Uploaded by Manuel Batoca

Penedo da Pinga

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LENDA DO PENEDO DA PINGA
PRÓLOGO
Embora a lenda do Penedo da Pinga não seja conhecida na freguesia de Vilar Chão,
permiti-me fazer uma breve incursão pelo mundo da invenção e sonhar um modelo de lenda
para uma terra que muito amo.
Na grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, a pág. 782 e 783, encontramos o texto que
a seguir se transcreve.
Citação: (o itálico negrito sublinhado é nosso)
“Freg. do conc.com. de Vieira do Minho, dist. e dioc. de Braga, rel. do Porto. Orago:
S. Paio. Pop.: 410 hab. em 89 fogos. Dista 8,5 km. da sede do conc. e está situada na
margem direita do rio Ave. Tem serv. de correio, feito pela est. post. de Vieira do
Minho, e esc. prim. Embora não existam provas arqueológicas do facto, deve ser muitos
séc. anterior à Nacionalidade o povoamento do território desta freg., visto ser a
circunstância geral no termo de Vieira. Em todo o caso, a toponímia da freg. é disso
pouco expressiva, pois com aspectos de maior antiguidade ocorrem apenas Balteiro, o
próprio n. pessoal de origem germânica; Amiã (talvez melhor, Ameã), sc. «villa» meã
(< mediana), de início, com perda do termo «villa»; Vilar Chão, com o termo
arcaico «villar», que é, sem dúvida, pré-nacional, pois que assim o indicam as circunstâncias histórico-toponímicas da aplicação geográfica deste apelativo. O abade
de Miragaia, sem qualquer notícia histórica desta freg., diz que «há nos limites desta
paróquia três grandes penedos, denominados Penedos da Pinga, porque um deles
assenta sobre os outros dois, formando uma espécie de ponte com três metros de
abertura e quatro de altura, e está sempre, mesmo na estiagem, vertendo ou
pingando água do tecto ou do penedo superior sobre o dito vão, — água que é
tida por milagrosa e por isso alguns habitantes desta freg. se banham nela, em um
pequeno tanque, que está no dito vão. Diz a lenda que S. José, passando por ali,
batera com o seu cajado no penedo e que desde então o penedo ficara sempre pingando».
O monógrafo do conc. de Vieira, padre Alves Vieira, também não dá desta freg.
qualquer notícia histórica, dizendo dela: «Vilar Chão não terá grandes pergaminhos
históricos, grandes palacetes, grandes figuras políticas, mas tem um património glorioso e
insubstituível na arreigada fé dos seus habitantes. Vizinha da serra e dos lobos, sempre
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em contacto com a natureza dura e brutal das coisas, acrisolou-se na provação e saiu mais
ágil e mais aprestada para arcar com as rudes investidas da desgraça, que nunca falham. Daí
o seu amor a tudo o que eleva acima das torpezas da vida, a tudo o que tem aura de
sobrenatural». O autor, porém, não dá algum exemplo que explique este subjectivismo,
que substituiu a notícia histórica, cuja inteira falta assim preenche. A menção do nome
desta freg. (e, portanto, a existência de Vilar Chão) é anterior à Nacionalidade, de
perfeito acordo com a dedução nesse mesmo sentido-tirada do significado toponímico:
princípio num «villar». que, pelas circunstâncias histórico-toponímicas, se iniciou
antes do séc. XII, mui sensivelmente (v. Vilar, hist. e topon.). De facto, referindo-se
a aquisições, na quase totalidade, do séc. X, o inventário dos bens do mosteiro
vimaranense cita «in território Velaria (Vieira) nostras adjuntiones nominibus[...]
Lamedo Barreiros Sancta Christina Culnella Vilar Plano Ladrones Sodenga» etc. (Dip.
et Ch., n.° 420, de 1059), seguindo-se muitos outros nomes que, sem isso ser necessário,
provam que se está em pleno conc. actual de Vieira (ant., Velaria) e que,. portanto,
Vilar Plano é a actual pov. (e talvez toda a actual freg.) de Vilar Chão. Os pergaminhos
históricos desta freg. vão, pois, pelo menos, ao séc. X. Mais adiante,. ainda no
parágrafo «in territorio Velaria», volta o inventário a citar Vilar Chão, a propósito da
posse, pelo mosteiro de Guimarães, da «herdade» que fora de um Sisnando, por
cognome Sando: «et in Villar Plano de hereditate que ibi habuit Sisnando cognomento
Sando Ill." integra» (Dip. et Ch., n.° 420). Este Sisnando seria o doador (ou um colono do
mosteiro ?). Do destino dos bens vimaranenses aqui não há conhecimento, nem deles
volta a haver notícia. Decerto passaram à coroa quando-o mosteiro foi substituído no
séc. XII pela famosa colegiada, destino comum à grande parte das possessões=
monásticasde Guimarães. Nas próprias Inquirições de 1220 «de Sancto Pelagio de
Vilar Chão», paróquia «de termino de Veeira», não há, entre os bens das «ordens».
(mosteiros e igrejas), qualquer alusão a Santa Maria de Guimarães; e, no entanto, a
resenha desses haveres, cita os da igreja paroquial (S. Paio), a saber, «searas». e três
«partes» (quartas) de um casal, os do mosteiro de Fonte Arcada (dois casais) e as do
mosteiro de S. João de Vieira (um casal). Por deposição do próprio abade da freg. em
1220, padre Pedro Gonçalves, sabe-se das. Inquirições dessa data que na paróquia
«rex non habet ibi regalengum», isto é, faltavam nela os prédios propriamente da coroa.
Quanto a foros, também pouco tinha a coroa, visto que «de ista collatione» se dava
apenas a fossadeira de três bragais e quatro côvados e meio e «mealha», o que
corresponde a um ou poucos prédios (casais ou «herdades»). Quanto a encargos pessoais,
nota-se, além da voz-e-coima (casos crimes, quando perpetrados), apenas o da pesca
com trovisco para o rei ou o seu delegado na «terra», e isto mesmo restrito a certas famílias:
«et quidam homines de ista friguisia vadunt ad intorviscatam » . Ora, como os casais
de reguengueiros não existem e os de herdadores são poucos, bem como poucos os
em posse de «ordens» (a igreja local e os mosteiros referidos, na soma de menos de
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quatro casais), seguir-se-à que a nobreza devia possuir desta paróquia veleriense
bens decerto avultados. O que não é fácil, perante a documentação conhecida, é saber
que estirpe ou estirpes os possuíam, somente devendo presumir-se vir o facto de antes
da Nacionalidade, certamente. Da própria igreja «rex non est patronus», isto é, o
padroado não era da coroa, o que faz presumir que a igreja de S. Paio, de edificação
anterior à Nacionalidade (já paroquial no séc. XII), foi de origem uma igreja “própria”,
presumivelmente de fidalgos, pois que, além de serem raras as de povo totalmente, seria
pouco aceitável (apesar de se observar, mas em casos muito especiais) uma
unanimidade de vontade colectiva que levasse todos os compadroeiros a legar a igreja
totalmente, como aparece, a Sé bracarense. Em «terra» de Vieira aparecem no séc.
XI grandes devotas fidalgas da catedral, como D. Maria Pais, D. Adosinda Mides,
etc., ou até a estirpe dos Godinhos e Fafiãos (de Lanhoso), de próceres da «terra», de
modo que, de acordo com a dedução, de na paróquia haver no séc. XIII grandes bens
fidalgos, torna-se aceitável, à falta de notícia directa, positiva ou não, uma doação a
Sé bracarense, por fidalgos, da igreja de S. Paio de Vilar Chão. Teriam sido, pois,
fidalgos os fundadores dela, e é facto que não pode marcar-se para sensivelmente antes
do séc. XI a edificação, pois que o orago, S. Paio, é o menino mártir cordovano, do
século anterior. Diz o abade de Miragaia que «esta paróquia está na vertente ocidental
da serra da Cabreira, onde apascentam (os moradores) muito gado cabrum e lanígero
e fazem muito carvão, que levam para Braga», o que já afirmava do séc. XVII para o
XVIII o padre Carvalho. Na igreja, é notável o facto de o seu campanário estar
separado dela, a certa distância: «O campanário, assente na penedia sobranceira ao
caminho, oferece um belo ponto de vista», escreve o padre A. Vieira. Na freg., dá-se
desde 1860 o curioso fenómeno demográfico de diminuir a população, embora com
intercadências e pouco. A abadia de Vilar Chão rendia para o titular, do séc. XVII para
o XVIII, 90 mil réis, e em meados do mesmo séc. 260 mil réis (evidentemente, só em
parte para o abade). O título abacial, conservado após a Idade Média, revela neste
templo certa categoria inicial. O arrolamento paroquial de 1320-1321 atribui a esta
igreja a taxa (proporcional aos rendimentos) de trinta libras, para a projectada
expedição aos infiéis. A esta freg. pertencem os lug. de: Abelheira, Ameã, Carreira e
Laje.”
(Fim de citação)
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LENDA
Era Novembro e o vento fustigava as encostas da serra com uma violência extrema.
A chuva desabava em turbilhão sobre os despidos carvalhos da encosta do Penouco
arrastando no seu caudal as folhas mortas que o Outono tinha feito cair das árvores. O
crepitar do dilúvio sobre os troncos nus das árvores e contra as altivas formações rochosas
era de tal modo violento que parecia querer arrasar por completo a elevação altaneira que se
erguia qual asa protectora sobre a aldeia de Vilarchão aninhada a seus pés. Os trovões
ribombavam pelas penedias graníticas da Cabreira qual Adamastor tenebroso, terrífico e
pavoroso. O frio era de tal modo intenso que nenhum ser vivo se atreveria a deambular no
seio daquela tempestade sem arriscar a sua sobrevivência. Assim pensava Daniel, o pastor
que se tinha abrigado debaixo do Penedo da Pinga rodeado pelas suas ovelhas. Até a
fidalga, a ovelha mais resoluta e irrequieta do seu rebanho, se tinha aquietado como que
paralisada de medo pela inclemência da natureza.
Daniel tinha despido a croça. Era uma capa feita de junco e que o protegia do frio e
da chuva mas, com esta intempérie, até essa protecção era ineficaz. A água já lhe tinha
descido pelo pescoço abaixo, entre a camisa de flanela e a pele, e os seus pés já estavam
encharcados, apesar das suas botas bem protegidas com sebo de porco e das polainas que
sempre usava nestes dias de Inverno. Quase não sentia as mãos, de tal forma o frio o
agredia. Os seus dentes chocalhavam estrepitosamente, apesar de ser um homem habituado
aos rigores do Inverno. A Farrusca, cadela amiga e companheira, de há seis anos, nas suas
andanças pela serra, tinha-se acomodado junto do dono e, também ela, tiritava de frio por
não ser muito farta de pêlo.
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Era linda, aquela cadela. De pelagem clara, com algumas manchas negras no dorso
e na barriga, tinha a pata esquerda toda pintada de preto. Os olhos castanhos eram de uma
doçura tal que indiciavam uma dedicação extrema. O rabo abanava afincadamente sempre
que Daniel lhe dirigia a palavra ou lhe afagava meigamente a cabeça. Era tão afeiçoada ao
seu dono que nunca se afastava muito dele a não ser para ir atrás de algum láparo. Para
onde ele fosse, ela ia. Até à noite a Farrusca ia para o quarto onde Daniel se deitava e
aninhava-se aos pés da cama como se lhe quisesse aquecer os pés fatigados da jornada. Era,
realmente, o melhor amigo de Daniel, que ninguém duvidasse.
Depois de se libertar da vestimenta (im)protectora, Daniel foi buscar, a um canto
onde anteriormente a guardara na perspectiva de um dia como aquele, um bom braçado de
lenha seca para acender uma fogueira consoladora. Começou por colocar na lareira
improvisada, duas pinhas bem secas e anafadas. Em cima colocou um ramo de carqueja
para alargar as chamas das pinhas a toda a extensão do combustível. Por cima dele, umas
raízes bem secas de urze e, para rematar a pilha de lenha, uns ramos de carvalho
armazenados há muito com essa intenção. Diz o povo, se calhar com razão, que uma boa
fogueira é meio sustento. Os dedos tremiam tão convulsivamente que quase não era capaz
de segurar o fósforo com que se aprestava para fazer lume. No entanto, aquelas paredes
sobre as quais o enorme penedo parecia repousar protegiam-no da maior força do vento
agreste e da chuva torrencial. Com uma boa fogueira poderia, calmamente, deglutir e
apreciar a sua parca merenda que tinha no alforge. Constava de um bom naco de broa de
milho, um pedacito de presunto e outro de chouriço caseiro. Na cabaça vertera dois litros de
vinho verde da sua colheita, ácido quanto baste, mas que lhe sabia pela vida e que lhe
aconchegava o estômago já a ele habituado.
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Teve que obrigar a Pinta, a mais “criadeira” do rebanho, a desviar-se, para poder
chegar à lenha com que queria aquecer-se. Ela não gostou muito, mas ele pediu-lhe
desculpa e ela lá se desviou meio contrariada.
- Ò Pinta, tu não queres que eu faça a fogueira? Ora vê lá se queres que eu apanhe
p’ràqui uma constipação de caixão à cova! Ainda gostava de ver o que seria de vós,
depois… Farrusca, desvia-te um cibo mais ò pr’ó lado. Olha que eu queimo-te o pelico.
Depois não te queixes! Se não me deixas fazer a fogueira, continuas a martelar os dentes
com um batel espanta-pássaros. Gostas?
Após esta breve altercação tudo serenou e Daniel pôde fazer a sua fogueira tão
tranquilamente quanto o seu próprio tremor lhe permitia.
A lenha bem seca depressa produziu um calor que semelhava o paraíso. Não que ele
soubesse o que isso era e também não tinha pressa de saber. Cada coisa a seu tempo. Mas,
era o que se ouvia dizer e ele dizia igual. Sim, que ele também sabia falar. Olha se as suas
queridas o não percebiam! Era como se fossem gente. Só lhes faltava mesmo falar, porque
entender entendiam elas. E, se elas o entendiam, isso era a prova de que ele também sabia
falar, ainda que as pessoas lá da terra dissessem que não se lhe apanhava metade do que
dizia. Isso é porque não eram tão inteligentes como as suas ovelhas ou até como a Farrusca,
que essa então é que era um poço de esperteza.
- Que te parece, ò Farrusca: achas que eu não sei falar?
A Farrusca olhou para Daniel com uns olhos tão meigos que ele compreendeu
imediatamente que ela o tinha percebido e lhe dizia, com aquele olhar tão doce e o suave
latido que produziu, que, realmente, as pessoas eram muito estúpidas.
- Pois claro que são estúpidas. Então não é que elas dizem que só um tolo fala com
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os animais?! Olha que coisa tão parva! Com quem é que eu havia de falar? Com as pedras?
Se calhar, algumas percebiam-me mais depressa do que as pessoas lá de baixo.
A este ponto da conversa a Tóina lançou um balido como que a dizer que isso era
uma grande verdade, sim, senhor.
- Sabeis que mais? Vou mas é patuscar a minha merenda, que o calorzinho desta
bendita fogueira já me começa a chegar aos ossos.
Se bem o disse, melhor o fez. Da sacola tirou a broa e o naco de presunto, sacou da
sua navalha com cabo de osso e toca de mastigar devagar os pedaços que a navalha ia
(des)fazendo. Assim rendia mais. Ao presunto seguiu-se o chouriço, tudo entremeado com
o belo verdinho da cabaça. Se a fogueira era meio sustento, com a merenda o sustento
ficava completo. Que bem lhe sabia estar ali, meio abrigado da tempestade, com a barriga e
o todo o corpo aconchegados, cada um à sua maneira. O que lhe vai completar a sua
consolação é uma boa soneca enquanto o vento continua a assobiar ali ao lado e a chuva se
desfaz contra os penedos.
- Sabeis que mais? (Era a sua frase preferida!) Vou mas é cochilar aqui um pedaço.
Farrusca, sossega porque agora não anda por aí nada que nos possa fazer mal. Aproveita
p’ra descansar. Ainda assim, deixa uma antena no ar. O diabo às vezes tece-as.
E, como em tantas outras ocasiões, mais uma vez começou a admirar os recantos
daquela cabana quase natural. Ali à sua direita estava o recanto onde se guardava a lenha.
Era mais abrigado e mais escuro. A entrada era estreita para, assim, melhor defender, no
inverno, os ocasionais inquilinos de temporais como o que agora se abatia sobre a serra ou,
então, no verão, da estiagem abrasadora que por vezes se fazia sentir. A fogueira era feita
um pouco mais para a esquerda para que o fumo se pudesse escapar sem afectar demasiado
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os utentes. Daniel, porém, não se sentia muito afectado com o fumo. “O fumo conserva!”,
dizia ele para as suas pastoreadas. Estava sentado sobre uma pedra lisa e, nas costas, tinha
uma outra, ao alto, que lhe servia de encosto sempre que, como agora, pretendia recostar-se
e dormitar. Não fora ele que as colocara ali. Aquele abrigo já existia ali há muito tempo.
Era uma bênção aquele abrigo estar ali. Se não fosse ele, como é que Daniel e os
seus animais se defenderiam de uma tempestade como a de hoje?
Aquele refúgio deveria ter sido feito por Deus para o abrigar. Como é que algum
homem era capaz de colocar aquele penedo tão grande sobre os outros dois? Não havia
homem nenhum que o conseguisse fazer. Só mesmo Deus Todo-Poderoso. O homem
apenas tinha acrescentado aqui e ali umas pedras para melhor defender os abrigados. Nada
mais. O resto era obra da Providência. E que obra!
Enquanto estes pensamentos se misturavam, na sua cabeça, ia assobiando uma
melodia que desde manhã lhe não saía do pensamento. Não se lembrava de ter ouvido
aquela música, alguma vez, mas isso não era de admirar. Ele era um compositor. Só tinha
pena de ainda não saber escrever as notas. Já tinha ido falar com o Mestre da banda, para o
ensinar a ler e escrever a música mas, ele tinha-lhe dito que a música não era para todos.
Não era para todos?! Porquê!? Ficou muito ofendido. Um dia aquele gajo ia-se arrepender
mas, então, já seria tarde. Chamar-lhe burro! Era preciso descaramento! É verdade que,
quando ele lhe mostrou uns papéis com uns gatafunhos e lhe disse que aquilo era a carta da
música e que se ele queria ser músico, tinha de saber aquilo de cor, Daniel ficara atarantado
porque não sabia ler e, portanto, aquilo, para ele, era Chinês. Mas, daí a chamar-lhe burro ia
uma grande diferença. Ainda havíamos de ver quem era o animal zurrante…
Podia-lhe ter explicado uma coisa de cada vez que ele não tinha problema nenhum
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em decorar as coisas. Sabia, de cor, o nome das suas amiguinhas todas. Isso não era prova
de que não lhe custava nada decorar?
- Sabeis que mais, disse ele para as ovelhas, está-me a parecer que ele, afinal, não
percebe mas é nada daquilo e anda pr’ali armado em finório… Ò Travêssa, que te parece?
A Travêssa demonstrou o seu acordo com um balido sonoro.
- Pois claro! disse o Daniel.
Se calhar, era por isso que, naquele ano, a banda quase desapareceu do mapa.
Segundo lhe disse o senhor Nataniel, só ficaram dezoito músicos. E, olha que eles
costumavam ser p’raí uns vinte e três ou vinte e quatro. Grande razia. Era bem feito!
Aquele badameco do mestre queria ser mais que ninguém e depois era no que dava. Bem,
mas sempre seria pena se a Banda fosse ao charco. Era a única coisa de jeito que aquela
terra tinha, depois da serra e das suas ovelhas, claro, que essas vinham sempre em primeiro
lugar. O senhor Nataniel tinha a certeza de que iam conseguir aguentar o barco e até, na sua
opinião, agora ia dar muito mais dinheiro. Se as festas eram as mesmas dos outros anos e os
músicos eram menos, o dinheiro que ia calhar a cada um era mais. As contas eram fáceis de
fazer, dizia ele. Mas isso eram contas de outro rosário e o Daniel tinha muito mais com que
se preocupar. Hoje, por exemplo, não ia conseguir ir mais para cima. Se a tempestade assim
continuasse, ia ser o cabo dos trabalhos, levar as suas queridas para casa. Mas, também não
podia ficar ali. As suas ovelhas tinham que ir dormir à corte, como sempre. E logo agora,
que ele lhe tinha posto uma boa camada de carqueja! As suas ovelhinhas podiam lá perder
uma cama assim. Mas, que dia este! Parecia que o céu tinha destrancado todas as comportas
das águas e escancarado todas as portas dos ventos. Que dilúvio. Enquanto esperava que
serenasse mais um pouco, começou a fazer, como muitas outras vezes, uma retrospectiva da
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sua vida.
As suas idas para a serra, em dias de Verão ou de bom tempo, tinham alguns
percursos habituais a partir da Pedreira:
Quando o tempo não o ia permitir, podiam começar pela Serrinha e ficar-se aqui
pelos montes mais baixos. Querendo subir mais um pouco, então ia por Fligueirinho, Pala
de Rio Cavalo, Bouça do Rato, Ribeiro de Carvalho Cortado, Tremedal e Arandosa.
Podia, também, avançar pela Cardeia, Cavacadoiro, Codeço, Ribeiro da Bouça e
Bouças de Areia. Em qualquer dos casos ia dar a uma cabana onde podia descansar um
pouco ou abrigar-se do excessivo calor ou da borrasca.
Fosse qual fosse, o percurso, trazia-lhe tantas memórias…
Lembrava-se de tantos dias de Verão em que descansava nas cabanas existentes na
serra. Por exemplo a da Arandosa. Normalmente, dessedentava-se na fonte de Carvalho
Cortado e, depois, as suas ovelhas espraiavam-se pela chã da Arandosa, amodorrando-se
debaixo das urzes por ali abundantes. A Farrusca também se deitava a seu lado, dentro da
cabana refrescante. Lembrava-se de tantas aventuras por ali vividas…
Como aquele dia em que o lobo lhe tinha ficado com um dos seus animais, e quase
tinha protagonizado uma luta corpo a corpo. Que susto! Tinha isso tão fresco na memória
como se tivesse acontecido ontem
As ovelhas tinham vindo da Fonte de Valongo para a Chã de Pala Cova, em
direcção a Onde Serra a Montaria, para depois seguirem para a Chã de Bouças de Areia,
mas meia dúzia de anhos tinham ficado do lado de lá da Chã de Pala Cova. Chamara por
eles, mandara a Farrusca lá buscá-los, mas tudo tinha sido em vão. Tivera que ele próprio
voltar atrás para os obrigar a vir. Quando regressou para a Chã de Bouças de Areia já viu
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uma ovelha derrubada pelo lobo e este a correr atrás de outra. A Farrusca correu mas,
sozinha, era impotente para fazer frente à fera. Ele correu também mas o bicho devia estar
esfaimado porque afastava-se um pouco mas voltava sempre e até ameaçava o pastor e o
canídeo. O remédio foi mesmo deixar ficar a ovelha morta e tocar as outras dali para fora
antes que a carnificina aumentasse ou a sua integridade física perigasse ainda mais. A
adrenalina estava no auge. Que pressão! Foi a sua primeira vez de um encontro tão directo
com o feroz animal. Certamente que se tratava de alguma fêmea à procura de alimento para
si e para as suas crias porque, muito embora se tivesse encontrado por várias vezes com o
lobo, nunca tinha encontrado nenhum tão agressivo como naquele dia. Por muito que
gritasse, que corresse, que açulasse a Farrusca, nada parecia demover a besta do ataque ao
rebanho. Era, naturalmente, um animal desesperado com a fome. O desastre tinha-se ficado
pela perda de uma ovelha e por ferimentos provocados em mais duas, mas o susto tinha
chegado e sobrado. Até a Farrusca ficou muito mais inquieta que o habitual. O caso
também não era para menos. Os lobos não eram para brincadeira. Lembrava-se muito bem
daquela história que contavam do primeiro juiz que exercera a judicatura – não era palavrão
que ele conhecesse, mas também não era preciso - na vila:
A família, que habitava num lugarejo existente na Arandosa, - nos casulos da
Arandosa - tinha morrido toda ficando apenas dois irmãos pequenos. Era uma família
inteira que se dedicava ao fabrico de Carvão que, depois, vendia às povoações existentes ao
redor. Não se sabia do que a família teria morrido. Alguns afirmavam que deveriam ter sido
raptados pelos mouros que habitavam em Pala Cova. E, Daniel acreditava piamente que
assim fosse. Ele próprio já tinha visto os tais mouros mais que uma vez, lá de longe, a
espreitar por detrás de um penedo ou de um carvalho. Deviam ser os mouros. Se não
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fossem eles, quem é que seria, a espreitar daquela maneira?
Mas, isso eram apenas conjecturas que alguns lançavam para o ar, para mostrar que
eram uns tipos sabidos. A verdade ninguém a conhecia. O que se contava era que, os dois
irmãos, sem saberem o que fazer, dirigiram-se para umas luzes que viam lá ao longe, no
lugar de Brancelhe, calcando mato e carqueja, caindo em buracos ou picando-se no
abundante tojo bravo. De repente um lobo atacou-os e fugiu cada um para seu lado. O
irmão mais novo nunca mais foi visto. O lobo tinha-o levado. O outro conseguiu chegar até
junto duma casa, cansado, esfomeado, com as roupas todas rasgadas, cheio de medo, mais
morto que vivo. A família a cuja porta foi bater era de remediadas posses e por isso ele
pôde ir para a escola, fazer o Liceu e, depois, estudar até se tornar juiz na vila. Assim era
voz corrente na aldeia que o primeiro juiz de Vieira do Minho era originário da Arandosa.
Daniel não sabia se isto era verdade ou não, mas que a história era muito falada na
aldeia lá isso era. Verdade ou não, o facto é que os lobos abundam e atacam, a cada passo,
os rebanhos que por ali pastam. Por isso o seu receio tinha sido grande. O lobo já tinha
levado várias cabeças do seu rebanho e nunca se dava por satisfeito. Era o preço a pagar por
ter alimento tão abundante e tão saudável na serra. Cada moeda tem o seu reverso.
E, aquele outro dia em que lhe ficaram três anhos perdidos na serra, por causa do
nevoeiro? Só quando chegou à aldeia é que se apercebeu do infortúnio. Voltou à serra e
procurou em todos os sítio por onde tinha passado naquele dia, com uma lanterna a petróleo
na mão e encharcado até aos ossos. Começou a ouvir os seus balidos ainda a alguma
distância e, guiado por eles, foi-se acercando da fonte sonora. Descobriu-os num buraco
cavado pelas águas das chuvas onde tinham caído e de onde não se conseguiam libertar.
Ou aquele em que lhe nasceram seis anhos na serra e ele teve que os transportar às
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costas até ao curral onde as ovelhas pernoitavam. Que estafadela! Teve que fazer o mesmo
percurso duas vezes porque não conseguia levar seis cordeiros de uma assentada. Da
Serrinha até cá abaixo ainda era uma esticadela valente!
E quando ele se ia pegando com um grupo de caçadores que lhe assustaram o
rebanho e fizeram fugir cada ovelha p’ra seu lado só por causa de uns javalis que por ali
andavam? Ao longo dos muitos anos que levava de serra, tinha encontrado muitos e
variados grupos de caçadores, a maior parte deles seus conhecidos. Saudavam-no, davam
dois dedos de conversa e seguiam na sua busca incessante de presas. Mas, naquele dia,
Daniel estava sentado nos fragões de Pala Cova quando ouviu uma enorme gritaria. Era
estranho porque isso não era o que habitualmente acontecia a não ser nas batidas ao lobo.
Aí sim a gritaria dos batedores era enorme para o lobo se levantar e ser encaminhado para o
fojo. Na caça ao coelho nunca ouvira semelhante berraria e hoje, que ele soubesse, não
havia nenhuma batida. Não lhe parecia gente conhecida e, como mais tarde veio a
confirmar, de facto era gente estranha. Quando se aproximaram dele e entraram de
rompante pelo meio do rebanho fazendo de conta que não estava ali ninguém, Daniel
levantou o seu cajado no ar e dirigiu-se a um deles com a intenção de o fazer parar e de lhe
mostrar o que é o respeito – ou a falta dele – pelo seu semelhante.
- Oiça lá, ò semhor! Isto é modo de tratar alguém? Entra por aí dentro como se fosse
o dono disto tudo! Olhe o que me fizeram às ovelhas? Quem me vai, agora, ajudar a juntálas, outra vez? Hein?!
O estranho parou abruptamente, olhou Daniel de alto a baixo, traçou a arma com as
duas mãos e perguntou:
- Há algum problema, cavalheiro?!
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- Claro que há problema, disse Daniel. Não vê o que fizeram às minhas ovelhas?
Fugiu cada uma para seu lado espalvoridas – ele queria dizer: espavoridas -. Como é que as
vou ajuntar outra vez? Não me diz?
- Quer que o ajude a juntá-las. Ainda tenho aqui uma boa cartucheira carregada.
Não me custa nada esvaziá-la nas suas lãzudas e estender-lhas aí no meio do chão. Quer?!
Depois, é só pegar nelas e pô-las aí num monte. Já ficam juntas. Pensa que é o senhorio da
serra ou quê? Não querem lá ver! Armado em parvo…
Daniel, perante tal arrazoado, achou por bem baixar o bordão, encolher os ombros e
virar-se para a Farrusca que já começava a rosnar raivosamente.
- Está quieta, Farrusca. Deixa lá. Vamos, mas é, tratar de chamar as ovelhas. Pinta!
Oh Pinta, anda cá…
E, virando as costas ao energúmeno, foi atrás das suas companheiras.
Ou o dia em que…
Enquanto a sua mente divagava, o seu corpo foi-se amodorrando e ele resvalou
lentamente para o sono.
A sua mente começou a devanear, fora do controle do consciente. E Daniel sonhou.
Sonhou que era criança. Tinha oito anos e a sua mãe estava a chamá-lo para o
mandar para a escola. Coisa estranha! Agora a sua mãe não estava doente. Era uma mulher
escorreita e saudável e já não, como ele se lembrava, toda encurvada, cheia de dores e a
cuspir sangue de cada vez que tossia.
- Daniel! Daniel! Levanta-te, meu filho. Está na hora de ires para a escola. Olha
aqui os teus livros e a tua merendinha. Anda, filhinho, são horas. Vais chegar atrasado e tu
sabes que a senhora professora não gosta que os meninos faltem à escola ou que cheguem
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atrasados.
Que estranho! Ir para a escola?!
Daniel lembrava-se de, várias vezes, ter visto, lá de longe, a senhora professora, a
Dª Mimi (Maria Margarida), em sua casa a falar com a mãe. Não sabia o que diziam uma à
outra mas, depois, via a sua mãe a chorar e ficava muito triste. Não gostava nada de a ver
assim, a chorar. Até começava a gostar pouco da Professora. Para que é que ela vinha
sempre entristecer a mãe? Era sempre a mesma coisa! Ele fazia tudo o que podia para ela
sofrer menos, para ter menos trabalho e ter sempre com que se alimentar, mais que não
fosse, com o leite que as suas ovelhas lhe davam tão alegremente. E ela vinha p’ràli com
conversas tolas (só podiam ser tolas para a mãe ficar assim a chorar) e fazia piorar a mãe.
Tinha deixado de ir à escola porque alguém tinha que levar as ovelhas para o monte. A
Farrusca, sozinha, não era capaz e a sua mãe já mal conseguia dar dois passos seguidos sem
tossir. Era como se lhe arrancassem um bocadinho do seu próprio peito quando via o
sangue da mãe a aparecer no farrapo que ela usava como lenço da mão. Este Inverno, então,
ela estava cada vez pior. Já quase não conseguia fazer de comer. Tinha de ser ele a ir buscar
a água à fonte e a lenha para perto da lareira porque, se o não fizesse, a mãe não seria capaz
de preparar nenhuma refeição para ela própria nem para ele quando chegasse, à noite.
Quando a mãe ia para a cama, Daniel tinha que lhe levar, sempre, um pouco de leite quente
para ela passar melhor a noite. Misturava um pouco de mel com o leite e ela passava uma
noite mais calma. Às vezes, havia alguma vizinha que lhe levada dois olhos de couve ou
meia dúzia de batatas e então a ementa era melhorada. Quando assim não era, havia sempre
o leite quentinho misturado com broa para encher a barriga. Mas, festa … festa era quando
a Farrusca apanhava um coelho desprevenido e lho vinha trazer toda contente. Aí sim, a
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refeição era de truz. E, atenção que a Farrusca era uma especialista…
Mas, como é que a mãe o estava a chamar para ir para a escola?!
Ele não podia ir para a escola! Para que é que a mãe o estava a chamar!? Ele tinha
que ir com as ovelhas para o monte…
Aqui havia qualquer coisa que não batia certo. O mundo tinha virado de pernas para
o ar, ou quê?!
A sua infância tinha que ser passada quase toda na serra. Nem se podia dar ao luxo
de estar doente. Também, com o seu físico enrijecido pelo permanente contacto com a
natureza, era muito raro estar doente. Mas, quando isso acontecia, a mãe tinha que pedir ao
Xavier para a ajudar a meter as ovelhas no campo. Ela não conseguiria ir até à serra. Bem
que as ovelhas morreriam à fome antes dela as conseguir guiar para os pastos lá em cima.
- Oh Xavier, ajuda-me aqui, rapaz. O Daniel está doente e eu não tenho mais quem
me ajude. Anda-me ajudar tu…
- Está doente do cu quente? Ele não quer mas é ir para o monte com as bichas.
- Não é nada disso filho. Bem sabes que o gosto dele é ir para a serra. Mas hoje está
cheio de febre. Treme por todos os lados e o corpo dele queima que parece lume.
E o Xavier, vizinho mais próximo da casa de Daniel, lá se dispunha a levar as
ovelhas para o campo e, à noite, ia recolhê-las para o curral. Eles até eram bons vizinhos e
mereciam ser ajudados. Não se metiam com ninguém e, embora o Daniel fosse um bocado
lunático, não fazia mal a uma mosca. Era um rapaz muito sossegado, lá isso era.
E o sonho continuou a percorrer a sua vida, até que, depois, Daniel se viu já mais
espigadote mas, sempre atrás das ovelhas. A sua mãe tinha partido e ele não tinha mais de
que viver. Era verdade que a tia Ofélia tinha olhado por ele mas, ela mal tinha para ela,
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quanto mais para ele. Claro que a tia Ofélia tinha visto naquele acolhimento uma hipótese
de melhorar a sua vida também. O rapaz sempre ia trazer as ovelhas com ele…
Mas, a tia também tinha abalado e ele, mais uma vez, ficou sozinho. Agora,
lembrava-se, já tinha idade para olhar por si próprio. Já não precisava de ser acolhido por
ninguém. Aprendeu a negociar os seus cordeiros, ali por alturas do S. João, em Junho e,
assim, ia amealhando algum dinheirito para fazer frente às despesas que lhe apareciam.
Nem sempre tinha conseguido fazer bons negócios. Alguns negociantes aproveitaram-se
bem da sua inexperiência. A sua mãe e a sua tia não lhe tinham podido ensinar muita coisa.
Só a escola da vida e os “professores” de jornada lhe tinham transmitido o que sabia. Ele
não era peco na aprendizagem, pese embora a opinião do mestre da banda. Mas, no meio de
tudo isto, ainda havia gente séria. O senhor Nataniel tinha-lhe ensinado muito do que ele
sabia. Quando viu que o rapaz se entregava à luta e se desunhava para levar uma vida
honesta, fez o propósito de o ensinar. Com ele, Daniel tinha descoberto o valor do dinheiro
e o valor de mercado dos seus animais. Com ele tinha aprendido a não acreditar em tudo o
que lhe diziam e a desconfiar de muitas frases enganosas e de muitas “palavras de honra”.
Com ele tinha visto mais fundo dentro dos olhos do seu semelhante. Tinha mergulhado na
alma humana. Tinha compreendido até onde o ser humano pode ir por causa da ganância,
tinha sentido os atropelos que são cometidos na busca do vil metal. Mas, também isso o
tinha enrijecido para a sua luta não só contra as intempéries climatéricas e contra os lobos
da serra mas, especialmente, contra os “lobos” da aldeia, da vila e da cidade e as
intempéries provocadas pela mesquinhez humana. Estava preparado. Não sabia ler mas o
senhor Nataniel tinha-o ensinado a fazer o nome dele e tinha-o levado à vila para abrir uma
conta no Banco. Tinha-o ensinado a fazer contas. Até lhe tinha ensinado algumas coisas de
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música. Sim, que o senhor Nataniel era um músico de primeira classe. Não era nada que se
parecesse com aquele gajo que fazia macacadas lá na frente da Banda. O senhor Nataniel
tinha paciência para as dificuldades dele. Não esperava que ele aprendesse tudo duma vez.
Pedia-lhe que desse um passo de cada vez e que, de vez em quando, voltasse um ou dois
passos atrás para ver melhor o caminho que estava a pisar. E, Daniel sonhava, tinha valido
bem a pena! Agora já não tinha qualquer dificuldade em pegar num papel de música e
assobiar o que lá estava escrito. E não precisou da carta do outro para nada. Até já se sentia
com coragem para pedir ao senhor Nataniel que o ensinasse a escrever as melodias que ia
inventando. Ainda no Domingo passado tinham estado os dois mais de uma hora a treinar.
Ele assobiava e o senhor Nataniel escrevia. Depois faziam ao contrário. Claro que, aí, a
dificuldade era muito maior. Na sua cabeça tudo se desenrolava com muita facilidade. Pôr
aquilo no papel era bem mais difícil. Mas, havia de chegar lá. Não era homem para desistir.
Via-se já a pegar num papel pautado e a escrever belas melodias, a compor peças
que a Banda da terra ia pedir por favor para a deixar interpretar. Até se começava a ver
como músico requisitado pelas Bandas vizinhas. Mas, como podia ser se ainda tinha as
ovelhas para guardar?! Com quem as mandaria para o monte? Não estava a perceber muito
bem o que se estava a passar…
O voo pelo seu mundo onírico continuou.
Agora estava no Saltadouro a ver a Farrusca a seguir o rasto de um coelho. Que
regalo para os olhos ver aquele animal a trabalhar daquela maneira. Ela espetava o focinho
no chão e só levantava a cabeça para ver se Daniel estava a olhar para ela. Era muito
vaidosa, mas tinha de quê. Quando ela desse sinal de coelho podia-se contar com ele. Só se
tivesse cova perto. Aí não havia nada a fazer e ela pouco tempo perdia, quando eles se
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encovavam. Mas, se o não fizessem, bem podiam encomendar a alma a Deus que ela ia,
certamente, tratar-lhes da saúde. Mal ele se desprecavia, já ela lhe aparecia à beira com o
rabano atravessado na boca e a bater o rabo num contentamento deslumbrado.
Este era um dia muito quente no fim de Julho e ele tinha acabado de passar pela
fontela e, com aquela água tão refrescante, tinha dado uma boa sova na sede. Que bem lhe
sabia a água da sua serra querida. A Serra da Cabreira tinha muitas fontelas, qual delas a
melhor. Havia águas que parecia que levavam os dentes de tão frias. Outras que, se a gente
não tivesse cuidado, assentavam no estômago como chumbo mas, qualquer uma delas, era
especial. Oxalá não viesse alguém com ideias de as levar para outro lado. Elas pertenciam à
serra. As suas ovelhas deliciavam-se com aqueles regatos que rendilhavam a serra e a
reverdeciam. Por isso aquela serra era tão verde, tão cheia de alimento e de árvores. Até lá
bem no alto, no Talefe, as suas queridas se deleitavam com tanta erva, apesar da altura a
que estava, da concorrência das vacas e de não ser tarefa fácil chegar lá. Nos dias grandes
do Verão, como agora, ia muitas vezes até lá acima. Outras vezes, ficava-se mais abaixo, ali
pelos lados de Pala Cova a imaginar encontros com mouras encantadas naquela cabana
onde às vezes fugia ao calor ou, até, a uma ou outra trovoada de Verão. Quantas histórias
tinha inventado e imaginado, sentado na fresca sombra de Pala Cova. Aquelas marcas
existentes naqueles penedos davam asas à sua imaginação. Muitas vezes quase se
convencia de que ainda sentia o cheiro de presença humana e espreitava com a convicção
de que ali, nalgum recanto, deveria estar uma moura à espera dele para constituir família.
Oh quanta doçura sentia por aquela serra! Para onde quer que se virasse, os seus olhos
enchiam-se de verde, de frescura e de espaço, de recortes, de horizontes distantes, de sonho.
Esse encantamento passava-o ele para os seus assobios e para os seus cadernos.
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Tinha aprendido a escrever (o senhor Nataniel era, de facto, um anjo) e por isso os seus
cadernos estavam cheios de ideias, de poesias, de fantasias com a moura, de conversas com
a sua Farrusca e com as suas ovelhas. Conhecia-lhes os lamentos e as alegrias. Exultava
quando elas lhe anunciavam o nascimento de um filho, com balidos sonantes, e
compreendia quando elas choravam porque um filho não chegava ao curral, à noite, ou
tinha desaparecido, por alturas do S. João. Dizia-lhes que tinha ido para outra terra, para
outro mundo e elas, cabisbaixas, não lhe respondiam. Pareciam compreender que lhes
escondia alguma coisa. Depois, com o tempo, tudo voltava à normalidade, até às alegrias
dum novo nascimento ou até ao alívio de uma tosquia bem feita, até ao burburinho do cio e
da disputa dos carneiros ou até ao vazio deixado por uma ou outra colega que também se ia
embora sem dizer adeus.
Tudo isso (Daniel sonhava) transpunha para os seus cadernos. Tinha um por cada
mês. Claro que, nem todos os dias tinha alguma coisa para escrever. Havia alturas em que
passava muito tempo sem vontade de escrever fosse o que fosse. Outras ocasiões, ficava
emperrado na escrita. Queria passar uma ideia para o papel e as palavras não apareciam.
Em alguns dias, quase se esquecia das ovelhas, tal era a vontade de escrever. Enfim, havia
um tempo para tudo.
Mas …
Cadernos?! … Escrever?! Ele não sabia escrever! … ou sabia?! E, se sabia, onde
metia os cadernos todos?! E logo um por cada mês! Não os podia meter em casa porque
não havia espaço. A casa mal dava para os três – a mãe, a Farrusca e ele (mas, a mãe não
tinha morrido?!) – quanto mais para os cadernos! Que grande embrulhada esta!
Continuou o percurso fantasista até aos dias de hoje e sonhou a sua presença no
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abrigo do Penedo da Pinga.
O sol brilhava! Estava a preparar-se para uma sesta reconfortante quando ouviu
passos no exterior e a Farrusca espetou as orelhas e começou a rosnar. Não era bem rosnar.
Era, mais, um resmonear de incómodo por Daniel se ter posto de pé sem ela perceber
porquê.
Quem seria, a esta hora do dia?
A bem da verdade, Daniel não sabia, no seu sonho, em que mês estava nem que dia
da semana era ou, sequer, quantas horas seriam. Pela posição do sol deveria ser o início da
tarde, mas não podia ter a certeza, tanto mais que tinha aparecido ali sem saber como. Nem
tão-pouco sabia das suas ovelhas. Algumas, poucas, estavam ali deitadas; e as outras?
Estariam lá fora? Aprestava-se para sair quando os passos, no exterior, se tornaram mais
próximos e ele julgou mais avisado esperar na protecção do abrigo. Ouviu falar!
- Ai que sede que eu tenho, José. Não haverá, por aqui, uma fonte?
- Não sei, esposa, mas parece-me que temos aqui um abrigo. Vamos parar aqui um
pouco e, enquanto, tu descansas, eu vou tentar encontrar água para nós.
- É que o menino também está morto de sede e a nossa cabaça já não tem água.
Vamos entrar. Deve haver água aqui por perto. Está tudo tão verde!
Daniel encolheu-se mais para o lado direito do abrigo, por ser mais escuro, e
aguardou que os transeuntes se mostrassem. Não eram vozes conhecidas, disso tinha a
certeza. Como é que tinham vindo aqui parar? Este não era um local de passagem habitual
para forasteiros. Aqui só costumavam aparecer os pastores a abrigar-se das intempéries ou
do exagerado calor. E, se os forasteiros queriam água, bem podiam procurar porque, aqui
por perto, não iam encontrar nem uma gota.
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Entretanto, entraram no abrigo e, coisa estranha, a Farrusca ficou quieta e calada
como se ninguém tivesse entrado ali. Não era nada um comportamento habitual nela.
Estava sempre pronta para ladrar a tudo e a todos até Daniel a mandar calar e, agora,
parecia cega e muda. Que se passaria com ela?!
Outra coisa mais estranha ainda, era a luz que encheu o abrigo. Parecia que a luz do
sol que se fazia sentir lá fora, tinha vindo toda para a cabana. Até incomodava, tanta luz. Os
estranhos, porém, pareceram não se aperceber que já estavam ali ocupantes. Fizeram de
conta que não viram a Farrusca, nem as ovelhas e nem a ele. Seriam cegos? Não pareciam
e, se o fossem, certamente não teriam dado com aquele abrigo. Era muito fora de mão para
quem passasse pela aldeia, lá em baixo.
- Ah! Que frescurinha tão agradável, José. Olha para o menino, como ele mostra um
sorriso tão encantador de prazer!
José olhou, enlevado, para aquela face tão rosada, tão mimosa, tão fresca… tão
querida.
- Sabes, Maria, não consigo compreender como é que alguém pode ficar indiferente
perante tanta beleza! Como é que há pessoas que desprezam uma criança! Como é que
alguém, como Herodes, pode querer fazer desaparecer da face da terra criaturas como este
nosso filho?!
Só um ser humano completamente corrompido pode ter semelhantes desideratos
acerca do seu semelhante…
- José! É melhor levares a cabaça para nos trazeres água quando a encontrares…
- Tens razão, esposa. Claro! Vou, então, ver se descubro alguma água por aqui…
Daniel quis dizer alguma coisa, mas não se conseguia mexer nem articular qualquer
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som. Estava mudo e quedo. Que se passaria com ele?! E a Farrusca, ali enroscada como se
nada se passasse?! Que coisa tão estranha, esta! Uma gente que falava como ele, que se
vestia mais ou menos como ele, embora lhe fizesse lembrar umas imagens que ele tinha
visto lá na igreja na missa do galo do ano passado…
Sim, que ele à missa do galo nunca faltava. Aos outros dias não podia ir porque
tinha que levar as suas ovelhas para a serra ou, quando isso não era possível - nos dias de
grandes nevões - tinha de tratar de lhes arranjar comida. Agora, à missa do galo adorava ir.
Ver aquele presépio tão cheio de bonecos, de animaizinhos, de pastores… desses é que ele
gostava. Se o Menino Jesus tivesse nascido ali, ele também lhe havia de levar um ou dois
cordeirinhos. Gostava de ver aquele menino tão pequenino, tão despidinho, a ser aquecido
pela vaquinha e pelo burrito. Era uma cena que lhe prendia a atenção durante toda a missa.
Não percebia o que o padre dizia. Porque é que ele não falava língua de gente?! Tinha que
se pôr lá com aquelas algaraviadas que ninguém percebia. Mas, também não interessava. O
presépio era mais do que suficiente para ele gostar de estar ali naquela noite.
Era engraçado como aquela senhora que ali estava, no Penedo da Pinga, se parecia
tanto com a que, no presépio, era a mãe do Menino. E o marido dela era igualzinho ao S.
José do presépio. Ainda não tinha visto a cara do Menino mas apostava que se ia parecer
com o da igreja. Quem seriam estas pessoas que falavam e tinham sede mas não o viam
nem o sentiam? E, porque é que ele se não conseguia mexer nem era capaz de falar?! E
quem seria o tal Herodes de que o senhor José (pelo menos a senhora chamava-lhe assim)
tinha falado? Que conversa era aquela de matar crianças?
Tentou pigarrear, mas não foi capaz. Quis mexer a cabeça e não conseguiu. Meu
Deus, que aflição. Tinha que dizer àquela gente que não valia a pena procurar água ali ao
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redor porque a não havia. Se quisessem, ele podia dar-lhes de beber da sua cabaça. E,
ficassem a saber, melhor vinho que aquele não encontrariam. De certezinha! Mas, como
fazer?! Quis olhar para a Farrusca e nem disso foi capaz.
Entretanto, a mãe cantava uma canção de embalar para o menino. Ele, com o dedito
ia apontando para o tecto e a mãe, sem saber o que ele pretendia, dizia-lhe:
- Não, meu querido. Ali não tem água. Como é que podia ali ter água se o penedo
está suspenso em cima dos outros dois? Não pode ser, filho! repetia ela em resposta à
insistência dele. Espera mais um bocadinho que o teu pai já vem. Foi buscar na cabacinha
água fresca de Belém.
- De Belém?!, interrogou-se Daniel. Mas qual Belém?! Por aqui não há nenhum
Belém, que eu conheça! Quem é esta gente?!
O tempo foi passando e a mãe foi conversando com a criança com uma tal ternura
que Daniel se comoveu com tamanha doçura, lembrando-se dos gestos da sua querida mãe
quando ele era criança. Ai que saudades que ele tinha da sua adorada mãe, dos seus afagos,
das suas carícias… até dos seus ralhos.
Duas rotundas lágrimas deslizaram pela face de Daniel perante a lembrança daquela
que lhe tinha dado o ser. Tinha sido tão boa, a sua mãe! E tinha sofrido tanto!...
Porque é que uma pessoa tão boa devia sofrer daquela maneira e morrer tão nova e
tão angustiada por ter que abandonar o seu querido filho ainda tão novo?!
Gostava de perguntar a estes estranhos o que pensavam de semelhante injustiça…
A mãe – que se parecia tanto com a Nossa Senhora da Igreja – continuava a falar
com o menino.
- Sabes, filhinho, a vida é tão dura e tão injusta! Repara: nós vivíamos sossegados
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na nossa aldeia quando, de repente, tivemos que fugir porque o Rei queria matar todas as
crianças da tua idade porque dizia que tu lhe vinhas tirar o lugar. Tu?! O teu pai é apenas
um carpinteiro e nós não passamos de uma família remediada e a única ambição que temos
é a de adorar o nosso Deus como servos humildes.
Daniel estava estupefacto. Ele tinha ouvido umas histórias de um tal Rei Herodes ter
mandado matar os “santos inocentes” e de a Sagrada Família ter fugido para o Egipto. Mas,
isso foi lá para os lados dos Judeus. O que é que estes tinham a ver com isso?! Estávamos
muito longe da terra dos Judeus e do Egipto e, isso, já tinha acontecido há muitos anos. Se
bem que os conhecimentos de geografia que o Daniel tinha esgotavam-se pouco além da
sua querida serra da Cabreira…
- Ai Filho, que sede! O teu pai está a demorar mais do que eu esperava.
E o filho continuava a apontar, com o seu dedito, para o tecto.
- Oh filho, como é que tu queres que ali em cima exista água! A água vem de baixo,
da terra. Não é filha de cabra. Não trepa paredes, meu amor. Ali em cima não pode haver
nada. Tem mais um bocadinho de paciência que o teu pai, agora, já não pode demorar
muito.
Ainda estas palavras não tinham terminado e já se ouviam os passos de José, no
exterior.
Vinha esgotado e, ao entrar, atirou-se para cima de uma pedra e lamentou-se,
dizendo:
- Nada! Não consegui ver uma gota de água em lado nenhum. Como vamos
aguentar o resto da viagem? E o nosso menino, como vai aguentar? Tens de o amamentar
mais vezes a ver se lhe acalmas a sede.
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- Sabes uma coisa, marido? O menino não tem deixado de apontar para o tecto
sempre que lhe falava da sede ou da água!
- Para o tecto?! E, a que propósito?
- Sei lá! O que sei é que sempre que eu falava em sede ou lhe dizia que já vinhas aí
com a água, ele levantava o dedito e apontava para o tecto. Olha, repara como ele continua
a apontar para o tecto, para o penedo maior…
- Mas, do tecto, a única coisa que pode cair é algum pedacito de musgo. Ali não
pode haver água.
- Isso era o que eu lhe dizia, mas bem sabes que ele, às vezes, tem daqueles gestos
que nos deixam abismados, sem saber de onde lhe vem essa sabedoria toda.
- Eu posso espreitar ali fora, mas não vejo nada que possa ali haver que nos
interesse e, muito menos, água. O penedo está todo afastado da terra, completamente em
cima dos outros dois…
No entanto, lá foi novamente, para o calor, dar uma espreitadela em redor dos
penedos. Não que tivesse esperança de ver alguma coisa de que não estivesse à espera, mas
já tinha tido outras surpresas na vida vindas daquela criança e, por isso, nunca se sabia
muito bem o que dali podia sair.
- Como eu esperava, Maria, nada! Não vi sinais de água em lado nenhum e, muito
menos, em cima do penedo, disse José, postado à entrada do abrigo.
Mas o menino apontava sempre para o tecto e balbuciava “bu…” “bu…”!...
Como te disse, daqui de cima só pode cair musgo. E bateu com o cajado no penedo.
Naquele preciso instante, a água jorrou do penedo e encharcou-o de alto a baixo.
Maria estremeceu e estreitou mais fortemente o filho nos braços. O que estava a acontecer
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ali?! Que milagre era aquele?! De onde vinha aquela água?!
Daniel, que tudo tinha presenciado, também ficou embasbacado. Maria?! Menino?!
José?! Água a sair de um penedo suspenso?! O que era isto tudo?! Quem eram eles, afinal?
O que estava aqui a acontecer?
Nesse preciso instante do seu sonho, um forte trovão ribombou e Daniel acordou,
ainda todo fremente do seu sonho, deu um salto e bateu com a cabeça na parte lateral do
penedo, tendo ficado, imediatamente, a sangrar. A tempestade tinha amainado. Já não
chovia e o vento tinha parado. O sol começava a espreitar por entre as nuvens e as ovelhas
já andavam todas a pastar em redor dos penedos. A Farrusca tinha-se posto em pé, de um
salto, com aquele estrondoso trovão e ladrava furiosamente como que para afastar o susto
que tinha sofrido.
As ovelhas que estavam dentro do abrigo, tinham corrido para o exterior em grande
alvoroço.
Daniel, por seu lado, ainda não estava em si. Não sabia se estava mais assustado por
causa do sonho se por causa do trovão ou por causa do sangue que lhe encharcava já o
cabelo. Sentia-se tão baralhado que, ao princípio, nem sabia muito bem onde estava e o que
estava ali a fazer. Apalpou-se várias vezes para verificar se não estaria a sonhar. Não, não
estava a sonhar porque, recordava-se bem, no sonho não conseguia mexer-se e, agora,
podia mexer-se à vontade e conseguia falar. Durante o sonho havia muita luz dentro do
abrigo e agora voltara a estar mais escuro. Antes a Farrusca estava quieta e agora ladrava
furiosamente…
- Então, Farrusca, que barulheira é essa? Calma, rapariga, foi apenas mais um
trovão e tu já ouviste muitos. Tem calma. O pior, no meio disto tudo, foi aquele sonho. E
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esta pancada na cabeça. Olha tanto sangue, amiga. Que coisa tão esquisita, o sonho. Do que
eu me fui lembrar! A Sagrada Família, aqui, abrigada debaixo do Penedo da Pinga!
E tu viste como a água saía do penedo? Claro que não viste nada. Dormias a sono
solto. Nunca te vi assim despreocupada. Valeu-me bem a pena dizer-te que ficasses com
uma antena erguida! Bem podiam levar-me que tu nem conta davas! ‘Tás uma rica
companhia, sim senhora. ‘Tava tudo tão clarinho, aqui dentro, não ‘tava? Mas olha que eu
fiquei a tremer que nem uma vara verde.
Entretanto, Daniel foi saindo para a claridade do dia e, justamente quando ia a
passar sob o local onde tinha sonhado a nascente de água, caiu-lhe uma copiosa gota no
cocuruto. Estremeceu.
- Mas, que é isto?! Agora não está a chover!
Olhou para cima e levou com mais uma anafada gota no centro da testa.
- Eh pá, de onde vem esta água?! Ah claro, esteve a chover tanto…Mas só cai neste
sítio! Que estranho. Devia cair de todos os lados…
Passou a mão pela testa, para limpar a água que ali tinha caído e, depois, levou a
mão ao sítio onde a outra gota de água tinha batido. Ficou estupefacto porque julgava que
ia ver a mão cheia de sangue, uma vez que a gota tinha chocado com o local onde antes
tinha começado a sangrar ao bater com a cabeça no penedo, quando acordou e, em vez
disso, apenas viu água límpida.
- Enganei-me. A pancada deve ter sido noutro lado. Passou a mão por toda a cabeça
e não viu sangue em lado nenhum.
- Esta agora! Para onde foi aquela sangria toda? Ainda agora parecia um porco a
sangrar e agora não aparece rasto de sangue em lado nenhum? Mas que vem a ser isto? É
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bruxedo, ou quê?! Será que também sonhei que dei aquela grande cabeçada no penedo?
Mas eu lembro-me bem de ver o sangue na minha mão quando a passei na cabeça. Para
onde foi ele?!
A verdade é que a cabeça já lhe não doía. Se calhar também sonhou que bateu com
a cabeça no penedo.
- Ora deixa lá ver se lá dentro há sinais de sangue…
Foi verificar e descobriu, de facto, a chão salpicado de sangue no sítio por onde
tinha passado.
- Afinal, sempre não estou a sonhar. Tinha mesmo partido a cabeça. Então, onde
está, agora, o golpe?! Onde está o sangue?! Não sinto qualquer dor, não vejo sinais de
sangue… Isto até parece um milagre!
E, desatou a correr em direcção à aldeia. Queria dizer aos seus conterrâneos o
milagre a que tinha assistido e de que tinha beneficiado também. O primeiro que encontrou
foi o senhor abade.
- Bom dia, senhor abade.
- Boa tarde, Daniel. Já é tarde há bastante tempo. O que te aconteceu que pareces
diferente?
- Vi um milagre, senhor abade.
- Ah sim?! E que milagre foi esse?
E contou-lhe. Não conseguia alinhavar tudo de uma vez, mas voltava atrás e,
gesticulando muito, conseguiu levar ao fim a história do seu sonho e da sua cura milagrosa.
- Olhe aqui para a minha cabeça, senhor abade. Vê alguma ferida? Vê?!
- Não, Daniel. Não vejo nenhuma ferida nem sinais de a teres aí tido há pouco
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tempo.
- Mas olhe que o sangue ainda lá está no chão da cabana. Venha lá comigo para ver
como é verdade.
- Oh Daniel… esse … sangue não será, antes, da tua cabaça em vez de ser da tua
cabeça?
- Oh senhor abade, está-me a ofender. Bem sabe que eu não sou capaz de inventar
nada, nem de mentir seja a quem for.
- Bem … mentir não costumas, agora … inventar…
- Mas é a pura verdade, senhor abade. Venha comigo lá ver.
- Agora não posso Daniel. Quando chegarmos ao mês de Agosto eu vou lá contigo
ver a água a pingar do Penedo, está bem? Agora tenho de ir ali… Vai buscar as tuas
ovelhas, vai.
Daniel foi, cabisbaixo, à procura de mais alguém que pudesse convencer da sua
verdade. Encontrou o Zé…
O Zé era, mais ou menos da idade do Daniel, mas tinha tido oportunidade de ir para
a escola e de ter feito, até, o Liceu. Era o moço com mais estudos, ali na terra e tratava o
Daniel com toda a cortesia e até já lhe tinha ensinado muitas coisas do que aprendera.
- Oh Zé, queres vir comigo ver uma coisa que nunca viste?
- Ver o quê? – Pensava nalgum animal bravio que nunca tivesse visto, alguma pedra
diferente das que o Daniel costumava trazer para lhe mostrar, algum anho que tivesse
nascido com defeito, alguma toca de coelho, …
E, Daniel contou, mais uma vez, a sua estranha história.
- Oh Daniel, tu queres que eu acredite que se deu um milagre debaixo daquele
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penedo?! Água a cair do penedo? Choveu toda a manhã, Daniel. Claro que o penedo tem de
pingar. Estranho seria se não pingasse, homem. Vai lá buscar as tuas ovelhas que se faz
tarde, vai.
E Daniel lá foi, desalentado por não ter conseguido fazer com que acreditassem
nele. Mas, ele tinha a certeza de ter vivido um milagre. A sua cabeça era a prova provada
disso.
Os dias sucederam-se e Daniel continuou a magicar no que lhe tinha acontecido,
mas tinha de continuar a pastorear as ovelhas e passou muito tempo sem que voltasse para
os lados do Penedo da Pinga.
Um dia, no fim do mês de Junho, Daniel foi, como de costume, para a serra e,
quando, na Calçada de Fontes, corria para corrigir o trajecto de algumas ovelhas,
escorregou numa pedra e fez um golpe muito feio na perna esquerda. O sangue corria
abundantemente e Daniel não via maneira de o fazer estancar. Foi quando se lembrou do
Penedo da Pinga. Nunca mais lá tinha voltado, mas a lembrança estava lá.
Recomendou à Farrusca que olhasse pelas ovelhas e inverteu a marcha para se
dirigir ao abrigo que, para ele, era um abrigo abençoado. Agora é que ia tirar a limpo se a
água que tinha visto a cair do penedo era milagrosa ou não. Se ainda houvesse água a cair,
porque há mais de três semanas que não caía uma gota de água do céu.
Quando chegou junto do penedo exultou de alegria. A água pingava,
constantemente, à entrada do abrigo. Sempre era verdade. O penedo continuava a pingar
mesmo quando não chovia. Lavou a ferida com aquelas gotas de água que iam caindo e,
mais uma vez se provou que a água era milagrosa: a ferida estancou, imediatamente. Agora
tinham que o acreditar. As marcas de sangue estavam desde a Calçada de Fontes até ali.
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Isso, ninguém o podia negar! E não podiam dizer que era da cabaça, nem da cabeça; era da
perna. No entanto, olhassem bem! A perna não tinha nenhuma ferida. Estava sã que nem
um bucho.
Deixou as ovelhas entregues à Farrusca e, já agora, à Sagrada Família, e dirigiu-se
para a aldeia. Tinha de lhes mostrar como a água continuava a pingar do penedo. Eles
tinham que acreditar nos próprios olhos, já que não tinham querido acreditar nele.
Quando chegou ao lugar de Ameã, o lugar central da aldeia, gritou a plenos
pulmões:
- Venham ver a água milagrosa do Penedo da Pinga! Venham ver como ela continua
a cair. Olhem se eu tenho alguma ferida na minha perna! Venham ver! No entanto, ainda há
pouco ela sangrava como uma alimália. Oh senhor abade, venha lá comigo, agora. Não
espere por Agosto. Oh Zé, anda daí, home. Andar ver como ela pinga. E, não me digas que
é da chuva. Ou só choveu em cima daquele penedo?!
A algazarra era tanta que as pessoas se começaram a juntar à volta do Daniel.
Coitado do moço… Será que endoidou de vez? Que barulheira tamanha… Que
conversa era aquela sobre o penedo, a água a pingar, ainda por cima, água milagrosa…
Algumas delas nunca tinham ouvido falar do sonho, até àquele dia. Que é que ele estava
para ali a dizer?! Pingas? Boa pinga devia ele ter na cabeça. Coitado! Está a ficar pior.
O senhor abade chegou ao pé do Daniel e perguntou:
- Queres dizer que o penedo continua a pingar depois desta seca toda?
- É verdade, senhor abade. Pinga como pingava naquele dia. Venha ver!
Perante tanta insistência, não houve outro remédio senão o de acompanhar o pastor,
mais que não fosse, para que o homem sossegasse um pouco visto que corria o sério risco
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de lhe dar uma coisa, com tanto frenesim….
E lá foram: Costa fora, Carvalhinhos, Fojos e, ali, derivaram para o, agora, famoso
abrigo.
Qual não foi o espanto quando verificaram que, de facto, a água pingava
constantemente da parte superior do penedo. Alguns, mais afoitos, saltaram para cima do
penedo para ver se o Daniel teria por ali colocado algum reservatório com água, mas nada
viram. A água brotava do interior do penedo como se de uma nascente se tratasse.
Entretanto, Daniel ia mostrando os pingos de sangue que a sua perna tinha largado durante
a viagem até ali e mostrava a perna completamente sã.
Bem, algum dos seus anhos se devia ter ferido, por ali. Olha uma água milagrosa.
No entanto, como sempre, alguns guardaram aquela informação para uso futuro. Nunca se
sabe…
O tempo foi correndo e a verdade é que algumas pessoas começaram a fazer coro
com o Daniel acerca dos efeitos miraculosos daquela água. O senhor abade nunca foi de
modos, mas várias pessoas da aldeia garantiam a pés juntos que já tinham beneficiado de
curas por causa daquela água.
Tanto assim foi que começaram a fazer peregrinações até lá. Primeiro de uma forma
pouco organizada e cada um por si mas, depois, já faziam andores e formavam procissões
como se de um lugar de romaria se tratasse.
Acabaram por fazer uma pia de pedra no sítio onde a pinga caía para que, quando se
quisessem lavar com aquela água abençoada, a tivessem em abundância
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POSFÁCIO
Ainda não há muitos anos que, essencialmente as crianças, faziam romarias ao
Penedo da Pinga para pedir chuva.
Construíam um andor ornamentado com papéis coloridos e lá iam, rezando e
cantando, a suplicar a bênção da água para os campos.
Que eu saiba, nunca esta devoção teve a bênção da hierarquia eclesiástica, mas o
povo acolheu-a no seu coração durante muitos anos.
É assim que as lendas nos mergulham na alma do povo. Não importa se é verdade
ou não o que está na origem da devoção popular. Aliás, “O que é a verdade?” O importante
é o sentimento que o povo deposita nas suas crenças que lhe dão mais força e mais armas
para enfrentar as agruras que a vida, especialmente por estas terras agrestes, lhe
proporciona e para pagar o tributo que a natureza cobra para largar o parco sustento…
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