Uploaded by Manuel Batoca

A Moura de Pala Cova

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1.
2.
Para as mulheres da minha vida:
Carmo, Augusta, Ana e Paula
3.
Todo o conhecimento da realidade é mediado pela consciência.
(Philip Goff)
Copyright © 2019 <$Manuel António Luis Batoca>
All rights reserved.
ISBN:
ISBN-13:
4.
Neste livro emocionante e cativante, mergulhamos numa história que se
desenrola em dois planos temporais diferentes, entrelaçando o presente e o
final do século I d.C. À medida que desvendamos os segredos da gruta de
Pala Cova, somos levados a uma jornada repleta de mistérios, amor proibido,
amizade e descobertas científicas impressionantes.
No presente, o narrador encontra um maxilar e dois dentes ao sair da
misteriosa gruta da serra da Cabreira. Ao partilhar a sua descoberta com o
seu amigo Rolando, director do Laboratório de Anatomia e Patologia Forense
de Braga, uma análise revela que esses elementos anatómicos datam do final
do século I d.C.
A partir desse ponto, desenrolam-se uma série de eventos, conectando dois
mundos distantes no tempo.
Enquanto acompanhamos o narrador na sua busca por mais evidências na gruta,
somos
transportados
para
duas
localidades
em
diferentes
épocas
e
geografias. Em Roma, conhecemos Bato Lusius, um jovem patrício romano em
preparação para o cargo de "curator viarum". As suas discussões filosóficas
com os amigos Senna Lusius e Valerianus Faventinus revelam diferentes
concepções de alma. Enquanto Bato defende a visão aristotélica, os seus
amigos seguem a filosofia platónica.
Ao mesmo tempo, na aldeia de Arandosan, conhecemos Almira, uma jovem que
deseja explorar o mundo. Envolvidos numa trama de interesses e negócios,
esses personagens são levados a fazer escolhas que moldarão os seus
destinos antes de Almira se casar com Tolosar, o filho mais velho da
influente família Bescocum.
Conforme os eventos se desdobram, a relação entre os dois planos temporais
torna-se cada vez mais evidente. O narrador regressa a Braga para partilhar
as suas descobertas com Rolando e aprender, dele, novos conceitos sobre
porque somos como somos.
Também nos será revelada uma surpreendente coincidência: o ADN dos ossos
encontrados concorda com o do narrador. Essa revelação está na base de uma
série de questionamentos e mistérios que permeiam todo o enredo.
Neste livro, exploraremos a história desses personagens e como as suas
5.
vidas se entrelaçam de maneira surpreendente. Acompanharemos os dilemas
morais de Bato, a luta de Almira pela sua liberdade e o amor proibido que
une esses dois mundos separados pela distância. Ao mesmo tempo, seremos
apresentados às técnicas de análise utilizadas pelo Laboratório de Anatomia
e Patologia Forense de Braga, proporcionando uma visão fascinante do mundo
científico.
Prepare-se para embarcar numa jornada repleta de emoção, descobertas
arqueológicas e reflexões filosóficas. "A Moura de Pala Cova" irá cativar a
sua imaginação, transportando-o(a) para um passado distante e revelando os
mistérios que se escondem nas profundezas da serra da Cabreira
6.
<CAPÍTULO> I
Eram três e meia da madrugada quando o som estridente do telefone me
fez dar um salto na cama. Ainda estremunhado, atendi com um resmungo e ele,
muito eufórico, perguntou:
- Sabes de quando são os ossos?! - Será que este homem nunca dorme?
Dei uma espreitadela ao despertador e, ainda mal acordado, rezinguei que os
meus ossos eram da década de 50 do século passado.
- Quero lá saber dos teus ossos! Sabes de que época são os ossos que
me trouxeste?
Pouco passava das cinco e meia da manhã quando saí em direcção à
serra. Os pés, protegidos por espessas meias de lã e enfiados em grossas
botas de montanha, pressentiam a humidade que cobria as ervas do caminho. A
noite retirava-se a passos largos e o sol, ainda tenra criança, afadigavase para afastar a neblina que cobria o sopé da serra. Os seus raios
desenhavam linhas de ouro cintilante por entre as nuvens e, ternamente,
acariciavam as pétalas das flores que por todo o lado desabrochavam. A sua
luz filtrava-se através da variegada folhagem e os rebentos, ainda tenros,
sacudiam o rocio acumulado durante a noite, como se quisessem lavar a cara
pela manhã e partilhar com a terra faminta o maná rejuvenescedor. As gotas
do relento cintilavam com a luz matutina e formavam conjuntos de pérolas
reluzentes e multicoloridas quando a aragem fazia dançar as jovens folhas
das árvores, roçando-as suavemente. O sol saltitava de umas para as outras
reflectindo-se e brincando com as gotas do orvalho como se tocasse uma
melodia
arrebatadora
num
imaginário
instrumento
musical.
Os
pássaros
compunham sinfonias alegres com os seus polifónicos chilreios e desafiavamse mutuamente para a melodia e o contraponto. Tudo respirava luz, alegria,
força e vida, mudança, crescimento e som nesta clara manhã de Maio. Os
lavradores saíam para os campos a fim de fazerem as vessadas programadas
ou, com os tractores novos adquiridos com a ajuda dos fundos comunitários,
transportarem o estrume e prepararem os terrenos para as sementeiras do
7.
milho e do feijão.
Já quase se não usa o arado puxado por juntas de bovinos. Só nos
terrenos que, em virtude do seu tamanho ou dos acessos, não consentem o
trabalho do tractor.
Porém, naqueles distantes anos da minha infância, o cultivo do milho
e do feijão era um trabalho extenuante, como todo o trabalho levado a cabo
numa agricultura de subsistência como a que ali era desenvolvida. Trabalho
cíclico, árduo e desgastante.
Enquanto as pernas me elevavam para a serrania, fui matutando e
recordando o que era o trabalho agrícola, durante a minha infância, na
pequena aldeia onde nasci e vivo. Para começar pelo princípio, penso que se
deve estabelecer o ponto de partida desse ciclo, no que à cultura do milho
diz respeito, na recolha do material usado para a cama dos animais e para,
posteriormente, levar nutrientes às terras.
Para essa recolha, os agricultores vão às suas propriedades que não
estão destinadas à produção agrícola ou aos terrenos baldios da comunidade
e roçam o mato, composto maioritariamente de tojo, que transportam para as
cortes dos animais e ali espalham para servir de cama aos mesmos. Esse
transporte era feito nos carros de bois. Agora é quase exclusivamente
efectuado em tractores.
Quando se pretendia preparar a cama para as ovelhas ou para as
cabras, o material mais usado era a carqueja ou o chamado mato molar por
contraste com o mato arnal, muito mais áspero e com picos mais agressivos.
Esses matos, por força da mistura com os dejectos dos animais e da
fermentação daí resultante, transformavam-se em estrume que, normalmente no
mês de Maio, era carregado para carros de bois e neles transportado para os
campos dando-se, assim, início à lavoura.
Depois de descarregado e depositado em montículos dispersos por todo
o terreno que se pretende arar, estende-se o esterco com forquilhas, para
que toda a área seja estrumada de forma mais ou menos homogénea. Antes de
começar a lavrar, os terrenos são cadabulhados nos locais onde o arado não
chega e os cantos mais apertados são cavados à enxada para que não seja
necessário efectuar demasiadas manobras com o arado e assim se recupere
tempo precioso.
8.
Dá-se, então, início à vessada.
O arado é puxado por duas ou três juntas de bovinos engatadas a ele e
entre si por meio de cambões.
À frente desses animais segue a pessoa encarregada de os orientar e
manter no alinhamento correcto. É o candeeiro.
Muitas vezes desempenhei essa função...
Ao lado dos animais vai o tocador com uma aguilhada a fim de obrigar
os animais a andarem e a manterem o ritmo incitando-os e, se necessário,
espicaçando-os.
Ao arado vai o lavrador. A função nobre da vessada. Competia-lhe
segurar e manter estável o referido instrumento bem como alternar a
direcção da relha do mesmo.
Na parte lavrada ficavam os restantes membros do grupo a picar as
seitas (as leivas) com as enxadas, para que a terra ficasse mais solta a
fim de ser mais facilmente homogeneizada pelas grades que passariam
posteriormente puxadas por um par de bovinos.
Depois de a terra estar lavrada e as seitas picadas, começa o
trabalho
das
grades.
As
mais
antigas
possuíam
dentes
de
madeira,
normalmente feitos de pau de oliveira. As mais modernas têm dentes de
ferro. Atrela-se uma junta de bovinos a cada grade e percorre-se a terra
recém-lavrada a fim de a nivelar e soltar melhor.
Atrás, na terra posta a descoberto, saltitam as levandeiras ou
levandiscas (alvéola-branca) a empanturrarem-se da bicharada exposta pela
passagem do arado e das grades. Circulam com enorme à vontade entre os
trabalhadores. A sua mesa está posta.
A etapa final da vessada é a sementeira. O milho e o feijão,
previamente misturados, são lançadas à terra pelo semeador em braçadas
largas e rítmicas para que fiquem uniformemente espalhados na terra.
Mais tarde começaram a ser usados os semeadores mecânicos que eram
movidos por uma ou duas pessoas ou, estando disponível, por um bovino, um
equino ou um asinino.
Após a sementeira, era necessário abrir sulcos na terra lavrada para,
mais tarde, se poder regar as culturas sedentas. Tinha de ser feito tendo
em atenção a inclinação do terreno e o local onde a água da rega dava
9.
entrada no campo de cultivo. Chamava-se, a essa operação, aleirar.
Era muito comum ocorrerem trovoadas tão fortes quanto rápidas que
deixavam a terra a fumegar e a exalar um cheiro forte a ozono que parecia
retemperar as forças dos trabalhadores.
Habitualmente, depois de a terra estar lavrada e antes de começar a
ser
gradada,
era
servido
o
almoço
ou
merendeiro:
farto,
saboroso,
diversificado. Era levado para o local da vessada em açafates transportados
à
cabeça
pelas
cozinheiras
que
há
várias
horas
se
afadigavam
para
apresentarem uma comida de alta qualidade. Cuidadosamente acondicionada e
embrulhada em toalhas de linho, consistia, maioritariamente, em postas de
bacalhau
frito,
bolinhos
de
bacalhau
(pastéis),
chouriço,
presunto,
rabanadas e vinho verde em abundância. Muitas vezes, o vinho era servido em
cabaças que passavam de mão em mão. Todos bebiam: crianças, jovens e
adultos.
Durante toda a vessada, as pessoas cantam, riem e absorvem os odores
intensos do suor, do estrume, da terra fresca e revolta e o cheiro pungente
e bravio dos animais com que labutam.
Assim se conclui mais um cansativo passo de muitos na longa caminhada
do cultivo do milho e do feijão.
Nos dias seguintes é necessário verificar se os grãos de milho e os
feijões estão correctamente enterrados e se os pássaros não boicotaram o
trabalho do lavrador desenterrando-os e comendo os grãos.
A próxima etapa é sachar.
Quando o milho e os feijões nascentes já têm uma altura aproximada de
dez a doze centímetros, é necessário sachá-los.
Para isso usa-se a sachola a fim de os desimpedir das ervas daninhas,
do excesso de nascença e para que a terra fique mais arejada e solta e
respire melhor.
De manhã bem cedo, as pessoas da família, muitas vezes acompanhadas
de amigos e vizinhos, dirigem-se para o terreno semeado e posicionam-se no
terreno de acordo com a mão.
Assim, se a mão que fica mais em baixo, no cabo da sachola, for a
esquerda (como é o meu caso) essa pessoa coloca-se do lado esquerdo do
10.
grupo. Caso contrário passa para o lado direito.
Esta organização facilita a conversa entre as pessoas e o andamento
do grupo para que avance de forma coordenada no terreno e ninguém fique
para trás.
Com esse alinhamento, ninguém está de costas voltadas para as costas
de ninguém. O trabalho agrícola é maioritariamente solidário.
A operação do sacho era dividida em duas etapas: a decrua, na qual a
terra
era
afastada
das
plantas
para
permitir
melhor
respiração
e
enraizamento, garantindo uma fixação mais forte, e a renda, em que a terra
previamente
afastada
era
devolvida
às
plantas,
conferindo-lhes
maior
resistência contra ventos fortes e a seca que certamente aconteceria como
consequência do aumento da temperatura e da ausência da chuva.
Nos tempos atuais, ao invés de se recorrer a esse extenuante trabalho
manual,
utilizam-se
herbicidas,
os
quais,
infelizmente,
envenenam
gradualmente o solo e os lençóis freáticos.
Terminada a tarefa do sacho, era necessário verificar se as plantas
restantes não eram excessivas e, sendo esse o caso, proceder ao seu
desbaste, operação aqui designada por arrelenta.
Com o desenvolvimento das plantas e o aumento da temperatura
atmosférica, pela chegada do verão, é necessário regar as plantas.
Aqui usa-se, maioritariamente, a água da levada. Trata-se de água
recolhida
na
serra
em
reservatórios
construídos
pelos
nossos
antepassados e chamados Poças da levada.
A água é captada numa das nascentes do rio Ave e encaminhada
para as poças através de canais denominados Cales.
O primeiro reservatório era denominado Poça do Pé e tinha uma
marca
em
forma
de
cruz
talhada
numa
pedra
existente
no
seu
exterior. Quando a luz do sol nascente atingia essa marca, era a
hora de tapar a poça. Como nem toda a gente tinha um relógio, essa
era a forma de se marcar a hora.
Actualmente
isso
não
faz
sentido
pois
essa
poça
já
não
existe.
Apenas ficaram dois grandes reservatórios e a hora de vedar a
11.
saída da água, agora que os relógios são omnipresentes, passou
para as nove da manhã e o pôr do sol.
As regas iniciam-se no dia de S. Tiago (25 de Julho) o que
significa que no dia 24 ao pôr do sol, são tapadas as poças.
Para saber quem tem esse privilégio, ficou estabelecido, por
mútuo acordo dos lavradores com direito a regar, que, sendo o ano
par, é o lugar de Ameã a ter a primazia. Em ano ímpar, esse
benefício pertence ao lugar da Lage.
O ciclo de rega com a água das Poças da Levada termina no dia
7 de Setembro de cada ano.
A
colheita
do
milho
é
feita
de
acordo
com
o
estado
de
amadurecimento do mesmo.
Quando o milho está maduro, é cortado e conservado em medas à
espera de poder ser desfolhado. Este trabalho era feito, bastas
vezes, à noite.
Juntavam-se grandes grupos de pessoas que, formando uma roda,
iam extraindo as espigas do milho dos seus invólucros.
A palha era guardada em medas para servir de alimento aos
bovinos durante o inverno, quando o alimento nos campos era mais
escasso.
Normalmente,
o
dono
do
milho
fornecia
aos
presentes
na
desfolhada sardinhas fritas acompanhadas de broa e vinho verde.
As espigas são armazenadas nos espigueiros para secarem. Após a
secagem, são malhadas para separar os grãos, que serão utilizados como
alimento para as aves ou moídos em moinhos movidos pela água dos braços do
rio Ave, que cortam a serra da Cabreira.
Com essa farinha, produz-se a broa, que é a base alimentar da maioria
das famílias das aldeias serranas da região.
Além disso, a farinha pode servir como complemento nutricional para
os suínos criados pelas famílias ao longo do ano, assim como para a criação
de leitões vendidos quer na feira semanal seja para os vizinhos.
Imerso nestas memórias e sem perceber a passagem do tempo ao longo do
12.
percurso, em pouco mais de meia hora cheguei ao lugar da Pedreira.
Ao avistar a casa da floresta abandonada e em estado de total
degradação, um suspiro nostálgico escapou do meu peito, relembrando os
tempos em que a preservação da serra justificava a presença dos seus
ocupantes: o guarda-florestal e sua família.
Agora, olhando em frente para a montanha que se eleva na sua
granítica nudez, sinto que uma parte da minha juventude espalhada por estes
montes se esfumou, empurrada para o alto pelas labaredas dos fogos que
consumiram todo o arvoredo que por aqui abundava.
A quem terá aproveitado essa ígnea devastação? Não, certamente às
populações
locais,
uma
vez
que
as
madeiras
que
poderiam
vender
desapareceram ou viram o seu preço significativamente degradado.
Esta
riqueza
natural
assim
devastada
deveria
levar
a
que
as
autoridades quer do governo central quer, sobretudo, do poder local se
preocupassem mais com o ordenamento da serra.
Quando o guarda-florestal por aqui andava em vigia, os incêndios eram
incomparavelmente menos frequentes e a ruína que eles causavam ficava muito
aquém da actual depredação.
A abundância arbórea deveria ser aproveitada, incentivada, acarinhada
e apoiada.
Como se faz o aproveitamento das forças da natureza para a produção
de energia (vento, sol, água, calor ...) assim deveria suceder com a
riqueza lenhosa que esta nossa serra pode e devia produzir.
Quando é que os responsáveis tomarão consciência do crime ambiental
que estão a cometer por omissão?!
Melancolias à parte, é tempo de prosseguir rumo a um destino mais
elevado. É lá que está a razão por trás desta caminhada matinal e
campestre.
Desde criança que oiço falar na "Moura de Pala Cova". A moura
encantada, local de sortilégios e assombrações.
Tudo não passava, para mim enquanto adulto, de lenda e superstição.
Porém, na semana passada, durante uma das violentas trovoadas de Maio,
quando regressava duma visita ao Talefe, abriguei-me na famosa gruta.
13.
O Talefe é o ponto mais alto da serra da Cabreira com 1262 metros de
altitude.
Finda
que
foi
a
trovoada,
saí
para
a
frescura
ionizada
e
rejuvenescida do dia e vislumbrei, num sulco aberto pela torrente da água,
a ponta de um osso em muito bom estado. Não era um achado estranho, uma vez
que a serra está pejada de ossos de animais mortos pelos lobos.
No entanto, embora eu não seja paleontólogo nem tenha qualquer tipo
de formação nessa área do saber, este pareceu-me muito diferente dos que
habitualmente
por
aqui
se
encontram.
O
meu
enorme
anseio
de
ver,
proporcionou-me a visão desejada.
A única ferramenta de que dispunha, era um cajado.
Nada mais pude fazer a não ser, esgaravatando um pouco mais fundo com
a ponta do mesmo, desenterrar essa réstia da anatomia presumivelmente
humana, uma vez que se tratava de um maxilar inferior. No mesmo sítio
encontrei ainda dois dentes.
Recolhi os três elementos e, como não sou anatomista, decidi levá-los
ao meu amigo Rolando.
Quando cheguei a casa, jantei apressadamente e abalei para Braga a
fim de requerer os préstimos do meu amigo e conterrâneo, por quem nutro uma
enorme e antiga amizade.
Ele sim é um patologista e anatomista de grande nível.
Dirige, com especial mestria, o Laboratório de Anatomia e Patologia
Forense de Braga.
Fui encontrá-lo no seu gabinete austero, mas acolhedor e de portas
sempre abertas para me receber.
Quando, após uma rapidíssima conversa introdutória, sofregamente lhe
mostrei a serrana descoberta como se de uma preciosidade rara se tratasse,
ele arvorou um ar de comiseração como que a dizer: Coitado, só porque viu
uns ossos enterrados, já se convenceu que descobriu um tesouro!
No entanto, como bom anatomista forense que é e como inquestionável
amigo, não ia perder a ocasião de ter mais um motivo para se divertir à
custa da minha insistente teimosia.
Antes, porém, de aceitar fazer qualquer tipo de estudo aproveitou
imediatamente a ocasião para me dar um valente "puxão de orelhas" pela
14.
"forma
descuidada,
perfeitamente
desastrada
e
amadora",
como
tinha
procedido à recolha do valiosíssimo fóssil, como lhe chamou para casquinar
comigo.
Sem perceber a ironia, cego que estava pela convicção da mais-valia
do achado, fiquei com as orelhas a arder, quase com vontade de dar meia
volta e retornar a casa. Mas a curiosidade falou mais alto e eu lá me
desculpei pelo descuido, penitenciei-me por isso e insisti com o Rolando
para analisar "aquilo".
Mais por complacência para com a minha idade do que por convicção do
merecimento do objecto e, obviamente, por mor da longeva e profunda amizade
que nos une, decidiu fazer a datação dos ossos.
Foi na sequência dessa datação que tudo se despoletou...
Eram três e meia da madrugada quando o som estridente do telefone me
fez dar um salto na cama. Ainda estremunhado, atendi com um resmungo e ele,
muito eufórico, perguntou:
- Sabes de quando são os ossos?! - Será que este homem nunca dorme?
Dei uma espreitadela ao despertador e, ainda mal acordado, rezinguei que os
meus ossos eram da década de 50 do século passado.
- Quero lá saber dos teus ossos! Sabes de que época são os ossos que
me trouxeste?
Despertei um pouco mais, espevitado pelo tom excitado do Rolando, e
retorqui:
- Como queres que saiba? Para saber isso é que tos levei!
- São do início da nossa era!
Os olhos, os meus, arregalaram-se na semi-obscuridade:
- São o quê?!
- São do século I! Os ossos que me trouxeste, são do século I da
nossa era! Do tempo da ocupação Romana!
A adrenalina disparou embora a clareza de espírito ainda deixasse a
desejar.
- E são ossos romanos?
- Ouve lá, tu pensas que eu sou bruxo? Como queres que saiba se são
romanos, celtiberos, brácaros ou de qualquer outra proveniência? Só posso
15.
afirmar que a datação indica que pertencem ao início do séc. I da nossa
era, o que sugere fortemente que sejam de origem celtibera ou romana, a
menos que se trate de algum viajante cujos restos tenham chegado até
aqui...
O sono evaporou-se instantaneamente. Uma onda de adrenalina percorreu o
meu corpo, dissipando qualquer vestígio de sonolência. O meu coração batia
a um ritmo frenético com a perspectiva de descobrir mais sobre a gruta de
Pala Cova.
Preparei uma pá, uma picareta e mais uma série de apetrechos que me
parecia que um arqueólogo deveria usar, alguns sacos plásticos e uma
mochila com uma merenda caseira à medida do meu muito apetite e, ao raiar
do dia, encetei a caminhada que, por força da ansiedade, num ápice me tinha
levado até à Pedreira.
Avancei por Fligueirinho, Calçada de Fontes e Pedra Alta.
Aqui, parei para apreciar a paisagem maravilhosa que, qual tapete
enrugado, se estendia a meus pés. Aproveitei para encher os pulmões com o
ar puro, límpido e fresco da montanha e para ouvir o cristalino silêncio da
natureza numa manhã de Maio sem nuvens.
Virando-me para trás, não pude deixar de me extasiar com a paisagem
deslumbrante que se desenrolava ante mim, vendo as diversas aldeias
aconchegando-se à serra qual bando de pintainhos abrigando-se debaixo das
asas da mãe galinha.
Inebriei-me, durante algum tempo, com aquela imagem extraordinária,
elevando os níveis de serotonina e aproveitando para recuperar um pouco o
fôlego.
Algum tempo depois e como o meu destino, naquele dia, não era
especialmente dedicado à contemplação da natureza, segui viagem um pouco
mais retemperado e revigorado.
Fiz um ligeiro desvio até à fonte de Carvalho Cortado onde aproveitei
para saciar a sede com aquela água transparente, pura e fresca que brota
das entranhas não poluídas da serra e, também, para encher um cantil que
para o efeito já carregava comigo.
Continuei a subir até chegar a Bouças de Areia, local onde ainda
16.
existe uma cabana construída para os pastores do gado bovino se abrigarem
do calor da estiagem quando os animais, na época da transumância estival,
repousavam durante as horas da sesta.
Aqui, relembrei os meus tempos de adolescente em que, nas férias de
Verão, acompanhava o meu pai no pastoreio do gado bovino da aldeia. De
acordo com os costumes antigos, o tempo de pastoreio correspondia ao número
de cabeças de gado que cada lavrador possuía: um dia e uma noite por cada
junta de gado.
Nós tínhamos duas juntas. Logo, obrigava a um dia e uma noite para
cada um de nós. Normalmente pernoitávamos na cabana da Arandosa por ser um
local mais arborizado e, consequentemente, mais procurado pela manada para
passar a noite.
Esta viagem estava a ser mais melancólica que o planeado. Às vezes
fico assim... para o nostálgico. Coisas de personalidade.
Cheguei, finalmente ao Alto de Pala Cova.
Este, consiste num grande maciço de granito que serve de cobertura a
uma reentrância com pouco mais de três metros de profundidade e outro tanto
de largura, na entrada virada a Nascente, estreitando cada vez mais em
forma triangular.
Não é propriamente uma gruta; antes se trata de um abrigo com alguns
melhoramentos feitos por mão humana.
Por ali à volta ainda se podem ver muitas das pedras que deveriam ter
servido para vedar a frente do referido abrigo até deixarem apenas uma
estreita e mais defensável entrada. Digo eu...
Nas
paredes
rochosas
do
maciço
granítico,
podem
ver-se
várias
concavidades entalhadas e que, penso, poderiam ter servido para estantes ou
prateleiras daquilo que eventualmente terá sido uma habitação.
Essas "prateleiras", que eu já conhecia há muito tempo, sempre me
tinham intrigado: para que haveria alguém de se dar ao trabalho de escavar
tantos suportes na rocha num local que servia apenas para que alguém se
abrigasse de uma eventual trovoada? Não fazia sentido.
Motivado pela conversa do Rolando, comecei a imaginar como seria uma
habitação, ali em plena serra da Cabreira, no séc. I da nossa era.
A luz do início da manhã seria brilhante, uma vez que a entrada fica
17.
virada a nascente, mas o isolamento térmico inexistente, o conforto ínfimo,
os acessos pouco convidativos.
Havia, porém, um refúgio que protegeria os eventuais usuários dos
temporais e os defenderia das investidas dos animais selvagens bem como um
local para fazer fogo, preparar as refeições e pernoitar.
Mas,
não
tinha
maneira
de
saber
se
existiriam
por
ali
alguns
resquícios da era romana.
Não sou arqueólogo nem tenho qualquer preparação nessa área do saber.
Sou apenas um curioso sobre o que não compreendo. E isto não estava a
compreender.
Nem sequer sabia se por aqui tinham andado outros povos e, se sim, em
que eras isso teria acontecido e de quem se tratava. Mas, aqueles ossos...
O Rolando tinha-me deixado muito alvoroçado. Haveria mais ossos? Como
é que se tinham conservado durante tantos séculos sem se deteriorarem? O
terreno não é nada propício à conservação de materiais perecíveis visto que
há demasiada humidade.
Apesar disso, o meu amigo tinha sido positivo: eram ossos do século
I. E eram ossos humanos. E se o Rolando o afirmava, na minha mente não
cabia a dúvida.
De quem seriam? De que povo se tratava? Pertenceriam a alguém que
tivesse vivido ali?
Certamente que, se agora estavam ali, já há muito que isso deveria
acontecer. Afinal, os ossos não costumam mudar de sítio por sua livre
iniciativa...
Demasiadas perguntas sem resposta.
Talvez alguém os tenha levado para ali. Mistérios... E eu que nem
gosto de mistérios!
Hoje, enfim, iria encontrar respostas para algumas dessas perguntas
ou eu não me chamasse...
De
onde
tinham
vindo
aqueles
ossos?
Onde
estavam
os
restantes
elementos do esqueleto? Vamos já saber...
Peguei na picareta e levantei-a para a enterrar na terra endurecida.
Suspendi,
contudo,
o
gesto
pois
o
visionamento
de
algumas
séries
televisivas sobre arqueologia e criminologia forense fez-me recear que, com
18.
esse acto, pudesse destruir vestígios importantes para o estudo dos achados
que certamente iria descobrir.
Teria que ser muito mais subtil nas minhas escavações. A ânsia de vir
até ali tinha-me toldado o raciocínio.
Deveria ter trazido crivos, peneiras, pincéis, pás pequenas, máquinas
fotográficas, bandeiras de sinalização arqueológica ou lá como se chamam...
Toda uma panóplia de ferramentas e objectos que me permitissem
encontrar achados arqueológicos sem os danificar nem destruir o habitat em
que eles se encontravam mas com capacidade para o documentar devidamente.
No entanto, como anteriormente afirmei, não sou arqueólogo nem tenho
qualquer conhecimento académico nesse campo e, por isso, aplacando os
pruridos que sentia, deitei as cautelas às urtigas (ossos são apenas ossos)
e cravei a picareta no chão.
Escavei, a partir do local onde tinha achado o maxilar e os dentes,
fazendo dele o centro de um semicírculo que se ia alargando e deveria
chegar à parede do fundo da caverna.
Apesar de escavar arduamente no solo compacto da gruta, para meu
grande desapontamento não encontrei nada de relevante.
É claro que a profundidade da escavação não era muita (talvez uns
trinta centímetros), mas, a meus experimentadíssimos olhos, deveria ser
mais do que suficiente para trazer à luz do dia os companheiros do maxilar
e
dos
dentes
anteriormente
descobertos.
Eles
estavam
bem
perto
da
superfície...
O suor que gotejava dos meus cabelos e escorria pela testa até
penetrar ardentemente nos olhos, tornava a minha tarefa de pesquisa cada
vez mais espinhosa e árdua. Apesar disso, persisti teimosamente na busca
incansável por ossos e dentes.
Em vão...
A hora do almoço chegou e, esfaimado que sou, atirei-me, literalmente
com unhas e dentes, ao farnel de que, prévia e acauteladamente, me tinha
guarnecido.
A
água
do
cantil
estava
praticamente
esgotada,
mas
isso
pouco
importava. Na mochila trazia uma boa garrafa de litro e meio do melhor
verde tinto da minha adega.
19.
Degluti, pausada e gulosamente, a broa, o presunto e o chouriço
caseiros, sempre convenientemente regados com o verdinho, e terminei com
duas peças de fruta biológica do meu quintal.
Se mais nada houvesse, o passeio teria valido a pena pela merenda e
pelas paisagens serranas que nunca me canso de admirar, sentir e apreciar.
Dormi uma retemperante sesta, deitado na frescura abrigada da gruta,
sonhei com o achamento de um esqueleto completo e, quando despertei para a
dura realidade da inexistência de achados, voltei ao trabalho com renovado
vigor.
O meu entusiasmo inicial, porém, foi-se esvaindo à medida que o
desânimo se acumulava devido à falta de achados.
Foi-se avolumando a exaustão física e, acima de tudo, a psicológica,
pois tinha prometido a mim mesmo que encontraria um tesouro.
Infelizmente, não encontrava nem a ponta de um chifre, um fragmento
de cerâmica ou uma simples pedra lascada.
Não sou mesmo talhado para a arqueologia...
Restava-me regressar e ir ter com o meu amigo Rolando, para ver se
ele tinha extraído mais alguma informação da exaustiva investigação levada
a cabo sobre os ossos que lhe tinha levado.
Ele sim é um grande analista e um antropólogo forense de alto
gabarito. Ele sim sabe o que faz, quando examina ossos. É um verdadeiro
especialista.
O laboratório onde faz a maior parte dos estudos, está tão repleto de
maquinaria e apetrechos informáticos que deixa os olhos em bico ao mais
precavido dos visitantes.
Com toda aquela variedade de engenhos, ele e a sua equipa de peritos
aplica técnicas como a osteologia, paleopatologia, tafonomia, entre muitas
outras.
Consegue,
também,
fazer
reconstrução
facial
do
cadáver
e
superposição fotográfica.
Evidentemente que a compreensão destes termos científicos tenho que a
agradecer ao Rolando. Nunca me passaria pela cabeça que tais palavras
fizessem parte da bagagem comunicacional de qualquer mortal...
A
primeira
vez
que
ele
me
presenteou
desconhecidas para mim eu disse-lhe:
com
essas
palavras
totalmente
20.
- Oh Rolando, por favor! Tem compaixão de mim...
- Claro. Desculpa. Às vezes esqueço-me que há termos científicos que
nem todos conseguem descodificar.
- Então ajuda-me lá a descodificar essas palavras caras. O que faz um
esteologista?
-
Um
osteologista,
queres
tu
dizer.
Os
osteologistas
examinam
características como a forma, tamanho, densidade e padrões de crescimento
dos ossos para entender mais sobre a saúde, dieta, actividades físicas, e
origem étnica de indivíduos ou populações do passado. No campo forense, a
osteologia pode ser usada para ajudar a determinar a causa da morte ou
identificar restos mortais desconhecidos.
- Passemos a outra: O que faz um paleo... paleo...
- Paleopatologista?
- Isso.
- Os paleopatologistas examinam evidências físicas de doenças em
humanos ou animais de tempos antigos. Este campo também inclui o estudo de
parasitas antigos e a análise de ADN antigo para a presença de patogénicos.
- Conheces cada coisa... E o que faz um tafono qualquercoisa?
- Tafonomista?
- Deve ser isso...
- Os tafonomistas analisam factores como a decomposição, a dispersão
de restos por predadores ou correntes de água, a compactação dos restos por
camadas de sedimentos, a mineralização dos ossos e dentes, a erosão e o
desgaste, e muitos outros processos. Eles também consideram o impacto de
eventos
catastróficos,
como
erupções
vulcânicas,
deformidades
ósseas,
lesões, sinais de mal-nutrição ou stresse, e outras marcas patológicas que
podem indicar a presença de uma doença ou inundações.
- Sabes, meu amigo, já não me admira que sejais capazes de extrair
tanta informação dos ossos que vos trazem. Com palavras assim, os elementos
analisados aqui nos vossos laboratórios devem "falar" só de as ouvir.
Mesmo quando o tema é fora do seu campo laboral habitual, ele tem uma
impressionante bagagem de conhecimentos. Costumo chamar-lhe enciclopédia
21.
ambulante. São raros os temas que o deixam mudo.
Por isso, estava na hora de o revisitar.
O desalento provocado pelos resultados nulos da minha expedição
arqueológica, tinha que ser contrabalançado com os conhecimentos que o
Rolando compartilhará comigo.
Certamente que terá à minha espera uma infinidade de dados sobre a
raça, sexo, idade, estatura, proporções corporais e até mesmo detalhes da
vida do falecido, como hábitos alimentares, doenças, lesões e possivelmente
as causas da morte.
Estava ansioso para saber mais e orgulhoso por ter sido o "achador"
de tão empolgante descoberta.
Voltei a empacotar as ferramentas, bebi o resto do vinho e meti pés
ao caminho.
'bora p'ra casa...
22.
CAPÍTULO II
Bato Lusius não acompanhava as regras que a esmagadora maioria dos
habitantes de Roma cumpria nas suas idas às Thermae, os banhos públicos.
Os
romanos
entravam
sempre
nos
banhos
públicos
através
do
Apodyterium, uma divisão onde os banhistas trocam de roupa e onde guardam
os seus pertences pessoais enquanto frequentam os banhos. Os mais abastados
deixam um escravo a guardar os seus haveres.
Daqui, seguiam para o Frigidarium, uma divisão com um tanque de água
fria, depois para o Tepidarium, divisão de água tépida e, por fim, para o
Caldarium, a água mais quente do complexo balnear. Aqui chegados, muitos
dos banhistas voltavam ao Tepidarium para a aplicação de óleos e o uso do
strigil, uma ferramenta usada para raspar o óleo anteriormente aplicado e,
com ele, a sujidade e suor acumulados no corpo.
Bato, no entanto, preferia começar por praticar exercício físico na
palestra, recinto dedicado essencialmente a essa actividade.
Após a passagem pelo Apodyterium, dirigia-se directamente para o
Caldarium e, só depois, ia ao Tepidarium. Aqui, procedia ao tratamento
completo, desde o óleo ao strigil, e passava para o Frigidarium. Dizia que
isso lhe devolvia a força que o exercício físico lhe havia roubado.
Preferia não passar pelo Sudatorium porque, dizia ele, já tinha
expelido suor suficiente na palestra.
Depois da passagem pelo Frigidarium, deslocava-se para outra zona do
complexo
balneário
com
o
intuito
de
se
dirigir
a
uma
das
tabernae
circundantes.
Gostava de se deliciar, quase sempre na companhia de alguns amigos,
com
as
iguarias
ali
vendidas.
Acompanhava
essa
refeição
com
um
bom
falerniano, o seu vinho preferido.
Adorava trocar ideias com seu primo Senna Lusius e com o comum amigo
de infância Valerianus Faventinus. Muitas vezes comiam juntos.
Entre os vários temas abordados, as conversas passavam pela análise
das
respectivas
vidas
familiares,
pelas
lutas
de
gladiadores,
pela
23.
actividade no Forum e até pelos mexericos da vida política. Outras vezes,
porém, devido às diferentes perspectivas relativamente à ideia de quem
somos e o que somos, desembocavam nas suas divergências à volta da
filosofia grega.
Normalmente era ele que espicaçava os amigos, instigando brincadeiras
e conversas animadas.
Numa tarde em que o falerniano fuía livremente pelas gargantas dos
três amigos, enquanto Bato limpava os dedos gordurosos de garum com um
farrapo,
voltou-se para os dois conterrâneos, estreitando ligeiramente os
olhos.
- Então meus amigos, - disse ele - dizei-me lá:
Depois
destes
belos
petiscos
com
que
o
Saturninus
Maccius
nos
presenteou e deste divino falerniano que nos serviu, a vossa alma deve
estar esfomeada.
Coitadinha, - acrescentou, cavilando com um trejeito de miserabilismo
- uma vez que está separada do corpo, ficou a ver navios. Não provou nada.
- Ouve lá Bato, - disse Senna levantando as mãos e sorrindo -, repito
a pergunta que já te fiz várias vezes: como é que a alma pode alcançar
verdades universais se está aprisionada no corpo?
- O problema - enfatizou Valerianus colocando um braço à volta dos
ombros de Bato - é que tu continuas a não compreender a verdadeira dimensão
da alma.
A alma - disse, elevando um pouco mais a voz para se fazer ouvir - é
de uma dimensão diferente. Existe antes do corpo, no qual está prisioneira,
e sobrevive-lhe após o desaparecimento dele.
Por isso não se alimenta. Apenas se aperfeiçoa e liberta gradualmente
do
mundo
físico
para
se
elevar
para
a
verdade
suprema
através
do
conhecimento e da sabedoria.
- Como já te fizemos notar muitas vezes - acrescentou Senna - o corpo
é uma forma física transitória e mortal. - Pegou em mais uma fatia de
queijo, encheu outro copo de vinho e continuou - Mas a alma é a parte
divina e imortal do homem. Porém, tu insistes na tua visão redutora do
homem como uma unidade física.
- Mas, - enfatizou Bato - quem vos disse que a alma alcança verdades
24.
universais?
A alma racional, que é a dos seres humanos, tem em si as faculdades
do pensamento, da razão, do intelecto. É um facto. É por meio dela que os
seres humanos conseguem exercer o livre-arbítrio, executar a linguagem,
praticar a moralidade e desenvolver a capacidade de buscar o conhecimento.
Mas a alma é inseparável do corpo, está de tal forma entrelaçada com o
corpo que não existe sem ele como ele não existe sem ela. Não tem
capacidades universais.
Enquanto
o
ruído
de
fundo
da
taberna
onde
se
encontravam
ia
aumentando de volume em consonância com o consumo de vinho, os três amigos
continuavam a discordar profundamente sobre a ideia de alma ou, como diriam
os gregos, "psiké", mas a sentirem a mesma amizade de sempre que suplanta e
faz passar para segundo plano qualquer discordância seja filosófica ou
outra.
Após a pausa retemperadora, Bato voltava à palestra para conversar
com os colegas ou, se tivesse a oportunidade, para esclarecer dúvidas com
os magistri que circulavam por ali.
Quando os estudos lho permitiam, deslocava-se a Pompeia, cidade onde
seus
pais
habitavam.
Adorava
passar
lá
os
seus
tempos
livres
mais
prolongados. Ali dispunha da companhia dos seus pais, dos quatro irmãos e
das duas irmãs.
Também ali, na sua cidade natal, a sua Pompeia de que tanto gostava,
utilizava o mesmo sistema de acesso aos banhos públicos. Não sentia
necessidade de se comportar como toda a gente. Era um romano. Tinha a sua
própria cabeça para pensar.
Este tipo de pensamento cruzava a sua mente com muita frequência. Por
isso ele gostava de passar amiúde pela palestra.
Todo aquele exercício, dizia ele, o libertava do stress que lhe
advinha da sua intensa preparação para o cargo que o esperava: curator
viarum.
As vias romanas eram essenciais para o império. Ele ainda ouvia
contar muitas vezes a história do desastre que tinha sido o ataque dos
gálios liderado por Breno há cerca de quatro séculos.
25.
A lentidão da movimentação das tropas naqueles caminhos estreitos,
desnivelados e sinuosos foi catastrófica para Roma.
Por isso, era fundamental prover o Império de vias rápidas, bem
planeadas e construídas
Os exércitos, os funcionários imperiais e o cursus publicus - o
serviço de correio imperial que assegurava o transporte de encomendas e
documentos oficiais e administrativos - transitavam por elas.
Comerciantes, viajantes e peregrinos também as utilizavam, vendo
facilitado o acesso rápido a todos os recantos do império e permitindo a
ágil transacção de pessoas e bens.
Por elas passavam a cultura e o conhecimento romanos que iriam
libertar o mundo inteiro da ignorância e obscurantismo em que se encontrava
mergulhado levando-lhe a luz do saber. Nelas fluía, em direcção a Roma, o
dinheiro de que esta necessitava para alargar ainda mais a sua influência e
alimentar os vícios e a insaciável máquina administrativa que crescia
desmesuradamente.
Por isso, Bato via o seu papel como director de construção e
conservação de estradas não apenas como um emprego, mas como uma missão
vital para o progresso dos povos.
Roma, como fonte do progresso, era também a garantia de futuro.
Bato seria o responsável pelo traçado e pelo supervisionamento do
progresso da construção das vias que lhe fossem confiadas.
Ele achava que o nosso lugar no mundo deve merecer ser ocupado por
nós. O nosso contributo para o progresso, para a caminhada da humanidade só
vale a pena se o nosso saber for usado para o crescimento de todos. E isso
só
vai
acontecer
se
nos
prepararmos
na
esmagadora
com
vontade,
com
afinco
e
com
perseverança.
Não
se
tratava,
maioria
das
vezes,
de
construir
estradas do zero. Tratava-se, antes, do aproveitamento e melhoramento vias
já existentes.
Procurava-se, na maioria dos trajectos, que os mesmos tivessem um
conjunto de características muito próprias, nomeadamente que fosse o
percurso mais curto entre dois pontos, com a menor variação de cota
possível e evitando, sempre que exequível, o cruzamento de linhas de água.
26.
Para isso, o trabalho duro, em zonas onde imperava a paz, era
suportado pelos legionários e mais alguns assalariados locais uma vez que,
assim, o salário dos militares era rentabilizado.
Se a construção ocorresse em zona de guerra, o trabalho seria
garantido essencialmente por escravos, presos de delito comum, criminosos e
prisioneiros de guerra.
Depois de estabelecido o traçado genérico, era chamado o architectus
para a execução do mesmo. Este, por sua vez, convocava o agrimensor e o
nivelador (os topógrafos da época) para eles comandarem, no terreno e no
dia-a-dia da obra, as equipas de trabalho. Era um trabalho árduo, mas
necessário para a expansão do império romano.
As estradas eram como as artérias que levavam o sangue a todo o corpo
do império e faziam chegar ao coração as listas das requisições para suprir
as necessidades locais, as informações e solicitações do mundo conquistado.
Eram os canais por onde circulava a vida...
Assim sendo, se Bato se preparasse bem e, mais tarde, desempenhasse o
seu
papel
com
sabedoria,
os
frutos
do
seu
trabalho,
as
estradas,
permaneceriam ao serviço do desenvolvimento da humanidade por largos anos.
Sempre tinha essa perspectiva em mente.
Agora, estava à beira do final da sua preparação e podia sentir a
proximidade da convocatória do Senado, para lhe ser revelado o local onde
dedicaria os próximos anos da sua vida e trabalho.
Independentemente do local para onde for enviado, irá dar o seu
melhor
para
que
o
Império
Romano
possa
sair
mais
exaltado,
mais
glorificado, mais amado e, porque não, mais forte, mais influente no mundo
habitado.
27.
CAPÍTULO III
Almiiiiiiiiiiiiraaaaa!
O
grito
trespassou
o
ar
da
montanha,
ressoou
pelas
penedias
circundantes da aldeia de Arandosan, saltitando entre as árvores serranas.
Resvalou
nas
paredes
das
habitações
da
povoação
mas
a
filha,
tão
sonoramente convocada, não respondeu nem deu qualquer sinal de presença.
- Por onde andará aquela cabeça no ar?! cogitou, exasperada, Brízida.
Nunca mais aprende a ter juízo, a ocupar o seu lugar e a comportar-se
de acordo com as normas da aldeia.
Esta juventude está perdida. O que será do mundo de amanhã com jovens
assim? - resmungou de si para si.
Agora que está prestes a unir-se com Tolosar, está mais que na hora
de começar a tratar das suas roupas, dos seus cabelos e da sua preparação
para essa feliz data.
No entanto, parece pouco entusiasmada por ter sido a escolhida para
casar com um dos jovens mais importantes da aldeia.
Todas as raparigas daqui dariam um braço para terem sido elas as
escolhidas e, apesar disso, Almira parece dar a ideia de que está infeliz.
Que se passará naquela cabeça dura?
Exasperada, Soltou novamente o brado, forte e mais impaciente. E
resmoneou:
- Deve ter ido para o bosque outra vez. Não sei o que encontra lá de
tão interessante. Estará à espera de se deparar com algum mensageiro de
Arantio ou de Epona, a deusa das viagens e dos cavalos?
Será que tem por lá alguém com quem se vai encontrar? - alvitrou
interiormente -.
Não acredito que ela fosse fazer uma estupidez dessas. Agora que está
prometida?! Não. Tenho a certeza que não é irresponsável a esse ponto. Com
o que lhe ensinei, estou segura que sabe comportar-se de acordo com os
nossos costumes e tradições...
28.
Subindo os decibéis e a tonalidade da voz estridente, voltou a
gritar o nome da filha, cada vez mais desesperada. Em vão!
- Eh vizinha, gritou Alteia, - uma amiga um bocadinho metediça e
bisbilhoteira, mas sempre disposta a ajudar e a partilhar - a sua filha
descampou outra vez?
- Eu penso que foi novamente para o bosque sagrado. É mais teimosa
que os garranos que o pai dela leva nas viagens de negócio. Estou farta de
lhe dizer que se deve concentrar na preparação do casamento e ela faz de
conta...
O raio da rapariga até parece querer contrariar a vontade do pai...
Já nem sei o que mais hei-de fazer. Olhe vizinha, as filhas são uma dor de
cabeça, é o que lhe digo!
- Assim parece, realmente! Se bem que as minhas ainda me não deram
grandes problemas. Mas também ainda são muito novas...
- Exactamente! Deixe-as crescer e depois fale comigo. Vai ver se não
me dá razão...
Almira, a filha mais nova de Brízida e Bertoldo, tem dezassete anos
(já não é assim tão nova...) e está na idade de constituir família. O seu
corpo já o indica.
Adquiriu as formas esculturais que o corpo feminino alcança na
plenitude do desenvolvimento.
O cabelo negro, liso e forte, desce até à cintura e enquadra um rosto
bronzeado que irradia jovialidade.
Os olhos são amendoados e têm uma característica que confunde quem
neles se fixa: o direito é azul e o esquerdo é verde. Muito abertos,
indiciam uma curiosidade fora do normal e uma tremenda vontade de absorver
tudo o que a rodeia, de abarcar o mundo visível e o além.
Possui sobrancelhas finas e pestanas longas. O nariz, direito e com
narinas pouco largas, tem a ponta levemente arrebitada.
As maçãs do rosto são salientes, mas bem enquadradas na face ovalada.
A boca, de lábios carnudos, promete mel ao contacto. Dela sai uma voz
ronronante, quando quer encantar. Quando, porém, quer afirmar-se, ganha uma
robustez de aço temperado subindo uma oitava.
29.
O queixo denota uma vontade forte, um traço comum às mulheres da
aldeia. O pescoço não é muito longo, mas é vigoroso.
Mede cerca de um metro e sessenta, alta segundo os padrões da época.
Os seios firmes retesam a roupa como se quisessem rasgá-la para se
mostrarem. Quando corre, saltam e ela gosta disso. Deleita-se ao senti-los
roçar na áspera roupa de lã e adora a sensação resultante do entumecimento
dos mamilos devido a essa fricção.
Tem uma cintura fina e ancas que prenunciam uma excelente capacidade
de procriação pelo alargamento que sofreram nos últimos tempos.
As pernas são fortes devido às caminhadas e corridas pela serra, que
lhe proporcionaram treino.
A pele, que irradia brilho e juventude devido ao sol que a afaga e ao
ar fresco e rejuvenescedor da serra, que diariamente calcorreia, pede para
ser acariciada.
Possui, enfim, um corpo agradável, forte, saudável e desejável, e uma
vontade ainda mais sólida.
Naquele dia, como tantas outras vezes, tinha ido para o carvalhal,
considerado sagrado pelas gentes do povoado, onde gostava de se retirar
para... digamos... se encontrar consigo própria, fugindo da azáfama diária.
A comunidade local tem aquele espaço como local de adoração do deus
Arantio, embora ela prefira pensar que é o lugar mais adequado para ser
acariciada pelo deus Lug, o deus do brilho, do sol.
Sente-se livre ali. É como se se transformasse noutra pessoa.
Solta os seus pensamentos e faz voar a fantasia. Parece, de facto,
que é Lug quem a leva consigo numa viagem encantadora.
Os problemas e preocupações do quotidiano desvanecem-se.
Sente que sai do seu próprio corpo e entra num mundo novo, um mundo
onde não há regras sociais que a aprisionem, onde não há um chefe de
família que a controla e decide o seu futuro, onde não precisa de concordar
sempre com a mãe sobre a importância de se preparar para casar com Tolosar.
Liberta-se da formatação social a que é sujeita, tal como todas as
suas amigas, desde o início das suas vidas.
Gosta de sentir a brisa a deslizar suavemente sobre a sua face
radiante e a agitar os seus cabelos negros de azeviche, ou a luz do sol, de
30.
Lug, a acariciar-lhe a pele bronzeada.
Deleita-se a ouvir as várias melodias entoadas pelas muitas aves que
construíram os seus ninhos ali ou o suave sussurro das folhas dos carvalhos
sagrados agitadas pela brisa, como se desejassem trocar sensações e
segredos com ela.
Adora o sentimento de serenidade, paz, plenitude e liberdade que
cresce dentro de si.
Esquece a dura realidade que é o seu dia-a-dia de trabalho em torno
da lã produzida pelas ovelhas do rebanho que o seu irmão mais novo,
Ildirsar, pastoreia por aquela serra da Cabreira.
É um trabalho cíclico, que nunca acaba. Ano após ano, após ano.
Depois da tosquia, a lã é lavada e esguedelhada. Essa operação
consiste na desagregação da lã para remover eventuais corpos estranhos que
nela se tenham emaranhado. Em seguida, é cardada.
As cardas servem para reorganizar os pêlos da lã para que possa ser
fiada com mais facilidade, a etapa seguinte do seu ciclo.
Com os fios resultantes da fiação, são confeccionadas as diversas
peças de roupa, desde meias até capas, passando por túnicas, capuzes,
colchas e mantas. A maior parte do vestuário, naquela aldeia, é feito de lã
e peles de animais. No fim deste ciclo, outro recomeça, igual, repetitivo,
gémeo do anterior.
Assim, Almira vai construindo a sua personalidade rebelde, a sua
vontade de ser diferente das outras raparigas, suas amigas. Não se resigna
a ser "mais uma".
As
suas
companheiras
não
têm
outro
sonho
senão
aceitar,
submissamente, o par que lhes for destinado pelos pais e serem boas
procriadoras para poderem dar muitos e saudáveis herdeiros aos seus homens.
Ela, porém, quer mais.
Não lhe basta Tolosar, embora esteja destinado a ser uma figura
importante da aldeia. É o filho mais velho da família mais influente da
região, e o seu pai, Dominico Bescocum, é o chefe do conselho de anciãos. E
esse cargo virá, certamente, para ele.
Mas Almira aspira a conhecer o mundo, aventurar-se em direção ao
desconhecido. Ouve frequentemente o pai e o irmão Iuntibelsar falarem sobre
31.
a cidade de Bracara Augusta e desenvolveu um enorme desejo de a conhecer.
Ela
sabe
que,
se
aceitar
pacificamente
o
papel
de
esposa,
dificilmente terá a oportunidade de ir além dos arredores de Arandosan.
Nunca conseguirá conhecer novas terras e novas pessoas. Tolosar não é
dado a grandes aventuras. Prefere ficar na aldeia a tratar dos negócios da
família e a preparar-se para, mais tarde, assumir o cargo de chefe do
conselho de anciãos.
Almira ouviu falar da nova via que começa em Bracara Augusta e se
dirige a Asturica, passando por Aquae Flaviae.
São terras e nomes que desconhece por completo, nem sabia que
existiam até ouvir o pai e o irmão comentarem isso com Tolosar.
Agora, porém, que essa via está em construção e com a expectativa de
que passe perto da povoação, é certo e sabido que será mais fácil e rápido
chegar à cidade mais importante da região.
Isso, entre outras coisas, contribui para a falta de pressa de Almira
em unir-se a Tolosar. Mas sabe que não poderá adiar esse acontecimento por
muito mais tempo.
O pai Bertoldo e o irmão Iuntibelsar dedicam-se ao fabrico de carvão,
feito essencialmente a partir dos troncos e raízes das urzes tão abundantes
na serra e que, depois, é levado para as aldeias vizinhas e até Bracara
Augusta.
Também
negoceiam
peles
curtidas
e
peças
de
roupa,
tanto
as
confeccionadas por Brízida e Almira com a lã que as suas ovelhas produzem,
como outras que adquirem às restantes famílias de Arandosan.
Têm um bom
nível de vida, ainda que seja uma existência muito
trabalhosa, cansativa e exigente.
Com
a
nova
via,
os
dois
comerciantes
esperam
que
os
negócios
floresçam como jardim na primavera, uma vez que os clientes serão mais
abundantes e endinheirados e as viagens mais rápidas e seguras.
Bertoldo até já fala em construir um novo tear na sua casa. Para
isso,
será
necessário
anexar
mais
uma
dependência.
Se
os
negócios
continuarem a desenvolver-se e dispararem quando a nova via chegar, isso
não será um
problema.
Aliás, será muito bom para a povoação pois todos terão que produzir
32.
muito mais mercadoria para ele levar em cima dos seus garranos. Até o
número de animais terá de crescer para conseguir dar saída às solicitações
dos novos clientes.
Arandosan é uma aldeia composta por cerca de trinta casas, mas com
espaço para se expandir. Em breve, Almira e Tolosar necessitarão da sua
própria moradia.
Esta, tal como a maioria das casas do local, será redonda, com um
diâmetro aproximado de três varas - o que equivale a doze pés romanos, ou
cerca de 355 cm.
As paredes serão em pedra, enquanto a cobertura se fará de giestas e
terra, materiais profusos naquela serra.
Almira
terá
o
seu
próprio
tear
e
cuidará
de
assegurar
bons
descendentes ao futuro chefe do conselho. Este, por sua vez, terá o seu
próprio rebanho que, tal como todos os demais naquela região, percorrerá
diariamente a serra rica em pastagem. Será uma boa fonte de alimento,
agasalho e rendimento.
Tolosar poderá, até, associar-se ao negócio do futuro sogro. A nova
via romana trará muito mais possibilidades de comércio e Bertoldo já lhe
lançou o desafio por várias vezes.
- Junta-te a nós, homem! - disse ele entusiasmado e de sorriso aberto
e excitado.
Terás a oportunidade de conhecer novas realidades, novas pessoas,
outras formas de estar na vida. Como futuro chefe do conselho, deves
alargar essa visão acanhada que tens do mundo.
Os romanos trazem outras perspectivas, outros conhecimentos, outro
nível de vida e, com a nova via, vais ver que será mais fácil para todos os
habitantes de Arandosan.
- Mas, ouvi dizer que essa via vai passar longe daqui. A quantas
milhas vai passar? Para o seu negócio era bem melhor que ela viesse por
este lado...
- Veremos. Ela ainda não está construída, pois não? Teremos que
mostrar esta região ao curator viarum.
Da última vez que fui até ao castro de Lanausius, tentei chegar à
fala com ele, mas disseram-me que não estava. Tinha regressado a Bracara
33.
Augusta. Contaram-me que vai ser substituído - disse Bertoldo baixando o
tom de voz.
Correm uns rumores de que se estaria a aproveitar demasiado da sua
posição e, ao que parece, os seu negócio principal deixou de se centrar na
via em construção.
Acercando-se mais do futuro genro, segredou:
- Dizem que o seu salário era substancialmente aumentado com outras
actividades pouco recomendadas. Alguns até acreditam que estaria a ser bem
pago para ajustar o traçado da via em função do número de denários proposto
por algum habitante ou população mais abastados.
Quem sabe se o próximo responsável não terá uma visão diferente da
sua função e do traçado percurso...
Retomando o tom normal de voz, acrescentou:
-
Começaram a planear, ali em Lanausius, a construção duma torre no
monte Pilaricus. Por isso, ainda vai demorar algum tempo até prosseguirem
com a construção da via. Só não sei muito bem é como conseguirão levar
tanta
pedra
para
aquela
elevação!
Mas
os
romanos
são
muito
bons
engenheiros. Não há dúvida quanto a isso.
Veremos o que diz o novo curator viarum.
Entretanto, nessa altura já estarás a viver com a Almira e seremos
uma família. Poderás, então, vir connosco e veremos o que ele pensa...
Tolosar
franziu
a
testa,
parecendo
desconfortável
com
essa
perspectiva.
-Eu não sou talhado para o comércio. A minha paixão é a terra e os
animais. As ovelhas é que me dão alimento e agasalho.
Não tenho paciência nem cabeça - enfatizava Tolosar gesticulando
energicamente - para discutir preços e qualidade dos produtos. Quantos
tigara custa isso? Quantos ildicira vale aquela peça? Quantos sestércios
quer por esse borrego? Quantos asses por esse pote de mel? Esse carvão está
verde. Este está queimado demais! Essa peça de roupa é feita de lã de
terceira qualidade - acrescentou, macaqueando um comprador renitente em se
desfazer das suas parcas moedas.
Eu não sou feito - disse ainda - para esse tipo de actividade. Se
ouvisse alguém a dizer mal dos produtos que eu levava para vender, armava
34.
logo confusão!
Até para tratar das transacções dos nossos animais é o meu pai que se
encarrega de tudo.
- Olha que é uma vida muito mais atractiva porque conheces outras
gentes, outras ideias, outros idiomas, outras formas de encarar a vida em
sociedade e aprendes sempre mais. Irias ficar com mais bagagem para poderes
dirigir, com competência, o conselho.
- Havemos de pensar nisso quando a ocasião chegar, mas competência
não me há-de faltar certamente. O meu pai tem muito para me ensinar e eu
quero aprender com ele tudo o que puder. E, já agora, com o meu futuro
sogro.
Nós, os mais novos, temos o percurso facilitado quando outros já
desbravaram o caminho que devemos percorrer. É sempre uma benção aproveitar
o conhecimento dos nossos antecessores.
- Tudo isso é bem verdade. De qualquer maneira, não ponhas a ideia
completamente de lado. Vou precisar de mais gente e de mais animais para
poder satisfazer as encomendas
dos novos clientes...
- Cada coisa a seu tempo. A verdade é que o dia de amanhã é sempre
uma incógnita... Quem pode garantir que o seu negócio vai florir? Pode
aparecer outro negociante qualquer com outro tipo de ofertas e arrebanharlhe os clientes...
- Não te convenças disso, - atalhou Bertoldo em tom conciliador -. A
roupa, a comida e o combustível para as lareiras sempre hão-de fazer falta.
E as oportunidades devem agarrar-se quando aparecem e antes dos outros. O
outro só vai aproveitar a oportunidade que tu deixares escapar.
E
no
que
toca
aos
produtos
que
nós
comercializamos,
o
mais
importante, para além da qualidade, é que eles cheguem rapidamente às
pessoas.
Para isso, nada melhor que uma boa via de comunicação e boas carroças
aparelhadas com animais fiáveis.
Os nossos garranos nunca nos deixaram ficar mal. E olha que eu já
ando nisto há muitos anos.
Desde muito pequeno acompanhava o meu pai nessa labuta e os garranos
sempre foram confiáveis fosse qual fosse o terreno, o clima, a distância ou
35.
a carga. Corajosos, ágeis, fortes, intrépidos, seguros. Companheiros de
jornada e verdadeiramente parte da equipa.
São uns animais extraordinários. Além de serem animais de tiro também
têm aptidão para sela como muito bem sabes. Queres melhor companheiro de
trabalho?!
-
Quanto
aos
garranos,
tem
toda
a
razão:
são
uns
animais
extraordinários.
Apesar disso, não creio que o meu futuro passe pela venda ambulante
seja de que produto for. Prefiro a pastorícia e o cuidado com as minhas
gentes. Não gosto muito de deixar a minha região para me aventurar no
desconhecido.
- Já sei que não és muito aventureiro, mas também não precisas de o
ser. Irás sempre na nossa companhia e, por isso, sempre terás bom ponto de
apoio para enfrentares esse desconhecido que tanto temes. Vais ver que será
uma forma muito mais segura de cuidares das tuas gentes.
Devemos descobrir novas ferramentas para podermos melhorar a nossa
vida e a de quem está à nossa volta. Se usarmos sempre as mesmas fórmulas,
o resultado será sempre muito parecido. Não és tu que dizes querer cuidar
dos teus? Então, quantas mais ferramentas e estratégias conseguires, mais
fácil, proficiente e proficuamente atingirás os teus objectivos.
Quando a ocasião se proporcionar, analisaremos melhor a tua postura.
Verás que o teu pai irá concordar que vai ser bom para ti esse encontro com
novas realidades.
Mas, agora vou com o Iuntibelsar preparar mais umas furnas. Está-se a
acabar a nossa reserva de carvão e tenho mais algumas encomendas.
- Esse vosso trabalho é muito duro, não é verdade?
- Muito, mesmo. As pessoas queixam-se de que o carvão está muito
caro, mas não fazem ideia das voltas que é necessário efectuar e quanto
tempo tem que se gastar até lhes poder entregar à porta um produto de
qualidade.
- Em toda a minha vida nunca vi como fazem o carvão.
Como é que se chega a esse produto final?
- Uma vez que estás interessado em saber, vou-te contar.
Primeiro temos que escolher o tipo de madeira a utilizar. Nós
36.
costumamos usar maioritariamente os troncos e as raízes da urze.
Fica um carvão especial. Atinge temperaturas mais altas e dura muito
mais na lareira. Os ferreiros adoram-no.
Evidentemente que também usamos o carvalho. E sai, igualmente, um
produto de alta qualidade.
- Para juntar a quantidade de urzes necessárias para produzir tanto
carvão como eu tenho visto a ser transportado por vós, diz Tolosar
gesticulando, não devem fazer outra coisa a não ser percorrer a serra em
busca delas. Como é que conseguem?
- Contratamos alguns lenhadores, claro. Assim, tanto servem para
cortar os carvalhos como para juntar as urzes.
- Bem me queria parecer que só vós os dois não tinhas hipótese...
- Isso é certo. Depois de a madeira estar cortada, temos que a deixar
secar. Caso contrário o fogo apaga-se antes de o carvão estar no ponto.
- E quanto tempo é que isso demora?
- Isso depende do clima. Se o tempo estiver seco e ensolarado, é
muito mais rápido. Caso contrário, temos que esperar que o sol faça o seu
trabalho.
- Claro. Foi uma pergunta desnecessária.
- Não, não foi. Isso demonstra que queres aprender e isso é muito
bom.
- E depois? O que se segue?
- Depois de a lenha estar seca, tem que se preparar a furna.
- A furna?
- Sim. A furna. A lenha, bem ordenada, é empilhada numa forma
cónica...
- E, interrompeu Tolosar, que medidas tem essa pilha de lenha?
- Depende da quantidade de lenha que conseguimos preparar, claro.
Mas, normalmente tem cerca de 10 pés de altura por 3 passi de diâmetro. No
entanto, como te disse, depende da quantidade de lenha que conseguimos ter
pronta para queimar.
- Isso é muita lenha!
- Pois é, efectivamente. Mas, como o carvão não aparece feito, alguém
37.
tem que se dar ao trabalho de o preparar, não é verdade?
- Ah claro que sim. E, sem trabalho não há rendimento.
- Ora nem mais. Depois de termos a lenha empilhada, é necessário
abafá-la para que ela não se consuma e fique reduzida a cinzas.
Para isso usamos folhas e terra para cobrir a pilha. Tem que deixar
uma abertura na base para atear o fogo e outra no cimo para controlar a
queima. Dos lados também tens que deixar algumas aberturas para poderes
inspeccionar e acelerar ou travar a velocidade da queima.
Essa é a tarefa crucial, aquela que põe à prova a perícia do artista.
Dela depende a boa ou má qualidade do carvão.
A
combustão
demora
o
seu
tempo
e
é
necessário
vigiá-la
constantemente. Quatro ou cinco vezes por dia durante, aproximadamente, dez
dias ao fim dos quais se fecham todas as aberturas para que o carvão se
acabe de formar.
- É uma trabalheira enorme. Agora percebo que ninguém se pode queixar
do preço do carvão. As pessoas muitas vezes falam por ignorância.
- Aí é que está. Mas isto ainda não acabou porque, depois, é
necessário esperar ainda mais quatro ou cinco dias para que o carvão
arrefeça e possa ser levado para o armazém onde o guardamos. Só então está
pronto para ser transportado para a casa dos nossos clientes.
- Não fazia a mínima ideia do trabalho que dá o fabrico do carvão.
- Já ficaste mais sábio, vês?
- É como eu costumo dizer: devemos aprender com quem sabe.
- Bem, agora sim tenho que me ir embora. Vai pensando no que te
disse. Pede a opinião do teu pai. Até logo.
Até logo. Bom trabalho e obrigado pelos ensinamentos.
Bertoldo lançou um último olhar acolhedor a Tolosar antes de se
afastar, um olhar que continha, simultaneamente, desafio e compreensão.
Ainda pensativo, Tolosar observou o futuro sogro a distanciar-se com
um andar resoluto.
A ideia de cruzar as rotas do comércio era tão assustadora quanto
atraente. Sentia-se dividido entre a vontade de se desafiar a si mesmo e a
38.
tentação de permanecer na sua zona de conforto. Mas Bertoldo tinha razão:
como poderia cuidar do seu povo se a sua visão do mundo se limitasse à
aldeia natal?
"Vou pensar sobre isso e discuti-lo com o meu pai", murmurou Tolosar
para si mesmo, prometendo a si próprio que o faria. Levantou o olhar para a
montanha que o rodeava deixando-o vaguear pelo imenso arvoredo.
39.
CAPÍTULO IV
Ao
chegar
à
cidade,
fui
directo
ao
Laboratório
de
Anatomia
e
Patologia Forense de Braga. O meu amigo, como de costume, estaria no seu
gabinete às voltas com mais ensaios acabados de publicar, a estudar novas
técnicas ou a experimentar máquinas recém-adquiridas.
Se não fosse esse o caso, então é porque estava num dos diversos
laboratórios a orientar mais um ensaio, uma pesquisa, uma análise, um
trabalho. Aquele é o mundo dele.
O segurança, conhecendo a minha longa amizade com Rolando, permitiume a entrada.
- Então lá conseguiram descortinar mais um penalti manhoso, não? disse ele com um sorriso amistoso enquanto me dava um forte aperto de mão.
Continuámos
a
trocar
breves
opiniões
sobre
clubísticas e depois apontou para o tecto. Eqato
futebol
e
divergências
acrescentou:
- Pode subir que o senhor director está lá.
Agradeci ao Celestino a informação e avancei pelo átrio com o coração
a bater entusiasticamente em antecipação do que esperava vir a ser um
fascinante serão a explorar a vida de um ser humano que viveu há dois mil
anos.
O elevador chamado pelo segurança, levou-me até ao 4.º andar onde
Rolado tia o se
Bati e, autorizado a entrar, abri a porta do gabinete encontrando o
meu amigo a folhear um dossier pouco espesso.
Virou-se para mim e, levantando-se para aceitar e retribuir o meu
fraterno abraço, mostrou-se particularmente caloroso.
- Que bom que vieste! Parece que adivinhaste que já tinha novidades
para ti. Recebi, há muito pouco tempo, este dossier com os resultados
preliminares.
novidades.
Como
podes
ver,
estava
agora
mesmo
a
inteirar-me
das
40.
- Então conta lá!
- Claro que sim. Mas, antes disso, diz-me: tens mais descobertas?
Quando nos despedimos da última vez, fiquei com a impressão de que estavas
ansioso para voltar à gruta...
É que, se tiveres encontrado mais alguma coisa, isso vai dar-nos mais
argumentos para as nossas hipóteses de estudo.
-
Infelizmente,
nem
a
mais
pequena
sombra
de
um
achado.
Que
desilusão! Bem que me esforcei e cavei! Nada! Nem a ponta de um chavelho!
Olha, pelo menos comi uma boa merenda. E que bem que me soube! Aquele
chouriço de porco bísaro, é de comer e chorar por mais. Era igual àqueles
que te trouxe no mês passado. Já os provaste?
- Já os provei?!! Onde vão eles! Que delícia, pá! Caí na asneira de
chamar o meu amigo Eduardo para lhos dar a provar e ficámos os dois a
lamber os dedos...
- Um dia destes trago-te mais. Ainda restam por lá alguns.
- Eh pá, não se pode abusar muito dessa alimentação. Mas, claro que
agradeço. Tens uma mão especial para o fabrico dessas iguarias.
- Já são muitos anos. E não deves esquecer que os animais são criados
e alimentados por mim. Sei bem aquilo que devem comer para que a carne
fique tenra e saborosa.
- Não há dúvida! Para tudo é necessário conhecimento.
- Já agora, por falar em conhecimento e antes de irmos às novidades,
gostava de te contar uma coisa...
- Sou todo ouvidos. Diz lá! acrescentou o meu amigo, encostando-se à
secretária cheia de pastas e cruzando os pés.
- Como deves calcular, eu estava ansioso por saber se já terias
alguma novidade para mim.
Saí de casa tão entusiasmado com a ânsia de saber o que terias para
me dizer que nem me dei conta de passar o caminho. É incrível como consegui
chegar aqui.
Não me lembro de um único facto com que me tenha deparado durante a
viagem. Nem sei como não tive um acidente. Quando cheguei ali fora ao
parque, fiquei abismado por já ter chegado.
41.
Por onde tinha passado? Com quem me tinha cruzado? Não me lembro de
um único facto ou ocorrência ao longo da viagem até aqui... Como é
possível?!
-
Foi
o
teu
não
consciente
que
te
orientou
e
guiou
o
teu
comportamento para que chegasses aqui em segurança.
- Espera aí. Foi o meu quê?!
- O teu não consciente ou inconsciente, como se lhe costuma chamar.
Foste orientado pela parte do teu cérebro que catalogou e armazenou as
competências necessárias para conduzir.
Assim, não precisaste de analisar e avaliar conscientemente cada um
dos pormenores inerentes à condução, de qual o caminho a seguir, quais os
gestos necessários e os momentos adequados para engrenar as mudanças,
travar, acelerar, contornar os obstáculos,
etc.
- Então, quer dizer que não fui eu a conduzir?
- Claro que foste tu! Só não chamaste esse facto à consciência.
- Eh pá, explica-me lá isso da consciência...
O meu amigo lançou-me um olhar admirado, levantou a mão e afirmou,
com um sorriso meio incrédulo:
- Não estás à espera que te explique em cinco minutos aquilo que ando
a estudar há mais de quinze anos, ou estás?
- Olha, bem gostava que o fizesses, já que te interessas tanto pelo
assunto...
- Pois... o problema é que, mesmo que o quisesse fazer, não ia
conseguir. É um tema demasiado vasto para o poder resumir dessa forma.
Era como aquela história de santo Agostinho e da água do mar.
- Não conheço essa história.
- Um dia destes conto-ta.
- Ok. Fico à espera.
- No entanto, já que pediste para te explicar, vou deixar-te este
cartão, que ia guardar ali no meu arquivo, com uma frase de um autor
catalão.
Quando tiveres algum tempo disponível, olha para ela com olhos de
ver. Até te posso emprestar o livro de onde a tirei se quiseres. É bem
42.
interessante e de leitura razoavelmente fácil.
Entregou-me um cartão manuscrito que parecia de anotação recente e
que tinha a seguinte inscrição:
[A consciência pode ser descrita] "como uma narração continuada da
experiência vivida, uma espécie de corrente de narração contínua que
constitui o fluir da vida.(p. 48)"
No verso dizia: "Guillem Feixas i Viaplana - PERSONALIDADE, Significados
pessoais e sentido de identidade"
Fiquei de olhar vidrado no cartão sem verdadeiramente o ver e comecei
a divagar. Mas, Rolando chamou-me à realidade continuando:
- Numa outra ocasião, depois de teres assimilado essa frase e lido o
livro, se assim o entenderes, poderemos falar mais sobre esse assunto.
Há ideias de dois ou três autores que gostaria de partilhar contigo.
Assim de repente, lembro-me de António Damásio, Philip Goff e Oliver Sacks.
Parece-te bem?
- Parece-me muito bem. Claro que sim.
Certamente que agora não era a ocasião para a tal reflexão e
por isso agradeci ao meu amigo, guardei o cartão e acrescentei:
- Estou a ver que terei um longo caminho de reflexão para
conseguir entender isto. Mas agora, vamos então às novidades?
- Claro. Eu ia-te contar. Tu é que vieste com essa história da viagem
não consciente. O que até nem é nada desinteressante...
Um
dia
que
estejas
menos
ansioso
para
saber
novidades
paleontológicas, teremos que falar sobre o tema da consciência. Mas, vamos
lá às novidades extraídas dos teus ossos...
- 'Meus', não!...
- Pois. Os que me trouxeste. Como te disse ao telefone, os estudos
preliminares demonstraram que se trata de ossos do século I da nossa era.
Portanto, são do tempo da ocupação romana.
Entretanto, conseguimos comprovar que se trata de elementos de um
esqueleto feminino. Já é uma pista.
43.
O que me admira é o estado de conservação do maxilar. É como se
tivesse estado numa gruta de um deserto árido.
Intriga-me
que,
em
plena
serra
da
Cabreira,
um
osso
se
tenha
conservado durante dois mil anos sem que os elementos da natureza o tenham
deteriorado totalmente. Conta-me lá, outra vez, onde o achaste...
- Bem, como te disse, depois da trovoada ter varrido, encontrei-o,
meio enterrado, à saída da gruta. A terra que o cobria parecia ter sido
espalhada, sem pressão alguma. Arrastada pela corrente, tinha-se acumulado
sobre ele.
- O que significa que não podia estar ali há muito tempo...
- Exacto! Se calhar tinha sido deslocado numa das trovoadas da semana
anterior. Lembro-me que houve uma, na quinta-feira se não me engano, que
foi duma violência medonha!
Parecia que as paredes da casa estavam a ser abaladas por um tremor
de terra, tal era a fúria dos trovões.
A trovoada tinha andado ali bem perto! Mal se via o relâmpago,
ribombava o trovão...
As paredes estremeciam tanto! Cheguei a temer que algum vidro das
janelas se partisse com a trepidação.
Vi cair uns quantos raios lá para os lados do Talefe. Algum se meteu
à terra e fez de lá saltar o osso...
- Não me parece. Aquele osso não podia estar enterrado. Se estivesse,
já teria desaparecido há muito. Tem que haver outra explicação qualquer...
- Qual?
- Isso já seria adivinhar e, como sabes, não tenho essa capacidade...
- Será que passou por ali alguém e, sem se aperceber, o deixou cair?
- Eh pá, disse o meu amigo encolhendo os ombros e fazendo um trejeito
com a boca, seria muito estranho. Alguém andar por ali com um osso tão
antigo no bolso?
- É alguma relíquia de algum santo...
- Hmmm... vamos aguardar para ver se estudos mais aprofundados nos
contam mais alguma coisa. Ainda falta algum trabalho...
E a conversa prolongou-se, com o meu amigo a explicar-me como se faz
44.
uma avaliação deste tipo de achados no âmbito das diversas disciplinas que
são chamadas à colação para a sua análise.
Pouco tempo depois, pelo menos era o que eu pensava, olhei para o
relógio e fiquei abismado ao ver como os ponteiros do relógio tinham voado
pelo mostrador. Só podia estar avariado!
Não
era
possível
que
tivesse
decorrido
tanto
tempo
sem
eu
me
aperceber.
Coisa estranha, o tempo. Às vezes parece que se arrasta a passo de
caracol, outras vezes dá a sensação que acelera em velocidade supersónica.
Comentei esse facto com o meu amigo e ele retorquiu-me que a nossa
percepção do tempo é que faz a diferença.
Porém, acrescentou de imediato, este não é o momento para falar do
tempo. Vamos deixar essa conversa para uma outra ocasião. Tenho que passar
pelo laboratório da Rua Simão dos Santos e já estou um pouco atrasado.
Vais ter que me desculpar, mas estão à minha espera para instalar uma
nova impressora 3D que usará filamentos provenientes da reciclagem de
cápsulas de café e estou ansioso para a ver funcionar.
Fiquei,
mais
uma
vez,
embasbacado
com
as
diversas
áreas
de
conhecimento e acção do meu amigo. Ele sabe mesmo muito...
Despedimo-nos com um forte abraço e retomei o caminho para casa com
um turbilhão de ideias revoluteando na cabeça.
A memória que tenho daquela despedida está imersa numa nebulosa
bastante confusa.
Nem tenho bem a certeza de me ter despedido convenientemente do
Celestino.
Lembro-me, vagamente, de ter relanceado o olhar pelo monte
Espinho e
ali ter fixado brevemente o Mosteiro de Bom Jesus do Monte bem como, no
monte Sameiro, a Basílica de Nossa Senhora do Sameiro. Mas apenas porque
são locais que visito com frequência e onde levo vários dos meus amigos
para que possam apreciar as vistosas paisagens que dali se enxergam.
Do que me recordo com alguma clareza, sim, é da pergunta recorrente:
de
onde teria surgido aquele osso? Eu estava a gostar da ideia de poder
ser uma relíquia de algum santo. Já imaginava as parangonas...
45.
CAPÍTULO V
Cúria Júlia - Senado
Wikipédia - Senado Romano
Como viajavam os romanos
Legiao VI Victrix, a legião estabelecida na Gallaecia no final do séc. I a.C.
Map of Roman Roads (Pedro Soutinho)
ORBIS - cálculo de viagens na Roma Antiga:
Forte Aquis Querquennis
Bato passava algum tempo com a família em Pompeia, depois de ter
terminado os seus estudos em Roma quando foi convocado para se dirigir ao
senado em Roma. O emissário entregou-lhe uma convocatória com o selo do
imperador o que pressionou mais a partida de Bato. No dia seguinte, ainda
de madrugada, Bato tomou a via Apia
Na época do início da construção da Via Romana XVII, um dos nomes
proeminentes associados ao legado romano que actuava em nome do imperador
Augusto era Quintus Maximus Aelius. Este destacado oficial romano foi
nomeado para supervisionar e coordenar a execução do projecto de construção
da estrada entre Braccara Augusta, Acquae Flaviae e Asturica. Sob a
liderança de Quintus Maximus Aelius, a Via Romana XVII começou a tomar
forma, tornando-se uma realização notável do império romano na região.
Não há registros históricos específicos que mencionem o nome do Legado
Imperial Propretor responsável pelo Conventus Bracarensis no século I d.C.
Portanto, não temos informações concretas sobre sua identidade. No entanto,
podemos criar um nome fictício para esse legado, caso seja adequado para o
contexto histórico. Vamos chamá-lo de Marcus Aemilius Valerianus. Lembre-se
de que esse nome fictício não corresponde a nenhum indivíduo real, mas pode
46.
ser usado para fins de ficção ou contexto histórico especulativo.
Presumo que o curator viarum tivesse, muitas vezes, que "ir a despacho" junto
do legado do imperador. Ou não?
ChatGPT
Sim, é provável que o curator viarum, responsável pela construção e
manutenção das estradas romanas, precisasse ocasionalmente se reportar e
prestar contas ao Legado do Imperador ou a outros funcionários de alto
escalão. O Legado Imperial Propretor era responsável pela administração e
supervisão geral de uma determinada região, incluindo questões relacionadas à
infraestrutura e à construção de estradas. O curator viarum, por sua vez,
desempenhava um papel específico na construção e manutenção das estradas
dentro dessa região. Portanto, em certas ocasiões, o curator viarum poderia ter
a necessidade de se encontrar com o Legado ou outros funcionários relevantes
para discutir questões relacionadas às estradas e às atividades de construção.
Como estaria organizada a secção onde o curator viarum teria que se deslocar
para entregar relatórios sobre o andamento da construção e obter as
autorizações e instruções necessárias para poder desempenhar o seu papel?
ChatGPT
A organização da seção onde o curator viarum se deslocaria para entregar
relatórios e obter autorizações e instruções necessárias para desempenhar seu
papel pode variar, dependendo da estrutura administrativa e das práticas da
época. No entanto, é possível que existisse um local designado para esse fim
dentro do assentamento administrativo ou da residência do Legado Imperial.
Esse local poderia ser uma sala de audiências ou um escritório, onde o curator
viarum se encontraria com o Legado ou outros funcionários responsáveis. O
espaço seria organizado de maneira apropriada para a realização de reuniões e
discussões, com mesas, assentos e possivelmente alguns registros ou
documentos importantes.
Além disso, é provável que houvesse uma hierarquia clara e um processo formal
para a entrega dos relatórios. O curator viarum apresentaria seu relatório ao
oficial responsável, discutiria o progresso da construção das estradas, questões
pendentes e possíveis necessidades de recursos adicionais. Nessa interação, ele
receberia as autorizações, instruções e diretrizes necessárias para continuar seu
trabalho.
É importante lembrar que a organização exata desses espaços e processos pode
variar de acordo com o contexto específico do Conventus Bracarensis e as
práticas administrativas da época. Portanto, é recomendado que você faça uma
pesquisa mais aprofundada sobre a estrutura administrativa romana e as
47.
práticas da época para obter uma representação mais precisa em seu livro.
48.
CAPÍTULO VI
49.
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
O tempo, diz-me ele, é percebido por cada um de nós de forma
diferente. A vivência pessoal do tempo está dependente de vários factores.
Por exemplo, uma criança de seis anos tem uma noção de tempo completamente
diferente da de uma pessoa de sessenta. É o que se chama a referência
histórica do tempo. A criança só viveu pouco mais de 2190 dias, ao passo
que o adulto já vivenciou mais de 21900. Um dia, na percepção da criança,
representa uma parte muito mais longa da sua vida do que na do adulto.
Como diz Oliver Sacks no seu livro "O rio da Consciência": "[...] os
anos passam a correr, à medida que envelhecemos - seja porque quando somos
jovens os nossos dias estão repletos de impressões novas, empolgantes, seja
porque à medida que envelhecemos um ano se converte numa fracção cada vez
mais pequena da nossa vida."
Fiquei meio baralhado com essa questão, mas achei que era bem capaz
de ser assim mesmo. É a pessoas mais idosas que ouvimos com mais frequência
afirmar que o tempo passa a voar...
- Para além disso, continuou Rolando sem me dar tréguas, a condição
de vida influencia o modo como percepcionamos o tempo. Para uma pessoa que
tenha uma vida muito activa, cheia de alterações, com contactos variados
com outras pessoas, com outras culturas, em que a sua condição sofreu
alterações várias, que visitou outras regiões, o tempo volatilizou-se. Ao
invés, para uma que não tenha usufruído dessas diversificações, o tempo
arrastou-se cansativamente lento.
Mas, repara que demora muito mais a relembrar esse tempo mais activo,
porque há mais para recordar e o tempo é memória. Se perdemos a memória, a
capacidade de recordar, deixamos de ter consciência do tempo.
Deves ainda ter presente que a consciência tem dois eixos: o vertical
e o horizontal
50.
O eixo vertical é o que qualifica a consciência entre o nível de
vigília total e o estado de coma. Ao longo dos nossos dias, vamos-nos
posicionado ao longo desse eixo vertical.
O eixo ou plano horizontal é o que enquadra o nosso campo de atenção:
eu posso alargar a minha atenção a muitas coisas em simultâneo ou estreitar
o campo de atenção a um apertado túnel focalizado.
Não me atrevi a interrompê-lo porque achei que o seu raciocínio iria
lançar alguma luz sobre a minha questão da viagem varrida da memória.
- O que é que tu fizeste, enquanto vinhas para cá?
Preparava-me
para
lhe
dar
uma
explicação,
mas
a
pergunta
era
meramente retóricam uma vez que Rolando deu imediatamente a resposta.
- Vinhas, penso eu, a fantasiar sobre o que eu teria para te contar.
Estavas focado num tema que preenchia a tua atenção e, por isso, todas as
alterações que ocorriam à tua volta não eram guardadas na tua memória de
trabalho. Eventualmente haverá um ou outro facto que poderias chamar à
consciência, mas apenas se o mesmo tivesse tido alguma relevância para ti.
O que aconteceu aqui, enquanto eu te explicava os procedimentos do
estudo dos ossos que me trouxeste, foi a mesma coisa: A tua consciência
horizontal estava de tal modo estreitada que nada mais consciencializavas e
por isso te pareceu que o tempo voou.
No entanto, em termos físicos, a
sequência temporal manteve a mesma relação de sempre com a velocidade da
luz...
Provavelmente nem te apercebeste que o Celestino veio entregar um
dossier que deixou ali na mesa à entrada do gabinete.
- O Celestino? Não me apercebi de nada...
- Aí está! Consciência em túnel...
CAPÍTULO X
51.
CAPÍTULO XI
52.
CAPÍTULO XII
Almira pressentiu que o tempo de gestação estava a chegar ao fim uma
vez que sentira as primeiras contracções. Esporádicas, mas reais. Esperava
ardentemente a chegada de Bato para poder gozar, novamente, da sua presença
na tenda. Queria tê-lo junto a si quando o filho de ambos decidisse sair
para
a luz do dia. Ela compreendia que, na ausência do seu amado, ficava
mais protegida dentro da tenda, com o escravo Otos na tenda adjacente à
sua. Ali ninguém a procuraria pois apenas Otos entrava na tenda para lhe
trazer a comida e a água de que necessitava. Durante o resto do tempo tinha
apenas a companhia do seu rebento, mantendo-se longe de olhares curiosos e
protegida de alguma eventual investida dos seus familiares desejosos de
vingança.
Mas, ainda assim, não entendia o que se passava. Há dois dias que
Bato deveria ter regressado da sua viagem e não aparecia nem tinha enviado
qualquer mensageiro.
Sabia
que
não
tinha
sido
abandonada,
mas
estava
ansiosa
para
partilhar com ele os sentimentos de felicidade que a preenchiam. Gostaria
de lhe poder mostrar o sítio onde o seu filho tinha dado o pontapé mais
forte, as deformações do seu ventre provocadas pelos movimentos do seu
pequenino, o tamanho da sua barriga, os seus peitos avolumados.
Teria que ter paciência pois, mal tivesse um intervalo, ele correria
para junto dela. A família dela rejeitou-a, mas Bato acolheu-a, fazendo-a
sentir-se preenchida e querida, adorada mesmo. Porém, a hora aproximava-se
e ela estava sozinha. Como conseguiria fazer sair o filho do seu ventre,
sem qualquer experiência ou conhecimento do que deveria fazer? Tinha visto
muitos cordeiros a nascer, mas seria a mesma coisa? Como poderia saber?
Por outro lado, as parteiras da aldeia não lhe mereciam qualquer
confiança. Estariam ao serviço de Tolosar e de Bertoldo e seriam um risco
enorme para o seu filho. Também não conhecia nenhuma no acampamento.
Otos, normalmente, estava ali por perto mas quando, como agora, tinha
de ir à zona das cozinhas para trazer a comida para eles, sentia-se mais
53.
angustiada.
Ontem tinha arriscado muito ao procurar os trabalhadores da via, mas
desejava ardentemente saber notícias de Bato.
Evitara os trabalhadores da aldeia que colaboravam na construção da
via
e procurara os legionários. Manteve-se escondida atrás de umas
giestas, à espera que algum passasse. Ao avistar Sabinus Gratidia, dirigiuse a ele:
- Sabinus! Sabinus! "Bato kah?" perguntou, empregando um termo celta
que ainda persistia no vocabulário daquelas gentes. Bato kah?
- Quê?! Que dizes? Batoká? Que é isso?
- Bato kah? Preciso de falar com ele. Kah? Bato?
- Olha, o Bato foi a Bracara e ainda não voltou. Não sei o que
queres, mas não devias andar por aqui. Se os da tua família te apanham,
estás frita. Volta para a tenda. Vai, antes que te encontrem.
- Quando volta?
- Volta quando puder. Vai lá para o teu refúgio, vai.
Ainda mais apreensiva, regressou ao seu abrigo, decidida a questionar
o escravo quando este lhe levasse a próxima refeição. Tinha que fazer
chegar a Bato a mensagem da premência da situação. Se ele soubesse que o
filho estava para nascer, voaria para junto dela. Sabia que ele não a
abandonaria nunca!
Bato, por seu lado, há alguns dias que sentia o seu coração em
desassossego
pois
não
parava
de
pensar
em
Almira.
Estaria
bem?
Não
compreendia o porquê desta inquietação! Que se passava consigo? O que
estaria
a
acontecer?
Seria
a
preocupação
com
o
nascimento
que
se
avizinhava? Ainda faltaria muito para o seu filho nascer? Tinha que se
apressar a voltar para junto de Almira. Queria estar perto dela quando o
seu descendente visse a luz do dia. Não poderia abandoná-la nessa hora de
alegre sofrimento. Ela era a sua estrela polar.
Não se cansava de agradecer aos deuses o facto de a ter encontrado,
pese embora as dificuldades e tristezas que tiveram que suportar. Porque é
que a família dela tinha de ser tão dura ao ponto de a ter ameaçado de
morte? Ela tinha desobedecido ao pai na escolha do seu esposo, mas isso
seria tão grave ao ponto de merecer a pena capital? Não fazia sentido. Ele
54.
era um romano e nenhum homem na terra era mais importante que um romano...
Requereu urgência à Administração, exortou os seus colaboradores a
arquivarem
rapidamente
todos
os
documentos
que
tinham
ido
buscar
e
determinou que regressariam nesse mesmo dia para Salácia. Tinha que voltar
para junto de Almira. Algo o chamava...
Almira
começou
a
sentir
as
contracções,
ainda
espaçadas,
mas
angustiou-se. Bato não estava ali. Bato kah? Onde estás, Bato? Amor,
apressa-te. Vem. Preciso de ti, meu príncipe. O nosso filho vem aí! Agora,
nem o escravo
com
a
estava por ali. Ainda faltava algum tempo para ele voltar
comida.
Como
poderia
desembaraçar-se
sozinha?!
Mas
não
iria
fraquejar. Era uma mulher de raízes celtas e, por isso, não se deixava
abater facilmente. Tinha perdido demasiado para, agora, deitar tudo o resto
a perder. Bato esperava um filho, ansiava por ele e ela não podia falhar.
Daria a Bato o que ele almejava.
As contracções regressaram, cada vez mais próximas, cada vez mais
fortes. O seu filho queria sair, não restavam dúvidas...
Alarmada mas determinada a levar avante a sua missão, posicionou-se
no leito improvisado e apoiou-se nas mãos e nos joelhos. Deveria ser a
melhor posição para o filho sair. Ele iria ajudá-la porque tinha a certeza
que estava desejoso de ver o pai e a mãe. Uma contracção mais forte e outra
e outra... já o sentia a aparecer...
O grito que brotou da sua garganta ajudou o seu adorado filho a sair
para a luz do dia no momento em que Bato chegou a Salácia e tentou saber
notícias da sua princesa querida. Encontrou Otos na zona das cozinhas e
interrogou-o, mas ele não tinha quaisquer novidades.
- Amo, ontem estava tudo bem. Ia, agora, levar-lhe o alimento.
- Então deixa que eu mesmo faça isso.
Pegou no alforge da comida, verificou se tinha consigo um tecido
muito
macio
que
havia
adquirido,
em
Bracara,
para
Almira
e
partiu
esbaforido em direcção à sua habitação, com a firme intenção de ficar junto
dela sem arredar pé até que o seu filho tivesse nascido e ela estivesse em
segurança.
Mais acima encontrou Sabinus que lhe disse:
- Bato, já voltaste! Ontem vi a Almira ali em cima, perto de
55.
Avarandado. Disse-lhe que tinha arriscado bastante ao vir para estes lados.
É verdade que estava escondida, mas...
- E que andava ela por ali a fazer?
- Isso não sei. Ela parecia-me aflita e com uma conversa que eu não
entendi. Virou-se para mim e só dizia: Batoká? Batoká? Batoká? Não percebi
nada. Mas, disse-lhe que estavas para Bracara e que ela devia voltar para a
tenda e ficar por lá até tu voltares. Se a família dela a visse, não sei o
que poderia acontecer se não estivesse ninguém por perto para a proteger...
- Obrigado, Sabinus. Fizeste bem. O que ela estava a dizer era: "Bato
Kah?" que quer dizer "Onde está Bato?". Estava-te a perguntar por mim. Kah
é uma palavra de origem celta que quer d não a voltei a ver. Pareceu-me
algo agitada...
- Obrigado, mais uma vez, meu amizer: "Onde?", "Onde está?"
- Não fazia a mínima ideia. De qualquer maneira, ela voltou para a
tenda. Pelo menos, afastou-se dali eigo. Vou ao encontro dela. Não devia
ter saído da tenda, por causa da sua família.
O meu filho deve estar prestes a nascer e ela devia andar à minha
procura. Demorei mais do que pensava e isso deve-a ter preocupado. Vou
agora para lá.
E retomou a sua marcha acelerada em direcção à tenda. Estava quase
lá, mas ainda havia uma subida a fazer...
Almira estava exausta, mas tão feliz! Pegou no seu bebé e verificou
se haveria algum problema com ele...
Mas... uma partida dos deuses. O seu rebento não era varão. Era uma
menina! Bato iria ficar triste, desgostoso. Ele queria um homem...
Não iria ter, por agora, um homem. Era uma menina. Com os dentes,
Almira cortou o cordão umbilical e embrulhou a sua menina num quente pano
de lã. Era tão linda!
Pode ser que Bato se afeiçoe a este rosto tão
radioso. Como lhe iriam chamar? Teriam que decidir em conjunto. A menina
chorou e Almira aconchegou-a e deu-lhe o primeiro alimento saído do seu
peito. A criança procurou avidamente o mamilo a tentar sugar o leite quente
e adocicado. A mãe recostou-se numas almofadas cheias com lã de ovelha
olhando, enlevada, para o seu bébé. Que menina tão luminosa!
De repente, começou a sentir uma humidade quente debaixo de si. Que
56.
estava a acontecer? Olhou e viu sangue a escorrer das suas entranhas. Seria
normal? Não sabia, mas teve medo. Encaixou um pano entre as suas pernas
para tentar parar o sangue e continuou a deleitar-se com a visão da sua
filhinha. Bato tinha que gostar dela... era tão...
O sangue encharcou o pano que tinha usado para o estancar. O seu
coração estava a bater cada vez mais depressa e ela estava a começar a
sentir-se mais fraca. O parto tinha-a deixado muito cansada e não estava a
recuperar as forças.
Teve a certeza que algo estava errado. Não podia ser normal estar a
perder tanto sangue. Bato, amor, vem!
Estava a ficar seriamente preocupada, pois as forças esvaíam-se e já
quase não conseguia segurar a sua menina. Mas tinha que a segurar. Não a
podia largar, de maneira nenhuma.
Tem que ser forte! Tem que ser forte!
Mas não consegue ser forte. O seu coração bate cada vez mais depressa
e estrondeia-lhe nos ouvidos. Convence-se que vai morrer sozinha naquela
maldita tenda. Quem vai tomar conta da sua menina? Quem a vai alimentar?
Quem a vai agasalhar? Tem de continuar a esforçar-se pela sua filha
adorada. Tem que aguentar até Bato chegar. Ela é uma mulher celta, não
desiste!
Gradualmente começa a sentir-se tão desolada, submersa numa tristeza
tão profunda, tão avassaladora que lhe esmaga o peito até à implosão. Não
vai conseguir acompanhar o crescimento da sua adorada filha. As suas forças
estrecem rapidamente. Que desespero!
Oh deuses cruéis, como podeis ser tão insensíveis? Tão maldosos? Tão
... malvados! Como podeis brincar com a vida dos mortais? Como podeis
desprezar tanto, quando nós tanto amamos?
Como podeis separar a mãe daquela que, com tanto carinho e por um
preço tão alto, transportou dentro de si nestas nove luas? Como nos quereis
fazer crer que vos preocupais com a nossa existência? Será que vós, afinal,
existis? Não sereis antes uma fantasia nossa para justificar muitos dos
nossos actos?
Se
vós
existísseis,
nunca
poderíeis
permitir
esta
crueldade
indizível, este crime hediondo, esta forçada e inapelável separação de dois
57.
seres inextricavelmente associados!
E direccionou os seus pensamentos para a filha que amamentava,
segurando-a
ternamente
nos
seus
braços,
cujas
forças
se
dissipavam
inexoravelmente, enquanto abundantes lágrimas inundavam o seu rosto e ela
encostava a pequenina ao seu peito aflito.
Oh minha flor! Oh meu poema de amor! Quanta angústia e desolação no
meu peito! Esta dor imensa que me rasga por dentro é tão forte que me
enlouquece. Só a tua presença me mantém alerta. Apenas o medo de te deixar
só me faz agarrar com todas as forças a esta réstia de vida que escorrega
por entre os dedos do meu medo.
Porque é que, logo agora, o teu pai tinha que ir a Bracara! Mas tenho
a certeza que ele vai chegar a tempo de te proteger. Vai tomar conta de ti
porque tu lhe vais fazer recordar o amor da sua vida. Tu vais mostrar-lhe
no teu rosto esta minha face que ele idolatra. Tu vais ser a minha cópia
perfeita para que ele me possa contemplar em ti!
Quanto a mim, meu amor, minha doce gota de mel, não te verei
crescer. Não poderei alegrar os meus olhos com o teu primeiro sorriso. Não
ouvirei a melodia da tua voz a chamar o meu nome e não poderei nunca
enternecer a minha para chamar pelo teu.
Não irei ensinar-te a dizer "papá" nem terei oportunidade de te
mostrar o lugar onde ele e eu demos o primeiro beijo.
Não estarei contigo para te amparar quando deres os primeiros passos.
Não viverei para te mostrar as flores, os pássaros, a chuva e a neve.
Não te poderei alertar para não olhares directamente para o sol nem
terei a oportunidade de brincar contigo a descobrir figuras nas nuvens.
Estarei ausente quando tiveres medo não podendo, assim, sossegar o teu
coração sobressaltado Não vou partilhar das tuas alegrias nem dar-te
conforto nas tuas dores e tristezas.
Não sentirei mais a macieza da tua pele e não me poderei deliciar com
o som cristalino do teu riso, com a ternura do teu olhar, com a doçura do
teu afago, com a suavidade dos teus beijos.
Não vou poder alimentar-te nem lavar esse teu corpo que faz lembrar
pétalas de rosa. Não irei cuidar-te quando estiveres doente. Não estarei lá
para cuidar dos teus joelhos esfolados e dos teus braços arranhados pelas
58.
quedas.
Oh quanta angústia, meu sol da manhã! Oh quanta desolação, minha
aurora rosada! Tenho o peito destroçado, minha suave brisa da tarde!
Quem limpará as tuas lágrimas quando o teu coração chorar por não
poderes ter o homem desejado? Quem será a tua confidente quando as dúvidas
te assaltarem e a incerteza da vida te empurrar para o abismo? Não poderei
ser eu, minha flor perfumada.
Também não poderei consolar o teu pai quando verificar que és uma
menina e não um varão que lhe prolongue a descendência. Ele inicialmente
vai ficar desgostoso, mas podes ter a certeza que te vai amar com todas as
forças do seu coração.
Escuta, meu bem... parecem os seus passos apressados... É ele! Ficas
em boas mãos, meu anjo! Eu sabia que ele chegaria a tempo de tomar conta de
ti. Agora sei que vais ficar bem. Adeus, meu amor! Adeus meus amores...
levo o meu coração totalmente preenchido por vós...
E foram estes os últimos pensamentos coerentes que Almira teve. O
resto
foi
uma
catadupa
de
imagens
que
desfilaram
pela
sua
mente
evanescente. Até que o seu coração parou e a sua consciência se apagou...
Nesse instante, Bato entrava ofegante olhando em volta a piscar os
olhos
para
que
se
habituassem
à
semi-obscuridade
ambiental.
Viu-a
desfalecida e ajoelhou-se apressadamente junto dela tomando a sua cabeça
nas mãos trementes de ânsia. Apercebeu-se de um vulto pequenino em cima do
peito de Almira e ficou petrificado.
O que aconteceu? O meu filho já nasceu? Como é possível que eu não
estivesse aqui? Oh deuses, porque me impedistes de viver este momento tão
marcante da minha vida? Como ousais brincar com sentimentos tão nobres de
nós os mortais? Como é possível que não estivesse aqui ninguém, nenhuma
parteira, nenhum dos meus ajudantes? Claro que não contava com ninguém da
família de Almira, mas... ninguém?!
- Amor, como te sentes? Almira, estou aqui, amor. Desperta, minha
rosa querida. Vamos, amor. Almira!
Mas, ela não reagia. O que se passava? Porque não se soergueu para o
saudar? Porque não sorriu? Bato começou a ficar assustado com a quietude da
sua amada. A sua garganta constringia-se. O seu peito comprimia-se com a
59.
angústia a avolumar-se e o negrume o medo a tolhê-lo.
Apenas o pequenino vulto se mexia ao ouvir o som estranho daquela
voz. A quietude de Almira era alarmante.
Bato abanou-a gentilmente, mas não obteve qualquer reacção. Os seus
olhos fechados emanavam serenidade, o seu rosto quieto transmitia paz.
Parecia dormir em resplandecente sossego...
NÃÃÃÃÃOOOOOOOOO!!!!
O grito rasgou a tarde e feriu os tímpanos de todos os moradores do
acampamento com tal violência que a maior parte deles afirmavam, passados
muitos meses, que sentiram os pelos da nuca a eriçarem-se e um frio intenso
a percorrer-lhes o corpo.
Em contraste com o sonoro rugido, ouviu-se o assustado vagido da
criança recém-nascida que obrigou Bato a aconchegá-la nos seus braços
tomado de um enorme caldo de sentimentos conflituantes.
Ele decidiu chamá-la de Amara, que significava "eterna" em sua língua
ancestral, em homenagem à memória de Almira.
60.
CAPÍTULO XIII
61.
CAPÍTULO XIV
62.
CAPÍTULO XV
63.
ÍNDICE
CAPÍTULO <$R#CAPÍTULO:MyCAPÍTULO>
CAPÍTULO <$R#CAPÍTULO:MyCAPÍTULO>
CAPÍTULO XVI
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