de consulta ao Parlamento Europeu e ao Conselho do BCE (artigo 283.° TFUE). O Presidente do Conselho e um membro da Comissão podem participar, sem direito de voto, nas reuniões do Conselho do BCE e o Presidente do Conselho pode mesmo submeter moções à deliberação desse Conselho (artigo 284.° TFUE). O BCE goza de total independência no exercício das suas funções (artigo 282.°, n.o 3, par 2, TFUE). Os seus atos estão sujeitos ao controlo de legalidade pelo TJUE (artigo 263.°, par 1, TFUE). Quando estudámos o TJUE vimos que os membros da Comissão Executiva podem ser destituídos pelo TJ. Sem embargo de toda a competência à qual já nos referimos, o BCE não deixa de ser também um verdadeiro Banco, como resulta do artigo 128.° TFUE. No desempenho da sua competência no domínio monetário ele tem importantes poderes deliberativos e consultivos (artigos 127.°, 138.° e 219.° TFUE). SUBSECÇÃO IV Órgãos auxiliares 148. Introdução Por órgãos auxiliares entendemos os órgãos criados pelo Conselho ou pela Comissão para os ajudar no exercício da sua competência própria. Foi, portanto, a prática que impôs a existência dos órgãos auxiliares. São diversos estes órgãos: desde os grupos de peritos governamentais, coordenados pelo COREPER, e que coadjuvam o Conselho, até aos grupos ad hoc de peritos nacionais, que, em matérias muito diferentes, assessoram a Comissão. 394 Os órgãos e as instituições da União Europeia 149. A "comitologia" Merecem, todavia, destaque, dentro desta categoria de órgãos, os comités criados pela Comissão para a assistir no exercício da sua competência de execução. Esses comités deram lugar ao aparecimento de um vocábulo novo no Direito Comunitário e no Direito da União: a "cornitologia" 4Io . Entende-se por comitologia o sistema composto pelos comités, formados por peritos nacionais, criados para assistirem a Comissão no exercício da sua competência executiva. A criação desses comités desenvolveu-se à margem dos Tratados, mas teve dois méritos: o de fazer participar representantes dos Estados-membros na preparação das medidas de execução que a Comissão ia tomar e de, dessa forma, corresponsabilizá-los na aplicação dessas medidas na ordem interna dos respetivos Estados; e o de, na medida do possível, sem quebra da uniformidade do Direito da União, melhor adaptar essas medidas de execução às especificidades de cada Estado. Isso explica que o número desses comités seja elevadíssimo. A criação, permanentemente empírica e improvisada, desses comités obrigou a disciplinar a sua criação e o seu funcionamento. Foi o que fizeram as três "Decísões Camilo/agia", a primeira, de 13 de julho de 1987411 , a segunda, de 28 de junho de 1999412 , e a terceira, a Decisão de 17 de julho de 2006, que completou a Decisão de 1999413-414. Com a alteração pelo Tratado de Lisboa do regime da competência executiva da Comissão - matéria que já estudámos quando nos debruçámos sobre a Comissão mas à qual voltaremos adiante _ foi necessário rever-se o sistema da "comitologia", o que veio a ser 410 Ver, especialmente, NICOLL, Qu'esf-ce que la comitologie, RMC 1987, pgs. 185 e segs. e 703 e segs. Das obras gerais mais recentes, ver LoUIS/RoNSE, pg. 51, e MANIN, pgs. 263 e segs. '" Decisão 87/373/CEE, JO L 197, de 18-7-87. '" Decisão 99/468/CE, JO L 184, de 17-7-99. '" Decisão 2006/512/CE, JO L 200, de 22-7-2006. 414 Para maiores desenvolvimentos, ver SAURON, Comitologie; comment sortir de la confusion?, RMUE 1999-1, pgs. 31 e segs.; e ISAAC, pgs. 87 e segs. 395 A União Europeia Os órgãos e as instituições da Uniao Europeia feito pelo Regulamento sobre a Comitologia, aprovado pelo Parlamento e pelo Conselho, em 16 de fevereiro de 2011 415 • Hoje temos quatro categorias de comités dentro do sistema da comitologia: os comités consultivos, os comités de gestão, os comités de regulamentação e os comités de regulamentação com controlo. Voltaremos a este assunto quando estudarmos a aplicação do Direito da União pela Comissã04". Os poderes implícitos dos órgãos não se podem, pois, confundir com as atribuições implícitas da União, que já estudámos atrás417 . Também no Direito Internacional se admitem os poderes implícitos dos órgãos das Organizações Internacionais, o que tem sido aceite pela jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça4l'. SECÇÃO IV o alargamento da competência dos órgãos da União 152. Os poderes novos criados ao abrigo do artigo 352. 0 TFUE Não se devem confundir com os poderes implícitos os poderes que podem ser criados pelo Conselho ao abrigo do artigo 352.0 TFUE. O antecessor daquele artigo, o ex-artigo 308.° CE, na versão de Nice, dispnnha o seguinte: 150. Preliminares Artigo 308. 0 Os Tratados preveem dois meios para o alargamento da competência dos órgãos da União: através da teoria dos poderes implícitos e do artigo 352.° TFUE. Vamos estudar separadamente cada uma dessas duas matérias. Se uma ação da Comunidade for considerada necessária para atingir, no curso de funcionamento do mercado comum, um dos objetivos da Comunidade, sem que o presente Tratado tenha previsto os poderes d~ ação necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unaninudade, sob proposta da Corrtissão, e após consulta do Parlamento Europeu, adotará as disposições adequadas" (itálico nosso). 151. Os poderes implícitos Agora, o artigo 352.0 TFUE estabelece: O primeiro instrumento para o alargamento da competência dos órgãos da União é o dos poderes implícitos. A teoria dos poderes implícitos pertence à Teoria Geral do Direito. Portanto, ela não é exclusiva do Direito da União, mas também se aplica a ele. De harmonia com ela, os órgãos de uma pessoa coletiva não têm só os poderes que a norma escrita expressamente lhes confere, mas também os que são instrumentais desses, isto é, aqueles que são necessários ao bom exercício dos poderes que lhes são conferidos de modo explícito. Portanto, não são poderes criados de novo. Isso aplica-se também ao Direito da União. 'I' JO L 55/13. 416 Artigo 352.0 I. Se uma ação da União for considerada necessária, no quadro das poIít~cas definidas pelos Tratados, para atingir um dos objetivos estabelecIdos pelos Tratados, sem que estes tenham previsto os poderes d~ ação necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unaninudade, sob proposta da Comissão e após aprovação do Parlamento Europeu, adotará as disposições adequadas. Quando as disposições em questão sejam adotadas pelo Conselho de acordo com um processo legislativo especial, o Conselho delibera igualmente por unanimidade, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu. 417 Infra, n. 0242. 418 396 Supra, 0. 90. Ver GONÇALVES 0 PEREIRA/QUADROS, 397 pgs. 436-438. A União Europeia 2. No âmbito do processo de controlo do princípio da subsidiariedade referido no n.o 3 do artigo 5.° do Tratado da União Europeia, a Comissão alerta os Parlamentos nacionais para as propostas baseadas no presente artigo. 3. As medidas baseadas no presente artigo não podem implicar a harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros nos casos em que os Tratados excluam tal harmonização. 4. O presente artigo não pode constituir fundamento para prosseguir objetivos do âmbito da política externa e de segurança comum e qualquer ato adotado por força do presente artigo deve respeitar os limites estabelecidos no segundo parágrafo do artigo 40.° do Tratado da União Europeia. (itálico nosso) No seu n. ° I, este artigo alterou o procedimento de decisão previsto no ex-artigo 308.° CE, na medida em que veio reforçar a intervenção do Parlamento Europeu nesse procedimento, que de mera consulta passou a aprovação. Desde o início da integração europeia, este preceito foi, e é, um dos mais característicos do Direito da União. Não se encontra no tratado institutivo de qualquer Organização Internacional clássica. Ele é a consequência natural do facto de os órgãos da União, como atrás se disse, terem competência de atribuição, por força do artigo 13.°, n.o 2, 1.' parte, UE. O fundamento daquele preceito reside no carácter evolutivo da integração europeia e da sua Ordem Jurídica: o que se pretende com ele é evitar que uma lacuna na competência atribuída pelos Tratados aos órgãos da União paralise o andamento e a progressão da integração. Reunidos os requisitos definidos nesse artigo, o Conselho, respeitado o procedimento previsto no n. ° I do artigo, pode criar poderes novos, que sejam necessários para os órgãos da União estarem em condições de dar resposta às exigências da integração. Não pode, todavia, criar novos objetivos, nem novas atribuições, para a União, o que obrigaria à revisão do Tratado, com respeito pelo processo que ele prevê para o efeito. Foi o que o TJ deixou claramente dito no Parecer 2/94, já atrás citado. Ao pennitir ao Conselho criar competência nova, mas ao não autorizá-lo a criar atribuições novas, o artigo 352.° confere ao Conselho um poder quase-constituinte, ou 398 Os órgãos e as instituições da União Europeia u~aparcial "Kompetenz-Kompete/lZ", isto é, uma parcial competenCla das competências419. . ~uais são os requisitos aos quais, hoje, o artigo 352.° sujeita a cnaçao pelo Conselho de poderes novos? São os seguintes: a) a necessidade d~. intervenção da União para se atingir, /lO quadro d~s polltlcas definidas pelos Tratados (por exemplo, no a~bilo da União Económica e Monetária, do esp~ço de hbe~~ade, segurança e justiça, de qualquer das pohtlcas da Umao), um dos objetivos da União, entenda-se, um dos obJetlvos fIxados para a União pelos Tratados. Isto confIrma que o artigo 352.° manda o intérprete conformar~se c,?m os objetivos que os Tratados já impõem à U~IaO, nao permIte que, através dele, sejam criados novos obJelIvos ou novas atribuições; b) a ~missão, nos Tratados, dos poderes necessários para o efeIto, ou, pelo menos, a insufiCiência dos poderes já existentes 420 • . Contudo, o .novo a~go 352.°. TFUE, indo para além do que dlspun~a oex-arlIgo 308. CE, sUjeIta o exercício pelo Conselho, da co~petencIa que ele lhe confere no seu n.o 1, às três seguintes condlçoes: a) o Conselho só poderá criar os novos poderes depois de os Parlamentos naCIOnaIS, a pedido da Comissão se terem pronunciado, a título meramente consultivo, no ~entido da conf?rmldade da proposta da Comissão com o princípio da subsldlarledade, tal como este está consagrado no artigo 5.°, n.o 3, UE (artigo 352.°, n.o 2, TFUE); b) o~ poderes criados pelo Conselho à sombra do artigo 352. o nao podem levar à harmonização de atos legislativos ou ----419 N 'd o mesmo senti o, ver as anotações ao artigo nos Comentários de GROEBEN:'SC~WA~ZE, GRABITzlHILF/NETIESHEIM e STREINZ; e KAISER, Grenzen der EG-Zustandlgkelten, EuR 1980, pgs. 97 e segs.. Oas obras gerais, ver JACQUÉ pgs. 142 e segs. ' 410 A e. TI 12-7-73, Massey-Ferguson ' Proe ' 8173 , Rec " pgs . 897 e segs, 399 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia regulamentares dos Direitos nacionais dos Estados-membros nos casos em que os Tratados excluam essa ha~m~~I­ zação (o que é uma nova forma de respeito pelo pnnclplO da subsidiariedade) (artigo 352.°, n.O 3, TFUE); c) este artigo não se aplica à PESC ~artigo 352.°, n.o 4, TFUE). Compreende-se porquê: esta mc1Ul-se no segundo '1 que é basicamente, um pilar intergovernamental. pi ar" . . . I t Ora, a intergovernamentalidade, Isto é, o Direito, n ernacional Público não se compadece com co~peten~la de índole quase-constituinte como aquela que e confenda ao Conselho neste artigo. Verificadas todas estas condições, o Conselho, respeitado o . . 352 .°, n°.I, TFUE '. e dehberando rocedimento previsto no artigo unanimidade, pode criar os poderes novoS que sejam adequados para o efeito. d Por aqui se vê, portanto, que aquele artigo não se c~nfu~ e co~ a teoria dos poderes implícitos, na medida em que este,s nao sao pode res novos, mas apenas instrumentais dos poderes exphcltos, ne~lcom a criação de novas atribuições, pelos molivos aCima apontados . ~or SECÇÃO V o processo de decisão da União Bibliografia especial: K. POEHLE, Le Parlement européen, et l~s . RMC 1987,pgs parIements natwnaux, . 459 e segs.; F. ZAMPINI, L Ita!le, t en amont du manquement... Un probleme de compétences e~ l'éxecutif, te parlement et les régions, RTDE 1994, pgs. 195 ~ s~~;-' r . PALADIN Forma italiana di governo ed appartenenza e . ta l~ . ' QC 1994 pgs 403 e segs.· Parlamentos nacwnms all'Umone europea, ,. '. I _ os 13/14 - União Europeia, número monográfico de Legls açao, n.. . de MOURA RAMOS H .SCHAFFER; C1995), especialmente os artigos .e ' . C. BLUMANN, La fonction législative communautmre, Pans, 1995, M. Z MARTIN MARTINEZ, El contrai parlamentario de la politica comunitaria, RIE 1995, pgs. 445 e segs.; M. HILF e F. BURMEISTER, Tile Germall Parliament and European Integration, in E. Smith (ed.), National ParJiaments as Cornerstones of European Integration, Londres, 1996, pgs. 64 e segs.; J. RIDEAU (dir.), Les États membres de l'Union européenne, Paris, 1997; l-L. SAURON, Le contrôle parlementaire de l'activité gouvernementale en matiáe communautaire en France, RTDE 1999, pgs. 17l e segs.; JOÃo MIRANDA, O papel da Assembleia da República na construção europeia, Coimbra, 2000; J. JORDA, Le pouvoir exécutijdans l'Union européenne, diss., Aix-la-Marseille, 2001. 153. O processo de decisão da União: introdução Impõe-se agora, a título de balanço das páginas anteriores, que estabeleçamos o processo de decisão da União. O modo como na União se exerce hoje o processo de decisão, tanto no plano legislativo, como no plano administrativo, decorre diretamente do estudo, que fizemos, da competência dos seus órgãos. Para a definição desse processo conta, de modo determinante, o quarteto do poder, que é composto pelo Conselho Europeu, pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão. Posta a questão nestes termos, há que sublinhar que o processo de decisão, tal como ele se encontra regulado nos Tratados UE e TFUE, obedece a um grande pragmatismo. Isto quer dizer que ele varia de caso para caso, conforme os interesses e as matérias em presença. Daí que se torne indispensável a invocação, em cada procedimento de decisão, dos preceitos em que ele se baseia, inclusivamente como condição para o controlo da respetiva legalidade. É, aliás, o que pensa também o TJ. Diz ele: "No que diz respeito à escolha da base jurídica (para o processo de decisão), convém observar, logo para começar, que esta escolha pode ter consequências sobre a determinação do conteúdo do ato, na medida em que as exigências processuais ligadas às disposições de habilitação em causa variam de texto para texto'22. ----=--=-----;f421 Desta arma mUI'to clara , também GRABITZlHILFINEITESHEIM, loco cit., e lAcQuÉ, m Ac. 2-2-89, Comissão c. Conselho, Pme. 275/87, Col., pgs. 259 e segs. Ver tambémAc. 29-3-90, Grécia c. Conselho, Proc. 62/88, Rec., pgs. 1527 e segs. pgs. 142 e segs. 400 401 ~ '~"ro-':·"Ó;:·0\ A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia De qualquer modo, e em grande síntese, podemos catalogar da seguinte forma, e em abstrato, as grandes funções dos refendos quatro órgãos da União. O Conselho Europeu, embora tenha c~~o principal função uma tarefa de índole predommantemente pol!uca - a de definir as grandes orientações da União -, passou a ter dlgmdade igual à dos outros órgãos principais da União e, pela primeira vez, passou a poder praticar atos jurídicos, embora o Tratado UE lhe recuse competência legislativa (artigo 15.°, n.o I, in fine). Por sua vez, o Parlamento Europeu, dentro da sua competência muito variada, é hoje, antes de mais, um co-Iegislador da União, tendo visto nessa matéria a sua competência substancialmente reforçada com o Tratado de Lisboa. O Conselho co-decide em muitas matérias com o Parlamento, mas, no processo legislativo especial, ainda conserva o poder final de decidir num grande número de casos. Pode-se, por isso, dizer que ele ainda é o mais importante órgão a ter a última palavra no processo de decisão da União. A Comissão tem, sobretudo, um direito de iniciativa e competência executiva, incluindo-se nesta a fiscalização política e administrativa da execução do Direito da União pelos Estados-membros. Como ficou demonstrado, ela, ainda mais do que antes do Tratado de Lisboa, pode ser vista como um embrião do Governo da União, e o seu Presidente como um esboço de Primeiro-Ministro da União. À margem desses quatro órgãos, tem de se atender ao papel relevante do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança na gestão das relações externas da União, sem embargo das incongruências que apontámos ao seu estatuto jurídico. sobretudo, de índole administrativa, intervenham, quase sempre a título consultivo ou informativo, ou os Estados-membros, ou suas pessoas coletivas infra-estaduais, como Estados federados, regiões autónomas, autarquias locais, etc. Enquanto essas entidades participam no exercício do poder administrativo da União, estamos perante um problema de Direito Administrativo da União, o antigo Direito Administrativo Comunitário 42'. Esse problema não deve ser confundido com um problema simétrico, que é o da participação, imposta por lei nacional ou pelo Direito da União, de órgãos da União, particularmente da Comissão, no procedimento administrativo nacional. 155. A participação dos Parlamentos nacionais na União Europeia Mais complexa é a participação dos Parlamentos nacionais na União. Dando satisfação aos pedidos que há muito tempo iam sendo formulados por diversas correntes políticas na União, quando da revisão de Amesterdão os Estados-membros aprovaram um Protocolo relativo aos Parlamentos nacionais na União Europeia, que ficou anexo ao Tratado de Amesterdão. Nesse Protocolo, os Estados afirmavam o seu desejo de "incentivar uma maior participação dos Parlamentos nacionais nas atividades da União Europeia e reforçar a capacidade de exprimirem as suas opiniões sobre questões que para aqueles possam revestir-se de especial interesse". E, com vista à prossecução desse objetivo, os Estados estipulavam dois meios: 154. A participação dos Estados no processo de decisão da União a) a prestação periódica de informações aos Parlamentos Os Estados encontram-se representados no processo de decisão da União, como é sabido, através do Conselho. Mas há uma outra forma de eles serem chamados, conforme as matérias, a intervir no processo de decisão. É quando atos de Direito derivado exigem que em procedimentos da União de natureza legislativa ou, b) a atribuição à Conferência dos órgãos dos Parlamentos nacionais, nos termos dos n. os 1 a 3 desse Protocolo; 402 especializados em assuntos europeus (ou seja, das Comissões Parlamentares dos Assuntos Europeus), criada em 1989, com a sigla COSAC, de poderes para dar aos órgãos 423 Ver infra, TI,o 243. 403 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia da União Europeia os contributos referidos no n. o 4 do Protocolo, para analisar as propostas ou iniciativas de atos legislativos, a que aludia o n. ° 5 do Protocolo, e para dirigir ao Parlamento Europeu, ao Conselho e à Comissão os contributos indicados no n. o 6 do Protocolo. Mais tarde, na Declaração respeitante ao futuro da União, que ficou anexa ao Tratado de Nice, cometeu-se ao Conselho Europeu O encargo de, na Cimeira prevista para Laeken, em 14 e 15 de dezembro de 200 I, se pronunciar, entre outras matérias, sobre o "papel dos Parlamentos nacionais na arquitetura europeia" (n. o 5 da Declaração). A intenção dessa medida era a de, dessa forma, se aproximar a União e os seus órgãos dos cidadãos dos Estados-membros. Todavia, a Declaração de Laeken sobre o futuro da União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu na Cimeira acima referida, pouco adiantou sobre o assunto. Ela limitou-se a relaCIOnar o problema do papel dos Parlamentos nacionais na União Europem com a "legitimidade democrática" na União e, nesse quadro, a deixar formuladas as seguintes interrogações: "Deverão (os Parlamentos nacionais) estar representados num novo órgão, a par do Conselho e do Parlamento Europeu? Deverão desempenhar um papel nos domínios da atuação europeia em que o Parlamento Europeu não tem competência? Deverão concentrar-se na repartição de competências entre a União e os Estados-membros, por exemplo, mediante um controlo prévio da observância do princípio da subsldiariedade?". As essas interrogações aquela Declaração não deu, porém, qualquer resposta. .. . . A Convenção sobre o Futuro da Europa fOi mUlto ambiCIOsa quanto ao reforço da participação dos Parlamentos nacionais na União Europeia e verteu os seus propósitos no texto do Tratado Constitucional Europeu. Mostrámos isso na edição anterior, portanto, edição francesa, deste livro'24 e já nos referimos atrás à principal opção feita por aquele Tratado na matéria: fazer participar os '" Pgs. 279-280. Parlamentos nacionais no controlo prévio do respeito pelo princípio da subsidiariedade. . O Tratado de Lisboa manteve essa linha de orientação, pri0 meiro, no novo artigo 12. UE, depois, no Protocolo n. ° 1 relativo ao papel dos Parlamentos nacionais na União Europeia, a ele anexo. O artigo 12.° UE prevê duas formas de participação dos Parlamentos nacionais na União Europeia que não vão estar contempladas no Protocolo: a sua participação no processo de revisão dos Tratados, nos termos do artigo 48. 0 UE, e a sua participação no quadro do espaço de liberdade, segurança e justiça, com o encargo de avalmr a execução das políticas da União dentro desse espaço, nos termos do artigo 70.° TFUE (artigo 12.°, ais. c e d, UE). " No que toca ao Protocolo n.O 1, com fidelidade à preocupação de reforçar a sua (dos Parlamentos nacionais) capacidade de exprillll~:m as suas opiniões sobre os projetos de atos legislativos da Umao Europem e sobre outras questões que para eles possam revestu espeCial mteresse", enunciada no parágrafo 2.° do seu preâmbulo, ~Ie divide a participação dos Parlamentos nacionais em três grandes a:ea~: mformações prestadas aos Parlamentos nacionais, cooperaçao mterparlamentar e controlo do princípio da subsidiariedade. Quanto à primeira área, os Parlamentos nacionais passam a receber as seguintes informações: a) a Comissão envia-lhes diretamente os documentos referi- dos no artigo LOdo Protocolo, dos quais se destaca o programa legislativo anual; b) todos os projetos de atos legislativos dirigidos ao Parlamento Europeu e ao Conselho, com o sentido muito amplo que o artigo 2.°, par. 2, do Protocolo dá ao projeto de ato legislativo, serão comunicados aos Parlamentos nacionais com respeito pelo procedimento previsto nos pars. 3, 4 e 5 do mesmo artigo; c) o Conselho dará conhecimento aos Parlamentos nacionais (ao mesmo tempo que aos Governos nacionais) dos elementos referidos no artigo 5.° do Protocolo, dos quais se destacam projetos de atos legislativos; 404 405 A União Europeia d) como já resultava do artigo 48.°, n.O 7, par. 2, UE, quando o Conselho Europeu pretender autorizar o Conselho a deliberar por maioria qualificada numa matéria em que o Título V do Tratado UE ou o TFUE impunha que essa deliberação fosse tomada por unanimidade, ou tiver em vista tomar uma decisão a autorizar que seja aprovado pelo Conselho por processo legislativo ordinário um ato legislativo que o TFUE estabelecia que devia ser aprovado por processo legislativo especial (é o caso da cláusula passerelle, já por nós estudada), os Parlamentos nacionais serão diretamente informados dessas iniciativas do Conselho Europeu pelo menos seis meses antes de este tomar na matéria qualquer decisão (artigo 6.° do Protocolo); e) o Tribunal de Contas enviará aos Parlamentos nacionais o seu relatório anual, nos termos previstos no artigo 7.° do Protocolo (artigo 7.° do Protocolo). Os Parlamentos nacionais têm o prazo de oito semanas para se pronunciarem, contadas desde a data em que um projeto de at~ legislativo lhes seja transmitido até à data em que esse projeto e inscrito na ordem do dia provisória do Conselho com vista à sua votação (artigo 4.° do Protocolo). Em matéria de cooperação interparlamentar, o Protocolo conserva a Conferência dos órgãos parlamentares especializados nos assuntos da União (à qual o Protocolo não reconhece agora a sigla COSAC, mas que podemos continuar a utilizar) e mantém, no essencial a competência que o referido Protocolo anexo ao Tratado de Ames~rdão lhe atribuía. Praticamente a única novidade consiste no estímulo dado pelo atual Protocolo para se conceder especial importância à PESe, incluindo a Política Comum de Segurança e Defesa, nas conferências interparlamentares. Continua-se a afirmar que os contributos da eOSAC não vinculam nem condicionam os Parlamentos nacionais (artigo 10.° do Protocolo). Mas como se disse, a grande inovação neste domínio traduz-se na partici~ação dos Parlamentos nacionais no controlo do princípio da subsidiariedade. Ela foi por nós estudada quando nos debru406 Os órgãos e as instituições da União Europeia çámos atrás sobre o princípio da subsidiariedade no âmbito do Capítulo dedicado às atribuições da União. Remetemos para aí o leitor'''. Pode-se, por isso, concluir que vai aumentando progressivamente a importância que a União Europeia quer reconhecer aos Parlamentos nacionais no seu processo de decisão. Há, contudo, três pontos que devemos deixar claros. Primeiro, a representação dos Estados e dos povos dos Estados ou dos cidadãos europeus no processo de decisão da União está já asse~urada, resp~tivamente, no Conselho e no Parlamento Europeu. Por ISSO, a partIcIpação dos Parlamentos nacionais pode vir a reforç~r a legitimidade democrática na União, mas não é condição essenCIal para se obter a aproximação da União em relação aos Estados ou aos seus cidadãos. S:gu~do, em qualquer caso, somos contrários à criação de novos orgaos para se exercer o poder de decisão ao nível da União além dos quatro já existentes - o Parlamento Europeu, o Conselh~ E,uropeu, o Conselho e a Comissão -, não só porque não são necessano~,. como também porque o risco de isso vir a pôr em causa a estabIlIdade e o equilíbrio institucional no seio da União é muito grande. A União tem outros problemas mais urgentes com que se preocupar. Por fim, a participação dos Parlamentos nacionais na União seja qual for a forma que assuma, nunca lhes poderá conferir uO: dIreIto de veto no processo de decisão da União. Mais uma vez é o respeito pela atual estabilidade institucional e pela legitimidade' dos quatro órgãos envolvidos no processo de decisão, que em cima indicámos, que o impõe426 . 425 Ver supra, n.O 86-VI. 426 Uma paciente investigação sobre a participação dos Parlamentos dos Estados-membros na União Europeia é levada a cabo no manual de RIDEAU, pgs. 1.013 e segs., com muito boa bibliografia complementar. 407 A União Europeia Os órgãos e as instituições da União Europeia 156. Em concreto, a participação do Parlamento portnguês na União Europeia I I (artigo 4.°, n.o 1, ais. a e e), e acompanha a participação de Portugal nas reuniões do Conselho (artigo 4.°, n.o I, aI. d); b) pode suscitar o debate de todos os assuntos que estejam em dIscussão nos órgãos da União e que envolvam matéria da sua competência (artigo 4.°, n.o 4); e) tem o direito de ser informada pelo Governo sobre os assuntos em discussão nos órgãos da União, bem como os projetos de atos, os projetos de acordos ou tratados, os relatórios e os documentos aos quais se referem os n. OO 1, 2 e 3 do artigo 5.°; d) emite pareceres sobre a seleção, nomeação ou designação de personalidades para cargos em "órgãos ou agências" da União Europeia cujo preenchimento não esteja sujeito a concurso. Como a Lei exclui desse poder os candidatos a membros da Comissão Europeia, do Comité das Regiões e do Comité Económico e Social, e os deputados ao Parlamento Europeu, e, por razões óbvias, ficam também excluídos dele os membros do Conselho Europeu e do Conselho, aquele poder só se aplica, além das "agências europeias", às personalidades que são selecionadas para os cargos de Juiz no TJUE, de membro do Tribunal de Contas e de Advogado-Geral, ou seja, para cargos que a própri~ LeI reconhece terem "natureza jurisdicional" (artigo 11.0). Note-se que é um mero parecer não vinculativo. De facto, mais do que isso iria sujeitar essa escolha a critérios político-partidários. Ora, quanto a órgãos jurisdicionais, isso, em nosso entender, seria profundamente errado. Em Portugal, a Assembleia da República tem poderes específicos em matéria de integração europeia, que lhe são atribuídos pela Constituição: os poderes de pronúncia sobre as matérias pendentes de decisão de órgãos da União Europeia que incidam na esfera da sua competência legislativa reservada (artigo 161.°, aI. n), de acompanhamento e apreciação da participação de Portugal no processo de construção da União Europeia (artigo 163.°, al..f) e de fazer leis sobre o regime de designação dos titulares dos órgãos da União Europeia que caiba a Portugal indicar, com exceção da Comissão (artigo 164.°, aI. pj. Estes preceitos foram, em princípio, concretizados pela Lei n.o 20/94, de 15 de julho. Mais tarde essa Lei foi substituída pela Lei n.o 43/2006, de 25 de agosto, que veio estabelecer os "poderes da Assembleia da República de acompanhamento, apreciação e pronúncia no âmbito do processo de construção da União Europeia". No seu artigo 1.0, n.o 1, esta Lei resume em três categorias os poderes da Assembleia da República na matéria. Assim, cabe à Assembleia da República: a) emitir pareceres sobre matérias que, pela Constituição, são da sua competência reservada e que estejam pendentes de decisão em órgãos da União Europeia (ver artigo 2.°); b) emitir pareceres sobre o respeito pelos órgãos da União do princípio da subsidiariedade (ver artigo 3.°); e) acompanhar e apreciar a participação de Portugal na construção europeia. Este último poder é o que se encontra regulado com mais pormenor na Lei, nos seus artigos 4.° e seguintes. Assim, no exercício desse poder, a Assembleia da República: a) debate, com a participação do Governo, a participação de Portugal na União Europeia, em geral (artigo 4.°, n.o I, aI. b, e n."' 2 e 3), e no Conselho Europeu, em particular I, 408 A Comissão de Assuntos Europeus é a comissão parlamentar especIalIzada para o acompanhamento e a apreciação dos Assuntos Europeus, sem prejuízo do plenário e das outras comissões parlamentares (artigos 6.° e 7.°)427. À margem d , "ena d este numero, ' a ma mas com relevância para o estudo do mesmo domínio, deve ser sublinhada a participação das regiões autónomas dos Açores e da Madeira na União Europeia, expressamente prevista no artigo 227,0, a n,o 1, aIs. v, 2. parte, e x, da Constituição. Cfr. supra, n.O 105. 427 409 PARTE II O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA 157. Preliminares Esta Parte tem como epígrafe Direito da União Europeia e nela vamos estudar de modo expresso a Ordem Jurídica da União. Como prevenimos logo no início do livro, não nos estamos a esquecer, também aqui, de que, à margem da União, subsiste ainda uma Comunidade, a Euratom, e que quanto ao seu sistema jurídico é correto continuar a falar-se em Direito Comunitário. Acontece, porém, que a importãncia da Euratom à margem da União Europeia é diminuta e que a sua especificidade por confronto com a União é muito rednzida. Por isso, o ordenamento jurídico que vamos examinar nesta Parte refere-se ao conjunto global da União. Quando houver razões para levarmos em consideração as características próprias do Direito da Euratom di-Io-emos de modo expresso. 413 CAPÍTULO I NOÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: da bibliografia geral indicada no início deste livro, V., especialmente, as obras de IpsEN, pgs. 182 e segs. e 200 e segs., L,-I. CONSTANTINESCO. PESCATORE, e, mais recentemente, GARCÍA DE ENTERRIA, CHITJ, pgs. 49 e segs., 77 e segs. e 99 e segs., JACQUÉ, pgs. 93 e segs. e 483 e segs., e bibI. aí cit., e VON BOGDANDY (ed.), pgs. I e segs.; além disso, F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit., e bibL cit. ao longo dessa obra; J. SCHWARZE, Europiiisches Verwaltungsreclzt im Werden, Baden-Baden, 1982; J. SCHWARZE, Europiiisches VerwaltungsreclIt, 2 vaIs., Baden-Baden, 1988, e tradução francesa, com adaptações, Droit administrat!! européen, 2 vaIs., Bruxelas, 1996; T. VON DANWITZ, Verwaltungsrechtliches System llnd europiiische Integratioll, dissertação, Tubinga, 1996; R. KNÜTEL, lus commune und r6misches Rechl var Gerichte der Europiiischen Unioll, JS 1996, pgs. 768 e segs.; J. SCHWARZE (ed.), Das Verwallungsrecht unter europiiischen Einfluss, Baden-Baden, 1996, e tradução francesa, Le droit administralij sous l'injluence de l'Europe, Baden-Baden, 1996; J. GERKRATH, L'emergence d'un droit conslitutionnel pour I'Europe, diss., Bruxelas, 1997; J. SCHWARZE, The Convergence of lhe Administrative Laws of lhe EU Member States, EPL 1998, pgs. 191 e segs.; F. DE QUADROS, Relatório sobre Direito Comunitário I, cit., pgs. 44 e segs., e bibl. aí cit.; J.-C. PIR[S, L'Union a-t-elle une constitution? Lui en faut-i! une?, RTDE 1999, pgs. 599 e segs.; F. DE QUADROS, A nova dimenslío do Direito Administrativo, Coimbra, 1999, pgs. 11 e segs., 15 e segs., e 22 e segs.; V. CONSTANTINESCQ, Vers que/le Europe, Europe fédérale, conféderation européenne, fédération d'États-Nations, Les Cahiers français 2000, o fi. 298, pgs. 80 e segs.; R. LLOPIS CARRASCO, Constitución europea: un 415 ~' li Iii " o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia cOllcepto prematuro, "I-ncia va e , 2000', ANA MARTINS, " . A natureza jurídica E da revisão do Tratado da União Europew, CIt., P. MAONEITE e. J' pe'en 2 vols ., Bruxelas, 20oo , . REMACLE Le nouveau mod e'le euro, . pgs. 9 e seg S'CCANCELA MIRANDA, Direito Constitucional III, CIt., ". . OUTEDA, 'EI proceso de constitucionalizacián de la U~uo~ Eu:op~a, , La . constltutlOnalzsatlOll SantIago de Compost e1a, 2001',D. BLANCHARD' . . . , europeenne, ' Pans, . 200 l',S. CASSESE , La slgnona de l' Unwn 2 1 ammUHS' R trativa sul diritto communitario, RIDPC 2002, pgs. 9, e ;~~~: E' (dI' r ) Une Constitution pour l'Europe?, Pans, , . ' D EHOUSSE . , "" I I ' DrOlts dre Jun "d'l q fie"déral MAULIN L 'ar. u e . L'Etat fédera aut lentlque,, 2002-1 pgs, 41 e segs,; ACADEMY OF EUROPEAN LAW (edJ, ReqUlrements or the Emerging European Constitution, TrevIro, 2002" E. Das allgemeine Verwaltungsrecht ais Ordn,ungsldee; 2 ' d B rlim 2004 e tradução espanhola da l.a ed., La teona genera , e., e " , d 'd 2003'.': F DE2005 QUADROS ' dei derecho administrativo como sistema, Ma n. ' Constituição europeia e Constituições estaduais, O Dl.r~lto bbi,pgs. 687 e segs.; ALDo SANDULU, La scienza italiana deI dlntto pu lCO e l'integrazíone europea, RlDPC 2005, pgs, 859 e segs.; F. DE QMUADROS, . '" Co1aç o Antunes e. SálllZ . oreno O acto administrativo comUnttarlO, . (coords.), Colóquio Luso-Espanhol- O acto no contencl~so ad~~Istraif tivo Coimbra, 2005, pgs. 63 e segs.; M. FROMONT, DrOlt aQdmlnlstratA, '2006 , pgs. 82 e segs'. ,F. DE UADROS, dés ,États européens, ParIS, M 11 europeização do Contencioso Administrativo, Estudos G ~ce o D, ~CHMlDT-ASSMANN Caetano, vaI. I, Coimbra, 2006, pgs, 385 e s:gs.; M. C~ITl~r' ;~~~: ;oCI I Trattato di diritto amministrativo europeo, 2. ~". 4 vo, S., 1 b an F DE Q UADROS, Global Law, Plural ConstltutlOnallsm . " Aro a Administrative Law, Javier Robalino-Orellana e Jaime ~odnguez- ana - z Global Administrative Law, Londres, 2010, pags, 329 e segs. Muno, ! I,I ,ii i' 158. O Direito da União como ramo antónomo de Direito o 159. A elaboração dogmática do Direito da União Europeia O Direito da União é um ramo de Direito jovem: ele sucedeu, em circunstâncias que conhecemos, ao Direito Comunitário, que nasceu em 1952, com a entrada em vigor do Tratado institutivo da primeira Comunidade, a CECA. Tendo a partir do Tratado de Maastricht subsistido as Comunidades ao lado da União Europeia, que aquele Tratado criou, desde então também têm coexistido o Direito da União e o Direito Comunitário. Só que este, como se disse poucas linhas atrás, encontra-se hoje confinado às fronteiras apertadas da Euratom e será, naturalmente, absorvido por inteiro pelo Direito da União, quando a Euratom se dissolver na União. Para o seu nascimento, para a sua estruturação e para a sua construção dogmática, o velho Direito Comunitário foi buscar as suas raizes a ramos de Direito pré-existentes, designadamente àqueles que mais diretamente se prendiam com a forma da sua revelação e com o seu objeto. Foram sobretudo esses ramos de Direito que moldaram a estrutura dogmática do Direito Comunitário na sua nascença. Vejamos quais foram, Em primeiro lugar, o Direito Internacional Público, As antigas Comunidades foram criadas por tratados internacionais, logo, é exato afirmar-se que o Direito Comunitário nasceu do Direito InternacionaL Por isso, durante muito tempo o Direito Comunitário foi ensinado nos manuais de Direito Internacional Público, onde as Comunidades Europeias eram integradas nas Organizações Internacionais; por isso também, em alguns Estados-membros levou-se tempo a criar, nos planos de estudos de Faculdades de Direito, a disciplina de Direito Comunitário com autonomia em relação ao Direito Internacional Público. Foi o que sucedeu, por exemplo, na Espanha. Direito da União Europeia é o sistema jurídico da União ,. Euro eia melhor, a Ordem Jurídica da União Europeia., significa que o Direito da União tem o seu obJeto propno e ortanto, a sua autonomia própria, não devendo, p?rt~nto, ser ou aplicado, nem pela União e pelos seus orgaos, nem pelos Estados-membros e pelos seus órgãos, com perda da sua especificidade, isto é, das suas características própnas. Todavia, essa autonomia impunha-se, dado que, embora tenha nascido do Direito Internacional Público, e embora mantenha, através dos Tratados, esse cordão umbilical com o Direito Internacional, o antigo Direito Comunitário e o atual Direito da União foram ganhando, como veremos, a sua estrutura própria, quer no plano dogmático, quer no plano científico. Em Portugal, o Direito Comu- 416 417 ~sso' i~t~rpretado o Direito da União Europeia nitário começou a ser ensinado em Faculdades d_e ?ireito, como disciplina jurídica autónoma, mesmo antes da adesao as Comumdades Europeias'28. ., . . Em segundo lugar, o antigo Direito C0m.umtarlO fOI buscar um contributo forte ao Direito Administrativo. E justo dizer-se que o Direito Administrativo foi o ramo de Direito que de modo maIS intenso ajudou à construção dogmática e científica do Dlreit? Comunitário. Desde logo, foram os autores dos Tratados que o qUIseram. Assim, a forte influência do Direito Administrativo era notória nos Tratados institutivos das Comunidades, como o é nos atUaIS Tratados em matérias tão vastas e importantes como a tipologia dos atos de 'Direito derivado, a organização e o funcionamento da Comissão como órgão executivo, a aplicação do Direito da Umão pela União e pelos Estados-membros, a responsabilidade extracontratual da União, o Contencioso da União Europeia, etc. E ela é também notória num dos domínios nucleares dos Tratados em sede de pura integração económica, como é o caso do Direito da Con,co~­ rência em matérias como os contratos públicos, as empresas publicas, o; serviços de interesse económico geral, os auxílios do Estado, etc. 42'. Foi isso, sobretudo, que levou um dos maIOres nomes da Ciência do Direito Público da Alemanha do pós-guerra, OTIO BACHOF, a caracterizar o antigo Direito Comunitário como Direito Administrativo da Economia'30. E foi isso também que tornou apropriada a caracterização da Comunidade Europeia como "Comunidade de Direito Administrativo"43!. Mas também contribuiu para essa influência do Direito Administrativo a jurisprudência do TJ. Por obra dela, o Dir~ito Comunitário, muito cedo, começou, para ganhar corpo e coerencta mterna, a ir buscar ao Direito Administrativo, sobretudo da França e da Alemanha, princípios gerais de Direito Administrativo de funda- Ver o nosso Relatório sobre Direito Comunitário I, pgs. 27 e segs. Ver QUADROS, A nova dimensão, pgs. 11 e segs. 430 Die Dogmatik des Verwaltungsrechts vor den Gegenwartsaufgaben der Verwaltung, VVDStRL 1972, pgs. 193 e segs. . 431 Ver QUADROS, A nova dimensão, loco cit., especIalmente, pg. 12. 428 429 418 Noção e caracterização do Direito da União Europeia mental importância para darem densidade e solidez ao antigo Direito Comunitário43 '. Depois, e por fim, o Direito Económico foi também uma forte fonte de inspiração e de modelação do Direito Comunitário. Todo o regime das "quatro liberdades" e traços importantes do Direito da C,oncorrência fica~ar~ definidos nos Tratados institutivos por mfluencta dlreta do Direito Económico, em várias das vertentes que este pode assumir. 160. Ramos afins do Direito da União Europeia Embora seja um ramo autónomo de Direito, o Direito da União tem mantido, ao longo da sua progressiva e profunda elaboração durante este mais de meio século, uma forte afinidade com outros ramos clássicos do Direito, dos quais tem obtido, continuamente, contributos que o vão enriquecendo. Por isso, este problema de certo modo completa aquele que tratámos no número anterior. O primeiro ramo afim do Direito da União continua a ser o Direito Internacional Público. Repare-se em que os tratados internacionais ainda são a primeira fonte do Direito da União (só suplantados pelo ius cogens da União e internacional). Por exemplo, a 432 Ver a ob. cit., na nota anterior, pgs. 13 e segs. Sobre as raízes do Direito Comunitário no Direito Administrativo veja-se, logo no início da integração, IpsEN, sobretudo, pgs. 4 e segs., e, mais modernamente, de modo especial, KNÜTEL. Para um apanhado geral do contributo dos Direitos Administrativos nacionais para a elaboração do Direito Comunitário, ver, sobretudo, SCHWARZE, Droif Administrau! Européen. Para uma visão global da interação dogmática entre o Direito Administrativo e o Direito Comunitário, ver a obra de SCHMIDT-AsSMANN e a dissertação de l.-M. MAILLOT, La théorie administrafive des príncipes généraux du droit, Paris, 2003, sobretudo pgs. 179 e segs. e 208 e segs .. Sobre a evolução da Ciência do Direito Administrativo em Portugal e a sua relação com a Ciência do Direito Administrativo de outros Estados europeus, veja-se QUADROS, Gescllichte der Verwaltungsrechtswissenschaft in Europa - Stand und Probleme der Forschung: Portugal, in Geschichte der Verwaltungsrechtswissenschaft in Europa _ Stand und Probleme der Forschung, ed. por Erk Volkmar Heyen, in lus commune, número especial 18 (1982), pgs. 161 e segs. 419 o Direito da Uniâo Europeia i ! 1 I I r ! I' I I ,j ! I ~; I ! recente revisão dos Tratados teve lugar através de um Tratado, o Tratado de Lisboa. A ligação com o Direito Internacional Público vai por isso, manter-se. Aliás, essa afinidade com o Direito Internacio~al Público é recíproca, porque o facto de, após a 2: Guerra, e, particularmente, nos últimos vinte anos, o Direito I~ternacional Público ter vindo a construir no seu seio áreas embnonanas de sohdariedade e de integração, como já explicámos logo na Introdução deste livro, ficou muito a dever-se ao sucesso que foram obtendo a integração europeia e a sua Ordem Jurídica. O segundo ramo afim do Direito da União é o Direito Administrativo. E, na sequência do que atrás acabámos de dizer quanto ao contributo que o Direito Administrativo tem vindo a dar à const~u­ ção do Direito da União, temos agora que a~rescentar q~e ele ~ o ramo de Direito com o qual este tem mantido uma maIs estreIta .. relação recíproca. . _ Por um lado, a progressiva intensidade da aphcaçao do DIreito da União por via administrativa, a nível da União, tem conduzIdo ao nascimento e ao gradual enriquecimento do procedImento admInIStrativo da União, que é o principal objeto do antes designado Direito Administrativo Comunitário, e que agora tem de ser chamado Direito Administrativo da União, no sentido mais próprio desta expressão. Por outro lado, a cada vez mais ampla e complexa aplicação do Direito da União pelos Estados-membros, na respetlva ordem interna, pelas suas Administrações Públicas, acrescida da necessidade da aplicação do Direito da União na ordem inte~a sem prejuízo para o princípio da subsidiaried~de,mas co~ respeIto pelo princípio da uniformidade da Ordem Jur~dl~a da Umao, tem leva~o à conformação de zonas cada vez mars Importantes do DIreIto Administrativo nacional pelo Direito da União, como o ato admInIStrativo os contratos públicos, os serviços públicos, as empresas públic~s, a responsabilidade extracontratual da. Admini~t~ação Pública, o procedimento administrativo, o contencIOso adn.umstrativo, e, de um modo geral, de vastas áreas do DIreIto AdmlmstratIvo da Economia, do Direito Administrativo Financeiro, do DIreIto Administrativo Social, etc. Chegamos, por este caminho, à noção de Direito Comunitário Administrativo, que hoje tem de ser designado 420 Noçâo e caracterização do Direito da União Europeia de Direito da União Administrativo, que não é o mesmo que o Direito Administrativo da União, porque aquele exprime a progressiva comunitarização (hoje, europeização) dos Direitos Administrativos nacionais, isto é, a grande penetração do Direito da União nos Direitos Administrativos estaduais. Para compreendermos este fenómeno, temos que notar que nas relações entre o Direito Administrativo e o antigo Direito Comunitário deu-se um movimento de ida e volta, que merece ser enfatizado. No início da integração europeia, o TJ, como se explicou, foi buscar aos Direitos Administrativos nacionais, sobretudo aos Direitos Administrativos francês (ou seja, à jurisprudência do Conselho de Estado'33) e alemão, a elaboração que estes vinham dando aos princípios gerais do Direito Administrativo, à teoria do ato administrativo, a variadas questões do procedimento administrativo a diversos aspetos do contencioso administrativo, e serviu-se di~so para a criação pretoriana do antigo Direito Comunitário, que consiste numa das principais características deste ramo de Direito e hoje, do Direito da União. Mais tarde, esse Direito Administrativo' assim importado do Direito nacional pelo TJ, foi, depois de elabo~ rado e densificado por este, devolvido aos sistemas jurídicos estaduais e, concretamente, aos tribunais nacionais, ajudando, dessa forma, à "reconstrução" e à "reelaboração", em suma, ao enriquecimento, dos Direitos Administrativos nacionais, na base da "convergência" entre eles. Foi uma forma de o Direito Comunitário retribuir aos Direitos Administrativos estaduais o contributo que estes ~aviam dado ao seu nascimento, à sua formação e à sua elaboração. E assim que deve ser interpretado O facto de o Conselho de Estado francês e os tribunais administrativos alemães, espanhóis, italianos e doutros Estados-membros, muito frequentemente se louvarem na construção dada pelos Tribunais da União Europeia ao Direito 433 Reconhece-o o próprio Conselho de Estado: veja-se Droit coml1Umautaire et droit.français, Études et documents du Conseil d'État n. 033, 1981-82, pgs. 360 e segs.. A matéria encontra-se desenvolvida no Relatório francês, de l-E FLAUSS, no livro de Schwarze, Le droit administratif sous l'influence. 421 o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia Administrativo'''. Em Portugal, os tribunais administrativos ainda paração de Direitos"). Mas adotaremos aqui a terminologia tradicional, inclusive na nomenclatura dos planos de estudos das Faculdades de Direito dos países latinos. O Direito Comparado é afim do Direito da União porque a comparação dos Direitos é essencial à harmonização das Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da União, o que constitui um requisito da afirmação do Direito da União como uma Ordem Jurídica comum aos Estados-membros e suscetível de interpretação e de aplicação uniformes pela União e pelos Estados-membros. O quinto ramo de Direito que tem de ser visto como afim do Direito da União é o Direito Civil. E por uma razão óbvia. O Direito da União foi buscar, sobretudo através da jurisprudência, vários princípios gerais que constituem repositório do Direito comum e que vêm do Direito Romano pela mão do Direito Civil'''. Por seu lado, o Direito da União tem sido largamente subsidiário dos sistemas jurídicos dos Estados-membros em matéria de Direito das Sociedades, de Direito das Obrigações, de Direito dos Contratos, de Direito da Responsabilidade. E, em sentido contrário o Direito da União está na base de um movimento, que vai adian~ tado, no sentido da criação de um Direito Civil Europeu' 37 • O sexto ramo que mantém afinidades com o Direito da União é o Direito Processual. Isso resulta, naturalmente, do facto de as garantias judiciais serem muito extensas no Direito da União, o que fez desenvolver-se bastante, aliás, com base nos Tratados, o Direito Processual Comunitário, hoje Direito Processual da União. Mas resulta, também, do facto de a aplicação eficaz e uniforme do Direito da União, que é imposta também aos tribunais dos Estados-membros, obrigar o Legislador e o Juiz nacionais a conformarem o Direito Processual estadual e as práticas processuais internas com as exigências da aplicação do Direito da União. A última e profunda reforma do Contencioso Administrativo em Portugal, de 2002, constitui um bom exemplo do que se acaba de dizer. não iniciaram esse caminho, mas só ganharão em fazê-lo. O terceiro ramo afim do Direito da União é o Direito Constitucional. Não - que isto fique, mais uma vez, claro - que o Direito da União seja a Ordem Jurídica dum Estado, assente numa Constituição formal. Mas o progressivo alargamento da Constituição material da União está a levar a uma europeização das Constituições estaduais, isto é, à progressiva harmonização das Constituições dos Estados-membros com o Direito da União, particularmente no domínio económico e financeiro, e, mais recentemente, também em questões políticas. Essa harmonização das Constituições estaduais com o Direito da União Europeia visa dois objetivos: por um lado, garantir a efetividade do Direito da União na ordem interna dos Estados, o que constitui um dever dos Estados; por outro lado, adaptar as Constituições nacionais aos Tratados da União, na versão que lhes vão dando as suas sucessivas revisões. O Direito da União, por seu lado, como se viu, atende às tradições constitucionais comuns aos Estados-membros. Ou seja, existe um diálogo intenso e contínuo também entre o Direito Constitucional estadual e o Direito da União, do qual os dois tiram proveito"'. O quarto ramo afim do Direito da União é o Direito Comparado. Para nós, o Direito Comparado, em bom rigor, não é um ramo de Direito: é um método jurídico, mais concretamente, um método de comparação de Direitos. É por isso que, com muito maior exatidão, os alemães falam em "Rechtsvergleichung" (exatamente, "com434 Ver, sobre este ponto concreto, de modo especial, as obras de SCHWARZE, especialmente Le droit administratifsous l'influence e The Convergence, SCHMIDT-ASSMANN, CASSESE., CHITI, CHm/GRECQ, GRECO, Il diritto comunitario propulsore deI diritto amministrativo europeo, RIDPC 1991, pgs. 85 e segs., POTVIN SOLIS, L'éffet des jurisprudences européennessur la jurisprudence du Conseil d'État français, Paris, 1999, C. KNILL, The Europeanisation ofNational Administrations, Cambridge, 2001, e os nossos A nova dimensão, pgs. 18 e segs., e A europeização. A revista RTDE publica semestralmente uma crónica sobre a ''jurisprudência administrativa francesa que interessa ao Direito da União", que ilustra profusamente o que se diz no texto. 435 Ver o nosso estudo Constituição europeia e Constituições estaduais. 422 Ver, muito especialmente, KNÜTEL. Ver, por todos, C. CASTRONOVO e S. valo europeo, 2 vais., Milão, 2007. 436 437 423 MAZZAMUTO, Manuale di diritto pri- o Direito da União Europeia Note-se que o aprofundamento do espaço de liberdade, segurança e justiça, regulado hoje nos artigos 67.° e seguintes TFUE, mais estreitará esta relação entre o Direito da União e o Direito Processual nacional, quer Civil, quer Administrativo, quer Penal, como, aliás, resulta desde logo, da parte final do artigo 67.°, n.o 1. 161. As dificuldades linguísticas no desenvolvimento do Direito da União Enropeia Os vinte e sete Estados-membros têm línguas oficiais muito diferentes entre si, desde logo, do ponto de vista da sua génese. Isto faz com que muitas vezes seja difícil exprimirem-se, em sintonia, palavras, expressões e conceitos nas várias línguas oficiais. Este fenómeno, que podemos chamar de multilinguísmo no Direito da União, apresenta uma relevância enorme para aquele Direito, que tem sido subestimada. Não se concebe que os Tratados, o Direito derivado e a jurisprudência da União não digam o mesmo, até ao mais ínfimo pormenor, nas diversas versões linguísticas nacionais, sob pena de, em bom rigor, não ser idêntico o Direito da União que se aplica a todos os Estados, o que seria um absurdo, para além de se infringir o princípio da igualdade entre os Estados-membros e os seus cidadãos. Mas esse resultado pode não ser alcançado se a terminologia jurídica, nomeadamente, os conceitos e os institutos jurídicos, forem objeto, entre as várias línguas oficiais dos Estados-membros, de uma mera tradução literal (que, muitas vezes, nem sequer é possível, dada a diferença de famílias jurídicas de onde provêm esses conceitos e institutos) em lugar de uma sua interpretação jurídica. Os juristas linguistas, tanto da União, como dos Estados-membros, devem levar esta questão muito a sério. E a redação dos novos Tratados da União podia ter servido de boa oportunidade para a União e os Estados-membros se redimirem de graves erros que nesta matéria se têm vindo a cometer e a acumular. Mas assim não aconteceu, ou só aconteceu em pequena parte. Será muito grave (e contrário ao respeito que, pela força dos próprios Tratados, os Estados se devem a si próprios) se os poderes 424 Noção e caracterização do Direito da União Europeia públicos ou os cidadãos de um Estado-membro, tiverem de invocar a versão oficial de uma fonte escrita de Direito da União (desde logo, dos Tratados) em língua diferente da respetiva língua nacional, para desse modo fugirem aos erros da negligenciada versão oficial da mesma fonte na respetiva língua nacional. O próprio TI tem sido sensível a esta questão. Sem deixar de partir da ideia de que, em princípio, todas as versões linguísticas têm o mesmo valo!"''', o TJ entende que, quando uma versão comportar uma "ambiguidade", ela deve ser interpretada "num sentido conforme com as outras versões linguísticas"439. Por seu lado, e concretamente quanto aos regulamentos da União, o TI, através de uma jurisprudência constante, vem decidindo que "a necessidade de uma interpretação uniforme dos regulamentos comunitários exclui que, em caso de dúvida, o texto de uma disposição seja considerado de modo isolado e exige, ao contrário, que ele seja interpretado e aplicado à luz das versões noutras línguas oficiais"440. Infelizmente, o Estado Português e os juristas-linguistas de língua portuguesa nos órgãos da União têm subestimado o rigor jurídico na versão portuguesa das fontes do Direito da União, para começar, dos próprios Tratados. Já mostrámos isso atrás, quanto a várias matérias, por exemplo, quanto à confusão entre "órgãos" e "instituições". E ao longo deste livro iremos perceber a relevância prática do que acabámos de dizer quanto também a outros domínios441 , '" Ae. 20-11-2003, Kyoeera, Proe. C-J52/0J, pontos 31-33. '" Ae. 22-4-97, Road Air, Proe. C-31O/95, CoI., pgs. J-2.229 e segs., ponto 32. 440 Ver, sobretudo, o Ac. 12-7-79, Koschriske, Proc. 9/79, Rec., pgs. 2.717 e segs., ponto 6. 441 Ver sobre a matéria deste número também LOUlSIRONSE, pgs. J11-112 e, especialmente, HEUSSE, Le multilinguisme ou le défi caché de I' Unioll européenne, RMC 1999, pgs. 202 e segs., MILlAN-MASSANA, Le régillle linguistique de I'Unioll européenne et l'incidence du droit communaufaire sur la mosafque linguistique européenne, RDP 1995, pgs. 485 e segs., e POZWIJACOMEITI, Multilillgualisme and the harmonisation 01 europeanlaw, Oxford, 2006. 425 o Direito da União Europeia 162. Natureza J'urídica do Direito da União: euunciado da questão Para se compreender o Direito da União é indispensável estudar-se a sua natureza jurídica. No já longínquo ano de 1984 demonstrámos a importância desta questão e tomámos, de modo desenvolvido, posição sobre ela'42. Depois, nas duas antenores edl: ções deste livro, atualizámos o nosso pensamento e .adaptámo:lo a índole deste livro, sem prejuízo de se manterem atuals as prenussas de que partimos em 1984. Agora, vamos levar em conta o pouco que o Tratado de Lisboa veio fornecer de novo sobre este ass~~to. Hoje as correntes que se pronunciam sobre esta matena, e que já foram muito diversificadas, podem ser agrup~~as em duas, ~o~ maior ou menor rigor terminológico: a corrente mternaclOnahsta e a corrente "federalista". Vamos examiná-las separadamente. 163. Continuação: A) A tese internacionalista. Crítica Para a corrente internacionalista, o Direito da .União ~ec.on­ duz-se em maior ou menor grau, ao Direito InternacIOnal Pubhco. O gra~de argumento em que ela se apoia é o de. que, ontem as Comunidades, hoje a União, foram cnadas por classlcos tratados internacionais e continuam a ter estes como sua pnmelfa fonte. Designadamente, esses tratados só entram em vi~or se ratlÍ1cad~s por todos os Estados signatários. Por isso, as relaçoes entre a Umao e os Estados-membros são relações que assentam na soberama dos Estados. Os seguidores desta corrente, de modo mais. ou ~enos confesso, não aceitam, portanto, as relações de subordmaçao que sujeitam os Estados e os seus cidadãos à Un~ã~ e, partlcul~ffilente, a prevalência do Direito da União sobre o_s Direitos naCIOnaiS, especialmente, sobre as respetivas ConstltUlçoes. . Que dizer desta corrente? Que ela se encontra em progressIvo declínio. 442 Ver a nossa dissertação de doutoramento, dedicada especialmente a este tema. 426 Noção e caracterização do Direito da União Europeia De facto, o Direito Internacional clássico e, portanto, a Teoria Geral dos Tratados Internacionais, não conseguem explicar traços essenciais do Direito da União: por exemplo, a aplicabilidade direta de algumas das suas normas e de alguns dos seus atos na ordem interna dos Estados; o primado do Direito da União sobre os Direitos nacionais, ta! como a jurisprudência da União o construiu com a aceitação, hoje pacífica, dos tribunais constitucionais nacionais e, por isso, com o seu acolhimento, também pacífico, pelo Tratado de Lisboa; em suma, o fenómeno da subordinação, que, como vimos, se encontra no âmago do conceito de integração, e que leva ao nascimento, na titularidade da União, de um poder político integrado. Mas, por outro lado, a tese que estamos a apreciar também falha na caracterização do próprio Direito Internacional Público. Como já prevenimos logo na Introdução deste livro, o moderno Direito Internacional, nascido depois da 2.' Guerra (por oposição ao Direito Internacional clássico, que basicamente era o velho Direito Internacional da Paz e da Guerra), já não assenta necessariamente na soberania dos Estados e no individualismo internacional ditado por ela, para, progressivamente, se deixar penetrar pelos princípios da solidariedade, da coesão e, portanto, da integração, e, por conseguinte, para abarcar no seu seio relações de subordinação. Isso resulta do facto de o moderno Direito Internacional ter vindo a absorver, cada vez mais, matérias que, em termos clássicos, constituiam exclusivo da soberania dos Estados. Essa evolução acentuou-se depois da queda do Muro de Berlim e, consequentemente, do termo da guerra fria, e tem vindo a assumir, sobretudo, os seguintes traços: o alargamento do ius cogens, especialmente à custa da progressiva universalidade dos Direitos do Homem; o reforço da salvaguarda dos direitos e das liberdades fundamentais do indivíduo, sobretudo das minorias étnicas e culturais, e, para o efeito, a aceitação pela Comunidade Internacional do seu dever (e não só direito) de ingerência na ordem interna dos Estados (embora com contornos ainda por definir) para fins de assistência humanitária; o estabelecimento de um sistema de repressão dos crimes internacionais, ainda que subsidiário em relação ao Direito Penal dos Estados, culminando com a criação do Tribunal Penal Internacional; o alas427 o Direito da União Europeia tramento progressivo do Direito Internacional, na base da solidariedade, a áreas novas, como o Ambiente, a Energia, o Mar, a exploração espacial, o combate à criminalidade organizada e ao terrorismo, as alterações climatéricas, a globalização, etc, Mais modernamente, e já na viragem do século XX para o século XXI, o Direito Internacional começou a ser visto como a Ordem Jurídica da Nova Ordem Mundial, portanto, como um Direito Internacional Universal em formação, Esse Direito Internacional Universal é fruto do "constitucionalismo emergente da Ordem Mundial"'43. Essa constitucionalização do Direito Internacional quer significar que há nele cada vez mais áreas que vão progressivamente obtendo o consenso dos Estados à escala mundial, e que são, hoje, sobretudo três: a proteção dos direitos fundamentais, inclusive das minorias étnicas; a globalização, que, estando a ser, como se disse, prosseguida pela Organização Mundial do Comércio, se pretende que seja levada a cabo com respeito pela Pessoa Humana44'; e o combate à criminalidade organizada e ao terrorismo, neste caso, sobretudo na sua nova forma de terrorismo global. Quanto a este último ponto, há que ter consciência de que os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque vieram assinalar uma nova fase na evolução do Direito Internacional, em cujo conteúdo vai pesando, cada vez mais, ele ter de ser uma Ordem Jurídica da defesa da Liberdade contra o terrorismo. Portanto, não só não se consegue explicar o Direito da União reconduzindo-o ao Direito Internacional clássico, como, pelo contrário, é este que tem vindo a deixar-se penetrar cada vez mais por princípios e regras de integração e de subordinação, 443 A expressão, muito feliz, é de MCWHINNEY, The International Court of Justice and the Western Traditioll of International Law, Dordrecht, 1987, pgs. 55 e segs.. Sobre o Direito Internacional Universal ver o que escrevemos, com base, sobretudo, em VERDROSS, em A protecçüo do propriedade privada pelo Direito Internacional Público, cit., pgs. 548 e segs.. Veja-se, também, a Parte III deste livro, especialmente, o 0. 0 274. 444 Veja-se o nosso recente estudo Global Law, pgs. 330 e segs.. 428 Noção e caracterização do Direito da U11100 .- Europew ' 164. Continuação: B) A tese federalista. Crítica Ao contrário para os ad t d um Direito federal embora aep ~s ,~sta tese o Direito da União é varie de autor para'autor Esta m nSI ade da defesa desta corrente ganhar novos adeptos, se'mpre c~::~~~:m vmdo a ~dorçar-se, e a a afirmar a possibilidade de a ,2 E goda Hlstona, se começa tituição", mao uropeIa VIr a ter uma "Cons- ti ' , Todavia, continua a ser fácil de da União ainda não é u D" fi monstrar-se que o DIreIto um dia se se cum' m nelto ederal. Poderá vir a sê-lo 1948 ' pnr a promessa feita no Congresso de Ha' d _ Ia, e , e no Plano Schuman de a ' bocar numa Federação Euro " M mtegraçao europeia desemestádio, pela, as amda não chegámos a esse O Direito da União não é Direito fed e~al, para começar, porque ainda não se demonstrou que pode h Ora, a União Europeia ainda não é aver ederallsmo sem Estado. seria necessário que tivesse uma C um Est~do. Para que o fosse, Ora não é difícil d onstItmçao em sentido formal, , emonstrar-se que a União e b h" ampla Constituição material, como mostr" m ~ra ten a Ja uma uma Constituição formal no sentido amos, ,nao possm amda dos Estados dá a esta '_ que o Dlfelto Constitucional expressao. Para que a União Europeia tivesse C "_ seria necessário que ela tives d uma. onstltmçao formal não o tem, e por duas razões. se po er constItumte próprio. Ora, ela Não o tem, antes de mais U ,tido jurídico um ovo ' porque a mao não possui, em sentituinte. De factoPna-o ehu,ropeu, que seria o titular desse poder cons, a um povo europe' 'd d ' como vimos não é uma cidad' .. u. a Cl a ama europeia, anpla autonoma da cidadania estadual. E a prova disso está e , m que o arlamento Eu ropeu, apesar de ser eleIto por sufrágio direto e unive I _ mas, sim, os "povos dos Estad rsa, nadO representa o povo europeu ' , os reum os na Comunid d " dIZIa o artigo 189 o p 1 CE a e , como " ar., , antes do Tratado de Lisbo que. para o efeito é o mesmo , os" Cl'dadaos - d a,d'ou, o a União" hoJe o Tratado UE no seu arti 1 o o '" ,como Ispõe mos referência a isto. go 4., n. 2 (Itabcos nossos), Já fize429 o Direito da União Europeia Em segundo lugar, justamente porque a União não tem po~o próprio, povo europeu, o poder constituinte na Umão ~uropela nao cabe a ela própria, mas aos Estados. Amda hOje, e nao obst~nte o artigo 48.° UE ter estabelecido processos diferentes de revlsao dos Tratados, acabam por ser sempre os Estados a ter a palavra deci~iva nessa revisão, porque esta, em qualquer caso, só entra em vigor depois de obtido o acordo de todos os Estados-membros, em conformidade com as respetivas normas constitucionais - é o que dispõe O novo artigo 48.°, n. o 4, par. 2, n.O 6, par. 2, e n.o 7, par. 2, UE. Nes!e ponto, continua a ser verdade, hoje como ontem, q~e_os Estados sao os "donos dos tratados". Ou seja, o processo de revlsao dos Tratados continua a ser, no essencial, e apesar das especificidades dos procedimentos regulados no referido artigo 48.° UE, um processo de Direito Internacional. Todavia, para além deste argumento de base que afasta O Direito da União de um Direito federal e, portanto, a União Europeia de uma Federação, há outros argumentos jurídicos mai~ específicos e concretos que vão no mesmo sentido dessa conclusao. Em primeiro lugar, para que a União tivesse natureza estadu~l seria necessário que ela tivesse capacidade jurídica plena ou Ilimitada (a "Allzustandigkeit", de que falam a doutrina e ajurisprudência constitucionais alemãs). lá nos referimos a ISSO neste livro. Ora, e como então vimos, a União tem a sua capacidade jurídica limitada, desde logo, pelo princípio da especialidade, por força de disposição . ' expressa dos Tratados. Depois, se a União fosse uma Federação vigorana nela o prmcípio Bundesrecht bricht Landesrecht. Esse princípio, que, embora constando expressamente só da Constituição alemã (artigo 31.°), pertence a quase todos os sistemas federais, prescreve a nulidade (se não a inexistência jurídica) da norma estadual que contrarie a norma federal. Ora, não é esse o regime que, por via da jurisprudência do TI o Direito da União definiu para as relações entre a norma esta-i; du~1 e a norma da União. A sanção para a norma estadual que viole' a norma da União é a da inaplicabilidade daquela, não a da s~a. nulidade ou da sua inexistência jurídica. Dito doutra forma, a sanção; situa-se no domínio da eficácia, não no da validade, ou da existência Noção e caracterização do Direito da União Europeia jurídica. Foi o que o TI deixou claro no caso Súnmenthal445 , com reaçoes concordantes da maior parte da doutrina. Voltaremos adiante a este assunto. . Por fim, e em terceiro lugar, a União não adotou o sistema de Integração judici".-l, característico dos sistemas federais. Ou seja, os Tnbun~ls da Umao nem são tribunais de revista de sentenças de tnbunals naCIOnaiS, mesmo das que apliquem Direito da União nem têm competência para julgar da validade ou da existência jurídica de normas ou atos de Direito nacional. Até hoje o Direito da União nunca mcorporou uma disposição de carácter geral do género da que haVia Sido pr_oposta para o artigo 43.° do Tratado Spinelli, que confena competencla ao TI para, corno tribunal de recurso, anular sentenças de tribunais nacionais, proferidas em última instância, que recusassem sU,brr:eter urna q~estão prejudicial ao TI ou não respeitassem um acordao prejUdl~lal do TI. A única exceção hoje à regra segundo a qual os Tnbunals da União não têm competência para con~e.cer da validade de normas ou atos de Direito nacional é a adnutida pelo artigo 14.°, n.o 2, par. 2, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) e do Banco Central Europeu, aprovado na revisão de Maastricht como anexo ao Tratado CE, e que se mantém, com a mesma redação, corno Protocolo n. o 4 anexo ao Tratado de Lisboa. Daqui a pouco voltaremos a este assunto. Nada do que ficou dito é prejudicado pelo facto de o TIUE para, a título prejudicial, se pronunciar sobre a validade de normas de Direito da União, poder ter de tomar como referência as normas de Direito nacional que delas eventualmente diVirjam. As relações entre os Tribunais da União e os tribunais e~taduais_são, nesse caso, relações de mera cooperação judiciária, nao relaçoes de mtegração judicial446 . Todavia, se o Direito da União ainda não é Direito federal é megá~el que ele já apresenta algumas importantes característidas federaiS, que se têm vindo a reforçar progressivamente, inclusiva- "" Ae. 9-3-78, Proe. 106n7, Rec., pgs. 629 e segs. Ver QUADROSIMARTlNS, sobretudo pgs. 42-43. 446 430 431 o Direito da União Europeia mente com o Tratado de Lisboa. E elas são, fundamentalmente, as seguintes. Em primeiro lugar, a moeda única, criada pelo artigo 109.0 -L do Tratado CE, na redação que lhe deu o Tratado de Maastricht, ao qual corresponde hoje o artigo 3.°, n. o 4, UE, completado pelo artigo 133. TFUE. Já para os Romanos, o poder de cunhar e emitir moeda própria consistia numa das principais expressões da soberania de um Estado. Depois, a progressiva transformação da Comissão no Governo da União Europeia. A aprovação e a investidura da Comissão, inclusive do seu Presidente, pelo Parlamento Europeu (que já examinámos na Parte I deste livro), tal como ela se encontra regulada hoje no artigo 17.°, n.O' 3 a 8, UE, consiste num outro traço federal, porque representa um simile da investidura de um Governo estadual pelo Parlamento. Embora não a tenham ainda perdido por completo, os Estados têm cada vez menor intervenção na escolha dos membros da Comissão, inclusivamente, do respetivo Presidente. É o Parlamento Europeu que aprova e investe a Comissão, mesmo se é verdade que a deliberação final do Parlamento se encontra sujeita a uma posterior "nomeação" pelo Conselho Europeu (artigo 17.°, n. ° 7). Inclusivamente, o Presidente é escolhido em função dos resultados da eleição para o Parlamento Europeu (o mesmo preceito). E se a isso acrescentarmos que o Presidente orienta e coordena a atividade da Comissão (o que hoje consta do artigo 17.°, n.o 6, UE), numa situação próxima da de um Chefe do Governo de um Estado, vemos que os Tratados têm aproximado progressivamente a Comissão de um Governo estadual. Essa aproximação será ainda maior quando, a partir de I de novembro de 2014, passar a haver Estados que, de todo, não designarão nenhum Comissário, porque o número de Comissários passará a ser inferior ao número de Estados-membros. Desse modo, a Comissão ainda mais se afastará dos Estados-membros. De seguida, é também um traço federal o poder legislativo reconhecido ao Parlamento Europeu que se enquadra no seu poder de co-decisão, dentro do processo legislativo ordinário. Já estudá0 432 Noção e caracterização do Direito da União Europeia mos isso atrás. Esse poder merece particular destaque como traço federal porque, através dele, a criação do ato legislativo da União cabe conjuntamente ao órgão composto por delegados dos Estados e que, como tal, representa os interesses dos Estados (o Conselho), e ao órgão eleito por sufrágio direto e universal dos cidadãos europeus e que representa estes (o Parlamento Europeu). Outro traço federal, que se aprofundou ainda mais com o Tratado de Lisboa, como se viu atrás, é a progressiva extensão da maioria qualificada em substituição da unanimidade nas deliberações do Conselho. A seguir, tem de ser considerada como uma característica federai do Direito da União o disposto no há pouco referido artigo 14.°, n. ° 2, par. 2, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu. O artigo 7.° daquele Protocolo assegura a independência dos bancos centrais nacionais, que compõem O SEBC, e dos respetivos órgãos de decisão. Na sequência disso, o artigo 14.°, n.o 2, par. 2, define as condições em que um governador de um banco central nacional pode ser demitido pelos órgãos do respetivo Estado. E, logo a seguir, o mesmo preceito admite recurso de anulação para o TJUE, com fundamento em violação de lei, inclusive, violação dos Tratados, do ato nacional de demissão do governador do banco central nacional. Temos aqui o único caso (aliás, esquecido por grande parte da doutrina) em que, como é característico de um Estado federal, um ato de Direito nacional se encontra sujeito ao controlo direto da sua legalidade por um Tribunal da União, em termos tais que este goza de competência para julgar da validade daquele. Por fim, tem de ser considerado também uma característica federal da União o facto de os tratados terem passado, com o Tratado de Lisboa, a incorporar uma Carta dos Direitos Fundamentais da União, que tem força obrigatória para a União e para os Estados-membros. Já se disse atrás que ela, não obstante constar de uma Declaração anexa ao Tratado de Lisboa, tem a mesma força jurídica que os Tratados, por expressa disposição do artigo 6.°, n.O I, par. I, parte final, UE. Ora, a constitucionalização da Carta e, por via disso, a inclusão na Constituição material da União de um catálogo pró433 o Direito da União Europeia prio e obrigatório de direitos fundamentais têm de ser vistas como traços federais. 165. Continuação: C) Posição adotada Qual é a nossa posição perante as duas correntes em pr:sença? S 'certo que o Direito da União continua a ter a sua ase em e~ . . 1 ai como a União, encontra-se num pro_ 'á apresenta alguns tratados mternaClOnaIS, e e, t. . r cesso de progressiva constItuclOna lzaçao e J claros traços federais. . . is em causa isto é, o TUE e De facto os tratados mternaClOna .' ., sTFUE dão ~orpo a uma Constituição matenaJ que, corr;~ Ja mo o" 1447 la sua vastidão, pelo seu conteu o, e por tramas na Parte , pe d 10 olítico de inspiração, se aproxIma tomar o Estado com? 10<: e est~dual como nunca até agora havia , I'd de o TUE e o muito de uma ConstItmçao . . r ao dos Estados. Na rea, a , sucedIdo no plano sup~no Ih b' t,'vos proclamam os valores E' UE defmem- e os o je , ~:a ~~~:a:u, e;tab:leCemtr:se~~:s:str~s~~~~~~ ~:t:~I:~~~:d: repartição de atr;bmçoes e\ .anal para ela poder cumprir as suas um aparelho orgamco e mstI ~CI . da Ordem Jurídica da União, nciam as fontes lormaIS funçoes, enu .. f ndamentais dos cidadãos europeus, salvaguar.dam os dIreItos u C rta dos Direitos Fundamentais, a_ do Direito da União, criam ainda maIS quando m~orporam regulam a interpretaçao e a ap IC:~:O a assegurar o respeito pelo um sistema de garantIas com VI . _ têm Direito da União. Há muitas Constituições estadUaIS que nao t esta amplitude. I rt to a própria Essa Constituição material (e, com e a, .po an " . União) apresenta já fortes características federaIS, que atras ficaram referidas.... ai do Direito da União reside, portanto, no A ongmalIdade atu tratados de Direito Internacional facto de ele, na forma, as;e;tar e~m "Constituição Europeia") mas, (e, por aí, ser prematuro a ar-se 447 Sobretudo, supra, 0. 0 31. 434 Noção e caracterização do Direito da União Europeia no plano material, brotar de uma Constituição, e, nessa medida - mas só nessa medida -, ele poder ser visto como Direito Constitucional. E é nesse sentido, e só nesse, que é correto falar-se na "constitucionalização da União Europeia" e na "emergência de um Direito Constitucional para a Europa"'48. Será um erro sairmos destes parâmetros rigorosos e banalizarmos a expressão "Constituição Europeia". Para se sintetizar esta construção chegou a pensar-se, como já vimos, em qualificar o Tratado que ia sair da última revisão dos Tratados UE e CE como Tratado que estabelece uma Constituição ou Tratado Constitucional. Esta qualificação tinha de ser esclarecida. Se por Tratado Constitucional se entendia um Tratado que entrava em vigor e obrigava todos os Estados signatários sem que fosse necessária a sua ratificação por todos eles, nesse caso o referido Tratado, pelas razões que já vimos atrás, não poderia ser visto como Tratado Constitucional. Mas a Tratado Constitucional podia ser dado um entendimento mais modesto, que se adequasse ao TUE já no seu estado anterior ao Tratado de Lisboa, isto é, que desse corpo à referida Constituição material. O Tratado de Lisboa também aqui recusou o uso dos vocábulos "Constituição" ou "Constitucional". Mas podemos dizer, à semelhança do que já fazíamos nas edições anteriores com o TUE e o Tratado CE após a revisão de Nice, que os Tratados UE e TFUE podem ser qualificados, em globo, de tratados constitucionais, na medida em que têm a forma e a natureza de tratados, o conteúdo material de uma Constituição e muitas características federais'49. 448 Assim, sobretudo, a dissertação de GERKRATH, e, também, BLANCHARD. Em Portugal, ver CANOTlLHO, "Brancosos", cit., pgs. 255 e segs., e ANA MARTINS, com ligeiras divergências - ver pgs. 123 e segs. 449 Para maiores desenvolvimentos sobre o nosso pensamento acerca da matéria deste número, veja-se, de modo especial, a nossa dissertação de doutoramento, sobretudo, pgs. 179 e segs.. Para uma compreensão mais aprofundada e hodierna da problemática suscitada na posição que acima adotámos, ver, especialmente, das obras gerais, VON BOGDANDY, BORCHARDT, SIMON, pgs. 73 e segs., JACQUÉ, pgs. 95 e segs., e GARCiA DE ENTERRfA, e, da bibliografia especial sugerida para este Capítulo, BLANCHARD, CANCELA OUTEDA, LLOPIS CARRASCO, DEHOUSSE, bem 435 'I' o Direito da União Europeia Noção e caracterização do Direito da União Europeia . federal novo Note-se que não consideramos como traço _ _ oo que 17 . d do Direito da União dlspoe a Declaraçao n. , de Lisboa. E por duas razões: primeiro, sobre o anexa ao ra ~ o ressamente o reconhece, se hrmta a essa Declaraçao, como el~ e~p dência da União já antes firmada; codificar, em lei escnta, a Junspru . d Ih eremos o . mo dissemos e maIS tar e me ar v , 'd ' t uído pelo TJ não é um primado depOIs, porque, co primado, tal como tem SI o cons r , federal. p~m~ ~ po~que 166. O âmbito espacial de vigência do Direito da União Depois do Tratado de Lisboa, o âmbito espacial de ,Vigêdnciap~~ . é o mesmol' do dnos ommlO e a Direito da União Europeia ou, o que artigos 52.0 cação territorial dos Tratados encontra-se regu a o UE e ;~.oc:~~·:~~ratados aplicam-se a todos os Estados- . 52 ° o I UE) -membros (artigo .: n. , . '349 ° TFUE permite uma aplica, . Além diSSO, porem, o artigo. ção seletiva dos Trata~osao~ departamentos ~~ra:~r~n:::~~~~~s~~ (DOM na terminologia Jundlca francesa), q , p. b' . d os naquele preceito, e tam em, Lisboa,' passaram a estar enuncia -----:--,:---:-: The Constitution of Europe, Cambridge, 1999: DENI· como tambem J. WEILLER, , "F ve de l'Unio/1 européenne, cIto, e 1. ZEAU, L'idée de puissance pub~lque al,l epreu t la nature des COl1ummautés . d UVOlr pub tC commun e MOLINIER, La notlO/1 e po 1 Em Portugal ver CANOllLHO, ' Mél ges Isaac pgs 19 e segs. , ._ europeennes, . .an I cit pgs , 825- 826 , que de fende que J'á existe na Umao . Direito ConslIfuclOna, . , . . " (matéria à qual voltaremos Europeia u~ "poder constituinte ~vo~~~v~oe~~:~~ da União sobre os Direitos quando, adiante, estudannos o pnrn. ". . e LUCAS PIRES, pgs. 55 e segs.; . ' ) ANA MARTINS A naturezapmdlca, Clt., , , l' _ nacionaiS , , . t . preender o movlmen o atual de constltucrona Izaçao TodaVia, para se com ,d' é ecessário lermos os pioneiros dessa União Europeia e da sua ~rdem Jun lca, F ~ÜNCH Prolégomenes à une théorie:";': orientação, de entre os qUaIS se destacam é' RDE 1961 pgs 127 e segs.; e:< II d Communautés Europ ennes, ,. 'd .•. i COl1stitutionne e es ... d Tratados institutivos das Comum a- J C. F. QPHÜLS (um dos .p,rmclp;s :ut°rftre~erO~emeillschaftsverfaSSUllg, Festschrift .. des), Zur ideengescluc lten er un Hallstein, 1966, pgs. 387 e segs. 436 dentro da União Europeia, aos Arquipélagos dos Açores e da Madeira e às Ilhas Canárias. Esses territórios gozam do estatuto de favor de "regiões ultraperiféricas" (artigo 349.°, par. 3, TFUE). As razões dessa aplicação seletiva (mesmo a territórios que se situam fora e muito longe do continente europeu, note-se) reconduzem-se à especial "situação social e económica" desses territórios, que se deve, sobretudo, à sua pequenez geográfica, à sua insularidade e ao seu afastamento, como o demonstra o artigo 349.°, no par. I. Os pars. 2 e 3 do mesmo artigo definem para esses territórios um regime especial de Direito da União que, todavia, e como aí se estabelece, não pode pôr em causa a integridade e a coerência do sistema jurídico da União. O artigo 355.°, n.o 1, TFUE, vem dizer ontra vez que os Tratados se aplicam àqueles territórios. Os Tratados aplicam-se também às Ilhas Áland, em consequência da declaração nesse sentido produzida pela Finlândia a seguir à sua adesão à União, sem prejuízo das reservas expressas pelo Protocolo n. ° 2 do respetivo Ato de adesão. Di-lo o artigo 355.0, n,04, TFUE. Aos países e territórios ultramarinos (PTOM, na tenninologia francesa) cuja lista consta do Anexo II ao TFUE aplica-se o regime de associação definido na Parte IV daquele Tratado. Também por aqui, como se vê, os Tratados aplicam-se a possessões ultramarinas que ficam fora, e porventura muito longe, do continente europeu, Todavia, o Tratado não se aplica, de todo, aos países e territórios ultramarinos que mantenham relações especiais com o Reino Unido e que não figurem nessa lista, como não se aplica às Ilhas Faroé e às zonas de soberania do Reino Unido em Chipre. E só se aplica às ilhas Anglo-Normandas e à ilha de Man na medida em que tal seja necessário para assegurar a aplicação do regime para elas previsto no Tratado de adesão do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca à CEEA. Tudo isto encontra-se disposto nos n.O' 2 e 5 do artigo 355,° TFUE. Mas encontramos dois casos talvez ainda mais importantes de aplicação extraterritorial dos Tratados, Primeiro, eles aplicam-se aos "territórios europeus cujas relações externas sejam asseguradas por um Estado-membro", o que se 437 o Direito da União Europeia refere aos Estados exíguos, isto é, o Mónaco, quanto à França, e a República de São Marina, quanto à Itália. Depois, eles aplicam-se, . - ' o Europeu'5O , em determinadas maténas, ao Espaço E conomlC criado como vimos na Introdução deste livro, pelo Tratado do Porto'de 1992, embora a recusa da Suíça em ratificar aquele Tratado ~ a adesão da Áustria, da Suécia e da Finlândia à UE, em 1995, tenham retirado grande parte da importância àquele Espaço. Com o alargamento da União Europeia a nov.os Estados, .0 problema da definição das fronteiras físicas. d~ Umão ~~ por vIa disso, o domínio da aplicação terntonal do DIreIto da Umao dentro e fora do continente europeu vão ganhar uma redobrada Importância. CAPÍTULO II AS FONTES DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA Bibliografia especial: veja-se esta matéria tratada em grande parte das obras de carácter geral que indicámos, com vasta bibliografia adicional nelas sugerida, por ex., em lAcQuÉ, pgs. 485 e segs., RlDEAU, pgs. 61 e segs.; SIMON, pgs. 301 e segs., e ISAAC, pgs. 133 e segs., bem como nos Comentários aos Tratados relativamente aos preceitos respeitantes às fontes. 167. Introdução Depois de termos caracterizado o Direito da União Europeia é altura de estudarmos as suas fontes formais, ou seja, os modos da sua criação e revelação. É o que vamos fazer neste Capítulo. Dessas fontes, umas são fontes escritas, outras são fontes não escritas. SECÇÃO I o Direito da União Europeia originário 168. Conteúdo 450 Assim, por ex., SIMON, pg. 33. 438 o Direito da União Europeia originário ou primário constitui a primeira fonte do ordenamento jurídico da União. Ele é composto 439 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia pelos Tratados das ex-Comunidades e da União, isto é, desde log~.·, os Tratados que instituiram as Comunidades em 1951 e 1957, niâ~', também por todos os atas jurídicos que os modificaram: ou seja,.Qk Tratados de revisão (dos quais os últimos foram os de Maastri~'" de Amesterdão, de Nice e de Lisboa), os Tratados ou Atas de ade e os demais atas modificativos, tenham tido a forma ou a designal)~' de protocolos, decisões, etc. m . 169. Natureza e regime jurídico dos Tratados da União Europc{ Os Tratados da União Europeia (designando nós aqui desQ! forma sinlética todos os Tratados que compõem o Direito originá; rio) são tratados internacionais e, como lais, encontram-se sujei\9# ao regime jurídico geral dos tratados internacionais, concretamen( à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969. Isso não exclui que os Tratados da União apresentem, <len:,: da teoria geral dos tratados de Direito Internacional, algumas esp' cificidades. Elas resultam, desde logo, do facto de, enquanlo qu~ .. tratados internacionais, como fontes clássicas do Direito Inlernacf nal, visam disciplinar e adaptar interesses divergentes entre Est (assentes no individualismo internacional das respetivas soberani ou no seio de Organizações Internacionais, os Tratados da Uni pretendem aprofundar progressivamente um regime jurídico dei gração, fundado na solidariedade e não no individualismo inte cional. Já vimos isso neste livro. Com base nessas especificidades dos Tratados da União, est' são concebidos, como vimos, como Constituição material da Uni com o exalo sentido que atrás demos a esta expressão. Daí que n seja difícil ver neles a fonte primária, a primeira fonte, do Direito União Europeia. O reconhecimento, aos Tralados da União, da prevalência sobre todas as demais fontes do sistema jurídico União, não se enconlra expressamente definido pelos Tratados (de s 451 Uma lista completa dos atos que compunham o Direito Comunit originário antes do Tratado de Lisboa pode ver-se em RIDEAU, pgs. 105 e- segs:;; 440 w;iro da orientação, que até hoje os autores dos Tratados têm adotado, ~~e fugir à definição expressa de uma hierarquia das fontes do mPireito da União Europeia), mas decorre do artigo 263.° TFUE, que ~,confere ao TIUE o poder de anular os atas de Direito derivado que !!Çontrariem os Tratados, e do artigo 218.°, n.o II, TFUE, que estabe?:+Ieceque, no caso em que o TI entenda que um projeto de acordo ";,intemacional, que a União pretenda concluir, viola os Tratados da ;'.!Jl1ião, esse acordo só poderá ser concluido após a alteração do proJ:jeto de acordo ou após a revisão dos Tratados da União que estejam ,em vigor. Foi neste sentido de lei fundamental da União e de sua pri'meirafollte que, como vimos atrás, o TI cedo passou a qualificar os antigos Tratados Comunitários como a "Carta Constitucional" das :':':Comunidades, e a doutrina passou a caracterizá-los como a "Cons:;(ituição Económica" das Comunidades. ,,,,!,,,, Hoje, todavia, temos de ir muito mais longe na caracterização '*::~osTratados da União, definindo-os como Constituição em sentido material da União. Já explicámos atrás o âmbito muito vasto que 0;temos de conceder à Constituição material da União, e que encontra #i'a'sua base nos Tratados. ",,,,. Todavia, em sentido formal, e tal como também ficou provado, :.;'osTratados da União são tratados internacionais. t/' A revisão dos Tratados da União ti Antes do Tratado de Lisboa, o processo de revisão dos Trata',,~9sda União, como se disse atrás, era um processo simples e fun.:~amentalmente intergovernamental. Estava regulado, em globo, J~ara Ioda a UE, no ex-artigo 48. ° UE. Por aí se via que, não obstante ,,&:t?Parlamento Europeu e a Comissão intervirem no processo de revi3t;são a título meramente consultivo, a revisão do Tratado estava total;;~mente entregue aos Estados: era o Conselho que decidia convocar a ;;:éonferência intergovernamental para a revisão, esta era convocada )pelo Presidente do Conselho, e era a conferência intergovernamen/lal que fixava o texto do tratado revisto. Depois, o tratado revisto só 'x:; 441 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia entrava em vigor se fosse ratificado por todos os Estados-mem6~s' em conformidade com as respetivas normas constitucionais. ,,' Com o Tratado de Lisboa, não obstante, adiante-se desde j*~ revisão continuar dependente, a final, da vontade unânime dosEsia dos, expressa de harmonia com as respetivas normas constitu'1i& nais, o processo de revisão tornou-se mais complexo e envolY~f participação ativa dos órgãos da União e dos Parlamentos nacional$ Vejamos. ,":{/(~~: O processo único e uniforme de revisão, previsto no ex-artig' 48.° UE, deu lugar a três diferentes processos: ' o processo de revisão ordinário; o processo de revisão simplificado; e o processo também simplificado chamado de process~iª~ cláusula passerelle.>~'f' a) O processo de revisão ordinário -"~~ O processo de revisão ordinário está regulado no artigo'4~: n."' 2 a 5, UE, e pode ser desencadeado por um Governo d(Ji' Estado-membro, pelo Parlamento Europeu ou pela Comiss~ mediante projetos de revisão apresentados ao Conselho. Os proj~rB' podem aumentar ou reduzir as atribuições da União. Note-se que,;<iO reduzirem as atribuições, eles estão a destruir parte do adquiri:'~' comunitário, ou adquirido da União, o que infringe um dos priri(i: pios básicos da integração europeia. Nessa medida, portantq:~ artigo 48.°, n.o 2, não obriga. Os projetos são, de seguida, envia~~ ao Conselho Europeu, depois de dados a conhecer aos Parlamellto nacionais (sobre este último ponto, veja-se também o artigo 12.~f::· d, UE). O Conselho Europeu, após ouvir o Parlamento Europeu;.'~f Comissão, e também o Banco Central Europeu, caso estejam ;~: questão alterações institucionais no domínio monetário, tem,( decidir, por maioria simples, analisar as alterações propostas~,9 Tratados. Se não conseguir essa maioria, o processo de revi~, encerra-se aí - e aqui está uma das grandes novidades do Tratad9.;~ 442 .;'is!>oa. Se, ao contrário, for obtida aquela maioria, o Presidente do '9Hselho Europeu convoca uma Convenção, com a composição y~j4a no artigo 48.°, n.o 3, par. I, UE. ',,;qu seja, o método da Convenção, utilizado para a elaboração dos Direitos Fundamentais e, mais tarde, aqui sem sucesso, i,,!!: revisão do Tratado de Nice, fica consagrado neste preceito, e a mesma composição que daquelas duas vezes. ",AConvenção, analisados os projetos, aprova uma recomenda"dirigida a uma Conferência de Representantes dos Governos 'Estados-membros. É o Presidente do Conselho que convoca esta :f~rência, que terá por encargo definir, por comum acordo, as /ações a introduzir nos Tratados (artigo 48.°, n.o 4, par. I). .. 'Note-se que o Conselho Europeu pode deliberar, por maioria 'pies, não convocar uma Convenção e passar imediatamente para ,ollvocação de uma Conferência de Representantes dos Governos s;;Estados-membros se entender que o alcance das alterações pro'snão justifica a convocação de uma Convenção (artigo 48.°, ,par. 2). .;As alterações aprovadas só entrarão em vigor depois de ratifipor todos os Estados-membros, de harmonia com as respetigras constitucionais (artigo 48.", n.o 4, par. 2). ;.;ç::ontudo, adianta o n." 5 do artigo 48.", se, decorridos dois anos ~!?re~assjnatura do Tratado de revisão, quatro quintos dos Estados lBcrerem ratificado e os restantes estiverem em dificuldade em o .T' o "Conselho Europeu analisará a questão". Este preceito ,~Iq~o artigo 82.°, par. 2, do Tratado Spinelli, depois retomado ªConvenção sobre o Futuro da Europa no artigo IV-443.", n.o 4, '"Tratado Constitucional. Todavia, ele deixa envolta em mistério ilgrande questão: a de saber o que poderá o Conselho Europeu r.nessa situação. Poderá fazer tudo, dizemos nós, menos deterloI.f,'a imediata entrada em vigor do Tratado, porque ele não '~e a ratificação de todos os Estados signatários, que o n.o 4 do mo preceito, como dissemos, considera imprescindível para o tado começar a sua vigência. Já houve uma revisão dos Tratados ao abrigo deste processo de isão. g:arta, 443 o Direito da União Europeia Essa revisão teve origem na Decisão do Conselho Europeu~(~, 201O/350/UE, de 17 de junho de 2010452 • Ela encarregou dir~p!I)" mente uma Conferência Intergovernamental (dispensando, port!lJjt ;' a Convenção) de analisar as alterações que a Espanha propôs Protocolo n.O 36 anexo ao Tratado de Lisboa, relativo às disposiç transitórias, no que tocava à composição do Parlamento Europe~< CIG aprovou um Protocolo que alterou o artigo 2.° desse Protocql relativo às disposições transitórias no que respeita ao número, deputados do Parlamento Europeu para o período remanescente legislatura de 2009-2014453 • Está em curso uma segunda revisão dos Tratados ao abri ' deste processo de revisão ordinário. Por Decisão do Conselho Europeu de 7 de maio de 2012454 , convocada uma Conferência de Representantes para analisar a al ração aos Tratados proposta pelo Governo irlandês sob a fortna . um Protocolo sobre as preocupações do povo irlandês a respeito Tratado de Lisboa, a anexar aos Tratados. Também aqui a Deci,s do Conselho Europeu, com a aprovação do Parlamento Europe dispensou a convocação de uma Convenção. b) O processo de revisão simplificado Este processo encontra-se regulado no n." 6 do artigo 48." , Nele os projetos de revisão só podem ter por objeto todas ou p das disposições da Parte III do TFUE, que diz respeito às polític,a' ações internas da União. Nesse caso, passa-se imediatamente p;. uma Decisão do Conselho Europeu que, por unanimidade, p alterar as disposições em questão, após ouvido o Parlamento E peu e a Comissão, assim como o Banco Central Europeu quao estiverem em causa alterações institucionais no domínio monetát! JOUE L 160, de 26-6-2010. JOUE L 263, de 29-9-2010. '" EUCO 81112, CO EUR 6. As fontes do Direito da União Europeia "'. Essa Decisão do Conselho Europeu só entra em vigor depois e ratificada por todos os Estados-membros e, sublinhe-se, não pode urnentar as atribuições da União. ;Y:i Já foi levada a cabo uma revisão aos Tratados com respeito por .ste processo de revisão. Referimo-nos à revisão realizada pela ecisão do Conselho Europeu n.o 201111 991UE, de 25 de março de 011 45', que alterou o artigo 136.° TFUE no que respeita a um mecaismo de estabilidade para os Estados cuja moeda era o euro. c) O processo de revisão simplifu:ado por cláusula passerelle o segundo processo simplificado é o chamado processo de yisão pela cláusula passerelle. Está disciplinado no n.O 7 do artigo S.oUE. A outro título, já nos referimos a ele45 '. Este processo per')~ao Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, após proyação do Parlamento Europeu, que se pronunciará por maioria 6~membros que O compõem, autorizar o Conselho a deliberar por ~oria qualificada em casos em que o TFUE ou o Título V do Tra.,oUE impõem a votação por unanimidade, salvo quanto a decisque tenham implicações no domínio militar ou da defesa, ou I!torizá-Io a votar atos legislativos por um processo legislativo rdinário em domínios em que o TFUE exige, para o efeito, pro~sso legislativo especial. Note-se que, num caso e noutro, a inicia;Ylldo Conselho Europeu começará por ser dada a conhecer aos 19lamentos nacionais. Basta que um Parlamento nacional exprima 'Soa oposição, para que o Conselho Europeu tenha de desistir da visão. ({:i, Não obstante o seu carácter original, também este processo de )são se encontra na dependência da vontade unânime dos Esta~Ó~'iPrimeiro, os Parlamentos nacionais têm um verdadeiro direito '~2,e,veto sobre esta revisão: basta que um deles se oponha para que a ~yisão não seja possível. Depois, a revisão é deliberada pelo Con- r 4S2 4S2 ~" JOUEL91!i, de 6-4-2011. 456 444 Supra, H,o III-II-c. 445 o Direito da União Europeia selho Europeu por unanimidade. Como no Conselho Europeu, estudámos em local próprio, só têm direito de voto os Chefe Estado e de Governo (artigo 235.°, n. o I, par. 3, TFUE), també aqui os Estados têm direito de veto sobre as alterações propos d) Notafinal o TJ já deixou claro, por várias vezes, que a revisão dos tados, para ser válida, tem de respeitar rigorosamente o proc neles previsto para o efeito'57. _", Não pode ser confundida com a revisão dos Tratados a cri~~ de novos poderes pelo Conselho, levada a cabo ao abrigo do'" 352.° TFUE, quando esses novos poderes se revelarem necess para o prosseguimento da integração. Já estudámos isso atrás.' Tão-pouco pode ser confundida com a revisão a interpret praeter legem, ou ultra legem, ou, mesmo, contra legem, dos T dos, levada a cabo, em circunstãncias especiais, pelo TJ"'. As jontes do Direito da União Europeia e Lisboa deixou de ser uma imposição da letra dos Tratados. como no lugar próprio dissemos, ela faz parte da essência da !l.ção. Isso significa que nenhuma revisão pode fazer retroce'Iltl'gração, pondo em causa os resultados já alcançados, ress'as exceções admitidas pelos Tratados. I'pois, têm de ser considerados limites materiais da revisão, .'Conjunto, todos os princípios fundamentais e valores que wdámos como fazendo parte da Constituição material da ão, para nós, Direito imperativo da União, ius cogens da terceiro lugar, constitui também limite material da revisão fados o ius cogens internacional, isto é, o Direito Internacioerativo. Ele situa-se mesmo, no plano da hierarquia das acima do ius cogens da União, salvo se este for mais favorá.direitos fundamentais e aos demais fundamentos da Demodo Estado de Direito45'. 'saída voluntária da União 171. Há limites materiais para a revisão dos Tratados? Questão pertinente no que diz respeito aos Tratados daU é a de saber se há limites materiais para a sua revisão. . Em nosso entender, não obstante esses Tratados não pago ser reconduzidos ao conceito de Constituição formal, esses liI)Jlt • . ;.;:::.1< eXIstem. ",~;~ Em primeiro lugar, constitui limite material para a revi~~. adquirido da União. A sua "manutenção", como vimos, com ° 457 Ver, por exemplo, Ac. 23-2-88, Reino Unido c. Conselho, Proc:,:6 CoL, pgs. 855 e segs. 458 Assim, RIDEAU, pgs. 115~117. Ver também, GAUTRON, Remarques' constitutionalisation de l'Union européenne et les problemes liés à la révisi traités, SD 1999, pgs. 67 e segs., e H. GAUDIN, Révision des traités comulU res, révision des cOllstitutions nationales: recherche sur la symétrie d'un. nomêne, Mélanges Isaac, pgs. 541 e segs. 446 'Tratado de Lisboa veio permitir, pela primeira vez na HistóJ:?ireito originário, a saída voluntária da União por parte dos _,membros. Ocupa-se desta matéria O artigo 50. do Tratado 0 pconfronto dos U 2 e 3 desse artigo resulta que são admitiás-formas de saída. 'primeira consiste num acordo entre a União e o Estado em Q4e,portanto, abrogará o Ato de adesão desse Estado. O pro~Jo da conclusão desse acordo está regulado nos n. ~ 2 e 4 do 'flIligo 50.°. .·~s um Estado também se pode retirar da União por recesso, por ato unilateral. É o que diz o n. ° 3 do mesmo artigo, que U ' Sobre a matéria deste número, ver também JACQUÉ, pgs. 498 e segs., e N. PIÇARRA, Y a-t-i{ des limites materielles à la revision des traités 'des COlll111unautés eurOpéeJ111es?, CDE 1993, pgs. 3 e segs., e A. MAR/iiâiureza jurídica, cit., pgs. 504 e segs. AÇA 447 o Direito da União Europeia também disciplina, juntamente com o n.o 4, o procedimento de recesso. O Estado que sair da União pode, obviamente, voltar a adesão. Só que, nesse caso, terá que se submeter às condições mais da adesão. É o que dispõe o n.o 5 do mesmo attigo 50.° A possibilidade da saída voluntária de um Estado da veio dar resposta a uma questão objetiva que em qualquer m()ment:o poderia surgir e veio, de forma pragmática, consagrar a regra de que nenhum Estado pode ser obrigado a continuar contra a sua na União. Mas ela contrariou a opinião até então dominante na doutrina, segundo a qual, por o projeto da integração europeia ser fortemente inspirado pela ideia da solidariedade entre os Estados, e entre eles e a União, não era admitida a saída voluntária das Comunidades e, depois, da União, por parte de um Estado-memb ro 4<io. SECÇÃO II Os princípios gerais de Direito Bibliografia especial: D. SIMON, Y a-I-ii des principes Réllér"ux du droit communautaire?, Droits 1991, fi.O 14, pgs. 73 e segs.; FLOGAITIS, Droits fondamentaux et principes généraux du droit ad/ninistratif dans lajurisprudence de la Cour de Justice, RDP 1992-2, fi.O' 291 e segs.; M. DELMAS MARTY, Pour un droit commun, Paris, 1994; R.-E. PAPADOPOULOS, Principes généraux du droit et droit co,mnlUllm'lail-e, diss., Bruxelas, 1996; F. DE QUADROS, A nova dimensão do Direito Admi7 nistrativo, cit., pgs. 17 e segs.; H. P. NEHL, Principies of Administrative Procedure in EC Law, Oxford, 1999; J.-E FLAUSS, Principes généraux du droit communautaire dans la jurisprudence des juridictions constitutionnelles des États membres, O.c., Droits nationaux, droit communau~ taire: influences croisées, Paris, 2000, pgs. 49 e segs.; T. TRIDlMAS, The General Principies of EU Law, cit. 460 Veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pg. 557, nota 592, e a aí cit., e também GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pg. 250. 448 As fontes do Direito da União Europeia sua importância Também são fonte do Direito da União os princípios gerais de Quando não forem expressamente enunciados pelos Tratada União, eles são criados (segundo uma visão positivista), ou (de harmonia com uma conceção não positivista), pelo inclusivamente, quando for o caso, para suprir a inexistência de fontes de Direito escritas, ou do costume. O juiz cria-os ou descobre-os a partir do conjunto de valores que formam o núcleo essencial, jurídico e político, do sistema jurídico em causa, neste caso, do Direito da União Europeia. Na hierarquia das fontes do Direito da União Europeia, logo a seguir aos Tratados, surgem-nos os princípios gerais de Direito. Isso quer dizer que estes se impõem a todas as demais fontes do Direito da União Europeia, inclusive, ao Direito da União Europeia derivado, provindo dos órgãos da União. Logo por aí se vê, pois, que os princípios gerais de Direito gozam de uma enorme importância na formação e na elaboração do sistema jurídico da União. De facto, eles têm contribuído, não só para aprofundar e robustecer a especificidade do Direito da União Europeia, como também para desenvolver e pormenorizar o sistema jurídico da União. Hoje os Tratados admitem expressamente a sua existência, como o fazem, por exemplo, o artigo 6.°, n." 3, UE, e o artigo 340.", pars. 2 e 3, TFUE46'. i'iL-'lfellO, 174. A sua origem e o seu conteúdo A jurisprudência da União tem construído os princípios gerais de Direito a partir de quatro origens: os princípios gerais de Direito IntenlaciOllal Público, os princípios gerais de Direito comuns aos Direitos nacionais, os princípios gerais ditados pela noção de União de Direito e os princípios gerais estruturais e próprios do Direito da União Europeia. 461 Para além da bibliografia específica referida, veja~se esta fonte estudada também nas obras gerais de JACQUÉ, pgs. 502 e segs., e SIMON, pgs. 305 e segs. 449 o Direito da As fontes do Direito da União Europeia União Europeia a) Os princípios gerais de Direito Internacional Público b) Os princípios gerais de Direito comuns aos Direitos nacionais dos Estados-membros I I. Não admira que a jurisprudência da União tenha começado;! muito cedo a lidar com os princípios gerais de Direito Internaciona.. Público, dado que, como se disse, o Direito da União Europeia nas' ceu em tratados internacionais. Depressa o TJ se foi servindo daqu~. les de entre esses princípios que não eram contrários à essência d Direito da União Europeia, e, simultaneamente, foi recusando aplicação daqueles que boliam com a especificidade do orden~" mento jurídico da União. Assim, o juiz da União importou do Direito Internacional' princípio relativo à compatibilidade dos tratados sucessivos e d obrigações deles resultantes''', o princípio segundo o qual O Estag não pode recusar aos seus nacionais o acesso ao seu território'6J,° princípio da boa-fé no cumprimento dos tratados, tal como ele est consagrado no costume internacional e foi codificado na Conve~' ção de Viena de 196946', e o princípio da proteção dos direitos fun darnentais, recolhendo nesta matéria vários contributos substan ciais da CEDH, da Carta Social Europeia, dos Pactos das Naçõe Unidas de 1966 e de Convenções da Organização Internacional g Trabalho. Mas ele tem rejeitado, por os considerar incompatíveis com essência do Direito da União Europeia, vários outros princípi gerais importantes do Direito Internacional, como é o caso do prill cípio da reciprocidade, nomeadamente sob a forma da regra excep tio non adilllpleti contractus, que o TI julga ser totalmente inco,,!l patível corn a coerência interna da Ordem Jurídica da União''', e . da utilização do estoppel'66. Ac. TJ 27-2-62, Comissão c. Itália, Proe. 10/61, Rec., pgs. 3 e Caso van Duyn, já citado. 464 Caso Opel Austria, já citado. 465 Ac. 13-11-64, Comissão c. Bélgica e Luxemburgo, Procs. Rec., pgs. 1.217 e segs. 466 Ac. 16-10-80, Boizard, Procs. apensos 63179 e 64/79, Rec., pgs. Depois, a jurisprudência da União tem acolhido também os :;princípios gerais constantes dos Direitos dos Estados-membros, par'ticularmente, os princípios gerais comuns a esses Direitos que pertencem ao "património jurídico comum dos Estados-membros", ou a.!um "Direito comum europeu"46'. Os próprios Tratados estimu-na a isso, desde logo, no artigo 6. o, n. o 3, UE, em relação às adições constitucionais em matéria de direitos fundamentais, e, no .'tado artigo 34D.o, pars. 2 e 3, TFUE, em matéria de responsabiliade extracontratual da União. O TJ procura aí que os princípios :~l\fÍdicos de que se vai servir sejam os mais adequados ao caso con.icreto sobre o qual está debruçado e reserva-se o direito de os adaptar g~estrutura e aos objetivos da Comunidade", isto é, à natureza espe,çífica do Direito da União46 '. Dentro deste espírito, o TI tem admi.ido os seguintes princípios, quase todos, aliás, importados, ~pecialmente, do Direito alemão: os princípios da proporcionaliade46', da segurança jurídica e da confiança legítima'70, do respeito p~lo direito de defesa, especialmente no procedimento administra'tivo471 • c) Os princípios gerais ditados pela noção de União de Direito " " Outros princípios gerais de Direito são elaborados pelo TI a .wnr da conceção de "União de Direito", que já conhecemos, e para ..ftl!al o TI tem contribuido muito. São princípios que o TI extrai da ~gra básica do primado do Direito na ordem interna da União. !t~tacarn-se entre eles o já referido princípio da segurança jurídica 462 463 e segs. 450 Ver DBLMAS-MARTY, pgs. 23 e segs., e QUADROS, A nova dimensão, Jae. cito Caso Internationale Handelsgesellschaft, cit., pg. 1.125. '" Sobretudo, Ac. 11-7-89, Schrdder, Proe. 265/87, CoI., pg. 2.237, e Ac. _93, ADM, Proc. C-339/92, CoI., pgs. 1-6.473 e segs. 470 Ac. 14-5-75, CN.T.A., Proc. 74174, Rec., pg. 533. Ac. 13-12-67, Neumallll, Proc. 17/67, Rec., pg. 571. 467 46g.· 451 o Direito da União Europeia (ao qual também podemos chegar por esta via), e, como seus corolários, os princípios do respeito pelos direitos adquiridos"', da previsibilidade e da clareza das regras aplicáveis"', da boa-fé474 , os princípios patere legem quam fecisti ("cumpre a lei que tu próprio fizeste")47', da publicidade dos atos''', da não retroatividade477 Também pertencem a esta categoria alguns princípios que concretizam o princípio da garantia judicial efetiva e o direito a um processo equitativo, tais como eles se desenvolveram à sombra dos artigos 6.' e 13.' da CEDH, e que o TJ tem projetado para o domínio do Direito Administrativo como sendo os princípios do direito "ao juiz", ou direito "ao tribuna1"478, e o direito ao contraditório, tanto no procedimento administrativo como no processo contencioso administrativo'79. Também se integram neste grupo os princípios de Direito Administrativo do dever de boa administração"o, que agora, como estudámos, figura na Carta dos Direitos Fundamentais, da continuidade do serviço público4BI , também por aqui o já referido princípio da proporcionalidade, e o princípio da garantia dos particulares na revogação dos atos administrativos'82. '" Ac. 22-9-83, Verli-Wallace, Proe. 159/82, CoI., pgs. 2.711 e segs. 473 Ac. 16-6-93, França c. Comissão, Pme. C-325/91, CoI., pgs. 1-3.283. com base neste princípio que o TI por vezes limita ratione temporis os efeitos seus acórdãos - assim, por ex., SIMON, pg. 252. 474 Citado caso Opel Auso'ia. 473 Ac. 10-3-71, Deutsclte Tradax, Proe. 38170, Rec., pgs. 154 e segs. 476 Ac. 25-1-79, Racke, Proc. 98/78, Rec., pgs. 69 e segs. 477 Ac. JO-7-84, Kem Kirk, Proc. 63/83, Rec., pgs. 2.689 e segs. 478 Por todos, Ac. 15-5-86, Johnstoll, Proc. 222/84, Coi., pgs. 1.651 e '" Ae. 29-6-94, Fiskallo, Proc. C-135/92, CoI., pgs. 1-2.885 e segs.; contudo, Ac. TPI 29-6-95, Solvay, Proc. T-30/91, CoI. pgs. 11-1.775 e segs. ,., Ae. 27-3-90, Itália c. Comissão, Proe. C-10188, CoI., pgs. 1-1.229 e 4Rl Ac. 3-7-86, Conselho c. Parlamemo Europeu, Prec. 34/86, CoI., 2.155 e segs. 4R2 Ac. 12-7-57, Algera, Procs. apensos 7/56, 3/57 a 7/57, Rec., pgs. segs. 452 As jontes do Direito da União Europeia d) Os prillcípios estruturais do Direito da Ulliiio Europeia Por fim, o TJ tem criado no sistema jurídico da União alguns princípios gerais de Direito que designaremos de estruturais, porque refletem os fundamentos jurídicos básicos da Ordem Jurídica da União, nos planos tanto político, como económico. Por isso, alguns desses princípios coincidem com os princípios constitucionais e os valores da União, que estudámos logo no início deste livro, ou derivam diretamente deles. Fazem, assim, parte desta categoria os seguintes princípios: da liberdade (incluindo a livre circulação e a concorrência), da igualdade e da não-discriminação"" da solidariedade484 , da lealdade, da uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito da União Europeia, da subsidiariedade"', da proporcionalidade (também por esta via), do equilíbrio institucional'86 e da preferência comunitária487 . 175. O valor jurídico dos princípios gerais de Direito Como já dissemos, os princípios gerais de Direito têm uma importância muito grande no sistema de fontes do Direito da União Europeia. Com efeito, repete-se, o TJ entende que o Direito derivado se encontra subordinado àqueles princípios. Mais: aquele Trisustenta que os próprios Estados-membros, nomeadamente a Administração Pública e os seus tribunais, devem respeitar ~qllell~s princípios na aplicação do Direito da União Europeia na 483 Acs. 21-6~58, Hauts fomeaux, cit., pg. 255, 19-10-77, Moulins Pont-à·M<IU"'OIl Procs. apensos 124176 e 20177, Rec., pg. 1.795, 15-6-78, Defrelllle, 149177, Rec., pg. 1.365, e 12-7-84, Prodest, Proe. 237/83, Rec., pg. 3.153. 484 Ac. 7-2-73, Comissão c. Itália, Proc. 39172, Rec., pg. 101. 485 Ac. 12-11-96, Reino Unido c. Conselho, Proc. C-84/94. CoI., pg. 1-5.755. 486 Ac. 13-5-58, Merolli, Proc. 9/56, CoL, pg. 1 L '"' Ac. 13-3-68, Bel/s, Proc. 5/67, CoI., pgs. 125 e segs. (147), contrariado, 100)aV]la. por alguns Acórdãos posteriores, como, por exemplo, o Ac. 14-7~94, c. COllse/ho, Proc. C-353/92, CoI., pg. 1-3.411. 453 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia respetiva ordem interna, dentro do dever geral que lhes incumbe de aplicarem, e de modo eficaz, o Direito da União48 '. Esta construção repercute-se, de modo especial, no sistema de proteção dos direitos fundamentais pelos Estados-membros48'. Ela tem como grande consequência o facto de, por essa via, o Direito da União Europeia levar ao aprofundamento da noção de Estado de Direito no interior dos sistemas jurídicos nacionais dos Estados-membros. facto, ele aparece-nos bastante valorizado no novo Capítulo II do Título I da Parte VI do TFUE, que tem como epígrafe Atos jurídicos da União, processos de adoção e outras disposições, especialmente na sua Secção I, subordinada ao título Os atas jurídicos da União. Para acompanharmos as inovações trazidas somos obrigados a proceder a um estudo mais vasto e profundo do Direito derivado do que aquele que levámos a cabo nas duas edições anteriores. SECÇÃO 1II SUBSECÇÃO I o Direito derivado Teoria geral dos atos de Direito derivado Bibliografia especial: M. PACE, The construction of EU norma· tive power, JCMS 2007, pgs. 1041 e segs.. 176. Importância e conteúdo do Direito derivado Os atos jurídicos do Direito da União Europeia derivado (englobando, em bom rigor, normas jurídicas e atos individuais, como veremos) concretizam, desenvolvem e aplicam os Tratados. Isso, só por si, demonstra a sua importância no elenco das fontes do Direito da União. A terminologia utilizada pelos Tratados para designar esses atos é diferente. Assim, o Tratado CECA indicava-nos as decisões gerais e individuais, as recomendações e os pareceres (artigo 14.°); e desde os Tratados de Roma que os Tratados se referem aos regulamentos, às diretivas, às decisões, aos pareceres e às recomendações (hoje, artigo 288. ° TFUE). Todavia, ainda que sob terminologia diversa, os Tratados referiam-se às mesmas categorias de atos. O Direito da União Europeia derivado foi uma das matérias em que o Tratado de Lisboa mais alterou os Tratados anteriores. De '"' Ac. 24-3-94, Bostoek, Proe. C-2/92, CoI., pg. 1-955. 489 Ver pormenores em SIMON, pg. 370, e 454 JACQUÉ, pg. 515 e segs. Bibliografia especial: O. DUBOS e M. GAUTIER, Actes communautaires d'exéeution, l-Mo Auby e J. Dutheil de la RoeMre (eds.), Droit administratif européen, Bruxelas, 2007, pgs. 129 e segs.; R. HOFMANN, Législation, Delegation and Implementation under Treaty Df Lisbon; Typology meels Reality, ELJ 2009, pgs. 482 e segs.; C. BLUMANN, A la frontiere de lafllnction législative et de lafonction exécutive: les "nouveaux" actes délégués, Mélanges Jacqué, pgs. 127 e segs.; D. RITLENG, La délégation de pOllvoir législatif de l'Union européenne, Mélanges Jaequé, pgs. 559 e segs. 177. Introdução A Convenção sobre o Futuro da Europa havia modificado a nomenclatura dos atos de Direito derivado que constavam do ex-artigo 249.° CE, de modo a aproximar a sua designação de atos de tipo estadual - ver o artigo 1-33.° do Tratado Constitucional. Assim, este substituira a terminologia dos atos constantes daquele preceito do ex-Tratado CE para lei-europeia, lei-quadro europeia, regulamento europeu, decisão europeia, recomendação e parecer. O Tratado de Lisboa ficou aquém desse resultado. Assim, os atos de Direito derivado, constantes hoje do artigo 288.° TFUE, conservam a designação do seu antecessor, o artigo 249. CE. Mas, no resto, o Tratado de Lisboa manteve, no essencial, as inovações do Tratado Constitucional. E essas inovações recondu0 455 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Eumpeia zem-se sobretudo a uma arrumação do que a Parte VI do TFUE, no seu Título I, Capítulo II, chama, na sua epígrafe, "Os atas jurídicos da União". Assim, passa a haver no Direito da União derivado, segundo os artigos 288.' e seguintes TFUE, as seguintes categorias de atos: Conselho, ou decidido pelo Conselho com a participação previa, mediante consulta ou aprovação, do Parlamento Europeu (artigo 289.°, n.O 2, TFUE). O ato aprovado por qualquer desses dois processos legislativos, repetimos, pode assumir a forma de regulamento, diretiva ou decisão, segundo o artigo 289.°, n.~ I e 2, isto é, um qualquer dos atos previstos no artigo 288.°, desde que seja um ato obrigatório ou, o que é o mesmo, que tenha um efeito vinculativo'90. Isto quer dizer que o ato legislativo é definido, pelo artigo 289.° TFUE, por um a) os atas legislativos; b) os atos delegados, que são atos não legislativos de carácter geral; c) e os atas de execução. critério formal: é ato legislativo todo o ato que, assumindo a natu- 178. Os atos legislativos reza de regulamento, diretiva ou decisão, seja aprovado por qualquer dos dois processos legislativos previstos no artigo 289.°, n.~ I e 2, TFUE. Daqui também se conclui, adiantamo-lo desde já, que um regulamento, uma diretiva ou uma decisão terão natureza diversa de ato legislativo se não forem aprovados por um processo legislativo ordinário ou especial491492 Poder-se-á perguntar por que razão é que, ao contrário do que sucedia antes do Tratado de Lisboa, tanto o regulamento, como a diretiva e a decisão podem assumir a natureza de atos legislativos e o que leva os órgãos competentes da União a optar por uma ou outra destas três categorias como atos legislativos. A resposta, a nosso ver, é a seguinte. À opção por uma ou outra dessas três categorias presidirá a base escolhida pelos Tratados, ou seja, serão estes a dizer, em cada caso, qual dos atas daquelas três categorias é aplicável. E o critério da escolha será, fundamentalmente, o da subsidiariedade e o da proporcionalidade. Assim, como adiante estudaremos melhor, se os Tratados desejarem que o ato legislativo, numa matéria concreta, seja direta e imediatamente aplicável na ordem interna dos Estados, escolherão o regulamento. Mas se eles se contentarem com a transposição do ato pelos Estados para a sua ordem interna que lhes Os atas legislativos têm a sede da sua regulamentação no artigo 289.' TFUE. São atos legislativos todos os atos aprovados por um processo legislativo (artigo 289.°, n.o 3). Há dois processos legislativos, como estudámos quando examinámos a competência dos órgãos: o ordinário e o especial (artigo 289.', n.~ 1 e 2). Os atos legislativos são aprovados, em princípio, no quadro da competência definida para cada um destes dois tipos de processos (artigo 289.", n."' 1 e 2). Em regra, o processo legislativo é desencadeado por iniciativa da Comissão, como vimos quando estudámos a competência desta, mas, em casos específicos previstos nos Tratados, pode ser desencadeado por iniciativa de um grupo de Estados-membros ou do Parlamento Europeu, por recomendação do Banco Central Europen ou a pedido do TJ ou do Banco Europeu de Investimento (sendo certo que o Direito da União desconhece a distinção, nesses casos, entre a iniciativa, a recomendação e o pedido) (artigo 289.', n.~ I e 4). O processo legislativo ordinário consiste num processo de co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho, que se inicia com uma proposta da Comissão. Está regulado nos artigos 289.°, n.O I, e 294.° TFUE. Por sua vez, o processo legislativo especial consiste num processo decidido pelo Parlamento com a participação prévia do Assim, também PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 362. No mesmo sentido, PRIOLLAuo/SIRITZKY, doe. eit. 492 Sobre os atos legislativos já com base no Tratado de Lisboa, ver LAETmA GUILLOUD, La loi dans I' Ul1ion etlropéenne - COl1tributiol1 à la définition des Getes legislatifs dans tine ordre juridique d'infégratioll, Paris, 20 lO. 456 457 49J 491 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia permita adaptarem o ato, na forma e nos meios, à especificidade de cada Estado, escolherão a diretiva. A atribuição às decisões da natureza de ato legislativo resultou da necessidade de se dar cobertura à prática, anteriormente seguida, de se utilizar a decisão como ato atípico, para se aprovar atas de alcance geral, como os programas financeiros 493 • Se, diferentemente, os Tratados não prescreverem o tipo de ato que deve ser praticado e, portanto, deixarem a escolha desse tipo aos órgãos da União, o novo artigo 296.°, n.O I, TFVE, estabelece que estes deverão fazer essa escolha caso a caso, com respeito pelo tipo de processo que os Tratados prevejam e com observância do princípio da proporcionalidade. Note-se que este último tem de ser observado nesta matéria por imposição do princípio geral da proporcionalidade, tal como ele se encontra definido para a União no artigo 5.°, n.o 4, UE, como estudámos ua Parte 1494 Os atas legislativos, através dos processos legislativos ordinário e especial, acabam por ser praticados, nos termos estudados, com intervenção apenas do Parlamento Europeu e do Conselho. Concretamente, a Comissão nunca tem competência legiferante, sem embargo de ter um importante e vasto poder de iniciativa no processo legislativo. É o que resulta do artigo 289.°, n."' I e 2, TFUE'95. Ato delegado é um ato praticado pela Comissão que, para o efeito, recebe delegação mediante um qualquer ato legislativo (artigo 290.°, n.o I, 1." parte, TFUE), isto é, mediante um ato praticado através de um processo legislativo ordinário ou especial. Leva a menção expressa de ter sido praticado por delegação (artigo 290,°, n.o 3, TFUE). Além desses requisitos formais os atas delegados caracterizam-se por estes três requisitos substanciais: são atas não legislativos; são atas de alcance geral; e são atas que completam ou alteram certos elementos não essenciais do ato legislativo (artigo 290.°, n.o I, 2." parte, TFUE). Ou então, o que é o mesmo, e nas palavras do Relatório do Grupo de Trabalho que os criou - o Grupo de Trabalho presidido pelo antigo Primeiro-Ministro italiano, GIULLIANO AMATO, que foi Vice-Presidente da Convenção sobre o Futuro da Europa'96 -, são "atas que pormenorizam ou que modificam certos elementos de um ato legislativo no âmbito de uma habilitação definida pelo legislador". Como é característico do conceito de delegação de poderes no Direito interno, o ato legislativo delegante fixa o conteúdo, o âmbito, as condições e o prazo de vigência da delegação (artigo 290.°, n.o I, par. 2, e n.o 2, TFVE), sendo certo que, como decorre do que ficou dito acima, os elementos essenciais de cada matéria constituem objeto exclusivo do ato legislativo e, portanto, quanto a eles os poderes são indelegáveis (artigo 290.°, n.O I, par. 2, 2." parte). Os atas delegados situam-se na fronteira entre os atas legislae os atas executivos ou de execução. Não são atas legislativos, DOlrauleassim dispõe, de forma expressa, o artigo 290.°, n.O I, par. I. \\'las também não são atas de execução, porque, como vimos, são caracterizados pelo Tratado UE como atas "de alcance geral" e completem ou alterem certos elementos não essenciais do ato legisl:lti,'O". Isto significa que, embora não sejam atas legislativos, '~l''Çu'uU'O, se situam na sua órbita. Além disso, no plano formal os delegados serão sempre suscetíveis de distinção porque, como 179. Os atos delegados A seguir aos atas legislativos o TFUE disciplina os atas dele, gados (artigo 290.°). Estes atas, tais como se encontram previstos naquele preceito, constituem uma inovação do Tratado de Lisboa, que os foi buscar ao ., Tratado Constitucional. Inspiram-se em Direitos nacionais de alguns Estados-membros, como é o caso da Itália e da Bélgica. 493 Ver, no mesmo sentido, JACQUÉ, pgs. 518 e segs. Ver supra, n. o 87. 495 No mesmo sentido, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 362. 494 458 4% WG IX 13 CONV 424102, no sítio www.europeall-convention.eu.int. Ver matéria mais desenvolvida em PRIOLLAUD/StRITZKY, pg. 363. 459 o Direito da Uni{io Europeia As jOlltes do Direito da União Europeia já dissemos, deverão conter no seu título a menção da delegação (artigo 290.°, n.O 3, TFUE). Há mais um argumento que nos impede de qualificar os atos delegados como atos de execução, sem prejuízo do que adiante dissermos para caracterizar estes. Quando os Tratados querem ocupar-se dos atos de execução, referem-se claramente a atos "de execução", ou competência "de execução", como o faz o artigo 291.°TFUE. Devido à novidade da categoria de atos delegados no sistema jurídico da União temos de aguardar pela tomada de posição do TJUE no sentido de se esclarecer o conteúdo e a natureza daqueles atos. Segundo o artigo 291.°, n.O 3, TFUE, os atos de execução deverão ter, no seu título, a menção "de execução". Quando sejam precisas condições uniformes para a execução pela União dos seus atos vinculativos (legislativos ou delegados), serão estes que conferirão competência de execução à Comissão. Em casos específicos devidamente fundamentados e, além disso, nos domínios previstos nos artigos 24.° e 26.° UE, a competência para o efeito será atribuída ao Conselho (artigo 291.°, n." 1,2 e 4, TFUE). O TFUE aceita que os Estados controlem o exercício pela Comissão da sua competência de execução. Para o efeito, o Parlamento Europeu e o Conselho, através de regulamentos aprovados por processo legislativo ordinário, estabelecerão previamente as regras e os princípios que deverão presidir aos mecanismos desse controlo (artigo 291.°, n.O 3, TFUE). Quanto aos atos de execução da União, pergunta-se qual é, para esse efeito, o conteúdo da execução. O TJ tem sido restritivo quanto ao conceito de execução e de atos de execução. Confrontado com a questão a propósito do antigo ex-artigo 202.° CE, quando este se referia à competência "de execução", o TJ deixou decidido que "a noção de execução compreende, simultaneamente, quer a elaboração de regras de aplicação, quer a aplicação de regras a casos concretos através de atos individuais", ou seja, de atos administrativos'''. 180. Os atos de execução Depois dos atos legislativos e dos atos delegados, o TFUE regula, no artigo 291.° TFUE, os atos de execução. São atos que pretendem executar os atos vinculativos da União, isto é, os atos legislativos e delegados, acima estudados. Aquele preceito ocupa-se da execução desses atos pelos Estados e pela Comissão (n." 1 e 2 do citado artigo). O princípio geral é o da preferência dos Estados na execução dos atos vinculativos da União. Ou seja, a regra é a aplicação descentralizada do Direito da União pelos Estados. Ela não constava da letra dos Tratados, mas era conatural às relações entre a União e os Estados-membros49'. Todavia, neste lugar só nos interessam os atos de execução provindos da Comissão porque só eles são Direito derivado da União. Como a Comissão não tem nunca competência para aprovar atos legislativos (é o que resulta do artigo 289.°, n.O' I e 2, como vimos há pouco), ela, sempre que não pratique atos delegados, previstos no artigo 290.°, estará a adotar atos de execução. Como dissemos quando estudámos a competência da Comissão, o Tratado de Lisboa reforçou significativamente a competência executiva daquele órgão, que se exerce através de regulamentos de execução, de díretivas de execução e de decisões de execução. 497 Ver in1ra, 11.° 181. Regime jurídico dos aios de Direito derivado Vejamos agora quais são os traços mais importantes do regime jurídico geral que os Tratados definem para os atos de Direito derivado da União. a) Como vimos, os atos legislativos são aprovados por um processo legislativo ordinário ou especial, como resulta do artigo 289.°, n." I a 3, com o acrescento do n.o 4 do mesmo 498 Ae. 24-20-89, Proe. 16/88, Comissão c. CO/lselho, Cal., pgs. 3.457 e sgs., pontos 10 e 11. 246. 460 461 o Direito da União Europeia artigo. Como há pouco recordámos, já analisámos atrás a distinção entre aqueles dois tipos de processo legislativo, quando estudámos os órgãos da União. Passemos, por isso, a outros aspetos do regime jurídico dos atas. b) No caso de os Tratados não estabelecerem qual o tipo de ato a adotar para um determinado caso, o órgão ou os órgãos respetivos escolhê-Io-ão conforme o caso concreto e os tipos de processos disponíveis e no respeito pelo princípio da proporcionabilidade (artigo 296.°, par. I, TFUE). c) Todos os atas jurídicos têm de ser fundamentados e devem Asjontes do Direito da União Europeia efeitos a partir da data dessa notificação (artigo 297.°, n.o 2, par. 3, TFUE). O Banco Central Europeu pode decidir livremente publicar os seus atas (artigo 132.°, n.o 2, TFUE). Note-se, todavia, que os membros dos órgãos, dos comités, bem como, na sua genéralidade, os funcionários e agentes da União, encontram-se obrigados pelo segredo profissional, nos termos do artigo 339.° TFUE. SUBSECÇÃO II fazer referência à observância do respeito pelas formalida- des prévias, impostas pelos Tratados (artigo 296.°, par. 2, TFUE). d) Sendo o processo legislativo ordinário um processo de co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho, os respetivos atas legislativos têm de ser assinados pelos Presidentes desses dois órgãos. Dentro da mesma lógica, os atas praticados em conformidade com um processo legislativo especial têm de ser assinados pelo Presidente do órgão que os praticou. Também os atas não legislativos que forem aprovados sob a forma de regulamento, de diretiva ou de decisão que não tenha destinatário, são assinados pelo Presidente do órgão que os aprovou (artigo 297.°, n.o I, pars. I e 2, e n.o 2, TFUE). e) Os atas legislativos devem ser publicados no Jornal Oficial da União Europeia. Entram em vigor na data que eles fixarem ou, na falta desta, no vigésimo dia a seguir à sua publicação (artigo 297.°, n.o I, par. 3). Ao mesmo regime estão sujeitos os atas não legislativos quando consistam em regulamentos, diretivas que se dirijam a todos os Estados-membros, ou decisões que não indiquem destinatário (artigo 297.°, n.o 2, par. 2). As outras diretivas e as decisões que indiquem um destinatário são notificadas aos respetivos destinatários, começando a produzir 462 Os atos de Direito derivado 182. Preliminares O Direito da União Europeia derivado assume a forma dos atas previstos no par. I do artigo 288.° TFUE: regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres. Embora só os três primeiros obriguem, os Tratados conhecem as duas outras figuras e utilizam-nas. Os regulamentos, as diretivas e as decisões podem enquadrar-se nas categorias de atas legislativos e delegados, mas parece gue só os regulamentos e as decisões podem ter natureza executiva49'. Esse artigo 288.°, n.O I, trouxe uma grande clarificação ao Direito da União derivado ao rearrumar os respetivos atas. De facto, ~ntes do Tratado de Lisboa havia nos Tratados catorze tipos diferentes de atas jurídicos, repartidos pelos três pilares da União Europeia, mais um número grande de atas puramente atípicos, alguns dos quais nem estavam previstos nos Tratados, mas eram utilizados pelos órgãos na sua prática quotidiana. Por isso, a Declaração de ~aeken impusera a redução do número desses atas, bem como uma sua mais clara explicitação,oD. Foi isso o que o Tratado de Lisboa ::veio fazer, ao limitar os tipos de atas aos previstos no referido artigo . 288,°, n.O I, TFUE, independentemente das matérias em que a União 499 500 Assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 364. Ver PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 360. 463 o Direito da União Europeia intervém, ainda que mantendo alguns processos específicos na PESCo Vamos agora estudar os atas elencados no artigo 288. 0 • 183. Os regulamentos a) Sua natureza jurídica Bibliografia especial: l-V. LOUIS, Les reg/emellts de la CEE, Bruxelas, 1969. o TFUE define o regulamento no seu atual artigo 288. o, par. 2. Daí podemos extrair as seguintes características do regulamento: a) ele tem carácter geral; b) ele é obrigatório para os seus destinatários em todos os seus elementos, isto é, quanto ao seu resultado, quanto aos meios de o alcançar e quanto à forma de o fazer; c) ele goza de aplicabilidade direta na ordem interna dos Estados. o carácter geral do regulamento deriva do facto de ele ser o ato legislativo da União por excelência. Por isso, a natureza geral do regulamento engloba também o seu carácter abstrato e confere-lhe conteúdo normativo. Assim tem o TJ caracterizado o regulamentosol . Era por isso que o Tratado Constitucional Europeu o designava por lei europeia (artigo 1-33.°, n. 1). Adiante-se, todavia, que o facto de o regulamento ser, em princípio, um ato legislativo - chamado regulamento de base ou regulamento legislativo - não impede que também possa haver regulamentos delegados não legislativos e regulamentos de execução, aos quais já nos referimos. O 51)J Acs. 14-12-62, Confédération nationale des producteurs de fruits et légumes e o. c. Conselho, Procs. apensos 16/62 e 17162, Rec., pgs. 901 e segs., e 17-12-70, Einfuhr- und Voratsstelle fiir Getreide rmd FuttermittellKoster, Prac. 25/70, Rec., pgs. 1.161 e segs. As fontes do Direito da União Europeia A natureza obrigatória do regulamento abrange todas as sua: disposições. Quer dizer que ele se impõe, através de todas as dispo sições que dele fazem parte e em todos os seus elementos acim: referidos, a todos os órgãos e instituições da União (a começar peh seu autor), aos Estados-membros e aos particulares. Por isso, nã< são admitidas reservas quanto a qualquer das suas disposições e caso elas sejam formuladas, as reservas não produzem quaisque efeitosso2 • Isso não exclui que o regulamento possa, excecional mente, deixar aos Estados alguma liberdade de decisão ou de preen chimento de lacunas em aspetos nele concretamente previstos Nessa hipótese, os Estados estão obrigados a não ir para além da, medidas expressamente admitidas pelo regulamento, devendo, eu qualquer caso, e, desde logo, com base no artigo 4. 0, n.o 3, par. I UE, servir-se sempre dessas medidas para facilitar a execução d< regulamento e não para a dificultar'03 Por fim, o regulamento é diretamente aplicável na ardeu interna dos Estados. Isto quer dizer que a aplicação direta do regu lamento a qualquer sujeito de Direito interno, por um lado, não est, dependente de qualquer medida nacional de receção e, por outr< lado, não pode, de algum modo, ser travada ou condicionada po qualquer medida desse género'04. Nessa ordem de ideias, a publica ção do regulamento na folha oficial dos Estados-membros (que, , nosso ver, é sempre aconselhável, ainda que por extrato, dada , pouca leitura pelo cidadão comum do Jornal Oficial da União Euro· peia) revestiria um carácter meramente informativo e não afetaria inclusive para o efeito das relações do regulamento com o Direit< interno, a natureza do regulamento como ato da União. Por outra, palavras, a publicação do regulamento pelos Estados-membros nã< o nacionaliza. 502 Ac. TJ 7-2-73, Comissão c.Itália, Proc. 39172, Rec., pgs. 101 e segs. 503 Assim, Ac. TI 17-12-70, Se"eer, Prac. 30/70, Rec., pgs. 1.197 e segs. 504 Ac. TJ 7-2-73, cit., e Ac. 2-2-77, Amsterdam Bulb, Proc. 50n6, Rec. pgs. 137 e segs. 464 465 o Direito da União Europeia b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico o regulamento distingue-se facilmente dos outros atas de Direito derivado previstos no artigo 288.° TFUE. Distingue-se da diretiva, porque esta só obriga os Estados quanto ao resultado que ela prossegue e não quanto à forma e aos meios de o alcançar. E distingue-se também da decisão, embora o Tratado de Lisboa tenha atenuado essa distinção. De facto, desde o Tratado de Roma até ao Tratado de Nice (ex-artigo 249.°, par. 4, CE), a decisão era forçosamente um ato, não geral e abstrato, mas individual e concreto, ainda que, porventura, sob a forma de ato plural, porque tinha sempre destinatários concretos. Assim a via também o TJs05 • E foi dessa forma que a caracterizámos nas anteriores edições deste livro. Agora, todavia, o novo artigo 288.°, par. 4, TFUE, não obriga a decisão a ter destinatários. Diz ele apenas que, quando (no sentido de se) tiver destinatários, a decisão é obrigatória para estes. Este entendimento é reforçado pelo facto de, pelas disposições conjugadas dos artigos 289.°, n."' I e 3, TFUE, a decisão ser entendida pelo TFUE como um ato que também pode ser legislativo. Parece, pois, que, hoje, a única distinção entre a decisão e o regulamento, quando aquela não tiver destinatários, residirá no facto de ela poder não ser diretamente aplicável em todos os Estados-membros. Assim acontecerá, por exemplo, no domínio da PESCsü6. O regulamento distingue-se também, da recomendação e do parecer, porque estes não obrigam, isto é, não são vinculativos. Se o regulamento é diretamente aplicável na ordem interna, em princípio perde interesse discutir-se se ele também goza de efeito direto - explicaremos adiante a razão da reserva que colocamos nesta nossa afirmação. Quem pode o mais, também pode o menos, portanto, se o regulamento é diretamente aplicável, por maioria de razão, pode algum dos seus destinatários invocar em tribunal nacio- As jantes do Direito da União Europeia nal unt direito ou uma obrigação que ele, respeti vamente, confira, imponha, devendo o tribunal atender a essa invocação, mesmo qu depois, fique com a liberdade, como é natural, de decidir se o direi ou a obrigação existe ou não 50 '. Como se disse, o regulamento é, em princípio, um ato legisl tivo - é o que resulta dos artigos 288.°, par. 2, e 289.°, n." 1 e TFUE. Mas, como também já ficou dito, além desse tipo de regul menta, também chamado regulamento de base, existem ainda regulamento delegado e o regulamento de execução ou de aplic ção, estando este último hierarquicamente subordinado ao regul menta de base 50 ' e, temos de acrescentar hoje, também ao regulamen delegado. Como vimos, pelo artigo 297.° TFUE, o regulamento é , publicação obrigatória no Jornal Oficial. Ele é publicado na sér Legislação, sob a rubrica Atos cuja publicação é uma condição I sua aplicabilidade. A falta de publicação não afeta a validade ( regulamento, mas apenas a sua eficácias09 • A data da publicaçi presume-se ser a que consta do respetivo número do Jornal Ofici: mas estamos perante uma presunção iuris tantum, pelo que, como entendeu o TJ, ela pode ser ilidida pela prova de que esta última da não correspondeu à data da efetiva publicação do regulamentoS 10 Não é raro o regulamento não prever a entrada em vigor siml tânea das suas disposições. Em contrapartida, razões de urgênc podem levar o regulamento a ordenar a sua aplicação imediataSU Um tipo especial de regulameuto é constituído pelos regime tos (mal chamados em português de "regulamentos interiores") d· órgãos e das instituições da União, aprovados por eles no exercíc do seu poder de auto-organização, e que disciplinam a sua organiz ção e o seu funcionamento interno. Também esses regulament. devem respeitar os Tratados. Eles não têm força executória e ni Acs. 5-5-77, Koninklije Scholten Honig, Prac. 101176, Rec., pgs. 797 e segs., e 6-10-82, Alusuisse, Proc. 307/81, Rec., pgs. 3.463 e segs. 306 Ver assim, embora nem sempre em coincidência com o nosso pensamento, PR10LLAUD/SIRITZKY, pgs. 360-361. soo Ac. TI 14-12-71, Polili, Proc. 43171, Rec.. pgs. 1.039 e segs. 3U8 Ac. TJ 17-12-70, cit. '"9 Ac. TI 29-5-74, H. C. KOllig, Proe. 185173, Rec., pgs. 607 e segs. 5lU Ac. 25-1-79, Racke, Proe. 98178, Rec., pgs. 69 e segs. '" Despacho TI 16-1-87, Enital, Proc. 304/86, CoI., pgs. 267 e segs. 466 467 3U5 o Direito da União Europeia são suscetíveis de ser invocados diretamente por particulares"', embora o TJ tenba já decidido em sentido contrário S13 • Por fim, também reveste a natureza de regulamento, embora não apareça expressamente qualificado como tal, o Estatuto dos funcionários. Por isso, estes podem invocá-lo perante os tribunais nacionais514 • 184. As diretivas a) Sua natureza jurídica Bibliografia especial: D. SIMON, La directive européenne, Paris, 1997; H. PONGÉRARD, L'application des directives communautaires en droit interne, aspects normatifs, diss., Ilha da Reunião, 2000. As fontes do Direito da União Europeia rior hierárquico orientar o subalterno no exercício de poderes discricionários 5 15 • As finalidades prosseguidas pelas diretivas são as mais diversas. Mas predominam duas: a primeira, prevista nos Tratados, consiste na concretização do programa de liberalização da circulação; a segunda, sem dúvida a mais importante, é a da harmonização das Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da União Europeia, nas várias áreas onde essa harmonização tem sido necessária por força da evolução da integração. É sobretudo esta segunda finalidade que confere à diretiva a natureza de norma, similar à do regulamento legislativo, como bem reconheceu o TJ'l6. A determinabilidade dos destinatários da diretiva não lhe retira esse carácter geral e abstrato, como já decidiu o TJm . b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico A diretiva encontra-se definida e caracterizada no artigo 288. 0 , par. 3, TFUE. De harmonia com esse preceito: a) ela tem como destinatários só os Estados-membros; b) ela obriga os Estados destinatários (só) quanto ao resultado que visa alcançar; c) ela deixa aos Estados destinatários liberdade de escolha quanto à forma e quanto aos meios de alcançar o resultado previsto. o ato que correspondia à atual diretiva da União no antigo Tratado CECA (a recomendação) podia ter por destinatários não só Estados, como também empresas. A diretiva da União teve a sua origem na diretiva do Direito Administrativo francês, onde ela serve de instrumento para o supeAç. TI 7-5-91, NakajimaAll Precision c. 0 Ltd., Proe. C-69/89, CoI., pgs. 1-2.069 e segs. m Ac. 27-2-92, BASF, Proc. T-79/89, CoL, pgs. 11-315 e segs. '" Ac. TJ 4-5·88, Watgell, Proc. 64/85, CoL, pgs. 2.435 e segs. 512 468 Para que as diretivas possam vigorar na ordem interna dos Estados é necessário que elas sejam transpostas para o Direito interno nos prazos nelas fixados. Todavia, o ato de transposição não pode ser assimilado a um ato de receção, muito menos, de transformação, da diretiva5l '. Constitui uma obrigação dos Estados destinatários eles transporem as diretivas para a ordem interna, com fidelidade ao que nelas se encontra disposto e no prazo nelas estabelecido, e comunicarem periodicamente à Comissão as medidas que vão sendo adotadas para a execução das diretivas na ordem interna. A circunstância de a diretiva só se dirigir aos Estados-membros e de, portanto, não gozar de aplicabilidade direta na ordem interna, car-ec(~ndo, para o efeito, de um ato estadual de transposição, no qual, ainda por cima, os Estados destinatários gozam da liberdade 515 QUADROS, A /lava dimensão, pg. 14. "6 Ac. 22-2-84, Kloppenburg, Proc. 70/83, CoL, pgs. 1.075 e segs. 51? Ac. 27-4-89, Comissão c. Itália, Proe. 324/87, CoL, pgs. 1.013 e segs. Sobre a receção e a transfonnação do Direito Internacional, ver GONPERElRAlQUADROS, pgs. 81 e segs. e 94 e segs. 5111 469 -I' o Direito da União Europeia Asfontes do Direito da União Europeia de escolher a forma e os meios adequados para prosseguirem o resultado imposto pela diretiva, marca, só por si, uma distinção essencial entre o regulamento e a diretiva. De facto, aquele é um ato supranacional, exprime uma relação de supremacia do Direito da União Europeia sobre o Direito interno, ou, dito doutra forma, uma relação de subordinação da ordem interna dos Estados em relação à Ordem Jurídica da União. Ao contrário, a diretiva é um ato eminentemente de cooperação entre a Ordem Jurídica da União e a ordem interna, sem prejuízo do princípio geral do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito estadual. Nada disso é prejudicado por estes traços importantes do regime jurídico da diretiva: o Estado está obrigado a, no ato de transposição, dar a este um conteúdo conforme com a diretiva, de modo a cumprir esta de boa-fé; para além de os Estados deverem respeitar o prazo de transposição fixado na própria diretiva, resulta das disposições combinadas dos artigos 4. 0, n.o 3, pars. 2 e 3, UE, e 288.°, par. 3, TFUE, que, como entende o TJ, "enquanto corre o prazo para a transposição os Estados devem abster-se de adotar quaisquer medidas que possam comprometer o resultado prescrito pela respetiva diretiva. E cabe aos tribunais nacionais controlar, nesse sentido, a legalidade das disposições nacionais'"19. Num Acórdão mais recente, o TJ foi mesmo mais longe. Ele veio dispor que, ainda antes da transposição, os Estados, para além da referida obrigação de abstenção, isto é, da obrigação de não adotar medidas que ponham em risco a obtenção do resultado visado pela diretiva, estão vinculados a uma obrigação de ação, isto é, devem adotar "de imediato" medidas "concretas" para "aproximar" o seu Direito "do resultado prescrito na diretiva". O TJ encontra um fundamento muito simples para esta conclusão: a diretiva obriga os Estados, não a partir da transposição, mas a partir da sua entrada em vigor no ordenamento jurídico da União"o. Por sua vez, a transposição obriga os Estados, não só a aprovar todas as medidas internas que sejam necessárias ao cumprimento, integral e rigoroso, das obrigações resultantes da diretiva, como também a divulgar os direitos que elas conferem aos particulares e a eliminar do Direito interno todas as disposições que se revelem incompatíveis com a aplicação correta da diretiva"'. O TJ entende que as medidas internas de transposição da diretiva devem revestir-se de força jurídica suficiente para revogarem as disposições nacionais incompatíveis com a diretiva522 • Todavia, é da exclusiva responsabilidade do Estado escolher a forma adequada para o ato de transposição. Ê preciso, no entanto, não esquecer que um aspeto muito importante do regime jurídico do ato interno de transposição da diretiva consiste em que ele não põe em causa a natureza comunitária das disposições da diretiva. Isso releva para todos os efeitos, nomeadamente, para a definição do grau hierárquico do ato de transposição da diretiva na ordem interna do respetivo Estado. Esse grau hierárquico é fornecido pela diretiva transposta, não pelo ato de transposição, seja este um ato legislativo ou um ato administrativo. Isto quer dizer que o Estado não pode refugiar-se no grau hierárquico do ato de transposição na sua ordem interna para recusar o primado da diretiva transposta sobre o Direito nacional, em conformidade com a teoria do primado do Direito da União sobre o Direito interno 523 • Como já se disse, a diretiva deixa aos Estados a escolha da forma e dos meios de eles atingirem o resultado por ela fixado. Cedo se generalizou, porém, a tendência para o Conselho e a Comissão aprovarem "diretivas de pormenor" (Udirectives detail/ées"), isto é, diretivas onde a escolha pelos Estados da forma e dos meios aparecia, mais ou menos, limitada pelo próprio conteúdo da diretiva. A intenção do Conselho e da Comissão era a de, com esse comportamento, evitar a adulteração pelos órgãos legislativos nacionais da Ac. 18-12-97, caso /nter-Environnement Wallonie, Pmc. C-129/96, Col., pgs. 1-7.411 e segs. 520 Veja-se o importante Ac. 22-11-2005, Mangald, cit., ponto 72, com apoio nas conclusões do Advogado-geral TlzzANo, pontos 117 e segs. 521 25~5-82, Comissão c. Países Baixos, pgs. 1-6.869 e segs. 522 Ac. 17-11-92, Comissão c. Irlanda, Proc. C-235191 , CoL, pgs. 1-5.917 e 519 470 Sobre este último ponto, Acs. TJ Proc. 96181, CoI., pgs. 1.791 e segs., e 4-12-97, Comissão c.Itália, Proe. C-207/96, 523 Ver as referidas conclusões do Advogado-Geral no caso Mangold, ponto 117. 471 I ! ! o Direito da União Europeia As jantes do Direito da União Europeia pureza do resultado prosseguido pela diretiva. Essa tendência, todavia, foi posta em causa, sobretudo, pelo Acórdão do TJ no caso Cassis de Dijon 524 • E com a inclusão do princípio da subsidiariedade no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht, a CE passou a abandonar, progressivamente, a prática da elaboração de diretivas de pormenor"'. Na hipótese de o Estado destinatário não transpor a diretiva dentro do prazo fixado para o efeito, ou no caso de, de algum modo, os seus órgãos não cumprirem a diretiva, ele incorre em situação de incumprimento, que pode determinar a abertura de um processo por incumprimento, nos termos dos artigos 258.° a 260.° TFUE. Isso resulta do facto de O prazo para a transposição ter perante o Estado faltoso para fazer valer, perante este, um direito que a diretiva lhe confira. Igual solução deve ser adotada no caso de a diretiva haver sido transposta, sim, mas de modo errado ou insuficiente. O efeito direto vale, nesse caso, antes de mais, como uma sanção contra o Estado, por não haver transposto, ou por haver transposto mal, a diretiva. Note-se que o efeito direto de uma diretiva não dispensa o Estado do dever de a transpor para a ordem interna, nem do dever de reparar os prejuízos entretanto causados com a não transposição, carácter imperativo526-527. À mesma conclusão se chega em caso de errada ou insuficiente transposição da diretiva. Todavia, num caso e noutro, O processo por incumprimento, previsto nos artigos acima citados, pode ser substituído por uma ação de responsabilidade civil extracontratual a propor contra o Estado faltoso nos seus tribunais nacionais, segundo as regras processuais próprias do respetivo Estado. A responsabilidade do Estado é, nesse caso, uma responsabilidade comunitária, a aferir, inclusive no que toca à reparação do dano, pelos critérios próprios do Direito da União. O regime aplicável nesse caso é o definido pelo TJ na jurisprudência iniciada no caso Francovich e desenvolvida em vários Acórdãos posteriores 52'. Decorrido o prazo para a transposição da diretiva sem que esta haja sido transposta pelo Estado destinatário, a diretiva goza de efeito direto (se reunir os requisitos exigidos para isso, e que adiante serão estudados), isto é, ela pode ser invocada por um particular 524 Ac. 20-2-79, Rewe-Zentral, Proc. 120/78, Rec., pgs. 649 e segs. Ver mais pormenores sobre esta matéria em RIDEAU, pg. 163. 525 Assim, RIDEAU, loe. cito 526 Acs. TJ 6-10-70, Franz Grad, Pme. 9170, Rec., pgs. 825 e segs., e 10-4-84, von Colson, Proc. 14/83, CoI., pgs. 1.891 e segs. 527 Ver PONGÉRARD, op. cit., e QUADROS/MARTlNS, pgs. 189 e segs. 528 Vejam-se mais ponnenores em QUADROS/MARTJNS, pgs. 232 e segs., e bibl. aí cito 472 ou incorreta, ou insuficiente, transposição, da diretiva, segundo os critérios da jurisprudência Francovich, nem do dever de adotar as medidas necessárias e adequadas à conveniente aplicação da diretiva na ordem interna'29. E sublinhe-se também o facto de, não obstante o efeito direto só nascer com o termo do prazo para a sua transposição, como sanção contra o Estado pela sua não transposição ou pela sua errada ou insuficiente transposição, a diretiva deverá ser levada em conta pelo Estado, mesmo antes da sua transposição ou do esgotamento do prazo para a sua transposição, nomeadamente, não adotando ele medidas que contrariem o resultado fixado pela diretiva. Já estudámos isto atrás a propósito do caso Mangold. Até à entrada em vigor do TUE, as diretivas eram sempre publicadas no Jornal Oficial, série Legislação, sob a rubrica Atos cuja publicação não constitui condição da sua aplicabilidade, mas só entravam em vigor após a sua notificação aos Estados destinatários. Esse regime foi alterado pelo Tratado UE, como pode ser visto ex-artigo 254.° CE, na versão de Nice. Por sua vez, este prefoi modificado pelo atual artigo 297.° TFUE, após o Tratado Lisboa, como já referimos atrás. Tal como vimos acontecer com os regulamentos, também as dir,eti',as se dividem em diretivas legislativas, delegadas e de exeO TUE, após a revisão de Amesterdão, veio criar uma categoeSIJec:ial de diretivas, chamadas de decisões-quadro. Elas esta529 Ac. TJ 2-3-96, Comissão C. Alemanha, Prac. C-96/95, CoI., pgs. 1-1.653 473 o Direito da União Europeia As jonfes do Direito da União Europeia vam acolhidas no então artigo 34.°, n.o 2, aI. b, UE, no âmbito do antigo terceiro pilar. Um dos seus traços característicos, e como consequência do facto de o terceiro pilar ter natureza intergovernamental, era o de elas não terem efeito direto. Todavia, com a comunitarização do terceiro pilar pelo Tratado de Lisboa essas decisões-quadro foram eliminadas por aquele Tratado. as diretivas, mediante decreto legislativo regional, sobre matérias de "âmbito regional", isto é, matérias que se encontrem enunciadas no Estatuto Político-Administrativo da respetiva região autónoma e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto no art. 227.°, n.o I, aIs. b e c S30 Isto significa que, quando uma diretiva não tiver apenas âmbito regional, as regiões autónomas poderão transpô-Ia no plano material, apenas na medida do seu âmbito regional. Portugal tem descurado a transposição das diretivas para a sua ordem interna. É frequente as diretivas não serem transpostas dentro do prazo para isso fixado por elas, ou serem transpostas de modo incompleto, ou errado, ou insuficiente. Mesmo que as diretivas gozem de efeito direto, mas, sobretudo, no caso contrário, nessa situação o Estado Português constitui-se, nos termos já referidos, em responsabilidade extracontratual, de Direito da União, para além de, pela hierarquia das fontes de Direito, poder ficar afetada a validade (até ao extremo da nulidade), ou a própria existência jurídica, não só de normas jurídicas internas, mas também de atos e de contratos, de Direito Público e de Direito Privado, celebrados na ordem interna, que são conformes com os atos legislativos de transposição das diretivas mas que são desconformes com as diretivas transpostas531 • A correção de todo este compOltamento do Estado Português ,tem de começar pela criação, ao nível do Parlamento, da Adminis'tração Central do Estado e da Administração das regiões autónomas, 'i,$fe serviços jurídicos especialmente qualificados para a transposição >~asdiretivas, à semelhança do que já fizeram muitos dos outros ,Estados-membros da União, inclusivamente, alguns dos que aderi',;rarn mais recentemente. Enquanto isso não acontecer estão a ser postos em causa, tanto o cumprimento correto por Portugal do c) A transposição das diretivas para a Ordem Jurídica portu- guesa Bibliograf'rn especial: M. REBELO DE SOUSA, A transposição das directivas cOlnunitárias para a ordem jurídica nacional, in Legislação, 1992, pgs. 69 e segs.; R. MEDEIROS e I. M. ALBUQUERQUE CALHEIROS, As regiões autónomas e a aplicação das directivas comunitárias, DI 1993, pgs. 417 e segs.; C. BLANCO DE MORAIS, A forma jurídica do acto de transposição de directivas comunitárias, Legislação, janeiro-março 1998, pgs. 41 e segs. É a Constituição da República que disciplina a transposição das diretivas para a Ordem Jurídica portuguesa. Segundo o n.° 9 do seu artigo 112.°, número esse que foi aditado àquele artigo na revisão constitucional de 1997, a transposição das diretivas comunitárias para a ordem jurídica interna tinha de assumir a forma de lei ou de decreto-lei. Ou seja, a transposição das diretivas tinha de ser levada a cabo em Portugal necessariamente por ato legislativo do Parlamento ou do Governo. Todavia, por força do artigo 227.°, n.o 1, aI. a, inflne, e aI. V; o ato legislativo de transposição devia ser precedido de consulta das regiões autónomas dos Açores e da Madeira sempre que a transposição afetasse o interesse específico da respetiva região autónoma, sob pena de inconstitucionalidade orgânico-formal do ato legislativo de transposição. A revisão constitucional de 2004 alargou substancialmente a competência das regiões autónomas nesta matéria. De facto, por força das disposições conjugadas do art. 112.°, nO' 4 e 8, e do art. 227.°, n.o 1, aI. x, passaram também as regiões autónomas a trElnspor 474 530 No mesmo sentido, MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, t. V, 3. a _:,.Coimbra, 2004, pgs. 187 e segs. e 398 e segs. .531 Para além dos estudos já citados atrás sobre este ponto (QUADROS! iITINS, pg. 189 e bibl. cito a pgs. 185-186), ver também QUADROS, Serviço _.~blico e Direito COllllmifário, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra '.), Os caminhos da privatização da Administração Pública, Coimbra, 2002, S, 279 e segs, (292 e segs,). 475 o Direito da União Europeia Direito da União, como também a adequada defesa dos interesses nacionais, a salvaguarda de direitos fundamentais dos cidadãos e o correto aproveitamento de dinheiros públicos"'. 185. As decisões De harmonia com o artigo 288.', par. 4, TFUE (ex-artigo 189.', par. 4, CE), a decisão é "obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes". Isso significa que a decisão obriga quanto ao resultado, aos meios e à forma, mas, quando indica destinatários concretos, só obriga estes. Antes do Tratado de Lisboa, a decisão consistia num ato individual e concreto, mesmo quando revestia a forma de ato plural, isto é, mesmo que se dirigisse a várias pessoas determinadas ou determináveis, fossem Estados-membros ou particulares. Por isso, era mais feliz o Tratado CECA quando a designava de "decisão individual"53'. A decisão aproximava-se, pois, do acte faisant grief, do Direito Administrativo francês, ou do ato administrativo materialmente definitivo, ou do ato lesivo, do moderno Direito Administrativo português. Por isso, inclusivamente não se confundia com meros atas preparatórios de decisões finais'34. O Tratado de Lisboa, com a nova redação dada ao artigo 288.', par. 4, TFUE, alterou a natureza da decisão. Agora, ela não é necessariamente um ato individual e concreto. Será um ato individual e concreto quando não for geral e abstrato e os seus destinatários estiverem determinados ou foram determináveis"'. Ela também não tem necessariamente que ter destinatários - pode tê-los ou não (artigo 288.', par. 4, 2. a parte, TFUE). E pode ter uma natureza muito variada: pode ser um ato legislativo, aprovado pelo Parlam Ver, complementarmente, infra, 11. 0 254. 533 Ac. TJ 14-12-62, caso da Confédération nationale des producteurs de fruits et légumes, cit. '" Ae. TJ 11-11-81, IBM, Proe. 60/81, CoI., pgs. 2.639 e segs. 535 No mesmo sentido, JACQUÉ, pg. 524. 476 As fontes do Direito da União Europeia menta Europeu e pelo Conselho, no quadro de um processo legislativo ordinário, ou pelo Conselho, no âmbito de um processo legislativo especial; pode ser um ato delegado; pode ser um ato de execução; pode ser um ato sui generis, como acontece com grande parte das decisões tomadas no quadro da PESC, que constitui a sede onde os Tratados mais se servem das deci sões .'i36. As decisões são diretamente aplicáveis quando se dirigem a sujeitos internos dos Estados-membros, e gozam de efeito direto quando têm como destinatários diretos apenas os Estados. 186. As recomendações e os pareceres 1 . \ /~ O artigo 288.', par. 5, TFUE indica também, como fontes do Direito derivado, as recomendações e os pareceres. Pelo simples facto da sua designação, percebe-se que uns e outros, em princípio, não têm efeito vinculativo, o que não acontecia com as antigas recomendações do Tratado CECA, que tinham os mesmos efeitos jurídicos das atuais diretivas da União Europeia. Os pareceres não suscitam quaisquer problemas: eles são, em regra, puros atas consultivos ou opinativos, que provêm da "consulta" (vejam-se, por exemplo, os artigos 48.', n.' 6, par. 2, UE, e 218.', n.' 6, aI. b, TFUE). "Não comportam qualquer obrigação jurídica para os seus destinatários", entende o TJ'37. Desapareceram os antigos pareceres favoráveis, ou conformes, do Parlamento Europeu, que eram vinculativos, e que deixaram de ser pareceres para ". serem designados de atas de "aprovação" (vejam-se, por exemplo, 'os artigos 49.°, par. I, UE, e 218.', n.' 6, aI. a, TFUE). . É diferente a situação das recomendações. Elas encerram um convite aos seus destinatários para a adoção de um dado comportamento. Nesse sentido, elas cumprem a função da diretiva, enquanto vêm prever e disciplinar o comportamento dos órgãos aos quais se .• destinam. Por sua vez, estes sabem que, se a recomendação não for 536 537 Veja-se sobre esta matéria o manual de DONY, pg. 227. Ac. 10-12-57, Société des resines, Procs. 1 e 14/57, Rec., pgs. 201 e segs. 477 o Direito da União Europeia respeitada, ela poderá ser seguida de um ato vinculativo, que acolherá o conteúdo da recomendação que não fOl segUIda. Noutros casos, a recomendação visa definir um quadro geral de atuação, dentro do qual o órgão destinatário se deverá m?ver. , Portanto, como se vê, a recomendação produz um efeito Jundico persuasivo, que não está muito afastado de um efeito vinculativo. No domínio prático, a recomendação acaba por obngar. E melhor se compreende isso se levarmos em conta que a jurisprudência da União tem entendido que os tribunais nacionais devem servlr-se das recomendações como instrumento de interpretação das medidas nacionais aprovadas para as pôr em execução, ou completar ou desenvolver outras medidas da União de carácter vinculativo"8. SECÇÃO IV o Direito Internacional Bibliografia especial: P. PESCATORE, Les relations extérieures Comnmnautés européennes, RCADI 1961-II, pgs. 9 e segs.; l-V. Compétence intemationale et compétence interne des note sous arrêt AETR, CDE 1971, págs. 479 e segs.; W. J. GANSHOF DER MEERSCH, L'ordre juridique des Communautés européennes et droit international, RCADJ 1975, pgs. 1 e segs.; V. CONSTANTlNESCO e SIMON, Quelques probIemes de relations extérieures des eurapéennes, RTDE 1975, pgs. 432 e segs.; H. KRÜCK, Volk.errechl:lic.\e Vertriige im Recht der europiiischen Gemeinschaften, Berltm, 1977; CAPELLl, Réglementation communautaire et réglementation du RMC 1977, pgs. 27 e segs.; R. KOVAR, La contribution de la Cour Justice au développement de la condition intemationale de la CDE 1978, pgs. 527 e segs.; A. BLECKMANN et ai, Divisian 01 between the European COnInumities and their Member States in Field of Extemal Relatiom, Deventer, 1981; P. PESCATORE, L' app~icati judiciaire des traités internationaux dans la Communauté europeenne, dans ses États membres, Mélanges Teitgen, 1984, pgs. 355 e segs.; Por todos, Ac. TJ 13-12-89, Fonds de maladies projessionnelles, C-322/88, CoI., pg8. 1-4.407 e segs. 538 478 As fontes do Direito da União Europeia CONSTANTINESCO, La Cour de justice eles C01J111llll1autés européennes et le droit international, Mélange8 Ch. Challmont, 1984, pgs. 207 e segs.; F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit., sobretudo, pgs. 451 e segs.; P. DEMARET, Relations extérieures de la Commullauté européenne et marché intérieur: aspects juridiques etfOllctiol1/lels, Bruges, 1988; N. FERNANDEZ SOLA, El reparto de competencias entre la Comunidad Europea y sus Estados miembros en el ambito de las relaciones exteriores, C011 especial referencia a los acuerdos internacionales, dissertação, Saragoça, 1988; C. FLAESCH-MoUGlN, Le Traité de Maastricht et les cOlllpétences extemes de la CE, CDE 1993, pg8. 351 e segs.; J.·P. PUISSOCHET, L'affirmation de la personalité internationale des ComnumGutés européel111eS, Mélanges Boulouis, pgs. 437 e segs.; L MACLEOD, I. D. HENDRY e STEPHEN HVETT, The External Relations of the European Communities, Oxford, 1996; FERNANDO BASTOS, Os acordos mistos em Direito Comwzitário, dissertação, Lisboa, 1997; D. MAC GOLDRICK, internarional relatiol1s law of the European Union, Londres, 1997; P. DES NERVIENS, Les relations extérieures, in Dalloz (ed.), Le Traité d' Amsterdam, 1998, pgs. 93 e segs.; A. DASHWOOD, External relations provisions of the Amsterdam Treaty, CMLR 1998, pgs. 1.019 e segs.; C. KADDOUS, Le droit des relations extérieures dans la jurisprudence de la Cour de justice dês Comnumautés européennes, Bruxelas, 1998; M. DONY (dir.), L Unioll européenne et le monde apres Amsterdam, Bruxelas, 1999; l-E FLAUSS, Droits de l'homme et relations extérieures de /'U11ion européenne, in O.c., L'Union européenne et les droits fon~ damentallx, Bruxela8, 1999, pgs. 137 e segs.; K. LENAE.TS e E. OE SMIJTER, The European Union as an Actor under lnternational Law, YEL 1999-2000, pgs. 95 e 8eg8.; P.-Y. MONJAL, La Caurdejustice et les accords externes conclus par la Communauté européenne: une integration contrôlée dans l'ordre juridique commullGutaire, Mélanges Isaac, pgs. 409 e segs. I 7. 'Introdução ;tro Direito Internacional é, cada vez mais, uma fonte importante '!Direito da União. E por várias razões. Primeiro, numa Comuni,e Internacional progressivamente mais aberta, e em fase de glo")lção, é cada vez mais intenso o relacionamento da União com ps sujeitos de Direito Internacional. Segundo, os próprios Esta479 o Direito da União Europeia Asfontes do Direito da União Europeia dos-membros, antes da adesão às Comunidades e à União, ou depois dela, cultivaram e cultivam relações estreitas entre si e com terceiros sujeitos, inclusive com outras Organizações Internacionais. Terceiro, sobretudo após o TUE, de 1992, a própria União e as Comunidades passaram a servir-se de convenções internacionais para completarem e desenvolverem a sua própria Ordem Jurídica interna. O estudo do Direito Internacional como fonte do Direito da União tem de ser efetuado separadamente quanto: qualquer ressalva, estaremos a pensar na categoria genérica dos tratados internacionais. A União tem capacidade para concluir tratados internacionais. Isso resulta dos artigos 37." UE e 216.° e 217.° TFUE. Esses tratados internacionais obrigam, pelo simples facto da sua conclusão, tanto a União como os Estados-membros, como dispõe O artigo 216.°, n.O 2, TFUE. O artigo 216." TFUE, que é novo nos Tratados, veio esclarecer as categorias dos tratados internacionais que a União pode celebrar. São elas as seguintes: a) aos tratados internacionais (tratados solenes ou acordos em b) c) d) e) forma simplificada) celebrados pela União com terceiros; aos tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros com terceiros; aos tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros entre si; aos atos unilaterais de Organizações Internacionais nas quais são partes, ou os Estados, ou a própria União; ao Direito Internacional geral ou comum. Vejamos cada uma dessas fontes. 188. Os tratados internacionais celebrados pela União com terceiros I - O enunciado do problema No quadro das suas relações externas e, concretamente, do seu ius tractuum próprio, a União é levada a concluir tratados (tratados solenes ou acordos em forma simplificada) com terceiros, sejam Estados ou Organizações Internacionais. Já vimos, na Parte I, que o Direito da União prefere falar em "acordos", com base no Título V do TFUE, e, sobretudo, no artigo 218." TFUE, para se referir conjunto dos tratados internacionais, isto é, ao conjunto dos tratados solenes e dos acordos em forma simplificada. Por isso, sempre que falarmos de seguida de acordos ou tratados internacionais, 480 a) acordos que os Tratados preveem de modo expresso; b) acordos cuja conclusão é necessária para a União alcançar um dos objetivos fixados pelos Tratados mesmo em domínios onde a União não alcançou, no plano interno, uma política comum. Aqui o TFUE absorveu a jurisprudência do TJ no caso Kramer539 ; c) acordos cuja conclusão se encontra prevista num ato vinculativo da União, que atrás estudámos; d) acordos cuja conclusão é necessária para permitir à União prosseguir as suas atribuições internas ou é suscetível de afetar as regras comuns ou de alterar o seu alcance. Neste ponto, o TFUE acolheu a jurisprudência do TJ no Acórdão AETR540. A competência para a celebração desses tratados encontra-se defini<la no artigo 218. ° TFUE. Por aí se vê que o Conselho define gerais das negociações e conclui os tratados com a particiipal,ão da Comissão, do Alto Representante e do Parlamento Os tratados concluídos pela União vigoram na ordem interna União sem a necessidade de qualquer receção expressa. Obri'30 Acórdão. 14-7-76, Proc. n.' 3176, 4176 e 6176, Rec., pgs. 1.279 e segs., pelo Parecer do TJ n." 1194, de 15-11-94, DMe, Rec., pgs. 1-5.267 e segs. Cit., pgs. 263 e segs. Cfr. supra, TI.O 90. 541} 481 o Direito da União Europeia gam, portanto, desde a data da sua entrada em vigor, tanto a União como os Estados-membros, sem a necessidade, quanto a estes, de qualquer ato nacional de ratificação ou de aprovação. Como dissemos, isso decorre, desde logo, do artigo 216.°, n. ° 2, TFUE. Mas resulta também da construção jurisprudencial segundo a qual o ato de conclusão do tratado, que reveste a forma de regulamento ou de decisão, não tem a função de receber o tratado na Ordem da União. O TI deixou-o dito, de modo claro, no caso Haegeman II: "as disposições do acordo fazem parte integrante da Ordem Jurídica comunitária a partir da sua entrada em vigor""l. Repetiu-o mais tarde o TPI no caso Opel Austria542 • Daqui é legítimo concluir-se pela adoção, pelos dois Tribunais, na matéria, de uma conceção monista das relações entre o Direito da União e o Direito Internacional'''. Mais tarde, nas suas conclusões no caso Polydor, o Advogado-Geral renovaria essa posição, atribuindo ao regulamento de conclusão do tratado uma natureza simplesmente "instrumental". Disse então o Advogado-Geral: "O regulamento (...) limita-se a aprovar o acordo concluído pelo Conselho (...). Ele tem por efeito transpor para a Ordem Jurídica comunitária as cláusulas do acordo sem lhe modificar nem o seu conteúdo nem o seu alcance. Tem, . 1"544 . portanto, uma natureza meramente mstrumenta E a prática dos Estados vai no sentido de eles aceitarem essa orientação. Todavia, o facto de o tratado ser concluído mediante um regulamento fá-lo cair no domínio do artigo 267.° TFUE. Ou seja, podem ser suscitadas questões prejudiciais, ao abrigo daquele preceito, quanto a um tratado internacional concluído pela União. Assim decidiu o TJ, por exemplo, no referido caso Haegeman II'4S. 541 As jontes do Direito da União Europeia A circunstância de o TJ atribuir ao regulamento de aprovaç de um tratado um carácter meramente instrumental, ou fOlmal, n o impediu de, após haver recusado carácter se/j-executing às disp sições do antigo GATT na ordem interna da União, ter reconheci, que essas disposições, através da transferência pelos Estados-men bros para a União dos seus poderes soberanos em matéria de paut aduaneira externa comum, gozavam de efeito direto na Ordem Iurí dica da União, podendo, por isso, ser invocadas por particulare, perante um tribunal'46. Essa posição do Tribunal não deve, contudo quanto a nós, ser interpretada como exprimindo uma alteração li sua conceção acerca da natureza e dos efeitos do ato de conclusã, do tratado pela União (conceção essa que ficou acima enunciada) mas apenas como uma forma de melhor se proteger os direitos dm particulares. O mesmo problema vamos encontrá-lo a propósito da publicação dos tratados concluidos pela União. Os regulamentos e as decisões de conclusão desses tratados são publicados no Jornal Oficial, trazendo anexos a eles o texto dos respetivos tratados. A publicação daqueles atos inclui a indicação da data da entrada em vigor dos acordos ou, pelo menos, do sistema de definição daquela data. Além disso, esses tratados são objeto de publicação autónoma na Colectânea de acordos concluídos pela União Europeia. Pergunta-se, então: pode um acordo da União ser invocado por um particular em tribunal ainda antes da sua publicação? O TI entendeu que sim, no caso Sevince 547 • Reconhecemos que a questão é controversa. Todavia, também aqui parece-nos razoável ver-se na pOliÍçiio do Tribunal, não tanto a afirmação de uma posição jurídica e doutrinária acerca dos efeitos da publicação, mas sobretudo, se não apenas, uma forma pragmática de melhor se salvaguardar os direitos dos particulares'''. Ac. 30-4-74, Proe. n.o 181/73, Rec., pgs. 449 e segs. >4, Ae. 22-1-97, Proe. n.o T-1l5/94, CoI., pgs. I1-39 e segs. 543 Foi a posição que defendemos em 1984, com uma deosa fundamentação, e que mantemos - veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 453 e segs. ,.. Ae. TI 9-2-82, Proe. n.O 270180, Ree., pgs. 329 e segs. 545 Loe. ei!.. 482 Ae. 24-10-73, Schlüter, Proe_ 0.° 9173, Rec., pgs. 1.135 e segs., e Ae. Fedia/, Proe. n.o 70/87, CoI., pgs. 1.781 e segs. '" Ae. 20-9-90, Proe. n.O C-192/89, Ree., pgs. 3.461 e segs. 548 Assim, RIDEAU, pg. 209. 546 22··6-~;9. 483 o Direito da União Europeia II - Os acordos mistos As fontes do Direito da União Europeia :E foi essa a interpretação que o TJ deu àquele preceito no Uma referência especial merecemos chamados acordos"~, tos". São tratados concluídos, do lado da União, conjuntamente:~l União e pelos Estados-membros, porque o objeto do acordo sÓ;p." cialmente cabe nas atribuições da União. On seja, o tratado ipçi.ª sobre matéria que, no sistema de repartição de atribuiçõesen~~, União e os Estados-membros em vigor no momento do acordp,.~t~ competência cumulativa da União e dos Estados-membros. Natt,'''' em que são celebrados pelos Estados esses acordos encontr sujeitos às respetivas disposições constitucionais sobre conelu tratados internacionais. São acordos mistos a maior parte dos dos multilaterais em que a União é parte e todos os acord associação qne as Comunidades e a União coneluiram com ter sujeitos. Eles podem também ser usados em todas as matérj atribuições concorreutes ou partilhadas, embora nada o impo. Como se disse atrás, com a revogação do ex-artigo 133.g'· par. 2, inflne, CE, pelo Tratado de Lisboa, há que esperarp,/" se os acordos mistos sobreviveram àquele Tratado. Deverá~iflç der-se que eles subsistem sempre que encontrarmos nos Tt~' . acordos que reúnam as características acima referidas550 • III - A posição dos tratados na hierarquia Direito da União a) A prevalência dos tratados institutivos sobre os' concluídos pela União com terceiros Os tratados concluídos pela União com terceiros cedem os tratados institutivos. Isso resulta hoje do artigo 218.° .'i49 Ver, especialmente, BOURGEOISIDEwoST/GAIFFE, La Communau péelllle et les accords mixtes. Quelles perspectives, Bruxelas, 1997, e;po., e já depois do Tratado de Lisboa, HJLLION/KoUTRAKOS, MixedAgr Revisited: The EU and its Member States in the World, Oxford, 2010.': .". 551) Sobre os acordos mistos ver a pg. 373 da l.a ed. deste livro e,bi~ 484 ern.o 1175"1. .~quele Parecer, o TI admitiu a fiscalização preventiva da "ade dos tratados internacionais, isto é, da sua conformidade "''','rratado CE, ao abrigo do artigo do Tratado CE que ao tempo pondia ao atual artigo 218.°, n.o 11, TFUE. ais complicado é o problema da fiscalização sucessiva dos .~jnternacionais. Ela não se encontra prevista nos tratados '#)'os. Designadamente, o artigo 263.° TFUE não sujeita os 'internacionais, eles próprios, ao contencioso de anulação da 0,0"":"""",:",:,,,,:: ,t'f94avia, o TI sempre entendeu ter competência para a fiscali- . _.' ~cessiva daqueles acordos através do controlo do ato de ã,odo tratado (como vimos atrás, um regulamento ou uma '2.;0 ato da União de conclusão de um tratado terá, portanto, 'WJ, a natureza jurídica de ato destacável em relação ao respe~~do internacional. Estamos, por conseguinte, perante urna ção indireta da conformidade dos tratados internacionais tados institutivos, levada a cabo através do controlo direto ilivos atos de conclusão da União. ldefendeu essa posição, primeiro, de forma menos clara, já conhecido caso AETR'52. Mas, depois, inclinou-se para 'or convicção no caso Comissão c. Conselho'" e, mais ~nte, no caso do Acordo-quadro das bananas, em que anu~isão de conclusão daquele Acordo"'. O Tribunal estendeu '. tação também aos atos da União de mera execução dos .,\"rpacionais, corno se pode ver pelos dois Acórdãos sobre {'.pedal à Turquia'''. !irece, de 1I-1I-75, Acordo OCDE, Rec., pgs. 1.355 e segs. gS;263 e segs. '9.27-9-88, Proc. n. o 165/87, CoI., pgs. 5.545 e segs. '6'/'10-3-98, Alemanha c. Conselho, Proe. n.O C-122/95, CoI., pgs. 1-973 ,<;.27-9-88, Proc. n. o 204/86, CoI., pgs, 5.323 e segs., e Ac. 14-11-89, /88, CoI., pgs, 3.711 e segs. 485 o Direito da União Europeia As jontes do Direito da União Europeia Esta orientação do TJ envolve, porém, graves riscos para a União. Com efeito, estamos perante uma situação análoga à das ratificações imperfeitas dos tratados internacionais. Segundo os artigos 27. 0, n. ° 2, e 46. 0, n. ° 2, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais, de 1986, uma Organização Internacional que é parte num tratado não pode invocar as suas regras internas como justificação para o não cumprimento de um tratado, salvo se o seu consentimento tiver sido expresso com violação de uma disposição do seu Direito interno sobre a competência para celebrar tratados e essa violação for manifesta e disser respeito a uma regra de importância fundamental. Esses preceitos reproduzem, aliás, o regime definido para os tratados entre Estados nos artigos 27.° e 46.°, n.o I, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados, de 1969. Só que não vai ser fácil à União demonstrar o preenchimento da previsão do artigo 46. 0, n. ° 2, da Convenção de Viena de 1986, mesmo quando, efetivamente, ela se verifique. Por isso, a União incorrerá em responsabilidade internacional, por violação do princípio pacta sunt servanda, caso o TJ provoque a desvinculação da União a um acordo internacional através da anulação do respetivo ato de conclusão, à sombra do artigo 263. ° TFUE. Essa situação de responsabilidade ficará apenas atenuada, mas não desaparecerá, caso o TJ conserve parte dos efeitos do ato anulado, ao abrigo do artigo 264.°, par. 2, TFUE. De qualquer forma, o TFUE parece ter acolhido a referida orientação do TJUE, ao acrescentar, ao par. I do artigo 263.° TFUE, a última frase. Por ela, parece que ficou atribuída ao TJUE competência para conhecer da legalidade, em sede de recurso de anulação, do ato da União que conclua um tratado internacional. Mas a fiscalização sucessiva dos acordos internacionais através do controlo da legalidade dos respetivos atas de conclusão não pode ter lugar apenas através do recurso de anulação daqueles atos, interposto à sombra do artigo 263.°. Também é de admitir que um órgão jurisdicional estadual suscite perante o TJUE, ao abrigo do artigo 267.°, par. I, aI. b, a questão prejudicial da interpretação ou da validade do ato da União de conclusão de um acordo internacional celebrado pela União, dando, por esse meio, oportunidade ao TIUE para se pronunciar sobre a legalidade do acordo em face do Direito da União primário. Por seu lado, é concebível que uma ação de incumprimento interposta contra um Estado, com base nos artigos 258.° e 259.° TFUE, e com fundamento na violação de um acordo internacional concluído pela União, possa levar o TJ a examinar a própria validade do acordo em face dos tratados institutivos. Especiais dificuldades coloca a fiscalização dos acordos mistos. Parece óbvio que os Tribunais da União devem poder fiscalizar 486 esses acordos apenas na parte em que eles são concluídos no âmbito das atribuições da União e não na parte em que eles são celebrados pelos Estados no quadro das atribuições estaduais. Mas não deixa de ser difícil de entender que um mesmo tratado internacional, ainda que eventualmente incidindo sobre objeto divisível, esteja sujeito a um duplo e diferente regime de fiscalização jurídica. b) A prevalência dos tratados internacionais sobre o Direito derivado Mas se cedem perante os tratados institutivos, os tratados internacionais concluídos pela União prevalecem sobre o Direito derivado. Essa conclusão resulta do artigo 216.°, n.o 2, TFUE, de harmonia com o qual, como vimos, os tratados vinculam os órgãos da União e os Estados-membros. Por isso, os atas de Direito derivado, devem considerar-se abrogados pelos tratados internacionais que os contrariem. A jurisprudência, mais uma vez, foi-se pronunciando sobre esta questão por fases. No caso lnternational Fruit III, o TJ estabeleceu uma analogia entre o primado dos tratados internacionais sobre o Direito derivado e o primado do Direito Comunitário sobre os Direitos estaduais, seguindo as conclusões do Advogado-Geral MAYRAs556 • 556 Ac. 12-12-72, Procs. apensos n."" 21172 a 24172, Rec., pgs. 1.219 e segs. 487 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia Logo a seguir, porém, no caso Schroder, o TI veio acentuar a obrigação da Comissão de assegurar o respeito pelas obrigações que decorriam para a Comunidade dos tratados internacionais que esta tivesse concluído"'. Depois, no Parecer n. ° 1/9]558, o TI extraiu expressamente o primado dos acordos internacionais sobre o Direito derivado do antigo artigo 228. 0, n. ° 2, CE (hoje, artigo 216. o, n. ° 2, TFUE), e foi ao ponto de admitir que ele, Tribunal, se encontrava vinculado por sentenças de um tribunal que tenha sido criado por um acordo internacional concluído pela União. Como é que se garante a prevalência dos tratados internacionais sobre o Direito derivado? Através de uma questão prejudicial que um tribunal nacional suscite perante O TIUE acerca da interpretação e da validade do ato de Direito derivado que bole com o acordo internacional, de harmonia com o artigo 267.°, par. I, aI. b, TFUE; através do recurso de anulação do ato de Direito derivado, recurso esse que se deverá fundar na violação por esse ato do tratado internacional em questão"'; através de uma ação pela omissão da parte de um órgão da União de um ato que dê cumprimento ao tratado; ou através de uma ação de responsabilidade extracontratual contra a União, onde se peça a reparação dos prejuízos causados pela violação por esta, através de um seu ato de Direito derivado, de um tratado internacionaP60. Os acordos internacionais em causa prevalecem sobre o Direito derivado, tanto anterior, como posterior - em moldes análogos àqueles em que se coloca, portanto, o problema do primado do Direito da União sobre os Direitos estaduais. Conforme já decidiu o TI, a União, em caso de conflito entre um acordo internacional e um ato de Direito derivado, deve começar, sempre, por interpretar este em conformidade com o primeiro. É o princípio da interpretação conforme do Direito derivado com os tratados concluídos pela União"l. m Ac. 7-2-73, Proc. n.' 40/72, Rec., pgs. 125 e segs. Parecer 14-12-91, Espace économique européen, Rec., pgs. 1-6.079 e 189. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados·mem· bros com terceiros I - Os tratados pré·União Também são fonte do Direito da União os tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros com terceiros. Mas temos aí de distinguir os tratados pré-União e os tratados pós-União'''. Comecemos por estudar os tratados pré-União. Esta designação pretende abranger os tratados que os Estados-membros concluiram com terceiros antes da entrada em vigor dos tratados institutivos das Comunidades ou, quanto aos Estados aderentes, antes da entrada em vigor do respetivo Tratado de adesão. Eles encontram-se regulados no artigo 35 I. ° TFUE. Segundo o par. I desse artigo, esses tratados continuam a obrigar o novo Estado-membro enquanto não cessarem a sua vigência de harmonia com as regras do Direito Internacional. Não podia ser doutra forma: a tanto obrigam a regra pacta sunt servanda, de origem costumeira, e à qual a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, submete todos os tratados internacionais, e a regra da proteção da boa-fé do terceiro que é parte no tratado (terceiro que pode ser um Estado, uma Organização Internacional ou um outro sujeito de Direito Internacional com ;us tractuum, como, por exemplo, a Santa Sé). Note-se que esse par. 1 do artigo 351.° se limita, em grande parte, a acolher a regra geral do Direito Internacional em matéria de tratados sucessivos, codificada hoje no artigo 30.° da Cv. 558 segs. '" Assim, Ac. TJ 10-3-92, NMB, Proe. n.' C-188/88, CoI., pgs. 1-1.689 e segs. Ac. 26-4-72, Interfood, Prac. n.o 92n1, Rec., pgs. 231 e segs. Veja-se também, especialmente, RIDEAU, pgs. 200 e segs., e SIMON, pgs. 346 e segs. 561 562 560 Como o TJ aceitou no citado caso Haegeman. 488 489 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia Repare-se em que neste caso iremos ter uma situação em que Direito Internacional convencional anterior prevalece sobre Direito da União posterior. Todavia, não faz sentido que o Estado que aderiu à União continue por muito tempo vinculado a obrigações internacionais, de raiz convencional, que se revelem incompatíveis com as obrigações que contraiu como Estado-membro da União. Isso é-lhe imposto pelo princípio da lealdade comunitária, consagrado no artigo 4. o, n. o 3, UE. A compatibilização entre estas duas correntes é levada a cabo pelo artigo 351. o, par. 2, da seguinte forma: o Estado-membro em causa está obrigado a eliminar a incompatibilidade entre o tratado internacional pré-União, que celebrou, e o Direito da União que o passou a obrigar (por exemplo, obtendo a modificação ou, se necessário, a abrogação do tratado pré-União com respeito pelas regras da CV), para o que deve contar com a colaboração dos outros Estados_membros 563 • O acordo pré-União não obriga a União, só obriga o Estado ou os Estados que o concluiram com um terceiro. Por isso, só se aplica nas relações destes com o respetivo terceiro'64. Sendo assim, não se coloca o problema de saber se aquele acordo vigora na ordem interna da União, para além da ordem interna própria do Estado ou dos Estados-membros que são partes no acordo. Todavia, o TJ já entendeu que as Comunidades podiam, em certos casos, estar vinculadas a tratados pré-comunitários. Foi o caso, concretamente, do ex-GATT, no qual já eram partes, à data, todos os Estados-membros das Comunidades. De forma muito pragmática, o TJ reconheceu o seguinte: os Estados-membros não queriam deixar de ser partes no ex-GATT e, mesmo que O quisessem, ser-lhes-ia difícil renegociar aquele Tratado num quadro tão vasto como o era o dos Estados-membros do ex-GATT. Por isso, o TJ concluiu que a transferência de poderes soberanos levada a cabo pelos Estados-membros a favor da antiga Comunidade Económica Europeia em matéria aduaneira implicava necessariamente que a CEE ficasse vinculada às disposi- ções do ex-GATT, na exata medida em que os Estados-membros se haviam tornado partes no ex-GATT'65.'66. Idêntico raciocínio seguiu o TJ a propósito dos tratados pré-comunitários sobre nomenclatura aduaneira'''. Todavia, o mesmo critério não foi adotado pelo TJ em relação à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, também ela, já fora subscrita por todos os Estados-membros quando se tornaram membros das Comunidades. Como mostrámos na Parte I, o TJ entendeu sempre que aquela Convenção não obrigava as Comunidades como tais, e que as suas disposições só podiam ser levadas em conta por elas no quadro dos princípios gerais de Direito como fonte do então Direito Comunitário. Ou seja, para o TJ, a CEDH era uma "fonte material" de Direito Comunitário sem ser uma sua "fonte formal"56'. Entre as razões que justificam a disparidade da posição do TJ em relação ao ex-GATT e à CEDH como tratados pré-União figura, ainda que não invocada expressamente pela jurisprudência do TJ, a de que o argumento da transferência de poderes soberanos para as Comunidades em matéria aduaneira, que o TJ utilizou quanto ao ex-GATT, não era invocável em matéria de direitos fundamentais, de que se ocupa a CEDH. Já estudámos este problema atrás. A União Europeia, por sua vez, quanto à PESC, através do ex-artigo 17.0, n.o I, par. 2, UE, na versão de Nice, e do atual artigo 42.0, n.o 2, UE, adotou uma posição intermédia, ao dispor que "A política da União (. ..) respeitará as obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico Norte para certos Estados-membros que veem a sua política de defesa comum realizada no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e será compatível com a pol.íti(:a de segurança e de defesa comum adotada nesse âmbito". 563 GRABITZlHILF/NEITESHEIM, anotações ao artigo 307. o. '" Ae. TJ 14-10-80, Burgoa, Proe. n.o 812179, Ree., pgs. 2.787 e segs. 490 565 Assim, sobretudo, Acs. 12-12-72, Illternational Frui!, cit., e 10-3-98, Proes. n.~ C-364/95 e C-365/95, CoL, pgs. 1-1.023 e segs. 566 Ver sobre este ponto SIMON, pg. 349. Dedicámos a este ponto especial na nossa dissertação de doutoramento, cit., pgs. 459 e segs. 567 Ac. 19-11-75, Nederlandse Spoorwegen, Pme. TI.o 38175, Rec., pgs. e segs. 568 Na feliz fórmula de SIMON, pg. 245. 491 o Direito da União Europeia II - Os tratados pós-União Como se disse, também são fonte do Direito da União os tratados concluidos pelos Estados-membros com terceiros após a sua adesão à União. Contudo, a simples entrada de um Estado para membro da União Europeia acarreta para ele a obrigação de não concluir, com terceiros, tratados internacionais que bulam com a Ordem Jurídica da União. A isso nos conduz, mais uma vez, o artigo 4. ° UE, através do seu n.o 3. O desrespeito por esta regra coloca os Estados infratores sob a alçada de um processo por incumprimento, regulado nos artigos 258.° a 260.° TFUE. Mas em caso algum os Estados podem concluir, com terceiros, tratados internacionais em matérias que já passaram para as atribuições externas da União, inclusive com recurso ao princípio do paralelismo de atribuições, que já estudámos atrás; se o fizerem, para além de incorrerem numa situação de incumprimento, desse modo não obrigam a União, nem se obrigam a si próprios. De facto, quanto a essas matérias os Estados já perderam atribuições'69. 190. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros entre si São também fonte do Direito da União os tratados internacionais celebrados entre os Estados-membros, e já não por eles com terceiros. A partir do Tratado de Maastricht os Tratados da União vieram conceder especial importância a estes tratados. Temos de distinguir, também aqui, entre os tratados concluídos pelos Estados-membros antes de fazerem parte da União e depois disso. Quanto aos primeiros, há que respeitar o que dispõe o artigo 30.°, n.O 3, da Convenção de Viena de 1986 sobre o Direito dos 559 Citámos atrás o caso AETR, que constitui o Acórdão emblemático do TJ sobre esta matéria. 492 As fontes do Direito da União Europeia Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais. Esse preceito tem o seguinte teor: Artigo 30. ° Aplicação de tratados sucessivos sobre a mesma matéria ( ... ) 3. Quando todas as partes no tratado anterior são igualmente partes no tratado posterior, sem que o primeiro tratado tenha cessado de vigorar ou sem que a sua aplicação tenha sido suspensa por força do c artigo 59. , o primeiro tratado só se aplica na medida em que as suas disposições sejam compatíveis com as do segundo tratado. ( ... ) Esta disposição tem a vantagem, na matéria de que estamos a tratar, de conseguir conciliar de modo equilibrado o princípio pacta sunt servanda com a especificidade própria da Ordem Jurídica da União. Aquela disposição da Convenção de Viena de 1986 foi aplicada pelos antigos artigos correspondentes ao atual artigo 350.° TFUE, que ressalvaram de modo expresso as uniões regionais existentes entre os Estados do Benelux quando eles assinaram o Tratado CEE'70, bem como ao atual artigo 344.° do TFUE, que proibiram os Estados de submeter os seus diferendos relativos à interpretação ou à aplicação dos tratados institutivos a meios de resolução diferentes dos que neles se encontram previstos. O artigo 17.° UE, na redação que lhe foi dada pelo Tratado de Amesterdão, aprofundou essa orientação. De facto, os seus n.O' I e 4 valorizavam a UEO (na qual vários Estados-membros da União Europeia já eram partes antes da sua adesão a esta), a ponto de admitirem a sua integração na União Europeia se o Conselho assim o decidisse, e não só ressalvavam como admitiam o aprofundamento das relações bilaterais entre dois ou mais Estados-membros no âmbito da UEO oU da OTAN. ,'O Assim, Ae. TJ 16-5-84, Pakvries, Proe. segs. 493 n.o 105/83, CoI., pgs. 2.101 e o Direito da União Europeia As fontes do Direito da Unillo Europeia Todavia, o Tratado de Nice abandonou, no essencial, essa orientação, pondo de parte a tese da integração da UEO na União Europeia, tendo, das disposições citadas, conservado apenas o n.' 4 do artigo 17.' UE. Por sua vez, o Tratado de Lisboa eliminou qualquer referência à UEO no já referido artigo 42.', n.o 2, UE. O TJ tem afirmado a prevalência dos tratados da União sobre os acordos concluídos entre os Estados-membros antes da sua adesão à U nião571 • No que diz respeito aos tratados internacionais que os Estados-membros concluam entre si após a sua adesão à União, eles só são deixavam de ser tratados de Direito Internacional, ficando, por isso, à margem do Direito da União, embora completassem a Ordem Jurídica da União. Todavia, por este último facto, isto é, por completarem e desenvolverem o sistema jurídico da União, parecia legítimo que essas convenções fizessem parte do adquirido da União e que, por isso, a adesão de um Estado à União e às Comunidades, implicasse a adesão também àquelas convenções. Contudo, o TJ entendia que só tinha competência em relação àquelas convenções se os respetivos protocolos o previssem, e nos termos em que admitidos se não violarem o Direito da União originário. Essa con- tados de Maastricht e de Amesterdão terem vindo a aumentar a clusão é imposta, sobretudo, pelo citado artigo 4.' UE, nomeadamente pelo seu n.' 3, par. 2, mas já resultava, pelo menos parcialmente, e no puro campo do Direito Internacional, do artigo 41.' da referida Convenção de Viena de 1986. O respeito por esta regra encontra-se garantido por duas vias: pela via das questões prejudiciais, através da qual se pode colocar ao TJ o problema da interpretação dos Tratados por confronto com o acordo internacional (artigo 267.', par. I, alo a, TFUE)572; e pela via do processo por incumprimento do Direito da União (artigos 258.' a 260.' TFUE). Note-se que, antes da revisão de Lisboa, os Tratados, desde o início da integração, previam, por vezes, a conclusão de tratados internacionais entre Estados-membros como um meio de executar ou desenvolver as disposições neles contidas. Cingindo-nos apenas ao Tratado CE, era o caso, por exemplo, do seu artigo 293.', na versão de Nice. Ao abrigo deste preceito foram sendo concluidas pelos Estados-membros várias convenções internacionais, a mais importante das quais foi a Convenção de Bruxelas sobre o reconhecimento e a execução de sentenças em matéria civil e comercial, de 27 de setembro de 1968, cuja matéria foi entretanto absorvida pelo Direito da União derivado. Em bom rigor, essas convenções não importância dessas convenções no quadro do antigo terceiro pilar, como demonstrámos nas duas edições anteriores deste livro, perdeu hoje atualidade, porque o Tratado de Lisboa abrogou o citado artigo 293.' CE, bem como os preceitos que se referiam a essas convenções no âmbito do antigo terceiro pilar, que, como já sabemos, foi comunitarizado na sua íntegra. Um importante tratado celebrado recentemente entre Estados-membros foi o Tratado Orçamental Europeu, que já estudámos neste livro. Como então se viu, ele impõe a si próprio que seja interpretado em conformidade com os Tratados UE e TFUE e que seja aplicado só na medida em que for compatível com aqueles Tratados. Não se podem confundir com os tratados que temos vindo a estudar certos atas, que, com a doutrina dominante, temos vindo a . designar de decisões de representantes dos governos dos Estados.-membros reunidos no seio do Conselho Europeu. Trata-se de atas atípicos, não previstos nos tratados, e cuja legalidade à face do Direito da União tem, por isso, sido objeto de >discussão57'. Aquelas decisões têm sido entendidas como atas com- '" Ac. 27-12-88, Malteucci, Proc. n.' 235/87, CoI., pgs. 5.589 e segs. '" Assim, Ac. TJ 10-11-92, Expor/ur, Proc. n.' C-3/91, CoI., pgs. 1-5.529 e segs. 494 o fizessem 573 • Esse problema, que ganhou acuidade especial depois dos Tra- S m Assim, Ac. TJ 14-7-77, Bavaria Fluggesellschaft, Procs. apensos n.O 91 /77 e 10/77, Rec., pgs. 1.517 e segs., e Despacho 9-11-83, Habourdin, Proc. ""n,' 80/83, Rec., pgs. 3.639 e segs. 574 Veja-se o Relatório Burger, apresentado à Comissão Jurídica do Parla::<rnento Europeu em 12-11-69, e a questão escrita colocada ao Parlamento com o :n;'.268/68, JO n.' C 69, de 6-3-69. 495 o Direito da Unü70 Europeia plementares do Direito da União, porque completam e desenvolvem o sistema jurídico da União. Elas têm por objeto as mais diversas matérias, umas vezes, não reguladas nos Tratados, outras vezes, só parcialmente disciplinadas neles, outras vezes, ainda, deixadas pelos Tratados à competência exclusiva dos Estados. Por conseguinte, o processo de adoção desses atos é um processo de vinculação internacional interestadual, não um processo da União. Como tal, esses atos estão sujeitos aos procedimentos constitucionais próprios de cada Estado em matéria de vinculação internacional, ainda que simplificados, podendo, excecionalmente, exigir um formal ato de ratificação. A sua aprovação em Conselho Europeu não obedece às regras usuais do funcionamento do Conselho Europeu como órgão da União. Por vezes, estes atos são aprovados sob proposta da Comissão, ouvido o Parlamento Europeu, e são publicados no Jornal Oficial. O TJ preocupa-se em evitar que estes atos invadam a competência dos órgãos da União como tais575 • Todavia, a doutrina dominante entende que eles fazem parte do adquirido da União, como atos que completam o Direito da União, e que, por isso, um novo Estado que adere à União fica ipso iure vinculado àqueles atos. Estes escapam, todavia, à competência do TJ. Tal como acontecia já antes do Tratado de'Lisboa, como dissemos, esses atos não se encontram previstos hoje no TUE e no TFUE. Só a prática demonstrará se eles continuam a ser tolerados pelo Direito da União e, concretamente, pela jurisprudência do TJUE. 191. Os atos unilaterais de Organizações Internacionais Também estes atos constituem fontes do Direito da União. Mas temos de distinguir aí as Organizações Internacionais em que são partes só os Estados-membros da União daquelas em que a própria União o é. As fontes do Direito da União Europeia Quanto aos atos das primeiras, pode-se dizer que eles, enquanto incorporam regras obrigatórias do Direito Internacional, e, por isso, são atos obrigatórios para os seus destinatários, vinculam não só os Estados respetivos como a própria União. Será o caso das sanções económicas decretadas pelas Nações Unidas. Ainda que não com total clareza, parece ser esse o entendimento a extrair dos Acórdãos que o TJ proferiu acerca das sanções decretadas pelo Conselho de Segurança contra a ex-República Federativa da Jugoslávia576 • Por sua vez, quando a própria União é membro da Organização Internacional em causa, o TI já foi da opinião de que os atos unilaterais da Organização Internacional são diretamente aplicáveis na Ordem Jurídica da União. Foi o que ele decidiu no Parecer sobre o caso do Fundo europeu de imobilização da navegação interior no Reno 577 e, mais tarde, no caso Sevínce 578 • 192. O Direito Internacional geral ou comum Neste lugar deste livro, por Direito Internacional geral ou comum entendemos o costume internacional, ao qual se refere o artigo 38.°, n.o 1, aI. b, do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça. Esse Direito Internacional geral ou comum é fonte do Direito da União, nos termos seguintes. Nas relações da União com outros sujeitos de Direito Internacional, o costume internacional, inclusive as convenções que o codificam, é fonte de Direito sem qualquer especificidade. Assim, por exemplo, a jurisprudência da União já reconheceu que a União se encontra vinculada ao Direito Internacional do Mar, enquanto Direito de raiz costumeira579 • 576 Ac. 30-7-96, caso Bosphorus Hava Yollari, Proc. 0.° C-84/95, CoI., pgs. 1-3.953 e segs., e Ac. 27-2-97, caso Ebony Maritime, S.A., Pme. C-I77/95, CoI., pgs. 1-1.111 e segs. m Parecer n.O ln6, de 26-4-77, Rec., pgs. 741 e segs. '" Ac. 20-9-90, Proc. n. C-I92/89, CoI., pgs. 1-3.461 e segs. 579 Ac. TI 4-7-76, Kramer, Procs. apensos 0.0< 3176, 4176 e 6176, Rec., pgs. 1.279 e segs., eAc. TI 9-7-91, Comissão c. Reillo Unido, Prac. n.oC-J46/89, CoI., pg. 1-3.533. O 575 Ac. 30-6-93, Parlamento c. Conselho e Comissão, Procs. apeosos n. C-181191 e C-248/91, CoI., pgs. 1-3.685 e segs. OO 496 497 o Direito da União Europeia As fontes do Direito da União Europeia Diferentemente, na ordem interna da União o Direito da União não pode ser contrariado pelo Direito Internacional geral ou comum. É assim que deve ser interpretado o já referido artigo 344. TFUE: na ordem interna da União vigoram as garantias judiciais previstas naquele Tratado e não as previstas no Direito Internacional geral. O mesmo vale para a interpretação do Direito da União, que, como adiante veremos, está sujeita a regras próprias e não às regras de interpretação do Direito InternacionaL Mas há dois desvios a esta construção. Em primeiro lugar, o Direito da União, como já atrás dissemos, cede perante o Direito Internacional imperativo, o ius cogens. Isto é particularmente importante, porque o ius cogens internacional é composto principalmente por regras sobre direitos fundamentais da Pessoa Humana580 e a proteção desses direitos fundamentais é muito cara também ao sistema jurídico da União. Em segundo lugar, as lacunas em Direito da União serão integradas, na ausência de princípios gerais próprios dessa Ordem Jurídica, pelo recurso ao Direito Internacional geraL Assim o reconheceu o TJ no caso van Duyn58 '. E, para alguns Autores, têm aplicação na ordem interna da União, ainda que só em situações-limite, as regras da CV sobre a cláusula rebus sic stantibus, bem como os meios de auto-tutela, como a retorsão e as represálias. Todavia, este ponto sempre foi controverso582-'''. SECÇÃO V Outras fontes 0 580 Assim, GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 109 e 273 e segs., e QUADROS, La COllvention Européenne des Droits de I'Homme: un cas de ius cogens regional?, eit., pgs. 555 e segs. '"' Ac. 4-12-74, Proc. n.o 41/74, Rec. pgs. 1.337 e segs. 582 Veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 484 e segs. 583 Das obras gerais mais recentes, a matéria desta Secção está estudada de modo aprofundado, especialmente, em VAN RAEPENBUSCH, pgs. 409 e segs. 498 193. Ajurisprudência A jurisprudência é uma fonte que cedo obteve uma grande importância no Direito da União. Isso tem a ver com o relevantíssimo papel que ela tem vindo a assumir na criação e no desenvolvimento do Direito Comunitário e, depois, do Direito da União, a partir dos Tratados. O papel da jurisprudência na formação do sistema jurídico da União Europeia afasta-se da função que a jurisprudência assume nos Estados da fanu1ia jurídica românica para se aproximar do papel que ela ocupa nos sistemas jurídicos anglo-saxónicas, onde assistimos, com normalidade, à criação do Direito por via pretoriana, sem prejuízo, contudo, para a hierarquia das fontes de Direito. Por isso, talvez se justificasse que a jurisprudência fosse estudada neste Capítulo como objeto duma Secção autónoma. É uma questão sobre a qual continuaremos a refletir. Já demonstrámos atrás o que acabámos agora de dizer. Se o Dineito da União alcauçou a densidade e a profundidade que hoje apresenta, isso deve-se muito à jurisprudência da União, particulardo n, que soube suprir, tantas vezes, a paralisia dos órgãos políticos de decisão. Como mostrámos quando estudámos os Tribunais da União, é nesse sentido positivo que é adequado falar-se na "Europa dos juízes" ou, corno muito acertadamente o faz BOULOUlS, reconhecer que a jurisprudência da União tem um verdadeiro "valor normativo"58'. , Nessa tarefa da jurisprudência da União não se pode ignorar a cola'iboração que lhe tem sido prestada pelos tribunais nacionais enquanto " ttibunais comuns de Direito da União. Já nos referimos a isso e -voltaremos ao assunto. À propos de la valeur normative de la jurisprudellce, Mélanges M. vaI. I, pg. 149. 584 499 o Direito da União Europeia 194. A doutrina A doutrina é fonte do Direito da União como é fonte do Direito em geral. Ela reveste-se de particular significado como fonte do Direito da União, porque reflete a diferença entre os sistemas jurídicos nacionais e, portanto, exprime a forma diferente como cada sistema jurídico concebe o ordenamento jurídico da União e as suas relações com este. Assim, nota-se que é claramente distinto o modo como um manual de Direito da União escrito no Reino Unido, partindo do sistema do common law, vê o sistema jurídico da União, por comparação com um manual francês ou italiano, partindo do sistema românico. Do mesmo modo como se vê que a doutrina alemã, por exemplo, é particularmente sensível ao desenvolvimento da vasta problemática das relações dos direitos fundamentais com o Direito da União, como consequência natural do peso da Teoria dos Grundrechte no Direito Público alemão após a 2.' Grande Guerra. 195. Os acordos interinstitucionais Estes acordos, pelo menos quando são celebrados entre órgãos da União, melhor se chamariam acordos inter-orgânicos, como os designa a doutrina alemã58'. Com esse rótulo e com essa designação formal, não se encontravam previstos nos Tratados até ao Tratado de Nice. Este veio, pela primeira vez, referir-se a eles, na Declaração n. o 3 a ele anexa e relativa ao ex-artigo 10. o do Tratado CE. Aquela Declaração estendia o dever de "cooperação leal" entre os Estados-membros e a Comunidade, consagrado no ex-artigo 10. CE, às relações entre os próprios órgãos da Comunidade, e estimulava a que, na concretização daquele dever, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão As fontes do Direito da União Europeia celebrassem "acordos interinstitucionais". Aí se acrescentava, todavia, que "esses acordos não podem alterar nem completar as disposições do Tratado e só podem ser celebrados com o assentimento daquelas três instituições". Todavia, os acordos interinstitucionais entre aqueles três órgãos, ou alguns deles, são, na prática, muito anteriores ao seu acolhimento no Tratado de Nice e já como expressão do princípio da cooperação leal. De facto, encontramos uma primeira referência a eles num Acórdão do TJ de 1983586 , onde, a propósito da cooperação que o artigo 58. o do Tratado CECA previa entre a Comissão e O Conselho, o Tribunal constatava que aquele preceito, contudo, não definia as modalidades daquela cooperação, pelo que, "nestas condições cabe àqueles órgãos organizar, de comum acordo e no respeito pelas respetivas competências, as formas de cooperação entre si". Podemos dizer que foi essa a primeira tentativa de caracterização jurídica dos acordos interinstitucionais. Partindo daquela disposição do Tratado CECA, depressa os acordos interinstitucionais, mais frequentes entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, e quase sempre sob a forma de declarações comuns, se alargaram a diversas matérias, a começar pelo procedimento orçamental, e viram o seu número aumentar progressivamente'''. Não obstante o Tratado de Lisboa não ter incorporado a Declaração n. o 3 que estava anexa ao Tratado de Nice, não há razões para crer que os acordos interinstitucionais não sejam hoje possíveis do mesmo modo como já o eram antes do Tratado de Nice. Os acordos interinstitucionais devem ser definidos como acordos celebrados entre órgãos da União que disciplinam, numa dada 0 Por exemplo, GRABITZ/HILFINEITESHEIM, anotações ao artigo 6. 0 UE, e Carta, cit., pgs. 79 e segs. 585 WEBER, soo 586 Ae. 11-5-83, KlOckner-Werke AG, Proe. n.o 244/81, Rec., pgs. 1.451 e segs. Para além da enumeração desses acordos que consta dos bancos de próprios da União, pode hoje ver-se referência aos mais importantes deles em JACQUÉ, sobretudo, pgs. 525 e segs. Ver também GAUTRON, Les accords inte~ rinstitutionnels en droit communautaire, Panthéon-Assas (ed.), Les regles et principes non écrits en droit public, Paris, 2000, pgs. 195 e segs. 587 SOl o Direito da União Europeia As fomes do Direito da União Europeia matéria, o seu comportamento recíproco. À partida nada impede que sejam celebrados entre quaisquer órgãos da União, embora a História só nos mostre ter havido acordos interinstitucionais entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão. A doutrina divide-se quanto à natureza jurídica e aos efeitos desses acordos. Alguns autores, embora não pondo em causa que eles são fonte do Direito da União, têm alguma relutância em lhes atribuir natureza jurídica, porque entendem que eles não criam direitos e se situam entre a Política e o Direito, obrigando os órgãos, que os subscrevem, quase exclusivamente nos planos político e moral. Modernamente, o nome mais sonante dessa corrente é GUY BRAIBAW 8S . De modo diverso, outro sector da doutrina entende que estamos perante verdadeiros atos jurídicos, que, embora dependendo da interpretação de cada um deles em concreto, podem ser obrigatórios e criar direitos para os seus subscritores, e que, inclusivamente, como tais, são relevantes perante o TmE. E, para O efeito, esses autores louvam-se na própria jurisprudência do Tribunal. O melhor representante desta orientação é JEAN PAUL JACQUÉ589 Assim, se é certo que o TJ, por exemplo, quanto à Declaração Comum de 30 de junho de 1982 relativa ao procedimento orçamental, se absteve de se pronunciar expressamente sobre o seu valor jurídico, embora tivesse fornecido alguns argumentos nesse sentido'90, mais recentemente, em relação a um acordo concluído entre a Comissão e o Conselho sobre a preparação das reuniões e o regime de votação no seio da FAO ou OAA (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o TJ anulou uma decisão posterior do Conselho que violava aquele Acordo, com o fundamento de que o dever de cooperação leal obrigava juridicamente o Conselho a cumprir o Acordo'9!. Parece, portanto, que é a segunda das duas correntes doutrinárias a que neste momento merece os favores da jurispmdência da União. De entre a grande diversidade de acordos interinstitucionais que encontramos, podemos dizer que o mais importante de entre eles, até hoje concluído, foi, sem dúvida, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Como vimos atrás, ela foi objeto de dnas proclamações da parte do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão, em 2000 e em 2007 592 • Também quanto a ela, a jurispmdência da União já teve oportunidade de aplicar a mesma orientação doutrinária que acima dissemos ter feito sua'93. 588 La Charte des droits fondamentaux, cit., pg. 57. 589 Loc. cito 196. Os atos atípicos À margem do ex-artigo 249.° CE, hoje, artigo 288.° TFUE, os órgãos da Comunidade Europeia e da União há muito que começaram a servir-se de atos jurídicos que não estão nele previstos. Por isso, eles chamam-se atos atípicos. Diga-se, desde já, que se trata de nma prática condenável, que, em bom rigor, põe em cansa o princípio da legalidade na Ordem Jurídica da União, e que tem trazido insegurança e incerteza ao sistema jurídico da União, dado que ninguém, inclusive os particulares, está em condições de determinar a natureza e os efeitos desses atos'94. De facto, esses atas, mesmo se atípicos, podem ver-lhes atribuídos efeitos vinculativos. Assim, o TJ, com o intuito de estabelecer garantias contra esses atos, não obstante reconhecer a sua ">atipicidade e a sua não previsão nos Tratados, entende que deve conhecer deles através do recurso de anulação do atual artigo 263.° FUE, porque este pode ser interposto contra "todas as medidas amadas pelos órgãos (independentemente da sua natureza e da sua Ver supra, n.O' 68 e 70. Assim, por todos, o Comentário à Carta de BRAIBANT, pg. 57, e impor'tantebibl. aí citada. 594 Como o tem entendido, com muita dureza, o Conselho de Estado francês assim, JACQUÉ, pg. 525. 592 593 '''' Ae. 3-7-86, Conselho c. Parlamento, Proe. n.o 34/86, CoI., pg. 2.1SS. 59l Ac. 19-3-96, Comissão c. Conselho, Pme. C~25/94, CoI., pgs. 1-1.469 segs. S02 S03 o Direito da União Europeia forma) que visem produzir efeitos jurídicos"'95. No exercício dos seus poderes cognitivos, o Tribunal começa por verificar se o ato em questão produz efeitos jurídicos e, em caso afirmativo, se ele respeita os requisitos de fundo e de forma exigidos pelos Tratados5%. Já nos referimos neste livro a alguns atos atípicos. Vamos de seguida estudar aqueles que julgamos ser os mais importantes'''. I - Os "despachos" Estes atos correspondem às "Ordonnances" do Direito francês. Por isso, equivalem às Ordenanças da História do Direito português e assim deviam ser designadas em língua portuguesa, se se pusesse rigor na tradução. Não se tem procedido assim e as versões portuguesas das fontes do Direito da União têm utilizado o vocábulo "Despachos". Estes atos não se confundem com as decisões, que estudámos como atos típicos de Direito derivado, previstas no artigo 288.' TFUE598. Podem provir do Conselho, do Parlamento ou da Comissão. Podem consistir em atos gerais, que não têm destinatários concretos. Nessa hipótese, podem estar previstos nos Tratados (é o caso, por exemplo, das decisões sobre recursos próprios). Quando isso suceder, são os próprios Tratados que lhes fixam os efeitos. Mas podem também consistir em decisões com efeitos meramente internos (por exemplo, a criação de comités). A partir do momento em que estes atos produzam efeitos jurídicos podem ser fiscalizados pelo TJUE, salvo se se situarem ao nível do Direito primário, como atrás mostrámos poder acontecer. Por todos, Ac. 31-3-71, AETR, cit Por todos, Acs. 16-6-93, Proc. n.O C-325/91, França c. Comissão, CoI., pg. 1-3.000, e 20-3-97, França c. Comissão, Proe. n.' C-57/95, CoI., pgs. 1-1.627 e segs. 597 Sobre os atos atípicos, V., especialmente, S. LEFEVRE, Les actes commu. nautaires atypiques, Bruxelas, 2006. 598 Assim, JACQUÉ, pg. 525. 595 596 504 As fontes do Direito da União Europeia II - As comunicações da Comissão Estes atos atípicos revestem-se de natureza muito dispar: podem consistir em Livros Brancos, ou Verdes, sobre matérias sobre as quais a Comissão quer colher a opinião dos outros órgãos ou dos particulares antes de apresentar uma proposta legislativa; em relatórios de natureza diversificada; ou em documentos nos quais a Comissão indica qual será, no futuro, o seu compOltamento ou qual deverá ser o comportamento dos Estados-membros ou dos particulares. Estas comunicações não produzem efeitos jurídicos. Todavia, se for o caso, elas podem criar expectativas (isto é, uma relação de confiança legítima) nos seus destinatários, particularmente quando o comportamento futuro da Comissão é nelas descrito com pormenor e precisão. Se o TJVE interpretar uma comunicação como querendo ela obrigar, isto é, produzir efeitos vinculativos, ele pode conhecer da sua legalidade: assim decidiu já o TJ'99.600. III - As conclusões e as resoluções do Conselho O Conselho aprova, entre outros atos, conclusões e resoluções. As conclusões põem termo a uma sessão do Conselho. Em regra, contêm declarações meramente políticas, mas, não raro, encerram também orientações, e, nesse caso, podem produzir efeitos jurídicos. Só a sua interpretação permite fixar-lhes o verdadeiro sentido e conteúdo. Diferentes das conclusões do Conselho são as conclusões da Presidência, que não obrigam o Conselho, são imputáveis apenas à Presidência e valem como meras declarações políticas60l . Por sua vez, as resoluções do Conselho, em regra, são utilizadas para este anunciar um programa de atuação futura num determinado domínio. Nessa medida, não produzem efeitos jurídicos, '" Aes. 16-6-93, Proe. C-325/9!, e 20-3-97, Proe. C-57/95, ambos atrás eits. 600 Cfr., sobre esta matéria, JACQUÉ, pg. 529. "" Ver JACQUÉ, pg. 527-528. 505 o Direito da União Europeia mesmo quando convidam a Comissão a agir num determinado sentido. Só excecionalmente o TJ tem atribuído efeitos jurídicos a estas resoluções 60'. CAPÍTULO III AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA E OS DIREITOS ESTADUAIS Bibliografia especial: G. VEDEL, Souveraineté ef supraconstitutionnalité, Pouvoirs 1993, pgs. 79 e segs.; H. JARRAS, Gundfragen der innerstaatlichen Bedeutung des EG-Rechts, Colónia, 1994; W. POHS, Der Vollzug von Gemeinschaftsrecht, diss., Berlim, 1997; P. FUNT, Die Ubertrage von Hoheitsrechten, Berlim, 1998; M. ADENAS e F. lACOSS (eds.), European Conununity Law in the Ellglish Courts, Oxford, 1998; E. SCONDOMIS e D. SIMON, Le juge cOn1munautaire et l'articulation des compétences normatives entre la Communauté européenne et ses États membres, Bruxelas, 1999; T. VANDAMME e l.-H. REESTMAN, Ambiguity in lhe Rule of Law - The Interface between National and Infernafional Legal Systems, Groningen, 2001. Introdução o problema das relações entre o Direito da União e os Direi- 602 Por ex., Ae. 1O-7~80, Comissão c. Reino Unido, Pme. 32179, Rec., 2.403. Ver JACQUÉ, pg. 528. 506 . ~snacionais dos Estados-membros aparece-nos como a questão uclear da elaboração da Ordem Jurídica da União. É que toda a 'pnstrução e estruturação desta última assenta na dialética entre o oder político da União e a soberania dos Estados e, portanto, na rma como se relacionam e se articulam o Direito da União e os 'ireitos estaduais, como expressão daquele e desta. , Vamos dividir a matéria das relações entre o Direito da União 9s Direitos nacionais em cinco domínios: 507 o Direito da União Europeia o primado do Direito da União sobre o Direito estadual; a aplicabilidade direta do Direito da União; o efeito direto do Direito da União; a interpretação conforme do Direito nacional com o Direito da União; e a harmonização das Ordens Jurídicas estaduais com o Direito da União'o,. É, portanto, de harmonia com este plano que iremos estudar essas relações. SECÇÃO I o primado do Direito da União sobre o Direito estadual Bibliografia especial: E. GRABITZ, Gemeinschaftsrecht bricht Ilationales Recht, AppeI, 1966; M. REBELO DE SOUSA, A adesão à CEE e a Constituição de 1976, Estudos sobre a Constituição, vai. III, 1979, pgs. 457 e segs.; LufsA DUARTE, O Tratado da União Europeia e a garantia da Constituição, Estudos Castro Mendes, pgs. 685 e segs.; 1. MOTA DE CAMPOS, As relações da Ordem Jurídica portuguesa com o Direito Internacional e o Direito COllumitário à luz da revisão constitucional de 1989, Lisboa, 1985; J. L. DA CRUZ VILAÇA, L. M. PAIS ANTUNES e N. PIÇARRA, Droit Constitutionnel et Droit Communautaire. Le Cas Portugais, RDP 1991, pgs. 301 e segs.; J.-c. MASCLET e D. MAUS (dir.), Les Constitutions nationales à l'épreuve de I'Europe, Paris, 1993; F. DE QUADROS, National Law - Integration Law, Heinrich PfusterschmidHardtenstein (ed.), Entscheidung mr Europa - Bewuststein und Realitãt, Viena, 1993, pgs. 427 e segs.; F. DE QUADROS, Comentário breve à Constituição da República Portuguesa, in E. Cerexhe e L. de Hardy de Beaulieu (dirs.), Douze Constitutions pour une Europe, Bruxelas, 1994, pgs. P-l e segs.; M. ZULEEG, Deutsches undeuropiiisches Verwaltungsrecht - Wechselseitige Einwirkungen, VVDStRL 53 (1994). pgs. 154 e segs.; Sobre o conjunto global destas questões, embora nem sempre em coincidência com o nosso pensamento, ver, de entre as obras de carácter geral, muito especialmente, CRAIO/DE BÚRCA, pgs. 323 e segs., e, da bibliografia especial, de modo particular, a dissertação de PÜHS. 603 508 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais R. MEHor, Le statut contentieux des mesures nationafes d'éxécutiol1 du droitcommunautaire, diss., Rennes, 1994; T. DE BERRANGER, Constitutions nationales et constructioll communalltaire. Essai d'appmche comparative sllr certains aspects constitutionnels nationaux de l'intégratioll européenne, Paris, 1995; C. GREWE e A. WEBER, Le traité sur l'Unioll devant les juridictions constitutionnelles, Annuaire international de justice constitutionnelle 1995, pg. 11; C. HAOUENAU, L'applicatioll e.ffective du droit communautaire en droit interne. Analyse comparative des problbnes rencontrés en droit français, anglais et allemand, Bruxelas, 1995; D. SIMON, Les exigences de la primauté du droit communautaire, continuité ou métamorplwses, Mélanges Boulouis, pgs. 297 e segs.; C. GREWE e H. RUIZ-FABRI, Droits constitutionnels européens, Paris, 1995; F. DE QUADROS, Europiiische Imegration und nationales Verfassungsrecht in Portugal, in Battis, Tsatsos e Stefanou (eds.), Europãische Integration und nationales Verfassungsrecht, Baden-Baden, 1995, pgs. 375 e segs.; B. DE WITIE, Sovereignty and European integration: The weight o/legal tradition, MJ 1995, pgs. 145 e segs.; O. DORD, Cours constitutionneltes nationales et normes européennes, diss., Paris, 1996; A. SCHMm GLAESER, Grundgesetz und Europarecht ais Elemente europiiischen Verfassungsrechts, Berlim, 1996; ElD.E., Le droit constitutionnel national et l'intégration européenne, 17. 0 Congresso, ed. trilingue, vol. I, Berlim, 1996; R. BIFFULCO, Forme di Stato composto e partecipazione dei liveli regionali alta formazione delta volontà statale sulle questioni comunitarie, DUE 1997, pgs. 101 e segs.; M. FROMONT, Le droit constitutionnel national et l'intégratioll européenne, RAE 1997, pgs. 191 e segs.; J. RIDEAU, Les États membres de I'Union européenne - adaptations, mutations, résistances, Paris, 1997; 1. M. CARDOSO DA COSTA, O Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, in Ab uno ad omnes. 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pgs. 1.363 e segs.; D. MAUS e O. PASSELECQ (dir.), Le traité d'Amesterdam face aux constitutions nationafes, Paris, 1998; F. DE QUADROS, A nova dimensão do Direito Administrativo, cit.; F. DE QUADROS, Relatório sobre DC I, cil., pgs. 44 e segs., e bibL aí cil.; A. JYRÃNKI (ed.), National COllstitutiollS in the era of integration, Amesterdão, 1999; C. GREWE e H. OBERDORFF, Les Constitutions des États membres de l'Union européenne, Paris, 1999~ R. MOURA RAMOS, The Adaptation of the Portuguese Constitutional Order to Community Law, BFDC 2000, pgs. 1 e segs.; D. SIMON, Rapport général: Les fondements de f'autonomie du droit communautaire, in Droit international et droit communautaire, Colóquio de Bordéus, Paris, 2000, pgs. 207 e 509 o Direito da União Europeia segs.; C. GREWE, La situation respective du droit international et du droit communautaire dans le droit constitutionnel des États, in Colóquio de Bordéus, cit., pgs. 251 e segs.; D. BLANCHARD, La constitutionalisation de I'Union européemze, Rennes, 2001; O. DUBOS, Les juridictioJ1s nationales, juge comnumautaire, diss., Paris, 2001, Parte I; J. 1. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. a ed., Coimbra, 2003, sobretudo, pgs. 822 e segs.; A. BARAV, Responsabilité et irresponsabilité de l'État en cas de nzéconnaissance du droit communautaire, Liber amicorum Jean Waline, 2003, pgs. 431 e segs.; D. RITLENG, Le principe de primauté du droit de I'Union, RTDE 2005, pgs. 285 e segs.; M. FRüMONT, Droit administrat/fdes États européens, Paris, 2006, pgs. 84 e segs.; PATRíCIA MARTINS, O princípio do primado do Direito Comunitário sobre as normas constitucionais dos Estados-membros, Cascais, 2006; F. DE QUADROS, Der Einfluss des Grundgesetzes aul die portugiesische Veljassung aus der Sicht eines portugiesischen Verfassungsrechtlers, lôR 2010, pgs. 41 e segs. (51-52); J.-v. LoulS, La primauté du droit de l'Union, un concept dépassé?, Mélanges Jacqué, 2010, pgs. 443 e segs.; C. BLANCü DE MORAlS, A sindicabilidade do Direito da União Europeia pelo Tribunal Constitucional português, Estudos Sérvulo Correia, Coimbra, 2010, pgs. 221 e segs.; J. MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público, 5.a ed., Cascais, 2012, pgs. 155 e segs.; F. DE QUADROS, A influência da Lei Fundamental de Bona sobre a Constituição Portuguesa, Estudos Gomes Canotilho, no prelo 198. Enunciado do problema e metodologia adotada A primeira questão que é suscitada pela relação entre o Direito da União e os Direitos nacionais dos Estados-membros é a de saber qual é o ato (entenda-se: norma ou ato individual) que prevalece quando um ato da União e um ato nacional colidem, ou seja, quando um e outro dispõem de modo diferente sobre a mesma matéria. É este o problema a que se reconduz o chamado primado (ou prevalência) do Direito da União. A teoria do primado do Direito da União não se subsume na teoria do primado do Direito Internacional, pelo simples facto de o Direito Internacional e o Direito da União serem Ordens Jurídicas com diferentes fundamentos filosófico-jurídicos. Contudo, a cação do primado do Direito da União continua, por vezes e 510 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais hoje, a ser levada a cabo (mal, como se percebe) a partir das conceções clássicas acerca das relações entre o Direito Internacional e o Direito interno. É o que faz, por exemplo, a Constituição portuguesa, apesar dos progressos nela introduzidos pela revisão constitucional de 2004. Na realidade, e à partida, ela inclui os únicos preceitos que nela, de algum modo, relevam para a questão do primado - o n." 3 e, depois de 2004, o n." 4, do art. 8.° - num artigo que, no essencial, visa disciplinar as relações entre o Direito Internacional e o Direito interno e que, por isso, tem por epígrafe apenas "Direito Internacional". Por isso, nesta Secção seguiremos a seguinte metodologia. Primeiro, exporemos a teoria do primado, tentando demonstrar que ela coloca hoje muito menos dificuldades na sua conceção e na sua compreensão do que já colocou no passado. Depois, debruçar-nos-emos sobre a questão do primado do Diireito da União na Ordem Jurídica portuguesa, onde ela, apesar da re"isiio constitucional de 2004, continua a apresentar-se como uma matéria controversa. 199. O fundamento do primado O primado do Direito da União sobre o Direito estadual . decorre da especial natureza do Direito da União. É por isso que o vimos caracterizando há anos, com base em PIERRE PESCATORE604, como uma "exigência existencial" do Direito da União, e é também . or isso que o qualificamos hoje, como o fazem PAUL CRAIG e {)RÁINNE DE BÚRCA605, como um resultado do "mandato comunitário" 'inposto aos Estados pelo Direito da União. E essa "natureza espe'.ífica original" do Direito da União foi, logo no início da integração, ~conhecida pelo TJ6'l6. 604 L'ordre juridique des Communautés européennes, Bruxelas, 2006, pg. Esta obra consiste numa reimpressão das Lições do Autor, com a mesma .eoi,erale.de 1973, à Faculdade de Direito da Universidade de Liege. 605 Pgs. 341 e segs. 606 Ac. 15-7-64, caso Costa/ENEL, Proc. 511 0.° 6/64, Rec. 1964, pgs. 1.141 e o Direito da União Europeia Portanto, o primado sobre o Direito estadual constitui um atributo próprio do Direito da União, não resulta de uma concessão do Direito estadual, particularmente, da respetiva Constituição, como acontece com a receção do Direito Internacional na ordem interna, quando este não é ius cogens(j)7. Ou seja: enquanto que o Direito Internacional é um Direito fragmentário, o Direito da União é uma Ordem Jurídica uniforme. Dito ainda melhor, enquanto que o Direito Internacional admite ser aplicado nos muitos Estados-membros da Comunidade Internacional por outros tantos filtros das respetivas Constituições (portanto, a priori, de harmonia com tantos critérios constitucionais diferentes quantos os Estados), o Direito da União, ao contrário, tem uma ~'natureza comunitária", encontra-se "inte~ grado no sistema jurídico dos Estados-membros" e "impõe-se aos seus tribunais", penetrando na Ordem Jurídica interna para aí produzir a plenitude dos seus efeitos, como cedo passou a admitir o TJ(j)'. Tudo isso faz do Direito da União um Direito comum aos Estados" -membros da União (e não um Direito fragmentário). Ora, para que o Direito da União se afirme como Direito comum é necessário que ele seja interpretado e aplicado de modo uniforme nos Estados-membros. O princípio da uniformidade do Direito da União - que, por isso, erguemos a princípio constitucional da União(j)9 - é, aliás, imposto também pelo princípio da igualdade entre os cidadãos de todos os Estados-membros, que resulta da proibição da discriminação e que, também ele, vale como princípio constitucional da União, como entendeu o TJ no mesmo caso Costa/ENEL610 Mais: tanto a igualdade como a não-discriminação são hoje valores da União, como dispõe o artigo 2.° UE. O primado nunca constou, dessa forma, dos Tratados, embora se pudesse extraí-lo implicitamente de dois dos seus preceitos, na sua versão atual: o artigo 4.°, n.o 3, UE, quando este impõe aos " 007 É o que DENYS SIMON designa, de modo muito adequado, de "definiçao comunitária do primado interno" - Lesfondements, pg. 242, com itálico nossO. 608 Caso CostaJENEL, cit., loco dt.. O itálico é nosso. 609 Ver supra, n. o 35. 610 Loc. cito Sobre o princípio da não discriminação em razão da nacio~ nalidade, ver supra, n. o 52. ' 512 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais Estados-membros, no quadro da cooperação leal com a União, que nada façam no sentido de pôr em perigo a realização dos objetivos da União, entenda-se, os fins prosseguidos pelo Direito da União; e o artigo 288.° TFUE, quando ele atribui aplicabilidade direta a certos atos de Direito derivado, isto é, e como estudámos, os regulamentos e as decisões, já que a aplicabilidade direta, obviamente, pressupõe o primado. De qualquer forma, o primado foi criado e elaborado pela jurisprudência do TJ. São vários os acórdãos que dão corpo à teoria do primado, mas três deles, devem ser considerados os grandes marcos dessa construção. O primeiro foi o caso Costa/ENEL, já referido neste livr0 6". Nesse Acórdão, o Tribunal enunciou logo as bases dogmáticas do primado. Nestes termos: "A transferência levada a cabo pelos Estados, da sua Ordem Jurídica interna para a Ordem Jurídica comunitária, de direitos e obrigações correspondentes às disposições do Tratado, implica, portanto, uma limitação definitiva dos seus poderes soberanos contra a qual não se poderá fazer prevalecer um ato unilateral posterior incompatível com a noção de Comunidade" (itálicos nossos). E, acrescentava o TJ, o primado abrange o Direito estadual tanto anterior como posterior ao ato da União em causa. Depois, o caso SimmenthaI 612 • Aí o TJ decidiu que é dever do ;; juiz nacional considerar inaplicável (e não inválida) toda e qualquer \ regra ou ato de Direito nacional eventualmente contrários a uma ", regra ou a um ato de Direito da União, seja anterior ou posterior (efeito abrogatório do primado), e que a entrada em vigor de uma regra ou de um ato de Direito da União impede a aprovação de novos atos legislativos nacionais que sejam incompatíveis com eles f:(efeito bloqueador do primado)613. Só dessa forma o juiz nacional ,. aplicará "integralmente" na Ordem interna, como é sua obrigação, o Direito da União, independentemente do que dispuser o Direito Constitucional ou legislativo interno. É importante referir que o 611 Loc. cito '" Ac. 9-3-78, Proc. n.o 106177, Rec., pgs. 629 e segs. 613 Este efeito bloqueador do primado seria retomado mais tarde pelo TJ, ',com invocação do caso Simmenthal, no já citado caso Mangold, ponto 78. 513 o Direito da União Europeia primado do Direito da União sobre o Direito Constitucional dos Estados-membros, afirmado de forma geral no caso Simmenthal, encontrou a sua tradução concreta, de forma muito expressiva, no mais recente caso Krei/614 • A matéria jurídica que estava em causa neste processo merece ser referida aqui, pela sua originalidade. O artigo l2-A da Lei Fundamental de Bona prescreve que as mulheres só podem ser chamadas a prestar serviço militar, nas condições aí referidas, desde que tal serviço militar nunca implique o "serviço armado" ou 4'0 uso de armas", que está reservado aos homens. Con- cretizando este preceito, a lei ordinária veio dispor que as mulheres só podiam prestar, nas Forças Armadas, serviço de "saúde" e de "música militar". O TI entendeu que o artigo 12-A da Lei Fundamental devia ser afastado pelos tribunais alemães em benefício da Diretiva n.o 76/207/CEE, hoje, n.o 2006/54/CE, do Conselho, sobre igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso ao emprego, à formação profissional e nas condições de trabalho, por violar o princípio da igualdade entre homens e mulheres'15. O terceiro Acórdão é o caso Factortame 616 • Nele, o TI reconheceu ao juiz nacional o direito de, a título cautelar, suspender a aplicação de um ato estadual suscetível de ser considerado contrário ao Direito da União mesmo se o respetivo Direito interno não lhe conferir competência para o efeito, ou seja, mesmo contra Direito interno de sentido contrári0 6l7 • A doutrina deste Acórdão foi confirmada por jurisprudência posterior do TI, da qual salientamos O recente caso Krzysztof Filipiak6l8 • O TI deixou aí claro que um tribunal nacional deve aplicar a norma do Direito da União que con" flitue com urna norma estadual, afastando esta, qualquer que seja sua fonte. As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais 200. O âmbito do primado Assim entendido no seu fundamento, o primado do Direito da União tem de ser absoluto ou, se se preferir, integral. Esta afirmação tem uma dupla vertente: ela quer significar que todo o Direito da União prevalece sobre todo o Direito estadual. Antes de mais, o primado conferido a todo o Direito da União quer dizer que ele envolve todas as suas fontes que obrigam: portanto, para além do Direito originário, os regulamentos6l ', as diretivas 620 , as decisões 62 !, os acordos internacionais concluídos pela Comunidade 62', e, além disso, segundo o TI, as próprias recomendações, apesar de, pela letra do artigo 288. o UE, elas não serem obrigatórias623-624. E, depois, o primado afirmado como referido a todo o Direito interno quer dizer que ele é oponível a todo o Direito estadual no seu conjunto, incluindo, como vimos, de grau constitucional. Isto pretende significar que o primado não existe se não for supraconstitucional. De facto, caso o Direito da União seja colocado, na hierarquia das fontes de Direito na ordem interna de um Estado, num grau infraconstitucional, ainda que supralegal, está-se, facto, a negar o seu primado sobre o Direito estadual. Ou seja, o Direito da União só pode ver respeitada a sua característica da uniformidade se, corno se disse, todo o Direito da União prevalecer sobre todo o Direito estadual, sem prejuízo dos desvios que, a título ,'. fundado, este princípio vai ter que respeitar, como adiante veremos. 615 Ver, no mesmo sentido, por último, PERN1CE, anotações aos casos e Simmenthal, in Madura/Azoulai (eds.), The Past and Future ofEU Law, OXj'ord,ê, 2010, pgs. 47 e segs., LENAERTS/vAN NUFFEL, pg. 165, e JACQUÉ, pg. 543. 6" Ae. 19-6-90, Proe. C-213/89, Cal., pgs. 1-2.433 e segs. 617 Veja~se a doutrina desse Ac6rdão estudada por nós em A nova din1ellsão',. cit., pgs. 30 e segs. e 42 e segs. 618 Ae. 19-11-2009, Proe. C-314/08, Cal., pgs. 82 e segs. 619 Ac. 11-12~71, Politi, Pme. 43/71, Rec., pgs. 1.039 e segs. "" Aes. 7-12-81, Rewe-Markt Steifen, Proe. 158/80, Ree., pgs. 1.805 e :,oogs., e 10-4-84, Von Colson, Prac. 14/83, Rec., pgs. 1.891 e segs. 621 Ac. 8-3-79, Salumiflcio, Prac. 130/78, Rec., pgs. 867 e segs. 612 Ae. 26-10-82, Kupferberg, Proe. 104/81, Ree., pgs. 3.641 e segs. 623 Ae. 13-12-89, Grimaldi, Proe. C-322/88, Cal., pgs. 1-4.407 e segs. Já estudámos atrás a natureza especial das recomendações. 624 Nas obras mais recentes veja-se este ponto explicado, sobretudo, em ACQuÉ, pg. 543, RIDEAU, pgs. 913 e segs. e LOUJs/RoNSE, pgs. 249 e segs. 514 515 6" Ae. 11-1-2000, Proe. C-285/98, Cal., pgs.I-69 e segs., pontos 15-32. o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais Assim decidiu o TJ, especialmente em relação ao Direito Constitucional estadual, no caso San Michele 625 e, mais tarde, nos já citados casos Simmenthal e Kreil626 Este carácter absoluto do primado aparece-nos, contudo, relativizado, por duas vias. Antes de mais, pela própria estrutura da Ordem Jurídica da União. De facto, o primado, ao vir resolver o problema de um conflito entre uma norma ou um ato da União e uma norma ou um ato nacional, parte do princípio de que a União pode legalmente intervir naquele caso concreto. Isto quer dizer que o problema do primado nem se colocará quando a União, por força dos Tratados, não estiver autorizada a agir. Será o caso de, no domínio das atribuições partilhadas, por força do princípio da subsidiariedade ficar excluída a intervenção da União. Já deixámos isto ressalvado quando estudámos atrás o princípio da subsidiariedade. Em segundo lugar, o carácter absoluto do primado foi suavizado pelo TI, com o apoio de alguns tribunais constitucionais nacionais, pela necessidade de se salvaguardar direitos fundamentais dos cidadãos. Ou seja, aqueles tribunais aceitam que o primado do Direito da União ceda o passo a disposições internas que sejam mais favoráveis aos direitos fundamentais dos cidadãos do que a norma da União que com elas conflitue: desse modo decidiu o TI, para começar, em 1969, no caso Stauder. Depois, e de modo progressivo, o TJ reafirmou essa doutrina, nos casos Internationale Handelsgesellschajt, Nold e Wachauf Já estudámos atrás todos esses Acórdãos, quando nos debruçámos expressamente sobre a proteção dos direitos fundamentais na União. Limitamo-nos agora a recordar no caso Waclzauf, onde o TJ recapitulou e desenvolveu a orientação jurisprudencial que estamos a analisar, ele deixou expressamente escrito que "não são admitidas nas Comunidades medidas incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelas Constituições desses Estados" (os Estados-membros). Nessa corrente jurisprudencial o TI foi seguido pelo Tribunal Constitucional alemão, no caso Solange I e nos Acórdãos Maastricht e regulamentação do sector das bananas, e pelo Tribunal Constitucional italiano, nos casos Frontini e Granita!. Também estes processos já foram por nós referidos atrás 62'. '" Despacho de 22-6-65, Procs. 9/65 e 58/65, Rec. 1967, pgs. 35 e segs. 626 No mesmo sentido, V., de modo especial, e pela clareza do seu ra,oio,ofnio, SIMON, Les jondements, pgs. 243-244. Mais recentemente, ver LOUlS/RONSE, cit., e JACQUÉ, pgs. 543 e segs. 516 201. O valor jurídico do primado A questão que a seguir se coloca é a de saber qual é a sanção do primado, ou seja, qual é a consequência jurídica para o ato nacional que viole um ato da União. A resposta a essa interrogação faz parte da teoria do primado tal como o TJ a construiu. De facto, no caso Simmenthal, aquele Tribunal postulou, para a hipótese de conflito entre os dois atos, a sanção da inaplicabilidade do ato estadual. Portanto, inaplicabilidade, e não nulidade, ou inexistência, do ato estadual. Ou seja, a sanção para o ato estadual situa-se no domínio da eficácia e não no da validade ou da existência jurídica. O TJ recusou-se, portanto, a atribuir natureza federal ao prido Direito da União, que teria determinado a nulidade, se não a inexistência jurídica, da norma estadual ("Bundesrecht bricht Landesrecht", na expressão do Direito federal alemão, com consagração no já citado artigo 31. o da Constituição alemã628). " Embora seja essa a interpretação pacífica do Acórdão do TJ no .'. caso Simmentlzal, sublinhe-se que o Tribunal forneceu aí argumentos para que a sanção fosse mais severa, e andasse próximo da '['lulidade, ou da inexistência, no caso em que o ato estadual que contrarie o ato da União seja posterior a esta62'. Veja-se sobre esta questão, especialmente, JACQUÊ, pgs. 56 e segs., 554 e Droit administratif, pg. 85. 628 Ver MAUNZlDüRIG, Grundgesetz -- Kommel1tar, Munique, 2012, e VON ~l\1ül'cH'K':;NI'G, Grundgesetz Kommentar, 6. 3 ed., Munique, 2012, anotações ao f'';' ,m.ao preceito. Veja-se também a dissertação de GRABITZ, Gemeinschaftsrecht. 629 Assim, BARAV, anotação a esse Acórdão, in CDE 1978, pgs. 275 e segs., "el'Sl'N. que considerava haver razões jurídicas para a sanção da nulidade, anotação EuR 1979, pgs. 223 e segs. 627 e FRDMom, 517 o Direito da União Europeia Note-se, todavia, que, quase sem se dar por isso, o já referido Protocolo relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, de 1992, veio pôr em causa essa construção clássica. De facto, e como há pouco mostrámos, o TJ pode anular, num recurso de anulação, um ato de Direito nacional que demita um governador de um banco central nacional (artigo 14.°, n.O 2, daquele Protocolo). A violação do primado, para além de poder ser questionada perante os tribunais nacionais do Estado que o infringiu, segundo os meios contenciosos nacionais, coloca o respetivo Estado em situação de incumprimento, suscetível de desencadear o processo incumprimento, regulado nos artigos 258.° a 260. ° TFUE, e incorrer, por esse mesmo fundamento, em responsabilidade Direito da União630 202. O primado do Direito da União e as Constituições estaduais A posição dos Estados-membros, particularmente das suaf' Constituições nacionais, perante o primado tem de ser vista, ao longp da História, em duas fases: primeiro, a fase da confrontação entr~ a integração e o Direito nacional (ou, se se preferir, a soberania dual); depois, a fase da adaptação do Direito nacional ao Direito União. a) Afase da confrontação Na fase que chamamos de confrontação, as Constituições est~;' duais, para aceitarem o primado do Direito da União, e, portanl para lhe darem legitimação constitucional, sentiram-se na necess( dade de acolher as limitações de soberania resultantes da sua adesã, às Comunidades, por uma de duas vias: As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais Direito da União - o exemplo mais acabado é o da Grécia, no art. 28.°, n.O' 2 e 3; ou incluindo nas Constituições uma cláusula de autorização ao Parlamento para a delegação de poderes soberanos pelos respetivos Estados nas Comunidades - e aqui o melhor exemplo, porque o mais bem elaborado, é o da Alemanha, agora no seu novo artigo 23.°, n.o 1631 . Como bem nota BLANCHARD6J2 , através de uma ou de outra ,'dessas duas formas, os respetivos Estados procediam à "constitucio'nalização" das Comunidades e, depois, da União, nas suas Constituições nacionais, visando, antes de mais, conceder suporte \constitucional à sua adesão à União e à sua participação nela. Como "consequência disso, por uma ou por outra dessas duas vias, os tribu[nais nacionais foram concedendo primado ao Direito da União "sobre os respetivos Direitos nacionais, lançando mão, quando o ,entendiam, e para resolver as dúvidas que na matéria se suscitassem, ~oprocesso das questões prejudiciais do artigo 267.° TFUE, como aconteceu nos diversos casos jurisprudenciais que temos vindo a citar neste Capítulo. Foi também nesta primeira fase que, como dissemos, tanto o J,. como alguns tribunais constitucionais nacionais, chegaram à nclusão de que a prevalência do Direito da União sobre os Direi()sestaduais não devia ir ao ponto de sacrificar direitos fundameniUsque, numa relação de conflito entre um ato da União e um ato ~tadual, se encontravam melhor protegidos por este último. Para o ,ireito da União o seu primado era um valor essencial e uma exiência existencial, mas a proteção dos direitos fundamentais era-o 'nda mais. ou incluindo uma cláusula geral de limitação de soberani que cobria também o primado supraconstitucional d 630 Ver RAEPENBUSCH, Responsabilité et irresponsabilité, pgs. 431 e segs., e'V~ pgs. 503 e segs. BARAV, 518 ,mo, Sobre este preceito, além dos Comentários há pouco citados, ver, por Staatsrecht, 5. a ed., Munique, 2012, pgs. 460 e segs. Pgs. 69 e segs. BADURA, 632 519 o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais cesso constituinte dos Estados-membros", que se materializaria nas revisões constitucionais levadas a cabo para preparar as Constituições para a sua compatibilidade com os novos Tratados. Dessa concertação entre os dois processos constituintes resultaria, para aquele Autor, com toda a naturalidade, o primado supraconstitucional do Direito da União63'. Portugal não fugiu a essa orientação, tendo revisto sucessivamente a Constituição de 1976 de forma a adaptá-Ia, a cada momento, ao Tratado de Maastricht e, depois, aos Tratados de Amesterdão e de Nice. A última revisão, a de 2004, já levou em conta, para esse efeito, o Tratado Constitucional Europeu, que, entretanto, não chegou a entrar em vigor. O segundo método, e que se aproveita em parte do anterior, consiste na "europeização" dos Direitos Constitucionais dos Esta_. dos-membros. Ainda que não tanto como noutros ramos do Direito Público (por exemplo, no Direito Administrativo), também no Direito Constitucional se vai verificando uma progressiva harmonização das Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da Uniã0636 • --Essa harmonização tem vindo a abranger o próprio Direito Constitucional substantivo: primeiro, foi o Direito Constitucional Económico, o que se explica pelo facto de a União ter querido alcançar, 'antes de mais, a União Económica e Monetária; mas, depois, esse b) Afase da adaptação A segunda fase, que chamamos de adaptação (mas que RIDEAU, de forma não menos feliz, designa de "adequação"6"), vai levar os Estados-membros mais longe: eles, mais do que procurarem uma legitimação constitucional para o primado do Direito da União, vão adaptando ou adequando as respetivas Constituições à evolução do Direito da União. Este movimento iniciou-se, sobretudo, com a assinatura do Tratado da União Europeia, de 1992, e tem vindo a conhecer dois métodos. O primeiro tem consistido na revisão das Constituições nacionais por forma a pô-las de harmonia com o Tratado da União Euro· peia. Essas revisões têm sido, por vezes, sucessivas, a fim adequá-las ao ritmo muito célere da revisão dos Tratados: nOlte-i,e que em menos de dez anos houve três revisões dos Tratados '-""W"nitários e da União, levadas a cabo pelos Tratados de Maastricht, Amesterdão e de Nice, não se podendo esquecer as profundas vações trazidas pelos dois primeiros. Colocados perante a opção de, ou porem previamente as tivas Constituições em sintonia com os novos Tratados e de, forma, possibilitarem a sua ratificação, ou correrem o risco de rem surgir a questão de a ratificação do respetivo Tratado ser rada inconstitucional pelo tribunal competente, impedindo, modo, a adesão do Estado em causa ao respetivo Tratado, os Estaclos têm, todos eles, sem exceção, escolhido modificar previamente suas Constituições, a fim de as adaptar, de as pôr em cOllformidaide; com os novos Tratados 63'. Em Portugal, GOMES CANOTlLHO é muito feliz ao descrever situação como um "procedimento constituinte evolutivo", que desdobraria na simultaneidade de um "processo constituinte tivo europeu", traduzido nas revisões dos Tratados, e de um 63~ Pgs. 911 e segs. Orientação próxima é adotada na obra coordenada pelo4:' mesmo Autor, Les États membres, como se vê, desde logo, pela sua epígrafe. ' 634 RlDEAU demonstra-o com pormenor no seu manual, loco cito 520 6~5 Direito Constitucional, cit., pgs. 826-827. Só não aderimos integralmente a esta construção porque não cremos que os vocábulos "Constituição" e 't~constituinte", no sentido utilizado pelo Autor, sejam já adequados ao estado atual >,,4aUnião Europeia e da sua Ordem Jurídica, pelas razões que indicámos supra, n.°.165. '" 636 Sobre a europeização, em geral, dos Direitos estaduais, veja-se adiante, ;'aSecção V deste Capítulo. Concretamente acerca da europeização do Direito çonstitucional dos vários Estados-membros, sobre o que se tem escrito muito, ",,::,veja-se, de modo especial, E. KLEIN, Gedanken zur Europiiisierung des delltschen 6,Si:)'+Yerjassungsreclus, Festschrift K. Stern, pgs. 1.30 I e segs., o importante estudo de ~f:T:''}IÃBERLE, Gemeineuropaisches Verfassungsrecht und "Velfassung" der EG, in :;Y:Schwarze Ced.), Verfassungsrecht und Verfassungsgerichtsbarkeit im Zeichen ';;:},?mopas, Baden-Baden, 1998, pgs_ 11 e segs., que, como o título indica, demonstra '2~:~,existência de um Direito COrlStitucional comum aos Estados-membros, e o nosso :;~!;;;~studo, já citado, Constituição em-apeia e Constituições llacionais. .. ..". , ~ 521 o Direito da União Europeia movimento tem vindo a abarcar áreas de índole política com elevada sensibilidade para a soberania dos Estados, entendida esta nos moldes clássicos, corno é o caso dos domínios que se prendem com a criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça, especialmente, do espaço judiciário europeu. O exemplo mais expressivo do que se acaba de dizer é o da abolição, nas Constituições, da extradição entre os Estados-membros da União, para diversas categorias de crimes, no quadro do antigo terceiro pilar. É nesse âmbito que deve ser interpretado o artigo 33. 0 da Constituição portuguesa, com a redação que lhe deu a revisão de 200 I, especialmente, o seu n. o 5637 • No que toca à europeização do Direito Constitucional Económico dos Estados-membros, levada a cabo, corno se disse, por força de se ter alcançado já a União Económica e Monetária, e cujos instrumentos têm sido, antes de mais, as sucessivas revisões dos Tratados desde o Tratado de Maastricht, mas também atos de Direito derivado, talvez um exercício de exegese jurídica nos permitisse facilmente concluir que, nas Constituições de muitos Estados-membros, toda ou quase toda a disciplina do respetivo sistema económico se encontra absorvida pelo Direito da União. É o caso, em Portugal, da Parte II da Constituição, dedicada à Económica". Ela deve ser considerada abrogada, se não no pelo menos em grande parte, pelo Direito da União. É urna investigação que ainda está por fazer. Pelo que nos toca, um estudo aprofundado dessa matéria não cabe, contudo, neste livro6J8 . 637 Ver CANDT1LHO/MoREIRA, Constituição da República Anotada, voL 1,4.' ed., Coimbra, 2007, pgs. 534-537. 638 Duas das melhores abordagens de toda esta matéria elll;onlra;m-s.,;!, modernamente, na dissertação de DUBOS, pgs. 51 e segs., e no estudo de SIMON, fondements, pgs. 235 e segs. Uma panorâmica geral acerca do modo como Direito Constitucional dos Estados-membros se relaciona com o Direito da encontramo-la no vaI. I das Atas do 17. 0 Congresso F.I.D.E., de 1996, cito no desta Secção. 522 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais 203. O primado do Direito da União e o Direito portnguês I - O estado da questão até à revisão constitucional de 2004 Na primeira revisão da Constituição de 1976, isto é, na revisão de 1982, o legislador constituinte, a pensar na proximidade da adesão de Portugal às Comunidades (que, na realidade, ocorreria em 1986), introduziu no artigo 8. 0 , cuja epígrafe geral era, e continua a 2: ,ser, "Direito Internacional", um novo n. o 3, com o segujnte teor: >'-'As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem interna, desde que tal se encontre expressamente estabelecido nosrespetivos tratados constitutivos"639. Mais tarde, na revisão de 1989, foi retirado desse preceito o '<advérbio "expressamente". • Esse artigo 8. 0 , n. o 3, continua em vigor, e o artigo 8.°, em globo, não sofreu qualquer modificação na matéria até 2004. Deixemos para mais tarde a modificação havida em 2004. No 'que toca à situação da nossa Constituição existente até então, man-temos sobre o assunto tudo o que escrevemos em 1993, no nosso anual de Direito Internacional Público640 , e que continua a exprimir a nossa opinião sobre a matéria. . Desde logo, o primado do Direito da União mereceria ser '-6jeto de urna "cláusula europeia", ou "cláusula de integração", utónoma, isto é, urna cláusula geral, ou de limitação de soberania, W-de autorização de delegação (ou transferência) de poderes sobeos na União Europeia, ou, ao menos, em abstrato, em entidades jJraestaduais64l • É o que, acertadamente, fazem hoje as Constitui._~sde quase todos os Estados-membros da União Europeia. De Sobre o regime do primado depois da revisão constitucional de 1982, ver A adesão de Portugal às Comunidades Europeias, Lisboa, pgs. 43 e segs. 640 Da autoria de GONÇALVES PEREIRA e QUADROS (cit. neste livro entre as gerais), pgs. 132 e segs. MI Defendemo-lo mais recentemente nos nossos estudos Der Einfluss e A 6J9 VI1DRlNO, 523 o Direito da União Europeia As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais facto, são hoje cláusulas desse tipo, nomeadamente, o artigo 23.°, da Constituição alemã (que tem de ser interpretado em conjugação com o artigo 24. 0, n.o I); o artigo 34.° (era o artigo 25.° bis até à revisão constitucional de 1994) da Constituição belga; o artigo 20.°, n.o I, da Constituição da Dinamarca; o artigo 93.° da Constituição espanhola; o artigo 88.°-2, da Constituição francesa, na redação que lhe deu a revisão constitucional de 1992, antes da ratificação pela França do Tratado de Maastricht; o artigo 28. 0, n.o, 2 e 3, da Constituição grega; o artigo 29.4 da Constituição da Irlanda, dividido em várias subsecções, de entre as quais merece destaque a subsecção 5. a , que exclui expressamente a fiscalização da constitucionalidade de todas as fontes do Direito da União, bem como de todas as medidas nacionais necessárias à sua aplicação na ordem interna; o artigo 49.° bis da Constituição do Luxemburgo; o artigo 92.° da Constituição dos Países Baixos, com a particularidade de o artigo 91.°, n.O 3, permitir a conclusão de acordos internacionais contrários à Constituição, desde que aprovados por uma maioria de 2/3 no Parlamento, a mesma maioria necessária à revisão da Constituição, e o artigo 94. ° permitir a não aplicação de normas de Direito interno que contrariem tratados ou atos unilaterais de organizações internacionais; a secção 2, n.O 1, do European Communities Act, do Reino Unido; o capítulo 10, artigo 5.°, par. I, da Constituição da Suécia. Pelo mesmo caminho resolveram ir os Estados de Leste que aderiram em 2004 e 2007 à União: veja-se, a título de exemplo, o art. 2. 0 _A, n.O I, da Constituição da Hungria, e os n.O' 1 e 2 da Lei Constitucional de 18 de dezembro de 2002, da Estónia, que veio completar a Constituição de 28 de junho do mesmo ano64'. O legislador constituinte português manteve a sua decisão de não incluir na Constituição qualquer cláusula geral desse tipo, que resolveria o problema global da legitimação constitucional da participação de Portugal na União Europeia. Ao contrário, foi conservando nela, teimosamente, o artigo 8.°, D.o 3, que, como dissemos, foi incluído na revisão de 1982, com a pequena modificação que sofreu na revisão de 1989. Nunca vimos razões para alterar quanto a esse preceito as críticas que lhe dirigimos em 1993 64" e que se resumiam, sobretudo, ao seguinte: aquele preceito não substituía uma cláusula geral de qualquer dos dois tipos que vimos terem sido adotados pelas Constituições doutros Estados-membros; e ele parecia querer regular mais o aspeto concreto da aplicabilidade direta do que o primado, mas, se se entendesse que também disciplinava o primado, a interpretação conjugada desse preceito com o n.o 2 do mesmo artigo 8.° quebrava a unidade da Ordem Jurídica da União, ao definir um regime diferente para, por um lado, a receção dos Tratados da União, e, por outro lado, o primado do Direito da União derivado, ou parte dele64'. E, como já disséramos em 1993645 , nada se alterou, na matéria, com a inclusão, pela revisão constitucional de 1992, de um novo n. ° 6 no artigo 7.°, que sofreu uma pequena alteração na revisão de 2001. Só a parte final do preceito ["Portugal pode (...) convencionar o exercício em comum ou em cooperação dos poderes necessários à construção da união europeia"]646 poderia, eventualmente, levar a que fosse interpretada como tendo relevância para o efeito de conferir base constitucional às limitações de soberania decorrentes da adesão à União e, concretamente, ao primado. Mas não. Ao que dissemos em 1993 sobre isso, acrescentaremos agora o seguinte: se, pelo citado trecho do artigo 7. 0, n. ° 6, o legislador constituinte quis dar a entender que da delegação de poderes soberanos dos Estados na União nascia uma nova "soberania comum", ou "soberania comunitária", ou "soberania da União", ou, até, apenas um poder político da União, resultante da soma ou da mistura dos poderes 642 Veja-se este estudo de Direito Constitucional Comparado feito de modo exaustivo e atualizado em RIDEAU, pgs. 822 e segs. e 911 e segs., e em /RONSE, pgs. 334 e segs. Ver também BLANCHARD, pgs. 69 e segs. 524 Manual, cit., pgs. 130 e segs. Dispõe o referido artigo 8.°, 0.° 2: "As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna npós a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português". 645 Loc. cito 646 O itálico é nosso. 643 644 525 o Direito da União Europeia soberanos delegados pelos Estados na União, e que, depois, os Estados repartiam entre si essa soberania ou esse poder político, nesse caso, aquele preceito incorria, no plano jurídico, num grave erro, que demonstrava desconhecimento dos princípios de base que presidem ao nascimento do poder político da União. De facto, este é um poder autónomo em relação ao poder dos Estados-membros e nasce, como mostram saber as cláusulas gerais constantes das Constituições de muitos outros Estados-membros da União, da delegação (ou transferência), por estes, dos seus poderes soberanos na União, não do exercício em comum" desses poderes (do exercício "em cooperação" não vale sequer a pena falar porque, quer do teor do artigo, quer dos trabalhos preparatórios da revisão de 2001, não se percebe o que se quis dizer com essa expressão). Como afirmámos, essa conceção do "exercício em comum" mostra não perceber como nasceu e como se desenvolveu o processo jurídico da integração europeia e, concretamente, o poder político da União. Só para darmos um exemplo, à face daquela conceção nunca a União teria atribuições exclusivas, porque é impossível havê-Ias num quadro do exercício em comum, ou em conjunto, de poderes soberanos pela União e pelos Estados. Não é por acaso, aliás, que só a Constituição francesa tem uma disposição análoga à do artigo 7.°, n.O 6, da Constituição portuguesa (repetimos que, por ora, estamos a referirmo-nos à Constituição ainda antes da revisão de 2004). Tudo leva até a crer que foi a Constituição francesa que influenciou a inclusão do artigo 7.°, n. ° 6, na Constituição portuguesa. De facto, no atual Título XV, intitulado "Comunidades Europeias e União Europeia", introduzido na Constituição francesa na revisão de 1992 como Título XIV (uo mesmo ano, portanto, em que o legislador constituinte português incluiu o n.O 6 no artigo 7.°), o artigo 88.°-1 daquela Constituição dispõe que "A República francesa participa nas Comunidades Europeias e União Europeia, constituídas por Estados que escolheram livremente, por força dos tratados que as criaram, exercer em comum alguns dos seus poderes" (itálico nosso). Mas, para se ver que o I legislador constituinte francês não ficou contente com essa fórmula, como modo de resolver o problema da participação da França na H 526 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais União, logo a seguir, o arte 88.°-2, acrescenta o seguinte: "Sob reserva da reciprocidade e de harmonia com as modalidades previstas pelo Tratado da União Europeia assinado em 7 de fevereiro de 1992, a França consente na transferência dos poderes necessários ao estabelecimento da União Económica e Monetária europeia" (itálico nosso). Isto quer dizer que, embora o artigo 88.°-2 da Constituição francesa tenha um âmbito de aplicação mais restrito do que as cláusulas análogas de limitação de soberania ou de delegação de poderes soberanos constantes das Constituições de alguns outros Estados-membros, aquela Constituição reconheceu que a cláusula do "exerCício em comum", constante do artigo 88. 0 -1, não era adequada, só si, para resolver o problema da relação entre o Direito nacional e o Direito da União e, por isso, acrescentou a esse artigo 88.°-1 o artigo 88. °_2647 • Mantemos, pois, a sugestão que vimos fazendo desde 1993 e " que já antes transmitíramos à Assembleia da República quando ela nos quis ouvir em sede de Comissão Eventual de Revisão Constitucional'48, de a Constituição portuguesa incluir uma cláusula especí'fica que acolha o primado do Direito da União sobre o Direito português em conformidade com a jurisprudência do TJ e dos tribunàis constitucionais doutros Estados-membros, ou seja, que consagre o primado do Direito da União com a ressalva da maior proteção pelo Direito nacional dos direitos fundamentàis ou doutros funda'mentos do Estado de Direito democrático. Mas vamos agora tentar . simplificar ainda mais e, com isso, melhorar a redação que então ,_,propusemos para essa cláusula, nos termos seguintes: a) seriam retirados, do artigo 7.° da Constituição, o seu n.O 6, e, do artigo 8.°, o seu 0. 0 3; b) seria incluído um novo artigo após o atual 8.°, com o n.o 8. 0 _A, que teria a seguinte redação: 647 64& Assim, lACQUÉ, pgs. 547 e segs., e LOUIS/RoNSE, pgs. 338 e segs. Ver GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 138-139 e 147. 527 o Direito da União Europeia Artigo 8. 0 _A União Enropeia 1. O Estado Português consente nas limitações de soberania decorrentes da sua livre adesão e participação na União Europeia. 2. O Direito da União prevalece sobre o Direito interno nos termos definidos por aquele, desde que daí não resulte ofensa aos direitos fundamentais ou aos fundamentos do regime democrático e do Estado de D.ireito. Note-se que a referência às condições de reciprocidade, ao princípio da subsidiariedade, à coesão económica e social e ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que atualmente constam do artigo 7.°, n. ° 6, nos parece desnecessária, porque a primeira resulta do próprio mecanismo da integração, e a subsidiariedade, a coesão económica e social e o espaço de liberdade são impostos pelo TUE. E, para mostrarmos que não estamos a pedir demais, diremos que, por exemplo, a Suécia, um dos Estados europeus que tradicionalmente se têm revelado mais ciosos da sua soberania, quando aderiu à União Europeia, em 1995, incluiu na sua Constituição o já citado Capítulo 10, artigo 5.°, par. I, que vai muito mais longe do que a redação que propomos. Dispõe, com efeito, aquele artigo (com itálIco nosso): "O Parlamento pode transferir para a União Europeia o seu poder de decisão na medida em que isso não afete os princípIOS da ConslitUlção. Essa transferência pressupõe que a proteção dos direitos e das liberdades no campo da cooperação que é abrangida por essa transferência corresponde àquela que é assegurada por esta Constituição e pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem" (itálico nosso)649 Sublinhe-se que, na prática, este problema não tem tido quase nenhuma relevância. De facto, assistimos ao paradoxo de, tendo Portugal, entre todos os Estados-membros da União, um mau sistema constitucional de receção do Direito da União'50, tanto a Administração Pública, como os tribunais, o aplicarem com generosidade As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais (no caso dos tribunais, com alguns mal-entendidos que serão adiante referidos), como o Tribunal Constitucional não ter tido até hoje qualquer oportunidade de se pronunciar, de modo expresso, sobre as relações do Direito português, concretamente, do Direito Constitucional, com o Direito da União. Quanto ao Tribunal Constitucional, note-se que, se ele até agora não se pronunciou de modo expresso sobre essa matéria, contudo já proferiu um Acórdão que tem de ser interpretado como partindo implicitamente da aceitação do primado supraconstitucional do Direito da União e, ainda por cima, num domínio altamente sensível para a Constituição. Referimo-nos ao Acórdão n. ° 184/89651 , onde aquele Tribunal admitiu uma genérica competência regulamentar do Governo, com fundamento direto em regulamentos comunitários, em matéria que, pela Constituição, era da competência legislativa reservada da Assembleia da República. O Tribunal, dessa forma, acolheu o princípio da prevalência de todo o Direito da União sobre todo o Direito Português, porque aceitou o primado de um regulamento comunitário (ato de Direito derivado) sobre a Constituição portuguesa'52. II - O estado da questão após a revisão constitucional de 2004 A revisão constitucional de 2004, elaborada na fase em que se calninlha'va para a aprovação do Projeto de Tratado Constitucional, aoare:cia como uma nova, e boa, oportunidade para finalmente se ultrapassarem as insuficiências e deficiências do texto constitucional português sobre a matéria. Mas adiante-se desde já que só parcialmente esse objetivo foi alcançado. Vejamos. Ac. 1-2-89, Prec. n. o 201/86, DR, I Série, de 9-3-89. Veja-se o ponto 4 e, em especial, o ponto 4.1. 652 Ver PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, Coimbra, 2003, 743-746. 651 649 650 I,nterpretaçâo idêntica deste preceito faz BLANCHARD, pg. 77. E essa também a opinião, em obras de língua francesa, de BLANCHARD, pg. 77, e LOUIS/RoNSE, pgs. 382. 528 529 o Direito da União Europeia Ao artigo 8.° da Constituição foi acrescentado um novo n. ° 4, que dispõe o seguinte; 4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos tennos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Este preceito pretende substituir, quanto à União, o antigo artigo 8.°, n.O 3. E substitui-o com vantagem. De facto, passam as disposições dos Tratados e o Direito derivado a possuir um regime uniforme de legitimação constitucional na sua aplicação na ordem interna portuguesa, salvo o que se dirá adiante; passa a haver uma referência à União Europeia, o que o artigo 8.°, n.O 3, não faz; a parte final daquele número contém uma ressalva expressa dos "princípios fundamentais do Estado de Direito democrático", o que nos faz lembrar a ressalva colocada pelo caso Wachauf e pela jurisprudência constitucional alemã e italiana à teoria do primado. Mas o preceito manteve algumas deficiências do passado. Assim, do Direito derivado continuam excluídos os "atos" (de entre os quais se destacam as decisões, do artigo 249.° CE), dado que o artigo 8. 0, n.o 4, só se refere às "normas"; e continua o preceito a preocupar-se com a "aplicação" na ordem interna, quando o que se esperava dele é que dispusesse sobre a questão prévia do primado ou, ainda melhor, que contivesse uma cláusula geral de base, de aceitação das limitações de soberania decorrentes da participação de Portugal na União. A segunda alteração trazida pela revisão constitucional consistiu na nova redação dada ao artigo 7. 0, n. ° 6, que passou a estabelecer o seguinte; 6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial e de um espaço de liberdade, segurança e justiça, bem como a definição e execução de uma política externa, de 530 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da união europeia. Quanto a este preceito, mantemos todas as críticas que dirigimos à redação que ele tinha antes da revisão. Desde logo, a intenção de, a título programático, se repetirem no preceito alguns princípios fundamentais da Ordem Jurídica da União (a Democracia, a subsidiariedade, a coesão), ou alguns dos . objetivos expressamente constantes dos Tratados (o espaço de liberdade, segurança e justiça e a política comum de segurança e de defesa), é totalmente desnecessária. A adesão àqueles princípios e objetivos já resulta do artigo 8. 0, n. ° 4, e melhor resultaria de uma ; cláusula geral, do género da que propusemos. Ao contrário, ficámos com um preceito excessivamente longo, pesado e explicativo, o que Jnão é aquilo que se espera da Constituição. Por outro lado, o preceito conserva o erro da referência ao :;;"'exercício em comum", ou "em cooperação", de poderes, que já (criticámos atrás. Além disso, a revisão mantém a referência à "soberania indivisível", no artigo 3.°, fi.o 1, que se tornou agora ainda mais inaceitá'vel em face da nova redação do artigo 8.°, n." 4, para além de ela ; não refletir a inserção de Portugal numa Comunidade Internacional em acelerado processo de globalização. ri' A nosso ver, a revisão devia ter sido mais ambiciosa na maté'ria, desde logo, no plano do rigor jurídico, e devia ter procedido às :,.seguintes alterações; a) eliminação da referência à soberania "indivisível", no artigo 3.°, 0.° 1; b) eliminação do artigo 8.°, n." 3, que, agora, ainda por cima, ficou sem objeto, dado que as normas de aplicação imediata que não sejam do Direito da União devem considerar-se abrangidas pelos artigos 8.°, n."' 1 e 2, ou por preceitos esparsos da Constituição, como é o caso do artigo 7. 0 ,n.07; 531 o Direito da União Europeia c) em vez do artigo 8.', n.' 4, devia a Constituição ter passado a incluir (em artigo autónomo, como atrás propusemos, e como faz hoje a generalidade das Constituições de outros Estados-membros, para se dar dignidade à União Europeia através de uma "cláusula europeia") uma simples cláusula geral de aceitação de limitações de soberania decorrentes da participação de Portugal na União Europeia. Essa cláusula, repete-se, constituiria um artigo autónomo (seria o artigo 8.'-A) e teria a redação que atrás sugerimos para ela; d) conformação do sistema de fiscalização de constitucionali, dade do Direito da União, originário e derivado, com a teoria do primado, tal como ela decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Seria recomendável que essa conformação constasse, de modo expresso, dos artigos 277.' seguintes, como fazem algumas Constituições de outros Estados-membros da União, embora se possa dizer que a inclusão na Constituição de uma cláusula geral, do tipo propusemos, resolveria o problema, e se possa tarnhém dizer, embora menos propriamente, que o novo artigo 8.' n. ° 4, obriga o Tribunal Constitucional a aceitar a teoria primado nos termos definidos pelo Direito da União. Note-se que, em bom rigor, da redação que acima pfl~pl1se:m()s para esse artigo 8.'-A, podia-se agora eliminar o n.' 2, dado que nesse número ele viria a dispor passou a constar da U';CHifa'iau. n.o 17 anexa ao Tratado de Lisboa, como já dissemos e melhor caremos no número seguinte. Todavia, por causa das dúvidas subsistem em Portugal, em certos meios políticos e ci,;ntífi(:os, sobre o primado do Direito da União, entendemos ser conv,onienl:e''1 manter o n.' 2 na redação que sugerimos para o artigo 8. 0 _A. Quanto ao artigo 7.', n.' 6, embora - insistimos - ele não necessário, aceitamos que ele englobe uma norma prograrnát:icaL, mas só se ele não repetir o que já é acolhido pelo artigo 8.'-A, e a condição de ele ser sucinto e claro e dizer apenas o esserlci:11 Nesse caso, ele teria a seguinte redação: 532 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais Artigo 7.' ( ... ) 6. Portugal contribuirá, no respeito pelos princípios da Democracia, do Estado de Direito, da subsidiariedade, da solidariedade e da coesão económica e social, para a construção e o aprofundamento da União Europeia. ( ... ) Esperemos que uma proxlma reVlsao constitucional vá na matéria mais longe do que a levada a cabo em 2004653 • .III - Conclusão A aceitação expressa pela Constituição portuguesa do primado supraconstitucional do Direito da União reforçará a coerência illtema do próprio texto constitucional. De facto, aquela Constituição, logo em 1976, adotou uma ampla abertura afontes supraconstitucionais, traduzida, sobretudo, :"na "abertura internacional da ordem constitucionaf', ou na "amiztl(ie ou harmonia, da Constituição com o Direito lnternacionaf' ("Volkerrechtsfreundlichkeit der Verfassung"). Nesse aspeto, e çomo no-lo revela O Direito Constitucional Comparado, ela foi extremamente generosa, exprimindo essa abertura em nada menos ><\0 que três preceitos: os artigos 8.°, n.' I (sobretudo este), 16.', i.n.' I, e 16.', n.O 2. É assim que a doutrina nacional e estrangeira illterpreta aqueles preceitos da nossa Constituição. Nós próprio qebruçámo-nos sobre essa matéria numa monografia, para a qual .remetemos o leitor654 • 653 Acerca do primado do Direito da União sobre o Direito português já após .ar'evisão constitucional de 2004, ver duas posições de carácter geral, aliás não ;c(>incidenre; entre si, de MIRANDA/MEDEIROS, Constituição Portuguesa anotada, 2.:1. 00., Coimbra, 2010, anotações XVII e segs. ao artigo 8.°, e CANOTILHO/Y. 'h~dOllEIRA, cit., anotações XII e segs. ao mesmo altigo. A protecção da propriedade privada, já citado, pgs. 535-552 e 564 e mas, especialmente, 539. Ver nessa obra os citados preceitos da Constituição 654 533 o Direito da União Europeia Ainda falta, porém, a Constituição, num movimento análogo, dar guarida à "amizade da Constituição para com o Direito da União" ("Europarechtsfreundlichkeit der Verfassung", para alguma doutrina alemã'55 e para recente jurisprudência do Tribunal Constitucional federal alemão'''). Ela obriga o legislador constituinte a criar, de forma simples e facilmente acessível para os teóricos e práticos do Direito, um sistema que na Constituição acolha o primado tal como a jurisprudência da União e dos tribunais constitucionais estrangeiros, particularmente o alemão e o italiano, o fizeram. Todavia, não faz dúvida de que, entretanto, por força dos Tratados e da jurisprudência do TJ, que foi atrás citada, e que hoje é seguida pela prática dos diversos Estados-membros, o Estado Português está obrigado, pelo simples facto da sua adesão à União, a dar efetividade ao Direito da União na sua ordem interna, isto é, a aplicar o Direito da União na Ordem Jurídica portuguesa, nos termos consolidados pela teoria do primado. Essa obrigação decorre do dever de cooperação leal para com a União, que está consagrado no artigo 4.°, n.o 3, par. 2, UE, e desdobra-se numa série de obrigações menores. Assim, o Estado Português deve: rever o sistema de fiscalização de constitucionalidade definido na Constituição de tal modo que ele não constitua empecilho à aplicação do Direito da União na ordem interna para além do permitido pela teoria do primado, nos termos em que o TJ a veio a construir, com a ajuda de tribunais constitucionais de Estados-membros; e revogar todos os atos nacionais contrários a atos comunitários posteriores, bem como não produzir novos atos nacionais contrários a atos comunitários anteriores devendo, enquanto isso não for feito, não aplicar Direito intern~ desconforme com o Direito da União. portuguesa interpretados, nesse mesmo sentido, nas obras aí referidas, a pgs. 539 e 544 e segs., de DELMAS-MARTY e SOMMERMANN. 655 Veja se, por último, BADURA, op. cit., pg. 460, e STREINZ, Die Volkerund Europarechtsfreundlichkeit des Grundgesetzes, Festschrift Giegerich, 2010, pgs. 327 e segs. 656 Ver o Acórdão Lisboa, cit., ponto 4. 534 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais Especificamente quanto aos tribunais nacionais, estes são tribunais comuns do Direito da União. Ou seja, o juiz nacional, é juiz da União"'. Esta comunitarização do juiz nacional e da sua função começou, aliás, a ser levada a cabo exatamente pela teoria do primado"'. Como tal, o juiz nacional (portanto, também o juiz português) está obrigado a aplicar o Direito da União (inclusivamente, a impor a conformidade do Direito Português com o Direito da União) segundo os critérios próprios do Direito da União. Portanto, os tribunais portugueses terão de julgar inaplicáveis as normas internas que conflituem com normas da União. Já era essa a nossa posição em 1993'59 e, mais modernamente, tem sido essa a posição também de CANOTlLH0660-661. O desrespeito pelo Estado Português das obrigações que lhe advêm da teoria do primado do Direito da União fá-lo incorrer em responsabilidade de Direito da Uniã0 662' 663 • A posição de GOMES CANOTILHO sobre esta matéria merece referência especial neste lugar devido à sua singularidade na doutrina portuguesa de Direito Constitucional. Aquele Professor qualifica o Direito da União Europeia de "Direito Comunitário Supranacional"664. Encontra na "confonnação institucional da União Europeia" uma perspetiva "federaVer infra, n.o 262. Assim, e extraindo essa doutrina já do caso Costa/ENEL, sobretudo, SIMON, Lesfondements, pgs. 247-248, e BOULOUIS, em anotação ao caso Simmenthal, cit., AJDA 1978, pgs. 326 e segs. Veja-se também o nosso estudo A nova dimensão do Direito Administrativo, cit., sobretudo, pgs. 28 e segs. 659 GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 139-143. "" Pg. 826-828. 661 Ver também o que sobre esta matéria escrevem A. ARAÚJO/I. P. CAROOSO DA COSTAIM. NOGUEIRA DE BRITO no seu Relatório sobre As relações entre os Tri657 658 bunais Constitucionais e outras jurisdições nacionais, incluindo a interferência, nesta matéria, da acção das jurisdições europeias, ROA 2002, pgs. 907 e segs. 662 Ver infra, n.o 268. Veja-se também QUADROS/MARTINS, op. cit., pgs. 185 e segs. e 232-234. 663 As questões de Direito Constitucional Comparado estudadas neste número podem ser vistas, designadamente, no vol. I referente ao 17. 0 Congresso da F.I.D.E., de 1996, e, mais recentemente, em RIDEAU, JACQUÉ e LOUlS/RoNSE, loco cit.. 664 Pg. 822. 535 o Direito da União Europeia lista ancorada numa Constituição europeia". Donde, a Constituição portuguesa ter deixado de ser uma "Constituição soberana" para se transmutar numa "Constituição regional"66s. E afirma o primado do Direito da União sobre as normas internas dos Estados-membros, inclusive sobre as normas constitucionais, com a sanção, para estas, corno dissemos acima, no domínio da eficácia e não no da validade666 . No essencial, concordamos com esta posição do Autor. Onde temos dificuldade em o acompanhar é na sua afinnação da existência de um "proce. dimento constituinte evolutivo" ou ''processo constituinte coletivo europeu"661. Pelas razões que já atrás expusemos, entendemos que é cedo para, no plano jurídico, se poder falar em poder constituinte pró. prio da União. 204. O primado depois do Tratado de Lisboa o Tratado Constitucional Europeu resolveu tirar todas as dúvidas sobre o primado, acolhendo-o de forma expressa em regra escrita. Dispunha, com efeito, o artigo 1_6.° daqnele Tratado, que "A Constituição e o direito adotado pelas instituições da União, no exercício das competências que lhe são atribuídas, primam sobre O direito dos Estados-membros". E depois esclarecia a Declaração n.O 1 anexa àquele Tratado: "A Conferência (entenda-se: a Conferência Intergovernamental) constata que O artigo 1_6.° reflete a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e do Tribunal de Primeira Instância" (itálico nosso). Note-se que, apesar de, nos artigos 1-33.° a 1-37.° (correspondentes aos atuais artigos 289.° a 291.° TFUE), classificar os atos de Direito derivado, o Tratado não distinguia, naquele preceito transcrito, entre o Direito da União: ou seja, todo o Direito da União prevalecia, portanto, sobre todo o Direito dos Estados-membros. Por conseguinte, aquele preceito - aliás, como já se disse, aprovado de Pg.207. 666 CANOTILHO/MoREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, ~ vaI. II, cit., anotação X ao artigo 204.°, e CANOTILHO, Direito Constitucional, pgs. 825-826. 661 Pg. 826. 665 536 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais modo pacífico pela Convenção sobre o Futuro da Europa - codificava a jurisprudência do TJ na matéria, isto é, o primado era definido no Tratado nos termos em que o TJ o foi construindo ao longo dos tempos, com o apoio de tribunais constitucionais dos Estados-membros. Ou seja, e para se ser completamente claro: aquele Tratado nada inovava em matéria de primado do Direito da União, ele limitava-se a codificar a jurisprudência já existente nesse domínio. A omissão da referência naquela Declaração aos tribunais constitucionais nacionais não devia ser entendida como querendo significar que o Tratado se esquecera deles enquanto complemento da jurisprudência da União. O Tratado de Lisboa adotou quanto ao primado uma orientação diferente, do ponto de vista formal, da do Tratado Constitucional. Por exigência de alguns Estados, a referência ao primado desaparecen do texto dos Tratados. Em boa verdade, preocupava esses Estados o facto de o artigo 1-6.° do Tratado Constitucional ter a mesma redação do artigo 24.° da Lei Fundamental de Bona, o que, entendiam eles, parecia dar ao primado do Direito da União um carácter federal. Por isso, O artigo 1_6.° do Tratado Constitucional não foi mantido nos Tratados UE ou TFUE. Mas ficou anexo à Ata Final da CIG de 2007 e, portanto, ao Tratado de Lisboa, a Declaração n.o 17 sobre o primado, que reza o seguinte: A Conferência km.b..rn que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência. Além disso, a Conferência decidiu anexar à presente Ata Final parecer do Serviço Jurídico do Conselho sobre o primado do direito comunitário coustante do documento 11197/07 (JUR 260), cujo texto se transcreve na sua versão oficial em língua portuguesa: ° «Parecer do Serviço Jurídico do Conselho de 22 de Junho de 2007 Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o primado do direito comunitário é um princípio fundamental desse mesmo direito. 537 o Direito da União Europeia Segundo o Tribunal, este princípio é inerente à natureza espec(fica da Comunidade Europeia. Quando foi proferido o primeiro ac6rdão desta jurisprudência constante (ac6rdão de 15 de Julho de 1964 no processo 6/64, Costa contra ENEDIJ, o Tratado não fazia referência ao primado. Assim continua a ser atualmente. Q facto de o princípio do primado não ser inscrito no futuro Tratado em nada Dre;utJica a existencia do princípio nem o atual htri'iprudência do Tribunal de Justiça». (lJ "Resulta (...) que ao direito emergente do Tratado, emanado de um.afollte aut6noma, em virtude da sua natureza originária específica. não node ser opmto em iuíro um texto interno qualquer que seia sem que perca a sua natureza comunitária e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comum·dade." (sublinhados nossos) Ou seja, o texto desta Declaração pretende ser a soma do artigo r-6. ° do Tratado Constitucional e da Declaração n. ° I anexa àquele Tratado, completada pelo transcrito Parecer do Serviço Jurídico do Conselho, que pormenoriza o texto do corpo da Declaração e que esta incorpora nela. Portanto, a Declaração n.o 17 mantém, na sua substância, o conteúdo do artigo 1-6. o do Tratado Constitucional e da Declaração n. ° 1 anexa àquele Tratado. O problema que ela suscita é de natureza formal. De facto, a partir do momento em que a referência ao primado saiu do texto do Tratado para uma Declaração e esta não faz, plano jurídico, parte do Tratado (o artigo 51.° UE dispõe que só os Protocolos fazem parte integrante do Tratado e, das sessenta e Declarações anexas à Ata Final da CrG de 2007, só aquela que tém a Carta de Direitos Fundamentais tem o mesmo valor que Tratado, por força do artigo 6.°, n. ° I, UE), põe-se o problema saber qual é o valor jurídico da Declaração n. ° 17 e, portanto, qual a força jurídica que o Tratado de Lisboa quis dar à consagração primado do Direito da União. Embora não faça parte do Tratado, a Declaração n. ° 17 é texto jurídico e não apenas uma declaração política. Foi apro1iaola por todos os Estados-membros na CrG. Nenhum deles m,milt"esltou sequer qualquer divergência interpretativa quanto ao seu conteúd(J,.;, 538 As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais como aconteceu, por exemplo, com as Declarações n.O' 53, 61 e 62, subscritas por alguns Estados quanto à Carta. Pelo contrário, os Estados acrescentaram à Declaração o Parecer do Serviço Jurídico do Conselho que confere sólida fundamentação à Declaração, numa situação similar à das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados enuncia, no seu artigo 31.°, uma regra geral de interpretação dos Tratados. Diz ela: Artigo 31 Regra geral de interpretação 1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido comum atIibuível aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim. 2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto com~ preende, além do texto, preâmbulo e anexos inclusos: o) qualquer acordo que tenha relação com o tratado e que se celebrou entre todas as partes na altura da conclusão do tratado; b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes na ocasião da conclusão do tratado e aceite pelas outras partes como instrumento relacionado com o tratado. ( ... ) Deste preceito tem de se extrair, com relevância para a questão que está aqui em apreço, que qualquer tratado tem de ser interpre'tado de boa-fé, levando-se em conta, para o efeito, entre o mais, o seu contexto, e que esse contexto inclui qualquer acordo ou qualquer instrumento celebrado pelas partes no momento da conclusão . do tratado, que tenha relação com este, e que, como tal, haja sido aceite pelas partes. Ora, a Declaração n.o 17 sobre o primado está, obviamente, relacionada com o objeto dos Tratados que regem a União Europeia. .Repetimos que o primado constitui um requisito imposto pela essênida do Direito da União. Mas, sobretudo, acontece que a referida Declaração não cria llada de novo para o Direito da União: ela começa por dizer que a 539 o Direito da União Europeia Conferência "lembra" o que já existe na jurisprudência do TJUE, isto é, ela limita-se a codificar Direito já formado por força dessa jurisprudência. Depois, o Parecer do Serviço Jurídico do Conselho desenvolve e reforça esse argumento e, no texto que sublinhámos, reconhece força obrigatória ao princípio do primado. De tudo isto há que concluir que, em nossa opinião, resulta dessa Declaração que foi intenção dos Estados-membros dar caráter obrigatório ao princípio do primado nos Tratados e que eles reconhecem que nesta matéria os Tratados não inovam porque, repetimos,limitam-se a codificar ajurisprudênciajá afirmada e consolidada pelo TJUE. Portanto, do Tratado resulta, nomeadamente, que o primado do Direito da União cederá o passo à norma nacional sempre que esta garanta melhor os direitos fundamentais e os demais fundamentos do regime democrático e do Estado de Direito. Isso resulta da interpretação conjugada da citada Declaração n.o 17 com a cláusula horizontal contida no artigo 53. o da Carta (segundo o qual os direitos fundamentais reconhecidos pelas Constituições dos Estados- " -membros nunca poderão ser restringidos por nenhuma disposição" sobre direitos fundamentais constante da Carta) e com o artigo 2.° do Tratado UE, que enuncia os "valores" da União. Com isto t