Uploaded by Pedro Falcão

texto rejeicao a IA

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29/08/2023
Gerenciando a rejeição à IA
Como as guildas medievais, os grupos profissionais de hoje
provavelmente apelarão a políticos solidários e farão lobby por
regulamentações para controlar a tecnologia
Por Edoardo Campanella
As tecnologias revolucionárias raramente são bem recebidas pelos trabalhadores ou outras pessoas
com um interesse significativo no status quo. A inovação requer adaptação e a adaptação é
dispendiosa. A resistência dos poderosos às tecnologias revolucionárias foi um grande fator em
períodos passados de estagnação do crescimento. Previsivelmente, o entusiasmo inicial pela
Inteligência Artificial generativa, após o lançamento do ChatGPT em no ano passado, deu lugar a
temores de desemprego tecnológico.
Ninguém espera que as rupturas causadas pela IA serão pequenas. Segundo o Goldman Sachs, “a
IA generativa poderá substituir até um quarto do trabalho atual” na Europa e nos Estados Unidos,
com profissões administrativas e jurídicas sendo mais expostas do que profissões fisicamente
intensivas, como as dos setores da construção e manutenção. A IA já consegue produzir textos,
vídeos e imagens indistinguíveis do conteúdo criado pelos humanos. Ela é muito melhor que os
humanos em qualquer tarefa que envolva o reconhecimento de padrões e é cada vez melhor em
fazer julgamentos básicos em muitos domínios (por exemplo, em responder questionamentos no
atendimento a clientes).
A história oferece pistas sobre como será a reação contra a IA, embora alguns paralelos sejam mais
úteis do que outros. A analogia mais comum é com os luditas, que reagiram à industrialização na
Inglaterra no começo do século XIX destruindo máquinas. Mas essa comparação é inadequada,
uma vez que a IA é um instrumento digital indestrutível. Do mesmo modo, a IA não deverá reviver
os sindicatos trabalhistas, que nasceram com a industrialização, porque ela ameaça principalmente
os empregos de colarinho branco, em vez dos trabalhadores das linhas de montagem.
Para encontrar uma comparação histórica, precisamos recuar ainda mais até a Idade Média, quando
poderosas corporações de ofício - associações de advogados, notários, artesãos, escribas, pintores,
escultores, músicos, médicos etc. - regulavam profissões qualificadas em toda a Europa.
As guildas beneficiavam a sociedade garantindo a qualidade dos produtos e certificando as
qualificações dos profissionais, mas seu principal propósito era proteger e enriquecer seus
membros, excluindo os concorrentes. Tal monopolização produziu grandes lucros para
recompensar as elites políticas à custa dos consumidores - “uma conspiração contra o público”,
como disse Adam Smith.
As guildas geralmente eram conservadoras quando se tratava de inovação. Embora promovessem
um ambiente favorável às mudanças tecnológicas por meio da especialização técnica, a mobilidade
socioeconômica dos artesãos e as rendas monopolistas, elas resistiam a novos dispositivos e
produtos, proibindo os membros de adotar novos processos e boicotando mercadorias e
trabalhadores de locais que usavam técnicas proibidas. Em resposta às petições das guildas, os
governantes locais frequentemente aprovavam leis que impediam a inovação.
A prensa tipográfica é um exemplo disso. Inventada em 1440, devido à oposição das guildas de
escribas ela só passou a ser amplamente usada no século XVIII. Do mesmo modo, na Colônia do
século XV, os mestres das guildas dos torcedores de linho proibiram as rodas giratórias movidas
a cavalos, por temer que estes tomassem seus empregos.
Mas isso não é sugerir que as guildas eram contra a tecnologia. Embora se opusessem
veementemente às inovações que substituíssem a mão de obra, elas no geral eram abertas às
inovações que aumentavam a mão de obra, poupando capital de giro e melhorando a qualidade.
Hoje em dia, muitos daqueles ameaçados pela IA generativa - como advogados, médicos e
arquitetos - estão organizados em associações profissionais que, na verdade, descendem das velhas
guildas. Especialmente na Europa, essas organizações ainda restringem a competição, impondo
barreiras de entrada, fixando honorários profissionais, estabelecendo padrões de qualidade,
restringindo o uso da propaganda e outras medidas.
Olhando para o futuro, podemos ver muitas profissões formando uma frente comum para controlar
a IA via regras gerais relativas à regulamentação de dados, padrões éticos ou taxação de capital.
Mas as reações mais ferozes provavelmente ficarão confinadas a profissões específicas, dado o
quanto a ameaça da automação varia de uma ocupação para outra. Assim como as guildas
medievais, os grupos profissionais de hoje provavelmente apelarão a políticos solidários e farão
lobby por regulamentações para controlar a IA. Em tese, esses esforços orientarão a tecnologia
para utilizações que aumentem a mão de obra, em vez de utilizações que substituam a mão de obra.
Além disso, algumas profissões vão se policiar, estabelecendo, por exemplo, novos padrões para
as interações entre os clientes e a IA; proibindo a automação de certas tarefas por razões éticas; ou
limitando o acesso a certos dados dos clientes por motivos de privacidade, restringindo assim o
potencial de aprendizado da tecnologia. Os médicos, por exemplo, provavelmente insistirão que
precisam ter a última palavra nos diagnósticos de doenças assistidos pela IA, e os meios de
comunicação respeitáveis vão querer checar os fatos relatados em artigos escritos por IA.
Como sempre acontece, alguns membros de uma determinada profissão ficarão mais vulneráveis
do que outros. Na Idade Média, os mestres mais ricos exerciam a maior influência sobre as
autoridades públicas e muitas vezes moldavam as políticas em benefício próprio - não em benefício
de todos os membros da guilda. Hoje, os sócios das firmas de advocacia acolherão a automação
redutora de custos de tarefas realizadas por associados mais jovens (como redigir contratos-padrão
ou encontrar precedentes legais), contanto que possam manter as tarefas de alto valor agregado
que eles próprios desempenham.
Alguns países estarão muito mais expostos a uma reação negativa do tipo guilda do que outros. Na
Europa, as guildas desapareceram formalmente depois da Revolução Francesa, quando os
governantes foram pressionados a estabelecer sociedades mais igualitárias e desencadear a
industrialização. No entanto, a mentalidade corporativista sobreviveu em todo o continente,
conforme evidenciado pelo excesso de regulamentação persistente no setor de serviços. Por outro
lado, os EUA não têm o histórico das guildas de ofício.
Para liberar todo o potencial da IA, autoridades e inovadores deveriam promover usos que elevem
a atividade humana, em vez de suprimi-la. Se a IA for vista mais como uma ameaça do que uma
fonte de empoderamento, lobbies bem organizados atrasarão ou mesmo inviabilizarão sua adoção
em muitos setores. A lenta difusão da imprensa é uma advertência. Na
Na sua ânsia de inaugurar o futuro, os desenvolvedores de IA deveriam prestar atenção nas lições
do passado.
Edoardo Campanella é membro sênior do Mossavar-Rahmani Center for Business and
Government da Harvard Kennedy School. Copyright: Project Syndicate, 2023.
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