Uploaded by Artur Gaspar

565343818-Direito-Da-Uniao-Europeia-Fausto-de-Quadros-3ª-Edicao-2013

advertisement
FAUSTO DE QUADROS
PROFESSOR CATEDRÁTICO DA FACULDADE DE DlREnU DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO
DA UNIÃO EUROPEIA
3.' edição
íJ1X
ALMEDINA
2013
DUPLICADO
-------------------r
À memória de Ininha Mãe
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
r,
AUTOR
FAUSTO DE QUADROS
EDITOR
EDIÇÕES ALMEDINA, SA
Rua Fernandes Tomás, n. 76, 78 e 79
3000-167 Coimbra
Tel: 239 851 904· Fax: 239 851 901
www.almedina.nel·editora@almedina.net
U
'
DES1GN DE CAPA
rBA
PRE_IMPRESSÃO
EDIÇÕES ALMEDINA. SA
IMPRESSÃO I ACABAMENTO
NORPRINT
Fevereiro de 2013
DEPÓSITO LEGAL
354973{l3
Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação
são da exclusiva responsabilidade do seu Autor.
Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer
processo, sem prévia autorização escrita do Editor e do Autor, é ilícita
e passível de procedimento judicinl contra o infractor.
Biblioteca Nacional de pOI·tllgal- Catalogação na Publicação
QUADROS, Fausto de, 1944Direito da União Europeia: Direito Constitucional e
Administrativo da União Europeia. - 3a edição
ISBN 978-97240-5071-3
CDU 34(4-67UE)
I
I
I
I
l,
I
Às minhas Netas
NOTA PRÉVIA À TERCEIRA EDIÇÃO
Antes de mais, impõe-se um esclarecimento. Di:::.emos que esta
é a terceira edição deste livro porque, de facto, ele já teve duas
edições. A primeira, consistiu no livro com a mesma epígrafe deste,
editado em Portugal, em 2004, pela editora Almedina. A segunda,
foi o livro intitulado Droitde J'Union européenne - Droit constitu-
tionnel et administratif de I'Union européenne, editado em Bruxelas, em 2008, pela editora Bruylant. Não consistiu numa tradução
da edição em língua portuguesa, porque levou em conta todas as
modificações introduzidas Oli projetadas para a União Europeia
entre 2004 e 2008.
Por tudo isto, dizemos que esta é a terceira edição do livro.
As duas edições anteriores tiveram muito bom acolhimento da
parte dos estudiosos do Direito da União.
Quanto à primeira edição, não obstante o elevado número de
exemplares da primeira impressão, ela teve de ser reimpressa
várias vezes para dar resposta à procura do livro em Portugal e no
estrangeiro.
Particular realce merece o facto de o livro ter despertado
grande interesse no estrangeiro, como o prova, desde logo, a circunstância de ele ter merecido recensões e citações da parte da
doutrina de vários Estados, quer Estados-membros da União, quer
outros Estados.
Quanto à segunda edição, ela deu satisfação à procura do
livro um pouco por todos os continentes e tambén-l teve que ser reimpressa.
Na Ordem Jurídica da União Europeia produziram-se importantes alterações desde as edições anteriores. Entre elas merece
destaque, sem dúvida, a entrada em vigor do Tratado de Lisboa.
7
Direito da União Europeia
Mas não se podem subestimar os novos contributos relevantes fornecidos pela doutrina e pela jurisprudência do Direito da União.
Impõe-se, pois, que atualizenlOs o nosso livro. É o que aqui fazemos.
A primeira finalidade do livro continua a ser de ordem didática. Este livro foi escrito a pensar, antes de mais, nos muitos Estudantes e Investigadores que connosco trabalham neste ramo do
Direito, em Portugal e no estrangeiro, dentro ou fora da União
Europeia. Mas quisemos, também desta vez, ir para além de um
simples manual universitário, de modo a que o livro seja útil a todos
aqueles, teóricos e práticos, que pretendam inteirar-se das matérias
cobertas pelo título e peIo subtítulo do livro. Foi esse o objetivo que,
inclusivamente, presidiu tanto ao plano da obra como à definição
do vasto âmbito de matérias que ele cobre.
Desde o infcio, quisemos que o livro abordasse as matérias
mais importantes do sistema jurídico da União Europeia. Nessa
linha de orientação mantivemos, no essencial, o plano das edições
anteriores. O bom acolhimento que elas tiveram deixa em nós a
convicção de que esse plano foi de encontro às necessidades do
ensino e da investigação, tanto ao nível da graduação, como ao da
pós-graduação, assim como deu resposta às inquietações dos teóricos e dos práticos do Direito, incluindo os tribunais. Por isso, conservámos as mesnUls matérias sobre as quais nos debruçámos nas
edições anteriores, com alguns acrescentos e, obviamente, com os
aprofundamentos que a evolução do Direito da União impunha.
Agradecel1lOs todo o contributo que para esta nova edição
resultou da troca de impressões que fomos tendo com Colegas, Amigos, Colaboradores, Assistentes e Estudantes.
Fazemos votos para que este livro continue a ser útil a todos
aqueles que, de algum modo, têm de lidar com este cada vez mais
importante e complexo ramo do Direito.
Colares, 31 de outubro de 2012
8
NOTA PRÉVIA À PRIMEIRA EDIÇÃO
Em 1972, no início da nossa actividade académica, publicámos
as primeiras lições sobre Direito Comunitário, incluídas no nosso
ensino da disciplina de Relações Económicas Internacionais do
4.° ano da Licenciatura em Finanças (hoje, Gestão) do então Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (hoje, Instituto
Superior de Economia e Gestão) da Universidade Técnica de Lisboa
(Relações Económicas Internacionais, edição da Associação de
Estudantes, 1972-73).
Dez anos mais tarde, em 1982-83, editámos os nossos Sumários desenvolvidos de Lições sobre Direito das Comunidades Europeias, elaborados na disciplina de Direito Internacional Público II,
do 5. o ano da menção de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa (edição da Associação Académica, 1983). Tratou-se, aliás, da primeira tentativa de ensino, com
autonomia, de Direito das Comunidades Europeias no plano de
estudos daquela Faculdade.
Nunca aprofundámos ou actualizámos, por via escrita, essas
Lições. E houve duas razões para que tal não acontecesse.
A primeira, foi a de que os nossos Alunos nunca tiveram dificuldade em conhecer o nosso pensamento acerca das matérias fundamentais da disciplina, dado que ele se encontra divulgado por via
monográfica.
Mas a segunda razão é mais importante e explica, por um lado,
a nossa progressiva perda de entusiasmo pelo livro didáctico de tipo
do manual e, por outro lado, o facto de no estrangeiro haver, em
todos os ramos de Direito, inclusive em Direito da União Europeia,
um elevado número de professores universitários que nunca escreveram as suas Lições. É que entretanto constatámos, sem querermos
9
Direito da União Europeia
Nota prévia à primeira edição
discutir aqui as causas desse fenómeno, que um número cada vez
maior de Alunos não se preocupa em estudar, numa disciplina de
Direito, para além da "sebenta" do regente. Ora, não havendo o livro
de tipo do manual, a experiência mostra-nos que o Aluno é obrigado
a criar bons hábitos de investigação pela doutrina que o regente
indica e, dessa forma, acaba por estudar mais da disciplina e de
forma mais diversificada.
Todavia, agora somos levados a mudar de opinião. De facto, o
Direito da União Europeia está a tomar-se cada vez mais complexo.
Estamos numa fase de reordenamento e reelaboração substancial do
sistema jurídico da União Europeia. Essas transformações vieram
pôr em causa a própria designação tradicional dessa disciplina
- "Direito Comunitário" - nos planos de estudos das Faculdades de
Direito. Ora, isso vai tornar cada dia mais difícil (mas, por isso,
também mais aliciante) ensinar-se bem (e estudar-se bem) este ramo
de Direito.
Acontece, porém, que não existe ainda em Portugal uma obra
de carácter geral que abranja todo o conjunto amplo de matérias às
quais este livro se dedica e que, para o efeito, atenda ao estado
actual do progresso do Direito da União Europeia, tomando inclusivamente em conta, para esse fim, a evolução mais recente da doutrina e da jurisprudência. Porque é preciso não nos esquecermos de
que desde o início da última década do século XX assistimos a
profundas alterações na dogmática clássica do sistema jurídico das
antigas Comunidades Europeias, hoje, da União Europeia, entendida esta no seu sentido amplo.
Foram estas razões que nos fizeram publicar agora este livro.
Como não podia deixar de ser, trata-se de um livro com uma função
eminentemente didáctica, embora se não tenha esquecido a utilidade
que ele pode fornecer aos teóricos e práticos do Direito, inclusivamente, ao Legislador, à Administração Pública e aos Tribunais.
Como tal, o livro está concebido para um programa que seja susceptível de ser leccionado em disciplinas tanto da licenciatura como de
níveis de pós-licenciatura, desde logo, na Escola principal onde o
autor ensina, isto é, a Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa.
O tempo dar-nos-á ensejo de alargarmos o elenco das matérias
versadas, sobretudo se a este ramo de Direito for reconhecida, nos
planos de estudos das Faculdades de Direito, a enorme importância
que ele tem na formação do jurista do século XXI.
Neste livro foi levado em conta o Direito da União Europeia
em vigor à data da sua publicação, na base, portanto, da revisão dos
Tratados realizada pelo Tratado de Nice, e tendo-se tido já em consideração o recente alargamento da União. Ou seja, o livro está
plenamente actualizado. Num ou noutro ponto mais importante
levou-se em conta o Projecto de Tratado que estabelece a Constituição Europeia, apesar de, à data da conclusão do livro, ele não ter
ainda sido aprovado pela Conferência Intergovernamental e, portanto, não possuir ainda uma versão definitiva, além de, como é
sabido, o Tratado Constitucional, que daí vai sair, ir levar muito
tempo a entrar em vigor, para além de algumas das suas disposições
serem de aplicação diferida no tempo, como, aliás, já acontece com
o Tratado de Nice.
Dedicamos este livro, de modo especial, a todos aqueles que,
ao longo de muitos anos, em Portugal e no estrangeiro, connosco
colaboraram ou têm vindo a colaborar, no âmbito do ensino deste
ramo de Direito, como Assistentes ou Investigadores, bem como a
todos aqueles que, em Portugal e no estrangeiro (mas, sobretudo, na
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), portugueses, brasileiros, ou doutras nacionalidades, foram nossos Alunos, a diversos
níveis da licenciatura ou de pós-licenciatura, ou de nós receberam
orientação no plano da investigação.
Mas este livro tem também uma outra dedicatória, não menos
sentida. Já na fase da sua composição na editora, fomos surpreendidos pelo brutal desaparecimento de António de Sousa Franco. Nele
admirávamos o Universitário rigoroso e sempre actualizado; nele
tínhamos, há mais de quatro décadas, um bom Amigo. A matéria da
integração europeia era, há muitos anos, um dos temas preferidos no
nosso convívio. Sousa Franco tinha nesse dominio ideias profundas,
claras e objectivas. Recordamo-lo com saudade.
10
II
Lisboa, 31 de Maio de 2004
NOTA PRÉVIA À SEGUNDA EDIÇÃO
AVANT-PROPOS
Ce livre a pour base I'ouvrage de l'auteur intitulé Direito da
União Europeia, qui a été publié en portugais, en octobre 2004, par
l'éditeur Almedina, de Coimbra. Le fait que le livre en langue portugaise ait été bien accueilli par la doctrine des autres États membres
justifie notre volonté de le publier en français.
Les changements survenus depuis dans I' ordre juridique de
I'Union européenne et les nouveaux apports de la doctrine et de la
jurisprudence du droit de I'Union sont également pris en compte
dans cette version française de ce livre.
Le présent ouvrage est actualisé par rapport au droit de I'Union
en vigueur. En effet, ii a pour fondement le traité sur I'Union européenne et le traité instituant la Communauté européenne, avec les
modifications apportées par le traité de Nice et complétés par les
deux traités d'adhésion entre-temps conclus, en 2003 et en 2005, et,
par conséquent, prend en considération l'élargissement de l'Union à
vingt-sept États membres, qui s'est réalisé le I" janvier 2007.
Comme on le sait, le traité constitutionnel européen, signé en 2004,
n'est pas entré en vigueur et a été écarté par le mandat approuvé par
le Consei! européen de juin 2007. Ce mandat conserve, cependant,
une paltie substantielle du contenu du traité constitutionnel. Par
conséquent, dans ce livre, on fera référence aux modifications
apportées aux traités, dans les matiéres les plus importantes, par le
traité constitutionnel. Ensuite, et dans une partie finale, la Cinquiéme Partie, on indiquera queJles sont les principales innovations
apportées par le mandat de juin 2007.
13
Direito da União Europeia
Autrement dit, ce livre a pour objet le droit de I'Union tel qu'il
est en vigueur. Par ail1eurs, iI prend déjà en considération les modifications projetées. En d'autres termes, ce livre est parfaitement à
Jour.
L' auteur étant un Professeur, iI est naturel que la premiere finalité de ce livre soit d'ordre didactique. Ce livre condense, de façon
actualisée, I'enseignement du droit communautaire mené à bien par
I' auteur durant ces trente-cinq dernieres années, au Portugal et à
l'étranger. Mais )'intention a été d'en faire un peu plus qu'un simple
manuel universitaire, de maniere à ce que cet ouvrage puisse donner
aux lecteurs une vision globale de I' ordre juridique communautaire.
Ceci a été I'objectif qui a présidé aussi bien au choix du plan de ce
livre qu'à la définition du domaine tres vaste des matieres qu'il
recouvre. On a souhaité que ce livre aborde les matieres les plus
importantes du systeme juridique de I 'Union européenne, actuel1ement comme dans le futuro
II nous faut remercier les éditions Bruylant, en particulier leur
Président Directeur Général, Mr. Jean Vandeveld, pour s'être intéressé à la publication de ce livre.
On veut également exprimer notre profonde reconnaissance à
la Fundação Calouste Gulbenkian et à la Fundação para a Ciência
e a Tecnologia, ayant toutes deux leur siege à Lisbonne, pour la
subvention accordée en vue de la publication de ce livre.
Enfin, on voudrait remercier I'excel1ent travail de traduction
effectué par Maitre Samantha Cyrne, avocate à Lisbonne.
Sintra, 30 juin 2007
BIBLIOGRAFIA GERAL
I - Os clássicos
CONSTANTlNESCO, L.-l. - Das Recht der europaischell Gemeinschaften, t. I,
Baden-Baden, 1977.
IpSEN, H.-P. - Europaisches Gemeinschaftsrecht, Tubinga, 1972.
PESCATORE, P. - Le droit de l'intégratiol1, Leyden, 1972, reimpresso em 2005,
Bruxelas.
REUTER, P. - La Commw1Quté Européel1l1e du Charbon et de l'Acier, Paris,
1953 (em bom rigor, a primeira tentativa de um manual de Direito
Comunitário).
II - Obras de caráter geral
a) Em IÚlgna portuguesa
DUARTE, Luísa - União Europeia, Coimbra, 2011.
GONÇALVES PERE1RA, André, e QUADROS, Fausto de - Direito Internacional
Público, 3.' ed., Coimbra, 1993, reimpr., 2009.
a
GORJÂO HENR1QUES, Miguel- Direito da União, 6. ed., Coimbra, 2010.
a
LOPES PORTO, Manuel- Teoria da integração e políticas comunitárias, 4. ed.,
Coimbra, 2009.
MARTINS, Ana Maria - Curso de Direito CO/lStitucional da União Europeia,
Coimbra, 2004.
MOTA DE CAMPOS, João, e MOTA DE CAMPOS, João Luiz - Manual de Direito
Europeu, 6.° ed., Coimbra, 2010.
PAlS, Sofia - Estudos de Direito da União Europeia, Coimbra, 2012.
b) Em língua francesa
CARTüU, L. - L'Union européenne, 6.a ed., Paris, 2006.
DONY, Marianne - Droit de l'Union européenne, 2. a ed., Bruxelas, 2008.
GAUTRON, J.-c. - Droit européen, 12. a ed., Paris, 2006.
14
15
rDireito da União Europeia
ISAAC, G. - Droit comnumautaire géneral, 9. 11 ed., Paris, 2006.
JACQUÉ, 1. P. - Droit institutionnel de l'Union européenne, 6. 11 ed., Paris,
2010.
LABOUZ, M.-E - Droit commllnautaire européen général, Bruxelas, 2003.
LOUIS, J.-v., e RONSE, T - L'ordre juridiqlle de I'Union européenne, Bruxelas,
2005.
MANIN, P. -L'Ullion ellropéenne, 7. 11 ed., Paris, 2005.
PESCATORE, P. - L'ordre juridiqlle des Communautés ellropéenes, reimpr., Bruxelas, 2006.
RrDEAU, J. - Droit institlltionnel de l'Union et des Communalltés européennes,
5.' ed., Paris, 2006.
SIMON, D. - Le syste,ne jllridique commlmautaire, 3. a ed., Paris, 2001.
VAN RAEPENBUSCH, S. - Droit institutioJ1nel de l'Union Européenne, 5. a ed.,
Bruxelas, 2011.
c) Em língua alemã
BIEBER, R., SPINEY, A., e HAAG, M. - Die Europaische Union _ Ellroparecht
llnd Politik, 6. 11 ed., Baden-Baden, 2005.
BLECKMANN, A. - Europarecht, 6. 11 ed., Colónia, 1997.
BORCHARDT, K.-D. - Die rechtliche Grundlage der ellropiiischen Union, 2. 11 00.,
Heidelberga, 2002.
HERDEGEN, M. - Europarecht, 13. a ed., Munique, 2011.
HUBER, P. - Das Recht der europiiischen Integration, 2. a ed., Munique, 2002.
OPPERMANN, T, CLAESSEN, C. D., e NETTESHEIM, M. - Europarecht, 4. 11 ed.,
Munique, 2009.
STREINZ, R. - Europarecht, 9. 11 ed., Heidelberga, 2012.
VON BOGDANDY, A. (ed.) - Europaisches Verfassungsrecht, Heidelberga, 2003.
á) Em língua inglesa
CRAIG, P., e DE BÚRCA, G. - The Evolution of EU Law, 2. a ed., Oxford, 2011.
HARTLEY, T C. - The foundations of European Community Law, 7. 11 ed.,
Oxford, 2010.
LENAERTS, K., e VAN NUPFEL, P. - Constitutional Law of the European Union,
2.' ed., Londres, 2011.
MATHIJSEN, P. - A Guide to European Community Law, 8. II ed., Londres, 2004.
e) Em língua italiana
BALLARINO, T - Manuale breve di diritto dell'Unione europea, 2. 11 ed., Milão,
2007.
16
i
!
Bibliografia geral
FERRARI BRAVO, L., e MOAVERO M1LANEZI, E. - Le;joni di diritto commullitario,
4.' ed., Milão, 2003.
.
GAJA G. - Introduzione ai diritto comunitario, 9. 11 ed., Roma, 2005.
POCA~, E - Diritto dell'Unione e delle Communifà europee, l1. u ed., Milão,
2010.
TESAURO, G. - Diritto comlmitario, 5. 11 ed., Pádua, 2008.
fi Em língua castelhana
ALONSO GARCIA, R. - Sistema Jurfdico de la Unión Europea, 2. 11 ed., Madrid,
2010.
CH1TI, M. - Derecho Administrativo Europeo, Madrid, 2002 (apesar da epígrafe, trata-se de urna obra geral).
.
DIEZ DE VELASCO, M. - Las Organizaciones !ntemacionales, 16. 11 ed., Madnd,
2010.
GARCíA DE ENTERRfA, E. (dir.) - La encrucijada constitucional de la Union
europea, Madrid, 2002.
MANGAS MARTfN, A., e L1NÁN NOGUERAS, D. - Instituciones y Derecho de la
Unión Europea, 4.1\ ed., Madrid, 2010.
MOLINA DEL POZO, C. - Derecho Comullitario, Barcelona, 2004.
III - Comentários aos Tratados
CALL1ES, c., e RUFFERT, M. - Das Velfassungsrecht der eur~paischen Union
mit der Europiiischer Grundrechtscharta, 4. 11 ~d., Mumq~e, 2011. ,.
CONSTANTINESCO, V. - Traité instituant la CEE, Pans, 1992 (elt.: Comentano
Constantinesco CEE).
- Traité sur l'Union européenne, Paris, 1995 (dt.: Comentário Constantineseo UE).
GRABITZ, E., HILF, M., e NETrESHEIM, M. - Das Recht der europãischen Union
- Kommentar, 3 vais., Munique, 2012.
LOPES PORTO, M., e ANASTÁS[O, G. - Tratado de Lisboa anotado e comentado,
Coimbra, 2012.
MÉGRET,1. - Le droit de la CE et de I'Union européenne, 15 vaIs., 1. 11 e 2.1\
eds., Bruxelas, 1979-2000.
PRIOLLAUD, E-X., e SIRITZKY, D. - Le Traité de Lisbonne - Texte et. Conunentaire article par artide des noveaux traités européennes, Pans, 2008.
SCHWARZE J. - EU-Kommentar, 3.1\ ed., Baden-Baden, 2012.
STRElNZ,
Vertrag über die Europüische Union und Vertrag über die
Arbeitsweise der Europaischen Unioll, 2. 11 ed., Munique, 2012.
R. -
17
Direito da União Europeia
H., e SCHWARZE, J. - Kommentar zum Vertrag der Europaischen Umon. 4 vaIs., 6. a ed., Baden-Baden, 2003.
VON DER OROEB,EN,
IV - Comentários à jurisprudência
POIARES MADURO,
2010.
M., e AZOULAl, L. - The Pas! and Future o1EU Law Ox'o d
• .' r ,
Luís, e PEREIRA COUTINHO ,
F. (eoord.) - 20
. .Luisa,d"FERNANDES,
d
a n o s de
}l/r~Sprll enClQ a União sobre casos portugueses, Lisboa, 201 L
Sofia (eoord.) - Pri~lc~pios fundamentais de Direito da União Europeia
-uma abordagem}lIrlsprudencial, Coimbra, 2012.
DUARTE,
PAIS,
18
CRITÉRIO DE SELEÇÃO
E MODO DE CITAÇÃO DE BIBLIOGRAFIA
Como se disse na Nota Prévia, este livro visa, antes de mais,
fins didáticos. Por isso, houve a preocupação de nele se indicar só
bibliografia selecionada. Num livro deste género, os leitores não
estão à espera de que o autor indique toda a bibliografia, geral ou
especial, que existe sobre as matérias versadas. Essa bibliografia
também eles a sabem encontrar nos bancos de dados. Do que eles
estão à espera num livro deste tipo é que o autor lhes sugira bibliografia, geral ou especial, que seja a melhor, a mais adequada ao
plano do livro, e a mais atual para O estudo das matérias de que o
livro se ocupa. É o que fazemos.
A bibliografia citada neste livro divide-se em bibliografia geral
e bibliografia especial.
A bibliografia geral, que ficou atrás indicada, encontra-se
separada, como se viu, em três partes: aquilo a que chamamos os
clássicos, isto é, as obras que, em nosso entender, na primeira fase
da integração europeia, marcaram, de modo determinante, a formação da doutrina de base do Direito Comunitário e a sua elaboração
dogmática, e que, por isso, influenciaram muito a nossa própria
formação neste ramo de Direito; depois, as obras de caráter geral
que levámos em conta neste livro; por fim, os Comentários aos Tratados.
Toda a bibliografia geral que ficou citada foi levada em consideração ao longo deste livro. Por isso, ela não terá citação especial
nas páginas do livro a não ser, excecionalmente, quando qualquer
das obras nela incluída assuma uma relevância muito especial para
o tratamento de alguma matéria concreta sobre a qual estaremos
debruçados.
19
Direito da União Europeia
Além disso, a propósito de cada capítulo, e, exceciona!mente
(dada a importância ou a novidade do assunto), a propósito de algumas divisões inferiores aos capítulos, será indicada bibliografia
especial sobre a respetiva matéria. Também aqui houve a preocupaçâo de selecionar a bibliografia melhor e mais adequada ao respetivo assunto, sem menosprezo para a demais. Essa bibliografia
especial será indicada por ordem cronológica, de forma a permitir
ao leitor acompanhar a evoluçâo progressiva da doutrina do Direito
da União, e, dessa forma, apreender a própria evolução gradual do
sistema jurídico da União Europeia.
Quando for citada bibliografia em nota de fundo de página, ela
sê-Io-á apenas pelo nome do Autor quando se tratar de uma obra que
conste da bibliografia geral, ou, se não constar dela, que conste da
bibliografia especial sugerida para o respetivo capítulo. Se, constando uma obra do respetivo Autor da lista de bibliografia geral e
outra do respetivo rol de bibliografia especial, se quiser citar esta
última, ou se da lista de bibliografia especial constar mais do que
uma obra de um mesmo Autor, a obra da bibliografia especial que
quisermos citar será expressamente identificada, ainda que de modo
abreviado, mas de forma a o leitor poder facilmente identificar a
obra citada.
Se, em nota de fundo de página, for citada bibliografia que não
constar, nem do rol de bibliografia geral, nem das listas de bibliografia especial (o que só acontecerá excecionalmente, e em funçâo
do grande interesse da obra para um assunto muito específico),
nesse caso a obra citada será integralmente identificada.
Foi nossa preocupação indicar bibliografia em várias línguas,
porque entendemos que o estudo do Direito da União se enriquece
se se tomar em consideração a doutrina diversificada do maior
número possível de Estados e no maior número possível de idiomas.
20
MODO DE CITAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Ajurisprudência da Uniâo será citada ao longo do livro a~avés
da data do Acórdão (ou Parecer, ou Despacho), do caso, do numero
do processo (que constitui a chave para ~ sua consulta através do
sítio oficial na Internet) e da sua pubhcaçao ofiCial.
21
ABREVIATURAS UTILIZADAS
ADL = Annales de droit de Louvain
AFAl = Annuaire trançais de Droit Intemational
AJCL = American Journal of Comparative Law
AJDA = Actualité Juridique - Droit Administratif
AJIL = American Joumal of Intemational Law
AõR = Archiv des õffentlichen Rechts
APD = Archives de Philosophie du Droit
AVR = Archiv des Võlkerrechts
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
BFDC
BJE = Bul1etin des juristes européens
Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts
BVerfGE =
CDE = Cahiers de droit européen
Tratado que instituiu a Comunidade Europeia ou Comunidade
CE =
Europeia
Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do
CECA = Aço ou Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
Tratado que instituiu a Comunidade Económica Europeia ou
CEE =
Comunidade Económica Europeia
Tratado que instituiu a Comunidade Europeia para a Energia
CEEA = Atómica ou Comunidade Europeia para a Energia Atómica
i;
r
y
CJA = Cadernos de Justiça Administrativa
cLJ = The Cambridge Law Journal
CMLR = Common Market Law Review
CPA = Código de procedimento Administrativo
Código de processo nos Tribunais Administrativos
CITA
,
I
!
t:,
DJ = Direito e Justiça
23
r
f
Direito da União Europeia
DJAP
Dicionário Jurídico da Administração Pública
DõV :::;: Die õffentliche Verwaltung
DP
Diritto pubblico
DPCE
Diritto pubblico comparato ed europeo
DUE = Il diritto dell'Unione Europea
DV = Die Verwaltung
DVBl == Deutsches Verwaltungsblatt
EDP
Europa e diritto privato
EJIL == European Joumal of Intemational Law
ELA = European Legal Affairs
~t
Abreviaturas utilizadas
NJW
Neue juristischeWochenschrift
OC
obra coletiva
QC
RAE
Quaderni costituziona1i
Revue des affaires européennes
RAP
Revista de Administración Pública
RBDI
Revue belge de droit international
RCADI
RDCE
Recueil des Cours de l' Académie de Droit Intemational
Revista de Derecho Comunitario Europeo
RDE
Rivista di diritto europeo
RDP
Revue du droit public et de la science politique
EU
European Law Joumal
REDA
Revista espafiola de derecho administrativo
ELR
European Law Review
REDC
Revista espafiola de derecho constitucional
European Law Reporter
REDP
Revue européenne de droit public
ELRep
EPIL = Rudolf Bemhardt (ed.), Encyclopedia of Public lntemationa!
Law,4 vols., 1992-2003
EPL :::; European Public Law
ETAF :::; Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
EuGRZ
Europãische Gmndrechte Zeitschrift
EuR :::;: Europarecht
EWS :::; Europãisches Wirtschafts und Steuerrecht
FIU :::; Fordham International Law Joumal
HIU :::; Harvard Intemational Law Joumal
HRU :::; Human Rights Law Joumal
JCMS :::; Joumal of Common Market Studies
JCP
Jurisclasseur périodique, Édition générale
JDI :::; Joumal de Droit International
JS
Juristische Schulung
JT ::::; Joumal des Tribunaux
JZ
Juristenzeitung
LPA
Les Petites Affiches
MJ :::; Maastricht Joumal of European and Comparative Law
NILQ :::; Netherland Intemational Law Quarterly
NYIL
NetherJands Yearbook of Intemational Law
24
RFDA :::; Revue française de droit administratif
RFDC
Revue française de droit constitutionnel
RFDUL :::; Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
RIDC :::; Revue Internationale de Droit Comparé
RIDPC
Rivista italiana di diritto pubblico comunitario
RIE :::; Revista de instituciones europeas
RMC = Revue du Marché Commun
RMU
Revue du Marché Unique Européen
ROA :::; Revista da Ordem dos Advogados
RPP
Revue de Philosophie Politique
RTDE
Revue trimestrielle de droit européen
RTDP
Rivista trimestriale di diritto pubblico
RUDH = Revue universelle des droits de l'homme
SD
= Studia diplomática
SI
Scientia Iuridica
SIE
SL
Scripta iuris europaei
= Saint Louis University Law Journal
StIE = Studi sull'integrazione europea
TDP = Tribune du droit public
TFIJE = Tratado de Funcionamento da União Europeia
25
Direito da União Europeia
TUE ;::;: Tratado da União Europeia
UE ;::;: Tratado da União Europeia ou União Europeia
VVDStRL ;::;: Verõffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer
YEL ;::;: Yearbook of European Law
ZaõRV = Zeitschrift mr aus r'ao d'ISC hes õffentliches Recht und Võlkerrecht
INTRODUÇÃO
ZG ;::;: Zeitschrift für Gesetzgebung
ZP = Zeitschrift für Politik
CAPÍTULO I
ZWR = Zeitschrift für Wirtschaftsrecht
QUESTÕES PRELIMINARES
I. Direito da União Enropeia, Direito Comunitário, Direito
Europeu
Comecemos por explicar a epígrafe deste livro,
Desde a criação das Comunidades até à entrada em vigor do
Tratado da União Europeia, em 1993, o ramo de Direito que vamos
estudar ueste livro foi designado unicamente por Direito Comunitário ou Direito das Comunidades Europeias, Nós próprios, no ano
letivo de 1982-83, escrevemos sumários desenvolvidos de Lições
sob a segunda das referidas designações I. E era essa a designação
das disciplinas que em Faculdades de Direito tinham aquele ramo de
Direito como objeto. Era uma altura em que só havia as três Comunidades - a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), a
Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia
da Energia Atómica (CEEA ou Eurátomo) - e, portanto, em coerência, a Ordem Jurídica que as regia intitulava-se Direito Comunitário.
Com o Tratado da União Europeia, esta passou a euglobar,
entre o mais, aS três Comunidades. Por isso, passou-se a falar no
Direito da União Europeia para designar o ramo de Direito que disciplinava o conjunto global da União Europeia, e em Direito ComuI Direito das Comunidades Europeias, Sumários desenvolvidos de Lições,
Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1983.
26
27
Introdução
Questões preliminares
nitário para se referir o ramo de Direito que se ocupava, dentro da
União, das três Comunidades.
Quando se chegou ao Tratado de Lisboa, a CECA já se havia
extinguido em 2002 e a CE fora dissolvida na União Europeia, pelo
que das três Comunidades só subsistiu a CEEA. O que hoje temos,
portanto, é a União Europeia mais a CEEA. Em bom rigor, terá que
se falar no Direito da União Europeia para se referir a Ordem Jurídica da União Europeia no seu todo, e em Direito Comunitário para
se designar somente o sistema jurídico da CEEA. E é assim que
procederemos. Neste livro estudaremos o conjunto da Ordem Jurídica da União Europeia, chamando-lhe Direito da União Europeia.
revistas de Direito da União Europeia, a Europarecht. Mas trata-se,
então, de um sentido vocacional, não objetivamente atual.
Empregaremos a expressão Direito Comunitário, ou para nos refe-
tucional da União Europeia para nos referirmos aos Tratados da
rirmos ao sistema jurídico que, antes do Tratado de Lisboa, era
específico das Comunidades ou de alguma delas, ou para nos referirmos, depois do Tratado de Lisboa, apenas ao Direito da CEEA - o
que, prevenimos desde já, só faremos excecionalmente, devido à
pequena importância desta Comunidade.
Nunca utilizaremos a expressão Direito Europeu para nos referirmos ao ramo de Direito que vamos estudar neste livro.
De facto, mesmo abstraindo do sentido juscomparatista que
por vezes é dado àquela expressão - o Direito Europeu visto como
o Direito Comparado dos Estados do continente europeu ou, pelo
menos, dos grandes sistemas jurídicos que vigoram na Europa -, no
plano transnacional Direito Europeu é o somatório dos sistemas
jurídicos dos vários espaços regionais, sujeitos de Direito Internacional, que coexistem no continente europeu, alguns deles em
regime de crescente complementariedade: a União Europeia, o Conselho da Europa, a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN), a União da Europa Ocidental (UEO), a Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), a Organização de Segurança e
Cooperação Europeia (OSCE), o Benelux, o Conselho Nórdico, etc.
Ou, então, de Direito Europeu fala-se num sentido menos jurídico,
para se referir o sistema jurídico, com vocação federal, de uma
União Europeia pré-federal: é o sentido utilizado como título de
algumas obras gerais sobre Direito da União Europeia na doutrina
de língua alemã e o que dá a denominação a uma das mais antigas
União como tratados-constituição, isto é, como os tratados que instituíram a União e que, como tais, lhes fixaram os órgãos e definiram o respetivo Direito primário. É nesse sentido que, de~~e sempr~,
a Carta das Nações Unidas é apresentada como sendo a Conslltmção" daquela Organização.
.
._
.
Mas a expressão Direito ConstitucIOnal da Umao Europe!a
ganha muito maior propriedade porque, como veremos, a Umao
Europeia já tem uma Constituição material. FOI nesse sentido q~_e,
muito cedo, como mostraremos, o Tribunal de Jusllça da Umao
Europeia, então, das Comunidades Europeias, passou a qualificar o
antigo Tratado da Comunidade Económica Europeia como a "Carta
Constitucional" daquela Comunidade. Aliás, foi nesse sentido, e só
nesse sentido, que no início deste século foi redigido um. Tratado
que estabelece uma Constituição para a Europa, que tambem fiCOU
conhecido por Tratado Constitucional Europeu. Com base nesse
Tratado, o Tratado de Lisboa veio reforçar, no núcleo essenCIal
dessa Constituição material, uma identidade constitucional da
União, composta, desde logo, pelos valores da União, que passaram
a constar do artigo 2.° do Tratado da União Europeia (TUE ou UE).
Ou seja, em sentido material já existe Direito Constitucional da
União Europeia', embora ainda não o haja em sentido formal, desde
28
29
2. Direito Constitucional e Administrativo da União Europeia
Mas este livro também tem uma subepígrafe, que nos diz que
nele vamos estudar o Direito Constitucional e o Direito Administrativo da União Europeia.
.
O que é o Direito Constitucional da União Europei~?
Num sentido tradicional, poderíamos falar em Direito ConstI-
2
Ver também as obras, designadamente, de VON BOODANDY, GARCiA DE
LoUIS/RoNSE, pgs. 110 e segs., 1. WEILER/M. WIND (eds.), European
ENTERR(A,
Introdução
Questões preliminares
logo, porque ainda não existe, em sentido jurídico, um povo europeu, com poder constituinte próprio'. Veremos tudo isto com desenvolvimento ao longo deste livro.
E o que é o Direito Administrativo da União Europeia?
A expressão Direito Administrativo Europeu, com o sentido de
Direito Administrativo das Comunidades Europeias, e, depois,
Direito Administrativo da União Europeia, foi utilizada pela primeira vez na doutrina por um autor francês, COLLIARD, para designar
a organização interna das Comunidades Europeias'. Sem prejuízo
dos novos sentidos que a evolução do Direito Administrativo e do
Direito Comunitário deu àquela expressão, e que examinaremos no
local próprio deste livro, por Direito Administrativo da União Europeia queremos significar aqui a estrutura orgânica e institucional da
União (sobretudo da Administração Pública Comunitária, que tem
no seu topo a Comissão, como órgão predominantemente executivo
da União) e toda a vasta problemática ligada à aplicação do Direito
da União.
Para designar o que nÓs entendemos neste livro como Direito
Constitucional e Administrativo da União Europeia, as obras gerais,
sobretudo de língua francesa, servem-se, por vezes, da expressão
Direito Institucional da União Europeia. Só que, na linguagem jurídica, o substantivo instituição e o adjetivo institucional são palavras
muito vagas.
Por isso. a expressão Direito Institucional é, a nosso ver, substituída com vantagem (quer pela sua amplitude, quer pelo seu rigor
científico) por Direito Constitucional e Administrativo. É essa, aliás,
a orientação que adotam, para as matérias tratadas neste livro, algumas das obras gerais que nele vão indicadas, como é o caso dos
manuais de HARTLEY e de CHm. Este último, aliás, estuda todo o
chamado Direito Institucional sob o título global de Direito Administrativo Europeu. Ou então, é o método que, sem o transporem
para as epígrafes dos seus livros, seguem alguns outros Autores
quanto à substância do Direito da União, como é o caso de SIMON'.
Constitutionalism beyond the State, Cambridge, 2003, e J. WBILER/G. DE BÚRCA
(eds.), The Words of European Constitutionalism, Cambridge, 2012. Em Portugal,
veja-se, sobretudo, CANDTlLHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
7." ed., Coimbra, 2003. pgs. 207 e segs. e 1372 e segs.
3 É a posição que temos defendido em diversos estudos, que serão citados
ao longo das páginas seguintes, sobretudo a partir do nosso Relatório Direito
Comunitário I - Programa, conteúdos e métodos de ensino, Coimbra, 2000,
pgs. 44 e segs.. sobretudo. 50-53.
4 C.-A COLLlARD, Cours de Droit Administratif Européen, Paris, 1967-68,
pg.4.
30
3. Primeira noção do objeto deste livro
Para a correta compreensão do objeto deste livro, impõe-se que
desde já fique esclarecido, ainda que de modo apenas embrionário,
o que é que nele se vai estudar.
O Direito da União Europeia consiste, como já dissemos, e
numa ideia ainda inicial, na Ordem Jurídica da integração europeia.
Pese embora a existência já de alguns espaços vocacionados
para a integração à data da criação das Comunidades Europeias, nos
anos 50 (como era o caso do Benelux), estas traduziram-se na primeira tentativa, na História Universal, de criação, no plano transnacional, de um espaço geo-político com vocação para a integração
plena, quer dizer, para a integração, não apenas económica, mas
também política.
Até então a Comunidade Internacional conhecia quase apenas
relações jurídicas interestaduais, de mera coordenação horizontal
das soberanias dos Estados. Por isso, a sua Ordem Jurídica, o
Direito Internacional, era, quase SÓ, uma Ordem Jurídica vocacionada para dirimir conflitos entre Estados, ditados pelo individualismo destes no plano internacional. Foi a fase do Direito Internacional como, predominantemente, Direito da Paz e da Guerra.
Designadamente, o indivíduo era mais um objeto de um dever de
proteção da parte dos Estados do que um sujeito autónomo do
Direito Internacional, titular de direitos conferidos diretamente pelo
Direito Internacional.
, Pg.451.
31
Introdução
Questões preliminares
Desta vlsao societária tradicional do Direito Internacional
afastou-se o Direito Comunitário, opondo-lhe uma conceção comunitária das relações entre Estados, baseada, não no individualismo
destes, mas na solidariedade entre eles, que visava a criação, entre
os Estados envolvidos, de um espaço de integração. A palavra integração não fora até então conhecida no plano transnacional, porque
constituía monopólio do Direito Constitucional interno e da Teoria
do Estado, ao dar forma ao conceito de Estado'. Mas, embora se
possa conceber o fenómeno da integração alheado de aspetos políticos e virado apenas para a Economia (e, assim, se falou até ao Tratado da União Europeia, de 1992, em integração europeia quase
limitada aos aspetos económicos), desde o Plano Schumann, de
1950, que para a integração europeia está fixado o fim último da
federação política.
A integração europeia não dispensa, porém, o papel dos Estados, nem faz desaparecer o conceito de soberania: apenas consagra
a teoria da limitação da soberania estadual. Dito doutra forma, o
motor da integração vai ser a bivalência - melhor: a dialética entre, por um lado, a integração e, por outro, a soberania ou a interestadualidade. Eessa construção, ainda que sempre tenha encontrado
expressão nos Tratados, obteve neles uma concretização ainda mais
acentuada a partir do Tratado da União Europeia, de 1992, quando
este veio criar a União através de um diálogo entre a integração (expressa no pilar comunitário) e a interestadualidade (materializada nos seus dois pilares intergovernamentais). A partir do Tratado de Lisboa, como veremos, esta separação entre pilares
esbateu-se muito, sem, contudo, desaparecer, mas, mesmo assim,
aquela bivalência manteve-se, porque é da essência do processo de
integração.
É este o pano de fundo sobre o qual se desenvolve hoje a
Ordem Jurídica da União Europeia, como ficará demonstrado ao
longo das páginas que se seguem.
Sublinhe-se, entretanto, e só de passagem, que o próprio
Direito Internacional tem vindo, há muito tempo, a abandonar gradualmente a sua natureza de Ordem Jurídica de coordenação das
soberanias estaduais para se deixar imbuir, em largos domínios, pelo
espírito de solidariedade e de integração, e, portanto, para admitir,
também ele, a limitação da soberania dos Estados e a colocação
destes numa relação de subordinação (e não de mera cooperação
intergovernamental) em relação ao Direito Internacional. Para além
do exemplo clássico, porque antigo, da submissão dos Estados ao
poder sancionatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
isso nota-se, de modo particular, na valorização do indivíduo como
sujeito do Direito Internacional, especialmente no quadro da proteção internacional dos Direitos do Homem, de que constituem principais sintomas o crescente alargamento do ius cogens internacional,
sobretudo através da progressiva universalidade dos Direitos do
Homem, e a mais recente evolução do Direito Penal Internacional'-8.
6 Vejam-se sobre esta matéria, as obras clássicas de G. JELLINEK, Allgemeine
Staatslehre, 4. a 00., Berlim, 1922, e H. KELSEN, Der Staat ais Integratian, Viena,
1930.
7 Nesta aceitação pelo Direito Internacional Público do princípio da limitação da soberania dos Estados teve importante influência o Direito Comunitário vejam-se as obras citadas na nota seguinte e também FROWEIN (ed.), The contributioll ofthe European Unioll to lhe Public Internalianal Law, Oxford, 2002, pgs.
171 e segs., e GAUTRON, L'ardre juridique conullunautaire et le tiroU international:
quelles articulariam?, in Droit communautaire et globalisation, Tunis, 2003,
pgs. 43 e segs.
8 Sobre a matéria deste número, ver a obra básica de PESCATORE, Le drai!, e,
com citação de muito boa doutrina, a nossa dissertação de doutoramento, Direito
das Comunidades Europeias e Direito Internacional Público, Lisboa, 1984, reimpressa em 1991, sobretudo pgs. 250 e segs., 336 e segs., 379 e segs.
32
33
CAPÍTULO II
A HISTÓRIA DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA
Bibliog
especial: P. REUTER, Le Plan Schuman, RCADI
rafla
1952-Il, pgs. 519 e segs.; JEAN MONNET, Les États-Unis d'Europe ont
commencé. La Comnumauté européenne du charbon et de {'acia. Discours et allocutions 1952-1954, Paris, 1955; B. VOYENNE, Histoire de
l'idée européenne , Paris, 1964; J. LECERF, Histoire de ['unité européenne, Paris, 1965; W. HALLSTEIN, Der unvollendete Bundesstaat,
Viena, 1969; J.-B. DUROSELLE, L'idée d'Europe dans I'Histoire, Paris,
1965; JEAN MONNET, Mémoires, Paris, 1976; R. ARON, Defesa da Europa
decadente, Lisboa, 1977; JOÃo AMEAL, História da Europa, 5 vals., Lisboa, 1982-84; F. DE QUADROS, Direito das Comunidades Europeias e
Direito Internacional Público, dissertação, cit., sobretudo pgs. 115 e
segs., 129 e segs. e 259 e segs.; F. DE QUADROS, Recordando Jean Monnet, Lisboa, 1989; J. BOUDANT e M. GOUNELLE, Les grandes dates de
l'Europe comnmnautaire, Paris, 1989; DENIS DE ROUGEMONT, 28 sii~cles
d'Europe, Paris, 1990; S. WOOLF, Napoléo n et la conquête de l'Europe,
ne
Paris, 1990; A.-I. ARNAUD, pour une pensée juridique européen , Paris,
1991; D. SIDJANSKI, L'avenir fédéraliste de ['Europe, Paris, 1992;
JAC1NTO NUNES, De Roma a Maastricht, Lisboa, 1993; R. PÉREZ_BUSTAMANTE, Historia política de la Unión Europea, 1940-1995,
Madrid, 1995; N. DAVIES, Europe -A History, Oxford, 1996; P. HABERLE,
Europdische Rechtskultur, Baden-Baden, 1997; M.-T. BlscH, Histoire de
la construction européenne, Paris, 1999; COM1SSÃO EUROPEIA (ed.),
Retire et compléter la Déclaration du 9 Mai 1950, Bruxelas, maio de
2000; V. CONSTANTINESCO, Vers quelle Europe, Europefédérale, confédération européenne, fédération d'États nations, Les cahiers français
2000, pgs. 298 e segs.; FL. CHALTlEL, La souveraineté de l'État et
l'Union européenne, l'exemplejrançais, recherches sur la souveraineté
de l'État membre, dissertação, Paris, 2000; G. BossUAT, Lesfondateurs
de I'Europe [mie, Paris, 2001; G. BOSSUAT e outros (ed.), Dictionnaire
35
Introdução
juridique de l'unité européen, Bruxelas, 2001; P.-F. SMETS, Les peres de
I'Europe: 50 ans apres, Bruxelas, 2001; A. ALcocK, A short History of
Europe - From the Greeks and Romans to the presente day, Londres,
2002; MARIA MANUELA TAVARES RIBEIRO (coord.), Identidade europeia e
multiculturalismo, Lisboa, 2002; D. WU.LOWEIT e U. SElF, Europiiische
Verfassungsgeschichte, Munique, 2003; A. LEVADE-CASSIN (dir.), La
Constitution européenne, Bruxelas, 2004; A. LAMASSOURE, Histoire
secréte de la Convention européenne, Paris, 2004; A. WILKENS (dir.), Le
P/an Schwnan dans /'histoire. Intérêts nationaux et proje! européen,
Bruxelas, 2004; O. DE SCHUTIER e P. NIHOUL, Une Constitution pour
l'Eurape, Bruxelas, 2004; G. REALE, Les racines culturelles et spirituelles de l'Eurape, Paris, 2005; C. ZoRGBIBE, Histoire de I'Union européemle, Paris, 2005, e muito boa bibliografia complementar; F. DE
QUADROS, Les scéllarios pour sortir de l'impasse du Traité Constitutionnel européen, Europe's challellges in a globalised world, Global Jean
Monnet Conference, 8th ECSA World Conference, Bruxelas, 23 e 24-11-2006, ww. ec.europe/education/programmes/ajmlorganisatioll/globalised_world/index_en.htrnl; B. VAYSSIERE, Vers une Europe fédérale?,
Bruxelas, 2006; F. LAURSEN (ed.), The rise andfall afthe EU's canstitutional treaty, Leiden, 2008; F. DE QUADROS, Vinte e cinco anos de aplicação do Direito da União Europeia em Portugal, Europa - Novas
Fronteiras, 2010, pgs. 73 e segs.; Direção-Geral de Educação e Cultura
da Comissão Europeia, The European Union afier the Treaty of Lisbon,
ed. bilingue, Bruxelas, 2011.
SECÇÃO I
Da AntiguIdade até ao fim da Segunda Grande Guerra
4. A ideia da Europa ao longo da História
Desde tempos imemoriais que poetas, romancistas, pensadores, filósofos, historiadores, politólogos e sociólogos, se ocupam da
ideia da Europa. Numa obra de elevado rigor no plano da investigação, DENIS DE ROUGEMONT mostra-nos que esse trabalho já vem de há
vinte e oito séculos (contados até ao século XX).
Foi o poeta HESfoDO, no século VIII a.c., quem, na Teogonia
ou O Nascimento de Deus, utilizou pela primeira vez a palavra
36
A História da integração europeia
Europa. Foi seguido nisso por HIPÓCRATES, que distinguiu a Europa
da Ásia, por HERÓDOTO, por SÓCRATES, por ARISTÓTELES e por PLATÃO.
Foram, portanto, os Gregos que, na Antiguidade, criaram uma
noção geográfica da Europa: um espaço vasto, ainda pouco definido
nos seus contornos, mas que era apresentado como indo do Atlântico aos Urais e englobando diversos povos e raças, com diferentes
línguas e culturas. Fenómenos de vária ordem, designadamente de
natureza climatérica, levaram muitos povos a mudar de local, e,
inclusivamente, cedo conduziram a um intercâmbio com povos distintos, até da Ásia.
Portanto, o primeiro sentimento de unidade em torno da
Europa foi o dessa unidade geográfica.
A Antiguidade Clássica difuncliu, nestes moldes, a palavra
Europa, para o que contou com o apoio da mitologia. De facto,
segundo a lenda, uma jovem e bonita fenícia, filha de Ajenor (Rei
de Tiro e de Fenícia e descendente de Neptuno e de Teléfasa), foi
raptada por Zeus, tendo-se depois transformado num grande touro
branco e conduzida a Creta, onde se converteu em Rainha e Mâe dos
Reis da Dinastia de Minos.
Por sua vez, a Bíblia, nos Capítulos 9 e 10 do Géneses, tem
permitido a alguns historiadores uma construção diferente: os três
filhos de Noé, ou seja, Sem, Cam e Iafet, ter-se-iam espalhado pelo
mundo, ficando a Ásia para Sem, a África para Cam e a Europa para
os descendentes de Iafel.
Com base no pensamento dos Autores acima referidos, o
Humanismo greco-latino começa a dar um conteúdo ideológico à
ideia de Europa. CARLOS MAGNO (768-814 d.C.) é o primeiro chefe
político a interpretar, nesses termos, a unidade da Europa. A Europa
identifica-se, desse modo, na Idade Média, com a Cristandade. É
logo então que se afirmam as raízes cristãs da Europa: a "Europa
Cristã" é a Respublica Christiana, que nos surge também como o
berço do Direito Internacional'. Nesta construção é determinante o
contributo dos Doutores da Igreja, designadamente S. TOMÁS DE
9 Veja-se, nesse sentido, A. TRUYOL Y SERRA, Génese e! fondements spirituels de {'idée d'une COlJlmul1auté Universelle, Lisboa, 1956.
37
~';
Introdução
A História da integração europeia
AQUINO. A Europa ganha, pois, unidade ideológica, ou, se se preferir, unidade espiritual, como, aliás, já em \308 era reconhecido por
DANTE, no seu Tratado De Monarchia 10.
Contudo, na viragem da Idade Média para o Renascimento, a
Europa divide-se: no plano político, através da afirmação enfática
da soberania dos Estados e dos conflitos que daí decorreram; no
plano religioso, por intermédio da Reforma; no plano económico,
mediante o crescimento do nacionalismo e, por isso, da concentração das rivalidades económicas. Perante esse movimento, fracassaram o Projeto para a Paz Perpétua, de JEAN JACQUES ROUSSEAU, de
1760, o Plano para uma "Paz Perpétua", de EMANUEL KANT, de 1795
(que propunha a criação de uma Confederação de Estados europeus
fundada numa Constituição republicana), bem como o Plano para
uma Paz Universal e Perpétua, de JEREMIAS BENTHAM, de 1843. Para
obviar aos inconvenientes dessa situação, a Inglaterra veio defender
o "equilíbrio europeu", como fórmula de se resolver os litígios que
fossem ocorrendo na Europa.
O século XIX nasce com o escrito de SAINT SIMON e THIERY
intitulado" Da organização da sociedade europeia ou da necessidade e dos meios de juntar os povos da Europa numa só unidade
politica, conservando em cada um a sua independência nacionaf'.
É com o mesmo espírito que, no rescaldo do Congresso de Viena, as
cinco potências da época (a Inglaterra, a França, a Áustria, a Prússia
e a Rússia), às quais se junta depois a Turquia, criam o "concerto
europeu", como herdeiro da Santa Aliança. Ele duraria até à cisão
entre, por um lado, a Inglaterra, a França e a Rússia, e, por outro
lado, a Alemanha e o Império Austro-Húngaro.
Tudo isto significa que, na época do Renascimento, a Europa,
com todas essas limitações, foi construindo uma identidade cultural,
com os contributos referidos e também com os de GÓRRES, LEIBNITZ
e VICTOR HuGO. E que, nos séculos XVIII e XIX, nos surgem as
primeiras manifestações de uma solidariedade política entre os Esta-
dos soberanos da Europa, ainda que, como se mostrou, marcada por
profundas divisões.
No dealbar do século XX, aprofunda-se o exacerbamento dos
nacionalismos, iniciado nos finais do século XIX. Tendo como traduções o empolamento do jus belli e o livre-cambismo económico,
ele desemboca na La Grande Guerra, de 1914-18. A divisão vencera
os esforços para a criação de uma unidade na Europa 11.
10
Vej a-se a História, particularmente desse período, bem retratada em R.
Geschichte der Staatsideen, lO,a ed., Munique, 2003, pgs. 48 e segs ..
ZIPPELIUS,
38
5. Os projetos de integração europeia após a 1." Grande Guerra
No rescaldo da Guerra, os Estados europeus tomam consciência da sua fragilidade e dos perigos da sua desunião.
Por isso, pela primeira vez surgem propostas para a associação
dos Estados da Europa. HEERFORDT sugere a Europa Communis;
COUDENHOVE-KALERGl apresenta a proposta da Pan-Europa; diversos
escritos políticos defendem a criação, como condição para a Paz na
Europa, de uma "Nação europeia" e do "federalismo europeu", sem
que, todavia, estas noções apresentem grande rigor jurídico.
Contudo, este movimento aprofunda-se com a divulgação do
Manifesto Pan-Europeu, em Viena, em 1927, no mesmo ano em que
o alemão WLADIMIR WOYTINSKY publicava em Bruxelas o seu livro
Les États-Unis d'Europe. Era a primeira vez que, no vocabulário
político, se ia tão longe, embora a proposta contida no livro - de
uma União Aduaneira Europeia como transição para uma "União
Europeia de tipo confederal" - contivesse elementos muito confusos
à luz dos conceitos dos nossos dias.
Com o andar do movimento acabado de referir, não surpreendeu que um estadista de renome na época, o Primeiro-Ministro
francês ARISTIDES DE BRIAND (o mesmo que em 1928 apresentara,
com KELOGG, Secretário de Estado norte-americano, o célebre Pacto
Briand-Kelogg, que assinalou um passo importantíssimo para a Paz
no Mundo), tivesse divulgado, em 1929-30, o Memorando Briand,
onde propunha para a Europa "uma espécie de união federal", por
li
BOSSUAT,
Vejam-se, sobre a matéria deste número, sobretudo, ROUGEMONT,
Les fondateurs,
DAVIES, ALCOCK, VOYENNE.
39
AMEAL,
Introdução
A História da integração europeia
influência manifesta do sistema federal norte-americano. Essa proposta veio, contudo, e infelizmente, em má altura: em 1929 iniciava-se a Grande Depressão nos Estados Unidos, que depressa se
contagiou à Europa. Mostra-nos a História que em época de depressão económica é difícil falar-se de solidariedade ou de união entre
os Estados atingidos, porque a depressão fomenta a adoção pelos
Estados de medidas egoístas e unilaterais de defesa em face da crise,
o que os faz fecharem-se sobre si próprios e, dessa forma, estimula
os nacionalismos.
Foi O que aconteceu. A Grande Depressão terminou em 1932,
mas ficara aberto o caminho para os nacionalismos, no pior sentido
da expressão, sobretudo na Alemanha, mas também na Itália, que
conduziriam à 2.' Grande Guerra. Por isso, os esforços de grandes
pensadores como PAUL VALÉRY, ORTEGA YGASSET e MIGUEL DE UNAMUNO, no sentido de injetarem uma componente humanista e social
nos esforços de união na Europa, não tiveram seguimento.
Em face das destruições da Guerra, que não haviam poupado
nem vencedores, nem vencidos, nem em meios materiais, nem em
vidas humanas, WINSTON CHURCHlLL, num discurso proferido em 19
de setembro de 1946, na Universidade de Zurique, lança um veemente apelo à reconciliação franco-alemã e convida à criação dos
"Estados Unidos da Europa". Convém ler-se o discurso de CHURCHILL na íntegra 13, para se compreender que ele deixava em aberto o
preenchimento desta noção, em termos tanto políticos como jurídicos, embora se reclamasse do pensamento de COUDENHOVE-KALERG1,
já acima referido.
O discurso de CHURCHlLL obteve eco. É assim que, em 17 de
dezembro desse mesmo ano, é fundada em Paris a União Europeia
dos Federalistas, que pouco depois se transformou, como veremos,
no Movimento Europeu. Essa União, logo nessa altura, anuncia a
sua vocação federalista. Ela agrupava numerosos movimentos federalistas, que entretanto se tinham formado na Europa ocidental e
entre os emigrados da Europa oriental. Dentro desses movimentos
destacavam-se, desde logo, personalidades tão diferentes como
HENRI FRENAY, ALTlERO SPINELLI e HENRY BRUGMANS, entre outros.
Alguns meses mais tarde, a 5 de junho de 1947, é proposto o
Plano Marshall. A recusa do bloco soviético em participar nesse
Plano marca a cisão entre os dois blocos, o ocidental e o de leste, e
o início da guerra-fria.
Em 16 de abril de 1948, dezasseis Estados instituem a Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE). Já antes disso,
porém, em 1 de janeiro desse ano, entrara em vigor a Convenção
Aduaneira entre a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo
(o Benelux), que criava uma pauta aduaneira externa comum,
embora se mantivessem obstáculos às trocas entre os três Estados,
e, em 17 de março do mesmo ano, era assinado OTratado de Bruxelas, que instituía a União da Europa Ocidental (UEO), entre a Bélgica, a França, o Luxemburgo, os Países Baixos e o Reino Unido.
SECÇÃO II
Do fim da Segunda Grande Guerra até aos nossos dias
6. O início da integração europeia
Por isso, a integração europeia, tal como a vivemos hoje, só se
iniciou depois da 2." Grande Guerra.
Ou seja, a História da integração europeia acaba por se diluir na
matéria mais vasta da História Política e Económica da Europa na
segunda metade do século XX e até hoje. Não cabe na índole deste
livro proceder-se aqui ao estudo dessa História, que se traduz numa
p81te importante da História Universal do século passado. Além
disso, a História Política e Económica da Europa após a Guerra de
1939-45 deve fazer hoje parte da cultura geral do cidadão europeu I2 •
12
também
especial
Ver sobre esse período as obras gerais indicadas no início deste livro e
GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 575 e segs.. Dentro da bibliografia
V., de modo especial, BiTSCH.
40
13 D. CANNADINE Ced.), Tlte Speeches 01 Winston Churchill, Londres, 1990,
pgs. 310 e segs.
41
Introduçao
I
]
Aquele Tratado previa assistência mútua entre os Estados signatários em caso de agressão.
Entretanto, entre 8 e 10 de maio do mesmo ano de 1948,
reúne-se, sob a presidência de CHURCHILL, o Congresso de Haia,
onde participam oitocentos delegados, vindos de dezanove Estados.
No seguimento deste Congresso, no mesmo ano, em 25 de outubro,
é criado, em Bruxelas, o Movimento Europeu, já atrás referido, que
teria como presidentes honorários CHURCH]LL, LEüN BLUM, PAUL-HENRY SPAAK e ALCIDE DE GASPERI. O Congresso de Haia faz sua a
proposta de criação dos "Estados Unidos da Europa", de CHURCHtLL,
mas claramente no sentido do Memorando Briand, isto é, sob forte
influência do sistema federal norte-americano. Note-se que a República Federal da Alemanha só teria a sua Lei Fundamental em 1949,
pelo que o federalismo alemão do pós-guerra não podia ainda, nesta
fase, servir de modelo de inspiração para os adeptos da integração
europeia.
Pouco depois, a 28 de janeiro de 1949, por iniciativa do Reino
Unido, este, a França e os três Estados do Benelux deliberam instituir um Conselho da Europa, cuja sede é estabelecida em Estrasburgo. O respetivo Estatuto viria a ser assinado em 5 de maio, em
Londres.
Poucos dias antes, em 4 de abril, fora assinado, em Washington, o Tratado do Atlãntico Norte, que criava a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Se a OECE dava corpo à cooperação económica entre os Estados da Europa Ocidental, com o pretexto de gerir o Plano Marshall,
o Conselho da Europa e a OTAN (esta, ainda que não fosse uma
Organização apenas europeia) visavam servir de suporte à cooperação política e militar entre eles. O bloco de leste, por sua vez, responderia a este reforço de cooperação entre os Estados ocidentais
com a instituição, também em 1949, do Conselho de Assistência
Econ6mica Mútua (CAEM, ou também COMECON, sigla derivada
de Communist Economy).
42
A História da integração europeia
7. Do Plano Schuman à criação das Comunidades
A criação do Conselho da Europa, numa base essencialmente
de cooperação intergovernamental, retirava, pelo menos no imediato,
do processo de integração, o elemento político. Por isso, os fundadores da integração europeia decidem começar o processo pelo método
funcional, ou funcionalista, ou da integração sectorial'4.
Assim, em 9 de maio de 1950, o Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, ROBERT SCHUMAN, propõe o Plano Schuman. Este
Plano visava "colocar o conjunto da produção franco-alemã do carvão e do aço sob uma Alta Autoridade comum, numa organização
aberta à participação dos outros Estados europeus". Por que é que se
começava pelo carvão e pelo aço? Por duas razões: primeiro, porque
era uma forma de aproximar a França e a Alemanha, o que, como
veremos, o Plano Schuman concebia como um meio fundamental de
se criar uma Paz duradoira na Europa; segundo, por uma elevada
razão simbólica, que residia no facto de que eram esses os dois setores económicos que mais tinham alimentado o esforço da Guerra.
O Plano Schuman deve ser visto, pois, como a verdadeira Carta
fundadora da Europa Comunitária.
O Plano Schuman inspirava-se no Plano de modernização e de
equipamento francês, elaborado por JEAN MONNET, em 1945, e, mais
proximamente, num memorando redigido pelo mesmo estadista em
3 de maio de 1950. Daí que seja correto afirmar-se que o verdadeiro
autor daquele Plano foi JEAN MONNET 15 • O Plano Schuman definia,
simultaneamente, o modo de integração proposto e os fins que se lhe
apontavam.
Quanto ao modo proposto, ele adotava, como se disse, o
método funcional, começando pela integração ao nível do carvão e
do aço. Correspondentemente, a integração proposta era gradual ou
evolutiva. Dizia-se naquele Plano: "A Europa não se fará de ime14 Sobre aquilo em que este método consistiu e como ele evoluiu, ver a boa
bibliografia citada na nossa dissertação de doutoramento, atrás referida, sobretudo
pgs, 115 e segs" e o que nós próprios aí escrevemos sobre a matéria.
15 Veja-se o nosso ensaio Recordando Jean Monnet e também a nossa
dissertação de doutoramento, pg. 120, n. 337,
43
Introdução
A História da integração europeia
diato, mas numa construção conjunta; ela far-se-á através de realizações concretas, pela criação, para começar, de uma solidariedade
de facto".
Quanto aos fins da integração, o Plano era claro ao ligar as
causas da integração aos objetivos prosseguidos, imediatos e mediatos. Defendia ele que era urgente consolidar-se a Paz na Europa.
Para tanto, era necessário começar por se pôr termo à "oposição
secular entre a França e a Alemanha": de facto, "foi porque a
união da Europa não foi antes alcançada que tivemos a Guerra"
(a 2.' Grande Guerra). Por isso, da execução do Plano, dizia ele,
resultariam "os primeiros passos concretos para uma Federação
isso, em 27 de maio de 1952 assinam em Paris o Tratado que criava
a Comunidade Europeia de Defesa (CED). Note-se que a criação
desta Comunidade fora estimulada, de modo especial, pela OTAN,
na reunião do seu Conselho que teve lugar em Lisboa, em fevereiro
desse ano.
Preocupada com o rumo dos acontecimentos, o Reino Unido
tenta alterá-lo. Para tanto, faz a Assembleia Consultiva do Conselho
da Europa aprovar o Plano Eden, segundo o qual o Conselho da
Europa absorveria as Comunidades supranacionais já criadas ou a
instituir. Mas a Alemanha e a Itália vetam esse plano no Comité de
Ministros do Conselho da Europa e ele, por conseguinte, é abandonado.
Com o estímulo que advinha da assinatura do Tratado CED, a
Assembleia ad hoc, criada em 10 de setembro de 1952, aprova o
projeto de Tratado que instituiria uma Comunidade Política Europeia (ComPE). Essa Comunidade teria como objeto salvaguardar os
Direitos do Homem, garantir a segurança dos Estados-membros
contra qualquer agressão, coordenar a sua política externa e estabelecer progressivamente um Mercado Comum. Ela absorveria, desse
modo, a CECA e a CED. Ou seja, o método funcional seria substituído, na integração europeia, pelo método global, que, aliás, fora o
único pensado no Congresso de Haia 17 •
O projeto do Tratado ComPE ficou redigido em 15 de março
de 1954.
Todavia, já depois de todos os outros parlamentos nacionais o
terem aprovado, a Assembleia Nacional francesa, em 30 de agosto
de 1954, recusa a ratificação do Tratado que criava a CED. Esse
facto leva ao abandono do projeto do Tratado que instituiria a
ComPE: não fazia sentido uma Comunidade Política Europeia sem
a integração no plano militar, ou seja, sem a criação de um "exército
europeu" com um comando unificado. Na sequência destes acontecimentos, JEAN MONNET, que, por escolha dos Estados, era o primeiro Presidente da Alta Autoridade da CECA, pede a exoneração
do cargo e retira-se da vida política.
europeia indispensável à preservação da Paz" e "assente na Paz, na
solidariedade europeia e no progresso económico e social"l'.
O Reino Unido reage, logo em 2 de junho, ao Plano Schuman:
ele rejeita a ideia de uma entidade dotada de poderes supranacionais.
Mas, no dia seguinte, a Alemanha, a Itália e os três Estados do Benelux resolvem aderir àquele Plano. Das negociações então iniciadas
resultaria a assinatura, pelos Seis, em 18 de abril de 1951, do Tratado
que instituía a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA),
cuja entrada em vigor ficou marcada para 25 de julho de 1952.
Mas a clivagem entre o Reino Unido e os outros Estados da
Europa Ocidental ir-se-ia agravar. Em lO de dezembro de 1951,
SPAAK abandona a presidência da Assembleia Consultiva do Conselho da Europa em sinal de protesto contra a atitude muito reservada
do Reino Unido em relação à integração europeia. Ele proferiu na
altura esta declaração, que ficou célebre: "Para a Europa, a alternativa é simples: ou alinhar-se pelo Reino Unido e renunciar à construção da Europa, ou tentar-se construir a Europa sem o Reino
Unido. Eu, pelo meu lado, escolhi a segunda hipótese".
Entusiasmados com a criação da CECA, os Seis decidem retomar a componente política do processo de integração, que fora
sugerida pelo Congresso de Haia mas havia sido abandonada pela
criação do Conselho da Europa numa base intergovernamental. Por
16 Sobre o Plano Schuman, V., especialmente, a análise que dele faz REUTER,
Le Plan Schuman, e, mais recentemente, WILKENS.
44
17
Veja-se, outra vez, a nossa dissertação de doutoramento, loco cif..
45
Introdução
A História da integração europeia
Convencidos de que não estavam ainda preparados para a integração em domínios políticos, os Seis regressam à integração sectorial. Por isso, resolvem relançar a integração económica na
Conferência de Messina, de junho de 1955. Aí é aprovada a criação
de um "Mercado Comum Europeu" e de uma Comunidade para a
energia nuclear. Na sequência disso, o Relatório Spaak, de maio de
1956, inclui os projetos de dois Tratados, visando criar, respectivamente, a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA ou Euratom).
As negociaçães em torno dos dois projetos andam depressa e,
em 25 de março de 1957, são assinados em Roma, dois Tratados,
que criam aquelas Comunidades, embora só o que criou a CEE
tenha ficado conhecido por Tratado de Roma. Subsidiariamente, na
mesma data e no mesmo local, é assinado um terceiro Tratado, em
bom rigor, o terceiro Tratado de Roma, intitulado Convenção relativa a certos órgãos comuns às Comunidades Europeias, que criou
para as três Comunidades uma única Assembleia, um único Tribunal
e um único Comité Económico e Social. Era o primeiro "Tratado de
fusão" de órgãos comunitários. O segundo Tratado de fusão, verdadeiramente o único conhecido como tal, viria a ser o Tratado que
cria um Conselho único e uma Comissão única para as Comunidades Europeias, e seria assinado em 8 de abril de 1965.
Os três Tratados de Roma entram em vigor em I de janeiro de
1958. Nessa data, com a existência das três Comunidades, fica definido o esqueleto da integração que iria durar até I de janeiro de 1993.
Logo a seguir, os Seis escolhem para primeiro presidente da
Comissão da CEE o alemão WALTER HALLSTEIN, Professor de Direito
Público em Heidelberga e que fora Ministro dos Negócios Estrangeiros de ADENAUER.
Comunidades, o Reino Unido toma a iniciativa de criar uma simples
zona de comércio livre. Convence a aderir a esse projeto Estados
que, por razões económicas e políticas, não aspiravam a aderir às
Comunidades, pelo menos no imediato: era o caso da Áustria, da
Dinamarca, da Noruega, da Suécia, da Suiça e de Portugal. Todos
estes Estados e o Reino Unido assinam, em 4 de janeiro de 1960,
a Convenção de Estocolmo, que cria a Associação Europeia de
Comércio Livre (EFrA, na sigla inglesa, AELE, na sigla francesa).
Nesse mesmo ano, a OECE dava por esgotado o seu objeto - a
recuperação da Europa, destruída pela Guerra, e a administração do
Plano Marshall- e cedia o seu lugar à OCDE. Esta nova Organização era muito mais ambiciosa do que a sua antecessora: não era uma
Organização meramente europeia e estava aberta a todos os Estados
de Economia de Mercado; preocupava-se, de modo especial, com o
desenvolvimento; e não prosseguia finalidades meramente económicas.
Entretanto, em 5 de setembro de 1960 o Presidente CHARLES DE
GAULLE surpreendia os seus parceiros das Comunidades ao propor o
reforço da cooperação política entre os Seis e a instituição, para o
efeito, da União Política Europeia, a criar mediante um referendo
europeu. Esta ideia dava corpo à conceção da "Europa das Pátrias"".
A proposta de DE GAULLE encerrava, em si mesma, uma contradição
substancial. De facto, ao mesmo tempo que defendia a "unificação"
da Europa, ela aceitava que os órgãos da União tivessem só atribuições "técnicas", nos domínios da Política, da Economia, da Cultura
e da Defesa, e recusava que eles exercessem "autoridade sobre os
Estados".
Foi esta conceção de DE GAULLE que se materializou num projeto de tratado que ficou conhecido por Plano Fouchet. Este defendia a criação de uma União Política confederal, melhor dito, uma
união indissolúvel dos Estados-membros, com personalidade jurídica própria, e "baseada no respeito pela personalidade dos Povos e
8. Da criação das Comunidades ao primeiro alargamento
!
Pressentindo os efeitos perniciosos para si, do facto de ter
ficado à margem da CEE, mas, ao mesmo tempo, continuando a não
estar disposto a aceitar a conceção supranacional que presidia às três
18 Constitui um erro histórico muito frequente atribuir-se esta conceção a
DE. GAULLE: o seu autor foi o Primeiro-Ministro francês MICHEL DÉBRÉ, em 1959
- veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pg. 146, n. 400, e demais bibliografia aí citada.
46
47
:I
1
'.
,
I
Introdução
A História da integração europeia
dos Estados-membros". Era a segunda tentativa - a primeira ocorrera, como vimos, em 1952 - de se criar uma Comunidade Política
Europeia de caráter global. Mas também esta tentativa não teve
sucesso, porque a ideia da União Política não foi aceite por alguns
dos outros Estados-membros das Comunidades. Dela, todavia, a
França e a Alemanha aproveitam, num plano puramente bilateral, a
ideia da cooperação política, que se materializou no Tratado de
Amizade e Cooperação entre aqueles dois Estados, assinado em
Paris por DE GAULLE e ADENAUER (dois dos estadistas europeus
carismáticos do pós-guerra), em 22 de janeiro de 1963 (também
conhecido por Tratado do Eliseu).
no fim da década de 90, e que o Plano Tindemans viria a estar presente em todas as tentativas posteriores de criação e de aprofundamento da integração política LO.
Entretanto, a Grécia tornava-se, em 1981, no décimo membro
das Comunidades, após cinco anos de negociações. Nesse mesmo
ano, os Ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e da Itália, respetivamente, HANS-DIETRICH GENSCHER e EMILlO COLOMBO,
apresentam, a título pessoal, o Plano Genscher-Colombo, visando
dessa forma relançar e aprofundar a integração europeia. A grande
novidade desse Plano residia no facto de ele trazer anexo a si uma
proposta de um "Tratado sobre a União Europeia". Bem aceite nos
seus aspetos políticos, este Plano não teve, no domínio jurídico,
melhor sorte do que o Plano Tindemans. Nem mesmo chegou a ser
aprovado como declaração de princípios pelo Conselho Europeu,
como era desejado pelos seus autores.
Maior retumbância teve o chamado Tratado Spinelli. Ele resultou de uma iniciativa do eurodeputado independente, eleito na lista
do Partido Comunista italiano, ALTIERO SPINELLl. Este apresentou ao
Parlamento Europeu um Projeto de Tratado sobre a União Europeia. O Projeto retomava muitas ideias do Plano Tindemans e,
sobretudo, alargava substancialmente as atribuições das Comunidades, que seriam substituídas pela "União Europeia", e os poderes do
Parlamento Europeu. Mas a maior inovação do Projeto residia no
facto de ele, no art. 82.°, par. 2, permitir que, assim que o Tratado
tivesse sido ratificado por uma maioria de Estados-membros das
Comunidades cuja população englobasse dois terços da população
global das Comunidades, os Estados que honvessem ratificado o
Tratado se reunissem para decidir sobre "os procedimentos e a data
de entrada em vigor" do Tratado. Todavia, era pacífico na doutrina
que os Estados que tivessem ratificado o Tratado não podiam, em
qualquer caso, pô-lo em vigor para aqueles que o não tivessem ratificado 20 •
9. Do primeiro alargamento à criação da União Europeia
Em face da evolução do processo da integração europeia, o
Reino Unido decide pedir a abertura de negociações com as Comunidades com vista à sua adesão. Por duas vezes - em 1963 e 1967 a França opôs-se a essa adesão. Só depois da renúncia de DE
GAULLE, em 1969, a Cimeira de Haia desse ano, ao aprovar o tríptico
"alargamento, aprofundamento, acabamento", dá uma resposta
positiva ao pedido britânico, donde resulta que o Reino Unido, a
Dinamarca e a Irlanda aderem em 1 de janeiro de 1973 às três
Comunidades. A Noruega, que também negociara a adesão, vê-se
obrigada a ficar de fora, porque o povo norueguês recusou, em referendo, o projeto do Tratado de adesão. A Europa dos Seis passava,
dessa forma, a Europa dos Nove.
Tentando acelerar o processo, a CEE resolve preparar uma
União Económica e Monetária. Contudo, três tentativas nesse sentido - o Plano Barre, de 1969, o Plano Weriler, de 1970, e a Iniciativa Jenkins, de 1977 - fracassam, por falta de vontade política.
Igual destino teve novo esforço no sentido de se criar uma União
Política: o Relatório Tindemans sobre a União Europeia, de 1975.
Diga-se, todavia, por respeito pela verdade histórica, que os Planos
Barre e Werner se revelaram de grande utilidade na inspiração da
União Económica e Monetária, que seria alcançada, como veremos,
48
19 Para ZORGBIBE, o Plano Tindemans representa a primeira tentativa de se
dar uma "perspetiva constitucional" à integração europeia - pg. 164.
20 Assim, sobretudo, o Comentário de CAPOTORTl/HJLFIJACOBSIJACQUÉ, Le
Traité d'Unioll Européenne, Bruxelas, 1985, pgs. 281 e segs.
49
Introdução
A História da integração europeia
o Projeto foi aprovado pelo Parlamento Europeu em 14 de
fevereiro de 1984.
Todavia, também esta iniciativa não teve seguimento, apesar
de alguns Estados não terem hesitado em ratificá-Io2l.
Em 12 de junho de 1985, Portugal e a Espanha, respetivamente, em Lisboa e Madrid, assinam, com as Comunidades, o respetivo Tratado de adesão. Portugal havia requerido a abertura de
negociações em março de 1977 e a Espanha em julho do mesmo
ano. O Tratado de adesão entrou em vigor em I de janeiro de 1986.
Construía-se, desse modo, a Europa dos Doze, com 320 milhões de
cidadãos. Com a entrada dos dois Estados da Península Ibérica
aprofundou-se a distância entre os Estados ricos e pobres das Comunidades e, por isso, não admira que tenha sido então que começaram
a surgir no léxico da integração europeia expressões como "integração a duas velocidades", "Europa de geometria variável", "Europa
à carta", etc. Essas expressões exprimiam a conceção segundo a
qual os Estados mais ricos deviam assumir a função de "locomotiva" da integração e gozar das regalias a isso inerentes, podendo,
inclusivamente, avançar na integração mais depressa do que os
outros 22•
Por outro lado, os sucessivos alargamentos das Comunidades
haviam tornado imperiosa e urgente a reforma do seu processo de
decisão Uá então designada de "reforma institucional") e, ligado a
ela, também o aprofundamento da integração.
É nesse quadro que surge o Ato Único Europeu. Ele foi aprovado na reunião do Conselho Europeu no Luxemburgo, em 2 e 3 de
dezembro de 1985 (ainda com dez Estados-membros), e assinado, já
pelos Doze, no Luxemburgo e em Haia, respetivamente em 17 e em
28 de fevereiro de 1986. Ainda que consistisse na primeira revisão
substancial dos Tratados de Paris e de Roma, a ele presidiu o critério do "minimalismo pragmático"", de modo a tomar possível a sua
ratificação pelos Doze. Mesmo assim, o AUE só entrou em vigor em
I de julho de 1987.
A principal inovação do AUE residia na previsão da criação do
Mercado Interno Comunitário para 1993, dispondo sobre os meios
de ele ser alcançado. O Mercado Interno era definido, na redação
que o AUE dava ao novo artigo 8. o_A, parágrafo 2, do Tratado CEE,
como "um espaço sem fronteiras internas".
Ver o texto do Tratado em 10 TI. o C 77, de 19-3-84, o estudo de lACQUÉ,
The treaty establishing lhe European Uniol1, CMLR 1985, pgs. 19 e segs., e o
citado Comeotário de CAPOTORH et aI.
22 Sobre o alargamento das Comunidades a Portugal e à Espanha, ver QUADROS, Les problemes politiques et constitutionnels de l'élargissement, in J. W.
Schneider (ed.), FIOm Nine to Twelve: Europe's destiny?, Alphen ao den Rijo,
1980, pgs. 163 e segs.
21
50
10. A União Europeia: de Maastricht a Nice
I - O Tratado de Maastricht
Entretanto, com a aproximação de 1993 e, consequentemente,
o esgotamento do objeto do AUE, o Conselho Europeu, na sua reunião extraordinária de Dublin, de 28 de abril de 1990, resolve,
dando seguimento à iniciativa conjunta do Chanceler HELMUT KORL
e do Presidente FRANÇOIS MlTERRAND, de 19 do mesmo mês, convocar duas Conferências Intergovernamentais, visando criar, uma, a
União Política, outra, a União Económica (englobando a União
Monetária). Dessas duas Conferências Intergovernamentais resulta
a aprovação, na Cimeira de Maastricht, de 9 e 10 de dezembro de
1991, de um único Tratado, o Tratado da União Europeia (TUE). A
fusão dos dois Projetos de Tratado num só Tratado ficou a dever-se
a duas razões: a necessidade de se mostrar que a União Económica
e Monetária (UEM) e a União Política eram incindíveis e, concretamente, que a primeira só seria sustentável com a segunda; e o desejo
de se evitar vinte e quatro ratificações, o que tornaria penoso, e de
resultado incerto, o processo de conclusão dos dois Tratados, pelos
então doze Estados-membros.
23 WERNER WElDENFELD,
Was ist die Idee Europas?, in Aus Politik und Zeit-
geschichte, vo1. 23-2411984, pg. 7.
51
Introdução
A História da integração europeia
Esse Tratado da União Europeia viria a ser aprovado pelo Tratado de Maastricht, assinado naquela cidade holandesa já durante a
presidência portuguesa das Comunidades, em 7 de Fevereiro de 1992.
O Tratado de Maastricht levou a cabo a mais profunda e ampla
revisão dos Tratados Comunitários desde os Tratados de Paris e de
Roma. A grande ambição que o moveu encontra-se bem documentada no primeiro considerando do seu preâmbulo, onde os Estados
se declaram, através desse Tratado, "resolvidos a assinalar uma
nova fase no processo de integração europeia iniciado com a instituição das Comunidades Europeias" (itálico nosso).
Podemos resumir as grandes novidades do TUE às seguintes:
ele previa a conclusão da União Económica e Monetária para 1999-2002; as atribuições da integração, elencadas, até então, sobretudo
no artigo 2.° do Tratado CEE, deixavam de ser essencialmente económicas, para se estenderem aos domínios social e cultural, como se
pode ver pela redação dada pelo Tratado de Maastricht aos artigos
2.° e 3.° do Tratado CE [daí, inclusivamente, o facto de à antiga
Comunidade Económica Europeia ter sido retirado o qualificativo
de "Económica" e ela ter passado a designar-se apenas por Comunidade Europeia (CE)]; criava-se a "cidadania da União" (Parte II do
Tratado CE); era instituída a Política Externa e de Segurança
Comum (PESC), ainda que, fundamentalmente, numa base intergovernamental, mas incluindo já a previsão da criação, 4'a prazo", de
uma política 'comum de defesa (Título V do Tratado UE); criava-se
um mecanismo de cooperação, também de caráter intergovernamental, em matéria de justiça e de assuntos internos, com a sigla ClAI
(Título VI do TUE); aprofundava-se a integração em matéria de
processo de decisão ao nível comunitário (a chamada "reforma institucional" das Comunidades), atribuindo-se ao Parlamento Europeu
um poder de co-decisão em relação ao Conselho e o poder de investir a Comissão, e alargando-se a regra da maioria qualificada nas
votações do Conselho em detrimento da regra da unanimidade.
O Tratado de Maastricht entrou em vigor em I de novembro de
1993.
Entretanto, e também durante a primeira presidência portuguesa das Comunidades Europeias, mais concretamente, a 2 de
maio de 1992, era assinado no Porto o Acordo que criou o Espaço
Económico Europeu (EEE), que viria a entrar em vigor em I de
janeiro de 1994. Esse acordo aprofundava as relações, que já existiam, entre, por um lado, a Comunidade Europeia e os seus Estados-membros, e, por outro lado, a EFTA e os seus Estados-membros:
então, a Islândia, o Liechtenstein, a Noruega, a Áustria, a Finlândia
e a Suécia. A Suiça, apesar de ter assinado o Acordo, não o ratificou,
por o ter recusado por referendo de 6 de dezembro de 1992. O EEE
apresenta como sua grande originalidade o facto de os seus Estados
se regerem pelo Direito Comunitário na matéria das "quatro liberdades" (de circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais).
Ele vinha instituir um espaço económico homogéneo, assente em
regras comuns e condições iguais de concorrência, que facilitassem,
no futuro, a adesão à União Europeia dos Estados da EFTA.
Com a adesão à União Europeia, em 1995, da Áustria, da Finlândia e da Suécia, o EEE viu a sua importância reduzida.
Entretanto, com a adesão desses três Estados, a União passou
a ter quinze membros. A Noruega, mais uma vez, viu-se impedida,
por referendo nacional, de aderir.
Na sequência das profundas alterações geopolíticas provocadas na Europa Central e do Leste após o derrube do Muro de Berlim,
em 1989, e o desmembramento da ex-União Soviética, em 1991, e
da consequente democratização dos Estados que compunham o
bloco soviético, muitos desses Estados apressaram-se, logo no início dos anos 90, a manifestar a sua vontade de aderir à União Europeia, não tardando em tornar-se membros do Conselho da Europa (e,
mais concretamente, em ser partes na Convenção Europeia dos
Direitos do Homem) e em aderir à OTAN ou em estabelecer com ela
laços estreitos.
52
53
II - O Tratado de Amesterdão
O TUE previa a sua revisão em 1996 (artigo O). Dai resultou
a assinatura do Tratado de Amesterdão, que teve lugar naquela
cidade, em 2 de outubro de 1997, como fruto da Conferência lnter-
Introdução
A História da integração europeia
governamental que iniciou os seus trabalhos em 1996, na sequência
do programa de revisão fixado pelo Conselho Europeu, na sua reunião de Turim, de 29 de março desse ano.
O Tratado de Amesterdão entrou em vigor em I de maio de
1999.
Não foram grandes as modificações trazidas pelo Tratado de
Amesterdão ao TUE. Na sua preparação imperou um forte pragmatismo: à beira de se entrar na União Monetária, o que aconteceu em
I de janeiro de 1999, convinha evitar que se aprofundassem as feri-
mental de 2000 preparou uma nova revisão dos Tratados, que
desembocou no Tratado de Nice, aprovado naquela cidade francesa
na Cimeira de 10 e II de dezembro de 2000, e assinado mais tarde,
também em Nice, em 26 de fevereiro de 2001.
O Tratado de Nice entrou em vigor em I de fevereiro de 2003.
À margem daquela Cimeira, em 7 de dezembro de 2000,
mediante uma proclamação conjunta, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão Europeia aprovaram a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Essa Carta não foi incorporada nos
Tratados.
das abertas pelos avanços, considerados, por alguns Estados, exces-
sivos, que haviam sido trazidos pelo Tratado de Maastricht.
Todavia, não é correto afirmar-se, como se faz por vezes, que
a revisão de Amesterdão absorveu os "restos" de Maastricht, isto é,
apenas incluiu nos Tratados o que não havia sido objeto de acordo
na revisão de 1992. Trata-se de uma visão demasiado redutora da
revisão de Amesterdão. Ela foi mais longe, porque veio criar um
"espaço de liberdade, segurança e justiça" (expressão que, entretanto, se tornou emblemática para a União Europeia), através do
reforço do pilar comunitário em detrimento do terceiro pilar ou seja,
da CJAI. Além disso, ela consagrou avanços em matéria de simplificação, aperfeiçoamento e eficácia do poder de decisão na União
(tendo já, para o efeito, em vista os seus futuros alargamentos), de
maior aproximação da União quanto aos cidadãos, de reforço do
caráter democrático da União e de aumento da sua capacidade de
intervenção nas relações externas.
II. O Tratado Constitucional Europeu
Bibliografia especial: ANA MARTINS, O Projecto de Constituição
Europeia, 2. 3 ed., Coimbra, 2004; o número monográfico de O Direito,
2005, IV-V; V. CONSTANTINESCO, Y. PETIT e V. MICHEL, Le Traité établissant une Constitution pour l'Europe - analyses et commentaires, Estras~
burgo, 2005; M. DONY e E. BRlBOSlA, Conunentaire de la Constitution de
['Union européenne, Bruxelas, 2005; J.-c. PIRIS, Le traité cOl1stitution/leI pour ['Europe: une analyse juridique, Bruxelas, 2006.
Aproximavam-se, contudo, os novos alargamentos, que se
sabia que iriam ser maciços e que iriam abranger Estados, sobretudo
da Europa Central e do Leste, muito diferentes entre si, e, seguramente, muito diferentes dos Quinze. Mas não tinham ficado concluídas na revisão de Amesterdão as modificações, no plano institucional, que se julgava serem adequadas e necessárias para adaptar
a União a esses alargamentos. Por isso, a Conferência Intergoverna-
Todavia, a União Europeia entendia que chegara a hora de
aprofundar a integração política. E por duas razões.
Primeiro, para se dar base de sustentação à própria União Económica e Monetária já alcançada. De facto, sentia-se há muito que
os progressos alcançados na integração económica e monetária não
tinham correspondência na integração política. A União tinha alcançado, portanto, como se dizia de modo feliz, o estádio de "um
gigante económico mas um anão político". Daí resultava mesmo
uma ameaça séria à União Económica e Monetária que, para sobreviver, precisava de uma maior integração política que lhe servisse
de suporte.
A segunda razão para se aprofundar a integração política residia no facto de ser necessário compensar o efeito diluidor que à
integração ia ser trazido pela adesão maciça de tantos e tão diferentes Estados.
54
55
III - O Tratado de Nice
Introdução
A História da integraçüo europeia
Para tanto, a União decidiu atuar em duas fases.
Numa primeira fase, e na sequência das conclusões da reunião
do Conselho Europeu de Gotenburgo, de julho de 200 I, o Conselho
Europeu, na Cimeira de Laeken/Bruxelas, de 14 e IS de dezembro
do mesmo ano, aprovaria a constituição de uma Convenção para
debater o "futuro da Europa". Por isso, ela veio a chamar-se Convenção sobre o Futuro da Europa (abreviadamente, Convenção
Europeia). Essa Convenção, com a qual se quis repetir a experiência
da Convenção que havia preparado em 2000 a Carta dos Direitos
Fundamentais, e que dera bons resultados, foi composta por cento e
cinco membros efetivos (e outros tantos suplentes), que lhe davam
tratado internacional que dava corpo a uma Constituição material,
como veremos ao longo deste livro.
O Tratado foi assinado pelos vinte e cinco Estados membros em Roma, em 29 de outubro de 2004. A assinatura em Roma
ocorreu a pedido da Itália, para, simultaneamente, se assinalar o
regresso às origens (fôra em Roma, como se viu atrás, que haviam
sido assinados, em 1957, os Tratados CEE e CEEA) e a refundação do processo de integração europeia, agora na era constitucional.
O Tratado saído da CIG continha algumas alterações em relação ao Projeto aprovado pela Convenção sobre o Futuro da Europa.
. Pode dizer-se, em síntese, que o Tratado dava à União Europeia o
salto qualitativo que foi possível, isto é, que pôde reunir o consenso
dos que participaram na sua feitura. Isso não impedia que se reconhecesse que, no plano substancial, ele ficava aquém das necessidades da União Europeia em face dos desafios que ela então tinha de
enfrentar, nomeadamente, nos dOITÚnios da segurança, do combate
ao terrorismo, da defesa e da globalizaçãO.
Iniciou-se então o processo de ratificação do Tratado pelos
Estados, em conformidade com as respetivas normas constitucionais. O início desse processo augurava um percurso não complicado: o Parlamento da Lituânia aprovou o Tratado para ratificação
logo em II de novembro de 2004, e, no primeiro referendo a que o
Tratado foi sujeito, na Espanha, 76,7% dos votantes aprovaram o
Tratado, com uma taxa de participação de 42,3%.
Todavia, a França, onde o Presidente da República tomara a
iniciativa de referendar o texto do Tratado em 29 de maio de 2005,
54,8% dos cidadãos pronunciaram-se contra o Tratado, sendo o
referendo vinculativo. Dias depois, em I de junho, também o povo
dos Países Baixos Se pronunciou, em referendo, contra o Tratado,
por 61,7% de votos. Aqui, o referendo não era vinculativo, mas o
Parlamento havia deliberado previamente que seguiria o sentido de
uma composição mista: representação dos governos e dos parlamen-
tos nacionais; representação dos órgãos da União e dos Estados-membros. Também participaram nela os treze Estados candidatos à
adesão, embora sem o poder de impedir o consenso que se viesse a
estabelecer entre os Estados-membros. Desse modo, a Convenção
veio a ser composta por, para cada Estado, um representante dos
Chefes de Estado ou de Governo (15+13) e dois delegados dos parlamentos nacionais (30+26), e por 16 deputados do Parlamento
Europeu e 2 representantes da Comissão.
A Convenção apresentou em 20 de junho de 2003, ao Conselho
Europeu, reunido em Salónica, o seu Projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.
Passou-se, então, à segunda fase, que consistiu na discussão
desse Projeto por uma Conferência Intergovernamental convocada
para o efeito. Essa CIG iniciou os seus trabalhos em 6 de outubro do
mesmo ano e quis terminá-los na Cimeira de Bruxelas, de Dezembro também de 2003, onde, todavia, se constatou que não havia
acordo entre os Estados sobre alguns pontos concretos do Projeto.
Por isso, os trabalhos da CIG continuaram em 2004, tendo eles
desembocado na aprovação, na reunião do Conselho Europeu, em
Bruxelas, de 18 de junho de 2004, durante a presidência irlandesa
da União, do texto do Tratado que estabelece uma Constituição
para a Europa, que ficaria conhecido por Tratado Constitucional
Europeu ou apenas Tratado Constitucional. Não era, pois, uma
Constituição da União Europeia em sentido formal, mas apenas um
56
voto expresso no referendo.
Em face da situação criada, o Conselho Europeu, na sua reunião de 16 e 17 de junho de 2005, decidiu levar a cabo uma "reflexão" sobre as inquietações expressas pelos cidadãos franceses e
57
Introdução
holandeses, embora deixando claro que o processo de ratificação
não seria interrompido.
Tomando consciência de que era improvável que a posição dos
cidadãos franceses se alterasse antes das eleições presidenciais de
2007, o Conselho Europeu, na sua reunião de 15 e 16 de junho de
2006, resolveu prolongar por mais um ano essa pausa para reflexão.
Isso não impediu que muitos Estados, em 2005 e 2006, fossem ratificando o Tratado. Em junho de 2007 (veremos adiante por que
razão esta data era um importante ponto de referência) dos vinte e
sete Estados-membros dezoito tinham ratificado o Tratado, inclusive Portugal.
Sabia-se, porém, que o Tratado não seria ratificado por todos
os Estados signatários, desde logo, porque a França o não iria ratificar. De facto, o novo Presidente da República, NICOLAS SARKOZY,
tinha afirmado, na campanha eleitoral de 2007, que considerava o
Tratado "morto" após o voto negativo do referendo na França.
Por tudo isso, a data de I de novembro de 2006, que, em princípio, e sem caráter vinculativo, tinha sido, quando da assinatura do
Tratado, prevista como a data da Sua entrada em vigor, foi definitivamente abandonada.
É certo que na Declaração por ocasião do 50. o aniversário da
assinatura dos Tratados de Roma, mais conhecida por Declaração
de Berlim, assinada pelos Estados-membros em 25 de março de
2007, estes comprometiam-se a prosseguir "o objetivo de, até às
eleições para o Parlamento Europeu de 2009, dotar a União Europeia de uma base comum e renovada". Só que nada ficou estabelecido então sobre o modo de se alcançar esse objetivo dentro desse
prazo, nem ficou definido o que se entendia por "base comum e
renovada". Todavia, parecia ser evidente que qualquer alteração a
introduzir no Tratado Constitucional já assinado, ou qualquer tratado que Oviesse a substituir, a título provisório ou definitivo, teria
de obedecer a um novo processo de ratificação pelos vinte e sete
Estados-membros.
58
A Histó/-ia da integração europeia
12. Da Europa de Quinze à Europa de Viute e Sete
Abrimos aqui um breve parêntesis na evolução dos Tratados
para referir que, entretanto, em I de maio de 2004 aderiram à União
dez novos Estados. Foram doze os Estados que negociaram conjuntamente a adesão à União, mas a Bulgária e a Roménia não concluíram as suas negociações a tempo de subscreverem, em 16 de
abril de 2003, o Tratado de adesão que englobou os outros dez24
Em I de maio de 2004 tornaram-se, por conseguinte, membros da União, a República Checa, a Estónia, Chipre, a Letónia, a
Lituânia, a Hungria, Malta, Polónia, a Eslovénia e a Eslováquia.
Repare-se que este segundo alargamento abrangeu oito Estados chamados da Europa Central e do Leste, que, até ao início da década de
noventa, eram Estados ditatoriais ou faziam parte integrante da
antiga União Soviética. Portanto, este alargamento teve especial
significado político para a União, porque se traduziu, antes de mais,
numa forma de esta ajudar à reconstrução da Democracia nesses
Estados". Isso não significa, contudo, que este alargamento não
tenha colocado inúmeros e complexos problemas à Uniâo, alguns
dos quais ainda não estão resolvidos.
A Roménia e a Bulgária concluíram, entretanto, as Suas negociações para a adesão, de forma a tomarem-se membros da União
em I de janeiro de 2007, o que efetivamente aconteceu. O respetivo
Tratado de adesão foi assinado em 25 de Abril de 2005 26 •
Entretanto, a 3 de outubro de 2005 iniciaram-se formalmente
negociações para a adesão da Croácia e da Turquia. O mesmo
aconteceu pouco depois com a Macedónia. Desses três processos
está concluído o da Croácia, que se tornará no vigésimo oitavo
me,mblro da União em I de julho de 2013. O respetivo Tratado de
adesão foi assinado em 9 de dezembro de 20 li".
" JO de 23-9-2003.
Ver GAUTRON, L'élargissement de I'Uniol1 européelllle aux pays de I'Eu~
rape centrale et orienta/e, RAE 1995, pgs. 105 e segs.; M. LEFEBVRE, Le grand
bonei vers ['est: une nouvelle Europe, RMC 2004, pgs. 281 e segs.
" JO L 157, de 21-6-2005.
" JO L 112/21, de 24-4-2012.
25
59
Introdução
Este alargamento era inevitável. Como dissemos atrás, em
grande parte os novos Estados-membros entravam para a União em
busca da consolidação do seu regime democrático, conquistado poucos anos antes e depois de terem vivido durante muitas décadas sob
regimes autoritários. Mas a quase duplicação, num ápice, de 2004 a
2007, do número de Estados-membros, de Quinze para Vinte e Sete,
tomava mais imperiosa a revisão dos Tratados, que estava em curso,
de modo a que estes pudessem dar a resposta adequada nos planos
institucional, económico e político, às novas exigências da União
alargada.
13. O Tratado de Lisboa
Bibliografia especial: além dos Comentários aos Tratados posteriores à assinatura do Tratado de Lisboa, l-C. PIRIS, The Lisbon Treaty
- A Legal and PoliticaI Analysis, Cambridge, 2010; P. GRAIG, Tlle Lisbon Treaty - Law, Politics and Treaty Reform, Oxford, 2010; R. STREINZ,
C. OHLER e C. HERRMANN, Der Vertrag von Lissabon zur Reform der EU,
3
3. ed., Munique, 201O~ O Tratado de Lisboa, Cadernos O Direito, n,o 5,
2010; LUISA DUARTE, Estudos sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra,
2010; M. 1. RANGEL DE MESQUITA, A União Europeia ap6s o Tratado de
Lisboa, Coimbra, 2010; ANA MARTINS, Ensaios sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2011; NUNO PIÇARRA (coord.), A União Europeia segundo
o Tratado de Lisboa, Coimbra, 2011~ INSTITUTO DE C1I::NCIAS JURfDICO-PoLíTICAS DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA,
O Tratado de Lisboa, Coimbra, 2012.
Retomemos então a História dos Tratados depois do fracasso
do Tratado Constitucional. A presidência alemã da União Enropeia (qne decorreu no primeiro semestre de 2007) e a Comissão
Europeia passaram a interpretar o objetivo, fixado pela citada
Declaração de Berlim de 25 de março de 2007, de dotar a União
Europeia de uma "base comum e renovada", como querendo ele
significar que, até à reunião do Conselho Europeu de 21 e 22 de
junho de 2007, este devia aprovar um "mandato claro e preciso"
para que fosse convocada uma Conferência Intergovernamental que
_ _ _ _ _ _ _ _A:.:.::Hc:ic:stc:ó~n~·a~d::.a~1.:::·llt.eg.~ra::!ç,..ã::'o
..e,..1l.ra2P'":e">ia'-.
aprovasse um novo Tratado que ultrapassasse o impasse do Tratado
Constitncional.
E foi o que aconteceu. Naquela reunião, e após porfiados esforços da presidência alemã, foi possível aos Estados-membros chegarem a acordo sobre o "Projeto de Mandato da CIG", que no léxico
da União ficou conhecido também por Mandato de junho de 2007.
Esse Mandato encarregava a CIO de elaborar um novo Tratado, que
se chamaria "Tratado Reformador". O objeto desse Tratado seria o
de manter os Tratados que estavam então em vigor mas introduziria
neles as inovações resultantes da CIO de 2004, isto é, constantes do
Tratado Constitucional. Ou seja, o Tratado Reformador, embora
." pusesse de lado o Tratado Constitucional, aproveitaria as inovações
trazidas por este. O TUE manteria a sua denominação mas o Tratado
CE passaria a ser designado de Tratado sobre o Funcionamento da
União Europeia (TFUE). O Projeto de Mandato já trazia anexas a si
as alterações a introduzir ao TUE e ao Tratado CE.
Na edição anterior deste livro, em língua francesa, analisámos
o conteúdo desse Mandato". Agora ele passou à História. Na sua
sequência, logo no início da presidência portuguesa da União, que
teve lugar durante o segundo semestre de 2007, foi convocada a
nova CIO a fim de ser elaborado o novo Tratado que desse execução
ao referido Mandato. Essa CIO desembocou no Tratado de Lisboa,
que foi assinado em 13 de dezembro de 2007, no Mosteiro dos Jerónimos.
O método escolhido pela CIO, na sequência do Mandato que
recebera, foi, como se disse, não o de substituir os Tratados então
em vigor por um novo e único Tratado, como fôra o caso do Tratado Constitucional, mas de, mais modestamente, introduzir alterações nos Tratados existentes: o Tratado da União Europeia, o
Tratado CE (que, como ficou referido, passava a chamar-se Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia - TFUE) e o Tratado
Euratom.
Cumprindo o que ficara estipulado no Mandato, o Tratado de
Lisboa respeitou grande parte das disposições constantes do Tratado
28
60
_
Ver a Parte V dessa edição.
61
Introdução
A História da integração ewvpeia
Constitucional. Foram, todavia, eliminadas do texto dos Tratados as
disposições de caráter formalmente constitucional, designadamente,
a referência à "Constituição" na epígrafe do Tratado, bem como aos
"símbolos" da União. Ou seja, a ousadia do Tratado Constitucional
de enveredar pelo método constitucional foi substituída pelo
regresso tímido ao método comunitário. Por outro lado, a subsistência de dois Tratados permitiu, não a eliminação completa dos pilares, como pretendera o Tratado Constitucional, mas a manutenção,
ao lado do pilar comunitário, agora dissolvido na União, salvo no
que respeita à sobrevivência da Euratom, também do segundo pilar,
agora chamado de Ação Externa, e com um regime especial centrado no TUE, ainda que com autonomia menos vincada do que no
TUE na versão de Nice.
O processo de ratificação do Tratado de Lisboa conheceu dificuldades. Os Estados, de um modo geral, optaram pela via parlamentar para se vincularem ao Tratado. Isso permitiu, desta vez, uma
fácil ratificação do Tratado pela França e pelos Países Baixos. Mas
não impediu que a Irlanda, onde pela Constituição era obrigatório
referendar o Tratado, o rejeitasse por referendo levado a cabo em 12
de junho de 2008. Como sempre aconteceu com referendos sobre
assuntos ligados à integração europeia, era difícil averiguar-se se
essa rejeição tinha a ver com o Tratado de Lisboa ou se com questões de política interna.
O processo de ratificação correu depressa noutros Estados-membros, salvo na Alemanha, onde havia sido suscitado perante o
Tribunal Constitucional federal o problema da constitucionalidade
do Tratado, e na Polónia e na República Checa, que tinham feito
depender da ratificação pela Irlanda a sua própria ratificação por via
parlamentar.
No que toca à Alemanha, o Tribunal Constitucional federal,
pelo seu denso e profundo Acórdão de 30 de junho de 2009, declarou a constitucionalidade do Tratado, ainda que sujeita à aprovação
pelo Parlamento de medidas complementares. Quanto à Irlanda, ela,
depois de obter concessões da parte do Conselho Europeu, organizou um novo referendo sobre o Tratado em 2 de outubro do mesmo
ano, que deu resultado positivo. Por conseguinte, a Polónia e a
República Checa ratificaram logo de seguida o Tratado. Desse
modo, este pôde entrar em vigor em 1 de dezembro de 2009.
62
63
14. A crise economlca e financeira e o Tratado Orçamental
Europeu de 2012
O Tratado de Lisboa não podia prever a crise económica e
financeira que se abateria sobre muitos Estados-membros a partir de
2009-2010, pondo em causa, designadamente, a subsistência da
União Económica e Monetária.
Essa crise, que atingiu alguns Estados-membros, particularmente dentro da União Económica e Monetária (especialmente, a
Irlanda, Grécia, Portugal, Itália e Espanha), veio colocar, em certos
meios políticos e económicos, a questão de saber se o Tratado de
Lisboa não deveria ser revisto de modo a permitir à União e aos seus
Estados-membros reagir de modo mais célere e eficaz perante esta
crise e as suas consequências no contexto alargado da União. Isso
obrigaria, segundo os mesmos meios, a aprofundar-se a integração
económica até ao ponto de haver o que se começou a chamar de
"governo económico europeu", e também a avançar-se na integração política, na medida em que ela fosse necessária para que a
União Económica e Monetária funcionasse de modo mais eficaz.
Daí resultaria "mais Europa", traduzindo-se isso, desde logo, na
atribuição de mais poderes à União para impor maior disciplina na
Zona Euro, isto é, no interior da União Económica e Monetária.
A União pensou em 201\ em rever os Tratados por forma a
prever e reger essa disciplina. Mas, na ausência de acordo da parte
do Reino Unido e da República Checa nesse sentido, optou-se por
um tratado internacional entre os outros vinte e cinco Estados. Foi
assim que esses Estados assinaram, em 2 de março de 2012, em
Bruxelas, o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, que passou a ser conhecido
abreviadamente por Tratado Orçamental Europeu.
Este Tratado, portanto, não alterou os Tratados em vigor. Ele
próprio prescreve, no seu artigo 1.0, que tem de ser interpretado e
A História da imegração europeia
Introdução
aplicado em conformidade com os Tratados da União. Contudo, ele
prevê, no artigo 16.°, que dentro de cinco anos seja integrado no
Direito da União. Este Tratado decorreu das novas atribuições de
coordenação que o Tratado de Lisboa veio conferir aos Estados no
artigo S.o, n.o 1, pars. 1 e 2, TFUE, e que se encontram pormenorizadas nos artigos 121.°, 126.° e 136. do mesmo Tratado. O Tratado
Orçamental Europeu entrará em vigor em 1 de janeiro de 2013
desde que doze Estados da Zona Euro o tenham ratificado (artigos
14.°, n.O' 2 e 3).
Esse Tratado veio reforçar a obrigação comum dos Estados de
não porem em perigo a realização dos objetivos da União Económica e Monetária (S.o considerando do Preâmbulo); e veio consolidar o vetor económico da UEM, promovendo a disciplina
orçamental quanto aos Estados que fazem parte dela, a coordenação
das suas políticas económicas e o melhoramento da governação da
Zona Euro, conciliando esses objetivos com o crescimento sustentável, o emprego, a competitividade e a coesão social (artigo 1.°). Para
tanto, o Tratado estabelece uma "regra de equilíbrio orçamental",
que se traduz nos novos limites de O,S% do Produto Interno Bruto
para o défice estrutural e de 60% do PIB para a despesa pública dos
Estados (artigo 3.°, n.o 1, b e d). Pelo Tratado, os Estados signatários
obrigam-se a incorporar depressa esses limites na sua ordem interna
através de "disposições vinculativas, permanentes e, de preferência,
a nível constitucional", que deverão ser respeitadas pelos orçamentos nacionais. O cumprimento dessa obrigação será fiscalizado pelo
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que, para o efeito,
dispõe de um poder sancionatório (considerandos 16.° e 17.° do
preâmbulo e artigos 3.°, n.o 2, e 8.°).
Portugal foi dos primeiros Estados a ratificar esse Tratado".
0
I
I
I
I:
,i
IS. Conclusão
Para a evolução do estudo do objeto desta obra é importante
este bosquejo histórico. Ele será aprofundado nas páginas seguintes,
quando tal se mostrar uecessário. O importante, a reter por agora, é
que a criação e a evolução das Comunidades Europeias e, depois,
da União Europeia, tem sido um processo contínuo e gradual, que
formou as suas raízes há muito tempo, particularmente após a
1." Grande Guerra, mas que ganhou os atuais contornos só após a
2.' Grande Guerra, mais concretamente, nos anos SO. De então para
cá o processo de integração europeia andou paulatinamente, por
entre avanços e recuos, sucessos e insucessos, oportunidades aproveitadas e oportunidades perdidas. Mas avançou. E a pouto de se
poder dizer que entre as três Comunidades que, com seis Estados-membros, na década de SO, pretenderam começar por uma zona de
comércio livre, e a União Europeia, que hoje, com vinte e sete,
quase vinte e oito, Estados-membros, alcançou a fase da União Económica e Monetária e avança, ainda que timidamente, na União
Política, vai uma distância enorme.
Mas a integração europeia é um processo que envolve Estados
democráticos. Por isso, o futuro da União (a começar, pelo modelo
de integração política a adotar) será aquele que os povos dos Estados-membros quiserem. O processo de ratificação do Tratado Constitucional Europeu e, depois, do Tratado de Lisboa, constituiu um
bom exemplo das dificuldades e dos desafios que a integração europeia coloca à vontade dos povos dos Estados. Por sua vez, como se
disse atrás, a crise que, já depois da entrada em vigor do Tratado de
Lisboa, veio a atingir gravemente alguns Estados-membros, suscita
a questão de saber se os Tratados fornecem à União os meios adequados para se ultrapassarem situações iguais a essa. É um debate
que irá continuar nos tempos mais próximos.
29 Para a compreensão das muitas questões jurídicas que o Tratado Orçamental Europeu coloca veja-se o extenso acórdão do Tribunal Constitucional
federal alemão, que se pronunciou pela sua constitucionalidade, com condições Ae. 12-9-2012, Proe. 2 BvR 1390/12 e outros, EuGRZ 2012, pgs. 569 e segs.
64
65
PARTE I
A UNIÃO EUROPEIA
Ili
i'
lI!
'I
CAPÍTULO I
DEFINIÇÃO E CARACTERIZAÇÃO GERAL
DA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: L.-J. CONSTANTINESCO, La nature juridique
des Communautés européennes, Liege, 1980; D. CAPOTORTI et aI., Le
traité d'Union Européenlle, Bruxelas, 1985; J. DE RUYT, L'acte unique
européen, Bruxelas, 1987; H. 1. KUSTERS, Fondements de la CEE, Paris,
1990; Y DOURIAUX, Le traitê Sl/r [,Uniou européenne, Paris, 1992; U.
EVERLlNG, Reflections 011 lhe structure 01 lhe European Uniol!, CMLR
1992, pgs. 1057 e segs.; A. PUAKOS, La nature juridique de l'Unton
eurapéenne, RTDE 1993, pgs. 187 e segs.; J. eLOOS, G. REINESCH e
D. VIGNES, Le traité sur f'Uniol1 curopéenne, Bruxelas, 1993; D. CURTIN,
The constitutiolIal structure of lhe UI11011: a Europe of bits and pieces,
CMLR 1993, pgs. 17 e segs.; ANA MARTINS, O Tratado da União Europeia - Contributo para a sua compreensão, Lisboa, 1993; F. LOUREIRO
BASTOS, A União Europeia, Lisboa, 1993; X. VOLMERANGE, Le fédéralisme allemand et l'intégration européenne, 1994; F. DE QUADROS e F.
LOUREIRO BASTOS, A União Europeia, DJAP, vol. VII, Lisboa, 1996, pgs.
543 e segs.; P. MANIN (diT.), La révision du traité sur ['Union européenne, perspetives et réalités, Paris, 1996; J.-v. LoUIS, Le traité d'Amsterdam. Une occasion perdue, RMUE 1997, pgs. 5 e segs.; A. DUFF, The
treaty of Amsterdam, Londres, 1997; AA.VV., Le traité d'Amsterdam,
número especial da RTDE 1997, pgs. 709-1102; Y. LEJEUNE (eoord.), Le
Traité d'Amsterdam, espoirs et déceptiol1s, Bruxelas, 1998; A. PREDlERI
e M. T=ANO (dir.), II Trattato di Amsterdam, Milão, 1999; M.
PANEBIANCO e C. RISI, Il nuovo diritto dell'Unione Europea, Nápoles,
1999, pgs. 39 e segs.; G. VERDERANE, Le Traité d'Amsterdam et ses suites: instruments de réalisation d'une identité européenne dans le
domaine de la politique extérieure, RMU 1999, pgs. 15 e segs.; ANA
69
Definição e caracterização geral da União Europeia
A União Europeia
MARTINS, A natureza jurídica da revisão do Tratado da União Europeia,
diss., Lisboa, 2000; P. MAGNETIE e E. REMACLE, Le nouveau modele
européen, 2 vols., Bruxelas, 2000; P. MAGNElTE, La constitution de
I'Europe, Bruxelas, 2000; 1. L. QUERMONNE, Le systeme politique européen. Des Comnul11autés européennes à l'Union erlropéenne, Paris,
4. a ed., 200 1; C. CANCELA OUTEDA, EI proceso de constitucionalización
de la Unión Europea -De Roma a Niza, Santiago de Compostela, 2001;
V. CONSTANTlNESCO, Y. GAUTIER e D. SIMON (dir.), Le Traité de Nice premieres analyses, Estrasburgo, 2001; G. ISAAC, Le "pilier" communautaire de ['Uni01l européenne, un "pilier" pas comme les autres, CDE
2001, pgs. 45 e segs.; J. SCHWARZE, Europãische Verfassrmgsperspektivell
l1aeII Nizza, NJW 2002, pgs. 993 e segs.; E. GARCiA DE ENTERRfA e R.
ALONSO GARCíA (dir.), La encrucijada constitucional de la Unión europea, Madrid, 2002; E. MAuLlN, L'ordrejl1ridiquefédéral. L'Étatfédéral
authentique, Droits 2002-10, pgs. 41 e segs.; E. DENZA, The intergovernmental pillars ofthe European Union, Oxford, 2002; l-L. QUERMONNE,
Le systeme politique de I'Union européenne, S,a ed., Paris, 2002; E.
ALBERTI ROVIRA (dir.), EI Proyecto de nueva Constitución Europea,
Valência, 2004; C. DENIZEAU, L'idée de puissance publique à ['épreuve
de ['Unio11 européemze, dissertação, Paris, 2004.
16. As noções de "Comunidade" e de "União"
A definição e a caracterização da União Europeia assentam,
antes de mais, nas noções de Comunidade, de que o processo de integração europeia se serviu durante décadas, e, depois, de União. Por
isso, o estudo da União Europeia tem de começar pelo enquadramento
juridico-político daqueles dois conceitos.
Não foi por acaso que nos anos 50 se escolheu a designação de
Comunidade para qualificar as três Comunidades que vieram a ser
criadas, mais as duas Comunidades que não chegaram a ver a luz do
dia. Por trás dessa designação havia toda uma carga sociológica, filosófica e jurídica, que é indispensável ter em conta para se compreender o processo da integração europeia. Explicámos tudo isso, de modo
desenvolvido, no nosso manual de Direito Internacional Público30 •
Agora, vamos sintetizar aqui o essencial do que nos interessa.
o conceito de Comunidade, valorizando a ideia de solidariedade e de coesão entre os seus membros, como espelho da prevalência dos interesses que são comuns a eles sobre os interesses que os
separam, impõe um poder integrado, que seja, simultaneamente, a
expressão das referidas ideias de solidariedade e de coesão e o modo
de afirmação destas, e que se traduza em relações de subordinação
entre a Comunidade e os seus membros, melhor, subordinação dos
Estados-membros da Comunidade em relação a esta.
A noção de Comunidade rompe, portanto, com a noção de
Sociedade Internacional (mal designada vulgarmente por Comunidade Internacional), que, na formulação clássica que lhe deu o
Direito Internacional, assentava em interesses predominantemente
conflituantes entre os Estados, como fruto do individualismo internacional destes, expresso nas respetivas soberanias absolutas, ou
ilimitadas, ou indivisíveis. Ao Direito Internacional assim concebido, pOltanto, como uma Ordem Jurídica de mera coordenação
horizolltal de soberanias estaduais, opôs o Direito das Comunidades
Europeias, logo quando da criação destas, uma Ordem Jurídica
essencialmente de subordinação dos Estados-membros à Comunide "soberanias subordinadas normativamente"31, sem prejuízo
de não ignorar áreas e instrumentos de mera cooperação entre aqueentre si, e entre aqueles e a Comunidade. É nesta coexistência,
vrU~Jm Jurídica Comunitária, de subordinação e cooperação, que
reside o motor da integração: ou seja, e como atrás dissemos, a teno dualismo, a bivalência, entre integração e interestadualidade, entre poder integrado e intergovernamentalidade, que
tem raiz federal. Voltaremos a este assunto neste livro".
O conceito de União mantém íntegra toda essa construção e
aprofunda-a de modo a aproximá-la da construção federal. O
mIJd"lo seguido aqui, foi o da União norte-americana ou dos Estados Unidos da América. Não quer isto dizer que a União Europeia
uma Federação acabada ou, sequer, que ela tenha de alcançar
int,eir:amente a fase federal, não obstante não ter sido nunca abando31
30 GoNÇALVES PEREIRA/QUADROS,
pgs. 32 e segs., com vasta bibliografia citada.
70
32
Ver a nossa dissertação de doutoramento, atrás citada, pgs. I S8 e segs.
Infra, n.o 37.
71
A União Europeia
Definição e caracterização geral da Ul1iüo Ewvpeia
nada formalmente a previsão no Plano Schuman, como vimos, da
Federação como objetivo político último do processo de integração.
Mas a noção de União apresenta, em relação ao conceito de Comunidade, a característica de um maior aprofundamento da solidariedade e da coesão interna e, por força disso, das relações de subordinação no seio da União.
fracassada a tentativa de retomar o método global, quando do insucesso do projeto de criação da CDE e da ComPE, consolidou-se o
método funcional através da criação, em 1957, de mais duas Comunidades sectoriais, a CEE e a CEEA.
Como atrás já se explicou, a criação da União Europeia pelo
TUE, em 1992, veio trazer alterações ao método funcional na integração europeia, ao criar a União com um sentido amplo, que
incluía nela as Comunidades Europeias. Dispunha, de facto, o artigo
A, par. 3, do TUE, na sua versão inicial, que "A União funda-se nas
Comunidades Europeias, completadas pelas políticas e formas de
cooperação instituídas pelo presente Tratado". Desta forma, ficavam
definidos os três pilares da União. Todavia, não é correto afirmar-se
que o método funcional tenha sido então definitivamente abandonado. De facto, e como já estudámos, as Comunidades continuaram
a ter autonomia e individualidade no seio da União, formando um
seu pilar próprio, o pilar comunitário.
Esta situação sobreviveu aos Tratados de Amesterdão e de
Nice.
17. A criação das Comunidades pelo método da integração funcionai
Como já ficou demonstrado na Introdução deste livro, por duas
vezes se tentou no século XX alcançar a integração europeia
segundo o modelo americano, isto é, o modelo federal, que se traduziria na criação de "Estados Unidos da Europa".
A primeira tentativa nesse sentido foi realizada com o Memorando Briand, do qual já falámos atrás. Como então dissemos, ele
não foi por diante especialmente porque surgiu no início da grande
depressão de 1929-32.
A segunda tentativa traduziu-se na "Mensagem aos Europeus",
aprovada pelos representantes dos movimentos federalistas dos
dezanove Estados que participaram no Congresso de Haia, de 8 a 10
de maio de 1948. Esta tentativa fracassou, porque o Reino Unido,
exatamente para travar a concretização das ideias aprovadas naquele
Congresso, promoveu a criação, em 1949, do Conselho da Europa,
numa base de simples cooperação intergovernamental.
O método da integração global, pensado no Congresso de
Haia, teve, pois, de ceder o lugar ao método da integração funcional.
Ou seja, abandonou-se o projeto de uma imediata integração política, que assentaria numa integração do conjunto global da Economia, para se caminhar para uma integração sectorial, ou seja, por
setores, e moldada por um figurino jurídico de tipo supranacional.
Era uma solução pragmática: a divisão havida após o Congresso de
Haia mostrava que a Europa não estava ainda preparada para se
abalançar diretamente a uma integração global e política.
Foi nesse quadro que o Plano Schuman optou pelo método
funcional, ao propor uma Comunidade só para o Carvão e o Aço. E,
O Tratado de Lisboa alterou significativamente o regime até
então vigente na matéria. É certo que ele não foi tão longe como
pretendera o Tratado Constitucional, onde a União Europeia iria
absorver todas as Comunidades (salvo a CECA, que, como dissemos, se extinguira em 2002). Mas, de qualquer modo, pelo Tratado
de Lisboa, a União Europeia viu dissolver-se nela a CE, fazendo
com que o pilar comunitário, traduzido na União, passasse a ser
praticamente o único pilar desta, com a única especialidade que
w.',,,uu na intergovernamentalidade que perdurou parcialmente na
e sem nos esquecermos da subsistência residual da Euratom
pilar comunitário.
Com estas ressalvas, pode-se, por conseguinte, dizer que O
métoclo funcional foi definitivamente abandonado pelo Tratado de
para dar lugar à União Europeia.
72
73
o abandono do método da integração funcional
A União Europeia
19. Génese e evolnção da União Europeia
Depois da criação das Comunidades e até ao Tratado de Maastricht, foram várias as vezes que em documentos oficiais foi utilizada a expressão "União Europeia": concretamente, na Cimeira de
Paris de outubro de 1972; na Declaração de Copenhaga sobre a
Identidade Europeia, de dezembro de 1973"; no já referido Relatório Tindemans sobre a União Europeia, de 1975; na Declaração
sobre a União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu na
Cimeira de Estugarda, de 1983 34 ; no já referido Tratado Spinelli, de
1984; no Ato Único Europeu, de 1985. Em nenhum desses documentos se propunha a criação da União Europeia como uma entidade que se substituísse às Comunidades, ou sequer, que lhes
acrescentasse qualquer coisa de formalmente autónomo. Neles,
defendia-se apenas um aprofundamento das Comunidades, em termos tais, que estas alargassem o âmbito das suas atribuições e os
poderes dos seus órgãos. A única exceção ao que acaba de se afirmar
era o Tratado Spinelli (o qual, em bom rigor, seria o primeiro Tratado da União Europeia), que, na realidade, propunha a extinção das
três Comunidades e a sua substituição por uma União Europeia, que,
entre outras características, teria uma política externa própria e poderia ter uma política de defesa comum. Essa União Europeia seria
dotada de uma Constituição própria, que aquele Tratado incluía".
Mesmo o Ato Único Europeu, posterior a esse Tratado, não
viria pretender criar uma União Europeia, limitando-se a afirmar
que "as Comunidades Europeias e a Cooperação Política Europeia
visam contribuir em conjunto para fazer progredir concretamente a
União Europeia" (artigo 1.0, par. I) (itálico nosso).
Isto quer dizer que o nascimento da União Europeia como realidade diferente das Comunidades (veremos em que medida) só
ocorreu com o Tratado da União Europeia, cujo projeto, como atrás
33 V/leme Rapport général sur l'activité des Communautés européennes,
1973, pgs. 511 e segs.
34 Buli. CE. n." 6/83, ponto 1.6.1.
35 Ver, por todos, CAPOTORTI et aI.
74
Definição e caracterização geral da União Europeia
dissemos, foi aprovado pelo Conselho Europeu, na sua reunião em
Maastricht, de 9 e 10 de Dezembro de 1991.
O Tratado da União Europeia veio a refletir uma série de compromissos que estiveram na sua origem, o maior dos quais terá sido
a fusão, como atrás se disse, decidida na Cimeira de Maastricht, num
só projeto de Tratado sobre a União Europeia, de dois projetos de
dois Tratados, que sempre foram negociados separadamente, ainda
que em paralelo, até àquela Cimeira: um projeto de Tratado sobre a
União Económica e Monetária (UEM), prometido já pelo Relatório
Delors, de maio de 1989, e um projeto de Tratado sobre a União
Política (UP). Esses compromissos, tantas vezes divergentes, quando
não antagónicos, entre si, geraram um projeto de Tratado da União
Europeia que ficou eivado de várias incoerências internas, que se
agravaram pela pressa com que o Tratado foi negociado em Maastricht e, depois, redigido em menos de dois meses. Essas incoerências ficaram a manifestar-se tanto na estrutura do Tratado (um texto
que, na sua versão de 1992, ocupava cento e doze páginas do Jornal
Oficial das Comunidades Europeias, e que incluia, em anexo ao Tratado, mas fazendo parte integrante dele, dezassete Protocolos e trinta
e três Declarações), como na sua redação, inclusive na sua numeração com letras ou números ou, simultaneamente, letras e números,
A União Europeia, tal como foi criada pelo Tratado de Maastricht, representou um denominador comum entre as orientações
preconizadas pelo Relatório Tindemans e pelo Tratado Spinelli.
O Tratado da União Europeia, na redação que lhe deu o Tratado de
Maastricht, qualificava-se a si próprio, como ainda hoje se qualifica,
como "uma nova etapa no processo de criação de uma união cada
vez mais estreita entre os povos da Europa" (atual artigo 1.0, par. 2,
UE). Desse modo, o Tratado não comprometeu o modelo político
em que culminaria essa evolução. Esse modelo ficou em aberto,
sobretudo depois de, na Cimeira de Maastricht, por exigência, especialmente do Reino Unido, ter sido eliminada a referência à "vocação federal" da União, que se continha no projeto de Tratado sobre
a UP, Isto não prejudicava, obviamente, o facto de, como demonstrámos atrás, desde o Plano Schuman estar apontado um destino
federal para o processo de integração europeia.
75
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
Note-se, todavia, que o Tratado de Maastricht não transformou
as Comunidades em União, afastando-se aqui do Projeto de Tratado
Spinelli. A União e as Comunidades coexistiam, fundando-se
aquela, desde logo, nestas, e tendo a União, como se verá, personalidade jurídica própria, ainda que para efeitos de se lhe atribuir uma
capacidade jurídica embrionária e de conteúdo muito restrito. O
Tratado da União Europeia não acabou, pois, como se disse, com o
método funcional na integração europeia.
Desta coexistência da União e das Comunidades resultava que
o Tratado da União Europeia era um verdadeiro Tratado de Tratados. Ou seja, ele englobava os Tratados institutivos das Comunidades Europeias, com as alterações que neles introduzia, além de algo
mais que de seguida se referirá36 •
O Tratado Constitucional veio pretender dar uma sistematização e uma arrumação muito clara, nesta matéria. Para tanto, passava
a haver só um Tratado, que criava uma nova União Europeia. A CE
era diluída na União e a Euratom subsistia residualmente.
O Tratado de Lisboa manteve essa orientação, embora com
uma alteração no plano formal. Dele resultaram dois Tratados e
não só um: o Tratado da União Europeia, que, ao mesmo tempo
que absorveu a CE, veio regular os aspetos intergovernamentais da
Ação Externa da União (conceito novo, que abarca toda a "ação da
União na cena internacional", como diz o artigo 21.°, 0.° 1, UE, e
dentro da qual se integra, como subespécie, a PESC), e o Tratado de
Funcionamento da União Europeia, expressão pouco feliz que veio
designar o antigo Tratado CE, agora adaptado à União. Das antigas
Comunidades manteve-se apenas, e a título meramente residual,
repetimos, a Euratom, regulada no Protocolo n. ° 2 anexo ao Tratado
de Lisboa.
20. A estrutura da União Europeia. O domínio material do Tratado da União Europeia até à Convenção sobre o Futuro da
Europa
Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, veja-se, especialmente,
anotações ao artigo 1.0 UE, DOURIAUX, EVERLlNG, ISAAC,
pgs. 9 e segs.• e PANEBIANCo/R1SI.
36
GRABITZlHILF/NETIESHEIM,
76
Estudar a estrutura, ou, se se preferir, o conteúdo da União
Europeia significa apreender o ãmbito ou o domínio material
coberto pelo TUE. Acerca dessa matéria, o Tratado UE, já antes do
Tratado de Lisboa, continha um preceito básico. Dispunha, de facto,
o artigo 1.0, n." 3, UE, na versão de Nice: "A União funda-se nas
Comunidades Europeias, completadas pelas políticas e formas de
cooperação instituídas pelo presente Tratado. A União tem por missão organizar de forma coerente e solidária as relações entre os
Estados-membros e entre os respetivos povos".
Com base neste preceito, a União Europeia era assimilada mais
vulgarmente à arquitetura de um templo grego, cuja estrutura apresentaria três pilares.
O TUE começava com um jrontispício, inserido, pensando
sempre na versão da revisão de Nice, no seu Título I, onde se enunciavam as "Disposições comuns" a toda a União Europeia, vista no
seu conjunto. Eram os artigos 1.0 a 7.° do Tratado, que disciplinavam a criação da União Europeia, fixavam os seus objetivos, definiam os seus princípios fundamentais e estabeleciam quais eram os
seus órgãos. Digamos que essas disposições comuns eram o arco
que cobria os três pilares.
Seguiam-se, então, os três pilares em que se desdobrava a
União.
O primeiro pilar, que era o pilar central e o mais importante,
era o pilar comunitário, que em 1992 era composto pelas três Comunidades, na sequência da lógica do artigo 1.0, par. 3, UE. Assim, o
artigo 8.° (Título II UE) absorvia o Tratado CE, que conservava
autonontia; o artigo 9.° (Título III UE) incorporava o Tratado CECA
que, também, à data conservava autonomia; por fim, o artigo 10.°
(Título IV UE) acolhia o Tratado CEEA, que, também, mantinha
autonomia.
A lógica deste primeiro pilar inseria-se, como há pouco se
disse, na continuação do método funcional, idealizado pelos funda77
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
dores das Comunidades e vazado no Plano Schuman. Ele resultava
da sedimentação dos Tratados institutivos das três Comunidades,
com as alterações que até ao TUE eles haviam sofrido.
Este pilar comunitário era o pilar integrado da União Europeia,
aquele onde, portanto, encontrávamos os traços federais que a
União Europeia progressivamente foi criando, como iremos vendo
ao longo deste livro.
O Tratado de Amesterdão, ao dar nova numeração a todo o
TUE, através, sobretudo, da eliminação dos preceitos caducados ou
abrogados e de preceitos identificados por letras, ou por números e
letras, alterou a numeração originária dos preceitos do Tratado CE,
mas manteve a dos preceitos dos Tratados CECA e CEEA.
O Tratado de Nice não modificou essa estrutura do primeiro
pilar, a não ser pela absorção de algumas matérias que até então
estavam no terceiro pilar.
Entretanto, em 24 de julho de 2002, deixou de existir a CECA.
Isso aconteceu pelo facto de o respetivo Tratado ter cessado a sua
vigência, que o seu artigo 97.° fixava em cincoenta anos desde a
entrada em vigor do Tratado. Por conseguinte, o primeiro pilar da
União Europeia passou a englobar apenas a CE e a CEEA. Ficou,
dessa forma, aberto o caminho - que alguns gostariam de ter percorrido mais depressa - para a eventual fusão das duas Comunidades,
através da integração da CEEA na CE. Esse caminho não parecia
difícil, dada a grande semelhança, em matérias essenciais, entre os
respetivos Tratados.
Ao contrário do primeiro pilar, o segundo e o terceiro pilares
da União tinham natureza intergovernamental. Estavam, também
eles, previstos na fórmula geral do artigo 1.°, par. 3, UE".
O segundo pilar encontrava-se regulado nos artigos II.' a 28.°,
na versão de Nice (Título V do TUE): ocupava-se da PoUtica
Externa e de Segurança Comum (PESC).
Este segundo pilar tinha vindo põr termo à "cooperação política europeia", que o artigo 30. do AUE acolhera, depois de ela ter
nascido à margem dos Tratados, e veio substitui-Ia por uma "política
comum", cujos objetivos e instrumentos de atuação constavam dos
citados preceitos do TUE.
O desenho inicial da PESC, criado pelo Tratado de Maastricht,
foi reforçado pelo Tratado de Amesterdão, em especial, ao incluir
nela a "definição gradual de uma política de defesa comum", que
"poderá conduzir a uma defesa comum" (como se passou a dizer no
artigo 17.°, n.o I, par. I), e ao incluir a UEO na União (artigo 17.°,
n.o I, par. 2), o que implicaria o desaparecimento da UEO, a prazo,
como Organização Internacional autónoma, e a atribuição à União
Europeia de uma "capacidade de atuação autónoma baseada em
forças militares credíveis" (como se afirmava nas conclusões da
Cimeira de Colónia, de junho de 199938). Estavam, assim, criadas as
bases de uma Política Europeia Comum em matéria de Segurança
e de Defesa, com a sigla PECSD".
No que dentro da PESC dizia respeito especificamente à
defesa, a PESC consistia numa recuperação da Comunidade Europeia de Defesa, que, como vimos, não chegou a existir juridicamente nos anos 50. Por outro lado, a UEO devia colaborar com a
OTAN, que fora reformada em 1990, por forma a que a defesa
europeia se articulasse e se complementasse com a defesa no quadro
da OTAN (artigo 17.°, n.O I, par. 3, UE, e Declaração anexa ao Tratado de Amesterdão com o n.o 3, ponto 12).
O Tratado de Nice veio alterar o sistema assim delineado, na
medida em que do artigo 17.0 UE desapareceu a integração da UEO
na União Europeia. A Declaração n.o I, anexa àquele Tratado, veio
prometer para 200 I a definição das novas condições de operacionalidade da PESC40 .
Por sua vez, o terceiro pilar estava disciplinado nos artigos
29.' a 42.' (Título VI do TUE) e regulava a Cooperação policial e
0
37
Ver DENZA.
78
Anexo III, 0.°5 1 e 5.
Veja-se, sobre esta matéria, SIMON, pgs. 51-52.
40 Sobre o alargamento a vinte e sete e a PESe, ver LA SERRE, L'élargissement
à l'Est de l'Union européel1ne: quelles perspetives paul' la PESe?, Études Gau3S
39
tron, pgs. 701 e segs.. Sobre o estado do segundo pilar depois do Tratado de
Nice, ver R. GOSALBO BaNO, Some reflectians 011 the CFSP legal arder, CMLR
2006, pg5. 337 e segs.
79
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
judiciária em matéria penal (CPJMP), que continuava a ser conhe-
As matérias que sobraram do terceiro pilar continuaram no
Título VI do TUE (artigos 29." a 42.°), que, como se disse, passou a
ter a epígrafe mais ambiciosa de "cooperação policial e judiciária
em matéria penal". A nova redação dada a esse Título VI mostrava-nos que o Tratado de Amesterdão aprofundou a atuação no quadro
deste pilar e reforçou os respetivos meios e que, nessa linha de
orientação, veio apontar à União a prossecução de um objetivo que,
pela felicidade da fórmula encontrada, como atrás se disse, depressa
se tornou nurn fim emblemático da União:'um "espaço de liberdade,
segurança e justiça" [artigo 29.", par. I, já pré-anunciado no artigo
2.", 4.° travessão, UE, também na redação dada pelo Tratado de
Amesterdão ]4l.
Da aplicação conjugada do novo Título IV CE e do novo Título
VI UE resultou, como já se disse, o lançamento das bases de um
"espaço judiciário europeu"42,
O Tratado de Nice veio reforçar ainda mais este terceiro pilar,
sobretudo através da criação da Eurojust (Unidade Europeia de
Cooperação Judiciária) e do aprofundamento dos meios de cooperação judiciária em matéria penal, tais como eles passaram a ser regulados nos novos artigos 29.°, par. 2, 2.° travessão, e 31.°, UE43.
Sublinhe-se outra vez que, ao optar pela estrutura dos três pilares, tal como a descrevemos acima, a União Europeia não repudiou
em definitivo o método funcional, ou funcionalista, de JEAN MONNET, que depois inspirou o Plano Schuman e presidiu à criação das
três Comunidades e que, portanto, após o Tratado de Maastricht, só
subsistiria no primeiro pilar. De facto, prosseguindo a orientação já
iniciada no AUE, a União Europeia conciliava o método funcional,
cida pela sigla CJAI, que, como atrás dissemos, lhe advinha da
designação que esta forma de cooperação tinha tido no TUE antes
da revisão de Amesterdão, e que era a de Cooperação no domínio
da justiça e dos assuntos internos.
Este pilar havia sido introduzido pelo Tratado de Maastricht no
TUE como uma consequência da criação da liberdade de circulação
e da eliminação de fronteiras internas dentro da União. O preço a
pagar por isso foi o de se antecipar, com o Tratado de Amesterdão,
a criação de um "espaço de liberdade, segurança e justiça" e de um
"espaço judiciário europeu" - ou seja, um espaço em que a liberdade de circulação fosse efetiva e, por isso, ficasse garantida, mas,
simultaneamente, não fosse utilizada para fins criminosos. Ou seja,
liberdade de circulação, sim, mas não para o crime.
Por isso, este pilar, logo no início, passou a englobar matérias
tão difíceis e complexas como o asilo, a imigração, os vistos, a luta
contra a criminalidade transfronteiriça, designadamente, o tráfico de
pessoas humanas (especialmente mulheres e crianças), de armas, de
estupefacientes, de obras de arte, o branqueamento de capitais, a
fraude fiscal, etc.
Como se disse, este pilar, tal como o segundo pilar, era de mera
cooperação intergovernamental. Por isso, foi-se concretizando, logo
após o Tratado de Maastricht, por acordos bilaterais ou multilaterais
entre os Estados-membros (que eram puros tratados internacionais),
alguns dos quais deram corpo ao "sistema Schengen", ainda que
este tivesse nascido num primeiro Acordo assinado pelos Estados do
Benelux, pela França e pela Alemanha, em 1985.
O bom funcionamento da cooperação intergovernamental em
algumas matérias deste terceiro pilar levou o Tratado de Amesterdão
a comunitarizar, ou seja, a passar para o primeiro pilar, o domínio
dos vistos, do asilo, da imigração, e de outras políticas relativas à
livre circulação de pessoas, que, por isso, passou a ser disciplinado
no novo Título IV do Tratado CE (artigos 61.° a 69.°, na versão de
Nice). Entre as matérias que passaram para o primeiro pilar figurava
o "Acervo Schengen" (Protocolo n.o 2 anexo ao Tratado de Amesterdão).
80
41 Sobre esse "espaço", veja-se o exaustivo estudo de KERCHOVE, in Y
Lejeune (coord.), pgs. 383 e segs.
42 DE GOUITES, Variations SUl' {'espace judiciaire européen, chron. Dalloz
1998, XLI.
43 Especificamente sobre o terceiro pilar, veja-se J. MONTAIN-DoMENACH,
L'Europe de la sécurité intérieure, Paris, 1999, CULLEN/JUND, Criminal Justice
Co-operation in tlle European Uniofl afta Tampere, ed. trilingue, Colónia, 2002,
e KERCHOVEfWEYMBERGH, Sécurité et justice: enjeu de la politique extérieure de
I'Union européenne, Bruxelas, 2003.
81
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
presente no pilar comunitário, de pura integração, com o método de
mera cooperação intergovernamental (que dava corpo aos segundo
e terceiro pilares), tentando conceder-lhes um caráter unitário e coerente, para o que apelava a segunda frase do citado artigo 1.0, par. 3,
UE. Esse caráter unitário resultava da natureza indissociável da
União: esta formava um todo e, em particular, nenhum Estado podia
aderir apenas a uma das suas componentes com exclusão das outras.
A maior expressão do referido caráter unitário residia no quadro
institucional único da União, que constava do artigo 3.° UE.
Nas edições anteriores deste livro subestimámos conscientemente o segundo e o terceiro pilares tais como eles constavam do
TUE na versão de Nice, e por diversas razões: o seu já referido
caráter intergovernamental, o que fazia deles mais matéria de
Direito Internacional Público do que de Direito da União; a estreiteza material de ambos, o que fazia prever o seu caráter provisório
e a sua progressiva comunitarização, que, particularmente quanto ao
segundo pilar, se tornava urgente, de modo especial para o combate
ao terrorismo global, que já então ameaçava fortemente os Estados
da União Europeia; e a natureza eminentemente didática desta obra,
que, por isso, tinha de fazer opções quanto ao seu âmbito, o que,
obviamente, nos levava a concentrarmo-nos no pilar central, o da
Comunidade Europeia. Todavia, mesmo hoje, o aprofundamento do
estudo histórico dos segundo e terceiro pilares pode ser levado a
cabo através da doutrina pós-Nice, que, aliás, sobre essa matéria
nunca foi vasta44 •
Além das obras já citadas neste número, ver também GRABITZlHILF/
anotações aos artigos do TUE e do TFUE que estão em causa, e
SCHROEDER, in von Bogdandy (ed.), pgs. 373 e segs. Para uma visão fortemente
crítica quanto à estrutura dos três pilares, ver, sobretudo, CURTIN, pgs. 69 e segs.
tendia coerente. Para tanto, a nova União Europeia sucedia juridicamente à União Europeia que então existia e absorvia as duas
Comunidades que subsistiam (a CE e a Euratom) bem como o
segundo e o terceiro pilares. Esse esforço de simplificação terminaria com a entrada em vigor de um só Tratado, o referido Tratado
Constitucional, com Protocolos e Anexos, que faziam parte integrante do Tratado (artigo IV-442.0).
E, de facto, o Tratado Constitucional veio abrogar todos os
Tratados anteriores no seu artigo IV-437.0, com referência no n.o 2,
par. 2, desse artigo a duas únicas exceções. Contudo, por força do
Protocolo n.o 36 anexo àquele Tratado, continuaria em vigor o Tratado CEEA, ainda que com as alterações nele previstas.
Isso significa que o Tratado Constitucional, como se disse,
veio criar uma nova União Europeia (artigo 1_1.°), a qual, por disposição expressa, sucedia, em termos de "continuidade jurídica", à
anterior União e à anterior Comunidade Europeia, conforme dispunha o seu artigo IV-438.0. Também por este preceito ficava, portanto, salvaguardada a continuação em vigor do Tratado CEEA,
embora nos termos acima referidos. Podemos, portanto, dizer que,
se ressalvarmos a sobrevivência reduzida da CEEA e do respetivo
Tratado, passávamos a ter um só Tratado para uma só União Europeia. Tratava-se, na realidade, da refundação da União Europeia,
porque o Tratado punha praticamente fim ao método funcional na
integração europeia.
Foi objeto de grande polémica, durante a Convenção e depois
dela, a verdadeira natureza desta nova União. Para alguns, ela era
equiparada a um Estado, baseando-se esta corrente, fundamentalmente, nos seguintes argumentos: o Tratado, na sua epígrafe, afirmava que estabelecia uma "Constituição" para a Europa; o Tratado
passava a atribuir "símbolos" à União (artigo 1-8.°) e esses símbolos,
dizia-se, eram estaduais; o Tratado consagrava o primado do Direito
da União sobre o Direito estadual (artigo 1_6.°) e esse primado,
afirmava-se, era de tipo federal; e o Tratado incorporava a Carta dos
Direitos Fundamentais da União (Parte II). Estndaremos mais
adiante a natureza jurídica da União e da sua Ordem Jurídica. Mas
dizemos, desde já, que nenhum dos referidos argumentos procedia.
82
83
21. A estrutura da União Europeia no Tratado Constitucional
Um dos objetivos da Convenção sobre o Futuro da Europa era
o de dar arrumação e simplificação à União Europeia. Por isso, o
Tratado Constitucional criava só uma União Europeia, que se pre44
INETIESHEIM,
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
o Tratado não afirmava que era uma Constituição, embora alguns
Como se disse, a Convenção sobre o Futuro da Europa deu
lugar a um só Tratado: o Tratado Constitucional. Enquanto que o
Tratado de Lisboa gerou dois Tratados: o TUE e o TFUE. Porquê?
Exatamente pela diferente conceção que o Tratado de Lisboa adotou
quanto à União Europeia.
De facto, enquanto que o Tratado Constitucional criava uma
União Europeia que englobava todos os pilares então existentes - a
Comunidade Europeia, a PESC e a Cooperação Judiciária e Policial
em Matéria Penal (CJPMP), deixando de fora, quase apenas, a Euratom, o Tratado de Lisboa resolveu manter com um regime especial
O antigo segundo pilar, ou seja, a PESC, agora integrada numa nova
realidade, mais ampla, chamada de "Ação externa da União".
É matéria de que se ocupa o Título V do TUE46. Para tanto, o TUE,
na sequência do seu preâmbulo, contém "Disposições comuns" a
toda a União nos primeiros quatro Títulos do Tratado UE, dispondo
a seguir, no Título V, sobre a Ação externa. Esta, como veremos
adiante, no Capítulo sobre as atribuições da União, é disciplinada
pelos Tratados como uma realidade híbrida, dentro da qual a PESC
continua a apresentar uma natureza predominantemente intergovernamental, como se pode ver pelo Capítulo II do Título V do Tratado
UE.
De seguida, surge-nos, com igual valor jurídico que o TUE
(artigo 1. par. 3, TFUE), o Tratado de Funcionamento da União
Europeia. Este Tratado não se podia designar de Tratado da Comunidade Europeia, como sucedia antes da revisão de Lisboa, pela elementar razão de que, por força do artigo 1.0 , par. 3, parte final,
TFUE, a Comunidade Europeia foi extinta pela sua dissolução na
UE. Mas o conteúdo material do TFUE, ainda que obviamente
ampliado e atualizado, corresponde ao do antigo Tratado CE. Por
dos seus preceitos pudessem gerar essa confusão (veja-se, logo, o
artigo 1_1. n. o 1). Ao contrário, o Tratado afirmava-se como "Tratado", embora acrescentasse que "estabelecia" uma Constituição
para a Europa. Aliás, a sua principal característica era a de um tratado internacional: aquele Tratado só entraria em vigor, se, e depois
de ratificado por todos os Estados-membros e segundo as respetivas
Constituições. Além disso, os símbolos não são uma característica
de um Estado. Qualquer pessoa coletiva de Direito público autónoma (região autónoma, município, associação ou fundação) costuma ter ou pode ter os seus próprios símbolos. Depois, o primado
do Direito da União sobre o Direito estadual não é de tipo federal,
como mostraremos neste livro4S • Por fim, a simples inclusão de um
Código de direitos fundamentais num tratado não lhe dá, só por si,
caráter estadual.
Mas, se ainda subsistissem dúvidas, o próprio Tratado Constitucional nunca utilizava, para caracterizar a União, os vocábulos
"Estado", "estadual", "federação" ou ~'federal". Pelo contrário, evitava-os de modo ostensivo quando, no seu artigo 1_1. 0 , n. o I, estabelecia que a União exerceria em "moldes comunitários" (itálico
nosso), e não em moldes estaduais ou federais, as suas atribuições.
0
,
0
22. A estrutura da União Europeia no Tratado de Lisboa
Bibliografia especial: M. CREMONA, The Two (or Three) Treaty
Solution: The New Treaty Strueture o/ the EU, in A. Biondi, P. Eckhout
e S. Ripley (eds.), European Union Law after the Treaty of Lisbon,
Oxford, 2012.
Se é verdade que, como já foi dito, em parte muito significativa, o Tratado de Lisboa, na sequência do Mandato de junho de
2007, seguiu muito de perto o Tratado Constitucional, não menos
certo é que um dos pontos de divergência entre os dois, residiu exatamente no conceito e no ãmbito da União Europeia.
4~
Infra, n. o 201.
84
,
46 Não é pacífico na doutrina o entendimento acerca do regime da PESC
depois do Tratado de Lisboa: alguns Autores não notam nela qualquer especificidade, outros estão na nossa linha, isto é, referem-se ao seu "regime especial",
outros entendem que a PESC continua a ser um pilar autónomo, ainda que de
modo reduzido, em relação à UE - ver, por todos, JACQUÉ, pg. 17, e CROWE,
pg. 167.
85
A União Europeia
isso, foi encontrado para ele a designação, convenhamos que algo
bizarra, de Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Este
Tratado ocupa-se do antigo pilar comunitário (como se disse, agora
integrado totalmente na União), do antigo terceiro pilar, agora sob a
epígrafe de "O espaço de liberdade, segurança e justiça" (expressão
criada pelo Tratado de Amesterdão), e que, como atrás sublinhámos,
agora é plenamente integrado no antigo pilar comunitário (Parte III,
Título V), e de alguns aspetos da Ação externa (Parte V, Títulos II a
VII), sem esquecer o regime especial que o TUE dá à PESC, como
atrás se disse47 •
Fora da UE continua também a Euratom com o seu Tratado
próprio, modificado pelo Protocolo n.o 2 anexo ao TFUE, por força
do artigo 4.° do Tratado de Lisboa4'.
À margem da sua estrutura, tal como a definimos, a União
engloba, desde o Tratado de Amesterdão, a cooperação reforçada
entre os Estados-membros que desejem avançar mais rapidamente,
entre si, na integração, acentuando-se dessa forma a integração diferenciada entre os Estados. Essa matéria está hoje regulada no Título
IV do Tratado UE e na Parte VI, Título III, TFUE, sob a epígrafe,
no plural, de cooperações reforçadas. Estudá-las-emos adiante. O
Tratado UE engloba também "Disposições finais" (Título VI UE),
que regulam, entre o mais, a personalidade jurídica da União, os
processos de revisão do Tratado, as novas adesões, a abrogação e a
denúncia do Tratado, o regime dos Protocolos e Anexos, a vigência
do Tratado, as línguas oficiais, etc.
47 Quanto ao que se afirma no texto, no que respeita à relação entre a União
e a Ação externa, incluindo a PESC, ver a recente monografia de MARTA JosÉ RANGEL DE MESQUITA, A Actuação Externa da União Europeia depois do Tratado de
Lisboa, Coimbra, 2011.
48 Ver a versão consolidada do Tratado CEEA depois do Tratado de Lisboa
no 10 C 84, de 30-3-20tO.
86
Definição e caracterização geral da União Europeia
23. Os objetivos da União antes do Tratado de Lisboa
Os fins primários ou principais da integração europeia foram
sempre fins políticos, como se apreende pela leitura do Plano Schuman e dos preâmbulos dos primeiros Tratados4'.
Esses fins políticos eram, uns, imediatos, outros, mediatos ou
de longo prazo.
Os fins políticos imediatos da integração, quando foi criada a
primeira Comunidade, a CECA, na sequência do Plano Schuman,
eram a prossecução da Paz, pela abolição, como dizia SCHUMAN, da
"oposição secular entre a França e a Alemanha" e pela criação de
imediato de uma "solidariedade de facto" entre os Estados europeus
(acrescentava-se no Plano Schuman: "foi porque a união da Europa
a
não foi antes alcançada que tivemos a guerra", ou seja, a 2. Grande
Guerra).
Mas a integração europeia, logo nos anos 50, elegeu um claro
fim político, que chamaremos de mediato ou de longo prazo: o
Plano Schuman deixou claro que da sua execução resultariam "os
primeiros passos concretos para uma Federação europeia indispensável à preservação da Paz".
Tendo-se optado, no Plano Schuman, como atrás se viu, pelo
método funcional para o início da integração europeia, os seus fins
secundários (secundários, em face dos fins principais acima referidos), mas imediatos, eram fins fundamentalmente económicos - a
criação de um mercado comum -, completados, nos Tratados institutivos das três Comunidades, pela referência, ainda que embrionária, a alguns objetivos de índole social: a melhoria das condições de
vida e de emprego e a garantia da estabilidade social.
Com o Tratado de Maastricht o Tratado UE e o Tratado CE
passaram a impor à CE e, numa visão mais ampla, à própria UE,
como veremos, a prossecução, ao lado de fins económicos, de objetivos de natureza social, cultural e política.
49 Ver Comissão Europeia (ed.), Retire et compléler la Déclaration du 9
Mai 1950, Bruxelas, maio de 2000.
87
A União Europeia
o Tratado UE tem, desde o seu início, vindo a enunciar, numa
fórmula sintética, o objetivo global da União Europeia: a "criação
de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa"
(desde o artigo A, par. 2, UE, na redação de Maastricht, até ao atual
artigo \.0, par. 2, UE, após o Tratado de Lisboa). Este objetivo global assinala, ao mesmo tempo, o caráter muito abrangente dos fins
da integração europeia na sua atual fase, isto é, dos fins económicos
aos fins políticos.
Depois, procurando dar arrumação aos objetivos já afirmados
no longo preâmbulo do TUE, e, simultaneamente, tentando concretizar o referido artigo \.0, par. 2, o artigo 2.° do TUE passou a definir
com pormenor os objetivos que cabe à União Europeia prosseguir.
Dispunha ele, na versão de Nice:
Artigo 2.°
Definição e caracterização geral da União Europeia
necessário rever as políticas e formas de cooperação instituídas
pelo presente Tratado, com o objetivo de garantir a eficácia dos
mecanismos e das Instituições da Comunidade.
(...) (itálicos nossos).
Ou seja, já antes do Tratado de Lisboa, para além da consolidação da União Económica e Monetária, alcançada plenamente em
2002, a União prosseguia fins da maior importância nos domínios
social, cultural e político, designadamente, um espaço de liberdade,
de segurança e de justiça; a salvaguarda dos direitos fundamentais
dos cidadãos dos Estados-membros; a cidadania da União; e uma
política externa e de segurança comum, que poderia conduzir a uma
política comum de defesa.
24. Os objetivos da União depois do Tratado de Lisboa
A União atribui-se os seguintes objetivos:
- a promoção do progresso económico e social e de um elevado
nível de emprego e a realização de um desenvolvimento equilibrado e sustentável, nomeadamente mediante a criação de um
espaço sem fronteiras internas, o reforço da coesão económica
e social e o estabelecimento de uma união económica e monetária, que incluirá, a prazo, a adoção de uma moeda única, de
acordo com as disposições do presente Tratado;
a afirmação da sua identidade na cena internacional, nomeadamente através da execução de uma política externa e de segurança conwm, que inclua a definição gradual de uma po[{tica
de defesa comum, que poderá conduzir a uma defesa comum,
nos teImos do disposto no artigo 17.°;
o reforço da defesa dos direitos e dos interesses dos nacionais
dos seus Estados-Membros, mediante a instituição de uma
cidadania da União;
a manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço
de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada
a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas
adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asiJo e
imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade;
a manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu
desenvolvimento, a fim de analisar em que medida pode ser
88
O Tratado de Lisboa foi ainda mais longe na definição dos
objetivos da União Europeia, tendo sabido condensar os fins que
historicamente a integração europeia se tem vindo a propor prosseguir e, simultaneamente, atualizar os objetivos que, na Europa atual
e no mundo moderno, ela pretende alcançar.
Assim, diz o artigo 3.°, n.o I, UE, os três grandes objetivos da
são: a paz, os valores enunciados no altigo 2.° e que o 2.°
COlnS1Clel:an.C1o do preâmbulo qualifica de "valores universais", e o
beln-,"t,," dos povos.
Depois, o mesmo artigo pormenoriza e desdobra esses objetivos nos seguintes fins:
um espaço de liberdade, segurança e justiça, nos termos
explicados no artigo 3.°, n.o 2, e que depois nos vai aparecer
regulado nos artigos 67.° e seguintes UE;
um mercado interno;
o desenvolvimento sustentável da Europa, com os fundamentos indicados na 2.' parte do artigo 3.°, n.o 3, inclusive
uma Economia Social de Mercado que tenha como meta o
pleno emprego e o progresso social;
89
Definição e caracterização geral da União Europeia
A União Europeia
o progresso científico e tecnológico;
o combate à exclusão social e a todas as formas de discriminação;
a promoção da justiça social e da proteção social;
a igualdade entre homens e mulheres;
a solidariedade entre as gerações;
a proteção dos direitos da criança;
a coesão económica, social e territorial;
a solidariedade entre os Estados-membros;
o respeito e a preservação da diversidade cultural e linguística entre os povos europeus;
a salvaguarda e o desenvolvimento do património cultural
europeu, o que tem de ser conjugado com a fidelidade
ao património cultural, religioso e humanista da Europa,
do qual emanam os valores referidos no artigo 2.°, e que o
preâmbulo, como vimos, considera ~~valores universais";
- a União Económica e Monetária, cuja moeda é o euro.
Nas suas relações com o resto do mundo, a União prossegue
esses mesmos objetivos (com exceção, obviamente, da UEM) e o
respeito pelo Direito Internacional, a começar pela Carta das Nações
Unidas.
Como se vê, a nova sistematização dada pelo Tratado de Lisboa aos objetivos visados pela União Europeia não é diferente apenas no plano formal: ela pretendeu também, e antes de tudo, ampliar
ainda mais os objetivos da União no campo social e cultural. A
União já alcançou a União Económica e Monetária, isto é, está praticamente concluída a Europa económica. Agora, o TUE pretende
avançar para a Europa cultural, fundada na diversidade cultural dos
povos europeus e respeitadora do seu património cultural, religioso
e humanista, e para a Europa social. Esta última constitui a grande
ambição do TUE e, por isso, é visada de modo especial no artigo 3.°
UE. O TUE pretendeu deixar, no seu texto, demarcado e definido o
modelo social europeu, que, para ele, não se confunde com o
modelo liberal nem com o modelo intervencionista. Por isso, o
artigo 3.°, n.o 3, enuncia com clareza os traços do modelo social
90
europeu: uma Economia Social de Mercado altamente competitiva,
que vise alcançar o pleno emprego e o progresso social; um desenvolvimento sustentável, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade de preços; a eliminação da exclusão social
e de todas as formas de discriminação; a justiça e a proteção sociais;
a igualdade entre homens e mulheres; a solidariedade intergeracional; a proteção dos direitos da criança; a coesão, não só económica
e social (como até então diziam os Tratados), mas também territorial, que reduza a disparidade entre os níveis de desenvolvimento
das diversas regiões do território da União e o atraso das regiões
menos favorecidas (ver artigos 174.° e seguintes TFUE).
No campo político, os Tratados continuam a não se pronunciar
sobre o futuro modelo da União. Mesmo a inócua referência aos
"moldes comunitários" do artigo l-I. ° do Tratado Constitucional não
foi acolhida pelo Tratado de Lisboa. Mantém-se, por isso, sem alteração, a referência à decisão dos Estados-membros de "continuar o
processo de criação de uma União cada vez mais estreita entre os
povos da Europa" (considerando 13 do preâmbulo do TUE), o que,
convenhamos, não os compromete com qualquer fórmula concreta
para o futuro modelo político da União, nomeadamente quanto ao
modelo federal, sem prejuízo, como veremos, de todos os traços
federais que a União já apresenta e que o Tratado de Lisboa reforçou. De qualquer forma, com a frase transcrita, a União continua fiel
ao método gradualista, que desde sempre, e por definição, tem sido
co-natural ao processo de integração europeiaso .
25. A relevância dos objetivos da União no plano do Direito
Os objetivos fixados pelo TUE para a União assumem enorme
importância para ela no plano jurídico.
De facto, privilegiando a Ordem Jurídica da União a interpretação teleológica, ou evolutiva, oufinalista, os objetivos assinalados
50
Sobre esta matéria é muito útil o Comentário de
pgs. 34 e segs.
91
PRIOLLAUD/SIRITZKY,
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
no TUE ganham grande significado, quer na determinação do sentido a dar às regras contidas nos Tratados e no demais Direito da
União, quer na interpretação das lacunas que este apresente. O Tribunal de Justiça tem usado frequentemente a interpretação teleológica. E foi nesse quadro que, quanto à CEE (mas devendo-se
entender que o mesmo vale hoje para o conjunto global da União
Europeia), muito cedo ele entendeu que os preceitos dos Tratados
sobre os objetivos que eles fixam têm "natureza constitucional",
constituem "Direito imperativo" e gozam de efeito direto, podendo,
portanto, ser invocados pelos particulares perante os tribunais nacionais. Os primeiros Acórdãos nesse sentido foram os proferidos logo
ela, em seu entender, aproximava a União do modelo estadual, exigiu que, pelos mesmos motivos, fosse retirado do texto do Tratado
o artigo sobre os símbolos.
Convenhamos que as razões dessa oposição aos símbolos
não eram minimamente convincentes. Como já atrás dissemos, as
regiões autónomas, os municípios, as instituições científicas, como
as Universidades, para não irmos mais longe, têm, em todos os Estados-membros da União, a sua bandeira, o seu Dia anual, o seu hino
e o seu lema, e nem por isso alguém as confunde com um Estado.
De qualquer forma, essa con'ente, pelo menos formalmente, triunfou. Ou seja, a CIG de 2007 retirou do texto do Tratado o artigo
1'8.°. Todavia, na Declaração n. O 52 anexa ao Tratado de Lisboa,
dezasseis Estados, incluindo Portugal, reconhecem que os símbolos
que constavam do citado preceito do Tratado Constitucional "continuarão a ser, para eles, os símbolos do vínculo comum dos cidadãos
à. União Europeia e dos laços que os ligam a esta".
no início da integração, nos casos Hauts jorneaux e Bonnhoffl.52.
26. Os símbolos da União Europeia
A União Europeia tem, desde o início das Comunidades, os
seus símbolos próprios.
Assim, a União tem uma bandeira, composta por um círculo de
doze estrelas douradas sobre fundo azul.
Depois, a União tem o seu hino próprio. Ele foi extraído da
Ode à Alegria, que constitui um magnífico excerto de uma das mais
belas peças da música clássica, a Nona Sinfonia de Beethoven.
A União tem também o seu dia: o Dia da Europa, que é celebrado a 9 de maio, aniversário da Declaração Schuman, ou Plano
Schuman.
A Convenção sobre o Futuro da Europa decidiu incluir no Tratado Constitucional um preceito específico sobre os símbolos: foi o
artigo 1_8. Esse preceito acrescentava aos símbolos acima referidos, mais dois: o lema da União "Unida na diversidade" e o euro
como moeda da União.
Todavia, a mesma corrente que se opôs a que o Tratado Constitucional utilizasse na sua epígrafe a palavra "Constituição", porque
0
•
IVAN
" Acs. 21-6-58, Procs. 8/57 e 13/57, Rec., pgs. 225 e segs. e 263 e segs.
52 Sobre este número, ver, por último, JACQUÉ, pgs. 45 e segs. e LENAERTS/
NUFFEL, pgs. 106 e segs.
92
27. A personalidade jnrídica da União
Bibliografia especial: G. RESS, 1st die EU einjuristische Person?,
Europa 1995, pgs. 27 e segs.; A. VON BOODANDY e M. NETIESHEIM, Ein
einheitlicher Verband mit eigener Rechfsordnung, EuR 1996, pgs. 25 e
segs.; P. DE NERVIENS, Les relations exterieures, RIDE 1997, pgs. 801 e
segs.; R. A. WESSEL, The 1nternational Legal Status of the EU, ELR
1997, pgs. 109 e segs.; N. NEUWAHL, A Partner with a Troubled
Personality: EU Treaty - Making in Malters of CFSP and lHA after
Amsterdam, ELR 1997, pgs. 177 e segs.; M. DONY (ed.), Relations extérieures de [,UE apres Amsterdam, Bruxelas, 1998; A. TlZZANO, La personalità internazionale deU'Unione europea, in R. Adam et aI., Il
Trattato di Amsterdam, Milão, 1999, pgs. 123 e segs.; J. CHARPENTIER,
De la personalité juridique de l'Union européenne, Mélanges Peiser,
pgs. 93 e segs.; M. PACHINGER, Die VOlkerrechtspersonlichkeit der europiiische Union, Francoforte, 2003.
Ao contrário do que o Tratado CE fazia com a Comunidade
EuroDeia no seu ex-artigo 281. em nenhum preceito o TUE, antes
Tratado de Lisboa, reconhecia expressamente personalidade jurí0
,
93
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
dica à União. Daí, que a doutrina dominante sustentasse que a União
não gozava de personalidade jurídica própria, distinta da das Comunidades.
Nunca fomos dessa opinião. Dos trabalhos preparatórios do
Tratado de Maastricht tínhamos dificuldade em extrair a conclusão
de que, mesmo 110 puro plano político, não se quis atribuir à União
autonomia em relação às Comunidades, isto é, não se havia querido
reconhecer individualidade própria em relação a estas. Só assim se
compreendia que o artigo B, UE, na redação de Maastricht, no seu
2. 0 travessão, tivesse incluído como um dos objetivos da União "a
afirmação da sua identidade na cena internacional", portanto, identidade da União. Ou seja, a identidade da União não era afirmada
através das Comunidades, designadamente, através da CE, mas era
afirmada pela própria União.
Contudo, colocado o problema no plano jurídico - e é esse que
fundamentalmente interessa ao jurista - entendíamos que do TUE
resultava com clareza, ainda que na ausência de preceito expresso
sobre a matéria, que a União gozava de personalidade jurídica própna.
Comecemos, mais uma vez, pela interpretação histórica do
Tratado de Amesterdão. O Relatório do Grupo de Reflexão, ou
Grupo Westendorp, deixara escrito, durante os trabalhos preparatórios daquele Tratado, que a maioria dos membros daquele Grupo
entendia que a recusa de personalidade jurídica à União seria uma
"fonte de confusão no plano externo e enfraqueceria o seu (da
União) papel no plano interno"53.
Mas o elemento histórico de interpretação só reforçava a interpretação literal do Tratado.
Quando a um ente se reconhece capacidade jurídica de gozo ou
de exercício, ainda que limitada, essa capacidade jurídica tem forçosamente como pressuposto a suseetibilidade de ele ser titular de
direitos e de obrigações, isto é, tem como pressuposto a sua personalidade jurídica. A capacidade jurídica pressupõe, portanto, a personalidade jurídica. Ora, o TUE atribuía à União capacidade jurídica
própria, pelo menos para celebrar, ela própria, acordos internacionais. Era o que resultava do artígo 24.° UE, na versão de Nice, e do
âmbito material definido nos dois parágrafos desse artigo. Ora, o
reconhecimento dessa capacidade jurídica, desse jus troetu",n,
implicava, só por si, a atribuição de personalidade jurídica própria à
União".
Mas também num outro domínio aparecia-nos confirmada a
personalidade jurídica própria da União. Toda a pessoa coletiva tem
órgãos próprios. Ora, a União tinha órgãos que lhe imputavam a ela,
autonomamente, direitos e deveres próprios, isto é, que atuavam
como órgãos da União e não das Comunidades, exercendo eles,
nesse quadro, a sua competência específica, que o Tratado lhes conferia. Era o que decorria, num plano geral, sobretudo, do ex-artigo
3.°, par. I, e do ex-artigo 5.° UE, com a particularidade de este
sublinhar que os órgãos aí indicados atuavam também no
quadro próprio da União e não eram apenas órgãos das Comunidades. Mas era o que encontrávamos também no âmbito da PESC,
onde o TUE atribuía expressamente competência a órgãos para
atuarem em nome da União: era o caso do Conselho Europeu e do
Conselho (ver, especialmente, o ex-artigo \3.°, n.o I, e n.o 3, 3.°
travessão, UE), da Presidência da União (ex-artigo 18.°, ex-artigo
J.8, n." I e 2) e do Alto-Representante para a PESC (ex-artigo 18.°,
53 Relatório de 5 de dezembro de 1995, pg. 150.
94
° 3).
Podia-se, pois, concluir dizendo que a União tinha personalijurídica própria".
Acrescente-se que nenhum argumento se podia extrair, contra
esta conclusão, da estrutura da União segundo o modelo do templo
acima referido. A coerência interna de todo o conjunto em
54 Assim, expressamente, RESS, pgs. 28 e segs., e autores aí citados.
55 A favor da personalidade jurídica da União, nessa fase, veja-se RESS,
pgs. 27 e segs., JACQUÉ, pgs. 186 e segs., ISAAC, pgs. 9 e segs., RIDEAU, pgs. 283 e
~egs., SIMON, pgs. 72-73, MANIN, pgs. 89-90, CHARPENTlER, pg. 93, VON BOGDANDY/
fNETIESHmM, pgs. 25 e segs., TIZZANO, sobretudo, pgs. 126 e segs., DE NERVIENS,
801 e segs., WESSEL, pgs. 109 e segs., e PACHINGER. Posição contrária, embora
argumentos nem sempre coincidentes, tinham, por exemplo, NEUWAHL,
pgs. 177 e segs., e GRABITzlHILF/NETT8SHEIM, anotações ao artigo 1.0 UE.
95
A União Europeia
Definição e caracterização geral da União Europeia
nada ficava afetada pelo facto de a União ter personalidade jurídica
própria e autónoma em relação a cada uma das Comunidades. Pelo
contrário: essa coerência impunha que a União tivesse a sua personalidade própria.
O problema ficou resolvido, em definitivo, com o Tratado
de Lisboa, que introduziu no TUE o novo artigo 47.°, que dispõe:
"A União tem personalidade jurídica".
UE, tenha eliminado a referência à competência dos órgãos, pode
entender-se que quis dispor no mesmo sentido do ex-artigo 7.°,
n.o 1, par. 2, UE.
Isto quer dizer que, para além de a União se encontrar limitada
pelo princípio da especialidade das suas atribuições, os seus órgãos
têm de se conter dentro dos limites dos poderes que os Tratados lhes
conferem.
Mas se, pelas duas vias acabadas de referir, a União vê a sua
capacidade demarcada e limitada, o Tratado admite a possibilidade
de ela f~er expandir os poderes dos seus órgãos (não as atribuições
da Umao), para se adaptar essa capacidade àquelas que forem, em
cad~ momento, as necessidades da integração. Há dois meios pelos
quaIs se consegue atingir esse resultado. Primeiro, o artigo 352.°
TFUE, que contém uma cláusula que não consta dos tratados institutivos das Organizações Internacionais clássicas, e pela qual o
Conselho pode criar novos poderes para os órgãos da União. Depois,
a teona dos poderes implícitos, tal como a conhecemos de outros
ramos do Direito, inclusive do Direito Internacional. Adiante estudaremos esses dois meios.
Resta acrescentar que a capacidade jurídica da União é de
Direito interno, o que lhe permite atuar na sua ordem interna e de
Direito Internacional, o que a autoriza a agir na ordem internacional.
28. A capacidade jurídica da Uuião
Mas cabe logo de seguida perguntar: qual é a capacidade jurídica, de gozo e de exercício, da União?
Essa capacidade encontra-se condicionada por três fatores.
Em primeiro lugar, como acontece com todas as pessoas coletivas, salvo com o Estado enquanto pessoa de Direito Constitucional, que tem uma capacidade geral, a capacidade jurídica da União
está limitada pelo princípio da especialidade, que o Tratado UE
chama de princípio da atribuição. É o que estabelece hoje, desde
logo, o artigo 5.°, n.o 1, UE. Veremos isto melhor quando estudarmos as atribuições da União.
É claro que, dada a vastidão dos objetivos e das atribuições
que o Tratado UE impõe à União, sobretudo após as Comunidades
terem deixado de prosseguir apenas fins económicos, não é fácil
aplicar, na prática, à União o princípio da especialidade. Mas, à
partida, este princípio rege a sua capacidade jurídica. O que significa que serão inválidos os atos praticados pela União, melhor, pelos
seus órgãos, fora das suas atribuições e para prosseguir objetivos
que não lhe estão confiados (ou que ainda não lhe estão confiados)
pelos Tratados.
Em segundo lugar, a capacidade da Uuião está condicionada
pelo princípio da competência de atribuição dos seus órgãos. Era o
que estipulava o ex-artigo 7.°, n.o 1, par. 2, UE, na versão de Nice,
cujo teor era o seguinte: "Cada Instituição atua nos limites das atribuições e competências que lhe são conferidas pelo presente Tratado" (itálicos nossos). E, embora o atual artigo 13.°, n.o 2, L' parte,
96
29. A uatureza jurídica da Uuião: remissão
Qual é a natureza jurídica da União Europeia?
Pela nossa parte, mantemos a orientação que seguimos nas
duas anteriores edições deste livro. Ela consiste em estudarmos a
natureza jurídica da União a partir da natureza jurídica da sua
Ordem Jurídica. Por isso, remetemos o leitor para o que sobre isso
din~m()s na Parte II, dedicada ao Direito da União".
56
Ver infra,
n,OS
162-165.
97
Definição e camcterização geral da União Europeia
A União Europeia
30. A integração diferenciada
Bibliografia especial: E. GRABITZ (ed.). Abgestufte lntegration,
Kehl, 1984; P. MANIN e l.-V. LOUIS, Vers une Europe différenciée, possibilités et limites, Bruxelas, 1996; V. CONSTANTINESCO, Les clauses de
"coopération renforcée", RTDE 1997, pgs. 751 e segs.; C.-D.
Difjérenciation, jlexibilité, coopération renjorcée; les nouvelles dispositions du traité d'Amsterdam, RMU 1997, pgs. 53 e segs.;
G. GAJA,Lacooperazione ra./forzata,DUE 1998, pg. 315; H. KORTENBERG,
Closer cooperation in the Treaty of Amsterdam, CMLR 1998, pgs. 833
e segs.; W. WESSELS. Flexibilité, dif/érenciation et coopération renforcée
_ Le traUê d'Amsterdam à la lwniere du Rapport Tindemans, in M.
EHLERMANN,
Westlake (dir.), L'Union européenne au-delà d' Amsterdam. Nouveaux
concepts d'intégration européenne, Bruxelas, 1998, pgs. 133 e segs.; F.
CHALTIEL, Le traité d'Amsterdam et la coopération renforcêe, RMC
1998, pgs. 289 e segs.; H. LABAYLE, Amsterdam ou I'Europe des coopérations renforcées, Europe, março de 1998, pgs. 4 e segs.; E. CANNIZARO,
Sui rapporti fra il sistema della cooperazione rafforzata e il sistema
delte relazioni esterne delta Comunità, DUE 1998, pgs. 331 e segs.; F.
TUYTSCHAEVER, Difterentiation in European Union Law, Oxford, 1999;
H. BRlBOSIA, De la subsidiarité à la coopération ren/oreée, in Y. LEJEUNE
(dir.), Le traité d' Amsterdam, Bruxelas, 1999, pgs. 23 e segs.; B.
DE
D. HAUF e E. Vos (eds.), The Many Faces of Di./ferentiation in
EU Law, Antuérpia, 2000; S. RODRIGUES, Le traité de Nice et Zes coopé·
rations renforcées au sein de l'Union européenne, RMC 2001, pgs. 11 e
segs.; V. CONSTANTINESCO, Le proeessus décisionnel et I'aecomplissement
des coopérations renforcées, in Constantinesco, Gautier e Simon (dir.).
Lie Traité de Nice, cit., pgs. 115 e segs.; A. STUBB, Negotiating Flexibility
in the European Uniol1, Nova Iorque, 2002; C. GUILLARD, L'intêgration
diftérendée dans ['Union européel1ne, diss .. Tours, 2003.
WITIE,
Há muito tempo, particularmente após o Ato Único Europeu ter
acelerado o passo da integração europeia rumo ao Mercado Interno,
a atingir, como se atingiu, em I de janeiro de 1993, que se começou
a verificar que nem todos os Estados-membros das Comunidades se
encontravam em condições de progredir no processo de integração
de modo igual, isto é, com o mesmo ritmo e em todas as matérias.
Logo nessa altura se sentiu, portanto, a necessidade de se preverem
mecanismos e condições que permitissem a alguns Estados, que esti98
vessem preparados para o efeito, avançar na integração mais depressa
do que outros, pelo menos em algumas matérias. Retomou-se, por
isso, então, a velha corrente doutrinária da "diferenciação", ou "integração diferenciada", ou "flexibilidade", ou "geometria variávef',
ou da "Europa a duas, ou a várias velocidades", etc..
Todavia, só com o Tratado de Amesterdão é que essa corrente
ficou consagrada nos Tratados, concretamente, no TUE, e sob a
designação de "cooperação reforçada". O Tratado de Lisboa passou
a falar dela no plural, utilizando a expressão "cooperações reforçadas". Elas visam permitir, portanto, que, verificadas determinadas
condições, certos Estados avancem mais rapidamente do que outros,
em domínios concretos da integração, sem que para tanto possam
ser impedidos pelos outros Estados. Estamos, por conseguinte,
perante a aceitação formal, pelo TUE, da integração diferenciada,
ou a várias velocidades, ou, se se preferir, da existência de vários
circulos concêntricos de Integração, numa Europa integrada de
geometria variável.
As cooperações reforçadas foram incluídas no TUE por iniciativa da França e da Alemanha, para acudir ao estado que já então
atingira o processo de integração, mas, sobretudo, para prevenir o
aprofundamento do desnível entre Estados desenvolvidos e Estados
menos desenvolvidos, que iria ser provocado pelos alargamentos da
ocorridos neste século, principalmente a Estados do Centro e
da Europa. No fundo, as cooperações reforçadas constituem
tentativa - talvez a única possível- de compatibilizar dois objenecessários e inevitáveis, mas também, à partida, antagónicos,
ml:egraç:ao europeia: o do aprofundamento e o do alargamento.
Os Tratados sujeitam as cooperações reforçadas a um regime
e a regimes especiais. Vamos estudar um e outros.
a) Regime geral
O regime geral das cooperações reforçadas encontra-se defino Título IV do TUE, composto pelo artigo 20.° UE, e está
de:senlvolvido nos artigos 326.° a 334.° TFUE. Esses preceitos sujei99
A União Europeia
k
I'
I~
tam as cooperações reforçadas à verificação dos seguintes requisitos: elas não podem abranger as atribuições exclusivas da União e
devem respeitar o regime especial definido para a PESC no artigo
331.0 TFUE (artigos 20.°, n.o 1, par. 1, UE, e 329.° e 331.° TFUE);
elas visam favorecer a realização dos objetivos da União, preservar
os seus interesses e reforçar o processo de integração (artigo 20.°,
n.o 1, par. 2, UE); elas estão abertas a todos os Estados-membros e
a todo o momento (artigos 20.°, n.o 1, par. 2, UE, e 328.°, n.o 1,
TFUE); elas devem ser utilizadas apenas em "último recurso",
quando o Conselho se certificar de que os objetivos por elas visados
não podem ser alcançados, num prazo razoável, pela União no seu
conjunto (artigo 20.°, n.o 2, par. 1, UE); elas devem ser decididas
por, pelo menos, nove Estados-membros, devendo, todavia, tentar-se alargá-las ao maior número possível de Estados (artigos 20.°,
n. o 2, UE, e 328.°, n.o 1, TFUE); elas devem respeitar os Tratados e
o demais Direito da União, inclusive, portanto, o adquirido comunitário (artigo 326.° TFUE); todos os membros do Conselho podem
participar nas deliberações sobre as cooperações reforçadas mas só
os Estados-membros que participem nestas é que têm direito de voto
(artigos 20.°, n.o 3, UE, e 330.° TFUE); os atos aprovados no ãmbito
de uma cooperação reforçada só vinculam os Estados que nela participem (artigo 20.°, n.o 4, UE); as cooperações reforçadas devem
atender às atribuições, aos direitos e aos deveres dos Estados que
nelas não plUticipem, não podendo, todavia, estes impedir que elas
sejam efetivadas (artigo 327.° TFUE); elas não podem pôr em causa
nem o mercado interno, nem a coesão económica, social e territorial
dentro da União, do mesmo modo como não devem conduzir nem a
uma restrição, nem a uma discriminação às trocas entre os Estados-membros e não devem causar distorções à concorrência entre eles
(artigo 326.° TFUE).
O procedimento de instituição de uma cooperação reforçada
sujeita ao regime geral encontra-se c1isciplinado nos artigos 329.°,
n.o 1, e 330.°, TFUE. Por aí se vê que esse procedimento segue a
forma de um processo legislativo especial com aprovação do Parlamento Europeu. Todavia, por força da chamada cláusula passerelle,
estabelecida no artigo 333.°, n.o 2, TFUE, o Conselho, deliberando
100
Definição e caracteriz.ação geral da União El/ropâa
por unanimidade, formada nos termos do artigo 330.°, pars. 1 e 2, do
mesmo Tratado, pode deliberar que o procedimento a adotar será o
de processo legislativo ordinário.
Diferentemente, o procec1imento para a participação numa
cooperação reforçada já iniciada está regulado no artigo 331.°, n.o 1,
do mesmo Tratado. A participação de um Estado nessas condições
pressupõe a aceitação, da sua parte, dos atos que já tiverem sido
adotados no âmbito da respetiva cooperação reforçada (artigo 328.°,
n.o 1, par. 1,2.' parte, TFUE).
b) Regimes especiais
Para além desse regime geral, os Tratados, como se disse, preveem quatro regimes especiais de cooperação reforçada.
O primeiro regime especial relativo às cooperações reforçadas
apllical-se à PESe. A cooperação reforçada nesta matéria está sujeita
mesmos requisitos substantivos do regime geral, mas encontra
eSIJecifiloidades no que toca ao seu procedimento.
A instituição, ou criação, de uma cooperação reforçada no
domínio da PESC encontra-se sujeita ao procedimento regulado no
329.°, n.o 2, TFUE, e a participação numa cooperação já insnesse domínio rege-se pelo procedimento disciplinado no
331.°, n.o 2, do mesmo Tratado. Curiosamente, o Tratado de
regrediu nesta matéria por confronto com o Tratado de Nice.
facto, enquanto que o artigo 27. o-C UE, na versão de Nice,
COlltentalva-se com a deliberação do Conselho por maioria qualifios preceitos citados do TFUE exigem para o efeito deliberação
Conselho por unanimidade. Esta deve ser calculada à luz do
330.°, par. 2, TFUE. Todavia, por efeito da cláusula passeestabelecida pelo artigo 333.°, n.o I, o Conselho pode delibepor unanimidade, que a unanimidade exigida nos referidos
329.°, n.o 2, e 331.°, n.o 2, TFUE, para as deliberações do
.C,om;eUlo, é substituída pela maioria qualificada.
O segundo regime especial é o da cooperação estruturada
0<.,en'1laneJ"te. Ela encontra-se prevista no artigo 42.°, n.o 6, UE, e no
101
Definição e caracterização geral da União Europeia
A União Europeia
Protocolo n. o 10 anexo ao Tratado, relativo à cooperação estruturada permanente. É o regime da cooperação reforçada que o Tratado de Lisboa criou para o domínio da defesa, no qual até àquele
Tratado não era admitida cooperação reforçada. Essa cooperação
desenvolve-se no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa
(PCSD). O regime da cooperação estruturada permanente tem de ser
visto como um regime de exceção e, por isso, os únicos requisitos
que ele impõe são os seguintes: só podem criar essa cooperação, ou
participar nela, os Estados que reunam os requisitos do referido
artigo 42.°, n.o 6, UE, e do citado Protocolo, independentemente do
seu número; esses Estados têm de assumir os compromissos constantes dos artigos 1.0 e 2.° do referido Protocolo, deixando, todavia,
os Tratados claro que a PCSD não afeta o caráter específico da
política de segurança e defesa dos Estados-membros (artigo 42.°,
n. o 7, infine, UE, e considerando 4.° do citado Protocolo).
O procedimento da criação de uma cooperação estruturada
permanente, bem como da participação nela, rege-se pelo artigo 46.°
UE. O Conselho delibera aqui por maioria qualificada, após consulta ao Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros
e a Política de Segurança (artigo 46.°, n.o 3, pars. 2 e 3, UE).
O terceiro domínio onde é possível criar-se uma cooperação
reforçada sujeita a regime especial é o das missões no exterior no
domínio da PCSD, referidas no artigo 42.°, n.o 1, UE. O conteúdo e
os objetivos dessas missões encontram-se definidos naquele preceito bem como no artigo 43.°, n. o 1, UE. O Conselho, respeitado o
procedimento dos artigos 43.°, n.o 2 e 44. UE, pode confiar uma
missão desse tipo a um grupo de Estados, independentemente do
número, que reuna as condições do artigo 44.°, n.o 1, UE. A coordenação dessas missões cabe ao Alto Representante, sob a autoridade
do Conselho e do Comité Político e de Segurança, e aos Estados-membros (artigos 43.°, n.O 2, e 44.°, n.o 1, UE).
Também é possível aos Estados participarem na Agência Euro·
peia de Defesa - e este é o quarto regime especial em matéria de
cooperações reforçadas. Aquela Agência está prevista no artigo 42.°,
n.O 3, UE. As suas atribuições encontram-se definidas nos artigos
42.0, n. o 3, par. 2, e 45.° do mesmo Tratado, e no artigo 3.° do
0
tocolo n.O 10. Ela está aberta aos Estados que nela queiram participar, a fim de reforçar as suas capacidades militares, independentemente do seu número.
São estes os mais importantes regimes especiais de cooperações reforçadas previstos hoje nos Tratados da União depois do
Tratado de Lisboa".
c) Conclusão
As cooperações reforçadas ou a integração diferenciada apresentam o grande risco da quebra da coesão económica, social e territorial entre os Estados-membros. Ora, essa coesão constitui um
dos objetivos fundamentais da integração. O TUE acolhe expressamente, como dissemos, essa preocupação. De facto, e como vimos,
o TUE proíbe as cooperações reforçadas nos casos em que elas
puserem em perigo aquela coesão. Não vai ser fácil haver várias
reforçadas, segundo o regime geral e segundo os regimes especiais, e, ao mesmo tempo, preservar-se um elevado nível de
coesão, sobretudo, se as diversas cooperações reforçadas não engloum muito grande número de Estados-membros. Por isso, vai
ser aliciante verificar-se como é que as cooperações reforçadas,
de diluirem a integração, irão "reforçar o processo de integra, o que é exigido pelos Tratados, como atrás mostrámos. À
~aI llua, a integração diferenciada não é repelida pela essência da
integr'aç;ão.Há Estados federais que a aceitam e a praticam: para não
mais longe, veja-se o moderno Estado federal alemão, onde,
de vinte anos após a reunificação das antigas duas Alemanhas,
COlltirma a haver uma diferenciação acentuada entre os wnder da
Alemanha Ocidental e os Liinder que pertenceram à antiga
A11~maulla de Leste. Não tendo, todavia, a União Europeia os mesmecanismos integradores de uma Federação Uustamente por
não ter atingido esse estádio), ela só deve aceitar as coopera57
Ver os Comentários aos Tratados UE e TFUE, mas, especialmente,
pgs. 106-108.
103
102
A União Europeia
ções reforçadas, como dissemos, mesmo em "último recurso", como
vimos ser exigido pelo TUE, evitando-se que se institucionalize,
com caráter mais ou menos definitivo, uma União mais estreita, ou
várias Uniões mais estreitas, dentro de urna União mais diluída.
Sobretudo no momento da atual crise económica pode haver a tentação de se caminhar nesse sentido. Nesse caso, as cooperações
reforçadas dificilmente viriam consolidar a integração e poderiam,
ao contrário, transformar-se num irreversível fator de desintegração
da União.
CAPíTULO II
PRINCípIOS CONSTITUCIONAIS E VALORES
DA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: FRITZ MÜNCH, FoderalislIlus, Volkerrecht
und Gemeinchaften, DôV 1962, pgs. 649 e segs.; W. HALLSTEIN, Zu den
Grundlagen und Verfassungsprinúpien der europãischen Gemeinschaften, Festschritft Ophüls, pgs. 1 e segs.; M. EM1LlOU, The principIe
of Proportionality in European Law, Londres, 1966; C. ALDER, Koordination und lntegration ais Rechtsprinzipien, Bruges, 1969; J. SCHERER,
Die Wirtschaftsverfassung der EWG, Baden-Baden, 1970; W. HALLSTEIN,
Die Europãische Gemeinschaft, Dusseldórfia, 1973; P. PESCATORE,
Fédéralisme et intégration: remarques liminaires, in a.c., Fédéralisme
et cours suprêmes et intégration des systemes juridiques, Heu1e, 1973,
pgs. 8 e segs.; L.-J. CONSTANTINESCO, La Constitution économique de la
CEE, RTDE 1974, pgs. 244 e segs.; P. PESCATORE, Aspects judiciaires de
l'«acquis communautaire», RIDE 1981, pgs. 617 e segs.; S. NÉRI, Le
principe de proportionnalité dans la jurisprudence de la Cour relative
en matiere agricole, RTDE 1981, pgs. 652 e segs.; M. ZULEEG, Democratie und Wirtschaftsverfassung ln der Rechtspreclumg der EG, EuR
1982, pgs. 21 e segs.; Luís SÁ, Soberania e integração na CEE, Lisboa,
1987; K. LENAERTS, Le juge et la cOl1stitlltioll aux États-Unis et dans
l'ordrejuridique européen, Bruxelas, 1988; F. DE QUADROS, O princípio
da subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União
Europeia, Coimbra, 1995; H. SCHAMBECK, Aspetos jurídicos e políticos
da evolução da integração europeia no limiar do século XXI, RFDUL
1995 (XXXVI), pgs. 427 e segs.; R. BIEBER e P. WIDMER (ed.), L'espace
constitutionnel européell, Zurique, 1995, com recensão de P. Badura, in
AõR 1996, pgs. 656 e segs.; R.-E. PAPADOPOULOU, Principes généraux du
droit et droit C011l11l1lllGutaire, Bruxelas, 1996; C. CALLlES, Subsidiaritiits-
104
lOS
A União Europeia
und Solidaritatsprinzip in der europdischen Union, Baden-Baden, 1996;
C. CHARRIER, La Communauté de droit, une étape sous-estimée de la
construction européenne, RMC 1996, pgs. 527 e segs.; J. GERKRATH,
L'émergence d'un droit constitutionnel pour I'Europe, Bruxelas, 1997;
V. CONSTANTINESCO, Les clauses de «coopération renforcée», le protocole sur l'application des principes de subsidiarité et de proportionnalité, RTDE 1997, pgs. 751 e segs.; M. PATRÃO ROMANO, Diferenciação
de Estados e democratização da Comunidade Europeia, Lisboa, 1997;
CARLA A. GOMES, A natureza constitucional do Tratado da União
Europeia, Lisboa, 1997; D. RITLENG, Le contrôle de légalité des actes
communautaires par la CJCE et Fc TPI, diss., Estrasburgo, 1998; K.
BOSKOVITS, Le juge communautaire et l'articulation des compétences
normatives entre la Communauté européenne et ses États membres,
diss., Estrasburgo, 1998; El principio de proporcionalidad, número
monográfico dos Cuadernos de Derecho Publico 1998, ll. o 5, especialmente pgs. 75 e segs.; F. TUYTSCHAEVER, Difterentiation in Europeall
Union Law, cit.; M. VERDUSSEN (dir.), L'Europe de la subsidiarité,
Bruxelas, 2000; F. SUDRE, L'apport du droit international et européen à
la protection communautaire des droits fondamentaux, in Droit international et droit communautaire ~ perspetives actuelles, Paris, 2000,
pgs. 169 e segs.; C. CANCELA OUTEDA, Il proceso de constitucionalización de la Unión Europea ~ De Roma a Niza, Santiago de Compostela,
2001; D. BLANCHARD, La constitutionalisation de l'Union européenne,
Rennes, 2001; F. KAUFF-GAZ(N, La notion d'intérêt général en droit
commwzautaire, diss., Estrasburgo, 2001; M. MANUELA TAVARES RIBEIRO
(ed.), Identidade europeia e multiculturalismo, Lisboa, 2002; A. VON
BOGDANDY e S. KADELBACH (eds.), Solidaritiit und europiiische Integra·
tion, Baden-Baden, 2002; R. DEHOUSSE, Une Constitution pour
l'Europe?, Paris, 2002; A. PIZZORUSSO, Il patrimonio costituzionale
europeo, Bolonha, 2002; T. VON DANWITZ, Der Grundsatz der
Verhiiltnismiissigkeit im Gemeinschaftsrecht, EWS 2003, pgs. 393 e
segs.; A. VON BOGDANDY, Europiiische Prinzipienlehre, in Europaisches
Verfassungsrecht, ed. pelo mesmo, já cit., pgs. 149 e segs.; F. DE QUADROS, Einige Gedanken Zum Inhalt und zu den Werten der Europdischen
Velfassung, Festschrift Badura, 2004, págs. 1.125 e segs.; INSTITUTO
EUROPEU DA FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA et alo (eds.), Uma
Constituição para a Europa, Colóquio Internacional de Lisboa, maio de
2003, Coimbra, 2004; B. RVAN, For Substantive Constitutionalism in the
European Union, T. TridimaslP. Nebbia (eds.), European Union Law for
the Twenty-First Century, vol. 1, Oxford, 2004, pgs. 171 e segs.; I.-P.
106
Prindpios constitucionais e valores da União Europeia
lACQUÉ, Les principes constitutiol1nels fondamentaux dans le projet de
Traité établissant une COllstitutiol1 pour I'Europe, L. Serena Rossi (ed.),
Vers une nouvell architecture de l'Union européenne, Bruxelas, 2004,
pgs. 62 e segs.; J. MOUN1ER (dir.), Les principesfondateurs de l'Union
européenne, Paris, 2005; ANA MARTINS, Os valores da União na
COllStituição Europeia, Coimbra, 2005; M. DoNY e E. BRlBOSIA, cit.,
3
pgs. 33 e segs.; T. TRlDIMAS, The General Principies of EC Law, 2. ed.,
Oxford, 2006; C. KADDOUS e A. AUER (eds.), Les principes !olldamentaux de la Constitution européemle, Genebra, 2006; J. DUARTE NOGUEIRA,
Direito Europeu e identidade europeia, Lisboa, 2007; D. SlDJANSKI e F.
SAINT-OUEN (dir.), Dialogue des cu/tures à l'aube du XXli!me siecle,
Bruxelas, 2007; L. PECH, The European UlliO/l and its constitution:.from
Rome to Lisbon, Dublin, 2008; G. DE BÚRCA e J. H. WEILER, The Worlds
Df European Constitutionalism, Cambridge, 2012,
31. Introdução: os princlpIOs constitncionais e valores como
elemento nnclear da Constituição material da União
A União Europeia assenta em alguns princípios fundamentais.
Por isso, chamamos-lhe princípios constitucionais da União. São
princípios estruturantes do conjunto da União e do seu sistema jurídico e por isso se deve entender que integram o património constitucional europeu e fazem parte do núcleo da Constituição material
da União. Como já se disse, se é evidente que a União não tem uma
Constituição formal, não é menos certo que ela possui uma Constituição material. É verdade que o TI cedo começou a caracterizar os
Tratados institutivos das Comunidades como "Carta Constitucional" ou "Carta Constitucional de uma Comunidade de Direito"58,
como "Constituição interna da Comunidade" ou "Constituição da
Comunidade"" e que a doutrina cedo passou a encontrar nos Trata58 Para começar, as conclusões do Advogado-Geral LAGRANGE no caso
CostalENEL, Ac. TJ 15-7-64, Proc. 6/64, Rec., pgs. 1.141 e segs.; mais tarde, Ac.
23-4-86, Les Verts, Proc. 294/83, CoI., pgs. 1.339 e segs., e Parecer C-1/91,
14-12-91, Espoço Económico Europeu, CoL, pgs. 1-6.079 e segs.
59 Parecer n. O 1176, 26-4-77, FOllds européen d'immobilisation de la navi·
gatioll illtérieure, Rec., pgs. 741 e segs.
107
A União Europeia
Princípios constitucionais e valores da UI/ião Europeia
dos a "Constituição económica" das Comunidades 60 quando a integração europeia se limitava às Comunidades e estas prosseguiam
objetivos meramente económicos.
Mas hoje é demasiado redutor querer ver na Constituição
material da União apenas o "Direito interno" da União 6 1, ou algo de
análogo, por exemplo, com a chamada Constituição material das
Nações Unidas, que se pretende encontrar nos primeiros artigos da
Carta da ONU. A Constituição material da União Europeia vai
muito mais longe: ela cria a União; define os princípios de base e os
valores que a regem, a ela e aos Estados-membros; aponta-lhe os
objetivos; fixa-lhe as atribuições; disciplina as suas relações com os
do preâmbulo do TUE de "valores universais", e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que está anexa ao Tratado de
Lisboa e que, por força de disposição expressa do TUE (o artigo 6.
n. ° I), faz parte integrante deste Tratado.
Por conseguinte, os princípios que vamos de seguida estudar
ocupam um lugar central na Constituição material da União: eles
são princípios que, por serem fundamentais do ponto de vista axiológico, dão corpo, no plano da Filosofia Política e do Direito, às
opções básicas da União e aos valores que ela escolheu para regerem a sua existência e a sua atividade63 • Em suma, opções e valores
que compõem a identidade da União, ainda melhor dito, a identi-
Estados-membros; dá à União um aparelho orgânico e institucional
dade constitucional da União 64 .
para atuar; cria os mecanismos necessários para a interpretação e a
aplicação do Direito da União, isto é, para a efetividade do Direito
da União; regulamenta as fontes formais do Direito da União; salvaguarda os direitos fundamentais dos cidadãos europeus; estabelece
os meios que vão garantir a legalidade comunitária. Ou seja,
criou-se na União Europeia uma Constituição material que, no plano
substantivo, se aproxima da Constituição estadual e que toma como
referência o modelo político estadual6'. O Tratado de Lisboa, na
sequência do Tratado Constitucional (artigo 1_2.° e Parte II), alargou
de modo significativo o conteúdo e o âmbito dessa Constituição
material através da inclusão nela dos "valores da União" (artigo 2.°
UE), alguns dos quais são qualificados pelo segundo considerando
Por isso, esses princípios constitucionais dão corpo ao que
podemos designar de ius cogens europeu, ou ius cogens da União.
Ou então, podemos dizer que eles fazem parte da ordem pública da
União, por analogia com o conceito de ordem pública internacional,
que HERMANN MOSLER introduziu no Direito Internacional". Eles
ocupam o lugar cimeiro entre as fontes do Direito da União, e constituem, portanto, autênticos limites materiais à revisão dos Tratados
da União. Como ius cogens, pode entender-se que a sua violação
pelos tratados gera a nulidade destes, por força do artigo 53. 0 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados'6.
Note-se que a importância desses princípios fundamentais em
nada fica diminuída pelo facto de alguns deles serem princípios
gerais de Direito e de, como tais, nós os irmos reencontrar mais
tarde como fonte, e fonte importante, do Direito da União - é o caso,
por exemplo, dos princípios da proporcionalidade e da não-discriminação. Estamos nesse caso perante princípios gerais de Direito que
0
,
Ver, especialmente, SCHERER.
Sobre o conceito, criado na Escola de Viena por ALFRED VERDROSS, de
"Direito interno das Organizações Internacionais", veja-se a nossa já citada dissertação de doutoramento, sobretudo, pgs. 171 e segs., e bibl. aí cit., e confronte-se
também a sua pg. 185.
62 Dentro das obras gerais mais atuais, veja-se esta matéria desenvolvida, na
doutrina francesa, por lAcQuÉ, pgs. 95 e segs.; na doutrina alemã, por HÃBERLE, na
sua obra básica de Filosofia Política e do Direito, Europaische Verfassungslehre,
5.a ed., Baden-Baden, 2008, e VON BOGDANDY; na doutrina britânica, por GRAíNE DE
BURCA, The Constitutional Limits ofEU Action, Oxford, 2000; e, em Portugal, por
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. u ed., Coimbra,
2003, pgs. 824 e segs. e 1139, e "Brancosos" e interconstitucionalidade, Coimbra,
2006, pgs. 199 e segs. Cfr. também ANA MARTINS, pgs. 125 e segs.
Assim, por todos, lAcQuÉ, loe. cit., e CERUTIJ, pgs. 5 e segs.
Sobre o conceito de identidade constitucional da União ver, nos Mélanges P. Manin, Paris, 2012, os artigos de NABLI, CONSTANTINESCO e LEVADE; e o nosso
trabalho L'identité cOl1stitutionnelle de l'Union et les valeurs comnUlnes.
65 The /nternational Society as a Legal Community, RCADI 1974-IV,
pgs. 1 e segs. Ver também a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 358-359
e 399.
M Veja-se sobre a matéria BLECKMANN, pg. 45.
108
109
60
61
6J
64
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
A União Europeia
o Direito da União ergue a mais do que isso, porque os adota como
Direito fundamental da União·'.
Os princípios constitucionais que aqui vamos estudar não
podem ser vistos apenas como produto de uma abstração normativista. Como logo de seguida veremos, e já demonstrámos nas duas
edições anteriores deste livro, ainda antes do Tratado de Lisboa, eles
não são apenas princípios, são verdadeiros valores, no mais profundo sentido filosófico da palavra. Por serem inerentes às características essenciais e específicas da Ordem Jurídica da União, eles
presidem à existência e à atividade da União. Como tal, compõem,
na feliz expressão de BLANCHARD68 , o "património constitucional
comum" da União e dos Estados-membros.
Já nas edições anteriores deste livro nós sublinhávamos a incidibilidade no moderno Direito da União entre princípios constitucionais e valores. O Tratado de Lisboa, na esteira do Tratado Constitucional, ergueu alguns daqueles princípios à categoria autónoma de
valores e elencou-os, como tais, no artigo 2. 0 UE. Essa autonomização teve apenas a intenção de sublinhar a maior importância, no
plano ontológico, de alguns dos princípios constitucionais mas não
significa que eles não devam continuar a ser vistos como princípios
constitucionais, ou seja, como princípios integrados no cerne da
Constituição material da União. De qualquer modo, mesmo assim, o
percurso dos valores no Direito da União foi diferente do dos demais
princípios constitucionais, como vamos de seguida demonstrar.
32. Idem: em especial, os valores da União
Bibliografia especial: INSTITUTO EUROPEU DA FACULDADE DE DIREITO
DE LISBOA, BRITISH COUNClL, GOETHE-INSTITUT LISSABON e INSTITUT
FRANCO-PORTUGAIS, Uma Constituição para a Europa, Lisboa, 2004,
67 Sobre a matéria deste Capítulo, ver, das obras gerais, especialmente,
SIMON, pgs. 83 e segs., e bibl. aí cit., JACQUÉ, pgs. 50 e segs., BORCHARDT, pgs. 35
e segs. e 56 e segs., e, com uma grande amplitude, VON BOGDANDY (ed.), pgs. 149
e segs. e TRlDIMAS.
68 Pgs. 111 e segs.
110
Actas do Colóquio Internacional de Lisboa, organizado em conjunto por
aquelas quatro entidades em maio de 2003, obra coordenada por Paulo
de Pitta e Cunha e Fausto de Quadros, com prefácio de António de
Sousa Franco, em especial as comunicações de V. CONSTANTINESCO,
Valeurs et contellu de la Constitutiol1 européenne, pgs. 161 e segs., e F.
DE QUADROS, O conteúdo e os valores da Constituição Europeia, pgs.
189 e segs.; G. CAVALLAR, Die europiiische U11io11 - von der Utopie zur
Friedens- und Wertegemeinschajt, Viena, 2006; F. CERUITI (ed.), The
search for a European identity; values, policies and legitimac.v of the
European Union, Londres, 2008; M. DELMAS-MARTY, Vers une commlf~
naufé de valeurs?, Paris, 2011; F. DE QUADROS, L'identité constitlltiOI1nelle de [,Union européenne et les valeurs commUlles, in L. Potvin-Solís
(ed.), Valeurs communes dans l'Union européenne, no prelo.
Vejamos, para começar, como nasceu esta conceção dos valores no Direito da União até os Tratados, pela revisão de Lisboa, lhes
concederem guarida de modo expresso.
O conceito de "valores comuns" da União tem uma história
muito rica.
Já as Comunidades Europeias se afirmavam como subordinadas a determinados valores comuns aos Estados-membros embora
os Tratados não se referissem a eles.
O primeiro documento oficial sobre essa matéria foi a Declaração sobre a Identidade Europeia, aprovada pela Cimeira de Copenhaga, de 14 de dezembro de 197369 • Nessa Declaração, os então
nove Estados-membros reconheciam a necessidade de as Comunidades afirmarem a sua identidade própria, que lhes permitisse
exprimirem-se melhor nas suas relações com outros Estados do
mundo, bem como quanto às suas responsabilidades nas grandes
questões mundiais. Essa identidade englobava o reconhecimento de
uma herança comum dos Estados-membros; o reforço da sua coesão
perante o resto do mundo; a salvaguarda dos valores de ordem jurídica, política e moral aos quais eles estavam ligados; a preservação
da rica diversidade das suas culturas nacionais, a afirmação de uma
6'l
Bull. des Communautés européennes, dezembro de 1973,
127-130.
111
fi.
o
12, pgs.
A União Europeia
ri
I
mesma conceção de vida, fundada na vontade de construir uma
sociedade imaginada para estar ao serviço da Pessoa Humana; o
respeito pelos princípios da democracia representativa, da salvaguarda dos Direitos do Homem, do primado da lei, da justiça social
como fim último, e não como mero meio, do progresso económico.
A Declaração de 1973 inspirava-se no Estatuto do Conselho da
Europa, de 1949, portanto, um quarto de século anterior àquela.
Esse Estatuto afirmava que os Estados-membros se encontravam
"indissoluvelmente vinculados aos valores morais e espirituais que
constituem o património comum dos respetivos povos e que para ele
eram, desde logo, os princípios da liberdade individual, da liberdade
política e do primado do Direito, sobre os quais se funda toda ~
verdadeira Democracia" (itálicos nossos). Note-se que estes pnncIpios foram recordados, com todo o vigor, pelo Conselho da Euro~a,
quando ele teve que decidir, a partir da década de 90, sobre a admIssão como seus membros dos antigos Estados comunistas da Europa
Central e do Leste, após a sua democratização.
O TUE, aprovado pelo Tratado de Maastricht, veio retomar a
referência aos "valores comuns" da União como objetivo a prosseguir pela PESC (artigo J.l, n." 2, 1." travessão). O Tratado de Amesterdão manteve essa posição (artigo 11.", n." 1, 1." travessão). Além
disso, aquele Tratado veio erguer a "valor comum" da União, a
função que passaram a exercer os serviços de interesse económico
geral (artigo 16.° CE). O Tratado de Nice não trouxe qualquer modIficação ao referido artigo 11.°, n.o 1, 1.0 travessão, UE.
Todavia, a referência aos valores seria extremamente reforçada pelo Anteprojeto da "Constituição da União Europeia", apresentado pela Comissão Europeia à Convenção sobre o Futuro da
Europa e conhecido por Documento Penélope 70 , quando ele definia
a União como uma "Comunidade de valores" (artigo 1.0, n.o 1),
incluindo nesses valores "valores espirituais e morais" (artigo 1.0,
n.o 2).
O Tratado Constitucional, na sua redação final, era menos
ambicioso do que o Anteprojeto da Comissão. Na sequência dos
'" Doe. de 4-12-2002.
112
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
dois primeiros considerandos do seu preâmbulo, esse Tratado afirmava, no seu artigo 1_1.°, n.o 2, a existência de "valores" da União,
elencava, no artigo 1_2.°, os "valores da União", que, dizia, são
"comuns aos Estados-membros", e impunha à União o objectivo de
promover "os seus valores" (artigo 1_3.°, n."' 1 e 4). Não aparecia
nele, todavia, a proclamação formal da União como uma "Comunidade de valores", como pretendera a Comissão.
O conteúdo do referido artigo 1_2." do Tratado Constitucional
foi assimilado, no essencial, pelo artigo 2.° do Tratado UE após O
Tratado de Lisboa.
Os valores aí definidos são os seguintes: o respeito pela dignidade da pessoa humana (por influência manifesta da Lei Fundamental de Bona, artigo 1.0), a democracia, a liberdade, a igualdade, o
Estado de Direito, o respeito pelos Direitos do Homem, inclusive
pelos direitos de pessoas pertencentes a minorias. Para o Tratado,
esses valores têm de ser comuns a todos os Estados-membros, numa
sociedade caracterizada pelo pluralismo, pela não-discriminação,
pela tolerância, pela justiça, pela solidariedade e pela igualdade
entre homens e mulheres (o que tem de ser interpretado como novos
valores que se adicionam aos valores definidos na primeira parte do
preceito). Sublinhe-se que a circunstância de esses valores serem
assumidos, de modo expresso, não apenas como valores da União,
mas também como valores "comuns aos Estados-membros", assume
uma enonne relevância. Isso quer dizer que, independentemente d'a
União como uma pessoa jurídica autónoma, os Estados-membros se
comprometem a respeitar esses valores na sua ordem interna e nas
suas relações entre si e com a União.
Note-se que, se o artigo 2.° ganha importância pelo facto de
enunciar os valores que o Tratado quis impor à União, o 2.° considerando do preâmbulo do Tratado tem uma ambição ainda maior,
que decorre do seu teor: ele obriga os Estados a "inspirarem-se" no
"património cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanam os valores universais que são os direitos invioláveis e indeclináveis da Pessoa Humana, bem como a liberdade, a democracia, a
igualdade e O Estado de Direito" (itálicos nossos). Com esta redação, o preâmbulo do Tratado é muito mais ambicioso e abrangente
113
A União Europeia
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
do que o artigo 2.°, particularmente quando, com fidelidade objetiva
à História da Europa, reconhece que esta tem um património comum
de índole cultural, religioso e humanista, que a União deve respeitar
e ao qual ela tem de ser fiel. Neste aspeto, o Tratado UE inspira-se
no 2.' considerando do preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamentais da União.
Mesmo assim, há que enfatizar que, nesta matéria, tanto o Tratado Constitucional como o Tratado de Lisboa ficaram aquém do
desejado pelos trabalhos preparatórios da Convenção sobre o Futuro
da Europa. De facto, como há pouco mostrámos, o Anteprojeto do
Tratado Constitucional apresentado pela Comissão qualificava
expressamente a União Europeia como uma "Comunidade de valores", e de "valores espirituais e morais"71.
enunciados no considerando n.O 2 do preâmbulo e no artigo 2.° do
Tratado UE".
Quanto à força jurídica dos valores da União há duas observações a fazer.
A primeira é a de que temos quanto a isso que atender ao que
dispõe, de modo expresso, o Tratado UE, no seu artigo 3.°, n.o 1, já
citado. De facto, aquele preceito impõe à União, como um dos seus
primeiros e principais objetivos, a promoção dos valores da União.
Isto quer dizer que estes constituem "parte da substância intrínseca"
da União73 • Ou, dito talvez de forma mais expressiva, e como já
escrevemos noutro local", os valores da União fazem parte da "identidade constitucional" desta e, como tais, integram-se na Constituição
material da União. Ou seja, os valores da União impõem-se a esta
Direito imperativo. Fazem, portanto, parte do Direito imperativo da União, melhor, do ius cogens da União. Veremos adiante
ml:!h()r o que isto significa. Haverá, por ora, apenas que sublinhar
entendidos dessa forma, os valores transmitem ao Direito e à
Pollítiloa da União a conceção de que os Tratados impõem uma União
fUlld"da na superioridade e no primado dos valores e, concretamente,
O""l;O'" a subordinação da Economia àqueles valores".
A segunda observação é a de que, ao inscreverem no Tratado
os valores são "comuns aos Estados-membros", os Estados
sig;natários do Tratado de Lisboa comprometeram-se a conformar a
Ordem Jurídica interna, bem como a sua prática política, com
esses valores 76.
33. Idem: a relevância jurídica dos valores da União
A enunciação dos valores referidos no artigo 2.° não é meramente programática: eles obrigam a União, como, logo a seguir,
estabelece o artigo 3.', n.o I, UE. A sua violação grave e persistente,
ou o mero risco manifesto da sua violação grave, por um Estado-membro, pode acarretar para ele a aplicação das sanções previstas
no artigo 7.°, n." 1 e 2, UE. Particular destaque concede o Tratado
UE, de modo enfático, à sujeição da ação da União na cena internacional aos valores referidos (artigos 3.', n.o 5,21.', n.o 2, ai. a, e 32.',
par. 1, UE).
A inclusão em preceito expresso dos Tratados da referência aos
valores da União, particularmente a imputação desses valores ao seu
património cultural, religioso e humanista, tem uma importância
muito grande. Ela significa que os Tratados concebem a União
como uma entidade não asséptica e neutra no plano ideológico,
mas, pelo contrário, como um produto histórico do património cultural, religioso e humanista da Europa, materializado nos valores
Veja-se esta questão mais desenvolvidamente, por exemplo, em
pgs. 26 e segs. Aí encontra o leitor, de modo particular, as
vicilSsil'ud,,, por que passou o processo de revisão do Tratado de Nice no que toca
reconhecimento do património religioso da Europa.
73 PIRIS, pg. 72. Note-se que o Autor, na sua qualidade de Diretor do Serviço
do Conselho, acompanhou de perto todo o processo que culminou com a
72
ct'RlO'LL,.UDf~lI'ITl(ZY,
< ',lahora,;ão do Tratado de Lisboa.
L'identité constifufionnelle de l' Union, cit.
Ver QUADROS, Conteúdo e valores, cit., pgs. 190-191.
76 Ver a referência aos "valores" da União Europeia, com esta amplitude,
"",10'0," nos livros, já referidos, de BLANCHARD, sobretudo pgs. 65 e segs. e 111 e
e TRID1MAS, pgs. 14 e segs.
74
75
71
Sobre a "Comunidade de valores", veja-se na doutrina, por todos,
MAS-MARTY.
114
DEL-
...•
115
A União Europeia
34. Sequência
Vamos, pois, estudar em conjunto os princípios constitucionais
da União Europeia, incluindo aqueles que o Tratado UE, no seu
artigo 2.°, qualifica de valores.
35. A) O princípio da integração
o
primeiro e o mais importante princípio constitucional da
União Europeia é, sem dúvida, o princípio da integração.
Como logo no início deste livro explicámos", em termos clássicos a fórmula e o modelo de integração estavam reservados apenas
ao Estado. A União Europeia obrigou a repensar esta conceção.
De facto, enquanto que o Direito Internacional clássico visa
apenas coordenar horizontalmente as soberanias dos Estados como
expressão que elas são do individualismo internacional em que
aquele Direito ainda em grande parte se funda e que faz dele um
Direito fragmentário, a União Europeia e a sua Ordem Jurídica têm
por objetivo primordial fomentar a criação de interesses comuns
entre os Estados e, depois, valorizá-los e ampliá-los. Por isso, à
visão societária do Direito Internacional opõe a União Europeia
uma conceção comunitária das relações entre os Estados e entre eles
e os indivíduos, isto é, ela visa criar entre estes uma margem tão
ampla quanto possível de solidariedade, que impõe a criação de um
poder integrado, de relações verticais de subordinação entre esse
poder, por um lado, e os Estados e os seus sujeitos internos, por
outro, e de um Direito comum.
Assim entendido, o princípio da integração constitui um princípio constitucional da integração europeia desde o seu início. De
facto, em 25 de julho de 1950, ao desenvolver perante a Assembleia
Nacional francesa, em nome do Governo, o Plano que apresentara
em 9 de maio desse ano, SCHUMAN resumia desta forma a sua proposta nesta matéria: "O essencial da nossa proposta é a de criar,
7i
Supra, n.o 3.
116
Principias constitucionais e valores da União Europeia
acima das soberanias nacionais, uma autoridade supranacional,
uma autoridade comum aos países participantes, uma autoridade
que seja a expressão da solidariedade entre esses países e em cujas
mãos eles levam a cabo uma fusão parcial das suas soberanias
nacionais" (itálicos nossos)78.
Foi, pois, para explicar esse fenómeno que cedo nasceu no
léxico jurídico da integração europeia a palavra "supranacionalidade". E a doutrina depressa começou a teorizar essa supranacionalidade como a "ordem das soberanias subordinadas normativamente"
(itálico nosso)79 ou como "a suscetibilidade de imposição do poder
público comunitário contra o poder estadual" (itálicos nossos)80.
Nós aderimos, em 1984, a essa corrente, chamando, a este
fenómeno de subordinação, "superioridade hierárquica do poder
snpranacional sobre o poder estadual"81-82.
O princípio da integração encontra-se presente, obviamente,
em todo o TUE: para começar, na sua epígrafe, depois, no vocábulo
"União", inserido nos considerandos 1.0 e 15. 0 do seu preâmbulo e
no artigo 1.0, par. I, e, depois, no artigo 1.0, par. 2, quando este assinala como finalidade do Tratado "uma união cada vez mais estreita
entre os povos da Europa".
Uma das manifestações mais importantes do princípio da integração reside no princípio da solidariedade, que, pela sua importância, estudaremos separadamente.
Logo a seguir, e com igual importância, surgem-nos, como
expressões do princípio da integração, sobretudo enquanto gerador
78 Ioumal Officiel de la République Française, Débats Parlementaires,
Assemblée Nationale, premiere sessioll legislative, sessão de 1950, pgs. 5.943.
79 HÉRAUD, L'inter-étatique, le supranational et Jeféderal, APD 1961, pgs.
179 e segs.
80 H. P. IrsEN, pgs. 66 e segs., especialmente pg. 68.
81 Nossa dissertação de doutoramento, pgs. 158 e segs., e bibl. aí selecionada.
82 Sobre a construção dogmática do princípio da integração na integração
europeia, ver as obras fundamentais de ALDER, de IpsEN e de PESCATORE, Le droit
l'illtégration. Hoje, veja-se, especialmente, SIMON, pgs. 83 e segs., e, como
ponte entre o Direito e a Ciência Política, a obra de M. W1ND, Sovereignty and
European Integration, Houndmills, 2001.
117
A União Europeia
de relações de subordinação entre a União e os Estados-membros,
os princípios da efetividade, ou da plena eficácia, do Direito da
União, e o princípio da sua uniformidade, concretamente, na sua
interpretação e na sua aplicação. Estes dois princípios constituem
dois alicerces essenciais de todo o sistema jurídico da União".
O princípio da efetividade postula que o Direito da União seja
aplicado de modo eficaz pela União e pelos Estados-membros, com
respeito pelas suas características próprias. Tendo estado sempre
claro no acervo dos princípios fundamentais do Direito da União tal
como a jurisprudência da União o interpretava, ele encontra, depois
do Tratado de Lisboa, expressão escrita nos Tratados, mais concretamente, no artigo 291.°, n.O 1, TFUE. O princípio da uniformidade,
por sua vez, impõe que a Ordem Jurídica da União seja interpretada
e aplicada de modo uniforme no espaço da União e, concretamente,
na ordem interna de todos os Estados-membros. Todavia, esta uniformidade é relativizada pelo próprio Direito da União, quer através
do princípio da subsidiariedade, quer através do modo como aquele
Direito disciplina o seu Direito derivado. Estudaremos isso na altura
próprIa.
36. B) O prinCIpIO do respeito pela identidade nacional dos
Estados-membros
O segundo princípio constitucional da União consiste no
princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados-mem0
bros. Ele foi integrado no texto dos Tratados através do artigo 6. ,
0
n. o 3, UE, após a revisão de Amesterdão. Hoje figura no artigo 4. ,
n. 0 2, UE.
Este princípio tem estado presente na integração europeia
desde o seu início. Já JEAN MüNNET afirmara, numa frase que ficou
célebre, que "a Europa não se fará sem os Estados e muito menos
83 Assim, de modo especial, STRuys/FLYNN, in Marc Verdussen (dir.), pgs.
239 e segs., e FINES, L'applicatioll uniforme du droit communautaire dans lajuris~
prudence de la COllr de Justice des Communalltés européennes, Études Gautron,
Principios constituciollais e valores da União Europeia
contra os Estados". Este princípio queria dizer então, como quer
dizer hoje, que no processo evolutivo da integração será preservada
e respeitada a identidade própria de cada Estado. É por isso que ele
tem de ser estudado logo a seguir ao princípio da integração.
O que significa respeito pela "identidade nacional" dos Estados-membros? Na redação dada ao artigo 4.°, n. o 2, UE, pelo Tratado
de Lisboa, significa respeito pelas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada Estado, incluindo no que diz respeito à
autonomia local e regional, e pelas funções essenciais do Estado,
nomeadamente as que se destinam a garantir a sua integridade
territorial, a manter a ordem pública e a salvaguardar a segurança
nacional.
Ou seja, e visto tudo isto com mais pormenor, a identidade
nacional significa identidade política, jurídica (incluindo a identidade constitucional) e cultural.
A identidade política quer dizer que os Estados-membros conservam a sua individualidade no plano político, ainda que com a sua
soberania progressivamente limitada por efeito do gradualismo da
integração. O respeito da parte da União pela identidade nacional
dos Estados-membros impõe, designadamente: que ela respeite a
Kompetenz-Kompetenz ("competência das competências") de cada
Estado-membro, isto é, o direito de cada um deles definir a sua organização política e administrativa interna, inclusivamente, a nível
local e regional, salvo quando o contrário for imposto pelas necessidades da própria integração; que ela respeite, e que os Estados-membros se respeitem entre si, as fronteiras políticas dos Estados,
portanto, a sua integridade territorial; e que, sempre sem prejuízo
das obrigações assumidas pelos Estados-membros no quadro da
integração, a União observe o direito (e ü dever) dos Estados de
garantirem a sua segurança interna, a sua defesa externa e de adaptarem as suas relações externas aos seus interesses específicos.
Nesse aspeto merece realce o facto de o Tratado de Lisboa, no referido artigo 4.°, no seu n.o 2, ter vindo conferir aos Estados a responsabilidade exclusiva da manutenção da sua segurança nacional.
No plano jurídico, o respeito pela identidade nacional dos
Estados exige que a União preserve a "especificidade" dos Direitos
2004, pgs. 333 e segs.
118
119
A União Europeia
Princfpios constitucionais e valores da União Europeia
nacionais dos Estados-membros. Esta orientação é muito cara à
jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, que a
desenvolveu nos casos Solange I", Solange 11" e Maastricht'6.".
Mais recentemente, no caso Lisboa'8, em que se discutia a conformidade do Tratado de Lisboa com a Lei Fundamental de Bona,
aqnele Tribunal foi mais longe e elaborou densamente o conceito de
identidade constitucional nacional dos Estados no seio da União
Europeia, aplicando esse conceito à Alemanha. Essa identidade
abrange, além dos princípios específicos da ordem constitucional
alemã, referidos no artigo 23.°, n.o I, da Lei Fundamental de Bona,
e que aquele artigo manda preservar quando autoriza que a Alemanha participe na União Europeia, também os princípios da Democracia e do Estado de Direito e direitos sociais.
Conjugado com o princípio da subsidiariedade, que adiante
estudaremos, tudo isto quer dizer que a harmonização das Ordens
Jurídicas nacionais com o Direito da União Europeia, imposta
pelo princípio da integração, deve, em toda a medida do possível,
respeitar o caráter específico e peculiar dos sistemas jurídicos nacionais.
Por sua vez, a preservação da identidade cultural exige que a
União respeite a língua, a História (inclusive, as tradições) e a cultura de cada Estado-membro, inclusive as suas religiões e as suas
minorias, como se encontra, aliás, estipulado, de modo expresso, no
6.° considerando do preâmbulo do TUE e no artigo 2.° do mesmo
Tratado.
A obrigação de a União respeitar a identidade nacional dos
Estados não dispensa estes - pelo contrário, reforça-o, no quadro da
integração - do encargo de preservarem e defenderem a sua própria
identidade nacional. Não podem aí contar com a União para suprir
insuficiências ou omissões próprias nem podem responsabilizar esta
por erros e omissões só a si imputáveis 89 •
84 Despacho de 29-5·74, BVerfGE 37, pgs. 271 e segs.
"' Despacho de 22-10-86, BVerfGE 73, pgs. 339 e segs., ou, em tradução
francesa, RTDE 1987, pgs. 545 e segs.
86 Ac. 12-10-93, BVerfGE 89, pgs. 155 e segs.
81 Cfr. o nosso estudo O princípio da subsidiariedade, pgs. 40-41.
.. Ac. 30-6·2009, BVerfGE 123, pgs. 267 e segs.
120
37. Continuação: relação entre os princípios da integração e do
respeito pela identidade nacional dos Estados
Os princípios da integração e do respeito pela identidade
nal:ional dos Estados não se excluem. Pelo contrário: completam-se.
O motor da integração europeia reside, exatamente, na cons"tensão dialética" entre a integração e a interestadualidade,
para utilizarmos uma expressão que vimos usando desde 198490
Hoje, JACQUÉ" refere-se, de modo muito feliz, ao "dinamismo
comunitário", para exprimir essa relação entre a "integração" e a
Esta tensão dialética entre a integração e a interestadualidade,
entre integração e soberania, esta visão dualista ou bivalência do
prclce~;so de integração, caracteriza o método federal. E ela foi acopelos autores dos Tratados exatamente para corroborarem a
voca\:ão federal das Comunidades, que ficara anunciada logo no
Schuman, como vimos. De facto, tanto o federalismo norte-am,erit;an'J,que inspirou O Tratado CECA, de 1951 (quando o fede'''I.I>11IU alemão, moldado pela Lei Fundamental de Bona, de 1949,
não tivera tempo para dar provas), como o federalismo aleque inspirou o Tratado CEE e CEEA, de 1957 (quando já
provado que o modelo federal desenhado pela referida Lei
FUind[lmt:ntal de 1949 era equilibrado e estava a contribuir para a
recuperação económica e social da Alemanha depois das
de'vas,ta\:ões da Guerra), encontram-se estruturados segundo o refedualismo, desde logo no exercício do poder legislativo. De
Sobre a matéria deste número, ver BADURA, A "identidade nacional" dos
110 Constituição da Europa, in Uma Constituição para a Europa,
Colóq,uiolnternacional de Lisboa de 2003, cit., pgs. 71 e segs.
90 Ver a nossa dissertação de doutoramento, cit., sobretudo, pgs. 251 e segs.
e segs.
91 Pgs. 20 e segs.
89
121
A União Europeia
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
facto, o poder legislativo federal está entregue, num caso e noutro,
a duas câmaras: nos Estados Unidos, à Câmara dos Representantes,
que representa a integração, o interesse integrado da União, porque
é eleita por sufrágio direto e universal dos cidadãos da União, e ao
Senado, que representa os Estados federados, porque é composto
por delegados destes; na Alemanha, ao Bundestag, que representa a
Federação, porque emana do sufrágio direto e universal dos cidadãos da Federação, e ao Bundesrat, que representa os Estados federados (Liinder), porque é composto por mandatários destes. Isto
Os "soberanistas" não podem ignorar que, mesmo no Direito
Internacional, a soberania dos Estados já não é absoluta e indivisível. A evolução do Direito Internacional após a 2: Grande Guerra e,
especialmente, nas últimas duas décadas, prova-o à saciedade. Ou
seja, o individualismo dos Estados, expresso na respetiva soberania,
não ignora, no moderno Direito Internacional, áreas progressivamente vastas de solidariedade e de integração93 •
Por seu lado, os "federalistas" não podem esquecer-se de que
uma das características marcantes do federalismo alemão, que,
significa que, através da chamada lei de participação, que constitui
um traço característico das federações, os Estados-membros da
federação (pelos menos nos dois sistemas federais referidos, que
têm servido de modelo, hoje, mais o alemão do que o norte-americano, à integração europeia) participam no exercício do poder legislativo federal e, dessa forma, participam ativamente no dinamismo
do exercício do poder político da União ou da Federação".
De harmonia com essa construção da bivalência cumulam-se
no sistema jurídico da União, como veremos ao longo deste livro,
situações de integração e de interestadualidade, ou, dito doutra
forma, de subordinação e de cooperação. É o caso da convivência
do regulamento, ato de subordinação, com a diretiva, ato de cooperação; é o caso das relações entre os tribunais da União e os tribunais nacionais, relações essas que, tendo laivos de subordinação,
são, essencialmente, relações de cooperação; é o caso da subsidiariedade nas relações entre os Estados-membros e a União.
O erro de não se compreender esta coexistência entre a integração e a identidade nacional está na base da divisão, no mundo da
Política e de alguma Doutrina Jurídica, entre "comunitaristas" e
"constitucionalistas" ou "internacionalistas" (ontem) ou entre "federalistas" e "soberanistas" (hoje). Trata-se de uma oposição sem
sentido.
Veja-se esta matéria desenvolvida na nossa referida dissertação de doutoramento, pgs. 121 e segs. e 324 e segs., com apoio em bibliografia muito expressiva, inclusive da doutrina inicial do Direito da União Europeia. Na doutrina
moderna, ver LENAERTS/vAN NUFFEL, pgs. 59 e segs.
como se disse, tem vindo a servir progressivamente de principal
modelo para a integração europeia, é, exatamente, a tensão dialética
entre a integração, por um lado, e a individualidade e especificidade
de cada um dos Liinder, por outro. É essa a tensão que faz progredir
a integração, com o reforço suplementar da construção do federalismo cooperativo, típica do federalismo alemão". Ou seja, o federalismo constrói-se pela potenciação, no todo federal, da especificidade e da identidade própria de cada Estado federado.
Por isso, se e quando a União Europeia se integrar num modelo
político de tipo federal (o que só é prenunciado, mas ainda não se
encontra concretizado), a construção jurídico-política do federalismo não imporá uma incompatibilidade entre os princípios da
integração e do respeito pela identidade de cada Estado-membro.
Pelo contrário: os Tratados já deixaram ressalvada esta identidade,
como mostrámos.
A necessidade, imposta pelos Tratados, de, no processo da
integração europeia, se conciliarem a integração e a identidade
nacional dá cobertura à diversidade entre os Estados e ao caráter
relativo da uniformidade do Direito da União Europeia.
92
122
93
Ver, outra vez, a nossa dissertação de doutoramento, sobretudo pgs. 385-
94
Veja-se sobre isso o nosso O prindpio da subsidiariedade, pg. 79, e bibl.
-403.
aí cito
123
A União Europeia
Prin.cípios constitucionais e valores da União Europeia
38. C) O princIpIo do respeito pela diversidade cultural dos
povos enropeus
ram, como membros, Estados que, uns mais do que outros, entroncavam a sua civilização e a sua cultura no humanismo greco-latino. Ao
contrário, alguns dos Estados que aderiram em 2004 e 2007, e os
atuais candidatos à adesão, têm raízes culturais que, sendo muito
antigas, são também muito diferentes, ou, pelo menos, albergam no
seu território minorias muito marcadas do ponto de vista étnico. É o
caso, por exemplo, da República Checa, da Polónia, da Hungria, da
Roménia, de Chipre, da Croácia, da Sérvia, mas, sobretudo, da Turquia. Ora, o TUE quis, simultaneamente, assegurar a esses Estados o
respeito pela sua especificidade histórica e cultural e reconhecer às
suas minorias o direito a preservarem a sua diversidade.
Este princípio, em parte, concretiza e desenvolve o princípio
anterior, embora, há que o sublinhar, o princípio de que agora nos
ocupamos se refira aos "'povos europeus" e já não, como o anterior,
aos Estados-membros. Tem, por isso, um valor acrescido em relação ao princípio do respeito pela identidade nacional dos Estados-membros.
Este princípio tem de ser extraído da parte final do 6. ° considerando do preâmbulo do TUE, do artigo 3.°, n. o 3, par. 4, daquele
Tratado, do seu novo artigo 2. na medida em que manda preservar
os direitos das pessoas pertencentes a minorias, e do artigo 13.°,
TFUE, quando impõe o respeito pelos costumes dos Estados-membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e património regional. Ele quer dizer que a União Europeia não
se fará sobre a unicidade cultural dos diversos povos europeus, mas,
ao contrário, sobre o seu pluralismo. Isto é, a União respeitará a
especificidade das culturas dos seus povos e, portanto, a sua diversidade. E ao falar-se, neste caso, em "povos" e não em Estados,
quere-se dizer que a União Europeia pretende preservar a cultura
própria, não apenas dos Estados, como também dos outros grupos,
como é o caso, por exemplo, agora expressamente referido nos Tratados, como se disse, das minorias e das pessoas integradas em
minorias. E tudo isto manda o Tratado UE que se faça num espírito
de pluralismo, de tolerância, de justiça, de solidariedade e de igualdade, designadamente, entre homens e mulheres (artigo 2.°, infine,
UE), e sem prejuízo da salvaguarda e do desenvolvimento do património cultural europeu visto em conjunto (citado artigo 3.°, n.o 3,
par. 4, infine). Ou seja, e numa palavra, a União Europeia não será
só de Estados, mas de Estados e de povos.
Não foi por acaso que este princípio foi integrado no TUE e
aprofundado agora pelo Tratado de Lisboa. Para além da sua relevância para o princípio da subsidiariedade, como se verá adiante, quis-se
tranquilizar os novos Estados aderentes e os candidatos à adesão à
União Europeia. De facto, até 2004 a União e as Comunidades tive0
•
124
Ou seja, a União Europeia não poderá forçar a sua unicidade;
ao contrário, progredirá, enriquecer-se-á e valorizar-se-á na sua
diversidade e no seu pluralismo", num diálogo entre culturas", até
porque, como atrás demonstrámos, por força do novo artigo 2. o UE,
terá que o fazer no quadro de recíproca tolerância, de justiça e de
solidariedade. É bom recordá-lo, num momento em que em certas
zonas da Europa têm nascido, esperemos que provisoriamente, inesperados problemas com minorias, embora não nos caiba julgar aqui
das causas e dos responsáveis por esses problemas.
Importante corolário deste princípio encontramo-lo no artigo
6.°, n.o 3, UE, que prescreve o respeito pela União dos direitos fundamentais "tal como resultam das tradições constitucionais comuns
aos Estados-membros, (...)"".
39. D) O princípio da preservação do património cultural, religioso e humanista da Europa
Na sequência do princípio anteriormente referido o Tratado
UE passou, com o Tratado de Lisboa, a estipular que os Estados95
96
Sobre este ponto, ver lAcQuÉ, pgs. 89 e segs.
Sobre o diálogo intercultural, ver a obra dirigida por SlDJANSKI e
SAINT-
-OUEN.
91
por M.
Veja-se o contributo dado em Portugal a estas questões pela obra editada
R1BETRO.
MANUELA TAVARES
125
A União Europeia
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
-membros se "inspiram" no "património cultural, religioso e humanista da Europa", do qual, aliás, "emanaram os valores universais",
que são alguns dos valores que se encontram elencados no artigo 2.".,
UE. É o que dispõe o 2.° considerando do preâmbulo do Tratado UE..
Esse trecho deve ser entendido como a expressão da vontade dos
autores dos Tratados de que a União e os Estados preservem e respeitem aquele património
..
Este princípio quer dizer que a União e os Estados-membro!,'
não renegam a sua História nem os valores que presidiram ao seo
passado nos dOITÚnios cultural, religioso e humanista. Por isso,- os
valores enunciados no artigo 2.° UE devem ser interpretados em
sintonia com aquilo que constitui esse património e a existência e a
atuação da União devem evoluir com respeito por esse património.
40. E)
o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana!:.
.
A União deve respeitar a dignidade humana ou, talvez melhor'
dito, a dignidade da pessoa humana. Di-lo, hoje, de modo expresso,;;'.
o artigo 2.° UE ao erguer aquele respeito a valor da União, na esteira.!:
do considerando 2.° do preâmbulo do Tratado.
Como dissemos atrás, os autores dos Tratados foram buscar,':
este valor à Lei Fundamental de Bona, mais concretamente, ao seq"\
artigo 1.0, que serviu de fonte a diversas outras Constituições esta-·,
duais, como, por exemplo, à Constituição Portuguesa (artigo \.0).
A dignidade da pessoa humana, embora tenha estado sempre:
presente no sistema de proteção dos direitos fundamentais da União'i
desde o início da integração, passa agora, portanto, por força da letra!;;
dos Tratados, a condicionar toda a integração e a pré-determinar 0;(
conteúdo de toda a Ordem Jurídica da União, desde logo, os pró-~.
prios Tratados. De facto, com ela quere-se significar que, no pro-\
cesso de integração, a Pessoa Humana está antes e acima de tudo','D
inclusive antes da Economia, do Mercado. Como ensina KANT, a1i
pessoa ~'não tem preço", tem "dignidade"98. E, assim entendida, nwq
União a dignidade acompanha a Pessoa Humana ao longo de toda a
sua existência.
J; •
Toda a construção do sistema de proteção dos direitos fundap;smentais na União Europeia decorre também deste valor, embora não
':;0. esgote. Veremos isso daqui a pouco. Aliás, e como se disse, é
!:'correto afirmar-se que na proteção dos direitos fundamentais na
lXjUnião esteve sempre presente, ainda que implicitamente, a ideia do
;iJJrimado da dignidade da Pessoa Humana.
o princípio da solidariedade
Como atrás se disse, este princípio constitui um corolário do
rincípio da integração. Esses dois princípios, conjugados entre si,
lllpem com as conceções clássicas do Direito Internacional (como
monstrámos atrás, a propósito do princípio da integração) e, só
~ . si, constituem, simultaneamente, a razão de ser e a característica
terminante da União e do seu sistema jurídico".
O TUE refere-se à solidariedade, desde logo, no 6.° considedo, 1." parte, do preãmbulo, no artigo 2.°, 2." parte, no âmbito dos
," alares da União, no artigo 3.°, n.o 3, par. 2, sob a forma, nova no
'qii-eito da União, da "solidariedade entre as gerações", no mesmo
~ilI'tigo 3.°, n." 3, par. 3, como solidariedade entre Estados, e n." 5,
'9?1ll0 solidariedade entre povos. Encontramos várias concretizações
';aY~lsas desses preceitos gerais ao longo do Tratado, como, por
;e~~mplo, na matéria da PESC, no artigo 24.°, n.o 2 (na fórmula mais
:j'ebuscada de "solidariedade política mútua entre os Estados-mem:prqs", com itálico nosso), e, de um modo geral, sempre que se apela
';;::Fa"a"coesão económica, social e territorial" (maxime, artigo 3.°,
,:';~(3, par. 3, UE, onde ela é erigida a um dos objetivos da União).
~,"
'~'~:Y)
o
99 Para além das ops. cits. supra, no fi. 35, veja-se, de modo especial, Soli,?jJ~lta{als Veljassungspdnzip der Europiiischen Unioll, in VON BOGDANDy/KADEL»~c~;pgs. 42 e segs., CALLlESS, pgs. 167 e segs., e ZULEEG, Wl1at ho/ds a Nation
ibQ~ther? Cohesion and Democracy in the United Stafes of America and tn the
98
GrundJegr/l1g zur Metaphysik der Sitten, 7. n ed., Hamburgo, 1994, pg. 58.<;,,
':,~~opeall Union,AJCL 1997, pgs. S05 e segs.
.,',
126
127
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
A União Europeia
A solidariedade na União (entenda-se: solidariedade entre os
Estados e entre estes e a União) quer dizer que existe um interesse
comum, um interesse geral, um interesse comunitário, cuja prossecução constitui o primeiro objetivo da União. Ou seja, esse interesse
comum, visto como interesse global da União, não se confunde com
a soma dos interesses particulares dos Estados-membros e deve
prevalecer sobre esses interesses particulares. A criação das Comunidades e, depois, da União significou, da parte dos Estados, a aceitação desse "contrato social", segundo o qual o interesse da União,
se sobrepõe aos interesses específicos dos Estados, sendo os sacrifí- .~
cios concretos, impostos a estes, compensados pelas vantagens que .
daí advêm ao interesse de todos.
A jurisprudência da União já afirmou várias vezes este princípio e por diversas formas: ou simplesmente invocando a existência
de um "interesse comum", que transcende os interesses próprios dos l,
Estados-membros lOo ; ou reconhecendo que incumbe aos Estados
"tomar plenamente em conta o interesse comunitário", o que supõe
eles absterem-se de toda a medida "contrária ao interesse comum"
ou ao "interesse global da Comunidade" (o que estabelece uma)'
conexão entre o princípio da solidariedade e os princípios da boa-fé-e da lealdade comunitária)lol.102; ou definindo, de modo expresso,
que "o facto de um Estado romper unilateralmente, conforme a'
concepção que ele adota do seu interesse nacional, o equilíbrio entre',
as vantagens e os encargos decorrentes da sua pertença à ComunV-,
dade põe em causa a igualdade dos Estados-membros perante o
Direito da União Europeia" (... ) e que "o desrespeito pelos deveres"
de solidariedade aceites pelos Estados-membros pelo facto da suai
<'
Ac. TI 10-5-60, Compagnie des hauts forneaux et fonderies de Givors;§
Proes. 27 a 29/58, Ree. 1960, pgs. 503 e segs.
'" Aes. TJ 24-2-87, De!ifil, Proe. 310/85, CoI., pgs. 901 e segs.; e 20-9-90,.'
Comissão c. Alemanha, Proe. C-5/89, CoI., pgs. 1-3.437 e segs.
102 Sobre o conceito de "interesse comum" ou "interesse geral" da Umão'
Europeia, veja-se a excelente dissertação de KAUFF-GAZIN,
100
128
adesão às Comunidades afeta as bases essenciais da Ordem Jurídica
Comunitária"lo,.
G) O princípio da lealdade na União
Este princípio sempre constou dos Tratados. Hoje encontramo-lo no artigo 4.°, n.o 3, par. 1, UE, sob o rótulo, criado pelo
. d~ LIsboa, de princípio da "cooperação leal". Ele consagra
obngaçao de lealdade, ou fidelidade, ou boa-fé, na União (a
, análoga à que vigora nos Estados federais
"Bundestreue") 104. Este princípio está intimamente ligado,
se dIsse, ao anterior.
O princípio da lealdade na União assume uma importância
na definição das relações entre a União e os Estados-membros.
impõe uma obrigação negativa e uma dupla obrigação positiva.
A obrigação negativa exprime-se pelo artigo 4.°, n.o 3, par. 3,
parte, UE, quando este proíbe que os Estados-membros "adotem
medida suscetível de pôr em perigo" a realização dos objedo Tratado (itálico nosso).
A dupla obrigação positiva desdobra-se numa obrigação de
res',[ta'do (obrigação para os Estados de "tomar todas as medidas
ou específicas adequadas para garantir a execução das obridecorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituida União" - artigo 4.°, n.o 3, par. 2, UE) e numa obrigação de
ío"'""" (os Estados "facilitam" à União o "cumprimento da sua mis- o mesmo artigo 4.°, n.o 3, par. 3, 1.' parte, UE). Neste último
e como nos demonstra um dos grandes pioneiros da doutrina
l.J1reH.U da União, IpsEN, num pensamento que continua sempre
o princípio da lealdade na União aproxima-se, muito concreAc. TJ 7-2-73, Comissão c. Itália, Proc. 39172, Rec., pgs. 101 e segs.
antes deste, o Ac. TJ 10-12-69, Comissão c. França, Procs. 6 e 11169,
pgs. 523 e segs.
104 Ver a articulação entre a Gemeinschajtstreue e a Bundestreue, antes de
nos grandes clássicos da União, e, logo para começar, em H. P. IpsEN,
217.
103
129
A União Europeia
tamente, do princípio, ainda que não escrito, provindo do Direito
Constitucional alemão, do comportamento amigo da Federação
("bundesfreundliches Verfahren") 105
O Direito derivado e acordos concluídos entre Estados-membros têm vindo a pormenorizar a exigência do respeito por este
princípio em diversas matérias concretas, como, por exemplo, na
luta contra a fraude e na proteção dos interesses financeiros da
União 106•
O TJ tem sido muito exigente no respeito por este princípio,
sobretudo sob a forma do dever dos Estados-membros de prestarem
à Comissão informações por esta solicitadas ou que eles devam
prestar-lhe espontaneamente de modo a que a Comissão possa fisca-107Nte
.
lizar o cumpnmento
pelos Estad os d as suas ob'
ngaçoes
. o -se,
todavia, que este dever é dispensado por preceitos expressos dos
Tratados, de entre os quais se destaca o artigo 346.° TFUE.
O Tratado de Nice, na Declaração a ele anexa com o n. ° 3 e
relativa ao então artigo 10.° CE, hoje, art. 4.°, n.o 3, par. 1, UE,
extraía do princípio da lealdade um "dever de cooperação leal", que
estendia às relações entre os próprios órgãos comunitários, e que
podia levar à celebração de "acordos interinstitu~ionais" entre o
Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão. E matéria à qual
voltaremos quando estudarmos aqueles acordos entre as fontes do
Direito da União lO'.
lOS Ver H. P. 1pSEN, pgs. 217 e segs., e bibL aí cit. Esse princípio foi acolhido
pelo Ac. TJ 14-11-88, Comissão c. Grécia, Proc. 68/88, JDI 1990, pgs. 453 e segs.,
com anotação de V. CONSTANTlNESCO.
106 Veja-se SlMON, pgs. 97-98 e 106 e segs.
lO? Por todos, Aes. 22-3-94, Comissão c. Espanha, Pree. C-375/92, Cal.,
pgs. 1-923 e segs., e 24-3-94, Comissão c. Reino Unido, Prac. C-40/92, Cal., pgs.
1-989 e segs. Ver, sobre esta matéria, J. T. LANG, The development by the Court of
Justice ofthe duties of cooperation of national authorities and Community institlltions lInder Article 10 EC, FIU 2007-2008, pgs. 1483 e segs.
lOS Sobre este princípio hoje, ver R. LANCEIRO, O Tratado de Lisboa e o
prindpio da cooperação leal, O Direito 2010, págs. 283 e segs.
130
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
43. H) O princípio do gradualismo
Este princípio assume duas vertentes.
Por um lado, ele quer dizer que o processo de integração europeia deve ser paulatino e progressivo, ou seja, não deve saltar sobre
fases, o que poderia pôr em risco todo o processo da integração;
mas, por outro lado, ele pretende significar também que a integração
não deve parar ou não se deve interromper. Ou seja, ela é, por definição, um processo dinãmico e evolutivo. O gradualismo na integração europeia ficou logo definido na Declaração de Schuman, de
1950, quando ele afirmou, como vimos na Introdução deste livro,
que "A Europa não se fará de uma só vez, mas através de realizações
concretas, que criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto".
Esta ideia foi glosada desde então pela doutrina. E, de várias expressões célebres que esta utilizou ao longo dos tempos para, de forma
sintética, exprimir essa mesma realidade, escolhemos a seguinte, de
um dos primeiros nomes da doutrina do Direito da União Europeia,
L.-I. CONSTANTINESCO: "A integração europeia não é um ser mas um
fazer-se; ela não é uma situação acabada, mas um processo; ela não
é um resultado, mas a ação que deve conduzir a um resultado"'09. E
tem de se dizer que esta regra tem vindo a ser observada, ainda que
com alguns pequenos desvios à pureza dos conceitos.
Assim, seguiram-se sucessivamente a zona de comércio livre,
a união aduaneira e o mercado comum. A formação deste último foi,
porém, interrompida pela afirmação da necessidade de se atingir, em
1 de janeiro de 1993, o "mercado interno". A este, seguiu-se a União
Económica e Monetária, que foi alcançada em 1999-2002.
A outra vertente do princípio do gradualismo estabelece que o
processo da integração, consumada que está a integração económica, deverá ser completada por um grau análogo de integração
política. Qual seja esse grau de integração política, é algo que os
Tratados não dizem. Designadamente, e como já sublinhámos atrás,
eles nunca empregam os vocábulos "federalismo" ou "federal".
Apenas se sabe que, como já recordámos, a Declaração de Schuman
109
La nature juridique des Communautés européennes, Liege, 1980, pg. 2.
131
A União Europeia
apontava para a integração europeia a meta_ da "Fede:ação Europeia", como não se pode negar que a Umao EuropeIa apresenta
hoje manifestos traços federais. Todavia, os Tratados nunca ~ft~ma­
ram, por palavras expressas, o federalismo como obJellvo ultImo.
Depois de o Tratado CECA, e só ele, se ter servido do adJetlvo
"supranacional", mesmo esse adjetivo foi retirado daquele Tratado,
devido às divisões que provocou entre os Estados-membros e na
doutrina 11O •
O princípio do gradualismo encontra-se consagrado em diver"
sos preceitos do TUE: no seu preâmbulo, considerand~ 1, consIderando 3, parte final, considerando 13, 1." parte, e consIderando 14;
e no artigo 1.0, par. 2, 1.' parte. As fórmulas neles vazadas mostram-nos que os autores dos Tratados mais não quiseram do que~mcular
os Estados a "continuar o processo de criação de uma umao cada
Ve" mais estreita entre os povos da Europa" (considerando 13 do
pr~âmbulo do TUE, com itálico nosso). Todavia, tudo o mais ficou
por decidir.
Note-se que o Tratado Constitucional, não obstante ter-se cha'
mado Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, mantinha a mesma prudência quanto ao gradualismo. Apesar de
reafirmar "a vontade dos cidadãos e dos Estados da Europa de cons-,.
truirem o seu futuro comum" e de "forjar o seu destino comum"
(respetivamente, artigo 1.0, n.o I, e considerando 3 do preâmbulo~,.S
aquele Tratado evitava qualquer referência ao concreto modelo pO~I-E
tico que se pretende para a União. O Anteprojecto da Comlssaq .{
referia-se ao exercício pela União de atribuições "em formas fede,.;:
rais" ou "dentro de linhas federais" (itálicos nossos). Mas mesmo;;
essas expressões foram substituídas no Projeto de Tratado saído da)
Convenção e, depois, no Tratado, nos respetivos artigos 1.", n." I, e'f
1_1.0, n.o 1, pela referência vaga a "moldes comunitários" - o que.,
nada adiantava quanto ao modelo político da União. Por ISSO, o Tra-,
tado de Lisboa resolveu não incluir no texto dos Tratados aquelas'
expressões.
Princfpios constitucionais e valores da União Europeia
44. I) O princípio do respeito pelo adquirido da União
Este é outro dos princípios fundamentais da União Europeia e
que, também ele, não encontra similar no Direito Internacional clássico. Ele decorre do princípio da lealdade na União, mas também,
de certo modo, do princípio do gradualismo e do caráter dinâmico e
evolutivo que este impõe à União.
Este princípio só passou a constar dos Tratados da União e das
Comunidades com o TUE, embora tenha sido inserido em todos os
Tratados de adesão. De facto, o TUE, aprovado pelo Tratado de
Maastricht, acolheu-o no artigo 2.°, 5.° travessão (sob a fórmula de
"manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu desenvolvimento"), e no artigo 3.°, par. 1. Por sua vez, o Tratado CE
consagrou-o no artigo lll.o, n.o 5, na versão de Nice. O Tratado de
Amesterdão acrescentou uma nova referência ao adquirido comuni". tário, no seu novo artigo 299.", n.o 2, par. 4, CE. Aí se vinha dispor
que o regime das regiões ultraperiféricas (que estudaremos adiante,
•..• mas que englobam, entre outros, os Arquipélagos da Madeira e dos
Açores) não podia pôr em causa "a integridade e a coerência do
ordenamento jurídico comunitário" (itálico nosso).
O Tratado de Lisboa, dos preceitos referidos, só conservou o
.. !Htimo, que agora é o artigo 349.°, par. 4, TFUE, e onde a expressão
~f"ordenamento jurídico comunitário" foi substituída por "ordena!I:mento jurídico da União".
",;
Este princípio postula que o processo de integração se deve
.\\considerar, a todo o momento, como definitivamente consolidado e
"*!jPortanto, tem de ser encarado como jurídica e politicamente irrever~
:)lsível. Por conseguinte, os Tratados, os objetivos aí estabelecidos, o
;;j)ireito derivado já aprovado, as opções já realizadas - tudo isso tem
:,?qe ser entendido, em cada momento, como irreversível e sedimen\;f;t~do de modo definitivolll. Pode-se progredir na integração, não se
*'Bode regredir nela. No fundo, é uma questão de respeito pelos prinI~.?ípios da boa-fé e pacta sunt servanda. Foi devido a esta evidência
'!.~ue o TUE e o TFUE, depois do Tratado de Lisboa, deixaram de
"'0,.;
110
Ver a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 129 e segs.
132
li!
Neste sentido, por todos, PESCATORE, Aspectsjudiciaires, pgs. 617 e segs.
133
Principios constitucionais e valores da União Europeia
A União Europeia
insistir no respeito pelo adquirido da União como faziam os Trata·
dos anteriores: se qualquer Estado-membro não se sente em condi-i,
ções de cumprir as suas obrigações para com a União, passa a poder,,!
aliás, sair livremente da União, como dispõe agora o artigo 50.° UE.'
O princípio do respeito pelo adquirido comunitário foi aco');
lhido muito cedo pela jurisprudência do TJ, desde logo, num excerto;
célebre do Acórdão por ele proferido num dos primeiros e maisN'
notáveis casos: o caso Costa/ENEL. Aí se dizia que "A transferência,::
levada a cabo pelos Estados, da sua Ordem Jurídica interna para !t e:
Ordem Jurídica comunitária, de direitos e obrigações corresponden'),Y'l:
tes às disposições do Tratado, implica (... ) uma limitação definitiva.>
dos seus poderes soberanos contra a qual não se poderá fazer pre-'}
valecer um ato unilateral posterior incompatível com a noção de'E
Comunidade"112.
.<
Esta doutrina seria retomada pelo TJ em vasta jurisprudênci%'~
posterior l13 •
•
Com base nesta orientação, tem-se entendido que é a própria)"
noção de Comunidade (que atrás estudámos a propósito do princípio;l·
da integração) que impede qualquer ato, unilateral ou coletivo, dO$;.
Estados-membros, que atente contra o adquirido da União. Quantç';'
à atuação coletiva, fica apenas por esclarecer se também fica proF,):
bida a dissolução da União, por comum acordo, e quando ela for~
levada a cabo com respeito pelo processo de revisão dos Tratados 01{..
pelas regras contidas na Convenção de Viena sobre o Direito do,:;
Tratados. Mas não é questão que caiba discutir neste lugar, nem a;
hipótese se coloca h o j e . ' ,
O TJ tem considerado como contrário a este princípio, e, por;['
tanto, proibido por ele, qualquer costume contra legem que se pre;:,
tenda ver constituído contra os Tratados. Ou seja, os Tratadoss6·'
podem ser revistos pelos processos de revisão nele previstos, nunc~;
,)1
Ac. 15-7-64, Proe. 6/64, Rec., pgs. 1.141 e segs. O itálico é nosso.
,,,'
I]) Ver, sobretudo, Despacho de 22-6-65, San Michele, Peocs. apensas 9,~~
58/65, Rec., pgs. 65 e segs.; e Ac. 17-12-70, Internationale Handelsgesellschaft,"
ll2
Proc. 11170, Rec., pgs, 1125 e segs .. Sobre esta matéria, ver GONÇALVES PERE1RA(.
IQUADROS, pgs. 127~128, e bibl. aí citada.
134
por um costume constitucional contra legem '14 • Do mesmo modo,
!ctem sido entendido que toda a "renacionalização" ou "descomunitarização" de atribuições já comunitarizadas pela via dos mecanis;'mos próprios do Direito da União Europeia também infringe o
"princípio do adquirido da União l15 • Note-se, todavia, que, quanto a
esta renacionalização, ela não será ilegal quando resultar do funcionamento normal do princípio da subsidiariedade, como adiante
mostraremos.
O respeito pelo adquirido da União comporta duas exceções.
A primeira consiste nos períodos de transição concedidos aos
'jJ3stados aderentes nos respetivos Tratados de adesão. Durante a
'.Vigência desses períodos, nem os Estados aderentes se encontrarão
subordinados ao Direito da União nas matérias em questão e nos
termos definidos nos respetivos Tratados de adesão, nem os Estados
. ,Já membros terão que respeitar, também nas matérias em causa e nas
..90ndições acordadas, o Direito da União nas suas relações com os
spetivos Estados aderentes.
'i:"" A segunda exceção traduz-se nas cláusulas de proteção ou de
~~lvaguarda. Elas eram admitidas de modo expresso pelos Tratados,
'rnbora cada vez com maiores reticências. Na versão de Nice, o
xemplo principal dessas cláusulas era o artigo 134.°, par. 2, CE. O
tatado de Lisboa fez desaparecer esse artigo. Todavia, não se vê
a.zões, à partida, para se recusar liminarmente a existência desse
;pode cláusulas no processo de integração. Elas trazem a esse pro.;,~sso um desvio menos profundo do que as formas de integração
'.ferenciada, que estudámos atrás"'.
114
Por todos, Acs. 14-12-71, Comissão c. França, Proe. 7171, Rec., pgs.
3e segs.; 15-11-94, Parecer 1/94, CoI., pgs. 1-5.267 e segs., ponto 52; e
11·95, Atemanha c. Conselho, Proc. C-426/93, CoI., pgs. 1-3.723 e segs.
,\15 Para maiores desenvolvimentos sobre o princípio do adquirido da União,
'a;sea já referida obra de PESCATORE; SIMON, pgs. 108 e segs.; e GRAB1TZlHILPl
~HEIM, comentário aos preceitos em eausa dos Tratados UE e TFUE.
116 Vejam-se as anotações ao citado ex-artigo 134.°, par. 2, CE, nos ComenpSGRAB1TZlHILF/NETTESHE1M, STREINZ e CONSTANTlNESCO CE.
::,
135
A União Europeia
Principios constitucionais e valores da União Europeia
45. J) O princípio da Democracia. A noção de "União de
Direito"
da própria União e dos seus órgãos (considerando 7.° do preâmbulo
do TUE). O TI já defendeu que a eleição do Parlamento Europeu
por sufrágio direto e universal havia dado um forte contributo para
o princípio da Democracia como princípio constitucional da
o princípio da Democracia é outro dos princípios constitucionais da União Europeia. Ele enforma toda a União e a sua Ordem
Jurídica. Mais do que isso, aliás: ele é um dos valores comuns da
União, elencados no artigo 2.° UE.
Hoje, ele encontra a sua consagração expressa no 2.° conside.
rando do preâmbulo. Depois, integrado no acervo dos valores da j'
União, a Democracia aparece-nos como objetivo da União (artigo "
3.°, n.o I, UE), como princípio que deve reger a ação externa da
União (artigo 3.°, n.O 5, UE) e, sobretudo, como ideia com o rico
conteúdo que lhe dá o Título 11 do Tratado UE.
Ao longo da História da integração europeia e, concretamente;
dos Tratados, o princípio e o valor da Democracia têm-nos apare-,
cido divididos em várias ideias-motoras: a Democracia propria- '~
mente dita; a liberdade; o respeito pelos direitos fundamentais; o,;'
pluralismo; a tolerância; e a justiça. Estas ideias surgem-nos hoje';;
proclamadas como valores da União pelo artigo 2.° U E . S
Em sentido estrito, a ideia de Democracia quer dizer, na inte-'F
gração europeia, antes de mais, paz. Como atrás se afirmou, e, desde;;
logo, com base na Declaração de Schuman, de 9 de maio de 1950,;
a obtenção de uma paz definitiva para a Europa foi um dos primei.)
ros objetivos, se não o primeiro, que se quis prosseguir com a inte->
gração europeia, para o que era necessário, para começar, e como se'"
enfatizava naquela Declaração, pôr termo à "oposição secular entre,:)'
a França e a Alemanha".
'
Hoje, a paz na Europa e no Mundo figura no TUE como obje-"
tivo da União (considerando 11.°, parte final, do preâmbulo, e artigoÇ
3.°, n.O 5, U E ) . ; ;
Essa Democracia, em sentido estrito, que a União defende, é)
uma Democracia política, económica e social (retomando ideias dg;
Plano Schuman, o TUE prefere falar em "progresso social" - artiggg
3.°, n.o 3, par. I, UE -, ao qual acrescentou agora referência aO"f
bem-estar dos povos dos Estados - o mesmo artigo, n.o I, UE). E é:;
uma Democracia que tem de começar pelo funcionamento internq~
136
União l17 •
A segunda ideia em que se divide o princípio da Democracia,
entendido agora em sentido amplo, é a de liberdade. Também ela
constitui hoje um valor comum da União, confonne dispõe o artigo
, UE. Atualmente, a maior expressão desse princípio é a da transforma.ção da União num "espaço de liberdade, de segurança e de
justiça", valorizado profundamente nos Tratados (artigo 3.°, n.' 2,
UE, e Parte III, Título V, TFUE).
A terceira ideia postulada pelo princípio da Democracia é a do
respeito pelos direitos fundamentais, igualmente previsto nos Tratados como valor comum (artigo 2.° UE) e depois enfatizado nos
considerandos 2.',4.° e 5.° do preâmbulo, e no artigo 6.°, UE, bem
'como nos artigos 17.° a 25.' TFUE, quando criam a "cidadania da
União". Há que atender, nesta matéria, de modo muito especial, à
"Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, agora incorpo, radajuridicamente nos Tratados (artigo 6.°, n.o I, UE).
Dentro do respeito pelos direitos fundamentais, os Tratados
destacam agora a salvaguarda dos direitos das minorias e das pessoas nelas integradas (artigo 2.° UE).
Neste domínio, pode-se, pois, dizer hoje que já existe uma
""'sólida "União de direitos".
Depois, o princípio da Democracia impõe a ideia de Estado de
Direito, significando este, na fórmula de rule 01 law ou Rechts'staatsprinzip, o primado do Direito e da legalidade comunitária.
Também o Estado de Direito passa a ser um valor comum da União
(!!fligo 2.° UE). A ideia de Estado de Direito prende-se com vários
utros princípios gerais de Direito que, como veremos, são fonte do
Direito da União, o principal dos quais é o princípio da segurança
1I7 Ac. 29-10-80, Roquette e Maizena c. Conselho, Proe. 138179 e 139/79,
pgs. 3.333 e segs. (especiatmente, 3.360 e 3.424). Veja-se também BLECKpg. 123.
137
A União Europeia
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
jurídica e da confiança legítima, muitas vezes traduzido pela fórmula, cara ao Direito alemão de princípio da tutela da confiança
("Vertrauensschutz") I IS.
O Tribunal Constitucional alemão reconhece que o princípio
do Estado de Direito é um dos princípios constitucionais do Direito
da União Europeia e aplica-o como tal na ordem interna, como se
vê, como mostrámos atrás, pelo caso Lisboa"'.
Por fim, a Democracia impõe o respeito pelo pluralismo, a
tolerância e ajustiça. O pluralismo na conceção política, económica
e social da sociedade, a tolerância perante ideologias. culturas e
etnias diferentes, uma justiça eficaz e igual para todos. Todos estes
princípios encontram-se hoje erguidos à categoria de valores da
União pelo referido artigo 2.° UE.
Entendido com este conteúdo muito vasto, o princípio da
Democracia presidiu, de modo constante, à atuação das antigas
Comunidades e preside agora à atuação da União. Foi assim que as
Comunidades nunca encararam a hipótese de terem como membros
Portugal e a Espanha enquanto estes viveram sob regimes autoritários; foi assim que a própria Grécia viu as negociações para a sua
adesão interrompidas durante a "ditadura dos coronéis", de 1975 a
1980; é assim que a União tem condenado, de modo igual, todas as
ditaduras que ainda subsistem pelo mundo fora, independentemente
da sua cor política (numa linha de coerência que tem faltado a
alguns Estados-membros); é dessa forma que a União tem dedicado
especial atenção à proteção das minorias nos Estados do leste europeu ou na África l2O; e tem sido assim que o respeito pela Democracia, em toda a sua extensão, tem constituído, juntamente com outros
valores do artigo 2. ° UE, um dos requisitos exigidos para a adesão
de novos Estados (artigo 49.°, par. 1, UE).
Alguma doutrina, sobretudo de raiz alemã, caracterizou a CE
como uma "Comunidade de Direito" ("Rechtsgemeinschaft"),
enquanto que hoje a expressão" União de Direito" vai começando a
fazer carreira. O próprio TJ já qualificou o Tratado CE como a
"Carla Constitucional de uma Comunidade de Direito" 121 , como
atrás salientámos.
Por União de Direito pode querer-se dizer uma coisa mais simples: que, paralelamente à integração económica, social e política,
tem de correr a integração jurídica da União, isto é, a elaboração de
uma Ordem Jurídica para a União que suporte e alimente o estádio
de desenvolvimento da integração económica, social e política já
alcançado. Assim entendida, a União de Direito deve muito ao labor
da jurisprudência da União.
Mas por União de Direito vem-se, há muito, a querer dizer
também, algo de muito mais profundo: que a União possui uma
Ordem Jurídica que está assente numa Constituição material, moldada por uma "escala de valores", como hoje o reconhece, de modo
expresso, o artigo 2.° UE. Esses valores, a somar à proteção e à
garantia dos direitos fundamentais e ao princípio da Economia
Social de Mercado, do qual falaremos adiante, inserem-se no núcleo
essencial da Democracia e do Estado de Direito, que enformam na
União Europeia a tal ideia de "Comunidade de Direito"122 Também
por aqui, portanto, se robustece o princípio da Democracia como
princípio e valor constitucional da União e do seu sistema jurídico.
118 W. FRENZ, Grundrechtlicher Vertrauensschutz: nicht nur eill allgemeiller
Rechtsgmndsatz, EuR 2008, pgs. 468 e segs.
119 A Alernanha é, sem dúvida, o Estado-membro da União onde o princípio
do Estado de Direito tem tido mais denso tratamento dogmático - veja-se, por
último, BADURA, Staatsrecht, 5. a ed., Munique, 2012, pgs. 363 e segs.
120 Ver GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 387 e segs., e QUADROS, Der Min~
derheitenschutz im modernen Volkerrecht, in Festschrift Herbert Schambeck,
Berlim, 1994, pgs. 853 e segs.
'" Ae. 23-4-86, Les Verls, Proe. 294/83, CoI., pgs. 1.339 e segs.
Esta conceção de Comunidade de Direito deve-se, antes de todos, a um
dos mais importantes nomes dos chamados "pais-fundadores" ("foundingfathers")
das Comunidades, WALTER HALLSTEiN, que foi o primeiro Presidente da Comissão
das Comunidades após a entrada em vigor dos Tratados CEE e CEEA - Die Europaische Gemeinscltaft, pgs. 31 e segs, e Europãischen Reden, Estugarda, 1979,
pgs. 341 e segs. Modernamente, duas das melhores aplicações da noção de
"Comunidade de Direito" à União Europeia encontramo-las em SIMON, pgs. 96 e
segs., com muito boa bibliografia complementar af citada, e RIDEAU, De la CommUllauté de droit à I'Uniofl de droit, Paris, 2000.
138
139
122
Principios constitucionais e valores da União Europeia
A União Europeia
A conceção da União de Direito, assim entendida, teria ficado
adequadamente refletida no atual Tratado UE caso nele houvesse
sido ·vertida a noção de "Comunidade de valores" que, como atrás
mostrámos, fora proposta pela Comissão Europeia. Assim, tivemos
que nos contentar com o arrolamento dos valores comuns da União
no artigo 2.° UE em complemento do considerando 2.° do mesmo
Tratado.
46. L) O princípio da subsidiariedade
Também constitui um princípio constitucional da União o princípio da subsidiariedade.
O seu estudo mais desenvolvido será levado a caho adiante,
quando nos ocuparmos da repartição de atribuições entre a União e
os Estados-membros, que constitui a matéria em que mais acentuadamente aquele princípio se espelha. Aqui só nos referiremos a ele
na medida em que ele tem de ser visto, em geral, como princípio
constitucional da União Europeia. O princípio da subsidiariedade entrou para os Tratados, como cláusula geral, pela via do artigo
3. 0 _B, par. 2, CE, introduzido no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht. Quanto à União Europeia no seu todo, embora desde então o
TUE contivesse referências específicas à subsidiariedade, esta,
como princípio autónomo, só passou a constar formalmente desse
Tratado com a revisão de Amesterdão. De facto, de harmonia com o
artigo 2.°, último parágrafo, UE, após essa revisão, os objetivos da
União Europeia seriam prosseguidos com respeito pelo princípio da
subsidiariedade. Quer pela remissão do artigo 2.° UE para o artigo
5.° CE, na versão de Amesterdão, quer pela sua função própria, a
subsidiariedade veio fundamentalmente disciplinar o exercício das
atribuições concorrentes, ou partilhadas, da União, isto é, daquelas
das suas atribuições que tanto podiam ser exercidas por ela como
pelos Estados-membros. E veio dizer que a União só podia exercer
essas atribuições se demonstrasse que os Estados não eram capazes
de as exercer de modo suficiente e que ela, a União, era capaz de o
fazer melhor a fim de alcançar os objetivos dos Tratados. Em rela140
ção àquelas atribuições, este princípio conferia, portanlo, prioridade, ou preferência, à intervenção dos Estados. Hoje, aquele
princípio enconlra-se dessa forma regulado no artigo 5.°, n.O 3, UE.
O princípio da subsidiariedade é, pois, também ele, um princípio jurídico, embora possua um grande alcance político. E por duas
razões. A primeira é a de que aquele princípio adota uma filosofia
descentralizadora nas relações entre a União e os Estados, ampliando,
em cada caso concreto, a soberania dos Estados, em detrimento da
ação da União, sempre que os Estados revelem capacidade e suficiência para alcançar os fins dos Tratados. A segunda razão, que,
aliás, completa e desenvolve a anterior, é a de que o princípio da
subsidiariedade relativiza o âmbito da soberania 'que cada Estado-
-membro vai conservando no processo da integração europeia. O
Estado guardará, ou reterá para si, tanto maiores parcelas de soberania quanto mais capaz se vier a revelar, em cada caso concreto, e em
cada momento, de exercer, sozinho, as atribuições concorrentes e,
por conseguinte, puder evitar, e dispensar, nas respectivas matérias,
a intervenção da União.
Como se disse, hoje a sede principal do princípio da subsidiariedade nos Tratados é o artigo 5.°, n.o 3.°, UE. Além dele, há outros
preceitos específicos que a ele se referem, e que adiante analisaremos. Na base daquele citado preceito, foram produzidos vários
documentos, sobretudo pela Comissão Europeia, e, ainda nos anos
90, foi celebrado um Acordo Interinstitucional entre o Parlamento
Europeu, o Conselho e a Comissão sobre os procedimentos a adotar
para a aplicação daquele princípio l23 . Todavia, pode dizer-se que o
posterior Protocolo n.o 7 anexo ao Tratado de Amesterdão, relativo
à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, veio codificar todas as disposições e os textos antes aprovados
sobre a subsidiariedade e constituiu até ao Tratado de Lisboa a base
jurídica daquele princípio, que desenvolvia e aplicava o artigo 5.°,
par. 2, CEI24. O novo Protocolo relativo à aplicação dos princípios
da subsidiariedade e da proporcionalidade, que ficou anexo ao Tra123
124
Boletim CE 10/93, ponto 2.2.2.
Veja-se CONSTANTINESCO, Les clauses, pgs. 751 e segs.
141
A União Europeia
tado de Lisboa com o n. o 2, manteve-se fiel às grandes linhas orientadoras daquele primeiro Protocolo, mas veio modificá-lo na
perspetiva da sua nova preocupação: a de fazer participar os Parlamentos nacionais no controlo do princípio da subsidiariedade.
Ao conferir prioridade aos Estados no exercício das atribuições partilhadas da Comunidade a ideia de subsidiariedade dá aos
Estados-membros oportunidade de manter e reforçar a sua especificidade e, concretamente, a especificidade do seu ordenamento jurídico e dos princípios e valores que o regem. É o que dispunha, aliás,
o n.o 7, particularmente na sua segunda frase, do citado Protocolo
anexo ao Tratado de Amesterdão, que sobreviveu ao Tratado de
Nice e que não se deve considerar abrogado pelo Protocolo n." 2
anexo ao Tratado de Lisboa, apesar de este não se referir de modo
expresso a este ponto. A prova de que essa ideia continua a ser cara
aos Tratados depois da revisão de Lisboa reside no facto de eles, em
preceitos concretos, mandarem atender aos sistemas jurídicos próprios dos Estados-membros. É o que faz, por exemplo, quanto ao
espaço de liberdade, segurança e justiça, o importante artigo 67.°
UE, no seu n.o 1, infine. Digamos que a ressalva das especificidades
dos ordenamentos jurídicos nacionais coloca-nos perante a maior
amplificação possivel do princípio da subsidiariedade. Por isso, a
subsidiariedade deve ser concebida como tendo uma conexão muito
forte com o princípio, atrás estudado, da salvaguarda da identidade
nacional dos Estados-membros e, mais concretamente, deve ser
valorizada por cada um dos Estados-membros como sendo uma das
vias mais importantes para a preservação e a defesa, no conjunto da
União, dessa identidade própria. Por outro lado, ao descentralizar,
por essa forma, nos Estados o exercício das atribuições concorrentes, a subsidiariedade aproxima o poder dos cidadãos, o que
expressamente assumido pelo artigo 1.0, par. 2, in fine, UE. Desse
modo, o princípio da subsidiariedade vem fazer da União Europeia
uma União de Estados. de povos e de cidadãos!".
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
47. M) O princípio da proporcionalidade
Até ao Tratado da União Europeia o apelo ao princípio da proporcionalidade no Direito da União Europeia pela doutrina e pela
jurisprudência (que lhe davam especial importância no Direito da
União Europeia da Agricultura!26) era feito na base da ideia de que
aquele princípio era um princípio geral de Direito que, portanto,
também como tal, era fonte do Direito da União Europeia, ainda por
cima no quadro da elevada importância que os princípios gerais de
Direito assumem como fonte formal do Direito da União, como
veremos quando estudarmos as fontes do Direito da União. Na jurisprudência do TJ, a proporcionalidade impunha, então, sobretudo a
demonstração da necessidade de proibições ou restrições trazidas às
qllatro liberdades 127 • A maior parte dessa jurisprudência era consaao atual artigo 42. TFUE (ex-artigo 30.° CE)!28.
O Tratado da União Europeia valorizou profundamente o prinda proporcionalidade, tomando-o Direito escrito e numa matéessencial à União: o exercício das atribuições da União. De facto,
então artigo 3. _B, par. 3, CE, veio dispor que "A ação da Comunidade não deve exceder o necessário para atingir os objetivos do
pre',ente Tratado".
Hoje, o TUE diz praticamente o mesmo quando estabelece que
virtude do princípio da proporcionalidade, o conteúdo e a
da ação da União não devem exceder o necessário para alcanos objetivos dos Tratados" (artigo 5.°, n.o 4, par. 1, UE).
Esta ideia de proporcionalidade como, simultaneamente,
llel~essidlade da medida e também proibição do seu excesso, foi,
tarnb.ím ela, inspirada fortemente no Direito Constitucional e no
Administrativo da Alemanha. Sobretudo no quadro do
artigo 5. ° CE, mas também do atual artigo 5.°, n.o 4, UE, ela
0
0
126 NÉRI,
pg. 653.
Veja-se o estudo muito pormenorizado do artigo 5.°, n.o 3, UE, em GRA~
em anotações àquele preceito, para além da bibliografia que
será indicada adiante, quando do estudo mais demorado do princípio da subsidia~
riedade - infra, 0.° 86.
Um dos primeiros Acs. na matéria foi o de 13-5~71, lnternational Fruit
COIl1P'IIlY, Procs. 41 a 44170, Rec., pgs. 411 e segs., e conclusões do Advogac'U-\Jera' ROEMER, pg. 430.
128 Ver, por ex., Ae. 8-11-79, Firma Denkavif, Proe. 251178, Rec., pgs. 3.369
e conclusões do Advogado~Geral W ARNER, pg. 3.397.
142
143
121
125
BlTzJHILF/NETTESHEIM,
A União Europeia
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
constitui um princípio autónomo, ainda que complementar, em relação ao princípio da subsidiariedadel29.13o.13I. Foi como tal que também o seu regime esteve codificado pelo mesmo Protocolo, atrás
referido, anexo ao Tratado de Amesterdão, que se ocupava do princípio da subsidiariedade, acontecendo o mesmo com o citado Protocolo n.o 2 hoje anexo ao Tratado de Lisboa 132 •
condições de manter o mesmo ritmo de integração. É necessário,
todavia, como também explicámos na devida altura, que, sobretudo
pelo respeito pelos requisitos aos quais os próprios Tratados UE e
TFUE sujeitam a flexibilidade na integração, se atenuem os inconvenientes que provêm da diferenciação da integração para a coesão
económica e social no seio da União e para o princípio da uniformidade da Ordem Jurídica da União'34.
48. N) O princípio da integração diferenciada
Já estudámos atrás a integração diferenciada. Como então
vimos, este princípio também aparece designado doutras formas,
inclusive, por princípio da flexibilidade. Mas pensamos que a
expressão "integração diferenciada", de entre aquelas que têm sido
utilizadas, exprime melhor o que se pretende aqui significar 133
O princípio da integração diferenciada permite que alguns
Estados possam avançar na integração mais depressa do que outros.
Por isso, beneficia tanto esses, que não têm de ficar à espera dos
outros, como os que se encontram mais atrasados, porque não lhes
impõe, no quadro da integração, obrigações e sacrifícios para cujo
cumprimento eles ainda não se encontram preparados. Trata-se,
fundo, de aceitar, pela positiva, a velha tese da "Europa a duas velocidades", ou "Europa a várias velocidades", ou "Europa de geometria variávef', ou "Europe à la carfe".
A integração diferenciada constitui, como atrás
uma inevitabilidade: com os sucessivos alargamentos da
Europeia aumentou a distância que separa os Estados-membros
grau do seu desenvolvimento, pelo que nem todos eles estão
129
130
Ver infra, 0.° 87.
Neste sentido, o Ac. TJ 12-11-96, Reillo Unido c.
C-84f94, Rec., pgs. 1-5.755 e segs.
131 Ver, especialmente, PAPADOPOULOU, pgs. 243 e segs.
l32 Ver CONSTANTINESCO, Les clauses, pgs. 751 e segs. e., por último,
O) O princípio do equilíbrio institucional
É vulgar ser considerado como princípio constitucional da
União também o princípio chamado do "equilíbrio institucional".
não nos afastaremos dessa orientação, embora tenhamos de
sul)lillh~lr o caráter relativo deste princípio.
Os Tratados institutivos das Comunidades adotaram, na sua
Ol:ganizaç'ío interna, o princípio da separação de poderes, o que não
.aCl)ntlece nas Organizações Internacionais clássicas.
Mas, por vontade expressa dos fundadores das Comunidades,
Tratados recusaram-se a estabelecer um simile entre o sistema de
rellartiçãio de poderes que adotaram e o sistema estadual.
O sistema consagrado é um sistema de "pesos e contrapesos",
pretende respeitar nas relações entre os vários órgãos, especial!';me:ntl'. entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, um
entre os vários interesses em presença - o dos povos dos
gElstacdo:s, o dos Estados e o da integração. E, no que toca à participados Estados nos órgãos, o sistema adotado respeita uma proporentre os Estados grandes, médios e pequenos.
O que o princípio do equilíbrio institucional pretende signifié que os Tratados devem manter essa relação de "pesos e contra_"0_0" e, por conseguinte, os órgãos devem respeitar reciprocamente
sua competência e a relação que entre eles se estabelece por via
DANWITZ.
J33
de
Ver a bibliografia atrás citada a este propósito, em especial, a mcmoJ~ralj,
e a dissertação de GurLLARD.
TUYTSCHAEVER
144
1.'4 Assim, muito especialmente, B. DE WI1TE et al., The Many Faces of
IJUle"n""atlc>Jl in EU Law, cit., pgs. 41 e segs.
145
A União Europeia
dos Tratados, inclusive no que toca ao peso relativo dos Estados, no
processo de decisão na União.
Dissemos que este princípio tem um earáter relativo. Com isto
pretendemos significar que aquele princípio não será infringido
quando uma revisão dos Tratados, levada a cabo em conformidade
com o que estes dispõem, alterar o sistema institucional da União e,
concretamente, a relação de poder que se estabelece entre os vários
órgãos, sempre que essa alteração for imposta pelo progresso da.
integração, isto é, pelo respeito por outros dois princípios constitucionais da União: o da integração e o do gradualismo.
50. P) O princípio da transparência
Durante muito tempo este princípio assumiu um caráter secun- "
dário no Direito da União, porque dizia respeito apenas ao acesso à ,i?
informação e aos documentos da União bem como à codificação e à
qualidade na feitura do Direito derivado, Quanto ao primeiro aspeto,
e de harmonia com a Declaração n.' 17 relativa ao direito de acesso
à informação, que esteve anexa ao Tratado de Maastricht, o Conse-,
lho e a Comissão aprovaram, em 8 de dezembro de 1993, um';
Código de conduta relativo ao acesso do público aos documentos,:;
do Conselho e da Comissão 135. E a jurisprudência comunitária}
depressa viria a considerar aquele direito, bem como os seus limites"
e as suas excepções, suscetíveis de fiscalização por via judicial]36. :.:~
Todavia, como o TJ tivesse posto em causa o valor e o ãmbito,!,
desse direito de acesso porque ele não tinha fundamento nos Trata-;
dos 137, o Tratado de Amesterdão decidiu consagrá-lo como verda-!,
deiro direito subjetivo, mas dando-lhe uma grande amplitude e:;:'
definindo-o para o conjunto global da União. De facto, o artigo LO.,\
m lO L 340/41, de 31·12-93,
.
'" Ao, TPI 19-10-95, John Caroel, Proe. T-194/94, CoL, pgs. 11-2.765."
Veja-se também, por ex., o Despacho do Presidente do TPI 3-3-98, Carlsell, Proe.?;
T-61O/97, CoL, pgs. 11-485 e segs,
137 Ae. 30-4-96, Países Baixos c. Conselho, Proe. C-58/94,
1-2.169 e segs.
146
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
UE, depois dessa revisão, veio dispor que na União "as decisões
serão tomadas de uma forma tão aberta quanto possível". Este princípio, assim enunciado, ultrapassava bastante as matérias específicas da informação e do acesso a documentos para englobar o
conjunto global do exercício do poder político na União. Por isso,
houve quem lhe chamasse princípio da abertura, em lugar de princípio da transparência]38. É com este alcance que ele passou a ter de
: ser visto como um princípio constitucional da União.
A questão concreta do acesso aos documentos foi absorvida
pelo texto dos Tratados, através da inclusão, pelo Tratado de Amesterdão, no Tratado CE, do seu novo artigo 255.'. Além disso, a
; transparência aparecia referida nas Declarações anexas ao Tratado
de Amesterdão com os n." 39 e 41. A primeira tinha por objeto uma
"~"~o das modalidades do princípio da transparência na União Europeia
:,c' que é a "qualidade de redação da legislação comunitária".
O Tratado de Nice, através da Declaração a ele anexa com o
n.'23, e respeitante "ao futuro da União", não se esqueceu da transig'parência e prescreveu que o debate sobre o futuro da integração, que
i{\\'então se iria iniciar, desde logo, a propósito do alargamento (que
Z\então já se sabia que iria começar em 2004), incluísse a "simplifica';'Xão dos Tratados, a fim de os tornar mais claros e mais compreensí'j;veis, sem alterar o seu significado".
"
O Tratado de Lisboa veio condensar o princípio da transparênsi,eia no Tratado UE, no âmbito dos "princípios democráticos", mas
!"~umentando-lhe significativamente o seu âmbito e o seu alcance.
{
Os preceitos-base nesta matéria são os novos artigos lO.' e 11.'
1'.
..:
O artigo 10.', depois de dispor, no seu n.' 1, que o funciona,"lOento da União se baseia na democracia representativa, estabelece,
~".Jll) n.' 3, que "todos os cidadãos têm o direito de participar na vida
5':?emocrática da União. As decisões são tomadas de forma tão aberta
}i'.~ tão próxima dos cidadãos quanto possível" (itálicos nossos).
'tif,i, •. Este artigo encontra-se concretizado nos quatro muito exigen~2t!1~números do artigo seguinte, o artigo 11.' do TFUE. Assim, esse
r
j
138
Por ex.,
ISAAC,
pg. 87.
147
Principios constitucionais e valores da União Europeia
A União Europeia
artigo obriga as instituições e os órgãos da União a criar as condições adequadas para que as associações representativas dos cidadãos e, em geral, a sociedade civil se possam exprimir sobre todos
os domínios de atividade da União e trocar, nessa matéria, publica"
mente, os seus pontos de vista com essas instituições e esses órgãos, ,
(n. o 1); impõe-lhes um "diálogo aberto, transparente e regular" com},.
essas associações e com a sociedade civil (n. o 2); estabelece que a:\.
Comissão consultará, de forma ampla, todas as partes interessadas"}
(n. o 3); e reconhece, no âmbito da cidadania da União, o direito de'·
iniciativa popular (n. o 4, que será estudado adiante, no quadro da-:
cidadania da União).
"
Depois, o artigo 15.° TFUE regulamenta, em termos amplos, 01,
princípio da transparência, sob as formas de "princípio de abertura"].
(n. o 1 desse artigo), do carácter público das sessões do Parlamento;,
Europeu e das reuniões do Conselbo em que este delibere e vote"'!,;,
sobre um projeto de ato legislativo (n. o 2), do direito de acesso aos/.!
documentos (o que veio reformular aquilo que se dispunha no TUE1p
antes do Tratado de Lisboa - n. o 3, pars. 1, 2 e 3), da transparência;;
dos trabalhos de todos os órgãos e instituições, inclusive do TJUE e,~
do BCE, na medida prevista no n. o 3, par. 4 (n. o 3, pars. 3,4 e 5). "
O princípio da transparência tem ganho especial relevância no::;
exercício do poder político no seio da União, tanto através da cres-';
cente participação nesse exercício de entidades nacionais (inclusiva-'t
mente de grau infraestadual, como Estados federados, regiões'
políticas ou administrativas, municípios, associações representati-,;'
vas de interesses nos domínios do ambiente, da proteção dos consll":i
midores, da saúde pública, e outros), quer através do reforço dos:"
meios de fiscalização da utilização pelos Estados de auxílios estatai~·,
ou de dinheiros públicos com fonte na União ou, num plano mais7
geral, da sua gestão orçamental e financeira no quadro da UEM,:'
(veja-se, sobre este último ponto, o artigo 126.° TFUE). Des#:,
forma, o princípio da transparência tem vindo a obter especial;;
importância no Direito Administrativo da União, que disciplina ri}
procedimento administrativo no seio da União, isto é, a execução dod
Direito da União Europeia por via administrativa ao nível da União.
Dele nos ocuparemos no local próprio.
,,'}.
148
51. Q) O princípio da Economia Social de Mercado. O modelo
social enropeu
Desde muito cedo que se começou a falar no Direito Comunina "Constituição económica" das Comunidades'''. Com isso
qualificar o sistema económico das Comunidades.
a criação da União Europeia o problema passou a colocar-se
: quanto ao conjunto global da União.
?
O sistema económico da União é, antes de mais, o da Econo, mia de Mercado. Foi com base nela que se ergueu a União Económica e Monetária e é com fundamento nela que se desenvolve todo
>:o:'--Direito material da União, composto, sobretudo, pelas quatro
liberdades, pelo Direito da Concorrência e pelas políticas comuns.
Mas é preciso ir-se mais longe e dizer-se que não é uma qualquer Economia de Mercado: é uma Economia Social de Mercado.
•Foi deste modo que colocámos o problema nas edições anteriores
<leste livro, apesar de não ser essa a metodologia adotada pelas obras
gerais sobre Direito da União, salvo algumas da doutrina alemã.
Hoje, o problema está resolvido pelo Tratado de Lisboa no
,sentido que propugnámos no nosso ensino ao longo de muitos anos.
Na definição de Economia Social de Mercado como sistema
'económico da União houve manifesta influência do sistema alemão
paSoziale Marktwirtschajtl4O, que foi posto em vigor pela Lei Fun"<lamental de Bona, de 1949. O criador desse conceito foi ALFRED
'MÜLLER ARMAcK 14I , Professor de Economia, que nesta matéria
~fluenciou o Chanceler LUDWIG ERHARD, com quem trabalhou
uando este foi Ministro da Economia. ERHARD incluía a sua conce,ão de Economia Social de Mercado no seu lema "Bem-Estar para
qdos" ("Wohlstandfür alie"), que lhe valeu ser considerado o autor
,_,O.,"milagre alemão" depois da 2.' Grande Guerra, pela sua ativi, ade, primeiro, como Ministro da Economia de KONRAD ADENAuER,
e 1949 a 1963, e, depois, como Chanceler, de 1963 a 1966. O sis139
Por todos, veja-se
SCHERER,
L.-I.
CONSTANTINESCO,
La Constitution, e
LEEG,
140
141
Nesse sentido, ZULEEG.
Wirtschaftslcnkung rmd Marktwirtschaft, Gõttingen, 1947, pg. 88.
149
A União Europeia
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
tema da Economia Social de Mercado veio permitir urna rápida
recuperação económica e a paz social na Alemanha após as maciças
destruições da Guerra. A Economia Social de Mercado caracteriza-se, na Alemanha, pela dimensão social da Economia e pelo
papel interventor do Estado de modo a assegurar o funcionamento
leal das regras de mercado l4'. Ou seja, não estamos perante uma
Economia nem de pendor coletivista nem de tipo liberal: o Estado
tem um forte papel de regulação e de controlo do funcionamento do
mercado e da concorrência por forma a prevenir e a reprimir distar-
artigo 49.°, par. I, 1.' parte, UE, na redação de Nice. Hoje deve
entender-se que essa exigência se mantém quando o atual artigo
49.°, par. I, 1." parte, UE, remete para os valores do artigo 2.°, particularmente, neste caso, a dignidade da pessoa humana, a igualdade,
o Estado de Direito, a não discriminação, a justiça (também justiça
social), a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.
Note-se que o Tratado de Lisboa não escapa a algumas contradições na matéria, que convém que sejam corrigidas numa próxima
revisão dos Tratados.
De facto, o artigo 119.° do TFUE, integrado no Título intitulado "A Política Económica e Monetária", define por duas vezes,
como princípio norteadar daquela Política, o "mercado aberto e a
livre concorrência" (n."' I e 2 do citado artigo, com itálico nosso).
Todavia, uma conceção puramente economicista e liberal para a
aquela expressão poderia empurrar o intérprete é afastada pela
cOllsagnlçã.o, logo no início do TUE, como princípio constitucional
União Europeia, da "Economia Social de Mercado" (artigo 3.°,
° 3). Esta interpretação é reforçada pela ligação que aquele preestabelece entre essa Economia e o "pleno emprego", o "prosocial", o "elevado nível de participação e de melhoramento
qualidade do ambiente", o combate à "exclusão social" e às
"disclimdn:açêies", a promoção da "justiça e proteção sociais", da
"ig.ua:lda.de entre homens e mulheres", "da solidariedade entre gera, a defesa da "coesão económica, social e territorial" (artigo
0, n.'" 3, 4 e 5).
Ou seja, em face de tudo isto, é legítimo afirmar-se, insistimos,
hoje, pela letra do Tratado UE, o sistema económico da União
sões a um sistema de concorrência sã e leal, bem como a impor que
mercado atenda ao valor da justiça social. Também na União
Europeia, a Economia Social de Mercado foi desde o início marcada
pela sua componente social (daí, em 1950, o Plano Schuman, e,
mais tarde, os Tratados falarem conjuntamente em "progresso económico e social" e "coesão económica e socia!"), pelos limites
colocados às quatro liberdades e pelos mecanismos previstos para se
evitar que se falseasse a concorrência. Não é, portanto, correto,
desde logo no plano jurídico, reconduzir-se levianamente o sis"
tema económico da União a qualquer modelo de tipo liberal ou
neoliberal'43.
O caráter constitucional para a União Europeia do princípio da
Economia de Mercado é comprovado pelo facto de a União ter
imposto aos Estados do Centro e do Leste da Europa, cuja adesão se
iniciou em 2004 e 2007, a demonstração prévia de eles respeitarem
as regras do sistema da Economia de Mercado, que se considerava
integrado no quadro dos requisitos estabelecidos para a adesão pelo
O
142
Por todos,
ISENSEE/KIRCHHüF
(eds.), Handbuch des Staatsrechts,
Heidelberga. vol. I. 1987, pgs. 1.080 e segs., e vol. II, 1992, pgs. 431 e segs.,
a
STOBER, Allgemeines Wirtschaftsverwaltungsrecht, 3. ed., Munique, 2002,
pg.43.
hoje,
143 Nesse sentido, exaustivamente, as obs. cits. de SCHERER e L.-I: CONSTAN·
TINESCO. Colocando a Economia Social de Mercado como expressão da "dimensão
social da integração europeia", veja-se S. GIUBBONI, Diritti sociali e mel'cat,o,
Bolonha, 2003. Ver também MÜLLER-GRAFF, L'économie de marché concurrell-
tielle comme principe constitutionnel commun dans l'Union européenne?,
Gautron, cit., pgs. 479 e segs.
150
sistema em que o mercado e a livre concorrência se entrecru-
com o social, isto é, estão subordinados ao primado da Pessoa
HUlmima e da justiça social, cabendo à União (e também aos Estaneste caso por respeito pelo princípio da subsidiariedade) assea coerência deste sistema. Como bem notam PRIOLLAUD e
foi intenção dos autores do Tratado compor, com aqueles
el(~mlontos, o modelo social europeu. Isto significa que a Economia
de Mercado, começando por dar corpo ao sistema económico
União, acaba por definir também o modelo social da União Euro151
Princípios constitucionais e valores da União Europeia
A União Europeia
meramente económica, tinha de ser vista como um princípio geral
de Direito da União Europeia e de natureza constitucional. E, se de
início foi pensada como proibição de discriminação de estrangeiros
em benefício de nacionais, mais tarde teve de ser entendida também
como proibição de discriminação de nacionais em relação a estran;'geiros (a chamada discriminação inversa ou à rebours)'48. Aliás, o
'próprio Direito Internacional moderno, com força de ius cogens,
. proíbe a discriminação também de nacionais em relação a estrangeiros e de tal forma que todos os Estados-membros da Comunidade
Internacional (portanto, também os Estados-membros da União) são
obrigados a conceder aos seus nacionais o mais elevado nível de
peia. Há, pois, uma Europa social e agora com consagração nos
Tratados. Tal como acontece, portanto, com o sistema económico,
também o modelo social europeu não pode ser classificado como
modelo liberal ou afim. De qualquer modo, há que sublinhar que
dele ficaram excluídos, por ora, o acesso à educação, à formação e
aos serviços de interesse económico geral de qualidade, como chegara a ser proposto na Convenção sobre o Futuro da Europa 1"-"'.
52. R) O princípio da não-discriminação
.t;
O princípio da não-discriminação nasceu na Constituição económica das Comunidades. Achamos melhor falar na não-discrimi- ~
nação do que em igualdade já que, em sentido abstrato, os Estados
não estão em pé de igualdade no Direito da União. Uma das características específicas do Direito da União reside exatamente no facto
de ele haver rejeitado, como ponto de partida, o princípio um
Estado, um voto, que caracteriza o Direito Internacional Público,<;
clássico com fundamento na igualdade soberana dos Estados, prin-'~
cípio que hoje o próprio Direito Internacional aceita afastar l46· i '
Embora nascido, como se disse, como princípio de índole eco"!'
nómica, o princípio da não-discriminação sempre teve um alcance -i;
geral e quis dizer, desde logo, que, salvo razões objetivamenIeidemonstradas, situações idênticas ou análogas, em qualquer domi-i'
nio da integração europeia, não podiam ser tratadas de modo difei
rente l47 .
Uma das maiores manifestações deste princípio residiu n~:.:>
proibição da discriminação em razão da nacionalidade, que veio da/r'
versão original do Tratado CE até ao artigo 12.° daquele Tratado n~)j_;
versão de Nice. A não-discriminação em razão da nacionalidade;",
embora pensada para a CE quando a CEE era uma Comunidade]:
144
145
146
CONV 516/1/03: Relatório do Grupo de Trabalho XI, Europa social.
Ver PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 35.
Ver a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 377 e segs., especialment~,'j
385 e segs.
147 Assim, Ac. TI 5-3-80, Ferweda, Proe. 265/78, Rec., pgs. 617 e segs.
152
;'prbteção que concedem a não nacionais, e mesmo fora do âmbito de
aplicação estrita do Direito Internacional (portanto, também fora do
âmbito de aplicação do Direito da União). Em Portugal, esta cons',> trução torna-se ainda mais clara e premente porque ela decorre do
~sistema de proteção dos direitos fundamentais consagrado na Constituição da República'49.
O Tratado de Lisboa ampliou ao máximo O princípio da
não-discriminação. Para além das várias referências específicas já
átadas à igualdade entre homens e mulheres e à não-discriminação,
Aquele princípio encontra guarida, como princípio geral e universal
da União, no artigo 9.°, 1." parte, UE, quando ele estabelece que
i'Em todas as suas ativídades, a União respeita o princípio da igual; ~ade dos seus cidadãos, que beneficiam de igual atenção por parte
das suas instituições, órgãos e organismos" (itálico nosso). Vai na
mesma linha, embora com um àmbito mais delimitado, o artigo 10.°
"TFUE. Ele dispõe: "Na definição e execução das suas políticas e
;~;;ações, a União tem por objetivo combater a discriminação em razão
";(dO sexo, raça ou origem étnica, religião, ou crença, deficiência,
,;;;i~ade ou orientação sexual".
4?~
",.,..~---
~f>'/:'
148
Ver nesse sentido a jurisprudência do TJ: Acs. 31-3-93, Kraus, Proc.
';Ç-19/92, CoI.. pgs. 1-01.663 e segs.• e 2-12-2010, lakubowska. Proc. C-225109,
i/Çol., pgs. 1-12.329 e segs.
,~~~;::
149
Veja-se esta questão desenvolvida no nosso livro A proteção da proprie-
,l~f"tfr1de privada pelo Direito Internacional Público (com sumário em inglês), Coim-
;;bra, 1998, sobretudo, pgs. 561-563.
153
CAPÍTULO III
A CIDADANIA DA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: FEDERICO DE CASTRO, La nationalité, la
double nationalité et la supranationalité, RCADI 1961-1, pgs. 515 e
segs.; K. PORTER, A Hlstory of Suffrage ln the United Slates, Nova
Iorque, 1969; G. DEL VECCHIO, La Déclaration des Droits de l'Homme et
dll Citoyen dans la Révolution française, Roma, 1979; C. LUCAS, The
French Revolution and lhe creation ofmodern politicaI cu/ture, vaI. 2,
Oxford, 1988; A. EVANS, Nationality Law and European lntegration,
ELR 1991, pgs. 190 e segs.; I. IBANEZ GARClA, Dereeho de petición y
derecho de queja, Madrid, 1993; J. VERHOEVEN, Les citoyens de
l'ElIrope, ADL 1993, pgs. 165 e segs.; R. KOVAR e D. SIMON, La citoyenneté européenne, CDE 1993, pgs. 285 e segs.; V. CONSTANTINESCO, La
citoyenneté de I'Union, Baden-Baden, 1993; D. SCHNAPPER, La
Communauté des citoyens, Paris, 1994; E. GARCÍA DE ENTERRÍA, La lengua de los derechos. Laformación del Derecho público europeo tras la
Revolución/rancesa, Madrid, 1994; E. MARIAS, European Citizenship,
Maastricht, 1994; V. LIPPOLlS, La cittadinanza europea, Bolonha, 1994;
E. VILARINO PINTOS, Representación exterior y cooperación diplomática
y consular en el Tratado de la Unión Europea, RIE 1995, pgs. 417 e
segs.; J. WETLER, J. AUBERT, R. BIEBER e F EMMERT, Democracy and
Federalism in European Integration, Berna, 1995; B. NASCIMBENE (ed.),
Le droit de la Ilationalité dans f'Union européenne, Milão, 1996; M.
NEWMAN, Democracy, Sovereignty and the European Union, Londres,
1996; P. JUÁREZ PÉREZ, Nacionalidad estatal y ciudadania europea,
Madrid, 1998; C. LYONS, Citizenship in lhe Constitlltion oflhe European
'ir.' r
(;
Unlon: riJelorie or reality?, in R. Bellamy (ed.), Constitutionalism,
Democracy and Sovereignity: American and European Perspetives,
Aldershot, 1996, pgs. 96 e segs.; J. MONAR, A dual citlzenshlp ln the
I
ri
Ji i
li!
155
A União Europeia
making: lhe citizenship of lhe European Union and irs reform, in M. La
Torre, European citizenship, Oxford, 1998, pgs. 167 e segs,; M. D.
BLÁZQUEZ PEINADO, La ciudadanfa de la Unión, Valência, 1998;
M. GAROT, La citoyenneté de l'Union européenne, diss., Paris, 1999; N.
BEENEN, Citizenship, Nationality and Access to Public Service
Employment - The Impoct of European Community Law, diss., Groningen, 2001; R. HANSEN (ed.), Dual nationality, social rights ondfederal
citizenship in lhe U.S. and Europe, Nova Iorque, 2002; R. MOURA
RAMOS, Nacionalidade, plurinacionalidade e supranacionalidade na
União Europeia e na Comunidade dos Palses de Língua PortuR",esa,
BFDUC, volume comemorativo, 2003, pgs. 691 e segs.; F. VELPEREE,
Nationalité, droit constitlltionnel et droit ellropéen, ADL 2003, pgs.
e segs.; M. BENLOLO CARABOT, Lesfondements juridiques de la citoyeneté européenne. Bruxelas, 2oo?; S. MAILLARD, L'émergence de la
toyenneté sociale européenne, Aix-en-Provence. 2008.
A Cidadania da União Europeia
TUEI50 O que esteve concretamente subjacente à criação da cidadania da União foi a ideia de que, ao lado da Europa, primeiro, do
mercado único, e, depois, da moeda única, era também preciso criar
"Europa dos cidadãos" e "aproximar a Europa dos cidadãos".
fundo, tratava-se de, também por aqui, reforçar a componente
derllocráLtica da União Europeia l5l . E, mais uma vez, a Europa revianas suas raízes: em 1947 CHURCHILL prevenia que "nós não junEstados, nós unimos Homens".
No plano filosófico, a cidadania da União vai beber ideias à
de JEAN BODIN sobre as relações entre a soberania e os cidaà Revolução Francesa e à sua Declaração dos Direitos do
Hi:)mem e do Cidadão, de 1789, ao pensamento de JEAN-JACQUES
KOUS~;EA.U e ao Direito Naturajl52-153
Natureza e valor jurídico da cidadania da União
53. Origem e significado
Nas suas "Disposições comuns" o TUE (portanto, após a revisão de Maastricht aos Tratados institutivos) veio impor à União
objetivo do "reforço da defesa dos direitos e dos interesses dos
nacionais dos seus Estados-membros, mediante a instituição de
cidadania da União" (à data, artigo B, 3.° travessão).
Por conseguinte, o Tratado de Maastricht veio incluir no Tratado CE uma Parte II, intitulada "A cidadania da União"
artigos 8.° a 8. o _E). Tratando-se de cidadania da União e não só
CE, como o próprio TOO começaria por reconhecer no seu retefl(10
artigo B, essa matéria deveria ter ficado disciplinada, não no
tado CE, mas nas referidas "Disposições comuns" do TUE. twmv"mos perante uma incoerência intema do TUE.
O facto de os Tratados se terem começado a preocupar com
cidadania da União a partir do TUE constituiu um bom sinal
intenção deste Tratado de, como já foi referido, inocular na rntegr'a-'';,
ção uma forte componente social e humanista, deixando a rnli~g"a­
ção de ser concebida como um processo quase excltlsivame:nte
económico, como, pelas razões já explicadas, aconteceu
156
O grande problema que cedo suscitou a interpretação dos citapreceitos do Tratado CE foi o de saber em que é que consistia
cidadania da União. Dito doutra forma: era a cidadania da
uma cidadania nova, autónoma em relação à cidadania estaque, por isso, fazia nascer, em sentido jurídico rigoroso, cidaeuropeus, no sentido de povo europeu?
A resposta a esta pergunta é negativa. E ela é-nos dada hoje
artigo 20. o TFUE, que, no essencial, não modificou o artigo 17.°
150 Veja-se a História da "cidadania europeia" em BLÁZQUEZ PEINADO,
23 e segs. e 44 e segs., e no Comentário de GRABITZ/HILFINETTESHEIM, anotaaos atuais artigos 20. 0 a 25. 0 TFUE.
151 Sobre a "Europa dos cidadãos", ver, por todos, a dissertação de GAROT,
i{!pl,retudo pgs. 169 e segs. e 335 e segs., e a citada monografia de BLÃZQUEZ PEIpgs. 27 e segs.
152 Ver GAROT, pgs. 174,226 e segs. e 335 e segs.; e DEL VECCHIO, pgs. 5 e
153 Das obras gerais veja-se, especialmente, VON BOGDANDY (ed.), pgs. 539 e
(o artigo de KADBLBACH), e GRABITzJH1LFINETTESHEIM, as anotações aos preque estão em causa. Da bibliografia especial, veja-se a muito boa monograCARABOT.
157
A União Europeia
do TUE, na versão de Nice, que, por sua vez, era herdeiro dos artigos 8.° CE, na versão de Maastricht, e 17.° CE, na versão de Amesterdão.
De facto, o artigo 20.°, n.o 1, TFUE, depois de nos dizer que "é
instituída a cidadania da União", acrescenta o seguinte:
1. (...) É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacio/lalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania
nacional e não a substitui (itálicos nossos).
Na versão que lhe fora dada pelo Tratado de Maastricht, o
artigo 8.° CE não incluía a última frase transcrita (que, por sna vez,
foi modificada pelo Tratado de Lisboa), mas já então a doutrina não
tinha dúvidas, desde logo com base nos trabalhos preparatórios '" "i
daquele preceito, de que a cidadania da União não pretendia ser uma:;,
nacionalidade autónoma em relação à cidadania dos Estados-mem.,;'·
bros. De facto, a cidadania da União era conferida pelo facto de um;
dado indivíduo ter a nacionalidade de qualquer dos Estados-memc )
bros, isto é, niio lhe advinha separada e autonomamente. Ou seja, o"?,
Estado-membro, ao determinar, no exercício da sua soberania, quem';"
é seu nacional''', era ele que também estava a dizer quem era cidacj"
dão da União'''. Note-se que esta relação estreita entre a naciooali<Ti
dade estadual e a cidadania da União o Tratado de Maastricht for~
buscá-la ao Tratado Spinelli, de 1984, cujo artigo 3." dispunha:
Os cidadãos dos Estados-membros são, por esse simples facto,_,'?,.
cidadãos da União. A cidadania da União está ligada à qualidade de um'i~
Estado-membro; ela não pode ser adquirida ou perdida separadamente.,,::\.\
(itálicos n 0 5 5 0 5 ) . > : 0 ,
154 Está-se a partir aqui do princípio de que, em conformidade com as regras'::~t
clássicas do Direito Internacional, os Estados têm competência exclusiva pará:~
definir as regras de aquisição e conservação da sua nacionalidade. O TI aceitoll~""
este princípio, com referência à matéria que se estuda no texto, pouco depois da!;'"
assinatura do Tratado de Maastricht - Ac. 7 ~ 7-92, Micheletti, Proc. C-369/90, Col:j;:i"
pgs. IA.239 e segs..
.:
155 Assim, também, por todos, JACQUÉ, pgs. 123 e segs., GRABIWHILFI/"
NETIESHEIM, anotações ao artigo 20.°, n.O 1, TFUE, e BLÁZQUEZ PEINADO, pgs. 62J:
e segs.
158
A Cidadania da União Europeia
Mas o Tratado de Amesterdão tornou essa interpretação ainda
mais clara, ao acrescentar ao citado n. ° 1 a indicação de que a cidadania da União era "complementar" da cidadania nacional e '"não a
substitui" (itálicos nossos).
Particularmente o caráter "complementar" da cidadania da
i'; União permitia-nos concluir que não se tinha querido criar uma
cidadania europeia que se sobrepuzesse e que se cumulasse, como
cidadania autónoma, com a cidadania estadual. Mas, se é assim, é
legítimo chegarmos às duas seguintes conclusões. A primeira é a de
que não podemos reconduzir a União Europeia a um modelo de tipo
estadual, dado que o primeiro elemento constitutivo do Estado é a
existência de um povo, com a cidadania própria do Estado. Ora, não
existindo uma cidadania europeia autónoma, não há um povo europeu em sentido jurídico, portanto, não existe um poder constitninte
próprio da União e, sendo assim, a União não é um Estado.
, .A segunda conclusão é a de que, ao contrário do que sucede nas
;. Federações, não existe na União Europeia a Hdual citizenship"
.' ("dualidade de cidadanias" ou "dupla nacionalidade"), isto é, a
',sobreposição de duas cidadanias ou nacionalidades diferentes: a
:Y,;oacionalidade do Estado federado e a nacionalidade federal"'. Por;±;tanto, e desde logo por aqui, para além de a União Europeia não ser
g'J1m Estado, ela também não é uma Federação.
Todo este raciocínio é confirmado pela função que os Tratados
j',têm atribuído ao Parlamento Europeu. Apesar de ser eleito por
'6:~W'rágio direto e universal, ele não representa O "povo europeu",
':'9~ejuridicamente não existe, mas os "povos dos Estados reunidos
Y;paComunidade" - é o que dispunha o ex-artigo 189.°, n.o 1, CE-,
',':BOOS "cidadãos da União" - é o que estabelece hoje o artigo 14.°,
':)J,," 2, L' parte, UE. E, note-se, esta alteração trazida pelo Tratado de
~~!~boa não tem qualquer relevância prática.
f) De tudo o que fica dito é legítimo chegarmos a este importante
.~r~8ultado, que assume grande relevância para o Direito Constitucio-
di!i,
'k:
:;i1!,.,\ ,,156 O conceito de dual dtizenship ficou estabelecido em definitivo nos
,ie~~os 'Unidos com a aprovação da 14. a emenda à Constituição, em 1868. Sobre
T~:,:watéria, e no sentido do texto, ver, por último, as obras de HANSEN, MONAR,
':~\rPOLlS, especialmente, pgs. 61 e segs., e GAROT, pgs. 226 e segs.
t59
A Cidadania da União Europeia
A União Europeia
!I
nal. Pelo menos, a partir da entrada em vigor do TUE, não é possível"~"'f
equiparar-se no Direito Português os cidadãos dos outros Estados-;'
-membros da União aos estrangeiros. Em termos jurídicos, estraw}
geiros serão os cidadãos de Estados terceiros que não têm nenhuma:;
nacionalidade em comum com os cidadãos portugueses. Ora, OS');
cidadãos dos outros Estados-membros da União, conjuntamente,;
com os cidadãos portugueses, têm de ser tratados pelo nosso Direito,'
como cidadãos da União ou cidadãos comunitários, nunca como~;~
estrangeiros, porque têm em comum a cidadania da União, embora"
com o valor jurídico que esta tem. É assim que procede, e bem, 0/
artigo 15.°, da Constituição, quer na sua epígrafe, quer no seu n.o 5i:
enquanto que a referência a "estrangeiros" no n.o 4 do mesmo artig%
só estará correta caso o legislador constituinte tenha querido incluir';
naquele substantivo também cidadãos de Estados terceiros. Mesmo'
assim, não teria ficado mal distinguir, nesse n. ° 4, os estrangeiros e'
os cidadãos da União. Voltaremos a estes preceitos daqui a pouco."
55. Os direitos reconhecidos no âmbito da cidadania da União';:::'
Este direito consiste numa evolução da liberdade de circulação
de pessoas, que provém da versão original do Tratado CEE como
uma das "quatro liberdades" de conteúdo económico Com o TUE
';i,'P direito de circular e de permanecer no espaço da União nã~
!idepende do exercício de uma atividade económica e vale para qual:~,quer actividade, mesmo, por exemplo, para uma presença para fins
Ii.·•d. e estudo, ou de turismo. Podemos dizer que de direito económico
;;,ele se transformou num direito pessoal ou num direito civil.
';
Em bom rigor, este direito subdivide-se em dois: o direito de
flc:ircular pelos Estados-membros e o direito de permanecer, inclu;;sive o de residir, em algum, ou alguus deles.
' . Compete ao Parlamento e ao Conselho, ou só ao Conselho
",gefrnir as condições de exercício desse direito, podendo eles, para ~
,!isefeito, se for necessário, adotar as medidas previstas no artigo 21.°,
';,n.'" 2 e 3, TFUE. O exercício desse direito encontra-se sujeito às
'~aimitações constantes do Tratado (nomeadamente, as de ordem
:4Pública, saúde pública e segurança pública) ou impostas pelo
',%)?ireito derivado (por exemplo, a pessoa em causa tem de estar sem}!;pre na posse de um documento de identificação válido)'''.
~!,
..
I - Introdução
III - O direito de eleger e ser eleito
O artigo 20.°, n.' 2, TFUE reconhece que o estatuto da cidada:
nia da União se desdobra em direitos e deveres. Quais são os direi;:
tos conferidos pela cidadania da União?
A resposta encontramo-Ia hoje nos artigos 20.' a 24.° TFUE
11 .0, n.o 4, UE. E desde já se diga que o Tratado de Lisboa alargoH:
o elenco dos direitos que vinha desde o Tratado de Maastricht e qt{S'
estudámos nas edições anteriores deste livro.
r'
II - O direito de circular e permanecer
O primeiro direito do cidadão da União é o de "circular e pe~~
manecer livremente no território dos Estados-membros" (artigq~
20.°, n.o 2, aI. a, e 21.°, TFUE, com itálico nosso).
160
O segundo dos direitos incluídos na cidadania da União consta
Âgôs artigos 20.°, n.o 2, alo b, e 22.° TFUE: o direito de eleger e ser
!~leito (portanto, capacidade eleitoral ativa e passiva) nas eleições
Rllfa o Parlamento Europeu e nas eleições municipais do Estado de
'ffsidência, nas mesmas condições em que o podem fazer os nacio~~is desse Estado. O segundo dos referidos preceitos prevê o modo
»e,se disciplinar o exercício desses direitos e admite disposições
:geITogatórias a esse exercício sempre que o Estado-membro em
,ç~usa fundadamente o requeira à União.
C,,
157 Ver a Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de
, 9+2004, lO L 158, de 30-4-2004.
'
161
A Cidadania da União Europeia
A União Europeia
-----~~===------~/,
Para alguns Estados, este direito trouxe pouco de novo: assiI'!h\
por exemplo, na França e no Luxemburgo, a lei já reconhecia anã?;
nacionais capacidade eleitoral ativa e passiva em eleições para aso
autarquias locais.
,":W"
Alguns Estados tiveram que rever as respetivas Constituiçõ~~.
para acolher este direito: foi o que fez Portugal quanto ao alUar'
artigo 15.°, n." 4 e 5, da Constituição, na revisão constitucionald.~
1~2
4
IV - O direito à proteção de autoridades diplomáticas"é;r
consulares
.
O terceiro direito conferido ao cidadão da União é o de pod~i.·
requerer, no território de Estados terceiros em que o Estado-mem~~:.
de que é nacional não se encontre representado, proteção da parteª.~!
autoridades diplomáticas e consulares de qualquer outro Estaªo,'
-membro, nas mesmas condições dos nacionais desse Estn49.
(artigos 20. 0 , n. o 2, aI. c, e 23. 0 TFUE).
y.
Trata-se de uma profunda alteração na regra do Direito Intcr,
nacional clássico, segundo a qual um Estado só deve proteção diPl~.·oo
mática e consular aos seus próprios nacionais.
ooi
Este direito beneficia especialmente os nacionais dos Estado~'
-membros que têm poucas representações diplomáticas e consula.rc~.
em Estados terceiros, particularmente em pequenos Estados, oUc\!l
Estados longínquos, da África, da Ásia, da América ou da OceanW
e que, desta forma, podem beneficiar, nesses Estados terceiros;
proteção diplomática e consular de Estados-membros como o Reio,9
Unido, a França e a Alemanha, que se encontram representados p?, o
embaixadas em quase todos os Estados da Comunidade Intemacig!
nal e possuem uma vasta rede de c o n s u l a d o s . ' ; !
0
O Conselho pode, nos termos do artigo 23. , par. 2, TFUê;
aprovar diretivas que permitam a coordenação e a cooperaçãoJ1ilo
efetivação desse direito.
00
162
V - O direito de iniciativa popular
·k!.
Este importante direito foi criado pelo Tratado de Lisboa e
"'/consta do artigo 11.°, n. o 4, UE.
.;,.;.; . Ele consiste no direito reconhecido aos cidadãos da União, em
;i'~\Ímero igualou superior a um milhão, e desde que sejam cidadãos
.~':-~~
um "número significativo" de Estados-membros, de tomarem a
.;iniciativa de convidar a Comissão Europeia, dentro da sua compe'!!\~ncia, a apresentar uma proposta adequada sobre questões para as
$!9uais eles entendam que é necessário um ato jurídico da União para
';',~c cumprirem os Tratados. As condições de exercício deste direito
@'cncontram-se reguladas no artigo 24. 0 , par. I, TFUE. Aí se prevê,
'/.;pomeadamente, o modo como se determinará o número mínimo de
'~:§stados aos quais devem pertencer os cidadãos que queiram exercer
:.cste direito.
·~iii.' Ao contrário do princípio da democracia representativa que os
.ir~tados escolheram para regra orientadora do funcionamento da
~~I)i.ão, e que encontra o seu apogeu na eleição pelos cidadãos euroJpeljs do Parlamento Europeu, este direito dá corpo ao princípio da
.cmocracia participativa, ao pretender associar diretamente os cidada União (e, deste modo, a sociedade civil) ao exercício do
er na União. Desta forma, está a aproximar-se ainda mais a
'ão em relação aos seus cidadãos.
Note-se que o convite dirigido à Comissão, no ãmbito deste
~ito, não obriga a Comissão a apresentar a proposta. Mas é assim
,$'plano estritamente jurídico. No plano político, será muito difícil
.·i~?tnissão recusar-se a fazê-lo, sobretudo se os cidadãos que toma~messa iniciativa pertencerem a muitos Estados.
,fL'\,',
VI - O direito de se dirigir a qualquer órgão ou instituição
da União
'.. ..'r.'·.'
f-'ii6'",
~'r· Também este direito foi criado pelo Tratado de Lisboa. Ele
dos artigos 20. n. o 2, aI. d, 3.' parte, e 24. par. 4, TFUE.
:~';" Ele confere aos cidadãos da União a faculdade de se dirigirem,
.Jl1.qualquer das línguas dos Tratados, aos órgã<!s referidos nos
cg~sta
0
0
,
,
163
:1'
",'
A Cidadania da União Europeia
A União Europeia
n,o, 1 a 4 do artigo 13.° UE, sobre qualquer assunto da respetiva competência, e de receberem uma resposta escrita, na mesma língua.
Também este direito constitui uma expressão do princípio da
democracia participativa.
VII - O direito de petição ao Parlamento Europeu
Os direitos acabados de referir têm um conteúdo eminentemente substantivo. Para além deles, porém, o Tratado CE estabelece, no quadro da cidadania da União, dois direitos de natureza
predominantemente adjetiva, ou instrumental, ou procedimental.
O primeiro deles consta do artigo 20.°, n.o 2, aI. d, l.a parte,
TFUE. Consiste no direito de petição ao Parlamento Europeu. O
objeto deste direito, bem como os termos do seu exercício, encontram-se regulados no artigo 227.° TFUE. Merece destaque, neste
último preceito, o amplo âmbito do direito de petição: ele pode
incidir "sobre qualquer questão que se integre nos domínios de atividade da União e lhe (ao peticionário) diga diretamente respeito"
(itálico nosso).
VIII - O direito de queixa ao Provedor de Justiça
O outro direito de natureza adjetiva traduz-se na queixa ao
Provedor de Justiça. Ele está previsto no mesmo artigo 20.°, n.o 2,
aI. d, mas na 2.' parte, TFUE. O exercício desse direito está disciplinado no artigo 228.° TFUE, merecendo referência especial o seu
objeto: ele pode dizer respeito à violação do dever de boa administração (casos de "má administração") na atuação de instituições,
órgãos e organismos da União, com exceção do Tribunal de Justiça
da União Europeia quando este atue no exercício das suas fUllçõ'es
jurisdicionais.
O Estatuto do Provedor de Justiça que está em vigor foi aprovado por Resolução do Parlamento Europeu de 18 de junho de
2008 L5 '.
'" JO C 286E, de 26-11-2009, pg, 172.
164
56. A extensão desses direitos
Resta um ponto importante a sublinhar quanto aos direitos
acabados de referir: é o da extensão desses direitos. Este problema
tem de ser estudado em dois planos: o da extensão subjetiva dos
dIreItos e o da sua extensão material.
Comecemos pela extensão subjetiva.
, Alguns dos direitos estudados - o de livre circulação e permanencla, mcluslve resIdência, o de petição ao Parlamento Europeu e
o de queIxa ao Provedor de JustIça - não são exclusivos dos cidadãos da União. No que diz respeito ao primeiro desses direitos, ele
fOI estendido a alguns familiares dos cidadãos da União, mesmo que
eles, por não terem a nacionalidade de qualquer dos Estados-membros da. Un~ão, não possam ser considerados, eles próprios, cidadãos
da Umao: e o caso do cônjuge, ou equiparado, do cidadão da União,
e dos descendentes e ascendentes do cidadão da União e do seu
,
.
d J.
cO~Juge ou eqUIpara o . Essa extensão encontra hoje cobertura no
artigo 45.°, n.o 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia e é pe~feitamente compreensível porque, pretendendo reagrupar as famílIas, vIsa preservar a sua unidade e estabilidade. Por
seu lado, o direito de petição e o direito de queixa foram reconheciem função, não só do estatuto da cidadania da União como
também da residência ou da sede estatutária no espaço da 'União,
que gozam daqueles direitos tanto os cidadãos da União
mesmo que não ~esidam no território da União, como também qual:
quer pessoa Jundlca que resida ou tenha a sua sede estatutária
território, ~esmo que não seja cidadão da União. Hoje a
extemiãodesses dOIS dIreItos, nos termos referidos, é levada a cabo
artIgos 43. 0 e 44.° da Carta dos Direitos Fundamentais da
Europeia J6O.
Passemos agora à extensão material dos direitos.
Esta matéria encontra-se hoje regulada na citada Diretiva 2004/38/CE.
~~ Par~ uma análise mais pormenorizada dos direitos incluídos na cidadania
Umao, vejam-se, sobretudo, as obras de GAROT, BLÁZQUEZ PEINADO, BEENEN
159
COlml\NTIINE'ICO e CARABüT.
'
165
A União Europeia
A cidadania da União não se esgota nos direitos tipificados nos
artigos 20.° a 24.° TFUE e 11.°, n.o 4, UE. De facto, o artigo 25.°
TFUE contém uma cláusula de extensão material desses direitos.
Com efeito, aquele preceito vem permitir que o Conselho, respeitado que seja o procedimento aí previsto, aprove as disposições
destinadas "a aprofundar os direitos" previstos nos artigos antecedentes ("completar os direitos", diz a versão francesa do TFUE). Por
"aprofundamento" dos direitos deve ser entendido, não apenas o
enriquecimento do conteúdo dos direitos referidos nos citados artigos dos Tratados UE e TFUE, como também a criação de novoS
direitos que derivem diretamente daqueles. Note-se, todavia, que, de
harmonia com a parte final do citado artigo 25.° TFUE, essas disposições só entrarão em vigor depois de elas terem sido aprovadas
pelos Estados-membros em conformidade com as respetivas regras
constitucionais, o que não acontece com o núcleo central dos direitos de cidadania acima estudados e que vinculam os Estados por
força direta dos Tratados.
A Cidadania da União Europeia
Tanto no plano do Direito, como no da pedagogia cívica, seria bom
que fIcasse claro que, também no quadro da cidadania da União
Europeia, todos os cidadãos têm tanto direitos como deveres e que,
dentro destes últimos, existem importantes deveres para com o interesse geral da coletividade.
57. Os deveres incluídos na cidadania da União
Como se disse atrás, o artigo 20.°, n.o 2, TFUE, estabelece que
o estatuto da cidadania da União se desdobra em direitos e deveres.
Contudo, tanto as quatro alíneas desse n.o 2 como os artigos 21.° a
24. 0 TFUE e o artigo 11.°, n.o 4, UE, só enunciam os direitos incluídos na cidadania. O Tratado esquece-se, pois, dos deveres dos cidadãos da União, o que leva VLAD CONSTANTINESCO a afirmar, com
muita propriedade, que "falta à cidadania europeia a segunda dimensão", dado que os direitos foram outorgados "sem a habitual contrapartida reconhecida, explícita ou implicitamente, aos deveres"l6l.
Em nosso entender, é legítimo esperar que o aprofundamento
da cidadania da União venha a ocorrer através também da enuncial62
ção clara dos deveres incluídos no estatuto de cidadão da União .
161
162
La citoyenneté, pg. 27.
Assim, J. VERHOEVEN, Les citoyens, pg. 190.
166
167
CAPÍTULO IV
~
1
:i:
I,
I
";
A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: P. PESCATORE, Les droits de ['homme et
['intégration européenne, CDE 1968, pgs. 629 e segs.; P. PESCATORE, La
Cour de Justice des Communautés européennes et la Convention européenne des droits de l'hom11le, Mélanges Wiarda, pgs. 441 e segs.; G. C.
RODRIGUEZ IOLESIAS et aI., EI derecho comunitario y las relaciones entre
el Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas, el Tribunal
Europeo de Derechos Humanos, e los Tribunales Constitucionales
nacionales, RDCE 1997, pgs, 329 e segs,; P, WACHSMANN, Les draits de
l'homme, in Le Traité d' Amesterdam, separata da RTDE 1997-4, pgs.
175 e segs.; H. LABAYLE, Un espace de liberté, de sécurifé et de justice,
ibidem, pgs. 105 e segs.; J. RlDEAU, Le rôle de I'Union européenne en
matiere de protection des draits de l'hol1ll1le, RCADI 1997, pgs. 79 e
segs.; H. LABAYLE, Droitsfondamentaux et droit européen, AIDA 1998,
número especial, Les droits fondamentaux, pgs. 75 e segs.; E SUDRE, La
Communauté européenne et les droits fondmnentaux apres le traité
d'Al1lsterdal1l, lCP 1998-1, pgs. 100 e segs.; O.c., La protectionjuridictionnelle des droits dans le systeme communautaire, Bruxelas, 1999;
A. CHUECA SANCHO, Los derechos fundamentales en la Unión Europea,
z.a ed., Barcelona, 1999; E SUDRE eH. LABAYLE (ed.), Réalité et perspectives du droit communautaire des droitsfondamentaux, Bruxelas, 2000;
l.-E AKANDlI-KoMBÉ e M.-I. REDOR (eds.), L'Union européenne et les
droits fondamentaux, Bruxelas, 1999, especialmente o artigo de l-E
FLAUSS, Droits de l'homme et relations extérieures de l'Unioll européenne, pgs. 137 e segs.; l-E FLAUSS (dir.), Les droits de l'homme dons
l'Ullioll eurapéenne, LPA juill. 1999, n."' 147, 148 e 149; E SUDRE,
L'apport du droit international et européen à la proteetion communau169
i
A União Europeia
taire des droits fondamentaux, cit., com excelente bibliografia; J.
RIDEAU, De la Communauté de droit à I'Union de droit, cit.; LulsA
DUARTE, A União Europeia e os direitos fundamentais. Métodos de protecção, Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias,
Coimbra, 2000, pgs. 11 e segs.; F. SUDRE, Le renforcement de la protection des droits de l'homme au sein de I'Union européenne, in Rideau
(dir.), De la Communauté de droit à I'Union de dro!t, pgs. 207 e segs.;
K. LENAERTS, Fundamental rights in the European Union, ELR 2000,
pgs. 575 e segs.; F. MODERNE, La notion de droU fondamental dans les
traditions constitutionnelles des États membres de l'Union européenne,
in Sudre e Labayle (dir.), Réalités et perspectives du droit communautaire des droits fondamentaux, cit., pgs. 35 e segs.; A. SALINAS DE FRIAS,
La protección de los derechos fundamentales en la Unión Europea,
Granada, 2000; P. QUASDORF, Dogmatik der Grundrechte der europiiischen Union, Francoforte, 2001; G. GORI e F. KAUFF-GAZIN, Les droits de
I'Homme à Nice, in V. Constantinesco, Y. Gautier e D. Simon (diL), Le
Traité de Nice - premieres analyses, cit., pgs_ 231 e segs.; C-P. BIENERT,
Die Kontrolle mitgliedstaatlichen Handels anhand der Gemeinschaftsgrundrechte, tese, Gõttingen, 2001; K. LENAERTS e E. DE SMIITER, A "Bill
ofRights" for the European Union, CMLR 2001, pgs. 273 e segs.; H. C.
KRÜGER e J. POLAKIEWICZ, Proposals for a Coherent Human Rights
Protection System in Europe, HRL 2001, pgs. 1 e segs.; A. DUSCHANEK
e S. GRILLER (eds.), Grundrechte für Europa, Viena, 2002; G.
a
COHEN-JONATHAN, Aspects européens des droits fondamentaux. 3. ed.,
Paris, 2002; ANA MARTINS, A Carta dos Direitos Fundamentais e os
direitos sociais, Estudos de Direito Público, Coimbra, 2003, pgs. 13 e
segs.; G. COHEN-JONATHAN, Universalité et singularité des droits de
l'l1omme, RTDE 2003, pgs. 3 e segs.; G. COHEN-JONATHAN e J. DUTHEiL
DE LA ROCHERE (dirs.), Constitution européenne, démocratie et droits de
[,homme, Bruxelas, 2003; J. ANDRIANTSIMBAZüVINA, Droits fondanumtaux communautaires et champ d'application personnel du droit
commullautaire, RAE 2003-200411, pgs. 55 e segs.; F. SUDRE, Droit
européel1 et international des droits de I'homme, 7.° ed., Paris, 2005; D.
a
EHLERS (ed.), Europiiische Grundrechte und Grundfreiheiten, 2. ed.,
Berlim, 2005; F. DE QUADROS, Constituição europeia e Constituições
nacionais - Subsídios para a metodologia do debate em torno do
Tratado Constitucional Europeu, O Direito, 2005, pgs. 687 e segs.;
PATRfclA MARTINS, Da Proclamação à garantia efectiva dos direitos
fundamentais, Lisboa, 2006; C. BLUMANN, Les compétences de I'Union
européenne en matiere de droits de I'homme, RAE 2006, pgs. 11 e segs.;
170
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
D. MARTIN, Égalité et non-discrimination dans la jurisprudence communautaire, Bruxelas, 2006; F. SUDRE (coord.), Droit communautaire des
droits fondamentaux, 2. a ed., Bruxelas, 2007; 1.-E RENUCCI, Traifé de
droit européen des droits de l'homme, Paris, 2007; 1. RIDEAU, La protectiol1 des droits fimdamentaux dans I'Union européenne - Perspectives
ouvertes par le Traitê de Lisbonne, RAE 2008, pgs. 185 e segs.; F. DE
QUADROS, A difícil adesão da União Europeia à Convenção Europeia
dos Direitos do Homem, Estudos Jorge Miranda, vol. V, Coimbra, 2012,
pgs. 87 e segs.
58. Preliminares
A evolução do sistema jurídico da União Europeia a partir dos
anos 90 tornou a matéria da proteção dos direitos fundamentais na
União Europeia numa questão nuclear daquele ordenamento jurídico, e por razões que, em grande parte, já ficaram referidas nas
páginas anteriores deste livro. Isso explica, inclusivamente, o facto
de esse ser, a par da questão constitucional da União, o domínio
onde mais e melhor bibliografia se tem produzido nos últimos anos
no Direito da União Europeia (com reflexos diretos no Direito Internacional Europeu dos Direitos do Homem e no Direito Constitucional Comparado sobre Direitos do Homem!63). Por outro lado,
verifica-se que, em muitos Estados-membros, tanto a prática constilucional, como a teoria e a prática da aplicação do Direito, neste
último caso, por via tanto legislativa, como administrativa, como
judicial, têm tido dificuldade em acompanhar a evolução do Direito
da União Europeia sobre direitos fundamentais. É, porventura, o
caso também de Portugal.
Por todas essas razões dedicaremos a esta matéria uma atenção
muito especial.
163 Ver, por todos, COHEN-JONATHAN, pgs. 5 e segs., e SUDRE, Droit européen
et international, pgs. 21 e segs.
171
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
A União Europeia
59. A proteção dos direitos fundamentais na Ordem Jurídica
Comunitária antes do Tratado da União Europeia
I - Os direitos fundamentais no início da integração europeia
A ideia da salvaguarda e da proteção dos direitos fundamentais,."
encontra-se presente no processo da integração europeia desde o seu!,
início. É certo que não constava dos Tratados institutivos das três,,.'
Comunidades, na sua versão original, nenhum preceito específico'"
sobre a matéria. Mas isso apenas queria significar que os autores'~
daqueles Tratados não consideravam esse preceito necessário num~;,
altura em que se iniciava uma mera integração económica e, ainda.;':
por cima, na sua fase inicial e embrionária, que era a da zona de!;';
comércio livre. Mas do silêncio dos Tratados não era legítimo con;";
J'i
cluir-se que já nesse período de lançamento e criação das Comuni<:
dades a salvaguarda dos direitos fundamentais fosse ignorada pelo~;r
fundadores da integração. Várias razões levam-nos a defender eSt;l,?
posição.
"
Primeiro, o Plano Schuman, de 1950, anunciava como objeti,i;
vos da integração europeia, como vimos, "a paz e a liberdade" e o·;',
Hprogresso económico e saciar'.
Depois, os Tratados institutivos das três Comunidades viefllll)1\
a adotar, como núcleo essencial do sistema jurídico comunitário,"ll,:
"quatro liberdades": as liberdades de circulação de mercadoriasI§ji;'
pessoas, serviços e capitais 165 A essas quatro liberdades podia, ell),!,
bom rigor, ser acrescentada, ainda na versão inicial dos Tratadoi;;
CECA, CEE e CEEA, uma quinta liberdade: a liberdade de concor,,'
rência, o que constitui uma forma como, logo no início, doutrin~l'
qualificada passou a estudar o chamado "Direito da Concorrência"j'
sobretudo da CEE, e que se encontrava contido, basicamente, fig,'
artigo 37.° e na Parte III, Capítulo I, do Tratado CEE. Ou seja,aq;
erguerem-se esses direitos económicos a "liberdades", o DireitQ'
Parte II, Título l, do Tratado CE.
"5 Pmte II, Título II, do Tratado CE,
164
172
Comunitário dava um forte sinal, logo na criação das Comunidades, de querer levar em conta e proteger os direitos fundamentais no
espaço comunitário. Essa conclusão é reforçada, se atendermos ao
facto de ser exatamente a liberdade de circulação de pessoas aquela
que maior profundidade assumia logo na versão inicial do Tratado
CEEI66.
Em terceiro lugar, varIaS preceitos dos Tratados institutivos
..;;reconheciam, logo no início, importantes direitos fundamentais aos
~!kcidadãos dos Estados-membros: a livre iniciativa privada e a não
,{discriminação em razão da nacionalidade (artigos 7.", 36.°, 2." parte,
;\;;220." e 221.° do Tratado CEE, na sua versão original), o direito de
~;:,;petiÇão (artigo 48.°, par. 2, CECAl, e o direito ao sigilo profissional
"'e' (artigos 214.° CE, 194.° CEEA e 47.", pars. 2 e 4, CECAl. Por seu
lado, os Tratados reconheciam aos lesados o direito à reparação dos
"danos causados pelas Comunidades no quadro da sua responsabili.i"',dade extracontratual (artigo 215.°, par. 2, CEE, 118.°, par. 2, CEEA,
~,e 34." CECAl. Além disso, ainda que implicitamente, o Tratado
,,,;,CEE admitia a existência de direitos sociais (veja-se o artigo 118.",
par. 1, CEE).
Mas, mesmo que os Tratados CECA, CEE e CEEA não conti,#;vessem uma cláusula expressa sobre a proteção dos direitos funda~lllentais, tinham-na os contemporãneos Projetas do Tratado sobre a
'1jOomunidade Europeia de Defesa e do Tratado sobre a Comunidade
Sgolítica Europeia, os dois, nos respetivos artigos 3.°. A circunstância
~e esses dois Projetos terem fracassado, nas circunstâncias que já
(jnhecemos, não nos impede de os trazer à colação para reforçar a
ese de que os direitos fundamentais não eram ignorados ainda na
da criação das Comunidades 167.
i;.
166
Vejam-se os artigos 48. 0 a 58. 0 da versão inicial do Tratado CEE.
167
No mesmo sentido da nossa posição, ver, entre as obras clássicas, H. P.
PSEN, pgs. 727 e segs., e PESCATORE, Les droits de I'homme, pgs. 630 e segs.;
pdemamente, ver, por todos, CHUECA SANCHO, pgs. 23 e segs., 1. VERHOEVEN,
34, GRABITZlHILF/NETTESHEIM, anotações ao artigo 6.° UE, e SUDRE, op. cit.,
139 e segs.
173
A proteção dos direitos jundamemais /la União Europeia
A União Europeia
II - A construção pela jurisprudência comunitária da proteção dos direitos fundamentais
Não foi preciso esperar muito tempo para que o TJ considerasse os direitos fundamentais como património jurídico das Comunidades. De facto, logo em 1969, no caso Stauder ''', ele acentuava
que "o respeito pelos direitos fundamentais (da pessoa humana) faz
parte dos princípios gerais de Direito cujo respeito (ele) assegura".
Logo a seguir, num dos mais célebres casos da jurisprudência comunitária, o caso lnternationale Handelsgesellschaft'69, aquele Tribunal acrescentava que "a salvaguarda desses direitos, inspirando-se
nas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, deve
ser assegurada no quadro da estrutura e dos objetivos da Comunidade".
A partir do caso Nold '70 , o TJ reforça a garantia dos direitos
fundamentais na Ordem Jurídica Comunitária porque, à invocação
das Constituições nacionais, acrescenta a referência à Convenção
Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). O mesmo caminho seria
seguido, quase em simultâneo, pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão, numa Declaração comum, de 5 de abril de
1977, onde eles se comprometem a, "no exercício dos seus poderes
e na prossecução dos objetivos das Comunidades Europeias", respeitarem os direitos fundamentais "tal como eles resultam nomeadamente tanto das Constituições dos Estados-membros como da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem".
O estado atual da jurisprudência da União, enquanto se aguarda
pelo seu pronunciamento após as inovações trazidas pelo Tratado de
Lisboa, pode ver-se bem retratado no caso Wachaufl7l, e resume-se
no seguinte excerto desse Acórdão: "(...) os direitos fundamentais
fazem parte integrante dos princípios gerais de Direito, cujo respeito
cabe ao Tribunal assegurar. Ao garantir a salvaguarda desses direitos, o Tribunal está obrigado a inspirar-se nas tradições constitucio>o. Ac. 12-11-69, Proc. 29/69, Rec., pgs. 419 e segs.
'" Ac. 17-12-70, Proe. 11170, Rec., pgs. 1.125 e segs.
'70 Ac. 14-5-74, Proe. 4173, Ree., pgs. 491 e segs.
'" Ae. 13-7-89, Proe. 5/88, CoI., pgs. 2.609 e segs.
174
nais comuns aos Estados-membros de tal forma que não são
admitidas nas Comunidades medidas incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelas Constituições desses Estados.
Os instrumentos internacionais relativos à proteção -dos Direitos
do Homem aos quais os Estados-membros aderiram ou com os
quais têm cooperado podem também fornecer indicações que convém tomar em conta no quadro do Direito Comunitário" (itálicos
nossos) 172.
Ou seja, para o TJ o âmbito dos direitos fundamentais que o
Direito da União tem de salvaguardar, forma um sistema global e
coerente, e é ditado pelas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros 173 e por todos os instrumentos internacionais sobre
Direitos do Homem nos quais os Estados-membros sejam partes
(inclusivamente, portanto, a Declaração Universal dos Direitos do
Homem e os Pactos das Nações Unidas de 1966 e demais tratados
multilaterais e bilaterais) ou com os quais "cooperem" (não estando
este vocábulo esclarecido mas também não sendo isso relevante),
destacando-se, entre eles, a CEDH. No caso Hoechst l74 , o TJ deixou
sublinhado que a CEDH se revestia, nas fontes do Direito Comunitário sobre direitos fundamentais, de "um significado muito particular", e, posteriormente, no caso Bausthalgewebe 17S , foi da opinião de que ela não obrigava apenas pela via dos princípios gerais
do Direito Comunitário porque constituía uma fonte autónoma do
Direito Comunitário l76 • Veremos isso adiante.
Ponto 17 do Acórdão.
Sobre este conceito complexo de "tradições constitucionais comuns aos
Estados-membros", que, nascido na jurisprudência no TJ, como se refere no texto,
vai atravessar o Direito das Comunidades e, depois, o Direito da União, até chegar
ao atual artigo 6. 0 , TI.o 3, UE, veja-se o muito bom estudo de MODERNE, pgs. 35 e
segs.
'" Ac. 21-9-89, Proes. 46/87 e 227/88, CoI., pgs. 2.859 e segs.
'" Ae. 17-12-98, Proe. C-185195, CoI., pgs.I-8.417 e segs.
176 Sobre a matéria deste número, veja-se, por último, LENAERTS/DE SMIJTER,
pgs. 273 e segs.
172
113
175
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
A União Europeia
III - Os direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito
Comunitário na perspetiva da jurisprudência consti·
tucional dos Estados-membros
,.
t
Note-se que, pela mesma época, e em paralelo, também a jurisprudência constitucional dos Estados-membros apelava para a
necessidade da proteção dos direitos fundamentais no âmbito das
Comunidades, indo ao ponto de fazer depender a aceitação do
primado do Direito Comunitário sobre os Direitos estaduais da
garantia, por parte daquele, de um grau de proteçâo dos direitos
fundamentais não inferior ao grau conferido pelos sistemas jurídicos nacionais: foi o que, concretamente, fizeram o Tribunal Constitucional Federal alemão ("Bundesverjassungsgerichf') no caso
Solange [177, Maastricht!78 e Bananenmarktordnung ("regulamentação do sector das bananas")!", e o Tribunal Constitucional italiano,
nos casos Frontini e Pozzani!8iJ e Granitap"·!82. O Tribunal Constitucional federal alemão aprofundaria essa construção no mais
recente, e já atrás referido, caso Lisboa!83.!".
m Já citado. Só fonnalmente é que, anos mais tarde, no caso Solange ll,
também já citado, o mesmo Tribunal suavizou a posição que adotara no caso
Solange I.
178 Já citado.
179 Despacho 6-7-2000, BVerfGE 200, pgs. 147 e segs. Veja~se, por último,
STREINZ, pg. 80.
,., Ac. 27-12-73, RTDE 1974, pgs. 148 e segs.
'"' Ac. 8-6-84, RTDE 1985, pgs. 414 e segs.
182 Veja-se esta matéria em JACQUÉ, pgs. 5S e segs..
183 Ac. 30-6-2009, cit., pontos 35 e segs.
184 Um estudo feito com rigor da jurisprudência do Tribunal Constitucional
alemão em matéria de direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito da União
até ao Tratado de Lisboa, sem ser em língua alemã, pode ver-se emJ. CARLOS CANO
MONTEJANO, La integraci6n europea desde el Tribunal Constitucional alemán,
Madrid, 2001, pgs. 158 e segs.
176
60. A proteção dos direitos fundamentais após o Tratado da
União Europeia
Só com o Tratado da União Europeia é que o Direito Comunitário originário viria a ter uma norma escrita e expressa sobre a
salvaguarda dos direitos fundamentais.
De facto, o artigo F CE, na redação dada pelo Tratado de
Maastricht (correspondente ao artigo 6. CE na redação de Nice),
estabelecia, no seu n. o 2:
0
A União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a
Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de
1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos
Estados-membros, enquanto principios gerais do direito comunitário.
Como se vê, o TUE acolhia e codificava, no essencial, a jurisprudência comunitária sobre a matéria!". De qualquer forma, o
preceito transcrito pouco mais trazia do que esse valor simbólico,
dado que ele, por si mesmo, não era suscetível de fiscalização pelo
TI, pois o artigo L (depois, artigo 46.°, na versão de Nice) do TUE
não lhe atribuía competência para o efeito.
No que diz respeito particularmente à Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, referida no citado artigo F, n. o 2, na redação de
Maastricht, nos trabalhos preparatórios do Tratado de Maastricht
havia sido especialmente discutido o modo como a Ordem Jurídica
da União passaria a encarar a CEDH: muito concretamente, se a
União Europeia deveria aderir àquela Convenção, o que, por mais
de uma vez, as Comunidades se haviam recusado a fazer. Também
aqui foi então entendido manter-se a posição até à data seguida pelo
TI, ou seja, a posição segundo a qual o TUE passaria a afirmar, de
forma expressa, que a CEDH vigorava na Ordem Jurídica da União
como um conjunto de princípios gerais de Direito Comunitário, mas
ficando excluída a adesão da União àquela Convenção.
185
Expressamente nesse sentido, por último,
177
RENUCCI,
pgs. 17 e segs.
A União Europeia
o problema da adesão da União à CEDH foi retomado pouco
depois. O TJ, no seu Parecer n. o 2/94 186 , entendeu que a adesão só
poderia ter lugar mediante prévia modificação dos Tratados. Por
isso, a questão foi discutida, mais profundamente do que nunca, na
Conferência Intergovernamental (CIG) que preparou a revisão de
o
Amesterdão. A CIG resolveu manter intocado o n. 2 do até então
artigo F, o que foi interpretado pela doutrinaiS?, e, a nosso ver, bem,
como tendo significado uma recusa implícita da adesão da União à
CEDH.
Todavia, a jurisprudência da União foi entretanto concedendo
relevância, na Ordem Jurídica da União, aos direitos elencados na
CEDH, embora pela via da fonte dos princípios gerais de Direito
Comunitário. As relações entre a União e a CEDH manter-se-iam
nesse pé até ao Tratado de Lisboa, que veio impor à União a adesão
àquela Convenção. Debruçar-nos-emos adiante sobre essa matéria.
61. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União
Europeia após o Tratado de Amesterdão
I - Introdução
O Tratado de Amesterdão veio reforçar profundamente a proteção dos direitos fundamentais na União Europeia. E fê-lo por
várias vias. Vejamos.
II _ O novo artigo 6.", n. o 1, do Tratado UE
Em primeiro lugar, afirmando, de modo expresso, o princípio
do respeito pelos direitos fundamentais como princípio constitucio0
nal da União. De facto, a redação totalmente nova do artigo 6.
(ex-artigo F), n. o 1, UE, levou este a dispor o seguinte:
I" 28-3-96, CoI., pgs. 1-1.759 e segs.
187 Veja-se, por todos, WACHSMANN, pg. 177, onde também se pode encontrar
uma bem fundada apreciação crítica daquele Parecer do TJ.
178
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
1. A União assenta nos princípios da liberdade, de democracia, do
respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem
como do Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados-membros (itálico nosso).
É certo que estes princípios escapavam ao controlo direto
dos Tribunais da União. E isto era assim porque o artigo 46. 0
(ex-artigo L), na nova redação que o Tratado de Amesterdão lhe deu,
e à qual nos referiremos daqui a pouco, veio conferir ao TJ competência para fiscalizar a aplicação do artigo 6. n. o 2, mas não do
artigo 6. o, n. ° 1. Mas isso, embora fosse evitável, pouco enfraquecia
a garantia judicial dos direitos fundamentais no quadro da União,
não apenas por força do sistema global dos Tratados em matéria de
proteção e garantia dos princípios consagrados no artigo 6. n. o 1,
como também pelo que vamos dizer a seguir.
0
,
0
,
III - A garantia dos direitos reconhecidos no artigo 6.
n. o 2, do Tratado UE
0
,
De facto, o artigo 6. 0 , n.O 2, reproduzia o artigo F, n. o 2,
que constava do TUE na versão do Tratado de Maastricht, e
que atrás transcrevemos. Mas com uma importante novidade: os
direitos fundamentais expressamente acolhidos pela União nessa
disposição concreta passavam agora a estar sujeitos ao controlo do
TJ. Assim vinha dispor, de forma expressa, o artigo 46." (ex-artigo
L), na sua alínea d. E esta era a segunda inovação trazida pelo Tratado de Amesterdão em matéria de proteção dos direitos fundamentais.
Com essa alteração trazida pelo artigo 46. aI. d, chegava-se a
um triplo objetivo.
Por um lado, passava a ter fundamento no próprio Tratado a
fiscalização pelo TJ do respeito pelos direitos fundamentais pela
União e pelas Comunidades. Dava-se, dessa forma, acolhimento
expresso à doutrina recordada pelo TJ no seu citado Parecer
n. o 2/94, segundo o qual "o respeito pelos Direitos do Homem cons0
,
179
A União Europeia
titui (...) uma condição da legalidade dos atas comunitários"I88. E,
como bem notam SIMON 1" e SUDRE I90 , daí resultava uma "integração
suave" do Direito da CEDH no bloco da legalidade de harmonia
com o qual o TJ controlava os direitos fundamentais na Ordem Jurídica da União.
Por outro lado, punha-se termo a uma situação absurda, que
fora criada pelo Tratado de Maastricht, e que podia ser interpretada
como uma subtração ao controlo do TJ da proteção dos direitos
fundamentais tal como ela já decorria até então da própria jurisprudência daquele Tribunal.
Por fim, ao se alargar, agora, na revisão de Amesterdão, por via
do novo artigo 46.°, aI. d, a fiscalização judicial da conformidade
dos atas da União e das Comunidades com os direitos fundamentais
a que se refere o artigo 6.°, n.' 2, punha-se termo à preocupação dos
Estados-membros, que, pelo Tratado de Maastricht, tinham transferido para a União poderes soberanos seus em matéria de direitos
fundamentais sem que o exercício desses poderes, desta forma
transferidos para a União, tivesse ficado expressamente sujeito à
garantia judicial efetiva da parte dos Tribunais da União.
Note-se, todavia, que todo esse progresso ficava limitado pelo
facto de os particulares não terem visto alargada a sua legitirtlidade
ativa para interpor o recurso de anulação, previsto no então artigo
230.° CE, e, concretamente, não ter sido criado um recurso direto
para os Tribunais da União pela violação de um direito fundamental
(uma espécie de queixa constitucional, à semelhança da "Verfassungsbeschwerde" alemã, ou do recurso de amparo espanhol), como
fora proposto pelo Relatório aprovado pelo Conselho Europeu de
Florença, de 21 e 22 de junho de 1996 191 .
188
Ponto 34.
'" Pg.351.
190 La Communauté européenne, pg. 100.
19' RTDE 1996, pg. 629.
180
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
IV - O novo artigo 49.°, par. 1, do Tratado UE
A terceira matéria em que o Tratado de Amesterdão veio inovar
em relação ao texto inicial do TUE em matéria de proteção dos
direitos fundamentais foi a constante do seu novo par. 1 do artigo
49.°. Passou a exigir-se que um Estado para aderir à União "respeite
os princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.°". Tratava-se, pois, de
uma condição para que qualquer Estado se tornasse membro da
União. Esse respeito encontrava-se sujeito à fiscalização dos órgãos
da União antes da conclusão das negociações de adesão, nos termos
fixados no artigo 49.°, par. 1.
Esta exigência tinha toda a justificação: já haviam então requerido a adesão, ou iam requerê-Ia, Estados da Europa Central e do
Leste, saídos há pouco de regimes ditatoriais, e, nos quais, portanto,
o nível de proteção dos direitos fundamentais era ainda muito baixo,
a começar em matéria de salvaguarda das minorias étnicas, bem
como Estados da bacia mediterrânica, como o Chipre e a Turquia,
onde perduravam crónicas situações de insuficiente proteção dos
Direitos do Homem.
V - O novo artigo 7.° do Tratado UE
A quarta alteração introduzida pelo Tratado de Amesterdão no
TUE no domínio da proteção dos direitos fundamentais consistiu na
introdução do novo artigo 7. 0 no TUE.
Esse preceito permitia ao Conselho, se este concluísse que um
Estado-membro incorria numa "violação grave e persistente, por
parte de um Estado-membro, de algum dos princípios enunciados no
n.o 1 do artigo 6.'" do TUE (ou seja, os princípios da liberdade, da
democracia, do respeito pelos direitos fundamentais e do Estado de
Direito), aplicar ao Estado em questão a sanção da suspensão de
"alguns dos direitos decorrentes da aplicação do (... ) Tratado ao
Estado-membro em causa, incluindo o direito de voto" desse Estado
no Conselho - foi o que passaram a dispor os n. OO I e 2 desse artigo
o. O não respeito por qualquer daqueles princípios (que, todos eles,
181
A União Europeia
se prendiam com a proteção dos direitos fundamentais, para além de
um deles se referir expressamente a estes) podia, desse modo, afetar
a participação plena do respetivo Estado na União.
Esses n." I e 2 disciplinavam o procedimento administrativo
de aplicação dessa sanção. Ele iniciava-se com a audiência do
Estado visado. Finda esta, o Conselho, reunido a nível de Chefes de
Estado e de Governo, e respeitado o procedimento regulado no n.o I
do artigo, poderia deliberar, se fosse o caso, que existia a referida
violação. Essa deliberação teria de ser tomada por unanimidade,
para a qual não contava o voto do Estado visado e as abstenções não
valiam como voto negativo, como dispunha o n.o 4 do mesmo
artigo. Uma vez aprovada essa deliberação, o Conselho, por maioria
qualificada (também aqui com respeito pelas regras de votação
enunciadas no n.o 4), podia aplicar ao Estado em causa a sanção
prevista no n.o 2 do referido artigo 7.°.
Uma vez decidida, a sanção podia ser alterada ou revogada nos
termos previstos no n. ° 3 do mesmo artigo.
A sanção aplicada no quadro da União Europeia ao abrigo do
artigo 7.°, n.o 2, do TUE, acarretava ipso iure a aplicação de igual
sanção no âmbito da Comunidade Europeia, por força do artigo
309.°, n.o 1, do Tratado CE, e nos termos estabelecidos nesse artigo.
Além disso, porém, nos termos do artigo 309.°, n.o 2, CE, o Conselho podia (tratava-se, aqui, de uma faculdade) cumular essa sanção
com a suspensão de "alguns dos direitos decorrentes da aplicação do
presente Tratado (o Tratado CE) a esse Estado-membro". Essa deli:
beração seria tomada por maioria qualificada e, pelo que resultava
do n. ° 3 do mesmo artigo, não afetava a condição do Estado como
membro da CE. Os n.O; 2 a 4 do artigo 309.° disciplinavam o procedimento da aplicação dessa sanção.
A razão pela qual o Grupo de Reflexão que preparou a revisão
de Amesterdão (o Grupo Westendorp) propôs a inclusão deste preceito no TUE prendeu-se com o então já previsível alargamento aos
Estados do Centro e do Leste da Europa.
Criou-se em certos sectores da opinião pública europeia a ideia
de que as sanções aplicadas à Áustria em 31 de janeiro de 2000, por
ocasião da ascensão ao Governo do Partido Liberal, de direita, e
182
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
durante a presidência da União por Portugal, o haviam sido ao
abrigo deste artigo 7.° UE.
Nada de mais errado. Aquelas sanções foram aplicadas, no
quadro do puro Direito Internacional, pelos outros catorze Estados-membros da União Europeia, como tais, à Áustria. Trataram-se,
pois, de sanções bilaterais aplicadas por esses cartorze Estados-membrosl 92 •
Aliás, se essas sanções tivessem sido aplicadas ao abrigo do
artigo 7.°, elas s6 o poderiam ter sido com respeito pelo procedimento previsto nos então n.O' I e 2 daquele artigo, o que não aconteceu: nem a Áustria foi ouvida, nem o Conselho se reuniu para
tomar as deliberações previstas nos n.O; I e 2 daquele artigo, nem se
respeitou a intervenção dos outros 6rgãos da União, nos termos exigidos pelo artigo 7.°, n.o 1.
E compreende-se que as sanções contra a Áustria não tivessem
sido aplicadas ao abrigo do artigo 7.°. É que este preceito pressupunha, para a aplicação da sanção prevista no então n. ° 2 daquele
artigo, a violação por um Estado-membro de algum dos princípios
do artigo 6.°, n.o 1, UE. Ora, a Áustria, como Estado-membro, não
violara qualquer daqueles princípios, nem alguma vez qualquer dos
outros Estados o alegara e demonstrara. O que se havia passado era
apenas que um dos partidos da coligação governamental tinha
defendido, durante a campanha para as eleições legislativas a nível
federal, princípios que feriam os direitos dos estrangeiros. Mas nem
esses princípios foram levados ao Programa do Governo, nem eles
foram aplicados pelo Estado, como tal.
Percebe-se, por isso, que a Comissão Europeia de imediato se
tenha recusado a conceber aquelas sanções como sanções da União
e, portanto, se tenha recusado a aplicá-Ias. E, pela mesma razão, se
compreende também que, meses volvidos, o "Grupo dos Três"
criado para estudar da conveniência, da necessidade e da eficácia
daquelas sanções, tenha proposto a revogação das mesmas, o que foi
)92 Assim, FROWEIN, na op. cil. na nota seguinte, pg. 20 (com a importância
especial que o depoimento deste Autor merece, pelas razões que serão daqui a
pouco indicadas).
183
A União Europeia
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
feito. Dessa forma repôs-se a legalidade no domínio da interpretação e da aplicação do artigo 7.° UE e, ao mesmo tempo, evitou-se
que se criasse o muito grave precedente de se punir um Estado apenas com base nas ideias que um partido político havia defendido
numa campanha eleitora!,93.
Em contrapartida, merecia destaque a circunstância de os
Estados-membros se mostrarem vinculados à Carta Social Europeia, mesmo sabendo-se que o Reino Unido ainda a não assinara à
data.
Este acolhimento da Carta Social Europeia e da Carta Comunitária dos Direitos Sociais pelo TUE, ainda que nas condições
limitadas em que ocorreu, devia ser entendido como englobando
todos os direitos sociais nelas assegurados, alguns dos quais se
encontravam elencados no artigo 136.°, par. I, CE, e, como tal,
vinha reforçar profundamente a dimensâo social da integração
europeia. Todavia, a não referência àqueles textos no artigo 6.°,
n.O 2, UE, impedia o controlo jurisdicional do respeito por aqueles
VI - Os direitos sociais
o quinto domínio onde O Tratado de Amesterdão introduziu
alterações em matéria de direitos fundamentais consistiu no acolhimento, de forma expressa, pelo TUE, dos direitos sociais.
De facto, no novo considerando 4.° do preâmbulo do TUE,
acrescentado pelo Tratado de Amesterdão, os Estados haviam confirmado "o seu apego aos direitos sociais fundamentais, tal como
definidos na Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de
outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989".
Recorde-se que a Carta Social Europeia foi aprovada pelo
Conselho da Europa e a referida Carta Comunitária foi aprovada
pelo Conselho Europeu, na sua reunião em Estrasburgo, em 1989.
Note-se, todavia, que o apego, dessa forma manifestado à
Carta Social Europeia, não deixava de estar rodeado de alguns equívocos. De facto, o preâmbulo do Ato Único Europeu continha referência àquela Carta; depois, porém, o TUE, na sua versão inicial,
ignorou-a, quer no preâmbulo, quer no artigo F, par. 2, quando este
se referia à Convenção Europeia dos Direitos do Homem; por
com o Tratado de Amesterdão, não podia deixar de causar estranheza o facto de ela, por um lado, ter passado a ser invocada
preâmbulo do TUE e, mais tarde, no artigo 136.° (ex-artigo 117.°)
CE, mas, por outro lado, continuar a ser ignorada no artigo 6.°
n. ° 2, do TUE, voltando a não aparecer aí ao lado da CEDR.
193 Todo este problema encontra-se esclarecido por um dos membros desse
"Grupo dos Três", FROWElN, Die Verklammerung der europaischen Union ais
fassungsgemeinschaft mit der EMRK, Festschfrift Trechsel, 2002, pgs. 17 e
(20-21).
184
direitos 194.
VII - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade,
segurança e justiça
o Tratado de Amesterdão também veio reforçar a proteção dos
direitos fundamentais através do alargamento da competência do TJ
no domínio da justiça e dos assuntos internos, por força dos artigos
46.°, aI. b, e 35.° UE. A comunitarização de parte do terceiro pilar,
isto é, a integração no pilar comunitário de parte do terceiro pilar
(ou seja, da cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos interque formavam o Título VI do TUE antes do Tratado de Amester,dã() veio estabelecer uma relação direta entre essa matéria e a
liberdade de circulação de pessoas, de forma a se poder alcançar
espaço de liberdade, de segurança e de justiça". A definição do
OlJllelIvo da prossecução deste espaço constituiu uma das maiores
ino,v""Õe" do Tratado de Amesterdão, como se podia ver pelo consid(:rarldo 11.° do preâmbulo e pelo artigo 29.° UE. E o preâmbulo,
referido considerando, era muito claro ao afirmar que a criação
194 Sobre este ponto, ver, especialmente, SUDRE, La Communauté européepgs. 9 e segs., e GIUBONN1, Diritti sociali e mercato, Bolonha, 2003, sobretudo
165 e segs.
185
A União Europeia
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
daquele espaço se encontrava ao serviço do aprofuudamento da
livre circulação de pessoas'''.
assim, merecem referência duas inovações importantes que aquele
Tratado trouxe.
A primeira consistiu na introdução de um novo n.o 1 no artigo
7.° do TUE, artigo esse que, como atrás mostrámos, havia sido integrado no TUE pelo Tratado de Amesterdão. Enquanto que, na versão inicial, aquele artigo, nos seus n. '" 1 e 2, possibilitava a aplicação
de sanções a um Estado-membro apenas em caso de "uma violação
grave e persistente" (portanto, uma violação consumada e reiterada), por parte do Estado, de algum dos princípios enunciados no
artigo 6.°, n.o 1, UE, ele, com a revisão de Nice, no seu novo n.o 1,
permitia a verificação da existência "de um risco manifesto de violação grave" de qualquer daqueles princípios L9'.
É certo que dessa forma ficava alargada a proteção dos direitos
fundamentais, imposta pelo artigo 6.°, n.o 1. Mas sublinhe-se que, na
situação do referido "risco manifesto de violação grave", ao Estado-membro em causa apenas podiam ser dirigidas "recomendações
apropriadas", confonne dispunha o novo artigo 7.°, n.o 1, e respeitado que fosse o procedimento aí regulado, do qual se destacava a
possibilidade de ser pedido um relatório prévio sobre a situação
concreta a personalidades independentes. A aplicação das sanções
previstas no artigo 7.°, n.o 3, depois da revisão de Nice (ex-artigo 7.°,
n.o 2, após o Tratado de Amesterdão) continuava a só ser possível
em caso de violação consumada e reiterada (melhor, "violação grave
e persistente") desses direitos: confronte-se o artigo 7.°, n.O' 2 e 3,
depois da revisão de Nice, com o artigo 7.°, n.O' 1 e 2, após a revisão
de Amesterdão. Por outro lado, enquanto que para a matéria do
artigo 7.°, n.o 2, continuava a ser competente o Conselho reunido a
nível de Chefes de Estado e de Governo, e deliberando por unanimidade, para o efeito do artigo 7.°, n.o 1, este contentava-se com a
intervenção do Conselho, e deliberando pela maioria qualificada aí
prevista.
Além disso, o Tratado de Nice manteve, nesse artigo 7.°, a previsão da violação dos princípios enunciados no artigo 6.°, n.o 1,
quando uma melhor proteção dos direitos fundamentais exigiria a
remissão do artigo 7.° também, e explicitamente, para os direitos fundamentais referidos no artigo 6.°, n.o 2. Em contrapartida, por força
da nova alínea e do artigo 46.° UE, as "disposições processuais"
previstas no artigo 7.° passaram a estar sujeitas ao controlo do TJ.
A segunda inovação trazida na matéria pelo Tratado de Nice
constava do novo artigo l81.°-A do Tratado CE. Em matéria de
"cooperação económica, financeira e técnica com os pafses terceiros", aquele artigo veio estabelecer, no seu n.° 1, par. 2, que "A
política da Comunidade neste domínio contribuirá para o objetivo
geral de desenvolvimento e consolidação da democracia e do
Estado de Direito, bem como para o objetivo de respeito pelos direitos humanos e das liberdades fundamentais" (itálicos nossos).
Embora a Comunidade já observasse esta conduta nas relações com
Estados terceiros (vejam-se, por exemplo, as Convenções de Lomé
com os Estados ACP, isto é, da África, das Caraíbas e do Pacífico),
o respetivo Tratado era até agora omisso sobre a matéria.
Note-se, todavia, que a Declaração n. ° 10, anexa à Ata Final da
Cimeira de Nice, introduzia uma restrição ao disposto no artigo
181.°-A, n.o 1, par. 2, restrição essa cuja razão de ser não se entendia, em face do espírito que presidia àquela disposição do Tratado l• 7•
Ver esta matéria desenvolvida, de modo especial, em W ACHSMANN, pgs.
180 e segs., LABAYLE, pgs. 105 e segs., e RENUCCI, pgs. 651 e segs. e 655 e segs.
196 Sobre a génese do novo artigo 7.°, n.o 1, veja-se FROWElN, op. cit., pg. 21.
m Para um apanhado global das diversas questões jurídicas suscitadas ao
longo dos dois últimos números, os o.OS 61 e 62, veja-se especialmente, até pela
sua atualidade, o comentário de GRABlTZ/HILF/NEITESHEIM ao artigo 6.°, n.O'< 1 e 2,
UE, bem como aos outros preceitos estudados no texto.
186
187
62. A proteção dos direitos fundamentais no Tratado da União
Europeia após o Tratado de Nice
o Tratado
de Nice preocupou-se pouco com a questão dos
direitos fundamentais. Os seus autores contentaram-se com as soluções encontradas na matéria na revisão de Amesterdão. Mesmo
195
A União Europeia
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
63. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:
remissão
II - O respeito pelos direitos fundamentais como valor da
União
Entretanto, em 7 de dezembro de 2000, o Parlamento Europeu,
o Conselho e a Comissão, através de uma primeira Proclamação
conjunta, aprovaram a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia. A União passava, dessa forma, a ter finalmente, em forma
escrita, o seu próprio rol de direitos fundamentais. Dizemos pri"
meira Proclamação conjunta porque, como veremos, a Carta volta-,
ria a ser novamente proclamada por aqueles três órgãos em 12 de.B:
dezembro de 2007 para o efeito de ser incluída nos Tratados pelo i;;
Tratado de L i s b o a . \
•
.
Dada a sua importância, e levando em conta as questoes mUlto,;,
complexas e difíceis que suscita, a Carta será por nós estudada, com .
pormenor, no Capítulo seguinte.
,',~!,
64. A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
após o Tratado de Lisboa
Até ao Tratado de Lisboa, e desde o TUE, o respeito pelos
direitos fundamentais já fazia parte da Constituição material da
Demonstrámo-lo atrás. E isso já era muito. Mas o Tratado de
conseguiu elevar ainda mais o grau daquele respeito no
substantivo da Ordem Jurídica da União. De facto, o respeito
direitos fundamentais é erguido a valor em que se funda a
,.,'uuoau - di-lo o já nosso conhecido artigo 2.° UE. E isso é obtido,
artigo, quer pela referência expressa ao respeito pelos direitos
quer através da referência a outros valores aí enuncia-
e dos quais o respeito pelos direitos fundamentais tem de ser
como um corolário: o respeito pela dignidade humana, a libera Democracia, a igualdade, o Estado de Direito, o pluralismo,
justiça.
E, tal como já sublinhámos atrás, refira-se que todos esses
;,Xvalores não são apenas valores da União, são "valores comuns" a
os Estados-membros.
Isto quer dizer que o respeito pelos direitos fundamentais, por
V"l"Qfe'a do novo artigo 2.° UE, atinge o superior alcance ontológico
valores que constituem o primeiro fundamento da União e do
sistema jurídico e político.
Mas o significado da inclusão do respeito pelos direitos fundaliiffJne'ltais no artigo 2.° UE não fica por aqui. Esse respeito projeta-se
toda a ação externa da União, na medida em que ele, visto como
da União, deve ser afirmado e prosseguido por esta nas suas
;relações com todo o mundo. Isso é, de modo muito claro, imposto
artigos 3.°, n. 5, e 21. n. o I, UE.
O
0
,
III - O novo eleuco dos direitos recouhecidos
Mas, como se disse, o Tratado de Lisboa também ampliou, de
muito sensível, o âmbito dos direitos fundamentais reconhecipelo Direito da União. Estes passaram a ter as seguintes fontes:
188
189
A União Europeia
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
a) Em primeiro lugar, a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia (artigo 6.°, n.o 1, UE). Repetimos: finalmente, a
União passou a ter, como há tanto tempo desejava, o seu próprio rol
de direitos fundamentais, sem ter que os pedir emprestados ao
Direito Internacional e ao Direito Constitucional dos Estados-membros.
Como já atrás prometemos, estudaremos a Carta, pela sua
importância, em capítulo autónomo, e logo a seguir a este capítulo.
Mas diremos, desde já, que ela, pela sua sistematização, pelo elenco
dos direitos enunciados e pelo método por ela escolhido para a proteção dos direitos, constitui porventura o documento jurídico mais
evoluído em todo o mundo sobre Direitos da Pessoa Humana
(expressão que desde há muito tempo preferimos a "Direitos do
Homem").
Direito da União provém de uma fonte quádrnpla: a Carta, o Direito
Internacional sobre Direitos do Homem, dentro deste último, de
modo especial, a CEDH, e as tradições constitucionais comuns aos
Estados-membros.
b) Em segundo lugar, a CEDH e as tradições constitucionais
comuns aos Estados-membros (artigo 6.", n." 3, UE). Na redação do
antigo artigo 6.°, n.o 2, UE, na versão de Nice, dispunha-se que os
direitos aí reconhecidos vinculavam a União como "princípios gerais
do Direito Comunitário". Atualmente, estabelece o artigo 6.°, n." 3,
UE, que eles "fazem parte" do Direito da União "enquanto princípios
gerais" (itálicos nossos). Os trabalhos preparatórios, quer do Tratado
Constitucional, donde esses preceitos provêm, quer do Tratado de
Lisboa, não nos pernútem compreender se a diferença de redação foi
intencional. E a questão não é irrelevante, porque os "princípios
gerais", entendidos como princípios gerais de Direito, são hierarquicamente superiores aos princípios gerais do Direito Comunitário.
Todavia, a questão perde relevância prática perante o que dispõe na matéria a Carta: ou seja, que ela "reafirma" (portanto,
absorve) os direitos, entre outros, da CEDH e das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros (5.° considerando do
preâmbulo da Carta) e, no confronto entre esses direitos, entre
outros, e os constantes da Carta, esta respeitará o nível mais alto de
proteção (artigo 53.° da Carta).
Dos preceitos citados da Carta e dos Tratados resulta que o
núcleo essencial dos direitos fundamentais reconhecidos pelo
190
c) Além disso, o Tratado de Lisboa resolveu incluir esparsamente, ao longo dos Tratados UE e TFUE, alguns direitos e grupos
de direitos, mesmo para além daqueles que se encontram diretamente integrados na cidadania da União, dos que decorrem dos
"princípios democráticos", enunciados nos artigos 9.° e seguintes
UE, e dos que constam, de alguma forma, da Carta. Alguns desses
direitos já constavam dos Tratados antes do Tratado de Lisboa mas
um pequeno número deles viu o seu conteúdo reformulado. Dentro
desses direitos merecem destaque: os direitos das pessoas pertencentes a minorias, o que, em nosso entender, tem de englobar os direitos
pertencentes às próprias minorias, sobretudo quando se pensa nas
minorias étnicas e culturais (artigo 2.° UE), a igualdade entre homens
e mulheres (artigo 3.°, n." 3, par. 2, UE), os direitos da criança (artigo
3.°, n.o 3, pars. 2 e 5,UE), os direitos sociais elencados no artigo 9.°
TFUE, o direito à não-discriminação (artigo 10.° TFUE), o direito ao
ambiente e ao desenvolvimento sustentável (artigo 11.° TFUE), a
defesa dos consumidores (artigo 12.° TFUE), o direito à proteção de
dados de carácter pessoal (artigo 16.° TFUE), o direito das igrejas,
associações e comunidades religiosas, bem como das organizações
filosóficas e não confessionais dos Estados-membros, à sua identidade e ao seu estatuto próprio (artigo 17.° TFUE), etc.
IV - Os direitos fundamentais e o espaço de liberdade,
segurança e justiça
Com a comunitarização total do antigo terceiro pilar, o espaço
de liberdade, segurança e justiça, tal como ele se encontrava previsto e regulado nos Tratados, na versão de Nice, aumentou o seu
campo de aplicação e também as suas ambições. Os autores dos
novos TUE e TFUE quiseram reforçar também, e proporcional191
A União Europeia
mente, a proteção dos direitos fundamentais naquele espaço. A ideia
que preside a este sistema é, sempre, a de se encontrar um permanente equilíbrio entre liberdade e segurança, de tal modo que esses
dois pólos se harmonizem e se completem em vez de um deles se
sacrificar ao outro, ou seja, em vez de a liberdade ameaçar a segurança ou de esta pôr em perigo a liberdade.
Nesse sentido, merecem ser destacados os novos artigos 3.",
n. OO I e 2, UE, e 67." TFUE, que, quanto ao espaço de liberdade,
segurança e justiça, vieram substituir os antigos artigos 2.", pars. I,
2 e 4, e 29.° UE e 61.° CE, na versão de Nice. Tem que se conceder
relevãncia à ênfase que os artigos 3.°, n.o 2, UE, e 67.°, n.o I, TFUE,
põem na necessidade de se respeitar os direitos fundamentais na
condução e na gestão do espaço de liberdade, segurança e justiça.
Os n."' 2 a 4 do artigo 61.° TFUE desenvolvem e pormenorizam essa
ideia, pondo especial destaque na necessidade de se proteger de
forma "equitativa" os nacionais de Estados terceiros e equiparando
a eles os apátridas. Num e noutro ponto, o Direito da União é, por
conseguinte, mais generoso do que o Direito Internacional clássico.
Compete aos Estados-membros, através dos respetivos sistemas jurídicos nacionais (artigo 67.°, n.o I, infine, TFUE), concretizar da melhor forma possível, e no respeito pelos Tratados, o
equilíbrio entre as tendências libertárias e securitárias, para que se
alcance o referido equilíbrio proporcionado entre liberdade e segurança, que é desejado pelos Tratados.
v - As alterações introduzidas no artigo 7.° do Tratado UE
O artigo 7.° do Tratado UE, na versão de Nice, sofreu algumas
alterações com o Tratado de Lisboa. Elas podem resumir-se
seguinte: o risco de violação ou a violação dos princípios enunciados no antigo artigo 6.°, n.o I, UE, é agora referido aos valores
artigo 2.° UE; no quadro do previsto no n.o I, o Conselho passa
poder dirigir recomendações ao Estado em falta; houve alterações
de índole institucional no procedimento previsto no n.o 2, a
importante das quais consistiu na substituição do Conselho
192
A proteção dos direitos fundamentais na União Europeia
Conselho Europeu; o n.o 5 do artigo alterou de modo significativo
as regras de votação aplicáveis ao caso.
Mas a mais importante das alterações introduzidas na matéria
consistiu na atribuição pelo novo artigo 269. ° TFUE de competência
ao TI para conhecer da legalidade dos atos praticados ao abrigo do
artigo 7.° UE, embora na.s condições aí previstas e com respeito
pelos reqUIsitos processuais aí referidos.
65. A Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia
Esta Agência foi criada em 2007 pelo Regulamento CE
n.o 168/2007, do Conselho, de 15 de fevereiro. Ela veio dar um
iIT,lportante contributo para a formação de um Direito Europeu dos
Dlr~ltos do Homem fundado na Carta e no conjunto dos demais
direitos fundamentais reconhecidos pelo Direito da União por força
do artigo 6.°, n.O 3, UEI9'.
. Inicialmente, os órgãos da União, sobretudo a Comissão,
haViam pensado para a Agência funções de controlo e de fiscalização. Mas a Agência ficou aquém disso. Ela visa apenas fornecer aos
órgãos e às instituições da União, bem como aos Estados-membros,
quando apliquem Direito da União, informações "objetivas, fiáveis
e comparáveis", e dar-lhes apoio com vista a se respeitar totalmente
os direitos fundamentais reconhecidos pelas referidas fontes 199
Desta forma, a Agência sucedeu ao Observatório Europeu dos Fenómenos Racistas e Xenófobos, criado em 1997200
A Agência tem personalidade jurídica própria. Ela deve cooper~ estreitamente com o Conselho da Europa, com as organizações
nao governamentais (ONG) e, de uma maneira geral, com a sociecivil, estabelecendo, para o efeito, uma "plataforma de direitos
. As suas atribuições poderão ser alargadas no
198 Ver o preâmbulo do Regulamento, n.o 1.
"'P
" bul o, pontos 2, 4 e 19, e artigo 2.°, 3.°, 4.° e 6.° a 10.° do Regularearn
mento.
200 Ver Regulamento CE n." 1652/2003, JO L 245, de 29-9-2003 ponto 33
"'P
' bulo, pontos 8, 19 e 27, e artigos 6.° a 10.° do Regulamento.
'
.
ream
193
A União Europeia
futuro de modo a abarcarem os direitos fundamentais no espaço
cooperação policial e judiciária em matéria penal'·'. E ela
articular-se, especialmente, com o Instituto Europeu para a Igualdade entre Homens e Mulheres, a ser criado ulteriormente.
A Agência atua com independência e encontra-se sujeita à
calização do Provedor de Justiça da União'·3
CAPÍTULO V
A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DA UNIÃO EUROPEIA
202
203
Preâmbulo, ponto 32.
Artigos 16. 0 a 19. 0 do Regulamento.
194
Bibliografia especial: para além da bibliografia indicada no
Capítulo anterior, ver, mais especificamente, A. BLECKMANN, Die Bindung
der Europaischen Gemeinschaftandie Europaische Menschenrechtskonvention, Colónia, 1986; F. DE QUADROS, A protecção da propriedade
privada pelo Direito Internacional Público, Coimbra, 1998, pgs. 517 e
segs.; G. COHEN-JONATHAN, La Charte des droits fondamentaux de
I'Union européenne, LPA2000, n.' 127, pg. 4; J. DUTHEIL DE LA ROCHÉRE,
La Charle des droits fondamentaux de 1'Union européenne: quelle
valeur ajoutée, quel avenir?, RMC 2000, pgs. 674 e segs.; 1. LIMBACH,
La coopération des juridictions dans la future arclzitecture européenne
des droitsfondamentaux, RUDH 2000, pgs. 369 e segs.; C. GREWE, Les
droits sociaux constitutionnels: propos comparatifs à l'aube de la
Charte des droits fondamentaux de l' Union européenne, RUDH 2000,
pgs. 85 e segs.; F. BENOlT-RoHMER (dir.), La Charte des droitsfondamentaux de I'Union européenne, número monográfico da RUDH 2000,
15-9-2000; H. HAENEL, L'élaboration d'ulle Clzarte des droits fOlldamentallx, cd. do Senado francês, Paris, 2000; European Charter of
Fundamental Rights, número especial da revista MJ 2001, TI. o 1; K.
LENAERTS e F. SMIJTER, The C/zarter and the role of lhe European Courts,
MJ 2001, pgs. 90 e segs.; R. MEDEIROS, A Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia, a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem e o Estado Português. Nos 25 anos da Constituição da
República Portuguesa de 1976, ed. da Associação Académica da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2001, pgs. 7 e segs.;
C. PICHERAL, L'ordre public européen - droit communautaire et droit
ellropéen des droits de 1'honune, Paris, 2001; G. FRANCO FERRARI Ced.),
195
A União Europeia
I diritti fondamentali dopo la Carta di Nina - Il costituzionalismo de~
diritti, Milão, 2001; L. FERRARI BRAVO, F. DI MAJO, A. RIZZO, Carta der
dirittifondamentali dell'Unione europea, Milão, 2001; G. BRAYBANT, La
Charte des droits fondamentaux de I' Union européenne, Paris, 2001; A.
FERNÁNDEZ TOMÁS, La Carta de derechos jundamentales de la Unión
Europea, Valência, 2001; S. GRECO, I dirittifondamentati nella Costitu., ', :'
;:.ione europea, RIDPC 2001, pgs. 187 e segs.; U. DI SERVIO, L'ambigflaS';',
relazione delta Carta dei dirittifondamentali nel processo di costituzio-::J:~'
nalizzazione dell'Union Europea, DP 2001, pgs. 33 e segs.; O.c., Carta/;
dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra, 2001; AO::F
VITORINO, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,>:':~'
Cascais, 2002; A. WEBER, La Carta de los derecllOs jundamentales de la{;~
Unión Europea, REDC 2002, pgs. 79 e segs.; ALBREClIT WEBER (ed.),:;~.
Charta der Grundrechte der europaischen Union, ed. trilingue, Muniquej:Fi
2002; J.-Y. CARLlER e O. DE SCHUTIER (dir.), La Charte des droitsfOlld~-\i;
mentaux de l'Ul1iol1 européenne, Brux.elas, 2002; M. NETIESHEIM, DIe:.,·
Charta der Grulldrechte der Europaischen Unioll - Herausforderullg
für den KOllvellt, Integration 2002, pgs. 35 e segs.; W. HEUSEL (ed.}.'
Grundrechtecharta und Verfassungsentwicklung in der EU, ed. tnhn~f
gue, Trêves, 2002; LuíSA DUARTE, A Carta dos Direitos Fundamentais.'
da União Europeia - natureza e meios de tutela, Estudos Isabel de
Magalhães Collaço, vol. I, Coimbra, 2002, pgs. 723 e segs.; L. ROSSl,4i
Carta dei diritti fondamentali e costituzione dell'Unione ellropea:.
Milão, 2002; N. PIÇARRA, A competência do Tribunal de Justiça da
Comunidades Europeias para fiscalizar a compatibilidade do Direit "
nacional com a CEDH - um estudo de Direito Constitucional, Coimb
Editora (ed.), Ab nno and omnes, 2002, pgs. 1.395 e segs.; R. MOUR
RAMOS, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a pro
tecção dos direitos fundamentais, Estudos Rogério Soares, pgs. 963
segs.; A. G. TOTH, The Charter of Fundamental Rights ofthe Europe.
Ullion, DJ 2002-1, pgs. 171 e segs.; J.-P. JACQUÉ, La eharte de, dro
fOlldamentaux de l'Union européenne, REDP 2002, pgs. 107 e s
LuíSA DUARTE, O Direito da União Europeia e o Direito Europeu d
Direitos do Homem: uma defesa do triângulo judicial europeu, Estud,
Marqnes Gnedes, Lisboa, 2004, pgs. 735 e segs.; H. JARRAS, D
EU.Grundrechte, Munique, 2005; F. DE QUADROS, Constituição europ
e Constituições nacionais, cit.; F. SEATZU, La Carta dei dirittifondam
tali: Un IlUOVO parametro di legittimità degli aui comunUari?, S ;
2007, pgs. 377 e segs.; LUCIA S. ROSSI, Les rapports entre la Chal1e de
droits fondamentaux et le traité de Lisbollne, Mélanges Jacqué, P .
196
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
2010, pgs. 609 e segs.; J. MEYER (ed.), Cf1arta der Gnmdrecht der europiiischen Union, 3. a ed., Baden-Baden, 2011; F. DE QUADROS, Rapport
introductif: la protection des droits fondamentaux en Europe avallt et
apres l'adhésion de I'Union europée1111e à la CEDH, in SIPE, Atas do
8.° Congresso, 2012, no prelo.
66. Introdução
No quadro da proteção dos direitos fundamentais na União
"Europeia merece importância especial a Carta dos Direitos FundaiJ'entais, por todos os motivos que já foram referidos e por aqueles
que adiante ficarão demonstrados. Por isso, vamos dedicar-lhe um
'Çapítulo autónomo.
ln.
A elaboração da Carta
As mesmas razões que haviam levado o TUE a aprofundar
no seu texto inicial e nas suas várias revisões, a
f9teção dos direitos fundamentais faziam com que os Estados·membros desejassem possuir depressa o seu próprio catálogo de
!jireitos fundamentais e integrá-lo no Tratado. Estariam, desse
,m9do, a Hconstitucionalizar" os direitos que pretendiam reconhecer
~os cidadãos da União20', o que significava muito mais do que a sua
, ndensação na cláusula do artigo 6.°, n.O 2, UE, na versão de Nice.
Jo se tratava de uma ideia nova, dado que pelo menos o Tratado
pinelli havia defendido a mesma solução.
., Por isso, o Conselho Europeu de Colónia, de junho de 1999,
,nc,arregou uma "Convenção" de elaborar uma Carta dos Direitos
,\Í11damentais "na qual fiquem consignados, com toda a evidência,
'i)llportância primordial de tais direitos e o seu alcance para os
. adãos da União".
,~1Jcessivamente,
204 Já em 1998 havíamos, fundamentadamente, defendido essa orientação
a nossa monografia A protecção da propriedade privada, cit., pgs. 529-530.
197
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
o método da elaboração da Carta escapava à diplomacia clássica e era desconhecido do Direito da União.
De facto, o Conselho Europeu de Colónia confiara o mandato
para o efeito a um "grupo" ou "corpo" ("enceinte", em francês, body,
em inglês). Foram os membros do Parlamento Europeu que iriam
fazer parte dessa assembleia, particularmente os alemães, que a fizeram auto-intitular-se de "Convenção" ("Konvenf', em alemão).;;
Como bem observa um dos mais ativos redatores da Carta, GUY ;'!.
BRAIBANT (que participou na Convenção como representante do Presidente da República e do Primeiro-Ministro da França)20', a escolha
da palavra "Convenção" significou um "gesto histórico": quis-se
aproximá-Ia simultaneamente das convenções revolucionárias francesas e da Convenção que redigiu a Constituição dos Estados Unidos.
A Convenção tinha uma composição quadripartida (o que
reforçava o seu carácter original no Direito da União): numa Europa
de Quinze, ela era composta por representantes dos Chefes d~ '},f
Estado e de Governo (em número de 15), do Parlamento Europe~;;:'
(16), dos Parlamentos nacionais (30) e por um representante dOá"
Presidente da Comissão Europeia, o Comissário António Vitorino.;·~
Tinha, portanto, ao todo, 62 membros. Com o estatuto de observa;}"
dores permanentes, com direito ao uso da palavra, participaram nel~.;:
dois representantes do Conselho da Europa, e um Juiz e um Advo;f'
gado-Geral do Tribunal de Justiça. A Convenção foi presidida por','
ROMAN HERZOG, que havia sido Professor de Direito Constitucion~l,;t
Presidente do Tribunal Constitucional Federal alemão e Presidente,i
da Alemanha.
.1;1
Como se disse, a referida composição mista da Convenção er(
original no Direito da União Europeia e conferia à Convenção uma,~
dupla "legitimidade mista": mistura de representantes de órgãoH
comunitários e estaduais, por um lado, e de representantes de goveri~
nos e de parlamentos nacionais, por outro, sem qualquer hierarqui~$'
entre eles. Designadamente, era a primeira vez que representantes<
dos parlamentos nacionais e do Parlamento Europeu se sentavant;í
lado a lado para participarem na prossecução de um projeto comum;.
f:.
Também o modo de funcionamento da Convenção foi original:
os cidadãos europeus e, de um modo geral, a sociedade civil
incluindo diversas ONGs, puderam, de modo generalizado e indiscri:
minado, tomar parte ativa nos seus trabalhos, através da Internet,
tendo a Convenção acolhido muitos contributos obtidos por essa via.
A Convenção levou a cabo os seus trabalhos desde dezembro
de 1999 até outubro de 2000, após o que concluiu um texto compor um preâmbulo e 54 artigos.
As cláusulas finais (conhecidas por "cláusulas horizontais")
entre o mais, que a Carta tinha como destinatários as
instituições e os órgãos da União, bem como os Estados-membros
quando aplicassem o Direito da União, e tinham o cuidado de deixar claro que ela não criava novas atribuições para a União ou para
Comunidade, nem alterava as atribuições que estas já tinham
51.°, n.O' 1 e 2) - o que teria exigido uma revisão prévia dos
'Tratad.os.
A caracterização da Carta na sua fase inicial
Não houve acordo na Convenção para que à Carta fosse dado
eal1Ícllerobrigatório, isto é, um efeito vinculativo para os seus desti'na'tários, sem prejuízo do que a esse respeito se dirá adiante, o que
logo inviabilizou a inclusão do texto da Carta no TUE, para o
se teria aproveitado a revisão levada a cabo no TUE em Nice.
isso, ela assumiu a forma de uma Proclamação solene do
il'llrl"m"ntoEuropeu, do Conselho e da Comissão, levada a cabo em
dezembro de 2000. Aqueles três órgãos introduziram no texto
da Carta pequenas alterações por confronto com o texto apropela Convenção. A Proclamação veio a obter, portanto,
fontes de Direito da União, a natureza jurídica de um acordo
Como tal, a Carta não se limitava a valer como uma mera
!gecla.ra\;ão política, despida de valor jurídico206 , mas reconheçamos
2(16
oe, Pgs.20-21.
198
Contra,
PIRIS,
The Lisbon Treaty, Cambridge, 2010, pg. 148.
199
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
que a sua força jurídica era fraca. Todavia, pela Declaração n.o 23,
respeitante ao futuro da Uuião, anexa ao Tratado de Nice, os Esta- "
dos-membros comprometeram-se a abordar o estatuto jurídico daUr
Carta no quadro do processo de aprofundamento da União Europeia;';
que ficou previsto que se iniciasse na Cimeira de Laecken/Bruxelas,''P
de dezembro de 2001, e que deveria concluir-se com a revisão dO',?,
TUB. Essa revisão esperava-se então que viesse a ser levada a cabo!;f
por uma Conferência Intergovernamental que deveria ser convocada';;
em 2004 (nos termos dos n.O' 4, 5 e 7 daquela Declaração). Mas,'
ficou decidido na Cimeira de Salónica, de junho de 2003, que o seu",
início seria antecipado logo para outubro desse ano, o que de factQ\
aconteceu.
expresso do Reino Unido, aceite pela CIG, que essas Anotações
foram incluídas no Tratado Constitucional, na referida Declaração,
e passaram a ser referidas no 5.° considerando do preãmbulo e no
52.°, n.o 7, da Carta. O objetivo das Anotações era o de, como
diz no seu Preâmbulo, valer como "um valioso instrumento de
int'~rpretaç1lo destinado a clarificar as disposições da Carta". Melhor
elas pretendiam ser um elemento coadjuvante da interpretação
Carta pelos Tribunais da União e dos Estados-membros, como
expressamente afirmado no artigo 52.°, n.O 7, da Carta.
Além dessa alteração, a CIG de 2003-2004 introduziu as
seguiint(~s modificações no texto da Carta que havia sido objeto da
"";JL~llI~'i~.u de 2000:
a) no elenco dos direitos reconhecidos pela Carta, o acesso, aí
69. A evolução da Carta até ao Tratado Coustitucional
A Convenção sobre o Futuro da Europa quis resolver depressa,'~
e em definitivo, o problema do estatuto jurídico da Carta e, sobre;;;
tudo, o seu grau hierárquico nas fontes de Direito da União. E, deI
modo pacífico;, decidiu incorporar a Carta no Tratado Constitucional',;'
para que ela tivesse força de Direito p r i m á r i o . , ; ;
Foi isso o que ela propôs à CIG. Essa CIG terminou, como j~;ii
sabemos,
com a assinatura
do Tratado"
Constitucional, emt
Roma, enl';
28 de outubro de 2 0 0 4 . ; ) . ,
O Tratado Constitucional continha, na Declaração anexa co1ll3
o n.o 12, Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentai~~
Estas Anotações haviam sido redigidas pelo Secretariado do Praesi;l;
dium da Convenção que aprovou a Carta, sob a supervisão desl~;'
Praesidium. Esse Secretariado foi assegurado pelo SecretariadR,j;
-Geral do Conselho e exercido pelo Professor JEAN-PAUL JACQ~~(
que à data era um dos Diretores do Serviço Jurídico do Conselho. ~;
intenção dessas Anotações ("Explanations", na sua versão inglesafJ.
era a de tornar o texto da Carta mais claro e dar a conhecer melhot>
as fontes que haviam sido levadas em conta na sua redação. Depois,;,
as Anotações foram aprovadas, com pequenas alterações, pelo Prael,:"
sidium da Convenção sobre o Futuro da Europa. Foi a pedido,!'
previsto, a documentos do Parlamento, do Conselho e da
Comissão, era alargado pelo seu artigo 42." a documentos
dos outros órgãos, instituições e organismos da União,
"seja qual for o suporte desses documentos";
b) insistia-se (redundantemente, em face do texto do artigo
51. ° da Carta, ao qual já nos referimos) no facto de a Carta
não alterar a delimitação de atribuições entre a União e os
Estados-membros, nem alargar as atribuições da União.
Portanto, não se modificava o regime vigente, segundo o
qual a União não tinha atribuições para legislar em matéria
de direitos fundamentais, o que, como atrás dissemos, só
poderia ser alterado por uma revisão dos Tratados20';
c) no artigo 52.° esclarecia-se a distinção que a Carta estabelecia entre "direitos" e "princípios". A Carta incluiu cerca
de cinquenta "direitos", "liberdades" e "princípios", e uma
das críticas que cedo lhe foram dirigidas consistia em que
ela não distinguia de modo suficientemente claro aqueles
conceitos. Agora, o n.o 5 desse artigo 52.° vinha dispor, nas
207
Como bem nota, entre outros,
JACQUÉ,
'\
200
pg. 64. O depoimento deste Autor
rev,est,'-se de particular importância em função do papel que, como vimos, ele
}#e,senlpenh(lU na elaboração da Carta.
201
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
palavras das Anotações acima referidas, e com itálicos nossos, que "os direitos subjetivos devem ser respeitados,
enquanto que os princípios devem ser observados (... ). Os
princípios podem ser aplicados através dos atos legislativos
ou de execução (adotados pela União de acordo com as
respetivas competências, e pelos Estados-membros apenas
quando estes executem legislação da União); assim, só se
tornam relevantes para os tribunais quando há que proceder à interpretação ou à revisão desses atas. No entanto,
não podem servir de fundamento a pedidos diretos que
exijam a ação positiva das instituições da União ou das
autoridades dos Estados-membros (... )". E, como exemplos de "princípios", e não direitos, consagrados na Carta,
aquelas Anotações indicavam os referidos nos artigos 25.°,
26.° e 37.° da Carta, louvando-se em jurisprudência já produzida à data pelo TJ.
70. A Carta no Tratado de Lisboa
tado Constitucional, que correspondia ao atual artigo 2.° UE. A
presidência alemã da União optou, no seu mandato de junho de
2007, por uma solução de compromisso: a Carta não ficaria formalmente integrada no Tratado mas o artigo 6.°, n.O 1, do Tratado UE
declararia expressamente que ela teria "o mesmo valor jurídico que
os Tratados", entenda-se, o TUE e o TFUE. E assim decidiu a CIG
de 2007. Seguindo essa orientação, a Carta foi novamente proclamada, em 12 de dezembro de 2007, pelo Parlamento Europeu, pelo
Conselho e pela Comissão, com a redação que lhe havia sido dada
pela CIG de 2004, trazendo em anexo as Anotações a que já nos
referimos atrás 20S •
Também ficou decidido por essa CIG, de 2007, que o mesmo
artigo 6.°, n.O 1, teria uma redação que desse a entender que a referência nele à Carta englobava essas Anotações 20'. E foi assim que o
artigo 6.°, u.O 1, UE, ficou redigido.
Como atrás vimos, estabeleceu-se agora, no artigo 6.°, n.O 3,
UE, a vigência na UE dos direitos fundamentais contidos na CEDH
enquanto "princípios gerais" por confronto com o ex-artigo 6.°,
n.o 2, UE, infine. 'Essá prescrição só faz sentido enquanto a UE não
aderir à CEDH. Depois da adesão, os direitos contidos na CEDH
obrigarão a União, obviamente, como lei escrita e não apenas como
princípios gerais.
A CIG incluiu em anexo ao Tratado de Lisboa um Protocolo
relativo à aplicação da Carta à Polónia e ao Reino Unido. De harmonia com esse Protocolo, o Direitº intern9,dagueles doisEstados
prevalecerá selllpre sobre a Cartá:-Dito de outra f'()rrná:üs direitos,
asli!''''cla:<íes~()s_pi}!1ç;míoüe~()'!l1e;'idospela Carta só serão aplicados àqueles dois Estados quando nãü'foremlncoml'atívéiscom o
Uma minoria de Estados, com o Reino Unido à frente, atribuiu
o fracasso da ratificação do Tratado Constitucional à inclusão da
Carta no seu texto. A grande maioria deles, contudo, defendeu que
a inclusão da Carta no Tratado constituía uma das grandes
mais-valias da revisão dos Tratados que estava em curso e que ela
era a única solução compatível com a inclusão do respeito pelos
direitos fundamentais como valor da União, no artigo 1_2.° do Tra-
Ver os dois textos em JO C 303, de 14-12-2007, pgs. 1 e segs. e 17 e segs.
Sobre as vicissitudes da Carta após a sua aprovação pela Convenção que
a redigiu e até ao Tratado de Lisboa, ver, das obras mais recentes, PIRIS, op. cit.,
pgs. 146 e segs., e M. 1. RANGEL DE MESQUITA, A União Europeia após o Tratado
de Lisboa, Coimbra, 2010, pgs. 75 e segs. Nós completámos o que aqui fica dito
no texto, com o nosso artigo nos Estudos Jorge Miranda, vaI. V, cit., e com o nosso
Rapport introductifao 8.° Congresso da SIPE, cit.
202
203
Dito de outra forma, os princípios têm de ser atendidos na
interpretação e na aplicação de atos legislativos e de execução praticados pelos órgãos, instituições e organismos da União e por atos
dos Estados-membros quando estes apliquem o Direito da União, no
exercício das respetivas atribuições, bem como na fiscalização da
sua legalidade. Não podem, todavia, ser invocados como fundamento de pretensões dirigidas aos órgãos, instituições ou organismos da União ou a autoridades dos Estados-membros.
208
209
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
respetivo Direito interno. Vão no mesmo sentido as Declarações
n." 62 e 63 da Polónia, anexas ao Tratado de Lisboa.
Além disso figura também em anexo àquele Tratado uma outra
Declaração, esta, com o n.o 53, da República Checa, que reafirma a
intenção da Cartáde'n3:o criar novas atribuições para a União.
71. O conteúdo da Carla. Em especial, os direitós nela reconhecidos
I - A importância do conteúdo da Carta
A Carta constitui, no plano internacional, sem dúvida, o mais
ambicioso e o mais elaborado texto jurídico sobre Direitos da Pessoa _ englobando nós neste lugar, nesta expressão, os direitos, as
liberdades e os princípios nela contidos. E por várias razões.
Em primeiro lugar, porque é o primeiro texto que compila,
simultaneamente, direitos civis, políticos, sociais, culturais e económicos. Daí resulta não apenas a vantagem da amplitude dos direitos
reconhecidos pela Carta mas também, e sobretudo, a vantagem da
afirmação da incindibilidade desses direitos: no Mundo moderno os
Direitos do Homem (e a própria Paz mundial) só ficam devidamente
protegidos se se afirmar o carácter inseparável dos direitos civis,
políticos, sociais, culturais e económicos da Pessoa Humana. Logo
por aqui, a Carta demonstra a sua superioridade em relação a outros
textos clássicos do Direito Internacional sobre Direitos do Homem:
ela, sozinha, representa o somatório da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, de 1948, e dos Pactos das Nações Unidas, de
1966, mas com a vantagem de que atualiza a formulação, o conteúdo e o alcance dos direitos elencados nesses textos e completa-os
com "direitos novos"; ela, sozinha, vai muito para além da C()O\len·
ção Europeia dos Direitos do Homem e dos seus Protocolos, que
coligem os direitos civis e políticos e, tantas vezes, de modo incom-;
pleto, imperfeito e, também aqui, desajustado ao contexto do mundoj,
contemporâneo, pese embora todos os progressos registados desde/I,
o texto inicial da Convenção, de 1950.
Em segundo lugar, o arrolamento dos direitos pela Carta
encontra-se, logo à partida, valorizado pelo facto de os direitos fundamentais serem apresentados como emanação de valores-chave
que se encontram vertidos, cada um deles, numa única palavra, ~
de forma mUlto expreSSIva, que ultrapassa largamente a já gasta e
ultrapassada (e,por isso, já não motivadora) trilogia da Revolução
Francesa, da LIberdade-Igualdade-Fraternidade: referimo-nos aos
valores da dignidade, das liberdades, da igualdade, da solidariedade, da cidadania e da justiça. Mais do que serem vistos como um
modo de agru?ar e aglutinar os direitos reconhecidos pela Carta,
esses valores tem de passar a ser considerados como valores básicos
. de tod? o ordenamento jurídico da União, reconduzíveis aos valores
enunCIados no artigo 2." do Tratado UE.
. Em terceiro lugar, é certo que a Carta, logo no seu preâmbulo,
afIrma a sua função codificadora e enuncia até as fontes onde foi
buscar os direitos por ela reconhecidos. Diz ela no parágrafo 5 do
seu ~reâmbulo, "~pr.esente Carta reafirma, no respeito pelas atribUlçoes e comperenclas da Comumdade e da União e na observância do princípio da subsidiariedade, os direitos que decorrem,
~lOmeadamente, das tradições constitucionais e das obrigações
InternaClOnalS comuns aos Estados-membros, do Tratado da União
Europeia e d~s Tratados comunitários, da Convenção Europeia
pa:a a proteçao dos dlYeltos do Homem e das liberdades fundamentalS, das Cartas Sociais aprovadas pela Comunidade e pelo Conselho da Europa, bem como da jurisprudência do Tribunal de Justiça
das Comumdades Europeias e do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem" (itálicos nossos). Por isso, era desnecessário a Declaração
n." I anexa ao Tratado de Lisboa vir reafirmar a função codificadora
levada a cabo pela Carta em relação àquelas fontes de direitos fundam~~tais bem como o facto de ela não criar novas atribuições para
a Umao.
Isto significa que a Carta nasceu com o intuito muito ambicioso de codificar os direitos consagrados nos referidos textos das
Nações Unidas, na CEDH e nos seus Protocolos, nos Tratados da
Umão e das Com~nidades, na jurisprudência quer do TJ, quer do
TEDH, e nas tradIções constitucionais comuns dos Estados-mem205
204
A União Europeia
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
bros. A Carta veio, portanto, integrar no Direito da União todas
essas fontes de Direito em matéria dos direitos fundamentais. Por
isso, todas elas devem ser consideradas como fazendo parte do
adquirido da União no domínio dos direitos fundamentais. No que
toca especificamente às tradições constitucionais dos Estados-membros, deve-se entender, como escrevemos noutro lugar2lO , que este é
mais um domínio em que não há antinomia, pelo contrário, existe
uma relação de complementariedade, entre as Constituições estaduais e o Direito da União.
Todavia, nessa função codificadora, a Carta fornece resposta às
exigências aruais da proteção dos Direitos da Pessoa, ao acolher, ao
lado dos direitos clássicos, os direitos "novos" e até "novíssimos",
isto é, direitos que, no seu rótulo e no seu conteúdo, são direitos da
2." e da 3." gerações. Ou seja, a Carta é um texto moderno e foi elaborado para o século XXI.
Por fim - e esta é a quarta razão - a Carta não reconhece direi"
tos apenas aos nacionais dos Estados-membros mas, sim, a todas
pessoas sujeitas à sua jurisdição. É assim que deve ser inlterpn'talio
o 7.° considerando do seu preâmbulo, embora ele pudesse ter
mais claro, na linha, por exemplo, do artigo 1.0 da CEDH211 .
via, dessa extensão subjetiva têm de ficar excluídos os direitos
a própria Carta prende à cidadania da União e que, pelo seu
estão reservados aos "cidadãos da União": é o caso dos diJ'eitos
referidos nos artigos 39.°, 40. e 46.° da Carta.
que nos direitos que arrola (ou na sua nomenclatura, ou no seu conteúdo), a Carta apresenta as seguintes inovações"':
0
II - Os direitos reconhecidos pela Carta
No que diz respeito aos direitos concretos reconhecidos
Carta, e para se comparar o carácter muito evoluído do seu
teúdo, se se tomar como referência os textos internacionais
referidos, e, particularmente, o que se encontra mais próximo
Carta, e que é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
210
211
Constituição europeia e Constituições nacionais, cit., pgs.
Assim, por ex., VITORINO, pg. 26.
206
no artigo 1.0, a menção da dignidade do ser humano como
um direito fundamental autónomo e como absolutamente
"inviolável". Deve-se entender que este direito concretiza o
valor da dignidade humana, que, como atrás estudámos,
consta hoje do artigo 2. UE;
no artigo 2.°, n. o 2, a proibição absoluta da pena de morte e
da execução;
no artigo 3.°, a consagração do direito à integridade, física e
mental, do ser humano, que impõe, no campo da medicina
e da biologia, o respeito pelas exigências enunciadas no
n. o 2 desse artigo, inclusive a proibição absoluta de práticas
eugénicas e de clonagem reprodutiva dos seres humanos 213 ;
no artigo 5.°, n.o 3, a proibição do tráfico de seres humanos;
no artigo 6.°, o direito de todos "à liberdade e à segurança".
A junção num só direito dos dois direitos, um, à liberdade,
outro, à segurança, quer significar que a Carta pretendeu encontrar um equilíbrio proporcionado entre os dois:
não há liberdade sem segurança, não há segurança sem
liberdade;
no artigo 7.°, o reconhecimento do direito ao respeito pela
vida privada e familiar, inclusive no domínio das "comunicações";
no artigo 8.°, o reconhecimento do direito à proteção de
dados pessoais;
no artigo 9.°, a menção ao direito de contrair casamento e de
constituir família;
0
212 Sobre a fonte de cada artigo da Carta e, concretamente, de cada direito
consagrado, veja-se: o documento CONVENT 49, de 19-10-2000; as atrás
,.f,·';"__ Anotações; com a sua experiência da participação na Convenção, VITOpgs. 29 e segs.; FERRARI BRAVO, pgs. 3 e segs.; e o Comentário de MEYER, cit.
213 Veja-se sobre este direito, 1. POUSSON-PETIT, L'identité de la personne
nu,maln, - Étude de droit français et de droit comparé. Bruxelas, 2002.
207
A União Europeia
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
no artigo 10.°, n.o 2, a previsão do direito à objeção de cons-
no artigo 24.°, o reconhecimento às crianças de um direito
ao bem-estar Ce não apenas, como nos textos clássicos, de
um direito a uma vaga "proteção"). Este direito tem de ser
completado com a proibição do trabalho infantil e da exploração económica dos jovens, constante do artigo 32.°;
no artigo 25.°, a concessão às pessoas idosas do direito "a
uma existência condigna e independente" Ce não, outra vez,
a uma simples e platónica "proteção da terceira idade");
no artigo 26.°, o reconhecimento aos deficientes do seu
direito à autonomia, à integração e à participação na vida
social Ce não a uma abstrata "proteção");
ciência~
no artigo 11.°, n.o 2, a garantia do respeito pela liberdade e
pelo pluralismo dos meios decomunicação soc:al; •
no artigo 12.°, a previsão da liberdade de reumao pacIfica e
de associação "a todos os níveis", e, no caso dos partidos
políticos, especialmente ao nível da União, isto é, partidos
europeus;
no artigo 13.°, o reconhecimento da liberdade no campo
artístico, no da investigação científica e no da "liberdade
académica";
no artigo 14.°, a previsão do direito à formação profissional
nos artigos 28.° e 30.°, a concessão aos trabalhadores do
e contínua e o direito dos pais de assegurarem a formação e
o ensino dos seus filhos em plena liberdade, isto é, de
acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e
pedagógicas;
. .
no artigo 15.°, no n.o I, o reconhecimento do dueIto de tra-i)
balhar e de exercer uma profissão que tenha sido livremente);
escolhida ou aceite, e, no n.o 3, a garantia, em matéria de:!'
condições de trabalho, do princípio da iguald~~e entre
nacionais de Estados terceiros e de Estados da Umao;
1.
no artigo 16.°, a menção da liberdade de empresa;. , ' ,
no artigo 17.°, a exigência, em caso de expropnaçao por.o'
utilidade pública, de "justa indemnização" Cdeve enten-,?
der-se que calculada segundo o valor de mercado do bem,::?:
como postula o Direito Internacional) e paga "em tempo!.
útil"214, bem como a proteção da propriedade intelectual;:
no artigo 18.°, a previsão do direito de a s i l o ; : : :
nos artigos 20.°, 21.° e 23.°, por um lado, uma ampla comO,!'
plementariedade entre a igualdade e a não-disc.rimimção'J
inclusive, a não-discriminação em razão da naCIOnalidade,;;
e, por outro lado, a autonomização da igualdade, para todOS!i
os efeitos, entre homens e m u l h e r e s ; > ; !
direito à negociação coletiva e, se for caso disso, do direito
à greve, bem como da proteção contra os despedimentos
sem justa causa;
no artigo 31.°, n.O I, o reconhecimento aos trabalhadores de
condições de trabalho saudáveis, seguras e dignas;
no artigo 32.°, para além do que já se disse atrás, a previsão
de proteção especial para os jovens no trabalho;
no artigo 33.°, a garantia de proteção plena à família ("nos
planos jurídico, económico e social"), do direito de todos
poderem conciliar a vida familiar e a vida profissional e do
reforço da proteção da maternidade e da paternidade215 ;
no artigo 34.°, no n.o 1, a garantia do "direito de acesso" às
prestações de segurança social e aos serviços sociais aí previstos, embora se conceda relevância na matéria aos Direitos nacionais; e, no n.o 3, o reconhecimento do direito a uma
assistência social que assegure uma existência condigna
especialmente aos mais carenciados, e, nomeadamente, o
reconhecimento do direito à ajuda à habitação - tudo isto,
com vista a "lutar contra a exclusão social e a pobreza";
no artigo 35.°, a previsão de um "elevado" (e não qualquer)
nível de proteção da saúde humana;
'r
214 Veja-se o nosso estudo A protecção da propriedade privada, cit., pg~/~
299 e segs., 354 e segs. e 362 e segs.
208
215
Veja-se, ainda que no quadro da CEDH, a monografia de
SUDRE,
:cm respect de la vie familiale au sens de la CEDH, Bruxelas, 2002.
209
Le droit
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
no artigo 37.°, o reconhecimento da necessidade de se promover um "elevado" (e não qualquer) nível de proteção do
ambiente, mas não o radicalizando, antes pelo contrário,
conjugando-o com o "princípio do desenvolvimento sustentável";
no artigo 38.°, o reconhecimento de um "elevado" (e não
qualquer) nível de defesa dos consumidores;
no artigo 4 (', a previsão do direito a uma boa administração, o que vai muito para além do dever imperfeito
(portanto, sem tutela jurisdicional) de boa administração,
que o Direito Administrativo de alguns Estados de matriz
administrativa francesa impõe às respetivas Administrações Públicas. E note-se no conteúdo particularmente rico
que a esse direito é concedido nos quatro números desse
artigo;
no artigo 42.°, o reconhecimento a todo o cidadão da União
e a toda a pessoa, singular ou coletiva, residente na União,
do direito de acesso a documentos de todos os órgãos e instituições ou quaisquer organismos da União, "seja qual for
o suporte desses documentos" - ou seja, nesta matéria, a
mais ampla concretização possível do princípio da abertura
e da transparência;
no artigo 47.°, indo-se muito mais longe do que nos artigos
6.° e 13.' da CEDH, o reconhecimento de um amplo direito
de acesso a qualquer tribunal, para se fazer valer quaisquer
direitos subjetivos reconhecidos pelo Direito da União,
inclusive, direitos políticos;
no artigo 49.', n.O I, a permissão de aplicação retroativa da
lei que preveja uma pena mais leve e, no n.o 3, a imposição
da proporcionalidade das penas em relação aos crimes;
no artigo 50.°, a extensão da proibição do princípio ne bis in
idem, em Direito Penal, a todo o espaço da União, isto é, a
proibição do julgamento ou da punição penal por delitos
pelos quais a pessoa em causa já tenha sido anteriormente
julgada ou condenada, mesmo se por outro Estado da
União.
210
72. O valor jurídico da Carta
Quanto ao seu valor jurídico, a Carta suscitou, entre a sua primeira Proclamação, de 2000, e a sua integração jurídica no Tratado
de Lisboa, duas questões importantes e que eram controversas em
certos meios jurídicos: a do seu carácter jurídico, ou da sua juridicidade, e a da sua força obrigatória ou vinculativa.
Quanto à primeira questão, queria-se discutir se a Carta era um
ato jurídico ou uma mera declaração política. Quanto à segunda
questão, punha-se em causa se ela obrigava ou se ela, ao contrário,
constituía um texto meramente facultativo.
Remetemos o leitor para o que, de modo desenvolvido, escrevemos sobre as duas questões nas duas edições anteriores deste
livro, ambas dadas à luz, recordamo-lo, antes da entrada em vigor
do Tratado de Lisboa. Com a entrada em vigor deste Tratado, essas
duas interrogações deixaram de ser objeto de controvérsia e obtiveram uma resposta clara e definitiva.
Assim, no que toca ao carácter jurídico ou não da Carta, o
Tratado UE é claro. Segundo o já referido artigo 6.', n.' I, a Carta
consiste num catálogo de direitos, liberdades e princípios que tem o
mesmo valor jurídico do Tratado. Ou seja, ela tem a força de um
tratado internacional. Por conseguinte, ela consiste num acordo de
natureza jurídica.
Por sua vez, quanto à segunda questão, todas as dúvidas que se
podelimll colocar quanto ao carácter vinculativo da Carta após a sua
pf()c1:lInaç~io de 2000 (e que não nos impediram, nas duas edições
anteriores deste livro, de concluir pelo carácter obrigatório da Carta,
base inclusivamente na prática da União e na jurisprudência
co,nstitlJcional dos Estados-membros 2!6), ficaram dissipadas com o
de Lisboa. A Carta obriga nos mesmos moldes em que o
Tratad'Js UE e TFUE obrigam.
E isso impõe-nos que coloquemos, de imediato, o problema
destinatários da Carta.
216
!>lItlTKY.
Nas obras recentes pode ver-se essa situação bem retratada em PRIOLLAuol
pg. 452.
211
A Carta dos Direitos FUlldamemais da Ulliüo Europeia
A União Europeia
73. Os destinatários da Carta
Segundo o já referido artigo 51.°, n.o I, da Carta, esta obriga;c;{
antes de mais, todos os órgãos, as instituições e os organismos d~! '
União, no respeito pelo princípio da subsidiariedade. A referênci~:c
aqui ao princípio da subsidiariedade tornava-se desnecessária e'l[!
face da cláusula do nível mais alto de proteção contida no artigo 53;?::
da Carta. Ou seja, já resultava deste preceito que a Carta só é apU'.;
cável à União se for ela - e não qualquer das outras fontes de Direi!9!
indicadas naquele artigo - a conceder, no caso concreto, o mais alt!i;
nível de proteção ao direito em causa.
c'.i!J
De qualquer modo, decorre da 2.' parte do mesmo n.o I 10'
artigo 51.° e do n.o 2 do mesmo artigo que a aplicação da Carta aq~',
órgãos, às instituições e aos organismos da União não deve desresg.
peitar a delimitação vigente das atribuições entre a União e O!;:
Estados-membros, nem deve levar à criação de novas atribuiçõe§(
para a União.
Depois, a Carta também se aplica aos Estados-membros, mas/
com uma grande limitação: só quando eles apliquem o Direito ~I'
União. Fora dessa situação os Estados não estão obrigados pel~i
Carta.
'"
Logo por aqui se vê que, como observa PIRIS 217 , que, repetimos',
participou de modo ativo na redação da Carta, esta ainda está longi
de ser a Bill of Rights da União. Para que o fosse, os seus direitoj.
deveriam ser invocáveis na União por todos os cidadãos da Uniã?
contra qualquer ofensa que contra eles fosse dirigida por qualq~~I.
autoridade da União ou dos Estados-membros.
Por isso, convém não se exagerar no âmbito objetivo e snbj~}
tivo de aplicação da Carta e, por essa via, na sua relevãncia prátiç~,
Há aí ainda um longo caminho a percorrer. Nada disso prejudicaip,
que atrás se disse: a Carta significou um muito sensível progresf
na proteção e na salvaguarda dos direitos fundamentais na Uni~o
Europeia.
Por fim, são destinatários da Carta todas as pessoas que estiverem sob a jurisdição dos Estados-membros, salvo quanto aos direitos que, pela sua natureza, deverão ser considerados como estando
;.intrinsecamente ligados à cidadania da União, caso em que estes
!;deverão ser reservados a quem goze da referida cidadania da União.
(Já vimos isso atrás.
Problemas específicos da interpretação e da aplicação da
Carta
Para além do que foi referido no número anterior a Carta sus-
etta alguns problemas específicos de interpretação e aplicação que
têm de ser analIsados. Eles constam dos artigos 52. 0 e 53.° da Carta
. ~vamos examiná-los de seguida.
a) Distinção entre direitos e princípios
_..
Já atrás nos referimos a esta distinção, que não constava do
inicial da Carta. Ela figura na epígrafe do artigo 52.° e no
~.q5 desse artigo. Explicámos como é que os princípios representam
.om,. valor menos protegido do que os direitos.
t~xto
"".'"
b) Garantia do conteúdo essencial dos direitos
Ocupa-se dela o artigo 52.°, n.O 1. Este preceito revela manista influência da "garantia do conteúdo essencial" ("Wesensehaltsgarantie") do Direito Constitucional alemão, concretamente,
artigo 19.°, n.O 2, da Lei Fundamental de Bona'''. Este preceito
bém está próximo, no seu conteúdo, do artigo 18.°, n.o 3, da
nstituição Portuguesa, que, aliás, revela uma forte influência do
smo preceito da Constituição alemã2 !9.
Sobre o preceito citado da Lei Fundamental de Bona, ver, por todos,
Die Wesellsgehaltsgarantie des Art.19 Abs. 2 GG, 3.~ ed., Berlim, 1983.
,.
219 Ver os nossos estudos Der Einfluss des Grundgeserzes au! die portugieche Verfassung aus der Sic/a eines portugiesischen Verfassungsreclulers, JõR
218
BBRLE,
217
Pg. 160.
212
213
A União Europeia
Isso significa que, para estarmos perante uma violação de um
direito reconhecido pela Carta, basta que haja interferência na subs'
tância ("Substanzverlust", na terminologia alemã) daquele O1I:eIlO,
sem ser necessário chegar-se ao extremo da privação ou ablação
direito. Não era preciso que a Carta o dissesse, porque isso
dos princípios gerais de Direito, mas, dizendo-o, as coisas
mais claras220 .
c) As Anotações relativas à Carta
Já atrás nos referimos a elas, mas agora vamos condensar o que
então dissemos.
O 5.° considerando do preâmbulo bem como o artigo 52.
n.o 7, da Carta, e o artigo 6.°, n.o 1, par. 3, UE, dispõem que os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem
interpretados pelos órgãos jurisdicionais da União e dos Estaclos-membros, "tendo na devida conta" as "'adaptações" ou as "0""10.
ções" relativas à Carta e que foram introduzidas nela pelo S~"rPto_
riado do Praesidium da Convenção que aprovou a Carta, nos
já atrás referidos.
Esta via de se fazer acompanhar uma fonte de Direito de
tações" acerca da interpretação a dar pelos tribunais a preceitos
não era até agora conhecida pelo Direito da União nem, cn:ml)s,';
pelo Direito em geral. Já explicámos atrás o que é que as fez
neste caso concreto.
2010, pgs. 41 e segs., e A influência da Lei Fundamental de Bona na Co'n"'ituliçã~'fj
Portuguesa, Estudos Gomes Canotilho, no prelo.
no As interferências na substância de um direito configuram um ato
logo à expropriação ou uma expropriação indireta desse direito. Estes con,ceitai?
obtiveram grande desenvolvimento no Direito Internacional Público e no
Administrativo alemão, tendo ganho grande impacto no Direito Constitucional
no Direito Administrativo de muitos Estados. Nós estudámos com pf(lfUlldi,lad,
esta matéria, a partir do Direito Internacional, nomeadamente da jUlris!,ru,lênci.'
internacional e da jurisprudência arbitral, na nossa monografia, já cit., A lJrolrecç'ãq;
da propriedade privada, pgs. 552 e segs. e 557 e segs.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
Mas convém deixar claros o âmbito e o alcance dessas Anotações, até porque, nem sempre, é o mesmo o modo como elas são
, encaradas pela doutrina.
Por um lado, o preâmbulo das Anotações dispõe o seguinte:
"Embora não tenham em si força de lei, constituem um valioso instrumento de interpretação destinado a clarificar as disposições da
Carta" (itálicos nossos). Mas, por outro lado, como se viu, a Carta,
tanto no seu preâmbulo, como no artigo 52.°, n.o 7, impõe que na
interpretação daqueles direitos se tenham "na devida conta" as referidas Anotações. Ora, porque o artigo 6.°, n.o 1, par. 1, UE, atribui à
Carta o mesmo valor jurídico dos Tratados e, porque esse preceito
manda atender a essas Anotações (que são aí referidas como "adaptações"), estas, também elas, acabam por ter a dignidade e o valor
jurídico de preceitos dos Tratados. Todavia, esta diferente sensibili(lade para a natureza e o valor jurídico das Anotações em causa não
deve, a nosso ver, permitir concluir senão que elas pretendem aju" dar o intérprete dos respetivos preceitos a melhor compreender os
pormenores do respetivo conteúdo. Essa ajuda é muito valiosa porj.'j;.que vale como interpretação autêntica daqueles preceitos, na medida
ii' em que provém dos próprios autores da Carta. Mas nada mais do
'j,que isso. Designadamente, os órgãos e as instituições da União, bem
'1 como os Estados-membros, e, mais especificamente, os tribunais,
•..•quando, como prevê o artigo 52.°, n.o 7, da Carta, forem obrigados
:,' ~ interpretar e a aplicar o conteúdo da Carta, mantêm toda a autono"fj:mia para o efeito e estão obrigados a interpretar e aplicar todos os
;?Fpreceitos da Carta com respeito pleno pelas regras da hermenêutica
"'i,!jurídica, bem como com consideração, quer pelo que dispõem aque.f.})es preceitos, quer pelo que estabelece o demais Direito da União
~Uaplicável, sob pena de se constituírem em situação de incumpri;j,;mento do Direito da União, com todas as respetivas consequências
'f~::,J·urídicas221.
v "
.".+------
~:\;,(';:',' 221 Sobre as Anotações à Carta, ver 1. ZILLER, Le fabuleux destin des Expli}:patiolls relatives à la Charte des droits fondamentat/x de l'Unioll eurOpéelllle,
~}"'jMélanges Jacqué, cit., pgs. 765 e segs.
'i?;
214
215
A União Europeia
d) O nível mais alto de proteção dos direitos
Num sistema, também ele, pouco vulgar, quer no Direito Internacional Público, quer no Direito Constitucional estadual, o artigo
53.° da Carta impõe, como já vimos, o grau mais alto de proteção
para os direitos que a Carta reconhece. E fá-lo do seguinte modo: a
Carta cederá o passo à fonte de Direito (das fontes codificadas pela
Carta sobre direitos fundamentais, e que a Carta enumera, como
vimos, no considerando 5.° do seu Preâmbulo) que confira, no caso
concreto, ao direito em causa, o mais alto grau de proteção. O princípio fica, deste modo, claramente definido, embora desde já possamos adiantar que vai ser muito difícil encontrar-se qualquer direito
que se mostre, no seu conteúdo e nos seus limites, melhor protegido
por qualquer das referidas fontes do que o é na Carta.
Dispõe no mesmo sentido, especificamente quanto à CEDH, o
n.o 3 do artigo 52.°, e o mesmo regime deve ser adotado na interpretação do n.O 4 daquele artigo, quanto às tradições constitucionais
comuns aos Estados-membros.
75. A Carta e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Como atrás demonstrámos, a Carta é largamente subsidiária da
CEDH, não apenas porque a tomou como fonte (veja-se o 5.° considerando do seu preâmbulo) como também porque a adotou dentro
do nível mínimo de interpretação da própria Carta e, por via disso,
dentro do nível mínimo de proteção dos direitos por esta reconhecidos (artigo 52.°, n.O 3, e artigo 53.°). Todavia, quando parecia que a
Carta, por si, iria resolver, particularmente no dia em que passasse a
ter força vinculativa, o problema da ausência na União de um catálogo próprio de direitos fundamentais, ou seja, quando parecia que
a aprovação da Carta, especialmente a partir do momento em que
ela passasse a ser vinculativa, tinha vindo acabar com a querela
acerca da ausência na União de um rol de direitos fundamentais
próprio da União, pela outorga a ela desse rol, e, portanto, tinha
vindo definitivamente excluir a opção pela adesão da União à
216
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
CEDH, eis que, ao contrário, assistimos ao renascer da questão da
adesão da União à CED H.
Já nas duas edições anteriores deste livro nos debruçámos, com
a profundidade que o assunto merece, sobre esta questão. Agora
vamos atualizar o nosso pensamento, não apenas em função dos
novos dados surgidos, como também porque a posição que antes
adotámos sobre o assunto mudou no essencial 222 •
76. A adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos
Direitos do Homem
I - O estado da questão antes da Carta
Esta questão começou a ser discutida nos anos 70 do século
passado com o Relatório Bernhardt, de 1976223 , e com o Memorando da Comissão, de 1979224 • Ela foi suscitada por duas razões: na
ausência então de um catálogo próprio de direitos fundamentais das
Comunidades, elas precisavam de ter um texto de direitos fundamentais que os seus cidadãos pudessem invocar perante as Comunidades mesmo que as Comunidades viessem a ter uma lista própria
de direitos fundamentais, os particulares não tinham pelos Tratados,
acesso direto pleno aos Tribunais Comunitários para questionarem,
em sede de recurso de anulação, os atos dos órgãos que ofendessem
esses direitos.
O primeiro problema foi resolvido provisoriamente pela jurisprudência do TJ através do já citado caso Internationale HandelsgeseUschaft. Por esse meio, como atrás vimos, a CEDH passou a
vigorar na Ordem Jurídica Comunitária pela via dos princípios
gerais de Direito Comunitário. O segundo problema nunca foi resolvido e o facto de os particulares terem continuado a ser recorrentes
só semiprivilegiados para o efeito da legitimidade para interpor o
222 Ver também os nossos trabalhos mais recentes sobre a matéria citados supra,
na nota 209.
m Bulletin des Communautés européennes, Supplémeot 0.° 5/76.
124 Bull. CE, supp. N.o 2179.
217
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
recurso de anulação para os Tribunais Comunitários, segundo o
artigo que hoje tem o número 263.° TFUE, mostrava que as conquistas obtidas pela via da jurisprudência do TI não eram suficientes
para substituir a adesão das Comunidades à CEDH.
Como atrás dissemos, o Tratado de Maastricht incluiu nos Tratados, pela primeira vez, a vinculação da União e das Comunidades
à CEDH, mas, outra vez, pela via dos princípios gerais de Direito
Comunitário. Aliás, também como ficou dito, o artigo 6.°, n.o 1, UE,
limitava-se a codificar a jurisprudência comunitária, bem condensada no Acórdão WachauJ, quando este dizia que o acervo de direitos fundamentais das Comunidades era composto pelos direitos
reconhecidos pelas tradições constitucionais comuns aos Estados-membros e pelo Direito Internacional, incluindo a CEDH. Mas os
Tratados de Maastricht, de Amesterdão e de Nice não se comprometeram com a adesão da União e das Comunidades à CEDH. Pelo
contrário, os artigos 6.°, n." 1, UE, depois do Tratado de Maastricht, '
e 6.°, n.O 2, UE, depois das revisões de Amesterdão e de Nice - já
estudámos atrás estes dois preceitos -, não incluíram qualquer referência à adesão à CEDH.
O obstáculo que se via à adesão desde o citado Relatório Bernhardt, e que o TJ aceitara no Parecer n.o 2/94225 , era o de que os'
Tratados não reconheciam às Comunidades e à União atribuições
em matéria de direitos fundamentais. Por isso, estas não podiam'
aderir à CEDH, nem mesmo podiam aprovar uma Carta dos Direitos,
Fundamentais da União Europeia sem prévia revisão dos Tratados!
que o permitisse. Note-se que, no que toca à Carta, isso explica qu
ela, para Iloder ter sido aprovada Ilela Proclamação de 2000, ten
tido a necessidade de reIletidamente afirmar, como se viu, que )'I,
criava novas atribuições Ilara a \Jnião.
Com a incorporação, pelo Tratado de Lisboa, da Carta n\)$
tados, ainda que deixando-a formalmente fora dos Tratados,e'~!l
autorização dada pelo Tratado UE à adesão da União à C~I(;
problema de saber quando é que os direitos fundamentais pas~'
a ser competência da União perdeu oportunidade. Todavia'fi1~
,.,,~~
'" Ac. 28-3-96, CoI., pgs. 1-1.759 e segs., ponto 34.
218
de não ter havido nos Tratados até à revisão de Lisboa nenhum preceito que enunciasse as atribuições da União mas de ter ficado
escrito no TUE, no seu artigo 6.°, n.O 1, após a revisão de Amesterdão, que a União assentava, entre outros princípios, no da proteção
de direitos fundamentais, levava a interrogarmo-nos legitimamente
sobre se desse artigo não teria nascido para a União, ainda que de
forma implícita, competência em matéria de direitos fundamentais.
Mas esta questão tem hoje interesse meramente histórico, embora
mais adiante tenhamos de voltar a ela por um outro motivo'26.
II - Os argumentos contra a adesão
Na esteira do Tratado Constitucional, o Tratado de Lisboa,
como dissemos, incluiu no TUE uma obrigação para a União de
aderir à CEDH.
Já há muitos anos que, para um certo sector da doutrina, a adesão, ou se defrontava com algumas dificuldades no plano jurídico,
ou era desnecessária. Vejamos rapidamente as razões em que se
fundamentava essa corrente.
Segundo esses autores, as dificuldades jurídicas com que a
adesão se defrontava eram as seguintes: não é possível nem é conveniente sujeitar a União à dupla jurisdição do TIUE e do TEDH; a
'. aplicação da CEDH como lex scripta vai fazer submeter a União ao
Direito Internacional numa matéria muito sensível, como é a dos
.direitos fundamentais, o que vai fazer quebrar nessa matéria a auto'nç'mia, a uniformidade e a coesão interna do Direito da União' e
~~a aplicação vai também trazer para o seio da União o princí;io
d'B~cessidade de prévia exaustão dos meios internos, que é exigido
.ÇEPH, mas que desde os Tratados institutivos das Comunida"recusado pelo sistema de garantias contenciosas no seio das
'. nidades e da União 22'.
. Ver, contudo, as edições anteriores deste nosso manual, Direito, pg. 167,
'pg.l40.
Ver RIDEAU, na 5. a ed. do seu manual, pg. 296.
219
A União Europeia
Além disso, para esses autores, a adesão também era desn:ces~
sária, e pelas seguintes razões. Com a força vinculativa atnbUlda a
Carta de Direitos Fundamentais e pelo facto de esta codJficar os
direitos da CEDH e ir ainda para além dos direitos constantes da
CEDH era suficiente recuperar-se a sugestão de PIERRE PESCATORE,
em 198822', segundo a qual a União havia sucedido aos Estados-membros como parte na CEDH, de harmonia com as, regras de
Direito Internacional sobre sucessão de Estados em matena de tratados, ou então - e esta orientação é muito cara a um sector ~por~
tante da doutrina francesa - devia-se procede.:, ao contr~no, a
comunitarização da CEDH, isto é, à incorporaçao dzreta ou a mtegração da CEDH na Ordem Jurídica da União, por outras palavra~,
à apropriação ou absorção da CEDH por esta e, po~tanto, ela .sena
levada a cabo sem a mediação da fonte dos pnnclplOs gerals de
Direito Comunitário.
.
., .
A teoria da comunitarização da CEDH pelo sistema jundico da
União Europeia, embora tivesse sido proposta, ainda que de forma
só embrionária, talUbém ela, por PESCATORE, no mesmo estudo,fOl
construída logo a seguir por um sector importante da doutnna,
muito especialmente por FRÉDÉRIC SUDRE, ~m Fra~ça~29 com ~~:nda­
menta no TUE, e tem sido seguida pela Junsprudencla do TJ .
A construção que os autores em questão encontravalU nos Tratados tinha o seu fundamento no artigo 6.°, n.O< I e 2, UE, dep01~ d~
revisão de Amesterdão, e estava próxima da interpretaçã~ q~e nos Ja
admitimos atrás para aqueles dois números do artlgo_6. , ViStoS ,em
conjunto, para concluirmos que a UE já tinha atnbUlçoes e~ matena
de direitos fundamentais a partir da revisão de Amesterdao. Com
efeito, a orientação em apreço interpretava aquele artigo 6.°, n."' I
228 La Caur de Justice des Commullautés eurapéennes et a Conventioll
européenlle des droits de l'homme, Mélanges Wiarda, pgs. 441 e s~gs ..
229 L'apport du droit international et européen à la protect~on comm~mau.
taire des droits fondamentaux, in Société Française pOUl' 1e DrOlt Inter~atlOnal,
Droit international et droit communautaire - perspectives actuelles, ParIS, 2000,
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
e 2, UE, em função do seu espírito e da sua teleologia, e considerava-o como um todo, da seguinte fonua. O n.o I do artigo 6." afirmava que os direitos fundamentais eram um fundamento
jurídico-constitucional da União. O n.o 2 do mesmo artigo concretizava aquela afirmação por referência, entre o mais, à CEDH. Por
conseguinte, embora, formalmente, o artigo 46.°, aI. d, UE, só remetesse para o artigo 6.°, n.O 2 (e, portanto, só para as fontes aí indicadas), e, por conseguinte, não conferisse uma competência geral ao
TJ em matéria de direitos fundalUentais, os Tribunais da União
estavalU habilitados a entender que os n."' I e 2 do artigo 6.°, vistos
em conjunto, lhes conferiam um título jurídico geral, que lhes permitia controlar o respeito dos direitos fundalUentais da parte da
União Europeia, dos seus órgãos, e dos Estados-membros.
A favor da sua orientação, esses Autores recordavalU que o TJ
procedeu à apropriação ou absorção da CEDH, à incorporação
direta desta no Direito Comunitário, em muitos Acórdãos, dos quais
o mais expressivo foi o Acórdão Baustahlgewebe. 231 Não admira,
pois, que o Juiz PUISSOCHET tivesse afirmado em 1996 (portanto,
ainda antes da assinatura do Tratado de Amesterdão e, por conse. guinte, ainda antes da integração pelo Tratado de Amesterdão do
novo n.o I no artigo 6.° no TUE), que "tudo se passa como se a
CEDH seja uma das fontes formais do Direito Comunitário" e que,
depois da revisão de Amesterdão, ele tivesse acrescentado, de forma
incisiva, que o TJ "aplica diretamente a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem"23'.
Esta construção tornaria possível ao TJ pronunciar-se sobre
questões prejudiciais de interpretação direta da CEDH colocadas
pelos tribunais nacionais quando aplicassem o Direito da União,
po·rqlle a CEDH estaria abrangida pela aI. a do atual artigo 267.°
TFUE, como havia sido proposto pelo Advogado-Geral LEGER nas
pgs. 169 e segs..
. '
_
d' _
230 Ver a análise mais ponnenonzada desta onentaçao nas duas e IÇoeS
anteriores do nosso manual, respetivamente, pgs. 166 e segs. e 137 e segs..
m Ac. 17-12-98, Proc. C-185/95, CaL, pgs. 1-8.417 e segs., com anotações
favoráveis de SIMM, in Europe, fevereiro de 1999, comentário n.o 57, e SUDRE,
RTDE 1999, obs. n." 39.
232 ln AA.VV., La protectionjuridictionnelle, pg. 9. Ver esta matéria desenvolvida em SUDRE, op. cit., pgs. 185-186.
220
221
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
conclusões do caso Perfili233 • E tornaria ainda mais premente do que
nunca a criação, no Direito da União Europeia, de uma queixa constitucional para o TJUE por violação de direitos fundamentais que
fazem parte do acervo da União, incluindo dos que constam da
CEDH.
Note-se que, dentro dessa orientação, os Tribunais da União
seriam, eles, os juízes da conformidade de atas comunitários com a
CEDH, porque esta faria parte, por si, do bloco de legalidade do
Direito da União. Isto, obviamente, quando estivéssemos no âmbito
da aplicação do Direito da União. Convém deixar claro que, por
exemplo, quando ao juiz da União fosse colocada uma questão prejudicial de interpretação da CEDH em si mesma, isto é, quando a
norma ou o ato nacional cuja relação com a CEDH estivesse
em discussão "dissesse respeito a uma situação que não relevava
do campo de aplicação do Direito Comunitário", ele tinha que se
declarar incompetente para o efeito, como o TI decidiu no Acórdão
Kremzow 2J4 • Quando os Estados agissem fora do campo de aplicação do Direito da União (cuja delimitação, aliás, não está isenta de
dificuldades, como o TI reconheceu em vários Acórdãos, a começar
pelo caso The Society for the Protection of Unbom Children SPUC'''), a atuação dos Estados continuaria sujeita diretamente ao
sistema de fiscalização próprio da CEDH.
A comunitarização da CEDH foi recentemente defendida pelo
Tribunal no seu Documento de reflexão sobre a adesão da União à
CEDH, de 5 de maio de 2010, que cita a seu favor o Acórdão Bosphorus, do próprio TEDR236, que, no entender do TJ, teria consagrado essa orientação.
m Ac. 1-2-96, Proe. C-I77194, CoI., pg. 14.
'" Ae. 29-5-97, Proe. C-299/95, CoI., pgs. 1-2.629 e segs..
m Ae. 4-4-91, Proe. C-159190, CoI., pgs. 1-468 e segs.. Posterionnente,
no mesmo sentido, especialmente, o Ac. 12-6-2003, Schmidberger, Proe.
C-1l2/2000, CoI., pgs. 1-5.659 e segs..
236 Ac. 30-6-2005, Rec., pgs. 2005-1 e segs.. Ver sobre ele RENuccl, op. cit.,
p. 959, e anotações de SUDRE, RFDA 2006, pg. 566, e IACQUÉ, ICP 2005-11-10128.
222
III - A necessidade da adesão
Os argumentos em cima referidos contra a adesão, mesmo que
alguns deles tenham, e têm, em abstrato, alguma consistência, não
são suficientes para afastar a necessidade de a União aderir à CEDH
para garantir aos seus cidadãos um mais alto grau de proteção dos
seus direitos fundamentais. Há muitas razões que nessa matéria são
decisivas. E chamamos a atenção para o facto de, como atrás dissemos, neste ponto termos mudado de posição em relação à opinião
que emitimos nas duas edições anteriores deste livro237 .
Primeiro, se os particulares só puderem contar com o recurso
de anulação para o TJUE, previsto no artigo 263.° TFUE, para
impugnarem os atas dos órgãos que violem a Carta, nesse caso não
veem plenamente assegurada essa proteção porque, repetimos, eles
capacidade judiciária ativa limitada em face desse artigo, são
recorrentes só semiprivilegiados 238 •
Pouco acrescentam à proteção devida aos direitos fundamentais as questões prejudiciais do artigo 267.° UE. De facto, as partes
podem suscitar essas questões, só os tribunais nacionais o
podem fazer.
Depois, sem a adesão à CEDH, a União nunca se poderá defender quando for dirigida ao TEDH uma queixa contra um Estado com
o fundamento de que este infringiu a CEDH através de um seu ato
que ele aplicou o Direito da União. E, como entendeu o TEDH
Acórdão Mathews 239 , nos casos em que o poder do respetivo
não é discricionário, a União é responsável.
Em terceiro lugar, e como já estudámos, a Carta dos Direitos
FU.ndarrlentaü só pode ser aplicada pelos Tribunais em situações de
apl~ca.çãc do Direito da União. Ficam de fora do controlo dos TribuVer, respetivamente, pgs. 171 e 138 e segs.
Isso é assim, apesar do recente alargamento da capacidade judiciária dos
,\parti.eulare". à sombra desse preceito, levada a cabo pela jurisprudência da União
Despacho do Tribunal Geral 6-9-2011, Kanatani, Proc. T-18/1O, pontos
e Ac. do mesmo Tribunal 25-10-2011, Microban 1lltemational, Proe.
1'1'262/110. ponto 21.
m Ae. 18-2-99, Ree., pgs. 1999-1 e segs..
231
238
223
A Carta dos Direitos FUl1damentais da União Europeia
A União Europeia
nais os casos de violação dos direitos por ela reconhecidos em que
não esteja em causa o Direito da União,
Mas, além disso, acontece também que algumas críticas de
natureza substantiva dirigidas à adesão não procedem.
Por exemplo, critica-se a adesão, já o vimos, por submeter a
União à dupla jurisdição do TJUE e do TEDH. Há que relativizar
esta crítica. lá hoje o sistema de garantias dentro da União Europeia
conbece a dupla jurisdição entre os tribunais estaduais, como tribunais comuns do Direito da União, e o TJUE. Portanto, a dupla jurisdição entre o TJUE e o TEDH não será novidade para o sistema
jurídico da União Europeia, desde que, como defendemos, O Tratado
de Adesão inclua "cláusulas que preservem as características da
União e do Direito da União", como é imposto pelo Protocolo n.o 8
e pela Declaração n.o 2 anexos ao Tratado de Lisboa. É o que, aliás,
defende o TJUE no seu, em cima citado, Documento de reflexão de
2010, no ponto 4.
Também não procede a crítica segundo a qual a adesão vai
introduzir a obrigação de exaustão dos meios internos no sistema de
proteção de direitos fundamentais na União Europeia. Isso não
verdade. A adesão da União à CEDH não vai obrigar os particulares ,
a esgotar previamente os meios internos do Direito da União pela}!!
razão simples de que não há meios internos a esgotar. De facto, e;~
como já em cima sublinhámos, os particulares têm legitimidade::i1,
restrita para impugnar para o TJUE atas dos órgãos da União quei,;;;
··f
infrinjam os seus direitos e, por outro lado, não têm legitimidade;
para, eles próprios, suscitarem questões prejudiciais perante
TJUE. Ou seja, não havendo meios internos do Direito da União ao?
f
dispor dos particulares que sejam adequados para estes verenf
garantidos os seus direitos, estes não têm que esgotar quaisqueri!:
meios próprios do Direito da União.
Isso não impede que se reflita sobre se, como propõe o TJUlS!
no referido Documento de reflexão, nos casos em que os particulares;
têm legitimidade para impugnar atas dos órgãos da União que violem,i"
os direitos da CEDH, não devem primeiro impugná-los para o TJUE"
por respeito pelo princípio da subsidiariedade. É uma questão imporl,1,
tante, mas que, todavia, ainda não foi suficientemente discutida,
'
oii
224
Do mesmo modo, nada obsta também a que se crie um mecanismo através do qual, antes de o TEDH se pronunciar sobre a validade de um ato da União, deve o TIUE ter a oportunidade de se
pronunciar sobre ela, por exemplo, a título prejudicial, porque o juiz
comum da vahdade dos atas do Direito da União é, e tem de continuar a ser, o TIUE, inclusivamente porque uma solução diferente
pana em causa o princípio da uniformidade do Direito da União, No
fundo, trata-se de transpor para as relações entre o TIUE e o TEDH
a doutrina Foto-Frosf'''', que foi criada para as relações entre os
trIbunaIS naCIOnaiS e o TIUE, Também esta é uma das propostas do
TJUE no refendo Documento de reflexão e, também ela se reveste
do maior interesse.
'
Igualm~mte nada impede, antes tudo impõe, que se reveja a
forte restrlçao traZida à capacidade da pessoa para dirigir uma
queixa ao TEDH traduzida na exclusão dessa capacidade às pessoas
euJl~llVa' de Direito Público, como decorre do artigo 34. 0 CEDH,
restrição é bem mais aInpla do que os limites contidos no artigo
263,° TFUE à capacidade judiciária do particular para pedir ao
TJUE a auulação de atas da União.
Por fim, há que estar atento ao facto de o critério de reparação
sellUfldo a CE~H, tornado na prática ainda mais restritivo pelo
i:'~~:::,~~: conslstu numa mera «reparação razoável» (artigo 50,° da
O TEDH tem levado a interpretação deste preceito ao
extreme de acel~ar que possa valer como reparação a simples declada vlOlaçao da CEDH pelos Estados. Ora, este critério está
ultrallaSsa,tIc pelo moderno Direito Internacional, expresso num
mternacional geral ou comum formado com base em
jurisprudência arbitral, em tratados bilaterais de investimuitos deles concluídos por Estados da África e da Ásia e
Diretivas do Ba?co Mundial sobre Investimento Estrangei;o,
consagraIn o cnteno dafttll compellsatioll, ou seja, da reparação
de todos os danos emergentes e lucros cessantes pelo valor de
'''" Ac, 22-10-87, Proc. 314/85, CoI., pgs. 4.199 e segs.. Sobre este Acórdão
infra, 11. 0 230-11.
'
225
A União Europeia
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
mercado dos direitos infringidos24 '. Por sua vez, o Direito da União
Europeia, através da jurisprudência do TI, embora não tenha ainda
chegado a uma formulação definitiva e geral sobre o conceito e O
conteúdo da reparação por responsabilidade civil extracontratual de
um Estado-membro ou da União por violação do Direito da União,
já enunciou as linhas que devem presidir a essa matéria e que
permitem afirmar que o conceito de reparação está para o Direito da
União muito mais próximo do conceito moderno de reparação do
Direito Internacional do que do conceito de reparação da CEDH.
Por isso, há que deixar claro que adotar o critério da simples «reparação razoáve1» nos casos em que um direito fundamental
cido pela CEDR seja infringido pela União significará um retrO('eS~lO
em confronto com ODireito da União, nomeadamente com a
jurisprudência do TIUE.
Portanto não resolver antes da adesão todas estas qUlestões.
acabadas de referir equivalerá a que os referidos Protocolo n."
Declaração n. ° 2 sejam desrespeitados (com todas as
jurídicas daí resultantes), a que a adesão assinale uma
daquilo que há muito constitui o adquirido da União em matéria
proteção dos direitos fundamentais, e também irá provocar,.
consequências muito nocivas, um clima de atnto entre o Direito
União Europeia e o Direito da CEDR e, concretamente,
jurisprudência do TIUE e a do TEOR. Ora, esse não pode ser,
caso algum, o preço a pagar pela adesão da União à CEDR.
Mas se não procedem muitas das críticas dirigidas à adesão
também não devem ser considerados relevantes alguns outros argumentos aduzidos a favor da adesão.
Assim, diz-se que, sem aquela adesão, não será possível a aplicação das sanções previstas nos artigos 7.° UE e 309.° CE, na redação do Tratado de Nice, hoje os artigos 7.° UE e 351.° TFUE. Não é
verdade. Aqueles preceitos remetem para o artigo 2.° TUE, e este
deve ser interpretado, na parte relativa ao "respeito pelos direitos do
Homem", como abrangendo também os direitos contidos na CEDR,
quer porque a Carta engloba esta, quer porque a referência do artigo
2.° abrange também os direitos referidos no artigo 6.°, n.o 3, UE.
Além disso, como nota WEBER242 , o poder sancionatório do artigo 7.°
do TUE é "substantivado" sobretudo pelo conteúdo da Carta.
Diz-se também que, sem a adesão, haveria, em matéria de
direit'ls fundamentais, uma Europa a "duas velocidades": uma, a da
CEDH, englobando particularmente a Europa do Leste; outra, a da
Carta'43. À partida, trata-se de uma realidade inevitável: por um
lado, não é possível a aplicação da Carta a Estados partes na CEDH
e não membros da União Europeia; por outro lado, não é legítimo
impedir-se aos Estados-membros da União Europeia de, como
de,oor:re do citado artigo 52.°, n.o 3, da Carta, acolherem e adotarem
na Carta um nível de proteção dos direitos fundamentais superior ao
pela CEDR. A pretensão de se admitir a existência de um
unifo'rrnle Direito Europeu dos Direitos do Homem, que abarque o
cOilJunto dos Estados-membros da União Europeia, mais os Estados
são partes na CEDR mas que não são membros da União (ou
um total de mais de quarenta Estados), é, pois, pelo menos por
impossível de se concretizar. A solução está em, por um lado,
interpretar a Carta e a CEDR, somadas às tradições constituciocomuns aos Estados-membros, como um conjunto entre si
yomIJlem"ntar, harmonioso e coerente e, por outro lado - o que não
,cOlltUlma ser referido -, em se atualizar, para se aperfeiçoar, a CEDR,
241 Como demonstrámos há mais de uma década na nossa mc,nollral'ia,.iá,!
citada, A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional
sobretudo, pgs. 424 e segs., especialmente 437-440 e 445-446; pgs. 471 e
particularmente 505-513 [onde escrevemos que "Só este Tribunal (o TEDH)
adota hoje, no plano do Direito Internacional, o critério da reparação total ou
gral dos prejuízos, critério esse que, como mostrámos, a jurisp~udência "'""'.',
a prática dos Estados aceita hoje, pacificamente, como sendo Imposto pelo
tume internacional geral" - pg. 50?}; pgs. 516 e segs. e 529-530. Esta nossa
ção mereceu expressa concordância, na recensão daquele nosso l~vro, ~e um
grandes especialistas da CEDH: referimo-nos a JÓRG POLAKIEWJCZ, m ZaoRV
pgs. 881-883 (882).
226
Carta, pg. 83.
É a opinião, por exemplo, de RENUCCI, pg. 468, MIRANDA, Curso, pg. 314,
MEc'EIRc", pgs. 69-70.
242
243
227
A União Europeia
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
que, recordamo-lo, data de 1950 e, como há pouco dissemo
mesmo após as importantes reformas nela introduzidas, sobretu~
pelo Protocolo n.o 11, que entrou em vigor em I de no;embro'd
1998, e pelo Protocolo n.o 14, que entrou em vIgor maIs recen,
mente, em I de junho de 2010, consagra métodos e princípios q
tempo tornou retrógrados, como a referida regra da prévia exau
dos meios internos. Não há, pois, qualquer vantagem em,
menos por ora, se desejar ver na CEDH uma Bill of Rights com
a todos os Estados europeus, dado que isso se traduziria na viola,
da 1. 0 parte, infine, e da 2.' parte do artigo 52.°, n.o 3, e do arti.
53.° da Carta e, num plano mais amplo, implicaria a degradação
nível de proteção dos direitos fundamentais já alcançado na UriL
Europeia com a Carta, como decorre, aliás, dos mesmos preceIto,
Diz-se, por fim, que a cabal proteção dos Direitos do Hom
na Ordem Jurídica da União impõe que os atas da União sobre dit
tos fundamentais sejam apreciados por um tribunal alheio à Uni
Não é verdade. Trata-se de uma suspeição prévia e abstrata lanç
sobre os Tribunais da União, que estes não merecem. O TJ é
idóneo para conhecer dos atas de Direito da União que infrinjall\;.\.
acervo de direitos fundamentais que obriga a União como O é pi!ta
conhecer de quaisquer outros atas. Questão diferente é a de saber§@
como atrás se disse, os Tratados lhe conferem competência sUft~.
ciente para fiscalizar de modo adequado o respeito pelos direito(
fundamentais e se, por conseguinte, essa questão não deve ser pO~,}i'
derada na reforma do sistema jurisdicional da União, inclusive, daiR;
organização judiciária da União.
IV - O procedimento da adesão
Não vai ser fácil a adesão da União à CEDH em função dai:~i
exigências colocadas ao processo de adesão. Ela vai requererR;~
acordo de todos os Estados-membros da União e de todos os mem-"
bros do Conselho da E u r o p a . : i
Vai requerer o acordo de todos os Estados-membros da União\!;
porque o Acordo de adesão (cujo primeiro projeto foi publicad9}c
pelo Conselho da Europa em 14 de outubro de 2011) terá de ser
.aptovado pelo Conselho por unanimidade (ao contrário do que dispunha o Tratado Constitucional, que se contentava com a maioria
. ~alificada), após a aprovação do Parlamento Europeu, e depois terá
~ser ratificado por todos os Estados-membros segundo as respeti. s normas constitucionais. É o que dispõe o artigo 218.°, n.o 6,
;a, ii, e n. ° 8, TFUE.
Mas vai também requerer o acordo de todos os Estados que são
.:vtes na CEDH do Conselho da Europa, porque a adesão impõe a
pnclusão de um novo Protocolo Adicional àquela Convenção, que
',sequência ao artigo 17.° do Protocolo n. o 14 anexo à CEDH, que
toriza a adesão 144 •
i.. '
O Tratado de adesão da União à CEDH deverá respeitar o Pro. colo n. o 8 e a Declaração n.o 2 anexos ao Tratado de Lisboa, e aos
l!ais já fizemos referência.
.Rumo a um Direito da Uuião Europeia sobre Direitos Fundamentais
A adesão da União Europeia à CEDH não impedirá que a Carta
nha a ocupar progressivamente um lugar nuclear num sólido e
mbicioso Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais,
.uja elaboração deve e há-de continuar a dever-se muito à jurispru~ência da União, com a ajuda, espera-se, dos tribunais constitucioIlais nacionais. Esse Direito da União, assim concebido, dará corpo
a uma verdadeira União de direitos fimdamentais, ou, simplesmente, União de direitos.
Nesse Direito da União Europeia sobre Direitos Fundamentais
aCEDH terá menos importância do que por vezes se julga, dado que,
por força dos artigos 52. 0 , n.o 3, e 53.°, da Carta, a CEDH traduzirá o
,limite mínimo ("standard minimum") de proteção, ultrapassável pela
Carta sempre que esta for mais favorável aos direitos em causa'''.
'.~
228
Veja-se, assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pgs. 45-46.
Assim, especialmente, WEBER, Carta, pg. 9], e TULKENS/CALLEWAERT, in
arlierlDe Schutter, pg. 228.
244
245
229
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A União Europeia
E essa ultrapassagem da CEDH pela Carta será mais fácil e
mais vulgar do que parece, porque convém outra vez não nos esquecermos dos vícios de nascença da CEDH e dos que, à sombra deles,
se foram acumulando. É certo que se pode falar, nas últimas três
décadas, de um esforço de "aclimatação comunitária" da CEDH
levado a cabo pelo Tribunal de Estrasburgo, que levou este, em
alguns processos, a adaptar a interpretação de preceitos da CEDH ao
conteúdo do Direito Comunitári0246 • Mas essa "aclimatação" não
removeu os pecados originais da CEDH, que se mantêm e que já
atrás recordámos: a CEDH só codifica direitos civis e políticos,
enquanto que a Carta abarca também direitos sociais, culturais e
económicos; a CEDH, devido à época em que surgiu, quase só reconhece os direitos clássicos, enquanto que a Carta inclui direitos
novos e novíssimos, isto é, os direitos da 2.' e da 3.' gerações; a
CEDH continua a sujeitar a queixa individual ao requisito da prévia
exaustão dos meios internos, o que, em princípio, não é compatível
com o sistema de garantias judiciais da União Europeia e, por isso,
não ficou consagrado na Carta, embora, como ainda há pouco mostrámos, essa questão seja ultrapassável; e, mesmo assim, a jurisprudência do TEDH, pese embora todo o louvável labor por ele levado
a cabo durante estes mais de sessenta anos, pratica critérios de
reparação inferiores aos impostos hoje, tanto pelo Direito Internacional, como pelo Direito da União, como referimos atrás.
Tudo isto, sem pôr em causa as vantagens da adesão da UE à
CEDH, relativiza tanto a adesão, em si mesma, como a importância
da CEDH perante a Carta e, portanto, a importância da CEDH no
ordenamento jurídico da União24'.
Note-se que podemos encontrar um caso de incorporação indireta da CEDH no Tratado CE, levada a cabo no artigo único, a!. a,
do Protocolo relativo ao direito de asilo de nacionais dos Estados-membros da União Europeia, anexado ao Tratado CE por via do
Tratado de Amesterdão e que continua em vigor com o n.O 24.
78. A Carta e as Constituições estaduais
A relação entre a Carta e as Constituições nacionais encontra-se regulada pelas cláusulas horizontais da primeira. Como se
~iss~, dispõe o, art~~o 51.°, n.o 1, da Carta que ela só se aplica no
amblto da Umao [ apenas quando (os Estados) apliquem o direito
da União"]. Acrescenta o artigo 53.° que "nenhuma disposição da
presente C~~a deve se~ Interpretada no sentido de restringir ou lesar
os direitos reconhecidos, entre outros, pelas Constituições dos
Estados-membros.
Quer dizer que cada Estado conserva a liberdade de proteger e
garantir, como entender, os direitos fundamentais na sua Ordem
Jurídica nacional, ou seja, fora do campo de aplicação do Direito da
União.
Contudo, na prática, esta conclusão está sujeita a dois limites.
Em primeiro lugar, como bem observam GaRI e KAUFF-GAZIN 248
através dos princípios gerais de Direito, os Tribunais da Uniã~
podem integrar os direitos reconhecidos pela Carta na Ordem Jurídica da União e verificar se os Estados os cumprem. Fá-lo-ão, acrescentamos nós, sobretudo através do mecanismo processual das
questões prejudiciais, via, pela qual, aliás, a jurisprudência da União
tem desenvolvido os princípios gerais de Direito como fonte do
Direito da União.
. . Em seg~ndo lugar, o facto de os Estados deverem respeitar os
dlfeltos refendas na Carta em relação aos cidadãos doutros Estados-membros, como decorre do artigo 51.°, n.o I, da Carta, não obriga
cada um deles a estender a aplicação desses direitos também aos
seus respetivos nacionais? Em nosso entender, sim. A Carta não
quis, decerto, a discriminação inversa na sua aplicação, discriminação essa que, aliás, e como atrás demonstrámos, infringe o Direito
Internacional e o Direito da União e, nalguns Estados, como é o caso
de Portugal, também o respetivo Direito Constitucional24'-250
Pg. 252.
Como demonstrámos em A protecção da propriedade privada, cit.,
sobreludo pgs. 562-564.
250 No mesmo sentido, GORl/KAUFF-GAZIN, loco cit., e MEDEIROS, pg. 3 L
248
246 Veja-se, outra vez, SUDRE, L'apport, pgs. 181-184, com o estudo dajuris~
prudência do TEDH que perfilha essa orientação.
247 Assim, por todos e por último, GORI/KAUFF-GAZIN, pgs. 255-256.
230
249
231
A União Europeia
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
No que coucretamente diz respeito a Portugal, não se anteveem
hipóteses de conflito entre a Carta e a Constituição Portuguesa, em
que aquela venha a restringir direitos reconhecidos por esta última.
O único caso de dúvida, pode ser o do 10ck-out'51. Aliás, subscrevemos a opinião de WEBER2", para quem um conflito entre a Carta e
Constituições nacionais será muito difícil de ocorrer, porque a Carta
é mais generosa do que a generalidade das Constituições nacionais
no conteúdo dos direitos que reconhece25 ].
Não basta ao Legislador nacional ficar à espera de que a Administração Pública e os tribunais do respetivo Estado afastem o respetivo Direito interno em favor da Carta no acatamento do que o
artigo 53.° da Carta lhes impõe, Numa manifestação da boa-fé com
que o respetivo Estado subscreveu a Carta, o Legislador nacional,
constituinte e ordinário, tem o dever de conformar o Direito nacional com a Carta. Esse dever funda-se no respeito pelo artigo 2.° UE,
quando prescreve a observãncia dos direitos fundamentais como
valor da União; no princípio da cooperação leal entre a União e os
Estados-membros e vice-versa, como vimos em devido tempo; e no
cumprimento pelos Estados do dever de assegurar a coerência, na
Ordem Jurídica nacional, entre o Direito de fonte nacional e o
Direito com fonte na União. E, por sua vez, a Administração Pública
e os tribunais nacionais têm a obrigação de aplicar a Carta, nos termos nela prescritos, sob pena de incorrerem em incumprimento do
Direito da União e em responsabilidade por esse incumprimento,
nas condições definidas pelo Direito da União (e não pelo respetivo
Direito nacional),
79. A garantia judicial da Carta
Após a Carta ter sido integrada nos Tratados, não faz dúvida de
que os Tribunais da União aplicá-la-ão como uma fonte formal de
Direito, e nos termos nela definidos. No que toca aos tribunais
nacionais, não poderão então recusar a sua aplicação quando ela for
invocada perante eles, com a única limitação de que só o poderão
fazer quando apliquem o Direito da União.
Como se disse atrás, o juiz nacional poderá ver-se confrontado
com a desigual proteção de direitos fundamentais no respetivo
Direito interno e na Carta, que, ainda por cima, pelos motivos atrás
apontados, ocorrerá quase sempre a favor da Carta. Convirá que,
antes de mais, seja o Legislador, constituinte e ordinário, a resolver
esse conflito (é mesmo seu dever fazê-lo, por respeito pelas regras
que presidem à aplicação do Direito da União pelos Estados-membros, e que adiante estudaremos), harmonizando os preceitos de
Direito interno sobre direitos fundamentais com o nível superior de
proteção que a Carta lhes confere.
Ver MEDEIROS, pgs. 39-40.
Carta, pg. 87.
m Sobre a matéria deste número, ver, com respeito a Portugal, M"D",oo:;,;i!,
pgs~ 32 e segs. e 41 e segs., bem como o livro editado pela Comissão de Assuntos
Europeus da Assembleia da República sobre a participação da Assembleia
República no debate da Carta - Carta dos Direitos FUlldamelltais da União
pela, Lisboa, 2001.
251
252
232
80. Conclusão: a Carta como núcleo centra! de nm sistema global e coerente de proteção dos Direitos do Homem em todo
o continente europeu
Como se disse atrás, durante muitas décadas as Comunidades
e, depois, a União, ambicionaram ter o seu rol próprio de direitos
fundamentais, Têm, finalmente, a Carta. A Carta está destinada a ser
o catálogo dos direitos fundamentais da União Europeia, ou seja, a
Bill of Rights dos cidadãos dos Estados-membros da União. Repetimos: só pode ter sido concebida como tal, doutra forma não faria
sentido, Todavia, pelas razões que atrás indicámos, ainda não o é,
Contudo, por expressa vontade dela própria, a Carta não vive
só. Os direitos que ela reconhece devem ser interpretados como
. fazendo parte do acervo global de direitos consagrados nas fontes,
diversificadas, indicadas no 5.° parágrafo do preâmbulo da
Carta. Mais especificamente, a Carta, nas suas chamadas "cláusulas
233
A União Europeia
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
horizontais" (artigos 51.° a 54.°), pretende ser o núcleo central de
um sistema jurídico global de proteção dos direitos fundamentais
em toda a Europa, mas um sistema complementar e coerente entre
si, no qual, como decorre dos artigos 52.', n.O 3, in fine, e 53.°, a
Carta deseja fornecer o grau mais elevado de proteção254 •255 • Nesse
sistema global ocupam lugar de destaque três fontes: a Carta, claro,
a CEDH e as tradições constitucionais comuns aos Estados-membros. Será com base nessas três fontes, onde, repete-se, a Carta
ocupe um lugar central, que se irá construindo, para já, o Direito da
União Europeia sobre Direitos Fundamentais, ou, dito doutra
forma, o Direito da União Europeia sobre Direitos do Homem, ou,
melhor, o Direito da União Europeia sobre Direitos da Pessoa
Humana, ao qual já nos referimos atrás. Para que isso aconteça, a
primeira condição está alcançada. Ela residia na constitucionalização da Carta. Esta encontra-se consumada com a integração da
Carta nos Tratados, por via do artigo 6.° UE, e com a sua consequente força obrigatória.
Falta cumprir a segunda condição. Ela reside na necessidade
de a Carta passar a prever também os deveres dos cidadãos, ao lado
dos seus direitos. Não há liberdade sem deveres, não há democracia
sem civismo, não há cidadania sem responsabilidade256 - e a Carta
deve, desde logo por razões de pedagogia política, acolher e passar
esta mensagem. É certo que no considerando 6.' do preâmbulo da
Carta fica reconhecido que "o gozo dos direitos (reconhecidos pela
Carta) implica responsabilidades e deveres (. .. )" (itálico nosso). Só
que esta ideia não encontra qualquer concretização no articulado da
Carta, o que é de lamentar.
Quando tudo isto estiver conseguido, o Direito da União Europeia sobre Direitos do Homem, permitirá, simultaneamente, aprofundar ainda mais a "União de Direito" e robustecer o "espaço de
liberdade, segurança e justiça", na fórmula feliz que, como já vimos,
foi introduzida no TUE pelo Tratado de Amesterdão, e também virá
contribuir de modo decisivo para a formação, à escala de todo o
continente europeu, e na medida em que isso se vá tornando possível, de um bem estruturado e coerente Direito Europeu dos Direitos
do Homem, que fará parte de uma verdadeira "ordem pública europeia" e que reforçará a tentativa de se criar um ius cogens regional
na Europa em torno dos direitos fundamentais'''.
254 Esta atitude da Carta é coerente com a posição global que o Direito da
União adota perante fontes de Direito que com ele concorrem em matéria de direitos fundamentais. Veremos isso quando estudarmos o primado do Direito da
União. Mas deixamos já feita uma referência às "cláusulas de não regressão", que
vêm sendo introduzidas nas diretivas sociais comunitárias, desde os fins dos anos
oitenta. De harmonia com elas, a aplicação de uma diretiva com aquele objeto não
deve servir de instrumento ou justificação para diminuir o grau de protecção já
existente, quanto a um determinado direito fundamental, nos Direitos nacionais
dos Estados-membros - ver, sobre este ponto, as conclusões do Advogado-Geral
TIZZANO no caso Mango/d, Ac. TJ 22-11-2005, Prac. C-144/04, CoI., pgs.1-9.981,
pontos 54 e segs.
m Entre as obras citadas como bibliografia especial no início do presente
Capítulo e do Capítulo anterior ver, sobre este ponto, sobretudo o estudo de KRÜGER e POLAKIEWICZ.
256 Cfr. HEANEL, pgs. 4 e segs.
234
Muito especificamente sobre a matéria deste número, FRANCO FERRARI,
Die Zukunft der EU-Grundrechtscharta, in Griller/Hummer (eds.), Die
EU nach Nizza, Viena, 2002, pgs. 281 e segs., KRÜGERlPOLAKIEWICZ, pgs. 1 e segs.,
DRZEMCZEWSKI, The Coul1cil af Eurape s Pasitian with Respect to lhe EU Charte,.
o/Fundamental Rights, HRU 2001, pgs. 14 e segs. (26 e segs.), TULKENS, Towards
a Greater Narmatíve Coherellce in Europe, HRLJ 2000, pgs. 329 e segs., GaRI!
IKAUFF-GAZIN, pgs. 255-256, DUTHElL DE LA ROCHERE, pgs. 675 e segs., e LENAERTS/
IDE SMIITER, pgs. 296 e segs.. Sobre o ius cagens regional, ver o nosso estudo La
CO/lvention ElIropéellne des Droits de ['Hamme: un cas de ius cogens regional?,
Festschrift Bernhardt, pgs. 555 e segs.
257
WEBER,
235
CAPITULO VI
AS ATRIBUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: H. JARASS, Die Kompetenzverteilung zwischen der europiiischen Gemeinschajt lI11d den Mitgliedstaaten, AõR
1966, pgs. 173 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Compétences et pouvoirs
dans les CO/11munautés européellnes, Paris, 1974; 1. KAISER, Grenzen der
EG-ZustCindigkeiten, EuR 1980, pgs. 97 e segs.; T. HARTLEY, Federalism,
Courts and Legal Systems: The Emerging Constitutiol1 oflhe European
Community, AJCL 1986, pgs. 229 e segs.; J. TEMPLE LANG, Europeall
Community COflStitutiona! Law: The Divisioll of Powers between lhe
Commullity and lhe Member States, NILQ 1986, pgs. 209 e segs.; K.
LENAERTS, Constitutionalism and fhe Many Faces of Federalism, AJCL
1990, pgs. 205 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Le principe de subsidiarité,
un passage obligé vers I' Union européenne, Mélanges Boulouis, pgs. 35
e segs.; F. DE QUADROS, O princípio da subsidiar;edade no Direito
Comunitário após o Tratado da União Europeia, Coimbra, 1995; A.
GOUCHA SOARES, Repartição de competências e preempção no Direito
Comunitário, Lisboa, 1996; LufsA DUARTE, A teoria dos poderes implícitos e a delimitação de competências entre a União Europeia e os
Estados-membros, dissertação, Lisboa, 1997; l MARTfN Y PÉREZ DE
NANCLARES, El sistema de competencias de la Comw1idad Europea,
Madrid, 1997; P. CRAlG e C. HARLOW, Law-making in the European
Union, Amesterdão, 1998; l-L. SAURON, La mise en oeuvre retardée du
principe de subsidiarité, RMC 1998, pgs. 645 e segs.; 1. PERNICE,
Kompetenzenabgrenzung im europaischen Verfassungsverband, JZ
2000, pgs. 866 e segs.; K. FISCHER, Die Rechtsetzung der europiiischen
Gemeinschaft im Lichte der Rechtsprechung des europiiischen
Gerichtshofs, ZG 2000, pgs. 165 e segs.; A. VON BOGDANDY e 1. BAST,
The European Un;on's vertical order of competellces: The current law
237
As atribuições da União Europeia
A União Europeia
and proposalsfor its reform, CMLR 2002, pgs. 227 e segs.; P. GAUTlER,
Horizontal coherence and the external competences of tlle European
Union, EU 2004, pgs. 23 e segs.; C. ROBERTA, La Corte di giustizia e la
Costituzione europea, Roma, 2004; V. CüNSTANTINESCO, Les compétellces et le príncipe de subsidiarité, RTDE 2005, pgs. 305 e segs.; MARIA
JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, A Actuação externa da União Europeia
depois do Tratado de Lisboa, diss., Coimbra, 2011.
81. A definição das atribuições da União. A repartição de atribuições entre a União e os Estados-membros
As atribuições da União Europeia são as matérias em que ela
pode agir. O problema não se confunde, portanto, com o de averiguar quais são os objetivos visados pela União, que se encontram
boje elencados no artigo 2.° UE: uma coisa são os fins da União,
outra são as matérias substantivas que ela pode tomar a seu cargo,
embora aqueles possam ajudar a descobrir estas.
Quais são então as atribuições da União?
Pelo facto de as Comunidades Europeias terem sido criadas
segundo o método funcional, como já atrás explicámos, até ao Tratado de Lisboa os Tratados não continham uma cláusula expressa e
clara sobre as atribuições da União ou das Comunidades. Designadamente, essas atribuições não se encontravam definidas por categorias de matérias, como acontece nos Estados federais (por
exemplo, o comércio, a agricultura, a moeda, a defesa, a segurança,
etc.). Disso se vieram a ressentir a precisão e o rigor que o intérprete
buscava quando pretendia ver esclarecido um problema tão importante para a integração europeia e para a sua evolução.
Todavia, o estudo das atribuições da União significa o estudo
do modo como os Tratados procedem à repartição de atribuições
entre a União e os Estados. Trata-se, portanto, de uma questão de
grande sensibilidade política, porque está fortemente ligada à soberania dos Estados. Desde o Tratado de Maastricht e até ao Tratado
de Nice que o Tratado CE se referia às atribuições da Comunidade,
e não, note-se, da União, e apenas para definir o princípio da especialidade e para consagrar o princípio da subsidiariedade no exercí238
cio das atribuições concorrentes. É o que fazia, na versão de Nice, o
artigo 5.° CE. Designadamente, ficava-se Sem saber quais eram, em
concreto, as atribuições da União.
O Tratado de Lisboa veio, pela primeira vez, ocupar-se da enunciação das atribuições da União. Fá-lo nos artigos 2.° a 6.° TFUE. Por
aí se vê que a União prossegue hoje as seguintes atribuições:
a) atribuições exclusivas (artigo 3.° TFUE);
b) atribuições concorrentes ou partilhadas (artigo 4.° TFUE);
c) atribuições de apoio, coordenação ou completamento da
ação dos Estados-membros, que designaremos abreviadamente por atribuições complementares (artigo 6.° TFUE).
Para a compreensão daqueles preceitos do TFUE é necessário
levar em conta também a Declaração n. o 18 anexa ao Tratado de
Lisboa sobre a delimitação de competências.
Além disso os Tratados preveem também atribuições exclusivas dos Estados (artigo 4.°, n.o 2, infine, UE).
Contudo, para estudarmos com rigor as atribuições da União
temos que, primeiro, analisar o princípio da especialidade dessas
atribuições. É o que vamos fazer de seguida.
82. O princípio da especialidade das atribuições da União
Antes de estudarmos em concreto as atribuições da União,
temos que examinar o princípio da especialidade dessas atribuições.
Esse princípio, explicámos atrás, delimita a capacidade jurídica de
todas as pessoas coletivas, de Direito Público e de Direito Privado,
e estabelece que elas só têm capacidade jurídica, de gozo e de exercício, para a prossecução das matérias que lhe sejam expressamente
cometidas por lei ou pelos respetivos Estatutos. Este princípio
aplica-se também, no plano internacional, às Organizações Internacionais.
A única pessoa coletiva à qual não se aplica o princípio da
especialidade é o Estado, entendido aqui como comunidade polí239
A União Europeia
As atribuições da União Europeia
tica e sujeito de Direito Constitucional. De facto, só ele detém uma
competência geral (é o que a doutrina alemã designa de Allzustiin-
83. As atribuições exclusivas da União
digkeit)258.
Pela sistematização adotada pelo TUE, e que já vinha sendo
seguida pela doutrina, como se poderá ver pelas edições anteriores
deste livro, dentro das atribuições da União há que começar por
referir as suas atribuições exclusivas.
Quais são as atribuições exclusivas da União?
Até ao Tratado de Lisboa, e como acima sublinhámos, os Tratados não o diziam, tanto quanto à União como quanto às Comunidades. Por isso, o TJ teve que suprir essa lacuna dos Tratados.
Segundo o TJ, a ex-Comunidade Europeia já tinha competência
exclusiva nos domínios da política comercial comum, prevista no
ex-artigo 133.° CE, na versão de Nice 25 ', da política de conservação
dos recursos de pesca, contemplada no artigo 102.° do Tratado de
Adesão de 197226°, e da política agrícola comum26 '.
Mas a jurisprudência não tinha o monopólio da definição das
atribuições exclusivas da Comunidade. E, por isso, deviam ser consideradas também atribuições exclusivas da Comunidade todas
aquelas que constavam da lista apresentada pela Comissão em
anexo à sua Comunicação sobre o princípio da subsidiariedade, de
27 de outubro de 1992262 ; além das políticas referidas pelo TJ e
acima indicadas, também a supressão de obstáculos à livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais (ex-artigo 4.° CE);
as regras gerais da concorrência; e os elementos essenciais da política de transportes (ex-artigo 71.°, n.o 1, aI. a, CE).
Era com esta grande amplitude que a doutrina concebia as
atribuições exclusivas da Comunidade Europeia antes do Tratado de
Lisboa26 '.
. ' _.
Também a União vê a sua capacidade limItada pelo pnnclplo
da especialidade. Isso constitui, aliás, um dos primeiros argumentos
para se lhe recusar natureza estadual, ou seja, pa~a se a afastar do
modelo jurídico acabado de um Estado. O pnncIplO da espeCIalidade, também chamado princípio de atribuição, encontra-se hOJe
consagrado no artigo 5.° n.O I, 1.' parte, UE:
Em virtude do princípio de atribuição, a União atua unicamente
dentro dos limites da competência que os Estados-membros lhe tenham
atribuído nos Tratados para alcançar os objetivos fixados por estes últimos (itálico nosso).
ii'
Este princípio encontra-se também acolhI'do no artigo 7.°
TFUE, quando este dispõe que
A União assegura a coerência entre as suas diferentes políticas e
açôes, tendo em conta o conjunto dos seus objetivos e de acordo com o
princípio da atribuição de competências (itálico nosso).
Também tem parcialmente a ver com o princípio da especialidade o artigo 13.° UE, que, depois de no n.o I enunciar os órgãos da
CE, estabelece no n. ° 2 que
'i
Cada instituição atua nos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados ( ... ) (itálico nosso).
Enquanto se refere aos "limites das atribuições" este artigo está
a pensar nas atribuições da União (portanto, está a delimitar a capacidade jurídica da União).
°
258 Ver
Acórdão Maastricht, já cit., do Tribunal Constitucional federal
alemão. Hoje, veja-se, no mesmo sentido, das obras gerais, por ex., ISAAC, pg. 36,
e LOUIS/RONSE, pgs. 16 e segs.
240
Parecer 1175, 11-11-75, Rec., pgs. 1.355 e segs.
Acs. 14-7-76, Kramer, Procs. apensQS 3 e 6/76, Rec., pgs. 1.279 e segs.,
e 5~5-81, Comissão c. Reino Unido, Pme. 804179, Rec., pgs. 1.045 e segs.
261 Ac. 14-7-94, Rustica Semences, Pme. C-438/92, CoI., pgs. 1-3.526 e
segs., ponto 16.
262 Buli. CE 10/92, pontos 1.1.4 e 2.2.1.
263 Veja-se, sobretudo, Y. GAUTIER, La compétence comnUl11alltaire exclusive,
Mélanges Guy Isaac, 2004, pgs. 154-155.
259
260
241
.--------------------_
.... _-----
A União Europeia
As atribuições da União Europeia
Todavia, para que existisse uma atribuição exclusiva era sempre
necessário que, como havia proposto a Comissão na Comunicação
citada, se reunissem, na matéria em causa, os seguintes dois requisitos cumulativos: a existência de uma obrigação clara e precisa de agir
da parte da Comunidade, hoje, da União, e a absorção pela União dos
poderes soberanos dos Estados-membros nessa matéria, de tal forma
que a perda desses poderes soberanos fosse irreversível264
Como se disse, o Tratado de Lisboa veio estabelecer quais
passavam a ser as atribuições exclusivas da União. Fá-lo no artigo
3.° TFUE. E a primeira classificação que ele trouxe foi a das atribuições internas e externas.
As atribuições exclusivas internas referem-se ao mercado
interno da União. São as elencadas no n.o 1 do referido artigo 3.°
TFUE, ou seja:
prevista num ato legislativo da União, seja necessária para lhe dar a
possibilidade de exercer as suas atribuições internas ou seja suscetível de afetar regras comuns ou de alterar o seu alcance. Especificamente no que respeita à necessidade de concluir acordos
internacionais para dar à União a possibilidade de exercer as suas
atribuições internas este preceito acolhe a jurisprudência que o TJ
definiu pela primeira vez no caso AETR266 •
A política comercial comum, enquanto atribuição exclusiva
externa, encontra o seu conteúdo desenvolvido no artigo 207.°,
n. o 1, TFUE. Desse conteúdo merece destaque o investimento
estrangeiro direto (não o indireto)267. A inclusão deste investimento
na política comercial comum, em detrimento dos clássicos Tratados
Bilaterais de Investimento celebrados entre os Estados, irá certamente implicar consequências profundas no incremento das relações comerciais e financeiras entre a União e os terceiros Estados2" .
As atribuições exclusivas da União podem ser exercidas pelos
Estados-membros através de delegação neles por parte da União dos
poderes necessários para o efeito, ou com o objetivo de dar execução aos atos da União. É o que resulta do artigo 2.°, n.o 1, TFUE.
Isso não impede de reconhecer que, como atrás dissemos, a titularidade dessas atribuições passou, de modo irreversível, dos Estados
para a União.
a) a união aduaneira;
b) o estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao
funcionamento do mercado interno;
c) a política monetária para os Estados-membros cuja moeda
seja o euro;
d) a conservação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da
política comum das pescas, devendo, portanto, entender-se
que os outros domínios da política das pescas serão objeto
de atribuições concorrentes ou partilhadas 26S ;
e) e a política comercial comum.
Note-se que nesta lista foi omitida referência à política agrícola
comum, que, como atrás dissemos, o TJ há muito que considera uma
atribuição exclusiva da União, mas que deixa de o ser em face do
referido preceito do TFUE.
As atribuições exclusivas externas são as que decorrem do
n.o 2 do mesmo artigo 3.° TFUE. Ou seja, a União tem atribuição
exclusiva para celebrar acordos internacionais cuja conclusão esteja
264
Assim,
265
Assim, PRiOLLAUD/SIRlTZKY, pg. 159.
JACQUÉ,
pgs. 142-143.
242
84. As atribuições coucorreutes ou partilhadas
Antes de mais, uma questão terminológica.
Os Tratados, na sua versão portuguesa, designam estas atribuide partilhadas. A bem do rigor jurídico chamamos-lhe prefe", Ac. 31-7-71, Proc. 22170, Rec., ponto 28.
267 Veja-se o nosso artigo O novo regime do investimento estrangeiro e da
arl'itr.7g,,," internacional na União Europeia após o Trauu/o de Lisboa, Estudos
Luiz Olava Baptista, no prelo.
268 Sobre os Tratados Bilaterais de Investimento, ver a nossa monografia, A
""'teccáo da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, cit., especiallmente, pgs. 48 e segs., 210 e segs., 315 e segs., 362 e segs. e 450 e segs.
243
A União Europeia
As atribuições da União Europeia
rencialmente atribuições concorrentes, por um simile com a
dicotomia atribuições exclusivas/atribuições concorrentes dos sistemas federais norte-americano e alemão e porque foi essa a terminologia que na União Europeia obteve os favores da doutrina depois
do Tratado de Maastricht. De facto, as atribuições ditas partilhadas
não o são, isto é, não são atribuições que estejam repartidas, em pé
de igualdade, entre a União e os Estados, antes são atribuições para
as quais concorrem a União e os Estados e para cuja prossecução os
Tratados dão primazia aos Estados.
O estudo das atribuições concorrentes tem de ser separado em
duas fases: a fase anterior ao Tratado de:Lisboa e a fase posterior a
esse Tratado.
Antes do Tratado de Lisboa, na repartição vertical de atribuições entre a União Europeia e os Estados-membros, e particularmente na relação entre as atribuições exclusivas e concorrentes, a
regra era as atribuições serem concorrentes. Queria-se com isso
dizer que, em todas as atribuições que coubessem no princípio da
especialidade da União e que não se tivessem tornado exclusivas da
União, esta e os Estados-membros concorriam entre si, até porque
não havia nem atribuições complementares nem atribuições que
fossem exclusivas dos Estados-membros. Quanto a estas últimas, a
sua admissão, que fora proposta pelo Parlamento Europeu quando
aprovou o Relatório Giscard sobre o princípio da subsidiariedade,
em 12 de julho de 1990, na fase da preparação do TUE e do TCE,
não foi acolhida pelos Tratados'69.
Depois do Tratado de Lisboa, as atribuições concorrentes continuam a ser a regra, mas agora nos termos definidos pela parte final
do artigo 4.°, n.o I, TFUE. Ou seja, à partida são concorrentes todas
as atribuições que aquele Tratado não tenha incluído nas atribuições
exclusivas e complementares, nos seus artigos 3.°, 5.° e 6.°.
Mas, além disso, são seguramente atribuições concorrentes
aquelas que estão elencadas no artigo 4.°, n.o 2, TFUE. Esta enunciação tem de ser considerada meramente exemplificativa até em
face da cláusula aberta do n.o I do mesmo artigo, ao qual há pouco
nos referimos. Nessa enunciação merece destaque especial a energia, pela importância que essa matéria alcançou contemporaneamente na União.
Note-se que a agricultura, e, com ela, a política agrícola
comum, devem ser entendidas como sendo atribuições conCOlTentes
da União, em face do que dispõe o artigo 4.°, n.o 2, aI. d, não obstante, como se referiu, ser outra a posição do TI. Do mesmo modo,
das pescas fica para as atribuições concorrentes tudo o que não
couber nas atribuições exclusivas, pelo que resulta do mesmo preceito por confronto com o artigo 3.°, n.o I, d.
269 Veja-se sobre a matéria também o nosso, O princípio da subsidiariedade;
pgs. 31-32, e a bibl. aí cit.
244
Há que levar em conta também o Protocolo relativo ao exercí-
cio das competências partilhadas e a Declaração n.o 18, acima referida, anexos ao Tratado de Lisboa, devendo todavia, aquele e esta,
ser interpretados em sintonia com o artigo 5.°, n. O 3, UE.
85. As atribuições complementares
O Tratado de Lisboa criou também, como se disse, atribuições
complementares para a União. Elas encontram-se elencadas nos
artigos 5.° e 6.° TFUE e disciplinadas no artigo 2. 0 , n."' 3 e 5, TFUE.
Essas atribuições são de duas categorias:
a) as atribuições de orientação e de coordenação, do artigo 5.°;
b) e as atribuições de apoio, coordenação e completamento, do
artigo 6.°.
As atribuições de orientação e coordenação, do artigo 5.°, são
atribuições:
a) de orientação das políticas económicas dos Estados-mem-
bros (artigo 5.°, n.o I, L' parte). São prosseguidas nos termos do artigo 121.° TFUE;
b) de coordenação, de supervisão e de orientação das políticas
monetárias dos Estados da Zona Euro, que devem ser exercidas com respeito pelo artigo 136.° TFUE (artigo 5.°, n.o I,
245
A União Europeia
2." parte). No respeito por estas atribuições, o Protocolo
sobre o Eurogrupo, anexado ao Tratado de Lisboa com o
n.o 3, prevê a eleição de um Presidente do Eurogrupo, com
um mandato de dois anos e meio;
c) de coordenação das políticas de emprego dos Estados-membros (artigo 5.°, n.o 2, que vem na linha do artigo 2.°,
n.o 3, TFUE). Estas atribuições são levadas a cabo nos termos do artigo 148.° TFUE;
d) eventualmente, de coordenação das políticas sociais dos
Estados-membros (artigo 5.°, n.o 3). Os artigos 151.° e 156.°
TFUE desenvolvem estas atribuições.
As atribuições de apoio, coordenação e completamelJlo devem
ser interpretadas como conferindo uma atuação menos intensa à
União. Elas são, antes de mais, as que constam das sete alíneas do
artigo 6.° TFUE. Como se notava no Relatório Final do Grupo de
Trabalho da Convenção sobre o Futuro da Europa consagrado às
atribuições complementares270 , estas atribuições consistem num
mero complemento das atribuições dos Estados, que não perdem a
sua competência sobre essas matérias. Por isso, estes não transferem
para a União o poder de legislar sobre esses domínios, nem mesmo
com vista a harmonizar as legislações dos Estados-membros 271 • É o
que ficou a dispor o novo artigo 2.°, n.o 5, TFUE. Por isso, e em face
da parte final dos n." 3 e 4 do artigo 4.° TFUE, e do seu confronto
com o que dispõe o artigo 2.°, n.o 5, par. 1, parte final, TFUE, entendemos que as matérias referidas naqueles dois números do artigo 4.
TFUE devem ser consideradas atribuições complementares e não
atribuições concorrentes'72.
Entre as atribuições previstas no citado artigo 6.° TFUE merecem destaque e educação (foi neste quadro que a União crioú o
Programa Erasmus, note-se, sem afetar a competência dos Estados-membros) e também os novos domínios de atribuições da União,
270
211
272
CONV 375102.
Ver PRIOLLAUo/SIRITZKY, pgs. 162-163.
No mesmo sentido, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 161.
246
As atribuições da União Europeia
que são o turismo (ver o artigo 195.° TFUE), o desporto (ver o artigo
165.° TFUE), a proteção civil (ver o artigo 196.° TFUE) e a cooperação administrativa (ver o artigo 197.° TFUE). Nesses novos domínios, agora erguidos a atribuições da União, até agora esta só podia
intervir ao abrigo do atual artigo 352.° TFUE, que estudaremos
adiante.
86. O princípio da subsidiariedade
Bibliografia especial: INSTlTUT EUROPÊEN D' ADMINISTRATlON
PUBLIQUE (ed.), Subsidiarité: défi de cllangement, Actes du Colloque
Jacques Dellors 1991, Maastricht, 1991; C. STEWING, Subsidiaritat und
Foderalismus in der Europaischen Union, Colónia, 1992; V. CONSTANTINESCO, Subsidiarité ... vous avez dit subsidiarité?, RMU 1992, pgs.
227 e segs.; F. DE QUADROS, Das Subsidiaritêitsprinzip im EG-Recht nach
Maastricht, Tomuschat/Kõtz/Von Maydell (eds.), Europãische Integration und nationale Rechtskulturen, Colónia, 1994, pgs. 335 e segs.; J.
CHARPENTIER, Quelle subsidiarité?, Pouvoirs 1994, pgs. 49 e segs.;
FI.D.E. (ed.), Le principe de subsidiarité, Roma, 1994; J. DE OUVEIRA
BARACHO, O princípio da subsidiariedade ~ conceito e evolução, Rio de
Janeiro, 1996; C. CALLIESS. Subsidiaritêits- und Solidaritiitsprinzip in der
ElIropiiischen Union, Baden-Baden, 1996; F
DE QUADROS,
O princípio
da subsidiariedade no Direito Comunitário após o Tratado da União
Europeia, cit.; F. DE QUADROS, O princípio da subsidiariedade na União
Europeia, in Perfecto Yebra Martul-Ortega (diT.), Sistema Fiscal
Espano1 y Armonización Europea, Madrid, 1995, pgs. 209 e segs.; F DE
110 Tratado da União
QUADROS, O princípio da subsidiariedade
Europeia: contributos para a revisão do Tratado, in AA.VV., Em torno
da revisão do Tratado da União Europeia, Coimhra, 1997, pgs. 231 e
segs.; H. BRIBOSIA, De la subsidiarité à la coopération renforcée, in Y.
I.ejeune, I.e Traité d'Amesterdam, Bruxelas, 1998, pgs. 24 e segs.; R.
DOLZER, Subsidiarity: Toward a New Balance among tlle European
Commllnity and the Member States?, SL 1998, pgs. 529 e segs.; C.
DE MORAIS, A dimensão interna do princípio da subsidiariedade
no ordenamento português, ROA 1998, pgs. 779 e segs.; F. DELPÉRÊE,
Justice constitutionnelle et suhsidiarité, Paris, 2000; R. ANDERSEN e D.
DÉOM (dir.), Droit administratif et subsidiarité. Bruxelas, 2000; M.
VERDUSSEN (dir.), L'Europe de la subsidiarité, Bruxelas, 2000; LuíSA
BLANCO
247
A União Europeia
A aplicação jurisdicional do princípio da subsidiariedade no
Direito Comunitário: pressupostos e limites, Estudos João Lumbralles,
pgs. 779 e segs.; ROSÁRIO VILHENA, O princípio da subsidiariedade no
Direito Comunitário, diss., Coimbra, 2002; MARGARIDA D'OLlVEIRA
MARTINS, O princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico-politica, diss., Coimbra, 2003, e a nossa arguição dessa dissertação (com
base no texto policopiado), in BFDUL 2002, pgs. 1.465 e segs.; IDEM,
O novo regime do princípio da subsidiariedade e o papel reforçado dos
Parlamentos nacionais, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ed.), O Tratado de
Lisboa, cit., pgs. 47 e segs.
DUARTE,
I - Enunciado do problema
A intervenção da União na matéria das suas atribuições não
exclusivas (portanto, atribuições concorrentes e complementares)
rege-se pelo princípio da subsidiariedade. Portanto, tem de ficar
claro, desde logo, que aquele princípio não reparte atribuições entre
a União e os Estados-membros, mas apenas disciplina o exercício de
atribuições que os Tratados previamente repartem como não sendo
exclusivas da União.
Desde o Tratado de Maastricht até ao Tratado de Nice, este
princípio constou de uma cláusula escrita, de âmbito geral, dos Tratados: o artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de Nice. Como o Tratado
CE só se referia então às atribuições exclusivas e concorrentes este
princípio só regia o exercício destas últimas. Pouco depois da sua
introdução no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht dedicámos ao
princípio da subsidiariedade dois estudos monográficos"', aprovei173 Das Subsidiaritãtsprinzip e O principio da subsidiariedade. Logo a
seguir, escrevemos sobre aquele princípio outros dois artigos, O princfpio da subsidiariedade, publicado em Espanha, e O princfpio da subsidiariedade, a propósito da revisão de Amesterdão. Dada a existência, portanto, de três estudos nossos
com a epígrafe que começa em português por O principio da subsidiariedade deve
entender-se que quando invocarmos aquela epígrafe estaremos a remeter o leitor,
se o contrário não for afinnado, para o livro publicado em Coimbra, em 1995, e
que figura no rol de bibliografia com que abre o presente Capítulo.
248
As atribuições da União Europeia
tando para o efeito, inclusivamente, a nossa participação nos trabalhos preparatórios do Tratado da União Europeia, como explicámos
na apresentação do estudo em língua portuguesa. O que então escrevemos mantém atualidade, apesar de posteriormente vários instrumentos jurídicos terem vindo desenvolver aquele preceito,
nomeadamente o Protocolo sobre a aplicação dos princípios da
subsidiariedade e da proporcionalidade, que foi anexado ao TUE
pelo Tratado de Amesterdão, em 199727'. Acontece, porém, que
todos esses instrumentos foram por nós, em grande medida, tomados em consideração nos nossos dois referidos estudos, inclusive o
citado Protocolo, dado que este, em bom rigor, começou a nascer na
Cimeira de Birmingham, de 16 de outubro de 1992, onde Portugal
apresentou um primeiro contributo para o aprofundamento e a densificação jurídica do ex-artigo 3. 0 _B, par. 2, CE, na versão de Maastricht, contributo esse que foi todo incorporado no referido Protocolo.
Com o Tratado de Lisboa, o princípio da subsidiariedade,
agora estendido, como dissemos, a todas as atribuições não exclusivas da União, passou a ter a sua sede principal no artigo 5.°, n.o 3,
UE. Este preceito corresponde ao artigo 5.°, par. 2, CE, na versão de
Nice e, como sucedia com este, é completado, quanto à sua aplicação prática, pelo Protocolo n. ° 2 anexo ao Tratado de Lisboa, relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Por sua vez, o artigo 2.°, n.o 2, TFUE, que é novo, e que
tem uma redação menos clara do que o referido preceito do TUB,
terá de ser interpretado em sentido conforme com este. Quanto ao
referido Protocolo, note-se que a sua redação foi totalmente modificada pelo Tratado de Lisboa. Isso parece não significar que se quis
abandonar o que esse Protocolo dispunha antes do Tratado de Lisboa mas apenas que o Protocolo se deixou de preocupar com ques-
274 Os outros documentos importantes são as Conclusões do Conselho Europeu de Birmingham, de 16-10-92, as Conclusões do Conselho Europeu de Edimburgo, de 12-12-92, e o Acordo interinstituciona1 entre o Parlamento Europeu, o
Conselho e a Comissão, de 1993. Sobre esses e outros textos elaborados no quadro
da União sobre a subsidiariedade, ver, por todos, GRABlTzJHILF/NEITESHE1M, anotações ao atual artigo 5.°, n.O 3, UE.
249
A União Europeia
As atribuições da União Europeia
tões substantivas acerca dos dois princípios em causa para regular
apenas questões processuais quanto à aplicação daqueles princípios.
Neste livro vamos compendiar o que, de forma mais desenvolvida, escrevemos nos dois citados estudos monográficos, aproveitando a experiência da vigência do princípio da subsidiariedade nos
Tratados há já cerca de duas décadas e, claro, tentando atender às
inovações trazidas pelo Tratado de Lisboa.
artigo 352." TFUE, ao dispor sobre o modo como se pode alargar a
competência dos órgãos da União, não está a aplicar o princípio da
subsidiariedade, nem tem nada a ver com ele. Aquele preceito, como
no local próprio estudaremos, disciplina a criação de novos poderes
para os órgãos da União após previamente se ter definido que a
intervenção da União era conforme ao Tratado, inclusivamente,
que ela era necessária à face do princípio da subsidiariedade ["se
uma ação da União for considerada necessária (... )"]275.
Por outro lado, o princípio da subsidiariedade é um princípio
jurídico, uma regra de Direito, não um princípio meramente político
ou programático. Isso ficou claro quando da sua inclusão no TUE'''.
Assim entendido, o princípio da subsidiariedade é no Direito
da União Europeia, em conformidade com a evolução que sofreu ao
longo da História, desde a Antiguidade, um princípio descentralizador. Ou seja, ele confere preferência aos Estados no exercício das
atribuições uão exclusivas. A intervenção dos Estados nessas matérias é, pois, a regra; a da União, a exceção277 • Essa ideia é confirmada e reforçada, em total coerência, pela afirmação, feita pelos
Tratados, de que a subsidiariedade impõe a maior aproximação
possível do poder de decisão em relação aos cidadãos Uá citados
considerando 13.° do preâmbulo e artigo 1.0, par. 2, UE).
II - Noção e génese
Em bom rigor, existem duas versões cumulativas do princípio
da subsidiariedade: uma, que apela para o respeito, no processo de
integração, pela identidade nacional dos Estados-membros, particularmente da sua História, da sua cultura e das suas tradições;
outra, que dá preferência aos Estados na prossecução das atribuições
que os Tratados considerem não exclusivas da União. A primeira
versão encontramo-la acolhida hoje no considerando 6.° do preâmbulo do TUE e no artigo 4.°, n.o 2, do mesmo Tratado. A segunda
versão consta hoje da 2.' parte do considerando 13.° do preâmbulo
do TUB e da 2.' parte do artigo 1.0, par. 2, do mesmo Tratado, e,
como dissemos, encontra guarida, em termos de cláusula geral, no
artigo 5.°, n.o 3, também do TUB. Tanto o Protocolo atrás referido,
como a Declaração sobre a delimitação de competências, ambos
anexos ao Tratado de Lisboa, devem ser interpretados de modo a
não prejudicar o sentido que se extrai desse artigo 5.°, n.O 3, UE.
Quando usualmente se fala em subsidiariedade no Direito da
União Europeia é sobretudo no segundo dos dois referidos sentidos
que se emprega essa palavra. E é esse o sentido que nos interessa
neste lugar.
Diversos preceitos do TFUE concretizam, quanto a matérias
específicas, o princípio da subsidiariedade: é o caso, designadamente, dos artigos 165.°, n.o I, 167.°, n.o 1, 168.°, n.o 1, e 180.°.
Como já se disse, o princípio da subsidiariedade regula o exercício das atribuições não exclusivas da União. Não interfere, pois,
na atribuição da competência aos órgãos da União. Sendo assim, o
250
III - O conteúdo do princípio
Para que a Comunidade intervenha com respeito pelo princípio
da subsidiariedade no domínio das atribuições não exclusivas é,
pois, necessário, de harmonia com o artigo 5.°, n.o 3, UE, que se
275 Já o demonstrámos em 1995 no nosso O princípio da subsidiariedade,
pgs. 24 e segs., com apoio na bibl. cito na sua nota 43, especialmente em V. CONSTANTINESCO e GRABITZlH!LF, e na jurisprudência do Tl Hoje, a posição contrária
encontra-se quase isolada - veja-se, por ex., ISAAC, pgs. 37 e segs.
276 Para mais pormenores, veja-se o nosso O princípio da subsidiariedade,
pgs. 56 e segs., e JACQUÉ, pgs. 160 e segs.
277 Veja-se no nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 12 e segs., a evolução histórica do princípio, e, a pgs. 24 e segs., a aplicação. do que se diz no texto,
à evolução do Direito da União.
251
I,
I
iii
I
!
A União Europeia
As atribuições da União Europeia
verifiquem cumulativamente duas condições: a insuficiência da
atuação estadual e a maior eficácia da intervenção da União. Por
isso, sem prejuízo de, na sua configuração teórica e dogmática, o
princípio da subsidiariedade, como acima se disse, ser um princípio
descentralizador, na prática, só em cada caso concreto, e em cada
momento concreto, é possível afirmar-se se a sua aplicação leva a
alargar ou a estreitar o âmbito de intervenção da União ou, dito
doutra forma, se ela vai conduzir, de facto, a uma diminuição ou à
manutenção dos poderes soberanos dos Estados-membros. Ou seja:
a insuficiência da parte dos Estados alargará a margem de intervenção da União e, correspondentemente, limitará a soberania dos
Estados; ao contrário, a suficiência dos Estados restringirá, ou até
dispensará, a intervenção da União e, nessa exata medida, conservará nestes os respetivos. poderes soberanos. Essa ideia é levada ao
extremo de se poder afirmar que o próprio ãmbito, ou domínio
material, do Direito da União é apurado em função da sua subsidiariedade em relação aos sistemas jurídicos nacionais. Nesse sentido,
era particularmente expressivo o n.o 7 do citado Protocolo, na redação que tinha no Tratado de Nice, sobretudo no trecho que pomos
em itálico: "No que respeita à natureza e ao alcance da ação comunitária, as medidas tomadas pela Comunidade devem deixar às instâncias nacionais uma margem de decisão tão ampla quanto
possível, desde que compatível com a realização do objetivo da
medida e a observância das exigências do Tratado. Sem prejuízo do
direito comunitário, deve ser assegurado o respeito pelos sistemas
nacionais consagrados e pela organização e funcionamento dos
sistemas jurídicos dos Estados-membros. Quando apropriado, e sob
reserva da necessidade de assegurar uma aplicação adequada, as
medidas comunitárias devem facultar aos Estados-membros vias
alternativas para alcançar os objetivos dessas medidas". Como já
atrás defendemos278 , embora este preceito não conste do Protocolo
tal como ele foi modificado pelo Tratado de Lisboa, deve entender-se que a ideia que ele exprime continua a ser válida.
Note-se que a subsidiariedade, tal como a acabámos de interpretar no artigo 5.°, n.o 3, UE, afasta-se da que constava do ex-artigo
13ü.o-R CEE, introduzido no Tratado CEE pelo artigo 25.° do Ato
Único Europeu em matéria de ambiente. De facto, o ex-attigo
13ü.o-R CEE autorizava a intervenção da Comunidade, desde que
esta fosse mais eficaz ("melhor") do que a ação estadual, não sendo
necessário demonstrar-se cumulativamente a insuficiência da atuação estadual. Aquele ex-artigo 13ü.o-R CEE foi entretanto abrogado
pelo artigo introduzido no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht e
que foi o antecessor da cláusula geral do artigo 5.°, par. 2, CE, na
versão de Nice.
Quais são os elementos do conteúdo do princípio da subsidiariedade, tal como ele se encontra definido no artigo 5.°, n.o 3, UE?
Mantemos aqui as ideias que defendemos em 1995279 • Esses
elementos são os seguintes, e eles decorrem hoje do disposto no
artigo 5.°, n." 3, UE:
,
':i
I
,I
i
I
,,
:i
i';
i
I
2?8
a) como se disse, o princípio da subsidiariedade só se aplica às
atribuições concorrentes e complementares da União, não
às atribuições já tomadas exclusivas da União;
b) é necessário provar-se a necessidade da intervenção da
Comunidade (até para se respeitar o princípio da proporcionalidade, a que adiante nos referiremos), a insuficiência da
intervenção estadual, tanto ao nível central como ao nível
regional e local, para prosseguir os objetivos da ação prevista, e a maior eficácia da intervenção da União;
c) uma vez iniciada a intervenção da União, cessa a intervenção dos Estados. Ou seja, a intervenção da União exclui a
intervenção dos Estados. Isto decorre da própria etimologia
da subsidiariedade e é o que resulta hoje da letra do artigo
5.°, n.o 3, UE, como resultava dos artigos que antecederam
este nos Tratados anteriores. Por isso, um entendimento
diferente, que parece resultar do artigo 2.°, n.o 2, TFUE,
279 O principio da slIbsidiariedade, pgs. 36 e segs., com bibl. aí cito em
apoio das nossas posições.
Supra, n.o 46.
252
253
As atribuições da União Europeia
A União EHropeia
sobretudo 1.' parte, ao apontar para uma intervenção conjunta da União e dos Estados, deve ceder o passo à interpretação que se extrai do citado artigo 5.°, n.O 3, UE;
d) a insuficiência dos Estados e a maior eficácia da União
devem ser aferidas à luz dos critérios elencados no artigo 5.°
do Protocolo;
e) porque a subsidiariedade assenta na ideia, a que já aludimos,
segundo a qual a regra é a intervenção do Estado, a exceção,
a intervenção da União, é à União que, em cada caso, cabe
o ónus de provar que se encontram preenchidas as condições acima indicadas, na alínea b, e segundo os critérios a
que nos referimos na alínea d, e que, portanto, está justificada a sua intervenção;
fJ no que especificamente diz respeito ao elemento das "dimensões" e dos "efeitos da ação considerada", mencionados no
artigo 5.°, n.o 3, UE, para que a União possa intervir em
detrimento dos Estados, ela deverá provar que a ação prevista
tem dimensão e produz efeitos a uma escala, no mínimo,
tendencialmente comunitária. Ou seja, a insuficiência localizada em apenas um ou poucos Estados não chega para a
União se substituir aos Estados. E, mesmo quando, nesses
termos, se prove a necessidade da intervenção da União, esta,
antes de agir, deverá começar por tentar que os Estados
criem, eles próprios, a suficiência necessária para alcançar os
objetivos prosseguidos. É neste sentido que devem ser interpretados os critérios do artigo 5.° do Protocol0280 .
IV - A aplicação do princípio
O respeito pelo princípio da subsidiariedade não tem suscitado
dificuldades especiais na União Europeia. O Tratado de Maastricht
280 Cfr. JACQUÉ, pgs. 162 e segs. e o nosso O princípio da sllbsidiariedade,
pgs. 46-47. Na jurisprudência do TJ ver sobre esta matéria os Acs. 10-12-2002,
British American Tobacco, Proe. C-491101, pontos 180-182, e 22-5-2003, Comissão v. Alemanha, Proe. C-103/01, pontos 47 e segs.
254
ainda não tinha entrado em vigor e o antigo artigo 5.°, par. 2, CE, na
versão de Nice, já era objeto de disposições concretas visando a sua
aplicação, como aconteceu, como mostrámos, com as conclusões do
Conselho Europeu de Birmingham e de Edimburgo, de 1992. Não
obstante essas conclusões, bem como o Acordo interinstitucional
entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão, de 1993,
terem todos tido valor jurídico, como reconheceu o TF81.282, impunha-se que os Tratados densificassem o princípio, como havíamos
proposto em 1995 283 , o que foi feito pelo já referido Protocolo anexado ao TUE pelo Tratado de Amesterdão.
O respeito pelo princípio da subsidiariedade tem feito parte da
fundamentação dos atos de Direito derivado da União, exigida pelo
artigo 296.° TFUE. Do mesmo modo, a Comissão tem, na fundamentação das suas propostas, levado em conta aquele princípio. O
TJ entende ser muito importante analisar a fundamentação dos atos
de Direito derivado a fim de se poder pronunciar sobre o respeito
pelo princípio da subsidiariedade284 .
A subsidiariedade é reversível. Portanto, não obstante em dado
momento ter sido necessária a intervenção da União em consequência da provada insuficiência dos Estados, caso se venha a demonstrar que os Estados entretanto ganharam suficiência para a ação
necessária, e se entretanto a atribuição em causa não tiver passado
para o rol das atribuições exclusivas da União, voltam os Estados
a ter preferência na atuação na matéria concreta. Defendemos essa
posição em 1995285 . Depois, ela ficou consagrada, até ao Tratado de
Lisboa, no Protocolo, anexo ao Tratado de Amesterdão, no seu
n.o 3, parte final. O atual Protocolo, com a sua nova redação, não faz
referência expressa a essa matéria mas deve-se entender que esse
sistema continua em vigor porque é da essência da subsidiariedade
que o nível superior só poderá intervir na medida em que, e durante
281 Ae. 13-5-97, Alemanha c. Parlamemo Europeu e Conselho, Pme. C-233/
194, CoI., pgs. 1-2.405 e segs.
282 Assim, também, ISAAC, pg. 47.
283 O princípio da subsidiariedade, especialmente, pgs. 43-44.
284
285
Ver, por exemplo, o cit. Acórdão no Proc. C-233/94, pontos 22 e segs.
O princípio da subsidiariedade, pg. 45.
255
A União Europeia
o período em que, se prove a insuficiência da intervenção do nível
inferior.
Por conseguinte, não se aplica, no Direito da União, às atribuições não exclusivas, o princípio da preempção do Direito Constitucional dos Estados Unidos. Graças, antes de tudo, à reversibilidade
da subsidiariedade, esta e a preempção excluem-se'''.
É preciso compreender que a subsidiariedade impõe alguma
flexibilidade em dois princípios fundamentais do sistema jurídico da
União: O da sua uniformidade e o do seu primado sobre o Direito
estadual.
Quanto à uniformidade, porque nos Estados cuja atuação tenha
sido substituída pela da União por força da subsidiariedade, as matérias em causa poderão vir a estar sujeitas a um regime jurídico diferente daquele que para elas vigora nos Estados que, segundo os
critérios do artigo 5.°, n.o 3, UE, não perderam para a União o direito
de intervir e, portanto, conservam para si esse direito, desde logo,
por via legislativa.
Quanto ao primado, porque a subsidiariedade pode excluir o
primado do Direito da União, pelo simples facto de não se
demonstrado que, no caso concreto, a intervenção da União, pelos
critérios do artigo 5.°, n.O 3, UE, deve substituir-se à dos Estados
(dito melhor: pelo facto de a União não haver demonstrado que,
caso concreto, por aplicação daqueles critérios, a intervenção
União deve substituir-se à intervenção dos Estados), portanto,
não se colocar o problema de a União ter competência na matéria
portanto, de o Direito da União vir a regular a matéria.
Por fim, haverá que insistir28? em que a subsidiariedade
relações Estados-União só será eficaz e fará sentido se for com~,le­
tada pela subsidiariedade nas relações intraestaduais. Por
palavras: a subsidiariedade externa impõe a subsidiariedade mIemla.
Dito doutra forma, a subsidiariedade na União impõe a sulJsic:liariedade intraestadual, sobretudo (mas não só) no exercício do
Assim, também, entre outros, VON BOGDANDV/BAST, pg. 243.
Ver o nosso O princípio da subsidiariedade, pgs. 61 e segs. e 71 e
pensando, inclusivamente, no caso concreto de Portugal.
As atribuições da União Europeia
Administrativo28'. Caso contrário, não só a subsidiariedade comunitária perde coerência, pela recusa de um fluxo contínuo de atribuições descentralizadas, desde a menor comunidade local intraestadual
até à União, como ela é subvertida pelo afogamento das instâncias
do Poder Central dos Estados, que se verão no meio de dois movimen!os de sentido contrário, ou seja, a descentralização a nível da
Umao e a centralização a nível interno. Esta ideia foi reforçada pelo
Tratado de LIsboa quando no citado artigo 5.°, n.O 3, par. I, UE, veio
valonzar os níveis regional e local interiores ao Estado no exercício
do princípio da subsidiariedade.
.Quanto ao caso concreto de Portugal, haverá que sublinhar que
o adiamento sine die da regionalização administrativa do seu território continental, que continua a ser imposta pela Constituição, fez
c.om que Portugal perdesse uma excelente oportunidade de passar a
lIrar todas as potencialidades que a subsidiariedade na União lhe
oferece, para além de ter colocado sérias dúvidas sobre o respeito
pelos artIgos 6.", n.o I, e 7.°, n.O 6, da Constituição.
v - O controlo da aplicação do princípio
. O princípio da subsidiariedade tem de ser visto no TUE, já O
dIssemos, como uma regra jurídica e não como um princípio meramente político (para o que algum sector da doutrina e alguns meios
o querem arrastar). Foi assim que ele nasceu no Direito da
. ,. Todavia, a fiscalização da sua aplicação pode obedecer a
cntenos tanto Jurídicos como políticos.
O controlo jurídico da subsidiariedade pode ter lugar a priori
ou a posterIOr!. Comecemos por este último.
a) O controlo a posteriori
O controlo a posteriori da subsidiariedade pode ser um conpolítico. Assim acontecerá por força do artigo 9." do Protocolo
2S6
287
256
288 Sobre a importância da subsidiariedade para o Direito Administrativo
moderno, veja-se, especialmente, a obra coordenada por ANDERSEN e DÉOM.
257
A União Europeia
As atribuições da União Europeia
atrás referido, que impõe à Comissão a obrigação de apresentar,
aos órgãos aí indicados, um relatório anual sobre a aplicação do
princípio.
Mas esse controlo também pode ser um controlo jurídico.
Como tal, esse controlo é, normalmente, levado a cabo pelo
TJUE, no exercício da respetiva competência, e através dos seguintes meios contenciosos: o recurso de anulação, do artigo 263."
TFUE; a exceção de ilegalidade, do artigo 277.° TFUE; as questões
prejudiciais, do artigo 264.° TFUE; e a ação por omissão, do artigo
265. oTFUE. Note-se que o controlo através desses meios contenciosos será levado a cabo por aquele Tribunal no exercício por este, dos
poderes de cognição que os Tratados lhe conferem no quadro de
cada um desses meios contenciosos, com os desenvolvimentos que
à matéria foram dados pela jurisprudência do próprio TJUE289. O
controlo pelo TJUE através do recurso de anulação encontra-se
admitido, de modo expresso, pelo artigo 8.° do Protocolo relativo à
aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Na medida em que fica aos órgãos da União um largo poder
discricionário na definição da subsidiariedade da intervenção da
União, o controlo que efetivamente o TJUE pode exercer na matéria
é ténue, como ele tem reconhecido 290 •
Mas o controlo jurídico a posteriori da subsidiariedade também pode ser levado a cabo pelos tribunais nacionais, caso, perante
estes, algum interessado invoque o efeito direto do artigo 5.°, n.o 3,
UE. Em conformidade com os critérios definidos pelo TJ para a
atribuição de efeito direto a uma norma ou a um ato de Direito da
União, e que examinaremos adiante291 , não há razões para se recusar
efeito direto àquele preceito, embora, como antes escrevemos logo
a seguir à inclusão daquele artigo nos Tratados'92, porventura não vá
ser frequente haver interesse em invocá-lo.
Uma coisa, todavia, parece certa: mesmo nos Estados que, nas
suas Constituições, fazem reger as suas relações com a União Europeia pelo princípio da subsidiariedade, os tribunais nacionais terão
competência para julgar a constitucionalidade dos atos nacionais
que infrinjam a regra da subsidiariedade mas não terão competência
para julgar da legalidade (ou da constitucionalidade) dos atos da
União que a violem, pelo simples facto de os tribunais nacionais não
serem tribunais da legalidade dos atos da União.
289 Sobre esses meios contenciosos ver F. DE QUADROS/A. MARTINS, Contencioso da União Europeia, 2. a ed., Coimbra, 2006, pgs. 65 e segs.
290 Acs. 12~11-96, Reino Unido c. Conselho, Proc. C-84/94, Rec., pgs.
1-5.793 e segs., 13-5-97, Alemanha c. Parlamento Europeu e Conselho, Pree.
C-233/94, Rec., pgs. 1-3.405 e segs., 10-12-2002, British American Tobacco,
Proe. C-491/01, Rec., pgs.1-11.453 e segs., e 22-5-2003, Comissão c. Alemanha,
Prac. C-I03101, Rec., pgs. 1-5.369 e segs. No mesmo sentido da nossa posição, ver
JACQUÉ, pg. 169.
291 [nfra, fi.O S 207-208.
258
b) O controlo a priori
Mas o controlo da aplicação do princípio da subsidiariedade
também pode ser levado a cabo a priori, ou seja, a título preventivo.
Esse controlo pode revestir natureza jurídica ou ser um controlo político. Comecemos pelo controlo jurídico.
Ele consiste na exigência de fundamentação, pelas entidades
referidas no artigo 3.° do citado Protocolo, de cada projeto de ato
legislativo (com o sentido que lhe dá esse artigo 3.°), em termos de
ele demonstrar, em cada caso concreto, que respeitou o princípio da
subsidiariedade (valendo o mesmo para o princípio da proporcionalidade). Esse controlo encontra-se disciplinado no artigo 5.° daquele
Protocolo. De harmonia com este preceito, todos os projetos de atos
legislativos incluem uma "ficha de subsidiariedade", que deve conter os elementos referidos naquele preceito.
Foi pena que não tivesse ficado consagrada nos Tratados uma
outra via de controlo jurídico a priori da aplicação do princípio da
subsidiariedade, que fora admitida pela Convenção sobre o Futuro
da Europa, e que consistiria num controlo judicial. Seria um sistema
análogo ao da fiscalização preventiva da constitucionalidade das
leis que vigora na generalidade dos Estados-membros, e seria determinado pelo nível do mais eficaz desses sistemas. Aos Estados292 Veja-se O princípio da subsidiariedade, pg. 61. Em sentido contrário,
ver, sobretudo, GRABITZ!H1LFINETIESHE1M, anotações ao artigo 5.°, 0.° 3, UE.
259
A União
E~/ropeia
-membros (aos seus Governos, Parlamentos e órgãos políticos dirigentes de entidades políticas autónomas, como Estados federados
ou regiões políticas) e aos órgãos legiferantes da União (o Parlamento Europeu e o Conselho) seria reconhecido o direito de requererem ao TIUE, em qualquer momento do processo legislativo,
um parecer prévio sobre o respeito do princípio da subsidiariedade
por parte da proposta legislativa da Comissão ou de um ato legl~la­
tivo já aprovado em conformidade com o processo legIslatIvo
previsto nos Tratados mas ainda não entrado em ~Igor: No ca~o de
esse parecer ser negativo, a proposta da Comlssao so poden~ ter
seguimento, e o ato legislativo aprovado só podena entrar em vIgor
(conforme um ou outro dos casos descritos), após_a revisão d~ :ratado. Já em 1995 nós apresentáramos uma sugesmo mUlto proxlma
•
293 E
·t'
desta, com fundamento em importante doutnna
. ste meIo
ena
afinidades com aquele que há muito consta dos Tratados acerca dos
acordos internacionais que as Comunidades e, depois, a União celebra, e que atualmente se encontra previsto no artigo 218.°, n.o 11,
TFUE.
VI - Em especial, o controlo pelos Parlamentos nacionais
ii
'I:;
11'
Na sequência de um tímido controlo pelos Parlamentos nacionais do respeito pelo princípio da subsidiariedade, consagrado no
Protocolo relativo ao papel dos Parlamentos nacionais na União
Europeia, anexo ao Tratado de Amesterdão, e. que continuou em
vigor com o Tratado de Nice, o Tratado de LIsboa velO reforçar
substancialmente esse controlo uo novo Protocolo n. o 2 relativo à
aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, já citado. Esse Protocolo tem de ser hdo e mterpretado
sequência do novo Protocolo n. o 1 relativo ao papel dos
tos nacionais na União Europeia, em especial, do seu artigo 3.°.
293 O princípio da subsidiariedade, pg. 58 e notas 98 e 99. Veja-se
matéria tratada em CALLlES, pgs. 265 e segs., e, de modo particularmente profundo,
em STRUysIFLYNN, in Marc Verdussen (dir.), pgs. 201 e segs.
260
As atribuições da União Europeia
Os Parlamentos naciouais exercem, antes de mais, um controlo
a priori da aplicação do princípio da subsidiariedade. Mas este controlo preventivo é, inevitavelmente, um controlo político.
De facto, o artigo 4. 0 desse Protocolo n.O 2 disciplina o envio
aos Parlamentos nacionais dos projetos de atos legislativos das entidades referidas no artigo 3.°. Sobre esses projetos cada Parlamento
nacional pode emitir o seu parecer (artigo 6.°), que será tido em
conta por aquelas entidades nos termos definidos no artigo 7." desse
O
Protocolo n. 2, conjugado com o referido artigo 3.° do Protocolo
n.o 1. Os n.O' 2 e 3 desse artigo 7.° do Protocolo n.o 2 regulam o respetivo procedimento.
'. Mas os Par!amentos nacionais também podem controlar a postenon a aphcaçao do princípio da subsidiariedade. Podem fazê-lo à
sombra do artigo 8.", par. 1, do Protocolo n.o 2, acima referido, que
permIte que um Estado-membro, em seu nome ou no do respetivo
Parlamento, ou de uma câmara do Parlamento, recorra para o TIUE
pedindo a anulação de um ato legislativo com fundamento na violação do princípio da subsidiariedade. Para o Estado lançar mão desse
meio contencioso pode-lhe ser útil o já referido relatório que a
Comissão é obrigada a apresentar anualmente, inclusive aos Parlamentos nacionais, sobre a aplicação do princípio da subsidiariedade
(citado artigo 9.° do Protocolo n.o 2). Este controlo a posteriori é,
pOIS, um controlo jurídico.
87. O princípio da proporcionalidade na atuação da União
Já estudámos que o princípio da proporcionalidade constitui
u~ dos princ!pios constitucionais que rege todo o ordenamento jurí-
dICO da Umao Europeia29'. Ele manifesta-se também, e de modo
expresso, no sistema de repartição de atribuições entre a União e os
De facto, depois de no n. ° I haver prescrito o princípio da especialidllde quanto às atribuições da União e de no n.O 2 ter vindo
294
Supra,
fi,o
47.
261
As atribuições da União Europeia
A União Europeia
regular o exercício das atribuições não exclusivas, nos moldes atrás
descritos, o artigo 5.° UE vem dispor, no seu n.o 4, que "(... ) o c?nteúdo e a forma da ação da União não devem exceder o necessano
para atingir os objetivos do presente Tratado".
. _
.,
Também aqui não estamos perante uma repartlçao de atnbUlções entre a União e os Estados-membros mas, sim, perante a disciplina do seu exercício. Ou seja, quer na prossecução. d~s su~s
atribuições exclusivas, quer no desempenho das atnbUlçoes nao
exclusivas (e, neste caso, mesmo que, por aplicação da regra da
subsidiariedade, se conclua que eabe à União agir), num caso e noutro a ação da União deve restringir-se apenas ao que for necessário.
, A conclusão imediata a tirar da interpretação do artigo 5.",
n.o 4, UE, é a de que todo este sistema de repartição de atribuições
e de disciplina do respetivo exercício, definido nesse artigo 5.°, visto
ele em globo, se encontra construído com coerência, e está imbuído
,
de um forte espírito descentralizador em favor dos Estados.
Especificamente quanto ao artigo 5.°, n.o 4, UE, estamos al
perante o princípio da proporcionalidade na fórmula da proibição de
excesso, construída pelo Direito alemão (" Übermassverbot"), e já
29
admitida pelo TJ no Direito da União Europeia '.
.
A proporcionalidade tem, portanto, aqui um papel deternunante para se determinar a amplitude possível da intervenção da
União, pondo-se o problema, obviamente, de modo especIal, em
relação à sua atividade legislativa. Pretende-se evitar o excesso de
regulamentação pela União, o que implica que se examine: se não ~á
outros meios, em alternativa à legislação que a Comlssao propoe,
em cada caso concreto, para se prosseguirem os objetivos da União
com os menores sacrifícios ou encargos possíveis para os destinatários das medidas propostas. Note-se, todavia, que, na medida em
que O TJ tem vindo a reconhecer aos órgãos da União um amplo
poder discricionário em matéria económica, onde, para além disso,
nem sempre é possível previamente quantificar com ngor os efeitos
das medidas legislativas projetadas, ele, em coerência, tem entendido que, na apreciação do respeito pelo princípio da proporcionalidade, não pode substituir-se aos órgãos da União na determinação
da oportunidade e do âmbito das medidas que estes têm em vista.
Isso condiciona o poder de fiscalização do TJ quanto ao cumprimento do artigo 5.", n.O 4, UE. Por via disso, a aplicação daquele
preceito pelo legislador da União só pode ser considerada ilegal
pelo TJ "se ela se revelar manifestamente errada em face dos elementos de que ele disponha no momento da adoção da regulamentação"29ó.
O já referido Protocolo n. ° 2, anexo ao Tratado de Lisboa, liga
os dois princípios, como se vê sobretudo pelo seu artigo 5.". Embora
a redação dada àquele artigo pelo Tratado de Lisboa tenha alterado
a redação que tinha antes o n." 6 do mesmo Protocolo na versão de
Nice, continua a dever-se aplicar o que neste n.O 6 se impunha, com
muita felicidade, quanto ao princípio da proporcionalidade e que a
doutrina, depois do Tratado de Maastricht, já extraía isoladamente
da subsidiariedade: que "em igualdade de circunstâncias, deve
optar-se por diretivas em vez de regulamentos (... )"297.
O controlo do respeito pelo princípio da proporcionalidade
obedece às mesmas regras que enunciámos para o princípio da subsidiariedade.
88. A especificidade da Ação Externa da União
O Tratado de Lisboa veio dar uma maior relevância às relações
externas da União sob o novo rótulo de Ação Externa. O essencial
dessa Ação consta do Capítulo I do Título V do TUE que contém as
"Disposições gerais" relativas a ela.
Ac. 5-10-94, cito
Veja-se, sobre esta matéria concreta, especialmente, JACQUÉ, pg. 169, e o
nosso O princípio da subsidiariedade, pg. 52. Veja-se também o Ac. TJ 12-11-66,
Reino Unido c. Conselho da União Europeia, Pree. C-84/94, Rec., pontos 46 e
segs.
296
'" Aes. 18-2-91, Conforama, Proes. C-112189, CoI., pgs. 1-991 e segs., e
28-2-91, Marchandise, C-332189, CoI., pgs. 1-1.027 e segs., 27-10-92, Alemanha
c. Comissão, proe. C-240/90, CoI., pgs. 1-5.383 e segs., e 5-10-94, Alemanha c.
Conselho, Proe. C-280193, CoI., pg'. 1-4.973 e segs.
262
297
263
A União Europeia
Dada a sua grande importância para a atividade da União, e a
amplitude do seu conteúdo, não deixa de surpreender o facto de, no
elenco das atribuições da União constante dos artigos 2.° a 6.°
TFUE, os autores do Tratado de Lisboa se terem esquecido de indicar o lugar da Ação Externa. E é pouco dizer-se, até porque não seria
correto fazê-lo, que com o seu silêncio eles pretenderam significar
que toda a Ação Externa se integrava nas atribuições concorrentes
da União ao abrigo da cláusula geral do artigo 4.°, n.o 1, TFUE.
Em nosso entender, para situarmos a Ação Externa nas atribuições da União, temos que a dividir em três domínios.
Em primeiro lugar, a Política Externa e de Segurança Comum
(PESC). Ela tem a sua sede no Capítulo II do Título V do TUE. A
PESC tem uma forte matriz intergovernamental. Isso resulta, sobretudo, do artigo 24.° UE. Com efeito, segundo o n.o 1, par. 2, desse
artigo, em regra a PESC é definida pelo Conselho Europeu e pelo
Conselho; estes deliberam na matéria por unanimidade; não há na
PESC atos legislativos; e o TJUE não dispõe de competência na
PESe. Esses traços são mais fortes do que as características comunitárias da PESC, que são, sobretudo, as seguintes: apesar de tudo,
a PESC aparece-nos como atribuição da União e não dos Estados-membros (artigo 25.° UE); a União tem competência para aprovar
decisões nessa matéria, por força, designadamente, dos artigos 25.°
b, ii, e 26.°, n.o 2, par. 1, UE, e as decisões são na União atos legislativos obrigatórios, por força dos artigos 288.°, par. 4, e 289.°
TFUE.
Dentro da PESC, a política comum de segurança e defesa
(PCSD) (artigo 41.°, n.O I, 1.' frase) apresenta traços intergovemamentais ainda mais fortes do que o regime geral da PESCo E esses
traços são, sobretudo, dois: as decisões relativas à PCSD são tomadas pelo Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta do
Alto Representante (que, recorde-se, é o presidente do Conselho dos
Negócios Estrangeiros), sem a participação do Parlamento
ou da Comissão (artigo 42.°, n.O 4, UE); e, como estudámos atrás, os
Estados podem estabelecer entre eles uma cooperação reforçada na
forma de cooperação estruturada permanente, sem qualquer número
mínimo (artigos 42.°, n.O 6, e 46. 0 UE).
264
As atribuições da União Europeia
Compõe também a Ação Externa, e em segundo lugar, a política
comercial ~omu~: Ela e:tá regulada dent~o da Parte V do TFUE, que
tem por epIgrafe A Açao Externa da Umão", no Título II.
Esta polí~ica comum é uma atribuição exclusiva da União.
Nesse senl1do e claro o artigo 3.°, n.o I, e, TFUE. Por força do n.o 2
do mesmo artIgo, também são atribuição exclusiva da União os
acordos internacionais na matéria da política comercial comum
Voltaremos adiante ao estudo deste preceito do TUE.
.
._Por fi~, e em terceiro lugar, fazem parte da Ação Externa da
Umao tambem as matérias a que se referem os Títulos III, IV, VI e
VII,. TFUE. Essas matérias cabem nas atribuições concorrentes ou
pa:l1l~adas da União, ao abrigo da cláusula geral do citado artigo
4. ,,no I, TFUE. Quanto aos acordos lllternacionais, a que se refere
o TItulo V, o problema não se coloca, por razões óbvias. Eles estão
dependentes da qualificação, em sede das atribuições da União das
matérias substantivas às quais os acordos se venham a referir. '
Como se vê de tudo o que fica dito, a Ação Externa encontra-se
caracterizada nos Tratados como uma realidade complexa e
híbrida29B •
89. As atribuições exclusivas dos Estados
Têm os Estados-membros da União atribuições exclusivas,
que, portanto, excluam a intervenção da União?
,. As atribuições exclusivas dos Estados não são um traço necessano das Federações, embora haja Estados federais que o adotam.
Na União Europeia, e como atrás explicámos, houve uma tentativa de se ir por esse. caminho quando da preparação do TUE, antes
do Tratado de Maastncht, através do Relatório Giscard. Mas como
também já foi referido atrás, essa tentativa malogrou-se e' desde
então não foi formalmente retomada.
298 Sobre a Ação Externa, ver, por último,
A Actuação externa, cito
265
MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA
'
A União Europeia
Todavia o Tratado de Lisboa inclui nos Tratados referência a
atribuições e~clusivas dos Estados-membros. É o caso, por exemplo, da segurança nacional, por força do artigo 4.°, n.o 2, 3.' parte,
UE. Não se sabe se esta orientação terá sido conscientemente assumida pelos autores dos Tratados porque, por exemplo, neste caso
concreto, ficou por disciplinar o modo como a atribuição exclusiva
dos Estados em matéria de segurança nacional se compadece com a
existência de uma Política Externa e de Segurança Comum, que,
como vimos, se encontra regulada no Título V, Capítulo II, do Tratado UE.
90. O paralelismo entre as atribuições internas e externas da
União
Merece referência especial o chamado paralelismo entre as
atribuições internas e externas da União.
Estamos perante mais uma criação sensata da jurisprudência
da União. Entende o TJ que, na medida em que a União tiver definido, num dado domínio material, regras comuns no seu plano
interno, ela fica investida de atribuições nesse domínio também no
plano externo, podendo, portanto, os seus órgãos concluir acordos
internacionais nessa matéria, mesmo na ausência de disposições
expressas que lhe atribuam competência para o efeito. Ou seja, O
simples facto de a União, por força das disposições contidas no
artigo 5.° UE, ter atribuições num dado domínio, faz nascer para ela,
implicitamente, as mesmas atribuições na ordem externa ou internacional. É O problema das atribuições implícitas da União.
O caso-chave da jurisprudência da União nesta matéria continua a ser o caso AETR''', embora o TI tenha desenvolvido essa
orientação em casos posteriores")o.
Ac. 31-3-71. Proc. 22170. já citado.
300 Ac. 14~7-76, Kramer, cit., pgs. 1.279 e segs., Parecer 1176,
Rec., pgs. 741 e segs., e Parecer 2/94,28-3-96, cit., especialmente, o ponto 3.
2'J9
266
As atribuições da União Europeia
, . Note-se qu~ ~ão podia ser doutra forma, porque o próprio exerdas. atnbUlçoes Internas da União ficaria impedido ou, ao
menos, dificultado, se ela não pudesse exercer as mesmas atribuições também no plano externo. Todavia, dessa corrente jurisprudenclal resulta, efetlvamente, um alargamento das atribuições da União,
embora com tradução apenas no plano externo'o,.
A revisão de Lisboa resolveu este problema em sede dos Tratados. Como já dissemos atrás, ficou disposto no artigo 3.°, n.O 2,
TFUE, que, no domínio das suas atribuições exclusivas, "A União
dispõe (... ) de competência exclusiva para celebrar acordos internacionais quando tal celebração (. . .) seja necessária para lhe dar a
possibilü!ade de exercer a sua competência interna (...)" (itálico
nosso). E a consagração, na íntegra, da doutrina AETR.
Estamos a falar de atribuições implícitas da União. Elas não se
confundem, portanto, com os poderes implícitos dos seus órgãos,
quant? aos quais se aplica a teoria geral dos poderes implícitos
em Drrelto Internacional. Nessa matéria o Direito da União nada
CICIO
inova302 •
,. G
ver so bre es t a matena
AUTlER, pgs. 23 e segs.
302 Sobre os poderes implícitos em Direito Internacional, ver ZULEEG fnternational organizations, Implied Powers, EPIL, voI. II, 1995, pgs. 1.312 e s~gs ..
301"
267
CAPÍTULO VII
OS ÓRGÃOS
E AS INSTITUIÇÕES DA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: P. PESCATORE, L'exécutlf communautaire:
justification du quadripartisme par les traités de Paris et de Rume, CDE
1978, pgs. 387 e segs.; F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit.,
1984, pgs. 200-336; H. WALLACE e W. WALLACE, Flying Together iII a
Larger arul More Diverse European U11iol1, Haia, 1995; H. WALLACE e
W. WALLACE (eds.), Policy-Making ln lhe European Unioll, 3. a ed.,
Oxford, 1996; J. GERKRATH, L'émergence d'un droi! constitutiOll11el pOlir
l'Europe, Bruxelas, 1997; E. NOEL, Les institutions de la Communauté
européenne, Bruxelas, 1997; G. BERTRAND, La prise de décision dans
I'Ul1ion européenne, Paris, 1998; J. L. QUERMONE, L'U11ion européenne
en quête d'institutions légitimes et efficaces, Paris, 1999; ANA MARTINS,
O Tratado de Nice - A reforma institucional e o futuro da Europa,
Estudos Isabel Magalhães Collaço, vo1. I, pgs. 779 e segs.; F. DE
QUADROS, Avaliação global do sistema orgânico e institucional da
União Europeia após o Tratado de Lisboa, Instituto de Ciências
Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
(ed.), O Tratado de Lisboa, Coimbra, 2012, pgs. 33 e segs.
SECÇÃO I
Preliminares
91. Introdução. Questão terminológica
Uma das especificidades mais marcantes do sistema jurídico da União reside, sem dúvida, no seu sistema institucional.
269
A União Europeia
Entendemos como tal o conjunto dos órgãos e das instituições da
União.
E, a propósito, impõe-se aqui, desde logo, uma precisão terminológica.
Para designarmos os centros de imputação de vontade jurídica
à pessoa coletiva União falaremos em órgãos. Foi sempre essa a
terminologia jurídica portuguesa: desde logo, a Constituição e a lei
ordinária referem-se a órgãos de soberania, a órgãos do Estado, a
órgãos da Administração, a órgãos das pessoas coletivas, públicas
' das, a orgaos
' - das SOCle
'dd
ou pnva
a es, e tc. 303 .
Para nos referirmos a pessoas coletivas que fazem parte da
estrutura institucional da União e que, portanto, não se limitam a
exprimir uma vontade imputável apenas à União, porque também, e
antes de mais, é imputável a elas próprias, falaremos em pessoas
coletivas ou em instituições.
Não procedem com este rigor as versões oficiais em língua
portuguesa, nem do Direito originário da União (embora a partir das
revisões dos Tratados em Maastricht e Amesterdão se tenha atenuado a imprecisão terminológica que vinha das versões portuguesas
iniciais, após a adesão de Portugal às Comunidades Europeias), nem
do Direito derivado. E não procede assim parte da doutrina. Aquelas
e esta têm generalizado o vocábulo instituições para designar o que,
em bom rigor, são órgãos da União. Mas, em nosso entender, procedem mal. Nada na integração europeia nos obriga a abandonar a
nossa própria e específica terminologia jurídica, sedimentada, quase
sempre, há séculos, e, nalguns casos, com raízes no Direito Romano.
E o que é institution em francês e em inglês não é o que é instituição
em português. Os outros Estados-membros protegem desse modo a
sua terminologia; é nosso dever fazermos o mesmo. Já nos havíamos
debruçado sobre esta questão na Introdução deste livro, quando
explicámos a razão de ser da epígrafe e da subepígrafe desta obra.
Assim, por todos, e para nos confmarmos à doutrina juspublicista, ver
Manual de Direito Constitucional, 1. V, 3. a ed., Coimbra, 2004,
pgs. 43 e segs., FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 3. a ed., 1. I,
Coimbra, 2006, pgs. 759 e segs., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.3. ed., Coimbra, 2003, sobretudo, pgs. 555 e segs.
Os órgãos e as instituições da Uniao Europeia
Aliás, mesmo nas línguas estrangeiras há quem evite o vocábulo vago instituição e se refira a órgãos da União. Faz isso, antes
de mais, a versão alemã dos Tratados, que sempre foi tida como uma
das mais cuidadas versões do Direito originário da União. Ela
refere-se a "Die Organe der Union" (epígrafe do Título III do Tratado UE e o seu artigo 13.°, e epígrafes do Título I e do Capítulo I
da Parte VI do TFUE). E faz isso, também, parte da doutrina francesa, que distingue, nos termos por nós indicados, os órgãos e as
instituições: ver, por exemplo, ISAAC'04 e MANIN305-306.
É, pois, com fidelidade a este rigor terminológico que prosseguiremos o nosso estudo.
92. Os órgãos da União depois do Tratado de Lisboa
Como dissemos atrás, se formalmente o Tratado de Lisboa
acabou com a distinção entre os três pilares, do ponto de vista substanciai mantém-se, com autonomia, o segundo pilar, agora dedicado, em geral, à Ação Externa.
Foi por isso que o artigo 13.°, n.o 1, UE, um pouco à semelhança do que fazia o antigo artigo 3.° UE, na versão de Nice, sentiu
a necessidade de deixar claro que "A União dispõe de um quadro
institucional que visa ( ... ) assegurar a coerência, a eficácia e a continuidade das suas políticas e das suas ações".
Esse quadro institucional é composto pelos órgãos (designados por "instituições") indicados nesse mesmo artigo 13.°, n.o I,
TUE.
O desejo de com esse quadro institucional único se assegurar a
coerência no seio da União, não impede o n.O 2 do mesmo artigo de
prevenir que cada órgão atua, dentro de cada um dos dois Tratados.
isto é, dentro de cada um dos dois pilares, de harmonia com a com-
303
JORGE MIRANDA,
270
Pgs. 49 e segs.
Pgs. 175 e segs. e 179 e segs.
306 Ver, sobre esta questão, também GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, por ex.,
pgs. 446 e segs., e a nossa dissertação de doutoramento, por ex., pgs. 250 e segs.
304
305
271
A União Europeia
petência que aí lhe seja atribuída e segundo o procedimento que aí
lhe seja definido.
Todavia, agora a situação é bem diferente da dos antigos TU~
e TCE. Enquanto que, antes do Tratado de LIsboa, a UE pedIa
emprestados à CE os seus órgãos (salvo o Conselho Europeu, que
era órgão próprio da UE embora tivesse competência residual no
âmbito da CE), o Tratado de Lisboa, também aqui na esteira do
Tratado Constitucional, criou um único quadro institucional para
toda a UE, embora os órgãos possam ter competência específica
para a Ação Externa.
.
De harmonia com o artigo 13.°, n. o 2, UE, os órgãos refendos
no n.o 1 desse artigo devem cooperar com lealdade.
Os órgãos indicados nesse n. ° I encontram-se disciplinados,
nos seus aspetos essenciais, nos artigos 14.0 a 19.° UE. Depois, na
Parte VI, Capítulo I (artigos 223.° e seguintes) TFUE encontramos
a regulamentação mais pormenorizada desses órgãos, bem como
dos órgãos secundários e das instituições da UE.
93. O sistema de repartição de poderes
A União tem um sistema de repartição de poderes entre os seus
órgãos bastante mais profundo e avançado do que o vulgarmente
conhecido nas Organizações Internacionais clássicas, por ex(~mIJIO;
na Organização das Nações Unidas. Isso deve-se ao facto de
órgãos da União serem muitos e de a sua competência ser vasta.
O sistema de repartição de poderes na União pode-se qualificar
como um sistema quadripartido J07 . Ou seja, é possível encontrarmos,
quatro poderes dentro do poder político da União: o poder legisla·
tivo, o poder executivo, o poder de fiscalização ou de controlo eo
poder judicial. A configuração e a demarcação do poder legislativ9
são particularmente complexas e constituem uma das originalidades:;.
do sistema da União. Por outras palavras, o processo legislativo.
envolve a participação de vários órgãos e assume, em função disso,
diversas modalidades, como veremos.
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Não obstante, isso não é possível, desde logo por vontade
expressa dos autores dos Tratados, encontrar um simite entre o sistema de repartição de poderes na União e o sistema estadual J". Nem
sequer se podia esperar isso, sabendo-se, como se sabe, que a União
ainda não alcançou um modelo estadual. É que, como dissemos
atrás, a progressão da integração europeia para uma união política
não tem necessariamente que se fazer segundo os modelos clássicos
de organização do poder político. Esse é, aliás, para o jurista e para
o cultor da Ciência Política, um dos grandes fascínios do processo
da construção europeia.
Vamos estudar o sistema institucional da União e das Comunidades dividindo-o em duas categorias:
a) os órgãos; e
b) as instituições.
Dentro dos órgãos, os órgãos principais são aqueles que constam do artigo 13.0 UE, isto é, o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Conselho, a Comissão Europeia, o Tribunal de
Justiça da União Europeia, o Banco Central Europeu e o Tribunal de
Contas.
A ordem pela qual os órgãos estão indicados corresponde à
ordem pela qual eles constam do artigo 13.° UE e à ordem pela qual
se encontram mais tarde disciplinados nos artigos 223. 0 e seguintes
doTFUE.
94. A tripla legitimidade na titularidade do poder político da
União
A integração europeia e, mais concretamente, o exercício do
poder político da União, assentam numa tripla legitimidade. E esse
constitui, sem dúvida, o traço mais marcante da estruturação do
sistema institucional da União. Essa tripla legitimidade é-nos dada
308
307
Assim,
PESCATORE,
L'exécutif, pgs. 388 e segs..
272
Isto já foi inclusivamente reconhecido, de forma expressa, pelo TJ _ Ac.
6~6-82, Procs. 188 a 190/80, França, Itália e Reino Único c. Comissão, CoI.,
pg. 2.573. ponto 6.
273
A União Europeia
pela legitimidade da integração, pela legitimidade estadual e pela
legitimidade democrática.
No seu início, a integração fundava-se apenas numa dupla
legitimidade: a da integração, representada pela Comissão, e a estadual, representada pelo Conselho. De facto, a Comissão foi criada
como órgão independente dos Estados e representante do interesse
comunitário, como verdadeiro órgão supranacional. Foi por isso que
o Tratado CECA, na sua versão inicial, até ao Tratado de fusão de
1965, apelidava a Alta Autoridade da CECA de órgão "supranacional" (artigo 9.° CECAl. Ao contrário, o Conselho foi pensado
como órgão que encarnava e representava os interesses dos Estados-membros. Essa dicotomia integração/interesses dos Estados espelhava a tensão dialética entre a integração e a interestadualidade,
que, como já por mais de uma vez dissemos neste livro, preside ao
processo da integração. Além disso, ela confirmava a vocação federal das então Comunidades, bem expressa no Plano Schuman, de
1950: de facto, também nos sistemas federais, no exercício do poder
político, desde logo, no exercício do poder legislativo, coexistem a
representação do todo integrado e a participação dos Estados fede"
rados. Já vimos isso atrás. Pense-se nos Estados Unidos, onde o
poder legislativo assenta num sistema bicameral, em que a Câmara
dos Representantes representa a integração e o Senado é composto
por representantes dos Estados federados; ou pense-se na Alemanha,
onde o mesmo se passa, respetivamente, com o Bundestag e o Bun·,
desrato
Com a eleição do Parlamento Europeu por sufrágio direto ~ c';;
universal, em 1979, este órgão veio acrescentar à integração euro, . '
peia uma terceira legitimidade: a legitimidade democrática. Até
porque logo a seguir, no Ato Único Europeu, de 1985, se iniciaria
um processo de progressivo reforço dos poderes do Parlamento, qu~
em 1979 se esgotavam na sua competência consultiva, fora o poder
legiferante em matéria orçamental.
•
É certo que, na legitimidade democrática do Parlamento EunJ,.
peu, subsiste o défice resultante do facto de ele não representar o',
povo europeu, que no plano jurídico aiuda não existe, mas, colU9
dispunha expressamente o antigo artigo 190.° do Tratado CE, apenil5,
274
Os órgãos e as instituições da União Europeia
"os pOVOs dos Estados reunidos na Comunidade", ou, como estabelece hoje o artigo 14.°, n.O 2, UE, os "cidadãos da União".
Esta construção é também acolhida por um grande nome da
doutrina, DENYS SIMON309 • Este Autor fala até numa quarta legitimidade, que designa de "legitimidade judiciária"3l·, que ele vê concretizada no atual TJUE. Cremos, todavia, que neste caso a expressão
legitimidade está utilizada num sentido diferente do que é empregue
para designar as outras três legitimidades a que acima nos referimos,
e, por isso, evitá-la-emos3l'.
SECÇÃO II
Os órgãos principais
§J.O
o Parlamento Europeu
Bibliografia especial: l-V. LoUIS e D. WAELBROEK (eds.), La
Parlement européen dans l'évolution institutionnelle, Bruxelas, 1988;
D. QUINTY e G. JOLY, Le rôle des parfements européen et nationaux dans
la fonction législative, RDP 1991, pgs. 436 e segs.; C. BLUMANN, La
fonction législative communautaire, Paris, 1995; R. CORBETT, The
European Parliament's role in doser EU integration, Londres, 1999;
O. COSTA, Le Parlement européen, assemblée déliberante, Bruxelas,
2001; A. KREPPEL, The European Parliament and Supranational Party
System, Flórida, 2001; J. ANDRIANT SIMBAZOVINA, Le Parlement européen, "corps legislatif', banalisation hasardeuse ou évolution créatrice?, Mélanges Isaac. pgs. 271 e segs.
309
310
311
Pgs. 183 e segs.
Pgs. 230 e segs.
Sobre esta matéria, ver também
489 e segs., e ISAAC, pg. 50.
275
LENAERTS/VAN NUFFEL,
especialmente,
A União Europeia
95. Origem e estatuto
Os órgãos e as instituições da UI/ião Europeia
96. Composição
o Tratado de Paris chamava a este órgão Assembleia Comum.
Depois, os Tratados de Roma designaram-no de Assembleia. Em
1962, ele auto-designou-se de Parlamento Europeu, tendo esta
designação obtido consagração no AUE e sendo ela depois mantida
noTUE.
Desde os Tratados institutivos, coube ao Parlamento a função
de representar os povos dos Estados-membros. Por isso, o ex-artigo
189.° CE, na versão de Nice, dispunha que ele era "composto por
representantes dos povos dos Estados reunidos na Comunidade".
Note-se: dos povos dos Estados, e não do povo europeu. Tínhamos
aqui uma boa demonstração de que, para os Tratados, ainda não
existia um povo europeu. A situação, do ponto de vista jurídico, em
nada mudou com O Tratado de Lisboa. É certo que o TUE passou a
dispor, agora no seu artigo 14.°, n.o 2, que "O Parlamento Europeu
é composto por representantes dos cidadãos da União" (itálico
nosso). Mas não havendo, como já explicámos, uma cidadania da
União autónoma da cidadania nacional, falar em cidadãos da União,
ou em povos, ou em cidadãos dos Estados-membros, é o mesmo.
Todavia, a função do Parlamento Europeu de representar os povos
dos Estados ou os cidadãos da União, aliada ao modo atual de desig~
nação dos seus membros, confere ao Parlamento Europeu a missão
de simbolizar a legitimidade democrática no processo de decisão da
União ou, melhor, no exercício do poder político da União. Para
todos os efeitos, é o único órgão da União eleito por sufrágio direto
e universal dos cidadãos da União.
O Parlamento Europeu está regulado hoje nos artigos 14.°, e
15.° UE e 223.° a 234.° TFUE. Além disso, ele tem o seu próprio,
Regimento. O Regimento consta do sítio do Parlamento, www.euro~:.'
par1.eu, e está em frequente modificação.
O Parlamento tem sede em Estrasburgo, onde têm lugar as"
reuniões plenárias mensais. As reuniões plenárias extraordinárias,'
bem como as reuniões das comissões parlamentares, têm lugar
Bruxelas.
Tanto em 1951, como em 1957, os autores dos Tratados (artigos 21.° CECA e 138.° CEE) haviam previsto que o Parlamento
Europeu submetesse ao Conselho um projeto que regulasse a sua
eleição por sufrágio direto e universal dos cidadãos dos Estados-membros, segundo um processo uniforme em todos os Estados. De
harmonia com os mesmos preceitos, ele serIa, entretanto, composto
por membros cooptados pelos Parlamentos nacionais entre os seus
membros: "A Assembleia é fOlmada por delegados que os Parlamentos designam no seu seio segundo o processo fixado por cada
Estado-membro".
Em 20 de setembro de 1976, o Conselho aprovou uma Decisão
que estabeleceu o sufrágio direto e universal 3l ', seguida do Ato relativo à eleição dos representantes na Assembleia por sufrágio universal e direto. Por isso, em 1979, de 7 a 10 de junho, já foi possível
proceder-se às primeiras eleições diretas para o Parlamento, após se
ter ultrapassado uma série imensa de obstáculos jurídicos e políticos. Mas até hoje não se conseguiu levar a cabo essas eleições de
harmonia com um processo eleitoral uniforme, pelo que as eleições
têm lugar em cada Estado em conformidade com o respetivo Direito
eleitoral interno.
Todavia, de harmonia com o artigo 138.°, n.o 4, CE, na redação
que lhe deu o Tratado de Amesterdão, e que corresponde ao atual
artigo 223.°, n.o I, TFUE, o Parlamento Europeu está encarregado
de elaborar um projeto destinado a permitir a sua eleição "segundo
um processo uniforme em todos os Estados-membros ou baseado
em princípios comuns a todos os Estados-membros". Por isso, na
Resolução de IS de julho de 1998 313 , ele propôs um sistema de tipo
proporcional, baseado em círculos eleitorais regionais, deixando,
contudo, aos Estados a liberdade de criarem um círculo nacional, de
fixarem um limite mínimo para a repartição dos assentos e de autorizarem o escrutínio preferencial.
3D
Decisão n.o 761787/CECA, CEE e CEEA, 10 L 278, de 8-10-76,
C 292/66, de 21-9-98.
m 10
276
277
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Note-se, todavia, que, hoje, à exceção do Reino Unido, que se
mantém fiel ao sistema uninominal a uma volta, todos os outros
Estados-membros adotam variantes, mais ou menos próximas entre
si, do sistema de representação proporcional. Mas essa diferença
tem sido suficiente para que não se chegue a um processo eleitoral
uniforme. Acresce a isso, que não é fácil o regime de adoção desse
processo uniforme: ele tem de ser aprovado pelo Conselho, por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu por maioria dos
membros que o compõem, e depois tem de ser aprovado por todos
os Estados-membros segundo as respetivas normas constitucionais
(citado artigo 223.°, n.o 1, par. 2, TFUE).
Os deputados, como se disse, são eleitos por sufrágio direto e
universal no âmbito de cada Estado (artigos 14.°, n.o 3, UE, e 223.°,
n.o 1, TFUE). As eleições têm lugar na mesma data em todos os
Estados-membros.
Os assentos atribuídos aos Estados são repartidos proporcionalmente em função da população de cada Estado, conforme dispõe
o artigo 14.°, n.o 2, UE. Note-se, todavia, que o critério da população
é aplicado de modo degressivo, como dispõe o mesmo preceito, de
modo a, simultaneamente, se evitar a sobrerepresentação dos Estados mais populosos e a subrepresentação dos Estados com população diminuta.
Nas edições anteriores deste livro descrevemos as vicissitudes
pelas quais passou o número de deputados do Parlamento Europeu
no período posterior ao Tratado de Nice e anterior ao Tratado de
Lisboa em virtude da necessidade que houve em, por um lado, aco"
lher nele os deputados dos doze Estados que aderiram em 2004 e
2007 e de, por outro lado, não se aumentar demasiado o número
total de deputados do Parlamento. Essas vicissitudes têm, porém,
hoje só interesse histórico.
O Tratado de Lisboa veio regular a matéria no referido artigo
14.°, n.o 2, do Tratado UE. Aí passou a dispor-se que o número de
deputados do Parlamento Europeu não podia ser superior a setecentos e cinquenta, mais o Presidente, o que, para todos os enmc,s,
perfaz o número de setecentos e cinquenta e um'l4. Há um
mínimo, de seis deputados por Estado-membro, e um limite
máximo, de noventa e seis deputados por Estado-membro.
O mesmo preceito remetia para uma Decisão posterior unânime do Conselho Europeu, tomada por iniciativa do Parlamento
Europeu sob aprovação do Conselho, a fixação definitiva do número
de deputados por cada Estado. E assim aconteceu. Na Cimeira de
Bruxelas de 18 e 19 de junho de 2009315 o Conselho Europeu levou
a cabo um ajustamento no número de deputados a eleger por alguns
Estados. O número de deputados por cada Estado ficou então distribuído do seguinte modo:
314
Ver as Declarações
ll.OS
4, 5, 57 e 64 anexas ao Tratado de Lisboa.
278
Alemanha
França
Reino Unido e Itália
Espanha
Polónia
Roménia
Países Baixos
Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria e Portugal
Suécia
Áustria
Bulgária
Dinamarca, Eslováquia e Finlândia
Irlanda e Lituânia
Letónia
Eslovénia
Chipre, Estónia, Luxemburgo e Malta
96
74
73
54
51
33
26
22
20
19
18
13
12
9
8
6
Esta distribuição dá um total de setecentos e cinquenta e um
deputados, como impõe o artigo 14.°, n. o 2, UE. Todavia, de facto, o
Parlamento Europeu, na atuallegislatura, de 2009-2014, tem setecentos e cinquenta e três deputados. Esta diferença tem uma explicação simples. Por um lado, quando o Tratado de Lisboa entrou em
m
Conclusões da Presidência, Anexo 4.
279
A União Europeia
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
vigor já tinham tido lugar, em junho de 2009, as eleições para a atual
legislatura, de 2009-2014, do Parlamento Europeu. Ora, a Alemanha, pelo Tratado de Nice, elegeu, nessas eleições, noventa e nove
deputados. Não era possível, pois, fazer cessar o mandato a três
desses deputados. Aliás, ela foi o único Estado-membro a perder
deputados por força da referida Decisão do Conselho Euopeu. Por
outro lado, a França ficou a ter transitoriamente menos um deputado, ou seja, setenta e três deputados.
Portanto, o Parlamento Europeu só no mandato de 2014-2019
terá setecentos e cinquenta e um deputados.
Como se disse atrás, o critério da população é aplicado de
modo degressivo. Assim, por exemplo, não obstante a Alemanha ter
oito vezes a população portuguesa, não é essa a proporção que
separa o número de deputados por Portugal e pela Alemanha: aquele
tem vinte e dois deputados, esta, noventa e seis, ou, provisoriamente, noventa e nove. O mesmo vale para o confronto entre Portugal e Malta: Portugal tem vinte vezes a população de Malta, mas
tem vinte e dois deputados, e Malta, seis.
Chamamos a atenção para o facto de, com o alargamento de
2004-2007, o peso relativo dos Estados grandes no sistema de relação de poder no Parlamento ter diminuído substancialmente, porque
aumentou bastante o peso dos Estados médios e pequenos. Assim, e
olhando para o quadro que acabámos de mostrar, passámos a ter seis
Estados grandes, até à Espanha e à Polónia, dez Estados médios, até
à Áustria e à Bulgária, e entre os quais se situa Portugal, e Onze
Estados pequenos, que são os outros.
O Tratado UE prevê que os deputados tenham um mandato de
cinco anos (artigo 14.°, n.o 3).
O Regimento do Parlamento prevê esse modo de organização,
no seu Capítulo IV, desde a Assembleia da CECA. Os grupos são
constituídos em função das suas afinidades políticas. Hoje já não é
possível compor um grupo político com deputados pertencentes a
um só Estado-membro.
Os grupos políticos são frequentemente constituídos no quadro
de partidos políticos europeus. Note-se que o TFUE, no seu artigo
224.°, estimula a criação daqueles partidos.
Os grupos políticos hoje existentes, depois das eleições de
2009, são os seguintes:
97. Os grupos políticos
Uma das maiores singularidades do Parlamento Europeu no
contexto internacional reside no facto de os deputados não se encontrarem organizados por delegações estaduais, mas sim por grupos
políticos multinacionais.
280
PPE - Partido Popular Europeu (Democratas Cristãos) _
271 deputados;
S&D - Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas
- 189 deputados;
- ALDE - Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa _
85 deputados;
- Verdes-ALE - Os Verdes/Aliança Livre Europeia - 59
deputados;
CRE - Conservadores e Reformistas Europeus - 52 deputados;
- GUE/NGL - Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde - 34 deputados;
- ELO - Europa da Liberdade e da Democracia - 34 deputados;
há deputados não inscritos, que atualmente são 30.
Os grupos políticos desempenham uma importante função na
condução da política ao nível parlamentar e ao nível da União em
geral, sobretudo quando se encontram organizados em partidos políticos. E é bom, sobretudo para os Estados médios e pequenos, ter
deputados seus nas bancadas dos grandes partidos europeus ou dos
grandes grupos políticos europeus. Dos partidos portugueses, o PSD
e o CDS-PP têm deputados no PPE; o PS, na S&D; o Bloco de
Esquerda e o PCP, no GUE/NGL.
.
281
A União Europeia
Não obstante toda essa importãncia, os grupos políticos não
atuam em nome do Parlamento e, portanto, os seus atos não lhe são
juridicamente imputáveis. Assim já decidiu o TJ316.
98. Competência
o Parlamento Europeu é o órgão que mais viu os seus poderes
reforçados ao longo de todos estes anos, seja através das revisões
de 1985, de 1992, de 1997, de 2000 e de 2007 (isto é, pelo Tratado
de Lisboa), seja pelos Tratados orçamentais de 1970 e 1975, seja, de
modo menos formal, por via de práticas e de acordos interinstitucionais.
Vamos ver os diversos tipos de competência que os Tratados
atribuem ao Parlamento Europeu depois da revisão de Lisboa. Antes
do Tratado de Lisboa, o essencial da competência do Parlamento
encontrava-se referido no artigo 192.° CE. Agora, o essencial dessa
competência está elencado no artigo 14.°, n.o I, UE. Dizemos o
"essencial" da competência porque esse preceito carece, na sua análise e na sua concretização, de algumas precisões para apreendermos
o conjunto global da competência do Parlamento Europeu e a sua
importância.
Assim, podemos classificar essa competência em quatro grandes categorias:
a) competência legislativa;
b) competência em matéria orçamental;
Os órgãos e as instituições da União Europeia
I - Competência legislativa
A União possui um poder legislativo. Ou seja, pode-se falar na
existência de uma função legislativa da União traduzida na atividade de elaboração de atos que materialmente têm carácter legislativo. O TJ reconheceu-o por diversas vezes, desde logo, quando
afirmou a existência de um "sistema legislativo do Tratado""', de
um "poder legislativo da Comunidade"'" e de um "legislador
comunitário"320.
Mas o poder legislativo da União não consiste num simile do
poder legislativo do Estado. Por isso, também a competência legislativa do Parlamento Europeu não é homóloga da competência
legislativa de um Parlamento estadual, como vamos ver.
A competência legislativa do Parlamento Europeu traduz-se na
sua participação na função legislativa da União. E essa participação
assume manifestações muito diferentes. São elas:
a) o poder de iniciativa legislativa indireta;
b) o processo legislativo ordinário;
c) o processo legislativo especial.
Por confronto com as edições anteriores deste livro decidimos
retirar da competência legislativa do Parlamento o processo de cooperação, ao qual o Tratado de Lisboa pôs termo32 '.
Vamos examinar cada uma das referidas manifestações da
competência legislativa do Parlamento Europeu.
c) competência política;
d) competência em matéria de relações internacionais.
Vamos examinar uma a uma estas quatro categorias'!'.
316 Aç. 22-3-90, Jean-Marie Le Pen e Front national c. Parlamento Euro~
peu, Proe. C-20l/89, CoI., pgs. 1-1.183 e segs.
311 Dentro da bibliografia geral, veja~se esta matéria desenvolvida, já
do Tratado de Lisboa, sobretudo, em RIDEAU, pgs. 392 e segs., JACQUÉ, pgs.
segs., e VAN RAEPENBUSCH, pgs. 281 e segs.
282
a) Poder de iniciativa legislativa indireta
Como veremos, o poder de iniciativa no processo legislativo
cabe, em regra, à Comissão, através da apresentação de uma pro318
319
3llJ
Ac. 17-12-70, Koster, Proc. 25/70, Rec., pgs. 1.161 e segs.
Ac. 9-3-78, Simmenthal, Pme. 106/77, CoI., pgs. 629 e segs.
Ac. 27-10-92, Alemanha c. Comissão, Proc. C-240/90, Rec., pgs. 1-5.383
e segs.
321
Assim, também lACQUÉ, pg. 431, e PRIOLLAUn/SIRITZKY, pgs. 65 e segs.
283
A União Europeia
posta formal. Contudo, o TFUE confere um poder de iniciativa
indireta, quer ao Conselho (artigo 241."), quer ao Parlamento Europeu (artigo 225.°). Ou seja, um e outro podem provocar a apresentação de urna proposta pela Comissão e esta, se se recusar a fazê-lo,
deve fundamentar a sua recusa.
b) Processo legislativo ordinário
O processo legislativo ordinário chamava-se no Tratado CE,
nas versões de Maastricht a Nice, processo de co-decisão, porque se
traduz num processo de decisão conjunta do Parlamento Europeu e
do Conselho. Ou seja, os dois co-legislam. Passou a chamar-se, com
o Tratado de Lisboa, processo legislativo ordinário (artigo 289.°
TFUE). Esse processo legislativo é assim designado porque se quis
transformá-lo no processo comum ou geral de a União legislar, o
que se traduziu num aumento significativo da competência do Parlamento Europeu no processo legislativo.
Corno se disse, o processo de co-decisão foi introduzido no
Tratado CE pelo Tratado de Maastricht e depois alargado pelos Tratados de Amesterdão e de Nice.
Até ao Ato Único Europeu, de 1986, os Tratados atribuíam, ao
Parlamento Europeu só competência consultiva, se excluirmos a
competência financeira e orçamental que lhe foi reconhecida pelos
Tratados de Luxemburgo e Bruxelas, respetivamente, de 22 de abril
de 1970 e de 22 de julho de 1975. O Ato Único criou o processo de
cooperação entre o Parlamento, o Conselho e a Comissão para certas decisões relativas ao mercado interno, visando com isso associar
mais estreitamente o Parlamento ao processo legislativo na medida
em que ele, em primeira leitura, podia propor alterações a uma proposta da Comissão. Em caso de desacordo entre o Parlamento e o
Conselho, este conservava o seu poder de decidir em última instância, como no processo legislativo clássico, embora no processo de
cooperação tivesse, para o efeito, de deliberar por unanimidade.
Portanto, naquele processo o Parlamento e o Conselho não estavam
em pé de igualdade porque a última palavra cabia ao Conselho.
284
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Com a criação do processo de co-decisão no Tratado da União
Europeia, pelo Tratado de Maastricht, e com o seu alargamento progressivo pelos Tratados de Amesterdão e de Nice, o processo de
cooperação foi perdendo sucessivamente utilidade e, já com a revisão de Amesterdão, praticamente ficou limitado a algumas deliberações a tomar no âmbito da União Económica e Monetária (artigos
99.°, n." 5, 102.", n." 2, 103.°, n.o 2, e 106.°, n.O 2, CE, após a revisão
de Amesterdão )322
Retomando o que estávamos a dizer do processo de co-decisão, ele veio dar satisfação a urna velha aspiração do Parlamento de
dispor de um verdadeiro poder de decisão no plano legislativo. Com
o poder de co-decisão, passou a haver atas comunitários que tinham
de ser aprovados nos mesmos termos tanto pelo Parlamento Europeu corno pelo Conselho. Se persistisse um desacordo entre os
dois, o Parlamento podia rejeitar o texto apresentado pelo Conselho.
Por conseguinte - e esta era a grande diferença que separava o processo de co-decisão e o processo de cooperação até ao Tratado de
Lisboa -, o Conselho, na co-decisão, deixava de ter a última palavra.
O processo legislativo ordinário encontra hoje o seu regime
jurídico definido no artigo 294.° TFUE. Remetem para ele, quase
sempre de modo expresso, os preceitos do Tratado que exigem, para
matérias concretas, o processo legislativo ordinário. Ele aplica-se a
algumas das matérias que antes estavam sujeitas a um mero processo de consulta do Parlamento Europeu ou ao processo de cooperação, bem como a matérias novas criadas pelos Tratados de
Maastricht, de Amesterdão, de Nice e de Lisboa. As matérias às
quais se aplica a co-decisão, hoje chamada processo legislativo ordinário, têm vindo a aumentar progressivamente. O Tratado de Maastricht aplicava-a a quinze domínios; o Tratado de Amesterdão
alargou-a a vinte e quatro novos casos; o Tratado de Nice veio
322 Uma lista completa dos casos de aplicação do processo de cooperação
do artigo 252.° antes do Tratado de Amesterdão, elaborada pelo próprio Conselho
em anexo ao seu Relatório sobre o Funcionamento da União Europeia, encontra-se
publicada na RTDE 1995, pgs. 343 e segs. (366). Veja-se também SIMON, pgs. 175,
nota I, e 176, nota J.
285
A União Europeia
aplicá-lo a cinco novas matérias; agora, o Tratado de Lisboa
somou-lhes quarenta novos casos 323 •
É correto dizer-se que o Tratado de Lisboa generalizou o processo de co-decisão ao dar-lhe a qualificação expressiva de processo
legislativo ordinário, o que tornou, portanto, a co-decisão no processo comum de legislar na União. Além disso, como bem se
notava, por exemplo, no Comentário Constantinesco CE32', não
havia, em bom rigor, simetria absoluta e igualdade, no processo de
co-decisão, até ao Tratado de Lisboa, entre o Parlamento Europeu e
o Conselho, dado que o Parlamento detinha o poder de impedir que
o Conselho decidisse enquanto que só o Conselho tinha a faculdade
de decidir. Ao contrário, agora, no processo legislativo ordinário, o
Parlamento Europeu e o Conselho são colocados, finalmente, em pé
de igualdade. Para tanto, foi determinante o Tratado de Lisboa ter
substituído, no ex-artigo 251.° CE, o "parecer do Parlamento Europeu" pela "primeira leitura" perante o Parlamento. Ou seja, enquanto
que pelo ex-Tratado CE a primeira leitura competia ao Conselho
após parecer do Parlamento (ex-artigo 251.°, n.O 2, CE), agora a
primeira leitura ocorre perante o Parlamento.
Note-se, todavia, neste pequeno pormenor: a igualdade entre O
Parlamento e o Conselho ainda não é total, porque o primeiro pode
aprovar a posição do Conselho pela maioria dos votos expressos
mas deve rejeitá-Ia pela maioria dos membros que o compõem - o
que pode fazer uma grande diferença. Vejam-se os n." 7, c), e 13,
par. 2, do artigo 294.° TFUE325.
Todavia, e pondo de parte este ponnenor, mais do que acontecia no velho processo de co-decisão O Parlamento e o Conselho são
agora, ambos, titulares ao mesmo nível do poder legislativo no processo legislativo ordinário, são ambos co-legisladores da União. Os
atos legislativos aprovados por este processo são atos praticados
Ver a lista exaustiva dos casos de processo legislativo ordinário em
pgs. 366-367.
'" Pgs. 657-658.
325 Neste sentido, também PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 367, onde também se
encontra um resumo simplificado e sistematizado dos trâmites do processo legis~
lativo ordinário.
323
PRIOLLAUDISIRITZKY,
286
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
"conjuntamente pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho" e são
assinados pelos Presidentes dos dois órgãos (artigos 289.°, n.o I, e
297.°, n." I, par. I, TFUE).
c) Processo legislativo especial
O processo legislativo especial constitui uma inovação do Tratado de Lisboa (artigo 289.°, n.o 2, TFUE). Por especial, quer-se
aqui significar que esse processo legislativo se afasta do processo
legislativo comum da União, isto é, o processo legislativo ordinário,
porque, ao contrário do que sucede neste, ele dá corpo a uma relação
desequilibrada entre o Parlamento Europeu e o Conselho, embora os
dois participem nessa relação. Dentro deste processo legislativo, são
em muito maior número os casos em que o Conselho legisla com a
participação do Parlamento Europeu em situação de inferioridade
(isto é, através de aprovação ou de parecer do Parlamento) do que o
contrário. Vejamos alguns exemplos da primeira situação: revisão
simplificada dos Tratados (artigo 48.°, n.O 7, par. 3, UE); adesão à
União de novos Estados-membros (artigo 49.° UE); saída de um
Estado-membro da União (artigo 50.°, n.o 2, UE); medidas contra discriminações (artigo 19.°, n.O 1, TFUE); certos aspetos da política social (artigo 153.° TFUE); e exercício pelo Conselho do seu
poder quase-constituinte (previsto no artigo 352.° TFUE). Ao contrário, são três os únicos casos em que o Parlamento legisla sozinho
com a participação prévia do Conselho, mediante aprovação: o
estatuto e as condições de exercício das funções dos deputados
europeus (artigo 233.° TFUE); modalidades de exercício do poder
de inquérito (artigo 266.° TFUE); e estatuto e condições gerais de
exercício das funções do Provedor de Justiça Europeu (artigo 228.0
TFUE).
Vamos estudar as duas formas pelas quais o Parlamento Europeu participa no processo legislativo especial em que é o Conselho
que legisla. São eles o processo de consulta e o processo de aprovação.
287
A União Europeia
c-I) Processo de consulta
Na versão original dos Tratados, a proposta da Comissão, que,
em regra, abria o processo legislativo, era dirigida ao Conselho, que
a dava a conhecer, por um Jado, ao COREPER, para a preparação da
decisão, e, por outro lado, ao Parlamento Europeu, para obter o seu
parecer. Era esta, então, a única forma de participação do Parlamento Europeu no processo legislativo. Ela continuou a ter lugar
quando os Tratados a impusessem e quando não estivesse prevista
outra forma de participação do Parlamento naquele processo. Toda·
via, nesta última hipótese, quando não estivesse prevista nos
dos outra forma de intervenção do Parlamento Europeu no processo
legislativo, o Parlamento foi obtendo progressivamente o direito de
ser ouvido em matérias em que a sua consulta não era obrigatória à
face dos Tratados, ou verbalmente, sobre as propostas da Comissão,
ou por escrito, pelo Conselho. Nasceu, deste modo, um "costume
constitucional"32', que ficou consagrado no Código de conduta celec
brado entre a Comissão e o Parlamento em 9 de março de 1995327 •
O Tratado de Lisboa substituiu a referência ao "parecer
Parlamento Europeu" por "consulta ao Parlamento Europeu". Esta .
consulta é imposta em cerca de cinquenta casos.
Nos casos em que seja obrigatório o Parlamento Europeu ser
consultado previamente pelo Conselho ou ser informado previa. r
mente da proposta da Comissão, o desrespeito por essa formalidade"
gera a ilegalidade do ato legislativo, por violação de uma formali; .
dade essencial'28. Se, após o Parlamento Europeu ter sido consultadói
pelo Conselho, o projeto de ato legislativo for substancialmente
modificado em consequência de alterações sobre as quais o Parlac
pg. 172.
m Ver esse Código in RTDE 1995, pg. 338.
323 Já assim se pronunciou o TJ quanto à não consulta do PaJ'lanlem\\\
Europeu pelo Conselho: Aes. 29-10-80, Roquette, Proe. 138179, Rec., pg.
2-3-94, Parlamento Europeu c. ConsellIo,.Proe. nO C-316/91, Col., pgs.
e segs.
Os órgãos e as instituições da União Europeia
mento Europeu não fora ouvido, este tem direito a voltar a ser
ouvido sobre o projeto dessa forma modificado'29.
Por sua vez, o Parlamento Europeu, quando consultado pelo
Conselho, deve emitir o seu parecer em prazo razoável de modo a
perm~tir ao Conselho deliberar em tempo útil. A tant; o impõe o
pnnClplO da colaboração leal entre aqueles dois órgãos33".
No exercício da competência que aqui estamos a analisar, o
parecer do Parlamento Europeu não vincula o Conselho. Contudo,
se este não seguir o parecer daquele, deve fundamentar a sua deliberação.
c-II) Processo de aprovação
. ?
Ato Único Europeu veio admitir, pela primeira vez, a particlpaçao do Parlamento Europeu no processo legislativo traduzida na
emissão de um parecer vinculativo ou conforme, dirigido ao Conselho. Por vezes esse parecer era designado de parecer "favorável".
O Tratado de Maastricht, mais tarde, alargou o número de
casos em que o Parlamento Europeu tinha de emitir um parecer
conforme.
Nesses casos, o Conselho, para além de ter de ouvir previamente o Parlamento Europeu, tinha de seguir o parecer deste. Ou
seja, o parecer do Parlamento Europeu tinha força vinculativa. O
Conselho é que praticava o ato legislativo, mas era obrigado a decidir no sentIdo do parecer do Parlamento Europeu, por isso chamado
de parecer confonne. O Parlamento dispunha, então, de um verdadeiro direito de veto: se o seu parecer fosse negativo, o Conselho
podia aprovar o projeto de ato legislativo.
O Tratado de Lisboa, para além de aumentar o número de
casos em que o Parlamento Europeu intervém desta forma no pro-
326 SIMON,
288
Ae. TJ 16-7-92, Parlamento c. Conselho, Pme. C-65/90, Cal., pgs.
e segs.
329
330 Ae. TJ 30-3-95, Parlamento Europeu c. Conselho, Pme. C-65/93, Col,
1-643 e segs., todavia, com conclusões em sentido contrário do Advogado-
TESAURO.
289
A União Europeia
cesso legislativo, deixou de falar em parecer conforme ou parecer
favorável para falar em "aprovação". A diferença não é despicienda:
em Direito Administrativo o parecer é um ato opinativo, a aprovação é um ato integrativo331 • Mas os efeitos de um parecer conforme
ou de uma aprovação prévia do Parlamento Europeu sobre a competência do Conselho para decidir são os mesmos: o Conselho, para
decidir, tem de o fazer no sentido da aprovação previamente concedida pelo Parlamento. Repete-se, o Parlamento tem aqui um verdadeiro direito de veto. Este direito só não toma assimilável este
processo ao processo legislativo ordinário porque, no processo
legislativo especial, o Parlamento Europeu não tem o poder de introduzir emendas no projeto de ato do Conselho, nem este ato nos
aparece como um ato conjunto dos dois órgãos, mas sim, como um
ato do Conselho.
Ao longo dos Tratados UE e TFUE ver-se-á que são muitos
casos importantes em que eles adotam o processo de aprovação
Parlamento. Destacamos, a título de exemplo, a verificação da
tência de um risco manifesto de violação grave dos valores ref'eridos
no artigo 2.° UE por um Estado-membro (artigo 7.°, n.o I, UE); o
exame do pedido de adesão de um Estado à União (artigo 49.°, par.
I, UE); a celebração com um Estado-membro do acordo da sua
retirada voluntária da União (artigo 50.°, n.o 2, UE); a cooperação.
judiciária em matéria penal (artigo 82.° TFUE); a celebraçãodef.
acordos internacionais pela União, incluindo o acordo da sua adesão,;"
à CEDH (artigo 218.°, n.O 6, TFUE); o quadro financeiro plurianuª,l
(artigo 312.°, n.o 2, TFUE); o alargamento dos poderes dos órgãos
da União (artigo 352.°, n.o I, TFUE)3J2.
c>;
Quando a aprovação pelo Parlamento Europeu é exigida pelos
Tratados, o ato legislativo praticado pelo Conselho sem a observâJF',
cia da formalidade dessa aprovação, ou em sentido divergente dª,'
aprovação, é ilegal e, por isso, é contenciosamente recorrfvel para ,c>
Tribunal de Justiça nos termos dos artigos 263.° e 264.° TFUE.
'
331 Ver FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vaI. II, 2:~~:}
Coimbra, 20 li, pgs. 296 e segs. e 302 e s e g s . , :
m Uma lista exaustiva dos casos do processo de aprovação encontram~~~
em PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 66.
290
Os órgãos e as instituições da União Europeia
II - Competência financeira e orçamental
Depois do Tratado de Lisboa, não é possível estudar-se o Orçamento anual da União, regulado na Parte VI, Título II, Capítulo 3 do
TFUE (artigo 313.° e seguintes), sem se compreender o Quadro
financeiro plurianual da União (o Capítulo que imediatamente antecede o Capítulo citado do TFUE, isto é, o Capítulo 2 _ artigo 312.°).
Segundo o artigo 312. 0, n.° I, par. I, "O quadro financeiro plurianual destina-se a garantir que as despesas da União sigam uma
evolução ordenada dentro dos limites dos seus recursos próprios".
Isto é, ele disciplina a aplicação, por um longo período de tempo,
dos recursos próprios da União, aos quais se refere o artigo 311.0
TFUE, às suas despesas.
O Quadro financeiro plurianual é definido para um período de,
pelo menos, cinco anos. O Orçamento anual tem de respeitar o Quadro financeiro plurianual (artigo 312.°, n.o I, pars. 2 e 3).
A regulamentação do Quadro financeiro plurianual nos Tratados é nova. Por isso, O artigo 312.° TFUE também é novo. Esse
Quadro dá corpo nos Tratados à prática das "perspetivas financeiras", que vigora desde 1988 através do Acordo interinstitucional de
29 de junho desse ano e que ficou conhecido por Plano Delors I.
Esse Plano previa, pela primeira vez, um sistema de disciplina plurianual de despesas comunitárias sob a forma de perspetivas financeiras para um período de cinco anos, isto é, 1988-1992. O Plano
Delors II, aprovado pelo Conselho Europeu de Edimburgo, em
dezembro de 1992, já foi elaborado para um período superior, de
sete anos (1993-1999).
O Tratado de Lisboa alterou substancialmente esse regime. O
Quadro financeiro anual, como dispõe o n.o 2 do artigo 312.° TFUE,
passa a ser elaborado por um processo legislativo especial, sendo
estabelecido por um regulamento do Conselho, adotado por este por
unanimidade, após aprovação pelo Parlamento Europeu por maioria
dos membros que o compõem (e não apenas pela maioria dos sufráexpressos). Já se vai aqui mais longe na participação do Parlamento Europeu do que na definição do sistema dos recursos
que é objeto de um processo legislativo especial onde o
291
A União Europeia
Parlamento so e consultado (citado artigo 311.°, par. 2, TFUE).
Todavia, na execução desse sistema de recursos próprios a intervenção do Parlamento dá-se segundo um processo de aprovação, aqui
por maioria dos votos expressos (artigo 311.°, par. 3, TFUE).
As últimas perspetivas financeiras adotadas foram-no para o
período de 2007 a 2013 333 . Portanto, só depois de expirado esse
período é que se aplicarão as novas disposições do artigo 312.°
TFUE para a adoção do novo Quadro financeiro plurianual, que
exigem a aprovação do Parlamento antes do ato legislativo do Conselho.
Resta apenas acrescentar que o n.O 5 do artigo 312.° impõe ao
Parlamento Europeu, ao Conselho e à Comissão, na adoção do Quadro financeiro plurianual, o respeito pelo princípio da recíproca
cooperação leal, que, como já estudámos, se encontra definido,
como princípio constitucional da União, no artigo 13.°, n.o 2, UE.
Passemos agora à competência do Parlamento Europeu no
processo legislativo da adoção do Orçamento anual, hoje regulado
nos artigos 313.° e 314.° TFUE.
Tomando-se como ponto de partida o Tratado de Roma, de
1957, essa competência foi alargada pelo Tratado do Luxemburgo,
de 22 de abril de 1970, e, depois, pelo Tratado de Bruxelas, de 22
de julho de 1975, o que ficou a dever-se à substituição das contri'
buições financeiras dos Estados-membros às Comunidades pela
criação de recursos próprios da União (citado artigo 311.° TFUE,
ex-artigo 269.°, par. I, CE, na versão de Nice). Mais tarde, diversos
acordos interinstitucionais concluídos entre o Parlamento Europeu,;
o Conselho e a Comissão vieram facilitar e simplificar o proce"
dimento orçamental. Foi o caso, mais recentemente, do AcordQ .
interinstitucional de 6 de maio de 1999 sobre a disciplina orçamenc
tal e o melhoramento do procedimento orçamental, que está elXf<
vigor desde I de janeiro de 2 0 0 0 . > ; :
O Tratado de Lisboa veio alterar profundameute o procedi.
mento de elaboração do Orçamento. Este procedimento assentav~,;.
m Ver os pormenores dessas perspetivas financeiras em PRIOLLAúóY'"
/SIRITZKY, pg. 384.
292
Os órgãos e as instituições da União Europeia
desde o citado Tratado de 1975, na distinção entre despesas obrigatórias (DO) e despesas não obrigatórias (DNO). Confinemo-nos ao
Tratado CE, na versão de Nice. Com base no anteprojeto de orçamento, que era elaborado pela Comissão fundando-se nas previsões
das respetivas despesas apresentadas por todos os órgãos da Comunidade antes de I de julho, era o Conselho quem preparava o projeto
de orçamento e o submetia ao Parlamento Europeu (ex-artigo 272.0,
n." I, 2 e 3, CE). Era o Conselho que tinha a última palavra sobre
as DO enquanto que era ao Parlamento Europeu que os Tratados
conferiam competência para deliberar em definitivo sobre as DNO
(o mesmo ex-artigo 272.°, n."' 4 a 9). Ao contrário do que sucedia
em 1975, durante a vigência do Tratado de Nice as DNO eram de
montante superior às DO, em virtude de aquelas englobarem os
fundos estruturais e de estas últimas terem diminuído com a redução
das despesas agrícolas.
Em qualquer caso, era o Parlamento que aprovava, em definitivo, o Orçamento (ex-artigo 272.°, n.o 7, CE). Mas ele podia também
rejeitá-lo. Nesse caso, devia rejeitar o Orçamento em globo (como o
fez em 1980 e em 1985), pedindo ao Conselho que lhe apresentasse
um novo projeto de Orçamento (ex-artigo 272.°, n.o 8, CE).
Já no referido Acordo interinstitucional de 1999 era abandonada, no procedimento orçamental, a distinção entre as DO e as
ONO.
O Tratado de Lisboa eliminou em definitivo essa distinção
entre as DO e as DNO e reformulou por completo o procedimento
orçamental no novo artigo 314.° TFUE. No par. I desse artigo,
estabelece-se que o Orçamento é elaborado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho através de um processo legislativo especial,
disciplinado nesse artigo. Todavia, esse procedimento, tal como está
regulado no artigo 314.° TFUE, nalguns momentos aproxima-se do
processo legislativo ordinário, ou processo de co-decisão entre
aqueles dois órgãos.
Depois de a Comissão elaborar o projeto de Orçamento (e já
não o Conselho, como acontecia antes), a eliminação da distinção
entre as DO e as ONO levou a um aumento significativo da competência do Parlamento Europeu. Numa aproximação ao processo
293
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
legislativo ordinário, há uma leitura perante o Parlamento e o Conselho, o que torna o procedimento mais rápido, porque o regime
geral do processo legislativo ordinário prescreve duas leituras
perante aqneles órgãos. Na fase final do processo legislativo especial, caso o Parlamento, por maioria dos seus membros, rejeite o
projeto comum de Orçamento ao qual chegou o Comité de Conciliação, a Comissão deve apresentar um novo projeto de Orçamento,
o que significa que a rejeição vale como uma rejeição global. Todo
o procedimento orçamental volta, portanto, ao início. Ao contrário,
se o Conselho rejeitar o projeto comum de conciliação, o Parlamento Europeu pode, mesmo assim, adotá-Io, desde que delibere
por uma dupla maioria: maioria dos membros que o compõem e três
quintos dos votos expressos (artigo 314.°, n.o 7, TFUE).
Não obstante o próprio Tratado estipular, como vimos, que este
processo de aprovação do orçamento é um processo legislativo
especial, há quem, como PRIOLLAUD e SIRITZKy334, veja nele uma
manifestação do processo de co-decisão, ou processo legislativo
ordinário, em que o Parlamento e o Conselho estão "em pé de ignaldade", embora com uma especificidade formal já referida: uma
única leitura em cada um desses órgãos e uma duração curta do
processo. Nós discordamos dessa opinião. Quer em função da letra
do corpo do referido artigo 314.°, quando se refere expressamente
ao "processo legislativo especial", quer em função da prevalêncià
que esse preceito confere ao Parlamento em caso de divergência
entre o Parlamento e o Conselho, parece-nos que é excessivo
dizer-se que os dois estão neste processo legislativo "em pé
igualdade". Por isso, é legítimo concluir-se que o processo legisla'
tivo pensado para o efeito foi mesmo um processo especial e não
processo ordinário. Melhor dito: é um processo legislativo '''IP~';j<U
com forte participação do Conselho, mas no qual ao Parlrumento
pode vir a caber a última palavra. Aliás, só assim é que se compreende que, a final, o Orçamento não seja apresentado como
ato de co-legislação dos dois órgãos, mas sim como um ato do
lamento Europeu (artigo 314.°, n.O 9, TFUE).
A execução do Orçamento compete à Comissão, em cooperação com os Estados-membros (artigo 317.° TFUE). Todavia, o Parlamento Europeu e o Conselho fiscalizam essa execução (artigo
318.° TFUE), da qual o Parlamento Europeu dá quitação à Comissão
(artigo 319.° TFUE). O controlo financeiro da execução do Orçamento cabe ao Tribunal de Contas (artigo 287.° TFUE).
334
Pg. 386.
294
III - Competência política
Como órgão eleito por sufrágio direto e universal dos cidadãos
dos Estados-membros, e, portanto, expoente máximo da ideia de
Democracia no sistema institucional da União, o Parlamento Europeu goza, desde o Tratado de Roma, de importante competência
política. O Tratado da União Europeia veio alargar essa competência. Agora, o Tratado de Lisboa introduziu no TUE e no TFUE
modificações que ainda mais aumentaram os poderes políticos do
Parlamento.
Essa competência política apresenta duas manifestações:
a) competência para a designação e a investidura da Comissão;
b) competência de controlo político.
a)
Competência para a designação e a investidura da
Comissão
Dentro da competência política do Parlamento Europeu
merece destaque, antes de mais, a sua competência para designar a
Comissão.
O Tratado de Lisboa reforçou também nesta matéria a competência do Parlamento no novo artigo 17.° UE.
Antes de mais, ele elege, por maioria dos membros que o compõem, o candidato a Presidente da Comissão proposto pelo Conselho Europeu, deliberando por maioria qualificada. Caso o candidato
não obtenha no Parlamento a maioria de votos necessária, o Conselho Europeu indica, por igual maioria, um novo candidato, para ser
295
A União Europeia
eleito pelo Parlamento pela mesma maioria da primeira eleição
(artigo 17.°, n.o 7, par. I, UE).
Mas o Parlamento Europeu também investe a Comissão
como órgão colegial. De facto, e em conformidade com o artigo
17.°, n.o 7, par. 3, UE, o Presidente, o Alto Representante, enquanto
Vice-Presidente da Comissão, e outros membros da Comissão, neste
caso depois de escolhidos por mútuo acordo entre o Conselho e o
Presidente eleito, nos termos do mesmo artigo 17.°, n.o 7, par. 2, UE,
são sujeitos à aprovação do Parlamento Europeu. Trata-se, de facto,
de uma investidura da Comissão, como órgão colegial, pelo Parlamento Europeu.
Esta competência para a designação e a investidura da Comissão vai-se aproximando cada vez mais da competência de um parlamento estadual para investir o respetivo governo.
b) Competência de controlo político
Mas o Parlamento Europeu exerce também, dentro da sua
competência política, um importante controlo político sobre a atuação de outros órgãos da União. Assim:
antes de mais, ele exerce um controlo geral sobre a atividade executiva dos órgãos da União. Ele pode colocar
questões, escritas e orais, ao Conselho Europeu, à Comissão, ao Conselho e ao Alto Representante (artigo 36.°, par.'
2, UE, e artigo 230.°, pars. 2 e 3, TFUE). A Comissão tem
de lhe apresentar um relatório geral anual sobre a atividade
da União (artigos 233.° e 249.°, n.o 2, TFUE). Como vimos
já, o Parlamento Europeu fiscaliza a execução do Orçá'.
mento pela Comissão (artigo 319.° TFUE). O Conselho;.
Europeu submeter-Ihe-á um relatório na sequência de cad~.
uma das suas reuniões (artigo 15.°, n.O 6, d, UE). O Altq:
Representante informá-Io-á regularmente sobre a evoluçã
da Ação Externa (artigo 36.°, par. 1, UE);
ele exerce um específico controlo político direto sobre;a
atividade da Comissão. Pode fazer cessar o seu mandatá;
296
Os órgãos e as instituições da União Europeia
inclusive do Alto Representante, aprovando uma moção de
censura contra ela, desde que esta reúna a dupla maioria
que os Tratados exigem (artigo 234.° TFUE)3J5;
todo o cidadão europeu, no quadro da cidadania da União,
bem como qualquer outra pessoa, singular ou coletiva, com
residência ou sede num Estado-membro, goza de um
direito de petição junto do Parlamento Europeu, nos termos
do artigo 227.° TFUE, como estudámos atrás;
- um Provedor de Justiça Europeu, eleito pelo Parlamento
Europeu, tem competência para receber queixas de qualquer cidadão da União, bem como de qualquer outra pessoa, singular ou coletiva, com residência ou sede num
Estado-membro, relativas a atos de "má administração" de
qualquer órgão, instituição ou organismo da União, com
exceção do TJ e do TPI no exercício das respetivas funções
jurisdicionais, de harmonia com o disposto no artigo 228.°,
n. ° I, TFUE. Também esta matéria já foi por nós estudada.
O Provedor de Justiça pode ser exonerado pelo TJ se o
Parlamento Europeu o requerer, nas condições estabelecidas pelo artigo 228.°, n.o 2, par. 2, TFUE;
- em caso de infração, ou de má administração, na aplicação
do Direito da União, o Parlamento Europeu pode constituir
uma comissão de inquérito temporária, exceto se algum
tribunal estiver, e enquanto estiver, ocupado com os factos
alegados (artigo 226.° TFUE).
Merece referência especial o caso do Eurogrupo. Este não é
um órgão da União. Ele consiste na reunião informal dos Ministros
das Finanças da Zona Euro e está, como tal, previsto no artigo 137. 0
TFUE, que nos remete para o Protocolo relativo ao Eurogrupo,
anexo ao Tratado. Não obstante O seu carácter informal, o Eurogrupo tem um Presidente eleito por si próprio por dois anos e meio.
Aescolha do Presidente foi antecipada com a eleição de JEAN-CLAUDE
JUNCKER, Primeiro-Ministro do Luxemburgo, para iniciar o seu man335
Ver infra, n.o 119.
297
A União Europeia
dato em I de janeiro de 2005. Essa eleição tem sido sucessivamente
renovada. Ora, como se vê pelos artigos 136.° e 138.° TFUE, o Parlamento Europeu foi posto totalmente à margem do Eurogrupo, cuja
principal missão não pode ser menosprezada: como reconhece o
artigo 138.° TFUE, ela consiste em "garantir a posição do euro no
sistema monetário internacional".
IV - Competência em matéria de acordos internacionais
A conclusão de acordos internacionais pela União (entendendo-se por acordos internacionais aqui, diga-se desde já, o que
para a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969,
são tratados internacionais, portanto, tanto os tratados solenes como
os acordos em forma simplificada) encontra-se hoje regulada no
artigo 218.° TFUE.
De harmonia com esse artigo, o Conselho tem um papel determinante na celebração desses acordos: é ele que autoriza a abertura
das negociações, define as diretrizes da negociação, autoriza a assinatura e celebra os acordos (n.o 2 desse artigo 218.°), podendo também autorizar a aplicação provisória de um acordo antes da sua
entrada em vigor (artigo 218.°, n.o 5, in fine) ou a suspensão da
aplicação de um acordo que já entrou em vigor (artigo 218.°, n.O 9).
A intervenção do Parlamento Europeu na conclusão de acordos
internacionais tem vindo a aumentar progressivamente desde o Tratado de Roma.
Este contentava-se com exigir a intervenção do Parlamento
Europeu apenas em relação aos acordos de associação, sob a forma
de um parecer posterior à assinatura dos acordos.
Mais tarde, porém, o Parlamento Europeu viu-lhe atribuído
poder de ser informado ao longo de todo o exercício do ius tractuum
da CEE, tanto em relação aos acordos de associação, como
aos acordos comerciais ou económicos com Estados terceiros entretanto, se iam multiplicando e assumindo diferentes formas
conteúdos. Nos termos do procedimento conhecido por
terterp" (nomes dos dois Presidentes do Conselho que o sulbs<:re've298
Os órgãos e as instituições da União Europeia
ram em nome do Conselho)'36, o Parlamento Europeu passou a ser
informado sobre o conteúdo do projeto de acordo, pelo que passou
a poder pronunciar-se sobre ele, em sessão plenária, mesmo antes da
abertura das negociações. Além disso, ao Parlamento foi dado o
poder de acompanhar as negociações e de ser informado do conteúdo do acordo assinado, ainda antes da sua conclusão"'.
O Ato Único Europeu foi mais longe, ao conceder ao Parlamento Europeu um verdadeiro direito de veto quanto aos acordos de
associação, sob a forma de um parecer favorável aprovado pela
maioria absoluta dos seus membros (artigo 238.°, par. 2, CE, na
redação dada pelo AUE). Cedo se percebeu que esta exigência era
excessiva e difícil de preencher"'. Por isso, o Tratado de Maastricht
retirou daquele preceito a intervenção do Parlamento.
O Tratado de Amesterdão sentiu, por isso, a necessidade de
codificar a competência do Parlamento Europeu em matéria de conclusão de acordos internacionais. E veio aumentar a sua competência na matéria. Fê-lo no então artigo 300.° CE. Assim, segundo o
n.o 3, par. 2, desse artigo, alguns acordos ficaram sujeitos, antes da
sua conclusão pelo Conselho, a um parecer favorável do Parlamento:
os acordos de associação, previstos no artigo 310.° CE, na versão de
Nice, os acordos que criavam um quadro institucional específico ao
organizarem processos de cooperação, os acordos com implicações
orçamentais sensíveis para a Comunidade'39 e os acordos que implicassem uma modificação de um ato aprovado de harmonia com o
processo de co-decisão. A esses acordos havia que acrescentar, por
força do ex-artigo 49. ° UE, os acordos de adesão de novos Estados-membros. Quanto a todos os outros acordos vigorava a regra geral,
ou seja, eles careciam de um prévio parecer, que não tinha de ser
favorável ou conforme, do Parlamento. Isto é, o Conselho não os
podia celebrar sem obter um prévio parecer do Parlamento. Essa
PE 62.937, de 8-2-1980.
m Veja-se, sobre esta matéria, SIMON, pg. 286, e ISAAC, pg. 79.
33B Veja-se, sobre a primeira aplicação desse direito de veto, SILVESTRO, Les
CEE-Israel. RMC 1990, pgs. 462 e segs.
339 Cuja natureza jurídica foi definida pelo TJ no seu Ac. 25-2-99, Parlamento c. Conselho, Procs. C-164 e 165/97, CoI., pgs. 1-1.139 e segs.
336
299
A União Europeia
regra só não vigorava para os acordos comerciaiS celebrados a
coberto do artigo 133.° CE, na versão de Nice, muito numerosos, é
certo, mas também de importância menor, e quanto aos quais não era
exigida qualquer intervenção do Parlamento Europeu.
O Tratado de Nice aumentou os poderes do Parlamento Europeu quanto aos acordos internacionais da CE, ao conferir-lhe o
poder de requerer previamente o parecer do TJ sobre a compatibilidade de um projeto de acordo com as disposições do Tratado CE,
implicando um parecer negativo do Tribunal ou o abandono do
projeto de acordo ou a revisão do Tratado. Esse poder encontrava-se
até então reservado apenas ao Conselho, à Comissão e aos Estados-membros (ver o novo n.o 6 do ex-artigo 300.° CE)'40-34l.
O Tratado de Lisboa veio reforçar substancialmente a competência do Parlamento Europeu na celebração de acordos internacionais pela União. Como se disse, é o artigo 218.° TFUE que condensa
hoje a disciplina da celebração desses acordos.
Continua a ser o Conselho a ter um papel decisivo na matéria:
é ele quem autoriza a abertura das negociações para a celebração do
acordo, quem define as diretrizes da negociação, podendo dirigi-Ias
diretamente ao negociador, que pode ser aconselhado por um comité
especial criado pelo Conselho para o efeito, é ele quem autoriza a
assinatura do acordo e quem celebra o acordo, podendo, no
momento da celebração do acordo, conferir ao negociador poderes, ,
porventura sujeitos a condições que ele fixar, para aprovar, em nome da União, alterações ao acordo, e, podendo, inclusivamente, decidir
a aplicação provisória do acordo antes da sua entrada em vigor oua suspensão de um acordo já em vigor (artigo 218.', n." 2 a 7 e 9).
Todavia, passa a ser necessária a aprovação do Parlamentcj'para a celebração, além dos acordos referidos desde o Tratado de
Amesterdão e acima indicados, também dos acordos que englobelIl.
matérias às quais se apliquem o processo legislativo ordinário, OU\)
processo legislativo especial quando seja exigida aprovação d
340
Sobre a dimensão desta modificação do Tratado CE, ver, por todqs,
e Comentário Streinz, anotações ao preceito em caus~
Sobre este regime veja-se, especialmente, COSTA, BLUMANN e LOUI
GRABlTZ/HILF/NETIESHEIM
341
/W AELBROEK.
300
Os órgãos e a!i instituições da União Europeia
Parlamento Europeu (artigo 218.', n.o 6, a-v, TFUE); passa a ser
necessária a aprovação do Parlamento para o acordo de adesão da
U~ião à ~onvenção Europ~ia dos Direitos do Homem (artigo 218.",
n: 6, a, 11, TFUE); contranamente ao que resultava, como acima se
disse, desde o Tratado de Amesterdão, do ex-artigo 133.' CE, na
versão de Nice, o Parlamento passa a intervir também quanto aos
acordos comerciais da União, celebrados no âmbito da política
comerciai comum, e através de medidas aprovadas pelo Parlamento
e pelo Conselho mediante o processo legislativo ordinário (artigo
207.°, n.o 2, TFUE); quanto a todos os demais acordos (exceto os
relativos à PESC, quanto aos quais, por serem celebrados no quadro
de um pI!ar I?terg~vernamental, o Parlamento não tem qualquer
mtervençao), e eXigido parecer, ainda que não conforme, do Parlamento, embora o Conselho possa celebrar o acordo, caso o Parlamento se não pronuncie dentro do prazo fixado, para o efeito, pelo
Conselho (artigo 218.°, n.O 6, b, TFUE).
Tudo isto confirma, portanto, que a competência do Parlamento quanto aos acordos da União, como atrás dissemos, aumentou muito significativamente. Não há hoje qualquer acordo celebrado
pela União no âmbito do primeiro pilar quanto ao qual o Parlamento
esteja impedido de intervir. Além disso, o Parlamento tem o direito
de ser imediata e plenamente informado em todas as fases do processo de conclusão de qualquer acordo internacional (artigo 218.°,
n.O lO, TFUE). A competência do Parlamento nesta matéria é muito
semelha~t: à dos Parlamentos nacionais: veja-se, por exemplo, a
ConslitUlçao Francesa, no seu artigo 53. '.
Todavia, sublinhe-se que, em matéria de acordos internacionais, a competência dos parlamentos nacionais no processo de
conclusão de acordos internacionais relativos à PESC e à CPJMP ao
contrário, diminuiu com o Tratado de Lisboa, suscitando event~ais
com as Constituições nacionais. De facto, O artigo 24.°
no seu n.o 5, na versão de Nice, estabelecia que "Nenhum
acordo vinculará um Estado cujo representante no Conselho
declare que esse acordo deve obedecer às normas constitucionais
do re~petivo Estado; os restantes membros do Conselho podem
decidir que o acordo será, contudo, provisoriamente aplicável" (itá301
A União Europeia
lico nosso). Ao abrigo deste preceito, por exemplo, só a França e a
Grécia não consultaram os respetivos parlamentos quando da conclusão de acordos de entreajuda judiciária com os Estados Unidos,
em 25 de junho de 2003, numa Europa de Quinze. Esse preceito do
TUE foi eliminado pelo Tratado de Lisboa no atual artigo 37.° UE,
que veio substituir o ex-artigo 24.° UE.
O Tratado de Lisboa mantém a competência, que, como se viu,
o Tratado de Nice veio conferir ao Parlamento Europeu, de requerer
previamente o parecer do TJ sobre a compatibilidade do seu projeto
de acordo com os Tratados (artigo 218.°, n.o 11, TFUE).
Quanto aos acordos mistos, que os Tratados institutivos das
Comunidades e da União conheciam desde o início, à partida parece
que o Tratado de Lisboa lhes pôs termo ao eliminar o ex-artigo 133.°,
n.O 6, par. 2, infine, CE. Todavia, não se poderá negar a sua sobrevivência desde que descubramos casos, ao longo dos Tratados, em que
se encontrem reunidos os elementos constitutivos do seu conceito342 •
§ 2.'
o Conselho Europeu
Bibliografia especial: E.
1975, pgs. 3 e segs.; P.
NOEL,
DE SCHOUTHEETE,
Le Conseil européen,
La coopération politique euro~
péenne, 3.' ed., Bruxelas, 1986; W. WESSELS e S. BULMER, Tile European
Council, Londres, 1987; l.-P. lACQUÉ e D. SIMON, The constitutional an~
juridical role of the European Council, in l. M. Hoscheit e W. Wessels
(eds.), The European Councit 1974-1986: Evolution and Perspectives, .
Maastricht, 1988, pgs. 113 e segs.; V. CONSTANTINESCO, Cansei! elfro:'T
péen, in Répertoire Communautaire, Paris, 1992; J. WERTS,TJ,.{,
European Council, Amesterdão, 1992; B. TAULEGNE, Le Consei! euro~
péen, Paris, 1993; H. J. GLAESNER, The European Council, Essa}'s
Schermers, vaI. II, pgs. 101 e segs.; F. CAPOTORTI, Le statutjuridique,du"
Canseil européell à la lumiere de l'Acte unique eurapéen, Libe.t::.'
Pescatore, pgs. 79 e segs.; F. HAYES-RENSHAW e H. W ALLACE, The
Catincil of Ministers, Nova Iorque, 1997, pgs. 158 e segs..
Os órgãos e as instituições da União Europeia
99. Génese
O Conselho Europeu não se encontrava previsto nos Tratados
institutivos das Comunidades. Em bom rigor, ele nasceu da institucionalização das Cimeiras de Chefes de Estado e de Governo, que
tiveram lugar em Paris e em Bona, em 1961, em Roma, em 1967, na
Haia, em 1969, em Paris, em 1972, em Copenhaga, em 1973, e,
outra vez, em Paris, em 1974343 • Na última dessas Cimeiras, por
proposta da França, através do seu Chefe de Estado, VALÉRY GISCARD D'EsTAING, ficou decidido344 que o Chefe de Estado francês e
os Chefes de Governo dos outros então oito Estados-membros,
acompanhados dos respetivos Ministros dos Negócios Estrangeiros,
se reuniriam regularmente três vezes por ano, para avaliar e impulsionar, tanto a integração europeia, como a cooperação política entre
os Nove.
Seria só com o Ato Único Europeu que essas Cimeiras passariam a ter fundamento jurídico nos Tratados, quando o seu artigo 2. °
passou a referir-se ao "Conselho Europeu" e veio estabelecer que
ele tivesse, pelo menos, duas reuniões ordinárias por ano. Todavia,
a composição do Conselho Europeu, tal como esse preceito do AUE
a previa, não coincidia com a dos intervenientes nas referidas
Cimeiras, porque ele dispunha que o Conselho Europeu fosse composto não só pelos Chefes de Estado ou de Governo (assistidos pelos
respetivos Ministros dos Negócios Estrangeiros) como também pelo
Presidente da Comissão (assistido por um membro da Comissão),
acolhendo, desse modo, e em síntese, a Declaração de Estugarda, de
19 de junho de 1983, sobre a União Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu 34'. Essa Declaração aparecia, aliás, expressamente
referida no primeiro considerando do preâmbulo do AUE como uma
das suas fontes.
Ver RIDEAU, pgs. 391 e segs.
Ver o comunicado final da Cimeira, Bull. CE 12n4, ponto 27.
'" Bul/. CE 6/83.
343
344
342
Sobre os acordos mistos, ver infra, 188-I1.
302
303
A União Europeia
Mais tarde, o TUE viria a acolher em definitivo esse órgão no
artigo D (artigo 4.°, na versão de Nice) das snas "Disposições
comuns"346.
O Tratado de Lisboa, como vamos ver de seguida, veio conce.
der-lhe uma importância maior na orgânica da nova União Europeia
que veio criar.
100. Estatuto e competência
Por vezes, há a tentação de se considerar o Conselho Europeu
como uma modalidade especial do Conselho, designadamente ao
nível em que O Conselho atua como Conselho de Chefes de Estado
e de Governo. Mas é um erro fazê-lo. Em boa verdade, o Conselho
Europeu não pode ser confundido com O Conselho, mesmo considerando este ao nível referido. E por mais do que uma razão.
Em primeiro lugar, pela sua composição. Recorde-~e que o
artigo 16.°, n.o 2, UE, exige que o Conselho, a qualquer mvel, seJ~
composto por um representante de cada Estado-membro, a níveV;
ministerial, e com poderes para vincular o Governo desse Estado-.
-membro. Ora, o Conselho Europeu, entre os seus membros, incluí':
o seu Presidente, que é eleito pelo próprio órgão colegial, o Pres!;
dente da Comissão e o Alto Representante da União para os Negq;
cios Estrangeiros e a Política de Segurança, também ele eleito peI9.
Conselho Europeu (artigo 15.°, n.o 2, U E ) . . :
Em segundo lugar, e em consequência, aliás, do que se acab~
de dizer, o regime jurídico que preside ao Conselho Europeu e aq
Conselho, mesmo quando este se reúne com Chefes de Estado ou::
Governo, é um regime totalmente diferente, que faz do Consel
Europeu e do Conselho dois órgãos completamente distintos e~
si. De facto, enquanto que o Conselho se rege pelas regras que n.
Tratados disciplinam com pormenor o funcionamento do Conse!!!
346 Ver Comentário Constantinesco CE, pg. 75, GRABrIZ/]HILF/NETTESH!".~
anotações ao artigo 15. 0 UE, e RlDEAU, loco cito
304
Os órgãos e as instituições da Uniiio Europeia
o Conselho Europeu nunca se regula por aquelas regras mas por
outras que lhe são próprias e específicas.
Até ao Tratado de Lisboa o Conselho Europeu distinguia-se do
Conselho por um outro traço: ele não figurava no elenco das "instituições", isto é, órgãos principais, que constava do ex-artigo 5. ° UE
e do ex-artigo 7.° CE. Agora, essa distinção desapareceu, porque o
Conselho Europeu aparece referido, como dissemos, no atual artigo
13.", n.O 1, UE.
Mas se, dessa forma, o Conselho Europeu se distingue facilmente do Conselho, por outro lado, ele aproxima-se do Conselho
quanto à natureza intergovernamental deste. De facto, por expressa
imposição dos Tratados (artigo 235.°, n.O I, par. 3, TFUE), só votam
no Conselho Europeu os Chefes de Estado ou de Governo. Isso faz
com que os atos por ele aprovados tenham de ser vistos como exprimindo os interesses dos Estados.
Vejamos agora a competência do Conselho Europeu. Já antes
do Tratado de Lisboa ele era o órgão supremo da União, o órgão que
dirigia esta, que lhe dava impulsos, que fixava os grandes rumos da
União, entendida no seu conjunto, definindo as suas orientações e
prioridades políticas, incluindo no domínio da PESC - era o que
resultava dos ex-artigos 4.°, par. I, e 13.°, n."' I e 2, UE. Só que,
como explicámos nas duas edições anteriores deste livro, a competência do Conselho Europeu esgotava-se praticamente nesse conteúdo político. Os atos jurídicos, que concretizavam essa competência
política, eram praticados por outros órgãos da União e da Comunidade, dos arrolados nos já referidos ex-artigos 5.° UE e 7.° CE.
O Tratado de Lisboa veio regular o Conselho Europeu nos
. artigos 15.° e 26.° UE. Mais tarde, a Decisão do Conselho Europeu
n.o 2009/882/UE, de 1 de dezembro de 2009, veio aprovar O seu
Rf~gijment()347, retificado depois 34'.
A sua competência básica continua a ser eminentemente política. Isso resulta, antes de mais, do artigo 15.°, n.O 1, ],' parte, UE,
dispõe: "O Conselho Europeu dá à União os impulsos necessá'" JO L 315 de 2-12-2009.
". lO L ]72 de 7-7-2010.
305
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
rios ao seu desenvolvimento e define as orientações e prioridades
políticas gerais da União". A redação deste preceito é muito parecida, embora seja mais enfática, com a do antigo artigo 4.°, par. I,
UE, acima referido. E tal como sucedia com o TUE na versão de
Nice, o comando contido no citado artigo do atual TUE aparece
repetido quanto a três matérias coucretas: as referidas nos artigos
121.°, n.o 2, 148.° e 284.°, n.o 3, TFUE.
Essa competência política tem uma importante extensão ao
domínio do segundo pilar, ou seja, à Ação Externa da União, no
Título V do Tratado UE (artigos 21.° a 46.°), como já acontecia antes
do Tratado de Lisboa com a PESCo
Mas o Tratado de Lisboa alargou a competência do Conselho
Europeu ao domínio jurídico.
É certo que não lhe dá competência legislativa, como dispõe,
de forma expressa, o artigo 15.°, n.o 1, segunda parte, UE. Mas
confere-lhe um papel arbitral em situações de impasse no decurso
do processo legislativo ordinário na matéria da segurança social
(artigo 48.°, par. 2, TFUE) e em matéria penal (artigos 82.°, n.o 3, e
83.°, n.o 3, TFUE).
O Conselho Europeu passa a ter competência jurídica também
para a prática de decisões. Primeiro, no domínio da PESC, inclusive
em matérias com implicações no domínio da defesa. É verdade que
o referido ex-artigo 13.°, n.o 2, UE, já se inclinava nesse sentido.
Mas o novo artigo 26.°, n.o 1, UE, é muito mais claro em atribuir
competência ao Conselho Europeu para a adoção de "decisões", que
só podem ser os atos jurídicos previstos no artigo 288.°, par. 4,
TFUE.
Depois, o novo artigo 236.° TFUE confere-lhe competência
para tomar as decisões aí referidas.
Note-se que essas decisões não são aprovadas no exercício de
qualquer competência legislativa (que, repete-se, o TUE não confere ao Conselho Europeu), porque elas não são atos legislativos já
que não são adotadas com respeito pelo processo legislativo ordinário ou especial, regulado no artigo 289.°, n. OO 1 e 2, TFUE. Este
artigo define, para este efeito, os atos legislativos por um critério
formal: só o são os que são aprovados por um processo legislativo.
Como consequência do facto de o Conselho Europeu ter passado a ter competência para a prática de certos atos jurídicos, ele
goza de capacidade judiciária passiva perante o Tribunal de Justiça,
podendo, portanto, ser interposto dos seus atos jurídicos que produzam efeitos quanto a terceiros o recurso de anulação previsto no
artigo 263.° TFUE.
A composição do Conselho Europeu já ficou exposta no
número anterior. A ideia que presidiu à definição da composição do
Conselho Europeu, logo nas Cimeiras dos anos 60 e 70, foi a de ele
ter como membros as entidades que em cada Estado-membro,
segundo as respetivas normas constitucionais, tinham competência
para dirigir, ao mais alto nível, a política externa do respetivo
Estado. Em todos os Estados-membros essa competência cabe ao
Governo (nuns casos de forma mais clara do que noutros), salvo na
França, onde, por o sistema de governo ser presidencialista, é o
Chefe de Estado quem tem essa competência. Por isso, o Conselho
Europeu tem como membros, antes de mais, o Chefe de Estado
francês e os Chefes de Governo doutros Estados-membros, apesar
de já ter havido alguns episódicos desvios a esta regra, resultantes
da interpretação controversa de preceitos de algumas Constituições
nacionais sobre esta matéria.
Hoje, além dessa composição, o Conselho Europeu tem como
membros também, e como atrás se disse, o seu Presidente, com o
novo regime que lhe atribuiu o Tratado de Lisboa, e o Presidente da
Comissão, desde o Ato Único Europeu. Além disso, e por força do
Tratado de Lisboa, participa nos seus trabalhos o Alto Representante. Portanto, participa, mas não é membro do Conselho Europeu
e, portanto, não tem aí direito de voto. É o que dispõe o artigo 15.°,
n.o 2, UE. Por força do n.o 3 do mesmo artigo, deixaram de participar, de forma sistemática, nas reuniões do Conselho Europeu, os
Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados-membros, como
sucedia até ao Tratado de Lisboa entrar em vigor. Eles, e eventual-
306
307
10 1. Composição e funcionamento
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
mente outros Ministros, só serão admitidos a participar nas reuniões
por acordo do Conselho Europeu e se a ordem dos trabalhos o exigir. Do mesmo modo, o Presidente da Comissão não poderá fazer-se
acompanhar, como acontecia até agora, por um membro da Comis,
são que não o Alto Representante, que é Vice-Presidente da Comissão, salvo mediante acordo do Conselho Europeu e se a ordem dos
trabalhos o exigir. O Presidente do Parlamento Europeu pode
convidado para ser ouvido pelo Conselho Europeu (artigo 235.°,
n.O 3, TFUE).
Resta recordar o que ficou dito no número anterior: no Conselho Europeu não votam nem o seu Presidente nem o Presidente
Comissão, por exigência do artigo 235:, n: 1, par. 3, TFUE, nemo
Alto Representante, que participa nele, mas não é seu membro, pelo
que o direito de voto é apenas reconhecido aos Chefes de Estado ou
de Governo dos Estados-membros.
102. A presidência do Conselho Europeu
A maior alteração trazida pelo Tratado de Lisboa ao estatuto do,
Conselho Europeu diz respeito à sua presidência. Até então ele era
presidido, em cada semestre, em rotação, pelo Chefe de Estado ou d~
Governo do Estado que assegurava a presidência do Conselho
(ex-artigo 4: UE, na versão de Nice). A Convenção sobre o Futur~
da Europa entendeu que uma tão frequente mudança na presidênc"
(de seis em seis meses) afetava a eficácia, a continuidade e a coerê
cia da atividade do Conselho Europeu. Era, portanto, necessári
dar-se ao Conselho Europeu uma presidência estável e de médi
prazo. Por isso, primeiro, o Tratado Constitucional e, depois, o'
na redação que lhe deu o Tratado de Lisboa, e perante várias proP9
tas diferentes para se resolver o problema no seio da Convenç,
sobre o Futuro da Europa ou fora dela34' , optaram por dispor q\l,
Conselho Europeu passava a ser presidido, não pelo Chefe de Esci
ou de Governo do Estado que semestralmente assegurava a presidt
349
Ver essas propostas em
PR10LLAUD/SIRITZKY,
308
op. cit., pgs. 70-71.
ela do Conselho (salvo na formação de Conselho dos Negócios
Estrangeiros, como veremos), mas por uma personalidade permanente, eleita pelo próprio Conselho Europeu por maioria qualificada,
para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez. O Conselho Europeu pode pôr termo ao mandato do seu presidente em caso
de impedimento ou de falta grave e segundo o mesmo procedimento.
Tudo isto se encontra disciplinado no artigo 15.°, n: 5, UE.
A competência do Presidente encontra-se definida no n.o 6 do
mesmo artigo IS:. No essencial, ela consiste em presidir aos trabalhos do Conselho Europeu, em assegurar a sua preparação, em zelar
pela execução das suas deliberações e em garantir a representação
formal da União na matéria da PESC sem prejuízo da competência
que, nesse domínio, o novo TOE veio atribuir ao Alto Representante. Ele não pode, porém, ser visto como o Presidente da União.
Aliás, os Tratados não preveem no sistema orgânico da União qualquer Presidente da União.
Para a preparação dos trabalhos do Conselho Europeu o Presidente conta com a colaboração do Conselho dos Assuntos Gerais
(artigo 16.°, n: 6, par. 2, UE) e do Secretariado-Geral do Conselho
(artigo 235.°, n.o 4, TFUE), e tanto para a preparação como para a
execução das deliberações do Conselho Europeu o TUE garante-lhe
a cooperação do Presidente da Comissão (artigo IS:, n.o 6, b, UE).
Não é de fácil interpretação o último parágrafo do n: 6 do
artigo IS: UE, quando dispõe que "O Presidente do Conselho Euro, peu não pode exercer qualquer mandato nacional". É óbvio que,
,com isso, se quer afirmar que ele não pode acumular o seu cargo
,,,,,com qualquer outro no seu Estado (a nível nacional, regional ou
"local) ou de representação do seu Estado (por exemplo, deputado ao
;Parlamento Europeu). Mas pode exercer um mandato da União, à
margem da representação do Estado? Por exemplo, pode acumular
o cargo de Presidente do Conselho Europeu com o cargo de Presidente da Comissão? A hipótese deve ser rejeitada por duas razões:
,~rimeiro, pelo absurdo da acumulação de duas funções tão exigentes
f tão distintas; depois, pelo sistema muito diferente de designação
dos titulares dos dois cargos; e, finalmente, porque, ao separar na
composição do Conselho Europeu o Presidente do Conselho Euro309
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
peu e o Presidente da Comissão (citado artigo 15.", n." 2, UE), o
TUE partiu do princípio de qne os dois cargos são exercidos por
duas personalidades distintas.
das conversações que a Presidência terá tido na fase da preparação
da reunião. As decisões tomadas acerca dos vários assuntos incluídos na ordem dos trabalhos ficam a constar de um documento intitulado "Conclusões da Presidência", que são depois submetidas pela
presidência à apreciação do Parlamento Europeu.
103. Funcionamento do Conselho Europeu
a Conselho Europeu delibera por consenso, salvo se os Tratados dispuserem o contrário, isto é, se eles se contentaram com a
maioria qualificada ou a maioria simples (artigos 15.", n.o 4, UE, e
235.", n." I, par. 2, e n." 3, TFUE). a consenso assimila-se a nma
"unanimidade tácita"350, o que significa ausência de votação formal
pelo facto de nenhum membro do órgão exprimir, de forma expressa,
uma oposição ao projeto de deliheração, não contando a abstenção
como recusa de consenso (artigo 235.", n." I, par. 4, TFUE). Todavia, como já se disse, quando houver votação formal, nem o seu
Presidente, nem o Presidente da Comissão, votam. Além disso,
também o Alto Representante, porque, como já se referiu atrás, participa nos trabalhos do Conselho Europeu mas não é seu membro,
não tem direito a voto.
a Conselho Europeu tem duas reuniões ordinárias por semestre e reúne-se em sessão extraordinária sempre que o Presidente o
entenda (artigo 15.", n.o 3, UE). Apresenta um relatório ao Parlamento Europeu após cada reunião (artigo 15.°, n.O 6, d).
As suas reuniões decorrem segundo um ritual já antigo, feito
de uma sucessão de costumes de caráter processual há muito estabelecidos, e codificados na Declaração de Londres, aprovada pelo
Conselho Europeu, na sua reunião de Londres, de junho de 1977351 ,
Assim, a reunião formal é imediatamente precedida de dois encon·
tros informais e paralelos, um, entre os Chefes de Estado e de
Governo e o Presidente da Comissão, e, outro, entre os Ministros e
o Alto Representante ou outro memhro da Comissão. Só depois se
inicia a reunião formal do Conselho Europeu, que respeita uma
ordem de trabalhos definida com grande antecedência, e em função
350
351
Assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, op. cit., pg. 70.
BulI. CE 6177. Ver mais pormenores em RIDEAU, pg. 299.
310
§ 3."
o Conselho
Bibliografia especial: R. STREINZ, Die Luxemburger Vereinbarung,
Munique, 1984; E. J. KlRCHNER, Decision making in the European
Community. The COl/ncil Presidency and European integratioll,
Manchester, 1992; C. MESTRE, Cansei! des ministres, in Kovar/Gavalda,
Répertoire Dalloz, 1995; M. BANGEMANN, Le vote majoritaire pour
l'Union européenne élargie, RMC 3-1995, pgs. 175 e segs.; M.
WESTLAKE, The Counci! of the European Union, Londres, 1995; F.
HAYES-RENSHAW e H. WALLACE, The Council ofMinisters, Nova Iorque,
1997; E. NOEL, Réflexions sur le processus de décision dans le Conseil
des Communautés européennes, Mélanges Teitgen, pgs. 345 e segs.
104. Origem e estatuto
a Conselho é composto por representantes dos Estados-membros, atuando como seus delegados. Foi pensado pelo Tratado de
fusão de 1965 (artigo 2.°, par. I), como órgão que, na estrutura orgânica das Comunidades, representaria os interesses nacionais dos
Estados-membros, isto é, foi criado como câmara federal das
Comunidades.
Depois do TUE, deixou de ter competência apenas no quadro
comunitário para a ter também no domínio da PESC e da CJAI,
depois, CPJMP. Foi isso que levou o até então Conselho das Comunidades a alterar, pela sua Decisão n.° 93/591, de 8 de novembro de
1993, a sua denominação para Conselho da União Europeia 3".
'" lO L 281,16-11-93.
311
A União Europeia
o Tratado de Lisboa designa-o apenas por Conselho (artigo
13.°, n.o 1, UE).
O Conselho é o principal órgão de decisão da União. Delibera
sob proposta da Comissão e com a intervenção, nas circunstãncias
em que em cada caso os Tratados o exigirem ou permitirem, do
Parlamento Europeu. O Conselho não tem como vocação aproximar-se de um modelo de governo europeu. Esse papel, como já
dissemos, está reservado à Comissão. Diferentemente, o Conselho
privilegia um compromisso entre os interesses nacionais, por vezes
muito divergentes entre si, e que cada vez se apresentarão como
mais divergentes à medida que aumentar o número de Estados-membros da União 353 •
O Conselho tem o seu próprio Regimento, aprovado pela Decisão do Conselho n.o 20091937/UE, de I de dezembro de 2009 354,
alterada pela Decisão do Conselho Europeu n. ° 2010/5941UE, de 16
de setembro de 2010, que alterou a lista de formações do Conselho35S •
105. Composição
Cada Estado tem um representante no Conselho. Por isso, o
Conselho é composto hoje por vinte e sete membros.
Até ao Tratado de Maastricht, o artigo 146.°, par. 1, CE, por
força da redação que lhe dera o artigo 2.° do Tratado de fusão,
punha o seguinte: "O Conselho é composto por representantes dos,
Estados-membros. Cada governo designará um dos seus membros
para nele participar". Note-se que as versões originais daquele Tratado utilizavam as expressões "délegue" (em francês) ou "shal{
delegate" (em inglês), o que tinha a vantagem de querer significar, "
como era verdade, que o representante de cada Estado, mais do qu~
seu representante, era, no plano jurídico, seu delegado.
353 Dentro das obras gerais merece particular destaque, sobre o Conselh()'/Z
manual de JACQUÉ, pelo cargo que o Autor ocupou durante muitos anos no S'erviç~
Jurfdico daquele órgão, pgs. 284 e segs.
"" JO L 325, de 11-12-2009.
m JO L 263, de 6-10-2010.
312
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Todavia, aquela disposição foi modificada pelo Tratado de
Maastricht, que deu àquele preceito a seguinte redação: "O Conselho é composto por um representante de cada Estado-membro
a nível ministerial, com poderes para vincular o governo desse
Estado-membro" (o itálico é nosso). Esta alteração foi exigida,
particularmente, pela Alemanha. Ela pretendia que participassem
nas reuniões do Conselho, em nome do Estado alemão, também
representantes de entidades infra-estaduais (no caso alemão, os
Estados federados ou Vinder), sempre que se discutissem matérias
que coubessem nas atribuições exclusivas destas, de harmonia com
o respetivo Direito interno. Em face da nova redação do ex-artigo
146.°, par. 1, CE (depois, artigo 203.°, par. 1, na versão de Nice),
passaram, pois, a ter assento no Conselho "Ministros" que não provêm do governo central dos Estados-membros mas de um qualquer governo regional, por exemplo, do Governo de um Estado
federado, ou de uma região política, sempre que as matérias a discutir sejam das atribuições exclusivas da respetiva entidade
infra-estadual. O exemplo dos Estados federados alemães foi depois
seguido, por exemplo, pelas regiões belgas e pelas Comunidades
espanholas.
O Tratado de Lisboa não introduziu alterações, senão formais,
na matéria. De facto, esta encontra-se agora regulada no artigo 16.°,
n.o 2, UE, que passou a dispor o seguinte: "O Conselho é composto
por um representante de cada Estado-membro ao nível ministerial,
com poderes para vincular o Governo do respetivo Estado-membro
e exercer o direito de voto" (itálico nosso).
No caso português, a nova redação do artigo 16.°, n.O 2, UE,
não autoriza a que se reconheça a membros dos governos das
re/;!i)es autónomas dos Açores e da Madeira o direito de vincularem
Estado Português no Conselho. Segundo a nossa Constituição, o
como uma região autónoma fará valer "as matérias do seu
lnl.eresse especifico", ou "as matérias que lhes digam respeito", ao
da integração europeia consiste em ela, ou opinar sobre essas
matérias, ou participar nas delegações do Estado Português (respetJV;!lmente, aIs. v, infine, e x, do artigo 227.°, n.o I, da CRP), mas em
qlla1'qu<~r caso, sem que ao respetivo representante seja atribuído o
313
A União Europeia
poder de, por si próprio, representar o Estado Português e virlcula
o Governo da República356 •
O atual artigo 16.°, n.o 2, UE, parece impossibilitar a
do Conselho a nível de Chefes de Estado ou de Governo, porqu~iç
Chefe de Estado francês não é ministro, e nem em todos os
Estados o Chefe do Governo é considerado um ministro.
106. Os níveis de atuação do Conselho
O Conselho encontra-se regulado nos Tratados, no artigo·t
UE e nos artigos 236.° a 243.° TFUE, bem como no seu Regilf1~~
Ele reúne-se em diversas formações, segundo o critério'4.
matérias tratadas. Duas delas são criadas pelos Tratados:~;4'
Assuntos Gerais e a dos Negócios Estrangeiros. As outras são,j ,
tuídas por Decisão do Conselho Europeu, tomada por maiOl'Ílt
lificada. Constam do Anexo I ao Regimento, modificadope
referida Decisão do Conselho Europeu n.o 201O/594/UE, de"L
setembro de 2010. Assim dispõem os artigos 16.°, n.O 6, UE;.'
TFUE, e 2.° do Regimento.
O Conselho dos Assuntos Gerais é a formação comumdo',
selho. Compete-lhe, antes de mais, assegurar a coerência dos'"
lhos das diferentes formações do Conselho e garantir a cool'd~ ,
geral das políticas e dos dossiês que afetem várias políticas d~"
Europeia. Isto implica a coordenação horizontal das matériàsg
se ocupam as várias formações do Conselho, o que lhe conf~
importância especial. Cabe-lhe, também, preparar as reury'""
Conselho Europeu e dar sequência às reuniões do Conselho ')1:
peu e das diversas formações do Conselho, em articulaçã\l'Ç'Q'
356 Entendemos que por matérias de "interesse especifico'" d
matérias "que lhes digam respeito", e matérias de "âmbito regionaf' (arti
fi.o 4, e 227.°, 0.° 1, ais. c, t, v e x), a Constituição quer dizer o mesm
matérias que respeitem à região respetiva. Mas, se é assim, era de esper,
lador constituinte que não utilizasse tenninologia diferente para se refe('
realidade jurídica, dado que isso provoca dificuldades no cOllfrcmtc
ção dos preceitos em causa.
314
Os órgãos e as instituições da União Europeia
,Presidente do Conselho Europeu e a Comissão (artigos 16.°, n." 6,
{par. 2, UE, e Regimento do Conselho, artigo 2.°, n." 2 e 4). Hoje,
~:}.pelo Tratado de Lisboa, repete-se, o Conselho dos Assuntos Gerais
é apenas uma formação do Conselho. Mas O Projeto do Tratado
;(jonstitucional atribuía-lhe a função de nm Conselho Legislativo,
"ppm competência para, conjuntamente com o Parlamento Europeu,
aprovar os atos legislativos europeus. Em suma, aparecer-nos-ia
Somo uma versão acabada de um verdadeiro Senado europeu. Foi
'Por isso que essa ideia foi rejeitada pelos Estados, que não se sentiapl ainda em condições de dar esse passo.
O Conselho dos Assuntos Gerais é composto por quem cada
tado-membro indicar. Ou seja, os Estados-membros são livres de
,erminar qnem os vai representar nesta formação do Conselho.
A outra formação criada diretamente pelos Tratados é a do
()nselho dos Negócios Estrangeiros. Compete-lhe elaborar a Ação
~terna da União e assegurar a coerência de toda essa Ação Externa,
~'lJarmonia com a estratégia definida pelo Conselho Europeu. Por
~oExterna quere-se dizer aqui algo de muito vasto, englobando,
lll~adamente, a PESC, a Política de Segurança e de Defesa
:lllum, a política comercial comum, a cooperação para o desenI,vimento e a ajuda humanitária (artigo 16.°, n.O 6, par. 3, UE, e
gimento do Conselho, artigo 2.°, n.o 5).
, É composto pelo Alto-Representante da União para os NegósEstrangeiros e a Política de Segurança e pelos Ministros dos
ócios Estrangeiros dos Estados-membros ou pelos Secretários
, stado que em cada Estado-membro tenham a seu cargo a gestão
questões relativas à integração europeia. Preside a este Conselho
"to Representante (artigo 18.°, n.o 3, UE).
"As outras formações do Conselho não criadas pelos Tratados
.,,) por decisão do Conselho Europeu, nos termos atrás referidos, e
,,~~.,constam do Anexo I ao Regimento, consistem em Conselhos
"~p~cializados. Essas formações são atualmente as seguintes: a dos
'.;~suntos Económicos e Financeiros, incluindo o Orçamento (o
6,ligo ECOFIN); a da Justiça e dos Assuntos Internos, incluindo a
'Q*ção Civil; a do Emprego, Política Social, Saúde e Consumido~;La da Competitividade (Mercado Interno, Indústria e Investiga-
íc
315
A União Europeia
poder de, por si próprio, representar o Estado Português e vincular
o Governo da República356 •
O atual artigo 16.°, n.o 2, UE, parece impossibilitar a reunião
do Conselho a nível de Chefes de Estado ou de Governo, porque o
Chefe de Estado francês não é ministro, e nem em todos os outros
Estados o Chefe do Governo é considerado um ministro.
106. Os níveis de atuação do Conselho
O Conselho encontra-se regulado nos Tratados, no artigo 16.°
UE e nos artigos 236.° a 243.° TFUE, bem como no seu Regimento.
Ele reúne-se em diversas formações, segundo o critério das
matérias tratadas. Duas delas são criadas pelos Tratados: a dos
Assuntos Gerais e a dos Negócios Estrangeiros. As outras são instituídas por Decisão do Conselho Europeu, tomada por maioria qualificada. Constam do Anexo I ao Regimento, modificado pela já
referida Decisão do Conselho Europeu n.° 201O/594/UE, de 16 de
setembro de 2010. Assim dispõem os artigos 16.°, n.o 6, UE, 236."
TFUE, e 2.° do Regimento.
O Conselho dos Assuntos Gerais é a formação comum do Conselho. Compete-lhe, antes de mais, assegurar a coerência dos trabalhos das diferentes formações do Conselho e garantir a coordenação
geral das políticas e dos dossiês que afetem várias políticas da União
Europeia. Isto implica a coordenação horizontal das matérias de que
se ocupam as várias formações do Conselho, o que lhe confere uma
importância especial. Cabe-lhe, também, preparar as reuniões do
Conselho Europeu e dar sequência às reuniões do Conselho Europeu e das diversas formações do Conselho, em articulação com o
356 Entendemos que por matérias de "interesse específico" das regiões,
matérias "que lhes digam respeito", e matérias de "âmbito regionaf' (artigos 112.°,
n.o 4, e 227.°, n,o I, aIs. c, t, v e x), a Constituição quer dizer o mesmo, ou seja,
matérias que respeitem à região respetiva. Mas, se é assim, era de esperar do legislador constituinte que não utilizasse tenninologia diferente para se referir à mesma
realidade jurídica, dado que isso provoca dificuldades no confronto da interpreta~
ção dos preceitos em causa.
314
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Presidente do Conselho Europeu e a Comissão (artigos 16.", n.O 6,
par. 2, UE, e Regimento do Conselho, artigo 2.°, n." 2 e 4). Hoje,
pelo Tratado de Lisboa, repete-se, o Conselho dos Assuntos Gerais
é apenas uma formação do Conselho. Mas o Projeto do Tratado
Constitucional atribuía-lhe a função de um Conselho Legislativo,
com competência para, conjuntamente com o Parlamento Europeu,
aprovar os atos legislativos europeus. Em suma, aparecer-nos-ia
como uma versão acabada de um verdadeiro Senado europeu. Foi
por isso que essa ideia foi rejeitada pelos Estados, que não se sentiam ainda em condições de dar esse passo.
O Conselho dos Assuntos Gerais é composto por quem cada
Estado-membro indicar. Ou seja, os Estados-membros são livres de
determinar quem os vai representar nesta formação do Conselho.
A outra formação criada diretamente pelos Tratados é a do
Conselho dos Negócios Estrangeiros. Compete-lhe elaborar a Ação
Externa da União e assegurar a coerência de toda essa Ação Externa,
de harmonia com a estratégia definida pelo Conselho Europeu. Por
Ação Externa quere-se dizer aqui algo de muito vasto, englobando,
nomeadamente, a PESC, a Política de Segurança e de Defesa
Comum, a política comercial comum, a cooperação para o desenvolvimento e a ajuda humanitária (artigo 16.°, n.O 6, par. 3, UE, e
Regimento do Conselho, artigo 2.°, n.o 5).
É composto pelo Alto-Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e pelos Ministros dos
Negócios Estrangeiros dos Estados-membros ou pelos Secretários
de Estado que em cada Estado-membro tenham a seu cargo a gestão
das questões relativas à integração europeia. Preside a este Conselho
o Alto Representante (artigo 18.°, n." 3, UE).
As ontras formações do Conselho não criadas pelos Tratados
mas por decisão do Conselho Enropeu, nos termos atrás referidos, e
que constam do Anexo I ao Regimento, consistem em Conselhos
especializados. Essas formações são atualmente as seguintes: a dos
Assuntos Económicos e Financeiros, incluindo o Orçamento (o
antigo ECOFIN); a da Justiça e dos Assuntos Internos, incluindo a
Proteção Civil; a do Emprego, Política Social, Saúde e Consumidores; a da Competitividade (Mercado Interno, Indústria e Investiga315
A União Europeia
ção), incluindo o Turismo; a dos Transportes, Telecomunicações e
Energia; a da Agricultura e Pescas; a do Ambiente; a da Educação,
Juventude e Cultura, incluindo o Audiovisual.
Cabe a cada Estado-membro, segundo as respetivas regras
constitucionais e a respetiva orgânica do Governo e da Administração Pública, determinar como é representado em cada formação do
Conselho, desde que seja respeitado o artigo 16.°, n.o 2, UE.
Depois do Tratado de Lisboa, nem nos Tratados UE e TFUE,
nem no atual Regimento do Conselho, está prevista a formação do
Conselho como Conselho de Chefes de Estado e de Governo, que
existia antes e que não se confundia com o Conselho Europeu.
Parece-nos uma decisão acertada, já que, como explicámos nas edições anteriores deste livro, e há pouco repetimos, essa formação
existia em infração ao prescrito nos Tratados, que agora impõem
que o Conselho seja composto por individualidades a "nível ministerial" .
O Anexo I ao Regimento do Conselho permite que em todas
as formações do Conselho, portanto, inclusivamente no Conselho de
Assuntos Gerais, possam participar "vários Ministros" de cada
Estado.
107. A presidência do Conselho
Até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa a presidência do
Conselho era exercida nos mesmos moldes em que o era a presidência do Conselho Europeu, isto é, semestralmente, por um Estado,
em função da rotação fixada pelo Conselho.
Como se viu atrás, deixou de ser esse o sistema de designação
do presidente do Conselho Europeu, por força do novo artigo 15.°,
n.O 5, UE. E a presidência do Conselho, nas suas diversas formações,
passou a estar regulada no artigo 16.°, n.O 9, também UE.
Vejamos rapidamente a História deste preceito.
Até a União Europeia não ter tido mais de doze membros (por,
tanto, até 1995), os Estados presidiam semestralmente ao Conselho
por rotação determinada pela ordem alfabética da designação de
Os órgãos e as instituições da UI/ião Europeia
cada Estado na sua língua nacional, embora no segundo ciclo de seis
anos (isto é, doze semestres) trocassem, em cada ano, a ordem dos
semestres do primeiro ciclo de seis anos (ver o artigo 146.°, par. 2,
CEE, antes do Tratado de Maastricht). Este sistema permitia que,
em cada troika (palavra criada para designar o trio que, por via consuetudinária, passou a ser composto, em cada semestre, pelo Estado
que nesse semestre presidia ao Conselho, mais pelo Estado que
havia presidido no semestre imediatamente anterior e pelo Estado
que iria presidir no semestre imediatamente a seguir), estivesse presente necessariamente, pela referida ordem alfabética, um dos cinco
grandes (incluindo-se entre eles, e já então, a Espanha). Isso só não
acontecia na troika composta pelo Luxemburgo, pelos Países Baixos
e por Portugal. A presença de um grande na troika dava sempre
afirmação e eficácia à presidência.
Com o alargamento de 1995, essa garantia, de na troika estar
sempre um grande, desapareceu. Pense-se na seguinte sucessão, por
ordem alfabética: Luxemburgo, Países Baixos, Áustria, Portugal,
Finlândia e Suécia. Por isso, por remissão do artigo 146.°, par. 2,
CE, na redação que lhe deu o Tratado de Maastricht, a Decisão do
Conselho, n.o 95/2/CE, Euratom, CECA, de I de janeiro de 1995'57,
veio estabelecer a nova ordem do exercício da presidência do Conselho. Nessa ordem, a partir da ordem alfabética, dispunham-se os
Estados por uma sequência tal, que ficava garantido que, salvo na
troika composta pela Irlanda, pelos Países Baixos e pelo Luxemburgo, haveria sempre um Estado grande na troika (artigo \.0, n.o I,
da referida Decisão).
Com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão o sistema
da troika foi profundamente alterado na sua estrutura e na sua composição. O Estado que exerce, em cada semestre, a presidência,
passou a ser "assistido" pelo Secretário-Geral do Conselho (o "Sr.
PESC") e, "se necessário", pelo Estado que se lhe segue na presidência. Além disso, pelo menos na matéria da PESC, também a
Comissão passou a ser "associada" à presidência. Foi o que veio
estabelecer o artigo 18.°, n.O' 3 e 4, UE, que não foi alterado pelo
351
316
10 L I. de 1-1-95.
317
Os órgãos e as instituições da União Europeia
A União Europeia
Tratado de Nice, pelo que continuou em vigor à sombra deste. Na
prática, a troika deixou de o ser para passar a ser um quarteto
(embora continue a chamar-se troika): o Estado que preside, o Sr.
PESC, o Estado que se segue na presidência e a Comissão.
À margem dessa troika nasceu, entretanto, sem nada ter a ver
com ela, o que informalmente podíamos chamar de trio de presidências. Não tinha base nos Tratados, mas apenas no Regimento do
Conselho. Pretendia-se com isso assegurar uma ação coordenada e
coerente do Conselho por um período de dezoito meses, isto é, o
período de três presidências. De harmonia com este sistema, os três
Estados que iriam exercer, durante o período de dezoito meses, três
sucessivas presidências do Conselho, elaboravam em conjunto,
antes de se iniciar esse período, e em colaboração com a Comissão,
um projeto de programa das atividades das três presidências. Ainda
antes do início desse período de dezoito meses, o Conselho de
Assuntos Gerais e Relações Externas (que então constituía uma
única formação do Conselho, e a formação principal) deveria aprovar esse programa. Este sistema começou a ser praticado em I de
janeiro de 2007. Antes de se iniciar a presidência alemã, que iria ter
lugar no primeiro semestre de 2007, a Alemanha, Portugal e a Eslo"
vénia (que presidiriam sucessivamente à União a partir de I de
janeiro de 2007) elaboraram um programa conjunto das presidências de I de janeiro de 2007 a 30 de junho de 2008.
Tudo isso decorria então, como se disse, do Regimento do
Conselho (que vigorava então na versão que lhe fora dada pela
Decisão n.o 2006/683/CE, Euratom), concretamente, do n.o 2 do seu
preãmbulo e do artigo 2.°, n.o 4.
Esse trio de presidências (que, repetimos, não se confundia
com a troika) consistia numa tímida e informal antecipação da pre"
sidência do Conselho a três, que o Tratado Constitucional e o Tra.,;
tado de Lisboa viriam a adotar, como vamos ver de seguida.
Após o alargamento de 2004, o Conselho aprovou, pela Deci,'
são n.o 2005/902/CE, Euratom"', e à sombra do artigo 203.°, par: 2,
CE, a nova ordem do exercício da presidência do Conselho. Mais,
tarde, a Decisão do Conselho n.O 2007/5/CE, Euratom''', veio atualizar essa ordem em função da adesão da Bulgária e da Roménia.
O Tratado de Lisboa, seguindo, no essencial, também aqui, o
Tratado Constitucional, veio introduzir sensíveis alterações nesta
matéria ao que dispunham antes os Tratados.
Assim, o Conselho dos Negócios Estrangeiros passa a ter um
presidente fixo: o Alto Representante da União para os Negócios
Estrangeiros e a Política de Segurança, que é eleito, como já estudámos, pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, para um
mandato de cinco anos. Não vingou, portanto, a ideia do Tratado
Constitucional de lhe chamar "Ministro dos Negócios Estrangeiros
da União" (artigo 1-28.°, n.o 3, desse Tratado).
Quanto às outras formações do Conselho, e pelo que resulta
das disposições conjugadas dos artigos 16.°, n.O 9, UE, 236.°, b,
TFUE, I. ° da Declaração n.° 9 anexa ao Tratado de Lisboa, bem
como do Projeto de Decisão do Conselho Europeu incluído nessa
Declaração, e do artigo 1.0, n.O 4, do Regimento do Conselho, elas
continuam a ser presididas pelos representantes dos Estados-membros, segundo um "sistema de rotação igualitária", que será definido
pelo Conselho Europeu. A presidência dessas formações é exercida
"por grupos pré-determinados de três Estados-membros durante um
período de 18 meses" (itálicos nossos). Esses grupos são formados
"tendo em conta a sua diversidade (dos Estados) e os equilíbrios
geográficos na União". Desse grupo de três, cada membro preside
sucessivamente, durante seis meses, a todas essas formações do
Conselho. Os outros membros do grupo apoiam a Presidência com
base num programa comum. Como a matéria da presidência das
;formações do Conselho, salvo do Conselho dos Negócios Estrangeiros, é da competência do Conselho Europeu, deliberando por maioria qualificada, todo o regime acabado de descrever, designadamente,
a duração da presidência e o carácter rotativo e não fixo da presidên\cia, poderá ser alterado sem a revisão dos Tratados.
A existência de presidentes fixos para todas as formações do
\WGonselho asseguraria uma maior estabilidade e eficácia ao seu
ii'
'" JO L 12, de 4-)-2007.
,,. JO L382, de 15-12-2005.
318
319
Os ,órgãos e as instituições da União Europeia
A União Europeia
funcionamento. Mas é preciso compreender que, uma vez que o
Conselho Europeu e o Conselho dos Negócios Estrangeiros já têm
presidentes fixos, os Estados, sobretudo os médios e pequenos,
perderiam o protagonismo que só a presidência das outras formações do Conselho lhes permite exibir na União. Por outro lado, as
soluções de continuidade na presidência dessas formações bem como
os inconvenientes de presidências menos bem exercidas - dois argumentos fortes contra as presidências semestrais - são compensados
pela existência de um programa comum a três presidências, isto é,
para dezoito meses, o que diminui sensivelmente o risco da instabilidade das presidências.
Resta referir, o que parece já ser óbvio, qual é a competência
do Presidente do Conselho, que será, no Estado que preside, o
Ministro do pelouro da respetiva formação do Conselho, salvo no
caso do Conselho dos Negócios Estrangeiros, como dissemos atrás.
Ao Presidente cabe coordenar e dirigir os trabalhos da respetiva
formação do Conselho. Além disso, ele participa nas reuniões do
Conselho do Banco Central Europeu, podendo submeter-lhe moções
para deliberação (artigo 284.°, n.o I, TFUE).
b)
c)
d)
e)
108. Competência do Conselho
Depois do Tratado de Lisboa, continua a faltar nos Tratados
um preceito que enuncie, de modo sistemático, a competência do
Conselho. Por isso temos que a ir interpretar de diversos preceitos
diferentes.
Assim, compete ao Conselho:
a) exercer a função legislativa, conjuntamente com o Parla-
mento Europeu, nos termos definidos pelos Tratados. Pode
fazê-lo exercendo o seu poder de iniciativa legislativa indireta, pelo qual pode solicitar à Comissão que apresente uma
proposta, o que só pode ser recusado pela Comissão
mediante fundamentação (artigo 241.° TFUE); através do
processo legislativo ordinário, situação em que co-legisla
320
f>
g)
com o Parlamento Europeu; ou através do processo legislativo especial, quando um seu ato legislativo é precedido de
um procedimento de aprovação ou de consulta do Parlamento Europeu ou quando um ato legislativo do Parlamento Europeu é precedido de aprovação do Conselho
(artigo 16.°, n.o 1, UE). Já estudámos estas duas últimas
situações a propósito da competência do Parlamento Europeu;
exercer os poderes que os Tratados lhe conferem em matéria financeira e orçamental nos termos já descritos quando
nos debruçámos sobre a competência do Parlamento Europeu (artigos 312.° e 314.° TFUE);
definir as políticas da União, subordinadamente à competência conferida ao Conselho Europeu no artigo 15.°, n.o I,
UE, e nos termos referidos nos Tratados (artigo 16.°, n.o I,
UE), inclusive em matéria de política externa e de segurança comum (artigos 24.°, n. OO 1 e 3, e 26.°, n.o 2, UE);
exercer os poderes de coordenação, designadamente em
relação à atuação dos Estados-membros, nos termos constantes dos Tratados (artigo 16.°, n.o I, UE);
delegar na Comissão o poder de praticar os atos referidos
no artigo 290.°, n.o I, TFUE;
exercer a competência executiva referida no artigo 291.°,
n. ° 2, TFUE, com referência à PESC e nos termos definidos
nos artigos 24.°, n.O' 1 e 3, e 26.°, n.o 2, UE;
aprovar recomendações (artigo 292.°, 1." parte, TFUE).
Pode-se dizer que o Conselho continua a ser o órgão com
maior poder de decisão na União: no processo legislativo ordinário,
ele co-Iegisla com o Parlamento Europeu, mas no processo legislativo especial, como mostrámos quando estudámos a competência do
Parlamento Europeu, são em maior número e mais importantes os
casos em que o Conselho decide com a participação do Parlamento
Europeu do que o contrário.
321
A União Europeia
109. Funcionamento do Conselho
o funcionamento do Conselho (o que engloba a sua organização) encontra-se disciplinado no respetivo Regimento. O TJ entende
que o Regimento do Conselho constitui um texto que obriga'60.
O Conselho tem a sua sede em Bruxelas. Nos meses de abril,
junho e outubro, o Conselho tem as suas reuniões no Luxemburgo.
Só em circunstâncias excecionais ele pode reunir-se noutro local
(artigo 1.0, n.o 3, do Regimento).
Ele reúne-se por iniciativa do seu Presidente, de um dos seus
membros ou da Comissão. Esta pode, portanto, participar nas reuniões do Conselho (artigos 237.° TFUE e 1.0, n.o 1, do Regimento).
Para cada período de dezoito meses, o grupo pré-determinado
de três Estados-membros que asseguram a presidência durante esse
período, nos termos do artigo 1.° da Declaração n. ° 9 anexa ao Tratado de Lisboa e do artigo 1.0, n.o 4, do Regimento, redige um projeto de programa das atividades do Conselho para o referido
período. No que respeita às atividades do Conselho dos Negócios
Estrangeiros no referido período, esse projeto é preparado conjuntamente com o Presidente desse Conselho. Esse projeto de programa
é elaborado em estreita cooperação com a Comissão e com o Presidente do Conselho Europeu e apresentado como documento único o
mais tardar um mês antes do início do período em causa para que o
Conselho de Assuntos Gerais o possa apreciar (artigo 2.°, n.o 6, do
Regimento).
As reuniões do Conselho são preparadas pelo Comité de representantes permanentes dos Governos dos Estados-membros (COREPER) (artigos 16.°, n.o 7, UE, e 240.°, n.O 1, TFUE).
Para se respeitar o princípio da transparência, as reuniões do
Conselho são públicas quando ele delibere e vote um projeto de ato.'
legislativo, embora nas condições indicadas no artigo 16.°, n.O 8;
UE.
360
Ae. 23-2-88, Reino Unido c. Conselho, Proe. n.o 68/86, Cal., pgs.
e segs..
322
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
1l0. Continuação: A) O Comité de representautes permaueutes
dos Governos dos Estados-membros (COREPER)
Na preparação das decisões do Conselho, ao lado de alguns
outros comités de menor importância, ocupa um lugar de destaque o
Comité de representantes permanentes dos Governos dos Estados-membros (COREPER). A sua designação advém do facto de ele ser
composto pelos chefes das missões permanentes que cada Estado-membro mantém em Bruxelas, junto da União. Cada uma dessas
missões permanentes assegura a ligação entre o respetivo Estado e a
União. Em regra, o chefe da missão tem a categoria de Embaixador.
O COREPER não se encontrava previsto inicialmente nos Tratados, mas apenas no Regimento do Conselho. Depois, passaram-se
a referir a ele, primeiro, os artigos 4.° e 5.° do Tratado de fusão,
depois, o artigo 151.° CE, após a revisão de Maastricht, depois, o
artigo 207.°, após as revisões de Amesterdão e de Nice.
Hoje, os artigos 16.°, n.o 7, UE, e 240.°, n.o I, TFUE, compendiam em três categorias a competência do COREPER. Assim, ele:
a) prepara os trabalhos do Conselho, a todos os níveis em que
ele se reúna;
b) exerce os poderes que o Conselho nele delegue;
c) pode exercer os poderes de índole processual previstos no
Regimento do Conselho36l •
111. Continuação: B) A votação no Couselho
I - Generalidades
O funcionamento do Conselho e, particularmente, o modo formal de ele decidir dependem, em grande medida, do estilo que nessa
matéria lhe queira imprimir o Estado que preside em cada semestre
às formações do Conselho, que não o Conselho dos Negócios
36J Ver CONSTANTINESCO/SIMON (dirs.), Le COREPER dans tons ses États,
Estrasburgo, 2001.
323
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Estrangeiros. Por isso, na escolha dos ministros dos Governos dos
Estados-membros deve ser levada em conta a capacidade de cada
um deles para presidir à respetiva formação do Conselho, quando ao
respetivo Estado couber a presidência deste órgão. No que respeita
ao Conselho dos Negócios Estrangeiros, obviamente que o seu funcionamento está muito condicionado pelo modo como o seu presidente, o Alto Representante, entenda exercer a sua função.
Uma das especificidades do funcionamento do Conselho
reside no facto de a presidência evitar recorrer à votação formal
Conselho não preveja um diferente sistema de votação (a unanimidade ou a maioria qualificada), a votação por maioria simples é, na
prática, excecional. É o que acontece, por exemplo, com a aprovação do Regimento do próprio Conselho (artigo 240.°, n.o 3, TFUE)
e com a deliberação pedindo à Comissão que apresente a proposta
prevista no artigo 241.° TFUE.
A votação por maioria simples impõe que as deliberações do
Conselho sejam tomadas por catorze membros em vinte e sete. Portanto, neste sistema de votação os Estados encontram-se em pé de
igualdade.
sempre que verifica a existência de um consenso. Por outro lado,
quando esse consenso não está obtido, a presidência diligencia no
sentido de se chegar a ele. Este comportamento faz parte, de certo
modo, da função do Conselho, já atrás referida, de compor e conciliar os vários interesses divergentes dos Estados-membros.
Formou-se uma prática no Conselho, segundo a qual, quando
a presidência verifica que se atingiu a maioria requerida para aquela
votação concreta, não se procede a uma votação formal, a não ser
que algum Estado expressamente a requeira. Isso não impede a presidência de, mesmo então, proceder a diligências junto dos Es,ta(los
postos em minoria, no sentido de se alargar, o mais que for possí'vel,
a maioria.
II - Sistemas de votação
São três os modos de votação hoje no Conselho:
a) a maioria simples;
b) a unanimidade;
c) a maioria qualificada.
a) Maioria simples
Pela redação do artigo 238.°, n.o I, TFUE, a maioria sinlpl,~s
pensada como sistema-regra de votação no Conselho. Mas,
que é muito raro que uma disposição do Tratado sobre a
324
b) Unanimidade
A regra da unanimidade vai de encontro aos princlplOs da
soberania indivisível e, portanto, da igualdade formal entre os Estados, sobre os quais se desenvolveu o Direito Internacional clássico
inclusive a Teoria Geral das Organizações Internacionais de mer~
cooperação. Eles impedem que um Estado venha a assumir obrigações sem o seu acordo e, portanto, conferem a cada Estado o direito
veto nos órgãos das Organizações a que pertencem.
O processo de integração europeia recusou, desde o início, a
da unanimidade como única regra de votação no Conselho.
é contrária aos postulados em que assenta a integração: a unaniJlJlllalJ~ espelha o individualismo internacional dos Estados, a intereflete a solidariedade entre os Estados e, por conseguinte, a
rer'ínr,,,r, limitação de soberania entre eles; a unanimidade fomenta
intransigência, a integração funda-se na negociação permanente e
procura de compromissos. Por outro lado, convém não sobreva",,,lon:lar, sobretudo para os Estados médios e pequenos, o direito de
que resultaria da regra da unanimidade. Vai um Estado médio
pequeno vetar uma deliberação no Conselho, deliberação essa
interessa aos Estados grandes, para, minutos depois, um desses
~pstado, grandes vetar uma deliberação no Conselho que iria atribuir
recursos financeiros ou outros benefícios ao mesmo Estado médio
pequeno?
325
A União Europeia
Por isso, se já no início das Comunidades a regra da unanimidade não era a única regra de votação no Conselho, com o tempo ela
veio progressivamente a perder terreno, sobretudo a favor da regra
da maioria qualificada. E por duas razões: primeiro, o próprio aprofundamento da integração e, portanto, a consequente progressiva
erosão na soberania dos Estados; depois, os sucessivos alargamentos das Comunidades e, mais tarde, da União. De facto, era difícil
dez, doze, quinze Estados porem-se em unanimidade no Conselho.
Eram a própria eficiência deste órgão e a sua capacidade de decisão
que estavam em causa. Por isso, sobretudo a partir da revisão de
Maastricht, os Tratados foram reduzindo progressivamente os casos
em que o Conselho devia votar por unanimidade.
É certo que na sequência da "política da cadeira vazia", de DE
GAULLE, o Conselho aprovou verbalmente, na sua reunião extraordi. . de 1966"
. de L uxem b urgo"362 .
nária de 29 de JaneIro
,o compromISSO
De harmonia com ele, sempre que o Tratado CEE se contentasse
com a maioria para o Conselho deliberar, os Estados-membros
esforçar-se-iam por encontrar um compromisso comum. Todavia,
bastava que um só Estado invocasse um "interesse muito importante", ou "vital", para que a deliberação não fosse aprovada.
Não obstante não ter qualquer valor jurídico, porque não podia"'
modificar as regras do Tratado CE, o compromisso do Luxemburgo
entrou para o "adquirido comunitário"363. Mas, a partir dos meados ,.
da década de 70, foi muito poucas vezes utilizado, e, quase sempre,."
apenas em matéria de agricultura e de pescas. Depois do AUE pas"
sou a ser ainda menos invocado, porque se percebeu que, quandoo.
era, levava o Conselho à inação. Com o TUE, aprovado pelo Tra,
tado de Maastricht, parecia que ia cair em desuso, embora os Estaf
dos nunca tenham aceite formalmente que ele deixara de vigorar;
Todavia O Tratado de Amesterdão, nos artigos 23.°, n.o 2, par. 2('
40.°, n.o' 2, par. 2, UE, em matéria, respetivamente, de segundo:"
terceiro pilares, e no artigo 11.°, n.o 2, par. 2, CE, veio dar um nOVe
362 [)(ellle Rapport général sur l'activité de la Communauté économi9
eurapéenne, 1965-1966, pgs. 34 e segs.
363 Assim, RIDEAU, pg. 426, e, antes disso, a nossa dissertação de do~!()
mento, cit., pgs. 240 e segs..
326
Os órgãos e as instituições da União Europeia
alento ao direito de veto no Conselho para a defesa de "importantes
e expressas razões de política nacional". O Tratado de Nice, contudo, conservou apenas o primeiro daqueles preceitos, mas sem pôr
em causa, implicitamente, o "compromisso de Luxemburgo"364.
Esse preceito - o artigo 23.°, n.o 2, par. 2, UE, na versão de
Nice - foi mantido, pelo que nos interessa aqui, pelo Tratado de
Lisboa, que deu àquele artigo o n. ° 31, n. ° 2, par. 2 UE, ainda que
com uma pequena alteração na sua redação. De facto, de harmonia
com essa norma, no âmbito da PESC, portanto, do segundo pilar,
um Estado-membro pode, "por razões vitais e expressas de política
nacional" (itálico nosso), impedir uma votação por maioria qualificada. E, embora, se o Estado persistir nessa posição, o assunto se
transfira para o Conselho Europeu, o Estado em causa pode ver
triunfado em definitivo o seu veto, dado que o Conselho Europeu só
pode deliberar por unanimidade.
Portanto, parece claro que, neste caso, o Tratado de Lisboa
acolheu o "compromisso de Luxemburgo". Isso, aliás, não surporque a Convenção sobre o Futuro da Europa, através do
seu Presidente, VALERY GISCARD D'EsTAING, que, quando fora Presida República da França, nunca se manifestara contra o "compnJmisso de Luxemburgo", jamais rejeitou a possibilidade de o
Constitucional incluir, em mais do que um caso, aquele
compromisso 365
Mais controversos são, em face da redação dos Tratados, os
48.°, par. 2 (matéria de segurança social), 82.°, n.o 3, e 83.°,
° 3 (matéria de cooperação judiciária em matéria penal, integrada
Tratado de Lisboa no primeiro pilar), todos do TFUE. Em todos
três casos, quando um membro do Conselho declare que o projeto
ato legislativo, no primeiro caso, ou de diretiva, nos outros dois
prejudica, "aspetas importantes do seu sistema de segurança
, no primeiro caso, ou "aspetos fundamentais do seu sistema
justiça penal", nos outros dois casos (itálicos nossos), ele pode
364 Sobre esta matéria, veja-se ISAAC, pgs. 55-56, RioEAU, loco cit.,
331 e segs., e MAN'N, pgs. 291-292.
365 Como o demonstram PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 81.
327
JACQUÉ,
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
solicitar a intervenção do Conselho Europeu. Este, no primeiro caso,
pode, entre as duas deliberações possíveis, devolver o projeto ao
Conselho para que este delibere como entender (artigo 48.°, par. 2,
a). Nesse caso, o Estado em causa não verá ser atendida a sua invocação do interesse nacional. Diferentemente, nos outros dois casos,
se perante o Conselho Europeu o Estado em causa persistir na invocação do seu interesse nacional para impedir uma deliberação por
maioria qualificada, pode um mínimo de nove Estados-membros
instituir uma cooperação reforçada (artigo 82.°, n.O 3, par. 2, e artigo
83.°, n.O 3, par. 2). Na medida em que por esta via esse Estado pode
ver atendida a sua invocação do interesse nacional, esta situação
equivale ao exercício definitivo, por ele, do direito de veto. Por isso,
parece que, nestas duas situações, estamos perante comportamentos
assimiláveis ao do admitido pelo "compromisso de Luxemburgo".
Aqui está, todavia, um ponto em que a prática terá de esclarecer a
verdadeira intenção dos autores dos preceitos em causa.
A dinâmica criada pelo progressivo alargamento da regra da
maioria qualificada, em detrimento da unanimidade, cria dificuldades cada vez maiores ao uso do direito de veto no Conselho. Nesse
sentido, o Tratado de Lisboa passou a exigir, tanto no TUE como no
TFUE, a maioria qualificada em muitas votações para as quaisQ
Tratado de Nice ainda requeria a unanimidade3". Isso era imposto,
não apenas pelo aprofundamento da União Europeia levada a cabo
por aquele Tratado, como também por não ser realista impor-se a
unanimidade para muitas deliberações num Conselho compost9
por vinte e sete membros, sob pena de se paralisar o poder de decii
são do Conselho. Atualmente, a unanimidade é requerida no TUE .
no TFUE apenas nas cláusulas chamadas "constitucionais'~Q~
"quase-constitucionais", que versam sobre matérias essenciais:P8.,
exemplo, a adesão de novos Estados (artigo 49.° UE), O alargamen\Q
de poderes para os órgãos da União (artigo 352." TFUE), intei"ess .
essenciais em torno da segurança dos Estados (artigo 346.°, n."
TFUE), processo legislativo ordinário (artigo 294.°, n.o 9, TFUE),
Como facilmente se compreende, também no sistema de votação por unanimidade os Estados são tratados em pé de igualdade
pelos Tratados.
366
Assim,
JACQUÉ,
pgs. 329 e segs.
328
c) Maioria qualificada
o que ficou dito atrás permite-nos afirmar que o sistema de
votação no Conselho por maioria qualificada se vai tornando no
sistema-regra.
Para compreendermos o modo como esse sistema vigora hoje,
após o Tratado de Lisboa, temos de estudar o regime a que ele se
encontrava sujeito antes dele, isto é, pela revisão de Nice ao Tratado CE.
O sistema de voto por maioria qualificada encontrava-se regulado então no artigo 205.°, n.O 2, CE.
Para o efeito da votação por maioria qualificada, aquele preceito, na tradição do Direito Comunitário e, depois, do Direito da
União, adotava o método de ponderação de votos no Conselho, em
função, com maior ou menor rigor"', de um critério demográfico
aplicado aos Estados-membros. De harmonia com esse método, os
Estados-membros tiveram o seguinte número de votos, quando a
EUI'Opa era de Quinze, portanto, até 30 de abril de 2004:
Alemanha, França, Itália e Reino Unido
Espanha
~élgica, Grécia, Países Baixos e Portugal
Austria e Suécia
Dinamarca, Irlanda e Finlândia
Luxemburgo
10
8
5
4
3
2
De harmonia com o par. 2 do mesmo artigo 205.°, n.O 2, CE,
total de 87 votos, as deliberações, para serem aprovadas por
maioria qualificada, precisavam de obter, pelo menos, 62 votos,
367
Assim,
JACQUÉ,
pgs. 329 e segs.
329
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
quando, segundo o Tratado, tivesse de haver proposta da Comissão;
nos outros casos, elas precisavam de obter o mesmo número de
votos, mas estes tinham de provir de, pelo menos, dez Estados. O
que significava que, para se formar a chamada minoria de bloqueio,
eram necessários 26 votos contra, ou, no caso de o Tratado não exigir proposta da Comissão, 26 votos dispersos por, pelo menos, seis
Estados.
Todavia, o chamado" compromisso de Ioanina"'" alterou essa
minoria de bloqueio para "de 23 a 25" votos.
O Tratado de Nice, contudo, veio prever, no Protocolo relativo
ao alargamento da União Europeia, a ele anexo, a alteração deste
sistema a partir de 1 de janeiro de 2005.
Em primeiro lugar, o artigo 3.°, n.O I, aI. i, desse Protocolo,
modificou a ponderação de votos que constava da redação em vigor
do artigo 205.°, n.o 2, CE, da seguinte forma:
-membros, quando fosse exigida proposta da Comissão, ou 169 votos
de, pelo menos, 2/3 dos Estados, nos outros casos. Todavia, essa
maioria podia não bastar. De facto, o artigo 3.°, n.o I, aI. ii, do Protocolo, acrescentou um novo n.o 4 ao artigo 205.°. Esse novo preceito
veio permitir que qualquer dos Estados pedisse que fosse verificado
se os Estados-membros que haviam formado a maioria qualificada,
nos termos acabados de indicar, representavam, pelo menos, 62% da
população total da União. Se não representassem, devia-se entender
que a deliberação não estava aprovada. Esta inovação do Protocolo
foi pedida pela Alemanha, e veio a beneficiá-la de modo especial, em
função do seu maior peso demográfico por comparação com os
Alemanha, França, Itália e Reino Unido
Espanha
Países Baixos
Bélgica, Grécia e Portugal
Áustria e Suécia
Dinamarca, Irlanda e Finlândia
Luxemburgo
29
27
13
12
10
7
4
Pode-se dizer que esta alteração consistiu num aumento de .
votos para todos os Estados-membros, que, proporcionalmente, não
foi muito diferente de Estado para Estado (até porque tinha de ser
comparada com a proporção de diminuição de deputados que os.;
Estados sofreriam contemporaneamente no Parlamento Europeu),..
salvo os Países Baixos (que descolaram um pouco da Bélgica, da;'
Grécia e de Portugal) e a Espanha, que foi o Estado que, proporcionalmente, mais aumentou o seu número de votos.
Para serem aprovadas, as deliberações passaram a ter de obú<r/
da soma de 237 votos, 169 votos, e provindos da maioria dos Estadçs'
Decisão do Conselho de 29-3-94, IO n.o C 105, de 13-4-94,
Decisão do Conselho de 1-1-95,10 n.o C 001, de 1-1-95.
368
330
outros Estados. Recorde-se que com a reunificação da Alemanha esta
passou a ter mais de oitenta milhões de habitantes.
Neste caso, a minoria de bloqueio passou a ser composta por
69 votos de, pelo menos, oito Estados, na primeira hipótese acima
referida, e por 69 votos de 1/3 dos Estados mais um, na segunda
hipótese, ou, simplesmente, ela devia-se dar por adquirida quando
os Estados-membros que não aprovassem a deliberação representassem, pelo menos, 38,1 % da população total da União.
O regime definido pela versão original do artigo 205.° CE vigorou até 30 de abril de 2004, último dia da Europa a Quinze. No dia
seguinte, data do alargamento da União para 25, entrou em vigor um
regime transitório, que esteve em vigor até 31 de outubro de 2004.
Esse regime transitório foi estabelecido pelo artigo 26.° do Ato
de adesão de 2003, que alterou a redação do artigo 205. 0 , n. o 2, CE.
Segundo aquele regime, a ponderação de votos passou então a ser a
Alemanha, França, Itália e Reino Unido
Espanha e Polónia
Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria,
Países Baixos e Portugal
Áustria e Suécia
Dinamarca, Estónia, Irlanda, Letónia, Lituânia,
Eslovénia, Eslováquia e Finlândia
Chipre, Luxemburgo e Malta
331
10
8
5
4
3
2
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Como se vê, este regime transitório respeitava, na sua base, o
critério de ponderação que constava do Tratado CE antes da revisão
de Nice. Como dispunha o preceito citado do Ato de adesão, para
serem aprovadas, as deliberações tinham de obter, do somatório dos
agora 124 votos possíveis, 88 votos quando tivesse de haver proposta da Comissão, e 88 votos de, no mínimo, 2/3 dos Estados-membros (isto é, dezassete), nos outros casos. Isto quer dizer que,
para se formar a minoria de bloqueio, eram necessários 37 votos
contra, ou, quando o Tratado não exigisse prévia proposta da
Comissão, 37 votos dispersos por, pelo menos, nove Estados.
Em I de novembro de 2004 passou a aplicar-se o regime definido no Protocolo já referido, anexo ao Tratado de Nice, mas adaptado a uma Europa a 25.
Assim, e segundo o n.o 2 da Declaração respeitante ao alargamento da União Europeia, anexa ao Tratado de Nice, a partir de I
de novembro de 2004 o sistema de ponderação de votos no Conselho passou a ser o seguinte, excluindo, da lista respetiva, a Bulgária
e a Roménia, que, recordamo-lo, não chegaram a concluir as negociações para a sua adesão à União em 2004:
Alemanha, França, Itália e Reino Unido
Espanha e Polónia
Países Baixos
Bélgica, República Checa, Grécia, Hungria
e Portugal
Áustria e Suécia
Dinamarca, Eslováquia, Irlanda, Lituânia e Finlândia
Estónia, Letónia, Eslovénia, Chipre e Luxemburgo
Malta
29
27
13
12
10
7
4
3
As deliberações passaram, então, a ser aprovadas se obtivessem, da soma de 321 votos, pelo menos 232 votos a favor, da maioria dos Estados-membros, quando, por força do Tratado, deviam ser
tomadas sob proposta da Comissão, e 232 votos a favor de, pelo
menos, dois terços dos Estados, nos restantes casos. Todavia,
mesmo então, qualquer dos Estados poderia pedir que se verificasse
332
se os Estados-membros que formaram essa maioria representavam,
pelo menos, 62% da população total da União, o que, a não acontecer, faria com que a deliberação não se considerasse aprovada.
A minoria de bloqueio passou, então, a ser composta por 90
votos de, pelo menos, treze Estados, na primeira hipótese a que nos
referimos, e por 90 votos de 113 dos Estados mais um, na segunda
hipótese, ou, simplesmente, ela era encontrada quando os Estados-membros que não aprovassem a deliberação representassem, pelo
menos, 38,1 % da população total da União.
A entrada em vigor deste regime (que, na sua estrutura, era
idêntico ao definido para uma Europa a Quinze no Protocolo anexo
ao Tratado de Nice) ficou marcada para I de novembro de 2004,
pelo artigo 12.° do Ato de adesão dos dez novos membros. Essa data
veio, desse modo, substituir a de I de janeiro de 2005, que ficara
estabelecida no referido Protocolo. Isso ficou a dever-se ao facto de
em I de novembro de 2004 iniciarem um novo mandato tanto o
Parlamento Europeu como a Comissão (a primeira Comissão Durão
Barroso).
O Ato de adesão de 2005 veio alterar este regime a partir de I
de janeiro de 2007, com a entrada da Bulgária e da Roménia, nessa
data, para a União.
Assim, o artigo 22.° do Protocolo de adesão, anexo àquele Ato,
mantendo o número de votos do sistema de ponderação constante do
n. ° 2 da Declaração re;peitante ao alargamento da União Europeia,
anexo ao Tratado de Nice, veio atribuir 10 votos à Bulgária e 14
votos à Roménia, como, aliás, já dispunha aquela Declaração. Desta
forma, a partir de I de janeiro de 2007, as deliberações passaram a
ser aprovadas se obtivessem, da soma de 345 votos possíveis, pelo
menos, 255 a favor (e não 258, como estabelecia a referida Declaração), da maioria dos Estados-membros, quando, por força do
Tratado, devessem ser tomadas sob proposta da Comissão, e, pelo
menos, 255 votos a favor (e não 258, como prescrevia aquela Declaração) de, pelo menos, dois terços dos Estados, nos restantes casos.
Continuou a vigorar, na Europa de Vinte e Sete, o n.o 4 do
artigo 205.° CE, que, como vimos, foi acrescentado pelo Protocolo
relativo ao alargamento da União Europeia, anexo ao Tratado de
333
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Nice, e reproduzido na Declaração respeitante ao alargamento da
União Europeia, anexa ao mesmo Tratado.
Ao longo de todo o processo de revisão dos Tratados na versão
de Nice e que culminou com o Tratado de Lisboa, logo para começar, na Convenção sobre o Futuro da Europa, esta foi a questão mais
controvertida e que, até à última hora, mais dividiu os Estados,
tendo, portanto, sido a principal causa do atraso na revisão. Isto fica
facilmente demonstrado pela disparidade entre o Projeto de Tratado
aprovado pela Convenção sobre o Futuro da Europa, o Tratado
Constitucional aprovado pela CIO de 2003 e a versão final do TUE
e do TFUE, aprovada pelo Tratado de Lisboa.
A grande alteração trazida pelo Tratado de Lisboa foi uma
alteração de base: o critério de ponderação de votos, que, aliás, tal
como acontecia com a ponderação de deputados no Parlamento
Europeu, tinha a presidi-lo o princípio da degressividade proporcional em função da população dos Estados, foi substituído por uma
dupla maioria, expressa, não em números fixos, mas em percentagens, e que atendia, uma, à população dos Estados e, outra, ao
número de Estados.
Três razões levaram a esta mudança de regime.
Primeiro, quis-se combinar duas legitimidades diferentes (a
democrática, que atende aos cidadãos da União, e a interestadual,
que leva em conta os Estados) no sistema de votação por maioria
qualificada no Conselho. Ou seja, refletir no sistema de votação no
Conselho a dupla natureza da União, como União de povos e União
de Estados.
Em segundo lugar, este sistema permitia evitar o difícil problema de, quando de cada novo alargamento, se discutir o peso
específico dos novos Estados no sistema de votação, o que a experiência tinha demonstrado ser muito penoso.
Em terceiro lugar, a perspetiva unicamente demográfica, que
estava subjacente ao sistema da ponderação de votos, iria conceder
um peso excessivo à Turquia no Conselho, quando e se ela aderir à
União. De facto, ela tomar-se-ia depressa no mais populoso membro
da União: em 2005 tinha 73 milhões de habitantes e prevê-se que
tenha 100 milhões em 2050, enquanto que, na generalidade dos
atuais Estados-membros se estima que a população, em número, se
estabilize. De facto, a Alemanha, que em 2007 tinha 82 milhões de
habitantes, deverá baixar para 79 milhões em 2050, e a França, no
mesmo período, deverá passar de 63 milhões para 66 milhões 36'.
Na Convenção sobre o Futuro da Europa, fora proposto que, a
partir de 1 de novembro de 2009 (portanto, quando o Parlamento
Europeu e a Comissão iniciassem um novo mandato), a maioria
qualificada no Conselho estaria encontrada quando o ato fosse aprovado por 50% de Estados-membros que representassem, pelo
menos, 60% da população da União. Este sistema foi rejeitado liminarmente pela Espanha e pela Polónia a quem, pelo sistema de ponderação de votos, os Tratados conferiam o estatuto de "quase-grandes" ou "subgrandes", com 27 votos cada, ou seja, só dois votos a
menos do que a Alemanha, enquanto que a população de cada um
deles era em cerca de 50% inferior à da Alemanha.
No sentido de tentar superar este impasse, a CIO de 2004 subiu
em 5% os dois níveis exigidos para a maioria qualificada. Assim, a
maioria qualificada corresponderia a, pelo menos, 55% dos membros do Conselho, num mínimo de quinze, que representassem pelo
menos 65% da população da União. Note-se que a exigência do
minimo de quinze Estados é redundante numa União de vinte e sete
membros, porque 55% dos membros do Conselho corresponde exatamente a quinze.
O mandato aprovado pelo Conselho Europeu em junho de
2007, sob a Presidência alemã, e a CIO que, nos termos daquele
mandato, foi convocada e que desembocou no Tratado de Lisboa,
vieram definir, em termos nalguns pontos diferentes, esta questão,
já que durante a CIO, e até à última hora, o sistema da dupla maioria
e a data da sua entrada em vigor foram objeto de controvérsia para
alguns Estados.
O Tratado de Lisboa veio regular esta matéria no artigo 16.",
n.~ 4 e 5, UE, no artigo 238.°, n."' 2 e 3, TFUE, no artigo 3.° do
Protocolo n." 36 relativo às disposições transitórias, e na Declaração
n." 7 anexa aos Tratados. E resulta desses preceitos que a entrada em
334
335
369
Fonte:
PRIOLLAUD/SIRITZKY,
pg. 81, e outros elementos aí citados.
A União Europeia
vigor do novo regime da dupla maioria, que substituirá o regime que
se aplicou até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, se fará progressivamente, e por duas fases:
1." fase: até 31 de outubro de 2014
Continua a aplicar-se neste período o regime que estava em
vigor antes do Tratado de Lisboa, portanto, à sombra do Tratado de
Nice. É uma fase transitória, por isso ela está prevista no citado
Protocolo n.O 36, anexo ao Tratado de Lisboa, no seu artigo 3.°,
n.O' 3 e 4, por remissão do artigo 16.°, n.o 5, UE.
Assim, por força da conjugação do ex-artigo 205.°, n.o 4, CE,
do Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, anexo ao
Tratado de Nice, da Declaração respeitante ao alargamento da
União Europeia, também anexa ao mesmo Tratado, e dos Atos de
adesão de 2003 e 2006, a maioria qualificada é calculada durante
esse período em função dos três seguintes critérios:
1. ° - número de votos: do total dos 345 votos ponderados,
quando o Conselho tiver que deliberar sob proposta da
Comissão são necessários 255 votos e que exprimam a
votação favorável da maioria dos Estados-membros.
Nos restantes casos, são necessários, na mesma, 255
votos, mas que exprimam a maioria favorável de dois
terços dos membros (ou seja, dezassete em vinte e sete).
A maioria de bloqueio será, então, de 91 votos;
2. ° - qualquer membro do Conselho pode pedir, quando o
Conselho aprovar uma deliberação por maioria qualificada, que se verifique se a maioria obtida representa, no
mínimo, 62% da população total da União. Se não representar, considera-se que a deliberação não foi aprovada;
3.° - nos casos em que, nos termos dos Tratados, nem todos os
membros do Conselho participem na votação (é o caso,
por exemplo, das deliberações sobre a moeda única, em
que só votam os Estados da Zona Euro), ou seja, nos
casos em que se faça referência à maioria qualificada
336
Os órgãos e as instituições da União Europeia
definida nos termos do artigo 238.°, n.o 3, TFUE, essa
maioria qualificada corresponderá à mesma proporção
dos votos ponderados, à mesma proporção do número de
membros do Conselho e, nos casos pertinentes, à mesma
percentagem da população dos Estados em causa, referidas nos números anteriores.
2." fase: de 1 de novembro de 2014 até 31 de março de 2017
Dos artigos 16.°, n.o 4, UE, e 238.°, n."' 2 e 3, TFUE, resulta
que o regime da votação por maioria qualificada nesta fase será o
seguinte:
1. ° - quando o Conselho deliberar sob proposta da Comissão
ou do Alto Representante, a maioria qualificada corresponderá a, pelo menos, 55% dos membros do Conselho,
num mínimo de quinze, devendo estes representar Estados-membros que reúnam, no mínimo, 65% da população da União. Nesse caso, a minoria de bloqueio será
composta por, pelo menos, quatro membros do Conselho, sejam eles quais forem;
2. ° - quando o Conselho não deliberar sob proposta da Comissão ou do Alto Representante, a maioria qualificada
corresponderá a, pelo menos, 72% dos membros do Conselho, que devem representar Estados-membros que
reúnam, no mínimo, 65% da população da União;
3.° - quando, por força dos Tratados, nem todos os membros
do Conselho participarem na votação (é o caso, por
exemplo, e como atrás se referiu, das deliberações sobre
a moeda única, em que só votam, obviamente, os Estados
que fazem parte da Zona Euro), nesse caso a maioria
qualificada será obtida da seguinte forma:
- a deliberação, para ser aprovada, terá de obter votos
favoráveis de, pelo menos, 55% dos membros do
337
A União Europeia
Conselho, que devem representar Estados participantes que reúnam, ao todo, no mínimo, 65% da população desses Estados. Isto significa que as percentagens
a aplicar são as mesmas das estipuladas pelo regime
geral, definido acima, no n." I, salvo a exigência do
mínimo de quinze Estados, que aqui não é reclamada.
Nesta hipótese, a minoria de bloqueio será composta
por, pelo menos, o número de membros do Conselho
que represente mais de 35% (isto é, no mínimo,
35, I %) da população dos Estados-membros participantes mais um membro;
quando o Conselho não deliberar sob proposta da
Comissão ou do Alto Representante, a maioria qualificada corresponderá a, pelo menos, 72% dos membros do Conselho, que devem representar Estados-membros participantes, que reúnam, no mínimo,
65% da população desses Estados. Sublinhe-se que,
nesta hipótese, as percentagens são as mesmas das
fixadas no regime geral para as votações em que só
alguns Estados participem na votação.
Note-se, todavia, que os Estados que, na preparação do Tratado
de Lisboa, se opunham ao regime da dupla maioria, e preferiam o
sistema da ponderação de votos, para além de terem cOllseguiido
adiar a aprovação daquele regime para só a partir de I de no'vernor'o
de 2014, obtiveram, à última hora, na CIG de 2007, com a sua intran"
sigência, uma segunda concessão, que ficou escrita no n." 2 do
3.° do já referido Protocolo n,O 36 anexo ao Tratado de Lisboa.
facto, entre I de novembro de 2014 e 31 de março de 2017,
.
o Conselho tiver que aprovar uma deliberação por maioria qualificada, qualquer dos membros do Conselho poderá requerer que' a
votação tenha lugar nos termos do disposto no n. o 3 do artigo 3.
desse Protocolo, isto é, nos termos do regime que vigorava antes d
entrada em vigor do Tratado de Lisboa em I de dezembro de 2009,
e que, no essencial, era o regime estabelecido no Tratado de Nic9'
Todavia, ao regime do Tratado de Nice somar-se-á então o dispost
338
Os órgãos e as instituições da União Europeia
no n,o 4 do mesmo artigo 3.° do Protocolo, para o qual também
remete o n. o 2 do mesmo artigo. Ou seja, nos casos em que, por força
dos Tratados, nem todos os membros do Conselho participem na
votação (já vimos atrás o que é que isto significa com base no atual
artigo 238.°, n,o 3, TFUE), no cálculo da maioria qualificada necessária aplicar-se-á a mesma proporção de votos ponderados, a mesma
proporção do número de membros do Conselho e, quando for pertinente, a mesma percentagem da população dos Estados-membros
em causa das que ficaram estipuladas no n. ° 3 do mesmo artigo.
Isto quer dizer que nesta matéria, e no essencial, o Tratado de
Nice poderá continuar em vigor até 31 de março de 2017, isto é,
mais de sete anos após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa. De
qualquer forma, há que sublinhar que o regime da dupla maioria
definido no Tratado de Lisboa, e que, como já mostrámos, foi muito
difícil de se obter, beneficia os Estados tanto grandes como médios
e pequenos. Beneficia os Estados médios e pequenos, desde logo,
porque a exigência de um elevado número mínimo de Estados para
se formar a maioria absoluta (como mostrámos, ele nunca será inferior a quinze) afasta a hipótese de um "Diretório" dos Grandes na
tomada de deliberações pelo Conselho. Mas também agrada aos
Estados grandes, na medida em que um pequeno número de Estados
pode formar uma minoria de bloqueio. Todavia, as duas situações
não são iguais: a minoria de bloqueio bloqueia uma deliberação, isto
é, impede que o Conselho delibere; só a maioria qualificada, com a
dupla maioria traduzida em percentagens para o número mínimo de
Estad()s e o mínimo de população, permite que o Conselho delibere.
Em face do que fica dito, o mais tardar em I de abril de 2017
~Jlllfal'a em vigor o regime de cálculo da maioria qualificada criada
Tratado de Lisboa nos artigos 16.0 , n. o 4, UE, e 238.", n."' 2 e 3,
ficando definitivamente abandonado o sistema de ponderade votos.
Sublinhe-se que em nada interfere com o regime da dupla
maIOria o Projeto de decisão do Conselho contido na Declaração
7 anexa ao Tratado de Lisboa (Declaração ad n. o 4 do artigo 16. o
Tratado da União Europeia e n. o 2 do artigo 238. o do Tratado
o Funcionamento da União Europeia).
339
A União Europeia
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
Para além de o Tratado de Lisboa ter passado para a votação por
maioria qualificada no Conselho um grande número de casos em que
ainda vigorava a votação por unanimidade, vários outros métodos
foram tentados, desde a Convenção sobre o Futuro da Europa, para
se diminuir ainda mais esse número e, portanto, para se retirar ainda
mais aos Estados o direito de veto nas votações no Conselho.
Assim, por exemplo, chegou a ser admitida a hipótese de votação por maioria "sobre-qualificada", que reunisse 516 de Estados e
representasse, no mínimo, 80% da população da União. Previa-se
que esta maioria fosse exigida para deliberações sobre matérias
muito sensíveis para a soberania dos Estados, como a fiscalidade, a
PESC e certos domínios do espaço de liberdade, segurança e justiça.
Esta ideia não triunfou e, por isso, o Tratado de Lisboa teve de se
contentar com alternativas.
A primeira, e a mais importante, é a chamada cláusula passerelle. Ela está consagrada no artigo 48.°, n.o 7, UE. Ela permite
Conselho Europeu, votando por unanimidade, e mediante prévia
aprovação do Parlamento Europeu, votando este por maioria dos
membros que o compõem, aprovar uma decisão que autorize o Conselho a votar por maioria qualificada numa matéria em que, por força
do TFUE ou do Título V do TUE (relativo à Ação Externa e a dispo-.·'·
sições específicas relativas à PESq, e sem implicações no domínio
militar e de defesa, ele deveria votar por unanimidade. Ou permite ao' ,
Conselho Europeu, também aqui votando por unanimidade, e.
mediante prévia aprovação do Parlamento Europeu, obtida por maioria dos membros que o compõem, aprovar uma decisão que autorize.,;'
o Conselho a adotar atos segundo o processo legislativo ordinário ente
casos em que ele, por força do TFUE, devia fazê-lo segundo o prÚ"
cesso legislativo especial. Contudo, se um qualquer dos Parlamentos.
nacionais, que têm de ser ouvidos antes da iniciativa do Conselho.
Europeu, se opuser a ela, isso é suficiente para que o Conselho Euro! .'
peu não possa aprovar essa decisão. Esta competência do Conselh9:'
Europeu insere-se nos processos de revisão simplificados dos Trat~;·
. 48°
°7UEJ70.
.
dos, e esta- reguId
a a, como se d'lsse, no artIgo
., n.,
370
Estudaremos essa revisão dos Tratados infra, no
340
0.°
l70-C.
possibilidade de o Direito positivo da União Europeia prescrever a
substituição da votação por unanimidade pela votação por maioria
qualificada no Conselho sem a revisão ordinária dos Tratados pode
tornar muito mais célere o aumento dos casos de substituição da
unanimidade pela maioria qualificada, não obstante, no caso em
apreço, seja de esperar dificuldade no consentimento prévio dos
Parlamentos nacionais à decisão do Conselho Europeu.
Outra alternativa é a da cláusula-travão. Ela permite estender
a maioria qualificada a duas matérias nas quais um Estado tem, à
partida, o direito de invocar o seu interesse nacional vital para obstar
à votação por maioria qualificada, que os Tratados preveem, e exercer um direito de veto. Nesses casos, o Estado em causa pode pedir
a intervenção do Conselho Europeu com O fundamento, exatamente,
no facto de a votação no Conselho poder afetar o seu interesse
nacional. Já estudámos essa matéria atrás, quando nos debrnçámos
sobre o "compromisso de Luxemburgo"J71.
Nos casos dos artigos 82.°, n.o 3, par. I, e 83.°, n.o 3, par. I,
TFUE, se o Conselho puser fim à suspensão do processo legislativo
ordinário com respeito pela maioria qualificada, portanto, obtendo o
concurso do Estado que invocar o interesse nacional, o dissídio
resolve-se com a prevalência da votação por maioria qualificada não
obstante as reservas iniciais desse Estado.
§ 4.'
A Comissão Europeia
Bibliografia especial: Iostitut International d' Administration
Publique, L'administration européenne, 1987; P. HAY, La Commission
européenne et l'administration de la Communauté, Luxemburgo, 1989;
l-V. LOU1S e WAELBROEK (eds.), La Commission au cour du systbne
institutionnel des Comnumautés européennes, Bruxelas, 1989; VAN
MIERT, La répartition des portefeuilles au sein de la COl1unission et te
probleme de la collegialité, Mélanges Dehonsse, pg. 175; F. VIBERT, The
Future Role o/the European Commission, Londres, 1994; M. WESTLAKE,
371
Ver supra, n.O lll-U-b.
341
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
The Commission and fhe Parliament: Partners and Rivais in the Euro-
pean Policy-Making Process, Londres, 1994; F.
cit., pgs. 37 e segs.
DE QUADROS,
Avaliação,
112. Génese
A Comissão tem a sua origem remota na Alta Autoridade da
CECA. Depois, os Tratados CEE e CEEA criaram uma Comissão
para cada uma destas duas Comunidades. Por fim, o Tratado de
fusão, ao fundir os três órgãos executivos das três Comunidades,
criou uma só Comissão para todas elas. A sua designação veio a ser
a de Comissão das Comunidades Europeias.
Com o Tratado de Maastricht, a Comissão passou a ter competência, no quadro da União, também fora do âmbito das Comunidades. Por isso, ela passou a designar-se de Comissão Europeia ou
Comissão da União Europeia.
O Tratado de Lisboa manteve a designação de Comissão Europeia (artigo 13.°, n.o 1, UE).
A Comissão tem o seu Regimento próprio'72.
113. Composição
Segundo o artigo 213.°, n.o I, par. 3, CE, na versão do Tratado
de Amesterdão, a Comissão devia ser composta por, pelo menos, um,
nacional de cada Estado-membro, não podendo, contudo, qualquer
Estado ter nela mais do que dois nacionais. Desta forma, quis-se,
desde o Tratado de Roma, dar a possibilidade aos quatro grandes
(que, depois, também foi concedida à Espanha), de terem, cada uIll':
dois Comissários.
Na Europa de Quinze, o número de Comissários era, pois, de.,
20: a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália e o Reino Unido
tinham, cada um, dois Comissários, e os outros Estados-membrqs
m Doe. C (2000) 3614,10 L 308, de 8-12-2000, alterado pela Decisão d
Comissão n" 20111737/IE, Enratom, de 9-11-2011, 10 L 296, de 15-11-2011.
342
tinham um, cada. O número de Comissários podia ser livremente
alterado pelo Conselho, por unanimidade (o mesmo artigo 213.°,
n.o 1, par. 2, CE).
Na Cimeira de Maastricht, de dezembro de 1991, chegou a
ficar acordado que todos os Estados passariam a ter, cada um deles,
apenas um Comissário. Desta forma, dava-se satisfação a alguns
Estados não grandes, entre os quais Portugal, que defendiam que,
sendo a Comissão um órgão de integração e não uma câmara de
representação dos Estados, não fazia sentido que nela os Estados
não fossem tratados em pé de igualdade e, ao contrário, ela refletisse
as desigualdades demográficas entre os Estados. Essa função devia
ficar para o Conselho. Todavia, à última hora, a pedido da Espanha,
essa alteração ficou adiada para a próxima revisão.
Quando da revisão de Amesterdão, foi junto, ao Tratado de
revisão, um protocolo, o Protocolo relativo às instituições na perspetiva do alargamento da União Europeia, que estipulava que, à
data futura da entrada em vigor do primeiro alargamento da União,
a Comissão seria composta apenas por um nacional de cada Estado-membro (isto é, os Estados grandes e a Espanha perderiam o
segundo Comissário), mas, em contrapartida, os Estados que perdessem o segundo Comissário seriam compensados no sistema de
ponderação de votos no Conselho. Todavia, segundo o mesmo Protocolo, o mais tardar um ano antes da data em que a União Europeia
passasse a ser constituída por mais de vinte Estados-membros, seria
convocada uma CIG, que procederia a uma "revisão global" das
disposições dos Tratados sobre a composição e o funcionamento dos
órgãos.
Esse Protocolo prenunciava, deste modo, a revisão do Tratado
que seria sempre necessária para que o Conselho deixasse de ter
'4C·UU'4U", no exercício dos poderes que o citado artigo 213.° lhe
cOlnferia, de fixar o número de membros da Comissão estipulado no
° 1 daquele preceito.
Finalmente, o Tratado de Nice veio alterar este sistema a penno alargamento da União.
De facto, do artigo 4.° do já referido Protocolo relativo ao
alclrl;,am'€nto da União Europeia, modificado pelo artigo 45.°, n.o 2,
343
A União Europeia
aI. d, do Ato de adesão de 2003, resultou a seguinte alteração, em
duas fases, ao sistema de composição da Comissão: numa primeira
fase, a representação igual de todos os Estados; numa segunda fase,
a representação rotativa.
A nossa posição perante esta matéria encontra-se hoje mitigada
por confronto com as edições anteriores deste livro. Entendemos
que há argumentos a favor das duas teses, ou seja, por um lado, da
Comissão composta por um nacional de cada um e de todos os
Estados-membros, por outro lado, da Comissão com uma composição mais reduzida.
O grande argumento a favor da tese de que a Comissão deve
ter nacionais de todos os Estados é o de que, na prática quotidiana
do funcionamento dos órgãos da União, os Estados e os cidadãos
europeus sentem que a Comissão, que é um órgão permanente, está
muito mais próxima deles e compreende muito melhor os seus problemas do que o Conselho, que nem sequer é um órgão permanente.
Além disso, os Estados já perceberam que o seu Comissário nacional, sem prejuízo de ser independente do respetivo Estado, pode
chamar a atenção especial dos seus pares para a especificidade dos
problemas do seu País na execução pela Comissão do Direito e das
políticas da União. E essa atuação dos Comissários, também já o
perceberam os Estados e os cidadãos, é por vezes mais eficaz do que
a dos respetivos delegados no Conselho.
Outro argumento a favor da tese segundo a qual a Comissão
deve ter um nacional por cada um e por todos os Estados-membros
é o de que a redução do número de Comissários parece não ser nem
necessária, nem compatível, com a natureza da Comissão.
Não é necessária, porque a Comissão nunca delibera por una'
nimidade. Por isso, o facto de os membros da Comissão serem em
grande número não afeta o funcionamento e a eficácia da Comissão:
Nem se diga que não há pelouros para trinta ou mais Comissários:
Também se dizia isso quando a Comissão estava para ter vinte e sete
Estados-membros e vemos hoje que os vinte e sete Comissários têm,
todos, pelouros relevantes, embora, obviamente, uns mais importan'!
tes do que outros. E é sabido que muitos dos atuais Comissários,'
ainda têm pelouros muito vastos e complexos, que permitem, se não?
344
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
exigem, desdobramentos, para além de o crescente alargamento das
atribuições da União, no plano da sua ordem interna e no plano da
Comunidade Internacional, e sobretudo após o Tratado de Lisboa,
forçosamente ir levar à criação de novos pelouros.
Para além disso, porém, esse regime, de um certo ponto de
vista, também é incompatível com a índole da Comissão. Como já
estudámos atrás, esta encarna a legitimidade da integração, isto é,
representa o interesse geral da União, o interesse da integração. Ora,
a legitimidade da integração impõe o tratamento igual de todos os
Estados-membros. E esse tratamento igual é infringido se há Estados que têm nacionais na Comissão e outros não.
É claro que, sob o prisma desta tese, há que ser prudente. Ela
não pode ser interpretada como querendo significar que numa União
com quarenta Estados-membros a Comissão tenha quarenta membros. Mas, quando a União atingir essa dimensão (o que será um
bom sinal), então ver-se-á.
Contudo, também há argumentos a favor da tese que defende
que a Comissão deve ter uma composição reduzida.
O primeiro desses argumentos parte, exatamente, da referida
construção segundo a qual a Comissão representa a integração. O
artigo 17.", n. o 1, UE, dispõe que "A Comissão promove o interesse
geral da União" (itálico nosso), melhor se diria, representa o interesse geral ou coletivo da União. Ora, sendo assim, parece ser legítimo afirmar que os Estados têm de participar, todos, no órgão que
os representa a eles e os seus interesses, que é o Conselho, mas não
faz sentido que participem todos no órgão que simboliza e representa o interesse geral (que é uma figura abstrata) da União.
O segundo argumento tem a ver com a eficácia da Comissão.
Os últimos alargamentos mostram que vinte e sete Comissários,
provindo de culturas e famI1ias políticas muito diferentes, não dão à
\...(Jmlssao a coesão de que esta precisa para atuar depressa e bem. O
problema não é da maioria da votação, é da sensibilidade muito
diferente dos Comissários para as questões sobre as quais se têm de
pronunciar.
Nos trabalhos preparatórios do Tratado de Lisboa, e desde a
Convenção sobre o Futuro da Europa, os Estados estiveram muito
345
A União Europeia
divididos sobre as duas teses que acabámos de expor. Também aqui
o Tratado de Lisboa resolveu adiar o problema.
Assim, até ao fim do mandato da atual Comissão, a Comissão
Durão Barroso II, isto é, até 31 de outubro de 2014, ela é composta
por um nacional de cada Estado-membro, incluindo o seu Presidente
e o Alto Representante, que é um dos Vice-Presidentes da Comissão.
Dispõe nesse sentido o artigo 17.°, n.o 4, UE. Segundo o artigo 17.°,
n.o 5, UE, a partir de I de novembro de 2014, a Comissão será composta, incluindo o seu Presidente e o Alto Representante, por um
número de membros correspondente a 2/3 do número de Estados,
salvo se o Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, decidir
alterar esse número. Nesse caso, os membros da Comissão serão
escolhidos de entre os nacionais dos Estados-membros, com base
num sistema de rotação rigorosamente igualitária entre os Estados,
que permita refletir a posição demográfica e geográfica relativa dos
Estados-membros no seu conjunto. O artigo 244.° TFUE completa
este preceito, reiterando que o referido sistema de rotação é um
corolário do princípio da igualdade dos Estados, consagrado no
artigo 4.°, n.o 2, I.' parte, UE, e acrescentando, para se alcançar essa
igualdade, que nenhum Estado pode ter na Comissão um nacional
em mais do que dois mandatos em cada três. As duas alíneas do
artigo 244. o TFUE têm, aliás, a mesma redação das alíneas do antigo
artigo 4.°, n.o 3, a, do Protocolo relativo ao alargamento da União
Europeia, anexo ao Tratado de Nice.
Portanto, das duas teses, os Tratados abandonam a primeira
para adotarem a segunda a partir de I de novembro de 2014. Os
Estados médios e pequenos serão os mais prejudicados com isso, já
que os Estados grandes têm uma presença forte na Administração da
União, a começar pelo aparelho da Comissão, que lhes permite
compensar a ausência de um Comissário, sem embargo, insiste-se,
da independência dos Comissários em relação aos Estados e, desde
logo, ao Estado de que são nacionais.
346
Os órgãos e as instituições da União Europeia
114. Modo de constituição
Durante muito tempo, segundo o ex-artigo 214.° CE, na versão
de Nice, os membros da Comissão eram designados, de comum
acordo, pelos governos dos Estados-membros. O Tratado limitava-se a exigir que eles fossem escolhidos "em função da sua competência geral" e oferecessem "todas as garantias de independência"
(ex-artigo 213.°, n. I, CE). Os governos dos Estados-membros
ficavam, dessa forma, com uma larga margem de discricionariedade
na escolha dos Comissários. Praticamente não havia regras que presidissem a essa escolha. Alguns governos tinham o cuidado de propor para o cargo de Comissário uma personalidade com experiência
já adquirida nas matérias dos pelouros que iriam ser atribuídos ao
Comissário. Outros, nem isso. Por seu lado, os Estados grandes
pretendiam, quase sempre, que um dos seus Comissários fosse da
confiança do partido ou dos partidos no governo, e o outro, da oposição, em regra, do maior partido da oposição.
Os Tratados de Maastricht e de Amesterdão limitaram consideravelmente essa discricionariedade dos governos nacionais, ao alterarem substancialmente o ex-artigo 214.°, CE, sobretudo pela
mtrodução de um n. ° 2 nesse artigo. O Tratado de Nice, por sua vez,
quase que acabou com qualquer intervenção dos governos na matéria: veja-se a redação do ex-artigo 214.° CE. E o Tratado de Lisboa
foi ainda mais longe.
Hoje, o regime de designação dos membros da Comissão
encontra-se regulado no artigo 17.°, n." 7, UE, e é o seguinte.
Passou a ser o Conselho Europeu, e não o Conselho reunido a
nível de Chefes de Estado e de Governo, como acontecia com o Tratado CE na versão de Nice (artigo 214.°, n. o 2), a escolher, por maioria qualificada, a personalidade que tenciona nomear Presidente da
Comissão. Para tanto, ele terá de atender aos resultados das eleições
para o Parlamento Europeu. Isto significa que o Tratado de Lisboa,
quer que os cidadãos europeus, quando votam nas eleições para o
Parlamento Europeu, incliquem ou, pelo menos, sugiram a que parudo querem que pertença o Presidente da Comissão, como o fazem
hoje, por exemplo, os eleitores alemães quanto ao seu Chanceler.
O
347
A União Europeia
Os órgãos e m instituições da União Europeia
Esse nome é proposto pelo Conselho Europeu ao Parlamento Europeu. Segundo o artigo 105." do Regimento do Parlamento Europeu,
o seu Presidente convidará depois o candidato a proferir uma declaração e a apresentar as suas orientações políticas ao Parlamento. Essa
declaração será seguida de debate, no qual poderão participar os
membros do Conselho Europeu. De seguida, o Parlamento Europeu,
em escrutínio secreto, elegará a individualidade proposta, por maioria dos membros que o compõem, ou seja, por uma maioria difícil. O
resultado positivo da votação assume a natureza de verdadeira eleição pelo Parlamento. Essa eleição é transmitida ao Presidente do
Conselho Europeu. Se o resultado da votação do Parlamento for
uegativo, o seu Presidente convidará o Conselho Europeu a indicar
um novo nome ao Parlamento, seguindo-se o mesmo procedimento.
Depois, o Conselho, e não o Conselho Europeu, de comum
acordo com o Presidente eleito, aprova a lista das outras personalidades que tenciona nomear membros da Comissão. Essa lista será
elaborada em conformidade com as sugestões apresentadas por cada
Estado-membro - é essa, aliás, a única intervenção que, agora, os
Estados-membros, como tais, têm neste processo. A este processo de
designação escapa apenas o Alto Representante, que é escolhido
pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, e com o acordo
prévio do Presidente da Comissão, para presidir ao Conselho dos
Negócios Estrangeiros e que, por força dos Tratados, é, ao mesmo
tempo, um dos Vice-Presidentes da Comissão (artigo 18." UE).
Por força das disposições conjugadas do artigo 17.°, n.o
par 2, UE, e do artigo 106.° do Regimento do Parlamento Europeu,
de seguida o Presidente do Parlamento Europeu convidará os can<\i,
datos indigitados pelo Presidente eleito da Comissão e pelo Conselho, e o Alto Representante, a comparecerem perante as diferentes
comissões parlamentares, conforme os pelouros para que tiverelIf.
sido indigitados. Essas audições são públicas. Cada candidato indP
gitado fará uma declaração perante a respetiva comissão parlamen,
tar e responderá às perguntas que lhe forem colocadas. Nessa,S
audições vai-se apurar, designadamente, da aptidão e da adequação;
de cada candidato, ao cargo de Comissário, no pelouro que lhe está
reservado.
Este sistema já foi aplicado às individualidades propostas para
a Comissão presidida por JACQUES SANTER, por ROMANO PRODl e por
DURÃO BARROS0373 • Parece nada impedir que, pelo funcionamento
desta regra, o Parlamento recuse a aprovação de um, ou mais, nomes
concretos para a Comissão, o que obrigaria o Presidente eleito e o
Conselho a proporem outro ou outros nomes para substituir a personalidade ou as personalidades recusadas. Aliás, isso já aconteceu.
Quanto ao Alto Representante, a recusa do seu nome para a Comissão forçaria, obviamente, o Conselho Europeu e o Presidente da
348
Comissão a ter de indicar uma outra personalidade tanto para a
Comissão corno para presidir ao Conselho dos Negócios Estrangeiros.
O Presidente eleito e outros membros designados para a Comissão são, depois, sujeitos, com o respetivo programa, à aprovação, em
bloco, do Parlamento Europeu, por voto nominal. Todavia, obtida
essa aprovação, todos eles são finalmente "nomeados" pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada (artigo 17.°, n.o 7, par. 3,
UE, e artigo 106.° do Regimento do Parlamento Europeu).
Os novos Comissários iniciam as suas funções no dia seguinte
à data em que termina o mandato da Comissão anterior. Por sua vez,
os antigos Comissários permanecem em funções, em qualquer caso,
até à sua substituição pelos novos Comissários.
O mandato dos Comissários foi de quatro anos até ao Tratado
Maastricht. Este modificou a duração do mandato para cinco
anos (hoje, artigo 17.°, par. 1, UE).
A substituição dos Comissários pode ter lugar individual ou
colletivame:nt'~, nos termos regulados no artigo 246." TFUE.
Em caso de morte, exoneração voluntária, ou demissão, de um
Comissário, o Conselho pode substitui-lo ou deixar o cargo vago até
termo do mandato. Se o Conselho decidir substitui-lo, o novo
completará o mandato do seu antecessor. A intenção
medida é a de permitir, no fim do mandato, se assim for entena renovação em bloco da Comissão. O Presidente e o Alto
m
As audições constam do sítio www.europarl.europa.eu/hearings/com_
349
A União Europeia
Representante, esses, serão necessariamente substituídos e, por
idêntica razão, até ao final do mandato.
A demissão de qualquer membro da Comissão pode ser levada
a cabo pelo TJUE, a pedido do Conselho, deliberando por maioria
simples, ou da Comissão, nos termos definidos no artigo 247.' TFUE.
Em caso de substituição coletiva, por efeito de uma moção de
censura aprovada pelo Parlamento Europeu, como oportunamente
estudámos, ou por uma exoneração voluntária dos membros da
Comissão, estes continuam em funções até à tomada de posse dos
membros que os venham a substituir. Estes limitam-se a concluir o
mandato da Comissão cessante.
115. Estatuto dos comissários
Os comissários beneficiam de um estatuto que se traduz em
quatro características fundamentais:
dever de independência e de isenção. Com isto quer-se
significar que, de harmonia com o artigo 245.° TFUE, os
Comissários devem desempenhar as suas funções com
plena independência e no interesse geral da União. Designadamente, eles não recehem ordens ou instruções dos
Estados, porque, como já sabemos, eles não representam os
Estados mas apenas a União. Por isso, ao assumirem os
seus cargos eles comprometem-se, perante o Tribunal de
Justiça, a "não solicitar nem aceitar instruções de nenhum
Governo ou de qualquer outra entidade". A isenção que
lhes é exigida impõe-lhes obrigações mesmo depois de
terem cessado as suas funções, como estabelece o par. 2 do
mesmo artigo 245.° TFUE;
inanwvibilidade, o que quer dizer que só podem cessar as
suas funções por qualquer dos seguintes motivos, dos quais
nenhum depende da vontade dos Estados: morte ou exone,
ração voluntária; exoneração coletiva, por efeito da aprovação pelo Parlamento Europeu de uma moção de censura;
demissão, decidida, como dissemos, pelo Trihunal de
350
Os órgãos e as instituições da União Europeia
tiça, a requerimento do Conselho ou da Comissão, e fundada em "falta grave" ou no facto de o Comissário em
causa ter deixado de preencher os requisitos necessários ao
exercício das suas funções (por exemplo, incapacidade
física ou aceitação de um cargo incompatível);
exclusividade de junções, o que inclui a proibição de serem
remunerados por conferências ou por atividades académicas, embora possam receher direitos de autor por livros que
publiquem, mediante parecer prévio do Parlamento Europeu;
privilégios e imunidades idênticos aos que se aplicam ao
comum dos funcionários e agentes da União. A remuneração é fixada pelo Conselho e suportada pelo Orçamento da
União. O exercício do cargo dá aos comissários direito à
pensão.
116. Competência
Contrariamente à Alta Autoridade da CECA, que foi criada por
JEAN MONNET para ser o principal órgão de decisão naquela Comunidade, na antiga CEE, depois CE, e na CEEA, à Comissão ficou
reservado um papel que, no essencial, podia ser designado abreviadamente de órgão executivo daquelas duas Comunidades. Como tal,
competia-lhe zelar pelo cumprimento dos Tratados e do demais
Direito Comunitário - daí a expressão clássica "a Comissão, a guardas Tratados" ("la Commission, la gardienne des traités").
Com as sucessivas revisões dos Tratados institutivos a Comissão foi, todavia, reforçando a sua competência, que, no entanto, foi
sempre predominantemente de execução. Com o Tratado de Lisboa,
principal competência da Comissão continua ainda a ser a de exeEla foi, aliás, reforçada. Mas a Comissão viu alargados os
poderes a novos domínios.
O atual artigo 17.', n." I e 2, UE, pretende definir a competênda Comissão. Fá-lo de modo muito mais pormenorizado do que
o fazia o seu homólogo no Tratado CE, na versão de Nice, o artigo
351
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
A União Europeia
211.'. Todavia, temos que relacionar esse preceito com outros artigos dos Tratados para ficarmos com uma noção completa dos poderes atuais da Comissão, incluindo no processo legislativo.
Assim, à Comissão cabe:
a) promover, de uma forma genérica, o interesse geral da
União e, concretamente, tomar todas as iniciativas adequadas à prossecução desse interesse geral;
b) exercer um direito de iniciativa no processo legislativo
ordinário ou especial: os atos legislativos só podem ser
aprovados mediante proposta da Comissão (artigo 17.',
n.' 2, 1." frase), salvo disposição em contrário e excetuados
os casos em que essa iniciativa é conferida pelos Tratados
a um grupo de Estados-membros, ou ao Parlamento Europeu, ou ao Alto Representante, ou pode ser substituída por
uma recomendação do Banco Central Europeu ou por um
pedido do Tribunal de Justiça da União Europeia ou do
Banco Europeu de Investimento (artigo 289.', n.o 4, TFUE,
aplicado, por exemplo, pelo artigo 294.', n.' 15, do me:smo
Tratado);
c) exercer um direito de iniciativa nos processos não legislativos nos casos em que os Tratados o prevejam (artigo
n.O 2, 2." frase). Tanto na situação referida em cima,
alínea anterior, como neste caso, sempre que, por força
Tratados, tiver que deliberar sob proposta prévia da ,-,''''''co°
são, o Conselho só pode alterar a proposta da Comissão
unanimidade, salvo nas situações expressamente co:ntempiadas no artigo 293.°, n.o 1, TFUE (ver este artigo e,
cretizando-o especialmente quanto ao processo le!lisllativo.!
ordinário, ver o artigo 294.', n.o 9, TFUE);
ti) tentar aproximar, no Comité de Conciliação, as po:slçi)eSH.
divergentes do Conselho e do Parlamento Europeu
longo do processo legislativo ordinário (artigo
n.' 11, TFUE);
e) praticar os atos delegados previstos no artigo 290.':
atos praticados por delegação de um ato legislativo
352
fJ
atos não legislativos de alcance geral que completam ou
alteram certos elementos não essenciais do ato legislativo.
São atos que se situam na fronteira entre atos legislativos e
atos de execução. Estudaremos estes atos adiante, quando
nos debruçarmos sobre o Direito derivado como fonte do
Direito da União;
exercer uma vasta competência executiva própria, aumentada e pormenorizada ainda mais pelo Tratado de Lisboa, e
sintetizada no artigo 17.', n.o 1, UE. Assim, a Comissão:
vela pela aplicação do Direito da União, isto é, aplica e
faz aplicar esse Direito, podendo formular recomendações para a boa aplicação dos Tratados nos casos neles
previstos ou sempre que julgue necessário;
controla a aplicação do Direito da União por todas as
entidades que o devem aplicar, contando aqui com a
fiscalização do TJUE;
executa o Orçamento e gere os programas da União;
exerce as funções de coordenação, execução e gestão
conferidas pelos Tratados, inclusivamente à sombra do
artigo 291.°, n.O 2, TFUE;
representa a União no plano externo, sem prejuízo da
competência atribuída ao Alto Representante da União
para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança
e ao Presidente do Conselho Europeu, este último, no
domínio da PESC, como já vimos (artigo 15.°, n.O 6, par.
2, UE);
toma a iniciativa da programação anual e plurianual da
União com vista à obtenção de acordos interinstitucionais, isto é, acordos entre os órgãos da União;
g) negociar alguns acordos internacionais em nome da União
(artigo 207.°, n.o 3, TFUE) e apresentar ao Conselho recomendações quanto à celebração de outros acordos, inclusive no âmbito da União Económica e Monetária (artigos
218.°, n.o 3, e 219.° TFUE);
353
A União Europeia
h) no puro campo das políticas econóI)lica e monetária, exer-
cer poderes de recomendação (artigo 121.° TFUE) e de
fiscalização (artigos 126.° e 140.° TFUE).
A Comissão encontra-se no centro do sistema institucional da
União. Em grande parte, a eficácia e a operacionalidade do aparelho
institucional da União e, portanto, desta própria, dependem do funcionamento da Comissão. Se somarmos a sua competência, que
acabámos de examinar, com a forma da sua designação e da sua
investidura e com o seu funcionamento, que vamos daqui a pouco
estudar, podemos dizer que ela cada vez mais se aproxima do
modelo de um Governo estadual.
117. Em especial, a competência do Presidente
Com o evoluir dos tempos, e sobretudo desde o Tratado de
Maastricht, a figura do Presidente da Comissão tem vindo a destacar-se no seio da Comissão. Ele é cada vez menos um Comissário,
um primus inter pares, e cada vez mais o Chefe de uma equipa. O
Tratado de Lisboa reforçou ainda mais esse papel do Presidente''',
dando-lhe um estatuto ainda mais específico no seio da Comissão e
conferindo à sua competência um conteúdo ainda mais político.
Já nos referimos aos aspetos da designação do Presidente e à
sua influência na escolha dos outros membros da Comissão. A sua
legitimidade ficou fortemente reforçada por ele ser designado pelo
Conselho Europeu em função dos resultados das eleições para o
Parlamento Europeu, de, depois, ser eleito pelo Parlamento por uma
difícil maioria e de ter um papel ainda mais determinante na escolha
dos Comissários.
Mas também a sua competência aumentou consideravelmente.
374 Reconhece-o PIRIS, que participou nos trabalhos que conduziram à revisão de Lisboa na sua qualidade de Diretor do Serviço Jurídico do Conselho - pgs.
229-230.
354
Os órgãos e as instituições da União Europeia
o antigo Tratado CE, depois da revisão de Amesterdão (no
artigo 219. '), e, de forma ainda mais expressiva, depois da revisão
de Nice (no artigo 217.'), veio atribuir ao Presidente, antes de tudo,
a "orientação política" da Comissão. Embora esta expressão tenha
desaparecido com o Tratado de Lisboa, este veio aumentar bastante
a competência do Presidente em relação à Comissão. A matéria
encontra-se regulada nos artigos 17.°, n.' 6, UE, e 248.° TFUE, e,
residualmente, no artigo 18.°, n.O' 1 e 4, UE.
Assim, compete ao Presidente:
a) definir as grandes linhas de orientação da atuação da
Comissão. Ou seja, o Presidente coordena a atuação, inclusive, política, de toda a Comissão;
b) fixar a organização interna da Comissão, isto é, criar as
condições para que a Comissão atue como um órgão coeso,
coerente, eficaz e com respeito pela sua colegialidade;
c) como se disse atrás, ter um papel importante na escolha, e
inclusivamente, dar o seu acordo ao nome que o Conselho
Europeu designar para Alto Representante, isto é, para Presidente do Conselho dos Negócios Estrangeiros e Vice-Presidente da Comissão;
d) escolher livremente os seus Vice-Presidentes, salvo o Alto
Representante, que, como se disse, é designado pelo Conselho Europeu, ainda que com o acordo prévio do Presidente da Comissão, para presidir ao Conselho dos Negócios
Estrangeiros e, ao mesmo tempo, para, por força dos Tratados, ser um dos Vice-Presidentes da Comissão;
e) exonerar livremente (e já sem necessidade de prévia aprovação da Comissão como órgão colegial, como sucedia por
força do artigo 217.°, n.o 4, CE, na versão de Nice) qualquer membro da Comissão (salvo o Alto Representante),
apesar da redação simpática do par. 2 do n. ° 6 do artigo
17." que já vem do Tratado de Nice, e que pretende dar a
entender que essa exoneração só terá lugar por iniciativa do
Comissário respetivo e se o Presidente lho pedir. Quanto ao
Alto Representante, apesar da redação pouco clara do
355
A União Europeia
li
artigo 17.°, n.O 6, par. 2, 2." parte, UE, a remissão aí para o
artigo 18.°, n.O 1, UE, mostra-nos que ele só pode ser exonerado pelo Conselho Europeu, ainda que mediante acordo
prévio do Presidente da Comissão. Isso pode tornar irrelevante o disposto no artigo 17.°, n.O 6, par. 2,2." parte, UE,
porque não é o mesmo o Presidente da Comissão exonerar
o Alto Representante e só poder fazê-lo o Conselho Europeu, ainda que com o acordo prévio do Presidente. da
Comissão, como é o que acontece, por força do refendo
artigo 18.°, n.O 1, UE;
embora os Tratados não o digam expressamente, por uma
conjugação de circunstâncias resultantes da sua letra é o
Presidente da Comissão quem conduz, em última instância,
a ação externa da Uniâo. Veremos isto melhor no Capítulo
seguinte.
Ou seja, e tentando ser rigoroso quanto à letra e ao espírito dos
Tratados, se é verdade que, como atrás dissemos, a Comissão, pela
sua designação e pela sua competência, se aproxima progressivamente do modelo de um governo estadual, o Presidente, também
pelo modo da sua designação e pelos poderes que hoje possui, está
cada vez mais próximo do modelo de um Chefe de Governo de um
Estado.
118. Funcionamento
I - Generalidades
A Comissão exerce o essencial da sua competência agindo
como órgão colegial. Daqui resulta que, como reconhece o TJ,
"todos os membros da Comissão são coletivamente responsáveis,
plano político, pelo conjunto das. deliberações to~adas"375 .. Isto não
prejudica o facto de o seu PresIdente, como ha pouco VImos,
375
Ac. 23-9-86, Akzo Chemie, Proe. 5/85, CoI., pgs. 2.585 e segs ..
356
Os órgãos e as instituições da União Europeia
importante competência própria, designadamente, para a definição
da orientação da Comissão e a determinação da sua organização
interna (artigo 17.°, n.O 6, UE).
Cada Comissário tem um voto. Nos termos do artigo 250.°
TFUE, a Comissão delibera por maioria simples dos seus membros.
Cada membro da Comissão tem a seu cargo um ou mais pelouros, isto é, uma ou mais áreas de atribuições da União. Não tem sido
fácil a repartição de pelouros pelos diversos Comissários, porque os
Estados procuram sempre que aos Comissários por si indicados,
sejam atribuídos os pelouros mais importantes. Por isso, é o Presidente que, ao ter de definir a organização interna da Comissão, e,
mais concretamente, de ter de assegurar "a coerência, a eficácia e a
oportunidade da sua ação" (artigo 17.°, n.O 6, b, TFUE), goza de um
amplo poder discricionário para a criação dos pelouros, para a sua
distribuição por todos os membros da Comissão, inclusive por si,
bem como para a sua redefinição e redistribuição durante o mandato
- o que ainda mais reforça o poder do Presidente em relação à
Comissão.
Não é fácil a repartição pelo Presidente de pelouros pelos
Comissários. Como se imagina, os pelouros mais importantes _ o
mercado interno, a concorrência, as relações externas, a segurança e
a justiça... - são os mais disputados, especialmente pelos Comissários dos Estados grandes. Com o tempo têm sido criados novos
pelouros para acudir às novas necessidades: por um lado, acompanhar o alargamento progressivo das atribuições da União a novos
domínios, o que é ainda mais sensível depois do Tratado de Lisboa,
como vimos atrás, no Capítulo dedicado às atribuições da União;
depois, encoutrar pelouros com substância, e não meramente decorativos, para vinte e sete Comissários; por fim, desdobrar em dois ou
mais, devido ao aumento da sua complexidade, os pelouros clássicos, como, por exemplo, os assuntos económicos, a educação, a
cultura...
A redução do número de Comissários a partir de 1 de novembro de 2014 irá levar a uma concentração de pelouros em cada
Comissário por confronto com a situação atual.
357
Os órgãos e as instituições da União Europeia
A União Europeia
Cabe a cada Comissário, nos respetivos pelouros, elaborar
projetos de propostas a apresentar pela Comissão ao Conselho e, se
eles forem aprovados, zelar pela sua aplicação. Cada Comissário
gere uma ou mais Direções-Gerais, bem como os demais serviços,
relacionados com os respetivos pelouros. A relação entre cada
Comissário e os respetivos Diretores-Gerais nem sempre é fácil. Ela
depende muito da personalidade e da mentalidade de cada um dos
intervenientes, o que pode ser condicionado pela diferente nacionalidade e, por conseguinte, pela diferente cultura de cada um deles, e
depende também do protagonismo que cada um deles queira por'
ventura assumir no exercício das suas funções.
Cada um dos Comissários tem o seu próprio "gabinete". Ele é
dirigido por um Chefe de Gabinete e é composto por personalidades
escolhidas livremente, dentro ou fora dos funcionários que pertencem aos quadros da função pública da União. Uma das características específicas desses Gabinetes reside no facto de a sua composição
ser multinacional, isto é, o Chefe de Gabinete, os Chefes de Gabinete Adjuntos e os Assessores são de diversas nacionalidades. Este
facto, não só é mais compatível com o espírito e a natureza
União, como também permite aos respetivos membros da Comissão
terem uma melhor compreensão global da realidade e dos problé- .
mas da União, de todos os Estados-membros e de todos os povos da
União. Os Gabinetes dos Comissários, sobretudo se são compostos'
por individualidades bem preparadas nos pelouros respetivos, e,'
particularmente, o Gabinete do Presidente da Comissão, têm vindo>
a ganhar um peso crescente no funcionamento da Comissão. Esse
aumento de importância dos Gabinetes dos membros da Comissão.~,
ajudado pela circunstância de as reuniões da Comissão serem prece;.
didas de reuniões dos Chefes de Gabinete dos Comissários.
.,
II - A delegação de poderes
O avolumar do trabalho da Comissão impôs o recurso, no se,U
funcionamento interno, ao instituto da delegação de poderes. Gil.
seja, segundo o Regimento da Comissão (artigos 13.° e 14.°), est
358
pode habilitar os seus membros e os seus funcionários a tomar em
nome da Comissão e sob a sua fiscalização, "medidas de gestã~ ou
de admInistração", com a possibilidade de subdelegação.
A delegação de poderes tem sido muito frequentemente utilizada no funcionamento da Comissão. E o TJ considera legais tanto
a ~elegação como os atos praticados por delegação, desde que estes
nao ultrapassem o âmbito material definido nos referidos artigos
13.° e 14.° do Regimento'76.
ES,!lecial referência merece a delegação de poderes pela
Comlssao em órgãos subsidiários que ela cria com a missão específica. de s~ desempenharem de tarefas que exigem especiais qualificaçoes lecmcas. O TJ considera legal a criação destes órgãos com
a condição de neles serem delegados apenas "poderes de exe~ução
claramente delimitados" e nunca poderes discricionários377.
119. A destituição da Comissão
Vimos há pouco que o Presidente da Comissão pode exonerar
os Comissários. E já antes tínhamos estudado que o Parlamento
Europeu pode destituir a Comissão através da aprovação da moção
de censura prevista no artigo 234.° TFUE. Quanto a este último
ponto, acrescentar~mos agora que, com a aprovação daquela moção,
cm t~da a Comlssao, como órgão colegial, mesmo que o visado ou
os Visados pela moção de censura sejam apenas um, ou alguns
CO.mis:sários Aliás, o Parlamento Europeu pode aprovar uma moçã~
censura quanto a toda a Comissão, como órgão colegial, por ter
a confiança só em algum ou alguns Comissários. Nesse
~ Presidente da C~missão deverá ter sensibilidade para, se for
diSSO, se antecipar a moção de censura e exonerar previamente
os Comissários que estiverem em causa, exatamente para
que toda a Comissão seja destituída.
376
377
Ae. 15-6-94, BASF, Proe. C-137/92 P, CoI., pgs. 1-2.555 e seos
Ae. 13-6-58, Meroni, Proe. 9/56, Rec., pgs. 11 e segs.
{;>
359
•
A União Europeia
§ 5."
Os órgãos e as instituições da União Europeia
121. Competência
o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros
e a Política de Segurança
Bibliografia especial: além das obras gerais e dos Comentários
aos Tratados posteriores à assinatura do Tratado de Lisboa, F. DE
QUADROS, Avaliação, cit., pgs. 42 e segs.; M. J. RANGEL DE MESQUITA, A
Actuação externa, cito
120. Origem e modo de designação
A Convenção sobre o Futuro da Europa sentiu a necessidade
de rever a condução pela União das suas relações externas. Até ao
Tratado de Nice, inclusive, tinham competência na matéria três entidades: o Presidente do Conselho então chamado dos Assuntos
Gerais e das Relações Externas, que mudava todos os semestres, o
Comissário encarregado das relações externas, que, em regra, era
um Vice-Presidente da Comissão, e o Alto Representante para
PESC, ou seja, o Sr. PESe.
Esta dispersão de competência por três entidades retirava coesão e coerência à condução da ação externa da União. Por isso;·a
Convenção sobre o Futuro da Europa resolveu concentrar
tarefa numa única entidade. Havia várias soluções possíveis
atingir esse objetivo. Mas aquela que a Convenção escolheu, e
ficou no Tratado de Lisboa, foi a que a seguir se indica.
Os Tratados entregam hoje a condução formal (veremos
a pouco o porquê deste adjetivo) das relações externas da
uma única entidade: o Alto Representante para os Negócios EstnUh
geiros e a Política de Segurança, de que se ocupa o artigo 18.°
Ele é escolhido pelo Conselho Europeu, deliberando por
ria qualificada, e com o acordo do Presidente da Comissão. Pode ser
destituído em qualquer altura pelo mesmo procedimento. A duraçãq
do seu mandato coincide com o da Comissão.
360
O Alto Representante conduz e executa a Política Externa e de
Segurança Comum da União, incluindo a Política Comum de Segurança e Defesa, contribuindo para a definição dessa política
- dizem-no os artigos 18.°, n.O 2, pars. 1 e 2, 26.°, n.o 3, e 27.°, n.O' 1
e 2, UE. Para tanto, conta com a definição das orientações gerais
dessa política pelo Conselho Europeu (artigo 26.°, n.O I, UE) e,
como veremos, é apoiado por um "Serviço Europeu para a Ação
Externa" (artigo 27.°, n.O 3, UE).
O Alto Representante é, antes de mais, "mandatário do Conselho", portanto, seu delegado, e, nessa qualidade, preside ao Conselho dos Negócios Estrangeiros, di-lo o artigo 18.°, n." 2 e 3, UE.
Aliás, é por isso que ele não aparece referido com autonomia na lista
de "instituições", constante do artigo 13.°, n.o 1, UE. A tentativa, da
parte da Convenção sobre o Futuro da Europa, que ganhara expressão no artigo 1-28.° do Tratado Constitucional, de o designar como
"Ministro dos Negócios Estrangeiros da União" esbarrou na oposição de alguns Estados, que entenderam que a designação de "Ministro" era mais um sinal de excessiva aproximação da União em
relação ao modelo estadual.
O Alto Representante é, simultaneamente, membro da Comissão,
sendo um dos seus Vice-Presidentes. Foi com esta coincidência de
funções, no Conselho e na Comissão, que, como se explicou, se quis
COluce:ntrar na mesma personalidade a condução de toda a ação externa
da União. Embora a tenninologia usada pelos Tratados não seja a
mesma [como mandatário do Conselho e Presidente do Conselho dos
NeJgácíos Estrangeiros conduz a PESC (artigo 18.°, n.O' 2 e 3, UE), e
Vice-Presidente da Comissão, pelo menos na letra dos Tratados,
vai mais longe, porque "assegura a coerência da ação externa" da
(artigo 18.°, n.O 4, UE)] foi intenção dos Tratados atribuir-lhe a
pela condução das relações externas da União e
garantir coerência e eficácia à atuação da União nesse domínio. Para
tanto, o Alto Representante goza de um amplo poder de iniciativa
238.°, n." 2 e 3, b, TFUE) e, como se disse, é apoiado por um
"Servic:oEuropeu para a Ação Externa" (artigo 27.°, n.o 3, UE).
361
A União Europeia
A competência do Alto Representante que acabámos de referir
encontra-se pormenorizada nos artigos 23.° a 41.° UE.
Quanto à exoneração do Alto Representante, os Tratados não
são felizes na sua conceção e na sua redação.
Pelo artigo 18.°, n.o 1,2.' parte, UE, parece que só o Conselbo
Europeu o pode exonerar, com o prévio acordo do Presidente da
Comissão. Mas isso não corresponde à verdade no sistema dos Tratados. Em primeiro lugar, o Parlamento Europeu pode começar por
não aprovar a personalidade indigitada para Alto Representante, à
sombra do artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, e, nesse caso, o Conselho
Europeu terá que indicar uma nova personalidade para essa função.
Em segundo lugar, o Parlamento Europeu, caso vote a moção de
censura contra a Comissão, prevista no artigo 234.° TFUE, destitui,
com isso, também o Alto Representante, como prescreve, de modo
expresso, esse preceito, conjugado com o artigo 17.°, n.o 8, UE. Por
fim, também o Presidente da Comissão pode exonerar o Alto Representante, e parece que livremente, por força do artigo 17.°, n.o 6,
par. 2, UE, embora a remissão, por este artigo, para O procedimento
previsto no artigo 18.°, n.o I, UE, ponha a nu uma incongruência:
este último preceito permite apenas ao Conselho Europeu exonerar
o Alto Representante, embora mediante acordo prévio do Presidente
da Comissão. Vamos a ver como é que na prática se compatibilizam
estes dois artigos.
122. Incongruências no estatuto do Alto Representante
Como se disse, o Alto Representante tem uma dupla função,
vulgarmente chamada de "duplo chapéu": a de Presidente do
selho dos Negócios Estrangeiros da União, atuando, portanto,
se mostrou como "mandatário do Conselho", ou seja, delegado
Estados-m~mbros; e a de membro da Comissão com a função de';
Vice-Presidente para as relações externas e para a gestão da coerên~'.
cia da ação externa da U n i ã o . }
Como já se explicou, as razões da criação do Alto Represen:'
tante foram de louvar. E sem fazer sentido discutir-se aqui se eSSáSt\
362
Os órgãos e as instituições da União Europeia
razões não eram alcançáveis por um outro método mais feliz, o
estatuto que para ele foi encontrado pelos Tratados não deixa de
criar algumas questões jurídicas de difícil compreensão.
Em primeiro lugar, foi sempre um dos princípios básicos e
estruturantes das Comunidades e da União, assumido logo pelos
pais-fundadores das Comunidades e pelos redatores dos Tratados
institutivos nos anos 50 do século passado, a sepal'ação total entre
a~ duas legit!midades, a da Comissão e a do Conselho: como já se
dIsse neste hvro, aquela representa o interesse geral ou comum da
União, este representa os interesses dos Estados. E ao longo destas
seis décadas nunca se subestimou essa separação porque, muitas
vezes, os dois interesses em causa entravam em conflito. Ora, bole
com toda esta conceção - repete-se, estruturante e fundamental para
o sistema institucional da União - o facto de uma mesma personalidade fazer parte, ao mesmo tempo, dos dois órgãos. Não se aceita
que na mesma semana, ou no mesmo dia, a horas diferentes, o Alto
Representante venha a sentir-se obrigado, nos dois órgãos, a defender sobre o mesmo assunto posições divergentes, porque a tanto é
forçosamente conduzido pela diferença de interesses que os dois
órgãos prosseguem e defendem.
Em segundo lugar, o Presidente da Comissão tem de dar o seu
acordo à sua escolha pelo Conselho Europeu e pode, sem intervenção dos outros Comissários, dar o seu acordo ao Conselho Europeu
para a sua destituição. Pegando mais neste último aspeto, o Presidente da Comissão pode participar na destituição de um membro do
vC"'O~W'~ e presidente de uma das formações do Conselho, porque
não parece curial que o Alto Representante cesse funções na Comise continue a exercer funções no Conselho, porque os Tratados
'A"5"'" que seja a mesma personalidade a exercer os dois cargos.
nunca se julgara até agora que viesse a ser possível o Presida Comissão interferir, aiuda que de forma indireta, na compm;içâio do Conselho.
Em terceiro lugar, se o Parlamento Europeu recusar a aprovada personalidade indigitada para Alto Representante como
~o._l-..~ da Comissão, ao abrigo do artigo 17.°, n.o 7, par. 3, UE, ela
pode exercer funções na Comissão e, portanto, também no Con363
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
selho. Por outro lado, se o Parlamento Europeu destituir a Comissão
através de uma moção de censura, em conformidade com os artigos
17.°, n.o 8, UE, e 234.°, par. 2, TFUE, o Alto Representante cessa as
funções que exerce na Comissão. Todavia, e não obstante, no plano
jurídico a aprovação da moção de censura levar à destituição do
Alto Representante só como membro da Comissão, de facto a aprovação dessa moção de censura tem como efeito ele cessar também
as suas funções no Conselho, como Presidente do Conselho dos
Negócios Estrangeiros 37 '. Com efeito, também por aqui não se concebe que ele cesse uma das funções e mantenha a outra quando os
Tratados, repetimos, pretenderam que fosse a mesma personalidade
a exercer os dois cargos. Ou seja, contra a letra dos Tratados, que o
não preveem, o Parlamento Europeu acaba por ter, se não no plano
jurídico, pelo menos no plano dos factos, competêucia, que nunca
até agora tivera, para destituir um membro do Conselho, que até é
presidente de uma das formações do Conselho.
E não vale a pena tentar contrariar a segunda e a terceira razões
das acima enunciadas, com a eventual alegação de que, por força da
2. a parte do artigo 18.°, n.o 1, UE, só o Conselho Europeu pode destituir o Alto Representante. Isso é verdade, como atrás demclfisltrámos, não obstante a discrepância, que também apontámos,
redação dos artigos 18.°, n.o 1, e 17.°, n.o 6, par. 2, UE. Mas não é
menos verdade que só o pode fazer com o prévio acordo do Presidente da Comissão.
Por tudo isso, sendo o Alto Representante Vice-Presidente da'
Comissão e, portanto, estando ele, nos termos dos Tratados, subordi- i:
nado ao Presidente da Comissão e sujeito à coordenação deste, o que
resulta do sistema dos Tratados é que é o Presidente da Comissão O
primeiro e principal condutor da Ação Externa da União, sem pre,\
juízo de a gestão quotidiana dessa Ação Externa caber ao Alto Repre",
sentante. Se fosse verdadeira a frase atribuída ao antigo Secretário de·:
Estado norte-americano Henry Kissinger, segundo a qual ele teri~'>
perguntado quem era o seu homólogo do lado da UE, ou seja, a quem
378
Assim, também
GRABITZ/HILF/NETfSHE1M,
n.O 8, UE.
364
anotação 115 ao artigo
éque ele se deveria dirigir do lado da União Europeia, quando precisasse de tratar de matérias que tivessem a ver com a condução ao
mazs alto nível, da política externa da UE (frase que, segundo g~an­
tem os responsáveis ~elos arquivos da Casa Branca, em boa verdade,
Klssmger nunca Ullhzou), a resposta seria a de que, tanto o Presidente dos Estados Unidos, como O seu SecretáIio de Estado, se
devem dlflglr ao Presidente da Comissão, sem prejuízo da competênCia corrente e quotidiana do Alto Representante para o efeito. Note-se
que: pouco depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa e da
deSIgnação do primeiro Alto Representante, os factos vieram confir~ar este nosso raciocínio. Na realidade, foi o Presidente da Comissao quem escolheu o represen~ante da União nos Estados Unidos já
no quadro da nova diplomaCIa da União e também foi ele quem
nomeou o novo Dlretor-Geral das Relações Externas da Comissão.
FICa, portanto, explicado por que é que dissemos atrás'79 que
ao ~lto ~epresentante cabia a condução formal da Ação Externa da
Umao. E que. a condução superior ,dessa Ação compete, na realidade, ao PreSidente da Comissão. E o que resulta do sistema dos
Tratados, como vimos.
123. O Serviço Europeu para a Ação Externa
. Este Serviço consiste em mais uma inovação do Tratado de
Lisboa. Encontr~-se previsto no já citado artigo 27.°, n.O 3, UE.
sua orga~lzaçao e o seu funcionamento encontram-se regulados
pela Declsao do Conselho n.O 2010/427/UE, de 26 de julho de
2010'"°. A nosso ver, não pode ser visto como um órgão da União
mas apenas como um Serviço, gerido pelo Alto Representante:
os Tr~~ados nunca o tratam como órgão ou instituição autóda Umao.
Com a sigla,francesa, já comum, SEAE, este Serviço é compor funclOnarIos das Dlreções-Gerais de Relações Externas do
Co>osl~lho e da Comissão, incluindo funcionários das representações
379 Supra, n. o ] 20.
,., 10 L 201/30 de 3-8-2010.
365
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
da União em Estados terceiros e junto de organizações internacionais, bem como por diplomatas destacados pelos Estados-membros.
Com esta composição os Tratados pretendem obter a convergência
da atividade diplomática dos Estados-membros e da União. Do lado
da União, o SEAE vai ter relevância para cerca de cento e trinta
delegações da União no estrangeiro, cujo número pode, agora, vir a
aumentar.
Na fase preparatória do Tratado de Lisboa, e mesmo logo a
seguir à sua entrada em vigor, foi aventada, em meios da União, a
possibilidade de se vir a criar uma Academia Diplomática da União
ou, ao menos, de se entregar a formação de diplomatas da União a
entidades ligadas à União já existentes, como é o caso, por exemplo,
do Instituto Universitário Europeu, de Florença. Todavia, por diversas razões, este projeto foi adiado.
O grande problema que a criação do SEAE trouxe a alguns
Estados-membros, especialmente o Reino Unido, foi o receio de ele
vir a diminuir os direitos dos Estados, particularmente, o jus
lionis de que cada um deles goza, incluído na sua capacidade
dica como sujeito de Direito Internacional. As Declarações n." 13
14 anexas ao Tratado de Lisboa vieram afastar esses receios,
xando claro que O SEAE não afetaria a diplomacia nacional de
Estado-membro. Portanto, os Estados-membros da União rnn<f'rv.rão o direito de definir e conduzir a respetiva política externa,
consequentemente, de estar representados pelos seus
próprios junto de terceiros Estados e de organizações inl:eflla(,iOllai~;
sem prejuízo do trabalho de convergência com a nova diplomacia
União a que se comprometeram com a criação do SEAE. No quadl·9.
dessa convergência, diremos que a presença num terceiro
sobretudo de um importante Estado, como os Estados UIllUIJ.,
China ou a Rússia, ou junto de uma importante organização inte._
cional, sobretudo junto das mais importantes, como as Nações U
das e a Organização Mundial do Comércio, de uma represent~
diplomática da União e, simultaneamente, de uma represent~x
diplomática de um ou mais Estados-membros só beneficia aquel
estes porque os interesses comuns da União e dos Estados-m~
bros, ainda que autónomos, ficam, em conjunto, mais bem prote
dos e salvaguardados. E isso favorece, de modo especial, os Estados
médios e pequenos, que têm menores disponibilidades para ter
mUltas representações diplomáticas nacionais em terceiros Estados
ou junto de organizações internacionais.
366
§ 6.'
O Tribunal de Justiça da União Europeia
Bibliografia especial: R. LECOURT, L'Europe des juges, Paris,
1976; M. LAGRANGE, La Cour des Communautés européennes - Du Plan
Schwnan à l'Union européenne, Mélanges Dehousse, 1979, tomo II,
pgs. 127 e segs.; K. LENAERTS, Le juge et la ConstitutioJ1 aux Étars-Unis
d'Amérique et dans l'ordre juridiqlle européen, Bruxelas, 1988; M.
BEITATI, Le "law-making power" de la Cour, Pouvoirs 1989, pgs. 57 e
segs.; J. P. lAcQuÉ, Le rôle da droit dans l'intégration européenlle, RPP
1991, pgs. 119 e segs.; G. VANDERSANDEN (dir.), La réforme du systeme
juridictionnel commllnautaire, Bruxelas, 1994; MIGUEL POIARES MADURO,
We, the court, diss., Oxford, 1998; M. SrMM, Der Gerichtshof der
Europiüschen Gemeinschaften im J-oderalen Kompetenzkonflikt,
Baden-Baden, 1998; R. MEHDI (dir.), L'avenir de la justice COllUllunau~
taire - Enjeux et perspectives, Paris, 1999; G. C. RODRIGUEZ IGLESTAS
L'avenir du systerne juridictionnel de I'Union Européenne, CDE 1999:
pgs. 275 e segs.; A. RIGAUX e D. SIMON, La réforme du systeme juridictionnel, bilan et perspectives, in V. Constantinesco (dir.), Le Traité de
Nice, cit., pgs. 133 e segs.; M. DONY Ced.), L'avenir du systhne juridictionnel de I'Union européenne, Bruxelas, 2002; F. DE QUADROS e ANA
MARTINS, Contencioso da União Europeia, 2. a ed., Coimbra, 2007; K.
ALTER, The European Court's Political Power, Oxford, 2010; A. SWEET,
Governing with Judges, Oxford, 2010; R. BARENTS, The Cal/rt ofJustice
afier lhe Treaty o/ Lisbon, CMLR 2010, pgs_ 70 e segs.
Preliminares
A alteração da epígrafe deste § 6. 0 por confronto com a epíhomóloga das duas edições anteriores"l exige uma explicaEla é o resultado da alteração trazida na matéria pelo Tratado
Lisboa, do modo como se vai explicar a seguir.
381
Direito da União, pgs. 281 e segs.; Droit de l'Union, pgs. 250 e segs.
367
A União Europeia
125. Os novos Tribunais da União
Nas anteriores edições deste livro"2 explicámos as incongruências que depois do Tratado de Maastricht o Tratado CE apresentava
em matéria de Tribunais da União Europeia. De facto, embora só o
Tratado de Nice tenha reconhecido formalmente a autonomia entre
O TJ e o Tribunal de Primeira Instância (ex-artigo 220.° CE), foi o
Ato Único Europeu, de 1985, que permitiu, no artigo 168.0 -A CEE,
a criação de um tribunal "associado" ao TJ. Com base nesse preceito
do Tratado CE, a Decisão 88/59l/CECA, CEE, CEEA, de 24 de
Outubro de 1988, criou o TPI. De qualquer modo, tanto o Tratado
de Maastricht como o Tratado de Amesterdão mantiveram o TPI
como mero tribunal "associado" ao TJ (ex-artigos 168. 0 -A CE, na
versão de Maastricht, e 220.° CE, na versão de Amesterdão).
Além disso, o artigo 220.°, par. 2, CE, na versão de Nice, permitia que o TPI tivesse "adstritas" a si "câmaras jurisdicionais".
Agora, após o Tratado de Lisboa, o artigo 19.° UE veio criar
um grande "Tribunal de Justiça da União Europeia". Ele enco~tra-se
previsto, dessa forma, no artigo 13.°, n.o I, UE. Esse. Tnbunal
"inclui" diz o referido artigo 19.° UE, o Tribunal de Justiça, o Tnbunal Geral e os tribunais especializados (esta última expressão é
muito mais adequada e feliz, desde logo em língua portuguesa, do
que a anterior, que era, como vimos, de "câm~ras juri:dicionais", e
que, como mostrámos nas duas edições antenores, nao tmha qualquer tradição na tenninologia jurídica).
...
,
Todavia, a metodologia que o Tratado de Lisboa. ullhzou e
difícil de se entender e é complexa. Como órgão da UE, fica-se com
a impressão, à partida, de que há um só Tribunal, o "Tribunal de
Justiça das União Europeia" (veja-se o citado artigo 13.°, n.o I, UE).
Todavia, a verdade é muito diferente. Não há, na realidade, nenhum
Tribunal chamado "Tribunal de Justiça da União Europeia". O que
há como resulta dos Tratados e do Estatuto daquele Tribunal, aprovado pelo Protocolo n.O 3 anexo ao Tratado de Lisboa (q~e doravante será referido só por Estatuto), é que essa deslgnaçao serve
382
Loc. cito na nota anterior.
Os órgãos e as instituições da União Europeia
apenas de rótulo, de chapéu-de-chuva, para albergar três níveis de
tribunais separados entre si, que, esses sim, existem de facto. São
eles o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e os tribunais especializados - que, para confirmar o que dizemos, estão todos "incluídos",
com autonomia, no referido "Tribunal de Justiça da União Europeia", como dispõe o referido artigo 19.°, n.o I, UE. Para se acentuar
a complexidade da matéria, veja-se que esse artigo 19.°, n.O I, UE,
se refere a dois tribunais com o mesmo nome: um Tribunal de Justiça da União Europeia e um Tribunal de Justiça, que está incluído
naquele. Compreende-se que os referidos três níveis são separados
e autónomos porque os artigos 251.° e seguintes TFUE, 9.° e seguintes, 47.° e seguintes e 62. 0 -C e seguintes do Estatuto, nos mostram
que "Tribunal de Justiça da União Europeia" é, como dissemos,
apenas um rótulo, que cobre aqueles três níveis de Tribunais, esses
sim, os novos, e autónomos entre si, Tribunais da União Europeia,
cada um com a sua própria organização e a sua própria competência.
Compreendemos as intenções dos autores dos Tratados em, com a
expressão "Tribunal de Justiça da União Europeia", quererem dar a
entender que havia, como há, um vasto, coerente e coeso poder judicial na União. Mas achamos, com a doutrina que já se pronunciou
sobre esta matéria, por exemplo, com PRIOLLAUD e SIRlTZKy383, que o
mesmo resultado teria sido alcançado se, em vez daquela expressão,
os Tratados utilizassem, por exemplo, a de "sistema jurisdicional da
União Europeia" e depois, dentro dele, tivessem integrado os Tribunais que o artigo 19.°, n.o I, UE, inclui dentro do Tribunal de Justiça
da União Europeia. Primeiro, foi isso que, de facto, os Tratados
quiseram e, depois, evitar-se-ia haver dois Tribunais com a mesma
designação de Tribunal de Justiça.
Por isso, vamos abandonar, salvo quando for absolutamente
necessário, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) para
estudarmos, e em conjunto, apenas o Tribunal de Justiça (TJ), o
Tribunal Geral (TG) e os tribunais especializados.
Os Tribunais da União estão regulados nos Tratados, no referido Estatuto e nos respetivos Regulamentos Processuais. Merece
383
368
Pg. 341.
369
A União Europeia
destaque o facto de ter sido recentemente aprovado o novo Regulamento Processual do TJ, que introduziu modificações importantes
no Regulamento anterior"4.
Por aí se compreende a alteração da terminologia agora adotada na designação dos Tribunais.
O novo Tribunal de Justiça corresponde ao antigo TI. O Tribunal Geral corresponde ao antigo Tribunal de Primeira Instãncia. Não
podia manter a sua antiga designação porque, depois da criação das
antigas câmaras jurisdicionais, havia deixado de ser só um tribunal
de primeira instância.
Os tribnnais especializados são as antigas câmaras jurisdicionais. Após se ter criado a primeira câmara com a designação de
Tribunal da Função Pública, e encontrando-se em preparação a
criação de um Tribunal da marca comunitária"', pareceu sensato
substituir-se a expressão câmaras jurisdicionais por tribunais especializados, que é o que, eles, de facto, sempre pretenderam ser.
Note-se, todavia, que, quando nos referimos a Tribunais da
União Europeia, no sentido mais amplo que a expressão comporta,
estamos a pensar no conjunto global do sistema judiciário da
União, que é composto pelo TIUE (com os Tribunais que o integram) e também por todos os tribunais nacionais dos Estados-membros, na medida em que lhes cabe aplicar, em primeira mão, o
Direito da União. Ou seja, também os tribunais dos Estados-membros são tribunais da União, melhor ainda, eles são tribunais comuns
do Contencioso da União"" Isso parece, aliás, estar agora, pela
primeira vez, escrito nos Tratados, ainda que por forma não direta:
no artigo 19.°, n.o I, par. 2, UE.
'" De 25-9-2012, 10 L 265, de 29-9-2012, retificado no 10 L 274/34, de
9-10-2012.
385 Já em 23-12-2003 a Comissão apresentou nesse sentido a proposta de
decisão COM (2003) 828 final. Todavia, o procedimento encontra-se parado no
Conselho pelo facto de nas diversas línguas oficiais não se encontrar consenso
sobre a expressão francesa "brevet communautaire".
386 Ver QUADROS/MARTINS, pgs. 23 e 318.
370
Os órgãos e as instituições da União Europeia
126. Génese e evolução histórica
Vejamos quais foram os antecedentes do TJUE.
Até ao AUE, o TI foi o único Tribunal das Comunidades (veremos adiante por que razão não consideramos o Tribunal de Contas
um verdadeiro tribunal).
O AUE, porém, e como atrás se explicou, inseriu no Tratado
CEE um novo artigo, que passou a ter o número 168.0 -A, em cujo
n. ° 1 se dispunha que "(... ) o Conselho (... ) pode associar ao Tribunal de Justiça uma jurisdição encarregada de conhecer em primeira
instância" certos meios contenciosos aí referidos. À sombra desse
n.o 1 e do n.O 2 do artigo 168. o-A, o Conselho, pela Decisão 88/591/
CECA, CEE, CEEA, de 24 de outubro de 1988387 , criou o Tribunal
de Primeira Instância, inclusive batizando-o com essa designação.
Estávamos, portanto, perante uma situação em que, juridicamente, havia só um tribunal- o TJ -, no qual, no plano institucional,
estava integrado o TPI, como tribunal "associado" ao TI. Esta situação tinha como consequência, no plano funcional, que o TI continuava a ser sempre o tribunal de última instância nas questões de
direito, como forma de assegurar a uniformidade na aplicação do
Direito Comunitário. Isso foi assim desejado pelo TI, que queria
continuar a ser visto como o único Tribunal das Comunidades, mas
que sentia que, para descongestionar o trabalho que lhe ia cabendo,
carecia de um outro tribunal que o auxiliasse, ainda que com competência limitada. Todavia, no plano dos factos, como atrás dissemos, tínhamos, na realidade, dois tribunais: daí que tenha ficado
célebre, para exprimir a relação factual entre os dois tribunais, a
expressão "uma jurisdição, dois tribunais"388.
Essa situação manteve-se até ao Tratado de Nice.
De facto, o ex-artigo 220.° CE, com a alteração que nele introduziu aquele Tratado, passou a dispor que, "No âmbito das respeti387 Essa Decisão foi objeto de várias retificações, a última das quais foi
trazida pela Decisão do Conselho 1999!29I1CE, CECA, CEEA, de 26-4-99, 10
L 114, de 1-5-99, pg. 52.
388 De entre as obras gerais, esta questão encontra-se bem explicada, especialmente, em ISAAC, pg. 258.
371
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
vas competências, o Tribunal de Justiça e o Tribunal de Primeira Instância, garantem o respeito do direito na interpretação e
aplicação do presente Tratado". Ou seja, o Tratado CE passou
nessa altura a ver os dois Tribunais com autonomia e com igual
dignidade, deixando, por isso, o TPI de aparecer como um mero
tribunal auxiliar ou "associado" ao Tl O citado ex-artigo 220.° CE
abrogou, portanto, a referida Decisão do Conselho de 24 de outubro
de 1988.
Essa autonomização dos dois Tribunais não se limitou ao plano
formal, porque o Tratado de Nice reforçou consideravelmente o
ãmbito de jurisdição do TPI, fazendo deste um verdadeiro tribunal
de primeira instância (e, nalguns casos, um tribunal de recurso) para
quase todos os meios contenciosos que o Contencioso da União
Europeia conhecia, inclusive, em certas condições, para as questões
prejudiciais. Era o que resultava, sobretudo, dos ex-artigos 225.' e
225. 0 -A CE, embora esses preceitos tivessem de ser interpretados
em conformidade com o artigo 51.° do citado Protocolo relativo ao
Estatuto do Tribunal de Justiça, anexo ao Tratado de Nice, onde se
introduzia alguma limitação à jurisdição do TPI como tribunal de
primeira instància, que decorria daqueles dois preceitos do Tratado
CE. Esse reforço da jurisdição do TPI tinha correspondência na
possibilidade, prevista nos ex-artigos 220.°, par. 2, e 225. -A (repetimos: depois da revisão de Nice), de o TPI passar a ter, "adstritas"
a si, aquilo que aqueles artigos chamavam de "càmaras jurisdicionais". Já falámos delas atrás.
Essas "càmaras jurisdicionais" não eram Secções do TPI, porque não faziam parte dele: o ex-artigo 220.°, par. 2, como já se disse,
dispunha que elas se encontravam "adstritas" ao TPI, e o ex-artigo
225. 0 -A, nos seus pars. I e 3, estabelecia que elas eram criadas autonomamente pelo Conselho e para conhecerem, em primeira instância, à margem do TPI, de certas categorias de recursos, em matérias
específicas, podendo das suas sentenças recorrer-se para o TPI, circunstância em que o TPI atuaria como tribunal de recurso. Em bom
rigor, eram, portanto, órgãos jurisdicionais autónomos em relação
ao TPI, especializados em matérias concretas, e que, julgava-se
então, poderiam evoluir para novos tribunais de primeira instância,
ainda que em matérias especializadas, passando o TPI a ter, quanto
a eles, competência de tribunal de segunda instância.
Há uma càmara jurisdicional assim criada, que hoje é um tribunal especializado. É o Tribunal da Função Pública da União
Europeia, ao qual já nos referimos. Ele foi instituído, justamente,
com fundamento no referido ex-artigo 225. 0 -A, pela Decisão do
Conselho n.o 20041752/CE e Euratom 38'. A sua função, como consta
do seu Estatuto, que até ao Tratado de Lisboa estava anexo àquela
Decisão, é a de decidir, em primeira instância, os litígios entre a
União e os seus agentes, quanto aos quais tenha sido atribuída competência ao Tl
O Tratado de Lisboa, por sua vez, veio introduzir no sistema
judicial da União as alterações que referimos no número anterior.
0
372
127. A função geral dos Tribunais
Como adiante se vai demonstrar, existe na União Europeia,
como já existia nas Comunidades, um verdadeiro poder judicial,
ainda que com as limitações próprias correspondentes ao carácter
inacabado da União. Nenhuma outra entidade superior aos Estados,
designadamente, nenhuma Organização Internacional clássica possui
um sistema judiciál tão elaborado e tão avançado como o da União.
Como daqui a pouco explicaremos, em sentido restrito esse
poder judicial engloba o TJUE com os Tribunais que inclui. Mas,
em sentido amplo, já o dissemos, ele abrange também, além deles,
os tribunais estaduais. Neste lugar, por Tribunais da União Europeia
entenderemos apenas os Tribunais incluídos no TIUE.
Pelo artigo 19.°, n.O I, 2. a parte, ÚE, é cometido ao TJUE o
encargo de garantir "o respeito do direito na interpretação e na aplicação dos Tratados". Isto quer dizer que o sistema judicial da União
se reveste de importância essencial para a prossecução da "União de
Direito" que, como logo no início deste livro explicámos 390 , constitui
uma característica fundamental da União e da sua Ordem Jurídica.
'" 10 L 333, de 9-11-2004.
390 Supra, sobretudo TI.O 30.
373
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
128. Um verdadeiro poder judicial
Já escrevemos atrás que as Comunidades e, depois, a União,
tentaram encontrar um simile com os Estados na repartição de poderes. Um dos poderes, porventura, o poder, mais claramente caracterizado é, exatamente, o poder judicial.
De facto, quer na fase da criação das Comunidades, quer na
evolução que estas tiveram ao longo das sucessivas revisões dos
Tratados institutivos, quer, ainda, por efeito da elaboração doutrinária e jurisprudencial em torno da matéria, houve a consciência de
que a efetividade do Direito Comunitário, e, depois, do Direito da
União, exigia um poder judicial bem demarcado, coerente e forte.
E, como atrás se disse, em nenhuma das Organizações InternacIOnais clássicas, mesmo das mais evoluídas, encontramos um sistema
judicial tão elaborado e tão próximo dos sistemas judiciais estaduais. Se não, vejamos.
Em primeiro lugar, nunca é demais recordar que o poder judicial da União só em sentido estrito engloba apenas o TJUE e os
Tribunais nele incluídos: como já se disse, em sentido lato, ele
abrange também todos os tribunais nacionais. Estes são os "tribunais comuns do contencioso comunitário" ou os "tribunais comunitários de Direito comum" (hoje, da União), como já os qualificou o
próprio Tp91. A esse conjunto - Tribunais da União mais tribunais
nacionais - compete formar um sistema articulado, coeso e harmonizado na garantia da aplicação do Direito da União.
O facto de o sistema judiciário da União englobar os tribunais
estaduais aproxima-o muito, desde logo por aí, dos sistemas judiciários dos Estados federais, embora o Direito da União até hoje não
tenha levado esse movimento até às últimas consequências, por
exemplo, não tenha definido segundo o método federal nem a relação entre os tribunais da União e os tribunais estaduais (que, no
essencial, é uma relação de cooperação judiciária e não uma relação
391 Ver o nosso A nova dimensão do Direito Administrativo, Coimbra, 1999,
pgs. 27 e segs. e 42 e segs., e QUADROS/MARTINS, loe. cito e bibl. aí cit.. Voltaremos
adiante a esta matéria Chifra, n.O' 262 e segs.).
de hierarquia federal), nem a relação entre o Direito da União e o
Direito estadual. É matéria que já vimos e que ainda melhor estudaremos adiante.
Em segundo lugar, o poder judicial da União, entendido, desde
logo, no referido sentido estrito, reúne diversas características que
lhe permitem alcançar o objetivo acima referido, o de assegurar a
plena efetividade do Direito da União, em termos desconhecidos do
Direito Internacional clássico.
Assim, os tribunais da União não são órgãos isolados, como o
é, por exemplo, o Tribunal Internacional de Justiça (TU) no quadro
orgânico das Nações Unidas. Como se disse, eles fazem parte de um
sistema judiciário global e coerente, que se estende aos tribunais
nacionais.
Além disso, eles são tribunais de jurisdição obrigatória, o que
os distingue de todos os tribunais internacionais, cuja jurisdição é
essencialmente voluntária (é o caso, por exemplo, do TU), com
exceção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas só após
a entrada em vigor do Protocolo n.o 11 anexo à CEDH. A simples
adesão de um Estado às Comunidades fá-lo sujeitar-se à sua jurisdição e permite aos respetivos cidadãos aceder a eles.
São, também, tribunais de jurisdição exclusiva. Isto é, como
dispõe o artigo 344.° TFUE, os litígios para os quais têm competência encontram-se subtraídos à jurisdição de qualquer outro tribunal
nacional ou internacional, não podendo aqueles deixar de os decidir,
sob pena de incorrerem em denegação de justiça'''. Isto não impede
que diversos outros tribunais internacionais e tribunais estrangeiros
possam vir, pela via do Direito Internacional Privado, a ser chamados a aplicar o Direito da União'''.
Depois, são tribunais com acesso direto da parte dos particulares, mesmo se com algumas limitações, que são menores após o
Tratado de Lisboa, mas que terão que desaparecer. Isto distingue-os,
por exemplo, do TU (onde esse acesso nunca existe), do TEDH
(quanto ao qual vigora a regra da prévia exaustão dos meios inter392
393
Assim, Ac. 12-7-57, Algera, Procs. 7/56 e 3 a 7/57, Rec., pgs. 81 e segs.
Corno está demonstrado em QUADRos/MARTlNS, pgs. 25 e segs.
374
375
A União Europeia
nos) e do Tribunal Penal Internacional (cuja competência é subsidiária em relação aos tribunais nacionais).
Por fim, são tribunais cujas sentenças são imediatamente, e
por si só, executórias (artigo 280.° TFUE), o que não acontece em
qualquer outro tribunal internacional clássico.
129. O âmbito da jurisdição
Os Tribunais da União têm uma vastíssima competência.
Assim aconteceu para que os fundadores das Comunidades pudessem assegurar ao então TJ (mas isso vale hoje também para os
novos Tribunais) a função de verdadeiramente garantir a plena aplicação do Direito da União.
Para melhor se compreender a dimensão e a natureza da jurisdição dos Tribunais da União, há que classificá-la. Assim, diremos
que eles têm, fundamentalmente, cinco tipos de jurisdição:
a) jurisdição constitucional. Nesta medida, eles atuam com
competência próxima da dos tribunais constitucionais estaduais, tanto quanto se pode afirmar isso na medida em que
a União ainda não tem um modelo de tipo estadual.
Cabe-lhes fiscalizar a conformidade do Direito da União,
derivado e do comportamento dos Estados-membros e dos
particulares com os Tratados, entendidos como lei fundamental das Comunidades, e que, neste contexto, como já
vimos, aparecem designados de "Constituição da Comunidade", ou "Carta Constitucional de base", sendo certo, que
esses atributos só podem ser entendidos no seu sentido
material e não formal. Cabe neste tipo de jurisdição, de
modo especial, a fiscalização: da repartição das atribuições
entre a União e os Estados-membros, inclusive, o respeito
pelo princípio da subsidiariedade; da legalidade dos atos
legislativos, inclusive dos tomados em processo legislativo
ordinário; do equilíbrio de poderes entre os órgãos da
União; e do incumprimento pelos Estados dos Tratados;
376
Os órgãos e as instituições da União Europeia
b) jurisdição administrativa. Embora menos importante que a
anterior, é, sem dúvida, a mais vasta e a mais ampla, pelo
sImples facto de o Contencioso da União Europeia ter sido
fortemente moldado segundo o figurino do Contencioso
Administrativo, particularmente da França e da Alemanha'94. Importantes meios contenciosos previstos no TFUE,
como, por exemplo, o recurso de anulação e a ação de
omissão, foram importados do Contencioso Administrativo
daqueles Estados'''. Todavia, note-se que o recurso de anulação dos atos legislativos releva mais da jurisdição constitucional do que da jurisdição administrativa dos Tribunais.
c) jurisdição internacional. Os Tribunais da União també~
dirimem litígios entre os Estados-membros, como o faz
qualquer tribunal de Direito Internacional. É o que prevê o
artIgo 273.° TFUE, quando o litígio esteja relacionado com
o objeto dos Tratados e se esse litígio for submetido ao
TJUE por um compromisso. E é o que resulta também do
artigo 259.° TFUE, quando nasce um litígio entre dois
Estados-membros por alegado incumprimento do Tratado,
e se não se entender, como mostrámos atrás ser a nossa
posição, que o incumprimento do Tratado, de um modo
geral, deve ser visto como cabendo na jurisdição constitucional dos Tribunais da União·
d) jurisdição uniformizadora. E~ta forma de jurisdição em
nada fica a dever à importância de qualquer das outras
modalidades de jurisdição, já que é ela que permite ao
TJUE assegurar o respeito pela essência do Direito da
União, da qual faz parte integrante, como já estudámos ao
longo deste livro, a uniformidade do sistema jurídico da
União. De facto, através desta forma de jurisdição, os Trib~nais da União asseguram a uniformidade na interpretaçao e na aplIcação do Direito da União, quer pelos órgãos
da União, quer pelos tribunais e demais autoridades dos
394
395
Assim, QUADROS/MARTINS, pgs. 25-26.
•
veja-se a op. cIt. na nota anterior, pgs. 135 e segs. e 213 e segs.
"l"
377
A União Europeia
Estados-membros. Esta forma de jurisdição é garantida,
sobretudo, através das questões prejudiciais, reguladas no
artigo 267.° TFUE;
e) jurisdição com alcance político, na medida em que o TJUE
pode demitir os membros da Comissão (artigo 245.°, n.o 2,
TFUE), e o TJ pode destituir os Juízes (artigo 6.° do Estatuto), os membros da Comissão Executiva do Banco Centrai Europeu (artigo 11.°, n.o 4, dos respetivos Estatutos) e
o Provedor de Justiça (artigo 228.°, n.o 2, par. 2, TFUE), e
tem competência, ao abrigo do artigo 269.° TFUE, para
controlar a legalidade de um ato praticado pelo Conselho
Europeu, ou pelo Conselho ao abrigo do artigo 7.°, n." 1 e
3, UE, já por nós estudado, ainda que este controlo se
limite às "disposições processuais" referidas no artigo 7.°
UE'96. Além disso, pode aplicar sanções financeiras aos
Estados, ao abrigo do artigo 260.°, n.o 2, par. 2, TFUE, e do
artigo 8.° do Tratado Orçamental Europeu, de 2012.
130. A "Europa dos juízes"
Acerca do âmbito de jurisdição dos Tribunais da União e do
modo como eles têm vindo a interpretar a função que os Tratados
lhe conferem, tem-se discutido, quase desde o início da integração
europeia, e, concretamente, em relação ao TJ, se não vivemos numa
União feita pelos juízes. É a conceção da "Europa dos juízes".
Esta expressão tem tido duas interpretações opostas: uma,
serve-se dela para fundamentar o trabalho da jurisprudência da
União na elaboração do Direito da União e, .portanto, para louvar o
esforço do TJ no sentido de fazer progredir a integração jurídica na
União ao ritmo da integração económica, monetária e política''';
outra, utiliza aquela expressão (ou, em sentido pejorativo, a de
Estamos próximos, nesta classificação da jurisdição dos Tribunais, de
pgs. 482 e segs.
397 A melhor obra nesse sentido continua a ser a do primeiro Presidente do
Os órgãos e as instituições da União Europeia
"governo de juízes"39', ou a de ativismo judicial) para verberar o
comportamento dos juízes, que acusa de exorbitarem das suas funções e de se substituírem ao "legislador" da União.
Enquanto a segunda das duas correntes radica - o que, não
raro, acontece - em conceções políticas ou filosófico-políticas que
se entroncam numa rejeição da progressão da integração europeia, o
problema não merece ser considerado, porque é de raiz emocional
ou ideológica. Fora desse quadro, porém, vale a pena dedicarmos-lhe alguns momentos.
Os Tratados da União, corno já acontecia com os Tratados
Comunitários, particularmente o ex-Tratado CE, são tratados-quadro. Por isso, deixaram intencionalmente uma larga margem de
Interpretação ao juiz para este os ir adaptando quotidianamente à
teleologia dos Tratados, ou seja, ao progresso da integração - é o tal
carácter evolutivo ou gradualista, que é co-natural a qualquer processo de integração, como já estudámos.
Por outro lado, colocado perante litígios em torno da aplicação
do Direito da União, o juiz da União, corno atrás explicámos, não
pode denegar justiça com fundamento na inexistência de um preceito expresso sobre a matéria.
Ora, uma e outra razões começaram, muito cedo, a levar o TI a
ter de encontrar soluções e a construir conceitos e institutos que não
figuravam, de modo expresso, nos Tratados, nem eram previsíveis,
em 1951 e em 1957, pelos autores dos Tratados institutivos das três
Comunidades: foi o que ele fez, como já vimos, ou iremos vendo, ao
longo deste livro, particularmente, com as teorias do primado e do
efeito direto, com as atribuições das Comunidades e da União, inclusive com o paralelismo das suas atribuições internas e externas, com
os direitos fundamentais, com o equilíbrio de poderes entre os
órgãos, com a capacidade judiciária do Parlamento Europeu e dos
particulares, com o incumprimento do Direito da União pelos Estados e com os seus efeitos, com as questões prejudiciais, etc., etc.
396
SlMON,
398 Veja-se a problemática acerca desta expressão tratada por l-P. COLIN, Le
gouvernement des juges dans les Comnumalltés eurOpéell11eS, Paris, 1964, e por
TJ,
SWEET.
ROBERT LECOURT.
378
379
A União Europeia
Os 6rgãos e as instituições da União Europeia
o Tribunal Internacional de Justiça, num dos seus mais célebres Acórdãos"', deixou escrito que "um tribunal não é um órgão
legislativo. A sua missão é a de aplicar o Direito tal como ele o
declara e não a de o criar". É absolutamente exato. Só que aplicar o
Direito não pode significar o juiz ser apenas a "bouche de la loi",
isto é, resumir-se a aplicar o preceito concreto da lei ao caso submetido ao seu julgamento. Aplicar o Direito pode ter de significar,
também, o juiz, partindo da moldura positiva que a lei que o rege lhe
fornece, desenvolver os princípios que emanam da lei e que nela se
enraízam (neste caso, nos Tratados da União, inclusivamente, com
recurso à interpretação teleológica), de modo a encontrar a solução
adequada para o caso concreto.
Há Estados, como Portugal, onde, por não haver tradição na
matéria, é difícil, desde logo para os juízes nacionais (talvez com a
única exceção, por vezes, do juiz constitucional), compreender a
criação do Direito por via pretoriana, que é no que consiste a tarefa
de se encontrar para cada caso a solução contida no sistema jurídico,
mesmo se não positivada em preceito concreto e expresso da lei.
Mas têm essa tradição, por exemplo, a França, através, sobretudo,
do Consei! d'État, a Alemanha, através, principalmente, do Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional federal). E tem-na os
tribunais da generalidade dos Estados anglo-saxónicos. E é isso que
se tem limitado o TJ a fazer desde a sua criação. Isso não é legislar;
é, partindo do Direito legislado, descobrir, dentro do sistema jurídico aplicável, a regra que decide o caso concreto ou a solnção
implicitamente admitida pelo Direito escrito.
Note-se que o TJ sempre recusou, de modo expresso, a titularidade do poder constituinte'OO, do poder político'01, ou do poder
legislativo'02.
Se, alguma vez, o TJ ultrapassou a função de julgar, entendida
esta no sentido que temos vindo a defender, não só é muito difícil
demonstrá-lo, como, a ter acontecido, terá ocorrido em casos verda39')
400
40l
402
Ac. 18-7-66, Sudoeste Africano, 2.° fase, Rec. 1966, pgs. 6 e segs. (48).
Por todos, Ae. 17-2-77, CFDT, Proe. 66176, Ree. pgs. 305 e segs.
Por ex., Ac. 22-11-78, Mattheus, Pmc. 93n8, Rec., pgs. 2.203 e segs.
Por ex., Ac. 15-7-70; Chemiefarma, Pmc. 41n9, Rec., pgs. 611 e segs.
deiramente excecionais, que, todavia, não são fáceis de ser identificados. Em contrapartida, as Comunidades e, hoje, a União, devem
ao TJ o ter ele assumido, muito cedo, o papel de locomotiva da
integração jurídica (e, portanto, da criação dajá referida "União de
Direito") e de, dessa forma, ter suprido, com o seu labor _ repete-se:
se~ se substituir ao legislador -, a inércia e a paralisia dos órgãos
po\itJcos das Comunidades e, depois, também da União''''.
131. O estatuto do Tribunal
Vamos ver agora qual é o estatuto jurídico dos novos Tribunais
da União.
Como já dissemos, o TJUE e os Tribunais nele incluídos encontram-se regulados nos artigos 19.° UE e 251.° e seguintes TFUE.
Além disso, eles regem-se pelo Estatuto do TJUE, que foi
aprovado pelo já referido Protocolo n.o 3, que se encontra anexo ao
Tratado de Lisboa, e que foi modificado pelo Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho n.O PE-CONS 28/12, de 13 de julho
de 2012.
Cada um dos Tribunais incluídos no TJUE elabora as suas
próprias regras de processo, isto é, o seu próprio Regulamento Processual. Os Regulamentos Processuais do Tribunal Geral e dos tribunais especializados têm de ser redigidos de comum acordo com o
TJ. A final, cada um dos Regulamentos Processuais é aprovado pelo
Conselho (artigos 253.", par. 6, 254.°, n." 5, e 257.", par. 5, TFUE).
132. A composição do Tribunal
O TJ é composto por um juiz por cada Estado-membro (artigo
19.°, n.o '}, par. 1, UE). Neste momento tem, por isso, vinte e sete
Juízes. E composto, também, por oito Advogados-Gerais. Esse
número de Advogados-Gerais pode, todavia, ser aumentado pelo
'''Sob re es t a mat"ena, ver, nos nossos diaS,
.
por exemplo,
e segs.,
SIMON,
pg. 479, e
ISAAC,
pg. 318.
380
381
JACQUÉ,
pgs. 621
A União Europeia
Conselho, deliberando por unanimidade, a pedido do TI (artigo
252.", par. I, TFUE). E a Declaração n." 38, anexa ao Tratado de
Lisboa, é mais precisa: se o TI solicitar, à sombra do citado artigo
252.", par. I, 2.' parte, TFUE, que, concretamente, o número de
Advogados-Gerais seja aumentado de oito para onze, o Conselho
deliberará, votando por unanimidade. Deste modo, a CIG de 2007
quis satisfazer a Polónia, que reclamava um Advoga~o-Geral permanente, como o tinham a Alemanha, a França, a Itália, o Remo-Unido e a Espanha. Por outro lado, aquela Declaração quis que os
restantes Advogados-Gerais, que entram num sistema de rotação
pelos outros Estados, passassem de três para cinco.
Por sua vez, pelos Tratados, o Tribunal Geral não é composto,
ao contrário do TJ, por um número fixo de Juízes. De facto, dispõe
o artigo 19.", n.O 2, par. 2, UE, que o número dos seus Juízes será de,
pelo menos, um por Estado-membro. Ou seja, ele terá hoje, no
mínimo, vinte e sete Juízes, podendo ter mais. Não tem obrigatoriamente Advogados-Gerais, sendo o Estatuto a dispor sobre a matéria
(artigo 254.°, par. I, TFUE). E o Estatuto vem esclarecer as duas
questões. Segundo O seu artigo 48.°, o TG tem vinte e sete Juízes e,
de harmonia com o artigo 49.°, pars. I e 4, os Juízes do TG podem
ser chamados a exercer as funções de Advogado-Geral, não
podendo, nesse caso, intervir como Juízes no respetivo processo.
O mandato dos Juízes e dos Advogados-Gerais, tanto do TI,
como do TG, é de seis anos, renovável, procedendo-se à substituição parcial de uns e de outros de três em três anos. A substituição
parcial incide atualmente em catorze e treze Juízes e em quatro
Advogados-Gerais (artigos 253.°, pars. I e 2, e 254.°, pars. I e 2,
TFUE, e 9." e 47." do Estatuto).
Os Juízes do TG, incluindo os que podem vir a ocupar as funções de Advogado-Geral, são escolhidos pelo mesmo critério previsto para a escolha dos Juízes e Advogados-Gerais do TI nos
citados artigos 253.°, par. I, e 255.°, par. I, TFUE. É o que dispõe o
artigo 254.", par. 2, TFUE.
Os Juízes do TI e do TG elegem entre si o respetivo Presidente
e Vice-Presidente, por um período de três anos, renovável (artigos
253.°, par. 3, e 254.°, par. 3, TFUE).
382
Os órgãos e as instituições da União Europeia
Segundo o artigo 252.", par. 2, "ao advogado-geral cabe apresentar pubhcamente, com toda a imparcialidade e independência
conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Esta~
tuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua intervenção". Por aqui se vê bem que o Advogado-Geral não representa
nem defende: o interesse de qualquer parte, concretamente, nã;
re~resenta o mteresse da União. Ou seja, não é Advogado de ninguem, nem mesmo da União. Pelo contrário, tem de agir "com toda
a lmparclalldade e independência". Assim já o entendeu aliás o
'"
.
TJ404-405
'
,
propno
. Portanto, percebe-se agora, ainda melhor, a razão
pela qual é errado chamar-se-lhe em português Advogado. Como
promotor da legahdade que ele é, agindo para tanto com independênCI~ e, po~ ISSO, apresentando tantas vezes conclusões não favoráve:s ao mteresse da União, ele melhor se chamaria em portugues Procurador-Geral, como homólogo do Ministério Público em
Portugal.
O critério de escolha dos Juízes e dos Advogados-Gerais
encontra-se definido no artigo 253.°, par. I, TFUE. Eles são designados por comum acordo entre os Governos dos Estados-membros
deven~o, todavia, os seus nomes obter prévio parecer favorável d;
c~mlte a que ~e refere o artigo 255.°, par. I, TFUE, sobre a adequaçao dos candidatos ao exercício dessas funções. Esse comité tem
uma composição de alt? nível, como o mostra o artigo 255.", par. 2,
TFUE. Este parecer fOi uma movação do Tratado de Lisboa e pretende evitar a repetição de alguns casos, sobretudo nos tempos
maIS re~entes, em que, por vezes, candidatos que os Governos
naCIOnaiS propunham para Juízes e Advogados-Gerais eram escolhi-
.". Ae. 4-2-2000, Emesa Sugar, Proe. C-17/98, CoI., pgs. 1-665 e segs
sobretudo, pontos 12 e 13_
"
• 405 Sobre a comparação das funções do Advogado-Geral com as de entidades Iguais ~u si~ilan:s. dos E~tados que são membros do Conselho da Europa,
onde a te,nnmoJogJa utilizada dIstingue o "avocat général" e o "procureur général"
~a~ ~~slgnar, por vezes, o mesmo estatuto, ver Conselho da Europa, L'Europe
Judlclalre, Estrasburgo, 2000, pgs. 18,81,113,138 152 177 197 248 287 299
315 e 345.
'
,
,
,
,
,
,
383
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
dos, mais por critérios de índole política, do que em função da sua
capacidade para o desempenho das suas novas funções.
O Tribunal da Função Pública da União Europeia encontra-se
disciplinado, quanto à sua composição, nos artigos 2.° a 4.° do
Anexo I do Estatuto do TIVE.
Encontra-se previsto no artigo 13.°, par. 1, UE, e está regulado
nos artIgos 285.° e seguintes TFUE.
Por esses preceitos se vê que ele está pensado pelo Tratado
como órgão de fiscalização ou de controlo da União.
O Tribunal é composto por um nacional por cada Estado-membro, O que quer dizer que hoje tem vinte e sete membros
(artigo 285.°, par. 2, TFUE). Note-se que a palavra "juiz" nunca é
utilIzada pelo Tratado para designar os membros deste Tribunal.
Estes são escolhidos, para um mandato de seis anos, pelo Conselho,
sob c~nsulta do Parlamento Europeu. Gozam de independência, de
pnvIleglOs e de Imunidades equivalentes às dos Juízes dos Tribunais
da União (artigos 285.°, par. 2, e 286.°, n. OO I a 4 e 8, TFUE).
133. Competência e funcionamento
A competência dos Tribunais e o seu funcionamento encontram-se regulados nos artigos 19.° UE e 251.° a 281.° TFUE, bem
como no referido Estatuto e nos respetivos Regulamentos ProcessuaiS.
A competência dos Tribunais extrai-se do âmbito da sua jurisdição, já atrás estudada, e dos meios contenciosos que têm competência para conhecer, e que se encontram regulados nos artigos
256. o e seguintes TFUE.
O estudo pormenorizado da competência e do funcionamento
dos Tribunais faz parte de um domínio do Direito da União Europeia chamado Contencioso da União Europeia (expressão mais
ampla e, por isso, mais feliz do que Direito Processual da União
Europeia). Para tanto, remetemos o leitor para o que escrevemos
adiante, no n. o 269.
§ 7."
o Tribunal de Coutas
Bibliografia especial: G.
ORSINI,
La Cour des comptes des CE,
Paris, 1983.
134. Estatuto e composição
o Tribunal de Contas foi criado por iniciativa do Parlamento
Europeu, pelo Tratado de Bruxelas, de 22 de julho de 1975, para
substituir os originários Comissário de Contas da CECA e Comissão
de fiscalização da CEE e da Eurátomo.
384
135. Competência
o Tribunal de Contas não é considerado um verdadeiro tribunal nem, como se disse, o Tratado alguma vez qualifica os seus
membros de "juízes". Por isso, tanto a sua designação como "Tribun~l':: como o fa~to de ter sido elevado a órgão principal ("instituiça~ ) da Comun~dade Europeia pelo Tratado de Amesterdão (então,
o
~rtlgo~. CE, hOJe, artigo 13.°, n.o I, UE), ficam a dever-se apenas à
Import~cIa da competência que lhe cabe: a de assegurar o controlo
fmancelro externo da União, ou, por outras palavras, a de exercer a
magistr~tura financeira da União (artigos 285. 0 e 287.° TFUE).
Nao profere sentenças, como atos jurisdicionais, mas aprova
pareceres e relatórios .
. O Tribunal de Contas fiscaliza as contas e a totalidade das
receItas e das despesas da União, estejam ou não estas orçamentadas
(artIgo 287.° TFUE). Isto significa que não estão sujeitas ao seu
controlo apenas os órgãos e as instituições da União, mas também
os Estados-membros, enquanto cobram receitas da União ou realizam despesas porconta dela. Nesse sentido, existe uma colaboração
estreIta entre o Tnbunal de Contas e os organismos nacionais encarregados da fiscalização financeira, a começar pelos Tribunais de
Contas dos Estados-membros. E, enquanto o fazem, esses órgãos e
385
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
organismos nacionais atuam como delegados do Tribunal de Contas
da União.
1 T'b 1 b rca
O âmbito da fiscalização levada a cabo pe o n una a a ,
a legalidade e a regularidade das receItas e despesas, mas
nao apenas
.
.
° ° 2 TFUE)
também a boa administração financeira (artIgo287. , n.,
.
No quadro da promoção do Tribunal reallz.ada pelo T;atado de
Amesterd -ao, a, qu ai atrá's aludimos , ele tem legltmudade, 1a face
- ddo
artigo 263.°, par. 3, TFUE, para interpor recurso de ano. açao os
atos de Direito derivado previstos no par. 1 do mesmo artIgo.
SECÇÃO III
Órgãos e instituições complementares
136. Introdução
.
'- tAem uma série
_
Além dos órgãos principais refendos,
a Umao
. . - comp1ement ares, que , em face da funçao
d órgãos e instItUlçoes
q~e lhes está atribuída, se podem dividir em quatro grandes categorias:
a) órgãos de fiscalização;
b) órgãos consultivos;
_
c) instituições com funções de gestao;
d) órgãos auxiliares.
Vamos ver cada uma destas categorias.
SUBSECÇÃO I
Órgãos de fiscalização
137. Preliminares
Há só um órgão complementar de fiscalização, o~ de con~olo,
que é o Provedor de Justiça, sem prejuízo de co~petencla analoga
que cabe, como vimos, a alguns dos órgãos pnnclpaIs.
386
§ único
o Provedor de Justiça
Bibliografia especial: A. PLIAKOS, Le médiateurde l'Union europgs. 604 e segs.
péenne, CDE 1994,
138. Estatuto
O Provedor de Justiça foi criado pelo Tratado de Maastricht.
Ele está regulado no artigo 228.° TFUE, como já vimos. Foi inspirado nos mais evoluídos sistemas análogos nacionais, particularmente no Médiateur francês.
É eleito pelo Parlamento Europeu após cada nova eleição do
Parlamento e pelo período de uma legislatura deste, podendo ser
reconduzido (artigo 228.°, n.o 2, TFUE). Exerce as suas funções com
total independência, não recebendo ordens ou instruções de qualquer entidade (artigo 228.°, n.O 3, TFUE).
O Provedor de Justiça rege-se pelo seu Estatuto, que é aprovado nos termos do artigo 228.°, n.O 4, TFUE4'16.
139. Competência
O Provedor de Justiça fiscaliza a "má administração" da parte
dos órgãos, das instituições e dos organismos da União, com exclusão do TJUE. Ele não tem competência, portanto, para fiscalizar a
atividade dos Estados-membros, mesmo quando estes aplicam o
Direito da União, o que deverá merecer reflexão. Quando descubra
um caso de "má administração" o Provedor de Justiça deverá atuar
nos termos do artigo 228.°, n.o 1, par. 2, 2." parte, TFUE.
Em que consiste essa "má administração"? Di-lo o Provedor de
Justiça no seu já antigo Terceiro Relatório anual, de 1997, publicado
406 O seu Estatuto foi aprovado por Decisão do Parlamento de 9-3-94, JO
L 113, de 4-5-94, e já incorpora as alterações que nele foram introduzidas.
387
A União Europeia
em 20 de abril de 1998: ela ocorre "quando um organis~o, p.úblico
não atua em conformidade com uma regra ou um pnnclplO que
· ~'''407 .
tenha força obngatona
.
.
_
O Provedor, antes de mais, recebe queixas de qualquer cldadao
d U '-a bem como de qualquer pessoa, singular ou coletiva, que
a m o,
J' t d'
resida ou que tenha a sua sede num Estado-membro. a es u amos
isso a propósito da cidadania da União'os.
. . . .
Mas o Provedor de Justiça pode também tomar a mlclatlva de
,.
(rt'
°,
I par.2, .
l' parte'TFUE),
.
algo 228.° ,n .
..o
proceder a mquentos
que não acontece com a maior parte dos seus homólogos naCIOnaiS,
a começar pelo Médiateur francês. O Provedor de Justiça apresenta
ao Parlamento Europeu um relatório anual sobre os resultados dos
inquéritos efetuados (artigo 228,°, n.o I, par. 3, TFUE).
SUBSECÇÃO II
Órgãos consultivos
140. Enunciação
O Tratado de Lisboa veio estabelecer nos artigos 13.", n.o 4,
UE, e 330.°, n.o 1, TFUE, que o Parlamento Europeu,. oConselho e
a Comissão têm dois órgãos consultivos. Eles ja eXlstla.:n ante~ e
com essa função, mas sem essa referência expre:sa. Sao eles. o
Conselho Económico e Social e O Comité das ReglOes.
Um traço comum une esses dois órgãos: eles representam, ao
nível da União, interesses que os Tratados conslder'm.:' dever merecer ponderação no exercício do poder político da Umao.
Os órgãos e as instituições da União Européa
§L"
o Comité Económico e Social
141. Estatuto e composição
O Comité Económico e Social está regulado nos artigos 300.0
a 304.° TFUE.
O Tratado de Lisboa veio dar nova redação ao ex-artigo 257.0
CE quanto aos interesses que estão representados no Comité. Assim,
segundo o n.O 2 do artigo 330.° TFUE, este é composto "por representantes das organizações de empregadores, de trabalhadores e de
outros atores representativos da sociedade civil, em especial nos
domínios sócio-económico, cívico, profissional e cultural".
O número de membros do Comité não será superior a trezentos
e cinquenta (artigo 301.°, par. 1, TFUE).
A composição do Comité deixou de estar definida nos Tratados, onde aparecia repartida pelos Estados-membros segundo o
mesmo critério de população que presidia à repartição de deputados
no Parlamento Europeu e de votos no Conselho até à entrada em
vigor do Tratado de Lisboa (ver o ex-artigo 258. ° CE). Agora é definida por decisão do Conselho, votada por unanimidade, sob proposta da Comissão (artigo 301.°, par. 2, TFUE).
Os membros do Comité são propostos pelos Estados-membros.
Depois, essa proposta é submetida ao Conselho, que sobre ela delibera por maioria qualificada, ouvida a Comissão. O mandato dos
membros é de cinco anos (artigo 302.°, n. OO 1 e 2, TFUE).
Os membros do Comité desempenham o seu cargo com total
independência e no interesse geral da União (portanto, não no interesse dos Estados ou das entidades que representam _ artigo 300.0,
n.o 4, TFUE).
142. Competência
'" 10 C 380, de 7-12-98.
408 Ver supra, 0.° 55-VIII.
De harmonia com o artigo 300.°, n.o I, e o artigo 304.°, TFUE,
o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão têm a obrigação de
388
389
A União Europeia
consultar previamente o Comité em todos os casos espeficamente
previstos no Tratado. Além disso, podem ouvi-lo mesmo quando o
Tratado não imponha essa obrigação.
Por sua vez, o Comité pode tomar a iniciativa de emitir o seu
parecer sobre qualquer matéria, sempre que O considere oportuno.
§ 2.'
o Comité das Regiões
BibliografIa especial: J. VERGES (dir.), L'Union européenne et les
collectivités territoriales, Paris, 1997; A. FERAL, Le Comité des régions
de I'Union européenne, Paris, 1998.
143. Estatuto e composição
O Comité das Regiões está disciplinado nos artigos 300.° e
305.° a 307.° TFUE.
A função deste órgão é a de fazer participar as pessoas coletivas autónomas infraestaduais no exercício do poder político da
União. Essa função tem de ser devidamente valorizada, porque perntite o aprofundamento do princípio da subsidiariedade e, por via
disso, uma maior aproximação da União em relação aos cidadãos no
exercício do seu poder político. Reforça, pois, a conceção da União
dos povos e dos cidadãos.
De facto, segundo o artigo 300.°, n.o 3, TFUE, o Contité é composto "por representantes das coletividades territoriais regionais e
locais que sejam quer titulares de um mandato eleitoral a nível
regional ou local, quer politicamente responsáveis perante uma
assembleia eleita". A versão portuguesa do TFUE refere-se a "autarquias" regionais e locais. Mas estamos perante um erro de tradução.
De facto, o Tratado não quis restringir a representação no Contité
das Regiões às entidades que, para o Direito Administrativo português, são autarquias locais, ou seja, só os municípios e as freguesIas
(já que as regiões adntinistrativas do Continente nunca foram criadas). Ele quis que naquele Contité também participassem represen390
Os órgãos e as instituíções da União Europeia
lantes de outras pessoas infraestaduais, como é o caso dos Estados
federados e das regiões autónomas ou políticas. Por isso, é mais
corr~to falar-se aqui de "coletividades territoriais" regionais ou
locaIs, como se pode ver pelas versões francesa ("collectivités") e
alemã ("Gebietkorperschajten") do artigo 300.° TFUE.
O regime jurídico deste Comité está muito próximo do do
Comité Económico e Social, tendo, aliás, os dois, em comum serviços administrativos e de apoio.
O Comité das Regiões não poderá ter mais de trezentos e cincoenta membros. Também quanto a este Comité a sua composição
passou, pelo Tratado de Lisboa, a ser definida por decisão do Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Contissão
(artigo 305.°, pars. 1 e 2, TFUE).
, Os Estados propõem os membros do Comité, bem como igual
numero de suplentes. Mas, depoIS, esses nomes são objeto de aprovação pelo Conselho (artigo 305.°, par. 3, TFUE).
O mandato dos membros é de cinco anos, renovável. Nenhum
membro do Comité das Regiões pode acumular essa função com a
de deputado do Parlamento Europeu - o que, note-se, não é exigido
pelo Tratado em relação aos membros do Comité Económico e
Social (o mesmo preceito).
.
Os membros do Comité exercem as suas funções com plena
mdependência e no interesse geral da União (artigo 300.° n.o 4
TFUE).
'
,
144. Competência
O Comité das Regiões tem obrigatoriamente de ser ouvido
pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Contissão nos casos
previstos no Tratado (o que engloba o ensino, a cultura, a saúde
pública, as redes transeuropeias, a coesão económica e social, os
transportes, o emprego, as relações sociais e a investigação) e, além
dISSO, nomeadamente, em matéria de cooperação transfronteiriça,
sempre que algum daqueles três órgãos o considere oportuno. O
Contité pode, também, tomar a iniciativa de se pronunciar sobre
391
A União Europeia
qualquer assunto que considere de interesse (artigo 307.°, pars. 1
e4, TFUE).
SUBSECÇÃO I1I
Entidades com funções de gestão
Os órgãos e as instituições da União Europeia
147. O Banco Central Europeu
Bibliografia especial: R. CHEMAIN, L'Union économique et monéfaire. Aspects juridiques et institufionels, diss., Paris, 1996; R. SMITS,
Tlte European Central Bank - Institutional Aspects, Amesterdão, 1997;
l.-V. LOUIS, L'Union européenne et sa monnaie, Bruxelas, 2009, sobre-
tudo, pgs. 133 e segs.
145. Enunciação
A União Europeia tem entidades com funções de gestão, das
quais se destacam duas, a saber, o Banco Europeu de Investimento
(BEl) e o Banco Central Europeu (BCE). Não lbe chamamos
órgãos, porque de facto não o são: possuem personalidade jurídica
própria, sendo, portanto, em bom rigor, pessoas coletivas distintas,
ainda que complementares, da União. Têm órgãos próprios. Quanto
a essas pessoas coletivas, já se admite que se possa falar, em terminologia jurídica portuguesa, em instituições.
146. O Banco Europeu de Investimento
O BEl encontra-se hoje disciplinado nos artigos 308.° e 309.°
TFUE e nos seus Estatutos, aprovados pelo Protocolo n.o 5 anexo ao
Tratado de Lisboa.
Como se disse, tem personalidade jurídica própria, que lbe é
atribuída pelo artigo 308.°, par. 1. Reveste natureza similar à de um
instituto público no Direito Administrativo interno.
São seus membros todos os Estados-membros da União (artigo
308.°, par. 2).
De harmonia com o artigo 309.° compete-lhe financiar os projetos aí referidos, sem fim lucrativo, mediante a concessão de
empréstimos e garantias, bem como financiar programas de investimento em articulação com as intervenções dos fundos estruturais e
dos demais instrumentos financeiros da União'o,.
409 Ver SPIRON,
La BEI- Aspects juridiques de ses opérations de jinancemellt,
Zurique, 1990.
392
Os Tratados criaram como principal instrumento da política
Europeu de Bancos Centrais (SEBC),
que esta regulado nos artigos 127.° e seguintes TFUE e no Protocolo
n.° 4, 9ue aprovou os respetivos Estatutos.
E o SEBC que define e executa a política monetária da União
(artigo 127.', n.o 2, TFUE). Ele apoia todas as políticas económicas
da União com vista a também estas permitirem alcançar os objetivos
~efImdos no artIgo 3.° UE, sem prejuízo de dar importância especial
a estabIlIdade dos preços - dizem-no os artigos 127.', n.o 1, e 282.',
n.O' 1 e.2, TFUE. Na sua atuação, dispõem esses preceitos e, por sua
reilll~~ao, o arllgo 119.' TFUE, o SEBC deverá estar ao serviço de
uma economIa de mercado e de lIvre concorrência", embora, após
o Tratado de LIsboa, esta deva ser interpretada, como já dissemos,
como ~m sistema de economia social de mercado, que passou a
expnmrr o modelo económico e social da União, por força do artigo
3.°, fi.o 3, UE.
De harmonia com o artigo 282.°, n.o 1, TFUE, o SEBC é composto pelo Banco Central Europeu e pelos bancos centrais nacionais
dos Estados-membros. Portanto, o BCE e os bancos centrais nacionais cuja moeda seja o euro constituem o Eurosistema e conduzem
a política monetária da União (artigo 282.', n.o 1, TFUE).
O BCE, embora esteja misturado, no artigo 13.°, n.o 1, UE,
com órgãos da União, é, não um órgão da União, mas uma pessoa
coletiva autónoma (artigo 282.°, n.o 3, TFUE). É ele que dirige O
SEBC (artigo 282.°, n.o 2, TFUE).
O seu principal órgão é o Conselho, que é composto pelos
membros da Comissão Executiva do Banco e pelos Governadores
dos bancos centrais nacionais dos Estados·membros cuja moeda
monetá~ia da União o Sistema
393
A União Europeia
seja o euro. Por sua vez, a Comissão Executiva é composta pelo
Presidente do Banco, pelo Vice-Presidente e por quatro vogais, que
são nomeados pelo Conselho Europeu, por maioria qualificada, sob
recomendação do Conselho e depois de consulta ao Parlamento
Europeu e ao Conselho do BCE (artigo 283.° TFUE). O Presidente
do Conselho e um membro da Comissão podem participar, sem
direito de voto, nas reuniões do Conselho do BCE e o Presidente do
Conselho pode mesmo submeter moções à deliberação desse Conselho (artigo 284.° TFUE).
O BCE goza de total independência no exercício das suas funções (artigo 282.°, n.o 3, par 2, TFUE). Os seus atos estão sujeitos
ao controlo de legalidade pelo TJUE (artigo 263.°, par 1, TFUE).
Quando estudámos o TJUE vimos que os membros da Comissão
Executiva podem ser destituídos pelo TJ.
Sem embargo de toda a competência à qual já nos referimos, o
BCE não deixa de ser também um verdadeiro Banco, como resulta
do artigo 128.° TFUE. No desempenho da sua competência no
domínio monetário ele tem importantes poderes deliberativos e consultivos (artigos 127.°, 138.° e 219.° TFUE).
SUBSECÇÃO IV
Órgãos auxiliares
148. Introdução
Por órgãos auxiliares entendemos os órgãos criados pelo Conselho ou pela Comissão para os ajudar no exercício da sua competência própria. Foi, portanto, a prática que impôs a existência dos
órgãos auxiliares.
São diversos estes órgãos: desde os grupos de peritos governamentais, coordenados pelo COREPER, e que coadjuvam o Conselho, até aos grupos ad hoc de peritos nacionais, que, em matérias
muito diferentes, assessoram a Comissão.
394
Os órgãos e as instituições da União Europeia
149. A "comitologia"
Merecem, todavia, destaque, dentro desta categoria de órgãos,
os comités criados pela Comissão para a assistir no exercício da sua
competência de execução. Esses comités deram lugar ao aparecimento de um vocábulo novo no Direito Comunitário e no Direito da
União: a "cornitologia" 4Io .
Entende-se por comitologia o sistema composto pelos comités,
formados por peritos nacionais, criados para assistirem a Comissão
no exercício da sua competência executiva. A criação desses comités desenvolveu-se à margem dos Tratados, mas teve dois méritos:
o de fazer participar representantes dos Estados-membros na preparação das medidas de execução que a Comissão ia tomar e de, dessa
forma, corresponsabilizá-los na aplicação dessas medidas na ordem
interna dos respetivos Estados; e o de, na medida do possível, sem
quebra da uniformidade do Direito da União, melhor adaptar essas
medidas de execução às especificidades de cada Estado. Isso explica
que o número desses comités seja elevadíssimo.
A criação, permanentemente empírica e improvisada, desses
comités obrigou a disciplinar a sua criação e o seu funcionamento.
Foi o que fizeram as três "Decísões Camilo/agia", a primeira, de 13
de julho de 1987411 , a segunda, de 28 de junho de 1999412 , e a terceira, a Decisão de 17 de julho de 2006, que completou a Decisão
de 1999413-414.
Com a alteração pelo Tratado de Lisboa do regime da competência executiva da Comissão - matéria que já estudámos quando
nos debruçámos sobre a Comissão mas à qual voltaremos adiante _
foi necessário rever-se o sistema da "comitologia", o que veio a ser
410 Ver, especialmente, NICOLL, Qu'esf-ce que la comitologie, RMC 1987,
pgs. 185 e segs. e 703 e segs. Das obras gerais mais recentes, ver LoUIS/RoNSE,
pg. 51, e MANIN, pgs. 263 e segs.
'" Decisão 87/373/CEE, JO L 197, de 18-7-87.
'" Decisão 99/468/CE, JO L 184, de 17-7-99.
'" Decisão 2006/512/CE, JO L 200, de 22-7-2006.
414 Para maiores desenvolvimentos, ver SAURON, Comitologie; comment
sortir de la confusion?, RMUE 1999-1, pgs. 31 e segs.; e ISAAC, pgs. 87 e segs.
395
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da Uniao Europeia
feito pelo Regulamento sobre a Comitologia, aprovado pelo Parlamento e pelo Conselho, em 16 de fevereiro de 2011 415 •
Hoje temos quatro categorias de comités dentro do sistema da
comitologia: os comités consultivos, os comités de gestão, os comités de regulamentação e os comités de regulamentação com controlo.
Voltaremos a este assunto quando estudarmos a aplicação do
Direito da União pela Comissã04".
Os poderes implícitos dos órgãos não se podem, pois, confundir
com as atribuições implícitas da União, que já estudámos atrás417
. Também no Direito Internacional se admitem os poderes implícitos dos órgãos das Organizações Internacionais, o que tem sido
aceite pela jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça4l'.
SECÇÃO IV
o alargamento da competência dos órgãos da União
152. Os poderes novos criados ao abrigo do artigo 352. 0 TFUE
Não se devem confundir com os poderes implícitos os poderes
que podem ser criados pelo Conselho ao abrigo do artigo 352.0
TFUE. O antecessor daquele artigo, o ex-artigo 308.° CE, na versão
de Nice, dispnnha o seguinte:
150. Preliminares
Artigo 308. 0
Os Tratados preveem dois meios para o alargamento da competência dos órgãos da União: através da teoria dos poderes implícitos e do artigo 352.° TFUE.
Vamos estudar separadamente cada uma dessas duas matérias.
Se uma ação da Comunidade for considerada necessária para atingir, no curso de funcionamento do mercado comum, um dos objetivos
da Comunidade, sem que o presente Tratado tenha previsto os poderes
d~ ação necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unaninudade, sob proposta da Corrtissão, e após consulta do Parlamento
Europeu, adotará as disposições adequadas" (itálico nosso).
151. Os poderes implícitos
Agora, o artigo 352.0 TFUE estabelece:
O primeiro instrumento para o alargamento da competência
dos órgãos da União é o dos poderes implícitos.
A teoria dos poderes implícitos pertence à Teoria Geral do
Direito. Portanto, ela não é exclusiva do Direito da União, mas também se aplica a ele. De harmonia com ela, os órgãos de uma pessoa
coletiva não têm só os poderes que a norma escrita expressamente
lhes confere, mas também os que são instrumentais desses, isto é,
aqueles que são necessários ao bom exercício dos poderes que lhes
são conferidos de modo explícito. Portanto, não são poderes criados
de novo. Isso aplica-se também ao Direito da União.
'I' JO L 55/13.
416
Artigo 352.0
I. Se uma ação da União for considerada necessária, no quadro
das poIít~cas definidas pelos Tratados, para atingir um dos objetivos
estabelecIdos pelos Tratados, sem que estes tenham previsto os poderes
d~ ação necessários para o efeito, o Conselho, deliberando por unaninudade, sob proposta da Comissão e após aprovação do Parlamento
Europeu, adotará as disposições adequadas. Quando as disposições em
questão sejam adotadas pelo Conselho de acordo com um processo
legislativo especial, o Conselho delibera igualmente por unanimidade,
sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu.
417
Infra, n. 0242.
418
396
Supra, 0. 90.
Ver GONÇALVES
0
PEREIRA/QUADROS,
397
pgs. 436-438.
A União Europeia
2. No âmbito do processo de controlo do princípio da subsidiariedade referido no n.o 3 do artigo 5.° do Tratado da União Europeia, a
Comissão alerta os Parlamentos nacionais para as propostas baseadas no
presente artigo.
3. As medidas baseadas no presente artigo não podem implicar a
harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros nos casos em que os Tratados excluam tal harmonização.
4. O presente artigo não pode constituir fundamento para prosseguir objetivos do âmbito da política externa e de segurança comum e
qualquer ato adotado por força do presente artigo deve respeitar os
limites estabelecidos no segundo parágrafo do artigo 40.° do Tratado da
União Europeia. (itálico nosso)
No seu n. ° I, este artigo alterou o procedimento de decisão
previsto no ex-artigo 308.° CE, na medida em que veio reforçar a
intervenção do Parlamento Europeu nesse procedimento, que de
mera consulta passou a aprovação.
Desde o início da integração europeia, este preceito foi, e é, um
dos mais característicos do Direito da União. Não se encontra no
tratado institutivo de qualquer Organização Internacional clássica.
Ele é a consequência natural do facto de os órgãos da União,
como atrás se disse, terem competência de atribuição, por força do
artigo 13.°, n.o 2, 1.' parte, UE. O fundamento daquele preceito
reside no carácter evolutivo da integração europeia e da sua Ordem
Jurídica: o que se pretende com ele é evitar que uma lacuna na competência atribuída pelos Tratados aos órgãos da União paralise o
andamento e a progressão da integração.
Reunidos os requisitos definidos nesse artigo, o Conselho,
respeitado o procedimento previsto no n. ° I do artigo, pode criar
poderes novos, que sejam necessários para os órgãos da União estarem em condições de dar resposta às exigências da integração. Não
pode, todavia, criar novos objetivos, nem novas atribuições, para a
União, o que obrigaria à revisão do Tratado, com respeito pelo processo que ele prevê para o efeito. Foi o que o TJ deixou claramente
dito no Parecer 2/94, já atrás citado. Ao pennitir ao Conselho criar
competência nova, mas ao não autorizá-lo a criar atribuições novas,
o artigo 352.° confere ao Conselho um poder quase-constituinte, ou
398
Os órgãos e as instituições da União Europeia
u~aparcial "Kompetenz-Kompete/lZ", isto é, uma parcial competenCla das competências419.
. ~uais são os requisitos aos quais, hoje, o artigo 352.° sujeita a
cnaçao pelo Conselho de poderes novos? São os seguintes:
a) a necessidade d~. intervenção da União para se atingir, /lO
quadro d~s polltlcas definidas pelos Tratados (por exemplo, no a~bilo da União Económica e Monetária, do
esp~ço de hbe~~ade, segurança e justiça, de qualquer das
pohtlcas da Umao), um dos objetivos da União, entenda-se,
um dos obJetlvos fIxados para a União pelos Tratados. Isto
confIrma que o artigo 352.° manda o intérprete conformar~se c,?m os objetivos que os Tratados já impõem à
U~IaO, nao permIte que, através dele, sejam criados novos
obJelIvos ou novas atribuições;
b) a ~missão, nos Tratados, dos poderes necessários para o
efeIto, ou, pelo menos, a insufiCiência dos poderes já existentes 420 •
. Contudo, o .novo a~go 352.°. TFUE, indo para além do que
dlspun~a oex-arlIgo 308. CE, sUjeIta o exercício pelo Conselho, da
co~petencIa que ele lhe confere no seu n.o 1, às três seguintes condlçoes:
a) o Conselho só poderá criar os novos poderes depois de os
Parlamentos naCIOnaIS, a pedido da Comissão se terem
pronunciado, a título meramente consultivo, no ~entido da
conf?rmldade da proposta da Comissão com o princípio da
subsldlarledade, tal como este está consagrado no artigo
5.°, n.o 3, UE (artigo 352.°, n.o 2, TFUE);
b) o~ poderes criados pelo Conselho à sombra do artigo 352. o
nao podem levar à harmonização de atos legislativos ou
----419
N
'd
o mesmo senti o, ver as anotações ao artigo nos Comentários de
GROEBEN:'SC~WA~ZE, GRABITzlHILF/NETIESHEIM e STREINZ; e KAISER, Grenzen der
EG-Zustandlgkelten, EuR 1980, pgs. 97 e segs.. Oas obras gerais, ver JACQUÉ
pgs. 142 e segs.
'
410 A
e. TI 12-7-73, Massey-Ferguson ' Proe ' 8173 , Rec " pgs . 897 e segs,
399
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
regulamentares dos Direitos nacionais dos Estados-membros nos casos em que os Tratados excluam essa ha~m~~I­
zação (o que é uma nova forma de respeito pelo pnnclplO
da subsidiariedade) (artigo 352.°, n.O 3, TFUE);
c) este artigo não se aplica à PESC ~artigo 352.°, n.o 4,
TFUE). Compreende-se porquê: esta mc1Ul-se no segundo
'1
que é basicamente, um pilar intergovernamental.
pi ar"
. . . I t
Ora, a intergovernamentalidade, Isto é, o Direito, n ernacional Público não se compadece com co~peten~la de
índole quase-constituinte como aquela que e confenda ao
Conselho neste artigo.
Verificadas todas estas condições, o Conselho, respeitado o
.
. 352 .°, n°.I, TFUE '. e dehberando
rocedimento previsto
no artigo
unanimidade, pode criar os poderes novoS que sejam adequados
para o efeito.
d
Por aqui se vê, portanto, que aquele artigo não se c~nfu~ e co~
a teoria dos poderes implícitos, na medida em que este,s nao sao pode
res novos, mas apenas instrumentais dos poderes exphcltos, ne~lcom
a criação de novas atribuições, pelos molivos aCima apontados .
~or
SECÇÃO V
o processo de decisão da União
Bibliografia especial: K. POEHLE, Le Parlement européen, et l~s
.
RMC 1987,pgs
parIements natwnaux,
. 459 e segs.; F. ZAMPINI, L Ita!le,
t
en amont du manquement... Un probleme de compétences e~
l'éxecutif, te parlement et les régions, RTDE 1994, pgs. 195 ~ s~~;-' r .
PALADIN Forma italiana di governo ed appartenenza
e . ta l~
.
'
QC
1994
pgs
403
e
segs.·
Parlamentos
nacwnms
all'Umone europea,
,.
'. I _
os 13/14
- União Europeia, número monográfico de Legls açao, n..
.
de MOURA RAMOS
H .SCHAFFER;
C1995), especialmente os artigos
.e '
. C.
BLUMANN, La fonction législative communautmre, Pans, 1995, M.
Z
MARTIN MARTINEZ, El contrai parlamentario de la politica comunitaria,
RIE 1995, pgs. 445 e segs.; M. HILF e F. BURMEISTER, Tile Germall
Parliament and European Integration, in E. Smith (ed.), National
ParJiaments as Cornerstones of European Integration, Londres, 1996,
pgs. 64 e segs.; J. RIDEAU (dir.), Les États membres de l'Union européenne, Paris, 1997; l-L. SAURON, Le contrôle parlementaire de
l'activité gouvernementale en matiáe communautaire en France, RTDE
1999, pgs. 17l e segs.; JOÃo MIRANDA, O papel da Assembleia da
República na construção europeia, Coimbra, 2000; J. JORDA, Le pouvoir
exécutijdans l'Union européenne, diss., Aix-la-Marseille, 2001.
153. O processo de decisão da União: introdução
Impõe-se agora, a título de balanço das páginas anteriores, que
estabeleçamos o processo de decisão da União.
O modo como na União se exerce hoje o processo de decisão,
tanto no plano legislativo, como no plano administrativo, decorre
diretamente do estudo, que fizemos, da competência dos seus órgãos.
Para a definição desse processo conta, de modo determinante,
o quarteto do poder, que é composto pelo Conselho Europeu, pelo
Parlamento Europeu, pelo Conselho e pela Comissão.
Posta a questão nestes termos, há que sublinhar que o processo
de decisão, tal como ele se encontra regulado nos Tratados UE e
TFUE, obedece a um grande pragmatismo. Isto quer dizer que ele
varia de caso para caso, conforme os interesses e as matérias em
presença. Daí que se torne indispensável a invocação, em cada procedimento de decisão, dos preceitos em que ele se baseia, inclusivamente como condição para o controlo da respetiva legalidade. É,
aliás, o que pensa também o TJ. Diz ele: "No que diz respeito à
escolha da base jurídica (para o processo de decisão), convém
observar, logo para começar, que esta escolha pode ter consequências sobre a determinação do conteúdo do ato, na medida em que as
exigências processuais ligadas às disposições de habilitação em
causa variam de texto para texto'22.
----=--=-----;f421 Desta arma mUI'to clara , também GRABITZlHILFINEITESHEIM, loco cit., e
lAcQuÉ,
m Ac. 2-2-89, Comissão c. Conselho, Pme. 275/87, Col., pgs. 259 e segs.
Ver tambémAc. 29-3-90, Grécia c. Conselho, Proc. 62/88, Rec., pgs. 1527 e segs.
pgs. 142 e segs.
400
401
~
'~"ro-':·"Ó;:·0\
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
De qualquer modo, e em grande síntese, podemos catalogar da
seguinte forma, e em abstrato, as grandes funções dos refendos
quatro órgãos da União. O Conselho Europeu, embora tenha c~~o
principal função uma tarefa de índole predommantemente pol!uca
- a de definir as grandes orientações da União -, passou a ter dlgmdade igual à dos outros órgãos principais da União e, pela primeira
vez, passou a poder praticar atos jurídicos, embora o Tratado UE lhe
recuse competência legislativa (artigo 15.°, n.o I, in fine). Por sua
vez, o Parlamento Europeu, dentro da sua competência muito
variada, é hoje, antes de mais, um co-Iegislador da União, tendo
visto nessa matéria a sua competência substancialmente reforçada
com o Tratado de Lisboa. O Conselho co-decide em muitas matérias
com o Parlamento, mas, no processo legislativo especial, ainda conserva o poder final de decidir num grande número de casos. Pode-se,
por isso, dizer que ele ainda é o mais importante órgão a ter a última
palavra no processo de decisão da União. A Comissão tem, sobretudo, um direito de iniciativa e competência executiva, incluindo-se
nesta a fiscalização política e administrativa da execução do Direito
da União pelos Estados-membros. Como ficou demonstrado, ela,
ainda mais do que antes do Tratado de Lisboa, pode ser vista como
um embrião do Governo da União, e o seu Presidente como um
esboço de Primeiro-Ministro da União.
À margem desses quatro órgãos, tem de se atender ao papel
relevante do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança na gestão das relações externas da
União, sem embargo das incongruências que apontámos ao seu
estatuto jurídico.
sobretudo, de índole administrativa, intervenham, quase sempre a
título consultivo ou informativo, ou os Estados-membros, ou suas
pessoas coletivas infra-estaduais, como Estados federados, regiões
autónomas, autarquias locais, etc. Enquanto essas entidades participam no exercício do poder administrativo da União, estamos perante
um problema de Direito Administrativo da União, o antigo Direito
Administrativo Comunitário 42'.
Esse problema não deve ser confundido com um problema
simétrico, que é o da participação, imposta por lei nacional ou pelo
Direito da União, de órgãos da União, particularmente da Comissão,
no procedimento administrativo nacional.
155. A participação dos Parlamentos nacionais na União Europeia
Mais complexa é a participação dos Parlamentos nacionais na
União.
Dando satisfação aos pedidos que há muito tempo iam sendo
formulados por diversas correntes políticas na União, quando da
revisão de Amesterdão os Estados-membros aprovaram um Protocolo relativo aos Parlamentos nacionais na União Europeia, que
ficou anexo ao Tratado de Amesterdão. Nesse Protocolo, os Estados
afirmavam o seu desejo de "incentivar uma maior participação dos
Parlamentos nacionais nas atividades da União Europeia e reforçar
a capacidade de exprimirem as suas opiniões sobre questões que
para aqueles possam revestir-se de especial interesse". E, com vista
à prossecução desse objetivo, os Estados estipulavam dois meios:
154. A participação dos Estados no processo de decisão da União
a) a prestação periódica de informações aos Parlamentos
Os Estados encontram-se representados no processo de decisão da União, como é sabido, através do Conselho. Mas há uma
outra forma de eles serem chamados, conforme as matérias, a intervir no processo de decisão. É quando atos de Direito derivado exigem que em procedimentos da União de natureza legislativa ou,
b) a atribuição à Conferência dos órgãos dos Parlamentos
nacionais, nos termos dos n. os 1 a 3 desse Protocolo;
402
especializados em assuntos europeus (ou seja, das Comissões Parlamentares dos Assuntos Europeus), criada em
1989, com a sigla COSAC, de poderes para dar aos órgãos
423
Ver infra,
TI,o
243.
403
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
da União Europeia os contributos referidos no n. o 4 do
Protocolo, para analisar as propostas ou iniciativas de atos
legislativos, a que aludia o n. ° 5 do Protocolo, e para dirigir
ao Parlamento Europeu, ao Conselho e à Comissão os contributos indicados no n. o 6 do Protocolo.
Mais tarde, na Declaração respeitante ao futuro da União, que
ficou anexa ao Tratado de Nice, cometeu-se ao Conselho Europeu O
encargo de, na Cimeira prevista para Laeken, em 14 e 15 de dezembro de 200 I, se pronunciar, entre outras matérias, sobre o "papel dos
Parlamentos nacionais na arquitetura europeia" (n. o 5 da Declaração). A intenção dessa medida era a de, dessa forma, se aproximar a
União e os seus órgãos dos cidadãos dos Estados-membros.
Todavia, a Declaração de Laeken sobre o futuro da União
Europeia, aprovada pelo Conselho Europeu na Cimeira acima referida, pouco adiantou sobre o assunto. Ela limitou-se a relaCIOnar o
problema do papel dos Parlamentos nacionais na União Europem
com a "legitimidade democrática" na União e, nesse quadro, a deixar formuladas as seguintes interrogações: "Deverão (os Parlamentos nacionais) estar representados num novo órgão, a par do
Conselho e do Parlamento Europeu? Deverão desempenhar um
papel nos domínios da atuação europeia em que o Parlamento Europeu não tem competência? Deverão concentrar-se na repartição de
competências entre a União e os Estados-membros, por exemplo,
mediante um controlo prévio da observância do princípio da subsldiariedade?".
As essas interrogações aquela Declaração não deu, porém,
qualquer resposta.
..
. .
A Convenção sobre o Futuro da Europa fOi mUlto ambiCIOsa
quanto ao reforço da participação dos Parlamentos nacionais na
União Europeia e verteu os seus propósitos no texto do Tratado
Constitucional Europeu. Mostrámos isso na edição anterior, portanto, edição francesa, deste livro'24 e já nos referimos atrás à principal opção feita por aquele Tratado na matéria: fazer participar os
'" Pgs. 279-280.
Parlamentos nacionais no controlo prévio do respeito pelo princípio
da subsidiariedade.
. O Tratado de Lisboa manteve essa linha de orientação, pri0
meiro, no novo artigo 12. UE, depois, no Protocolo n. ° 1 relativo ao
papel dos Parlamentos nacionais na União Europeia, a ele anexo.
O artigo 12.° UE prevê duas formas de participação dos Parlamentos nacionais na União Europeia que não vão estar contempladas no Protocolo: a sua participação no processo de revisão dos
Tratados, nos termos do artigo 48. 0 UE, e a sua participação no
quadro do espaço de liberdade, segurança e justiça, com o encargo
de avalmr a execução das políticas da União dentro desse espaço,
nos termos do artigo 70.° TFUE (artigo 12.°, ais. c e d, UE).
" No que toca ao Protocolo n.O 1, com fidelidade à preocupação
de reforçar a sua (dos Parlamentos nacionais) capacidade de exprillll~:m as suas opiniões sobre os projetos de atos legislativos da
Umao Europem e sobre outras questões que para eles possam revestu espeCial mteresse", enunciada no parágrafo 2.° do seu preâmbulo,
~Ie divide a participação dos Parlamentos nacionais em três grandes
a:ea~: mformações prestadas aos Parlamentos nacionais, cooperaçao mterparlamentar e controlo do princípio da subsidiariedade.
Quanto à primeira área, os Parlamentos nacionais passam a
receber as seguintes informações:
a) a Comissão envia-lhes diretamente os documentos referi-
dos no artigo LOdo Protocolo, dos quais se destaca o programa legislativo anual;
b) todos os projetos de atos legislativos dirigidos ao Parlamento Europeu e ao Conselho, com o sentido muito amplo
que o artigo 2.°, par. 2, do Protocolo dá ao projeto de ato
legislativo, serão comunicados aos Parlamentos nacionais
com respeito pelo procedimento previsto nos pars. 3, 4 e 5
do mesmo artigo;
c) o Conselho dará conhecimento aos Parlamentos nacionais
(ao mesmo tempo que aos Governos nacionais) dos elementos referidos no artigo 5.° do Protocolo, dos quais se
destacam projetos de atos legislativos;
404
405
A União Europeia
d) como já resultava do artigo 48.°, n.O 7, par. 2, UE, quando
o Conselho Europeu pretender autorizar o Conselho a deliberar por maioria qualificada numa matéria em que o
Título V do Tratado UE ou o TFUE impunha que essa
deliberação fosse tomada por unanimidade, ou tiver em
vista tomar uma decisão a autorizar que seja aprovado pelo
Conselho por processo legislativo ordinário um ato legislativo que o TFUE estabelecia que devia ser aprovado por
processo legislativo especial (é o caso da cláusula passerelle, já por nós estudada), os Parlamentos nacionais serão
diretamente informados dessas iniciativas do Conselho
Europeu pelo menos seis meses antes de este tomar na
matéria qualquer decisão (artigo 6.° do Protocolo);
e) o Tribunal de Contas enviará aos Parlamentos nacionais o
seu relatório anual, nos termos previstos no artigo 7.° do
Protocolo (artigo 7.° do Protocolo).
Os Parlamentos nacionais têm o prazo de oito semanas para se
pronunciarem, contadas desde a data em que um projeto de at~
legislativo lhes seja transmitido até à data em que esse projeto e
inscrito na ordem do dia provisória do Conselho com vista à sua
votação (artigo 4.° do Protocolo).
Em matéria de cooperação interparlamentar, o Protocolo conserva a Conferência dos órgãos parlamentares especializados nos
assuntos da União (à qual o Protocolo não reconhece agora a sigla
COSAC, mas que podemos continuar a utilizar) e mantém, no
essencial a competência que o referido Protocolo anexo ao Tratado
de Ames~rdão lhe atribuía. Praticamente a única novidade consiste
no estímulo dado pelo atual Protocolo para se conceder especial
importância à PESe, incluindo a Política Comum de Segurança e
Defesa, nas conferências interparlamentares. Continua-se a afirmar
que os contributos da eOSAC não vinculam nem condicionam os
Parlamentos nacionais (artigo 10.° do Protocolo).
Mas como se disse, a grande inovação neste domínio traduz-se
na partici~ação dos Parlamentos nacionais no controlo do princípio da subsidiariedade. Ela foi por nós estudada quando nos debru406
Os órgãos e as instituições da União Europeia
çámos atrás sobre o princípio da subsidiariedade no âmbito do
Capítulo dedicado às atribuições da União. Remetemos para aí o
leitor'''.
Pode-se, por isso, concluir que vai aumentando progressivamente a importância que a União Europeia quer reconhecer aos
Parlamentos nacionais no seu processo de decisão.
Há, contudo, três pontos que devemos deixar claros.
Primeiro, a representação dos Estados e dos povos dos Estados
ou dos cidadãos europeus no processo de decisão da União está já
asse~urada, resp~tivamente, no Conselho e no Parlamento Europeu.
Por ISSO, a partIcIpação dos Parlamentos nacionais pode vir a reforç~r a legitimidade democrática na União, mas não é condição essenCIal para se obter a aproximação da União em relação aos Estados
ou aos seus cidadãos.
S:gu~do, em qualquer caso, somos contrários à criação de
novos orgaos para se exercer o poder de decisão ao nível da União
além dos quatro já existentes - o Parlamento Europeu, o Conselh~
E,uropeu, o Conselho e a Comissão -, não só porque não são necessano~,. como também porque o risco de isso vir a pôr em causa a
estabIlIdade e o equilíbrio institucional no seio da União é muito
grande. A União tem outros problemas mais urgentes com que se
preocupar.
Por fim, a participação dos Parlamentos nacionais na União
seja qual for a forma que assuma, nunca lhes poderá conferir uO:
dIreIto de veto no processo de decisão da União. Mais uma vez é o
respeito pela atual estabilidade institucional e pela legitimidade' dos
quatro órgãos envolvidos no processo de decisão, que em cima indicámos, que o impõe426 .
425
Ver supra, n.O 86-VI.
426 Uma paciente investigação sobre a participação dos Parlamentos dos
Estados-membros na União Europeia é levada a cabo no manual de RIDEAU, pgs.
1.013 e segs., com muito boa bibliografia complementar.
407
A União Europeia
Os órgãos e as instituições da União Europeia
156. Em concreto, a participação do Parlamento portnguês na
União Europeia
I
I
(artigo 4.°, n.o 1, ais. a e e), e acompanha a participação de
Portugal nas reuniões do Conselho (artigo 4.°, n.o I, aI. d);
b) pode suscitar o debate de todos os assuntos que estejam em
dIscussão nos órgãos da União e que envolvam matéria da
sua competência (artigo 4.°, n.o 4);
e) tem o direito de ser informada pelo Governo sobre os
assuntos em discussão nos órgãos da União, bem como os
projetos de atos, os projetos de acordos ou tratados, os
relatórios e os documentos aos quais se referem os n. OO 1, 2
e 3 do artigo 5.°;
d) emite pareceres sobre a seleção, nomeação ou designação
de personalidades para cargos em "órgãos ou agências" da
União Europeia cujo preenchimento não esteja sujeito a
concurso. Como a Lei exclui desse poder os candidatos a
membros da Comissão Europeia, do Comité das Regiões e
do Comité Económico e Social, e os deputados ao Parlamento Europeu, e, por razões óbvias, ficam também
excluídos dele os membros do Conselho Europeu e do
Conselho, aquele poder só se aplica, além das "agências
europeias", às personalidades que são selecionadas para os
cargos de Juiz no TJUE, de membro do Tribunal de Contas
e de Advogado-Geral, ou seja, para cargos que a própri~
LeI reconhece terem "natureza jurisdicional" (artigo 11.0).
Note-se que é um mero parecer não vinculativo. De facto,
mais do que isso iria sujeitar essa escolha a critérios político-partidários. Ora, quanto a órgãos jurisdicionais, isso,
em nosso entender, seria profundamente errado.
Em Portugal, a Assembleia da República tem poderes específicos em matéria de integração europeia, que lhe são atribuídos pela
Constituição: os poderes de pronúncia sobre as matérias pendentes
de decisão de órgãos da União Europeia que incidam na esfera da
sua competência legislativa reservada (artigo 161.°, aI. n), de acompanhamento e apreciação da participação de Portugal no processo
de construção da União Europeia (artigo 163.°, al..f) e de fazer leis
sobre o regime de designação dos titulares dos órgãos da União
Europeia que caiba a Portugal indicar, com exceção da Comissão
(artigo 164.°, aI. pj.
Estes preceitos foram, em princípio, concretizados pela Lei
n.o 20/94, de 15 de julho. Mais tarde essa Lei foi substituída pela Lei
n.o 43/2006, de 25 de agosto, que veio estabelecer os "poderes da
Assembleia da República de acompanhamento, apreciação e pronúncia no âmbito do processo de construção da União Europeia".
No seu artigo 1.0, n.o 1, esta Lei resume em três categorias os
poderes da Assembleia da República na matéria. Assim, cabe à
Assembleia da República:
a) emitir pareceres sobre matérias que, pela Constituição, são
da sua competência reservada e que estejam pendentes de
decisão em órgãos da União Europeia (ver artigo 2.°);
b) emitir pareceres sobre o respeito pelos órgãos da União do
princípio da subsidiariedade (ver artigo 3.°);
e) acompanhar e apreciar a participação de Portugal na construção europeia.
Este último poder é o que se encontra regulado com mais pormenor na Lei, nos seus artigos 4.° e seguintes. Assim, no exercício
desse poder, a Assembleia da República:
a) debate, com a participação do Governo, a participação de
Portugal na União Europeia, em geral (artigo 4.°, n.o I,
aI. b, e n."' 2 e 3), e no Conselho Europeu, em particular
I,
408
A Comissão de Assuntos Europeus é a comissão parlamentar
especIalIzada para o acompanhamento e a apreciação dos Assuntos
Europeus, sem prejuízo do plenário e das outras comissões parlamentares (artigos 6.° e 7.°)427.
À margem d
, "ena d este numero,
'
a ma
mas com relevância para o estudo
do mesmo domínio, deve ser sublinhada a participação das regiões autónomas dos
Açores e da Madeira na União Europeia, expressamente prevista no artigo 227,0,
a
n,o 1, aIs. v, 2. parte, e x, da Constituição. Cfr. supra, n.O 105.
427
409
PARTE II
O DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
157. Preliminares
Esta Parte tem como epígrafe Direito da União Europeia e nela
vamos estudar de modo expresso a Ordem Jurídica da União. Como
prevenimos logo no início do livro, não nos estamos a esquecer,
também aqui, de que, à margem da União, subsiste ainda uma
Comunidade, a Euratom, e que quanto ao seu sistema jurídico é
correto continuar a falar-se em Direito Comunitário. Acontece,
porém, que a importãncia da Euratom à margem da União Europeia
é diminuta e que a sua especificidade por confronto com a União é
muito rednzida. Por isso, o ordenamento jurídico que vamos examinar nesta Parte refere-se ao conjunto global da União. Quando houver razões para levarmos em consideração as características próprias
do Direito da Euratom di-Io-emos de modo expresso.
413
CAPÍTULO I
NOÇÃO E CARACTERIZAÇÃO
DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: da bibliografia geral indicada no início
deste livro, V., especialmente, as obras de IpsEN, pgs. 182 e segs. e 200 e
segs., L,-I. CONSTANTINESCO. PESCATORE, e, mais recentemente, GARCÍA DE
ENTERRIA, CHITJ, pgs. 49 e segs., 77 e segs. e 99 e segs., JACQUÉ, pgs. 93
e segs. e 483 e segs., e bibI. aí cit., e VON BOGDANDY (ed.), pgs. I e segs.;
além disso, F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit., e bibL cit.
ao longo dessa obra; J. SCHWARZE, Europiiisches Verwaltungsreclzt im
Werden, Baden-Baden, 1982; J. SCHWARZE, Europiiisches VerwaltungsreclIt, 2 vaIs., Baden-Baden, 1988, e tradução francesa, com adaptações, Droit administrat!! européen, 2 vaIs., Bruxelas, 1996; T. VON
DANWITZ, Verwaltungsrechtliches System llnd europiiische Integratioll,
dissertação, Tubinga, 1996; R. KNÜTEL, lus commune und r6misches
Rechl var Gerichte der Europiiischen Unioll, JS 1996, pgs. 768 e segs.;
J. SCHWARZE (ed.), Das Verwallungsrecht unter europiiischen Einfluss,
Baden-Baden, 1996, e tradução francesa, Le droit administralij sous
l'injluence de l'Europe, Baden-Baden, 1996; J. GERKRATH, L'emergence
d'un droit conslitutionnel pour I'Europe, diss., Bruxelas, 1997; J.
SCHWARZE, The Convergence of lhe Administrative Laws of lhe EU
Member States, EPL 1998, pgs. 191 e segs.; F. DE QUADROS, Relatório
sobre Direito Comunitário I, cit., pgs. 44 e segs., e bibl. aí cit.; J.-C.
PIR[S, L'Union a-t-elle une constitution? Lui en faut-i! une?, RTDE
1999, pgs. 599 e segs.; F. DE QUADROS, A nova dimenslío do Direito
Administrativo, Coimbra, 1999, pgs. 11 e segs., 15 e segs., e 22 e segs.;
V. CONSTANTINESCQ, Vers que/le Europe, Europe fédérale, conféderation
européenne,
fédération d'États-Nations, Les Cahiers français 2000,
o
fi. 298, pgs. 80 e segs.; R. LLOPIS CARRASCO, Constitución europea: un
415
~'
li
Iii
"
o Direito da União Europeia
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
cOllcepto prematuro, "I-ncia
va e
, 2000', ANA MARTINS,
"
. A natureza jurídica
E
da revisão do Tratado da União Europew, CIt., P. MAONEITE e. J'
pe'en 2 vols ., Bruxelas, 20oo , .
REMACLE Le nouveau mod e'le euro,
. pgs. 9 e seg S'CCANCELA
MIRANDA, Direito Constitucional III, CIt.,
". .
OUTEDA, 'EI proceso de constitucionalizacián de la U~uo~ Eu:op~a,
,
La .
constltutlOnalzsatlOll
SantIago
de Compost e1a, 2001',D. BLANCHARD'
. . .
, europeenne,
' Pans,
. 200 l',S. CASSESE , La slgnona
de l' Unwn
2 1 ammUHS' R
trativa sul diritto communitario, RIDPC 2002, pgs. 9, e ;~~~: E'
(dI' r ) Une Constitution pour l'Europe?, Pans,
, . '
D
EHOUSSE
. ,
"" I
I
'
DrOlts
dre Jun
"d'l q fie"déral
MAULIN L 'ar.
u e . L'Etat fédera aut lentlque,,
2002-1 pgs, 41 e segs,; ACADEMY OF EUROPEAN LAW (edJ, ReqUlrements
or the Emerging European Constitution, TrevIro, 2002" E.
Das allgemeine Verwaltungsrecht ais Ordn,ungsldee;
2 ' d B rlim 2004 e tradução espanhola da l.a ed., La teona genera
, e., e
"
,
d 'd 2003'.':
F DE2005
QUADROS '
dei derecho administrativo como sistema, Ma n. '
Constituição europeia e Constituições estaduais, O Dl.r~lto bbi,pgs.
687 e segs.; ALDo SANDULU, La scienza italiana deI dlntto pu
lCO e
l'integrazíone europea, RlDPC 2005, pgs, 859 e segs.; F. DE QMUADROS,
. '"
Co1aç o Antunes e. SálllZ . oreno
O acto administrativo comUnttarlO,
.
(coords.), Colóquio Luso-Espanhol- O acto no contencl~so ad~~Istraif
tivo Coimbra, 2005, pgs. 63 e segs.; M. FROMONT, DrOlt aQdmlnlstratA,
'2006 , pgs. 82 e segs'. ,F. DE UADROS,
dés ,États européens, ParIS,
M
11
europeização do Contencioso Administrativo, Estudos G ~ce o
D,
~CHMlDT-ASSMANN
Caetano, vaI. I, Coimbra, 2006, pgs, 385 e s:gs.; M. C~ITl~r'
;~~~:
;oCI I
Trattato di diritto amministrativo europeo, 2. ~". 4 vo, S., 1
b
an
F DE Q UADROS, Global Law, Plural ConstltutlOnallsm
. "
Aro a
Administrative Law, Javier Robalino-Orellana e Jaime ~odnguez- ana
- z Global Administrative Law, Londres, 2010, pags, 329 e segs.
Muno,
!
I,I
,ii
i'
158. O Direito da União como ramo antónomo de Direito
o
159. A elaboração dogmática do Direito da União Europeia
O Direito da União é um ramo de Direito jovem: ele sucedeu,
em circunstâncias que conhecemos, ao Direito Comunitário, que
nasceu em 1952, com a entrada em vigor do Tratado institutivo da
primeira Comunidade, a CECA. Tendo a partir do Tratado de Maastricht subsistido as Comunidades ao lado da União Europeia, que
aquele Tratado criou, desde então também têm coexistido o Direito
da União e o Direito Comunitário. Só que este, como se disse poucas linhas atrás, encontra-se hoje confinado às fronteiras apertadas
da Euratom e será, naturalmente, absorvido por inteiro pelo Direito
da União, quando a Euratom se dissolver na União.
Para o seu nascimento, para a sua estruturação e para a sua
construção dogmática, o velho Direito Comunitário foi buscar as
suas raizes a ramos de Direito pré-existentes, designadamente àqueles que mais diretamente se prendiam com a forma da sua revelação
e com o seu objeto. Foram sobretudo esses ramos de Direito que
moldaram a estrutura dogmática do Direito Comunitário na sua nascença. Vejamos quais foram,
Em primeiro lugar, o Direito Internacional Público, As antigas
Comunidades foram criadas por tratados internacionais, logo, é
exato afirmar-se que o Direito Comunitário nasceu do Direito InternacionaL Por isso, durante muito tempo o Direito Comunitário foi
ensinado nos manuais de Direito Internacional Público, onde as
Comunidades Europeias eram integradas nas Organizações Internacionais; por isso também, em alguns Estados-membros levou-se
tempo a criar, nos planos de estudos de Faculdades de Direito, a
disciplina de Direito Comunitário com autonomia em relação ao
Direito Internacional Público. Foi o que sucedeu, por exemplo, na
Espanha.
Direito da União Europeia é o sistema jurídico da União
,.
Euro eia melhor, a Ordem Jurídica da União Europeia.,
significa que o Direito da União tem o seu obJeto propno
e ortanto, a sua autonomia própria, não devendo, p?rt~nto, ser
ou aplicado, nem pela União e pelos seus orgaos, nem
pelos Estados-membros e pelos seus órgãos, com perda da sua especificidade, isto é, das suas características própnas.
Todavia, essa autonomia impunha-se, dado que, embora tenha
nascido do Direito Internacional Público, e embora mantenha, através dos Tratados, esse cordão umbilical com o Direito Internacional,
o antigo Direito Comunitário e o atual Direito da União foram
ganhando, como veremos, a sua estrutura própria, quer no plano
dogmático, quer no plano científico. Em Portugal, o Direito Comu-
416
417
~sso'
i~t~rpretado
o Direito da União Europeia
nitário começou a ser ensinado em Faculdades d_e ?ireito, como
disciplina jurídica autónoma, mesmo antes da adesao as Comumdades Europeias'28.
., .
.
Em segundo lugar, o antigo Direito C0m.umtarlO fOI buscar um
contributo forte ao Direito Administrativo. E justo dizer-se que o
Direito Administrativo foi o ramo de Direito que de modo maIS
intenso ajudou à construção dogmática e científica do Dlreit?
Comunitário. Desde logo, foram os autores dos Tratados que o qUIseram. Assim, a forte influência do Direito Administrativo era notória nos Tratados institutivos das Comunidades, como o é nos atUaIS
Tratados em matérias tão vastas e importantes como a tipologia dos
atos de 'Direito derivado, a organização e o funcionamento da
Comissão como órgão executivo, a aplicação do Direito da Umão
pela União e pelos Estados-membros, a responsabilidade extracontratual da União, o Contencioso da União Europeia, etc. E ela é
também notória num dos domínios nucleares dos Tratados em sede
de pura integração económica, como é o caso do Direito da Con,co~­
rência em matérias como os contratos públicos, as empresas publicas, o; serviços de interesse económico geral, os auxílios do Estado,
etc. 42'. Foi isso, sobretudo, que levou um dos maIOres nomes da
Ciência do Direito Público da Alemanha do pós-guerra, OTIO
BACHOF, a caracterizar o antigo Direito Comunitário como Direito
Administrativo da Economia'30. E foi isso também que tornou apropriada a caracterização da Comunidade Europeia como "Comunidade de Direito Administrativo"43!.
Mas também contribuiu para essa influência do Direito Administrativo a jurisprudência do TJ. Por obra dela, o Dir~ito Comunitário, muito cedo, começou, para ganhar corpo e coerencta mterna,
a ir buscar ao Direito Administrativo, sobretudo da França e da
Alemanha, princípios gerais de Direito Administrativo de funda-
Ver o nosso Relatório sobre Direito Comunitário I, pgs. 27 e segs.
Ver QUADROS, A nova dimensão, pgs. 11 e segs.
430 Die Dogmatik des Verwaltungsrechts vor den Gegenwartsaufgaben der
Verwaltung, VVDStRL 1972, pgs. 193 e segs.
.
431 Ver QUADROS, A nova dimensão, loco cit., especIalmente, pg. 12.
428
429
418
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
mental importância para darem densidade e solidez ao antigo
Direito Comunitário43 '.
Depois, e por fim, o Direito Económico foi também uma forte
fonte de inspiração e de modelação do Direito Comunitário. Todo o
regime das "quatro liberdades" e traços importantes do Direito
da C,oncorrência fica~ar~ definidos nos Tratados institutivos por
mfluencta dlreta do Direito Económico, em várias das vertentes que
este pode assumir.
160. Ramos afins do Direito da União Europeia
Embora seja um ramo autónomo de Direito, o Direito da União
tem mantido, ao longo da sua progressiva e profunda elaboração
durante este mais de meio século, uma forte afinidade com outros
ramos clássicos do Direito, dos quais tem obtido, continuamente,
contributos que o vão enriquecendo. Por isso, este problema de
certo modo completa aquele que tratámos no número anterior.
O primeiro ramo afim do Direito da União continua a ser o
Direito Internacional Público. Repare-se em que os tratados internacionais ainda são a primeira fonte do Direito da União (só suplantados pelo ius cogens da União e internacional). Por exemplo, a
432 Ver a ob. cit., na nota anterior, pgs. 13 e segs. Sobre as raízes do Direito
Comunitário no Direito Administrativo veja-se, logo no início da integração, IpsEN,
sobretudo, pgs. 4 e segs., e, mais modernamente, de modo especial, KNÜTEL. Para
um apanhado geral do contributo dos Direitos Administrativos nacionais para a
elaboração do Direito Comunitário, ver, sobretudo, SCHWARZE, Droif Administrau!
Européen. Para uma visão global da interação dogmática entre o Direito Administrativo e o Direito Comunitário, ver a obra de SCHMIDT-AsSMANN e a dissertação de
l.-M. MAILLOT, La théorie administrafive des príncipes généraux du droit, Paris,
2003, sobretudo pgs. 179 e segs. e 208 e segs .. Sobre a evolução da Ciência do
Direito Administrativo em Portugal e a sua relação com a Ciência do Direito
Administrativo de outros Estados europeus, veja-se QUADROS, Gescllichte der
Verwaltungsrechtswissenschaft in Europa - Stand und Probleme der Forschung:
Portugal, in Geschichte der Verwaltungsrechtswissenschaft in Europa _ Stand und
Probleme der Forschung, ed. por Erk Volkmar Heyen, in lus commune, número
especial 18 (1982), pgs. 161 e segs.
419
o Direito da Uniâo Europeia
i
!
1
I
I
r
!
I'
I
I
,j
!
I
~;
I
!
recente revisão dos Tratados teve lugar através de um Tratado, o
Tratado de Lisboa. A ligação com o Direito Internacional Público
vai por isso, manter-se. Aliás, essa afinidade com o Direito Internacio~al Público é recíproca, porque o facto de, após a 2: Guerra, e,
particularmente, nos últimos vinte anos, o Direito I~ternacional
Público ter vindo a construir no seu seio áreas embnonanas de sohdariedade e de integração, como já explicámos logo na Introdução
deste livro, ficou muito a dever-se ao sucesso que foram obtendo a
integração europeia e a sua Ordem Jurídica.
O segundo ramo afim do Direito da União é o Direito Administrativo. E, na sequência do que atrás acabámos de dizer quanto ao
contributo que o Direito Administrativo tem vindo a dar à const~u­
ção do Direito da União, temos agora que a~rescentar q~e ele ~ o
ramo de Direito com o qual este tem mantido uma maIs estreIta
..
relação recíproca.
. _
Por um lado, a progressiva intensidade da aphcaçao do DIreito
da União por via administrativa, a nível da União, tem conduzIdo ao
nascimento e ao gradual enriquecimento do procedImento admInIStrativo da União, que é o principal objeto do antes designado Direito
Administrativo Comunitário, e que agora tem de ser chamado
Direito Administrativo da União, no sentido mais próprio desta
expressão. Por outro lado, a cada vez mais ampla e complexa aplicação do Direito da União pelos Estados-membros, na respetlva
ordem interna, pelas suas Administrações Públicas, acrescida da
necessidade da aplicação do Direito da União na ordem inte~a sem
prejuízo para o princípio da subsidiaried~de,mas co~ respeIto pelo
princípio da uniformidade da Ordem Jur~dl~a da Umao, tem leva~o
à conformação de zonas cada vez mars Importantes do DIreIto
Administrativo nacional pelo Direito da União, como o ato admInIStrativo os contratos públicos, os serviços públicos, as empresas
públic~s, a responsabilidade extracontratual da. Admini~t~ação
Pública, o procedimento administrativo, o contencIOso adn.umstrativo, e, de um modo geral, de vastas áreas do DIreIto AdmlmstratIvo
da Economia, do Direito Administrativo Financeiro, do DIreIto
Administrativo Social, etc. Chegamos, por este caminho, à noção de
Direito Comunitário Administrativo, que hoje tem de ser designado
420
Noçâo e caracterização do Direito da União Europeia
de Direito da União Administrativo, que não é o mesmo que o
Direito Administrativo da União, porque aquele exprime a progressiva comunitarização (hoje, europeização) dos Direitos Administrativos nacionais, isto é, a grande penetração do Direito da União nos
Direitos Administrativos estaduais.
Para compreendermos este fenómeno, temos que notar que nas
relações entre o Direito Administrativo e o antigo Direito Comunitário deu-se um movimento de ida e volta, que merece ser enfatizado. No início da integração europeia, o TJ, como se explicou, foi
buscar aos Direitos Administrativos nacionais, sobretudo aos Direitos Administrativos francês (ou seja, à jurisprudência do Conselho
de Estado'33) e alemão, a elaboração que estes vinham dando aos
princípios gerais do Direito Administrativo, à teoria do ato administrativo, a variadas questões do procedimento administrativo a
diversos aspetos do contencioso administrativo, e serviu-se di~so
para a criação pretoriana do antigo Direito Comunitário, que consiste numa das principais características deste ramo de Direito e
hoje, do Direito da União. Mais tarde, esse Direito Administrativo'
assim importado do Direito nacional pelo TJ, foi, depois de elabo~
rado e densificado por este, devolvido aos sistemas jurídicos estaduais e, concretamente, aos tribunais nacionais, ajudando, dessa
forma, à "reconstrução" e à "reelaboração", em suma, ao enriquecimento, dos Direitos Administrativos nacionais, na base da "convergência" entre eles. Foi uma forma de o Direito Comunitário retribuir
aos Direitos Administrativos estaduais o contributo que estes
~aviam dado ao seu nascimento, à sua formação e à sua elaboração.
E assim que deve ser interpretado O facto de o Conselho de Estado
francês e os tribunais administrativos alemães, espanhóis, italianos
e doutros Estados-membros, muito frequentemente se louvarem na
construção dada pelos Tribunais da União Europeia ao Direito
433 Reconhece-o o próprio Conselho de Estado: veja-se Droit coml1Umautaire et droit.français, Études et documents du Conseil d'État n. 033, 1981-82, pgs.
360 e segs.. A matéria encontra-se desenvolvida no Relatório francês, de l-E
FLAUSS, no livro de Schwarze, Le droit administratif sous l'influence.
421
o Direito da União Europeia
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
Administrativo'''. Em Portugal, os tribunais administrativos ainda
paração de Direitos"). Mas adotaremos aqui a terminologia
tradicional, inclusive na nomenclatura dos planos de estudos das
Faculdades de Direito dos países latinos.
O Direito Comparado é afim do Direito da União porque a
comparação dos Direitos é essencial à harmonização das Ordens
Jurídicas nacionais com o Direito da União, o que constitui um
requisito da afirmação do Direito da União como uma Ordem Jurídica comum aos Estados-membros e suscetível de interpretação e de
aplicação uniformes pela União e pelos Estados-membros.
O quinto ramo de Direito que tem de ser visto como afim do
Direito da União é o Direito Civil. E por uma razão óbvia.
O Direito da União foi buscar, sobretudo através da jurisprudência, vários princípios gerais que constituem repositório do
Direito comum e que vêm do Direito Romano pela mão do Direito
Civil'''. Por seu lado, o Direito da União tem sido largamente subsidiário dos sistemas jurídicos dos Estados-membros em matéria de
Direito das Sociedades, de Direito das Obrigações, de Direito dos
Contratos, de Direito da Responsabilidade. E, em sentido contrário
o Direito da União está na base de um movimento, que vai adian~
tado, no sentido da criação de um Direito Civil Europeu' 37 •
O sexto ramo que mantém afinidades com o Direito da União
é o Direito Processual. Isso resulta, naturalmente, do facto de as
garantias judiciais serem muito extensas no Direito da União, o que
fez desenvolver-se bastante, aliás, com base nos Tratados, o Direito
Processual Comunitário, hoje Direito Processual da União. Mas
resulta, também, do facto de a aplicação eficaz e uniforme do
Direito da União, que é imposta também aos tribunais dos Estados-membros, obrigar o Legislador e o Juiz nacionais a conformarem o
Direito Processual estadual e as práticas processuais internas com as
exigências da aplicação do Direito da União. A última e profunda
reforma do Contencioso Administrativo em Portugal, de 2002, constitui um bom exemplo do que se acaba de dizer.
não iniciaram esse caminho, mas só ganharão em fazê-lo.
O terceiro ramo afim do Direito da União é o Direito Constitucional. Não - que isto fique, mais uma vez, claro - que o Direito
da União seja a Ordem Jurídica dum Estado, assente numa Constituição formal. Mas o progressivo alargamento da Constituição
material da União está a levar a uma europeização das Constituições
estaduais, isto é, à progressiva harmonização das Constituições dos
Estados-membros com o Direito da União, particularmente no
domínio económico e financeiro, e, mais recentemente, também em
questões políticas. Essa harmonização das Constituições estaduais
com o Direito da União Europeia visa dois objetivos: por um lado,
garantir a efetividade do Direito da União na ordem interna dos
Estados, o que constitui um dever dos Estados; por outro lado, adaptar as Constituições nacionais aos Tratados da União, na versão que
lhes vão dando as suas sucessivas revisões. O Direito da União, por
seu lado, como se viu, atende às tradições constitucionais comuns
aos Estados-membros. Ou seja, existe um diálogo intenso e contínuo também entre o Direito Constitucional estadual e o Direito da
União, do qual os dois tiram proveito"'.
O quarto ramo afim do Direito da União é o Direito Comparado. Para nós, o Direito Comparado, em bom rigor, não é um ramo
de Direito: é um método jurídico, mais concretamente, um método
de comparação de Direitos. É por isso que, com muito maior exatidão, os alemães falam em "Rechtsvergleichung" (exatamente, "com434 Ver, sobre este ponto concreto, de modo especial, as obras de SCHWARZE,
especialmente Le droit administratifsous l'influence e The Convergence, SCHMIDT-ASSMANN, CASSESE., CHITI, CHm/GRECQ, GRECO, Il diritto comunitario propulsore
deI diritto amministrativo europeo, RIDPC 1991, pgs. 85 e segs., POTVIN SOLIS,
L'éffet des jurisprudences européennessur la jurisprudence du Conseil d'État
français, Paris, 1999, C. KNILL, The Europeanisation ofNational Administrations,
Cambridge, 2001, e os nossos A nova dimensão, pgs. 18 e segs., e A europeização.
A revista RTDE publica semestralmente uma crónica sobre a ''jurisprudência
administrativa francesa que interessa ao Direito da União", que ilustra profusamente o que se diz no texto.
435 Ver o nosso estudo Constituição europeia e Constituições estaduais.
422
Ver, muito especialmente, KNÜTEL.
Ver, por todos, C. CASTRONOVO e S.
valo europeo, 2 vais., Milão, 2007.
436
437
423
MAZZAMUTO,
Manuale di diritto pri-
o Direito da União Europeia
Note-se que o aprofundamento do espaço de liberdade, segurança e justiça, regulado hoje nos artigos 67.° e seguintes TFUE,
mais estreitará esta relação entre o Direito da União e o Direito
Processual nacional, quer Civil, quer Administrativo, quer Penal,
como, aliás, resulta desde logo, da parte final do artigo 67.°, n.o 1.
161. As dificuldades linguísticas no desenvolvimento do Direito
da União Enropeia
Os vinte e sete Estados-membros têm línguas oficiais muito
diferentes entre si, desde logo, do ponto de vista da sua génese.
Isto faz com que muitas vezes seja difícil exprimirem-se, em
sintonia, palavras, expressões e conceitos nas várias línguas oficiais.
Este fenómeno, que podemos chamar de multilinguísmo no
Direito da União, apresenta uma relevância enorme para aquele
Direito, que tem sido subestimada. Não se concebe que os Tratados,
o Direito derivado e a jurisprudência da União não digam o mesmo,
até ao mais ínfimo pormenor, nas diversas versões linguísticas
nacionais, sob pena de, em bom rigor, não ser idêntico o Direito da
União que se aplica a todos os Estados, o que seria um absurdo, para
além de se infringir o princípio da igualdade entre os Estados-membros e os seus cidadãos. Mas esse resultado pode não ser alcançado
se a terminologia jurídica, nomeadamente, os conceitos e os institutos jurídicos, forem objeto, entre as várias línguas oficiais dos
Estados-membros, de uma mera tradução literal (que, muitas vezes,
nem sequer é possível, dada a diferença de famílias jurídicas de
onde provêm esses conceitos e institutos) em lugar de uma sua interpretação jurídica. Os juristas linguistas, tanto da União, como dos
Estados-membros, devem levar esta questão muito a sério. E a redação dos novos Tratados da União podia ter servido de boa oportunidade para a União e os Estados-membros se redimirem de graves
erros que nesta matéria se têm vindo a cometer e a acumular. Mas
assim não aconteceu, ou só aconteceu em pequena parte.
Será muito grave (e contrário ao respeito que, pela força dos
próprios Tratados, os Estados se devem a si próprios) se os poderes
424
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
públicos ou os cidadãos de um Estado-membro, tiverem de invocar
a versão oficial de uma fonte escrita de Direito da União (desde
logo, dos Tratados) em língua diferente da respetiva língua nacional, para desse modo fugirem aos erros da negligenciada versão
oficial da mesma fonte na respetiva língua nacional.
O próprio TI tem sido sensível a esta questão.
Sem deixar de partir da ideia de que, em princípio, todas as
versões linguísticas têm o mesmo valo!"''', o TJ entende que, quando
uma versão comportar uma "ambiguidade", ela deve ser interpretada "num sentido conforme com as outras versões linguísticas"439.
Por seu lado, e concretamente quanto aos regulamentos da União, o
TI, através de uma jurisprudência constante, vem decidindo que "a
necessidade de uma interpretação uniforme dos regulamentos
comunitários exclui que, em caso de dúvida, o texto de uma disposição seja considerado de modo isolado e exige, ao contrário, que
ele seja interpretado e aplicado à luz das versões noutras línguas
oficiais"440.
Infelizmente, o Estado Português e os juristas-linguistas de
língua portuguesa nos órgãos da União têm subestimado o rigor
jurídico na versão portuguesa das fontes do Direito da União, para
começar, dos próprios Tratados. Já mostrámos isso atrás, quanto a
várias matérias, por exemplo, quanto à confusão entre "órgãos" e
"instituições". E ao longo deste livro iremos perceber a relevância prática do que acabámos de dizer quanto também a outros
domínios441 ,
'" Ae. 20-11-2003, Kyoeera, Proe. C-J52/0J, pontos 31-33.
'" Ae. 22-4-97, Road Air, Proe. C-31O/95, CoI., pgs. J-2.229 e segs.,
ponto 32.
440 Ver, sobretudo, o Ac. 12-7-79, Koschriske, Proc. 9/79, Rec., pgs. 2.717 e
segs., ponto 6.
441 Ver sobre a matéria deste número também LOUlSIRONSE, pgs. J11-112 e,
especialmente, HEUSSE, Le multilinguisme ou le défi caché de I' Unioll européenne,
RMC 1999, pgs. 202 e segs., MILlAN-MASSANA, Le régillle linguistique de I'Unioll
européenne et l'incidence du droit communaufaire sur la mosafque linguistique
européenne, RDP 1995, pgs. 485 e segs., e POZWIJACOMEITI, Multilillgualisme and
the harmonisation 01 europeanlaw, Oxford, 2006.
425
o Direito da União Europeia
162. Natureza J'urídica do Direito da União: euunciado da
questão
Para se compreender o Direito da União é indispensável estudar-se a sua natureza jurídica. No já longínquo ano de 1984 demonstrámos a importância desta questão e tomámos, de modo
desenvolvido, posição sobre ela'42. Depois, nas duas antenores edl:
ções deste livro, atualizámos o nosso pensamento e .adaptámo:lo a
índole deste livro, sem prejuízo de se manterem atuals as prenussas
de que partimos em 1984. Agora, vamos levar em conta o pouco que
o Tratado de Lisboa veio fornecer de novo sobre este ass~~to.
Hoje as correntes que se pronunciam sobre esta matena, e que
já foram muito diversificadas, podem ser agrup~~as em duas, ~o~
maior ou menor rigor terminológico: a corrente mternaclOnahsta
e a corrente "federalista". Vamos examiná-las separadamente.
163. Continuação: A) A tese internacionalista. Crítica
Para a corrente internacionalista, o Direito da .União ~ec.on­
duz-se em maior ou menor grau, ao Direito InternacIOnal Pubhco.
O gra~de argumento em que ela se apoia é o de. que, ontem as
Comunidades, hoje a União, foram cnadas por classlcos tratados
internacionais e continuam a ter estes como sua pnmelfa fonte.
Designadamente, esses tratados só entram em vi~or se ratlÍ1cad~s
por todos os Estados signatários. Por isso, as relaçoes entre a Umao
e os Estados-membros são relações que assentam na soberama dos
Estados. Os seguidores desta corrente, de modo mais. ou ~enos
confesso, não aceitam, portanto, as relações de subordmaçao que
sujeitam os Estados e os seus cidadãos à Un~ã~ e, partlcul~ffilente,
a prevalência do Direito da União sobre o_s Direitos naCIOnaiS, especialmente, sobre as respetivas ConstltUlçoes.
.
Que dizer desta corrente? Que ela se encontra em progressIvo
declínio.
442
Ver a nossa dissertação de doutoramento, dedicada especialmente a este
tema.
426
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
De facto, o Direito Internacional clássico e, portanto, a Teoria
Geral dos Tratados Internacionais, não conseguem explicar traços
essenciais do Direito da União: por exemplo, a aplicabilidade direta
de algumas das suas normas e de alguns dos seus atos na ordem
interna dos Estados; o primado do Direito da União sobre os Direitos nacionais, ta! como a jurisprudência da União o construiu com a
aceitação, hoje pacífica, dos tribunais constitucionais nacionais e,
por isso, com o seu acolhimento, também pacífico, pelo Tratado de
Lisboa; em suma, o fenómeno da subordinação, que, como vimos,
se encontra no âmago do conceito de integração, e que leva ao nascimento, na titularidade da União, de um poder político integrado.
Mas, por outro lado, a tese que estamos a apreciar também
falha na caracterização do próprio Direito Internacional Público.
Como já prevenimos logo na Introdução deste livro, o moderno
Direito Internacional, nascido depois da 2.' Guerra (por oposição ao
Direito Internacional clássico, que basicamente era o velho Direito
Internacional da Paz e da Guerra), já não assenta necessariamente na
soberania dos Estados e no individualismo internacional ditado por
ela, para, progressivamente, se deixar penetrar pelos princípios da
solidariedade, da coesão e, portanto, da integração, e, por conseguinte, para abarcar no seu seio relações de subordinação. Isso
resulta do facto de o moderno Direito Internacional ter vindo a
absorver, cada vez mais, matérias que, em termos clássicos, constituiam exclusivo da soberania dos Estados. Essa evolução acentuou-se depois da queda do Muro de Berlim e, consequentemente,
do termo da guerra fria, e tem vindo a assumir, sobretudo, os seguintes traços: o alargamento do ius cogens, especialmente à custa da
progressiva universalidade dos Direitos do Homem; o reforço da
salvaguarda dos direitos e das liberdades fundamentais do indivíduo, sobretudo das minorias étnicas e culturais, e, para o efeito, a
aceitação pela Comunidade Internacional do seu dever (e não só
direito) de ingerência na ordem interna dos Estados (embora com
contornos ainda por definir) para fins de assistência humanitária; o
estabelecimento de um sistema de repressão dos crimes internacionais, ainda que subsidiário em relação ao Direito Penal dos Estados,
culminando com a criação do Tribunal Penal Internacional; o alas427
o Direito da União Europeia
tramento progressivo do Direito Internacional, na base da solidariedade, a áreas novas, como o Ambiente, a Energia, o Mar, a
exploração espacial, o combate à criminalidade organizada e ao
terrorismo, as alterações climatéricas, a globalização, etc,
Mais modernamente, e já na viragem do século XX para o
século XXI, o Direito Internacional começou a ser visto como a
Ordem Jurídica da Nova Ordem Mundial, portanto, como um
Direito Internacional Universal em formação, Esse Direito Internacional Universal é fruto do "constitucionalismo emergente da
Ordem Mundial"'43. Essa constitucionalização do Direito Internacional quer significar que há nele cada vez mais áreas que vão progressivamente obtendo o consenso dos Estados à escala mundial, e
que são, hoje, sobretudo três: a proteção dos direitos fundamentais,
inclusive das minorias étnicas; a globalização, que, estando a ser,
como se disse, prosseguida pela Organização Mundial do Comércio,
se pretende que seja levada a cabo com respeito pela Pessoa
Humana44'; e o combate à criminalidade organizada e ao terrorismo,
neste caso, sobretudo na sua nova forma de terrorismo global.
Quanto a este último ponto, há que ter consciência de que os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque vieram
assinalar uma nova fase na evolução do Direito Internacional, em
cujo conteúdo vai pesando, cada vez mais, ele ter de ser uma Ordem
Jurídica da defesa da Liberdade contra o terrorismo.
Portanto, não só não se consegue explicar o Direito da União
reconduzindo-o ao Direito Internacional clássico, como, pelo contrário, é este que tem vindo a deixar-se penetrar cada vez mais por
princípios e regras de integração e de subordinação,
443 A expressão, muito feliz, é de MCWHINNEY, The International Court of
Justice and the Western Traditioll of International Law, Dordrecht, 1987, pgs. 55
e segs.. Sobre o Direito Internacional Universal ver o que escrevemos, com base,
sobretudo, em VERDROSS, em A protecçüo do propriedade privada pelo Direito
Internacional Público, cit., pgs. 548 e segs.. Veja-se, também, a Parte III deste
livro, especialmente, o 0. 0 274.
444 Veja-se o nosso recente estudo Global Law, pgs. 330 e segs..
428
Noção e caracterização do Direito da U11100
.- Europew
'
164. Continuação: B) A tese federalista. Crítica
Ao contrário para os ad t d
um Direito federal embora aep ~s ,~sta tese o Direito da União é
varie de autor para'autor Esta m nSI ade da defesa desta corrente
ganhar novos adeptos, se'mpre c~::~~~:m vmdo a ~dorçar-se, e a
a afirmar a possibilidade de a
,2 E goda Hlstona, se começa
tituição",
mao uropeIa VIr a ter uma "Cons-
ti
' ,
Todavia, continua a ser fácil de
da União ainda não é u D"
fi monstrar-se que o DIreIto
um dia se se cum'
m nelto ederal. Poderá vir a sê-lo
1948 '
pnr a promessa feita no Congresso de Ha' d
_
Ia, e
, e no Plano Schuman de a '
bocar numa Federação Euro " M mtegraçao europeia desemestádio,
pela, as amda não chegámos a esse
O Direito da União não é Direito fed
e~al, para começar, porque
ainda não se demonstrou que pode h
Ora, a União Europeia ainda não é aver ederallsmo sem Estado.
seria necessário que tivesse uma C um Est~do. Para que o fosse,
Ora não é difícil d
onstItmçao em sentido formal,
,
emonstrar-se que a União e b
h"
ampla Constituição material, como mostr" m ~ra ten a Ja uma
uma Constituição formal no sentido
amos, ,nao possm amda
dos Estados dá a esta
'_
que o Dlfelto Constitucional
expressao.
Para que a União Europeia tivesse
C
"_
seria necessário que ela tives
d
uma. onstltmçao formal
não o tem, e por duas razões. se po er constItumte próprio. Ora, ela
Não o tem, antes de mais
U ,tido jurídico um ovo
' porque a mao não possui, em sentituinte. De factoPna-o ehu,ropeu, que seria o titular desse poder cons,
a um povo europe'
'd d '
como vimos não é uma cidad'
..
u. a Cl a ama europeia,
anpla autonoma da cidadania estadual.
E a prova disso está e
,
m que o arlamento Eu
ropeu, apesar de ser
eleIto por sufrágio direto e unive I _
mas, sim, os "povos dos Estad rsa, nadO representa o povo europeu
' ,
os reum os na Comunid d "
dIZIa
o artigo 189 o p 1 CE
a e , como
" ar.,
, antes do Tratado de Lisbo
que. para o efeito é o mesmo , os" Cl'dadaos
- d
a,d'ou, o
a União"
hoJe o Tratado UE no seu arti 1 o o
'"
,como Ispõe
mos referência a isto.
go 4., n. 2 (Itabcos nossos), Já fize429
o Direito da União Europeia
Em segundo lugar, justamente porque a União não tem po~o
próprio, povo europeu, o poder constituinte na Umão ~uropela nao
cabe a ela própria, mas aos Estados. Amda hOje, e nao obst~nte o
artigo 48.° UE ter estabelecido processos diferentes de revlsao dos
Tratados, acabam por ser sempre os Estados a ter a palavra deci~iva
nessa revisão, porque esta, em qualquer caso, só entra em vigor
depois de obtido o acordo de todos os Estados-membros, em conformidade com as respetivas normas constitucionais - é o que dispõe O
novo artigo 48.°, n. o 4, par. 2, n.O 6, par. 2, e n.o 7, par. 2, UE. Nes!e
ponto, continua a ser verdade, hoje como ontem, q~e_os Estados sao
os "donos dos tratados". Ou seja, o processo de revlsao dos Tratados
continua a ser, no essencial, e apesar das especificidades dos procedimentos regulados no referido artigo 48.° UE, um processo de
Direito Internacional.
Todavia, para além deste argumento de base que afasta O
Direito da União de um Direito federal e, portanto, a União Europeia de uma Federação, há outros argumentos jurídicos mai~ específicos e concretos que vão no mesmo sentido dessa conclusao.
Em primeiro lugar, para que a União tivesse natureza estadu~l
seria necessário que ela tivesse capacidade jurídica plena ou Ilimitada (a "Allzustandigkeit", de que falam a doutrina e ajurisprudência constitucionais alemãs). lá nos referimos a ISSO neste livro. Ora,
e como então vimos, a União tem a sua capacidade jurídica limitada,
desde logo, pelo princípio da especialidade, por força de disposição
. '
expressa dos Tratados.
Depois, se a União fosse uma Federação vigorana nela o prmcípio Bundesrecht bricht Landesrecht. Esse princípio, que, embora
constando expressamente só da Constituição alemã (artigo 31.°),
pertence a quase todos os sistemas federais, prescreve a nulidade (se
não a inexistência jurídica) da norma estadual que contrarie a norma
federal. Ora, não é esse o regime que, por via da jurisprudência do
TI o Direito da União definiu para as relações entre a norma esta-i;
du~1 e a norma da União. A sanção para a norma estadual que viole'
a norma da União é a da inaplicabilidade daquela, não a da s~a.
nulidade ou da sua inexistência jurídica. Dito doutra forma, a sanção;
situa-se no domínio da eficácia, não no da validade, ou da existência
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
jurídica. Foi o que o TI deixou claro no caso Súnmenthal445 , com
reaçoes concordantes da maior parte da doutrina. Voltaremos
adiante a este assunto.
.
Por fim, e em terceiro lugar, a União não adotou o sistema de
Integração judici".-l, característico dos sistemas federais. Ou seja, os
Tnbun~ls da Umao nem são tribunais de revista de sentenças de
tnbunals naCIOnaiS, mesmo das que apliquem Direito da União nem
têm competência para julgar da validade ou da existência jurídica de
normas ou atos de Direito nacional. Até hoje o Direito da União
nunca mcorporou uma disposição de carácter geral do género da que
haVia Sido pr_oposta para o artigo 43.° do Tratado Spinelli, que confena competencla ao TI para, corno tribunal de recurso, anular sentenças de tribunais nacionais, proferidas em última instância, que
recusassem sU,brr:eter urna q~estão prejudicial ao TI ou não respeitassem um acordao prejUdl~lal do TI. A única exceção hoje à regra
segundo a qual os Tnbunals da União não têm competência para
con~e.cer da validade de normas ou atos de Direito nacional é a
adnutida pelo artigo 14.°, n.o 2, par. 2, do Protocolo relativo aos
Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) e do
Banco Central Europeu, aprovado na revisão de Maastricht como
anexo ao Tratado CE, e que se mantém, com a mesma redação,
corno Protocolo n. o 4 anexo ao Tratado de Lisboa. Daqui a pouco
voltaremos a este assunto. Nada do que ficou dito é prejudicado pelo
facto de o TIUE para, a título prejudicial, se pronunciar sobre a
validade de normas de Direito da União, poder ter de tomar como
referência as normas de Direito nacional que delas eventualmente
diVirjam. As relações entre os Tribunais da União e os tribunais
e~taduais_são, nesse caso, relações de mera cooperação judiciária,
nao relaçoes de mtegração judicial446
.
Todavia, se o Direito da União ainda não é Direito federal é
megá~el que ele já apresenta algumas importantes característidas
federaiS, que se têm vindo a reforçar progressivamente, inclusiva-
"" Ae. 9-3-78, Proe. 106n7, Rec., pgs. 629 e segs.
Ver QUADROSIMARTlNS, sobretudo pgs. 42-43.
446
430
431
o Direito da União Europeia
mente com o Tratado de Lisboa. E elas são, fundamentalmente, as
seguintes.
Em primeiro lugar, a moeda única, criada pelo artigo 109.0 -L
do Tratado CE, na redação que lhe deu o Tratado de Maastricht, ao
qual corresponde hoje o artigo 3.°, n. o 4, UE, completado pelo artigo
133. TFUE. Já para os Romanos, o poder de cunhar e emitir moeda
própria consistia numa das principais expressões da soberania de
um Estado.
Depois, a progressiva transformação da Comissão no Governo
da União Europeia.
A aprovação e a investidura da Comissão, inclusive do seu
Presidente, pelo Parlamento Europeu (que já examinámos na
Parte I deste livro), tal como ela se encontra regulada hoje no artigo
17.°, n.O' 3 a 8, UE, consiste num outro traço federal, porque representa um simile da investidura de um Governo estadual pelo Parlamento. Embora não a tenham ainda perdido por completo, os
Estados têm cada vez menor intervenção na escolha dos membros
da Comissão, inclusivamente, do respetivo Presidente. É o Parlamento Europeu que aprova e investe a Comissão, mesmo se é verdade que a deliberação final do Parlamento se encontra sujeita a
uma posterior "nomeação" pelo Conselho Europeu (artigo 17.°,
n. ° 7). Inclusivamente, o Presidente é escolhido em função dos
resultados da eleição para o Parlamento Europeu (o mesmo preceito). E se a isso acrescentarmos que o Presidente orienta e coordena a atividade da Comissão (o que hoje consta do artigo 17.°, n.o
6, UE), numa situação próxima da de um Chefe do Governo de um
Estado, vemos que os Tratados têm aproximado progressivamente a
Comissão de um Governo estadual. Essa aproximação será ainda
maior quando, a partir de I de novembro de 2014, passar a haver
Estados que, de todo, não designarão nenhum Comissário, porque o
número de Comissários passará a ser inferior ao número de Estados-membros. Desse modo, a Comissão ainda mais se afastará dos
Estados-membros.
De seguida, é também um traço federal o poder legislativo
reconhecido ao Parlamento Europeu que se enquadra no seu poder
de co-decisão, dentro do processo legislativo ordinário. Já estudá0
432
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
mos isso atrás. Esse poder merece particular destaque como traço
federal porque, através dele, a criação do ato legislativo da União
cabe conjuntamente ao órgão composto por delegados dos Estados
e que, como tal, representa os interesses dos Estados (o Conselho),
e ao órgão eleito por sufrágio direto e universal dos cidadãos europeus e que representa estes (o Parlamento Europeu).
Outro traço federal, que se aprofundou ainda mais com o Tratado de Lisboa, como se viu atrás, é a progressiva extensão da maioria qualificada em substituição da unanimidade nas deliberações do
Conselho.
A seguir, tem de ser considerada como uma característica federai do Direito da União o disposto no há pouco referido artigo 14.°,
n. ° 2, par. 2, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu. O artigo 7.°
daquele Protocolo assegura a independência dos bancos centrais
nacionais, que compõem O SEBC, e dos respetivos órgãos de decisão. Na sequência disso, o artigo 14.°, n.o 2, par. 2, define as condições em que um governador de um banco central nacional pode ser
demitido pelos órgãos do respetivo Estado. E, logo a seguir, o
mesmo preceito admite recurso de anulação para o TJUE, com fundamento em violação de lei, inclusive, violação dos Tratados, do ato
nacional de demissão do governador do banco central nacional.
Temos aqui o único caso (aliás, esquecido por grande parte da doutrina) em que, como é característico de um Estado federal, um ato
de Direito nacional se encontra sujeito ao controlo direto da sua
legalidade por um Tribunal da União, em termos tais que este goza
de competência para julgar da validade daquele.
Por fim, tem de ser considerado também uma característica
federal da União o facto de os tratados terem passado, com o Tratado de Lisboa, a incorporar uma Carta dos Direitos Fundamentais
da União, que tem força obrigatória para a União e para os Estados-membros. Já se disse atrás que ela, não obstante constar de uma
Declaração anexa ao Tratado de Lisboa, tem a mesma força jurídica
que os Tratados, por expressa disposição do artigo 6.°, n.O I, par. I,
parte final, UE. Ora, a constitucionalização da Carta e, por via disso,
a inclusão na Constituição material da União de um catálogo pró433
o Direito da União Europeia
prio e obrigatório de direitos fundamentais têm de ser vistas como
traços federais.
165. Continuação: C) Posição adotada
Qual é a nossa posição perante as duas correntes em pr:sença?
S 'certo que o Direito da União continua a ter a sua ase em
e~
. . 1 ai como a União, encontra-se num pro_ 'á apresenta alguns
tratados mternaClOnaIS, e e, t. . r
cesso de progressiva constItuclOna lzaçao e J
claros traços federais.
.
. is em causa isto é, o TUE e
De facto os tratados mternaClOna
.'
.,
sTFUE dão ~orpo a uma Constituição matenaJ que, corr;~ Ja mo
o"
1447
la sua vastidão, pelo seu conteu o, e por
tramas na Parte
, pe d 10 olítico de inspiração, se aproxIma
tomar o Estado com? 10<: e est~dual como nunca até agora havia
,
I'd de o TUE e o
muito de uma ConstItmçao
.
. r ao dos Estados. Na rea, a ,
sucedIdo no plano sup~no Ih
b' t,'vos proclamam os valores
E'
UE defmem- e os o je
,
~:a
~~~:a:u, e;tab:leCemtr:se~~:s:str~s~~~~~~ ~:t:~I:~~~:d:
repartição de atr;bmçoes e\ .anal para ela poder cumprir as suas
um aparelho orgamco e mstI ~CI . da Ordem Jurídica da União,
nciam as fontes lormaIS
funçoes, enu
..
f ndamentais dos cidadãos europeus,
salvaguar.dam os dIreItos u
C rta dos Direitos Fundamentais,
a_ do Direito da União, criam
ainda maIS quando m~orporam
regulam a interpretaçao e a ap IC:~:O a assegurar o respeito pelo
um sistema de garantIas com VI
.
_ têm
Direito da União. Há muitas Constituições estadUaIS que nao
t
esta amplitude.
I
rt to a própria
Essa Constituição material (e, com e a, .po an " .
União) apresenta já fortes características federaIS, que atras ficaram
referidas....
ai do Direito da União reside, portanto, no
A ongmalIdade atu
tratados de Direito Internacional
facto de ele, na forma, as;e;tar e~m "Constituição Europeia") mas,
(e, por aí, ser prematuro a ar-se
447
Sobretudo, supra, 0. 0 31.
434
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
no plano material, brotar de uma Constituição, e, nessa medida
- mas só nessa medida -, ele poder ser visto como Direito Constitucional. E é nesse sentido, e só nesse, que é correto falar-se na
"constitucionalização da União Europeia" e na "emergência de um
Direito Constitucional para a Europa"'48. Será um erro sairmos
destes parâmetros rigorosos e banalizarmos a expressão "Constituição Europeia".
Para se sintetizar esta construção chegou a pensar-se, como já
vimos, em qualificar o Tratado que ia sair da última revisão dos
Tratados UE e CE como Tratado que estabelece uma Constituição
ou Tratado Constitucional. Esta qualificação tinha de ser esclarecida. Se por Tratado Constitucional se entendia um Tratado que
entrava em vigor e obrigava todos os Estados signatários sem que
fosse necessária a sua ratificação por todos eles, nesse caso o referido Tratado, pelas razões que já vimos atrás, não poderia ser visto
como Tratado Constitucional. Mas a Tratado Constitucional podia
ser dado um entendimento mais modesto, que se adequasse ao TUE
já no seu estado anterior ao Tratado de Lisboa, isto é, que desse
corpo à referida Constituição material.
O Tratado de Lisboa também aqui recusou o uso dos vocábulos
"Constituição" ou "Constitucional". Mas podemos dizer, à semelhança do que já fazíamos nas edições anteriores com o TUE e o
Tratado CE após a revisão de Nice, que os Tratados UE e TFUE
podem ser qualificados, em globo, de tratados constitucionais, na
medida em que têm a forma e a natureza de tratados, o conteúdo
material de uma Constituição e muitas características federais'49.
448 Assim, sobretudo, a dissertação de GERKRATH, e, também, BLANCHARD.
Em Portugal, ver CANOTlLHO, "Brancosos", cit., pgs. 255 e segs., e ANA MARTINS,
com ligeiras divergências - ver pgs. 123 e segs.
449 Para maiores desenvolvimentos sobre o nosso pensamento acerca da
matéria deste número, veja-se, de modo especial, a nossa dissertação de doutoramento, sobretudo, pgs. 179 e segs.. Para uma compreensão mais aprofundada e
hodierna da problemática suscitada na posição que acima adotámos, ver, especialmente, das obras gerais, VON BOGDANDY, BORCHARDT, SIMON, pgs. 73 e segs., JACQUÉ, pgs. 95 e segs., e GARCiA DE ENTERRfA, e, da bibliografia especial sugerida para
este Capítulo, BLANCHARD, CANCELA OUTEDA, LLOPIS CARRASCO, DEHOUSSE, bem
435
'I'
o Direito da União Europeia
Noção e caracterização do Direito da União Europeia
.
federal novo
Note-se que não consideramos
como traço
_
_ oo que
17
. d do Direito da União dlspoe a Declaraçao n.
,
de Lisboa. E por duas razões: primeiro,
sobre o
anexa ao ra ~ o
ressamente o reconhece, se hrmta a
essa Declaraçao, como el~ e~p dência da União já antes firmada;
codificar, em lei escnta, a Junspru
.
d
Ih
eremos o
.
mo dissemos e maIS tar e me ar v
,
'd
'
t
uído
pelo
TJ
não
é
um
primado
depOIs,
porque,
co
primado, tal como tem SI o cons r
,
federal.
p~m~ ~
po~que
166. O âmbito espacial de vigência do Direito da União
Depois do Tratado de Lisboa, o âmbito espacial de ,Vigêdnciap~~
.
é o mesmol' do dnos
ommlO e a
Direito da União Europeia ou, o que
artigos 52.0
cação territorial dos Tratados encontra-se regu a o
UE e
;~.oc:~~·:~~ratados
aplicam-se a todos os Estados-
. 52 ° o I UE)
-membros (artigo .: n. , . '349 ° TFUE permite uma aplica,
.
Além diSSO, porem, o artigo.
ção seletiva dos Trata~osao~ departamentos ~~ra:~r~n:::~~~~~s~~
(DOM na terminologia Jundlca francesa), q , p.
b'
. d os naquele preceito, e tam em,
Lisboa,' passaram a estar enuncia
-----:--,:---:-:
The Constitution of Europe, Cambridge, 1999: DENI·
como tambem J. WEILLER,
,
"F
ve de l'Unio/1 européenne, cIto, e 1.
ZEAU, L'idée de puissance pub~lque al,l epreu
t la nature des COl1ummautés
. d
UVOlr pub tC commun e
MOLINIER, La notlO/1 e po
1
Em Portugal ver CANOllLHO,
'
Mél ges Isaac pgs 19 e segs.
,
._
europeennes, . .an I cit pgs
, 825- 826 , que de fende que J'á existe na Umao .
Direito ConslIfuclOna, . , .
.
" (matéria à qual voltaremos
Europeia u~ "poder constituinte ~vo~~~v~oe~~:~~ da União sobre os Direitos
quando, adiante, estudannos o pnrn. ".
. e LUCAS PIRES, pgs. 55 e segs.;
.
' ) ANA MARTINS A naturezapmdlca, Clt.,
,
,
l' _
nacionaiS
,
,
.
t
.
preender o movlmen o atual de constltucrona Izaçao
TodaVia, para se com
,d'
é ecessário lermos os pioneiros dessa
União Europeia e da sua ~rdem Jun lca, F ~ÜNCH Prolégomenes à une théorie:";':
orientação, de entre os qUaIS se destacam é'
RDE 1961 pgs 127 e segs.; e:<
II d Communautés Europ ennes,
,.
'd .•. i
COl1stitutionne e es
...
d Tratados institutivos das Comum a- J
C.
F. QPHÜLS (um dos .p,rmclp;s :ut°rftre~erO~emeillschaftsverfaSSUllg, Festschrift
..
des), Zur ideengescluc lten er un
Hallstein, 1966, pgs. 387 e segs.
436
dentro da União Europeia, aos Arquipélagos dos Açores e da
Madeira e às Ilhas Canárias. Esses territórios gozam do estatuto de
favor de "regiões ultraperiféricas" (artigo 349.°, par. 3, TFUE). As
razões dessa aplicação seletiva (mesmo a territórios que se situam
fora e muito longe do continente europeu, note-se) reconduzem-se à
especial "situação social e económica" desses territórios, que se
deve, sobretudo, à sua pequenez geográfica, à sua insularidade e ao
seu afastamento, como o demonstra o artigo 349.°, no par. I. Os
pars. 2 e 3 do mesmo artigo definem para esses territórios um
regime especial de Direito da União que, todavia, e como aí se estabelece, não pode pôr em causa a integridade e a coerência do sistema jurídico da União.
O artigo 355.°, n.o 1, TFUE, vem dizer ontra vez que os Tratados se aplicam àqueles territórios.
Os Tratados aplicam-se também às Ilhas Áland, em consequência da declaração nesse sentido produzida pela Finlândia a
seguir à sua adesão à União, sem prejuízo das reservas expressas
pelo Protocolo n. ° 2 do respetivo Ato de adesão. Di-lo o artigo 355.0,
n,04, TFUE.
Aos países e territórios ultramarinos (PTOM, na tenninologia
francesa) cuja lista consta do Anexo II ao TFUE aplica-se o regime
de associação definido na Parte IV daquele Tratado. Também por
aqui, como se vê, os Tratados aplicam-se a possessões ultramarinas
que ficam fora, e porventura muito longe, do continente europeu,
Todavia, o Tratado não se aplica, de todo, aos países e territórios
ultramarinos que mantenham relações especiais com o Reino Unido
e que não figurem nessa lista, como não se aplica às Ilhas Faroé e às
zonas de soberania do Reino Unido em Chipre. E só se aplica às ilhas
Anglo-Normandas e à ilha de Man na medida em que tal seja necessário para assegurar a aplicação do regime para elas previsto no Tratado de adesão do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca à CEEA.
Tudo isto encontra-se disposto nos n.O' 2 e 5 do artigo 355,° TFUE.
Mas encontramos dois casos talvez ainda mais importantes de
aplicação extraterritorial dos Tratados,
Primeiro, eles aplicam-se aos "territórios europeus cujas relações externas sejam asseguradas por um Estado-membro", o que se
437
o Direito da União Europeia
refere aos Estados exíguos, isto é, o Mónaco, quanto à França, e a
República de São Marina, quanto à Itália. Depois, eles aplicam-se,
.
- ' o Europeu'5O ,
em determinadas maténas,
ao Espaço E conomlC
criado como vimos na Introdução deste livro, pelo Tratado do
Porto'de 1992, embora a recusa da Suíça em ratificar aquele Tratado ~ a adesão da Áustria, da Suécia e da Finlândia à UE, em 1995,
tenham retirado grande parte da importância àquele Espaço.
Com o alargamento da União Europeia a nov.os Estados, .0
problema da definição das fronteiras físicas. d~ Umão ~~ por vIa
disso, o domínio da aplicação terntonal do DIreIto da Umao dentro
e fora do continente europeu vão ganhar uma redobrada Importância.
CAPÍTULO II
AS FONTES DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Bibliografia especial: veja-se esta matéria tratada em grande
parte das obras de carácter geral que indicámos, com vasta bibliografia
adicional nelas sugerida, por ex., em lAcQuÉ, pgs. 485 e segs., RlDEAU,
pgs. 61 e segs.;
SIMON,
pgs. 301 e segs., e
ISAAC,
pgs. 133 e segs., bem
como nos Comentários aos Tratados relativamente aos preceitos respeitantes às fontes.
167. Introdução
Depois de termos caracterizado o Direito da União Europeia é
altura de estudarmos as suas fontes formais, ou seja, os modos da
sua criação e revelação. É o que vamos fazer neste Capítulo.
Dessas fontes, umas são fontes escritas, outras são fontes não
escritas.
SECÇÃO I
o Direito da União Europeia originário
168. Conteúdo
450
Assim, por ex.,
SIMON,
pg. 33.
438
o Direito da União Europeia originário ou primário constitui a
primeira fonte do ordenamento jurídico da União. Ele é composto
439
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia
pelos Tratados das ex-Comunidades e da União, isto é, desde log~.·,
os Tratados que instituiram as Comunidades em 1951 e 1957, niâ~',
também por todos os atas jurídicos que os modificaram: ou seja,.Qk
Tratados de revisão (dos quais os últimos foram os de Maastri~'"
de Amesterdão, de Nice e de Lisboa), os Tratados ou Atas de ade
e os demais atas modificativos, tenham tido a forma ou a designal)~'
de protocolos, decisões, etc. m .
169. Natureza e regime jurídico dos Tratados da União Europc{
Os Tratados da União Europeia (designando nós aqui desQ!
forma sinlética todos os Tratados que compõem o Direito originá;
rio) são tratados internacionais e, como lais, encontram-se sujei\9#
ao regime jurídico geral dos tratados internacionais, concretamen(
à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969.
Isso não exclui que os Tratados da União apresentem, <len:,:
da teoria geral dos tratados de Direito Internacional, algumas esp'
cificidades. Elas resultam, desde logo, do facto de, enquanlo qu~ ..
tratados internacionais, como fontes clássicas do Direito Inlernacf
nal, visam disciplinar e adaptar interesses divergentes entre Est
(assentes no individualismo internacional das respetivas soberani
ou no seio de Organizações Internacionais, os Tratados da Uni
pretendem aprofundar progressivamente um regime jurídico dei
gração, fundado na solidariedade e não no individualismo inte
cional. Já vimos isso neste livro.
Com base nessas especificidades dos Tratados da União, est'
são concebidos, como vimos, como Constituição material da Uni
com o exalo sentido que atrás demos a esta expressão. Daí que n
seja difícil ver neles a fonte primária, a primeira fonte, do Direito
União Europeia. O reconhecimento, aos Tralados da União, da
prevalência sobre todas as demais fontes do sistema jurídico
União, não se enconlra expressamente definido pelos Tratados (de
s
451 Uma lista completa dos atos que compunham o Direito Comunit
originário antes do Tratado de Lisboa pode ver-se em RIDEAU, pgs. 105 e- segs:;;
440
w;iro da orientação, que até hoje os autores dos Tratados têm adotado,
~~e fugir à definição expressa de uma hierarquia das fontes do
mPireito da União Europeia), mas decorre do artigo 263.° TFUE, que
~,confere ao TIUE o poder de anular os atas de Direito derivado que
!!Çontrariem os Tratados, e do artigo 218.°, n.o II, TFUE, que estabe?:+Ieceque, no caso em que o TI entenda que um projeto de acordo
";,intemacional, que a União pretenda concluir, viola os Tratados da
;'.!Jl1ião, esse acordo só poderá ser concluido após a alteração do proJ:jeto de acordo ou após a revisão dos Tratados da União que estejam
,em vigor.
Foi neste sentido de lei fundamental da União e de sua pri'meirafollte que, como vimos atrás, o TI cedo passou a qualificar os
antigos Tratados Comunitários como a "Carta Constitucional" das
:':':Comunidades, e a doutrina passou a caracterizá-los como a "Cons:;(ituição Económica" das Comunidades.
,,,,!,,,, Hoje, todavia, temos de ir muito mais longe na caracterização
'*::~osTratados da União, definindo-os como Constituição em sentido
material da União. Já explicámos atrás o âmbito muito vasto que
0;temos de conceder à Constituição material da União, e que encontra
#i'a'sua base nos Tratados.
",,,,. Todavia, em sentido formal, e tal como também ficou provado,
:.;'osTratados da União são tratados internacionais.
t/'
A revisão dos Tratados da União
ti
Antes do Tratado de Lisboa, o processo de revisão dos Trata',,~9sda União, como se disse atrás, era um processo simples e fun.:~amentalmente intergovernamental. Estava regulado, em globo,
J~ara Ioda a UE, no ex-artigo 48. ° UE. Por aí se via que, não obstante
,,&:t?Parlamento Europeu e a Comissão intervirem no processo de revi3t;são a título meramente consultivo, a revisão do Tratado estava total;;~mente entregue aos Estados: era o Conselho que decidia convocar a
;;:éonferência intergovernamental para a revisão, esta era convocada
)pelo Presidente do Conselho, e era a conferência intergovernamen/lal que fixava o texto do tratado revisto. Depois, o tratado revisto só
'x:;
441
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia
entrava em vigor se fosse ratificado por todos os Estados-mem6~s'
em conformidade com as respetivas normas constitucionais.
,,'
Com o Tratado de Lisboa, não obstante, adiante-se desde j*~
revisão continuar dependente, a final, da vontade unânime dosEsia
dos, expressa de harmonia com as respetivas normas constitu'1i&
nais, o processo de revisão tornou-se mais complexo e envolY~f
participação ativa dos órgãos da União e dos Parlamentos nacional$
Vejamos.
,":{/(~~:
O processo único e uniforme de revisão, previsto no ex-artig'
48.° UE, deu lugar a três diferentes processos:
'
o processo de revisão ordinário;
o processo de revisão simplificado;
e o processo também simplificado chamado de process~iª~
cláusula passerelle.>~'f'
a) O processo de revisão ordinário
-"~~
O processo de revisão ordinário está regulado no artigo'4~:
n."' 2 a 5, UE, e pode ser desencadeado por um Governo d(Ji'
Estado-membro, pelo Parlamento Europeu ou pela Comiss~
mediante projetos de revisão apresentados ao Conselho. Os proj~rB'
podem aumentar ou reduzir as atribuições da União. Note-se que,;<iO
reduzirem as atribuições, eles estão a destruir parte do adquiri:'~'
comunitário, ou adquirido da União, o que infringe um dos priri(i:
pios básicos da integração europeia. Nessa medida, portantq:~
artigo 48.°, n.o 2, não obriga. Os projetos são, de seguida, envia~~
ao Conselho Europeu, depois de dados a conhecer aos Parlamellto
nacionais (sobre este último ponto, veja-se também o artigo 12.~f::·
d, UE). O Conselho Europeu, após ouvir o Parlamento Europeu;.'~f
Comissão, e também o Banco Central Europeu, caso estejam ;~:
questão alterações institucionais no domínio monetário, tem,(
decidir, por maioria simples, analisar as alterações propostas~,9
Tratados. Se não conseguir essa maioria, o processo de revi~,
encerra-se aí - e aqui está uma das grandes novidades do Tratad9.;~
442
.;'is!>oa. Se, ao contrário, for obtida aquela maioria, o Presidente do
'9Hselho Europeu convoca uma Convenção, com a composição
y~j4a no artigo 48.°, n.o 3, par. I, UE.
',,;qu seja, o método da Convenção, utilizado para a elaboração
dos Direitos Fundamentais e, mais tarde, aqui sem sucesso,
i,,!!: revisão do Tratado de Nice, fica consagrado neste preceito, e
a mesma composição que daquelas duas vezes.
",AConvenção, analisados os projetos, aprova uma recomenda"dirigida a uma Conferência de Representantes dos Governos
'Estados-membros. É o Presidente do Conselho que convoca esta
:f~rência, que terá por encargo definir, por comum acordo, as
/ações a introduzir nos Tratados (artigo 48.°, n.o 4, par. I).
.. 'Note-se que o Conselho Europeu pode deliberar, por maioria
'pies, não convocar uma Convenção e passar imediatamente para
,ollvocação de uma Conferência de Representantes dos Governos
s;;Estados-membros se entender que o alcance das alterações pro'snão justifica a convocação de uma Convenção (artigo 48.°,
,par. 2).
.;As alterações aprovadas só entrarão em vigor depois de ratifipor todos os Estados-membros, de harmonia com as respetigras constitucionais (artigo 48.", n.o 4, par. 2).
;.;ç::ontudo, adianta o n." 5 do artigo 48.", se, decorridos dois anos
~!?re~assjnatura do Tratado de revisão, quatro quintos dos Estados
lBcrerem ratificado e os restantes estiverem em dificuldade em o
.T' o "Conselho Europeu analisará a questão". Este preceito
,~Iq~o artigo 82.°, par. 2, do Tratado Spinelli, depois retomado
ªConvenção sobre o Futuro da Europa no artigo IV-443.", n.o 4,
'"Tratado Constitucional. Todavia, ele deixa envolta em mistério
ilgrande questão: a de saber o que poderá o Conselho Europeu
r.nessa situação. Poderá fazer tudo, dizemos nós, menos deterloI.f,'a imediata entrada em vigor do Tratado, porque ele não
'~e a ratificação de todos os Estados signatários, que o n.o 4 do
mo preceito, como dissemos, considera imprescindível para o
tado começar a sua vigência.
Já houve uma revisão dos Tratados ao abrigo deste processo de
isão.
g:arta,
443
o Direito da União Europeia
Essa revisão teve origem na Decisão do Conselho Europeu~(~,
201O/350/UE, de 17 de junho de 2010452 • Ela encarregou dir~p!I)"
mente uma Conferência Intergovernamental (dispensando, port!lJjt ;'
a Convenção) de analisar as alterações que a Espanha propôs
Protocolo n.O 36 anexo ao Tratado de Lisboa, relativo às disposiç
transitórias, no que tocava à composição do Parlamento Europe~<
CIG aprovou um Protocolo que alterou o artigo 2.° desse Protocql
relativo às disposições transitórias no que respeita ao número,
deputados do Parlamento Europeu para o período remanescente
legislatura de 2009-2014453 •
Está em curso uma segunda revisão dos Tratados ao abri '
deste processo de revisão ordinário.
Por Decisão do Conselho Europeu de 7 de maio de 2012454 ,
convocada uma Conferência de Representantes para analisar a al
ração aos Tratados proposta pelo Governo irlandês sob a fortna .
um Protocolo sobre as preocupações do povo irlandês a respeito
Tratado de Lisboa, a anexar aos Tratados. Também aqui a Deci,s
do Conselho Europeu, com a aprovação do Parlamento Europe
dispensou a convocação de uma Convenção.
b) O processo de revisão simplificado
Este processo encontra-se regulado no n." 6 do artigo 48." ,
Nele os projetos de revisão só podem ter por objeto todas ou p
das disposições da Parte III do TFUE, que diz respeito às polític,a'
ações internas da União. Nesse caso, passa-se imediatamente p;.
uma Decisão do Conselho Europeu que, por unanimidade, p
alterar as disposições em questão, após ouvido o Parlamento E
peu e a Comissão, assim como o Banco Central Europeu quao
estiverem em causa alterações institucionais no domínio monetát!
JOUE L 160, de 26-6-2010.
JOUE L 263, de 29-9-2010.
'" EUCO 81112, CO EUR 6.
As fontes do Direito da União Europeia
"'. Essa Decisão do Conselho Europeu só entra em vigor depois
e ratificada por todos os Estados-membros e, sublinhe-se, não pode
urnentar as atribuições da União.
;Y:i Já foi levada a cabo uma revisão aos Tratados com respeito por
.ste processo de revisão. Referimo-nos à revisão realizada pela
ecisão do Conselho Europeu n.o 201111 991UE, de 25 de março de
011 45', que alterou o artigo 136.° TFUE no que respeita a um mecaismo de estabilidade para os Estados cuja moeda era o euro.
c) O processo de revisão simplifu:ado por cláusula passerelle
o segundo processo simplificado é o chamado processo de
yisão pela cláusula passerelle. Está disciplinado no n.O 7 do artigo
S.oUE. A outro título, já nos referimos a ele45 '. Este processo per')~ao Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, após
proyação do Parlamento Europeu, que se pronunciará por maioria
6~membros que O compõem, autorizar o Conselho a deliberar por
~oria qualificada em casos em que o TFUE ou o Título V do Tra.,oUE impõem a votação por unanimidade, salvo quanto a decisque tenham implicações no domínio militar ou da defesa, ou
I!torizá-Io a votar atos legislativos por um processo legislativo
rdinário em domínios em que o TFUE exige, para o efeito, pro~sso legislativo especial. Note-se que, num caso e noutro, a inicia;Ylldo Conselho Europeu começará por ser dada a conhecer aos
19lamentos nacionais. Basta que um Parlamento nacional exprima
'Soa oposição, para que o Conselho Europeu tenha de desistir da
visão.
({:i, Não obstante o seu carácter original, também este processo de
)são se encontra na dependência da vontade unânime dos Esta~Ó~'iPrimeiro, os Parlamentos nacionais têm um verdadeiro direito
'~2,e,veto sobre esta revisão: basta que um deles se oponha para que a
~yisão não seja possível. Depois, a revisão é deliberada pelo Con-
r
4S2
4S2
~" JOUEL91!i, de 6-4-2011.
456
444
Supra,
H,o
III-II-c.
445
o Direito da União Europeia
selho Europeu por unanimidade. Como no Conselho Europeu,
estudámos em local próprio, só têm direito de voto os Chefe
Estado e de Governo (artigo 235.°, n. o I, par. 3, TFUE), també
aqui os Estados têm direito de veto sobre as alterações propos
d) Notafinal
o TJ já deixou claro, por várias vezes, que a revisão dos
tados, para ser válida, tem de respeitar rigorosamente o proc
neles previsto para o efeito'57.
_",
Não pode ser confundida com a revisão dos Tratados a cri~~
de novos poderes pelo Conselho, levada a cabo ao abrigo do'"
352.° TFUE, quando esses novos poderes se revelarem necess
para o prosseguimento da integração. Já estudámos isso atrás.'
Tão-pouco pode ser confundida com a revisão a interpret
praeter legem, ou ultra legem, ou, mesmo, contra legem, dos T
dos, levada a cabo, em circunstãncias especiais, pelo TJ"'.
As jontes do Direito da União Europeia
e Lisboa deixou de ser uma imposição da letra dos Tratados.
como no lugar próprio dissemos, ela faz parte da essência da
!l.ção. Isso significa que nenhuma revisão pode fazer retroce'Iltl'gração, pondo em causa os resultados já alcançados, ress'as exceções admitidas pelos Tratados.
I'pois, têm de ser considerados limites materiais da revisão,
.'Conjunto, todos os princípios fundamentais e valores que
wdámos como fazendo parte da Constituição material da
ão, para nós, Direito imperativo da União, ius cogens da
terceiro lugar, constitui também limite material da revisão
fados o ius cogens internacional, isto é, o Direito Internacioerativo. Ele situa-se mesmo, no plano da hierarquia das
acima do ius cogens da União, salvo se este for mais favorá.direitos fundamentais e aos demais fundamentos da Demodo Estado de Direito45'.
'saída voluntária da União
171. Há limites materiais para a revisão dos Tratados?
Questão pertinente no que diz respeito aos Tratados daU
é a de saber se há limites materiais para a sua revisão.
.
Em nosso entender, não obstante esses Tratados não pago
ser reconduzidos ao conceito de Constituição formal, esses liI)Jlt
•
. ;.;:::.1<
eXIstem.
",~;~
Em primeiro lugar, constitui limite material para a revi~~.
adquirido da União. A sua "manutenção", como vimos, com
°
457 Ver, por exemplo, Ac. 23-2-88, Reino Unido c. Conselho, Proc:,:6
CoL, pgs. 855 e segs.
458 Assim, RIDEAU, pgs. 115~117. Ver também, GAUTRON, Remarques'
constitutionalisation de l'Union européenne et les problemes liés à la révisi
traités, SD 1999, pgs. 67 e segs., e H. GAUDIN, Révision des traités comulU
res, révision des cOllstitutions nationales: recherche sur la symétrie d'un.
nomêne, Mélanges Isaac, pgs. 541 e segs.
446
'Tratado de Lisboa veio permitir, pela primeira vez na HistóJ:?ireito originário, a saída voluntária da União por parte dos
_,membros. Ocupa-se desta matéria O artigo 50. do Tratado
0
pconfronto dos U 2 e 3 desse artigo resulta que são admitiás-formas de saída.
'primeira consiste num acordo entre a União e o Estado em
Q4e,portanto, abrogará o Ato de adesão desse Estado. O pro~Jo da conclusão desse acordo está regulado nos n. ~ 2 e 4 do
'flIligo 50.°.
.·~s um Estado também se pode retirar da União por recesso,
por ato unilateral. É o que diz o n. ° 3 do mesmo artigo, que
U
'
Sobre a matéria deste número, ver também JACQUÉ, pgs. 498 e segs.,
e N. PIÇARRA, Y a-t-i{ des limites materielles à la revision des traités
'des COlll111unautés eurOpéeJ111es?, CDE 1993, pgs. 3 e segs., e A. MAR/iiâiureza jurídica, cit., pgs. 504 e segs.
AÇA
447
o Direito da União Europeia
também disciplina, juntamente com o n.o 4, o procedimento de
recesso.
O Estado que sair da União pode, obviamente, voltar a
adesão. Só que, nesse caso, terá que se submeter às condições
mais da adesão. É o que dispõe o n.o 5 do mesmo attigo 50.°
A possibilidade da saída voluntária de um Estado da
veio dar resposta a uma questão objetiva que em qualquer m()ment:o
poderia surgir e veio, de forma pragmática, consagrar a regra de que
nenhum Estado pode ser obrigado a continuar contra a sua
na União. Mas ela contrariou a opinião até então dominante na doutrina, segundo a qual, por o projeto da integração europeia ser fortemente inspirado pela ideia da solidariedade entre os Estados, e entre
eles e a União, não era admitida a saída voluntária das Comunidades
e, depois, da União, por parte de um Estado-memb ro 4<io.
SECÇÃO II
Os princípios gerais de Direito
Bibliografia especial: D. SIMON, Y a-I-ii des principes Réllér"ux
du droit communautaire?, Droits 1991, fi.O 14, pgs. 73 e segs.;
FLOGAITIS, Droits fondamentaux et principes généraux du droit ad/ninistratif dans lajurisprudence de la Cour de Justice, RDP 1992-2, fi.O' 291
e segs.; M. DELMAS MARTY, Pour un droit commun, Paris, 1994; R.-E.
PAPADOPOULOS, Principes généraux du droit et droit co,mnlUllm'lail-e,
diss., Bruxelas, 1996; F. DE QUADROS, A nova dimensão do Direito Admi7
nistrativo, cit., pgs. 17 e segs.; H. P. NEHL, Principies of Administrative
Procedure in EC Law, Oxford, 1999; J.-E FLAUSS, Principes généraux
du droit communautaire dans la jurisprudence des juridictions constitutionnelles des États membres, O.c., Droits nationaux, droit communau~
taire: influences croisées, Paris, 2000, pgs. 49 e segs.; T. TRIDlMAS, The
General Principies of EU Law, cit.
460
Veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pg. 557, nota 592, e a
aí cit., e também GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pg. 250.
448
As fontes do Direito da União Europeia
sua importância
Também são fonte do Direito da União os princípios gerais de
Quando não forem expressamente enunciados pelos Tratada União, eles são criados (segundo uma visão positivista), ou
(de harmonia com uma conceção não positivista), pelo
inclusivamente, quando for o caso, para suprir a inexistência de
fontes de Direito escritas, ou do costume. O juiz cria-os ou descobre-os a partir do conjunto de valores que formam o núcleo essencial, jurídico e político, do sistema jurídico em causa, neste caso, do
Direito da União Europeia.
Na hierarquia das fontes do Direito da União Europeia, logo a
seguir aos Tratados, surgem-nos os princípios gerais de Direito. Isso
quer dizer que estes se impõem a todas as demais fontes do Direito
da União Europeia, inclusive, ao Direito da União Europeia derivado, provindo dos órgãos da União. Logo por aí se vê, pois, que os
princípios gerais de Direito gozam de uma enorme importância na
formação e na elaboração do sistema jurídico da União. De facto,
eles têm contribuído, não só para aprofundar e robustecer a especificidade do Direito da União Europeia, como também para desenvolver e pormenorizar o sistema jurídico da União. Hoje os Tratados
admitem expressamente a sua existência, como o fazem, por exemplo, o artigo 6.°, n." 3, UE, e o artigo 340.", pars. 2 e 3, TFUE46'.
i'iL-'lfellO,
174. A sua origem e o seu conteúdo
A jurisprudência da União tem construído os princípios gerais
de Direito a partir de quatro origens: os princípios gerais de Direito
IntenlaciOllal Público, os princípios gerais de Direito comuns aos
Direitos nacionais, os princípios gerais ditados pela noção de União
de Direito e os princípios gerais estruturais e próprios do Direito da
União Europeia.
461 Para além da bibliografia específica referida, veja~se esta fonte estudada
também nas obras gerais de JACQUÉ, pgs. 502 e segs., e SIMON, pgs. 305 e segs.
449
o Direito da
As fontes do Direito da União Europeia
União Europeia
a) Os princípios gerais de Direito Internacional Público
b) Os princípios gerais de Direito comuns aos Direitos
nacionais dos Estados-membros
I
I.
Não admira que a jurisprudência da União tenha começado;!
muito cedo a lidar com os princípios gerais de Direito Internaciona..
Público, dado que, como se disse, o Direito da União Europeia nas'
ceu em tratados internacionais. Depressa o TJ se foi servindo daqu~.
les de entre esses princípios que não eram contrários à essência d
Direito da União Europeia, e, simultaneamente, foi recusando
aplicação daqueles que boliam com a especificidade do orden~"
mento jurídico da União.
Assim, o juiz da União importou do Direito Internacional'
princípio relativo à compatibilidade dos tratados sucessivos e d
obrigações deles resultantes''', o princípio segundo o qual O Estag
não pode recusar aos seus nacionais o acesso ao seu território'6J,°
princípio da boa-fé no cumprimento dos tratados, tal como ele est
consagrado no costume internacional e foi codificado na Conve~'
ção de Viena de 196946', e o princípio da proteção dos direitos fun
darnentais, recolhendo nesta matéria vários contributos substan
ciais da CEDH, da Carta Social Europeia, dos Pactos das Naçõe
Unidas de 1966 e de Convenções da Organização Internacional g
Trabalho.
Mas ele tem rejeitado, por os considerar incompatíveis com
essência do Direito da União Europeia, vários outros princípi
gerais importantes do Direito Internacional, como é o caso do prill
cípio da reciprocidade, nomeadamente sob a forma da regra excep
tio non adilllpleti contractus, que o TI julga ser totalmente inco,,!l
patível corn a coerência interna da Ordem Jurídica da União''', e .
da utilização do estoppel'66.
Ac. TJ 27-2-62, Comissão c. Itália, Proe. 10/61, Rec., pgs. 3 e
Caso van Duyn, já citado.
464 Caso Opel Austria, já citado.
465 Ac. 13-11-64, Comissão c. Bélgica e Luxemburgo, Procs.
Rec., pgs. 1.217 e segs.
466 Ac. 16-10-80, Boizard, Procs. apensos 63179 e 64/79, Rec., pgs.
Depois, a jurisprudência da União tem acolhido também os
:;princípios gerais constantes dos Direitos dos Estados-membros, par'ticularmente, os princípios gerais comuns a esses Direitos que pertencem ao "património jurídico comum dos Estados-membros", ou
a.!um "Direito comum europeu"46'. Os próprios Tratados estimu-na a isso, desde logo, no artigo 6. o, n. o 3, UE, em relação às
adições constitucionais em matéria de direitos fundamentais, e, no
.'tado artigo 34D.o, pars. 2 e 3, TFUE, em matéria de responsabiliade extracontratual da União. O TJ procura aí que os princípios
:~l\fÍdicos de que se vai servir sejam os mais adequados ao caso con.icreto sobre o qual está debruçado e reserva-se o direito de os adaptar
g~estrutura e aos objetivos da Comunidade", isto é, à natureza espe,çífica do Direito da União46 '. Dentro deste espírito, o TI tem admi.ido os seguintes princípios, quase todos, aliás, importados,
~pecialmente, do Direito alemão: os princípios da proporcionaliade46', da segurança jurídica e da confiança legítima'70, do respeito
p~lo direito de defesa, especialmente no procedimento administra'tivo471 •
c) Os princípios gerais ditados pela noção de União de Direito
" " Outros princípios gerais de Direito são elaborados pelo TI a
.wnr da conceção de "União de Direito", que já conhecemos, e para
..ftl!al o TI tem contribuido muito. São princípios que o TI extrai da
~gra básica do primado do Direito na ordem interna da União.
!t~tacarn-se entre eles o já referido princípio da segurança jurídica
462
463
e segs.
450
Ver DBLMAS-MARTY, pgs. 23 e segs., e QUADROS, A nova dimensão, Jae. cito
Caso Internationale Handelsgesellschaft, cit., pg. 1.125.
'" Sobretudo, Ac. 11-7-89, Schrdder, Proe. 265/87, CoI., pg. 2.237, e Ac.
_93, ADM, Proc. C-339/92, CoI., pgs. 1-6.473 e segs.
470 Ac. 14-5-75, CN.T.A., Proc. 74174, Rec., pg. 533.
Ac. 13-12-67, Neumallll, Proc. 17/67, Rec., pg. 571.
467
46g.·
451
o Direito da União Europeia
(ao qual também podemos chegar por esta via), e, como seus corolários, os princípios do respeito pelos direitos adquiridos"', da
previsibilidade e da clareza das regras aplicáveis"', da boa-fé474 ,
os princípios patere legem quam fecisti ("cumpre a lei que tu
próprio fizeste")47', da publicidade dos atos''', da não retroatividade477
Também pertencem a esta categoria alguns princípios que concretizam o princípio da garantia judicial efetiva e o direito a um
processo equitativo, tais como eles se desenvolveram à sombra dos
artigos 6.' e 13.' da CEDH, e que o TJ tem projetado para o domínio
do Direito Administrativo como sendo os princípios do direito "ao
juiz", ou direito "ao tribuna1"478, e o direito ao contraditório, tanto
no procedimento administrativo como no processo contencioso
administrativo'79. Também se integram neste grupo os princípios de
Direito Administrativo do dever de boa administração"o, que agora,
como estudámos, figura na Carta dos Direitos Fundamentais, da
continuidade do serviço público4BI , também por aqui o já referido
princípio da proporcionalidade, e o princípio da garantia dos particulares na revogação dos atos administrativos'82.
'" Ac. 22-9-83, Verli-Wallace, Proe. 159/82, CoI., pgs. 2.711 e segs.
473 Ac. 16-6-93, França c. Comissão, Pme. C-325/91, CoI., pgs. 1-3.283.
com base neste princípio que o TI por vezes limita ratione temporis os efeitos
seus acórdãos - assim, por ex., SIMON, pg. 252.
474 Citado caso Opel Auso'ia.
473 Ac. 10-3-71, Deutsclte Tradax, Proe. 38170, Rec., pgs. 154 e segs.
476 Ac. 25-1-79, Racke, Proc. 98/78, Rec., pgs. 69 e segs.
477 Ac. JO-7-84, Kem Kirk, Proc. 63/83, Rec., pgs. 2.689 e segs.
478 Por todos, Ac. 15-5-86, Johnstoll, Proc. 222/84, Coi., pgs. 1.651 e
'" Ae. 29-6-94, Fiskallo, Proc. C-135/92, CoI., pgs. 1-2.885 e segs.;
contudo, Ac. TPI 29-6-95, Solvay, Proc. T-30/91, CoI. pgs. 11-1.775 e segs.
,., Ae. 27-3-90, Itália c. Comissão, Proe. C-10188, CoI., pgs. 1-1.229 e
4Rl Ac. 3-7-86, Conselho c. Parlamemo Europeu, Prec. 34/86, CoI.,
2.155 e segs.
4R2 Ac. 12-7-57, Algera, Procs. apensos 7/56, 3/57 a 7/57, Rec., pgs.
segs.
452
As jontes do Direito da União Europeia
d) Os prillcípios estruturais do Direito da Ulliiio Europeia
Por fim, o TJ tem criado no sistema jurídico da União alguns
princípios gerais de Direito que designaremos de estruturais, porque
refletem os fundamentos jurídicos básicos da Ordem Jurídica da
União, nos planos tanto político, como económico. Por isso, alguns
desses princípios coincidem com os princípios constitucionais e os
valores da União, que estudámos logo no início deste livro, ou derivam diretamente deles.
Fazem, assim, parte desta categoria os seguintes princípios: da
liberdade (incluindo a livre circulação e a concorrência), da igualdade e da não-discriminação"" da solidariedade484 , da lealdade, da
uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito da União
Europeia, da subsidiariedade"', da proporcionalidade (também por
esta via), do equilíbrio institucional'86 e da preferência comunitária487 .
175. O valor jurídico dos princípios gerais de Direito
Como já dissemos, os princípios gerais de Direito têm uma
importância muito grande no sistema de fontes do Direito da União
Europeia. Com efeito, repete-se, o TJ entende que o Direito derivado se encontra subordinado àqueles princípios. Mais: aquele Trisustenta que os próprios Estados-membros, nomeadamente a
Administração Pública e os seus tribunais, devem respeitar
~qllell~s princípios na aplicação do Direito da União Europeia na
483 Acs. 21-6~58, Hauts fomeaux, cit., pg. 255, 19-10-77, Moulins Pont-à·M<IU"'OIl Procs. apensos 124176 e 20177, Rec., pg. 1.795, 15-6-78, Defrelllle,
149177, Rec., pg. 1.365, e 12-7-84, Prodest, Proe. 237/83, Rec., pg. 3.153.
484 Ac. 7-2-73, Comissão c. Itália, Proc. 39172, Rec., pg. 101.
485 Ac. 12-11-96, Reino Unido c. Conselho, Proc. C-84/94. CoI., pg. 1-5.755.
486 Ac. 13-5-58, Merolli, Proc. 9/56, CoL, pg. 1 L
'"' Ac. 13-3-68, Bel/s, Proc. 5/67, CoI., pgs. 125 e segs. (147), contrariado,
100)aV]la. por alguns Acórdãos posteriores, como, por exemplo, o Ac. 14-7~94,
c. COllse/ho, Proc. C-353/92, CoI., pg. 1-3.411.
453
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia
respetiva ordem interna, dentro do dever geral que lhes incumbe de
aplicarem, e de modo eficaz, o Direito da União48 '. Esta construção
repercute-se, de modo especial, no sistema de proteção dos direitos
fundamentais pelos Estados-membros48'. Ela tem como grande consequência o facto de, por essa via, o Direito da União Europeia levar
ao aprofundamento da noção de Estado de Direito no interior dos
sistemas jurídicos nacionais dos Estados-membros.
facto, ele aparece-nos bastante valorizado no novo Capítulo II do
Título I da Parte VI do TFUE, que tem como epígrafe Atos jurídicos
da União, processos de adoção e outras disposições, especialmente
na sua Secção I, subordinada ao título Os atas jurídicos da União.
Para acompanharmos as inovações trazidas somos obrigados a proceder a um estudo mais vasto e profundo do Direito derivado do que
aquele que levámos a cabo nas duas edições anteriores.
SECÇÃO 1II
SUBSECÇÃO I
o Direito derivado
Teoria geral dos atos de Direito derivado
Bibliografia especial: M. PACE, The construction of EU norma·
tive power, JCMS 2007, pgs. 1041 e segs..
176. Importância e conteúdo do Direito derivado
Os atos jurídicos do Direito da União Europeia derivado
(englobando, em bom rigor, normas jurídicas e atos individuais,
como veremos) concretizam, desenvolvem e aplicam os Tratados.
Isso, só por si, demonstra a sua importância no elenco das fontes do
Direito da União.
A terminologia utilizada pelos Tratados para designar esses
atos é diferente. Assim, o Tratado CECA indicava-nos as decisões
gerais e individuais, as recomendações e os pareceres (artigo 14.°);
e desde os Tratados de Roma que os Tratados se referem aos
regulamentos, às diretivas, às decisões, aos pareceres e às recomendações (hoje, artigo 288. ° TFUE). Todavia, ainda que sob terminologia diversa, os Tratados referiam-se às mesmas categorias
de atos.
O Direito da União Europeia derivado foi uma das matérias em
que o Tratado de Lisboa mais alterou os Tratados anteriores. De
'"' Ac. 24-3-94, Bostoek, Proe. C-2/92, CoI., pg. 1-955.
489
Ver pormenores em
SIMON,
pg. 370, e
454
JACQUÉ,
pg. 515 e segs.
Bibliografia especial: O. DUBOS e M. GAUTIER, Actes communautaires d'exéeution, l-Mo Auby e J. Dutheil de la RoeMre (eds.), Droit
administratif européen, Bruxelas, 2007, pgs. 129 e segs.; R. HOFMANN,
Législation, Delegation and Implementation under Treaty Df Lisbon;
Typology meels Reality, ELJ 2009, pgs. 482 e segs.; C. BLUMANN, A la
frontiere de lafllnction législative et de lafonction exécutive: les "nouveaux" actes délégués, Mélanges Jacqué, pgs. 127 e segs.; D. RITLENG,
La délégation de pOllvoir législatif de l'Union européenne, Mélanges
Jaequé, pgs. 559 e segs.
177. Introdução
A Convenção sobre o Futuro da Europa havia modificado a
nomenclatura dos atos de Direito derivado que constavam do
ex-artigo 249.° CE, de modo a aproximar a sua designação de atos
de tipo estadual - ver o artigo 1-33.° do Tratado Constitucional.
Assim, este substituira a terminologia dos atos constantes daquele
preceito do ex-Tratado CE para lei-europeia, lei-quadro europeia,
regulamento europeu, decisão europeia, recomendação e parecer.
O Tratado de Lisboa ficou aquém desse resultado. Assim, os
atos de Direito derivado, constantes hoje do artigo 288.° TFUE,
conservam a designação do seu antecessor, o artigo 249. CE.
Mas, no resto, o Tratado de Lisboa manteve, no essencial, as
inovações do Tratado Constitucional. E essas inovações recondu0
455
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Eumpeia
zem-se sobretudo a uma arrumação do que a Parte VI do TFUE, no
seu Título I, Capítulo II, chama, na sua epígrafe, "Os atas jurídicos
da União".
Assim, passa a haver no Direito da União derivado, segundo os
artigos 288.' e seguintes TFUE, as seguintes categorias de atos:
Conselho, ou decidido pelo Conselho com a participação previa,
mediante consulta ou aprovação, do Parlamento Europeu (artigo
289.°, n.O 2, TFUE).
O ato aprovado por qualquer desses dois processos legislativos, repetimos, pode assumir a forma de regulamento, diretiva ou
decisão, segundo o artigo 289.°, n.~ I e 2, isto é, um qualquer dos
atos previstos no artigo 288.°, desde que seja um ato obrigatório ou,
o que é o mesmo, que tenha um efeito vinculativo'90. Isto quer dizer
que o ato legislativo é definido, pelo artigo 289.° TFUE, por um
a) os atas legislativos;
b) os atos delegados, que são atos não legislativos de carácter
geral;
c) e os atas de execução.
critério formal: é ato legislativo todo o ato que, assumindo a natu-
178. Os atos legislativos
reza de regulamento, diretiva ou decisão, seja aprovado por qualquer dos dois processos legislativos previstos no artigo 289.°, n.~ I
e 2, TFUE. Daqui também se conclui, adiantamo-lo desde já, que
um regulamento, uma diretiva ou uma decisão terão natureza
diversa de ato legislativo se não forem aprovados por um processo
legislativo ordinário ou especial491492
Poder-se-á perguntar por que razão é que, ao contrário do que
sucedia antes do Tratado de Lisboa, tanto o regulamento, como a
diretiva e a decisão podem assumir a natureza de atos legislativos e
o que leva os órgãos competentes da União a optar por uma ou outra
destas três categorias como atos legislativos.
A resposta, a nosso ver, é a seguinte.
À opção por uma ou outra dessas três categorias presidirá a
base escolhida pelos Tratados, ou seja, serão estes a dizer, em cada
caso, qual dos atas daquelas três categorias é aplicável. E o critério
da escolha será, fundamentalmente, o da subsidiariedade e o da proporcionalidade. Assim, como adiante estudaremos melhor, se os
Tratados desejarem que o ato legislativo, numa matéria concreta,
seja direta e imediatamente aplicável na ordem interna dos Estados,
escolherão o regulamento. Mas se eles se contentarem com a transposição do ato pelos Estados para a sua ordem interna que lhes
Os atas legislativos têm a sede da sua regulamentação no
artigo 289.' TFUE.
São atos legislativos todos os atos aprovados por um processo
legislativo (artigo 289.°, n.o 3). Há dois processos legislativos, como
estudámos quando examinámos a competência dos órgãos: o ordinário e o especial (artigo 289.', n.~ 1 e 2). Os atos legislativos são
aprovados, em princípio, no quadro da competência definida para
cada um destes dois tipos de processos (artigo 289.", n."' 1 e 2). Em
regra, o processo legislativo é desencadeado por iniciativa da
Comissão, como vimos quando estudámos a competência desta,
mas, em casos específicos previstos nos Tratados, pode ser desencadeado por iniciativa de um grupo de Estados-membros ou do Parlamento Europeu, por recomendação do Banco Central Europen ou a
pedido do TJ ou do Banco Europeu de Investimento (sendo certo
que o Direito da União desconhece a distinção, nesses casos, entre
a iniciativa, a recomendação e o pedido) (artigo 289.', n.~ I e 4).
O processo legislativo ordinário consiste num processo de
co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho, que se inicia
com uma proposta da Comissão. Está regulado nos artigos 289.°,
n.O I, e 294.° TFUE.
Por sua vez, o processo legislativo especial consiste num
processo decidido pelo Parlamento com a participação prévia do
Assim, também PRIOLLAuo/SIRITZKY, pg. 362.
No mesmo sentido, PRIOLLAuo/SIRITZKY, doe. eit.
492 Sobre os atos legislativos já com base no Tratado de Lisboa, ver LAETmA
GUILLOUD, La loi dans I' Ul1ion etlropéenne - COl1tributiol1 à la définition des Getes
legislatifs dans tine ordre juridique d'infégratioll, Paris, 20 lO.
456
457
49J
491
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia
permita adaptarem o ato, na forma e nos meios, à especificidade de
cada Estado, escolherão a diretiva. A atribuição às decisões da natureza de ato legislativo resultou da necessidade de se dar cobertura à
prática, anteriormente seguida, de se utilizar a decisão como ato
atípico, para se aprovar atas de alcance geral, como os programas
financeiros 493 •
Se, diferentemente, os Tratados não prescreverem o tipo de ato
que deve ser praticado e, portanto, deixarem a escolha desse tipo aos
órgãos da União, o novo artigo 296.°, n.O I, TFVE, estabelece que
estes deverão fazer essa escolha caso a caso, com respeito pelo tipo
de processo que os Tratados prevejam e com observância do princípio da proporcionalidade. Note-se que este último tem de ser observado nesta matéria por imposição do princípio geral da proporcionalidade, tal como ele se encontra definido para a União no
artigo 5.°, n.o 4, UE, como estudámos ua Parte 1494
Os atas legislativos, através dos processos legislativos ordinário e especial, acabam por ser praticados, nos termos estudados,
com intervenção apenas do Parlamento Europeu e do Conselho.
Concretamente, a Comissão nunca tem competência legiferante,
sem embargo de ter um importante e vasto poder de iniciativa no
processo legislativo. É o que resulta do artigo 289.°, n."' I e 2,
TFUE'95.
Ato delegado é um ato praticado pela Comissão que, para o
efeito, recebe delegação mediante um qualquer ato legislativo
(artigo 290.°, n.o I, 1." parte, TFUE), isto é, mediante um ato praticado através de um processo legislativo ordinário ou especial. Leva
a menção expressa de ter sido praticado por delegação (artigo 290,°,
n.o 3, TFUE). Além desses requisitos formais os atas delegados
caracterizam-se por estes três requisitos substanciais: são atas não
legislativos; são atas de alcance geral; e são atas que completam ou
alteram certos elementos não essenciais do ato legislativo (artigo
290.°, n.o I, 2." parte, TFUE). Ou então, o que é o mesmo, e nas
palavras do Relatório do Grupo de Trabalho que os criou - o Grupo
de Trabalho presidido pelo antigo Primeiro-Ministro italiano,
GIULLIANO AMATO, que foi Vice-Presidente da Convenção sobre o
Futuro da Europa'96 -, são "atas que pormenorizam ou que modificam certos elementos de um ato legislativo no âmbito de uma habilitação definida pelo legislador".
Como é característico do conceito de delegação de poderes no
Direito interno, o ato legislativo delegante fixa o conteúdo, o
âmbito, as condições e o prazo de vigência da delegação (artigo
290.°, n.o I, par. 2, e n.o 2, TFVE), sendo certo que, como decorre
do que ficou dito acima, os elementos essenciais de cada matéria
constituem objeto exclusivo do ato legislativo e, portanto, quanto a
eles os poderes são indelegáveis (artigo 290.°, n.O I, par. 2, 2." parte).
Os atas delegados situam-se na fronteira entre os atas legislae os atas executivos ou de execução. Não são atas legislativos,
DOlrauleassim dispõe, de forma expressa, o artigo 290.°, n.O I, par. I.
\\'las também não são atas de execução, porque, como vimos, são
caracterizados pelo Tratado UE como atas "de alcance geral" e
completem ou alterem certos elementos não essenciais do ato
legisl:lti,'O". Isto significa que, embora não sejam atas legislativos,
'~l''Çu'uU'O, se situam na sua órbita. Além disso, no plano formal os
delegados serão sempre suscetíveis de distinção porque, como
179. Os atos delegados
A seguir aos atas legislativos o TFUE disciplina os atas dele,
gados (artigo 290.°).
Estes atas, tais como se encontram previstos naquele preceito,
constituem uma inovação do Tratado de Lisboa, que os foi buscar ao .,
Tratado Constitucional. Inspiram-se em Direitos nacionais de
alguns Estados-membros, como é o caso da Itália e da Bélgica.
493 Ver, no mesmo sentido, JACQUÉ, pgs. 518 e segs.
Ver supra, n. o 87.
495 No mesmo sentido, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 362.
494
458
4% WG IX 13 CONV 424102, no sítio www.europeall-convention.eu.int. Ver
matéria mais desenvolvida em PRIOLLAUD/StRITZKY, pg. 363.
459
o Direito da Uni{io Europeia
As jOlltes do Direito da União Europeia
já dissemos, deverão conter no seu título a menção da delegação
(artigo 290.°, n.O 3, TFUE).
Há mais um argumento que nos impede de qualificar os atos
delegados como atos de execução, sem prejuízo do que adiante
dissermos para caracterizar estes. Quando os Tratados querem
ocupar-se dos atos de execução, referem-se claramente a atos "de
execução", ou competência "de execução", como o faz o artigo
291.°TFUE.
Devido à novidade da categoria de atos delegados no sistema
jurídico da União temos de aguardar pela tomada de posição do TJUE
no sentido de se esclarecer o conteúdo e a natureza daqueles atos.
Segundo o artigo 291.°, n.O 3, TFUE, os atos de execução deverão ter, no seu título, a menção "de execução".
Quando sejam precisas condições uniformes para a execução
pela União dos seus atos vinculativos (legislativos ou delegados),
serão estes que conferirão competência de execução à Comissão. Em
casos específicos devidamente fundamentados e, além disso, nos
domínios previstos nos artigos 24.° e 26.° UE, a competência para o
efeito será atribuída ao Conselho (artigo 291.°, n." 1,2 e 4, TFUE).
O TFUE aceita que os Estados controlem o exercício pela
Comissão da sua competência de execução. Para o efeito, o Parlamento Europeu e o Conselho, através de regulamentos aprovados
por processo legislativo ordinário, estabelecerão previamente as
regras e os princípios que deverão presidir aos mecanismos desse
controlo (artigo 291.°, n.O 3, TFUE).
Quanto aos atos de execução da União, pergunta-se qual é, para
esse efeito, o conteúdo da execução. O TJ tem sido restritivo quanto
ao conceito de execução e de atos de execução. Confrontado com a
questão a propósito do antigo ex-artigo 202.° CE, quando este se
referia à competência "de execução", o TJ deixou decidido que "a
noção de execução compreende, simultaneamente, quer a elaboração
de regras de aplicação, quer a aplicação de regras a casos concretos
através de atos individuais", ou seja, de atos administrativos'''.
180. Os atos de execução
Depois dos atos legislativos e dos atos delegados, o TFUE
regula, no artigo 291.° TFUE, os atos de execução. São atos que
pretendem executar os atos vinculativos da União, isto é, os atos
legislativos e delegados, acima estudados.
Aquele preceito ocupa-se da execução desses atos pelos Estados e pela Comissão (n." 1 e 2 do citado artigo). O princípio geral é
o da preferência dos Estados na execução dos atos vinculativos da
União. Ou seja, a regra é a aplicação descentralizada do Direito da
União pelos Estados. Ela não constava da letra dos Tratados, mas
era conatural às relações entre a União e os Estados-membros49'.
Todavia, neste lugar só nos interessam os atos de execução provindos da Comissão porque só eles são Direito derivado da União.
Como a Comissão não tem nunca competência para aprovar
atos legislativos (é o que resulta do artigo 289.°, n.O' I e 2, como
vimos há pouco), ela, sempre que não pratique atos delegados, previstos no artigo 290.°, estará a adotar atos de execução. Como dissemos quando estudámos a competência da Comissão, o Tratado de
Lisboa reforçou significativamente a competência executiva daquele
órgão, que se exerce através de regulamentos de execução, de díretivas de execução e de decisões de execução.
497
Ver in1ra,
11.°
181. Regime jurídico dos aios de Direito derivado
Vejamos agora quais são os traços mais importantes do regime
jurídico geral que os Tratados definem para os atos de Direito derivado da União.
a) Como vimos, os atos legislativos são aprovados por um
processo legislativo ordinário ou especial, como resulta do
artigo 289.°, n." I a 3, com o acrescento do n.o 4 do mesmo
498 Ae. 24-20-89, Proe. 16/88, Comissão c. CO/lselho, Cal., pgs. 3.457 e
sgs., pontos 10 e 11.
246.
460
461
o Direito da União Europeia
artigo. Como há pouco recordámos, já analisámos atrás a
distinção entre aqueles dois tipos de processo legislativo,
quando estudámos os órgãos da União. Passemos, por isso,
a outros aspetos do regime jurídico dos atas.
b) No caso de os Tratados não estabelecerem qual o tipo de
ato a adotar para um determinado caso, o órgão ou os
órgãos respetivos escolhê-Io-ão conforme o caso concreto e os tipos de processos disponíveis e no respeito pelo
princípio da proporcionabilidade (artigo 296.°, par. I,
TFUE).
c) Todos os atas jurídicos têm de ser fundamentados e devem
Asjontes do Direito da União Europeia
efeitos a partir da data dessa notificação (artigo 297.°, n.o 2, par. 3,
TFUE).
O Banco Central Europeu pode decidir livremente publicar os
seus atas (artigo 132.°, n.o 2, TFUE).
Note-se, todavia, que os membros dos órgãos, dos comités,
bem como, na sua genéralidade, os funcionários e agentes da União,
encontram-se obrigados pelo segredo profissional, nos termos do
artigo 339.° TFUE.
SUBSECÇÃO II
fazer referência à observância do respeito pelas formalida-
des prévias, impostas pelos Tratados (artigo 296.°, par. 2,
TFUE).
d) Sendo o processo legislativo ordinário um processo de
co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho, os
respetivos atas legislativos têm de ser assinados pelos Presidentes desses dois órgãos. Dentro da mesma lógica, os
atas praticados em conformidade com um processo legislativo especial têm de ser assinados pelo Presidente do órgão
que os praticou. Também os atas não legislativos que
forem aprovados sob a forma de regulamento, de diretiva
ou de decisão que não tenha destinatário, são assinados
pelo Presidente do órgão que os aprovou (artigo 297.°,
n.o I, pars. I e 2, e n.o 2, TFUE).
e) Os atas legislativos devem ser publicados no Jornal Oficial
da União Europeia. Entram em vigor na data que eles fixarem ou, na falta desta, no vigésimo dia a seguir à sua publicação (artigo 297.°, n.o I, par. 3). Ao mesmo regime estão
sujeitos os atas não legislativos quando consistam em
regulamentos, diretivas que se dirijam a todos os Estados-membros, ou decisões que não indiquem destinatário
(artigo 297.°, n.o 2, par. 2).
As outras diretivas e as decisões que indiquem um destinatário
são notificadas aos respetivos destinatários, começando a produzir
462
Os atos de Direito derivado
182. Preliminares
O Direito da União Europeia derivado assume a forma dos atas
previstos no par. I do artigo 288.° TFUE: regulamentos, diretivas,
decisões, recomendações e pareceres. Embora só os três primeiros
obriguem, os Tratados conhecem as duas outras figuras e utilizam-nas. Os regulamentos, as diretivas e as decisões podem enquadrar-se nas categorias de atas legislativos e delegados, mas parece
gue só os regulamentos e as decisões podem ter natureza executiva49'.
Esse artigo 288.°, n.O I, trouxe uma grande clarificação ao
Direito da União derivado ao rearrumar os respetivos atas. De facto,
~ntes do Tratado de Lisboa havia nos Tratados catorze tipos diferentes de atas jurídicos, repartidos pelos três pilares da União Europeia,
mais um número grande de atas puramente atípicos, alguns dos
quais nem estavam previstos nos Tratados, mas eram utilizados
pelos órgãos na sua prática quotidiana. Por isso, a Declaração de
~aeken impusera a redução do número desses atas, bem como uma
sua mais clara explicitação,oD. Foi isso o que o Tratado de Lisboa
::veio fazer, ao limitar os tipos de atas aos previstos no referido artigo
. 288,°, n.O I, TFUE, independentemente das matérias em que a União
499
500
Assim, PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 364.
Ver PRIOLLAUD/SIRITZKY, pg. 360.
463
o Direito da União Europeia
intervém, ainda que mantendo alguns processos específicos na
PESCo
Vamos agora estudar os atas elencados no artigo 288. 0 •
183. Os regulamentos
a) Sua natureza jurídica
Bibliografia especial: l-V.
LOUIS,
Les reg/emellts de la CEE,
Bruxelas, 1969.
o TFUE define o regulamento no seu atual artigo 288. o, par. 2.
Daí podemos extrair as seguintes características do regulamento:
a) ele tem carácter geral;
b) ele é obrigatório para os seus destinatários em todos os
seus elementos, isto é, quanto ao seu resultado, quanto aos
meios de o alcançar e quanto à forma de o fazer;
c) ele goza de aplicabilidade direta na ordem interna dos
Estados.
o carácter geral do regulamento deriva do facto de ele ser o ato
legislativo da União por excelência. Por isso, a natureza geral do
regulamento engloba também o seu carácter abstrato e confere-lhe
conteúdo normativo. Assim tem o TJ caracterizado o regulamentosol .
Era por isso que o Tratado Constitucional Europeu o designava por
lei europeia (artigo 1-33.°, n. 1). Adiante-se, todavia, que o facto de
o regulamento ser, em princípio, um ato legislativo - chamado regulamento de base ou regulamento legislativo - não impede que também possa haver regulamentos delegados não legislativos e regulamentos de execução, aos quais já nos referimos.
O
51)J Acs. 14-12-62, Confédération nationale des producteurs de fruits et
légumes e o. c. Conselho, Procs. apensos 16/62 e 17162, Rec., pgs. 901 e segs., e
17-12-70, Einfuhr- und Voratsstelle fiir Getreide rmd FuttermittellKoster, Prac.
25/70, Rec., pgs. 1.161 e segs.
As fontes do Direito da União Europeia
A natureza obrigatória do regulamento abrange todas as sua:
disposições. Quer dizer que ele se impõe, através de todas as dispo
sições que dele fazem parte e em todos os seus elementos acim:
referidos, a todos os órgãos e instituições da União (a começar peh
seu autor), aos Estados-membros e aos particulares. Por isso, nã<
são admitidas reservas quanto a qualquer das suas disposições e
caso elas sejam formuladas, as reservas não produzem quaisque
efeitosso2 • Isso não exclui que o regulamento possa, excecional
mente, deixar aos Estados alguma liberdade de decisão ou de preen
chimento de lacunas em aspetos nele concretamente previstos
Nessa hipótese, os Estados estão obrigados a não ir para além da,
medidas expressamente admitidas pelo regulamento, devendo, eu
qualquer caso, e, desde logo, com base no artigo 4. 0, n.o 3, par. I
UE, servir-se sempre dessas medidas para facilitar a execução d<
regulamento e não para a dificultar'03
Por fim, o regulamento é diretamente aplicável na ardeu
interna dos Estados. Isto quer dizer que a aplicação direta do regu
lamento a qualquer sujeito de Direito interno, por um lado, não est,
dependente de qualquer medida nacional de receção e, por outr<
lado, não pode, de algum modo, ser travada ou condicionada po
qualquer medida desse género'04. Nessa ordem de ideias, a publica
ção do regulamento na folha oficial dos Estados-membros (que, ,
nosso ver, é sempre aconselhável, ainda que por extrato, dada ,
pouca leitura pelo cidadão comum do Jornal Oficial da União Euro·
peia) revestiria um carácter meramente informativo e não afetaria
inclusive para o efeito das relações do regulamento com o Direit<
interno, a natureza do regulamento como ato da União. Por outra,
palavras, a publicação do regulamento pelos Estados-membros nã<
o nacionaliza.
502
Ac. TJ 7-2-73, Comissão c.Itália, Proc. 39172, Rec., pgs. 101 e segs.
503
Assim, Ac. TI 17-12-70, Se"eer, Prac. 30/70, Rec., pgs. 1.197 e segs.
504
Ac. TJ 7-2-73, cit., e Ac. 2-2-77, Amsterdam Bulb, Proc. 50n6, Rec.
pgs. 137 e segs.
464
465
o Direito da União Europeia
b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico
o regulamento distingue-se facilmente dos outros atas de
Direito derivado previstos no artigo 288.° TFUE.
Distingue-se da diretiva, porque esta só obriga os Estados
quanto ao resultado que ela prossegue e não quanto à forma e aos
meios de o alcançar.
E distingue-se também da decisão, embora o Tratado de Lisboa
tenha atenuado essa distinção. De facto, desde o Tratado de Roma
até ao Tratado de Nice (ex-artigo 249.°, par. 4, CE), a decisão era
forçosamente um ato, não geral e abstrato, mas individual e concreto, ainda que, porventura, sob a forma de ato plural, porque tinha
sempre destinatários concretos. Assim a via também o TJs05 • E foi
dessa forma que a caracterizámos nas anteriores edições deste livro.
Agora, todavia, o novo artigo 288.°, par. 4, TFUE, não obriga a
decisão a ter destinatários. Diz ele apenas que, quando (no sentido
de se) tiver destinatários, a decisão é obrigatória para estes. Este
entendimento é reforçado pelo facto de, pelas disposições conjugadas dos artigos 289.°, n."' I e 3, TFUE, a decisão ser entendida pelo
TFUE como um ato que também pode ser legislativo. Parece, pois,
que, hoje, a única distinção entre a decisão e o regulamento, quando
aquela não tiver destinatários, residirá no facto de ela poder não ser
diretamente aplicável em todos os Estados-membros. Assim acontecerá, por exemplo, no domínio da PESCsü6.
O regulamento distingue-se também, da recomendação e do
parecer, porque estes não obrigam, isto é, não são vinculativos.
Se o regulamento é diretamente aplicável na ordem interna, em
princípio perde interesse discutir-se se ele também goza de efeito
direto - explicaremos adiante a razão da reserva que colocamos
nesta nossa afirmação. Quem pode o mais, também pode o menos,
portanto, se o regulamento é diretamente aplicável, por maioria de
razão, pode algum dos seus destinatários invocar em tribunal nacio-
As jantes do Direito da União Europeia
nal unt direito ou uma obrigação que ele, respeti vamente, confira,
imponha, devendo o tribunal atender a essa invocação, mesmo qu
depois, fique com a liberdade, como é natural, de decidir se o direi
ou a obrigação existe ou não 50 '.
Como se disse, o regulamento é, em princípio, um ato legisl
tivo - é o que resulta dos artigos 288.°, par. 2, e 289.°, n." 1 e
TFUE. Mas, como também já ficou dito, além desse tipo de regul
menta, também chamado regulamento de base, existem ainda
regulamento delegado e o regulamento de execução ou de aplic
ção, estando este último hierarquicamente subordinado ao regul
menta de base 50 ' e, temos de acrescentar hoje, também ao regulamen
delegado.
Como vimos, pelo artigo 297.° TFUE, o regulamento é ,
publicação obrigatória no Jornal Oficial. Ele é publicado na sér
Legislação, sob a rubrica Atos cuja publicação é uma condição I
sua aplicabilidade. A falta de publicação não afeta a validade (
regulamento, mas apenas a sua eficácias09 • A data da publicaçi
presume-se ser a que consta do respetivo número do Jornal Ofici:
mas estamos perante uma presunção iuris tantum, pelo que, como
entendeu o TJ, ela pode ser ilidida pela prova de que esta última da
não correspondeu à data da efetiva publicação do regulamentoS 10
Não é raro o regulamento não prever a entrada em vigor siml
tânea das suas disposições. Em contrapartida, razões de urgênc
podem levar o regulamento a ordenar a sua aplicação imediataSU
Um tipo especial de regulameuto é constituído pelos regime
tos (mal chamados em português de "regulamentos interiores") d·
órgãos e das instituições da União, aprovados por eles no exercíc
do seu poder de auto-organização, e que disciplinam a sua organiz
ção e o seu funcionamento interno. Também esses regulament.
devem respeitar os Tratados. Eles não têm força executória e ni
Acs. 5-5-77, Koninklije Scholten Honig, Prac. 101176, Rec., pgs. 797 e
segs., e 6-10-82, Alusuisse, Proc. 307/81, Rec., pgs. 3.463 e segs.
306 Ver assim, embora nem sempre em coincidência com o nosso pensamento, PR10LLAUD/SIRITZKY, pgs. 360-361.
soo Ac. TI 14-12-71, Polili, Proc. 43171, Rec.. pgs. 1.039 e segs.
3U8 Ac. TJ 17-12-70, cit.
'"9 Ac. TI 29-5-74, H. C. KOllig, Proe. 185173, Rec., pgs. 607 e segs.
5lU Ac. 25-1-79, Racke, Proe. 98178, Rec., pgs. 69 e segs.
'" Despacho TI 16-1-87, Enital, Proc. 304/86, CoI., pgs. 267 e segs.
466
467
3U5
o Direito da
União Europeia
são suscetíveis de ser invocados diretamente por particulares"',
embora o TJ tenba já decidido em sentido contrário S13 •
Por fim, também reveste a natureza de regulamento, embora
não apareça expressamente qualificado como tal, o Estatuto dos
funcionários. Por isso, estes podem invocá-lo perante os tribunais
nacionais514 •
184. As diretivas
a) Sua natureza jurídica
Bibliografia especial: D. SIMON, La directive européenne, Paris,
1997; H. PONGÉRARD, L'application des directives communautaires en
droit interne, aspects normatifs, diss., Ilha da Reunião, 2000.
As fontes do Direito da União Europeia
rior hierárquico orientar o subalterno no exercício de poderes discricionários 5 15 •
As finalidades prosseguidas pelas diretivas são as mais diversas. Mas predominam duas: a primeira, prevista nos Tratados, consiste na concretização do programa de liberalização da circulação; a
segunda, sem dúvida a mais importante, é a da harmonização das
Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da União Europeia, nas
várias áreas onde essa harmonização tem sido necessária por força
da evolução da integração. É sobretudo esta segunda finalidade que
confere à diretiva a natureza de norma, similar à do regulamento
legislativo, como bem reconheceu o TJ'l6. A determinabilidade dos
destinatários da diretiva não lhe retira esse carácter geral e abstrato,
como já decidiu o TJm .
b) Aspetos fundamentais do seu regime jurídico
A diretiva encontra-se definida e caracterizada no artigo 288. 0 ,
par. 3, TFUE. De harmonia com esse preceito:
a) ela tem como destinatários só os Estados-membros;
b) ela obriga os Estados destinatários (só) quanto ao resultado
que visa alcançar;
c) ela deixa aos Estados destinatários liberdade de escolha
quanto à forma e quanto aos meios de alcançar o resultado
previsto.
o ato que correspondia à atual diretiva da União no antigo
Tratado CECA (a recomendação) podia ter por destinatários não só
Estados, como também empresas.
A diretiva da União teve a sua origem na diretiva do Direito
Administrativo francês, onde ela serve de instrumento para o supeAç. TI 7-5-91, NakajimaAll Precision c. 0 Ltd., Proe. C-69/89, CoI., pgs.
1-2.069 e segs.
m Ac. 27-2-92, BASF, Proc. T-79/89, CoL, pgs. 11-315 e segs.
'" Ac. TJ 4-5·88, Watgell, Proc. 64/85, CoL, pgs. 2.435 e segs.
512
468
Para que as diretivas possam vigorar na ordem interna dos
Estados é necessário que elas sejam transpostas para o Direito
interno nos prazos nelas fixados. Todavia, o ato de transposição não
pode ser assimilado a um ato de receção, muito menos, de transformação, da diretiva5l '. Constitui uma obrigação dos Estados destinatários eles transporem as diretivas para a ordem interna, com
fidelidade ao que nelas se encontra disposto e no prazo nelas estabelecido, e comunicarem periodicamente à Comissão as medidas
que vão sendo adotadas para a execução das diretivas na ordem
interna.
A circunstância de a diretiva só se dirigir aos Estados-membros
e de, portanto, não gozar de aplicabilidade direta na ordem interna,
car-ec(~ndo, para o efeito, de um ato estadual de transposição, no
qual, ainda por cima, os Estados destinatários gozam da liberdade
515
QUADROS, A /lava dimensão, pg. 14.
"6 Ac. 22-2-84, Kloppenburg, Proc. 70/83, CoL, pgs. 1.075 e segs.
51?
Ac. 27-4-89, Comissão c. Itália, Proe. 324/87, CoL, pgs. 1.013 e segs.
Sobre a receção e a transfonnação do Direito Internacional, ver GONPERElRAlQUADROS, pgs. 81 e segs. e 94 e segs.
5111
469
-I'
o Direito da União Europeia
Asfontes do Direito da União Europeia
de escolher a forma e os meios adequados para prosseguirem o
resultado imposto pela diretiva, marca, só por si, uma distinção
essencial entre o regulamento e a diretiva. De facto, aquele é um ato
supranacional, exprime uma relação de supremacia do Direito da
União Europeia sobre o Direito interno, ou, dito doutra forma, uma
relação de subordinação da ordem interna dos Estados em relação à
Ordem Jurídica da União. Ao contrário, a diretiva é um ato eminentemente de cooperação entre a Ordem Jurídica da União e a ordem
interna, sem prejuízo do princípio geral do primado do Direito da
União Europeia sobre o Direito estadual. Nada disso é prejudicado
por estes traços importantes do regime jurídico da diretiva: o Estado
está obrigado a, no ato de transposição, dar a este um conteúdo conforme com a diretiva, de modo a cumprir esta de boa-fé; para além
de os Estados deverem respeitar o prazo de transposição fixado na
própria diretiva, resulta das disposições combinadas dos artigos 4. 0,
n.o 3, pars. 2 e 3, UE, e 288.°, par. 3, TFUE, que, como entende o
TJ, "enquanto corre o prazo para a transposição os Estados devem
abster-se de adotar quaisquer medidas que possam comprometer o
resultado prescrito pela respetiva diretiva. E cabe aos tribunais
nacionais controlar, nesse sentido, a legalidade das disposições
nacionais'"19. Num Acórdão mais recente, o TJ foi mesmo mais
longe. Ele veio dispor que, ainda antes da transposição, os Estados,
para além da referida obrigação de abstenção, isto é, da obrigação
de não adotar medidas que ponham em risco a obtenção do resultado
visado pela diretiva, estão vinculados a uma obrigação de ação, isto
é, devem adotar "de imediato" medidas "concretas" para "aproximar" o seu Direito "do resultado prescrito na diretiva". O TJ encontra um fundamento muito simples para esta conclusão: a diretiva
obriga os Estados, não a partir da transposição, mas a partir da sua
entrada em vigor no ordenamento jurídico da União"o.
Por sua vez, a transposição obriga os Estados, não só a aprovar
todas as medidas internas que sejam necessárias ao cumprimento,
integral e rigoroso, das obrigações resultantes da diretiva, como
também a divulgar os direitos que elas conferem aos particulares e
a eliminar do Direito interno todas as disposições que se revelem
incompatíveis com a aplicação correta da diretiva"'.
O TJ entende que as medidas internas de transposição da diretiva devem revestir-se de força jurídica suficiente para revogarem as
disposições nacionais incompatíveis com a diretiva522 •
Todavia, é da exclusiva responsabilidade do Estado escolher a
forma adequada para o ato de transposição. Ê preciso, no entanto,
não esquecer que um aspeto muito importante do regime jurídico do
ato interno de transposição da diretiva consiste em que ele não põe
em causa a natureza comunitária das disposições da diretiva. Isso
releva para todos os efeitos, nomeadamente, para a definição do
grau hierárquico do ato de transposição da diretiva na ordem interna
do respetivo Estado. Esse grau hierárquico é fornecido pela diretiva
transposta, não pelo ato de transposição, seja este um ato legislativo
ou um ato administrativo. Isto quer dizer que o Estado não pode
refugiar-se no grau hierárquico do ato de transposição na sua ordem
interna para recusar o primado da diretiva transposta sobre o Direito
nacional, em conformidade com a teoria do primado do Direito da
União sobre o Direito interno 523 •
Como já se disse, a diretiva deixa aos Estados a escolha da
forma e dos meios de eles atingirem o resultado por ela fixado. Cedo
se generalizou, porém, a tendência para o Conselho e a Comissão
aprovarem "diretivas de pormenor" (Udirectives detail/ées"), isto é,
diretivas onde a escolha pelos Estados da forma e dos meios aparecia, mais ou menos, limitada pelo próprio conteúdo da diretiva. A
intenção do Conselho e da Comissão era a de, com esse comportamento, evitar a adulteração pelos órgãos legislativos nacionais da
Ac. 18-12-97, caso /nter-Environnement Wallonie, Pmc. C-129/96, Col.,
pgs. 1-7.411 e segs.
520 Veja-se o importante Ac. 22-11-2005, Mangald, cit., ponto 72, com
apoio nas conclusões do Advogado-geral TlzzANo, pontos 117 e segs.
521
25~5-82,
Comissão c. Países Baixos,
pgs. 1-6.869 e segs.
522 Ac. 17-11-92, Comissão c. Irlanda, Proc. C-235191 , CoL, pgs. 1-5.917 e
519
470
Sobre este último ponto, Acs. TJ
Proc. 96181, CoI., pgs. 1.791 e segs., e 4-12-97, Comissão c.Itália, Proe. C-207/96,
523
Ver as referidas conclusões do Advogado-Geral no caso Mangold, ponto
117.
471
I
!
!
o Direito da União Europeia
As jantes do Direito da União Europeia
pureza do resultado prosseguido pela diretiva. Essa tendência, todavia, foi posta em causa, sobretudo, pelo Acórdão do TJ no caso
Cassis de Dijon 524 • E com a inclusão do princípio da subsidiariedade
no Tratado CE pelo Tratado de Maastricht, a CE passou a abandonar, progressivamente, a prática da elaboração de diretivas de
pormenor"'. Na hipótese de o Estado destinatário não transpor a
diretiva dentro do prazo fixado para o efeito, ou no caso de, de
algum modo, os seus órgãos não cumprirem a diretiva, ele incorre
em situação de incumprimento, que pode determinar a abertura de
um processo por incumprimento, nos termos dos artigos 258.° a
260.° TFUE. Isso resulta do facto de O prazo para a transposição ter
perante o Estado faltoso para fazer valer, perante este, um direito
que a diretiva lhe confira. Igual solução deve ser adotada no caso de
a diretiva haver sido transposta, sim, mas de modo errado ou insuficiente. O efeito direto vale, nesse caso, antes de mais, como uma
sanção contra o Estado, por não haver transposto, ou por haver
transposto mal, a diretiva.
Note-se que o efeito direto de uma diretiva não dispensa o
Estado do dever de a transpor para a ordem interna, nem do dever
de reparar os prejuízos entretanto causados com a não transposição,
carácter imperativo526-527.
À mesma conclusão se chega em caso de errada ou insuficiente
transposição da diretiva.
Todavia, num caso e noutro, O processo por incumprimento,
previsto nos artigos acima citados, pode ser substituído por uma
ação de responsabilidade civil extracontratual a propor contra o
Estado faltoso nos seus tribunais nacionais, segundo as regras processuais próprias do respetivo Estado. A responsabilidade do Estado
é, nesse caso, uma responsabilidade comunitária, a aferir, inclusive
no que toca à reparação do dano, pelos critérios próprios do Direito
da União. O regime aplicável nesse caso é o definido pelo TJ na
jurisprudência iniciada no caso Francovich e desenvolvida em
vários Acórdãos posteriores 52'.
Decorrido o prazo para a transposição da diretiva sem que esta
haja sido transposta pelo Estado destinatário, a diretiva goza de
efeito direto (se reunir os requisitos exigidos para isso, e que adiante
serão estudados), isto é, ela pode ser invocada por um particular
524 Ac. 20-2-79, Rewe-Zentral, Proc. 120/78, Rec., pgs. 649 e segs. Ver mais
pormenores sobre esta matéria em RIDEAU, pg. 163.
525 Assim, RIDEAU, loe. cito
526 Acs. TJ 6-10-70, Franz Grad, Pme. 9170, Rec., pgs. 825 e segs., e 10-4-84, von Colson, Proc. 14/83, CoI., pgs. 1.891 e segs.
527 Ver PONGÉRARD, op. cit., e QUADROS/MARTlNS, pgs. 189 e segs.
528 Vejam-se mais ponnenores em QUADROS/MARTJNS, pgs. 232 e segs., e
bibl. aí cito
472
ou incorreta, ou insuficiente, transposição, da diretiva, segundo os
critérios da jurisprudência Francovich, nem do dever de adotar as
medidas necessárias e adequadas à conveniente aplicação da diretiva na ordem interna'29. E sublinhe-se também o facto de, não obstante o efeito direto só nascer com o termo do prazo para a sua
transposição, como sanção contra o Estado pela sua não transposição ou pela sua errada ou insuficiente transposição, a diretiva deverá
ser levada em conta pelo Estado, mesmo antes da sua transposição
ou do esgotamento do prazo para a sua transposição, nomeadamente, não adotando ele medidas que contrariem o resultado fixado
pela diretiva. Já estudámos isto atrás a propósito do caso Mangold.
Até à entrada em vigor do TUE, as diretivas eram sempre
publicadas no Jornal Oficial, série Legislação, sob a rubrica Atos
cuja publicação não constitui condição da sua aplicabilidade, mas
só entravam em vigor após a sua notificação aos Estados destinatários. Esse regime foi alterado pelo Tratado UE, como pode ser visto
ex-artigo 254.° CE, na versão de Nice. Por sua vez, este prefoi modificado pelo atual artigo 297.° TFUE, após o Tratado
Lisboa, como já referimos atrás.
Tal como vimos acontecer com os regulamentos, também as
dir,eti',as se dividem em diretivas legislativas, delegadas e de exeO TUE, após a revisão de Amesterdão, veio criar uma categoeSIJec:ial de diretivas, chamadas de decisões-quadro. Elas esta529
Ac. TJ 2-3-96, Comissão
C.
Alemanha, Prac. C-96/95, CoI., pgs. 1-1.653
473
o Direito da União Europeia
As jonfes do Direito da União Europeia
vam acolhidas no então artigo 34.°, n.o 2, aI. b, UE, no âmbito do
antigo terceiro pilar. Um dos seus traços característicos, e como
consequência do facto de o terceiro pilar ter natureza intergovernamental, era o de elas não terem efeito direto. Todavia, com a comunitarização do terceiro pilar pelo Tratado de Lisboa essas
decisões-quadro foram eliminadas por aquele Tratado.
as diretivas, mediante decreto legislativo regional, sobre matérias
de "âmbito regional", isto é, matérias que se encontrem enunciadas
no Estatuto Político-Administrativo da respetiva região autónoma e
que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo
do disposto no art. 227.°, n.o I, aIs. b e c S30 Isto significa que,
quando uma diretiva não tiver apenas âmbito regional, as regiões
autónomas poderão transpô-Ia no plano material, apenas na medida
do seu âmbito regional.
Portugal tem descurado a transposição das diretivas para a sua
ordem interna. É frequente as diretivas não serem transpostas dentro
do prazo para isso fixado por elas, ou serem transpostas de modo
incompleto, ou errado, ou insuficiente. Mesmo que as diretivas
gozem de efeito direto, mas, sobretudo, no caso contrário, nessa
situação o Estado Português constitui-se, nos termos já referidos, em
responsabilidade extracontratual, de Direito da União, para além de,
pela hierarquia das fontes de Direito, poder ficar afetada a validade
(até ao extremo da nulidade), ou a própria existência jurídica, não só
de normas jurídicas internas, mas também de atos e de contratos, de
Direito Público e de Direito Privado, celebrados na ordem interna,
que são conformes com os atos legislativos de transposição das
diretivas mas que são desconformes com as diretivas transpostas531 •
A correção de todo este compOltamento do Estado Português
,tem de começar pela criação, ao nível do Parlamento, da Adminis'tração Central do Estado e da Administração das regiões autónomas,
'i,$fe serviços jurídicos especialmente qualificados para a transposição
>~asdiretivas, à semelhança do que já fizeram muitos dos outros
,Estados-membros da União, inclusivamente, alguns dos que aderi',;rarn mais recentemente. Enquanto isso não acontecer estão a ser
postos em causa, tanto o cumprimento correto por Portugal do
c) A transposição das diretivas para a Ordem Jurídica portu-
guesa
Bibliograf'rn
especial: M. REBELO DE SOUSA,
A transposição das
directivas cOlnunitárias para a ordem jurídica nacional, in Legislação,
1992, pgs. 69 e segs.; R. MEDEIROS e I. M. ALBUQUERQUE CALHEIROS, As
regiões autónomas e a aplicação das directivas comunitárias, DI 1993,
pgs. 417 e segs.; C. BLANCO DE MORAIS, A forma jurídica do acto de
transposição de directivas comunitárias, Legislação, janeiro-março
1998, pgs. 41 e segs.
É a Constituição da República que disciplina a transposição
das diretivas para a Ordem Jurídica portuguesa.
Segundo o n.° 9 do seu artigo 112.°, número esse que foi aditado àquele artigo na revisão constitucional de 1997, a transposição
das diretivas comunitárias para a ordem jurídica interna tinha de
assumir a forma de lei ou de decreto-lei. Ou seja, a transposição das
diretivas tinha de ser levada a cabo em Portugal necessariamente por
ato legislativo do Parlamento ou do Governo.
Todavia, por força do artigo 227.°, n.o 1, aI. a, inflne, e aI. V;
o ato legislativo de transposição devia ser precedido de consulta das
regiões autónomas dos Açores e da Madeira sempre que a transposição afetasse o interesse específico da respetiva região autónoma,
sob pena de inconstitucionalidade orgânico-formal do ato legislativo de transposição.
A revisão constitucional de 2004 alargou substancialmente a
competência das regiões autónomas nesta matéria. De facto, por
força das disposições conjugadas do art. 112.°, nO' 4 e 8, e do art.
227.°, n.o 1, aI. x, passaram também as regiões autónomas a trElnspor
474
530
No mesmo sentido, MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, t. V, 3.
a
_:,.Coimbra, 2004, pgs. 187 e segs. e 398 e segs.
.531 Para além dos estudos já citados atrás sobre este ponto (QUADROS!
iITINS, pg. 189 e bibl. cito a pgs. 185-186), ver também QUADROS, Serviço
_.~blico e Direito COllllmifário, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
'.), Os caminhos da privatização da Administração Pública, Coimbra, 2002,
S, 279 e segs, (292 e segs,).
475
o Direito da União Europeia
Direito da União, como também a adequada defesa dos interesses
nacionais, a salvaguarda de direitos fundamentais dos cidadãos e o
correto aproveitamento de dinheiros públicos"'.
185. As decisões
De harmonia com o artigo 288.', par. 4, TFUE (ex-artigo
189.', par. 4, CE), a decisão é "obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes".
Isso significa que a decisão obriga quanto ao resultado, aos
meios e à forma, mas, quando indica destinatários concretos, só
obriga estes.
Antes do Tratado de Lisboa, a decisão consistia num ato individual e concreto, mesmo quando revestia a forma de ato plural, isto
é, mesmo que se dirigisse a várias pessoas determinadas ou determináveis, fossem Estados-membros ou particulares. Por isso, era mais
feliz o Tratado CECA quando a designava de "decisão individual"53'.
A decisão aproximava-se, pois, do acte faisant grief, do Direito
Administrativo francês, ou do ato administrativo materialmente
definitivo, ou do ato lesivo, do moderno Direito Administrativo
português. Por isso, inclusivamente não se confundia com meros
atas preparatórios de decisões finais'34.
O Tratado de Lisboa, com a nova redação dada ao artigo 288.',
par. 4, TFUE, alterou a natureza da decisão. Agora, ela não é necessariamente um ato individual e concreto. Será um ato individual e
concreto quando não for geral e abstrato e os seus destinatários
estiverem determinados ou foram determináveis"'. Ela também não
tem necessariamente que ter destinatários - pode tê-los ou não
(artigo 288.', par. 4, 2. a parte, TFUE). E pode ter uma natureza
muito variada: pode ser um ato legislativo, aprovado pelo Parlam Ver, complementarmente, infra, 11. 0 254.
533 Ac. TJ 14-12-62, caso da Confédération nationale des producteurs de
fruits et légumes, cit.
'" Ae. TJ 11-11-81, IBM, Proe. 60/81, CoI., pgs. 2.639 e segs.
535 No mesmo sentido, JACQUÉ, pg. 524.
476
As fontes do Direito da União Europeia
menta Europeu e pelo Conselho, no quadro de um processo legislativo ordinário, ou pelo Conselho, no âmbito de um processo
legislativo especial; pode ser um ato delegado; pode ser um ato de
execução; pode ser um ato sui generis, como acontece com grande
parte das decisões tomadas no quadro da PESC, que constitui a sede
onde os Tratados mais se servem das deci sões .'i36.
As decisões são diretamente aplicáveis quando se dirigem a
sujeitos internos dos Estados-membros, e gozam de efeito direto
quando têm como destinatários diretos apenas os Estados.
186. As recomendações e os pareceres
1 . \
/~
O artigo 288.', par. 5, TFUE indica também, como fontes do
Direito derivado, as recomendações e os pareceres. Pelo simples
facto da sua designação, percebe-se que uns e outros, em princípio,
não têm efeito vinculativo, o que não acontecia com as antigas recomendações do Tratado CECA, que tinham os mesmos efeitos jurídicos das atuais diretivas da União Europeia.
Os pareceres não suscitam quaisquer problemas: eles são, em
regra, puros atas consultivos ou opinativos, que provêm da "consulta" (vejam-se, por exemplo, os artigos 48.', n.' 6, par. 2, UE, e
218.', n.' 6, aI. b, TFUE). "Não comportam qualquer obrigação
jurídica para os seus destinatários", entende o TJ'37. Desapareceram
os antigos pareceres favoráveis, ou conformes, do Parlamento Europeu, que eram vinculativos, e que deixaram de ser pareceres para
". serem designados de atas de "aprovação" (vejam-se, por exemplo,
'os artigos 49.°, par. I, UE, e 218.', n.' 6, aI. a, TFUE).
.
É diferente a situação das recomendações. Elas encerram um
convite aos seus destinatários para a adoção de um dado comportamento. Nesse sentido, elas cumprem a função da diretiva, enquanto
vêm prever e disciplinar o comportamento dos órgãos aos quais se
.• destinam. Por sua vez, estes sabem que, se a recomendação não for
536
537
Veja-se sobre esta matéria o manual de DONY, pg. 227.
Ac. 10-12-57, Société des resines, Procs. 1 e 14/57, Rec., pgs. 201 e segs.
477
o Direito da União Europeia
respeitada, ela poderá ser seguida de um ato vinculativo, que acolherá o conteúdo da recomendação que não fOl segUIda.
Noutros casos, a recomendação visa definir um quadro geral
de atuação, dentro do qual o órgão destinatário se deverá m?ver. ,
Portanto, como se vê, a recomendação produz um efeito Jundico persuasivo, que não está muito afastado de um efeito vinculativo. No domínio prático, a recomendação acaba por obngar. E
melhor se compreende isso se levarmos em conta que a jurisprudência da União tem entendido que os tribunais nacionais devem servlr-se das recomendações como instrumento de interpretação das
medidas nacionais aprovadas para as pôr em execução, ou
completar ou desenvolver outras medidas da União de carácter vinculativo"8.
SECÇÃO IV
o Direito Internacional
Bibliografia especial: P. PESCATORE, Les relations extérieures
Comnmnautés européennes, RCADI 1961-II, pgs. 9 e segs.; l-V.
Compétence intemationale et compétence interne des
note sous arrêt AETR, CDE 1971, págs. 479 e segs.; W. J. GANSHOF
DER MEERSCH, L'ordre juridique des Communautés européennes et
droit international, RCADJ 1975, pgs. 1 e segs.; V. CONSTANTlNESCO e
SIMON, Quelques probIemes de relations extérieures des
eurapéennes, RTDE 1975, pgs. 432 e segs.; H. KRÜCK, Volk.errechl:lic.\e
Vertriige im Recht der europiiischen Gemeinschaften, Berltm, 1977;
CAPELLl, Réglementation communautaire et réglementation du
RMC 1977, pgs. 27 e segs.; R. KOVAR, La contribution de la Cour
Justice au développement de la condition intemationale de la
CDE 1978, pgs. 527 e segs.; A. BLECKMANN et ai, Divisian 01
between the European COnInumities and their Member States in
Field of Extemal Relatiom, Deventer, 1981; P. PESCATORE, L' app~icati
judiciaire des traités internationaux dans la Communauté europeenne,
dans ses États membres, Mélanges Teitgen, 1984, pgs. 355 e segs.;
Por todos, Ac. TJ 13-12-89, Fonds de maladies projessionnelles,
C-322/88, CoI., pg8. 1-4.407 e segs.
538
478
As fontes do Direito da União Europeia
CONSTANTINESCO, La Cour de justice eles C01J111llll1autés européennes et
le droit international, Mélange8 Ch. Challmont, 1984, pgs. 207 e segs.;
F. DE QUADROS, dissertação de doutoramento, cit., sobretudo, pgs. 451 e
segs.; P. DEMARET, Relations extérieures de la Commullauté européenne
et marché intérieur: aspects juridiques etfOllctiol1/lels, Bruges, 1988; N.
FERNANDEZ SOLA, El reparto de competencias entre la Comunidad
Europea y sus Estados miembros en el ambito de las relaciones exteriores, C011 especial referencia a los acuerdos internacionales, dissertação,
Saragoça, 1988; C. FLAESCH-MoUGlN, Le Traité de Maastricht et les
cOlllpétences extemes de la CE, CDE 1993, pg8. 351 e segs.; J.·P.
PUISSOCHET, L'affirmation de la personalité internationale des
ComnumGutés européel111eS, Mélanges Boulouis, pgs. 437 e segs.; L
MACLEOD, I. D. HENDRY e STEPHEN HVETT, The External Relations of the
European Communities, Oxford, 1996; FERNANDO BASTOS, Os acordos
mistos em Direito Comwzitário, dissertação, Lisboa, 1997; D. MAC
GOLDRICK, internarional relatiol1s law of the European Union, Londres,
1997; P. DES NERVIENS, Les relations extérieures, in Dalloz (ed.), Le
Traité d' Amsterdam, 1998, pgs. 93 e segs.; A. DASHWOOD, External relations provisions of the Amsterdam Treaty, CMLR 1998, pgs. 1.019 e
segs.; C. KADDOUS, Le droit des relations extérieures dans la jurisprudence de la Cour de justice dês Comnumautés européennes, Bruxelas,
1998; M. DONY (dir.), L Unioll européenne et le monde apres Amsterdam,
Bruxelas, 1999; l-E FLAUSS, Droits de l'homme et relations extérieures
de /'U11ion européenne, in O.c., L'Union européenne et les droits fon~
damentallx, Bruxela8, 1999, pgs. 137 e segs.; K. LENAE.TS e E. OE
SMIJTER, The European Union as an Actor under lnternational Law,
YEL 1999-2000, pgs. 95 e 8eg8.; P.-Y. MONJAL, La Caurdejustice et les
accords externes conclus par la Communauté européenne: une integration contrôlée dans l'ordre juridique commullGutaire, Mélanges Isaac,
pgs. 409 e segs.
I
7. 'Introdução
;tro Direito Internacional é, cada vez mais, uma fonte importante
'!Direito da União. E por várias razões. Primeiro, numa Comuni,e Internacional progressivamente mais aberta, e em fase de glo")lção, é cada vez mais intenso o relacionamento da União com
ps sujeitos de Direito Internacional. Segundo, os próprios Esta479
o Direito da União Europeia
Asfontes do Direito da União Europeia
dos-membros, antes da adesão às Comunidades e à União, ou depois
dela, cultivaram e cultivam relações estreitas entre si e com terceiros
sujeitos, inclusive com outras Organizações Internacionais. Terceiro, sobretudo após o TUE, de 1992, a própria União e as Comunidades passaram a servir-se de convenções internacionais para
completarem e desenvolverem a sua própria Ordem Jurídica interna.
O estudo do Direito Internacional como fonte do Direito da
União tem de ser efetuado separadamente quanto:
qualquer ressalva, estaremos a pensar na categoria genérica dos
tratados internacionais.
A União tem capacidade para concluir tratados internacionais.
Isso resulta dos artigos 37." UE e 216.° e 217.° TFUE. Esses tratados internacionais obrigam, pelo simples facto da sua conclusão,
tanto a União como os Estados-membros, como dispõe O artigo
216.°, n.O 2, TFUE.
O artigo 216." TFUE, que é novo nos Tratados, veio esclarecer
as categorias dos tratados internacionais que a União pode celebrar.
São elas as seguintes:
a) aos tratados internacionais (tratados solenes ou acordos em
b)
c)
d)
e)
forma simplificada) celebrados pela União com terceiros;
aos tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros com terceiros;
aos tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros entre si;
aos atos unilaterais de Organizações Internacionais nas
quais são partes, ou os Estados, ou a própria União;
ao Direito Internacional geral ou comum.
Vejamos cada uma dessas fontes.
188. Os tratados internacionais celebrados pela União com terceiros
I - O enunciado do problema
No quadro das suas relações externas e, concretamente, do seu
ius tractuum próprio, a União é levada a concluir tratados (tratados
solenes ou acordos em forma simplificada) com terceiros, sejam
Estados ou Organizações Internacionais. Já vimos, na Parte I, que o
Direito da União prefere falar em "acordos", com base no Título V
do TFUE, e, sobretudo, no artigo 218." TFUE, para se referir
conjunto dos tratados internacionais, isto é, ao conjunto dos tratados
solenes e dos acordos em forma simplificada. Por isso, sempre que
falarmos de seguida de acordos ou tratados internacionais,
480
a) acordos que os Tratados preveem de modo expresso;
b) acordos cuja conclusão é necessária para a União alcançar
um dos objetivos fixados pelos Tratados mesmo em domínios onde a União não alcançou, no plano interno, uma
política comum. Aqui o TFUE absorveu a jurisprudência
do TJ no caso Kramer539 ;
c) acordos cuja conclusão se encontra prevista num ato vinculativo da União, que atrás estudámos;
d) acordos cuja conclusão é necessária para permitir à União
prosseguir as suas atribuições internas ou é suscetível de
afetar as regras comuns ou de alterar o seu alcance. Neste
ponto, o TFUE acolheu a jurisprudência do TJ no Acórdão
AETR540.
A competência para a celebração desses tratados encontra-se
defini<la no artigo 218. ° TFUE. Por aí se vê que o Conselho define
gerais das negociações e conclui os tratados com a particiipal,ão da Comissão, do Alto Representante e do Parlamento
Os tratados concluídos pela União vigoram na ordem interna
União sem a necessidade de qualquer receção expressa. Obri'30 Acórdão. 14-7-76, Proc. n.' 3176, 4176 e 6176, Rec., pgs. 1.279 e segs.,
pelo Parecer do TJ n." 1194, de 15-11-94, DMe, Rec., pgs. 1-5.267 e segs.
Cit., pgs. 263 e segs. Cfr. supra, TI.O 90.
541}
481
o Direito da União Europeia
gam, portanto, desde a data da sua entrada em vigor, tanto a União
como os Estados-membros, sem a necessidade, quanto a estes, de
qualquer ato nacional de ratificação ou de aprovação.
Como dissemos, isso decorre, desde logo, do artigo 216.°,
n. ° 2, TFUE. Mas resulta também da construção jurisprudencial
segundo a qual o ato de conclusão do tratado, que reveste a forma
de regulamento ou de decisão, não tem a função de receber o tratado
na Ordem da União. O TI deixou-o dito, de modo claro, no caso
Haegeman II: "as disposições do acordo fazem parte integrante da
Ordem Jurídica comunitária a partir da sua entrada em vigor""l.
Repetiu-o mais tarde o TPI no caso Opel Austria542 • Daqui é legítimo concluir-se pela adoção, pelos dois Tribunais, na matéria, de
uma conceção monista das relações entre o Direito da União e o
Direito Internacional'''.
Mais tarde, nas suas conclusões no caso Polydor, o Advogado-Geral renovaria essa posição, atribuindo ao regulamento de
conclusão do tratado uma natureza simplesmente "instrumental".
Disse então o Advogado-Geral: "O regulamento (...) limita-se a
aprovar o acordo concluído pelo Conselho (...). Ele tem por efeito
transpor para a Ordem Jurídica comunitária as cláusulas do acordo
sem lhe modificar nem o seu conteúdo nem o seu alcance. Tem,
.
1"544 .
portanto, uma natureza meramente mstrumenta
E a prática dos Estados vai no sentido de eles aceitarem essa
orientação.
Todavia, o facto de o tratado ser concluído mediante um regulamento fá-lo cair no domínio do artigo 267.° TFUE. Ou seja,
podem ser suscitadas questões prejudiciais, ao abrigo daquele preceito, quanto a um tratado internacional concluído pela União.
Assim decidiu o TJ, por exemplo, no referido caso Haegeman II'4S.
541
As jontes do Direito da União Europeia
A circunstância de o TJ atribuir ao regulamento de aprovaç
de um tratado um carácter meramente instrumental, ou fOlmal, n
o impediu de, após haver recusado carácter se/j-executing às disp
sições do antigo GATT na ordem interna da União, ter reconheci,
que essas disposições, através da transferência pelos Estados-men
bros para a União dos seus poderes soberanos em matéria de paut
aduaneira externa comum, gozavam de efeito direto na Ordem Iurí
dica da União, podendo, por isso, ser invocadas por particulare,
perante um tribunal'46. Essa posição do Tribunal não deve, contudo
quanto a nós, ser interpretada como exprimindo uma alteração li
sua conceção acerca da natureza e dos efeitos do ato de conclusã,
do tratado pela União (conceção essa que ficou acima enunciada)
mas apenas como uma forma de melhor se proteger os direitos dm
particulares.
O mesmo problema vamos encontrá-lo a propósito da publicação dos tratados concluidos pela União.
Os regulamentos e as decisões de conclusão desses tratados
são publicados no Jornal Oficial, trazendo anexos a eles o texto dos
respetivos tratados. A publicação daqueles atos inclui a indicação da
data da entrada em vigor dos acordos ou, pelo menos, do sistema de
definição daquela data. Além disso, esses tratados são objeto de
publicação autónoma na Colectânea de acordos concluídos pela
União Europeia.
Pergunta-se, então: pode um acordo da União ser invocado por
um particular em tribunal ainda antes da sua publicação? O TI
entendeu que sim, no caso Sevince 547 • Reconhecemos que a questão
é controversa. Todavia, também aqui parece-nos razoável ver-se na
pOliÍçiio do Tribunal, não tanto a afirmação de uma posição jurídica
e doutrinária acerca dos efeitos da publicação, mas sobretudo, se
não apenas, uma forma pragmática de melhor se salvaguardar os
direitos dos particulares'''.
Ac. 30-4-74, Proe. n.o 181/73, Rec., pgs. 449 e segs.
>4, Ae. 22-1-97, Proe. n.o T-1l5/94, CoI., pgs. I1-39 e segs.
543 Foi a posição que defendemos em 1984, com uma deosa fundamentação,
e que mantemos - veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 453 e segs.
,.. Ae. TI 9-2-82, Proe. n.O 270180, Ree., pgs. 329 e segs.
545 Loe. ei!..
482
Ae. 24-10-73, Schlüter, Proe_ 0.° 9173, Rec., pgs. 1.135 e segs., e Ae.
Fedia/, Proe. n.o 70/87, CoI., pgs. 1.781 e segs.
'" Ae. 20-9-90, Proe. n.O C-192/89, Ree., pgs. 3.461 e segs.
548 Assim, RIDEAU, pg. 209.
546
22··6-~;9.
483
o Direito da União Europeia
II - Os acordos mistos
As fontes do Direito da União Europeia
:E foi essa a interpretação que o TJ deu àquele preceito no
Uma referência especial merecemos chamados acordos"~,
tos". São tratados concluídos, do lado da União, conjuntamente:~l
União e pelos Estados-membros, porque o objeto do acordo sÓ;p."
cialmente cabe nas atribuições da União. On seja, o tratado ipçi.ª
sobre matéria que, no sistema de repartição de atribuiçõesen~~,
União e os Estados-membros em vigor no momento do acordp,.~t~
competência cumulativa da União e dos Estados-membros. Natt,''''
em que são celebrados pelos Estados esses acordos encontr
sujeitos às respetivas disposições constitucionais sobre conelu
tratados internacionais. São acordos mistos a maior parte dos
dos multilaterais em que a União é parte e todos os acord
associação qne as Comunidades e a União coneluiram com ter
sujeitos. Eles podem também ser usados em todas as matérj
atribuições concorreutes ou partilhadas, embora nada o impo.
Como se disse atrás, com a revogação do ex-artigo 133.g'·
par. 2, inflne, CE, pelo Tratado de Lisboa, há que esperarp,/"
se os acordos mistos sobreviveram àquele Tratado. Deverá~iflç
der-se que eles subsistem sempre que encontrarmos nos Tt~' .
acordos que reúnam as características acima referidas550 •
III - A posição dos tratados na hierarquia
Direito da União
a) A prevalência dos tratados institutivos sobre os'
concluídos pela União com terceiros
Os tratados concluídos pela União com terceiros cedem
os tratados institutivos. Isso resulta hoje do artigo 218.°
.'i49 Ver, especialmente, BOURGEOISIDEwoST/GAIFFE, La Communau
péelllle et les accords mixtes. Quelles perspectives, Bruxelas, 1997, e;po.,
e já depois do Tratado de Lisboa, HJLLION/KoUTRAKOS, MixedAgr
Revisited: The EU and its Member States in the World, Oxford, 2010.': .".
551) Sobre os acordos mistos ver a pg. 373 da l.a ed. deste livro e,bi~
484
ern.o 1175"1.
.~quele Parecer, o TI admitiu a fiscalização preventiva da
"ade dos tratados internacionais, isto é, da sua conformidade
"''','rratado CE, ao abrigo do artigo do Tratado CE que ao tempo
pondia ao atual artigo 218.°, n.o 11, TFUE.
ais complicado é o problema da fiscalização sucessiva dos
.~jnternacionais. Ela não se encontra prevista nos tratados
'#)'os. Designadamente, o artigo 263.° TFUE não sujeita os
'internacionais, eles próprios, ao contencioso de anulação da
0,0"":"""",:",:,,,,::
,t'f94avia, o TI sempre entendeu ter competência para a fiscali-
. _.' ~cessiva daqueles acordos através do controlo do ato de
ã,odo tratado (como vimos atrás, um regulamento ou uma
'2.;0 ato da União de conclusão de um tratado terá, portanto,
'WJ, a natureza jurídica de ato destacável em relação ao respe~~do internacional. Estamos, por conseguinte, perante urna
ção indireta da conformidade dos tratados internacionais
tados institutivos, levada a cabo através do controlo direto
ilivos atos de conclusão da União.
ldefendeu essa posição, primeiro, de forma menos clara,
já conhecido caso AETR'52. Mas, depois, inclinou-se para
'or convicção no caso Comissão c. Conselho'" e, mais
~nte, no caso do Acordo-quadro das bananas, em que anu~isão de conclusão daquele Acordo"'. O Tribunal estendeu
'. tação também aos atos da União de mera execução dos
.,\"rpacionais, corno se pode ver pelos dois Acórdãos sobre
{'.pedal à Turquia'''.
!irece, de 1I-1I-75, Acordo OCDE, Rec., pgs. 1.355 e segs.
gS;263 e segs.
'9.27-9-88, Proc. n. o 165/87, CoI., pgs. 5.545 e segs.
'6'/'10-3-98, Alemanha c. Conselho, Proe. n.O C-122/95, CoI., pgs. 1-973
,<;.27-9-88, Proc. n. o 204/86, CoI., pgs, 5.323 e segs., e Ac. 14-11-89,
/88, CoI., pgs, 3.711 e segs.
485
o Direito da União Europeia
As jontes do Direito da União Europeia
Esta orientação do TJ envolve, porém, graves riscos para a
União.
Com efeito, estamos perante uma situação análoga à das ratificações imperfeitas dos tratados internacionais. Segundo os artigos
27. 0, n. ° 2, e 46. 0, n. ° 2, da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre
Organizações Internacionais, de 1986, uma Organização Internacional que é parte num tratado não pode invocar as suas regras internas
como justificação para o não cumprimento de um tratado, salvo se
o seu consentimento tiver sido expresso com violação de uma disposição do seu Direito interno sobre a competência para celebrar
tratados e essa violação for manifesta e disser respeito a uma regra
de importância fundamental. Esses preceitos reproduzem, aliás, o
regime definido para os tratados entre Estados nos artigos 27.° e
46.°, n.o I, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados
entre Estados, de 1969. Só que não vai ser fácil à União demonstrar
o preenchimento da previsão do artigo 46. 0, n. ° 2, da Convenção de
Viena de 1986, mesmo quando, efetivamente, ela se verifique. Por
isso, a União incorrerá em responsabilidade internacional, por violação do princípio pacta sunt servanda, caso o TJ provoque a desvinculação da União a um acordo internacional através da anulação
do respetivo ato de conclusão, à sombra do artigo 263. ° TFUE.
Essa situação de responsabilidade ficará apenas atenuada, mas
não desaparecerá, caso o TJ conserve parte dos efeitos do ato anulado, ao abrigo do artigo 264.°, par. 2, TFUE.
De qualquer forma, o TFUE parece ter acolhido a referida
orientação do TJUE, ao acrescentar, ao par. I do artigo 263.° TFUE,
a última frase. Por ela, parece que ficou atribuída ao TJUE competência para conhecer da legalidade, em sede de recurso de anulação,
do ato da União que conclua um tratado internacional.
Mas a fiscalização sucessiva dos acordos internacionais através do controlo da legalidade dos respetivos atas de conclusão não
pode ter lugar apenas através do recurso de anulação daqueles atos,
interposto à sombra do artigo 263.°.
Também é de admitir que um órgão jurisdicional estadual suscite perante o TJUE, ao abrigo do artigo 267.°, par. I, aI. b, a questão
prejudicial da interpretação ou da validade do ato da União de conclusão de um acordo internacional celebrado pela União, dando, por
esse meio, oportunidade ao TIUE para se pronunciar sobre a legalidade do acordo em face do Direito da União primário.
Por seu lado, é concebível que uma ação de incumprimento
interposta contra um Estado, com base nos artigos 258.° e 259.°
TFUE, e com fundamento na violação de um acordo internacional
concluído pela União, possa levar o TJ a examinar a própria validade do acordo em face dos tratados institutivos.
Especiais dificuldades coloca a fiscalização dos acordos mistos. Parece óbvio que os Tribunais da União devem poder fiscalizar
486
esses acordos apenas na parte em que eles são concluídos no âmbito
das atribuições da União e não na parte em que eles são celebrados
pelos Estados no quadro das atribuições estaduais. Mas não deixa de
ser difícil de entender que um mesmo tratado internacional, ainda
que eventualmente incidindo sobre objeto divisível, esteja sujeito a
um duplo e diferente regime de fiscalização jurídica.
b) A prevalência dos tratados internacionais sobre o Direito
derivado
Mas se cedem perante os tratados institutivos, os tratados internacionais concluídos pela União prevalecem sobre o Direito derivado.
Essa conclusão resulta do artigo 216.°, n.o 2, TFUE, de harmonia com o qual, como vimos, os tratados vinculam os órgãos da
União e os Estados-membros. Por isso, os atas de Direito derivado,
devem considerar-se abrogados pelos tratados internacionais que os
contrariem.
A jurisprudência, mais uma vez, foi-se pronunciando sobre
esta questão por fases.
No caso lnternational Fruit III, o TJ estabeleceu uma analogia
entre o primado dos tratados internacionais sobre o Direito derivado
e o primado do Direito Comunitário sobre os Direitos estaduais,
seguindo as conclusões do Advogado-Geral MAYRAs556 •
556
Ac. 12-12-72, Procs. apensos n."" 21172 a 24172, Rec., pgs. 1.219 e segs.
487
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia
Logo a seguir, porém, no caso Schroder, o TI veio acentuar a
obrigação da Comissão de assegurar o respeito pelas obrigações que
decorriam para a Comunidade dos tratados internacionais que esta
tivesse concluído"'.
Depois, no Parecer n. ° 1/9]558, o TI extraiu expressamente o
primado dos acordos internacionais sobre o Direito derivado do
antigo artigo 228. 0, n. ° 2, CE (hoje, artigo 216. o, n. ° 2, TFUE), e foi
ao ponto de admitir que ele, Tribunal, se encontrava vinculado por
sentenças de um tribunal que tenha sido criado por um acordo internacional concluído pela União.
Como é que se garante a prevalência dos tratados internacionais sobre o Direito derivado?
Através de uma questão prejudicial que um tribunal nacional
suscite perante O TIUE acerca da interpretação e da validade do ato
de Direito derivado que bole com o acordo internacional, de harmonia com o artigo 267.°, par. I, aI. b, TFUE; através do recurso de
anulação do ato de Direito derivado, recurso esse que se deverá
fundar na violação por esse ato do tratado internacional em questão"'; através de uma ação pela omissão da parte de um órgão da
União de um ato que dê cumprimento ao tratado; ou através de uma
ação de responsabilidade extracontratual contra a União, onde se
peça a reparação dos prejuízos causados pela violação por esta,
através de um seu ato de Direito derivado, de um tratado internacionaP60.
Os acordos internacionais em causa prevalecem sobre o
Direito derivado, tanto anterior, como posterior - em moldes análogos àqueles em que se coloca, portanto, o problema do primado do
Direito da União sobre os Direitos estaduais. Conforme já decidiu o
TI, a União, em caso de conflito entre um acordo internacional e um
ato de Direito derivado, deve começar, sempre, por interpretar este
em conformidade com o primeiro. É o princípio da interpretação
conforme do Direito derivado com os tratados concluídos pela
União"l.
m Ac. 7-2-73, Proc. n.' 40/72, Rec., pgs. 125 e segs.
Parecer 14-12-91, Espace économique européen, Rec., pgs. 1-6.079 e
189. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados·mem·
bros com terceiros
I - Os tratados pré·União
Também são fonte do Direito da União os tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros com terceiros. Mas temos
aí de distinguir os tratados pré-União e os tratados pós-União'''.
Comecemos por estudar os tratados pré-União.
Esta designação pretende abranger os tratados que os Estados-membros concluiram com terceiros antes da entrada em vigor dos
tratados institutivos das Comunidades ou, quanto aos Estados aderentes, antes da entrada em vigor do respetivo Tratado de adesão.
Eles encontram-se regulados no artigo 35 I. ° TFUE.
Segundo o par. I desse artigo, esses tratados continuam a obrigar o novo Estado-membro enquanto não cessarem a sua vigência
de harmonia com as regras do Direito Internacional. Não podia ser
doutra forma: a tanto obrigam a regra pacta sunt servanda, de origem costumeira, e à qual a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, de 1969, submete todos os tratados internacionais, e a
regra da proteção da boa-fé do terceiro que é parte no tratado (terceiro que pode ser um Estado, uma Organização Internacional ou
um outro sujeito de Direito Internacional com ;us tractuum, como,
por exemplo, a Santa Sé). Note-se que esse par. 1 do artigo 351.° se
limita, em grande parte, a acolher a regra geral do Direito Internacional em matéria de tratados sucessivos, codificada hoje no artigo
30.° da Cv.
558
segs.
'" Assim, Ac. TJ 10-3-92, NMB, Proe. n.' C-188/88, CoI., pgs. 1-1.689 e
segs.
Ac. 26-4-72, Interfood, Prac. n.o 92n1, Rec., pgs. 231 e segs.
Veja-se também, especialmente, RIDEAU, pgs. 200 e segs., e SIMON, pgs.
346 e segs.
561
562
560
Como o TJ aceitou no citado caso Haegeman.
488
489
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia
Repare-se em que neste caso iremos ter uma situação em que
Direito Internacional convencional anterior prevalece sobre Direito
da União posterior.
Todavia, não faz sentido que o Estado que aderiu à União continue por muito tempo vinculado a obrigações internacionais, de raiz
convencional, que se revelem incompatíveis com as obrigações que
contraiu como Estado-membro da União. Isso é-lhe imposto pelo
princípio da lealdade comunitária, consagrado no artigo 4. o, n. o 3,
UE. A compatibilização entre estas duas correntes é levada a cabo
pelo artigo 351. o, par. 2, da seguinte forma: o Estado-membro em
causa está obrigado a eliminar a incompatibilidade entre o tratado
internacional pré-União, que celebrou, e o Direito da União que o
passou a obrigar (por exemplo, obtendo a modificação ou, se necessário, a abrogação do tratado pré-União com respeito pelas regras da
CV), para o que deve contar com a colaboração dos outros Estados_membros 563 •
O acordo pré-União não obriga a União, só obriga o Estado ou
os Estados que o concluiram com um terceiro. Por isso, só se aplica
nas relações destes com o respetivo terceiro'64. Sendo assim, não se
coloca o problema de saber se aquele acordo vigora na ordem
interna da União, para além da ordem interna própria do Estado ou
dos Estados-membros que são partes no acordo. Todavia, o TJ já
entendeu que as Comunidades podiam, em certos casos, estar vinculadas a tratados pré-comunitários. Foi o caso, concretamente, do
ex-GATT, no qual já eram partes, à data, todos os Estados-membros
das Comunidades. De forma muito pragmática, o TJ reconheceu o
seguinte: os Estados-membros não queriam deixar de ser partes no
ex-GATT e, mesmo que O quisessem, ser-lhes-ia difícil renegociar
aquele Tratado num quadro tão vasto como o era o dos Estados-membros do ex-GATT. Por isso, o TJ concluiu que a transferência
de poderes soberanos levada a cabo pelos Estados-membros a favor
da antiga Comunidade Económica Europeia em matéria aduaneira
implicava necessariamente que a CEE ficasse vinculada às disposi-
ções do ex-GATT, na exata medida em que os Estados-membros se
haviam tornado partes no ex-GATT'65.'66.
Idêntico raciocínio seguiu o TJ a propósito dos tratados
pré-comunitários sobre nomenclatura aduaneira'''.
Todavia, o mesmo critério não foi adotado pelo TJ em relação
à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, também ela, já
fora subscrita por todos os Estados-membros quando se tornaram
membros das Comunidades. Como mostrámos na Parte I, o TJ
entendeu sempre que aquela Convenção não obrigava as Comunidades como tais, e que as suas disposições só podiam ser levadas em
conta por elas no quadro dos princípios gerais de Direito como fonte
do então Direito Comunitário. Ou seja, para o TJ, a CEDH era uma
"fonte material" de Direito Comunitário sem ser uma sua "fonte
formal"56'. Entre as razões que justificam a disparidade da posição
do TJ em relação ao ex-GATT e à CEDH como tratados pré-União
figura, ainda que não invocada expressamente pela jurisprudência
do TJ, a de que o argumento da transferência de poderes soberanos
para as Comunidades em matéria aduaneira, que o TJ utilizou
quanto ao ex-GATT, não era invocável em matéria de direitos fundamentais, de que se ocupa a CEDH. Já estudámos este problema
atrás.
A União Europeia, por sua vez, quanto à PESC, através do
ex-artigo 17.0, n.o I, par. 2, UE, na versão de Nice, e do atual artigo
42.0, n.o 2, UE, adotou uma posição intermédia, ao dispor que "A
política da União (. ..) respeitará as obrigações decorrentes do Tratado do Atlântico Norte para certos Estados-membros que veem a
sua política de defesa comum realizada no quadro da Organização
do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e será compatível com a
pol.íti(:a de segurança e de defesa comum adotada nesse âmbito".
563 GRABITZlHILF/NEITESHEIM, anotações ao artigo 307. o.
'" Ae. TJ 14-10-80, Burgoa, Proe. n.o 812179, Ree., pgs. 2.787 e segs.
490
565 Assim, sobretudo, Acs. 12-12-72, Illternational Frui!, cit., e 10-3-98,
Proes. n.~ C-364/95 e C-365/95, CoL, pgs. 1-1.023 e segs.
566 Ver sobre este ponto SIMON, pg. 349. Dedicámos a este ponto especial
na nossa dissertação de doutoramento, cit., pgs. 459 e segs.
567 Ac. 19-11-75, Nederlandse Spoorwegen, Pme. TI.o 38175, Rec., pgs.
e segs.
568 Na feliz fórmula de SIMON, pg. 245.
491
o Direito da União Europeia
II - Os tratados pós-União
Como se disse, também são fonte do Direito da União os tratados concluidos pelos Estados-membros com terceiros após a sua
adesão à União.
Contudo, a simples entrada de um Estado para membro da
União Europeia acarreta para ele a obrigação de não concluir, com
terceiros, tratados internacionais que bulam com a Ordem Jurídica
da União. A isso nos conduz, mais uma vez, o artigo 4. ° UE, através
do seu n.o 3. O desrespeito por esta regra coloca os Estados infratores sob a alçada de um processo por incumprimento, regulado nos
artigos 258.° a 260.° TFUE.
Mas em caso algum os Estados podem concluir, com terceiros,
tratados internacionais em matérias que já passaram para as atribuições externas da União, inclusive com recurso ao princípio do paralelismo de atribuições, que já estudámos atrás; se o fizerem, para
além de incorrerem numa situação de incumprimento, desse modo
não obrigam a União, nem se obrigam a si próprios. De facto,
quanto a essas matérias os Estados já perderam atribuições'69.
190. Os tratados internacionais concluídos pelos Estados-membros entre si
São também fonte do Direito da União os tratados internacionais celebrados entre os Estados-membros, e já não por eles com
terceiros. A partir do Tratado de Maastricht os Tratados da União
vieram conceder especial importância a estes tratados.
Temos de distinguir, também aqui, entre os tratados concluídos
pelos Estados-membros antes de fazerem parte da União e depois
disso.
Quanto aos primeiros, há que respeitar o que dispõe o artigo
30.°, n.O 3, da Convenção de Viena de 1986 sobre o Direito dos
559 Citámos atrás o caso AETR, que constitui o Acórdão emblemático do TJ
sobre esta matéria.
492
As fontes do Direito da União Europeia
Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre
Organizações Internacionais. Esse preceito tem o seguinte teor:
Artigo 30. °
Aplicação de tratados sucessivos sobre a mesma matéria
( ... )
3. Quando todas as partes no tratado anterior são igualmente partes no tratado posterior, sem que o primeiro tratado tenha cessado de
vigorar ou sem que a sua aplicação tenha sido suspensa por força do
c
artigo 59. , o primeiro tratado só se aplica na medida em que as suas
disposições sejam compatíveis com as do segundo tratado.
( ... )
Esta disposição tem a vantagem, na matéria de que estamos a
tratar, de conseguir conciliar de modo equilibrado o princípio pacta
sunt servanda com a especificidade própria da Ordem Jurídica da
União.
Aquela disposição da Convenção de Viena de 1986 foi aplicada pelos antigos artigos correspondentes ao atual artigo 350.°
TFUE, que ressalvaram de modo expresso as uniões regionais existentes entre os Estados do Benelux quando eles assinaram o Tratado
CEE'70, bem como ao atual artigo 344.° do TFUE, que proibiram os
Estados de submeter os seus diferendos relativos à interpretação ou
à aplicação dos tratados institutivos a meios de resolução diferentes
dos que neles se encontram previstos.
O artigo 17.° UE, na redação que lhe foi dada pelo Tratado de
Amesterdão, aprofundou essa orientação. De facto, os seus n.O' I e
4 valorizavam a UEO (na qual vários Estados-membros da União
Europeia já eram partes antes da sua adesão a esta), a ponto de admitirem a sua integração na União Europeia se o Conselho assim o
decidisse, e não só ressalvavam como admitiam o aprofundamento
das relações bilaterais entre dois ou mais Estados-membros no
âmbito da UEO oU da OTAN.
,'O Assim, Ae. TJ 16-5-84, Pakvries, Proe.
segs.
493
n.o 105/83, CoI., pgs. 2.101 e
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da Unillo Europeia
Todavia, o Tratado de Nice abandonou, no essencial, essa
orientação, pondo de parte a tese da integração da UEO na União
Europeia, tendo, das disposições citadas, conservado apenas o n.' 4
do artigo 17.' UE.
Por sua vez, o Tratado de Lisboa eliminou qualquer referência
à UEO no já referido artigo 42.', n.o 2, UE.
O TJ tem afirmado a prevalência dos tratados da União sobre
os acordos concluídos entre os Estados-membros antes da sua adesão à U nião571 •
No que diz respeito aos tratados internacionais que os Estados-membros concluam entre si após a sua adesão à União, eles só são
deixavam de ser tratados de Direito Internacional, ficando, por isso,
à margem do Direito da União, embora completassem a Ordem
Jurídica da União. Todavia, por este último facto, isto é, por completarem e desenvolverem o sistema jurídico da União, parecia
legítimo que essas convenções fizessem parte do adquirido da
União e que, por isso, a adesão de um Estado à União e às Comunidades, implicasse a adesão também àquelas convenções. Contudo, o
TJ entendia que só tinha competência em relação àquelas convenções se os respetivos protocolos o previssem, e nos termos em que
admitidos se não violarem o Direito da União originário. Essa con-
tados de Maastricht e de Amesterdão terem vindo a aumentar a
clusão é imposta, sobretudo, pelo citado artigo 4.' UE, nomeadamente pelo seu n.' 3, par. 2, mas já resultava, pelo menos parcialmente, e no puro campo do Direito Internacional, do artigo 41.' da
referida Convenção de Viena de 1986.
O respeito por esta regra encontra-se garantido por duas vias:
pela via das questões prejudiciais, através da qual se pode colocar
ao TJ o problema da interpretação dos Tratados por confronto com
o acordo internacional (artigo 267.', par. I, alo a, TFUE)572; e pela
via do processo por incumprimento do Direito da União (artigos
258.' a 260.' TFUE).
Note-se que, antes da revisão de Lisboa, os Tratados, desde o
início da integração, previam, por vezes, a conclusão de tratados
internacionais entre Estados-membros como um meio de executar
ou desenvolver as disposições neles contidas. Cingindo-nos apenas
ao Tratado CE, era o caso, por exemplo, do seu artigo 293.', na
versão de Nice. Ao abrigo deste preceito foram sendo concluidas
pelos Estados-membros várias convenções internacionais, a mais
importante das quais foi a Convenção de Bruxelas sobre o reconhecimento e a execução de sentenças em matéria civil e comercial, de
27 de setembro de 1968, cuja matéria foi entretanto absorvida pelo
Direito da União derivado. Em bom rigor, essas convenções não
importância dessas convenções no quadro do antigo terceiro pilar,
como demonstrámos nas duas edições anteriores deste livro, perdeu
hoje atualidade, porque o Tratado de Lisboa abrogou o citado artigo
293.' CE, bem como os preceitos que se referiam a essas convenções no âmbito do antigo terceiro pilar, que, como já sabemos, foi
comunitarizado na sua íntegra.
Um importante tratado celebrado recentemente entre Estados-membros foi o Tratado Orçamental Europeu, que já estudámos
neste livro. Como então se viu, ele impõe a si próprio que seja interpretado em conformidade com os Tratados UE e TFUE e que seja
aplicado só na medida em que for compatível com aqueles Tratados.
Não se podem confundir com os tratados que temos vindo a
estudar certos atas, que, com a doutrina dominante, temos vindo a
. designar de decisões de representantes dos governos dos Estados.-membros reunidos no seio do Conselho Europeu.
Trata-se de atas atípicos, não previstos nos tratados, e cuja
legalidade à face do Direito da União tem, por isso, sido objeto de
>discussão57'. Aquelas decisões têm sido entendidas como atas com-
'" Ac. 27-12-88, Malteucci, Proc. n.' 235/87, CoI., pgs. 5.589 e segs.
'" Assim, Ac. TJ 10-11-92, Expor/ur, Proc. n.' C-3/91, CoI., pgs. 1-5.529 e
segs.
494
o fizessem 573 •
Esse problema, que ganhou acuidade especial depois dos Tra-
S
m Assim, Ac. TJ 14-7-77, Bavaria Fluggesellschaft, Procs. apensos n.O 91
/77 e 10/77, Rec., pgs. 1.517 e segs., e Despacho 9-11-83, Habourdin, Proc.
""n,' 80/83, Rec., pgs. 3.639 e segs.
574 Veja-se o Relatório Burger, apresentado à Comissão Jurídica do Parla::<rnento Europeu em 12-11-69, e a questão escrita colocada ao Parlamento com o
:n;'.268/68, JO n.' C 69, de 6-3-69.
495
o Direito da Unü70 Europeia
plementares do Direito da União, porque completam e desenvolvem
o sistema jurídico da União. Elas têm por objeto as mais diversas
matérias, umas vezes, não reguladas nos Tratados, outras vezes, só
parcialmente disciplinadas neles, outras vezes, ainda, deixadas
pelos Tratados à competência exclusiva dos Estados. Por conseguinte, o processo de adoção desses atos é um processo de vinculação internacional interestadual, não um processo da União. Como
tal, esses atos estão sujeitos aos procedimentos constitucionais próprios de cada Estado em matéria de vinculação internacional, ainda
que simplificados, podendo, excecionalmente, exigir um formal ato
de ratificação.
A sua aprovação em Conselho Europeu não obedece às regras
usuais do funcionamento do Conselho Europeu como órgão da
União. Por vezes, estes atos são aprovados sob proposta da Comissão,
ouvido o Parlamento Europeu, e são publicados no Jornal Oficial.
O TJ preocupa-se em evitar que estes atos invadam a competência dos órgãos da União como tais575 • Todavia, a doutrina dominante entende que eles fazem parte do adquirido da União, como
atos que completam o Direito da União, e que, por isso, um novo
Estado que adere à União fica ipso iure vinculado àqueles atos.
Estes escapam, todavia, à competência do TJ.
Tal como acontecia já antes do Tratado de'Lisboa, como dissemos, esses atos não se encontram previstos hoje no TUE e no TFUE.
Só a prática demonstrará se eles continuam a ser tolerados pelo
Direito da União e, concretamente, pela jurisprudência do TJUE.
191. Os atos unilaterais de Organizações Internacionais
Também estes atos constituem fontes do Direito da União. Mas
temos de distinguir aí as Organizações Internacionais em que são
partes só os Estados-membros da União daquelas em que a própria
União o é.
As fontes do Direito da União Europeia
Quanto aos atos das primeiras, pode-se dizer que eles, enquanto
incorporam regras obrigatórias do Direito Internacional, e, por isso,
são atos obrigatórios para os seus destinatários, vinculam não só os
Estados respetivos como a própria União. Será o caso das sanções
económicas decretadas pelas Nações Unidas. Ainda que não com
total clareza, parece ser esse o entendimento a extrair dos Acórdãos
que o TJ proferiu acerca das sanções decretadas pelo Conselho de
Segurança contra a ex-República Federativa da Jugoslávia576 •
Por sua vez, quando a própria União é membro da Organização
Internacional em causa, o TI já foi da opinião de que os atos unilaterais da Organização Internacional são diretamente aplicáveis na
Ordem Jurídica da União. Foi o que ele decidiu no Parecer sobre o
caso do Fundo europeu de imobilização da navegação interior no
Reno 577 e, mais tarde, no caso Sevínce 578 •
192. O Direito Internacional geral ou comum
Neste lugar deste livro, por Direito Internacional geral ou
comum entendemos o costume internacional, ao qual se refere o
artigo 38.°, n.o 1, aI. b, do Estatuto do Tribunal Internacional de
Justiça. Esse Direito Internacional geral ou comum é fonte do
Direito da União, nos termos seguintes.
Nas relações da União com outros sujeitos de Direito Internacional, o costume internacional, inclusive as convenções que o
codificam, é fonte de Direito sem qualquer especificidade. Assim,
por exemplo, a jurisprudência da União já reconheceu que a União
se encontra vinculada ao Direito Internacional do Mar, enquanto
Direito de raiz costumeira579 •
576 Ac. 30-7-96, caso Bosphorus Hava Yollari, Proc. 0.° C-84/95, CoI.,
pgs. 1-3.953 e segs., e Ac. 27-2-97, caso Ebony Maritime, S.A., Pme. C-I77/95,
CoI., pgs. 1-1.111 e segs.
m Parecer n.O ln6, de 26-4-77, Rec., pgs. 741 e segs.
'" Ac. 20-9-90, Proc. n. C-I92/89, CoI., pgs. 1-3.461 e segs.
579 Ac. TI 4-7-76, Kramer, Procs. apensos 0.0< 3176, 4176 e 6176, Rec.,
pgs. 1.279 e segs., eAc. TI 9-7-91, Comissão c. Reillo Unido, Prac. n.oC-J46/89,
CoI., pg. 1-3.533.
O
575 Ac. 30-6-93, Parlamento c. Conselho e Comissão, Procs. apeosos
n. C-181191 e C-248/91, CoI., pgs. 1-3.685 e segs.
OO
496
497
o Direito da União Europeia
As fontes do Direito da União Europeia
Diferentemente, na ordem interna da União o Direito da União
não pode ser contrariado pelo Direito Internacional geral ou comum.
É assim que deve ser interpretado o já referido artigo 344. TFUE:
na ordem interna da União vigoram as garantias judiciais previstas
naquele Tratado e não as previstas no Direito Internacional geral. O
mesmo vale para a interpretação do Direito da União, que, como
adiante veremos, está sujeita a regras próprias e não às regras de
interpretação do Direito InternacionaL
Mas há dois desvios a esta construção.
Em primeiro lugar, o Direito da União, como já atrás dissemos,
cede perante o Direito Internacional imperativo, o ius cogens. Isto é
particularmente importante, porque o ius cogens internacional é
composto principalmente por regras sobre direitos fundamentais da
Pessoa Humana580 e a proteção desses direitos fundamentais é muito
cara também ao sistema jurídico da União.
Em segundo lugar, as lacunas em Direito da União serão integradas, na ausência de princípios gerais próprios dessa Ordem Jurídica, pelo recurso ao Direito Internacional geraL Assim o reconheceu
o TJ no caso van Duyn58 '. E, para alguns Autores, têm aplicação na
ordem interna da União, ainda que só em situações-limite, as regras
da CV sobre a cláusula rebus sic stantibus, bem como os meios de
auto-tutela, como a retorsão e as represálias. Todavia, este ponto
sempre foi controverso582-'''.
SECÇÃO V
Outras fontes
0
580 Assim, GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 109 e 273 e segs., e QUADROS,
La COllvention Européenne des Droits de I'Homme: un cas de ius cogens
regional?, eit., pgs. 555 e segs.
'"' Ac. 4-12-74, Proc. n.o 41/74, Rec. pgs. 1.337 e segs.
582 Veja-se a nossa dissertação de doutoramento, pgs. 484 e segs.
583 Das obras gerais mais recentes, a matéria desta Secção está estudada de
modo aprofundado, especialmente, em VAN RAEPENBUSCH, pgs. 409 e segs.
498
193. Ajurisprudência
A jurisprudência é uma fonte que cedo obteve uma grande
importância no Direito da União. Isso tem a ver com o relevantíssimo papel que ela tem vindo a assumir na criação e no desenvolvimento do Direito Comunitário e, depois, do Direito da União, a
partir dos Tratados. O papel da jurisprudência na formação do sistema jurídico da União Europeia afasta-se da função que a jurisprudência assume nos Estados da fanu1ia jurídica românica para se
aproximar do papel que ela ocupa nos sistemas jurídicos anglo-saxónicas, onde assistimos, com normalidade, à criação do Direito por
via pretoriana, sem prejuízo, contudo, para a hierarquia das fontes
de Direito. Por isso, talvez se justificasse que a jurisprudência fosse
estudada neste Capítulo como objeto duma Secção autónoma. É
uma questão sobre a qual continuaremos a refletir.
Já demonstrámos atrás o que acabámos agora de dizer. Se o
Dineito da União alcauçou a densidade e a profundidade que hoje
apresenta, isso deve-se muito à jurisprudência da União, particulardo n, que soube suprir, tantas vezes, a paralisia dos órgãos
políticos de decisão.
Como mostrámos quando estudámos os Tribunais da União, é
nesse sentido positivo que é adequado falar-se na "Europa dos juízes" ou, corno muito acertadamente o faz BOULOUlS, reconhecer que
a jurisprudência da União tem um verdadeiro "valor normativo"58'.
, Nessa tarefa da jurisprudência da União não se pode ignorar a cola'iboração que lhe tem sido prestada pelos tribunais nacionais enquanto
" ttibunais comuns de Direito da União. Já nos referimos a isso e
-voltaremos ao assunto.
À propos de la valeur normative de la jurisprudellce, Mélanges M.
vaI. I, pg. 149.
584
499
o Direito da União Europeia
194. A doutrina
A doutrina é fonte do Direito da União como é fonte do Direito
em geral.
Ela reveste-se de particular significado como fonte do Direito
da União, porque reflete a diferença entre os sistemas jurídicos
nacionais e, portanto, exprime a forma diferente como cada sistema
jurídico concebe o ordenamento jurídico da União e as suas relações
com este.
Assim, nota-se que é claramente distinto o modo como um
manual de Direito da União escrito no Reino Unido, partindo do
sistema do common law, vê o sistema jurídico da União, por comparação com um manual francês ou italiano, partindo do sistema
românico. Do mesmo modo como se vê que a doutrina alemã, por
exemplo, é particularmente sensível ao desenvolvimento da vasta
problemática das relações dos direitos fundamentais com o Direito
da União, como consequência natural do peso da Teoria dos Grundrechte no Direito Público alemão após a 2.' Grande Guerra.
195. Os acordos interinstitucionais
Estes acordos, pelo menos quando são celebrados entre órgãos
da União, melhor se chamariam acordos inter-orgânicos, como os
designa a doutrina alemã58'.
Com esse rótulo e com essa designação formal, não se encontravam previstos nos Tratados até ao Tratado de Nice. Este veio,
pela primeira vez, referir-se a eles, na Declaração n. o 3 a ele anexa
e relativa ao ex-artigo 10. o do Tratado CE. Aquela Declaração estendia o dever de "cooperação leal" entre os Estados-membros e a
Comunidade, consagrado no ex-artigo 10. CE, às relações entre os
próprios órgãos da Comunidade, e estimulava a que, na concretização daquele dever, o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão
As fontes do Direito da União Europeia
celebrassem "acordos interinstitucionais". Aí se acrescentava, todavia, que "esses acordos não podem alterar nem completar as disposições do Tratado e só podem ser celebrados com o assentimento
daquelas três instituições".
Todavia, os acordos interinstitucionais entre aqueles três
órgãos, ou alguns deles, são, na prática, muito anteriores ao seu
acolhimento no Tratado de Nice e já como expressão do princípio
da cooperação leal.
De facto, encontramos uma primeira referência a eles num
Acórdão do TJ de 1983586 , onde, a propósito da cooperação que o
artigo 58. o do Tratado CECA previa entre a Comissão e O Conselho,
o Tribunal constatava que aquele preceito, contudo, não definia as
modalidades daquela cooperação, pelo que, "nestas condições cabe
àqueles órgãos organizar, de comum acordo e no respeito pelas respetivas competências, as formas de cooperação entre si". Podemos
dizer que foi essa a primeira tentativa de caracterização jurídica dos
acordos interinstitucionais.
Partindo daquela disposição do Tratado CECA, depressa os
acordos interinstitucionais, mais frequentes entre o Parlamento
Europeu, o Conselho e a Comissão, e quase sempre sob a forma de
declarações comuns, se alargaram a diversas matérias, a começar
pelo procedimento orçamental, e viram o seu número aumentar progressivamente'''.
Não obstante o Tratado de Lisboa não ter incorporado a Declaração n. o 3 que estava anexa ao Tratado de Nice, não há razões para
crer que os acordos interinstitucionais não sejam hoje possíveis do
mesmo modo como já o eram antes do Tratado de Nice.
Os acordos interinstitucionais devem ser definidos como acordos celebrados entre órgãos da União que disciplinam, numa dada
0
Por exemplo, GRABITZ/HILFINEITESHEIM, anotações ao artigo 6. 0 UE, e
Carta, cit., pgs. 79 e segs.
585
WEBER,
soo
586
Ae. 11-5-83, KlOckner-Werke AG, Proe. n.o 244/81, Rec., pgs. 1.451 e
segs.
Para além da enumeração desses acordos que consta dos bancos de
próprios da União, pode hoje ver-se referência aos mais importantes deles
em JACQUÉ, sobretudo, pgs. 525 e segs. Ver também GAUTRON, Les accords inte~
rinstitutionnels en droit communautaire, Panthéon-Assas (ed.), Les regles et principes non écrits en droit public, Paris, 2000, pgs. 195 e segs.
587
SOl
o Direito da União Europeia
As fomes do Direito da União Europeia
matéria, o seu comportamento recíproco. À partida nada impede que
sejam celebrados entre quaisquer órgãos da União, embora a História só nos mostre ter havido acordos interinstitucionais entre o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão.
A doutrina divide-se quanto à natureza jurídica e aos efeitos
desses acordos.
Alguns autores, embora não pondo em causa que eles são fonte
do Direito da União, têm alguma relutância em lhes atribuir natureza
jurídica, porque entendem que eles não criam direitos e se situam
entre a Política e o Direito, obrigando os órgãos, que os subscrevem,
quase exclusivamente nos planos político e moral. Modernamente, o
nome mais sonante dessa corrente é GUY BRAIBAW 8S .
De modo diverso, outro sector da doutrina entende que estamos perante verdadeiros atos jurídicos, que, embora dependendo da
interpretação de cada um deles em concreto, podem ser obrigatórios
e criar direitos para os seus subscritores, e que, inclusivamente,
como tais, são relevantes perante o TmE. E, para O efeito, esses
autores louvam-se na própria jurisprudência do Tribunal. O melhor
representante desta orientação é JEAN PAUL JACQUÉ589
Assim, se é certo que o TJ, por exemplo, quanto à Declaração
Comum de 30 de junho de 1982 relativa ao procedimento orçamental, se absteve de se pronunciar expressamente sobre o seu valor
jurídico, embora tivesse fornecido alguns argumentos nesse sentido'90, mais recentemente, em relação a um acordo concluído entre
a Comissão e o Conselho sobre a preparação das reuniões e o regime
de votação no seio da FAO ou OAA (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o TJ anulou uma decisão
posterior do Conselho que violava aquele Acordo, com o fundamento de que o dever de cooperação leal obrigava juridicamente o
Conselho a cumprir o Acordo'9!.
Parece, portanto, que é a segunda das duas correntes doutrinárias a que neste momento merece os favores da jurispmdência da
União.
De entre a grande diversidade de acordos interinstitucionais
que encontramos, podemos dizer que o mais importante de entre
eles, até hoje concluído, foi, sem dúvida, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Como vimos atrás, ela foi objeto de
dnas proclamações da parte do Parlamento Europeu, do Conselho e
da Comissão, em 2000 e em 2007 592 • Também quanto a ela, a jurispmdência da União já teve oportunidade de aplicar a mesma orientação doutrinária que acima dissemos ter feito sua'93.
588
La Charte des droits fondamentaux, cit., pg. 57.
589
Loc. cito
196. Os atos atípicos
À margem do ex-artigo 249.° CE, hoje, artigo 288.° TFUE, os
órgãos da Comunidade Europeia e da União há muito que começaram a servir-se de atos jurídicos que não estão nele previstos. Por
isso, eles chamam-se atos atípicos. Diga-se, desde já, que se trata de
nma prática condenável, que, em bom rigor, põe em cansa o princípio da legalidade na Ordem Jurídica da União, e que tem trazido
insegurança e incerteza ao sistema jurídico da União, dado que ninguém, inclusive os particulares, está em condições de determinar a
natureza e os efeitos desses atos'94.
De facto, esses atas, mesmo se atípicos, podem ver-lhes atribuídos efeitos vinculativos. Assim, o TJ, com o intuito de estabelecer garantias contra esses atos, não obstante reconhecer a sua
">atipicidade e a sua não previsão nos Tratados, entende que deve
conhecer deles através do recurso de anulação do atual artigo 263.°
FUE, porque este pode ser interposto contra "todas as medidas
amadas pelos órgãos (independentemente da sua natureza e da sua
Ver supra, n.O' 68 e 70.
Assim, por todos, o Comentário à Carta de BRAIBANT, pg. 57, e impor'tantebibl. aí citada.
594 Como o tem entendido, com muita dureza, o Conselho de Estado francês
assim, JACQUÉ, pg. 525.
592
593
'''' Ae. 3-7-86, Conselho c. Parlamento, Proe. n.o 34/86, CoI., pg. 2.1SS.
59l Ac. 19-3-96, Comissão c. Conselho, Pme. C~25/94, CoI., pgs. 1-1.469
segs.
S02
S03
o Direito da União Europeia
forma) que visem produzir efeitos jurídicos"'95. No exercício dos
seus poderes cognitivos, o Tribunal começa por verificar se o ato em
questão produz efeitos jurídicos e, em caso afirmativo, se ele respeita os requisitos de fundo e de forma exigidos pelos Tratados5%.
Já nos referimos neste livro a alguns atos atípicos. Vamos de
seguida estudar aqueles que julgamos ser os mais importantes'''.
I - Os "despachos"
Estes atos correspondem às "Ordonnances" do Direito francês.
Por isso, equivalem às Ordenanças da História do Direito português
e assim deviam ser designadas em língua portuguesa, se se pusesse
rigor na tradução. Não se tem procedido assim e as versões portuguesas das fontes do Direito da União têm utilizado o vocábulo
"Despachos".
Estes atos não se confundem com as decisões, que estudámos
como atos típicos de Direito derivado, previstas no artigo 288.'
TFUE598.
Podem provir do Conselho, do Parlamento ou da Comissão.
Podem consistir em atos gerais, que não têm destinatários concretos. Nessa hipótese, podem estar previstos nos Tratados (é o caso,
por exemplo, das decisões sobre recursos próprios). Quando isso
suceder, são os próprios Tratados que lhes fixam os efeitos.
Mas podem também consistir em decisões com efeitos meramente internos (por exemplo, a criação de comités).
A partir do momento em que estes atos produzam efeitos jurídicos podem ser fiscalizados pelo TJUE, salvo se se situarem ao
nível do Direito primário, como atrás mostrámos poder acontecer.
Por todos, Ac. 31-3-71, AETR, cit
Por todos, Acs. 16-6-93, Proc. n.O C-325/91, França c. Comissão, CoI.,
pg. 1-3.000, e 20-3-97, França c. Comissão, Proe. n.' C-57/95, CoI., pgs. 1-1.627
e segs.
597 Sobre os atos atípicos, V., especialmente, S. LEFEVRE, Les actes commu.
nautaires atypiques, Bruxelas, 2006.
598 Assim, JACQUÉ, pg. 525.
595
596
504
As fontes do Direito da União Europeia
II - As comunicações da Comissão
Estes atos atípicos revestem-se de natureza muito dispar:
podem consistir em Livros Brancos, ou Verdes, sobre matérias sobre
as quais a Comissão quer colher a opinião dos outros órgãos ou dos
particulares antes de apresentar uma proposta legislativa; em relatórios de natureza diversificada; ou em documentos nos quais a Comissão indica qual será, no futuro, o seu compOltamento ou qual deverá
ser o comportamento dos Estados-membros ou dos particulares.
Estas comunicações não produzem efeitos jurídicos. Todavia,
se for o caso, elas podem criar expectativas (isto é, uma relação de
confiança legítima) nos seus destinatários, particularmente quando
o comportamento futuro da Comissão é nelas descrito com pormenor e precisão. Se o TJVE interpretar uma comunicação como querendo ela obrigar, isto é, produzir efeitos vinculativos, ele pode
conhecer da sua legalidade: assim decidiu já o TJ'99.600.
III - As conclusões e as resoluções do Conselho
O Conselho aprova, entre outros atos, conclusões e resoluções.
As conclusões põem termo a uma sessão do Conselho. Em
regra, contêm declarações meramente políticas, mas, não raro,
encerram também orientações, e, nesse caso, podem produzir efeitos
jurídicos. Só a sua interpretação permite fixar-lhes o verdadeiro
sentido e conteúdo.
Diferentes das conclusões do Conselho são as conclusões da
Presidência, que não obrigam o Conselho, são imputáveis apenas à
Presidência e valem como meras declarações políticas60l .
Por sua vez, as resoluções do Conselho, em regra, são utilizadas para este anunciar um programa de atuação futura num determinado domínio. Nessa medida, não produzem efeitos jurídicos,
'" Aes. 16-6-93, Proe. C-325/9!, e 20-3-97, Proe. C-57/95, ambos atrás eits.
600 Cfr., sobre esta matéria, JACQUÉ, pg. 529.
"" Ver JACQUÉ, pg. 527-528.
505
o Direito da União Europeia
mesmo quando convidam a Comissão a agir num determinado sentido. Só excecionalmente o TJ tem atribuído efeitos jurídicos a estas
resoluções 60'.
CAPÍTULO III
AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO DA UNIÃO
EUROPEIA E OS DIREITOS ESTADUAIS
Bibliografia especial: G. VEDEL, Souveraineté ef supraconstitutionnalité, Pouvoirs 1993, pgs. 79 e segs.; H. JARRAS, Gundfragen der
innerstaatlichen Bedeutung des EG-Rechts, Colónia, 1994; W. POHS,
Der Vollzug von Gemeinschaftsrecht, diss., Berlim, 1997; P. FUNT, Die
Ubertrage von Hoheitsrechten, Berlim, 1998; M. ADENAS e F. lACOSS
(eds.), European Conununity Law in the Ellglish Courts, Oxford, 1998;
E. SCONDOMIS e D. SIMON, Le juge cOn1munautaire et l'articulation des
compétences normatives entre la Communauté européenne et ses États
membres, Bruxelas, 1999; T. VANDAMME e l.-H. REESTMAN, Ambiguity in
lhe Rule of Law - The Interface between National and Infernafional
Legal Systems, Groningen, 2001.
Introdução
o problema das relações entre o Direito da União e os Direi-
602 Por ex., Ae. 1O-7~80, Comissão c. Reino Unido, Pme. 32179, Rec.,
2.403. Ver JACQUÉ, pg. 528.
506
. ~snacionais dos Estados-membros aparece-nos como a questão
uclear da elaboração da Ordem Jurídica da União. É que toda a
'pnstrução e estruturação desta última assenta na dialética entre o
oder político da União e a soberania dos Estados e, portanto, na
rma como se relacionam e se articulam o Direito da União e os
'ireitos estaduais, como expressão daquele e desta.
, Vamos dividir a matéria das relações entre o Direito da União
9s Direitos nacionais em cinco domínios:
507
o Direito da
União Europeia
o primado do Direito da União sobre o Direito estadual;
a aplicabilidade direta do Direito da União;
o efeito direto do Direito da União;
a interpretação conforme do Direito nacional com o Direito
da União;
e a harmonização das Ordens Jurídicas estaduais com o
Direito da União'o,.
É, portanto, de harmonia com este plano que iremos estudar
essas relações.
SECÇÃO I
o primado do Direito da União sobre o Direito estadual
Bibliografia especial: E. GRABITZ, Gemeinschaftsrecht bricht
Ilationales Recht, AppeI, 1966; M. REBELO DE SOUSA, A adesão à CEE e
a Constituição de 1976, Estudos sobre a Constituição, vai. III, 1979,
pgs. 457 e segs.; LufsA DUARTE, O Tratado da União Europeia e a
garantia da Constituição, Estudos Castro Mendes, pgs. 685 e segs.; 1.
MOTA DE CAMPOS, As relações da Ordem Jurídica portuguesa com o
Direito Internacional e o Direito COllumitário à luz da revisão constitucional de 1989, Lisboa, 1985; J. L. DA CRUZ VILAÇA, L. M. PAIS ANTUNES
e N. PIÇARRA, Droit Constitutionnel et Droit Communautaire. Le Cas
Portugais, RDP 1991, pgs. 301 e segs.; J.-c. MASCLET e D. MAUS (dir.),
Les Constitutions nationales à l'épreuve de I'Europe, Paris, 1993; F. DE
QUADROS, National Law - Integration Law, Heinrich PfusterschmidHardtenstein (ed.), Entscheidung mr Europa - Bewuststein und Realitãt,
Viena, 1993, pgs. 427 e segs.; F. DE QUADROS, Comentário breve à
Constituição da República Portuguesa, in E. Cerexhe e L. de Hardy de
Beaulieu (dirs.), Douze Constitutions pour une Europe, Bruxelas, 1994,
pgs. P-l e segs.; M. ZULEEG, Deutsches undeuropiiisches Verwaltungsrecht
- Wechselseitige Einwirkungen, VVDStRL 53 (1994). pgs. 154 e segs.;
Sobre o conjunto global destas questões, embora nem sempre em coincidência com o nosso pensamento, ver, de entre as obras de carácter geral, muito
especialmente, CRAIO/DE BÚRCA, pgs. 323 e segs., e, da bibliografia especial, de
modo particular, a dissertação de PÜHS.
603
508
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
R. MEHor, Le statut contentieux des mesures nationafes d'éxécutiol1 du
droitcommunautaire, diss., Rennes, 1994; T. DE BERRANGER, Constitutions
nationales et constructioll communalltaire. Essai d'appmche comparative sllr certains aspects constitutionnels nationaux de l'intégratioll
européenne, Paris, 1995; C. GREWE e A. WEBER, Le traité sur l'Unioll
devant les juridictions constitutionnelles, Annuaire international de justice constitutionnelle 1995, pg. 11; C. HAOUENAU, L'applicatioll e.ffective
du droit communautaire en droit interne. Analyse comparative des problbnes rencontrés en droit français, anglais et allemand, Bruxelas,
1995; D. SIMON, Les exigences de la primauté du droit communautaire,
continuité ou métamorplwses, Mélanges Boulouis, pgs. 297 e segs.; C.
GREWE e H. RUIZ-FABRI, Droits constitutionnels européens, Paris, 1995;
F. DE QUADROS, Europiiische Imegration und nationales Verfassungsrecht
in Portugal, in Battis, Tsatsos e Stefanou (eds.), Europãische Integration
und nationales Verfassungsrecht, Baden-Baden, 1995, pgs. 375 e segs.;
B. DE WITIE, Sovereignty and European integration: The weight o/legal
tradition, MJ 1995, pgs. 145 e segs.; O. DORD, Cours constitutionneltes
nationales et normes européennes, diss., Paris, 1996; A. SCHMm
GLAESER, Grundgesetz und Europarecht ais Elemente europiiischen
Verfassungsrechts, Berlim, 1996; ElD.E., Le droit constitutionnel
national et l'intégration européenne, 17. 0 Congresso, ed. trilingue, vol.
I, Berlim, 1996; R. BIFFULCO, Forme di Stato composto e partecipazione
dei liveli regionali alta formazione delta volontà statale sulle questioni
comunitarie, DUE 1997, pgs. 101 e segs.; M. FROMONT, Le droit constitutionnel national et l'intégratioll européenne, RAE 1997, pgs. 191 e
segs.; J. RIDEAU, Les États membres de I'Union européenne - adaptations, mutations, résistances, Paris, 1997; 1. M. CARDOSO DA COSTA, O
Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias, in Ab uno ad omnes. 75 anos da Coimbra
Editora, Coimbra, 1998, pgs. 1.363 e segs.; D. MAUS e O. PASSELECQ
(dir.), Le traité d'Amesterdam face aux constitutions nationafes, Paris,
1998; F. DE QUADROS, A nova dimensão do Direito Administrativo, cit.;
F. DE QUADROS, Relatório sobre DC I, cil., pgs. 44 e segs., e bibL aí cil.;
A. JYRÃNKI (ed.), National COllstitutiollS in the era of integration,
Amesterdão, 1999; C. GREWE e H. OBERDORFF, Les Constitutions des
États membres de l'Union européenne, Paris, 1999~ R. MOURA RAMOS,
The Adaptation of the Portuguese Constitutional Order to Community
Law, BFDC 2000, pgs. 1 e segs.; D. SIMON, Rapport général: Les fondements de f'autonomie du droit communautaire, in Droit international et
droit communautaire, Colóquio de Bordéus, Paris, 2000, pgs. 207 e
509
o Direito da União Europeia
segs.; C. GREWE, La situation respective du droit international et du
droit communautaire dans le droit constitutionnel des États, in Colóquio
de Bordéus, cit., pgs. 251 e segs.; D. BLANCHARD, La constitutionalisation de I'Union européemze, Rennes, 2001; O. DUBOS, Les juridictioJ1s
nationales, juge comnumautaire, diss., Paris, 2001, Parte I; J. 1. GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. a ed.,
Coimbra, 2003, sobretudo, pgs. 822 e segs.; A. BARAV, Responsabilité et
irresponsabilité de l'État en cas de nzéconnaissance du droit communautaire, Liber amicorum Jean Waline, 2003, pgs. 431 e segs.; D.
RITLENG, Le principe de primauté du droit de I'Union, RTDE 2005, pgs.
285 e segs.; M. FRüMONT, Droit administrat/fdes États européens, Paris,
2006, pgs. 84 e segs.; PATRíCIA MARTINS, O princípio do primado do
Direito Comunitário sobre as normas constitucionais dos Estados-membros, Cascais, 2006; F. DE QUADROS, Der Einfluss des Grundgesetzes
aul die portugiesische Veljassung aus der Sicht eines portugiesischen
Verfassungsrechtlers, lôR 2010, pgs. 41 e segs. (51-52); J.-v. LoulS, La
primauté du droit de l'Union, un concept dépassé?, Mélanges Jacqué,
2010, pgs. 443 e segs.; C. BLANCü DE MORAlS, A sindicabilidade do
Direito da União Europeia pelo Tribunal Constitucional português,
Estudos Sérvulo Correia, Coimbra, 2010, pgs. 221 e segs.; J. MIRANDA,
Curso de Direito Internacional Público, 5.a ed., Cascais, 2012, pgs. 155
e segs.; F. DE QUADROS, A influência da Lei Fundamental de Bona sobre
a Constituição Portuguesa, Estudos Gomes Canotilho, no prelo
198. Enunciado do problema e metodologia adotada
A primeira questão que é suscitada pela relação entre o Direito
da União e os Direitos nacionais dos Estados-membros é a de saber
qual é o ato (entenda-se: norma ou ato individual) que prevalece
quando um ato da União e um ato nacional colidem, ou seja, quando
um e outro dispõem de modo diferente sobre a mesma matéria. É
este o problema a que se reconduz o chamado primado (ou prevalência) do Direito da União.
A teoria do primado do Direito da União não se subsume na
teoria do primado do Direito Internacional, pelo simples facto de o
Direito Internacional e o Direito da União serem Ordens Jurídicas
com diferentes fundamentos filosófico-jurídicos. Contudo, a
cação do primado do Direito da União continua, por vezes e
510
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
hoje, a ser levada a cabo (mal, como se percebe) a partir das conceções clássicas acerca das relações entre o Direito Internacional e o
Direito interno. É o que faz, por exemplo, a Constituição portuguesa, apesar dos progressos nela introduzidos pela revisão constitucional de 2004. Na realidade, e à partida, ela inclui os únicos
preceitos que nela, de algum modo, relevam para a questão do primado - o n." 3 e, depois de 2004, o n." 4, do art. 8.° - num artigo
que, no essencial, visa disciplinar as relações entre o Direito Internacional e o Direito interno e que, por isso, tem por epígrafe apenas
"Direito Internacional".
Por isso, nesta Secção seguiremos a seguinte metodologia.
Primeiro, exporemos a teoria do primado, tentando demonstrar
que ela coloca hoje muito menos dificuldades na sua conceção e na
sua compreensão do que já colocou no passado.
Depois, debruçar-nos-emos sobre a questão do primado do
Diireito da União na Ordem Jurídica portuguesa, onde ela, apesar da
re"isiio constitucional de 2004, continua a apresentar-se como uma
matéria controversa.
199. O fundamento do primado
O primado do Direito da União sobre o Direito estadual
. decorre da especial natureza do Direito da União. É por isso que o
vimos caracterizando há anos, com base em PIERRE PESCATORE604,
como uma "exigência existencial" do Direito da União, e é também
. or isso que o qualificamos hoje, como o fazem PAUL CRAIG e
{)RÁINNE DE BÚRCA605, como um resultado do "mandato comunitário"
'inposto aos Estados pelo Direito da União. E essa "natureza espe'.ífica original" do Direito da União foi, logo no início da integração,
~conhecida pelo TJ6'l6.
604 L'ordre juridique des Communautés européennes, Bruxelas, 2006, pg.
Esta obra consiste numa reimpressão das Lições do Autor, com a mesma
.eoi,erale.de 1973, à Faculdade de Direito da Universidade de Liege.
605 Pgs. 341 e segs.
606
Ac.
15-7-64, caso Costa/ENEL, Proc.
511
0.°
6/64, Rec.
1964, pgs. 1.141 e
o Direito da União Europeia
Portanto, o primado sobre o Direito estadual constitui um atributo próprio do Direito da União, não resulta de uma concessão do
Direito estadual, particularmente, da respetiva Constituição, como
acontece com a receção do Direito Internacional na ordem interna,
quando este não é ius cogens(j)7. Ou seja: enquanto que o Direito
Internacional é um Direito fragmentário, o Direito da União é uma
Ordem Jurídica uniforme. Dito ainda melhor, enquanto que o Direito
Internacional admite ser aplicado nos muitos Estados-membros da
Comunidade Internacional por outros tantos filtros das respetivas
Constituições (portanto, a priori, de harmonia com tantos critérios
constitucionais diferentes quantos os Estados), o Direito da União,
ao contrário, tem uma ~'natureza comunitária", encontra-se "inte~
grado no sistema jurídico dos Estados-membros" e "impõe-se aos
seus tribunais", penetrando na Ordem Jurídica interna para aí produzir a plenitude dos seus efeitos, como cedo passou a admitir o TJ(j)'.
Tudo isso faz do Direito da União um Direito comum aos Estados"
-membros da União (e não um Direito fragmentário). Ora, para que
o Direito da União se afirme como Direito comum é necessário que
ele seja interpretado e aplicado de modo uniforme nos Estados-membros. O princípio da uniformidade do Direito da União - que,
por isso, erguemos a princípio constitucional da União(j)9 - é, aliás,
imposto também pelo princípio da igualdade entre os cidadãos de
todos os Estados-membros, que resulta da proibição da discriminação e que, também ele, vale como princípio constitucional da União,
como entendeu o TJ no mesmo caso Costa/ENEL610 Mais: tanto a
igualdade como a não-discriminação são hoje valores da União,
como dispõe o artigo 2.° UE.
O primado nunca constou, dessa forma, dos Tratados, embora
se pudesse extraí-lo implicitamente de dois dos seus preceitos,
na sua versão atual: o artigo 4.°, n.o 3, UE, quando este impõe aos "
007 É o que DENYS SIMON designa, de modo muito adequado, de "definiçao
comunitária do primado interno" - Lesfondements, pg. 242, com itálico nossO.
608 Caso CostaJENEL, cit., loco dt.. O itálico é nosso.
609 Ver supra, n. o 35.
610 Loc. cito Sobre o princípio da não discriminação em razão da nacio~
nalidade, ver supra, n. o 52.
'
512
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
Estados-membros, no quadro da cooperação leal com a União, que
nada façam no sentido de pôr em perigo a realização dos objetivos
da União, entenda-se, os fins prosseguidos pelo Direito da União;
e o artigo 288.° TFUE, quando ele atribui aplicabilidade direta a
certos atos de Direito derivado, isto é, e como estudámos, os regulamentos e as decisões, já que a aplicabilidade direta, obviamente,
pressupõe o primado.
De qualquer forma, o primado foi criado e elaborado pela
jurisprudência do TJ. São vários os acórdãos que dão corpo à teoria
do primado, mas três deles, devem ser considerados os grandes marcos dessa construção.
O primeiro foi o caso Costa/ENEL, já referido neste livr0 6".
Nesse Acórdão, o Tribunal enunciou logo as bases dogmáticas do
primado. Nestes termos: "A transferência levada a cabo pelos Estados, da sua Ordem Jurídica interna para a Ordem Jurídica comunitária, de direitos e obrigações correspondentes às disposições do
Tratado, implica, portanto, uma limitação definitiva dos seus poderes soberanos contra a qual não se poderá fazer prevalecer um ato
unilateral posterior incompatível com a noção de Comunidade"
(itálicos nossos). E, acrescentava o TJ, o primado abrange o Direito
estadual tanto anterior como posterior ao ato da União em causa.
Depois, o caso SimmenthaI 612 • Aí o TJ decidiu que é dever do
;; juiz nacional considerar inaplicável (e não inválida) toda e qualquer
\ regra ou ato de Direito nacional eventualmente contrários a uma
", regra ou a um ato de Direito da União, seja anterior ou posterior
(efeito abrogatório do primado), e que a entrada em vigor de uma
regra ou de um ato de Direito da União impede a aprovação de
novos atos legislativos nacionais que sejam incompatíveis com eles
f:(efeito bloqueador do primado)613. Só dessa forma o juiz nacional
,. aplicará "integralmente" na Ordem interna, como é sua obrigação, o
Direito da União, independentemente do que dispuser o Direito
Constitucional ou legislativo interno. É importante referir que o
611 Loc. cito
'" Ac. 9-3-78, Proc. n.o 106177, Rec., pgs. 629 e segs.
613 Este efeito bloqueador do primado seria retomado mais tarde pelo TJ,
',com invocação do caso Simmenthal, no já citado caso Mangold, ponto 78.
513
o Direito da União Europeia
primado do Direito da União sobre o Direito Constitucional dos
Estados-membros, afirmado de forma geral no caso Simmenthal,
encontrou a sua tradução concreta, de forma muito expressiva, no
mais recente caso Krei/614 • A matéria jurídica que estava em causa
neste processo merece ser referida aqui, pela sua originalidade. O
artigo l2-A da Lei Fundamental de Bona prescreve que as mulheres
só podem ser chamadas a prestar serviço militar, nas condições aí
referidas, desde que tal serviço militar nunca implique o "serviço
armado" ou
4'0
uso de armas", que está reservado aos homens. Con-
cretizando este preceito, a lei ordinária veio dispor que as mulheres
só podiam prestar, nas Forças Armadas, serviço de "saúde" e de
"música militar". O TI entendeu que o artigo 12-A da Lei Fundamental devia ser afastado pelos tribunais alemães em benefício da
Diretiva n.o 76/207/CEE, hoje, n.o 2006/54/CE, do Conselho, sobre
igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso ao
emprego, à formação profissional e nas condições de trabalho, por
violar o princípio da igualdade entre homens e mulheres'15.
O terceiro Acórdão é o caso Factortame 616 • Nele, o TI reconheceu ao juiz nacional o direito de, a título cautelar, suspender a aplicação de um ato estadual suscetível de ser considerado contrário ao
Direito da União mesmo se o respetivo Direito interno não lhe
conferir competência para o efeito, ou seja, mesmo contra Direito
interno de sentido contrári0 6l7 • A doutrina deste Acórdão foi confirmada por jurisprudência posterior do TI, da qual salientamos O
recente caso Krzysztof Filipiak6l8 • O TI deixou aí claro que um tribunal nacional deve aplicar a norma do Direito da União que con"
flitue com urna norma estadual, afastando esta, qualquer que seja
sua fonte.
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
200. O âmbito do primado
Assim entendido no seu fundamento, o primado do Direito da
União tem de ser absoluto ou, se se preferir, integral.
Esta afirmação tem uma dupla vertente: ela quer significar que
todo o Direito da União prevalece sobre todo o Direito estadual.
Antes de mais, o primado conferido a todo o Direito da União
quer dizer que ele envolve todas as suas fontes que obrigam: portanto, para além do Direito originário, os regulamentos6l ', as diretivas 620 , as decisões 62 !, os acordos internacionais concluídos pela
Comunidade 62', e, além disso, segundo o TI, as próprias recomendações, apesar de, pela letra do artigo 288. o UE, elas não serem obrigatórias623-624.
E, depois, o primado afirmado como referido a todo o Direito
interno quer dizer que ele é oponível a todo o Direito estadual no
seu conjunto, incluindo, como vimos, de grau constitucional.
Isto pretende significar que o primado não existe se não for
supraconstitucional. De facto, caso o Direito da União seja colocado, na hierarquia das fontes de Direito na ordem interna de um
Estado, num grau infraconstitucional, ainda que supralegal, está-se,
facto, a negar o seu primado sobre o Direito estadual. Ou seja, o
Direito da União só pode ver respeitada a sua característica da uniformidade se, corno se disse, todo o Direito da União prevalecer
sobre todo o Direito estadual, sem prejuízo dos desvios que, a título
,'. fundado, este princípio vai ter que respeitar, como adiante veremos.
615 Ver, no mesmo sentido, por último, PERN1CE, anotações aos casos
e Simmenthal, in Madura/Azoulai (eds.), The Past and Future ofEU Law, OXj'ord,ê,
2010, pgs. 47 e segs., LENAERTS/vAN NUFFEL, pg. 165, e JACQUÉ, pg. 543.
6" Ae. 19-6-90, Proe. C-213/89, Cal., pgs. 1-2.433 e segs.
617 Veja~se a doutrina desse Ac6rdão estudada por nós em A nova din1ellsão',.
cit., pgs. 30 e segs. e 42 e segs.
618 Ae. 19-11-2009, Proe. C-314/08, Cal., pgs. 82 e segs.
619 Ac. 11-12~71, Politi, Pme. 43/71, Rec., pgs. 1.039 e segs.
"" Aes. 7-12-81, Rewe-Markt Steifen, Proe. 158/80, Ree., pgs. 1.805 e
:,oogs., e 10-4-84, Von Colson, Prac. 14/83, Rec., pgs. 1.891 e segs.
621 Ac. 8-3-79, Salumiflcio, Prac. 130/78, Rec., pgs. 867 e segs.
612 Ae. 26-10-82, Kupferberg, Proe. 104/81, Ree., pgs. 3.641 e segs.
623 Ae. 13-12-89, Grimaldi, Proe. C-322/88, Cal., pgs. 1-4.407 e segs. Já
estudámos atrás a natureza especial das recomendações.
624 Nas obras mais recentes veja-se este ponto explicado, sobretudo, em
ACQuÉ, pg. 543, RIDEAU, pgs. 913 e segs. e LOUJs/RoNSE, pgs. 249 e segs.
514
515
6" Ae. 11-1-2000, Proe. C-285/98, Cal., pgs.I-69 e segs., pontos 15-32.
o Direito da União Europeia
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
Assim decidiu o TJ, especialmente em relação ao Direito
Constitucional estadual, no caso San Michele 625 e, mais tarde, nos já
citados casos Simmenthal e Kreil626
Este carácter absoluto do primado aparece-nos, contudo, relativizado, por duas vias.
Antes de mais, pela própria estrutura da Ordem Jurídica da
União. De facto, o primado, ao vir resolver o problema de um conflito entre uma norma ou um ato da União e uma norma ou um ato
nacional, parte do princípio de que a União pode legalmente intervir
naquele caso concreto. Isto quer dizer que o problema do primado
nem se colocará quando a União, por força dos Tratados, não estiver
autorizada a agir. Será o caso de, no domínio das atribuições partilhadas, por força do princípio da subsidiariedade ficar excluída a
intervenção da União. Já deixámos isto ressalvado quando estudámos atrás o princípio da subsidiariedade.
Em segundo lugar, o carácter absoluto do primado foi suavizado pelo TI, com o apoio de alguns tribunais constitucionais nacionais, pela necessidade de se salvaguardar direitos fundamentais dos
cidadãos. Ou seja, aqueles tribunais aceitam que o primado do
Direito da União ceda o passo a disposições internas que sejam mais
favoráveis aos direitos fundamentais dos cidadãos do que a norma
da União que com elas conflitue: desse modo decidiu o TI, para
começar, em 1969, no caso Stauder. Depois, e de modo progressivo,
o TJ reafirmou essa doutrina, nos casos Internationale Handelsgesellschajt, Nold e Wachauf Já estudámos atrás todos esses Acórdãos, quando nos debruçámos expressamente sobre a proteção dos
direitos fundamentais na União. Limitamo-nos agora a recordar
no caso Waclzauf, onde o TJ recapitulou e desenvolveu a orientação
jurisprudencial que estamos a analisar, ele deixou expressamente
escrito que "não são admitidas nas Comunidades medidas incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelas Constituições desses Estados" (os Estados-membros).
Nessa corrente jurisprudencial o TI foi seguido pelo Tribunal Constitucional alemão, no caso Solange I e nos Acórdãos
Maastricht e regulamentação do sector das bananas, e pelo Tribunal Constitucional italiano, nos casos Frontini e Granita!. Também estes processos já foram por nós referidos atrás 62'.
'" Despacho de 22-6-65, Procs. 9/65 e 58/65, Rec. 1967, pgs. 35 e segs.
626 No mesmo sentido, V., de modo especial, e pela clareza do seu ra,oio,ofnio,
SIMON, Les jondements, pgs. 243-244. Mais recentemente, ver LOUlS/RONSE,
cit., e JACQUÉ, pgs. 543 e segs.
516
201. O valor jurídico do primado
A questão que a seguir se coloca é a de saber qual é a sanção
do primado, ou seja, qual é a consequência jurídica para o ato nacional que viole um ato da União.
A resposta a essa interrogação faz parte da teoria do primado
tal como o TJ a construiu. De facto, no caso Simmenthal, aquele
Tribunal postulou, para a hipótese de conflito entre os dois atos, a
sanção da inaplicabilidade do ato estadual. Portanto, inaplicabilidade, e não nulidade, ou inexistência, do ato estadual. Ou seja, a
sanção para o ato estadual situa-se no domínio da eficácia e não no
da validade ou da existência jurídica.
O TJ recusou-se, portanto, a atribuir natureza federal ao prido Direito da União, que teria determinado a nulidade, se não
a inexistência jurídica, da norma estadual ("Bundesrecht bricht Landesrecht", na expressão do Direito federal alemão, com consagração
no já citado artigo 31. o da Constituição alemã628).
"
Embora seja essa a interpretação pacífica do Acórdão do TJ no
.'. caso Simmentlzal, sublinhe-se que o Tribunal forneceu aí argumentos para que a sanção fosse mais severa, e andasse próximo da
'['lulidade, ou da inexistência, no caso em que o ato estadual que
contrarie o ato da União seja posterior a esta62'.
Veja-se sobre esta questão, especialmente, JACQUÊ, pgs. 56 e segs., 554 e
Droit administratif, pg. 85.
628 Ver MAUNZlDüRIG, Grundgesetz -- Kommel1tar, Munique, 2012, e VON
~l\1ül'cH'K':;NI'G, Grundgesetz Kommentar, 6. 3 ed., Munique, 2012, anotações ao
f'';' ,m.ao preceito. Veja-se também a dissertação de GRABITZ, Gemeinschaftsrecht.
629 Assim, BARAV, anotação a esse Acórdão, in CDE 1978, pgs. 275 e segs.,
"el'Sl'N. que considerava haver razões jurídicas para a sanção da nulidade, anotação
EuR 1979, pgs. 223 e segs.
627
e FRDMom,
517
o Direito da União Europeia
Note-se, todavia, que, quase sem se dar por isso, o já referido
Protocolo relativo aos Estatutos do SEBC e do BCE, de 1992, veio
pôr em causa essa construção clássica. De facto, e como há pouco
mostrámos, o TJ pode anular, num recurso de anulação, um ato de
Direito nacional que demita um governador de um banco central
nacional (artigo 14.°, n.O 2, daquele Protocolo).
A violação do primado, para além de poder ser questionada
perante os tribunais nacionais do Estado que o infringiu, segundo os
meios contenciosos nacionais, coloca o respetivo Estado em situação de incumprimento, suscetível de desencadear o processo
incumprimento, regulado nos artigos 258.° a 260. ° TFUE, e
incorrer, por esse mesmo fundamento, em responsabilidade
Direito da União630
202. O primado do Direito da União e as Constituições estaduais
A posição dos Estados-membros, particularmente das suaf'
Constituições nacionais, perante o primado tem de ser vista, ao longp
da História, em duas fases: primeiro, a fase da confrontação entr~ a
integração e o Direito nacional (ou, se se preferir, a soberania
dual); depois, a fase da adaptação do Direito nacional ao Direito
União.
a) Afase da confrontação
Na fase que chamamos de confrontação, as Constituições est~;'
duais, para aceitarem o primado do Direito da União, e, portanl
para lhe darem legitimação constitucional, sentiram-se na necess(
dade de acolher as limitações de soberania resultantes da sua adesã,
às Comunidades, por uma de duas vias:
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
Direito da União - o exemplo mais acabado é o da Grécia,
no art. 28.°, n.O' 2 e 3;
ou incluindo nas Constituições uma cláusula de autorização ao Parlamento para a delegação de poderes soberanos
pelos respetivos Estados nas Comunidades - e aqui o
melhor exemplo, porque o mais bem elaborado, é o da
Alemanha, agora no seu novo artigo 23.°, n.o 1631 .
Como bem nota BLANCHARD6J2 , através de uma ou de outra
,'dessas duas formas, os respetivos Estados procediam à "constitucio'nalização" das Comunidades e, depois, da União, nas suas Constituições nacionais, visando, antes de mais, conceder suporte
\constitucional à sua adesão à União e à sua participação nela. Como
"consequência disso, por uma ou por outra dessas duas vias, os tribu[nais nacionais foram concedendo primado ao Direito da União
"sobre os respetivos Direitos nacionais, lançando mão, quando o
,entendiam, e para resolver as dúvidas que na matéria se suscitassem,
~oprocesso das questões prejudiciais do artigo 267.° TFUE, como
aconteceu nos diversos casos jurisprudenciais que temos vindo a
citar neste Capítulo.
Foi também nesta primeira fase que, como dissemos, tanto o
J,. como alguns tribunais constitucionais nacionais, chegaram à
nclusão de que a prevalência do Direito da União sobre os Direi()sestaduais não devia ir ao ponto de sacrificar direitos fundameniUsque, numa relação de conflito entre um ato da União e um ato
~tadual, se encontravam melhor protegidos por este último. Para o
,ireito da União o seu primado era um valor essencial e uma exiência existencial, mas a proteção dos direitos fundamentais era-o
'nda mais.
ou incluindo uma cláusula geral de limitação de soberani
que cobria também o primado supraconstitucional d
630
Ver
RAEPENBUSCH,
Responsabilité et irresponsabilité, pgs. 431 e segs., e'V~
pgs. 503 e segs.
BARAV,
518
,mo,
Sobre este preceito, além dos Comentários há pouco citados, ver, por
Staatsrecht, 5. a ed., Munique, 2012, pgs. 460 e segs.
Pgs. 69 e segs.
BADURA,
632
519
o Direito da União Europeia
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
cesso constituinte dos Estados-membros", que se materializaria nas
revisões constitucionais levadas a cabo para preparar as Constituições para a sua compatibilidade com os novos Tratados. Dessa
concertação entre os dois processos constituintes resultaria, para
aquele Autor, com toda a naturalidade, o primado supraconstitucional do Direito da União63'.
Portugal não fugiu a essa orientação, tendo revisto sucessivamente a Constituição de 1976 de forma a adaptá-Ia, a cada momento,
ao Tratado de Maastricht e, depois, aos Tratados de Amesterdão e de
Nice. A última revisão, a de 2004, já levou em conta, para esse
efeito, o Tratado Constitucional Europeu, que, entretanto, não chegou a entrar em vigor.
O segundo método, e que se aproveita em parte do anterior,
consiste na "europeização" dos Direitos Constitucionais dos Esta_. dos-membros. Ainda que não tanto como noutros ramos do Direito
Público (por exemplo, no Direito Administrativo), também no
Direito Constitucional se vai verificando uma progressiva harmonização das Ordens Jurídicas nacionais com o Direito da Uniã0636 •
--Essa harmonização tem vindo a abranger o próprio Direito Constitucional substantivo: primeiro, foi o Direito Constitucional Económico, o que se explica pelo facto de a União ter querido alcançar,
'antes de mais, a União Económica e Monetária; mas, depois, esse
b) Afase da adaptação
A segunda fase, que chamamos de adaptação (mas que RIDEAU,
de forma não menos feliz, designa de "adequação"6"), vai levar os
Estados-membros mais longe: eles, mais do que procurarem uma
legitimação constitucional para o primado do Direito da União, vão
adaptando ou adequando as respetivas Constituições à evolução do
Direito da União.
Este movimento iniciou-se, sobretudo, com a assinatura do
Tratado da União Europeia, de 1992, e tem vindo a conhecer dois
métodos.
O primeiro tem consistido na revisão das Constituições nacionais por forma a pô-las de harmonia com o Tratado da União Euro·
peia. Essas revisões têm sido, por vezes, sucessivas, a fim
adequá-las ao ritmo muito célere da revisão dos Tratados: nOlte-i,e
que em menos de dez anos houve três revisões dos Tratados '-""W"nitários e da União, levadas a cabo pelos Tratados de Maastricht,
Amesterdão e de Nice, não se podendo esquecer as profundas
vações trazidas pelos dois primeiros.
Colocados perante a opção de, ou porem previamente as
tivas Constituições em sintonia com os novos Tratados e de,
forma, possibilitarem a sua ratificação, ou correrem o risco de
rem surgir a questão de a ratificação do respetivo Tratado ser
rada inconstitucional pelo tribunal competente, impedindo,
modo, a adesão do Estado em causa ao respetivo Tratado, os Estaclos
têm, todos eles, sem exceção, escolhido modificar previamente
suas Constituições, a fim de as adaptar, de as pôr em cOllformidaide;
com os novos Tratados 63'.
Em Portugal, GOMES CANOTlLHO é muito feliz ao descrever
situação como um "procedimento constituinte evolutivo", que
desdobraria na simultaneidade de um "processo constituinte
tivo europeu", traduzido nas revisões dos Tratados, e de um
63~ Pgs. 911 e segs. Orientação próxima é adotada na obra coordenada pelo4:'
mesmo Autor, Les États membres, como se vê, desde logo, pela sua epígrafe.
'
634 RlDEAU demonstra-o com pormenor no seu manual, loco cito
520
6~5 Direito Constitucional, cit., pgs. 826-827. Só não aderimos integralmente a esta construção porque não cremos que os vocábulos "Constituição" e
't~constituinte", no sentido utilizado pelo Autor, sejam já adequados ao estado atual
>,,4aUnião Europeia e da sua Ordem Jurídica, pelas razões que indicámos supra,
n.°.165.
'"
636 Sobre a europeização, em geral, dos Direitos estaduais, veja-se adiante,
;'aSecção V deste Capítulo. Concretamente acerca da europeização do Direito
çonstitucional dos vários Estados-membros, sobre o que se tem escrito muito,
",,::,veja-se, de modo especial, E. KLEIN, Gedanken zur Europiiisierung des delltschen
6,Si:)'+Yerjassungsreclus, Festschrift K. Stern, pgs. 1.30 I e segs., o importante estudo de
~f:T:''}IÃBERLE, Gemeineuropaisches Verfassungsrecht und "Velfassung" der EG, in
:;Y:Schwarze Ced.), Verfassungsrecht und Verfassungsgerichtsbarkeit im Zeichen
';;:},?mopas, Baden-Baden, 1998, pgs_ 11 e segs., que, como o título indica, demonstra
'2~:~,existência de um Direito COrlStitucional comum aos Estados-membros, e o nosso
:;~!;;;~studo,
já citado, Constituição em-apeia e Constituições llacionais.
.. ..". ,
~
521
o Direito da União Europeia
movimento tem vindo a abarcar áreas de índole política com elevada
sensibilidade para a soberania dos Estados, entendida esta nos moldes clássicos, corno é o caso dos domínios que se prendem com a
criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça, especialmente, do espaço judiciário europeu. O exemplo mais expressivo do
que se acaba de dizer é o da abolição, nas Constituições, da extradição entre os Estados-membros da União, para diversas categorias de
crimes, no quadro do antigo terceiro pilar. É nesse âmbito que deve
ser interpretado o artigo 33. 0 da Constituição portuguesa, com a
redação que lhe deu a revisão de 200 I, especialmente, o seu n. o 5637 •
No que toca à europeização do Direito Constitucional Económico dos Estados-membros, levada a cabo, corno se disse, por força
de se ter alcançado já a União Económica e Monetária, e cujos instrumentos têm sido, antes de mais, as sucessivas revisões dos Tratados desde o Tratado de Maastricht, mas também atos de Direito
derivado, talvez um exercício de exegese jurídica nos permitisse
facilmente concluir que, nas Constituições de muitos Estados-membros, toda ou quase toda a disciplina do respetivo sistema económico se encontra absorvida pelo Direito da União. É o caso, em
Portugal, da Parte II da Constituição, dedicada à
Económica". Ela deve ser considerada abrogada, se não no
pelo menos em grande parte, pelo Direito da União. É urna investigação que ainda está por fazer. Pelo que nos toca, um estudo
aprofundado dessa matéria não cabe, contudo, neste livro6J8 .
637 Ver CANDT1LHO/MoREIRA, Constituição da República
Anotada, voL 1,4.' ed., Coimbra, 2007, pgs. 534-537.
638 Duas das melhores abordagens de toda esta matéria elll;onlra;m-s.,;!,
modernamente, na dissertação de DUBOS, pgs. 51 e segs., e no estudo de SIMON,
fondements, pgs. 235 e segs. Uma panorâmica geral acerca do modo como
Direito Constitucional dos Estados-membros se relaciona com o Direito da
encontramo-la no vaI. I das Atas do 17. 0 Congresso F.I.D.E., de 1996, cito no
desta Secção.
522
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
203. O primado do Direito da União e o Direito portnguês
I - O estado da questão até à revisão constitucional de 2004
Na primeira revisão da Constituição de 1976, isto é, na revisão
de 1982, o legislador constituinte, a pensar na proximidade da adesão de Portugal às Comunidades (que, na realidade, ocorreria em
1986), introduziu no artigo 8. 0 , cuja epígrafe geral era, e continua a
2: ,ser, "Direito Internacional", um novo n. o 3, com o segujnte teor:
>'-'As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações
internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na
ordem interna, desde que tal se encontre expressamente estabelecido
nosrespetivos tratados constitutivos"639.
Mais tarde, na revisão de 1989, foi retirado desse preceito o
'<advérbio "expressamente".
•
Esse artigo 8. 0 , n. o 3, continua em vigor, e o artigo 8.°, em
globo, não sofreu qualquer modificação na matéria até 2004.
Deixemos para mais tarde a modificação havida em 2004. No
'que toca à situação da nossa Constituição existente até então, man-temos sobre o assunto tudo o que escrevemos em 1993, no nosso
anual de Direito Internacional Público640 , e que continua a exprimir a nossa opinião sobre a matéria.
. Desde logo, o primado do Direito da União mereceria ser
'-6jeto de urna "cláusula europeia", ou "cláusula de integração",
utónoma, isto é, urna cláusula geral, ou de limitação de soberania,
W-de autorização de delegação (ou transferência) de poderes sobeos na União Europeia, ou, ao menos, em abstrato, em entidades
jJraestaduais64l • É o que, acertadamente, fazem hoje as Constitui._~sde quase todos os Estados-membros da União Europeia. De
Sobre o regime do primado depois da revisão constitucional de 1982, ver
A adesão de Portugal às Comunidades Europeias, Lisboa,
pgs. 43 e segs.
640 Da autoria de GONÇALVES PEREIRA e QUADROS (cit. neste livro entre as
gerais), pgs. 132 e segs.
MI Defendemo-lo mais recentemente nos nossos estudos Der Einfluss e A
6J9
VI1DRlNO,
523
o Direito da União Europeia
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
facto, são hoje cláusulas desse tipo, nomeadamente, o artigo 23.°, da
Constituição alemã (que tem de ser interpretado em conjugação com
o artigo 24. 0, n.o I); o artigo 34.° (era o artigo 25.° bis até à revisão
constitucional de 1994) da Constituição belga; o artigo 20.°, n.o I,
da Constituição da Dinamarca; o artigo 93.° da Constituição espanhola; o artigo 88.°-2, da Constituição francesa, na redação que lhe
deu a revisão constitucional de 1992, antes da ratificação pela
França do Tratado de Maastricht; o artigo 28. 0, n.o, 2 e 3, da Constituição grega; o artigo 29.4 da Constituição da Irlanda, dividido em
várias subsecções, de entre as quais merece destaque a subsecção
5. a , que exclui expressamente a fiscalização da constitucionalidade
de todas as fontes do Direito da União, bem como de todas as medidas nacionais necessárias à sua aplicação na ordem interna; o artigo
49.° bis da Constituição do Luxemburgo; o artigo 92.° da Constituição dos Países Baixos, com a particularidade de o artigo 91.°, n.O 3,
permitir a conclusão de acordos internacionais contrários à Constituição, desde que aprovados por uma maioria de 2/3 no Parlamento,
a mesma maioria necessária à revisão da Constituição, e o artigo
94. ° permitir a não aplicação de normas de Direito interno que contrariem tratados ou atos unilaterais de organizações internacionais;
a secção 2, n.O 1, do European Communities Act, do Reino Unido; o
capítulo 10, artigo 5.°, par. I, da Constituição da Suécia. Pelo
mesmo caminho resolveram ir os Estados de Leste que aderiram em
2004 e 2007 à União: veja-se, a título de exemplo, o art. 2. 0 _A, n.O
I, da Constituição da Hungria, e os n.O' 1 e 2 da Lei Constitucional
de 18 de dezembro de 2002, da Estónia, que veio completar a Constituição de 28 de junho do mesmo ano64'.
O legislador constituinte português manteve a sua decisão de
não incluir na Constituição qualquer cláusula geral desse tipo, que
resolveria o problema global da legitimação constitucional da participação de Portugal na União Europeia. Ao contrário, foi conservando nela, teimosamente, o artigo 8.°, D.o 3, que, como dissemos,
foi incluído na revisão de 1982, com a pequena modificação que
sofreu na revisão de 1989.
Nunca vimos razões para alterar quanto a esse preceito as críticas que lhe dirigimos em 1993 64" e que se resumiam, sobretudo,
ao seguinte: aquele preceito não substituía uma cláusula geral de
qualquer dos dois tipos que vimos terem sido adotados pelas Constituições doutros Estados-membros; e ele parecia querer regular
mais o aspeto concreto da aplicabilidade direta do que o primado,
mas, se se entendesse que também disciplinava o primado, a interpretação conjugada desse preceito com o n.o 2 do mesmo artigo 8.°
quebrava a unidade da Ordem Jurídica da União, ao definir um
regime diferente para, por um lado, a receção dos Tratados da
União, e, por outro lado, o primado do Direito da União derivado,
ou parte dele64'.
E, como já disséramos em 1993645 , nada se alterou, na matéria,
com a inclusão, pela revisão constitucional de 1992, de um novo n. °
6 no artigo 7.°, que sofreu uma pequena alteração na revisão de
2001. Só a parte final do preceito ["Portugal pode (...) convencionar
o exercício em comum ou em cooperação dos poderes necessários à
construção da união europeia"]646 poderia, eventualmente, levar a
que fosse interpretada como tendo relevância para o efeito de conferir base constitucional às limitações de soberania decorrentes da
adesão à União e, concretamente, ao primado. Mas não. Ao que
dissemos em 1993 sobre isso, acrescentaremos agora o seguinte: se,
pelo citado trecho do artigo 7. 0, n. ° 6, o legislador constituinte quis
dar a entender que da delegação de poderes soberanos dos Estados
na União nascia uma nova "soberania comum", ou "soberania
comunitária", ou "soberania da União", ou, até, apenas um poder
político da União, resultante da soma ou da mistura dos poderes
642 Veja-se este estudo de Direito Constitucional Comparado feito de modo
exaustivo e atualizado em RIDEAU, pgs. 822 e segs. e 911 e segs., e em
/RONSE, pgs. 334 e segs. Ver também BLANCHARD, pgs. 69 e segs.
524
Manual, cit., pgs. 130 e segs.
Dispõe o referido artigo 8.°, 0.° 2: "As normas constantes de convenções
internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna
npós a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado
Português".
645 Loc. cito
646 O itálico é nosso.
643
644
525
o Direito da União Europeia
soberanos delegados pelos Estados na União, e que, depois, os Estados repartiam entre si essa soberania ou esse poder político, nesse
caso, aquele preceito incorria, no plano jurídico, num grave erro,
que demonstrava desconhecimento dos princípios de base que presidem ao nascimento do poder político da União. De facto, este é um
poder autónomo em relação ao poder dos Estados-membros e nasce,
como mostram saber as cláusulas gerais constantes das Constituições de muitos outros Estados-membros da União, da delegação (ou
transferência), por estes, dos seus poderes soberanos na União, não
do exercício em comum" desses poderes (do exercício "em cooperação" não vale sequer a pena falar porque, quer do teor do artigo,
quer dos trabalhos preparatórios da revisão de 2001, não se percebe
o que se quis dizer com essa expressão). Como afirmámos, essa
conceção do "exercício em comum" mostra não perceber como nasceu e como se desenvolveu o processo jurídico da integração europeia e, concretamente, o poder político da União. Só para darmos
um exemplo, à face daquela conceção nunca a União teria atribuições exclusivas, porque é impossível havê-Ias num quadro do exercício em comum, ou em conjunto, de poderes soberanos pela União
e pelos Estados.
Não é por acaso, aliás, que só a Constituição francesa tem uma
disposição análoga à do artigo 7.°, n.O 6, da Constituição portuguesa
(repetimos que, por ora, estamos a referirmo-nos à Constituição
ainda antes da revisão de 2004). Tudo leva até a crer que foi a Constituição francesa que influenciou a inclusão do artigo 7.°, n. ° 6, na
Constituição portuguesa. De facto, no atual Título XV, intitulado
"Comunidades Europeias e União Europeia", introduzido na Constituição francesa na revisão de 1992 como Título XIV (uo mesmo
ano, portanto, em que o legislador constituinte português incluiu o
n.O 6 no artigo 7.°), o artigo 88.°-1 daquela Constituição dispõe que
"A República francesa participa nas Comunidades Europeias e
União Europeia, constituídas por Estados que escolheram livremente, por força dos tratados que as criaram, exercer em comum
alguns dos seus poderes" (itálico nosso). Mas, para se ver que o
I
legislador constituinte francês não ficou contente com essa fórmula,
como modo de resolver o problema da participação da França na
H
526
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
União, logo a seguir, o arte 88.°-2, acrescenta o seguinte: "Sob
reserva da reciprocidade e de harmonia com as modalidades previstas pelo Tratado da União Europeia assinado em 7 de fevereiro de
1992, a França consente na transferência dos poderes necessários
ao estabelecimento da União Económica e Monetária europeia"
(itálico nosso).
Isto quer dizer que, embora o artigo 88.°-2 da Constituição
francesa tenha um âmbito de aplicação mais restrito do que as cláusulas análogas de limitação de soberania ou de delegação de poderes
soberanos constantes das Constituições de alguns outros Estados-membros, aquela Constituição reconheceu que a cláusula do "exerCício em comum", constante do artigo 88. 0 -1, não era adequada, só
si, para resolver o problema da relação entre o Direito nacional
e o Direito da União e, por isso, acrescentou a esse artigo 88.°-1 o
artigo 88. °_2647 •
Mantemos, pois, a sugestão que vimos fazendo desde 1993 e
" que já antes transmitíramos à Assembleia da República quando ela
nos quis ouvir em sede de Comissão Eventual de Revisão Constitucional'48, de a Constituição portuguesa incluir uma cláusula especí'fica que acolha o primado do Direito da União sobre o Direito
português em conformidade com a jurisprudência do TJ e dos tribunàis constitucionais doutros Estados-membros, ou seja, que consagre o primado do Direito da União com a ressalva da maior proteção
pelo Direito nacional dos direitos fundamentàis ou doutros funda'mentos do Estado de Direito democrático. Mas vamos agora tentar
. simplificar ainda mais e, com isso, melhorar a redação que então
,_,propusemos para essa cláusula, nos termos seguintes:
a) seriam retirados, do artigo 7.° da Constituição, o seu n.O 6,
e, do artigo 8.°, o seu 0. 0 3;
b) seria incluído um novo artigo após o atual 8.°, com o
n.o 8. 0 _A, que teria a seguinte redação:
647
64&
Assim, lACQUÉ, pgs. 547 e segs., e LOUIS/RoNSE, pgs. 338 e segs.
Ver GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 138-139 e 147.
527
o Direito da União Europeia
Artigo 8. 0 _A
União Enropeia
1. O Estado Português consente nas limitações de soberania
decorrentes da sua livre adesão e participação na União Europeia.
2. O Direito da União prevalece sobre o Direito interno nos termos definidos por aquele, desde que daí não resulte ofensa aos direitos
fundamentais ou aos fundamentos do regime democrático e do Estado
de D.ireito.
Note-se que a referência às condições de reciprocidade, ao
princípio da subsidiariedade, à coesão económica e social e ao
espaço de liberdade, segurança e justiça, que atualmente constam do
artigo 7.°, n. ° 6, nos parece desnecessária, porque a primeira resulta
do próprio mecanismo da integração, e a subsidiariedade, a coesão
económica e social e o espaço de liberdade são impostos pelo TUE.
E, para mostrarmos que não estamos a pedir demais, diremos que,
por exemplo, a Suécia, um dos Estados europeus que tradicionalmente se têm revelado mais ciosos da sua soberania, quando aderiu
à União Europeia, em 1995, incluiu na sua Constituição o já citado
Capítulo 10, artigo 5.°, par. I, que vai muito mais longe do que a
redação que propomos. Dispõe, com efeito, aquele artigo (com itálIco nosso): "O Parlamento pode transferir para a União Europeia
o seu poder de decisão na medida em que isso não afete os princípIOS da ConslitUlção. Essa transferência pressupõe que a proteção
dos direitos e das liberdades no campo da cooperação que é abrangida por essa transferência corresponde àquela que é assegurada por
esta Constituição e pela Convenção Europeia dos Direitos do
Homem" (itálico nosso)649
Sublinhe-se que, na prática, este problema não tem tido quase
nenhuma relevância. De facto, assistimos ao paradoxo de, tendo
Portugal, entre todos os Estados-membros da União, um mau sistema constitucional de receção do Direito da União'50, tanto a Administração Pública, como os tribunais, o aplicarem com generosidade
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
(no caso dos tribunais, com alguns mal-entendidos que serão adiante
referidos), como o Tribunal Constitucional não ter tido até hoje
qualquer oportunidade de se pronunciar, de modo expresso, sobre as
relações do Direito português, concretamente, do Direito Constitucional, com o Direito da União.
Quanto ao Tribunal Constitucional, note-se que, se ele até
agora não se pronunciou de modo expresso sobre essa matéria, contudo já proferiu um Acórdão que tem de ser interpretado como partindo implicitamente da aceitação do primado supraconstitucional
do Direito da União e, ainda por cima, num domínio altamente
sensível para a Constituição. Referimo-nos ao Acórdão n. ° 184/89651 ,
onde aquele Tribunal admitiu uma genérica competência regulamentar do Governo, com fundamento direto em regulamentos
comunitários, em matéria que, pela Constituição, era da competência legislativa reservada da Assembleia da República. O Tribunal,
dessa forma, acolheu o princípio da prevalência de todo o Direito da
União sobre todo o Direito Português, porque aceitou o primado de
um regulamento comunitário (ato de Direito derivado) sobre a
Constituição portuguesa'52.
II - O estado da questão após a revisão constitucional de
2004
A revisão constitucional de 2004, elaborada na fase em que se
calninlha'va para a aprovação do Projeto de Tratado Constitucional,
aoare:cia como uma nova, e boa, oportunidade para finalmente se
ultrapassarem as insuficiências e deficiências do texto constitucional português sobre a matéria. Mas adiante-se desde já que só parcialmente esse objetivo foi alcançado.
Vejamos.
Ac. 1-2-89, Prec. n. o 201/86, DR, I Série, de 9-3-89. Veja-se o ponto 4
e, em especial, o ponto 4.1.
652 Ver PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, Coimbra, 2003,
743-746.
651
649
650
I,nterpretaçâo idêntica deste preceito faz BLANCHARD, pg. 77.
E essa também a opinião, em obras de língua francesa, de BLANCHARD,
pg. 77, e LOUIS/RoNSE, pgs. 382.
528
529
o Direito da União Europeia
Ao artigo 8.° da Constituição foi acrescentado um novo n. ° 4,
que dispõe o seguinte;
4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as
normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos tennos definidos pelo
direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado
de direito democrático.
Este preceito pretende substituir, quanto à União, o antigo
artigo 8.°, n.O 3. E substitui-o com vantagem.
De facto, passam as disposições dos Tratados e o Direito derivado a possuir um regime uniforme de legitimação constitucional na
sua aplicação na ordem interna portuguesa, salvo o que se dirá
adiante; passa a haver uma referência à União Europeia, o que o
artigo 8.°, n.O 3, não faz; a parte final daquele número contém uma
ressalva expressa dos "princípios fundamentais do Estado de Direito
democrático", o que nos faz lembrar a ressalva colocada pelo caso
Wachauf e pela jurisprudência constitucional alemã e italiana à teoria do primado.
Mas o preceito manteve algumas deficiências do passado.
Assim, do Direito derivado continuam excluídos os "atos" (de
entre os quais se destacam as decisões, do artigo 249.° CE), dado
que o artigo 8. 0, n.o 4, só se refere às "normas"; e continua o preceito a preocupar-se com a "aplicação" na ordem interna, quando o
que se esperava dele é que dispusesse sobre a questão prévia do
primado ou, ainda melhor, que contivesse uma cláusula geral de
base, de aceitação das limitações de soberania decorrentes da participação de Portugal na União.
A segunda alteração trazida pela revisão constitucional consistiu na nova redação dada ao artigo 7. 0, n. ° 6, que passou a estabelecer o seguinte;
6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito
pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo
princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão
económica, social e territorial e de um espaço de liberdade, segurança e
justiça, bem como a definição e execução de uma política externa, de
530
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício em comum, em
cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à
construção e aprofundamento da união europeia.
Quanto a este preceito, mantemos todas as críticas que dirigimos à redação que ele tinha antes da revisão.
Desde logo, a intenção de, a título programático, se repetirem
no preceito alguns princípios fundamentais da Ordem Jurídica da
União (a Democracia, a subsidiariedade, a coesão), ou alguns dos
. objetivos expressamente constantes dos Tratados (o espaço de liberdade, segurança e justiça e a política comum de segurança e de
defesa), é totalmente desnecessária. A adesão àqueles princípios e
objetivos já resulta do artigo 8. 0, n. ° 4, e melhor resultaria de uma
; cláusula geral, do género da que propusemos. Ao contrário, ficámos
com um preceito excessivamente longo, pesado e explicativo, o que
Jnão é aquilo que se espera da Constituição.
Por outro lado, o preceito conserva o erro da referência ao
:;;"'exercício em comum", ou "em cooperação", de poderes, que já
(criticámos atrás.
Além disso, a revisão mantém a referência à "soberania indivisível", no artigo 3.°, fi.o 1, que se tornou agora ainda mais inaceitá'vel em face da nova redação do artigo 8.°, n." 4, para além de ela
; não refletir a inserção de Portugal numa Comunidade Internacional
em acelerado processo de globalização.
ri'
A nosso ver, a revisão devia ter sido mais ambiciosa na maté'ria, desde logo, no plano do rigor jurídico, e devia ter procedido às
:,.seguintes alterações;
a) eliminação da referência à soberania "indivisível", no
artigo 3.°, 0.° 1;
b) eliminação do artigo 8.°, n." 3, que, agora, ainda por cima,
ficou sem objeto, dado que as normas de aplicação imediata que não sejam do Direito da União devem considerar-se abrangidas pelos artigos 8.°, n."' 1 e 2, ou por preceitos esparsos da Constituição, como é o caso do artigo
7. 0 ,n.07;
531
o Direito da União Europeia
c) em vez do artigo 8.', n.' 4, devia a Constituição ter passado
a incluir (em artigo autónomo, como atrás propusemos, e
como faz hoje a generalidade das Constituições de outros
Estados-membros, para se dar dignidade à União Europeia
através de uma "cláusula europeia") uma simples cláusula
geral de aceitação de limitações de soberania decorrentes
da participação de Portugal na União Europeia. Essa cláusula, repete-se, constituiria um artigo autónomo (seria o
artigo 8.'-A) e teria a redação que atrás sugerimos para
ela;
d) conformação do sistema de fiscalização de constitucionali,
dade do Direito da União, originário e derivado, com a
teoria do primado, tal como ela decorre da jurisprudência
do Tribunal de Justiça. Seria recomendável que essa conformação constasse, de modo expresso, dos artigos 277.'
seguintes, como fazem algumas Constituições de outros
Estados-membros da União, embora se possa dizer que a
inclusão na Constituição de uma cláusula geral, do tipo
propusemos, resolveria o problema, e se possa tarnhém
dizer, embora menos propriamente, que o novo artigo 8.'
n. ° 4, obriga o Tribunal Constitucional a aceitar a teoria
primado nos termos definidos pelo Direito da União.
Note-se que, em bom rigor, da redação que acima pfl~pl1se:m()s
para esse artigo 8.'-A, podia-se agora eliminar o n.' 2, dado
que nesse número ele viria a dispor passou a constar da U';CHifa'iau.
n.o 17 anexa ao Tratado de Lisboa, como já dissemos e melhor
caremos no número seguinte. Todavia, por causa das dúvidas
subsistem em Portugal, em certos meios políticos e ci,;ntífi(:os,
sobre o primado do Direito da União, entendemos ser conv,onienl:e''1
manter o n.' 2 na redação que sugerimos para o artigo 8. 0 _A.
Quanto ao artigo 7.', n.' 6, embora - insistimos - ele não
necessário, aceitamos que ele englobe uma norma prograrnát:icaL,
mas só se ele não repetir o que já é acolhido pelo artigo 8.'-A, e
a condição de ele ser sucinto e claro e dizer apenas o esserlci:11
Nesse caso, ele teria a seguinte redação:
532
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
Artigo 7.'
( ... )
6. Portugal contribuirá, no respeito pelos princípios da Democracia, do Estado de Direito, da subsidiariedade, da solidariedade e da
coesão económica e social, para a construção e o aprofundamento da
União Europeia.
( ... )
Esperemos que uma proxlma reVlsao constitucional vá na
matéria mais longe do que a levada a cabo em 2004653 •
.III - Conclusão
A aceitação expressa pela Constituição portuguesa do primado
supraconstitucional do Direito da União reforçará a coerência
illtema do próprio texto constitucional.
De facto, aquela Constituição, logo em 1976, adotou uma
ampla abertura afontes supraconstitucionais, traduzida, sobretudo,
:"na "abertura internacional da ordem constitucionaf', ou na "amiztl(ie ou harmonia, da Constituição com o Direito lnternacionaf'
("Volkerrechtsfreundlichkeit der Verfassung"). Nesse aspeto, e
çomo no-lo revela O Direito Constitucional Comparado, ela foi
extremamente generosa, exprimindo essa abertura em nada menos
><\0 que três preceitos: os artigos 8.°, n.' I (sobretudo este), 16.',
i.n.' I, e 16.', n.O 2. É assim que a doutrina nacional e estrangeira
illterpreta aqueles preceitos da nossa Constituição. Nós próprio
qebruçámo-nos sobre essa matéria numa monografia, para a qual
.remetemos o leitor654 •
653
Acerca do primado do Direito da União sobre o Direito português já após
.ar'evisão constitucional de 2004, ver duas posições de carácter geral, aliás não
;c(>incidenre; entre si, de MIRANDA/MEDEIROS, Constituição Portuguesa anotada,
2.:1. 00., Coimbra, 2010, anotações XVII e segs. ao artigo 8.°, e CANOTILHO/Y.
'h~dOllEIRA,
cit., anotações XII e segs. ao mesmo altigo.
A protecção da propriedade privada, já citado, pgs. 535-552 e 564 e
mas, especialmente, 539. Ver nessa obra os citados preceitos da Constituição
654
533
o Direito da União Europeia
Ainda falta, porém, a Constituição, num movimento análogo,
dar guarida à "amizade da Constituição para com o Direito da
União" ("Europarechtsfreundlichkeit der Verfassung", para alguma
doutrina alemã'55 e para recente jurisprudência do Tribunal Constitucional federal alemão'''). Ela obriga o legislador constituinte a
criar, de forma simples e facilmente acessível para os teóricos e
práticos do Direito, um sistema que na Constituição acolha o primado tal como a jurisprudência da União e dos tribunais constitucionais estrangeiros, particularmente o alemão e o italiano, o
fizeram.
Todavia, não faz dúvida de que, entretanto, por força dos Tratados e da jurisprudência do TJ, que foi atrás citada, e que hoje é
seguida pela prática dos diversos Estados-membros, o Estado Português está obrigado, pelo simples facto da sua adesão à União, a dar
efetividade ao Direito da União na sua ordem interna, isto é, a aplicar o Direito da União na Ordem Jurídica portuguesa, nos termos
consolidados pela teoria do primado. Essa obrigação decorre do
dever de cooperação leal para com a União, que está consagrado no
artigo 4.°, n.o 3, par. 2, UE, e desdobra-se numa série de obrigações
menores. Assim, o Estado Português deve: rever o sistema de fiscalização de constitucionalidade definido na Constituição de tal modo
que ele não constitua empecilho à aplicação do Direito da União na
ordem interna para além do permitido pela teoria do primado, nos
termos em que o TJ a veio a construir, com a ajuda de tribunais
constitucionais de Estados-membros; e revogar todos os atos nacionais contrários a atos comunitários posteriores, bem como não produzir novos atos nacionais contrários a atos comunitários anteriores
devendo, enquanto isso não for feito, não aplicar Direito intern~
desconforme com o Direito da União.
portuguesa interpretados, nesse mesmo sentido, nas obras aí referidas, a pgs. 539
e 544 e segs., de DELMAS-MARTY e SOMMERMANN.
655 Veja se, por último, BADURA, op. cit., pg. 460, e STREINZ, Die Volkerund Europarechtsfreundlichkeit des Grundgesetzes, Festschrift Giegerich, 2010,
pgs. 327 e segs.
656
Ver o Acórdão Lisboa, cit., ponto 4.
534
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
Especificamente quanto aos tribunais nacionais, estes são tribunais comuns do Direito da União. Ou seja, o juiz nacional, é juiz
da União"'. Esta comunitarização do juiz nacional e da sua função
começou, aliás, a ser levada a cabo exatamente pela teoria do primado"'. Como tal, o juiz nacional (portanto, também o juiz português) está obrigado a aplicar o Direito da União (inclusivamente, a
impor a conformidade do Direito Português com o Direito da União)
segundo os critérios próprios do Direito da União. Portanto, os
tribunais portugueses terão de julgar inaplicáveis as normas internas
que conflituem com normas da União. Já era essa a nossa posição
em 1993'59 e, mais modernamente, tem sido essa a posição também
de
CANOTlLH0660-661.
O desrespeito pelo Estado Português das obrigações que lhe
advêm da teoria do primado do Direito da União fá-lo incorrer em
responsabilidade de Direito da Uniã0 662' 663 •
A posição de GOMES CANOTILHO sobre esta matéria merece referência especial neste lugar devido à sua singularidade na doutrina portuguesa de Direito Constitucional. Aquele Professor qualifica o Direito da
União Europeia de "Direito Comunitário Supranacional"664. Encontra na
"confonnação institucional da União Europeia" uma perspetiva "federaVer infra, n.o 262.
Assim, e extraindo essa doutrina já do caso Costa/ENEL, sobretudo,
SIMON, Lesfondements, pgs. 247-248, e BOULOUIS, em anotação ao caso Simmenthal, cit., AJDA 1978, pgs. 326 e segs. Veja-se também o nosso estudo A nova
dimensão do Direito Administrativo, cit., sobretudo, pgs. 28 e segs.
659 GONÇALVES PEREIRA/QUADROS, pgs. 139-143.
"" Pg. 826-828.
661 Ver também o que sobre esta matéria escrevem A. ARAÚJO/I. P. CAROOSO
DA COSTAIM. NOGUEIRA DE BRITO no seu Relatório sobre As relações entre os Tri657
658
bunais Constitucionais e outras jurisdições nacionais, incluindo a interferência,
nesta matéria, da acção das jurisdições europeias, ROA 2002, pgs. 907 e segs.
662 Ver infra, n.o 268. Veja-se também QUADROS/MARTINS, op. cit., pgs. 185
e segs. e 232-234.
663 As questões de Direito Constitucional Comparado estudadas neste
número podem ser vistas, designadamente, no vol. I referente ao 17. 0 Congresso
da F.I.D.E., de 1996, e, mais recentemente, em RIDEAU, JACQUÉ e LOUlS/RoNSE,
loco cit..
664
Pg. 822.
535
o Direito da União Europeia
lista ancorada numa Constituição europeia". Donde, a Constituição
portuguesa ter deixado de ser uma "Constituição soberana" para se
transmutar numa "Constituição regional"66s. E afirma o primado do
Direito da União sobre as normas internas dos Estados-membros, inclusive sobre as normas constitucionais, com a sanção, para estas, corno
dissemos acima, no domínio da eficácia e não no da validade666 . No
essencial, concordamos com esta posição do Autor. Onde temos dificuldade em o acompanhar é na sua afinnação da existência de um "proce.
dimento constituinte evolutivo" ou ''processo constituinte coletivo
europeu"661. Pelas razões que já atrás expusemos, entendemos que é
cedo para, no plano jurídico, se poder falar em poder constituinte pró.
prio da União.
204. O primado depois do Tratado de Lisboa
o Tratado Constitucional Europeu resolveu tirar todas as dúvidas sobre o primado, acolhendo-o de forma expressa em regra escrita.
Dispunha, com efeito, o artigo 1_6.° daqnele Tratado, que "A
Constituição e o direito adotado pelas instituições da União, no
exercício das competências que lhe são atribuídas, primam sobre O
direito dos Estados-membros". E depois esclarecia a Declaração
n.O 1 anexa àquele Tratado: "A Conferência (entenda-se: a Conferência Intergovernamental) constata que O artigo 1_6.° reflete a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça das Comunidades
Europeias e do Tribunal de Primeira Instância" (itálico nosso).
Note-se que, apesar de, nos artigos 1-33.° a 1-37.° (correspondentes aos atuais artigos 289.° a 291.° TFUE), classificar os atos de
Direito derivado, o Tratado não distinguia, naquele preceito transcrito, entre o Direito da União: ou seja, todo o Direito da União
prevalecia, portanto, sobre todo o Direito dos Estados-membros. Por
conseguinte, aquele preceito - aliás, como já se disse, aprovado de
Pg.207.
666 CANOTILHO/MoREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada,
~ vaI. II, cit., anotação X ao artigo 204.°, e CANOTILHO, Direito Constitucional, pgs.
825-826.
661 Pg. 826.
665
536
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
modo pacífico pela Convenção sobre o Futuro da Europa - codificava a jurisprudência do TJ na matéria, isto é, o primado era definido no Tratado nos termos em que o TJ o foi construindo ao longo
dos tempos, com o apoio de tribunais constitucionais dos Estados-membros. Ou seja, e para se ser completamente claro: aquele Tratado nada inovava em matéria de primado do Direito da União, ele
limitava-se a codificar a jurisprudência já existente nesse domínio.
A omissão da referência naquela Declaração aos tribunais constitucionais nacionais não devia ser entendida como querendo significar
que o Tratado se esquecera deles enquanto complemento da jurisprudência da União.
O Tratado de Lisboa adotou quanto ao primado uma orientação
diferente, do ponto de vista formal, da do Tratado Constitucional.
Por exigência de alguns Estados, a referência ao primado desaparecen do texto dos Tratados. Em boa verdade, preocupava esses Estados o facto de o artigo 1-6.° do Tratado Constitucional ter a mesma
redação do artigo 24.° da Lei Fundamental de Bona, o que, entendiam eles, parecia dar ao primado do Direito da União um carácter
federal. Por isso, O artigo 1_6.° do Tratado Constitucional não foi
mantido nos Tratados UE ou TFUE. Mas ficou anexo à Ata Final da
CIG de 2007 e, portanto, ao Tratado de Lisboa, a Declaração n.o 17
sobre o primado, que reza o seguinte:
A Conferência km.b..rn que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o
direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o
direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida
jurisprudência.
Além disso, a Conferência decidiu anexar à presente Ata Final
parecer do Serviço Jurídico do Conselho sobre o primado do direito
comunitário coustante do documento 11197/07 (JUR 260), cujo texto se
transcreve na sua versão oficial em língua portuguesa:
°
«Parecer do Serviço Jurídico do Conselho
de 22 de Junho de 2007
Decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o primado
do direito comunitário é um princípio fundamental desse mesmo direito.
537
o Direito da
União Europeia
Segundo o Tribunal, este princípio é inerente à natureza espec(fica da
Comunidade Europeia. Quando foi proferido o primeiro ac6rdão desta
jurisprudência constante (ac6rdão de 15 de Julho de 1964 no processo
6/64, Costa contra ENEDIJ, o Tratado não fazia referência ao primado.
Assim continua a ser atualmente. Q facto de o princípio do primado não
ser inscrito no futuro Tratado em nada Dre;utJica a existencia do princípio nem o atual htri'iprudência do Tribunal de Justiça».
(lJ "Resulta (...) que ao direito emergente do Tratado, emanado de um.afollte
aut6noma, em virtude da sua natureza originária específica. não node ser opmto em
iuíro um texto interno qualquer que seia sem que perca a sua natureza comunitária
e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comum·dade." (sublinhados nossos)
Ou seja, o texto desta Declaração pretende ser a soma do artigo
r-6. ° do Tratado Constitucional e da Declaração n. ° I anexa àquele
Tratado, completada pelo transcrito Parecer do Serviço Jurídico do
Conselho, que pormenoriza o texto do corpo da Declaração e que
esta incorpora nela. Portanto, a Declaração n.o 17 mantém, na sua
substância, o conteúdo do artigo 1-6. o do Tratado Constitucional e
da Declaração n. ° 1 anexa àquele Tratado. O problema que ela
suscita é de natureza formal.
De facto, a partir do momento em que a referência ao primado
saiu do texto do Tratado para uma Declaração e esta não faz,
plano jurídico, parte do Tratado (o artigo 51.° UE dispõe que só os
Protocolos fazem parte integrante do Tratado e, das sessenta e
Declarações anexas à Ata Final da CrG de 2007, só aquela que
tém a Carta de Direitos Fundamentais tem o mesmo valor que
Tratado, por força do artigo 6.°, n. ° I, UE), põe-se o problema
saber qual é o valor jurídico da Declaração n. ° 17 e, portanto, qual
a força jurídica que o Tratado de Lisboa quis dar à consagração
primado do Direito da União.
Embora não faça parte do Tratado, a Declaração n. ° 17 é
texto jurídico e não apenas uma declaração política. Foi apro1iaola
por todos os Estados-membros na CrG. Nenhum deles m,milt"esltou
sequer qualquer divergência interpretativa quanto ao seu conteúd(J,.;,
538
As relações entre o Direito da União Europeia e os Direitos Estaduais
como aconteceu, por exemplo, com as Declarações n.O' 53, 61 e 62,
subscritas por alguns Estados quanto à Carta. Pelo contrário, os
Estados acrescentaram à Declaração o Parecer do Serviço Jurídico
do Conselho que confere sólida fundamentação à Declaração, numa
situação similar à das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados enuncia,
no seu artigo 31.°, uma regra geral de interpretação dos Tratados.
Diz ela:
Artigo 31
Regra geral de interpretação
1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido
comum atIibuível aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos
respetivos objeto e fim.
2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto com~
preende, além do texto, preâmbulo e anexos inclusos:
o) qualquer acordo que tenha relação com o tratado e que se celebrou entre todas as partes na altura da conclusão do tratado;
b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes na
ocasião da conclusão do tratado e aceite pelas outras partes como instrumento relacionado com o tratado.
( ... )
Deste preceito tem de se extrair, com relevância para a questão
que está aqui em apreço, que qualquer tratado tem de ser interpre'tado de boa-fé, levando-se em conta, para o efeito, entre o mais, o
seu contexto, e que esse contexto inclui qualquer acordo ou qualquer instrumento celebrado pelas partes no momento da conclusão
. do tratado, que tenha relação com este, e que, como tal, haja sido
aceite pelas partes.
Ora, a Declaração n.o 17 sobre o primado está, obviamente,
relacionada com o objeto dos Tratados que regem a União Europeia.
.Repetimos que o primado constitui um requisito imposto pela essênida do Direito da União.
Mas, sobretudo, acontece que a referida Declaração não cria
llada de novo para o Direito da União: ela começa por dizer que a
539
o Direito da União Europeia
Conferência "lembra" o que já existe na jurisprudência do TJUE,
isto é, ela limita-se a codificar Direito já formado por força dessa
jurisprudência. Depois, o Parecer do Serviço Jurídico do Conselho
desenvolve e reforça esse argumento e, no texto que sublinhámos,
reconhece força obrigatória ao princípio do primado.
De tudo isto há que concluir que, em nossa opinião, resulta
dessa Declaração que foi intenção dos Estados-membros dar caráter
obrigatório ao princípio do primado nos Tratados e que eles reconhecem que nesta matéria os Tratados não inovam porque, repetimos,limitam-se a codificar ajurisprudênciajá afirmada e consolidada
pelo TJUE.
Portanto, do Tratado resulta, nomeadamente, que o primado do
Direito da União cederá o passo à norma nacional sempre que esta
garanta melhor os direitos fundamentais e os demais fundamentos
do regime democrático e do Estado de Direito. Isso resulta da interpretação conjugada da citada Declaração n.o 17 com a cláusula
horizontal contida no artigo 53. o da Carta (segundo o qual os direitos fundamentais reconhecidos pelas Constituições dos Estados- "
-membros nunca poderão ser restringidos por nenhuma disposição"
sobre direitos fundamentais constante da Carta) e com o artigo 2.°
do Tratado UE, que enuncia os "valores" da União.
Com isto t
Download