1. 2. Para as mulheres da minha vida: Carmo, Augusta, Ana e Paula 3. Todo o conhecimento da realidade é mediado pela consciência. (Philip Goff) Copyright © 2019 <$Manuel António Luis Batoca> All rights reserved. ISBN: ISBN-13: 4. Neste livro emocionante e cativante, mergulhamos numa história que se desenrola em dois planos temporais diferentes, entrelaçando o presente e o final do século I d.C. À medida que desvendamos os segredos da gruta de Pala Cova, somos levados a uma jornada repleta de mistérios, amor proibido, amizade e descobertas científicas impressionantes. No presente, o narrador encontra um maxilar e dois dentes ao sair da misteriosa gruta da serra da Cabreira. Ao partilhar a sua descoberta com o seu amigo Rolando, director do Laboratório de Anatomia e Patologia Forense de Braga, uma análise revela que esses elementos anatómicos datam do final do século I d.C. A partir desse ponto, desenrolam-se uma série de eventos, conectando dois mundos distantes no tempo. Enquanto acompanhamos o narrador na sua busca por mais evidências na gruta, somos transportados para duas localidades em diferentes épocas e geografias. Em Roma, conhecemos Bato Lusius, um jovem patrício romano em preparação para o cargo de "curator viarum". As suas discussões filosóficas com os amigos Senna Lusius e Valerianus Faventinus revelam diferentes concepções de alma. Enquanto Bato defende a visão aristotélica, os seus amigos seguem a filosofia platónica. Ao mesmo tempo, na aldeia de Arandosan, conhecemos Almira, uma jovem que deseja explorar o mundo. Envolvidos numa trama de interesses e negócios, esses personagens são levados a fazer escolhas que moldarão os seus destinos antes de Almira se casar com Tolosar, o filho mais velho da influente família Bescocum. Conforme os eventos se desdobram, a relação entre os dois planos temporais torna-se cada vez mais evidente. O narrador regressa a Braga para partilhar as suas descobertas com Rolando e aprender, dele, novos conceitos sobre porque somos como somos. Também nos será revelada uma surpreendente coincidência: o ADN dos ossos encontrados concorda com o do narrador. Essa revelação está na base de uma série de questionamentos e mistérios que permeiam todo o enredo. Neste livro, exploraremos a história desses personagens e como as suas 5. vidas se entrelaçam de maneira surpreendente. Acompanharemos os dilemas morais de Bato, a luta de Almira pela sua liberdade e o amor proibido que une esses dois mundos separados pela distância. Ao mesmo tempo, seremos apresentados às técnicas de análise utilizadas pelo Laboratório de Anatomia e Patologia Forense de Braga, proporcionando uma visão fascinante do mundo científico. Prepare-se para embarcar numa jornada repleta de emoção, descobertas arqueológicas e reflexões filosóficas. "A Moura de Pala Cova" irá cativar a sua imaginação, transportando-o(a) para um passado distante e revelando os mistérios que se escondem nas profundezas da serra da Cabreira 6. <CAPÍTULO> I Eram três e meia da madrugada quando o som estridente do telefone me fez dar um salto na cama. Ainda estremunhado, atendi com um resmungo e ele, muito eufórico, perguntou: - Sabes de quando são os ossos?! - Será que este homem nunca dorme? Dei uma espreitadela ao despertador e, ainda mal acordado, rezinguei que os meus ossos eram da década de 50 do século passado. - Quero lá saber dos teus ossos! Sabes de que época são os ossos que me trouxeste? Pouco passava das cinco e meia da manhã quando saí em direcção à serra. Os pés, protegidos por espessas meias de lã e enfiados em grossas botas de montanha, pressentiam a humidade que cobria as ervas do caminho. A noite retirava-se a passos largos e o sol, ainda tenra criança, afadigavase para afastar a neblina que cobria o sopé da serra. Os seus raios desenhavam linhas de ouro cintilante por entre as nuvens e, ternamente, acariciavam as pétalas das flores que por todo o lado desabrochavam. A sua luz filtrava-se através da variegada folhagem e os rebentos, ainda tenros, sacudiam o rocio acumulado durante a noite, como se quisessem lavar a cara pela manhã e partilhar com a terra faminta o maná rejuvenescedor. As gotas do relento cintilavam com a luz matutina e formavam conjuntos de pérolas reluzentes e multicoloridas quando a aragem fazia dançar as jovens folhas das árvores, roçando-as suavemente. O sol saltitava de umas para as outras reflectindo-se e brincando com as gotas do orvalho como se tocasse uma melodia arrebatadora num imaginário instrumento musical. Os pássaros compunham sinfonias alegres com os seus polifónicos chilreios e desafiavamse mutuamente para a melodia e o contraponto. Tudo respirava luz, alegria, força e vida, mudança, crescimento e som nesta clara manhã de Maio. Os lavradores saíam para os campos a fim de fazerem as vessadas programadas ou, com os tractores novos adquiridos com a ajuda dos fundos comunitários, transportarem o estrume e prepararem os terrenos para as sementeiras do 7. milho e do feijão. Já quase se não usa o arado puxado por juntas de bovinos. Só nos terrenos que, em virtude do seu tamanho ou dos acessos, não consentem o trabalho do tractor. Porém, naqueles distantes anos da minha infância, o cultivo do milho e do feijão era um trabalho extenuante, como todo o trabalho levado a cabo numa agricultura de subsistência como a que ali era desenvolvida. Trabalho cíclico, árduo e desgastante. Enquanto as pernas me elevavam para a serrania, fui matutando e recordando o que era o trabalho agrícola, durante a minha infância, na pequena aldeia onde nasci e vivo. Para começar pelo princípio, penso que se deve estabelecer o ponto de partida desse ciclo, no que à cultura do milho diz respeito, na recolha do material usado para a cama dos animais e para, posteriormente, levar nutrientes às terras. Para essa recolha, os agricultores vão às suas propriedades que não estão destinadas à produção agrícola ou aos terrenos baldios da comunidade e roçam o mato, composto maioritariamente de tojo, que transportam para as cortes dos animais e ali espalham para servir de cama aos mesmos. Esse transporte era feito nos carros de bois. Agora é quase exclusivamente efectuado em tractores. Quando se pretendia preparar a cama para as ovelhas ou para as cabras, o material mais usado era a carqueja ou o chamado mato molar por contraste com o mato arnal, muito mais áspero e com picos mais agressivos. Esses matos, por força da mistura com os dejectos dos animais e da fermentação daí resultante, transformavam-se em estrume que, normalmente no mês de Maio, era carregado para carros de bois e neles transportado para os campos dando-se, assim, início à lavoura. Depois de descarregado e depositado em montículos dispersos por todo o terreno que se pretende arar, estende-se o esterco com forquilhas, para que toda a área seja estrumada de forma mais ou menos homogénea. Antes de começar a lavrar, os terrenos são cadabulhados nos locais onde o arado não chega e os cantos mais apertados são cavados à enxada para que não seja necessário efectuar demasiadas manobras com o arado e assim se recupere tempo precioso. 8. Dá-se, então, início à vessada. O arado é puxado por duas ou três juntas de bovinos engatadas a ele e entre si por meio de cambões. À frente desses animais segue a pessoa encarregada de os orientar e manter no alinhamento correcto. É o candeeiro. Muitas vezes desempenhei essa função... Ao lado dos animais vai o tocador com uma aguilhada a fim de obrigar os animais a andarem e a manterem o ritmo incitando-os e, se necessário, espicaçando-os. Ao arado vai o lavrador. A função nobre da vessada. Competia-lhe segurar e manter estável o referido instrumento bem como alternar a direcção da relha do mesmo. Na parte lavrada ficavam os restantes membros do grupo a picar as seitas (as leivas) com as enxadas, para que a terra ficasse mais solta a fim de ser mais facilmente homogeneizada pelas grades que passariam posteriormente puxadas por um par de bovinos. Depois de a terra estar lavrada e as seitas picadas, começa o trabalho das grades. As mais antigas possuíam dentes de madeira, normalmente feitos de pau de oliveira. As mais modernas têm dentes de ferro. Atrela-se uma junta de bovinos a cada grade e percorre-se a terra recém-lavrada a fim de a nivelar e soltar melhor. Atrás, na terra posta a descoberto, saltitam as levandeiras ou levandiscas (alvéola-branca) a empanturrarem-se da bicharada exposta pela passagem do arado e das grades. Circulam com enorme à vontade entre os trabalhadores. A sua mesa está posta. A etapa final da vessada é a sementeira. O milho e o feijão, previamente misturados, são lançadas à terra pelo semeador em braçadas largas e rítmicas para que fiquem uniformemente espalhados na terra. Mais tarde começaram a ser usados os semeadores mecânicos que eram movidos por uma ou duas pessoas ou, estando disponível, por um bovino, um equino ou um asinino. Após a sementeira, era necessário abrir sulcos na terra lavrada para, mais tarde, se poder regar as culturas sedentas. Tinha de ser feito tendo em atenção a inclinação do terreno e o local onde a água da rega dava 9. entrada no campo de cultivo. Chamava-se, a essa operação, aleirar. Era muito comum ocorrerem trovoadas tão fortes quanto rápidas que deixavam a terra a fumegar e a exalar um cheiro forte a ozono que parecia retemperar as forças dos trabalhadores. Habitualmente, depois de a terra estar lavrada e antes de começar a ser gradada, era servido o almoço ou merendeiro: farto, saboroso, diversificado. Era levado para o local da vessada em açafates transportados à cabeça pelas cozinheiras que há várias horas se afadigavam para apresentarem uma comida de alta qualidade. Cuidadosamente acondicionada e embrulhada em toalhas de linho, consistia, maioritariamente, em postas de bacalhau frito, bolinhos de bacalhau (pastéis), chouriço, presunto, rabanadas e vinho verde em abundância. Muitas vezes, o vinho era servido em cabaças que passavam de mão em mão. Todos bebiam: crianças, jovens e adultos. Durante toda a vessada, as pessoas cantam, riem e absorvem os odores intensos do suor, do estrume, da terra fresca e revolta e o cheiro pungente e bravio dos animais com que labutam. Assim se conclui mais um cansativo passo de muitos na longa caminhada do cultivo do milho e do feijão. Nos dias seguintes é necessário verificar se os grãos de milho e os feijões estão correctamente enterrados e se os pássaros não boicotaram o trabalho do lavrador desenterrando-os e comendo os grãos. A próxima etapa é sachar. Quando o milho e os feijões nascentes já têm uma altura aproximada de dez a doze centímetros, é necessário sachá-los. Para isso usa-se a sachola a fim de os desimpedir das ervas daninhas, do excesso de nascença e para que a terra fique mais arejada e solta e respire melhor. De manhã bem cedo, as pessoas da família, muitas vezes acompanhadas de amigos e vizinhos, dirigem-se para o terreno semeado e posicionam-se no terreno de acordo com a mão. Assim, se a mão que fica mais em baixo, no cabo da sachola, for a esquerda (como é o meu caso) essa pessoa coloca-se do lado esquerdo do 10. grupo. Caso contrário passa para o lado direito. Esta organização facilita a conversa entre as pessoas e o andamento do grupo para que avance de forma coordenada no terreno e ninguém fique para trás. Com esse alinhamento, ninguém está de costas voltadas para as costas de ninguém. O trabalho agrícola é maioritariamente solidário. A operação do sacho era dividida em duas etapas: a decrua, na qual a terra era afastada das plantas para permitir melhor respiração e enraizamento, garantindo uma fixação mais forte, e a renda, em que a terra previamente afastada era devolvida às plantas, conferindo-lhes maior resistência contra ventos fortes e a seca que certamente aconteceria como consequência do aumento da temperatura e da ausência da chuva. Nos tempos atuais, ao invés de se recorrer a esse extenuante trabalho manual, utilizam-se herbicidas, os quais, infelizmente, envenenam gradualmente o solo e os lençóis freáticos. Terminada a tarefa do sacho, era necessário verificar se as plantas restantes não eram excessivas e, sendo esse o caso, proceder ao seu desbaste, operação aqui designada por arrelenta. Com o desenvolvimento das plantas e o aumento da temperatura atmosférica, pela chegada do verão, é necessário regar as plantas. Aqui usa-se, maioritariamente, a água da levada. Trata-se de água recolhida na serra em reservatórios construídos pelos nossos antepassados e chamados Poças da levada. A água é captada numa das nascentes do rio Ave e encaminhada para as poças através de canais denominados Cales. O primeiro reservatório era denominado Poça do Pé e tinha uma marca em forma de cruz talhada numa pedra existente no seu exterior. Quando a luz do sol nascente atingia essa marca, era a hora de tapar a poça. Como nem toda a gente tinha um relógio, essa era a forma de se marcar a hora. Actualmente isso não faz sentido pois essa poça já não existe. Apenas ficaram dois grandes reservatórios e a hora de vedar a 11. saída da água, agora que os relógios são omnipresentes, passou para as nove da manhã e o pôr do sol. As regas iniciam-se no dia de S. Tiago (25 de Julho) o que significa que no dia 24 ao pôr do sol, são tapadas as poças. Para saber quem tem esse privilégio, ficou estabelecido, por mútuo acordo dos lavradores com direito a regar, que, sendo o ano par, é o lugar de Ameã a ter a primazia. Em ano ímpar, esse benefício pertence ao lugar da Lage. O ciclo de rega com a água das Poças da Levada termina no dia 7 de Setembro de cada ano. A colheita do milho é feita de acordo com o estado de amadurecimento do mesmo. Quando o milho está maduro, é cortado e conservado em medas à espera de poder ser desfolhado. Este trabalho era feito, bastas vezes, à noite. Juntavam-se grandes grupos de pessoas que, formando uma roda, iam extraindo as espigas do milho dos seus invólucros. A palha era guardada em medas para servir de alimento aos bovinos durante o inverno, quando o alimento nos campos era mais escasso. Normalmente, o dono do milho fornecia aos presentes na desfolhada sardinhas fritas acompanhadas de broa e vinho verde. As espigas são armazenadas nos espigueiros para secarem. Após a secagem, são malhadas para separar os grãos, que serão utilizados como alimento para as aves ou moídos em moinhos movidos pela água dos braços do rio Ave, que cortam a serra da Cabreira. Com essa farinha, produz-se a broa, que é a base alimentar da maioria das famílias das aldeias serranas da região. Além disso, a farinha pode servir como complemento nutricional para os suínos criados pelas famílias ao longo do ano, assim como para a criação de leitões vendidos quer na feira semanal seja para os vizinhos. Imerso nestas memórias e sem perceber a passagem do tempo ao longo do 12. percurso, em pouco mais de meia hora cheguei ao lugar da Pedreira. Ao avistar a casa da floresta abandonada e em estado de total degradação, um suspiro nostálgico escapou do meu peito, relembrando os tempos em que a preservação da serra justificava a presença dos seus ocupantes: o guarda-florestal e sua família. Agora, olhando em frente para a montanha que se eleva na sua granítica nudez, sinto que uma parte da minha juventude espalhada por estes montes se esfumou, empurrada para o alto pelas labaredas dos fogos que consumiram todo o arvoredo que por aqui abundava. A quem terá aproveitado essa ígnea devastação? Não, certamente às populações locais, uma vez que as madeiras que poderiam vender desapareceram ou viram o seu preço significativamente degradado. Esta riqueza natural assim devastada deveria levar a que as autoridades quer do governo central quer, sobretudo, do poder local se preocupassem mais com o ordenamento da serra. Quando o guarda-florestal por aqui andava em vigia, os incêndios eram incomparavelmente menos frequentes e a ruína que eles causavam ficava muito aquém da actual depredação. A abundância arbórea deveria ser aproveitada, incentivada, acarinhada e apoiada. Como se faz o aproveitamento das forças da natureza para a produção de energia (vento, sol, água, calor ...) assim deveria suceder com a riqueza lenhosa que esta nossa serra pode e devia produzir. Quando é que os responsáveis tomarão consciência do crime ambiental que estão a cometer por omissão?! Melancolias à parte, é tempo de prosseguir rumo a um destino mais elevado. É lá que está a razão por trás desta caminhada matinal e campestre. Desde criança que oiço falar na "Moura de Pala Cova". A moura encantada, local de sortilégios e assombrações. Tudo não passava, para mim enquanto adulto, de lenda e superstição. Porém, na semana passada, durante uma das violentas trovoadas de Maio, quando regressava duma visita ao Talefe, abriguei-me na famosa gruta. 13. O Talefe é o ponto mais alto da serra da Cabreira com 1262 metros de altitude. Finda que foi a trovoada, saí para a frescura ionizada e rejuvenescida do dia e vislumbrei, num sulco aberto pela torrente da água, a ponta de um osso em muito bom estado. Não era um achado estranho, uma vez que a serra está pejada de ossos de animais mortos pelos lobos. No entanto, embora eu não seja paleontólogo nem tenha qualquer tipo de formação nessa área do saber, este pareceu-me muito diferente dos que habitualmente por aqui se encontram. O meu enorme anseio de ver, proporcionou-me a visão desejada. A única ferramenta de que dispunha, era um cajado. Nada mais pude fazer a não ser, esgaravatando um pouco mais fundo com a ponta do mesmo, desenterrar essa réstia da anatomia presumivelmente humana, uma vez que se tratava de um maxilar inferior. No mesmo sítio encontrei ainda dois dentes. Recolhi os três elementos e, como não sou anatomista, decidi levá-los ao meu amigo Rolando. Quando cheguei a casa, jantei apressadamente e abalei para Braga a fim de requerer os préstimos do meu amigo e conterrâneo, por quem nutro uma enorme e antiga amizade. Ele sim é um patologista e anatomista de grande nível. Dirige, com especial mestria, o Laboratório de Anatomia e Patologia Forense de Braga. Fui encontrá-lo no seu gabinete austero, mas acolhedor e de portas sempre abertas para me receber. Quando, após uma rapidíssima conversa introdutória, sofregamente lhe mostrei a serrana descoberta como se de uma preciosidade rara se tratasse, ele arvorou um ar de comiseração como que a dizer: Coitado, só porque viu uns ossos enterrados, já se convenceu que descobriu um tesouro! No entanto, como bom anatomista forense que é e como inquestionável amigo, não ia perder a ocasião de ter mais um motivo para se divertir à custa da minha insistente teimosia. Antes, porém, de aceitar fazer qualquer tipo de estudo aproveitou imediatamente a ocasião para me dar um valente "puxão de orelhas" pela 14. "forma descuidada, perfeitamente desastrada e amadora", como tinha procedido à recolha do valiosíssimo fóssil, como lhe chamou para casquinar comigo. Sem perceber a ironia, cego que estava pela convicção da mais-valia do achado, fiquei com as orelhas a arder, quase com vontade de dar meia volta e retornar a casa. Mas a curiosidade falou mais alto e eu lá me desculpei pelo descuido, penitenciei-me por isso e insisti com o Rolando para analisar "aquilo". Mais por complacência para com a minha idade do que por convicção do merecimento do objecto e, obviamente, por mor da longeva e profunda amizade que nos une, decidiu fazer a datação dos ossos. Foi na sequência dessa datação que tudo se despoletou... Eram três e meia da madrugada quando o som estridente do telefone me fez dar um salto na cama. Ainda estremunhado, atendi com um resmungo e ele, muito eufórico, perguntou: - Sabes de quando são os ossos?! - Será que este homem nunca dorme? Dei uma espreitadela ao despertador e, ainda mal acordado, rezinguei que os meus ossos eram da década de 50 do século passado. - Quero lá saber dos teus ossos! Sabes de que época são os ossos que me trouxeste? Despertei um pouco mais, espevitado pelo tom excitado do Rolando, e retorqui: - Como queres que saiba? Para saber isso é que tos levei! - São do início da nossa era! Os olhos, os meus, arregalaram-se na semi-obscuridade: - São o quê?! - São do século I! Os ossos que me trouxeste, são do século I da nossa era! Do tempo da ocupação Romana! A adrenalina disparou embora a clareza de espírito ainda deixasse a desejar. - E são ossos romanos? - Ouve lá, tu pensas que eu sou bruxo? Como queres que saiba se são romanos, celtiberos, brácaros ou de qualquer outra proveniência? Só posso 15. afirmar que a datação indica que pertencem ao início do séc. I da nossa era, o que sugere fortemente que sejam de origem celtibera ou romana, a menos que se trate de algum viajante cujos restos tenham chegado até aqui... O sono evaporou-se instantaneamente. Uma onda de adrenalina percorreu o meu corpo, dissipando qualquer vestígio de sonolência. O meu coração batia a um ritmo frenético com a perspectiva de descobrir mais sobre a gruta de Pala Cova. Preparei uma pá, uma picareta e mais uma série de apetrechos que me parecia que um arqueólogo deveria usar, alguns sacos plásticos e uma mochila com uma merenda caseira à medida do meu muito apetite e, ao raiar do dia, encetei a caminhada que, por força da ansiedade, num ápice me tinha levado até à Pedreira. Avancei por Fligueirinho, Calçada de Fontes e Pedra Alta. Aqui, parei para apreciar a paisagem maravilhosa que, qual tapete enrugado, se estendia a meus pés. Aproveitei para encher os pulmões com o ar puro, límpido e fresco da montanha e para ouvir o cristalino silêncio da natureza numa manhã de Maio sem nuvens. Virando-me para trás, não pude deixar de me extasiar com a paisagem deslumbrante que se desenrolava ante mim, vendo as diversas aldeias aconchegando-se à serra qual bando de pintainhos abrigando-se debaixo das asas da mãe galinha. Inebriei-me, durante algum tempo, com aquela imagem extraordinária, elevando os níveis de serotonina e aproveitando para recuperar um pouco o fôlego. Algum tempo depois e como o meu destino, naquele dia, não era especialmente dedicado à contemplação da natureza, segui viagem um pouco mais retemperado e revigorado. Fiz um ligeiro desvio até à fonte de Carvalho Cortado onde aproveitei para saciar a sede com aquela água transparente, pura e fresca que brota das entranhas não poluídas da serra e, também, para encher um cantil que para o efeito já carregava comigo. Continuei a subir até chegar a Bouças de Areia, local onde ainda 16. existe uma cabana construída para os pastores do gado bovino se abrigarem do calor da estiagem quando os animais, na época da transumância estival, repousavam durante as horas da sesta. Aqui, relembrei os meus tempos de adolescente em que, nas férias de Verão, acompanhava o meu pai no pastoreio do gado bovino da aldeia. De acordo com os costumes antigos, o tempo de pastoreio correspondia ao número de cabeças de gado que cada lavrador possuía: um dia e uma noite por cada junta de gado. Nós tínhamos duas juntas. Logo, obrigava a um dia e uma noite para cada um de nós. Normalmente pernoitávamos na cabana da Arandosa por ser um local mais arborizado e, consequentemente, mais procurado pela manada para passar a noite. Esta viagem estava a ser mais melancólica que o planeado. Às vezes fico assim... para o nostálgico. Coisas de personalidade. Cheguei, finalmente ao Alto de Pala Cova. Este, consiste num grande maciço de granito que serve de cobertura a uma reentrância com pouco mais de três metros de profundidade e outro tanto de largura, na entrada virada a Nascente, estreitando cada vez mais em forma triangular. Não é propriamente uma gruta; antes se trata de um abrigo com alguns melhoramentos feitos por mão humana. Por ali à volta ainda se podem ver muitas das pedras que deveriam ter servido para vedar a frente do referido abrigo até deixarem apenas uma estreita e mais defensável entrada. Digo eu... Nas paredes rochosas do maciço granítico, podem ver-se várias concavidades entalhadas e que, penso, poderiam ter servido para estantes ou prateleiras daquilo que eventualmente terá sido uma habitação. Essas "prateleiras", que eu já conhecia há muito tempo, sempre me tinham intrigado: para que haveria alguém de se dar ao trabalho de escavar tantos suportes na rocha num local que servia apenas para que alguém se abrigasse de uma eventual trovoada? Não fazia sentido. Motivado pela conversa do Rolando, comecei a imaginar como seria uma habitação, ali em plena serra da Cabreira, no séc. I da nossa era. A luz do início da manhã seria brilhante, uma vez que a entrada fica 17. virada a nascente, mas o isolamento térmico inexistente, o conforto ínfimo, os acessos pouco convidativos. Havia, porém, um refúgio que protegeria os eventuais usuários dos temporais e os defenderia das investidas dos animais selvagens bem como um local para fazer fogo, preparar as refeições e pernoitar. Mas, não tinha maneira de saber se existiriam por ali alguns resquícios da era romana. Não sou arqueólogo nem tenho qualquer preparação nessa área do saber. Sou apenas um curioso sobre o que não compreendo. E isto não estava a compreender. Nem sequer sabia se por aqui tinham andado outros povos e, se sim, em que eras isso teria acontecido e de quem se tratava. Mas, aqueles ossos... O Rolando tinha-me deixado muito alvoroçado. Haveria mais ossos? Como é que se tinham conservado durante tantos séculos sem se deteriorarem? O terreno não é nada propício à conservação de materiais perecíveis visto que há demasiada humidade. Apesar disso, o meu amigo tinha sido positivo: eram ossos do século I. E eram ossos humanos. E se o Rolando o afirmava, na minha mente não cabia a dúvida. De quem seriam? De que povo se tratava? Pertenceriam a alguém que tivesse vivido ali? Certamente que, se agora estavam ali, já há muito que isso deveria acontecer. Afinal, os ossos não costumam mudar de sítio por sua livre iniciativa... Demasiadas perguntas sem resposta. Talvez alguém os tenha levado para ali. Mistérios... E eu que nem gosto de mistérios! Hoje, enfim, iria encontrar respostas para algumas dessas perguntas ou eu não me chamasse... De onde tinham vindo aqueles ossos? Onde estavam os restantes elementos do esqueleto? Vamos já saber... Peguei na picareta e levantei-a para a enterrar na terra endurecida. Suspendi, contudo, o gesto pois o visionamento de algumas séries televisivas sobre arqueologia e criminologia forense fez-me recear que, com 18. esse acto, pudesse destruir vestígios importantes para o estudo dos achados que certamente iria descobrir. Teria que ser muito mais subtil nas minhas escavações. A ânsia de vir até ali tinha-me toldado o raciocínio. Deveria ter trazido crivos, peneiras, pincéis, pás pequenas, máquinas fotográficas, bandeiras de sinalização arqueológica ou lá como se chamam... Toda uma panóplia de ferramentas e objectos que me permitissem encontrar achados arqueológicos sem os danificar nem destruir o habitat em que eles se encontravam mas com capacidade para o documentar devidamente. No entanto, como anteriormente afirmei, não sou arqueólogo nem tenho qualquer conhecimento académico nesse campo e, por isso, aplacando os pruridos que sentia, deitei as cautelas às urtigas (ossos são apenas ossos) e cravei a picareta no chão. Escavei, a partir do local onde tinha achado o maxilar e os dentes, fazendo dele o centro de um semicírculo que se ia alargando e deveria chegar à parede do fundo da caverna. Apesar de escavar arduamente no solo compacto da gruta, para meu grande desapontamento não encontrei nada de relevante. É claro que a profundidade da escavação não era muita (talvez uns trinta centímetros), mas, a meus experimentadíssimos olhos, deveria ser mais do que suficiente para trazer à luz do dia os companheiros do maxilar e dos dentes anteriormente descobertos. Eles estavam bem perto da superfície... O suor que gotejava dos meus cabelos e escorria pela testa até penetrar ardentemente nos olhos, tornava a minha tarefa de pesquisa cada vez mais espinhosa e árdua. Apesar disso, persisti teimosamente na busca incansável por ossos e dentes. Em vão... A hora do almoço chegou e, esfaimado que sou, atirei-me, literalmente com unhas e dentes, ao farnel de que, prévia e acauteladamente, me tinha guarnecido. A água do cantil estava praticamente esgotada, mas isso pouco importava. Na mochila trazia uma boa garrafa de litro e meio do melhor verde tinto da minha adega. 19. Degluti, pausada e gulosamente, a broa, o presunto e o chouriço caseiros, sempre convenientemente regados com o verdinho, e terminei com duas peças de fruta biológica do meu quintal. Se mais nada houvesse, o passeio teria valido a pena pela merenda e pelas paisagens serranas que nunca me canso de admirar, sentir e apreciar. Dormi uma retemperante sesta, deitado na frescura abrigada da gruta, sonhei com o achamento de um esqueleto completo e, quando despertei para a dura realidade da inexistência de achados, voltei ao trabalho com renovado vigor. O meu entusiasmo inicial, porém, foi-se esvaindo à medida que o desânimo se acumulava devido à falta de achados. Foi-se avolumando a exaustão física e, acima de tudo, a psicológica, pois tinha prometido a mim mesmo que encontraria um tesouro. Infelizmente, não encontrava nem a ponta de um chifre, um fragmento de cerâmica ou uma simples pedra lascada. Não sou mesmo talhado para a arqueologia... Restava-me regressar e ir ter com o meu amigo Rolando, para ver se ele tinha extraído mais alguma informação da exaustiva investigação levada a cabo sobre os ossos que lhe tinha levado. Ele sim é um grande analista e um antropólogo forense de alto gabarito. Ele sim sabe o que faz, quando examina ossos. É um verdadeiro especialista. O laboratório onde faz a maior parte dos estudos, está tão repleto de maquinaria e apetrechos informáticos que deixa os olhos em bico ao mais precavido dos visitantes. Com toda aquela variedade de engenhos, ele e a sua equipa de peritos aplica técnicas como a osteologia, paleopatologia, tafonomia, entre muitas outras. Consegue, também, fazer reconstrução facial do cadáver e superposição fotográfica. Evidentemente que a compreensão destes termos científicos tenho que a agradecer ao Rolando. Nunca me passaria pela cabeça que tais palavras fizessem parte da bagagem comunicacional de qualquer mortal... A primeira vez que ele me presenteou desconhecidas para mim eu disse-lhe: com essas palavras totalmente 20. - Oh Rolando, por favor! Tem compaixão de mim... - Claro. Desculpa. Às vezes esqueço-me que há termos científicos que nem todos conseguem descodificar. - Então ajuda-me lá a descodificar essas palavras caras. O que faz um esteologista? - Um osteologista, queres tu dizer. Os osteologistas examinam características como a forma, tamanho, densidade e padrões de crescimento dos ossos para entender mais sobre a saúde, dieta, actividades físicas, e origem étnica de indivíduos ou populações do passado. No campo forense, a osteologia pode ser usada para ajudar a determinar a causa da morte ou identificar restos mortais desconhecidos. - Passemos a outra: O que faz um paleo... paleo... - Paleopatologista? - Isso. - Os paleopatologistas examinam evidências físicas de doenças em humanos ou animais de tempos antigos. Este campo também inclui o estudo de parasitas antigos e a análise de ADN antigo para a presença de patogénicos. - Conheces cada coisa... E o que faz um tafono qualquercoisa? - Tafonomista? - Deve ser isso... - Os tafonomistas analisam factores como a decomposição, a dispersão de restos por predadores ou correntes de água, a compactação dos restos por camadas de sedimentos, a mineralização dos ossos e dentes, a erosão e o desgaste, e muitos outros processos. Eles também consideram o impacto de eventos catastróficos, como erupções vulcânicas, deformidades ósseas, lesões, sinais de mal-nutrição ou stresse, e outras marcas patológicas que podem indicar a presença de uma doença ou inundações. - Sabes, meu amigo, já não me admira que sejais capazes de extrair tanta informação dos ossos que vos trazem. Com palavras assim, os elementos analisados aqui nos vossos laboratórios devem "falar" só de as ouvir. Mesmo quando o tema é fora do seu campo laboral habitual, ele tem uma impressionante bagagem de conhecimentos. Costumo chamar-lhe enciclopédia 21. ambulante. São raros os temas que o deixam mudo. Por isso, estava na hora de o revisitar. O desalento provocado pelos resultados nulos da minha expedição arqueológica, tinha que ser contrabalançado com os conhecimentos que o Rolando compartilhará comigo. Certamente que terá à minha espera uma infinidade de dados sobre a raça, sexo, idade, estatura, proporções corporais e até mesmo detalhes da vida do falecido, como hábitos alimentares, doenças, lesões e possivelmente as causas da morte. Estava ansioso para saber mais e orgulhoso por ter sido o "achador" de tão empolgante descoberta. Voltei a empacotar as ferramentas, bebi o resto do vinho e meti pés ao caminho. 'bora p'ra casa... 22. CAPÍTULO II Bato Lusius não acompanhava as regras que a esmagadora maioria dos habitantes de Roma cumpria nas suas idas às Thermae, os banhos públicos. Os romanos entravam sempre nos banhos públicos através do Apodyterium, uma divisão onde os banhistas trocam de roupa e onde guardam os seus pertences pessoais enquanto frequentam os banhos. Os mais abastados deixam um escravo a guardar os seus haveres. Daqui, seguiam para o Frigidarium, uma divisão com um tanque de água fria, depois para o Tepidarium, divisão de água tépida e, por fim, para o Caldarium, a água mais quente do complexo balnear. Aqui chegados, muitos dos banhistas voltavam ao Tepidarium para a aplicação de óleos e o uso do strigil, uma ferramenta usada para raspar o óleo anteriormente aplicado e, com ele, a sujidade e suor acumulados no corpo. Bato, no entanto, preferia começar por praticar exercício físico na palestra, recinto dedicado essencialmente a essa actividade. Após a passagem pelo Apodyterium, dirigia-se directamente para o Caldarium e, só depois, ia ao Tepidarium. Aqui, procedia ao tratamento completo, desde o óleo ao strigil, e passava para o Frigidarium. Dizia que isso lhe devolvia a força que o exercício físico lhe havia roubado. Preferia não passar pelo Sudatorium porque, dizia ele, já tinha expelido suor suficiente na palestra. Depois da passagem pelo Frigidarium, deslocava-se para outra zona do complexo balneário com o intuito de se dirigir a uma das tabernae circundantes. Gostava de se deliciar, quase sempre na companhia de alguns amigos, com as iguarias ali vendidas. Acompanhava essa refeição com um bom falerniano, o seu vinho preferido. Adorava trocar ideias com seu primo Senna Lusius e com o comum amigo de infância Valerianus Faventinus. Muitas vezes comiam juntos. Entre os vários temas abordados, as conversas passavam pela análise das respectivas vidas familiares, pelas lutas de gladiadores, pela 23. actividade no Forum e até pelos mexericos da vida política. Outras vezes, porém, devido às diferentes perspectivas relativamente à ideia de quem somos e o que somos, desembocavam nas suas divergências à volta da filosofia grega. Normalmente era ele que espicaçava os amigos, instigando brincadeiras e conversas animadas. Numa tarde em que o falerniano fuía livremente pelas gargantas dos três amigos, enquanto Bato limpava os dedos gordurosos de garum com um farrapo, voltou-se para os dois conterrâneos, estreitando ligeiramente os olhos. - Então meus amigos, - disse ele - dizei-me lá: Depois destes belos petiscos com que o Saturninus Maccius nos presenteou e deste divino falerniano que nos serviu, a vossa alma deve estar esfomeada. Coitadinha, - acrescentou, cavilando com um trejeito de miserabilismo - uma vez que está separada do corpo, ficou a ver navios. Não provou nada. - Ouve lá Bato, - disse Senna levantando as mãos e sorrindo -, repito a pergunta que já te fiz várias vezes: como é que a alma pode alcançar verdades universais se está aprisionada no corpo? - O problema - enfatizou Valerianus colocando um braço à volta dos ombros de Bato - é que tu continuas a não compreender a verdadeira dimensão da alma. A alma - disse, elevando um pouco mais a voz para se fazer ouvir - é de uma dimensão diferente. Existe antes do corpo, no qual está prisioneira, e sobrevive-lhe após o desaparecimento dele. Por isso não se alimenta. Apenas se aperfeiçoa e liberta gradualmente do mundo físico para se elevar para a verdade suprema através do conhecimento e da sabedoria. - Como já te fizemos notar muitas vezes - acrescentou Senna - o corpo é uma forma física transitória e mortal. - Pegou em mais uma fatia de queijo, encheu outro copo de vinho e continuou - Mas a alma é a parte divina e imortal do homem. Porém, tu insistes na tua visão redutora do homem como uma unidade física. - Mas, - enfatizou Bato - quem vos disse que a alma alcança verdades 24. universais? A alma racional, que é a dos seres humanos, tem em si as faculdades do pensamento, da razão, do intelecto. É um facto. É por meio dela que os seres humanos conseguem exercer o livre-arbítrio, executar a linguagem, praticar a moralidade e desenvolver a capacidade de buscar o conhecimento. Mas a alma é inseparável do corpo, está de tal forma entrelaçada com o corpo que não existe sem ele como ele não existe sem ela. Não tem capacidades universais. Enquanto o ruído de fundo da taberna onde se encontravam ia aumentando de volume em consonância com o consumo de vinho, os três amigos continuavam a discordar profundamente sobre a ideia de alma ou, como diriam os gregos, "psiké", mas a sentirem a mesma amizade de sempre que suplanta e faz passar para segundo plano qualquer discordância seja filosófica ou outra. Após a pausa retemperadora, Bato voltava à palestra para conversar com os colegas ou, se tivesse a oportunidade, para esclarecer dúvidas com os magistri que circulavam por ali. Quando os estudos lho permitiam, deslocava-se a Pompeia, cidade onde seus pais habitavam. Adorava passar lá os seus tempos livres mais prolongados. Ali dispunha da companhia dos seus pais, dos quatro irmãos e das duas irmãs. Também ali, na sua cidade natal, a sua Pompeia de que tanto gostava, utilizava o mesmo sistema de acesso aos banhos públicos. Não sentia necessidade de se comportar como toda a gente. Era um romano. Tinha a sua própria cabeça para pensar. Este tipo de pensamento cruzava a sua mente com muita frequência. Por isso ele gostava de passar amiúde pela palestra. Todo aquele exercício, dizia ele, o libertava do stress que lhe advinha da sua intensa preparação para o cargo que o esperava: curator viarum. As vias romanas eram essenciais para o império. Ele ainda ouvia contar muitas vezes a história do desastre que tinha sido o ataque dos gálios liderado por Breno há cerca de quatro séculos. 25. A lentidão da movimentação das tropas naqueles caminhos estreitos, desnivelados e sinuosos foi catastrófica para Roma. Por isso, era fundamental prover o Império de vias rápidas, bem planeadas e construídas Os exércitos, os funcionários imperiais e o cursus publicus - o serviço de correio imperial que assegurava o transporte de encomendas e documentos oficiais e administrativos - transitavam por elas. Comerciantes, viajantes e peregrinos também as utilizavam, vendo facilitado o acesso rápido a todos os recantos do império e permitindo a ágil transacção de pessoas e bens. Por elas passavam a cultura e o conhecimento romanos que iriam libertar o mundo inteiro da ignorância e obscurantismo em que se encontrava mergulhado levando-lhe a luz do saber. Nelas fluía, em direcção a Roma, o dinheiro de que esta necessitava para alargar ainda mais a sua influência e alimentar os vícios e a insaciável máquina administrativa que crescia desmesuradamente. Por isso, Bato via o seu papel como director de construção e conservação de estradas não apenas como um emprego, mas como uma missão vital para o progresso dos povos. Roma, como fonte do progresso, era também a garantia de futuro. Bato seria o responsável pelo traçado e pelo supervisionamento do progresso da construção das vias que lhe fossem confiadas. Ele achava que o nosso lugar no mundo deve merecer ser ocupado por nós. O nosso contributo para o progresso, para a caminhada da humanidade só vale a pena se o nosso saber for usado para o crescimento de todos. E isso só vai acontecer se nos prepararmos na esmagadora com vontade, com afinco e com perseverança. Não se tratava, maioria das vezes, de construir estradas do zero. Tratava-se, antes, do aproveitamento e melhoramento vias já existentes. Procurava-se, na maioria dos trajectos, que os mesmos tivessem um conjunto de características muito próprias, nomeadamente que fosse o percurso mais curto entre dois pontos, com a menor variação de cota possível e evitando, sempre que exequível, o cruzamento de linhas de água. 26. Para isso, o trabalho duro, em zonas onde imperava a paz, era suportado pelos legionários e mais alguns assalariados locais uma vez que, assim, o salário dos militares era rentabilizado. Se a construção ocorresse em zona de guerra, o trabalho seria garantido essencialmente por escravos, presos de delito comum, criminosos e prisioneiros de guerra. Depois de estabelecido o traçado genérico, era chamado o architectus para a execução do mesmo. Este, por sua vez, convocava o agrimensor e o nivelador (os topógrafos da época) para eles comandarem, no terreno e no dia-a-dia da obra, as equipas de trabalho. Era um trabalho árduo, mas necessário para a expansão do império romano. As estradas eram como as artérias que levavam o sangue a todo o corpo do império e faziam chegar ao coração as listas das requisições para suprir as necessidades locais, as informações e solicitações do mundo conquistado. Eram os canais por onde circulava a vida... Assim sendo, se Bato se preparasse bem e, mais tarde, desempenhasse o seu papel com sabedoria, os frutos do seu trabalho, as estradas, permaneceriam ao serviço do desenvolvimento da humanidade por largos anos. Sempre tinha essa perspectiva em mente. Agora, estava à beira do final da sua preparação e podia sentir a proximidade da convocatória do Senado, para lhe ser revelado o local onde dedicaria os próximos anos da sua vida e trabalho. Independentemente do local para onde for enviado, irá dar o seu melhor para que o Império Romano possa sair mais exaltado, mais glorificado, mais amado e, porque não, mais forte, mais influente no mundo habitado. 27. CAPÍTULO III Almiiiiiiiiiiiiraaaaa! O grito trespassou o ar da montanha, ressoou pelas penedias circundantes da aldeia de Arandosan, saltitando entre as árvores serranas. Resvalou nas paredes das habitações da povoação mas a filha, tão sonoramente convocada, não respondeu nem deu qualquer sinal de presença. - Por onde andará aquela cabeça no ar?! cogitou, exasperada, Brízida. Nunca mais aprende a ter juízo, a ocupar o seu lugar e a comportar-se de acordo com as normas da aldeia. Esta juventude está perdida. O que será do mundo de amanhã com jovens assim? - resmungou de si para si. Agora que está prestes a unir-se com Tolosar, está mais que na hora de começar a tratar das suas roupas, dos seus cabelos e da sua preparação para essa feliz data. No entanto, parece pouco entusiasmada por ter sido a escolhida para casar com um dos jovens mais importantes da aldeia. Todas as raparigas daqui dariam um braço para terem sido elas as escolhidas e, apesar disso, Almira parece dar a ideia de que está infeliz. Que se passará naquela cabeça dura? Exasperada, Soltou novamente o brado, forte e mais impaciente. E resmoneou: - Deve ter ido para o bosque outra vez. Não sei o que encontra lá de tão interessante. Estará à espera de se deparar com algum mensageiro de Arantio ou de Epona, a deusa das viagens e dos cavalos? Será que tem por lá alguém com quem se vai encontrar? - alvitrou interiormente -. Não acredito que ela fosse fazer uma estupidez dessas. Agora que está prometida?! Não. Tenho a certeza que não é irresponsável a esse ponto. Com o que lhe ensinei, estou segura que sabe comportar-se de acordo com os nossos costumes e tradições... 28. Subindo os decibéis e a tonalidade da voz estridente, voltou a gritar o nome da filha, cada vez mais desesperada. Em vão! - Eh vizinha, gritou Alteia, - uma amiga um bocadinho metediça e bisbilhoteira, mas sempre disposta a ajudar e a partilhar - a sua filha descampou outra vez? - Eu penso que foi novamente para o bosque sagrado. É mais teimosa que os garranos que o pai dela leva nas viagens de negócio. Estou farta de lhe dizer que se deve concentrar na preparação do casamento e ela faz de conta... O raio da rapariga até parece querer contrariar a vontade do pai... Já nem sei o que mais hei-de fazer. Olhe vizinha, as filhas são uma dor de cabeça, é o que lhe digo! - Assim parece, realmente! Se bem que as minhas ainda me não deram grandes problemas. Mas também ainda são muito novas... - Exactamente! Deixe-as crescer e depois fale comigo. Vai ver se não me dá razão... Almira, a filha mais nova de Brízida e Bertoldo, tem dezassete anos (já não é assim tão nova...) e está na idade de constituir família. O seu corpo já o indica. Adquiriu as formas esculturais que o corpo feminino alcança na plenitude do desenvolvimento. O cabelo negro, liso e forte, desce até à cintura e enquadra um rosto bronzeado que irradia jovialidade. Os olhos são amendoados e têm uma característica que confunde quem neles se fixa: o direito é azul e o esquerdo é verde. Muito abertos, indiciam uma curiosidade fora do normal e uma tremenda vontade de absorver tudo o que a rodeia, de abarcar o mundo visível e o além. Possui sobrancelhas finas e pestanas longas. O nariz, direito e com narinas pouco largas, tem a ponta levemente arrebitada. As maçãs do rosto são salientes, mas bem enquadradas na face ovalada. A boca, de lábios carnudos, promete mel ao contacto. Dela sai uma voz ronronante, quando quer encantar. Quando, porém, quer afirmar-se, ganha uma robustez de aço temperado subindo uma oitava. 29. O queixo denota uma vontade forte, um traço comum às mulheres da aldeia. O pescoço não é muito longo, mas é vigoroso. Mede cerca de um metro e sessenta, alta segundo os padrões da época. Os seios firmes retesam a roupa como se quisessem rasgá-la para se mostrarem. Quando corre, saltam e ela gosta disso. Deleita-se ao senti-los roçar na áspera roupa de lã e adora a sensação resultante do entumecimento dos mamilos devido a essa fricção. Tem uma cintura fina e ancas que prenunciam uma excelente capacidade de procriação pelo alargamento que sofreram nos últimos tempos. As pernas são fortes devido às caminhadas e corridas pela serra, que lhe proporcionaram treino. A pele, que irradia brilho e juventude devido ao sol que a afaga e ao ar fresco e rejuvenescedor da serra, que diariamente calcorreia, pede para ser acariciada. Possui, enfim, um corpo agradável, forte, saudável e desejável, e uma vontade ainda mais sólida. Naquele dia, como tantas outras vezes, tinha ido para o carvalhal, considerado sagrado pelas gentes do povoado, onde gostava de se retirar para... digamos... se encontrar consigo própria, fugindo da azáfama diária. A comunidade local tem aquele espaço como local de adoração do deus Arantio, embora ela prefira pensar que é o lugar mais adequado para ser acariciada pelo deus Lug, o deus do brilho, do sol. Sente-se livre ali. É como se se transformasse noutra pessoa. Solta os seus pensamentos e faz voar a fantasia. Parece, de facto, que é Lug quem a leva consigo numa viagem encantadora. Os problemas e preocupações do quotidiano desvanecem-se. Sente que sai do seu próprio corpo e entra num mundo novo, um mundo onde não há regras sociais que a aprisionem, onde não há um chefe de família que a controla e decide o seu futuro, onde não precisa de concordar sempre com a mãe sobre a importância de se preparar para casar com Tolosar. Liberta-se da formatação social a que é sujeita, tal como todas as suas amigas, desde o início das suas vidas. Gosta de sentir a brisa a deslizar suavemente sobre a sua face radiante e a agitar os seus cabelos negros de azeviche, ou a luz do sol, de 30. Lug, a acariciar-lhe a pele bronzeada. Deleita-se a ouvir as várias melodias entoadas pelas muitas aves que construíram os seus ninhos ali ou o suave sussurro das folhas dos carvalhos sagrados agitadas pela brisa, como se desejassem trocar sensações e segredos com ela. Adora o sentimento de serenidade, paz, plenitude e liberdade que cresce dentro de si. Esquece a dura realidade que é o seu dia-a-dia de trabalho em torno da lã produzida pelas ovelhas do rebanho que o seu irmão mais novo, Ildirsar, pastoreia por aquela serra da Cabreira. É um trabalho cíclico, que nunca acaba. Ano após ano, após ano. Depois da tosquia, a lã é lavada e esguedelhada. Essa operação consiste na desagregação da lã para remover eventuais corpos estranhos que nela se tenham emaranhado. Em seguida, é cardada. As cardas servem para reorganizar os pêlos da lã para que possa ser fiada com mais facilidade, a etapa seguinte do seu ciclo. Com os fios resultantes da fiação, são confeccionadas as diversas peças de roupa, desde meias até capas, passando por túnicas, capuzes, colchas e mantas. A maior parte do vestuário, naquela aldeia, é feito de lã e peles de animais. No fim deste ciclo, outro recomeça, igual, repetitivo, gémeo do anterior. Assim, Almira vai construindo a sua personalidade rebelde, a sua vontade de ser diferente das outras raparigas, suas amigas. Não se resigna a ser "mais uma". As suas companheiras não têm outro sonho senão aceitar, submissamente, o par que lhes for destinado pelos pais e serem boas procriadoras para poderem dar muitos e saudáveis herdeiros aos seus homens. Ela, porém, quer mais. Não lhe basta Tolosar, embora esteja destinado a ser uma figura importante da aldeia. É o filho mais velho da família mais influente da região, e o seu pai, Dominico Bescocum, é o chefe do conselho de anciãos. E esse cargo virá, certamente, para ele. Mas Almira aspira a conhecer o mundo, aventurar-se em direção ao desconhecido. Ouve frequentemente o pai e o irmão Iuntibelsar falarem sobre 31. a cidade de Bracara Augusta e desenvolveu um enorme desejo de a conhecer. Ela sabe que, se aceitar pacificamente o papel de esposa, dificilmente terá a oportunidade de ir além dos arredores de Arandosan. Nunca conseguirá conhecer novas terras e novas pessoas. Tolosar não é dado a grandes aventuras. Prefere ficar na aldeia a tratar dos negócios da família e a preparar-se para, mais tarde, assumir o cargo de chefe do conselho de anciãos. Almira ouviu falar da nova via que começa em Bracara Augusta e se dirige a Asturica, passando por Aquae Flaviae. São terras e nomes que desconhece por completo, nem sabia que existiam até ouvir o pai e o irmão comentarem isso com Tolosar. Agora, porém, que essa via está em construção e com a expectativa de que passe perto da povoação, é certo e sabido que será mais fácil e rápido chegar à cidade mais importante da região. Isso, entre outras coisas, contribui para a falta de pressa de Almira em unir-se a Tolosar. Mas sabe que não poderá adiar esse acontecimento por muito mais tempo. O pai Bertoldo e o irmão Iuntibelsar dedicam-se ao fabrico de carvão, feito essencialmente a partir dos troncos e raízes das urzes tão abundantes na serra e que, depois, é levado para as aldeias vizinhas e até Bracara Augusta. Também negoceiam peles curtidas e peças de roupa, tanto as confeccionadas por Brízida e Almira com a lã que as suas ovelhas produzem, como outras que adquirem às restantes famílias de Arandosan. Têm um bom nível de vida, ainda que seja uma existência muito trabalhosa, cansativa e exigente. Com a nova via, os dois comerciantes esperam que os negócios floresçam como jardim na primavera, uma vez que os clientes serão mais abundantes e endinheirados e as viagens mais rápidas e seguras. Bertoldo até já fala em construir um novo tear na sua casa. Para isso, será necessário anexar mais uma dependência. Se os negócios continuarem a desenvolver-se e dispararem quando a nova via chegar, isso não será um problema. Aliás, será muito bom para a povoação pois todos terão que produzir 32. muito mais mercadoria para ele levar em cima dos seus garranos. Até o número de animais terá de crescer para conseguir dar saída às solicitações dos novos clientes. Arandosan é uma aldeia composta por cerca de trinta casas, mas com espaço para se expandir. Em breve, Almira e Tolosar necessitarão da sua própria moradia. Esta, tal como a maioria das casas do local, será redonda, com um diâmetro aproximado de três varas - o que equivale a doze pés romanos, ou cerca de 355 cm. As paredes serão em pedra, enquanto a cobertura se fará de giestas e terra, materiais profusos naquela serra. Almira terá o seu próprio tear e cuidará de assegurar bons descendentes ao futuro chefe do conselho. Este, por sua vez, terá o seu próprio rebanho que, tal como todos os demais naquela região, percorrerá diariamente a serra rica em pastagem. Será uma boa fonte de alimento, agasalho e rendimento. Tolosar poderá, até, associar-se ao negócio do futuro sogro. A nova via romana trará muito mais possibilidades de comércio e Bertoldo já lhe lançou o desafio por várias vezes. - Junta-te a nós, homem! - disse ele entusiasmado e de sorriso aberto e excitado. Terás a oportunidade de conhecer novas realidades, novas pessoas, outras formas de estar na vida. Como futuro chefe do conselho, deves alargar essa visão acanhada que tens do mundo. Os romanos trazem outras perspectivas, outros conhecimentos, outro nível de vida e, com a nova via, vais ver que será mais fácil para todos os habitantes de Arandosan. - Mas, ouvi dizer que essa via vai passar longe daqui. A quantas milhas vai passar? Para o seu negócio era bem melhor que ela viesse por este lado... - Veremos. Ela ainda não está construída, pois não? Teremos que mostrar esta região ao curator viarum. Da última vez que fui até ao castro de Lanausius, tentei chegar à fala com ele, mas disseram-me que não estava. Tinha regressado a Bracara 33. Augusta. Contaram-me que vai ser substituído - disse Bertoldo baixando o tom de voz. Correm uns rumores de que se estaria a aproveitar demasiado da sua posição e, ao que parece, os seu negócio principal deixou de se centrar na via em construção. Acercando-se mais do futuro genro, segredou: - Dizem que o seu salário era substancialmente aumentado com outras actividades pouco recomendadas. Alguns até acreditam que estaria a ser bem pago para ajustar o traçado da via em função do número de denários proposto por algum habitante ou população mais abastados. Quem sabe se o próximo responsável não terá uma visão diferente da sua função e do traçado percurso... Retomando o tom normal de voz, acrescentou: - Começaram a planear, ali em Lanausius, a construção duma torre no monte Pilaricus. Por isso, ainda vai demorar algum tempo até prosseguirem com a construção da via. Só não sei muito bem é como conseguirão levar tanta pedra para aquela elevação! Mas os romanos são muito bons engenheiros. Não há dúvida quanto a isso. Veremos o que diz o novo curator viarum. Entretanto, nessa altura já estarás a viver com a Almira e seremos uma família. Poderás, então, vir connosco e veremos o que ele pensa... Tolosar franziu a testa, parecendo desconfortável com essa perspectiva. -Eu não sou talhado para o comércio. A minha paixão é a terra e os animais. As ovelhas é que me dão alimento e agasalho. Não tenho paciência nem cabeça - enfatizava Tolosar gesticulando energicamente - para discutir preços e qualidade dos produtos. Quantos tigara custa isso? Quantos ildicira vale aquela peça? Quantos sestércios quer por esse borrego? Quantos asses por esse pote de mel? Esse carvão está verde. Este está queimado demais! Essa peça de roupa é feita de lã de terceira qualidade - acrescentou, macaqueando um comprador renitente em se desfazer das suas parcas moedas. Eu não sou feito - disse ainda - para esse tipo de actividade. Se ouvisse alguém a dizer mal dos produtos que eu levava para vender, armava 34. logo confusão! Até para tratar das transacções dos nossos animais é o meu pai que se encarrega de tudo. - Olha que é uma vida muito mais atractiva porque conheces outras gentes, outras ideias, outros idiomas, outras formas de encarar a vida em sociedade e aprendes sempre mais. Irias ficar com mais bagagem para poderes dirigir, com competência, o conselho. - Havemos de pensar nisso quando a ocasião chegar, mas competência não me há-de faltar certamente. O meu pai tem muito para me ensinar e eu quero aprender com ele tudo o que puder. E, já agora, com o meu futuro sogro. Nós, os mais novos, temos o percurso facilitado quando outros já desbravaram o caminho que devemos percorrer. É sempre uma benção aproveitar o conhecimento dos nossos antecessores. - Tudo isso é bem verdade. De qualquer maneira, não ponhas a ideia completamente de lado. Vou precisar de mais gente e de mais animais para poder satisfazer as encomendas dos novos clientes... - Cada coisa a seu tempo. A verdade é que o dia de amanhã é sempre uma incógnita... Quem pode garantir que o seu negócio vai florir? Pode aparecer outro negociante qualquer com outro tipo de ofertas e arrebanharlhe os clientes... - Não te convenças disso, - atalhou Bertoldo em tom conciliador -. A roupa, a comida e o combustível para as lareiras sempre hão-de fazer falta. E as oportunidades devem agarrar-se quando aparecem e antes dos outros. O outro só vai aproveitar a oportunidade que tu deixares escapar. E no que toca aos produtos que nós comercializamos, o mais importante, para além da qualidade, é que eles cheguem rapidamente às pessoas. Para isso, nada melhor que uma boa via de comunicação e boas carroças aparelhadas com animais fiáveis. Os nossos garranos nunca nos deixaram ficar mal. E olha que eu já ando nisto há muitos anos. Desde muito pequeno acompanhava o meu pai nessa labuta e os garranos sempre foram confiáveis fosse qual fosse o terreno, o clima, a distância ou 35. a carga. Corajosos, ágeis, fortes, intrépidos, seguros. Companheiros de jornada e verdadeiramente parte da equipa. São uns animais extraordinários. Além de serem animais de tiro também têm aptidão para sela como muito bem sabes. Queres melhor companheiro de trabalho?! - Quanto aos garranos, tem toda a razão: são uns animais extraordinários. Apesar disso, não creio que o meu futuro passe pela venda ambulante seja de que produto for. Prefiro a pastorícia e o cuidado com as minhas gentes. Não gosto muito de deixar a minha região para me aventurar no desconhecido. - Já sei que não és muito aventureiro, mas também não precisas de o ser. Irás sempre na nossa companhia e, por isso, sempre terás bom ponto de apoio para enfrentares esse desconhecido que tanto temes. Vais ver que será uma forma muito mais segura de cuidares das tuas gentes. Devemos descobrir novas ferramentas para podermos melhorar a nossa vida e a de quem está à nossa volta. Se usarmos sempre as mesmas fórmulas, o resultado será sempre muito parecido. Não és tu que dizes querer cuidar dos teus? Então, quantas mais ferramentas e estratégias conseguires, mais fácil, proficiente e proficuamente atingirás os teus objectivos. Quando a ocasião se proporcionar, analisaremos melhor a tua postura. Verás que o teu pai irá concordar que vai ser bom para ti esse encontro com novas realidades. Mas, agora vou com o Iuntibelsar preparar mais umas furnas. Está-se a acabar a nossa reserva de carvão e tenho mais algumas encomendas. - Esse vosso trabalho é muito duro, não é verdade? - Muito, mesmo. As pessoas queixam-se de que o carvão está muito caro, mas não fazem ideia das voltas que é necessário efectuar e quanto tempo tem que se gastar até lhes poder entregar à porta um produto de qualidade. - Em toda a minha vida nunca vi como fazem o carvão. Como é que se chega a esse produto final? - Uma vez que estás interessado em saber, vou-te contar. Primeiro temos que escolher o tipo de madeira a utilizar. Nós 36. costumamos usar maioritariamente os troncos e as raízes da urze. Fica um carvão especial. Atinge temperaturas mais altas e dura muito mais na lareira. Os ferreiros adoram-no. Evidentemente que também usamos o carvalho. E sai, igualmente, um produto de alta qualidade. - Para juntar a quantidade de urzes necessárias para produzir tanto carvão como eu tenho visto a ser transportado por vós, diz Tolosar gesticulando, não devem fazer outra coisa a não ser percorrer a serra em busca delas. Como é que conseguem? - Contratamos alguns lenhadores, claro. Assim, tanto servem para cortar os carvalhos como para juntar as urzes. - Bem me queria parecer que só vós os dois não tinhas hipótese... - Isso é certo. Depois de a madeira estar cortada, temos que a deixar secar. Caso contrário o fogo apaga-se antes de o carvão estar no ponto. - E quanto tempo é que isso demora? - Isso depende do clima. Se o tempo estiver seco e ensolarado, é muito mais rápido. Caso contrário, temos que esperar que o sol faça o seu trabalho. - Claro. Foi uma pergunta desnecessária. - Não, não foi. Isso demonstra que queres aprender e isso é muito bom. - E depois? O que se segue? - Depois de a lenha estar seca, tem que se preparar a furna. - A furna? - Sim. A furna. A lenha, bem ordenada, é empilhada numa forma cónica... - E, interrompeu Tolosar, que medidas tem essa pilha de lenha? - Depende da quantidade de lenha que conseguimos preparar, claro. Mas, normalmente tem cerca de 10 pés de altura por 3 passi de diâmetro. No entanto, como te disse, depende da quantidade de lenha que conseguimos ter pronta para queimar. - Isso é muita lenha! - Pois é, efectivamente. Mas, como o carvão não aparece feito, alguém 37. tem que se dar ao trabalho de o preparar, não é verdade? - Ah claro que sim. E, sem trabalho não há rendimento. - Ora nem mais. Depois de termos a lenha empilhada, é necessário abafá-la para que ela não se consuma e fique reduzida a cinzas. Para isso usamos folhas e terra para cobrir a pilha. Tem que deixar uma abertura na base para atear o fogo e outra no cimo para controlar a queima. Dos lados também tens que deixar algumas aberturas para poderes inspeccionar e acelerar ou travar a velocidade da queima. Essa é a tarefa crucial, aquela que põe à prova a perícia do artista. Dela depende a boa ou má qualidade do carvão. A combustão demora o seu tempo e é necessário vigiá-la constantemente. Quatro ou cinco vezes por dia durante, aproximadamente, dez dias ao fim dos quais se fecham todas as aberturas para que o carvão se acabe de formar. - É uma trabalheira enorme. Agora percebo que ninguém se pode queixar do preço do carvão. As pessoas muitas vezes falam por ignorância. - Aí é que está. Mas isto ainda não acabou porque, depois, é necessário esperar ainda mais quatro ou cinco dias para que o carvão arrefeça e possa ser levado para o armazém onde o guardamos. Só então está pronto para ser transportado para a casa dos nossos clientes. - Não fazia a mínima ideia do trabalho que dá o fabrico do carvão. - Já ficaste mais sábio, vês? - É como eu costumo dizer: devemos aprender com quem sabe. - Bem, agora sim tenho que me ir embora. Vai pensando no que te disse. Pede a opinião do teu pai. Até logo. Até logo. Bom trabalho e obrigado pelos ensinamentos. Bertoldo lançou um último olhar acolhedor a Tolosar antes de se afastar, um olhar que continha, simultaneamente, desafio e compreensão. Ainda pensativo, Tolosar observou o futuro sogro a distanciar-se com um andar resoluto. A ideia de cruzar as rotas do comércio era tão assustadora quanto atraente. Sentia-se dividido entre a vontade de se desafiar a si mesmo e a 38. tentação de permanecer na sua zona de conforto. Mas Bertoldo tinha razão: como poderia cuidar do seu povo se a sua visão do mundo se limitasse à aldeia natal? "Vou pensar sobre isso e discuti-lo com o meu pai", murmurou Tolosar para si mesmo, prometendo a si próprio que o faria. Levantou o olhar para a montanha que o rodeava deixando-o vaguear pelo imenso arvoredo. 39. CAPÍTULO IV Ao chegar à cidade, fui directo ao Laboratório de Anatomia e Patologia Forense de Braga. O meu amigo, como de costume, estaria no seu gabinete às voltas com mais ensaios acabados de publicar, a estudar novas técnicas ou a experimentar máquinas recém-adquiridas. Se não fosse esse o caso, então é porque estava num dos diversos laboratórios a orientar mais um ensaio, uma pesquisa, uma análise, um trabalho. Aquele é o mundo dele. O segurança, conhecendo a minha longa amizade com Rolando, permitiume a entrada. - Então lá conseguiram descortinar mais um penalti manhoso, não? disse ele com um sorriso amistoso enquanto me dava um forte aperto de mão. Continuámos a trocar breves opiniões sobre clubísticas e depois apontou para o tecto. Eqato futebol e divergências acrescentou: - Pode subir que o senhor director está lá. Agradeci ao Celestino a informação e avancei pelo átrio com o coração a bater entusiasticamente em antecipação do que esperava vir a ser um fascinante serão a explorar a vida de um ser humano que viveu há dois mil anos. O elevador chamado pelo segurança, levou-me até ao 4.º andar onde Rolado tia o se Bati e, autorizado a entrar, abri a porta do gabinete encontrando o meu amigo a folhear um dossier pouco espesso. Virou-se para mim e, levantando-se para aceitar e retribuir o meu fraterno abraço, mostrou-se particularmente caloroso. - Que bom que vieste! Parece que adivinhaste que já tinha novidades para ti. Recebi, há muito pouco tempo, este dossier com os resultados preliminares. novidades. Como podes ver, estava agora mesmo a inteirar-me das 40. - Então conta lá! - Claro que sim. Mas, antes disso, diz-me: tens mais descobertas? Quando nos despedimos da última vez, fiquei com a impressão de que estavas ansioso para voltar à gruta... É que, se tiveres encontrado mais alguma coisa, isso vai dar-nos mais argumentos para as nossas hipóteses de estudo. - Infelizmente, nem a mais pequena sombra de um achado. Que desilusão! Bem que me esforcei e cavei! Nada! Nem a ponta de um chavelho! Olha, pelo menos comi uma boa merenda. E que bem que me soube! Aquele chouriço de porco bísaro, é de comer e chorar por mais. Era igual àqueles que te trouxe no mês passado. Já os provaste? - Já os provei?!! Onde vão eles! Que delícia, pá! Caí na asneira de chamar o meu amigo Eduardo para lhos dar a provar e ficámos os dois a lamber os dedos... - Um dia destes trago-te mais. Ainda restam por lá alguns. - Eh pá, não se pode abusar muito dessa alimentação. Mas, claro que agradeço. Tens uma mão especial para o fabrico dessas iguarias. - Já são muitos anos. E não deves esquecer que os animais são criados e alimentados por mim. Sei bem aquilo que devem comer para que a carne fique tenra e saborosa. - Não há dúvida! Para tudo é necessário conhecimento. - Já agora, por falar em conhecimento e antes de irmos às novidades, gostava de te contar uma coisa... - Sou todo ouvidos. Diz lá! acrescentou o meu amigo, encostando-se à secretária cheia de pastas e cruzando os pés. - Como deves calcular, eu estava ansioso por saber se já terias alguma novidade para mim. Saí de casa tão entusiasmado com a ânsia de saber o que terias para me dizer que nem me dei conta de passar o caminho. É incrível como consegui chegar aqui. Não me lembro de um único facto com que me tenha deparado durante a viagem. Nem sei como não tive um acidente. Quando cheguei ali fora ao parque, fiquei abismado por já ter chegado. 41. Por onde tinha passado? Com quem me tinha cruzado? Não me lembro de um único facto ou ocorrência ao longo da viagem até aqui... Como é possível?! - Foi o teu não consciente que te orientou e guiou o teu comportamento para que chegasses aqui em segurança. - Espera aí. Foi o meu quê?! - O teu não consciente ou inconsciente, como se lhe costuma chamar. Foste orientado pela parte do teu cérebro que catalogou e armazenou as competências necessárias para conduzir. Assim, não precisaste de analisar e avaliar conscientemente cada um dos pormenores inerentes à condução, de qual o caminho a seguir, quais os gestos necessários e os momentos adequados para engrenar as mudanças, travar, acelerar, contornar os obstáculos, etc. - Então, quer dizer que não fui eu a conduzir? - Claro que foste tu! Só não chamaste esse facto à consciência. - Eh pá, explica-me lá isso da consciência... O meu amigo lançou-me um olhar admirado, levantou a mão e afirmou, com um sorriso meio incrédulo: - Não estás à espera que te explique em cinco minutos aquilo que ando a estudar há mais de quinze anos, ou estás? - Olha, bem gostava que o fizesses, já que te interessas tanto pelo assunto... - Pois... o problema é que, mesmo que o quisesse fazer, não ia conseguir. É um tema demasiado vasto para o poder resumir dessa forma. Era como aquela história de santo Agostinho e da água do mar. - Não conheço essa história. - Um dia destes conto-ta. - Ok. Fico à espera. - No entanto, já que pediste para te explicar, vou deixar-te este cartão, que ia guardar ali no meu arquivo, com uma frase de um autor catalão. Quando tiveres algum tempo disponível, olha para ela com olhos de ver. Até te posso emprestar o livro de onde a tirei se quiseres. É bem 42. interessante e de leitura razoavelmente fácil. Entregou-me um cartão manuscrito que parecia de anotação recente e que tinha a seguinte inscrição: [A consciência pode ser descrita] "como uma narração continuada da experiência vivida, uma espécie de corrente de narração contínua que constitui o fluir da vida.(p. 48)" No verso dizia: "Guillem Feixas i Viaplana - PERSONALIDADE, Significados pessoais e sentido de identidade" Fiquei de olhar vidrado no cartão sem verdadeiramente o ver e comecei a divagar. Mas, Rolando chamou-me à realidade continuando: - Numa outra ocasião, depois de teres assimilado essa frase e lido o livro, se assim o entenderes, poderemos falar mais sobre esse assunto. Há ideias de dois ou três autores que gostaria de partilhar contigo. Assim de repente, lembro-me de António Damásio, Philip Goff e Oliver Sacks. Parece-te bem? - Parece-me muito bem. Claro que sim. Certamente que agora não era a ocasião para a tal reflexão e por isso agradeci ao meu amigo, guardei o cartão e acrescentei: - Estou a ver que terei um longo caminho de reflexão para conseguir entender isto. Mas agora, vamos então às novidades? - Claro. Eu ia-te contar. Tu é que vieste com essa história da viagem não consciente. O que até nem é nada desinteressante... Um dia que estejas menos ansioso para saber novidades paleontológicas, teremos que falar sobre o tema da consciência. Mas, vamos lá às novidades extraídas dos teus ossos... - 'Meus', não!... - Pois. Os que me trouxeste. Como te disse ao telefone, os estudos preliminares demonstraram que se trata de ossos do século I da nossa era. Portanto, são do tempo da ocupação romana. Entretanto, conseguimos comprovar que se trata de elementos de um esqueleto feminino. Já é uma pista. 43. O que me admira é o estado de conservação do maxilar. É como se tivesse estado numa gruta de um deserto árido. Intriga-me que, em plena serra da Cabreira, um osso se tenha conservado durante dois mil anos sem que os elementos da natureza o tenham deteriorado totalmente. Conta-me lá, outra vez, onde o achaste... - Bem, como te disse, depois da trovoada ter varrido, encontrei-o, meio enterrado, à saída da gruta. A terra que o cobria parecia ter sido espalhada, sem pressão alguma. Arrastada pela corrente, tinha-se acumulado sobre ele. - O que significa que não podia estar ali há muito tempo... - Exacto! Se calhar tinha sido deslocado numa das trovoadas da semana anterior. Lembro-me que houve uma, na quinta-feira se não me engano, que foi duma violência medonha! Parecia que as paredes da casa estavam a ser abaladas por um tremor de terra, tal era a fúria dos trovões. A trovoada tinha andado ali bem perto! Mal se via o relâmpago, ribombava o trovão... As paredes estremeciam tanto! Cheguei a temer que algum vidro das janelas se partisse com a trepidação. Vi cair uns quantos raios lá para os lados do Talefe. Algum se meteu à terra e fez de lá saltar o osso... - Não me parece. Aquele osso não podia estar enterrado. Se estivesse, já teria desaparecido há muito. Tem que haver outra explicação qualquer... - Qual? - Isso já seria adivinhar e, como sabes, não tenho essa capacidade... - Será que passou por ali alguém e, sem se aperceber, o deixou cair? - Eh pá, disse o meu amigo encolhendo os ombros e fazendo um trejeito com a boca, seria muito estranho. Alguém andar por ali com um osso tão antigo no bolso? - É alguma relíquia de algum santo... - Hmmm... vamos aguardar para ver se estudos mais aprofundados nos contam mais alguma coisa. Ainda falta algum trabalho... E a conversa prolongou-se, com o meu amigo a explicar-me como se faz 44. uma avaliação deste tipo de achados no âmbito das diversas disciplinas que são chamadas à colação para a sua análise. Pouco tempo depois, pelo menos era o que eu pensava, olhei para o relógio e fiquei abismado ao ver como os ponteiros do relógio tinham voado pelo mostrador. Só podia estar avariado! Não era possível que tivesse decorrido tanto tempo sem eu me aperceber. Coisa estranha, o tempo. Às vezes parece que se arrasta a passo de caracol, outras vezes dá a sensação que acelera em velocidade supersónica. Comentei esse facto com o meu amigo e ele retorquiu-me que a nossa percepção do tempo é que faz a diferença. Porém, acrescentou de imediato, este não é o momento para falar do tempo. Vamos deixar essa conversa para uma outra ocasião. Tenho que passar pelo laboratório da Rua Simão dos Santos e já estou um pouco atrasado. Vais ter que me desculpar, mas estão à minha espera para instalar uma nova impressora 3D que usará filamentos provenientes da reciclagem de cápsulas de café e estou ansioso para a ver funcionar. Fiquei, mais uma vez, embasbacado com as diversas áreas de conhecimento e acção do meu amigo. Ele sabe mesmo muito... Despedimo-nos com um forte abraço e retomei o caminho para casa com um turbilhão de ideias revoluteando na cabeça. A memória que tenho daquela despedida está imersa numa nebulosa bastante confusa. Nem tenho bem a certeza de me ter despedido convenientemente do Celestino. Lembro-me, vagamente, de ter relanceado o olhar pelo monte Espinho e ali ter fixado brevemente o Mosteiro de Bom Jesus do Monte bem como, no monte Sameiro, a Basílica de Nossa Senhora do Sameiro. Mas apenas porque são locais que visito com frequência e onde levo vários dos meus amigos para que possam apreciar as vistosas paisagens que dali se enxergam. Do que me recordo com alguma clareza, sim, é da pergunta recorrente: de onde teria surgido aquele osso? Eu estava a gostar da ideia de poder ser uma relíquia de algum santo. Já imaginava as parangonas... 45. CAPÍTULO V Cúria Júlia - Senado Wikipédia - Senado Romano Como viajavam os romanos Legiao VI Victrix, a legião estabelecida na Gallaecia no final do séc. I a.C. Map of Roman Roads (Pedro Soutinho) ORBIS - cálculo de viagens na Roma Antiga: Forte Aquis Querquennis Bato passava algum tempo com a família em Pompeia, depois de ter terminado os seus estudos em Roma quando foi convocado para se dirigir ao senado em Roma. O emissário entregou-lhe uma convocatória com o selo do imperador o que pressionou mais a partida de Bato. No dia seguinte, ainda de madrugada, Bato tomou a via Apia Na época do início da construção da Via Romana XVII, um dos nomes proeminentes associados ao legado romano que actuava em nome do imperador Augusto era Quintus Maximus Aelius. Este destacado oficial romano foi nomeado para supervisionar e coordenar a execução do projecto de construção da estrada entre Braccara Augusta, Acquae Flaviae e Asturica. Sob a liderança de Quintus Maximus Aelius, a Via Romana XVII começou a tomar forma, tornando-se uma realização notável do império romano na região. Não há registros históricos específicos que mencionem o nome do Legado Imperial Propretor responsável pelo Conventus Bracarensis no século I d.C. Portanto, não temos informações concretas sobre sua identidade. No entanto, podemos criar um nome fictício para esse legado, caso seja adequado para o contexto histórico. Vamos chamá-lo de Marcus Aemilius Valerianus. Lembre-se de que esse nome fictício não corresponde a nenhum indivíduo real, mas pode 46. ser usado para fins de ficção ou contexto histórico especulativo. Presumo que o curator viarum tivesse, muitas vezes, que "ir a despacho" junto do legado do imperador. Ou não? ChatGPT Sim, é provável que o curator viarum, responsável pela construção e manutenção das estradas romanas, precisasse ocasionalmente se reportar e prestar contas ao Legado do Imperador ou a outros funcionários de alto escalão. O Legado Imperial Propretor era responsável pela administração e supervisão geral de uma determinada região, incluindo questões relacionadas à infraestrutura e à construção de estradas. O curator viarum, por sua vez, desempenhava um papel específico na construção e manutenção das estradas dentro dessa região. Portanto, em certas ocasiões, o curator viarum poderia ter a necessidade de se encontrar com o Legado ou outros funcionários relevantes para discutir questões relacionadas às estradas e às atividades de construção. Como estaria organizada a secção onde o curator viarum teria que se deslocar para entregar relatórios sobre o andamento da construção e obter as autorizações e instruções necessárias para poder desempenhar o seu papel? ChatGPT A organização da seção onde o curator viarum se deslocaria para entregar relatórios e obter autorizações e instruções necessárias para desempenhar seu papel pode variar, dependendo da estrutura administrativa e das práticas da época. No entanto, é possível que existisse um local designado para esse fim dentro do assentamento administrativo ou da residência do Legado Imperial. Esse local poderia ser uma sala de audiências ou um escritório, onde o curator viarum se encontraria com o Legado ou outros funcionários responsáveis. O espaço seria organizado de maneira apropriada para a realização de reuniões e discussões, com mesas, assentos e possivelmente alguns registros ou documentos importantes. Além disso, é provável que houvesse uma hierarquia clara e um processo formal para a entrega dos relatórios. O curator viarum apresentaria seu relatório ao oficial responsável, discutiria o progresso da construção das estradas, questões pendentes e possíveis necessidades de recursos adicionais. Nessa interação, ele receberia as autorizações, instruções e diretrizes necessárias para continuar seu trabalho. É importante lembrar que a organização exata desses espaços e processos pode variar de acordo com o contexto específico do Conventus Bracarensis e as práticas administrativas da época. Portanto, é recomendado que você faça uma pesquisa mais aprofundada sobre a estrutura administrativa romana e as 47. práticas da época para obter uma representação mais precisa em seu livro. 48. CAPÍTULO VI 49. CAPÍTULO VII CAPÍTULO VIII CAPÍTULO IX O tempo, diz-me ele, é percebido por cada um de nós de forma diferente. A vivência pessoal do tempo está dependente de vários factores. Por exemplo, uma criança de seis anos tem uma noção de tempo completamente diferente da de uma pessoa de sessenta. É o que se chama a referência histórica do tempo. A criança só viveu pouco mais de 2190 dias, ao passo que o adulto já vivenciou mais de 21900. Um dia, na percepção da criança, representa uma parte muito mais longa da sua vida do que na do adulto. Como diz Oliver Sacks no seu livro "O rio da Consciência": "[...] os anos passam a correr, à medida que envelhecemos - seja porque quando somos jovens os nossos dias estão repletos de impressões novas, empolgantes, seja porque à medida que envelhecemos um ano se converte numa fracção cada vez mais pequena da nossa vida." Fiquei meio baralhado com essa questão, mas achei que era bem capaz de ser assim mesmo. É a pessoas mais idosas que ouvimos com mais frequência afirmar que o tempo passa a voar... - Para além disso, continuou Rolando sem me dar tréguas, a condição de vida influencia o modo como percepcionamos o tempo. Para uma pessoa que tenha uma vida muito activa, cheia de alterações, com contactos variados com outras pessoas, com outras culturas, em que a sua condição sofreu alterações várias, que visitou outras regiões, o tempo volatilizou-se. Ao invés, para uma que não tenha usufruído dessas diversificações, o tempo arrastou-se cansativamente lento. Mas, repara que demora muito mais a relembrar esse tempo mais activo, porque há mais para recordar e o tempo é memória. Se perdemos a memória, a capacidade de recordar, deixamos de ter consciência do tempo. Deves ainda ter presente que a consciência tem dois eixos: o vertical e o horizontal 50. O eixo vertical é o que qualifica a consciência entre o nível de vigília total e o estado de coma. Ao longo dos nossos dias, vamos-nos posicionado ao longo desse eixo vertical. O eixo ou plano horizontal é o que enquadra o nosso campo de atenção: eu posso alargar a minha atenção a muitas coisas em simultâneo ou estreitar o campo de atenção a um apertado túnel focalizado. Não me atrevi a interrompê-lo porque achei que o seu raciocínio iria lançar alguma luz sobre a minha questão da viagem varrida da memória. - O que é que tu fizeste, enquanto vinhas para cá? Preparava-me para lhe dar uma explicação, mas a pergunta era meramente retóricam uma vez que Rolando deu imediatamente a resposta. - Vinhas, penso eu, a fantasiar sobre o que eu teria para te contar. Estavas focado num tema que preenchia a tua atenção e, por isso, todas as alterações que ocorriam à tua volta não eram guardadas na tua memória de trabalho. Eventualmente haverá um ou outro facto que poderias chamar à consciência, mas apenas se o mesmo tivesse tido alguma relevância para ti. O que aconteceu aqui, enquanto eu te explicava os procedimentos do estudo dos ossos que me trouxeste, foi a mesma coisa: A tua consciência horizontal estava de tal modo estreitada que nada mais consciencializavas e por isso te pareceu que o tempo voou. No entanto, em termos físicos, a sequência temporal manteve a mesma relação de sempre com a velocidade da luz... Provavelmente nem te apercebeste que o Celestino veio entregar um dossier que deixou ali na mesa à entrada do gabinete. - O Celestino? Não me apercebi de nada... - Aí está! Consciência em túnel... CAPÍTULO X 51. CAPÍTULO XI 52. CAPÍTULO XII Almira pressentiu que o tempo de gestação estava a chegar ao fim uma vez que sentira as primeiras contracções. Esporádicas, mas reais. Esperava ardentemente a chegada de Bato para poder gozar, novamente, da sua presença na tenda. Queria tê-lo junto a si quando o filho de ambos decidisse sair para a luz do dia. Ela compreendia que, na ausência do seu amado, ficava mais protegida dentro da tenda, com o escravo Otos na tenda adjacente à sua. Ali ninguém a procuraria pois apenas Otos entrava na tenda para lhe trazer a comida e a água de que necessitava. Durante o resto do tempo tinha apenas a companhia do seu rebento, mantendo-se longe de olhares curiosos e protegida de alguma eventual investida dos seus familiares desejosos de vingança. Mas, ainda assim, não entendia o que se passava. Há dois dias que Bato deveria ter regressado da sua viagem e não aparecia nem tinha enviado qualquer mensageiro. Sabia que não tinha sido abandonada, mas estava ansiosa para partilhar com ele os sentimentos de felicidade que a preenchiam. Gostaria de lhe poder mostrar o sítio onde o seu filho tinha dado o pontapé mais forte, as deformações do seu ventre provocadas pelos movimentos do seu pequenino, o tamanho da sua barriga, os seus peitos avolumados. Teria que ter paciência pois, mal tivesse um intervalo, ele correria para junto dela. A família dela rejeitou-a, mas Bato acolheu-a, fazendo-a sentir-se preenchida e querida, adorada mesmo. Porém, a hora aproximava-se e ela estava sozinha. Como conseguiria fazer sair o filho do seu ventre, sem qualquer experiência ou conhecimento do que deveria fazer? Tinha visto muitos cordeiros a nascer, mas seria a mesma coisa? Como poderia saber? Por outro lado, as parteiras da aldeia não lhe mereciam qualquer confiança. Estariam ao serviço de Tolosar e de Bertoldo e seriam um risco enorme para o seu filho. Também não conhecia nenhuma no acampamento. Otos, normalmente, estava ali por perto mas quando, como agora, tinha de ir à zona das cozinhas para trazer a comida para eles, sentia-se mais 53. angustiada. Ontem tinha arriscado muito ao procurar os trabalhadores da via, mas desejava ardentemente saber notícias de Bato. Evitara os trabalhadores da aldeia que colaboravam na construção da via e procurara os legionários. Manteve-se escondida atrás de umas giestas, à espera que algum passasse. Ao avistar Sabinus Gratidia, dirigiuse a ele: - Sabinus! Sabinus! "Bato kah?" perguntou, empregando um termo celta que ainda persistia no vocabulário daquelas gentes. Bato kah? - Quê?! Que dizes? Batoká? Que é isso? - Bato kah? Preciso de falar com ele. Kah? Bato? - Olha, o Bato foi a Bracara e ainda não voltou. Não sei o que queres, mas não devias andar por aqui. Se os da tua família te apanham, estás frita. Volta para a tenda. Vai, antes que te encontrem. - Quando volta? - Volta quando puder. Vai lá para o teu refúgio, vai. Ainda mais apreensiva, regressou ao seu abrigo, decidida a questionar o escravo quando este lhe levasse a próxima refeição. Tinha que fazer chegar a Bato a mensagem da premência da situação. Se ele soubesse que o filho estava para nascer, voaria para junto dela. Sabia que ele não a abandonaria nunca! Bato, por seu lado, há alguns dias que sentia o seu coração em desassossego pois não parava de pensar em Almira. Estaria bem? Não compreendia o porquê desta inquietação! Que se passava consigo? O que estaria a acontecer? Seria a preocupação com o nascimento que se avizinhava? Ainda faltaria muito para o seu filho nascer? Tinha que se apressar a voltar para junto de Almira. Queria estar perto dela quando o seu descendente visse a luz do dia. Não poderia abandoná-la nessa hora de alegre sofrimento. Ela era a sua estrela polar. Não se cansava de agradecer aos deuses o facto de a ter encontrado, pese embora as dificuldades e tristezas que tiveram que suportar. Porque é que a família dela tinha de ser tão dura ao ponto de a ter ameaçado de morte? Ela tinha desobedecido ao pai na escolha do seu esposo, mas isso seria tão grave ao ponto de merecer a pena capital? Não fazia sentido. Ele 54. era um romano e nenhum homem na terra era mais importante que um romano... Requereu urgência à Administração, exortou os seus colaboradores a arquivarem rapidamente todos os documentos que tinham ido buscar e determinou que regressariam nesse mesmo dia para Salácia. Tinha que voltar para junto de Almira. Algo o chamava... Almira começou a sentir as contracções, ainda espaçadas, mas angustiou-se. Bato não estava ali. Bato kah? Onde estás, Bato? Amor, apressa-te. Vem. Preciso de ti, meu príncipe. O nosso filho vem aí! Agora, nem o escravo com a estava por ali. Ainda faltava algum tempo para ele voltar comida. Como poderia desembaraçar-se sozinha?! Mas não iria fraquejar. Era uma mulher de raízes celtas e, por isso, não se deixava abater facilmente. Tinha perdido demasiado para, agora, deitar tudo o resto a perder. Bato esperava um filho, ansiava por ele e ela não podia falhar. Daria a Bato o que ele almejava. As contracções regressaram, cada vez mais próximas, cada vez mais fortes. O seu filho queria sair, não restavam dúvidas... Alarmada mas determinada a levar avante a sua missão, posicionou-se no leito improvisado e apoiou-se nas mãos e nos joelhos. Deveria ser a melhor posição para o filho sair. Ele iria ajudá-la porque tinha a certeza que estava desejoso de ver o pai e a mãe. Uma contracção mais forte e outra e outra... já o sentia a aparecer... O grito que brotou da sua garganta ajudou o seu adorado filho a sair para a luz do dia no momento em que Bato chegou a Salácia e tentou saber notícias da sua princesa querida. Encontrou Otos na zona das cozinhas e interrogou-o, mas ele não tinha quaisquer novidades. - Amo, ontem estava tudo bem. Ia, agora, levar-lhe o alimento. - Então deixa que eu mesmo faça isso. Pegou no alforge da comida, verificou se tinha consigo um tecido muito macio que havia adquirido, em Bracara, para Almira e partiu esbaforido em direcção à sua habitação, com a firme intenção de ficar junto dela sem arredar pé até que o seu filho tivesse nascido e ela estivesse em segurança. Mais acima encontrou Sabinus que lhe disse: - Bato, já voltaste! Ontem vi a Almira ali em cima, perto de 55. Avarandado. Disse-lhe que tinha arriscado bastante ao vir para estes lados. É verdade que estava escondida, mas... - E que andava ela por ali a fazer? - Isso não sei. Ela parecia-me aflita e com uma conversa que eu não entendi. Virou-se para mim e só dizia: Batoká? Batoká? Batoká? Não percebi nada. Mas, disse-lhe que estavas para Bracara e que ela devia voltar para a tenda e ficar por lá até tu voltares. Se a família dela a visse, não sei o que poderia acontecer se não estivesse ninguém por perto para a proteger... - Obrigado, Sabinus. Fizeste bem. O que ela estava a dizer era: "Bato Kah?" que quer dizer "Onde está Bato?". Estava-te a perguntar por mim. Kah é uma palavra de origem celta que quer d não a voltei a ver. Pareceu-me algo agitada... - Obrigado, mais uma vez, meu amizer: "Onde?", "Onde está?" - Não fazia a mínima ideia. De qualquer maneira, ela voltou para a tenda. Pelo menos, afastou-se dali eigo. Vou ao encontro dela. Não devia ter saído da tenda, por causa da sua família. O meu filho deve estar prestes a nascer e ela devia andar à minha procura. Demorei mais do que pensava e isso deve-a ter preocupado. Vou agora para lá. E retomou a sua marcha acelerada em direcção à tenda. Estava quase lá, mas ainda havia uma subida a fazer... Almira estava exausta, mas tão feliz! Pegou no seu bebé e verificou se haveria algum problema com ele... Mas... uma partida dos deuses. O seu rebento não era varão. Era uma menina! Bato iria ficar triste, desgostoso. Ele queria um homem... Não iria ter, por agora, um homem. Era uma menina. Com os dentes, Almira cortou o cordão umbilical e embrulhou a sua menina num quente pano de lã. Era tão linda! Pode ser que Bato se afeiçoe a este rosto tão radioso. Como lhe iriam chamar? Teriam que decidir em conjunto. A menina chorou e Almira aconchegou-a e deu-lhe o primeiro alimento saído do seu peito. A criança procurou avidamente o mamilo a tentar sugar o leite quente e adocicado. A mãe recostou-se numas almofadas cheias com lã de ovelha olhando, enlevada, para o seu bébé. Que menina tão luminosa! De repente, começou a sentir uma humidade quente debaixo de si. Que 56. estava a acontecer? Olhou e viu sangue a escorrer das suas entranhas. Seria normal? Não sabia, mas teve medo. Encaixou um pano entre as suas pernas para tentar parar o sangue e continuou a deleitar-se com a visão da sua filhinha. Bato tinha que gostar dela... era tão... O sangue encharcou o pano que tinha usado para o estancar. O seu coração estava a bater cada vez mais depressa e ela estava a começar a sentir-se mais fraca. O parto tinha-a deixado muito cansada e não estava a recuperar as forças. Teve a certeza que algo estava errado. Não podia ser normal estar a perder tanto sangue. Bato, amor, vem! Estava a ficar seriamente preocupada, pois as forças esvaíam-se e já quase não conseguia segurar a sua menina. Mas tinha que a segurar. Não a podia largar, de maneira nenhuma. Tem que ser forte! Tem que ser forte! Mas não consegue ser forte. O seu coração bate cada vez mais depressa e estrondeia-lhe nos ouvidos. Convence-se que vai morrer sozinha naquela maldita tenda. Quem vai tomar conta da sua menina? Quem a vai alimentar? Quem a vai agasalhar? Tem de continuar a esforçar-se pela sua filha adorada. Tem que aguentar até Bato chegar. Ela é uma mulher celta, não desiste! Gradualmente começa a sentir-se tão desolada, submersa numa tristeza tão profunda, tão avassaladora que lhe esmaga o peito até à implosão. Não vai conseguir acompanhar o crescimento da sua adorada filha. As suas forças estrecem rapidamente. Que desespero! Oh deuses cruéis, como podeis ser tão insensíveis? Tão maldosos? Tão ... malvados! Como podeis brincar com a vida dos mortais? Como podeis desprezar tanto, quando nós tanto amamos? Como podeis separar a mãe daquela que, com tanto carinho e por um preço tão alto, transportou dentro de si nestas nove luas? Como nos quereis fazer crer que vos preocupais com a nossa existência? Será que vós, afinal, existis? Não sereis antes uma fantasia nossa para justificar muitos dos nossos actos? Se vós existísseis, nunca poderíeis permitir esta crueldade indizível, este crime hediondo, esta forçada e inapelável separação de dois 57. seres inextricavelmente associados! E direccionou os seus pensamentos para a filha que amamentava, segurando-a ternamente nos seus braços, cujas forças se dissipavam inexoravelmente, enquanto abundantes lágrimas inundavam o seu rosto e ela encostava a pequenina ao seu peito aflito. Oh minha flor! Oh meu poema de amor! Quanta angústia e desolação no meu peito! Esta dor imensa que me rasga por dentro é tão forte que me enlouquece. Só a tua presença me mantém alerta. Apenas o medo de te deixar só me faz agarrar com todas as forças a esta réstia de vida que escorrega por entre os dedos do meu medo. Porque é que, logo agora, o teu pai tinha que ir a Bracara! Mas tenho a certeza que ele vai chegar a tempo de te proteger. Vai tomar conta de ti porque tu lhe vais fazer recordar o amor da sua vida. Tu vais mostrar-lhe no teu rosto esta minha face que ele idolatra. Tu vais ser a minha cópia perfeita para que ele me possa contemplar em ti! Quanto a mim, meu amor, minha doce gota de mel, não te verei crescer. Não poderei alegrar os meus olhos com o teu primeiro sorriso. Não ouvirei a melodia da tua voz a chamar o meu nome e não poderei nunca enternecer a minha para chamar pelo teu. Não irei ensinar-te a dizer "papá" nem terei oportunidade de te mostrar o lugar onde ele e eu demos o primeiro beijo. Não estarei contigo para te amparar quando deres os primeiros passos. Não viverei para te mostrar as flores, os pássaros, a chuva e a neve. Não te poderei alertar para não olhares directamente para o sol nem terei a oportunidade de brincar contigo a descobrir figuras nas nuvens. Estarei ausente quando tiveres medo não podendo, assim, sossegar o teu coração sobressaltado Não vou partilhar das tuas alegrias nem dar-te conforto nas tuas dores e tristezas. Não sentirei mais a macieza da tua pele e não me poderei deliciar com o som cristalino do teu riso, com a ternura do teu olhar, com a doçura do teu afago, com a suavidade dos teus beijos. Não vou poder alimentar-te nem lavar esse teu corpo que faz lembrar pétalas de rosa. Não irei cuidar-te quando estiveres doente. Não estarei lá para cuidar dos teus joelhos esfolados e dos teus braços arranhados pelas 58. quedas. Oh quanta angústia, meu sol da manhã! Oh quanta desolação, minha aurora rosada! Tenho o peito destroçado, minha suave brisa da tarde! Quem limpará as tuas lágrimas quando o teu coração chorar por não poderes ter o homem desejado? Quem será a tua confidente quando as dúvidas te assaltarem e a incerteza da vida te empurrar para o abismo? Não poderei ser eu, minha flor perfumada. Também não poderei consolar o teu pai quando verificar que és uma menina e não um varão que lhe prolongue a descendência. Ele inicialmente vai ficar desgostoso, mas podes ter a certeza que te vai amar com todas as forças do seu coração. Escuta, meu bem... parecem os seus passos apressados... É ele! Ficas em boas mãos, meu anjo! Eu sabia que ele chegaria a tempo de tomar conta de ti. Agora sei que vais ficar bem. Adeus, meu amor! Adeus meus amores... levo o meu coração totalmente preenchido por vós... E foram estes os últimos pensamentos coerentes que Almira teve. O resto foi uma catadupa de imagens que desfilaram pela sua mente evanescente. Até que o seu coração parou e a sua consciência se apagou... Nesse instante, Bato entrava ofegante olhando em volta a piscar os olhos para que se habituassem à semi-obscuridade ambiental. Viu-a desfalecida e ajoelhou-se apressadamente junto dela tomando a sua cabeça nas mãos trementes de ânsia. Apercebeu-se de um vulto pequenino em cima do peito de Almira e ficou petrificado. O que aconteceu? O meu filho já nasceu? Como é possível que eu não estivesse aqui? Oh deuses, porque me impedistes de viver este momento tão marcante da minha vida? Como ousais brincar com sentimentos tão nobres de nós os mortais? Como é possível que não estivesse aqui ninguém, nenhuma parteira, nenhum dos meus ajudantes? Claro que não contava com ninguém da família de Almira, mas... ninguém?! - Amor, como te sentes? Almira, estou aqui, amor. Desperta, minha rosa querida. Vamos, amor. Almira! Mas, ela não reagia. O que se passava? Porque não se soergueu para o saudar? Porque não sorriu? Bato começou a ficar assustado com a quietude da sua amada. A sua garganta constringia-se. O seu peito comprimia-se com a 59. angústia a avolumar-se e o negrume o medo a tolhê-lo. Apenas o pequenino vulto se mexia ao ouvir o som estranho daquela voz. A quietude de Almira era alarmante. Bato abanou-a gentilmente, mas não obteve qualquer reacção. Os seus olhos fechados emanavam serenidade, o seu rosto quieto transmitia paz. Parecia dormir em resplandecente sossego... NÃÃÃÃÃOOOOOOOOO!!!! O grito rasgou a tarde e feriu os tímpanos de todos os moradores do acampamento com tal violência que a maior parte deles afirmavam, passados muitos meses, que sentiram os pelos da nuca a eriçarem-se e um frio intenso a percorrer-lhes o corpo. Em contraste com o sonoro rugido, ouviu-se o assustado vagido da criança recém-nascida que obrigou Bato a aconchegá-la nos seus braços tomado de um enorme caldo de sentimentos conflituantes. Ele decidiu chamá-la de Amara, que significava "eterna" em sua língua ancestral, em homenagem à memória de Almira. 60. CAPÍTULO XIII 61. CAPÍTULO XIV 62. CAPÍTULO XV 63. ÍNDICE CAPÍTULO <$R#CAPÍTULO:MyCAPÍTULO> CAPÍTULO <$R#CAPÍTULO:MyCAPÍTULO> CAPÍTULO XVI