Uploaded by Andre Diener

Monografia - Planejamento Sucessorio Patrimonial

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ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO PATRIMONIAL:
ANÁLISE DE CASOS HIPOTÉTICOS À LUZ DAS QUESTÕES CONTROVERSAS DO
DIREITO SUCESSÓRIO
Marina Ludovico Stollenwerk
Rio de Janeiro
2017
MARINA LUDOVICO STOLLENWERK
PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO PATRIMONIAL: ANÁLISE DE CASOS
HIPOTÉTICOS À LUZ DAS QUESTÕES CONTROVERSAS DO DIREITO SUCESSÓRIO
Monografia apresentada como exigência de
conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
da Escola de Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro.
Orientadora:
Profª. Andrea Maciel Pachá
Coorientadora:
Profª. Néli Luiza C. Fetzner
Rio de Janeiro
2017
MARINA LUDOVICO STOLLENWERK
PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO PATRIMONIAL: ANÁLISE DE CASOS
HIPOTÉTICOS À LUZ DAS QUESTÕES CONTROVERSAS DO DIREITO SUCESSÓRIO
Monografia apresentada como exigência de conclusão de
Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola de
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em ______ de ___________ de 2017. – grau atribuído: ____________
BANCA EXAMINADORA: _______________________________
Presidente: Prof. Desembargador Sylvio Capanema de Souza – Escola da Magistratura do
Estado do Rio de Janeiro – EMERJ
______________________________________________________
Convidada: Profª. Ana Luiza Maia Nevares – Escola da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro – EMERJ
______________________________________________________
Orientadora: Profª. Dra. Andrea Maciel Pachá – Escola da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro – EMERJ
______________________________________________________
A ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – EMERJ – NÃO
APROVA NEM REPROVA AS OPINIÕES EMITIDAS NESTE TRABALHO, QUE SÃO
DE RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DA AUTORA.
À minha família, pelo amor incondicional
e pela sabedoria transmitida, por me fazer distinguir
situações que demandam serenidade ou coragem...
ou as duas juntas!
AGRADECIMENTOS
Meus sinceros agradecimentos...
A Deus, onipresente, onisciente e onipotente.
À minha orientadora, Andrea Maciel Pachá, por ter se desdobrado e aceitado meu pedido de
orientação, exercendo-a magistralmente com enriquecedores insights, discussões e correções,
mas especialmente pelas amorosas lições de vida, transformadoras da minha visão jurídica do
mundo.
À minha coorientadora, Néli L. C. Fetzner, pela disponibilidade e pelo rigor nas orientações a
fim de que essa monografia atendesse plenamente os requisitos da norma da ABNT.
À Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, por propiciar um ambiente favorável
ao aprendizado e ao crescimento exponencial de seus alunos, ensinando-lhes, entre muitas
outras lições, serem nossos limites muito maiores daqueles inicialmente supostos.
Aos professores, em especial Thiago Ferreira Cardoso Neves, pelos incontáveis ensinamentos
e debates jurídicos, imprescindíveis para concretização do meu sonho.
Aos meus pais, Fatima e Bruno, e à minha madrasta, Mara, pelo amor, carinho e,
principalmente, paciência para me mostrar o melhor caminho a seguir.
À minha irmã, Anna, por ser minha outra metade da laranja, que, como extremos, juntas
encontramos o equilíbrio.
À minha irmã, Bruna, pela felicidade estampada em seu rosto ao correr em minha direção e
para quem desejo transmitir pelo exemplo o gosto pelo estudo.
Aos Ludonnet, por me ensinarem, entre muitas brincadeiras e mais ainda apelidos carinhosos,
os valores essenciais da vida.
Aos meus amigos, pelas impagáveis e preciosas risadas.
E, finalmente, ao Apolo, pelo seu olhar.
SÍNTESE
Assim como em leis esparsas e no Código Civil de 1916, o Código Civil de 2002 estipulou a
ordem de vocação hereditária, encontrando-se o cônjuge sobrevivente e o companheiro
sobrevivente abrangidos pelos seus artigos 1.829 e 1.790, respectivamente. Todavia, a
existência de dispositivos normativos para cada uma dessas figuras importou em uma
diferença de tratamento, causadora no ordenamento de instabilidade jurídica ante às
insatisfações e aos entendimentos diversos. Essa instabilidade é potencializada com as ainda
maiores discussões internas de cada artigo e seus incisos. O presente trabalho urge à
sociedade, jurídica e leiga, a prestar a devida atenção e cuidado com as confusões
provenientes dessa situação, sugerindo o planejamento sucessório patrimonial como solução
viável e recomendável para se evitar os consequentes dissabores familiares. Assim sendo,
expõem-se os limites e os objetivos do planejamento sucessório patrimonial, apresentando os
instrumentos existentes no ordenamento jurídico brasileiro aplicáveis. Ao final, após
construções de casos hipotéticos, com observância das principais controvérsias ocasionadas
por ambos os artigos supracitados, sugerem-se soluções pertinentes com a utilização dos
instrumentos apresentados, a teor dos limites e objetivos de cada caso em particular.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
1. A CONSTRUÇÃO DOS CASOS HIPOTÉTICOS À LUZ DAS QUESTÕES
CONTROVERSAS DO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO
SOBREVIVENTE .................................................................................................................. 12
1.1. A análise morfológica como técnica de escolha para a construção dos casos
hipotéticos .............................................................................................................................. 12
1.2. O processo de construção e seleção dos casos hipotéticos .......................................... 13
1.2.1. Formulação e definição do problema ........................................................................ 13
1.2.2. Identificação e caracterização de todos os parâmetros do problema ..................... 13
1.2.3. Construção da matriz multidimensional e possíveis alternativas associadas à
solução do problema ............................................................................................................. 14
1.2.4. Avaliação das alternativas .......................................................................................... 14
1.2.5. Análise das melhores alternativas, em função de critérios pré-estabelecidos ....... 15
2. A SUCESSÃO HEREDITÁRIA DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ...................................................................... 21
2.1. Aspectos históricos dos vocacionados hereditários no Direito Sucessório
.................................................................................................................................................. 21
2.2. Direito Sucessório sob a ótica civil-constitucional ...................................................... 40
2.3. Conceituação de sucessão............................................................................................... 44
2.4. Críticas ao Direito Sucessório ....................................................................................... 45
3. A ORDEM DE VOCAÇÃO HEREDITÁRIA: DIREITOS SUCESSÓRIOS DO
CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO SOBREVIVENTE ....................................................... 50
3.1. Dos regimes de bens existentes no atual ordenamento jurídico ................................. 50
3.2. Da sucessão do cônjuge sobrevivente ........................................................................... 57
3.3. Da sucessão do companheiro sobrevivente .................................................................. 69
3.4. Do direito real de habitação e do usufruto legal sucessório ....................................... 81
4. PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO PATRIMONIAL: OBJETIVOS, LIMITES E
INSTRUMENTOS................................................................................................................. 103
4.1. Conceituação de planejamento sucessório patrimonial: objetivos e limites ........... 103
4.2. Instrumentos jurídicos existentes no atual jurídico .................................................. 106
4.2.1. Testamento ................................................................................................................. 106
4.2.2. Doação ........................................................................................................................ 114
4.2.3. Usufruto ..................................................................................................................... 125
4.2.4. Fideicomisso ............................................................................................................... 129
4.2.5. Bem de família ........................................................................................................... 136
4.2.6. Planos de previdência complementar privada ....................................................... 147
4.2.7. Seguro de vida ........................................................................................................... 153
4.2.8. Conta conjunta .......................................................................................................... 158
4.2.9. Regime de bens .......................................................................................................... 161
4.2.10. Trust ......................................................................................................................... 161
4.2.11. Holding patrimonial ................................................................................................ 165
4.2.12. Acordo de acionistas ............................................................................................... 169
4.2.13. Planejamento tributário ......................................................................................... 172
5. A SUBSUNÇÃO DOS INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO AOS
CASOS HIPOTÉTICOS....................................................................................................... 176
5.1. Solução do caso hipotético 1 ....................................................................................... 176
5.2. Solução do caso hipotético 2 ....................................................................................... 180
5.3. Solução do caso hipotético 3 ....................................................................................... 183
5.4. Solução do caso hipotético 4 ....................................................................................... 187
CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 190
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 192
9
INTRODUÇÃO
O planejamento sucessório patrimonial pressupõe a utilização de diversos
instrumentos jurídicos que possam garantir a transmissão de um patrimônio para os herdeiros
de maneira eficaz e eficiente, atingindo os objetivos desejados a um custo menor e de forma
mais rápida.
O Código Civil de 2002 mudou de forma significativa a partilha entre o cônjuge ou
companheiro, descendentes e familiares, do patrimônio deixado pelo de cujus. Intepretações
distintas dos artigos 1.790 e 1.829 decorrem de questões controversas da ordem de vocação
hereditária e do direito sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente, que são hoje
objeto de intenso debate.
Nesse contexto, é de fundamental importância incorporar a análise dessas questões
controversas na arquitetura de processos de planejamento sucessório patrimonial e na escolha
dos instrumentos jurídicos em cada caso.
Esse tema mostra-se relevante para os profissionais da área do Direito, considerandose a necessidade de uma discussão mais aprofundada sobre as questões controversas da ordem
de vocação hereditária e do direito sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente, na
perspectiva do planejamento sucessório patrimonial. Interessa também a toda a sociedade
brasileira, considerando-se que para todas as famílias, nas quais haja formação de patrimônio
ainda que modesto, é importante saber e planejar como se dará a destinação do mesmo, após a
morte de seus proprietários.
O problema de pesquisa a ser investigado norteia-se pelas seguintes questões: (i)
Quais os significados dos termos sucessão e planejamento sucessório patrimonial?; (ii) Qual a
abrangência dos direitos sucessórios regulamentados pelos artigos 1790 e 1829 do Código
Civil brasileiro de 2002 e quais as principais questões controversas em torno desses artigos?;
(iii) Quais os objetivos e limites do planejamento sucessório patrimonial e que instrumentos
jurídicos podem ser utilizados para atingir esses objetivos?; (iv) Considerando-se os objetivos
do planejamento sucessório patrimonial, que casos hipotéticos se mostram relevantes para a
discussão das questões controversas da ordem de vocação hereditária e do direito sucessório
do cônjuge e do companheiro sobrevivente?; e (v) Em que medida as diferentes intepretações
dos artigos 1790 e 1829 podem influenciar a escolha dos instrumentos de planejamento
sucessório nos casos hipotéticos selecionados?
10
Uma vez definido o problema da pesquisa, o objetivo geral deste trabalho é
demonstrar que interpretações distintas dos artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil de 2002
podem influenciar na escolha dos instrumentos jurídicos para a elaboração de planejamento
sucessório patrimonial, com base na análise das questões controversas da ordem de vocação
hereditária e do direito sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente. Essas
diferentes visões sobre os artigos importam em uma insegurança jurídica aos herdeiros do
falecido, em especial seu cônjuge ou companheiro supérstite, quanto aos seus quinhões a
serem amealhados.
Em termos específicos, este trabalho busca: (i) Conceituar sucessão e planejamento
sucessório patrimonial e definir a abrangência dos direitos sucessórios regulamentados pelos
artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil de 2002; (ii) Identificar as questões controversas em
torno desses artigos, na perspectiva de analisar as implicações das diferentes interpretações
para processos de planejamento sucessório patrimonial; (iii) Descrever os objetivos e limites
do planejamento sucessório patrimonial e analisar os instrumentos jurídicos que podem ser
utilizados para atingir esses objetivos; (iv) Construir casos hipotéticos de planejamento
sucessório patrimonial com o suporte da ferramenta de análise morfológica, considerando
todos os objetivos desse planejamento; e (v) Analisar os casos hipotéticos de planejamento
sucessório patrimonial e a escolha dos respectivos instrumentos jurídicos à luz das questões
controversas da ordem de vocação hereditária e do direito sucessório do cônjuge e do
companheiro sobrevivente.
Visando atingir os objetivos acima, a metodologia adotada compreende pesquisa
bibliográfica e documental, bem como análise de conteúdo e análise morfológica. A pesquisa
pode ser classificada, quanto à abordagem, como qualitativa, e quanto aos fins descritiva e
explicativa.
Apresenta-se, sucintamente, como a monografia está estruturada. São cinco
capítulos, além desta introdução e da conclusão.
No capítulo 1, descreve-se o processo de construção dos casos hipotéticos de
planejamento sucessório patrimonial, com ênfase no direito sucessório do cônjuge e do
companheiro sobrevivente, utilizando-se como suporte a ferramenta de análise morfológica.
Já no capítulo 2, apresenta-se um breve histórico do Direito Sucessório, com enfoque
no desenvolvimento dos direitos do cônjuge e do companheiro sobrevivente. Em seguida,
apresenta-se a visão civil-constitucional do Direito Sucessório, para depois conceituar
sucessão e discutir as críticas ao direito sucessório.
11
No capítulo 3, apresentam-se os regimes de bens atuais no ordenamento jurídico. Em
seguida, identificam-se e discutem-se as questões controversas da ordem de vocação
hereditária e do direito sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente, na perspectiva
do planejamento sucessório patrimonial.
O capítulo 4 aborda o tema central da monografia em mais detalhe, conceituando-se
planejamento sucessório patrimonial e destacando-se seus principais objetivos e limites.
Discutem-se as características de um plano sucessório e os desafios de sua arquitetura,
considerando-se as inúmeras variáveis que entram em jogo em cada caso. Em seguida,
apresentam-se ferramentas e instrumentos jurídicos disponíveis para se elaborar um
planejamento sucessório patrimonial efetivo. Esses instrumentos serão aplicados nos casos
hipotéticos construídos a partir dos objetivos pretendidos em cada caso de planejamento
sucessório (capítulo 5).
No capítulo 5, analisam-se os casos hipotéticos e a escolha dos respectivos
instrumentos jurídicos, à luz das questões controversas da ordem de vocação hereditária e do
direito sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente.
Ao final da monografia, formulam-se as conclusões da pesquisa e propõe-se um
conjunto de recomendações para os profissionais do Direito, que atuam especialmente na área
de sucessões e em planejamento sucessório; para aqueles que constituíram patrimônio e
desejam interferir na forma e nas consequências da partilha após sua morte; e para os
familiares herdeiros que participam da gestão do patrimônio. Finalmente, endereçam-se
propostas de estudos futuros, como desdobramentos da presente pesquisa.
12
1. A CONSTRUÇÃO DOS CASOS HIPOTÉTICOS À LUZ DAS QUESTÕES
CONTROVERSAS DO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO
SOBREVIVENTE
Descreve-se o processo de construção dos casos hipotéticos à luz das questões
controversas do direito sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente, tendo como
suporte a técnica de análise morfológica, desenvolvida por Fritz Zwicky na década de 60.
Inicialmente, caracteriza-se a análise morfológica como método de escolha para estruturar e
avaliar as combinações dos parâmetros, variáveis, críticos e estados alternativos que esses
possam assumir, tendo em vista a geração dos casos hipotéticos e posterior seleção daqueles
que serão objeto dessa monografia. Em seguida, apresentam-se os quatro casos selecionados,
justificando-se a escolha dentre as diversas alternativas plausíveis, em função da intensidade e
relevância das questões controversas identificadas em cada alternativa.
1.1. A análise morfológica como técnica de escolha para a construção dos casos
hipotéticos
A análise morfológica é uma técnica analítico-combinatória, que se baseia na
decomposição de um problema, ou objeto de análise, em seus atributos. Zwicky1 propôs essa
técnica em cinco passos básicos, a saber: (i) formulação e definição do problema; (ii)
identificação e caracterização de todos os parâmetros do problema; (iii) construção de uma
matriz multidimensional, contendo as possíveis alternativas associadas ao problema; (iv)
avaliação das alternativas, com base na análise da viabilidade e sua objetividade; e (v) análise
das melhores alternativas, em função de critérios pré-estabelecidos pelo pesquisador.
No contexto da análise das questões controversas dos direitos sucessórios do cônjuge e
do companheiro sobrevivente no ordenamento jurídico brasileiro, o uso dessa técnica visou a
identificar as variáveis e relações críticas relacionadas a essa problemática, na perspectiva de
gerar casos hipotéticos e selecionar aqueles de maior interesse para fins desse trabalho.
A hipótese básica dessa técnica é a de que um problema complexo – como o do direito
sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente – pode ser decomposto em variáveis
fundamentais, principais elementos e funções básicas, que passam por uma análise sistemática
1
ZWICKY, F. Discovery, invention, research – through the morphological approach. New York: Macmillan
Publisher, 1969, p. 34.
13
das formas alternativas que essas possam assumir, gerando, assim, um conjunto de estados ou
valores referentes às variáveis.
A lógica da decomposição do problema é lidar com questões menos complexas do que o
sistema original, possibilitando, desse modo, uma análise mais profunda das partes subsistemas com estados e funções distintas. Ao combinar todos esses estados, pode-se
elencar um universo de alternativas representativas da questão em foco. As combinações
intrinsecamente inconsistentes, juridicamente insustentáveis ou economicamente inviáveis são
descartadas. Filtram-se somente as alternativas consideradas plausíveis. Tais alternativas
formam a matriz multidimensional, que constitui a base para a construção dos casos
hipotéticos. Durante esse processo, podem surgir recombinações de subsistemas viáveis - já
existentes ou conceituais -, que constituem novas opções a serem exploradas.
1.2. O processo de construção e seleção dos casos hipotéticos
A construção dos casos hipotéticos, objeto dessa monografia, seguiu os cinco passos
básicos, como proposto por Zwicky2. A seguir, apresentam-se os resultados do processo de
construção por etapa.
1.2.1. Formulação e definição do problema
O problema em foco refere-se à existência de interpretações diversas para os artigos
1.790 e 1.829 do Código Civil de 20023, fato que inclusive influiu no ajuizamento de uma
ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Essas diferentes
visões sobre os artigos importam em uma insegurança jurídica aos herdeiros do falecido, em
especial ao cônjuge ou companheiro supérstite, quanto aos quinhões a serem amealhados.
Assim, tais interpretações podem influenciar diretamente na escolha dos instrumentos
jurídicos para a devida elaboração de planos sucessórios familiares.
1.2.2. Identificação e caracterização de todos os parâmetros do problema
2
Ibid.
BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 01 abril 2016.
3
14
Essa etapa foi elaborada com o apoio de levantamento e análise de bibliografia
especializada em direito sucessório e sob a supervisão da orientadora.
Como resultado, definiram-se os seguintes parâmetros, variáveis, que podem
influenciar na escolha dos instrumentos jurídicos para a elaboração de planos sucessórios
familiares: (i) regime de bens; (ii) estado civil, se cônjuge ou companheiro; (iii) objetvos do
planejamento sucessório; (iv) vocação hereditária; e (v) instrumentos jurídicos aplicáveis. O
número de variáveis recomendado pelo autor é de 2 a 6.
1.2.3. Construção da matriz multidimensional e possíveis alternativas associadas à
solução do problema
Uma vez definidas as variáveis, procedeu-se à geração de estados alternativos que as
variáveis selecionadas poderiam assumir. Para isso, listaram-se as variáveis sob a forma de
títulos das colunas da matriz e, em seguida, os estados possíveis para cada variável. A matriz
multidimensional resultante é representada na Figura 1.
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjuge
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Objetivos do
planejamento
sucessório
Variável
Instrumentos
jurídicos
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
?
?
?
?
?
Figura 1 - Matriz multidimensional para geração dos casos hipotéticos
Como pode ser observado, essa matriz permite gerar um número muito grande de
possibilidades combinatórias, que deverão ser analisadas na próxima etapa.
1.2.4. Avaliação das alternativas
15
Nessa etapa, submeteu-se a matriz da Figura 1 à criteriosa análise de viabilidade e
consistência, a fim de se identificar as configurações básicas de maior interesse para a escolha
dos instrumentos jurídicos na elaboração de planos sucessórios familiares – objeto do capítulo
6.
1.2.5. Análise das melhores alternativas, em função de critérios pré-estabelecidos
Estabeleceram-se os seguintes critérios para seleção dos casos a serem analisados: (i)
intensidade das questões controversas identificadas em cada alternativa; e (ii) relevância das
questões para a escolha dos instrumentos jurídicos aplicáveis.
Como resultado desta análise, chegou-se a quatro casos hipotéticos representados nas
Figuras 2 a 5, respectivamente.
No caso hipotético 1, justifica-se a combinação dos estados selecionados para cada
variável, na medida em que preenchem os critérios de intensidade e relevância das questões
controversas para a escolha dos instrumentos jurídicos aplicáveis.
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjuge
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Objetivos do
planejamento
sucessório
Variável
Instrumentos
jurídicos
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
?
?
?
?
?
Figura 2 – Caso hipotético 1
Esse caso hipotético traz um cônjuge sobrevivente, casado pelo regime da separação
legal. Optou-se pelo estado ‘separação legal de bens’, por se discutir doutrinária e
16
jurisprudencialmente o significado da expressão ‘separação obrigatória de bens’, utilizada
pelo legislador no artigo 1.829, I, do Código Civil de 20024, e quais espécies de regime de
separação de bens abrangeria, bem como sobre a aplicação de entendimento jurisprudencial
sumulado do Supremo Tribunal Federal. Essa discussão reperticurá de forma direta na
composição do quinhão amealhado pelo cônjuge sobrevivente. A depender da posição
adotada, poderá haver ou não a concorrência entre o cônjuge supérstite e os descendentes,
existentes nesse caso hipotético.
Por fim, quanto aos objetivos do planejamento sucessório, percebe-se que o medo da
deterioração dos bens adquiridos com grande esforço pelo futuro inventariado está sempre
presente, seja pela demora excessiva dos processos de inventário pelo abarrotamento do Poder
Judiciário e/ou pelas incansáveis disputas entre herdeiros, seja pela incapacidade inicial
administrativa e financeira dos interessados. Isso, por si só, justifica a escolha desse estado –
‘preservação dos bens’ – no caso hipotético. Ademais, inclui-se também o estado ‘liberação
rápida de recursos e ativos’. No dia-a-dia forense há diversos casos de cônjuges ou
companheiros sobreviventes que dependiam do(a) parceiro(a) para se sustentar. No entanto,
em decorrência da morte inesperada e não planejada, vêem-se em situações financeiras
complexas sem condições de prover a si mesmo o mínimo existencial.
Para o caso hipotético 2, as questões controversas apontam para a escolha da
combinação dos estados assinalados na Figura 3.
4
Ibid.
17
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjuge
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Objetivos do
planejamento
sucessório
Variável
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
?
?
?
Instrumentos
jurídicos
?
?
Figura 3 – Caso hipotético 2
Trata-se de um companheiro sobrevivente, unido pelo regime da separação
convencional. Justifica-se a escolha pelo estado ‘separação convencional de bens’, ante à
discussão sobre a possibilidade da comunhão dos aquestos, com eventual aplicação de
entendimento jurisprudencial sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, bem como a
equiparação da união estável ao casamento para fins de aplicação de suas regras.
Em seguida, optou-se pela ‘existência de descendentes’ nesse caso hipotético, com
intuito de abordar as questões concernentes à filiação comum, exclusiva ou híbrida. A
depender da espécie de filiação existente, há frações ideais diversas relativas ao quinhão do
companheiro sobrevivente, com base no artigo 1.790, I e II, do Código Civil de 20025. Com
isso, adentra-se na controvérsia sobre a disparidade entre as normas sucessórias do
companheiro em comparação ao cônjuge sobrevivente em concorrência com descendentes e
sua constitucionalidade.
Ao final, foram selecionados como objetivos de planejamento sucessório os estados
‘prevenção de discussões sucessórias e disputas’ e ‘proteção de herdeiros naturais ou
terceiros’. A escolha desses estados se mostra evidente, pois as questões controversas
existentes nesse caso hipotético são ainda muito polêmicas, sem um posicionamento
jurisprudencial consolidado pelos tribunais superiores. Assim, em decorrência das incertezas
5
Ibid.
18
e, às vezes, injustiças observadas em situações presentes nas Varas de Órfãos e Sucessões de
todo país - semelhantes a esse caso -, mostra-se razoável o desejo do futuro inventariado
proteger sua prole ou terceiro e passar ao largo dessas questões ainda não consolidadas pelo
Poder Judiciário.
Já para o caso hipotético 3, justifica-se a combinação dos estados destacados na Figura
4, pela intensidade e relevância das questões controversas para a escolha futura dos
instrumentos jurídicos.
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjuge
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Objetivos do
planejamento
sucessório
Variável
Instrumentos
jurídicos
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
?
?
?
?
?
Figura 4 – Caso hipotético 3
Nesse caso hipotético, há um companheiro sobrevivente, unido pelo regime da
comunhão parcial de bens. Tal estado ‘comunhão parcial’ foi escolhido, em razão de ser o
regime legal adotado pelo legislador, com base no artigo 1.640, do Código Civil de 20026 e de
não se estipular, em regra, o regime da união estável, pela informalidade existente nessa
espécie de formação familiar.
O estado ‘existência de colaterais’ importa na diminuição do quinhão hereditário do
companheiro sobrevivente, conforme o artigo 1.790, III, do Código Civil de 20027, por haver
concorrência entre ambos. A partir daí, questiona-se a constitucionalidade desse artigo ao
6
7
Ibid.
Ibid.
19
compará-lo às regras sucessórias do cônjuge sobrevivente, em especial o artigo 1.829, III e
IV, do Código Civil de 20028, haja vista as injustiças possivelmente existentes.
Em relação aos objetivos do planejamento sucessório, idênticas são as justificativas
abordadas no caso hipotético 2 para a escolha dos estados ‘prevenção de discussões
sucessórias e disputas’ e ‘proteção de herdeiros naturais ou terceiros’. De igual forma, a
seleção do estado ‘preservação dos bens’ aqui também encontra embasamento naquelas
justificativas elencadas no caso hipotético 1.
Finalmente, o caso hipotético 4 foi selecionado, levando-se em conta a incidência de
questões controversas associadas à combinação dos estados em destaque na Figura 5.
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjuge
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Objetivos do
planejamento
sucessório
Variável
Instrumentos
jurídicos
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
?
?
?
?
?
Figura 5 – Caso hipotético 4
Trata-se de cônjuge sobrevivente, casado pelo regime da comunhão parcial de bens.
Com a escolha do estado ‘comunhão parcial’, aborda-se a discussão doutrinária e
jurisprudencial sobre a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do
falecido, baseada na redação truncada do artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002 9. A
depender do posicionamento adotado, discute-se em seguida sobre a composição do quinhão
amealhado pelo cônjuge sobrevivente, podendo haver ou não a meação.
8
9
Ibid.
Ibid.
20
Ao fim, quanto aos objetivos do planejamento sucessório, a escolha do estado
‘preservação dos bens’ é baseada nos mesmos fundamentos trazidos no caso hipotético 1. Em
relação ao estado ‘preservação da atividade empresarial familiar’, natural a preocupação do
futuro inventariado de manter a atividade empresária construída ao longo de sua vida, seja na
colocação de pessoa apta para a gestão de seus negócios, seja na determinação do critério
utilizado para a apuração de haveres, entre muitas outras razões. Além disso, justifica-se aqui
a ‘liberação rápida de recusos e ativos’, na medida em que se visualiza a importância de
administrar a atividade empresarial e gerir seus recursos vultosos ante à existência de empresa
familiar entre os bens existentes, além de facilitar a subsistência do cônjuge sobrevivente em
todos os seus aspectos.
21
2. A SUCESSÃO HEREDITÁRIA DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Nesse capítulo, apresenta-se um breve histórico do Direito Sucessório no contexto
brasileiro, principalmente a partir do Código Civil de 1916 e das leis especiais posteriores até
o advento do Código Civil de 2002. Em seguida, aborda-se o Direito Sucessório com um
enfoque constitucional, visando a facilitar o entendimento de algumas das questões
controvertidas a serem apresentadas no capítulo 3. Conceitua-se sucessão, por ser essa o
alicerce do Direito Sucessório, sendo, pois, essencial para a construção de todos os
pensamentos, críticas e controvérsias sobre o tema. Ao final, identificam-se as críticas ao
Direito Sucessório. Esses conteúdos fundamentam e contextualizam a discussão sobre as
questões controvertidas exploradas no capítulo seguinte.
2.1. Aspectos históricos relevantes dos vocacionados hereditários no Direito Sucessório
O Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002 trazem, em seus artigos 1.60310 e
1.82911, respectivamente, a ordem de vocação hereditária determinada pelo legislador, em que
se tem uma divisão dos convocados a suceder em classes sucessórias pelo critério de “política
legislativa e jurídica, decorrendo dos anseios sociais e influxos familiares próprios de cada
tempo e lugar”12.
No ordenamento jurídico regido pelo diploma anterior, o legislador elencou como
herdeiros necessários, protegidos pela garantia constitucional da quota legítima, apenas os
descendentes e os ascendentes, conforme os incisos I e II, do artigo 1.603 e do artigo 1.721,
ambos do Código Civil de 191613. Assim, considerou como herdeiros facultativos, possíveis
de serem afastados por inteiro da sucessão hereditária, por vontade do autor da herança, o
cônjuge ou o companheiro sobrevivente, aplicando-se o princípio da isonomia formal e
material, e os colaterais sucessíveis, de acordo com o artigo 1.603, III e IV e o artigo 1.725,
ambos do Código Civil de 191614, e artigo 2º, III, da Lei nº 8.971 de 199415.
10
BRASIL. Código Civil de 1916. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>.
Acesso em: 04 abr. 2016.
11
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
12
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: sucessões. V. 7. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 205.
13
BRASIL. Código Civil de 1916. op. cit.
14
Ibid.
22
Já no atual ordenamento jurídico, regido pelas disposições do Código Civil de 2002,
por mudanças legislativas sistêmicas, o cônjuge sobrevivente foi elevado em seu status
sucessório16, passando de mero herdeiro facultativo para herdeiro necessário, acompanhado
dos descendentes e ascendentes do hereditando, de acordo com o artigo 1.845, do Código
Civil de 200217. Quanto ao companheiro sobrevivente, com o advento do novo diploma legal,
abriu-se margem para discussão doutrinária severa, dividindo-se os doutrinadores quanto à
natureza jurídica do companheiro entre herdeiro necessário, facultativo, que será abordada
adiante nesta seção.
Além disso, preferiu o legislador do Código Civil 2002, ao elaborar o artigo 1.829 18,
retirar do artigo 1.60319, que dispunha sobre a ordem de vocação hereditária, o Poder Público,
sendo previamente considerado esse um herdeiro obrigatório quando todos os outros se
mostrarem insuscetíveis, a fim de se evitar o caos e a insegurança jurídica que adviria de
possíveis heranças deixadas acéfalas20. Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça tem
entendimento pacificado no sentido de se tratar de um sucessor obrigatório, por não haver a
transmissão imediata no momento da morte, com base no princípio da saisine21, devendo ser
adotado procedimento específico, com a declaração de jacência e vacância, depois de
observada a ordem estabelecida pelo legislador22.
Faz-se necessário explicitar a diferenciação entre herdeiro necessário e sucessor
obrigatório. O primeiro é aquele que não poderá ser excluído da sucessão hereditária por
vontade do hereditando, em testamento, apenas pelas causas de indignidade, previstas nos
artigos 1.814 e 1.815, do Código Civil de 200223, ou de deserdação, previstas nos artigos
15
BRASIL. Lei n. 8.971 de 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8971.htm>.
Acesso em: 05 abr. 2016.
16
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 207.
17
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
18
Ibid.
19
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
20
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das Sucessões. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 264.
21
Nas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em seu livro Morrer e Suceder: passado e
presente da transmissão sucessória concorrente. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 317, o
princípio da Saisine, ou droit de saisine, “[...] que traduz a própria essência ou fundamento do direito das
sucessões, no sentido de que nem mesmo a morte do titular pode interromper ou nulificar o direito de
propriedade, pois o domínio e a posse dos bens de alguém imediatamente transmitem-se aos herdeiros, ainda que
estes desconheçam esta sua qualidade ou o fato da morte, eis que tal fato ocorre em razão da ficção jurídica. (...)
Não há formalidade alguma para que tal fato se dê, bem como não importa o desconhecimento da
transmissibilidade por quem quer que seja; o fato da morte e a transmissão legal do acervo são coincidentes
cronologicamente, por força de presunção legal, isto é, o drot de saisine”.
22
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n. 1013865. Relator: Ministro Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=72334007&num_
registro=201602952817&data=20170519>. Acesso em 18 jun. 2017.
23
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
23
1.96224 e 1.96325, também do referido diploma. Tem o herdeiro necessário a faculdade no
momento da delação, também chamada de devolução sucessória, de renunciar ao seu quinhão,
com base no artigo 1.804, do Código Civil 200226. De forma diversa, o herdeiro obrigatório é
aquele extirpado pelo legislador da faculdade de renunciar ao quinhão hereditário, a fim de se
evitar situações de conflitos sociais por bens acéfalos. Este herda quando todos os outros se
mostrarem insuscetíveis27.
No atual ordenamento, existe apenas um sucessor obrigatório previsto, sendo esse o
Poder Público. Verifica-se a sua presença nas hipóteses de herança jacente, prevista no artigo
1.819, e herança vacante, prevista no artigo 1.822, ambos do Código Civil 200228. Nesse caso,
entende-se como Poder Público o Município ou o Distrito Federal da localidade dos bens
componentes do monte mor ou a União quando situados em território federal. Como dito
anteriormente, seu representante não poderá renunciar para não configurar o abandono dos
bens deixados em herança, evitando-se eventual conflito social. Excepcionalmente, em
hipótese de o hereditando deixar os bens para o Poder Público por testamento, será
considerado apenas nesse caso como sucessor testamentário, em que será possível sua
renúncia, por ser uma sucessão volitiva.
Tanto no Código Civil de 1916, quanto no Código Civil de 2002, o legislador
prestigiou as forças mais incapazes na hora do chamamento à sucessão. Escolheu como
primeiro vocacionado em linha reta os descendentes do autor da herança, observando-se
sempre a regra dos mais próximos excluir os mais remotos.
Ao contrário do atual Código Civil, fez o legislador infraconstitucional de 1916
distinção entre os filhos legítimos, legitimados e ilegítimos do falecido, que repercutiu em
seus respectivos quinhões hereditários. Ademais, excluiu da sucessão os filhos, à época,
chamados de incestuosos e adulterinos, por ser vedado o reconhecimento paterno/materno,
consoante disposto no artigo 358, do referido Código29.
Distinguiu também na sucessão do descendente, o filho legítimo, de um lado, e o
natural, ou adotivo, de outro. Estabeleceu ainda que os filhos incestuosos e adulterinos não
podiam ser reconhecidos (artigo 358), não lhes sendo permitido sua chamada à sucessão.
24
Ibid.
Ibid.
26
Ibid.
27
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 266.
28
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
29
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
25
24
Conforme os artigos 337 e 338, do Código Civil de 191630, o filho legítimo seria
aquele concebido ou presumidamente concebido na constância do casamento de pais casados
entre si, enquanto o filho legitimado seria aquele concebido antes do casamento de seus pais,
mas legitimado a posteriori após o casamento. Por fim, o filho ilegítimo seria aquele
concebido fora do casamento por pais não casados entre si, consoante artigos 355 a 367, do
Código Civil de 191631.
Antigamente, ao se admitir apenas família formada pelo vínculo matrimonial como
entidade familiar, fazia-se distinção entre filhos legítimos, concebidos ou presumidamente
concebidos na constância do casamento de pais casados entre si; filhos legitimados, ou seja,
concebidos fora do casamento de seus pais, porém legitimados com o casamento posterior
desses; e filhos ilegítimos, concebidos fora do casamento de seus pais.
Segundo classificação doutrinária, esses últimos eram, por sua vez, enquadrados em
naturais e espúrios.
Os filhos ilegítimos naturais advinham de um relacionamento extramatrimonial entre
seus pais, mas que não estavam impedidos de casar entre si, incluindo-se os filhos de pessoas
separadas judicialmente, antes chamados de desquitados32. Anteriormente à entrada em vigor
do instituto do divórcio em nosso país, por meio da Emenda Constitucional nº 09 de 197733,
os desquitados, embora não pudessem casar-se novamente, salvo por virtude de morte ou
invalidação do casamento anterior, não tinham mais o dever de fidelidade em relação ao outro
cônjuge separado, com base no artigo 267, III, do Código Civil de 191634.
Já os filhos ilegítimos espúrios poderiam ser adulterinos – se seus genitores
mantinham relacionamentos matrimoniais com terceiros à época da concepção, incluídos com
aqueles separados de fato – e incestuosos – caso seus genitores fossem vedados de contrair
núpcias, com base no artigo 183, do Código Civil 191635.
Assim, na vigência do Código Civil de 1916, a herança do de cujus era repartida aos
descendentes com observância da classificação destes. Por exemplo, os filhos legítimos
herdavam o dobro do que era reservado aos filhos legitimados, em consonância com o artigo
30
Ibid.
Ibid.
32
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 308.
33
BRASIL.
Emenda
Constitucional
n.
9
de
1977.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc09-77.htm>. Acesso em:
02 fev. 2017.
34
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
35
Ibid.
31
25
1.605, §1º36. Isso era possível de ser observado até o advento da Constituição Federal de
1937, quando se reconheceu em seu artigo 12637 a igualdade entre os filhos legítimos e os
naturais, legitimados.
Com referência ao regime até então vigente, em que o filho natural,
reconhecido pelo pai na constância do casamento, não desfrutava de quaisquer direitos
hereditários, essa equiparação representava um progresso. De fato, pelo artigo 126 da
Constituição Federal de 193738, o legislador determinou a igualdade absoluta entre filhos
legítimos e naturais, não importando o momento de seu reconhecimento. Cabe ressaltar que
uma parte importante da doutrina entendeu que tal regra revogava o artigo 1.605, § 1º, do
Código Civil de 191639. Na opinião contrária, o artigo 126 continha apenas uma
recomendação ao legislador ordinário, não sendo autoaplicável a regra. Há julgados nos dois
sentidos, tendo a controvérsia doutrinária se estendido à jurisprudência.
Não obstante a igualdade entre os filhos legítimos e naturais, determinada pela
Constituição Federal de 1937, o Código Civil de 1916, em seu artigo 35840, manteve a
proibição do reconhecimento do filho incestuoso até a alteração determinada pela Lei nº
883/194941. Essa proibição tinha impactos na esfera sucessória, em razão de que não haveria o
estabelecimento de parentesco de filiação, sem o seu reconhecimento. Com relação ao filho
incestuoso, o não reconhecimento continuava vigente, uma vez que o artigo 358 do
mencionado Código Civil, alterado somente pela Lei nº 883/1949, não o permitia. Assim, o
filho incestuoso não podia herdar de seu pai, porque legalmente não era seu parente.
Essa proibição de reconhecimento bilateral de filhos incestuosos ou adulterinos era
fundamentada pela doutrina e pelo legislador pelo argumento de ser impossível aceitar
situação jurídica proibida pelo ordenamento.
De acordo com o artigo 358, do Código Civil de 1916 42, ficava expressamente
proibido que os filhos adulterinos e incestuosos fossem reconhecidos bilateralmente, isto é,
por ambos os pais, a fim de não se caracterizar a situação de fato e jurídica proibidas. Por
conseguinte, filhos adulterinos e incestuosos não eram chamados à sucessão do não
reconhecente, em geral o pai biológico.
36
Ibid.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm>. Acesso em: 02 fev. 2017.
38
Ibid.
39
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
40
Ibid.
41
BRASIL. Lei n. 883 de 1949. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/19301949/L0883.htm>. Acesso em: 01 fev. 2017.
42
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
37
26
Com o avanço da mens legis e do ordenamento jurídico, o Decreto-Lei nº
4.737/194243 e a Lei nº 883/194944 modificaram as regras, no sentido de possibilitar o
reconhecimento desse filho adulterino pelo ascendente de forma amigável ou judicial, desde
que o vínculo conjugal do ascendente adúltero tenha se dissolvido. Em contrapartida, o
reconhecido, ao concorrer com filhos legítimos na sucessão do ascendente adúltero, herdaria
apenas metade daquilo herdado pelo legítimo, com base no artigo 2º, da Lei nº 883/194945.
No entanto, com o advento do Decreto-Lei nº 4.737/1942 e do artigo 1º da Lei nº
883/194946, o legislador permitiu que o filho adulterino a patre pudesse ser reconhecido.
Assim, poderia pleitear em juízo o reconhecimento de sua filiação, desde que realizada após a
dissolução da sociedade conjugal do progenitor adúltero. Até a promulgação da Lei do
Divórcio, o filho adulterino uma vez reconhecido, quando concorresse com o filho legítimo na
sucessão do pai, receberia somente a metade do que coubesse àquele (artigo 2º da Lei nº 883
de 194947).
Mais uma vez, demonstrando o avanço da área jurídica, o legislador ao promulgar a
Lei nº 7.250/1984, que acrescentou o §2º ao artigo 1º da Lei nº 883/194948, permitiu o
reconhecimento da filiação do filho adulterino, quando o genitor se encontrasse separado de
fato há mais de 5 (cinco) anos. Apesar da evolução, esse direito ainda encontrava dificuldade
em ser aplicado, tendo em vista depender de ação negatória de paternidade do cônjuge do
ascendente já reconhecido, da presunção de paternidade pelas núpcias, a teor do artigo 338, I
e II, do Código Civil de 191649, e dos prazos decadenciais mínimos de dois a três meses para
o ajuizamento do reconhecimento judicial, com base no artigo 178, §§3º e 4º, do Código Civil
de 191650.
A proibição de reconhecimento de filho incestuoso continuou em vigor após as
mudanças legislativas supracitadas, não podendo assim herdar de seu ascendente adúltero. Por
fim, a Lei nº 6.515/197751 excluiu a discriminação entre os filhos, seja qual for sua natureza,
ao alterar o artigo 2º da Lei nº 883/194952. No entanto, parte da doutrina e jurisprudência
43
BRASIL. Decreto-Lei n. 4.737 de 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/1937-1946/Del4737.htm>. Acesso em: 28 jan. 2017.
44
BRASIL. Lei n. 883 de 1949. Op. cit.
45
Ibid.
46
Ibid.
47
Ibid.
48
Ibid.
49
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
50
Ibid.
51
BRASIL. Lei n. 6.515 de 1977. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6515.htm>.
Acesso em: 08 jan. 2017.
52
BRASIL. Lei n. 883 de 1949. Op. cit.
27
entenderam ainda assim aplicar essa alteração somente ao filho adulterino, mantendo-se a
desigualdade em relação aos outros filhos53, até o advento da Constituição Federal de 198854.
Outra discriminação existente no Código Civil de 1916 se referia ao filho adotivo.
Em seus artigos 368 e 36955, exigia-se como requisitos para a adoção simples ser o casal
maior de 50 (cinquenta) anos, sem prole legítima, ou legitimada, para adotar, além da
necessidade da diferença etária entre o adotante e o adotado de no mínimo 18 (dezoito) anos.
Com a entrada em vigor da Lei nº 3.133/57, reduziram-se esses requisitos temporais,
passando-se, então, a 30 anos a idade mínima para adoção e 16 anos a diferença entre
adotante e adotado.
Explicita Tânia da Silva Pereira56,
a adoção era feita por escritura pública e o parentesco resultante tinha efeito somente
entre o adotante e o adotado, excluindo-se os direitos sucessórios se os adotantes
tivessem filhos legítimos, legitimados ou mesmo reconhecidos. Com exceção do
‘pátrio poder’ – hoje, ‘poder familiar’ – que se transferia ao pai adotivo, os direitos e
deveres resultantes do parentesco natural eram mantidos.
Neste momento, inseriu-se também no artigo 368, do Código Civil de 191657, o
parágrafo único a autorizar os casais, casados há mais de 5 anos, mesmo não tendo a idade
mínima, a adotar.
Com advento da Lei nº 4.655/65, introduziu-se nova espécie de adoção – a
legitimação adotiva, a qual manteve a idade mínima do Código Civil de 1916 e autorizou a
realização de procedimento antes de atingida esta idade, nos casos comprovados de
esterilidade e estabilidade conjugal, desde que casados há mais de 5 anos. Entretanto, neste
procedimento, necessitava-se da intervenção do Ministério Público e da autorização judicial,
com posterior averbação irrevogável no assento de nascimento do adotado e consequente
cessação do parentesco biológico58.
53
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 37.506. Relator: Ministro Waldemar Zveiter.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199300216856&dt_publicacao=02-051994&cod_tipo_documento=>. Acesso em: 08 jan. 2017.
54
Nas palavras de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, “sob o prisma do direito positivo brasileiro, a
sucessão dos descendentes está submetida a duas regras fundamentais: i) a regra da igualdade substancial; ii) a
regra da proximidade. (...) Com o influxo da isonomia constitucional, não mais se tolera qualquer desnível de
tratamento jurídico sucessório entre os filhos, independentemente de sua origem. Filho, enfim, se tornou
substantivo que não comporta adjetivo: filho é filho e só, seja qual for a sua origem. Biológico, adotivo,
socioafetivo, decorrente de concepção sexual ou medicamente assistida, o descendente não pode sofrer qualquer
tipo de discriminação em relação ao direito hereditário”. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD,
Nelson. Op. cit., 2015c, p. 227-228).
55
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
56
PEREIRA, Tânia da Silva. Adoção. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Tratado de Direito das
Famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 373.
57
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
58
PEREIRA, Tânia da Silva. Adoção. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Op. cit., p. 373.
28
A supracitada lei foi revogada com a entrada em vigor da Lei nº 6.697/79,
denominada Código de Menores, passando-se as duas espécies de adoção a serem chamadas
de adoção simples e adoção plena.
Em outras palavras, existiam duas espécies de adoção, quais sejam, a restrita/simples
ou a plena. Na adoção restrita/simples, o vínculo era estabelecido tão somente entre o
adotante e o adotado. O vínculo formado não era definitivo, podendo ser revogado pela
vontade das partes, a teor do artigo 374, I, do Código Civil de 1916 59. Por não extinguir os
vínculos do parentesco natural, apenas o pátrio poder, não conferia, portanto, direitos
sucessórios em relação ao adotante. Por outro lado, na adoção plena, o vínculo estabelecido se
dava com todos os familiares do adotante para com o adotado, de forma irrevogável.
A Lei nº 8.069/199060 determinou que todas as adoções de crianças e adolescentes
seriam plenas ou estatutárias. Segundo o artigo 1.605 do Código Civil de 1916 61, a relação
sucessória se estabelecia da seguinte forma: falecido o adotante, caso não tivesse
descendência biológica – filhos legítimos, legitimados e ilegítimos reconhecidos – o filho
adotado herdaria a totalidade da herança legal, atendendo à convocação na classe dos
descendentes e arredando da sucessão os demais parentes sucessíveis do falecido, como se
filho consanguíneo fosse62.
No entanto, se por ocasião da adoção, o adotante tivesse filhos legítimos, legitimados
ou ilegítimos reconhecidos, o adotado nada recolheria nessa sucessão, conforme o artigo 377,
do Código Civil de 191663, modificado pela Lei nº 3.133/1957. Finalmente, se o adotante
viesse a ter filhos legítimos (ou legitimados) supervenientes à adoção, o adotado receberia
somente metade da herança ou do quinhão hereditário cabível a cada um daqueles, a teor do
artigo 1.605, §2º, do Código Civil de 191664.
A Lei nº 6.515/1977 já estabelecia que todos os filhos, “de qualquer natureza”,
herdariam de igual maneira, sem qualquer distinção. No entanto, essa disposição só teve
impactos efetivos com a Constituição Federal de 1988, ao proibir qualquer tipo de
diferenciação entre filhos, conforme o artigo 227, §6º, da Constituição Federal de 198865.
59
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
BRASIL. Lei n. 8.069 de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>.
Acesso em: 13 dez. 2016.
61
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
62
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 313.
63
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
64
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit, p. 313.
65
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 11 nov. 2016.
60
29
A partir da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, divergiram os
operadores de Direito a respeito das adoções ocorridas antes da vigência da nova constituição.
Se passaria a coexistir os dois tipos de adoção, a simples e a plena, ou seja, na hipótese de
adoção simples, por escritura pública, ocorrida antes da vigência da Constituição Federal de
1988, com o falecimento do adotante e, em seguida, do adotado, seriam chamados à sucessão
os irmãos consanguíneos deste último, aplicando-se o disposto no artigo 1.618 do Código
Civil de 191666; ou se as adoções ocorridas, independente de qual espécie efetivamente tenha
sido, passaria a ser lida como irrestrita, por determinação da absoluta igualdade de direitos
entre os filhos de qualquer origem, incluindo-se os adotivos67.
Essa discussão perdurou até o advento do Código Civil de 2002, em que as adoções,
tanto de crianças e adolescentes, quanto de maiores de 18 anos, passaram a ser regidas
fundamentalmente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a teor de seus artigos 1.618 e
1.61968. Isso significa dizer que todas as adoções passaram a ser plenas, realizadas mediante
decisão judicial, sempre de acordo com o princípio do melhor interesse do adotando.
Em seguida, a Lei nº 12.010/09, denominada como Lei da Adoção69, revogou os
artigos 1.620 a 1.629, do Código Civil de 200270, a fim de evitar sobreposições legislativas, e
tem como propósito “priorizar o acolhimento e a manutenção da criança e do adolescente em
seu convívio familiar, com sua família biológica, desde que reflita o melhor interesse do
infante, e só deferir a adoção, ou sua colocação em família substituta como solução
excepcional”71.
66
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
Sobre o assunto, explicitam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “De qualquer modo, faça-se uma
ressalva em relação ao filho adotivo cujo adotante faleceu antes do advento da Constituição de 1988, mas cujo
inventário não tinha sido ultimado, ou sequer aberto, em 5 de outubro de 1988. Após uma aquecida discussão, o
Supremo Tribunal Federal, procurando fixar os limites da igualdade entre os filhos, fixou o seu entendimento no
sentido de que o filho adotado, cujo pai adotivo faleceu antes da Lex Legum, de 5 de outubro de 1988, não tem
direito à herança, mesmo que o inventário somente tenha sido aberto ou concluído depois do advento da Carta
Magna. A nós outros, não foi a melhor solução na medida em que o Poder Constituinte originário funda uma
nova ordem jurídica, aniquilando os direitos anteriormente existentes que sejam incompatíveis. Até porque o
Poder Constituinte originário constitui o Estado em conformidade com os valores que se tornaram dominantes.
Assim, com a regra da isonomia entre os filhos, inclusive no âmbito sucessório, parece-nos que mesmo para as
sucessões abertas antes do advento da Carta Magna já incidiria a igualdade por ela proclamada como cláusula
pétrea”. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Op. cit, 2015b, p. 227-228).
68
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
69
Para aprofundamento nessa nova legislação sobre adoção no Brasil, recomenda-se a leitura FACHINETTO,
Neidemar José. O Direito à Convivência Familiar e Comunitária, Contextualizado com as Políticas públicas
(in)existentes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
70
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
71
MADALENO, Rolf. Direito de Família. 7. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 642-643.
67
30
A partir de então, escolheu como segundo vocacionado em linha reta os ascendentes
do autor da herança, observando-se sempre a regra dos mais próximos excluir os mais
remotos.
Desde o Código Civil de 1916 até o Código Civil de 2002, embora em outros campos
tenha havido rebuliço legislativos, na questão da sucessão do ascendente, quando seu
descendente tiver falecido, não houve grandes modificações.
Assim, no artigo 1.606, do Código Civil de 191672 e no artigo 1.836, do Código Civil
de 200273, o ascendente é chamado a suceder na falta de descendentes, com a diferenciação de
que no primeiro diploma legal não haverá concorrência com o cônjuge sobrevivente, enquanto
no segundo diploma legal haverá independentemente do regime de bens74, por expressa
determinação do artigo 1.829, II, do Código Civil de 200275.
Em ambos os casos, prevalece o princípio de que os mais próximos em grau excluem
os mais remotos, sem distinção de linhas paterna ou materna, conforme artigos 1.607 e 1.836,
§1º, do Código Civil de 191676 e 200277, respectivamente, bem como não se admite o direito
de representação neste caso, vedado expressamente pelo artigo 1.852, do Código Civil de
200278.
Ressaltam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “considerando que os
ascendentes são herdeiros necessários (CC, art. 1.845), percebe-se que a convocação não é
somente do pai e/ou da mãe. Os demais ascendentes, como os avós e os bisavós, também
podem ser convocados a participar da sucessão, em ordem sucessiva”79.
72
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
74
“Historicamente, a sucessão causa mortis costuma sofrer a influência do regime de bens. De maneira enfática,
muitos autores põem em relevo a conexão entre, de um lado, os direitos sucessórios e, de outro, as relações
patrimoniais entre os cônjuges, chegando a afirmar que o regime de bens, preenche as lacunas da sucessão. (...)
Ainda que admitida a influência da disciplina dos regimes matrimoniais sobre a definição do quadro sucessório
e, em especial, sobre a natureza e extensão dos direitos atribuídos ao viúvo ou à viúva, é preciso enfatizar que o
regime de bens cessa com a morte de um dos cônjuges. No direito brasileiro, basta ler os arts. 1.571 e 1.576 do
vigente Código Civil para concluir que, dissolvido o casamento por qualquer das causas previstas, não mais
subsiste aquele estatuto das relações patrimoniais conjugais. Extinto, pois, o regime de bens, não cabe mais
cogitar de quaisquer efeitos futuros que dele se originem: os efeitos que podia produzir se situam, todos eles, no
passado. O que vem depois, no caso da extinção do regime de bens decorrente do óbito de um dos cônjuges, já se
insere noutro universo: o da sucessão. Por isso se afirma que, na partilha dos bens comuns e na consequente
separação daquilo que deve compor a meação do supérstite, ‘estamos (…) fora do domínio do Direito das
Sucessões e perante um ato que cabe no âmbito do Direito da Família e, em si mesmo, é prévio à determinação
da herança do falecido. De fato, nesta só cabem os bens que venham a preencher a sua meação’”. (MOREIRA,
Carlos Roberto Barbosa. Regime de Bens e Sucessão. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, V. 56, n. 56, p. 46-47, abr./jun. 2015).
75
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
76
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
77
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
78
Ibid.
79
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 234.
73
31
E vão além80,
Primeiramente, há que se notar a incidência da regra da reciprocidade sucessória.
Assim sendo, ao abolir todo e qualquer tratamento discriminatório entre os filhos, a
Constituição da República terminou por obstar diferenciações sucessórias também
em relação aos ascendentes. Sílvio Rodrigues é preciso: ‘qualquer que seja a origem
do parentesco, inclusive o decorrente de adoção, assim como o descendente sucede
ao ascendente, o ascendente herda do descendente’. De fato, considerando que os
filhos não podem sofrer discriminação de origem, identicamente, os pais também
não podem. Com isso, falecendo o filho adotivo sem deixar descendentes, os
adotantes (pais para todos os efeitos) recolhem a herança, afastando os genitores,
cujos laços foram rompidos pelo estabelecimento da adoção.
Por outro lado, conforme os artigos 1.608, do Código Civil de 191681 e 1.836, §2º, do
Código Civil de 200282, havendo igualdade em grau e diversidade em linha, os ascendentes da
linha paterna herdam a metade e os ascendentes da linha materna a outra metade. Todavia,
“não se admite (...) uma subdivisão de linhas, uma vez que a divisão em linhas só se opera
uma única vez, ainda que haja pluralidade de ascendentes” 83.
“Registre-se, contudo, que havendo somente herdeiro ascendente em uma das linhas,
caber-lhe-á a totalidade do patrimônio transmitido, mesmo que sejam vivos os pais do
ascendente pré-morto, por conta da regra da proximidade” 84.
Por último, grande diferença há entre ambos os códigos no tocante à sucessão do
ascendente ao trazer o Código Civil de 2002 quota mínima da herança a favor do cônjuge
sobrevivente, em total respeito ao sistema civil implantado. Assim, segundo o artigo 1.83785,
deste diploma, quando a concorrência se der entre cônjuge e ascendente em primeiro grau,
resta assegurada ao primeiro necessariamente um terço da herança; quando se der com um só
ascendente, ou se maior for aquele grau, assegura-se a metade desta ao cônjuge sobrevivente.
Em seguida, o legislador infraconstitucional prestigiou o cônjuge, independente do
regime de bens escolhido, como terceiro vocacionado a herdar, em ambos os Códigos Civis
de 1916 e 2002.
Conforme estabelecido no Código Civil de 1916, o cônjuge foi elevado ao terceiro
lugar na ordem de vocação hereditária, após os descendentes e ascendentes. Na ausência de
ascendentes, descendentes e cônjuges, herdariam os parentes até o sexto grau e não mais em
décimo grau como ocorria até 1907, época em que a “Lei Feliciano Penna” entrava em vigor.
Trinta anos depois, o Decreto-Lei nº 9.641, de 5 de julho de 1946, restringiu o grau de
80
Ibid.
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
82
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
83
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 236.
84
Ibid, p. 236.
85
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
81
32
parentesco para fins de recebimento de herança e estipulou o limite de que apenas parentes até
o quarto grau herdariam.
Elucida Carlos Roberto Barbosa Moreira86, que
em sua versão original, o Código Civil de 1916 não condicionava a vocação
sucessória do cônjuge sobrevivente a qualquer regime de bens. De acordo com seu
artigo 1603, o cônjuge figurava, sozinho, na terceira de herdeiros legítimos, e apenas
sucedia ao de cujus se não houvesse descendentes e ascendentes em condições de
herdar (art. 1.611).
Então, segundo o Código Civil de 1916, o cônjuge só teria direito à herança na
ausência de descendentes e de ascendentes, compensando o legislador infraconstitucional ao
dar ao cônjuge sobrevivente o direito de usufruto vidual87 e de administração dos bens
componentes do monte, na fração de ¼ ou ½, a depender do regime de bens88.
Com o advento do Código Civil de 2002, esse panorama mudou radicalmente,
havendo a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e suas hipóteses de
exclusão, a teor do artigo 1.829, I, do Código Civil de 200289, que é tema deveras
controvertido90 e será abordado mais adiante capítulo 3, na seção 3.2.
Quanto à concorrência do cônjuge sobrevivente com os ascendentes do falecido,
hipótese esta prevista no artigo 1.829, II, do Código Civil de 2002, tal matéria já foi abordada
nesta seção, ao se falar dos ascendentes.
Portanto, abordar-se-á apenas o inciso III, do supracitado artigo, do Código Civil de
2002, em que entendeu o legislador infraconstitucional dever o cônjuge sobrevivente suceder
individualmente considerado. Nesta hipótese, o falecido não deixa descendente ou ascendente,
havendo apenas o cônjuge como herdeiro necessário, a teor do artigo 1.845, do Código Civil
de 200291.
Tal conjuntura pode se dar de diversas formas. Explicita Luiz Paulo Vieira de
Carvalho92, que
não havendo descendentes ou ascendentes do falecido, se todos renunciarem à
herança (artigo 1.804, parágrafo único do Código Civil de 2002) ou forem
excluídos, em virtude de sentença de indignidade ou deserdação, sempre,
86
MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Op. cit., p. 47.
O usufruto vidual é aquele concedido ao cônjuge viúvo, enquanto durar este estado, para usufruir de ¼ ou ½
dos bens do falecido, a depender da existência de descendentes. Tal tema será melhor abordado no capítulo 3,
seção 3.4.
88
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 237.
89
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
90
Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “ao parametrizar a sucessão do cônjuge – o
que ocorreu também quando da disciplina da sucessão do companheiro -, o legislador não primou pelo uso da
técnica, preferindo, em tom quase emotivo, reconhecer sequencialmente vantagens ao sobrevivente. O resultado,
como se verá, é uma profusão de dúvidas e controvérsias, que terminam ocasionando uma incerteza e uma
insegurança na sociedade”. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 240).
91
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
92
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 368.
87
33
independentemente de eventual meação a seu favor, o cônjuge sobrevivente, na
qualidade de herdeiro necessário legal (artigos 1.798 e 1.845 do Código Civil de
2002) recolherá toda a herança. Se, no entanto, houver testamento válido
comtemplando terceiro com a quota disponível do acervo hereditário ou, parte dela,
(quando o testamento não compreender todos os bens do de cujus, conforme artigo
1.788 do Código Civil de 2002), ficará com o remanescente.
Ressalta-se ainda que o Código Civil de 2002 não mais admite a exclusão completa
do cônjuge sobrevivente em relação à herança, mediante testamento, como ocorria
cotidianamente na vigência do Código Civil de 1916, ao contemplar terceiro com todos os
seus bens.
Anteriormente, tal fenômeno era admitido em relação ao cônjuge e aos colaterais do
falecido, posto serem considerados por força da lei como herdeiros facultativos, a teor do
artigo 1.725, do Código Civil de 191693. No entanto, hoje, conforme o artigo 1.850, do
Código Civil de 200294, só é admite essa exclusão em relação aos herdeiros colaterais e,
dependendo da corrente adotada95, ao companheiro sobrevivente.
Assim, em observâncias as normas instituídas pelo Código Civil de 200296, em
especial nos artigos 1.815, 1.965 e seus parágrafos únicos, só é possível excluir o cônjuge
sobrevivente da sucessão do de cujus, com o qual convivia por ocasião de sua morte, caso
exista uma eventual cláusula testamentária de deserdação ou de indignidade, desde que
confirmados por decisão judicial. Outra possibilidade seria na hipótese de haver descendentes
do falecido e o regime de bens atribuído na vigência do casamento não permitir a
concorrência sucessória, a teor do artigo 1.829, I, do Código Civil de 200297. Essa é outra
questão que será discutida em maior profundidade no capítulo 3, seção 3.2.
As controvérsias existentes sobre a sucessão do companheiro, em especial referentes
à redação do artigo 1.790, do Código Civil de 200298, não são novidades para os operadores
do Direito e a maioria da população brasileira. Isso porque o Código Civil de 1916 e as leis
especiais relativas ao tema, que vieram a ser promulgada posteriormente à Constituição
Federal de 1988, também deixavam a desejar no quesito proteção ao companheiro
sobrevivente.
“A evolução foi lenta e dolorosa para os companheiros”99.
Para o Des. Sylvio Capanema de Souza100,
93
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit..
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit..
95
Tal questão é abordada no capítulo 3, seção 3.2.
96
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
97
Ibid.
98
Todas as controvérsias do artigo 1.790, do Código Civil de 2002, serão abordadas no capítulo 3, seção 3.3.
99
SOUZA, Sylvio Capanema de. A sucessão do Companheiro: questões controvertidas. Revista da EMERJ. Rio
de Janeiro, V. 13, n. 53, p. 18, 2010.
94
34
na versão original do Código Civil de 1916, que reflete, nitidamente, o
individualismo e o patrimonialismo característicos do direito do século XIX, muito
influenciado pela tradicional moral cristã, só se reconhecia a família legítima,
resultante do casamento, negando-se, por via de consequência, qualquer direito aos
concubinos, como eram assim chamadas as pessoas que mantinham vida em
comum, não sendo casadas, o que constituía verdadeiro “pecado social”. Aquele
Código, a rigor, só se referia aos concubinos para lhes negar direitos, jamais para
concedê-los.
Como se sabe, o legislador, o magistrado e o doutrinador são peças chaves para a
mudança do ordenamento jurídico. Em razão do procedimento específico e necessário para a
provação das leis ser muito lento, o magistrado, sempre atento às mudanças da cultura e aos
problemas da sociedade, é o primeiro a dar o passo para a evolução normativa101.
Nesse contexto, em que pese as normas vigentes à época do Código Civil de 1916, a
jurisprudência já compreendia, de modo menos conservador, os direitos do companheiro
sobrevivente. Assim, a despeito do rigor daquele Código Civil, aos poucos o cenário da
sucessão do companheiro foi mudando paulatinamente.
A entrada em vigor da Lei nº 8.971/94102 foi o primeiro passo legislativo para essa
mudança gradual. Nela, regulamentou-se o direito dos companheiros sobreviventes ao
alimento, à sucessão e ao usufruto, este último a ser abordado no capítulo 3, seção 3.4, bem
como elencou os requisitos para o reconhecimento da união estável.
Para se configurar a união estável, a fim de pleitear alimentos, deveria a companheira
comprovar sua convivência, com um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou
viúvo, há mais de 5 anos, ou dele tenha prole, a teor do artigo 1º, da referida lei.
Em seu artigo 2º, III, a Lei nº 8.971/94103, previu o legislador infraconstitucional a
possibilidade de o companheiro sobrevivente herdar a totalidade da herança, desde que não
100
Ibid., p. 17.
“A superação do método subsuntivo reforçou a imposição da motivação como instrumento de controle à
aplicação do sistema em sua unidade, abertura e mobilidade. (...) Uma vez que o exercício da jurisdição se
encontra limitado pelas balizas do ordenamento jurídico, demanda-se que o magistrado busque na doutrina o
instrumental necessário ao cumprimento do dever de motivação. Tal tarefa constitui terreno fértil para o
desenvolvimento da teoria da argumentação a qual, por sua vez, não pretende identidade de decisões que
envolvem casos análogos, mas coerência entre elas. O respeito e a valorização das especificidades mostram-se
fundamentais para a individuação da normativa a ser aplicada, não podendo servir de escusa, contudo, para a
adoção de decisões racionalmente contraditórias produzidas pelo mesmo órgão julgador.(...) Além de privilegiar
a fundamentação de suas decisões nos valores do ordenamento jurídico e de buscar verticalidade teórica perene,
o magistrado precisa também estar receptivo ao contexto social em que se encontra inserido. Necessário, desse
modo, o desenvolvimento da cultura de tribunais abertos, afeitos à adoção de instrumentos de participação do
cidadão comum e de especialistas, tais como a intervenção de amicus curiae, os mecanismos consensuais de
solução de conflitos, as audiências e consultas públicas, para que ao final do litígio se consiga chegar a uma
solução mais justa. Evita-se, assim, que o juiz se encastele dentro das quatro paredes do gabinete, prolatando
decisões que se distanciem da devida acuidade social”. (MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo. Reflexões
metodológicas: a construção do observatório de jurisprudência no âmbito da pesquisa jurídica. Revista Brasileira
de Direito Civil. Rio de Janeiro, V. 9, jul./set., p. 20-22, 2016).
102
BRASIL. Lei n. 8.971 de 1994. Op. cit.
103
Ibid.
101
35
houvesse descendentes ou ascendentes. Já em seu artigo 3º, entendeu que “quando os bens
deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do
companheiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens”104, regra esta semelhante àquele
prevista na Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal.
Em seguida, promulgou-se a Lei nº 9.278/96, em que se reconheceu logo no seu
artigo 1º a união estável como entidade familiar, dispensando-se o prazo mínimo de 5 anos da
lei anterior. Assim, para a configuração da união estável bastava “a convivência duradoura,
pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de
família” 105.
Aduz Ana Luiza Maia Nevares106, que
essa lei previu, em seu art. 5º, uma regra de divisão patrimonial que tem pontos de
contato tanto com o regime da comunhão parcial de bens, como com aquele de
separação, na medida em que presume que os bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável são considerados fruto do trabalho e da colaboração
comuns, passando a pertencer a ambos os conviventes em partes iguais e em
condomínio. Tal presunção podia ser afastada, restando a situação, por conseguinte,
semelhante àquela estabelecida no regime da separação, uma vez que não haveria
comunicação patrimonial entre os conviventes. De acordo com o §1º do dispositivo
em tela, a presunção do caput cessava, ainda, se a aquisição patrimonial ocorresse
com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.
Após longos debates sobre a revogação da Lei nº 8.971/94 pela Lei nº 9.278/96, tema
abordado no capítulo 3, seção 3.4, o advento do Código Civil de 2002107, com seu artigo
1.790, não aplacou em nada tal situação.
Previram-se no supracitado artigo os direitos sucessórios do companheiro
sobrevivente, que serão abordados no capítulo 3, seção 3.3.
Nas palavras de Rolf Madaleno108,
Gerando efeitos jurídicos de ordem pessoal, alimentar e patrimonial, e sobrevindo
filhos, também questões relacionadas com a custódia e o direito de comunicação do
genitor destituído da guarda, mesmo quando compartilhada, impõe-se proceder a
dissolução oficial da união informal, que se dá pela via judicial ou extrajudicial,
dependendo da existência de filhos, bens e da necessidade de alimentos, cujas
avenças precisam ser conformadas pelos conviventes através de um acordo ou
mediante processo litigioso que regulamente justamente os efeitos jurídicos do fim
da convivência do casal.
Neste ponto, vale ressaltar a diferenciação entre concubinato e união estável.
Anteriormente à Constituição Federal de 1988, “o concubino era pessoa que vivia uma união
de fato prolongada com outra pessoa, de sexo diverso, sem casamento, não proibida pelo
104
Ibid.
Ibid.
106
NEVARES, Ana Luiza Maia. A Sucessão do Cônjuge e do Companheiro na Perspectiva do Direito CivilConstitucional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 76-77.
107
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
108
MADALENO, Rolf. Separações e Anulações – Culpa e Responsabilidades ou Fim da Conjugabilidade. In:
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 606.
105
36
Direito, por inexistência de impedimentos matrimoniais entre os membros do casal, sendo
denominada concubinato puro”109. Caso a relação fosse proibida pelo ordenamento, presentes
tais impedimentos, era denominada de concubinato impuro.
Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, o legislador empregou a
expressão “companheiro” a fim de designar pessoa convivente em união estável, substituindo
a expressão de concubinato puro. Foi a partir de 1988, que a união estável foi alçada à
categoria de entidade familiar e, portanto, protegida pelo Estado, gerando direitos familiares e
sucessórios ao companheiro sobrevivente. Passou, então, a ser reservada a expressão
“concubino” apenas às situações de concubinato impuro110.
Em seguida, o Código Civil de 2002 se utilizou da expressão “concubino” para
nomear pessoa convivente em relação condenada pelo Direito, por razões morais e eugênicas.
Nesta hipótese, não se enquadrava o concubino no conceito de família, não resguardado,
portanto, com os direitos familiares e sucessórios, concedidos aos conviventes em união
estável.
Nas palavras de Luiz Paulo Vieira de Carvalho111,
em decisão tomada a respeito do assunto, o Supremo Tribunal Federal, por seu
plenário, no julgamento do RE 397762-8, julgado em 03 de julho de 2008, tendo
como relator o Ministro Marco Aurélio Mello, afirmou não haver união estável, e
sim concubinato adulterino, em hipótese em que homem casado (já falecido) a
conviver maritalmente com o seu cônjuge, manteve uma união paralela, intima e
notória com outra mulher durante 37 anos, gerando prole. Assim, por maioria, não
admitiu a tese da possibilidade do reconhecimento da existência de famílias dúplices
ou paralelas, isto é, de um lado um casamento com sociedade conjugal plena e, ao
mesmo tempo, uma união estável, a exsurgir como protagonista, o mesmo homem,
entretanto, com mulher diferentes, até porque o nosso direito em matéria de família
dentro da tradição jurídico-cristã é monogâmico.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que “é inviável a concessão
de indenização à concubina, que mantivera relacionamento com homem casado, uma vez que
tal providência eleva o concubinato a nível de proteção mais sofisticado do que o existente no
casamento e na união estável”112.
Por outro lado, admitiu-se, em prol dos princípios da dignidade da pessoa humana e
da solidariedade social a condenação do homem casado a pagar alimentos para sua concubina,
109
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 377.
Ibid., p. 378.
111
Ibid., p. 378-379.
112
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 770596/SP.
Relatora:
Ministra
Isabel
Gallotti.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1464451&num_re
gistro=201502091575&data=20151123&formato=PDF>. Acesso em: 09 jul. 2017.
110
37
por terem vivido nesta situação por 40 anos, ter a alimentanda mais de 70 anos e ter desistido
esta de sua vida profissional em prol do alimentante113.
Outrossim, em que pese o Superior Tribunal de Justiça ter entendimento consolidado
pela impossibilidade de reconhecimento de união paralela, “de modo que a caracterização da
união estável pressupõe a ausência de impedimento para o casamento ou, pelo menos, a
necessidade de haver separação de fato ou judicial entre os casados”114, a partilha dos bens
adquiridos na constância da união paralela é permitida, com observância das normas de
direito obrigacional. Em todo o ordenamento jurídico, veda-se o enriquecimento sem causa,
razão pela qual, se a pessoa em concubinato demonstrar o esforço em comum para a aquisição
do bem, deve-se reparti-lo entre o de cujus e a pessoa concubina.
Questão importante a se adentrar a fim de corroborar a discussão dos casos
hipotéticos no capítulo 4 diz respeito à indagação se o companheiro sobrevivente é
considerado herdeiro facultativo ou necessário no ordenamento jurídico brasileiro.
Essa divergência doutrinária e jurisprudencial se baseia na omissão legislativa de
incluir expressamente o companheiro como herdeiro necessário no artigo 1.845, do Código
Civil de 2002115. A partir daí, há doutrinas e julgados para ambos os lados, sem definição
concreta sobre o assunto, causando ainda mais insegurança à sociedade brasileira em seu
cotidiano. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº
878.694116, pode ter vindo em boa hora para desequilibrar, beneficamente ou não, a balança
dessa discussão, decisão esta a ser abordada com maior profundidade no capítulo 3, seção 3.3.
Em resposta à indagação de qual seria a natureza jurídica do companheiro
sobrevivente no direito sucessório, Guilherme Calmon Nogueira Gama117 entende sê-lo
herdeiro facultativo, posto que, por não ter sido relacionado no rol de herdeiros necessários
pelo legislador, configurada está sua condição de herdeiro facultativo. Ademais, o fato de
concorrerem com descendentes e ascendentes, herdeiros necessários, não desvirtua sua
113
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.185.337/RS. Relator: Ministro João Otávio de
Noronha.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1392075&num_re
gistro=201000481513&data=20150331&formato=PDF>. Acesso em: 09 jul. 2017.
114
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n. 676.385. Relator: Ministro Antônio
Carlos
Ferreira.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=72544674&num_r
egistro=201500543301&data=20170609 >. Acesso em: 09 jul. 2017.
115
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
116
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE n. 878.694. Relator: Ministro Roberto Barroso. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004>. Acesso em 27 out.
2016.
117
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Companheirismo - uma espécie de família. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998, p. 121.
38
natureza jurídica de herdeiro facultativo, eis que o artigo 1.845, do Código Civil de 2002118
apresenta rol taxativo119. Acrescenta-se, ainda, a regra jurídica norma restritiva não comporta
interpretação extensiva, ou seja, caso seja considerado herdeiro necessário o companheiro
sobrevivente, a liberdade testamentária do falecido resta prejudicada, não tendo a norma
previsão expressa com essa restrição120121.
Por outro lado, em posição diametralmente oposta, encontra-se Luiz Paulo Vieira de
Carvalho, que defende se tratar de herdeiro necessário o companheiro sobrevivente. Isso
porque se equipara integralmente a família constituída pelo casamento e pela união estável,
sem diferenciação. Além disso, dispõe o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.850 122, o
poder do testador de excluir os colaterais, apenas e sem interpretação ampliativa, ao dispor de
seu patrimônio sem os contemplar. Esta também seria uma regra restritiva de direitos, não
comportando interpretação ampliativa para inserir o companheiro no gênero herdeiro
colateral123.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 878.694124,
prolatada pelo Tribunal Pleno, em 10.05.2017, ainda não teve seus votos disponibilizados,
mas já indica possivelmente a linha, a qual a Corte irá seguir dentro desta controvérsia. A
inconstitucionalidade declarada do artigo 1.790, do Código Civil de 2002, em que pese ser
para alguns uma grande vitória, pode também ser interpretada como extinção das diferenças
práticas entre a união estável e o casamento. De fato, a discriminação não deve ser tolerada,
mas a diferença é sempre benéfica, permitindo aos indivíduos escolhas quanto ao regime
jurídico de suas relações familiares. A equiparação completa extermina as escolhas, podendose agora argumentar, tal qual se faz no regime da separação legal e convencional de bens,
impor o Estado a comunhão patrimonial, de uma forma ou de outra. Não há escolha.
118
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit..
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: sucessões. V. 6. 7. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense,
2016, p. 188.
120
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: direito das
sucessões. V. 7. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 241.
121
Nesse sentido, Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Flávio Augusto Monteiro de Barros, Flávio
Tartuce, Francisco José Cahali, Gustavo René Nicolau, Inacio de Carvalho Neto, Jorge Shiguemitsu Fujita, José
Fernando Simão, Maria Helena Diniz, Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi, Marcelo Truzzi Otero, Mário
Delgado, Mario Riberto Carvalho de Faria, Roberto Senise Lisboa, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno,
Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, Sílvio de Salvo Venoso, Zeno Veloso e , bem como esta autora.
122
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
123
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 413.
124
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 878.694. Relator: Ministro Roberto Barroso.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004>. Acesso
em 27 out. 2016.
119
39
Em seguida, o legislador infraconstitucional prestigiou os colaterais como quarto
vocacionado a herdar, em ambos os Códigos Civis de 1916 e 2002.
Explicam Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka125, que
historicamente, ainda nas Ordenações, os colaterais eram chamados até o décimo
grau, com primazia ao cônjuge. Assim se manteve até 1907, quando, pelo Decreto
1.839, modificou-se a ordem de preferências para privilegiar o cônjuge em
detrimento dos colaterais, restringindo estes até o sexto grau para o direito à
herança. Esta ordem e abrangência foram absorvidas pelo Código Civil de 1916 em
sua versão original, mas, em razão de modificação introduzida pelo Decreto-lei
9.461/1946, o direito hereditário dos colaterais foi limitado ao quarto grau de
parentesco, mantendo esta posição o legislador do Código Civil de 2002.
Em interpretação do artigo 1.845 c/c artigo 1.850, ambos do Código Civil de 2002126,
depreende-se que o colateral é herdeiro facultativo, podendo ser excluído da sucessão por ato
de liberalidade do falecido em testamento, eis que não foi estabelecido no rol taxativo de
herdeiros necessários disposto no primeiro artigo supracitado.
Conforme o artigo 1.839, do Código Civil de 2002127, serão chamados a suceder os
colaterais até o quarto grau, como últimos na ordem de vocação hereditária, quando não
houver descendentes, ascendentes ou cônjuge sobrevivente, respeitada a regra do mais
próximo excluir o mais remoto, salvo o direito de representação concedido aos filhos de
irmãos, a teor do artigo 1.840, do Código Civil de 2002128.
Contudo, salienta-se que a representação de colaterais não se estende ao infinito,
como ocorre na representação de descendentes, mas apenas abrange até os sobrinhos do
falecido. Isso porque presume o legislador infraconstitucional nesta hipótese que a afeição do
autor da herança se encerra naquela pessoa129. Assim, na eventualidade de o irmão e o
sobrinho, filho deste irmão, vieram a falecer antes do inventariado, mas restar vivo outro
irmão, o quinhão do irmão pré-morto acrescerá ao irmão ainda vivo, e não passará ao
sobrinho-neto do inventariado.
Como estabelecido no artigo 1.841, do Código Civil de 2002130, no caso de
concorrerem à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, cada um destes
herdará metade do que cada um daqueles herdar. Os irmãos bilaterais são os filhos do mesmo
pai e da mesma mãe (linha duplicada) e os irmãos unilaterais são filhos ou do mesmo pai,
chamados consanguíneos, ou da mesma mãe, denominados uterinos (linha simples)131. Essa
125
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 4. ed. rev.
atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 252.
126
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
127
Ibid.
128
Ibid.
129
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 253.
130
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
131
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 445.
40
regra tem por base a presunção do legislador de haver maior afeição entre os irmãos bilaterais
do que entre os unilaterais, sob fundamento da criação e do desenvolvimento próximo
conjunto.
Não se aplica a regra da desigualdade entre irmãos como herdeiros colaterais, caso
haja apenas irmão unilateral. Nesta hipótese, todos os irmãos unilaterais, sejam consanguíneos
ou uterinos, receberão quinhões de mesma proporção.
Explicam Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka132, que
a outra exceção à regra de que os mais próximos em grau excluem os mais remotos,
concorrendo entre si, (...) também em favor dos sobrinhos, filhos de irmãos, se
nenhum destes estiver vivo, não existindo, pois, colaterais em segundo grau, sendo
chamados, neste caso, por direito próprio, não por representação. Os sobrinhos são
colaterais em terceiro grau, assim como também o são os tios do falecido (...).
Entretanto, por opção legislativa, na falta de irmãos (colaterais em segundo grau)
herdam, se existirem, os filhos destes, com exclusão dos tios do falecido (...).
No entanto, na situação em que o autor da herança deixar apenas, na qualidade de
herdeiro, colaterais de quarto grau, por ser vedado o direito de representação neste caso,
sucedem esses herdeiros por direito próprio, sendo a partilha realizada por cabeça, sem
distinção de linha, privilégio, etc. Assim, a herança é dividida pelo número total de sucessores
legais, a despeito da designação hereditária de cada um133.
2.2. Direito sucessório sob a ótica civil-constitucional
A Constituição Federal de 1988 previu em seu artigo 5º134, entre os direitos
fundamentais, a garantia à herança, que se mostra no direito sucessório com a sucessão causa
mortis e a quota legitimária135. Por ser uma cláusula pétrea, o legislador constituinte originário
132
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 254.
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 446.
134
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
135
O presente tema, quota legitimária, é uma preocupação do legislador constituinte de prover aos sobreviventes
da família uma chance de continuidade neste mundo de forma digna, como se explicará mais adiante nesta seção.
Trata-se, em verdade, de uma diretriz perpetrada em função da economia política. O cerne da discussão sobre a
constitucionalidade da quota legitimária gira em torno da dicotomia entre o domínio público e o privado. Sobre o
assunto, Hannah Arendt preleciona: “o que nos interessa nesse contexto é a extraordinária dificuldade com que,
devido a esse desdobramento, compreendemos a divisão decisiva entre os domínios público e privado, entre a
esfera da pólis e a esfera do lar, da família, e, finalmente, entre as atividades relativas ao mundo comum e
aquelas relativas à manutenção da vida, divisão essa na qual se baseava todo o antigo pensamento político, que a
via como axiomática e evidente por si mesma. Em nosso entendimento, a linha divisória é inteiramente difusa,
porque vemos o corpo de povos e comunidades políticas como uma família cujos assuntos diários devem ser
zelados por uma gigantesca administração doméstica em âmbito nacional. O pensamento científico que
corresponde a esse desdobramento já não é a ciência política, e sim a ‘economia nacional’ ou a ‘economia
social’, ou, ainda, a Volkswirtschaft, todas as quais indicam uma espécie de ‘administração doméstica coletiva’;
o que chamamos de ‘sociedade’ é o conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o
fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada ‘nação’.
Assim, é-nos difícil compreender que, segundo o pensamento dos antigos sobre esses assuntos, o próprio termo
133
41
impossibilitou a retirada do ordenamento jurídico brasileiro, por modificação legislativa, do
direito à herança. Ao final, o indivíduo receberá a herança de seus parentes sem o temor de
apropriação pelo Estado de seus bens136.
O legislador infraconstitucional previu no Código Civil e no Código de Processo
Civil procedimento específico – inventário - a ser seguido com o intuito de transmitir esses
bens aos sucessores do de cujus. Cabe destacar a hipótese de o ente público ser o eventual
sucessor em inventário, mas apenas quando não houver sucessores legais ou testamentários,
também conhecida como herança jacente e vacante, com base nos artigos 1.819 a 1.823, do
Código Civil de 2002137, artigos 1.142 a 1.158, do Código de Processo Civil de 1973138 e
artigos 738 a 743, do Código de Processo Civil de 2015139.
Consoante a disposição do artigo 60, §4º, da Constituição Federal de 1988140, é
vedada a emenda constitucional de direitos e garantias individuais, como o direito à herança,
devendo o legislador infraconstitucional disciplinar o Direito das Sucessões à luz da
Constituição Federal.
Há no Direito Sucessório o instituto jurídico da quota legitimária, prevista nos artigos
1.789 e 1.846, ambos do Código Civil de 2002141, que impede o hereditando de dispor de
mais da metade de seu patrimônio, seja na lavratura do testamento, seja em liberalidade por
doação. Com isso, resguarda-se aos herdeiros necessários a quota legítima, impedindo-se que
a família reste desamparada na miséria ou na ruína, em virtude da morte ou da vontade do
testador. Essas normas jurídicas consagram os princípios constitucionais de dignidade da
pessoa humana, de proteção à família, de mínimo existencial, de solidariedade constitucional,
entre outros142.
‘economia política’ teria sido contraditório: pois o que fosse ‘econômico’, relacionado com a vida do indivíduo e
a sobrevivência da espécie, não era assunto político, mas doméstico por definição”. (ARENDT, Hannah. A
condição humana. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017, p. 34-35). Dessa forma, a quota
legitimária é a forma que o Estado tem de organizar a nação a fim de que, dentre as possibilidades, haja a
sobrevivência doméstica dos entes queridos do falecido, o que é passível de críticas, na medida em que se
imiscui na esfera privada em prol da coletividade. Em outras palavras, o Estado se faz de chefe de família nos
moldes tradicionais, despóticos, dessa grande família, denominada sociedade, restringindo a liberdade daquele
que tem o domínio sobre si mesmo e suas propriedades.
136
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 18.
137
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
138
BRASIL.
Código
de
Processo
Civil
de
1973.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869impressao.htm>. Acesso em: 04 mai. 2016.
139
BRASIL.
Código
de
Processo
Civil
de
2015.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 02 fev. 2017.
140
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
141
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
142
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 26.
42
Ressalta Heloisa Helena Barboza143,
a função da herança não mais se esgota na preservação da propriedade privada.
Embora não deixe de ser uma forma de ‘amparo’ à família, a herança tem, desde
1988, função mais relevante: a de contribuir para a proteção da pessoa humana,
assegurando-lhe condições dignas de sobrevivência, e permitindo o pleno
desenvolvimento de suas potencialidades.
Por outro lado, a vedação supramencionada pode ser lida também como um
permissivo legal para o autor da herança dispor livremente da quota disponível de seus bens,
consagrando-se assim a garantia da propriedade privada, a autonomia da vontade, entre
outros144.
A partir dessa análise, é possível afirmar que o princípio da proteção do herdeiro
necessário ou da intangibilidade da legítima se encontra alinhado à ordem civilconstitucional145 brasileira, na medida em que consagra inúmeros princípios e garantias
constitucionais.
Corroborando a existência do direito à quota legitimária, questiona-se se sua
supressão não levaria a sociedade brasileira ao consumo desenfreado de suas forças
econômicas146, bem como à miséria dos familiares sobreviventes, vez que a solidariedade e o
coletivismo não são traços inerentes ao ser humano médio147.
Apesar disso, conforme Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka148, há ainda na
atualidade vozes dissonantes, que se fundamentam no socialismo. Para tanto,
ao negarem legitimidade ao direito de propriedade privada, entendendo pertencerem
os bens ao Estado e a ele devendo, por isso, retornar, em benefício de toda a
comunidade, negaram, igualmente, legitimidade à transmissão causa mortis de bens
de produção e consumo, uma vez que, se a permitissem, estariam reforçando as
desigualdades sociais existentes e premiando, com a aquisição derivada da
143
BARBOZA, Heloisa Helena. Aspectos Controversos do Direito das Sucessões: considerações à luz da
constituição da república. In: TEPEDINO, Gustavo. Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da
legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 322.
144
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 27.
145
Sobre o Direito Civil-Constitucional, explica Maria Celina Bodin de Moraes: “Aceita-se hoje, cada vez mais,
como metodologia obrigatória para a imprescindível reunificação do sistema, a necessidade de se proceder à
‘releitura do Código Civil e das leis especiais – isto é, da normativa do direito civil – à luz da Constituição’. Esta
parece ser, com efeito, a única solução logicamente adequada, se reconhecermos a preeminência das normas
constitucionais e dos valores por elas expressos num ordenamento caracteristicamente unitário. Portanto, a
norma constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas também
como norma de comportamento, idônea, a incidir sobre o conteúdo das relações intersubjetivas, funcionalizandoas aos seus valores. Isto significa dizer-se que a igualdade – formal e substancial -, a solidariedade e a dignidade
da pessoa humana se tornam os parâmetros axiológicos da jurisprudência e de todo o aparato jurídico conceitual,
estando aptos a fundar uma verdadeira revolução nos conceitos jurídicos próprios do direito privado e,
sobretudo, na função atribuída a estes conceitos” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa
Humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 29).
146
“Diz-se frequentemente que vivemos em uma sociedade de consumidores, e uma vez que, como vimos, o
trabalho e o consumo são apenas dois estágios do mesmo processo. (...) o tempo excendente do animal laborans
jamais é empregado em algo que não seja o consumo, e quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e
ardentes são os seus apetites”. (ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 156; 165).
147
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 19.
148
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 334.
43
propriedade, pessoas que não concorreram para sua aquisição, pela única forma
socialmente entendida como apta a legitimar a utilização dos bens que pertencem,
em última análise, à sociedade como um todo, qual seja, o trabalho.
Outros argumentos se baseiam na atual realidade biológica, social-econômica e
jurídica da sociedade. Nestes, defende-se a existência de meios alternativos para proteger os
entes familiares sobreviventes, que não dessa forma perpetradora do capitalismo e da
desigualdade, como a seguridade social e os contratos de seguro.
De fato, percebe-se que a realidade biológica brasileira tem se modificado. Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a pirâmide etária brasileira está se
invertendo, isto é, sua base diminui gradativamente ao longo dos anos, ao revés, sua porção
superior se alarga, indicativo da queda na taxa de natalidade e do aumento na qualidadeexpectativa de vida dos brasileiros149. Para os críticos da quota legitimária, isso quer dizer que
aqueles albergados pela legislação pátria não estão sendo efetivamente protegidos, posto que
seus ascendentes estão falecendo bem mais tarde e, ao final do processo sucessório, os
beneficiários serão seus descendentes, netos do de cujus. A proteção, portanto, seria inócua150.
Essas críticas são importantes para se pensar em possíveis mudanças legislativas a
fim de priorizar, por exemplo, uma reserva hereditária direcionadas às forças menos capazes,
com base na idade, na incapacidade de autossubsistência, nos problemas de saúde físicomental, etc151.
Todavia, é notória a constitucionalidade da quota legitimária no Direito Sucessório.
“O fundamento da transmissão causa mortis estaria além da mera expectativa de continuidade
patrimonial, da simples manutenção dos bens na família, que estimularia a poupança, o
trabalho e a economia, mais que isso, o grande fundamento habitaria o fato de proteção,
coesão e de perpetuidade da família”152.
Embora constitucional, a quota legitimária não está prevista expressamente na
Constituição, sendo apenas um instituto jurídico do Direito Civil consagrador de princípios e
149
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Projeção da população do Brasil e das
Unidades da Federação. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/ >. Acesso em: 17
jun. 2017.
150
Nas palavras de Tânia da Silva Pereira, “é flagrante o envelhecimento da população brasileira, sendo certo
que o IBGE já identificou, em 2010, mais de 20 milhões de pessoas com mais de 60 anos, o que já representava
aproximadamente 12% da população brasileira. Em 2000, este número era de 15 milhões, equivalendo a 8% da
população, o que demonstra claramente a necessidade de uma maior atenção voltada para este grupo. Ressalta-se
que a população mundial está passando pelo mesmo processo, com o aumento da expectativa de vida. ‘Segundo
estimativas do Fundo de Populações das Nações Unidas, uma em cada nove pessoas no mundo tem 60 anos ou
mais, e a expectativa é de que em 2050 a população de idosos seja de dois bilhões de pessoas. No Brasil, a
expectativa de vida é de 74,8, sendo 71,3 para os homens e 78,5 anos para as mulheres”. (PEREIRA, Tânia da
Silva. Proteção dos idosos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 343.
151
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 31.
152
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 334.
44
garantias constitucionais. Assim sendo, seria possível entender pela constitucionalidade de
eventual lei redutora da quota legitimária, mas nunca uma extintora.
Hidekazu 2.3. Conceituação de sucessão
O Direito Sucessório é o ramo do Direito Civil, permeado por valores e princípios
constitucionais, que tem por objetivo primordial estudar e regulamentar a destinação do
patrimônio da pessoa física ou natural em decorrência de sua morte, momento em que se
indaga qual o patrimônio transferível e quem serão as pessoas que o recolherão.
Para esse ramo do direito, o fato morte, apesar de relevante, não é profundamente
discutido no ordenamento jurídico brasileiro, atendo-se os juristas apenas à transmissão em si.
“Independentemente das características de ocorrência de cada morte em particular, e mesmo
da maneira como cada morte é sentida pelos outros, ao Direito interessam as suas
consequências, tão somente”154.
Aduzem Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que “a
transmissão pode ser da totalidade dos direitos, identificando-se, nesta situação, a sucessão a
título universal, ou limitada a um ou alguns direitos, quando então se diz que a sucessão é a
título singular, sub-rogando-se o novo sujeito, neste caso, apenas nos direitos e obrigações
decorrentes da relação jurídica transmitida” 155.
Nas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka156,
assim como a vida termina com a morte, o Código Civil também termina com ela, e
este é, sem dúvida, um lembrete para o quanto o Código Civil é um belíssimo retrato
da vida dos particulares. Começa, o Código, com o surgimento da própria vida, ao
tematizar a personalidade; em seguida, avança para as relações obrigacionais e o
trato das coisas (o núcleo patrimonial da vida de todo cidadão), atingindo o ápice
nas relações havidas entre entes familiares (o núcleo existencial e destino de vida de
todo cidadão); por fim, conclui-se com o fato da morte (o núcleo da transmissão
hereditária e destino final de vida de todo homem). O direito civil realmente está
presente em todas as fases de nossas vidas, o que inclui, evidentemente, a morte e
suas consequências. É inevitável pensar na morte, portanto, ao se atravessar o direito
civil e, sobretudo, ao se atingir a culminância dos seus grandes temas.
A sucessão causa mortis pode ser definida como "a transmissão dos direitos e
obrigações de uma pessoa morta à outra sobreviva, por virtude da lei ou da vontade expressa
do transmissor"157. Dessa forma, o sucessor assume o lugar do falecido na relação jurídica,
153
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.908 de 2012. Disponível em: <
http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=564125>. Acesso em: 19 fev.
2016.
154
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 46.
155
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 22.
156
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 21.
157
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978, p. 17.
45
sub-rogando-se em seus direitos, créditos e débitos, recolhendo-os de acordo com o artigo
1.786, do Código Civil de 2002158.
De acordo com Luiz Paulo Vieira de Carvalho159,
os sucessores hereditários, cujo subingresso se fará nas situações patrimoniais e
pessoais deixadas pelo falecido, ou são os herdeiros - legais ou testamentários,
verdadeiros continuadores daquele, pois recebem por lei ou por testamento, no todo
ou em parte, o conjunto de tais relações, denominado de herança, ou são os
legatários, sucessores particulares ou singulares, porquanto a eles são destinados
bens singularizados, individuados, apartados, separados de tal conjunto, mediante
testamento ou codicilo.
Em síntese, o conceito de que o fenômeno da sucessão causa mortis não se restringe
tão somente à ideia de transferência dos direitos de uma pessoa para outra, mas também ao
chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais
transmissíveis antes pertencentes ao falecido.
2.4. Críticas ao Direito Sucessório
Assim como outros ramos do Direito, o Direito Sucessório não é isento de críticas,
sejam doutrinárias, jurisprudenciais, antropológicas ou filosóficas, etc. Dentre as críticas mais
comumente expostas, encontram-se aquelas, segundo a qual “o Direito Sucessório não deveria
existir, pois toda a riqueza vem da coletividade e a ela deve regressar após a morte”160, ou
então, “o Direito de Sucessões poderia provocar no herdeiro o desejo vil de que aqueles que
lhe legariam herança morressem” 161, ou ainda, “o Direito de Sucessões estimularia o ócio de
futuros herdeiros que têm ciência de que são destinatários de quantia considerável,
desestimulando-os ao trabalho e diminuindo a mão de obra disponível no mundo”162.
Ademais, há aquelas referentes às verbas provenientes de funcionalismo público e de
exploração de atividade empresarial. Argumenta-se, no primeiro caso, que a origem do
dinheiro acumulado é necessariamente do erário público, o que, em observância do princípio
da solidariedade e da razoabilidade, importaria em sua devolução ao final da vida do
funcionário público, a fim de que a sua distribuição não ficasse restrita aos parentes do
falecido, mas retornasse à sociedade163. Apesar de vir originariamente o dinheiro do
158
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 18.
160
HATEM, Daniela Soares. A Ordem de Vocação Hereditária no Código Civil de 2002: uma abordagem
crítica. 2009. 178 f. Tese (Doutorado em Direito Privado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Minas Gerais, p. 48.
161
Ibid.
162
Ibid.
163
Ibid.
159
46
funcionário público do erário público, não se pode olvidar que se trata em realidade da
remuneração em contraprestação pelos serviços prestados, sem se adentrar aqui no mérito da
natureza jurídica dessa remuneração, transmudando-se de verba pública em dinheiro privado.
Neste caso, como bem móvel adquirido na constância da vida, deve-se partilhá-lo entre os
herdeiros do falecido, e não entre a sociedade.
Já no segundo caso, “sustentam os contrários ao direito à herança, que a exploração
de tal atividade apenas se deu porque o Estado permite que tal exploração aconteça e, além de
tal fato, fornece condições para que o executor da atividade comercial encontre ali clientela,
também só existente através de concessão do Estado” 164. Esquecem-se esses críticos de que o
Estado não é capaz de ocupar integralmente todos os setores da economia, permitindo, em sua
própria incapacidade, a exploração das atividades econômicas por particulares. Outrossim, é
vedado ao Estado a exploração em monopólio165 de atividade econômica, ressalvadas as
hipóteses expressas na Constituição Federal de 1988. Assim, não há propriamente uma
benesse do Estado em favor de um particular, mas uma imposição legal a estimular a livre
concorrência.
Aduzem Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka166, que
malgrado os fundamentos de ordem religiosa, biológica ou antropológica, a sucessão
causa mortis encontra envolventes opositores, destacando-se em uma linha os
socialistas, contrários à propriedade privada especialmente sobre os bens de
produção, que veem nela um incentivo às injustiças e desigualdades entre os
homens, concentrando riquezas nas mãos de poucos, além de prestigiar a indolência
e preguiça, nocivas ao desenvolvimento produtivo e econômico indispensáveis à
sociedade; e em outras os jusnaturalistas e escritores da escola de Montesquieu e
Rousseau, que consideram a sucessão hereditária pura criação do direito positivo,
que este pode assim eliminar a qualquer tempo, se assim for de interesse às
conveniências sociais.
Já para os socialistas, “a herança e a escravidão foram as duas grandes instituições
introduzidas no mundo pela preguiça”167, gerando desigualdade entre a sociedade, na medida
em que se acumula riqueza nas mãos de alguns indivíduos apenas.
Para Proudhon, a propriedade é um roubo. Ainda assim, esta é melhor remédio do
que a expropriação geral, defendida pelos socialistas, pois “a abolição da propriedade privada,
164
Ibid., p. 49.
Nas palavras de Leonardo Vizeu Figueiredo, em seu artigo “A Questão do Monopólio na Constituição da
República Federativa do Brasil e o Setor Postal”, p. 9: “Monopólio é a exploração exclusiva de determinada
atividade econômica por um único agente, não se admitindo a entrada de outros competidores. Outrossim, por
atividade econômica entende-se todo o processo de produção e circulação de bens, serviços e riquezas na
sociedade. Podemos classificar o monopólio, conforme os critérios a seguir listados.” (FIGUEIREDO, Leonardo
Vizeu. A Questão do Monopólio na Constituição da República Federativa do Brasil e o Setor Postal. Disponível
em: <www.agu.gov.br/page/download/index/id/905010>. Acesso em: 19 jul. 2017)
166
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 23.
167
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das sucessões. V. 6. 38. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 15.
165
47
ainda que pudesse curar o mal da pobreza, muito provavelmente provocaria o mal ainda maior
da tirania”168.
Ademais, a indolência, alegadamente provocada pela transmissão da riqueza
acumulada no decorrer da vida de um indivíduo aos seus familiares e causadora de prejuízo ao
desenvolvimento produtivo e econômico do país, não se concretiza. Isso porque a realidade
brasileira não permite aos seus indivíduos o desapego ao trabalho, verificando-se, na prática,
apenas o alívio momentâneo das pressões e exigências cotidianas de sobrevivência
instrumentalizado por transmissão de herança.
Por outro lado, subsidiariamente, mesmo que houvesse uma indolência provocada
pela aquisição de propriedade por herança, esta mesma indolência não geraria maiores
consequências no desenvolvimento do país, haja vista que há efetivamente maior oferta de
trabalhadores do que trabalho169.
Dentre os argumentos favoráveis ao Direito Sucessório, destacam-se aqueles no
sentido de que “enquanto subsistir o sistema capitalista de propriedade privada, subsistirá a
sucessão causa mortis”170; o Direito Sucessório “é o fator de união familiar, enriquecimento
da poupança do trabalho produtivo” 171; “suprimi-lo é violentar os sentimentos da pessoa para
com os seus parentes mais próximos e é alterar profundamente muitos direitos assegurados na
legislação civil”
172
; haveria o desestímulo pela conservação de patrimônio, trazendo
comportamento diametralmente oposto, em prejuízo à sociedade173.
Em complemento às supracitadas opiniões, Roberto Senise Lisboa entende que o
direito à herança provoca, na maioria dos casos, um desmembramento e o aumento do número
de proprietários, sendo mais raros os casos em que uma pessoa deixa patrimônio a, também,
uma única pessoa. São objetivos da sucessão hereditária: (i) a perpetuidade do patrimônio na
família do de cujus; (ii) a demonstração do apreço do sucedido pelo herdeiro; e (iii) a
continuidade das relações jurídicas provindas do de cujus174.
Elenca Luís da Cunha Gonçalves175 os fatores favoráveis ao Direito Sucessório:
168
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 82-83.
CAVALLINI, Marta; SILVEIRA, Daniel. Desemprego fica em 13,7% no 1º trimestre de 2017 e atinge 14,2
milhões. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia/noticia/desemprego-fica-em-137-no-1-trimestre-de2017.ghtml>. Acesso em: 19 jul. 2017.
170
FIUZA, César Augusto de Castro. Direito Civil: curso completo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
850.
171
Ibid.
172
Ibid.
173
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. V. 7, p. 6.
174
LISBOA, Roberto Senise. Direito de Família e das Sucessões. V. 5. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p. 419-427.
175
GONÇALVES apud MONTEIRO, Washington de Barros. Op. cit., p. 16.
169
48
(i) com a supressão da herança, extingue-se o desejo de transmitir à prole os meios
necessários ao seu conforto e bem-estar; (ii) a supressão aniquila o espírito de
poupança e de capitalização, favorecendo-se o desperdício e fomentando a
prodigalidade. Desaparecerá o interesse pela economia, ninguém mais se preocupará
com a acumulação de bens, se obrigando a deixá-los à coletividade após a sua
morte; (iii) estanca uma das mais apreciáveis fontes de renda do erário público, a
arrecadação do imposto de transmissão causa mortis; (iv) elimina uma das bases de
coesão familiar, condenando seus membros ao individualismo, à dispersão de forças
e ao egoísmo personalista; (v) espolia a família, em proveito da comunidade,
esquecidos seus adeptos de que a primeira representa o núcleo fundamental, a base
mais sólida em que repousa toda a organização social, merecedora, por isso, do
maior amparo; (vi) não é verdadeira a afirmativa de que o Estado faça melhor
aplicação dos haveres, pois, infelizmente, repetem-se os casos de malversação dos
dinheiros públicos; (vii) finalmente, a abolição da herança, preconizada pelos
socialistas, pode ser facilmente burlada. Como não existe herança, o indivíduo faz
doação em vida aos herdeiros, mediante reserva de usufruto [...] .
De fato, se for retirado do homem o estímulo que o leva a constituir um patrimônio,
uma garantia aos seus e a si mesmo, acomodar-se-á à inatividade ou ao mínimo de atividade
que assegure sua sobrevivência176.
Outros pontos de vista remetem à contribuição da sucessão hereditária para diminuir
o sentimento de angústia do homem, ao constatar que, apesar de sua finitude177, ele pode
preconizar que, após a sua morte, seus descendentes e parentes darão continuidade ao
patrimônio resultante de seus esforços em vida.
Para Heloisa Helena Barboza178,
como natural desdobramento da nova ordem jurídica, as relações patrimoniais
encontram-se em franco trabalho de construção e reconstrução, na medida em que o
patrimônio, ao ser removido da posição de viga central do sistema jurídico privado,
assumiu novo papel, transformando-se em instrumento de realização das
potencialidades humanas. (...) Submetem-se as relações sucessórias à orientação
constitucional, estando, por conseguinte, funcionalizadas e comprometidas com a
proteção da pessoa humana. Nestes termos, o direito à herança, assegurado pela CF,
há de ser regulamentado, interpretado e aplicado à luz dos princípios constitucionais,
particularmente os da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da solidariedade,
permitindo a concreção dos objetivos da República (...). A função da herança não
mais se esgota na preservação da propriedade privada (...) função mais relevante: a
de contribuir para a proteção da pessoa humana, assegurando-lhe condições dignas
de sobrevivência, e permitindo o pleno desenvolvimento de suas potencialidades. O
sistema misto brasileiro de atribuição da herança, ao permitir ao indivíduo dispor de
metade do seu patrimônio, se tiver herdeiros necessários, harmoniza-se com a
orientação constitucional, na medida em que, de um lado, preserva os direitos à
liberdade e à propriedade, e de outro assegura aos integrantes da família uma parcela
do patrimônio do autor da herança, efetivando o princípio da solidariedade.
176
HATEM, Daniela Soares. Op. cit., p. 53.
Nas palavras de Hannah Arendt, “A única coisa de que podemos estar seguros é de que a coincidência da
inversão de posições entre o fazer o contemplar, com a inversão precedente entre a vida e o mundo, veio a ser o
ponto de partida para todo o desenvolvimento moderno. Foi só quando perdeu o seu ponto de referência na vita
contemplativa que a vita activa pôde tornar-se vida ativa no sentido pleno do termo; e foi somente porque essa
vida ativa se manteve ligada à vida como seu único ponto de referência que a vida como tal, o trabalhoso
metabolismo do homem com a natureza tornou-se ativa e exibiu toda a sua fertilidade”. (ARENDT, Hannah. Op.
cit., p. 397)
178
BARBOZA, Heloísa Helena. Aspectos Controversos do Direito das Sucessões: considerações à luz da
constituição da república. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Op. cit., 2008, p. 321-322.
177
49
Em resumo, pelo exposto, a supressão do direito sucessório não configuraria medida
útil à sociedade, ao contrário, geraria, na verdade, impactos negativos sociais e econômicos,
contando o Estado com meios eficientes para beneficiar a coletividade em situações de
sucessão patrimonial, como, por exemplo, pela tributação.
50
3. A ORDEM DE VOCAÇÃO HEREDITÁRIA: DIREITOS SUCESSÓRIOS DO
CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO SOBREVIVENTE
Nesse capítulo, apresentam-se inicialmente os regimes de bens no atual ordenamento
jurídico brasileiro a fim de contextualizar a discussão sobre as controvérsias existentes acerca
dos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente. Em seguida, identificam-se as questões
controvertidas dos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivente na ordem de vocação
hereditária, em especial quanto ao artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002. Ao final,
apresentam-se os direitos sucessórios do companheiro sobrevivente, previstos no artigo 1.790,
do Código Civil de 2002, e sua aplicação na ordem vocacionada. A apresentação desses
conteúdos constitui o referencial para discussão dos casos hipotéticos, apresentados no
capítulo 4.
3.1. Dos regimes de bens existentes no atual ordenamento jurídico
No Direito de Família, o regime de bens é um aspecto importante, em razão de suas
consequências na ordem social e na ética. Necessariamente, pelas regras do ordenamento
jurídico, ao se aproximarem pessoas com o desígnio de constituir família, submetem-se à
regulamentação patrimonial, cuja estrutura foi desenvolvida pelo Estado para proteger os fins
morais do casamento e da união estável, desencorajando as uniões de conveniência.
Atualmente, o casamento e a união estável, em seu conteúdo patrimonial, “mostramse relevantes para a definição da titularidade dos bens e do custeio das despesas familiares;
dos critérios para uso, gozo e disponibilidade do acervo comum ou particular de cada
consorte”179.
O artigo 1.640, do Código Civil de 2002180 estabelece que “não havendo convenção,
ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da
comunhão parcial”. Em seu parágrafo único, dispõe que “poderão os nubentes, no processo de
habilitação, optar por qualquer dos regimes que este Código regula. Quanto à forma, reduzirse-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura
pública, nas demais escolhas”.
179
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de direito de
família. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 238.
180
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
51
Por meio do pacto antenupcial, podem as partes convencionar qual regime de bens
preferem, sendo-lhes facultado estipular, por cláusulas, normas próprias não contidas em
qualquer regime típico estabelecido.
Por terem as partes essas alternativas no estabelecimento de regras específicas para
administrar, dispor e fruir de seus patrimônios, sejam particulares ou comuns, passa-se neste
trabalho a discorrer sobre os diferentes regimes de bens presentes atualmente no ordenamento
jurídico brasileiro.
Com o advento da Lei nº 6.515/77181, o regime da comunhão parcial de bens passou
a ser o regime supletivo, sendo, portanto, necessária apenas a redução a termo no próprio
assento de casamento quando da habilitação. Sendo assim, trata-se do regime de bens mais
comumente visto no dia-a-dia forense.
Trata-se de regime de bens, previsto no artigo 1.658, do Código Civil de 2002182, em
que o legislador, na inércia dos nubentes, faz uma escolha a priori da forma de divisão
patrimonial presumidamente mais equilibrada e justa. Nas palavras de Pablo Stolze
Gagliano183, “esse regime guarda mais congruência e equilíbrio com a perspectiva patrimonial
dos consortes, na medida em que estabelece uma separação patrimonial entre os bens
amealhados no passado e uma fusão dos bens futuros, adquiridos onerosamente por um ou
ambos os cônjuges”184.
Define-se o regime da comunhão parcial de bens como aqueles em que “ficam
excluídos da comunhão de bens pertencentes aos cônjuges antes do casamento e em que ficam
incluídos na comunhão os adquiridos de forma onerosa posteriormente ao casamento”185.
Como se percebe, a comunicabilidade desse regime é relativa, comunicando-se, a
teor do artigo 1.660, do Código Civil de 2002186: (i) os bens adquiridos na constância do
casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges; (ii) os bens
adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior; (iii) os
bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges; (iv) as
181
BRASIL. Lei n. 6.515 de 1977. Op. cit.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
183
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito de família. V.
6. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 323.
184
Em interessante análise, Pablo Stolze Gagliano aduz que “[...] sob o prisma da psicologia, destaca-se que, em
geral, quando ainda noivos, os futuros cônjuges evitam entabular o desagradabilíssimo diálogo sobre o regime de
bens a ser adotado. É uma conversa péssima. Quando essa espinhosa questão é aventada, é comum o olhar de
reprovação ou a seca advertência, em resposta: ‘você acha que eu quero alguma coisa sua?’. Por isso, muitos
noivos preferem nada dizer, permitindo, assim, que a própria lei faça a escolha por eles”. (Ibid., p. 323-324)
185
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Op. cit., p. 255.
186
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
182
52
benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge; e (v) os frutos de bens comuns, ou dos
particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo
de cessar a comunhão. Já o legislador, em seu artigo 1.662, do Código Civil de 2002 187,
presume terem sido adquiridos durante a vigência do casamento os bens móveis, ressalvada a
possibilidade de prova em contrário.
Por outro lado, excluem-se, a teor dos artigos 1.659 e 1.661, do Código Civil de
2002188: (i) os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na
constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; (ii) os bens
adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos
bens particulares; (iii) as obrigações anteriores ao casamento; (iv) as obrigações provenientes
de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal; (v) os bens de uso pessoal, os livros e
instrumentos de profissão; (vi) os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge; (vii) as
pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes; e (viii) os bens cuja aquisição
tiver por título uma causa anterior ao casamento.
Em relação à administração nesse regime de bens, os bens exclusivos serão de
responsabilidade do cônjuge proprietário, a teor dos artigos 1.664 e 1.665 do Código Civil de
2002189, podendo-se em pacto antenupcial se dispor de forma diversa. O artigo 1.666, do
referido diploma legal, impõe que “as dívidas, contraídas por qualquer dos cônjuges na
administração de seus bens particulares e em benefícios destes, não obrigam os comuns” 190.
Já os bens comuns, por pertencerem a ambos os cônjuges, devem ser administrados de
comum acordo, seja por ambos, seja por um ou por outro, respeitados os limites legais
(outorga marital, uxória, etc.).
Até o advento da Lei nº 6.515/77191, o regime da comunhão universal era o regime de
bens adotado pelo legislador como o supletivo, sendo, portanto, àquela época, necessária
apenas a redução a termo no próprio assento de casamento quando da habilitação. Hoje, ainda
tem grande destaque no ordenamento jurídico, em especial para o Direito Sucessório, em
razão da existência de diversos casais formados anteriormente à Lei do Divórcio. Atualmente,
necessita-se da lavratura de pacto antenupcial para se ter a escolha desse regime específico.
187
Ibid.
Ibid.
189
Ibid.
190
Ibid.
191
BRASIL. Lei n. 6.515 de 1977. Op. cit.
188
53
O Código Civil de 2002192, em seus artigos 1.667 e seguintes, prevê as regras
basilares desse regime jurídico da comunhão universal, que tende à unicidade patrimonial 193.
Ressalvadas as exceções legais, “o seu princípio básico determina uma fusão do patrimônio
anterior dos cônjuges e, bem assim, a comunicabilidade dos bens havidos a título gratuito ou
oneroso, no curso do casamento, incluindo-se as obrigações assumidas” 194.
Assim, nas palavras de Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego
Dabus Maluf195,
todos os bens do casal, não importa a natureza, móveis ou imóveis, direitos e ações,
passam a constituir um montante único, que permanecerá indivisível até a efetiva
dissolução da sociedade conjugal. Na ótica desse regime patrimonial, cada cônjuge
tem direito à metade ideal da massa. Forma-se, assim, uma verdadeira sociedade,
embora regida por normas especiais. Tudo quanto um deles adquirir transmite-se
imediatamente ao outro cônjuge, mesmo que com nada este tenha contribuído para o
acervo do patrimônio do casal; mesmo que não tenha adquirido bens durante a
constância da sociedade conjugal, o consorte recebe a metade do que o outro trouxe
ou adquiriu na sua vigência.
Em suma, a contribuição efetiva para a formação do acervo patrimonial não foi
objeto de preocupação do legislador nesse regime jurídico, haja vista tê-lo pensado para o
caso, antigamente comum, do homem trabalhador e sustentador da casa e da mulher ‘do lar’.
Observa-se, contudo, não ser absoluta essa presunção legal, eis que o Código Civil,
em seus artigos 1.668 e 1.659196, elencou hipóteses de incomunicabilidade dos bens, quando
forem: (i) os bens doados ou gravados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados
em seu lugar; (ii) os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário,
antes de realizada a condição suspensiva; (iii) as dívidas anteriores ao casamento, salvo se
provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum; (iv) as doações
antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com cláusula de incomunicabilidade; (v) os
bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; (vi) os proventos do trabalho
192
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
Equivocam-se muitos juristas ao afirmarem que nesse regime a comunhão dos bens se fará daqueles passados,
presentes e futuros. Ao disporem sobre ‘os bens passados’, querem esses juristas se referir aos bens adquiridos
antes do casamento ou da união estável. Contudo, bens passados são aqueles que, de fato foram adquiridos antes
da constância marital/convivência afetiva, mas não pertencem mais ao acervo patrimonial do nubente, seja por
tê-lo doado, alienado, perdido, etc. Correto, portanto, não mencionar os bens passados, visto não estarem esses
inclusos na comunhão patrimonial dos cônjuges/conviventes, mas apenas os bens presentes e futuros. Os bens
adquiridos antes do casamento ou da união estável a qualquer título, que ainda integram o patrimônio do casal,
são considerados bens presentes, por estarem, obviamente, ainda presentes no acervo patrimonial. Caso os bens
passados formassem a comunhão do casal, então necessário seria reassenhorar imóveis ou móveis em nome de
terceiros para se administrar, formar meação, etc., sob violação intransponível de todos os princípios, direitos e
deveres, nos quais o Direito está calcado.
194
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit. 2011, p. 356.
195
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Op. cit., p. 245.
196
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
193
54
pessoal de cada cônjuge; e (vii) as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas
semelhantes.
Em relação à administração de bens, aplica-se ao regime da comunhão universal as
regras do regime da comunhão parcial, apenas quanto aos bens comuns.
O regime da participação final nos aquestos se caracteriza pela existência de dois
patrimônios próprios de cada cônjuge, mesmo na constância do casamento, a teor do artigo
1.673, do Código Civil de 2002197. Todavia, à época da dissolução conjugal, todos os bens
adquiridos onerosamente durante o matrimônio pelos cônjuges serão partilhados à metade
pelo casal, com base no artigo 1.672, do Código Civil de 2002198. Necessita-se da lavratura de
pacto antenupcial para se optar por esse regime específico.
Quanto à sua natureza jurídica, esclarecem Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana
Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf199,
é um regime híbrido, que segue os princípios da separação de bens na constância do
casamento e da comunhão parcial na dissolução da sociedade conjugal. Caracterizase dessa forma pela existência de dois patrimônios distintos, incomunicáveis durante
o casamento e comunicáveis na dissolução deste, se adquiridos onerosamente.
Em relação à administração de bens, esta é exclusiva do seu titular – cônjuge. Há
nesse regime a característica de liberdade relativa para disposição de bens componentes do
acervo patrimonial próprio, podendo aliená-los sem restrições, se forem bens móveis, com
base no artigo 1.673, parágrafo único, do Código Civil de 2002 200. Em interpretação a
contrário senso, se forem bens imóveis, necessária será a outorga marital ou uxória201 para
aliená-los. Essa outorga também se faz indispensável para a doação do bem imóvel, podendo,
em sua inobservância, o cônjuge prejudicado, ou seus herdeiros, à época da dissolução
197
Ibid.
Ibid.
199
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Op. cit., p. 255.
200
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
201
“Trata-se de figura jurídica de longa tradição, que, originalmente, tinha por finalidade preservar o patrimônio
do casal de potenciais riscos assumidos somente pelo marido, na concepção histórica deste como ‘chefe de
família’. Assim, para que o marido pudesse praticar específicas condutas, relacionadas aos bens do casal, exigiase o consentimento expresso da mulher, daí a expressão ‘outorga uxória’ (...). Com o advento do princípio da
igualdade entre homens e mulheres e, consequentemente, no campo específico das relações familiares, entre
cônjuges, parece-nos que a expressão, embora consagrada pelo uso tradicional, não deva ser mais prestigiada.
Note-se, a propósito, que o vigente Código Civil brasileiro, em nenhum momento sequer, utiliza a expressão
‘outorga uxória’, o que reforça a ideia de superação do conceito. Assim, da mesma forma como o conhecido
‘pátrio poder’ passou a ser denominado e compreendido, de maneira mais abrangente, como ‘poder familiar’, a
expressão ‘outorga uxória’ deve ser utilizada para ‘autorização conjugal’, que é muito mais ilustrativa e técnica’.
(...) Assim, a ‘autorização conjugal’ pode ser conceituada como a manifestação de consentimento de um dos
cônjuges ao outro, para a prática de determinados atos, sob pena de invalidade”. (GAGLIANO, Pablo Stolze;
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit., 2011, p. .314-315)
198
55
conjugal202, reivindicá-lo ou recuperar o seu valor equivalente, a teor do artigo 1.675, do
Código Civil de 2002203.
Ressalta-se que é possível, por meio de cláusula no pacto antenupcial, a convenção
expressa e livre no sentido de dispensar essa outorga para a disposição dos bens imóveis
particulares204.
Na ocasião da dissolução conjugal, preceitua o Código Civil de 2002, em seu artigo
1.674205, que, excluindo-se da soma dos patrimônios próprios, haverá a apuração dos bens
amealhados por cada cônjuge da seguinte forma: (i) os bens anteriores ao casamento e os que
em seu lugar se sub-rogam; (ii) os que sobrevieram a cada cônjuge por sucessão ou
liberalidade; (iii) as dívidas relativas a esses bens, havendo presunção relativa de aquisição
durante o casamento quanto aos bens móveis.
A respeito das dívidas, são de responsabilidade de cada cônjuge aquelas contraídas
na constância do casamento. Dispõe o artigo 1.678, do Código Civil de 2002206 que “se um
dos cônjuges solveu uma dívida do outro com bens do seu patrimônio, o valor do pagamento
deve ser atualizado e imputado, na data da dissolução, à meação do outro cônjuge”, respeitado
o limite das forças da meação.
Na eventualidade de serem formadas novas dívidas posteriormente à dissolução,
somente o cônjuge que a contraiu responde, conforme artigo 1.677, do Código Civil de
2002207, vigorando as regras da separação de bens, ressalvado o caso de comprovado
benefício comum pela situação originária da dívida.
Na partilha dos bens, calcula-se o montante dos aquestos à data da cessação da
convivência. É facultado aos cônjuges, se não for possível uma divisão conveniente dos bens,
o cálculo do valor destes para reposição em dinheiro ao cônjuge não-proprietário, com base
nos artigos 1.683 e 1.684, do Código Civil de 2002208. Na impossibilidade de reposição em
dinheiro, alienam-se, extrajudicialmente ou judicialmente, tantos bens quantos forem
necessários para a devida reposição, com autorização do juiz.
202
Para Sílvio de Salvo Venosa, em razão de sua complexidade e sua falta de clareza, seja na administração, seja
nas disposições codificadas, “o regime favorece as manobras de má-fé, que visem diminuir as futuras
contribuições para o acervo a ser dividido, prejudicando, assim, não só os cônjuges como terceiros
eventualmente envolvidos”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 9. ed. São Paulo>
Atlas, 2009, p. 338)
203
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
204
ASSUNÇÃO, Alexandre Guedes Alcoforado. Código Civil comentado. Regina Beatriz Tavares da Silva
(coord.). São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.656.
205
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
206
Ibid.
207
Ibid.
208
Ibid.
56
O regime da separação se caracteriza pela completa separação do acervo patrimonial
de ambos os cônjuges, tornando-os incomunicáveis. Com base no artigo 1.687, do Código
Civil de 2002209, “cada cônjuge conserva em seu patrimônio pessoal os bens que possuía
antes do casamento, sendo também incomunicáveis os bens que cada um deles vier a adquirir
na constância do casamento” 210. Importante ressaltar que não se pode confundir o condomínio
convencional sobre bens, ocasionado por liberalidade do casal em uma compra conjunta, com
eventual comunicabilidade211 de acervos patrimoniais em razão de regime de bens. Necessitase da lavratura de pacto antenupcial para haver a escolha por esse regime específico.
O legislador, ao dispor suas regras, determinou a existência do regime da separação
legal, prevista no artigo 1.641, e da separação convencional, quando as partes assim
convencionam em pacto antenupcial212.
Como explicita Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas
Dabus Maluf213
com a entrada em vigor do Código Civil atual, possibilitou-se a livre alienação de
imóveis, dentro outros atos atinentes a direitos reais, assim como a prestação de
fiança e aval, independentemente de outorga uxória, se adotado o regime da
separação absoluta, por convenção ou por força de lei, nos termos do artigo 1.647.
(...) Também no caso de aquisição de bens em nome de apenas um dos cônjuges,
com recursos pertencentes também ao outro, existirá a comunhão, uma vez que não
se poderá alegar aquisição gratuita dos referidos bens, salvo, entretanto, se o bem em
questão for de pequeno valor, uma vez que a doação exige a forma escrita, pública
ou particular, mesmo que verse sobre bens móveis que não tenham valor
significante, como prevê o art. 541 do CC (art. 1.168 do Código Civil de 1916).
Frise-se que, quanto à aquisição de bens em nome próprio com aporte de recursos
conjunto de seu cônjuge, necessária se faz a prova na hora da partilha, em razão da presunção
legal de incomunicabilidade. É, em verdade, questão afeita ao Direito Processual Civil, não
abordado neste trabalho.
Em relação às dívidas contraídas por cada um, seja na constância do casamento ou
união estável, seja posterior à dissolução, da mesma forma impõe-se sua incomunicabilidade,
sendo, portanto, de responsabilidade do contraente.
209
Ibid.
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Op. cit., p. 260.
211
Conforme exposto adiante na seção 3.2, deste capítulo, há controvérsia sobre a aplicação da Súmula 377, do
Supremo Tribunal Federal a impor a comunicabilidade no regime da separação de bens, quanto aos bens
adquiridos onerosamente na vigência do casamento ou da união estável. Nota-se que predomina atualmente o
entendimento da vigência dessa súmula, bem como de sua aplicação do regime da separação legal/obrigatória de
bens, restando ainda inconclusivo o debate sobre sua aplicação do regime da separação convencional de bens.
212
Adiante na seção 3.2, deste capítulo, explorar-se-ão com mais profundidade a natureza jurídica e as
controvérsias desse regime, em especial quanto à separação legal e à separação convencional.
213
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Op. cit., p. 266.
210
57
Assim como no regime da participação final nos aquestos, a administração dos bens
é de responsabilidade de seu proprietário, qualquer que seja o cônjuge, “sendo-lhe lícita a
administração integral do seu patrimônio sem a ingerência da outra parte”
214
. É permitido,
também, a constituição de seu consorte como procurador para administrar e dispor de seus
bens, ficando-o obrigado a prestar contas, sob pena de ter de restitui-los215.
Por último, vale salientar que há hipóteses, em que o cônjuge esteja impedido de
dispor de seu patrimônio (interdição, ausência, etc.). Nessas situações, dispôs o Código Civil
de 2002, em seu artigo 1.651, que caberá ao outro consorte: (i) gerir os bens comuns e
particulares do outro; (ii) alienar os bens móveis comuns; e (iii) alienar os imóveis comuns e
os móveis ou imóveis do outro, mediante autorização judicial.
Essa revisão dos regimes patrimoniais de casamento e união estável atualmente
existentes no ordenamento jurídico brasileiro é de suma importância, na medida em que todas
as questões controvertidas no Direito de Sucessões, em especial aqueles temas desse trabalho,
passam impreterivelmente pelas regras do regime próprio do caso em mãos, seja para julgar,
opinar, dar parecer, defender ou fazer um planejamento sucessório.
3.2. Da sucessão do cônjuge sobrevivente
Conforme se depreende da leitura do artigo 1.829216, em seu inciso I, do Código
Civil de 2002, previu o legislador inicialmente a concorrência na sucessão causa mortis entre
o cônjuge sobrevivente e os descendentes do de cujus, para logo em seguida excepcionar a
regra geral ao levar em consideração o regime de bens adotado ou imposto pelos cônjuges em
vida. Essas exceções à regra geral de concorrência são fundamentadas na ideia de que os
amparados economicamente pelo instituto da meação, em decorrência do regime de bens
escolhido, não deveriam concorrer com os descendentes do hereditando, posto que seriam eles
forças mais jovens e fracas, dependentes de ajuda econômica e de proteção do legislador.
Assim, prega-se aqui o brocardo jurídico de que “quem herda não meia, e quem meia não
herda”217.
214
Ibid., p. 268.
Ibid., p. 269.
216
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit..
217
“Tal como fizemos na sucessão do cônjuge, merece alertar que o companheiro sobrevivente, paralelamente a
eventual direito sucessório, poderá exercer também no processo de inventário a qualidade de condômino ou
meeiro, buscando a sua participação sobre os bens em função do regime patrimonial adotado durante a união.
São qualidades diversas: meeiro e herdeiro”. (CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes
Novaes, Op. cit., p. 211)
215
58
Na primeira hipótese, impôs-se a não concorrência sucessória quando o cônjuge
sobrevivente e o hereditando tiverem se casado pelo regime da comunhão universal de bens.
Isso porque “o regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens
presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte”,
conforme disposto no artigo 1.667, do Código Civil de 2002218. Assim, o cônjuge já estaria
protegido economicamente pela sua meação a receber sem necessidade de ser coerdeiro,
deixando a meação e eventuais bens particulares do falecido a serem inventariados e
partilhados exclusivamente pelos descendentes.
Nesse sentido, há na 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgado do RMS
22.684/RJ, com relatoria da Min. Nancy Andrighi, em 07/05/2007, DJe 28/05/2007. No
acórdão, ficou entendido que, apesar de ser o cônjuge reconhecido no ordenamento jurídico
atual como herdeiro necessário, o seu direito sucessório de concorrência com os descendentes
do inventariado dependerá necessariamente do regime de bens adotado no casamento, nos
termos do artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002219. Independente de sua criticada redação
legal, que, por si só, já dificulta sua interpretação, a doutrina é uníssona quanto à não
concorrência entre o cônjuge supérstite e os descendentes do falecido, quando casados pelo
regime da comunhão universal de bens. Em outras palavras, o regime de bens escolhido pelo
casal, dentre as possibilidades existentes no ordenamento jurídico e aquelas criadas pelos
nubentes, é o ponto nevrálgico para se estabelecer, ou não, a concorrência do cônjuge
supérstite na hipótese do referido artigo. Assim sendo, na escolha pelo regime da comunhão
universal de bens, à parte da meação, o cônjuge sobrevivente não terá direito à herança, uma
vez que o inciso I, do supracitado artigo, o exclui expressamente da qualidade de herdeiro
concorrente220.
Na segunda hipótese, qual seja, quando o cônjuge sobrevivente for casado pelo
regime da separação obrigatória de bens, a não concorrência também se impõe. Contudo, o
legislador se utilizou da expressão “separação obrigatória de bens”, que não corresponde a
nenhum regime de bens vigente no nosso ordenamento jurídico, conforme se depreende da
análise perpetrada no tópico 3.1 deste capítulo.
218
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
Ibid.
220
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 22.684/RJ. Relatora:
Ministro
Nancy
Andrighi.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=200601995419>. Acesso em: 02 abr. 2016.
219
59
Tal questão já foi tema de controvérsia, tendo sido pacificada na 2ª Seção do
Superior Tribunal de Justiça, julgado no AgRg no EREsp 1.472.945/RJ, com relatoria do Min.
Antônio Carlos Ferreira, DJe 29/06/2015221, com entendimento consolidado no sentido de que
a exclusão legislativa recai apenas na situação de casamento pelo regime da separação legal
de bens, fundada no artigo 1.641, do Código Civil de 2002222.
Assim, na hipótese de o cônjuge sobrevivente ter se casado com o inventariado pelo
regime da separação legal, não haveria a concorrência dele com os seus descendentes 223. A
doutrina elenca alguns argumentos para fundamentar essa posição do legislador, que se passa
expor.
O primeiro argumento seria de que teria tentado o legislador, em uma visão
patrimonialista, evitar eventuais fraudes e proteger a prole, em observância ao princípio da
proteção familiar, e, consequentemente, não beneficiar economicamente o cônjuge
sobrevivente com a comunhão dos bens, antes ou depois da morte do de cujus224. Como visto
no tópico 3.1, essa incomunicabilidade se opera a todos os bens do futuro casal, adquiridos a
qualquer tempo, quando estes incidirem em três hipóteses legais, quais sejam, (i) contraírem
núpcias com inobservância de causas suspensivas da celebração do casamento; (ii) ser maior
de 70 (setenta) anos; e (iii) ser dependente de suprimento judicial para se casar, conforme
artigo 1.641, do Código Civil de 2002225.
Luiz Paulo Vieira de Carvalho226 critica a opção legislativa pelo regime da separação
legal de bens, quando fundamentada no critério etário, por violar princípios constitucionais,
como o da igualdade substancial, da proibição de discriminação em razão da idade e o da
dignidade da pessoa humana227. A presunção da incapacidade do septuagenário para decidir o
regime patrimonial da sua relação afetiva está associada a visão retrógrada do idoso como um
221
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo nos Embargos de Divergência em
Recurso Especial n. 1.472.945/RJ. Relator: Ministro Antônio Carlos Ferreira, Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201303350033>. Acesso em 03 ago. 2015.
222
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
223
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 94.
224
SILVA, Regina Beatriz Tavares da; BRITO, Laura Souza Lima e. Sucessão do Cônjuge e Regime da
Separação de Bens. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares; CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida. Grandes
Temas de Direito de Família e das Sucessões. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 353.
225
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
226
Nesse mesmo sentido, Paulo Luiz Netto Lôbo, Fredie Didier Junior, Cristiano Chaves de Farias, Silmara Juny
Chinelato, Francisco José Cahali, Tânia da Silva Pereira, João Batista Vilela, Maria Helena Diniz, Euclides
Benedito de Oliveira, Rui Ribeiro de Magalhães, Érica Verícia de Oliveira Canuto, Rolf Madaleno e Edson
Fachin.
227
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit, p. 329.
60
ser doente e ultrapassado, devendo ser visto na verdade “como uma fonte de experiências,
sabedoria e afeto”228.
Ademais, para Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de
Moraes229:
[...] tal disposição, na opinião da maioria dos doutrinadores (...) incidia em vício de
inconstitucionalidade, pois, além de não encontrar justificativa econômica ou moral,
restringe a liberdade individual do sexagenário, submetendo-o a verdadeira
interdição compulsória, em desrespeito aos princípios da igualdade, dignidade da
pessoa humana e da liberdade de constituir entidade familiar (artigo 1º, III, artigo 5º,
X, e artigo 226, todos da Constituição Federal de 1988). Esse entendimento continua
atual, mesmo com o aumento da idade para setenta anos, considerando que muitos
septuagenários exercem plenamente os atos da vida civil e possuem pleno
discernimento, notadamente para os aspectos existenciais. Contudo, isoladas vozes
ainda se apoiam no caráter protetivo da norma, qual seja: obstar à realização de
casamento exclusivamente por interesse econômico, consoante defendido por
Regina Beatriz Tavares da Silva, que atualizou a obra de Washington de Barros
Monteiro (Curso de Direito Civil, p. 218).
O segundo argumento seria de que a imposição legislativa quanto ao regime de bens
nessas três hipóteses legais não se sustenta, não só pelas violações aos princípios
constitucionais acima expostas, mas também pela subsistência e aplicação continuada230 da
Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal231, a fim de se evitar o abandono econômico do
cônjuge sobrevivente frente à realidade brasileira de incontáveis senhoras viúvas do lar sem
meação e sem herança232.
Essa súmula foi criada nos anos 60, inspirada no revogado artigo 259, do Código
Civil de 1916233, com o interesse social de amparar economicamente aqueles impossibilitados
legalmente de escolher o regime de bens ao se casar. Tal artigo dispunha que, no caso de
casamento celebrado sob qualquer regime, excetuado o da comunhão de bens, todos os bens
adquiridos onerosamente na vigência deste se comunicavam. Assim, com intuito de se evitar a
comunicação do patrimônio dos nubentes naquela época, impunha-se a realização de pacto
antenupcial com disposição expressa nesse sentido234.
228
PEREIRA, Tânia da Silva. Proteção dos Idosos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 362.
TEPEDINO, Gustavo; BARBOSA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil
Interpretado: conforme a Constituição da República. V. 4. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 267.
230
Nesse sentido de vigência da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo
Pamplona Filho, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Rolf Madaleno, Flávio Tartuce e Paulo Nader.
231
BRASIL.
Supremo
Tribunal
Federal.
Verbete
Sumular
n.
377.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400>.
Acesso em: 08 de jul. 2016.
232
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 329.
233
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit..
234
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 187.
229
61
Com o advento do Código Civil de 2002 e seu artigo 2.045235, o artigo 259, do
Código Civil de 1916236 foi expressamente revogado. A regra, portanto, se inverteu, ou seja,
no caso de casamento celebrado sob o regime da separação legal, a incomunicabilidade dos
bens é a regra geral, que se instituiu na omissão total e absoluta dos nubentes no pacto
antenupcial. Contudo, ainda seria possível a comunicabilidade dos bens adquiridos
onerosamente na constância do casamento, mesmo na omissão da vontade das partes, com a
aplicação da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal237, desde que comprovado o esforço
em comum238, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça239.
Em posicionamento minoritário240, Silvio Rodrigues entende que a referida súmula
não mais deveria se aplicar após o advento do Novo Código Civil, sem prejuízo, todavia, de
se possibilitar a prova do esforço comum para a formação do patrimônio pós-casamento, com
o objetivo de partilhá-lo sob as regras do direito obrigacional e das coisas, a teor dos artigos
981 - sociedade de fato – e 1.314 e seguintes - condomínio comum -, todos do referido
diploma legal241.
O que se percebia na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça era a existência
de duas interpretações para a referida súmula, a depender da turma julgadora, tendo sido o
tema pacificado pela 2ª Seção daquela Corte. Assim, a 4ª Turma do Egrégio Tribunal entendia
que se uma pessoa é casada em separação legal e outro adquire vários imóveis na constância
do casamento, formando os aquestos, esses bens se comunicam automaticamente, mesmo sem
a prova de esforço comum do outro cônjuge242. Já para a 3ª Turma do Egrégio Tribunal243, na
235
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
237
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Verbete Sumular n. 377. Op. cit.
238
“A contribuição do cônjuge para efeito de partilha do patrimônio comum não é, necessariamente, o auxílio
direto ou de ordem econômica, podendo, em nosso sentir, traduzir ainda o – não menos significativo – apoio
moral e espiritual dedicado ao longo do matrimônio”. (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO,
Rodolfo. Op. cit., 2011, p. 328)
239
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.171.820/PR.
Relator:
Ministro
Raul
Araújo.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201200911308>. Acesso em: 15 out. 2015.
240
Nesse sentido de revogação da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal com o advento do Código Civil de
2002, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Francisco José Cahali e Inácio de Carvalho Neto.
241
RODRIGUES, Sílvio. Op. cit., p. 214.
242
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.008.684/RJ. Relator:
Ministro
Antônio
Carlos
Ferreira.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=200702753220>. Acesso em: 08 abr. 2016.
243
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.403.419/MG. Relator: Ministro Ricardo Villas
Bôas
Cueva.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201303047576>. Acesso em: 15 abr. de 2016.
236
62
hipótese de casamento sob o regime da separação legal obrigatória o cônjuge sobrevivente
deverá provar o esforço comum a fim de obter a comunhão dos bens adquiridos em sua
constância, sob o fundamento de impedir o enriquecimento sem causa daquele. Esse último
entendimento foi o adotado pela 2ª Seção244, tornando a matéria incontroversa.
Assim, hoje entende-se majoritariamente que a solução para a segunda hipótese
excepcional é considerar o cônjuge sobrevivente meeiro do falecido, apesar de não ser
coerdeiro, quanto aos bens aquestos adquiridos na constância da convivência conjugal, com
aplicação do verbete sumular, desde que comprovado o esforço em comum.
Ainda que não seja hipótese de exclusão pelo legislador da concorrência com os
descendentes do falecido, incidindo-se, pois, a regra geral do artigo 1.829, do Código Civil de
2002245, faz-se salientar o tratamento legislativo dado àqueles casados pelo regime da
separação convencional de bens no direito sucessório.
Conforme dito anteriormente que o legislador se utilizou da expressão “separação
obrigatória de bens” para se referir ao regime da separação legal pelo entendimento
consolidado da jurisprudência, salienta-se que nesse regime a incomunicabilidade dos bens
aquestos é relativa, contra a qual cabe prova do esforço comum pela aplicação da Súmula nº
377, do Supremo Tribunal Federal246. Por outro lado, na separação convencional considera-se
a incomunicabilidade dos aquestos como sendo absoluta247, apesar de haver doutrina que
defenda a comunicabilidade nesse regime com aplicação do referido verbete sumular248.
Assim, entende-se pela concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes
do falecido, com aplicação da regra geral do artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002249,
quando este se encontrava casado pelo regime da separação convencional de bens, tendo em
vista excluir-se apenas aqueles casados pelo regime da separação legal ou, nas palavras do
legislador, “separação obrigatória”. Como só se excluiu a separação legal, não caberá ao
intérprete excluir a mais, inclusive a separação convencional.
244
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.171.820/PR.
Relator:
Ministro
Raul
Araújo.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201200911308>. Acesso em: 15 out. 2015.
245
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
246
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Verbete Sumular n. 377. Op. cit.
247
DANTAS JR., Aldemiro Rezende. Sucessão no casamento e na união estável. In: FARIAS, Cristiano Chaves
de (Coord.). Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 558.
248
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: direito das sucessões. V. 7. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 134.
249
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
63
Ademais, o pacto antenupcial, necessário nesse regime de bens, conforme artigos
1.653 e seguintes e 1.688, todos do Código Civil de 2002250, é classificado como negócio
jurídico bilateral inter vivos, com condição suspensiva e objetivo de disciplinar as disposições
patrimoniais na vigência do casamento e seu regime de bens. Sua eficácia se restringe ao
tempo do casamento, cessando com a morte de quaisquer dos nubentes, com base no artigo
1.571, §1º251, do mesmo diploma legal, pois se entende pela “inexistência no ordenamento
pátrio previsão de ultratividade do regime patrimonial apta a emprestar eficácia póstuma ao
regime matrimonial”.252
Apesar de ser o posicionamento acima exposto majoritário, há um precedente da 3ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça, REsp 992.749/MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe
05/02/2010, no sentido de que a expressão “separação obrigatória de bens” é considerado
gênero, dos quais são espécies a separação legal e a separação convencional, decorrendo da
lei e da vontade das partes, respectivamente, ambas com separação de bens. Portanto, a
pactuação pelo regime da separação convencional de bens importa na incidência da exceção
imposta pelo legislador, não concorrendo o cônjuge sobrevivente com os descendentes, por
não ser coerdeiro ou meeiro253.
Critica-se esse acórdão por falar não ser o cônjuge sobrevivente herdeiro necessário a
despeito da previsão expressa em sentido contrário do Código Civil de 2002, em seu artigo
1.845254. Ademais, a Ministra Relatora discorre ser a concorrência do cônjuge sobrevivente,
sob esse regime de bens norma de ordem pública, com aplicação obrigatória, na vida e na
morte, não tendo feito o legislador qualquer ressalva em contrário. Como fundamento, utiliza
“a quebra da unidade sistemática da lei codificada e (...) a morte do regime da separação de
bens”255, caso se entendesse de forma diversa.
Todavia, há divergência doutrinária e jurisprudencial quanto à concorrência
sucessória do cônjuge sobrevivente, casado sob esse regime, com descendentes do falecido. A
250
Ibid.
Ibid.
252
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.294.404/RS. Relator: Ministro Ricardo Villas
Bôas
Cueva.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201102806530>. Acesso em: 20 jun. 2016.
253
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 992.749/MS. Relatora: Ministra Nancy Andrighi.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=200702295979>. Acesso em: 24 abr. 2016.
254
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
255
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 992.749/MS. Op. Cit.
251
64
primeira posição, defendida por Maria Berenice Dias256, Luiz Paulo Vieira de Carvalho257,
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka258, entre outros259, e endossada pelo Superior
Tribunal de Justiça260, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro261 e Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul262, é no sentido da existência da concorrência e do
direito à herança, independentemente da situação fática, sempre se levando em consideração
ser o pacto antenupcial negócio jurídico inter vivos, com efeitos legais limitados a disciplinar
apenas os efeitos patrimoniais decorrentes do casamento dos pactuantes. Além disso, por ser o
cônjuge herdeiro necessário, ele somente seria excluído da concorrência no regime da
separação legal de bens, ao contrário da hipótese de separação convencional de bens.
Já a segunda posição, pela Min. Nancy Andrighi, aquele casado na separação
convencional de bens, mediante pacto antenupcial, fica excluído da sucessão desse, não
concorrendo com os seus descendentes. Porém, percebe-se ser esse segundo posicionamento
fomentador da não natalidade, vez que patrimonialmente é mais vantajoso recair na hipótese
do inciso III, se casado pelo regime da separação convencional263.
Na terceira hipótese, qual seja, quando o cônjuge sobrevivente for casado pelo
regime da comunhão parcial de bens, a concorrência se impõe, quando houver bens
particulares a serem inventariados, segundo a corrente majoritária.
Como dito no tópico 3.1, a comunhão dos bens entre os cônjuges nesse regime dá-se
quanto àqueles adquiridos depois da constância do casamento, conforme artigos 1.658 e
1.660, ressalvados aqueles previstos nos incisos do artigo 1.659, entre eles as obrigações
anteriores ao casamento; os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão, etc., e
do artigo 1.661, todos do Código Civil de 2002264.
256
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias: de acordo com o novo CPC. 11. ed. rev. atual. ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 545.
257
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 344-346.
258
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 363-374.
259
Nesse sentido, Regina Beatriz Tavares da Silva e Laura Souza Lima e Brito.
260
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.382.170/SP. Relator: Ministro Moura Ribeiro.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201301311977>. Acesso em: 28 set. 2015.
261
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento n. 001601838.2016.8.19.0000.
Relator:
Desembargador
Alcides
da
Fonseca
Neto.
Disponível
em:
<http://www4.tjrj.jus.br/ejud/consultaprocesso.aspx?N=201600221414&CNJ=0016018-38.2016.8.19.0000>.
Acesso em: 28 set. 2016.
262
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento n. 70021504923.
Relator:
Desembargador
José
Ataídes
Siqueira
Trindade.
Disponível
em:
<http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 13 nov. 2016.
263
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 992.749/MS. Op. cit.
264
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
65
Nas palavras de Luiz Paulo Vieira de Carvalho265,
sob tal perspectiva, no regime da comunhão parcial comunicam-se a ambos os
nubentes somente os denominados bens aquestos, a saber, tanto os aquestos típicos
ou os aquestos em sentido estrito, quais sejam, os bens havidos em conjunto ou
separadamente a título oneroso, na constância da sociedade conjugal, sem que haja
sub-rogação, bem como aquestos atípicos, todos esses, assim, formadores de
patrimônio comum a ser objeto de partilha entre os cônjuges por ocasião da
dissolução da sociedade conjugal.
Outrossim, ainda segundo o autor, a comunicação dos bens adquiridos na constância
do casamento, quando escolhido o regime da comunhão parcial de bens, tem como
pressuposto a presunção absoluta da colaboração dos cônjuges para a formação da massa
patrimonial comum. Por sua vez, a presunção se calca no affectio maritalis existente no
casamento266.
Apesar do entendimento acima exposto, em uma leitura interpretativa teleológica do
Código Civil de 2002, em especial dos artigos 1.658 a 1.666, em que pese haver uma
presunção legal de colaboração conjugal na construção do patrimônio comum, aquela deve ser
entendida como relativa, e não absoluta. Isso se baseia no teor dos artigos 1.661 e 1.662, do
referido diploma legal267, quando a contrário senso e expressamente, respectivamente, deixam
claro caber prova em contrário para o afastamento da presunção legal.
Posto isso, em razão da redação truncada do artigo 1.829, I, do Código Civil de
2002268, percebe-se a existência de 4 (quatro) correntes doutrinárias e jurisprudenciais sobre a
concorrência sucessória entre cônjuge sobrevivente e os descendentes do hereditando, em
especial quanto à base de cálculo, meação e quinhão, as quais se passam a analisar.
Pela primeira corrente, minoritária, defendida por Maria Helena Diniz269, haverá
concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes quando houver bens particulares a
serem amealhados270. Com isso, o cônjuge supérstite receberá a sua meação e, na existência
de bens particulares, concorrerá com os descendentes quanto à herança. Essa, por ser um todo
unitário – considerado bem imóvel para efeitos legais – e por não ter o legislador feito
qualquer distinção, será composta tanto pela meação do de cujus, sua parte dos bens aquestos,
quanto dos bens particulares, com base no artigo 1.791, parágrafo único, do Código Civil de
2002271.
265
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 348.
Ibid., p. 349.
267
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
268
Ibid.
269
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das sucessões. V. 6. 30. ed. São Paulo:
Saraiva, 2016, p. 351.
270
Nesse sentido, Francisco José Cahali e Luiz Felipe Brasil Santos.
271
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
266
66
Igualmente, por ser a norma restritiva de direito, prevista na parte final do inciso I,
do artigo 1.829, do Código Civil de 2002, é vedada a interpretação extensiva pelo aplicador
do direito, devendo a concorrência incidir sobre a herança, composta pela meação do de cujus
e pelos seus bens particulares, na hipótese desses existirem.
Pela segunda corrente, adotada majoritariamente, entre outros doutrinadores 272, por
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka273, haverá concorrência do cônjuge sobrevivente
com os descendentes quando houver bens particulares a serem amealhados. Contudo, de
forma diversa da primeira corrente, a base de cálculo da concorrência se dá exclusivamente
quanto aos bens particulares, herdando os bens aquestos – meação do hereditando – apenas
seus descendentes. Isso se justifica por ser o cônjuge sobrevivente já meeiro dos bens
aquestos, deixados em exclusividade aos descendentes pelo legislador, com observância do
brocardo de quem herda não meia, e quem meia não herda.
Essa corrente critica a anterior, apesar de terem suas similitudes, em razão de
comparativamente o cônjuge sobrevivente receber a maior se casado pelo regime da
comunhão parcial do que pela comunhão universal, no caso de ser utilizada a base de cálculo
da primeira corrente. Ademais, a superposição da meação com a herança para fins de
concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes significa afrontar regras e princípios
basilares do Direito Sucessório.
Na III Jornada de Direito Civil, ocorrida em dezembro de 2004, foram aprovados 133
novos enunciados, dentre eles o Enunciado nº 270274, com a seguinte redação:
Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de
concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da
separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou
participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em
que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser
partilhados exclusivamente entre os descendentes.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça entendeu por aplicar essa corrente no
julgamento do REsp nº 1.368.123/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, 2ª Seção, DJe 22/04/2015.275
O que se percebe é a existência de semelhanças entre as duas primeiras correntes,
especialmente quanto ao pressuposto de existência de bens particulares a serem amealhados
272
Nesse sentido, Euclides de Oliveira, José Carlos Teixeira Giorgis, Carlos Roberto Gonçalves, Aldemiro
Rezende Dantas Filho e Zeno Veloso.
273
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 402-408.
274
BRASIL.
Conselho
da
Justiça
Federal.
Enunciado
n.
207.
Disponível
em:
<http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/531>. Acesso em: 17 nov. 2016.
275
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.382.170/SP. Relator: Ministro Moura Ribeiro.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201301311977>. Acesso em: 28 set. 2015.
67
para haver a concorrência sucessória do cônjuge supérstite e os descendentes do de cujus; e ao
direito de meação do cônjuge sobrevivente sobre os bens adquiridos na constância do enlace
marital, sendo a diferença relativa à base de cálculo aplicável aos herdeiros, no caso de
concorrência sucessória.
Em suma: para a primeira corrente, comporão a base de cálculo a meação e os bens
particulares existentes do de cujus, ou seja, todo o patrimônio inventariado componente da
herança; enquanto para a segunda corrente, apenas pelos bens particulares276.
Ressalta-se, em ambas as correntes, a necessidade da existência de bens particulares
no monte-mor. Na sua inexistência, ou seja, sendo a herança composta exclusivamente pela
meação/bens aquestos do hereditando, apenas os descendentes herdarão sem concorrência
com o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão parcial, reservada, todavia,
sua meação por ocasião da partilha.
Pela terceira corrente, quando o regime for da comunhão parcial e não existirem bens
particulares no monte mor, presume-se que todo o acervo hereditário foi adquirido na
constância do casamento, bem como que sua construção se deu por mútua colaboração dos
nubentes. Dessa forma, razoável defender que o cônjuge supérstite, além de sua própria
meação, herde em concorrência com os descendentes do falecido na herança, em que pese não
haver bens particulares. Por outro lado, na eventual existência, nada justificaria a participação
do cônjuge sobrevivente como coerdeiro em concorrência desse acervo, sendo descabido
herdar parte do patrimônio individual.
Defende essa corrente Maria Berenice Dias277, sob os argumentos de que:
Em primeiro momento, o legislador ressalva duas exceções. Fazendo uso da
expressão salvo se, exclui a concorrência quando o regime do casamento é o da
comunhão universal e quando o regime é o da separação obrigatória. Ao depois, é
usado o sinal de ponto e vírgula, que tem por finalidade estabelecer um
seccionamento entre duas ideias. Quando o regime é o da comunhão parcial e não
existem bens particulares, significa que todo o acervo hereditário foi adquirido
depois do casamento, ocorrendo a presunção de mútua colaboração, o que torna
razoável que o cônjuge, além da meação, concorra com os filhos na herança. No
entanto, quando há bens amealhados antes do casamento, nada justifica que participe
o cônjuge deste acervo. Tal não se coaduna com a natureza do regime da comunhão
parcial, sendo descabido que venha o cônjuge sobrevivente a herdar parte do
patrimônio individual, quando da morte do par .
Critica-se essa corrente pela inobservância da regra sucessória de quem herda não
meia, e quem meia não herda. Não poderá ao mesmo tempo o cônjuge sobrevivente ser
coerdeiro e meeiro sobre a mesma fatia do patrimônio do de cujus. Ademais, a presente
276
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 212.
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre Família, Sucessões e o Novo Código Civil. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2005, p. 126.
277
68
corrente vai de encontro à previsão legal, a contrário senso, da concorrência com
descendentes apenas quando o autor da herança houver deixado bens particulares.
Pela quarta corrente, encabeçada pela Min. Nancy Andrighi e esposada no REsp nº
1.117.563/SP, de sua relatoria, 3ª Turma, julgado em 17/12/2009278:
[...]; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no
casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640
do CC/02. - Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o
postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito
à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja
bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os
descendentes.
Critica-se essa corrente, em razão da impossibilidade de ultratividade dos efeitos
jurídicos do regime de bens escolhidos pelos nubentes em vida, por ser negócio jurídico,
conforme já explicado no presente trabalho e na jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça. A escolha pelo regime de bens mais adequado ao caso concreto produzirá efeitos tão
somente durante a vida dos nubentes, no âmbito dos interesses patrimoniais do casamento,
seja interno ou externo. Com a morte, cessam-se os efeitos do regime de bens, não podendo
influenciar no âmbito do Direito Sucessório, principalmente na concorrência sucessória entre
cônjuge supérstite e descendentes do hereditando.
Com base no Enunciado 270, da III Jornada de Direito Civil279, poder-se-ia acreditar
na exclusão da concorrência sucessória do cônjuge supérstite com os descendentes do
inventariado também na hipótese de casamento sob o regime de bens da participação final nos
aquestos, quando não houver bens particulares a inventariar. A contrário senso, a concorrência
só seria possível nesse regime com a existência de bens particulares, seguindo-se a segunda
corrente no regime da comunhão parcial de bens.
Cabe ressaltar que, a despeito da vigência do enunciado referido, ao se analisar os
dizeres do artigo 1.829, I, do Código Civil280, não faz o legislador qualquer referência ao
regime da participação final nos aquestos para retirá-lo da incidência da regra geral, qual seja,
a concorrência com os descendentes.
Por conta disso, sem embargo quanto ao enunciado, sua aplicação deve ser mitigada
frente à norma infraconstitucional, visto fazer aquele uma interpretação equiparativa restritiva
não realizada pelo legislador, não cabendo ao aplicador do direito fazê-lo. Embora possam se
278
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.117.563/SP. Relatora: Ministra Nancy
Andrighi.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200900097260&dt_publicacao=06/04/2010>.
Acesso em: 03 mai. 2016.
279
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado n. 270. Op. cit.
280
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
69
assemelhar em alguns pontos, os regimes da comunhão parcial e o da participação final nos
aquestos são estruturalmente distintos, como se observou na análise realizada no tópico 3.1
deste capítulo.
Assim sendo, não se pode dizer que se trata de quarta hipótese excepcionada pelo
legislador à concorrência sucessória.
3.3. Da sucessão do companheiro sobrevivente
A sucessão do companheiro sobrevivente encontra-se topologicamente posicionada
no capítulo das disposições gerais, no título da sucessão geral, no livro do direito das
sucessões, em seu artigo 1790, do Código Civil de 2002281. Quanto a sua disposição
topográfica, o artigo deveria estar inserido no capítulo da vocação hereditária, no título da
sucessão legítima282, juntamente com as normas relativas aos outros herdeiros. Isso porque o
conteúdo desse artigo não dispõe sobre regramentos gerais incidentes nas sucessões, pelo
contrário traz disposições próprias referentes à ordem de sucessão hereditária283.
Ademais, a doutrina critica o dispositivo legal pelo tratamento diferenciado em
relação ao cônjuge sobrevivente, pleiteando sua declaração de inconstitucionalidade material
pelo Supremo Tribunal Federal por violação a princípios constitucionais, como se passará a
discutir.284
Quanto ao caput da referida norma infraconstitucional, segundo Luiz Paulo Vieira de
Carvalho, há inconstitucionalidades perpetradas pelo legislador ordinário. O primeiro
argumento é que a diferenciação dos artigos 1.829 e 1.790, do Código Civil de 2002 285 traz
uma discriminação entre o companheiro em união estável com o cônjuge sobrevivente, em
relação aos direitos sucessórios. O segundo argumento é que a disposição normativa traz outra
discriminação, pelo tratamento desigual, conferindo em alguns casos maiores direitos ao
companheiro em união estável do que ao cônjuge supérstite.286
281
Ibid.
Ibid.
283
MARX NETO, Edgard Audomar. Sucessão do companheiro. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da;
CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida. (Coordes.). Grandes Temas de Direito de Família e das Sucessões.
V. 2. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 322-341.
284
Conforme Edgard Audomar Marx Neto, em seu livro, p. 322, “o dispositivo agrava as distinções do regime
sucessório de cônjuges e companheiros, trazendo regulamento absolutamente distinto em relação ao artigo 1.829,
sendo qualificado como retrógrado pela doutrina”. (Ibid., p. 322-341)
285
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
286
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 376-389.
282
70
Assim, parte da doutrina287 defende que não poderia haver hierarquia entre as
famílias baseadas no casamento e aquelas advindas da união estável, sob o fundamento de que
a norma constitucional de conversão das instituições não enseja a interpretação de prioridade
do casamento em relação a outras formas de arranjo familiar. Admitir essa hierarquia do
casamento frente à união estável significa uma proteção maior para certas pessoas em
detrimento de outras. E isso apenas pelo fato de terem aquelas optado pelo arranjo familiar
constituído por meio de ato formal, em violação ao princípio constitucional da igualdade, de
forma injustificada. Ao contrário, prega-se a igualdade das famílias, sem qualquer distinção,
ainda mais ao se considerar a população brasileira, que em sua maioria se encontra por opção
nessa situação jurídica. 288
Nas palavras de Paulo Luiz Netto Lôbo289, o dispositivo:
configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os
obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a
exemplo da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros,
apresenta-se como uma norma de indução. Contudo, para os que desejarem
permanecer em união estável, a tutela constitucional é completa, segundo o princípio
da igualdade que se conferiu a todas as entidades familiares. Não pode o legislador
infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser
concebida a união estável, pois facilitar uma situação não significa dificultar outra .
Assevera Gustavo Tepedino que existem critérios interpretativos a evitar decisões
jurídicas casuísticas no âmbito das relações familiares, a saber: (i) a impossibilidade de
interpretação legal privilegiadora de uma espécie de arranjo familiar em prejuízo de outro; e
(ii) a aplicação das normas inerentes às relações familiares constituídas pelo casamento, e não
daquelas destinadas a disciplinar os seus efeitos, às uniões estáveis290.
Por se tratar de entidade familiar de grande relevância prática e jurídica na sociedade
atual
e
de
ser
protegida
pelo
Estado,
para
os
doutrinadores
defensores
da
inconstitucionalidade do artigo 1.790, do Código Civil de 2002291, os direitos e deveres dos
companheiros deveriam ser idênticos àqueles destinados aos cônjuges.
Logo, com base na alegada igualdade entre os institutos da união estável e do
casamento fundadores de núcleos familiares, concluíram esses doutrinadores pela
inconstitucionalidade do artigo 1.790, caput, do Código Civil de 2002292, posto estar
restringindo direitos do companheiro sobrevivente frente à desigualdade de tratamento
287
Nesse sentido, Paulo Luiz Netto Lôbo, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Ana Luiza Maia Nevares, e Marina
Colasanti. Em sentido contrário, Giselda Hironaka e Francisco José Cahali.
288
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 148.
289
LÔBO apud NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 141.
290
TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familiares. Disponível em:
<http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/publicacoes/diversos/tepedino_3.html>. Acesso em: 12 mar. 2016.
291
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
292
Ibid.
71
conferido ao cônjuge sobrevivente. O primeiro, independente de meação, participará da
sucessão do outro tão somente quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união
estável.
Assim sendo, inconformados esses doutrinadores alegam que o dispositivo traz
verdadeira desigualdade, ao tratar os direitos sucessórios do companheiro sobrevivente de
forma inferior à pessoa casada, com violação dos princípios da vedação ao retrocesso, da
dignidade da pessoa humana, da isonomia – argumento abordado com mais profundidade no
capítulo 2, na Seção 2.1.
Para Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, embora
tenha trazido o Código Civil de 2002 disposição acerca dos direitos sucessórios do
companheiro sobrevivente, diante das críticas à ausência de normas específicas em seu
projeto, “a lei nova força caminho na contramão da evolução doutrinária, legislativa e
jurisprudencial elaborada à luz da Constituição Federal de 1988, na medida em que distancia
os efeitos sucessórios da união estável daqueles decorrentes do casamento”.293
Ademais, opinam esses autores pela impropriedade do artigo, que consideram
inadequado na forma e no conteúdo. Contudo, isso não significa o rótulo extremado de sua
inconstitucionalidade. Isso porque, conquanto se atenha o legislador ordinário às questões
patrimoniais, não se vislumbra qualquer problema em se dar tratamento diferenciado à união
estável em relação ao casamento. Muito pelo contrário, o legislador já assim opera quando
prevê direitos sucessórios diversos para o cônjuge sobrevivente, de acordo com o regime
patrimonial de bens adotado, não havendo óbice, portanto, de fazer o mesmo em relação ao
companheiro sobrevivente.294
Diante de tamanha controvérsia jurisprudencial e doutrinária sobre o tema, o
Superior Tribunal de Justiça, no AI REsp nº 1.135.354/PB, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª
Turma, julgado em 24/05/2011, suscitou o incidente de inconstitucionalidade referente às
disposições do artigo 1.790, do Código Civil de 2002295. Em seu voto, o Ministro apresenta de
forma didática as questões causadoras das controvérsias, quais sejam: (i) a topologia
equivocada do artigo; (ii) o direito à sucessão do companheiro apenas quanto aos bens
adquiridos onerosamente durante a união estável; (iii) a diferenciação do quinhão hereditário
do companheiro sobrevivente, no caso de filhos comuns ou exclusivos; e (iv) a concorrência
com outros parentes sucessíveis. Outrossim, aponta os principais argumentos trazidos pela
293
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 211-224.
Ibid., p. 211-224.
295
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
294
72
doutrina para sustentar a inconstitucionalidade do artigo, como: (i) a não diferenciação pela
Constituição Federal de 1988 entre as famílias constituídas pela união estável ou pelo
casamento; (ii) a violação de direitos constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana,
da herança, da razoabilidade e da proporcionalidade, ante à norma infraconstitucional de
sucessão do companheiro sobrevivo; e (iii) a violação da vedação ao retrocesso, quando
legislação específica anterior dispunha de forma mais favorável. 296
Em 28/02/2013, foi publicado acórdão de relatoria para acórdão do Ministro Teori
Albino Zavascki, após a remessa do referido processo à Corte Especial. Esta entendeu, por
maioria de votos, que “o manifesto descabimento do recurso especial - que busca afastar a
aplicação de lei federal sob o argumento de sua incompatibilidade com a Constituição -,
contamina também o correspondente incidente de inconstitucionalidade, que não pode ser
conhecido”.297
Assim sendo, em 05/05/2015, foi publicada decisão monocrática nesse processo,
proferida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, em que, apesar de o incidente de
inconstitucionalidade não ter sido conhecido, sobrestou o feito, tendo em vista terem sido
suscitados outros incidentes em recursos especiais (REsp nº 1.291.636/DF298 e REsp nº
1.318.249/GO299) a demonstrar a atualidade da controvérsia e a necessidade de
posicionamento das Cortes Superiores sobre o tema.300
Apesar das críticas doutrinárias a fundamentar a alegação de inconstitucionalidade
do referido artigo, ao lê-lo quanto às disposições da sucessão do companheiro sobrevivente,
percebem-se distinções, para melhor ou pior, quando comparadas às regras aplicáveis aos
cônjuges sobreviventes.
Corroborando esse argumento, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº
1.117.563/SP, 3ª Turma, julgado em 17/12/2009, de relatoria da Min. Nancy Andrighi,
posicionou-se pela aplicação do dispositivo legal no caso concreto, sob o fundamento de “não
296
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Arguição de Inconstitucionalidade no Recurso Especial n.
1.135.354/PB.
Relator:
Ministro
Luis
Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200901600515&dt_publicacao=02/06/2011>.
Acesso em: 07 ago. 2015.
297
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Arguição de Inconstitucionalidade no Recurso Especial n.
1.135.354/PB. Op. cit.
298
Após o acórdão de cabimento do incidente de inconstitucionalidade referente ao artigo 1.790, do Código Civil
de 2002, publicado em 21/11/2013, não houve mais nenhuma decisão publicada no processo, havendo apenas
julgamentos parciais de alguns ministros, que divergiram pelo prosseguimento do julgamento.
299
Após o acórdão de cabimento do incidente de inconstitucionalidade referente ao artigo 1.790, do Código Civil
de 2002, publicado em 21/11/2013, não houve mais nenhuma decisão publicada no processo, havendo apenas
julgamentos parciais de alguns ministros, que divergiram pelo prosseguimento do julgamento.
300
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Arguição de Inconstitucionalidade no Recurso Especial n.
1.135.354/PB. Op. cit.
73
ser possível dizer, aprioristicamente e com as vistas mais vantajosas para as regras de
sucessão, que a união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, porquanto o
casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é difícil”.301 Percebe-se
novamente a aplicação da terceira corrente, defendida pela Ministra, quanto ao regime da
comunhão parcial de bens no casamento e, consequentemente, na união estável.
Em relação ao inciso I do artigo 1.790, do Código Civil de 2002 302, o legislador
impôs ao companheiro sobrevivente, no caso de concorrência com filhos comuns, “uma quota
equivalente à que por lei for atribuída ao filho”.
Destaque-se novamente que haverá essa concorrência apenas quanto aos bens
adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Quantos aos bens adquiridos antes da
união estável a qualquer título; aqueles adquiridos durante a união estável a título gratuito; e
aqueles incidentes nas hipóteses do artigo 1.660, II a V, do Código Civil de 2002303, herdarão
apenas os filhos comuns.
Na visão de Ana Luiza Maia Nevares304,
o legislador confundiu esforço comum e sucessão. O primeiro é indispensável para a
partilha do patrimônio amealhado em vida pelos consortes, o mesmo não podendo
ser dito quanto à sucessão, que deve incidir na totalidade do patrimônio do falecido.
Note-se que, não havendo tais bens no acervo hereditário, o companheiro
sobrevivente nada receberá, já que nem mesmo o direito real de habitação lhe é
garantido pelo Código nas normas que disciplinam a sucessão hereditária na união
estável, podendo restar totalmente desamparado.
Na eventualidade de não haver bens adquiridos onerosamente pelos companheiros
durante a união estável e de não haver outros parentes sucessíveis, a solução dada pelo
Código Civil é o da declaração de jacência e, posteriormente, de vacância, passando os bens
do de cujus para o Município305, a teor dos artigos 1.819 a 1.823306, do referido diploma
legal.307
301
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.117.563/SP. Relatora: Ministra Nancy
Andrighi.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=200900097260>. Acesso em: 10 dez. 2016.
302
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
303
Ibid.
304
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 140-148.
305
Antes de o Código Civil de 2002 passar expressamente a prever a transferência de domínio no caso de
herança jacente e vacante para o Município ou Distrito Federal, ainda sob a égide do Código Civil de 1916, havia
disputa, por questões de interesse econômico, entre o Estado-membro e o Município da localização dos bens,
equalizada após posicionamento da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 71.551, de
11/03/1998, no sentido de ser direito do Município. Em tempo, o legislador ordinário promulgou a Lei n.
8.049/90 para confirmar esse entendimento jurisprudencial, acabando com qualquer insegurança jurídica nesses
casos.
306
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
307
NEVARES, Ana Luiza Maia. Casamento ou união estável?. Revista Brasileira de Direito Civil, Rio de
Janeiro, v. 9, p. 163-166, jul./set. 2016.
74
Critica-se o emprego da palavra “filhos” no inciso I, do artigo 1.790, do Código Civil
de 2002308, devendo ser interpretada extensivamente como se estivesse escrito
“descendentes”, uma vez que haverá o direito de representação, partilhando-se por estirpe, e
não por cabeça309. Em sentido contrário, há o posicionamento de se aplicar o inciso III do
artigo 1.790, do Código Civil de 2002310 na hipótese do companheiro sobrevivente concorrer
com descendentes comuns, em uma interpretação literal do inciso I311.
Sobre essa divergência, foi elaborado na III Jornada de Direito Civil o Enunciado
266 a fim de pacificar o tema, impondo a aplicação do inciso I do artigo 1.790, do Código
Civil “na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes
comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns”312.
Um dos argumentos trazidos no debate para a sua aprovação foi que, caso se
aplicasse o inciso III na concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes
comuns, tal solução feriria a sistemática civilista ao promover o recebimento de quinhões
diferenciados aos netos em comparação aos filhos, quando sucederem por cabeça, com base
no artigo 1.835313, do Código Civil de 2002314.
Com a evolução do Direito de Família e a existência das famílias mosaicos 315, há a
hipótese cada vez mais comum atualmente de descendência híbrida316. Nessa esteira, apesar
de a legislação brasileira ser omissa, defende Sílvio de Salvo Venosa 317 a aplicação ainda
308
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
MARX NETO, Edgard Audomar. Sucessão do companheiro. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares;
CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (Coord.). Op. cit., 2014, p. 319-342.
310
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
311
FARIA, Mário Roberto Carvalho de. Direito das Sucessões: teoria e prática. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2013, p. 150.
312
BRASIL.
Conselho
da
Justiça
Federal.
Enunciado
266.
Disponível
em:
<http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/523>. Acesso em: 11 nov. 2016.
313
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
314
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 117.
315
A família mosaico, também chamada de recomposta, binuclear e pluriparental, é considerada a mais nova
forma de constituição familiar, característica do séc. XXI. Nas palavras de Maria Berenice Dias, em seu livro
Manual de Direito das Famílias: de acordo com o novo CPC, 11ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, p. 244, “são famílias caracterizadas pela multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos
novos casais e forte grau de interdependência”, sendo formadas pelo rearranjo familiar, com casamentos ou
uniões estáveis prévias dissolvidas com novas comunhões. Expressão comum para se explicar esse arranjo
familiar é “os meus, os seus e os nossos”.
316
Considera-se descendência híbrida aquela composta, sob a ótica de um genitor, de filhos gerados com
genitores diversos.
317
Nesse mesmo sentido, Ana Luiza Maia Nevares, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Caio Mario da Silva
Pereira, Christiano Cassettari, Francisco José Cahali, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Shiguemitsu Fujita, José
Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Marques Braceiro
Daneluzzi, Marcelo Truzzi Otero, Mário Delgado, Roberto Senise Lisboa, Rodrigo da Cunha Pereira e Rolf
Madaleno. Em sentido diverso pela aplicação do artigo 1.790, II, do Código Civil de 2002, Flávio Tartuce,
Gustavo René Nicolau, Maria Helena Diniz e Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira. Isoladamente, entende
Mário Roberto Carvalho de Faria pela aplicação do inciso III do referido artigo.
309
75
assim do inciso I, pois, caso contrário, estar-se-ia admitindo a desigualdade sucessória entre
os filhos em violação aos artigos 226, §3º e 227, §6º318, da Constituição Federal de 1988319.
Em outras palavras, na concorrência do companheiro sobrevivente com filhos
comuns e exclusivos do autor da herança, a quota parte do companheiro será equivalente
àquela atribuída aos descendentes. A justificativa está na expressão utilizada pelo legislador
no inciso II, quando fala “se concorrer com descendentes só do autor da herança”320.
Entretanto, o inciso I refere-se exclusivamente a descendentes comuns, enquanto o
inciso II menciona tão somente os descendentes do inventariado. Sob tal constatação,
entendem alguns doutrinadores, minoritariamente, pela aplicação do inciso II na hipótese de
descendência híbrida, sob pena de restar patrimonialmente prejudicado o descendente não
comum se concorrer com o companheiro sobrevivo321. Isoladamente entende Mário Roberto
Carvalho de Faria que deve ser aplicado nesse caso a previsão legal do inciso III, garantindose, pois, ao companheiro sobrevivente 1/3 e aos sucessores 2/3 da herança.322
Em relação ao inciso II do artigo 1.790, do Código Civil de 2002323, o legislador
limitou a base de cálculo da herança do companheiro sobrevivente, quando houver
concorrência com descendentes exclusivos do autor da herança. Nesse caso, receberá aquele a
título de herança apenas metade daquilo que couber ao descendente unilateral do hereditando.
Em relação ao inciso III, o legislador trouxe à sucessão do companheiro sobrevivente
a figura de outros parentes sucessíveis em concorrência direta. Com base nos artigos 1.784,
1.836, 1.839 e 1.840, todos do Código Civil de 2002324, são outros parentes sucessíveis os
ascendentes e os colaterais até o 4 (quarto) grau. Em princípio, no caso de haver outros
parentes sucessíveis a incidir a norma do inciso III, esses irão recolher a título de herança,
observadas as regras de preferência quanto à classe e ao grau, na proporção de 2/3 para os
colaterais sucessíveis e 1/3 para o companheiro sobrevivente.
Muito embora, possa se interpretar que os outros parentes sucessíveis concorrem
juntos à herança, uma interpretação sistemática aponta que os ascendentes preferem aos
318
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. V. 7. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 170.
320
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
321
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 392.
322
FARIA, Mário Roberto Carvalho de. Op. cit., p. 151.
323
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
324
Ibid.
319
76
colaterais. Já entre os colaterais admitidos a suceder, os mais remotos deverão ser excluídos
em relação aos mais próximos, com base no artigo 1.840 do Código Civil de 2002325.
Para Ana Luiza Maia Nevares326:
sem dúvida, trata-se de uma extrema injustiça, uma vez que o companheiro
sobrevivente – aquele que compartilhava a vida com o falecido – receberá apenas
um terço da herança compreendida pelos bens adquiridos onerosamente na vigência
da união estável, cabendo os dois terços restantes aos colaterais, a quem caberão,
ainda, os demais bens do autor da herança não enquadrados naqueles adquiridos a
título oneroso na constância do relacionamento.
Posicionamento minoritário, defendido por Caio Mario da Silva Pereira327, aduz que
os incisos III e IV do artigo 1.790, do Código Civil de 2002328 não estariam vinculados ao
caput, sendo considerados incisos autônomos com regras independentes do caput do artigo.
Em outras palavras, pela expressão no inciso III “terá direito a um terço da herança” quis
dizer o legislador que o companheiro sobrevivente terá esse direito sobre o todo unitário da
herança, por ser coisa indivisa, não incidindo a regra do caput que fala ser aplicável apenas
sobre os bens adquiridos na constância da união estável.
Há de se entender o motivo de tal posicionamento ser minoritário, quase isolado, haja
vista que a regra basilar do Direito é estar os incisos intrinsecamente vinculados ao disposto
no próprio caput, não podendo ser, de forma alguma, autônomos. Se o legislador quisesse
destacar as regras dos incisos III e IV de seu caput, como gostaria de crer o supracitado
doutrinador, o teria feito, estipulando-se novo artigo com tais disposições.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na AI nº 003265540.2011.8.19.0000, julgado em 11/06/2012329, com baixa definitiva em 26/06/2015, tendo por
Rel. Des. Bernardo Moreira Garcez Neto, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do
inciso III do artigo 1.790, do Código Civil de 2002, por haver aparente conflito do referido
artigo com o princípio constitucional da isonomia, previsto no artigo 226, §3º, da Constituição
Federal.330
325
MARX NETO, Edgard Audomar. Sucessão do companheiro. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da;
CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (Coord.). Op. cit., 2014, p. 331.
326
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 120.
327
Nesse mesmo sentido, Carlos Roberto Barbosa Moreira e Luiz Paulo Vieira de Carvalho.
328
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
329
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Arguição de Inconstitucionalidade n. 003265540.2011.8.19.0000. Relator: Desembargador Bernardo Moreira Garcez Neto. Disponível em:
<http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=201201700001>. Acesso em: 13 nov. 2016.
330
De forma similar, decidiram os Desembargadores Inês da Trindade e Bernardo Moreira Garcez Neto, nos
acórdãos n. 00536353-37.2013.8.19.0000 e 0019097-98.2011.8.19.0000, respectivamente.
77
Em julgado mais recente, seguindo esse entendimento, há o acórdão do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro em AI nº 004693-44.2015.8.19.0000, do Relator
Desembargador Luiz Henrique Oliveira Marques, julgado em 08/09/2015331.
Em relação ao inciso IV, o legislador impôs que “não havendo parentes sucessíveis,
terá direito à totalidade da herança".332
Assim, por esse inciso, na hipótese de não haver mais parentes sucessíveis e, estando
o inciso IV vinculado ao caput, o companheiro sobrevivente concorrerá com o Poder Público.
Em outras palavras, quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável
(caput), o companheiro sobrevivente terá direito à integralidade desses bens. Já quanto aos
bens adquiridos anteriormente à união estável ou de forma gratuita, o Poder Público irá
arrecadar, pelo procedimento de herança jacente e vacante333.
A regra do artigo 1.844 e a expressão “direito à totalidade da herança” contida no
artigo 1.790, IV, ambos do Código Civil de 2002334 fundamentam a tese majoritária,
defendida por Ana Luiza Maia Nevares335. Na hipótese de não haver ascendentes,
descendentes e/ou colaterais sucessíveis, o companheiro sobrevivente não concorrerá com o
Poder Público, expurgando-o da sucessão. Isso porque a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios são considerados sucessores obrigatórios para efeitos sucessórios. Assim, o
companheiro sobrevivente receberá toda herança deixada pelo hereditando, incluindo-se
também os bens particulares do de cujus, independente de sua meação por força do regime de
bens pactuado.
Isso porque o legislador foi claro ao condicionar o recolhimento da herança pelo
Poder Público, pelo procedimento de herança jacente e vacante – tema melhor aprofundado na
seção 2.1 do capítulo 2 -, apenas na hipótese da inexistência de “cônjuge, ou companheiro,
nem parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado à herança”336.
331
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento n. 004693744.2015.8.19.0000.
Relator:
Des.
Luiz
Henrique
Oliveira
Marques.
Disponível
em:
<
http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=2015.002.50721>. Acesso em: 13 nov. 2016.
332
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
333
Nesse sentido, Francisco José Cahali, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Inácio de Carvalho Neto,
Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi, Mário Delgado, Roberto Senise Lisboa, Rodrigo da Cunha Pereira e
Zeno Veloso.
334
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
335
Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Flávio Augusto
Monteiro de Barros, Flávio Tartuce, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge
Shiguemitsu Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena
Diniz, Marcelo Truzzi Otero, Maria Roberto Carvalho de Faria, Nelson Nery Jr., Rolf Madaleno, Sebastião
Amorim e Euclides de Oliveira e Sílvio de Salvo Venosa.
336
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
78
Corroborando tal raciocínio jurídico, José Luiz Gavião de Almeida e José Pedro
Makowsi Gavião de Almeida337 expõem:
por isso o art. 1790 deve ser interpretado como contendo dois comandos, embora em
regra deva ser premissa para todos os incisos. Nos dois primeiros incisos vale a
regra da sucessão apenas sobre os bens adquiridos na constância da união estável e a
título oneroso. Mas para os dois últimos incisos (III e IV) essa restrição não se
aplica. Agora, sobre todo o patrimônio do falecido haverá a concorrência, ou a
adjudicação em benefício do companheiro. (...) O código parece assim querer, tanto
que nos dois primeiros incisos fala em quota do herdeiro necessário e nos dois
últimos em partilha da herança, com certeza aqui entendida como um todo.
A despeito dos argumentos trazidos, doutrina e jurisprudência de peso vem se pronunciado
pela constitucionalidade do artigo 1.790, do Código Civil de 2002338. A diferenciação, tão
atacada pela doutrina e jurisprudência pró-inconstitucionalidade, decorre da própria
Constituição Federal de 1988, não havendo de fato equiparação sucessória entre os institutos
jurídicos do casamento e da união estável. Isso porque o legislador constituinte originário se
utilizou da expressão “a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento”, ao
elaborar a disposição do artigo 226, §3º, da Constituição Federal de 1988 339. A utilização da
expressão conversão pelo legislador impõe a interpretação de que o casamento e a união
estável são institutos diferentes, opções diferentes do futuro casal, com possibilidade de
modificação da situação jurídica, por não ser estanque. Assim, em que pese a desigualdade
das regras do companheiro sobrevivente com aquelas previstas para o cônjuge sobrevivente,
são essas constitucionais, levando em alguns casos a maiores ou menores direitos sucessórios
no caso concreto.
Nesse sentido, pronunciou-se o Des. José Carlos Barbosa Moreira340 do Tribunal do Estado do
Rio de Janeiro:
não ocorreu, porém, equiparação entre os dois institutos, ao contrário do que se
apressaram a sustentar alguns: a família resultante da união estável coexiste com a
fundada no casamento, mas aquela não se identifica com este. Tanto assim, que,
segundo o texto constitucional, a lei deve facilitar a conversão da união estável em
casamento – o que não teria sentido se uma e outro já estivessem igualados. Por
conseguinte, quem vivia em união estável e se case com outra pessoa não cometerá
o crime de bigamia, definido no art. 235, CP como o fato de contrair alguém, sendo
casado, novo casamento. Não se exclui, convém observar, que a lei equipare a união
estável ao casamento, para determinados efeitos: o Código Civil de 2002 o faz em
mais de um dispositivo, v.g., no art. 1.595, onde se estende às relações entre um dos
companheiros e os parentes do outro o vínculo de afinidade nas mesmas condições
previstas para os cônjuges.
Em resumo, a doutrina e a jurisprudência divergem quanto à inconstitucionalidade do
artigo 1.790, do Código Civil de 2002341. Para um primeiro posicionamento, defendido por
337
ALMEIDA; ALMEIDA apud CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 395-396.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
339
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
340
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Código Civil e a União Estável. Disponível em: <
http://jfgontijo.com.br/2008/artigos_pdf/Jose_Carlos_Barbosa_Moreira/novo.pdf >. Acesso em: 13 nov. 2016.
338
79
Zeno Veloso342, haveria retrocesso legislativo na hipótese legal, haja vista a clara distinção
entre companheiro e cônjuge sobrevivente, enquanto antigamente tal diferenciação já havia
sido superada pelas leis extravagantes – abordado com maior profundidade na Seção 2.1 do
capítulo 2343. Além disso, não se poderia cogitar na existência família de segunda classe,
devendo haver equiparação de direito entre ambas as famílias, seja formada por casamento ou
união estável344. Para um segundo posicionamento, defendido por José Carlos Barbosa
Moreira345, trata-se de um artigo constitucional, apesar de injusto. Isso porque a discriminação
entre casamento e união estável é feita pelo próprio constituinte ao se analisar detidamente no
artigo 226, §3º, da Constituição Federal de 1988346, quando a lei diz dever ser facilitada a
conversão da união estável em casamento. Assim sendo, a união estável seria um meio para o
casamento, não havendo inconstitucionalidade pela diferenciação.
O Poder Legislativo, atento às necessidades da sociedade brasileira, elaborou o
Projeto de Lei nº 4.944/2005347, proposto pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM, de relatoria do Dep. Fed. Antônio Carlos Biscaia, associado ao PT-RJ. Tentou-se
em suas disposições inovadoras compensar a eventuais distorções de tratamento entre
casamento e união estável, ao estabelecer igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e
companheiros sobreviventes, bem como revogar o artigo 1.790, do Código Civil de 2002.348
341
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
Nesse sentido, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Edgard Audomar Marx Neto, Ana Luiza Maia Nevares,
Francisco Cahali, Sylvio Capanema de Souza e Gilselda Maria Fernandes Novaes Hironaka.
343
VELOSO, Zeno. Direito Sucessório dos Cônjuges. Pará: ANOREG/PA, 2008, p. 9.
344
TEPEDINO, Gustavo. Novas Formas de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada
no matrimônio. In: ______. Temas de Direito Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 430-431.
345
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit.
346
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
347
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.944 de 2005. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=C99080F101B7CB9F56176CEF419
AA06C.proposicoesWebExterno2?codteor=288148&filename=Tramitacao-PL+4944/2005>. Acesso em: 13
nov. 2016.
348
Em suas disposições, o projeto de lei previa alterações em diversos dispositivos do Código Civil de 2002,
particularmente o artigo 1.829 para dar de fato igualdade de tratamento entre o cônjuge e o companheiro
sobrevivente. Além disso, em seu parágrafo único trazia a regra da concorrência nos primeiros incisos apenas
quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência do casamento ou da união estável. Com a nova
redação, o artigo 1.832 iria prever a igualdade de quota hereditária para o cônjuge e companheiro sobrevivente
em relações ao herdeiros sucessores por cabeça, quando concorressem. Na hipótese de concorrência com
ascendente em primeiro grau, reservaria legalmente 1/3 da herança para o cônjuge e companheiro sobrevivente,
mas aumentaria essa quota se houvesse apenas um ascendente ou se fosse de maior grau. Na falta de cônjuge ou
companheiro sobrevivente, passaria a prever o artigo 1.839 o chamamento dos colaterais apenas até terceiro
grau. Por último, modificaria o artigo 1.845 para apontar apenas os descendentes e os ascendentes como
herdeiros necessários. Em 2008, apesar de haver parecer favorável à aprovação do Rel. Dep. Guilherme Menezes
– PT-BA, o projeto de lei foi arquivado, com base no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos
Deputados, em razão de ainda ter se encontrado em tramitação com o fim da legislatura.
342
80
Há também, em trâmite na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 508/2007349
de autoria do Dep. Fed. Sérgio Barradas Carneiro, filiado ao PT-BA, em que se objetiva a
revogação do artigo 1.790 do Código Civil de 2002350, com o intuito de equalizar os direitos
sucessórios entre o cônjuge e o companheiro sobrevivente em relação ao direito de herança351.
Além desses, encontrava-se em trâmite perante o Senado Federal o Projeto de Lei nº
267/2009352 de autoria do Sen. Roberto Cavalcanti, que novamente objetivava alterar e retirar
do ordenamento jurídico pátrio os dispositivos legais criticados, ante a sua alegada
inconstitucionalidade violadora dos princípios constitucionais da isonomia e dignidade da
pessoa humana353.
Recentemente, foi elaborado o Projeto de Lei nº 6.081/2016354, de relatoria do Dep.
Fed. Simão Sessim, associado ao PP-RJ, em que se propõe alterar tão somente os artigos
1.790, 1.829 e 1.845, todos do Código Civil de 2002355, que trazem as principais polêmicas
apresentadas no presente trabalho356.
349
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.944/2005. Op. cit.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
351
O Projeto de Lei n. 508/07, apesar de numeração e autoria diversas do Projeto de Lei n. 4.944/05, é uma cópia
ipsis literis desse, com propostas de alteração do Código Civil de 2002 nos mesmos dispositivos. Hoje, encontrase ainda em tramitação em caráter conclusivo, aguardando designação de Relator na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania.
352
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 267 de 2009. Disponível em: <
http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/80219.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2016.
353
Em suas propostas, previa o Projeto de Lei n. 267/09 a alteração parcial do artigo 1.829 do Código Civil de
2002, a fim de inserir expressões legislativas para melhorar sua compreensão em consonância com a
jurisprudência dominante atualmente do Poder Judiciário. Em que pese o avanço jurisprudencial, doutrinário e
legislativo com a entrada em vigor da EC 66/10, o referido projeto ainda trazia a figura da separação judicial,
mantinha o prazo de 2 (dois) anos na separação de fato para fins sucessórios, mas avançava ao retirar a figura da
culpa, já não mais discutida atualmente mesmo com previsão expressa no artigo 1.830 do Código Civil de 2002.
Propunha alteração do artigo 1.832 do mesmo diploma legal, a fim de dar ao companheiro sobrevivente a quota
parte mínima de ¼ ao concorrer com os descendentes, como já existe para o cônjuge sobrevivente. Ademais,
pretendia a alteração do artigo 1.834 para deixar clara a igualdade entre os descendentes de mesmo grau, em
consonância com a Constituição Federal de 1988. Na hipótese de concorrência com ascendente em primeiro
grau, reservava legalmente 1/3 da herança para o cônjuge e companheiro sobrevivente, mas aumentaria essa
quota se houvesse apenas um ascendente ou se fosse de maior grau, modificando-se o artigo 1.837 do Código
Civil de 2002. Por último, além da proposta de revogar expressamente o artigo 1.790 do Código Civil de 2002,
trazia alteração do artigo 155, II, do Código de Processo Civil de 1973, o qual, o primeiro, se encontra hoje
parcialmente revogado pelo Código de Processo Civil de 2015. Em 2010, o Sen. Valter Pereira elaborou parecer
favorável à aprovação do Projeto de Lei n. 267/09, tendo sido logo depois aprovado e remetido à Câmara dos
Deputados para se finalizar o processo legislativo, com posterior promulgação das referidas alterações
normativas. Com seu recebimento pela Câmara dos Deputados, alterou-se sua numeração para PL 7.583/10,
encontrando-se hoje arquivado, por ter sido declarado pelo Plenário prejudicado em face da aprovação da
Emenda Aglutinativa Substitutiva Global nº 6.
354
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 6.081 de 2016. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1488635&filename=PL+6081/2016>.
Acesso em: 14 nov. 2016.
355
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
356
O Projeto de Lei, em atenção a algumas críticas levantadas neste trabalho, propõe a alteração do inciso I do
artigo 1.790, substituindo inicialmente a palavra ‘filhos’ para ‘descendentes’, mas mantém o equívoco no final
da redação. Mantém, assim, a vigência do referido artigo, ao contrário dos outros projetos de lei apresentados. A
350
81
Por último, ressalta-se ainda que o debate se encontra em discussão sob repercussão
geral no Supremo Tribunal Federal, com relatoria do Min. Roberto Barroso, sob o nº RE nº
878.694. Em 31/08/2016, com publicação no DJe nº 194 em 09/09/2016, na sessão de
julgamento o Min. Dias Toffoli pediu vista do processo, tendo já votado favoravelmente pela
inconstitucionalidade do artigo 1.790, do Código Civil de 2002357 os Mins. Roberto Barroso,
Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia358.
3.4. Do direito real de habitação e do usufruto legal sucessório
O direito real de habitação é considerado um direito real sucessório, nascendo e
sendo aplicado imediatamente após a morte do hereditando. Atualmente, esse direito é
previsto no artigo 1.831, do Código Civil de 2002359 e considerado pela doutrina e
jurisprudência como direito ex lege360 conferido a favor do cônjuge e do companheiro
sobrevivente, como se passará a analisar.
Segundo o artigo 1.611, §2º, do Código Civil de 1916361, incluído pela Lei nº 4.121
de 1962362, o direito real de habitação sucessório a favor do cônjuge sobrevivente, quando
casado sob o regime da comunhão universal, ser-lhe-ia deferido relativamente ao imóvel
destinado à residência familiar, desde que (i) fosse o único bem dessa natureza a ser
inventariado; e (ii) vivesse e permanecesse viúvo.
segunda alteração proposta foi a inserção da expressão ‘companheiro sobrevivente com a união estável oficial e
publicamente declarada e mantida até a data do óbito com relação aos bens adquiridos onerosamente pelos
companheiros na constância da união estável’ nos incisos I, II e III do artigo 1.829 e 1.845, do Código Civil de
2002, sem fazer qualquer alusão às outras controvérsias existentes. Hoje, encontra-se na tramitação legislativa da
Câmara do Deputados, aguardando designação de Relator na Comissão de Seguridade Social e Família.
357
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
358
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 878.694. Relator: Ministro Roberto Barroso.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004>. Acesso
em 27 out. 2016.
359
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
360
Há alguns doutrinadores, entre eles, Ana Luiza Maia Nevares e Luiz Paulo Vieira de Carvalho, que entendem,
além de ser direito ex lege, também seria um legado ex lege. Argumentam que “embora a sucessão a título
particular não seja típica da sucessão testamentária, nesta situação específica, não há dúvida de que se está diante
de uma instituição de legado: transmite-se ao cônjuge direito real limitado quanto ao objeto individualmente
considerado, certo e determinado, especificamente separado do patrimônio do hereditário para aquele fim,
caracterizando-se tipicamente, uma sucessão a título singular” (NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p.
74).
361
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
362
BRASIL. Lei n. 4.121 de 1962. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/19501969/L4121.htm>. Acesso em: 10 dez. 2016.
82
Em outras palavras, além de observar os pressupostos legais de existência, validade e
eficácia do casamento363 e de permanecer em sociedade conjugal, o cônjuge sobrevivente
tinha direito de habitar gratuitamente364 no imóvel em que vivia com seu cônjuge falecido,
desde que fosse aquele o único imóvel a ser inventariado e ter vivido o casal no imóvel até o
momento da morte, mesmo que não participasse da herança365. Havia nesse direito uma
condição resolutiva366 legal, qual seja, caso o cônjuge sobrevivente se casasse novamente,
perderia o direito de habitação naquele imóvel.
No referido artigo, o legislador se utilizou da expressão “sem prejuízo da
participação que lhe caiba na herança”. Por óbvio, essa ressalva foi concebida quanto “à
eventual sucessão testamentária atribuída ao cônjuge supérstite casado pelo regime da
comunhão universal de bens, uma vez que no Código Civil de 1916 este só participa da
sucessão na ausência de descendentes e de ascendentes”367.
Para Ana Luiza Maia Nevares368:
não havendo descendentes nem ascendentes, o cônjuge recolhe toda a herança
(CC/16, art. 1.603, III), não incidindo o direito real de habitação, dada a
impossibilidade de constituí-lo em bens sobre os quais o titular tem todas as
faculdades do domínio. Pela mesma razão, referido direito real limitado não terá
lugar quando o imóvel residencial destinado à residência da família couber ao
cônjuge supérstite em virtude de disposição testamentária, ou integrar a sua meação
na divisão dos bens em comunhão.
363
Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em seu livro Curso de Direito Civil: Famílias. V. 6.
7. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 198, pode-se “organizar a estrutura do casamento (assim como
a dos demais fatos jurídicos) da seguinte forma: (i) plano da existência, relativa ao ser, isto é, à sua estruturação,
de acordo com a presença dos elementos básicos, fundamentais, para que possa ser admitido, considerado; (ii)
plano da validade, dizendo respeito à aptidão do casamento frente aos elementos exigidos pelo ordenamento
jurídico para a sua admissibilidade; (iii) plano da eficácia, tendo pertinência com a possibilidade automática do
casamento produzir, desde logo, efeitos jurídicos”. Pormenorizadamente, o Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da ADI 477/DF, entendeu que os elementos existenciais do casamento seriam o consentimento dos
nubentes e a celebração do matrimônio com a autoridade competente.
364
Segundo Fábio Ulhôa Coelho, em seu livro Curso de Direito Civil: Família e Sucessões. V. 5. 8. ed. rev.
atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 274, “o ascendente ou descendente coproprietário do bem
não pode vir morar com o cônjuge, se antes não habitava o mesmo local”, sem autorização daquele.
365
Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em seu livro Curso de Direito Civil: sucessões. V.
7. São Paulo: Atlas, 2015, p. 269, “em se tratando de um direito real sobre a coisa alheia, restringindo o exercício
dos poderes sobre a titularidade, o habitador poderá, naturalmente, defender a sua posse e domínio sobre a coisa
contra terceiros ou mesmo contra o proprietário, por meio de ação possessória ou ação publiciana. Por conta do
mesmo raciocínio, o proprietário que sofre a restrição legal não pode utilizar parte do imóvel, nem cobrar aluguel
do habitador”.
366
Os Códigos Civis de 1916 e 2002 apresentam nos artigos 119; 128 e 129, respectivamente, as regras gerais
dos atos jurídicos modais ou acidentais. Em suma, a condição resolutiva é forma de se extinguir um ato jurídico,
subordinando-o a evento futuro e incerto. No caso do direito real de habitação, sob a égide do Código Civil de
1916, o próprio legislador subordinou sua eficácia à condição resolutiva de posterior casamento do cônjuge
viúvo. Na eventualidade da celebração de novo casamento, o direito real de habitação do cônjuge viúvo era
extinto.
367
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 70.
368
Ibid., p. 70.
83
Como dito, tratava-se de direito real vitalício, sob condição resolutiva, regido por tal
ramo do Direito, que se extinguia com a morte do cônjuge sobrevivente ou com novas
núpcias. Ademais, por ser um subtipo de usufruto369, eram, e ainda são, utilizadas as previsões
legais de extinção desse instituto jurídico para encerrar com o direito real de habitação 370, a
teor do artigo 1.416, do Código Civil de 2002.
Sendo assim, impunha-se ao titular do direito o facere de habitá-lo e o non facere de
alugá-lo ou emprestá-lo, sob pena também de extinção do direito371. Vale ressaltar que a posse
exercida a título de direito real de habitação não servia para fins de prescrição aquisitiva, eis
que faltava-lhe requisito imprescindível, o animus domini372.
Questionou-se, ato seguinte, se a ausência de seu exercício, leia-se o não uso do
imóvel pelo cônjuge supérstite, implicaria na extinção do próprio direito, tendo em vista haver
à época um vácuo normativo nas disposições do usufruto quanto à extinção pelo não uso373.
Para alguns doutrinadores, não seria possível essa modalidade de extinção do direito real de
habitação, uma vez que o legislador não a previu. Por outro lado, poder-se-ia caracterizar o
não uso do imóvel como um abuso de direito, com base no artigo 160, I, do Código Civil de
1.916374. Para outros, a extinção do direito real de habitação por ausência de uso do imóvel
pelo cônjuge sobrevivente seria perfeitamente plausível, devendo-se, pois, respeitar os
prazos375 prescricionais376.
369
Apesar da assertividade desse pensamento doutrinário, há um acórdão do Superior Tribunal de Justiça,
Recurso Especial n. 565.820/PR, que de forma brilhante expõe “não se pode confundir o direito real de habitação
com o usufruto, nem, tampouco, pretender que a renúncia ao usufruto alcance o direito real de habitação. Este
ocorre em função de regra jurídica específica em razão da viuvez, ainda mais quando, como no caso, se trata de
único bem de família a servir de residência da viúva, não revelando que tenha sido feita a adjudicação ao
herdeiro e que tenha havido a renúncia ao usufruto”. Esse acórdão, publicado em 16/09/2004, não admitia a
extinção do condomínio e a alienação judicial da coisa comum, mas sabe-se que isso vem sendo já mitigado pela
jurisprudência pela ponderação de princípios. Além disso, também restou consignado no acórdão que o direito
real de habitação não precisaria ser registrado na matrícula do imóvel, por guardar estreita relação com o Direito
de Família. Isso é discutido até hoje, ante à controversa natureza jurídica do instituto.
370
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSELVALD, Nelson. Op. cit., 2015b, p. 269.
371
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 71.
372
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSELVALD, Nelson. Op. cit., 2015b, p. 270.
373
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 71.
374
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
375
Sobre os prazos decadenciais/prescricionais, a questão se revela tão controvertida quanto à da possibilidade
de extinção dos direitos reais pelo não uso. Especificamente no que toca à extinção do usufruto pelo não uso,
concluem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald tratar-se de prazo decadencial, o qual começaria a fluir
do último ato de proveito do direito real praticado pelo titular, embora ponderem que, por não prever a lei a
existência de prazo, a perda do direito real deveria ser imediata, pelo simples fato de não se dar ao bem a sua
função social: “malgrado a omissão do legislador, poder-se-ia cogitar da aplicação do prazo decadencial de dez
anos, em analogia ao art. 205 do Código Civil ou do art. 1.389, III, do Código Civil, direcionando à extinção da
servidão pelo não uso por dez anos. Todavia, aderimos ao Enunciado 252 do Conselho da Justiça Federal: ‘a
extinção do usufruto pelo não uso, de que trata o art. 1.410, inc. VIII, independe do prazo previsto no art. 1.389,
inc. III, operando-se imediatamente. Tem-se por desatendida, nesse caso, a função social do instituto’. Com
efeito, se o usufrutuário negligenciou a funcionalização da posse e o legislador, por opção de política legislativa,
84
Encerrando essa controvérsia, o legislador, ao promulgar o Código Civil de 2002,
expressamente previu a extinção do usufruto pelo não uso, ou não fruição, da coisa em que o
usufruto recaia, em seu artigo 1.410, VIII377, e, consequentemente, a extinção do direito real
de habitação, com base em seu artigo 1.416378. Todavia, percebe-se que esse direito do
cônjuge supérstite deve ser inserido no contexto familiar, observando-se a finalidade desse
instituto, de forma que o seu exercício observe seus fins normativos e a boa-fé objetiva379.
não demarcou prazo para extinção do direito, haveria ofensa às diretrizes da socialidade e eticidade – que
permeiam o Código Civil – ao se criar interpretação doutrinária ou jurisprudencial por analogia de um prazo
decenal importado de outro instituto jurídico cuja motivação deita raízes em razões diversas ao usufruto”
(FARIAS; ROSENVALD. Op. cit. 2015a, p. 723-724). Note-se que tal entendimento pode ser plenamente
aplicável ao direito de habitação, consoante o disposto no art. 1.1416 do Código Civil. Já no sentido de que o
prazo para reconhecimento da extinção do usufruto pelo não uso seria prescricional – o que se aplicaria ao
direito de habitação pelo disposto no art. 1.1416 do Código Civil, como já visto) –, Silvio Rodrigues, seguindo
lição de Clóvis Beviláqua, autor do projeto do Código Civil de 1916, afirma que “A prescrição extintiva também
aniquila o usufruto. Segundo a lição de Beviláqua, ela resulta do não-uso do usufruto, durante o lapso de tempo
marcado no art. 177 do Código Civil de 1916” (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das coisas. V. 5. 28.
ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 311). O art. 177 do Código anterior tratava do prazo geral de
prescrição, o qual é de 10 anos segundo o disposto no art. 205 do Código vigente. Nesse mesmo sentido,
VIANNA, Marco Aurelio da Silva. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Comentários ao novo Código Civil.
Dos direitos reais. Arts. 1.225 a 1.510. v. XVI. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 742; e NADER, Paulo.
Curso de Direito Civil: direito das coisas. V. 4. 4. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 386.
376
A questão sobre a possibilidade de prescrição pelo não exercício dos direitos reais sempre se revelou
controvertida e tormentosa. Tradicionalmente, posicionou-se a doutrina no sentido de serem os direitos reais
imprescritíveis, não se extinguindo pelo simples não exercício. A título de exemplo, cita-se PEREIRA, Caio
Mário da Silva. Instituições de direito civil: Posse. Propriedade. Direitos reais de fruição, garantia e aquisição.
18. ed. rev. atual. Atualizador: Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 5; e
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Curso de Direito Civil: direito das coisas. V. 5. São Paulo: Atlas, 2015. p.
11-12. Nesse sentido, vale destacar a diferença pontual traçada por Caio Mário entre os direitos reais e os
direitos obrigacionais, em que esses últimos se caracterizam por extinguirem-se pela inércia do sujeito, “ao passo
que os reais conservam-se, não obstante a falta de exercício, até que se constitua uma situação contrária, em
proveito de outro titular” (PEREIRA. Op. cit. p. 5). Modernamente, parcela da doutrina, fundada na
possibilidade de extinção do usufruto pelo não uso prevista no Código Civil de 2002, vem admitindo a
prescrição ou a decadência dos direitos reais, seja simplesmente não mencionando a perpetuidade como
característica dos direitos reais (nesse sentido, ver TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena;
MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado: conforme a constituição da república: direito de
empresa, direito das coisas. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 495-496), seja concluindo que a
indisponibilidade ou a imprescritibilidade de um direito real depende de previsão legal, por se tratarem de
direitos patrimoniais, logo disponíveis, como se infere da lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald: “ao inverso da propriedade, que é perpétua e cuja duração prolonga-se mesmo quando do não uso –
exceto por decretação judicial de perda por quebra de função social nas hipóteses legais –, a inércia e a desídia
prolongadas do titular do direito real de usufruto no trato da coisa acarretam a perda do próprio direito. [...] “não
se trata o usufruto de direito real indisponível, nem ao menos a lei declarou-o insuscetível de prescrição.
Portanto, o não uso é considerado renúncia tácita, denunciando a vontade do titular em não mais exercitar o
usufruto” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015a, p. 723-724). Nesse caso, a
extinção do usufruto pela não uso aplicar-se-ia ao direito de habitação, em decorrência do disposto no art. 1.416
do Código Civil (Seguindo esse entendimento, TEPEDINO; BARBOZA; MORAIS. Op. cit. p. 858; e VIANNA,
Marco Aurelio da Silva. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Comentários ao novo Código Civil. Dos direitos
reais. Arts. 1.225 a 1.510. v. XVI. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 754).
377
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
378
Ibid.
379
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 72.
85
Em razão da aplicação das regras do usufruto para o direito real de habitação, naquilo
que não lhe for contrariar sua natureza, a teor do artigo 748, do Código Civil de 1916 380, eram
incumbidas ao cônjuge sobreviente, detentor do direito real de habitação, (i) as despesas
ordinárias de conservação dos bens no estado em que os recebeu; e (ii) os foros, as pensões e
os impostos reais devidos pela posse, ou rendimento da coisa usufruída; e (iii) as
contribuições de seguro, se a coisa estiver segura, na proporção do direito que lhe cabe, com
base nos artigo 733 e 735, ambos do mesmo diploma legal381.
Ainda sob a égide do Código Civil de 1916, o seu artigo 1.611, §2º382 previa
expressamente apenas esse direito para o conjuge sobrevivente. Com o advento da Lei nº
9.278/96, regulamentadora do artigo 226, §3º, da Constituição Federal de 1988383, o direito
real de habitação foi estendido ao companheiro sobrevivente, a teor de seu artigo 7º, parágrafo
único, em que “dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente
terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento,
relativamente ao imóvel destinado à residência da família” 384.
Pela leitura do supracitado artigo, percebe-se que o legislador não fez diferenciação
quanto ao regime de bens na união estável para conceder o direito real de habitação para o
companheiro sobrevivente. Com isso, a pessoa em união estável teria mais direitos do que
aqueles atribuídos aos casados, o que seria incompatível para alguns doutrinadores com o
sistema jurídico385. Sendo assim, estendia-se esse direito aos cônjuges casados em qualquer
regime de bens, em contrariedade à norma infraconstitucional, artigo 1.611, §2º386, do Código
Civil de 1916387.
Nesse sentido, há o acórdão no REsp nº 821.660/DF, da Relatoria do Ministro Sidnei
Beneti, da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça388:
380
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
Ibid.
382
Ibid.
383
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
384
BRASIL. Lei n. 9.278 de 1996. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9278.htm>.
Acesso em: 20 nov. 2016.
385
Nas palavras de Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em seu livro Direito das
Sucessões. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 210, “a questão central da
discussão resumia-se no fato de que o cônjuge tinha alternativamente um ou outro benefício, dependendo do
regime de bens. Já os companheiros, aparentemente, teriam ambas as vantagens, pois as normas não faziam
qualquer restrição. E a Constituição Federal, ao prever a necessidade de, através de lei, facilitar-se a conversão
da união estável em casamento (art. 226, §3º), subjetivamente impede o legislador ordinário de outorgar aos
companheiros mais benefícios à união estável, para, no plano fático, não obstar a conversão”.
386
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
387
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 72.
388
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 821.660/DF. Relator: Ministro Sidnei Beneti.
Disponível
em:
381
86
percebe-se que o direito real de habitação, até então exclusivo do cônjuge supérstite,
havia sido estendido ao companheiro sobrevivente por força do parágrafo único do
artigo 7º, da Lei nº 9.278/96, de maneira mais abrangente, conferindo ao
companheiro sobrevivente um direito subjetivo que não socorria à maioria dos
cônjuges em idêntica situação. (...) Uma interpretação que melhor ampara os valores
espelhados na Constituição Federal é aquela segundo a qual o artigo 7º da Lei nº
9.278/96 teria derrogado, a partir da sua entrada em vigor, o §2º do artigo 1.611 do
Código Civil de 1916, de modo a neutralizar o posicionamento restritivo contido na
expressão ‘casados sob o regime da comunhão universal de bens. (...) Percebe-se
que, dessa maneira, tanto o companheiro, como o cônjuge, qualquer que seja o
regime do casamento, estarão em situação equiparada, adiantando-se, de tal maneira,
o quadro normativo que só veio a se concretizar de maneira explícita, com a edição
do novo Código Civil.
Em sentido oposto, há o acórdão no REsp nº 1.204.347/DF, da Relatoria do Ministro
Luís Felipe Salomão, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em que o falecimento
ocorreu sob a égide do Código Civil de 1916, tendo sido casado pelo regime da separação de
bens e tido um descendente de casamento anterior, aplicando-se, pois, a regra de direito
intertemporal, prevista no artigo 2.041, do Código Civil de 2002389, para prevalecer o disposto
naquele código. Assim, no caso concreto, observou-se a aplicação do artigo 1.611, §1º, do
Código Civil de 1916390, dando ao cônjuge sobrevivente o usufruto vidual, correspondente a
¼ dos bens do cônjuge falecido, a despeito da leitura ampliativa mais favorável, e
condenando-o ao pagamento de alugueres referente a ¾ do imóvel em questão, desde a data
do falecimento até a extinção do usufruto391.
Como dito anteriormente em relação ao companheiro sobrevivente, o artigo 7º,
parágrafo único, da Lei nº 9.278/96392 previa o direito de habitar gratuitamente e
indeterminadamente no imóvel em que vivia com seu companheiro falecido, desde que não
constituísse nova união estável ou casasse, sob pena de extinção do usufruto.
Além de não ter sido limitado o direito real de habitação para o companheiro
sobrevivente para regimes de bens específicos, como era o do cônjuge sobrevivente, preferiu
o legislador, mediante as Leis nº 8.971/94393 e 9.278/96394, não impor a exigência de
existência de apenas um imóvel residencial no acervo hereditário. Assim, independente do
número de imóveis e da sua natureza jurídica, o companheiro sobrevivente seria sempre
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=200600380972>. Acesso em: 24 nov. 2016.
389
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
390
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
391
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.204.347/DF. Relator: Ministro Luís Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201001416378>. Acesso em: 24 nov. 2016.
392
BRASIL. Lei n. 9.278 de 1996. Op. cit.
393
BRASIL. Lei n. 8.971 de 1994. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8971.htm>.
Acesso em 27 nov. 2016.
394
Ibid.
87
contemplado com o direito real de habitação, apenas em relação àquele imóvel pertencente ao
autor da herança e destinado à residência da família395.
Atualmente, o direito real de habitação está vinculado ao direito de habitação,
previsto como cláusula pétrea nos artigos 1º, III e 6º, da Constituição Federal de 1988396,
tendo sido disciplinado no artigo 1.831, do Código Civil de 2002397, “ao cônjuge
sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da
participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel
destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”.
Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald398,
a finalidade das regras que estabelecem o direito real de habitação em favor do
cônjuge ou do companheiro sobrevivo é dúplice: garantir uma qualidade de vida ao
viúvo (ou viúva), estabelecendo um mínimo de conforto para a sua moradia, e, ao
mesmo tempo, impedir que o óbito de um dos conviventes sirva para afastar o outro
da residência estabelecida pelo casal. Bem por isso, com esse específico fim, o
direito de habitação independe do direito à meação (submetido ao regime de bens) e
do direito à herança. Ou seja, mesmo que o cônjuge (ou companheiro) sobrevivente
não seja meeiro e não seja herdeiro e, por conseguinte, ainda que não tenha qualquer
direito sobre o aludido imóvel, terá assegurado em seu favor o direito de ali
permanecer residindo, enquanto vida tiver. (...) A regra, portanto, tem um pano de
fundo protetivo, mostrando-se válida e compatível com o sistema jurídico, inclusive
com os princípios dos quais deflui.
Com a promulgação do Código Civil de 2002, o legislador infraconstitucional não
previu a garantia ao direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, com base no
artigo 1.831399, daquele diploma legal, eis que expressamente se refere apenas ao cônjuge
sobrevivente. Assim, questionou-se, em seguida, se o Código Civil de 2002400 haveria
revogado, ou não, as Leis nº 8.971/94401 e 9.278/96402, em especial o artigo 7º, parágrafo
único desta.
Conforme Edgard Audomar Marx Neto403,
diante da omissão legislativa, três posicionamentos são cabíveis: o de que a Lei n.
9.278/96 foi revogada pela entrada em vigor do novo Código e não mais existe a
previsão de tal direito; o de que, não tendo sido revogada a lei, tal direito subsiste;
ou de que, tendo sido revogada a lei, deve tal direito ter sua aplicação ampliada ao
companheiro sobrevivente.
395
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 89.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
397
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
398
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSELVALD, Nelson. Op. cit. 2015a, p. 270.
399
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
400
Ibid.
401
BRASIL. Lei n. 8.971 de 1994. Op. cit.
402
BRASIL. Lei n. 9.278 de 1996. Op. cit.
403
MARX NETO, Edgard Audomar. Sucessão do Companheiro. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da;
CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida (Coord.). Op. cit., 2014, p. 333.
396
88
Para Luiz Paulo Vieira de Carvalho, apesar da omissão legislativa no Código Civil
de 2002, subsiste ao companheiro sobrevivente o direito real de habitação com mesmas
características daquele conferido ao cônjuge sobrevivente, em observância ao princípio
constitucional da igualdade. Em sua opinião, o artigo 7º, parágrafo único, da L. nº 9.278/96404
não teria sido revogado pelo novo Código Civil, porque (i) em seu artigo 2.045, nas
disposições transitórias, revogou-se expressamente apenas o Código Civil de 1916 e a Parte
Primeira do Código Comercial, mas não a legislação extravagante405; (ii) a extensão do direito
real de habitação ao companheiro sobrevivente não vai de encontro às normas disciplinadoras
de seus direitos, observando-se os artigos 1723 a 1727 e 1790, do referido diploma legal; e
(iii) tendo em vista os princípios constitucionais à moradia, ao mínimo existencial e ao da
dignidade da pessoa humana406, defende-se a aplicação do Enunciado nº 117, I Jornada de
Direito Civil407.
Apesar de não ter eficácia vinculante, foi aprovado o Enunciado nº 117, da I Jornada
de Direito Civil, no qual se propôs, pela unanimidade dos presentes, a extensão do direito real
de habitação ao companheiro sobrevivente, “seja por não ter sido revogada a previsão da Lei
nº 9.278/96408, seja em razão da interpretação analógica do artigo 1.831, informado pelo
artigo 6º, caput, da CF/88”409.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 1.203.144/RS, da relatoria do
Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 15/08/2014, tem entendido pacificamente no
404
BRASIL. Lei n. 9.278 de 1996. Op. cit.
Segundo Ana Luiza Maia Nevares, em seu livro A Sucessão do Cônjuge e do Companheiro na Perspectiva do
Direito Civil-Constitucional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 124, “para alguns, o parágrafo único do art. 7º da
Lei 9.278/96 não foi revogado pelo Código Civil, sendo certo que, em suas disposições finais e transitórias, o
Código nada previu quanto às Leis 8.971/94 e 9.278/96. A posição ora mencionada apoia-se no disposto no art.
9º da Lei Complementar 95, segundo o qual a cláusula de revogação de uma lei deverá enumerar, expressamente,
as leis ou disposições legais revogadas”.
406
Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, em seu livro Direito Civil: sucessões. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2007, p. 109, “como não houve revogação expressa da Lei de 1996, bem como inexiste incompatibilidade entre o
disposto no art. 1.831 do CC, e o art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.278/96, adotando-se os critérios de
interpretação e harmonização das normas jurídicas no interior do sistema, conclui-se pela vigência da regra do
direito real de habitação em favor do companheiro sobrevivente. Sobre o tema, deve-se considerar a aplicação do
disposto no art. 226, caput, da Constituição Federal, a fim de considerar que a família fundada no
companheirismo é merecedora de especial proteção estatal. Desse modo, caso houvesse interpretação no sentido
de se considerar revogado o disposto na Lei de 1996, haveria violação ao comando constitucional, já que
ocorreria postura no sentido de não proteger a família informal fundada na ‘união estável’”.
407
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 438.
408
BRASIL. Lei n. 9.278 de 1996. Op. cit.
409
BRASIL.
Conselho
da
Justiça
Federal.
Enunciado
n.
117.
Disponível
em:
<
http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/758>. Acesso em: 27 nov. 2016.
405
89
sentido de “a companheira supérstite tem direito real de habitação sobre o imóvel de
propriedade do falecido onde residia o casal, mesmo na vigência do atual Código Civil”410.
Há aqueles que falam em revogação tácitas das Leis nº 8.971/94 e 9.27/96411, sob o
fundamento de ter o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.790, regulamentado por completo
a matéria, afastando, por conseguinte, a aplicação dessas normas extravagantes. Entretanto, o
referido artigo não contemplou o direito real de habitação em suas disposições normativas,
tendo o Código Civil apenas se referido ao cônjuge sobrevivente em artigo específico –
1.831412. Há outros que entendem pela ab-rogação das leis da união estável pelo novo Código
Civil413, nos termos do artigo 2º, §1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro –
LINDB414. Há ainda aqueles que entendem não ter o Código Civil de 2002 revogado as
disposições das leis extravagantes, que conferem o direito real de habitação ao companheiro
sobrevivente, diante da omissão do referido diploma legal, sob o fundamento do princípio da
especialidade415.
Conforme já dito anteriormente nessa seção, sob a égide do Código Civil de 1916416
e das leis extravagantes, o direito real de habitação sucessório vigorava enquanto o cônjuge ou
o companheiro sobrevivente permanecesse viúvo ou não constituísse nova união estável,
embora fosse considerado vitalício. Já o Código Civil de 2002417, em seu artigo 1.831, não
restringe mais a titularidade do direito que será sempre vitalício418, mesmo que o cônjuge ou o
410
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.203.144/RS. Relator: Ministro Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201001278654>. Acesso em: 27 nov. 2016.
411
BRASIL. Lei n. 9.278 de 1996. Op. cit.
412
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 125.
413
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.329.993/RS. Relator: Ministro Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneric
a&num_registro=201002222363>. Acesso em: 27 nov. 2016.
414
BRASIL. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em: <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm >. Acesso em 10 dez. 2016.
415
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1436350/RS. Relator:
Ministro
Paulo
de
Tarso
Sanseverino.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneric
a&num_registro=201400395495>. Acesso em: 27 nov. 2016.
416
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
417
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
418
Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em seu livro Curso de Direito Civil: sucessões. V. 7.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 270, “na sistemática do Código Civil de 2002, diferentemente do seu antecessor, o
direito de habitação é vitalício e incondicionado, de forma que o seu titular (o cônjuge supérstite) permanecerá
residindo no imóvel em que o casal fixou o lar até que venha a falecer, mesmo que constitua uma nova entidade
familiar. A solução não nos parece razoável. Com efeito, permitir que o cônjuge se mantenha residindo no
imóvel, que não lhe pertence, mesmo que constitua uma nova família, implica em alteração da natureza
protecionista do instituto, transmudando em abuso de direito real sobre a coisa alheia e verdadeira vingança
90
companheiro sobrevivente venha a contrair novas núpcias ou união estável, pois a restrição
(condição resolutiva) quedou-se suprimida419.
Na atualidade, em regra, só será cabível o direito real de habitação sucessório, caso o
de cujus tiver deixado descendentes ou ascendentes. Caso contrário, o cônjuge sobrevivente
recolherá sozinho o acervo hereditário sem necessidade de se utilizar do direito conferido pelo
legislador, na qualidade de herdeiro necessário, conforme artigo 1.845, do Código Civil de
2002420. Excetuando-se a regra geral, se o hereditando por testamento válido dispuser de
metade da herança, com base no artigo 1.789, do Código Civil de 2002421, receberá o cônjuge
sobrevivente apenas sua quota legitimária, prevista no artigo 1.846 do Código Civil de
2002422, subsistindo e aplicando-se o direito real de habitação423.
Para Paulo Nader424,
como a habitação é um direito real sobre a coisa alheia, para que ao cônjuge
supérstite assista este direito, indispensável que o imóvel não lhe caiba na partilha,
pois, do contrário, em lugar do direito de habitação haverá direito de propriedade.
Como a finalidade da habitatio é permitir ao seu titular a morada no imóvel,
juntamente com seus dependentes, o instituto contém carácter assistencial .
Quanto ao companheiro sobrevivente, a despeito das controvérsias aqui abordadas,
entende-se, para fins deste trabalho, que o direito real de habitação apenas não será aplicado
ao caso concreto na hipótese de não haver outros parentes sucessíveis, pois terá direito à
totalidade da herança.
Como dito, o direito real de habitação tem natureza gratuita, não estando sujeito,
portanto, à contraprestação, sendo exigível apenas o adimplemento dos impostos e das
obrigações propter rem425.
Na essência, trata-se de direito sucessório, passível de abdicação, sujeito à renúncia
pelo seu titular, sem prejuízo de sua participação na herança426, a teor do disposto no
Enunciado 271, III Jornada de Direito Civil427. Com base nesse enunciado e no artigo 114, do
Código Civil de 2002428, por ter a renúncia interpretação restrita, deve-se observar a forma
contra os descendentes do falecido (os legítimos proprietários do imóvel, que sofrem a restrição imposta pelo
direito de habitação)”.
419
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 436.
420
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
421
Ibid.
422
Ibid.
423
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 436.
424
NADER, Paulo. Op. cit., 2016b, p. 163.
425
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 436.
426
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 89.
427
BRASIL.
Conselho
da
Justiça
Federal.
Enunciado
n.
271.
Disponível
em:
<
http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/533>. Acesso em: 27 nov. 2016.
428
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
91
legal prescrita, ou seja, por escritura pública ou termo nos autos do inventário, conforme os
artigos 1.804, parágrafo único, e 1.806, ambos do mesmo diploma legal429.
No Código Civil de 2002, em seu artigo 1.831, in fine, foi utilizada a expressão
“desde que seja o único daquela natureza a inventariar”. Pela interpretação literal do
dispositivo, apenas quando existir um único imóvel residencial, independentemente de outros
de natureza diversa, haverá direito real de habitação para o cônjuge (e o companheiro
sobrevivente por extensão).
Para Ana Luiza Maia Nevares430,
[...] com efeito, tal exigência é pertinente quando o convivente é herdeiro em
propriedade plena ou quando tem a metade dos bens adquiridos durante a união
estável por força da comunhão na aquisição do patrimônio. Quando o companheiro
não é herdeiro (por exemplo, se não há bens adquridos a título oneroso na constância
da união estável) e quando apenas existem imóveis residenciais do autor da herança
que não tocam ao supérstite, tal exigência poderá esvaziar a proteção à moradia do
431
companheiro sobrevivente, devendo, portanto, ser afastada .
Nesse sentido, em uma interpretação mais favorável ao cônjuge e ao companheiro
sobrevivente, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 1.220.838/PR, da relatoria do
Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, Dje 27/07/2012, “do fato de haver outros bens residenciais
no Espólio, ainda não partilhados, não resulta exclusão do direito de habitação, quer
relativamente ao cônjuge, quer relativamente ao convivente em união estável”. O Ministro
cita em seu acórdão o doutrinador José Luiz Gavião de Almeida, que entendem ser essa
limitação resquício do Código Civil de 1916432. À época, tal limitação tinha sentido, eis que o
direito real de habitação era conferido exclusivamente ao casado pelo regime da comunhão
universal de bens, no qual o cônjuge sobrevivente tem direito à meação sobre todos os bens.
Por fim, havendo mais de um imóvel residencial a ser inventariado, terá o cônjuge e o
companheiro sobrevivente direito real de habitação no caso concreto, mas “não poderão
escolher sobre qual pretende fazer recair o direito real, embora possa exigir um que seja de
conforto similar àquele em que mora” 433.
Isso porque o direito real de habitação está intimamente ligado ao direito de moradia,
cláusula pétrea na Constituição Federal de 1988434, não fazendo sentido deixar o sobrevivente
429
Ibid.
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 127.
431
Nesse sentido, Aldemiro Rezende Dantas Jr., Maria Berenice Dias, Gustavo René Nicolau, Raquel Delmas e
Luiz Paulo Vieira de Carvalho.
432
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
433
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.220.838/PR. Relator: Ministro Sidnei Beneti.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201002080445>. Acesso em: 27 nov. 2016.
434
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
430
92
sem a garantia de um teto, sob a justificativa de haver mais imóveis residenciais no acervo
patrimonial.
Portanto, ao se analisar a concessão do direito real de habitação sob o ponto de vista
civil-constitucional435, endossa-se esse posicionamento e admite-se que seja concedido o
direito real de habitação ao cônjuge e ao companheiro sobrevivente a incidir no imóvel, que
servia como residência ao ex-casal, independentmente do número de imóveis residenciais
constantes do espólio do hereditando.
Todavia, Gustavo Rene Nicolau436 traz uma problemática não muito questionada
pelos juristas, sem solução aparente, sendo mais uma distorção do sistema jurídico ao
generalizar questões, qual seja:
outro problema não resolvido pela lei foi o fato de não ter sido criado um prazo de
duração, um termo ou uma condição resolutiva para a extinção de tal direito real. Os
direitos reais só podem ser extintos com previsão legal, o que simplesmente não
existe neste caso. Em tese, caso a viúva se case novamente, ela continuará tendo o
direito real de habital aquele imóvel que é de propriedade dos descendentes do
falecido. Se a viúva for muito mais jovem do que o falecido, ela permanecerá no
imóvel por muitos e muitos anos, enquanto o descendente (proprietário do bem)
ficará despido dos principais atributos de um proprietário, como usar, gozar e fruir
do bem.
Muitas vezes, a aplicação do direito real de habitação de forma absoluta é
extremamente injusta, com colisão de direitos constitucionais fundamentais, como, por
exemplo, o direito de propriedade e de moradia437. Como dito, mesmo que o companheiro ou
cônjuge sobrevivente tenha bens imóveis próprios, se morasse em bem imóvel do falecido, a
jurisprudência da Corte Superior entende que fará jus ao direito real de habitação438.
435
Maria Celina Bodin de Moraes, em seu artigo publicado “A Caminho de um Direito Civil-Constitucional”, p.
9, expõe que “assim é que qualquer norma ou cláusula negocial, por mais insignificante que pareça, deve se
coadunar e exprimir a normativa constitucional. Sob essa ótica, as normas do direito civil necessitam ser
interpretadas como reflexo das normas constitucionais. A regulamentação da atividade privada (porque
regulamentação da vida cotidiana) deve ser, em todos os seus momentos, expressão da indubitável opção
constitucional de privilegiar a dignidade da pessoa humana. Em consequência, transforma-se o direito civil: de
regulamentação da atividade econômica individual, entre homens livres e iguais, para regulamentação da vida
social, na família, nas associações, nos grupos comunitários, onde quer que a personalidade humana melhor se
desenvolva e sua dignidade seja mais amplamente tutelada”.
436
NICOLAU, Gustavo Rene. Sucessão legítima, desacertos do sistema e proposta de alteração legislativa. In:
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito de Família
e das Sucessões: temas atuais. São Paulo: Gen, 2009, p. 530.
437
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo Interno em Apelação Cível n. 008042674.2012.8.19.0001. Relator: Desembargador Guaraci de Campos Vianna. Disponível em:
<http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000400A806E5AAE1A6CAA9DFE6D7
BD221270C50253313C43&USER=>. Acesso em 28 nov. 2016.
438
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.220.838/PR. Relator: Ministro Sidnei Beneti.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201002080445>. Acesso em: 27 nov. 2016.
93
Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem acórdãos no
sentido de que, quando se constata que o habitador, ou tenha outro imóvel, ou tenha recurso
suficiente para comprar outro imóvel, não haveria a necessidade de conferir o direito real de
habitação, pois poder-se-á estar ferindo direito dos herdeiros necessários proprietários do
bem439.
No momento da morte, o habitador, cônjuge ou companheiro sobrevivente, passa a
ser possuidor direto, sendo possuidor indireto440 o nu-proprietário441, herdeiro, com base no
princípio da Saisine. Não se trata, portanto, de composse442, pois as posses não são do mesmo
grau e qualidade443. Assim, se o cônjuge ou companheiro sobrevivente expulsar do imóvel o
herdeiro, não caberá em contrapartida ação possessória por este último, mesmo sob a alegação
de composse, a ter do artigo 1.197, do Código Civil de 2002444.
No caso de o herdeiro ter morado durante a vigência do casamento ou da união
estável junto com o casal, ainda assim não terá direito à posse consolidada ou direta. Isso
439
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo Inominado no Agravo de Instrumento n.
006788257.2012.8.19.0000. Relatora: Desembargadora Inês Trindade Chaves de Melo. Disponível em:
<http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=00048EF7DA63E25C7F7146C1ACF223
734CAEC5033D0A2244&USER=>. Acesso em: 28 nov. 2016.
440
Entre outras classificações da posse, há aquela que a divide em posse direta e indireta. Trata-se de um
desdobramento da posse, sendo conceituada pelo artigo 1.197, do Código Civil de 2002 como “a posse direta, de
pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a
indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto”. Assim,
há a coexistência das posses direta e indireta, que não se excluem e não se colidem. No caso de sucessão causa
mortis, o direito real de habitação será o fator que desdobrará a posse consolidada em posse direita (cônjuge ou
companheiro sobrevivente) e indireta (herdeiro). Com base no supracitado artigo do Código Civil de 2002, caso
o possuidor indireto interfira na posse direta, molestando-a, o possuidor direto poderá ajuizar as ações
possessórias próprias (manutenção da posse, reintegração da posse e interdito proibitório) contra o primeiro.
441
Como já demonstrado neste trabalho, o direito real de habitação segue as regras do usufruto, estabelecidas
pelo Código Civil de 2002, em seus artigos 1.390 a 1.411, podendo este recair sobre “um ou mais bens, móveis
ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e
utilidades” (art. 1.390). Quando se constitui um usufruto sobre bem, ocorre o desmembramento da propriedade,
em que a titularidade do bem permanecerá com quem de direito, chamado de nu-proprietário (herdeiro), mas
uma terceira pessoa irá usar e fruir dele, como se proprietário fosse (cônjuge ou companheiro sobrevivente).
442
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, em seu livro Instituições de Direito Civil: direitos reais. V. 4. 20. ed.
rev. atual. (Carlos Edson do Rêgo Monteiro Filho atualizador), Rio de Janeiro: Gen, 2009, p. 28, “ocorre, porém,
que, por força de convenção ou a título hereditário (adquirentes de coisa em comum, co-titulares do mesmo
direito, marido e mulher em regime de comunhão de bens, co-herdeiros antes da partilha, comunheiros antes da
comunni dividundo), duas ou mais pessoas tornam-se condôminas da mesma coisa, mantendo-se pro indiviso a
situação respectiva, em virtude de qual ela constitui objeto da propriedade de todos. Não se fragmenta em tantas
propriedades distintas quantos forem os sócios, nem se fraciona materialmente de molde a que exerça cada um o
domínio pro parte. Ao revés, cada condômino é titular do direito de propriedade, por quota ideal, exercendo-o
por tal parte que não se anule igual direito por parte de cada um dos demais, e não se embarace o seu exercício”.
443
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 616027/SC. Relator: Ministro Carlos Alberto
Menezes
Direito.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=472354&num_regi
stro=200302327612&data=20040920&formato=PDF>. Acesso em: 29 nov. 2016.
444
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
94
porque, antes do falecimento, o filho não era titular do bem, somente detentor445. Se após o
falecimento do hereditando o cônjuge ou o companheiro sobrevivente vier a permitir a
permanência desse filho, agora titular pelo princípio da Saisine, será apenas mero ato de
tolerância do possuidor direto, eis que (i) apesar de, em regra, se transmitir aos herdeiros
necessários com a Saisine a posse plena, o direito real de habitação coincidentemente ao
momento da morte desmembra a posse, transmitindo a titularidade e a posse indireta para o
herdeiro e o cônjuge/companheiro sobrevivente, respectivamente446; e (ii) a natureza da
detenção, constituída antes da morte, não se trasmuda em posse plena ou direta após a morte,
tão somente por se permitir a permancência daquele no imóvel em companhia do cônjuge ou
companheiro sobrevivente à título de liberalidade deste.
Luiz Paulo Vieira de Carvalho447 dispõe que:
além disso, o habitador é o único possuidor direto do imóvel, independentemente,
inclusive, de ser titular de outros imóveis que não integram o monte-mor partilhável.
E, ainda, efetiva-se no momento do decesso do hereditando, tendo, como
anteriormente afirmado, a natureza de direito ex lege e não contratual, e por ter
natureza real, é oponível erga omnes, ou seja, a todos, inclusive aos sucessores
titulares da nua-propriedade do imóvel, que nele tão somente poderão residir, se
devidamente autorizados pelo referido habitador, independentemente ou não da
filiação se exteriorizar como exclusiva.
Ponto interessante a discutir é: no caso de ser concedido direito real de habitação ao
cônjuge ou companheiro sobrevivente, seria possível a venda do bem imóvel pelos herdeiros
do falecido? Isso é, têm os herdeiros direito de dispor do bem imóvel, em garantia dos
princípios da propriedade e, a depender do caso concreto, do mínimo existencial, quando esse
mesmo imóvel está garantido ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente a observância dos
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial? Como já
exposto, pelas características do direito real de habitação, entende-se ser cabível a alienação
445
Na forma do artigo 1.198 do Código Civil, “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de
dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”.
Portanto, diz-se detentor o sujeito que exerce o poder físico sobre uma coisa, mas em nome de terceiro, e não em
nome próprio, e isso por força de uma relação de dependência entre ele e o titular ou possuidor da coisa.
Excepcionalmente admite-se a transformação da detenção em posse quando o detentor deixar a posição de mero
servidor da posse para agir como se fosse o legítimo possuidor. Nesse sentido é a lição de Gustavo Tepedino: “A
detenção pode se transformar em posse se, por circunstância meramente fática, o detentor deixar de seguir
ordens e instruções do legítimo possuidor, exteriorizando, de forma efetiva, poderes sobre a coisa em nome
próprio”. TEPEDINO, Gustavo. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira (Coord.). Comentários ao Código Civil:
direito das coisas (arts. 1.196 a 1.276). v. 14. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 82.
446
“Com efeito, o princípio em comento, inicialmente utilizado para exprimir a imediata transmissão da posse
para os sucessores do servo ocupante de terras do senhor feudal, modernamente é empregado para definir a
transmissão e a consequente aquisição instantânea e em bloco de toda a herança a favor dos sucessões universais,
(...). (...) É bom repisar sempre que tal posse ex sucessionis obedece aos ditames do antes citado art. 1.206 do
Código Civil, de vez que é transferida aos herdeiros do morto com as mesmas características ostentadas
anteriormente (fenômeno a ocorrer também em relação aos legatários, sucessores singulares; porém, para estes,
tal transmissão não ocorre de modo imediato, (...)”. (CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 79-84).
447
Ibid., p. 436.
95
do imóvel, apesar da aparente ponderação entre princípios constitucionais. Isso porque no
nosso ordenamento jurídico é permitida a alienação, sem substituição, da nua-propriedade,
garantindo ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente o direito à moradia, bem como
contemplando o interesse dos herdeiros em seu direito à herança. Relembrando, entretanto,
que o adquirente do imóvel, em sua nua-propriedade, terá o ônus de aguardar a extinção do
usufruto, seja de forma voluntária pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente, seja pelas
hipóteses legais, previstas no artigo 1.410, do Código Civil de 2002448.
Em relação a eventuais condomínios indivisos sobre bem imóvel, há algumas
situações que serão tratadas a seguir com posicionamento do Superior Tribunal de Justiça a
ser seguido.
No AgRg no EREsp nº 1.436.350/RS, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela
não concessão do direito real de habitação para o companheiro sobrevivente, tendo como
fundamento particularidades do caso concreto e a preocupação de não prejudicar terceiros, os
outros coproprietários. No acórdão, publicado em 19/04/2016, o Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino449 aduziu que:
o imóvel objeto da presente ação, conforme cópia do Registro de Imóveis de
Alvorada (fls. 08-9 verso), pertencia, originalmente, ao pai das autoras, de quem a
companheira falecida era meeira. Com o falecimento do pai das autoras, em
15/07/1982 (fl. 42), abrindo-se a sucessão dos bens por ele deixados, sobre a sua
meação surgiu o direito hereditário das filhas do casal sobre o imóvel (ora
apelantes), nos termos do art. 1.784 do CCB (Aberta a sucessão, a herança
transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.). Portanto,
quando iniciada a união estável entre o apelado e a de cujus, ou seja, em 1984 (fls.
28-30), sobre o imóvel que passou a servir de residência para o novo casal já havia
considerar a co-propriedade das filhas da companheira, em sucessão do anterior coproprietário esposo. Em síntese, não pertencendo o imóvel exclusivamente a de
cujus quando do início da união estável com o apelado, eis que metade dele foi
partilhado entre as autoras/apelantes, co-proprietárias, não há como reconhecer o
direito real de habitação. O fato de a de cujus ter permanecido no imóvel, nele
residindo sozinha ou na companhia do demandado, trata-se de circunstância relativa
à conveniência das partes e ao direito real de habitação da própria de cujus em
relação a suas filhas, sobre a meação do falecido esposo, que em relação ao apelado
não merece relevo, em nada alterando a situação de direito das herdeiras necessárias
pré-estabelecida sobre o bem. Em outras palavras, o demandado não detém nenhum
direito sobre o imóvel, seja na qualidade de companheiro ou de herdeiro da de cujus.
Sobre o bem há direitos hereditários exclusivos das filhas da falecida companheira –
autoras ora apelantes. E assim sendo, inobstante ser incontestável o fato de que a
mãe das demandantes residia no imóvel com o seu companheiro (réu), não há
cogitar direito real de habitação no caso concreto como óbice válido ao pedido
reivindicatório formulado pelas autoras.
448
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Divergêncai no Recurso
Especial n. 1.345.350/RS. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Disponível em: <
https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneric
a&num_registro=201400395495>. Acesso em: 27 nov. 2016.
449
96
Em outro caso concreto, no REsp nº 1.184.492/SE, DJe 07/04/2014, o Superior
Tribunal de Justiça se posicionou no sentido de não conceder o direito real de habitação para a
companheira sobrevivente, sob pena de desvirtuar o instituto ao concedê-lo sobre imóvel de
terceiro, haja vista que: (i) foi adquirido o bem pelo inventariado em copropriedade com seus
irmãos muito antes de seu falecimento; e (ii) por deter o de cujus fração minoritária do
bem450.
Já o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, na APC nº 030772224.2011.8.19.0001, DJe 19/07/2016, concedeu o direito real de habitação ao companheiro
sobrevivente, bem como reconheceu a união estável post mortem. Isso porque, apesar de
existirem outros coproprietários, não herdeiros da inventariada, o imóvel objeto da ação
pertencia quase em sua integralidade (mais de 80%) a de cujus. No caso concreto, houve uma
ponderação de princípios constitucionais, princípio da dignidade da pessoa humana, do
mínimo existencial e da moradia versus o da propriedade, prevalecendo, pois, “instituto
protetivo, que visa garantir que o companheiro não fique desamparado e possa continuar
morando no imóvel que servia de residência aos conviventes”451.
Em 17/12/2013, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 1.249.227/SC, de
relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, decretou que “o fato de a companheira ter
adquirido outro imóvel residencial com o dinheiro recebido pelo seguro de vida do falecido
não resulta exclusão de seu direito real de habitação referente ao imóvel em que residia com o
companheiro, ao tempo da abertura da sucessão”452.
Atualmente, há, em trâmite na Câmara dos Deputados – aguardando parecer do
relator na Comissão de Seguridade Social e Família –, o Projeto de Lei nº 4.908/2012453, de
autoria do Dep. Hidekazu Takayama, filiado ao PSC-PR, em que se pretende, entre outras
450
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.184.492/SE. Relatora: Ministra Nancy
Andrighi.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201000375282>. Acesso em: 27 nov. 2016.
451
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 0307722-24.2011.8.19.0001.
Relator:
Desembargador
Lúcio
Durante.
Disponível
em:
<http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=201600139931>. Acesso em: 06 dez. 2016.
452
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.249.227/SC. Relator: Ministro Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201100849912>. Acesso em 06 dez. 2016.
453
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.908 de 2012. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=564125>. Acesso em: 06 dez.
2016.
97
coisas, modificar o instituto do Direito Real de Habitação, em especial o artigo 1.831454, do
Código Civil de 2002455.
Por último, o artigo 1.611, §1º, do Código Civil de 1916456 estabelecia o usufruto
legal sucessório457 em relação ao cônjuge sobrevivente, quando este não fosse casado pela
comunhão universal de bens. Tratava-se de direito real458, em que o cônjuge teria direito ao
usufruto de ¼ dos bens do falecido, se houvesse descendentes deste, ou ½, se não houvesse
descendentes, embora existissem ascendentes do de cujus.
Tal artigo foi incluído naquele diploma legal pela Lei nº 4.121/62459.
454
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
Entre outras proposições, sugere o Dep. Hidekazu Takayama modificar a redação do artigo 1.831, do Código
Civil de 2002, a fim de assegurar expressamente o direito real de habitação tanto ao cônjuge, quanto ao
companheiro sobrevivente, encerrando a discussão sobre a vigência, ou não, das leis extravagantes e existência,
ou não, desse direito para o companheiro. Nesse aspecto, andará muito bem o Poder Legislativo, diminuindo as
controvérsias existentes no ordenamento jurídico, que chegam diariamente ao Poder Judiciário para decidir.
Entretanto, pretende retomar a possibilidade da extinção desse direito no caso de o habitador vier a se casar
novamente ou integrar nova união estável, ou seja, em verdadeiro retrocesso, admitindo condições resolutivas ao
direito, sem observar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial,
incluído o direito à moradia. Por último, de forma positiva, manteve o requisito já existente de recair o direito
real de habitação “relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela
natureza a inventariar, e que pertença exclusivamente ao falecido, ou a este e ao cônjuge sobrevivente”. Tal
redação está em consonância com os entendimentos jurisprudenciais expostos neste trabalho, em especial quanto
ao imóvel em condomínio indiviso. Ressalta-se, todavia, que a utilização da expressão “imóvel destinado à
residência da família” poderá fazer incidir a controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre o conceito de
família e quais membros são necessários para se formar o núcleo familiar, no intuito de dar ou retirar o direito a
entidades familiares ainda à margem do Direito de Família.
456
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
457
“O direito de usufruto legal sucessório derivou da denominada quota uxória do Direito Romano (Novellae
115) e somente existia com a finalidade de resguardar economicamente o cônjuge sobrevivente ou o
companheiro necessitado, (...)” (CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 441)
458
A natureza jurídica do instituto foi fortemente debatida entre os doutrinadores da época. Para alguns, tratavase de direito alimentar, situado no direito de família. Contudo, prevaleceu na doutrina o entendimento de se tratar
de direito subjetivo real. Segundo Gustavo Tepedino, “[...] enquanto aqueles usufrutos ex lege possuem
características próprias do direito de família, imiscuindo-se os direitos e deveres do (por assim dizer)
usufrutuário e do (por assim dizer) nu-proprietário, por força da preponderância, naquelas situações jurídica, da
figura do ‘poder jurídico’, verdadeiro ofício de direito privado, nada disso ocorre no usufruto vidual. Neste, ao
contrário, o deferimento beneficia exclusivamente o usufrutuário, refletindo-se nitidamente o direito subjetivo
real, oponível a terceiros e contraposto a obrigações especificamente voltadas para o nu-proprietário, no caso, o
herdeiro da propriedade do bem gravado com o usufruto. Em face dessas circunstâncias, apresenta-se
insustentável a identificação do usufruto do cônjuge supérstite com um direito alimentar de sorte a restringi-lo,
ou até suprimi-lo, de acordo com a capacidade econômica do alimentando, sobretudo na hipótese, frequente em
juízo, em que o morto já houvesse, em vida, beneficiado o usufrutuário com suporte material suficiente a prover
o seu sustento” (TEPEDINO, Gustavo. Usufruto Legal do Cônjuge Viúvo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991,
p. 53-54)
459
“A disposição em análise consagrou como regra geral no ordenamento jurídico brasileiro a previsão do art. 17
do Decreto-Lei 3.200/41 (...), embora em termos menos abrangentes, pois neste diploma legal o usufruto vidual é
concedido em caráter vitalício, enquanto o §1º do art. 1.611 do Código Civil de 1916 prevê referido direito
somente enquanto durar a viuvez do consorte supérstite. A Lei 4.121/62, ao introduzir no §1º ao art. 1.611 do
Código Civil de 1916 (sic), não revogou o mencionado art. 17 do Decreto-Lei 3.200/41. Consoante o disposto no
art. 2º, §2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a lei nova que estabeleça disposições gerais ou
especiais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei anterior. Dessa forma, o art. 1.611, §1º, passou a
ser a regra geral quanto à sucessão entre cônjuges quando o regime de bens não é o da comunhão universal,
enquanto o art. 17 do Decreto-Lei 3.200/41 se tornou uma regra especial, aplicável somente (...) à mulher
455
98
Pela leitura do dispositivo, percebe-se que sua aplicação só era possível quando
preenchidos os requisitos legais, tais como: (i) a existência de casamento válido e eficaz, sem
dissolução da sociedade conjugal; (ii) a regência do casamento por regime diverso da
comunhão universal; e (iii) a permanência no estado de viuvez. Diferenciava-se a proporção
do referido direito, em ¼, com a existência de descendentes460 do falecido ou, em ½, com a
ausência dos primeiros, mas existência de ascendentes.
Com efeito, o cônjuge sobrevivente, casado por regime de bens diverso da comunhão
universal, investia-se do status de herdeiro obrigatório do inventariado. Isso porque sucedia a
título universal461, haja vista recair o direito de usufruto legal sucessório sobre quota-parte da
herança462.
No caso de inexistência de quaisquer desses herdeiros, não haveria a necessidade de
concessão do direito legal de usufruto sucessório, porque o caput do artigo 1.611, do Código
Civil de 1916463 determinava o recolhimento de toda a herança pelo cônjuge sobrevivente.
Fazia-se ressalva a essa hipótese apenas quando o de cujus contemplava terceiros em
disposição de última vontade464.
A respeito de divergência doutrinária e jurisprudencial sobre hipóteses de incidência,
ou não, do usufruto legal sucessório, Ana Luiza Maia Nevares465 leciona:
para alguns, a incidência do instituto depende da necessidade alimentar do cônjuge
supérstite, que só será contemplado se efetivamente se encontrar desamparado em
virtude da morte do consorte. Nessa linha, afasta-se o usufruto vidual se o cônjuge
sobrevivente já foi beneficiado em vida pelo autor da herança através de doações,
nas hipóteses em que o supérstite é contemplado em testamento pelo de cujus e,
ainda, quando o regime de bens do matrimônio é o da comunhão parcial, mas há a
comunicação de aquestos. (...) Tratando-se de reserva do cônjuge não casado pelo
brasileira casada com estrangeiro, ressalvado o disposto no art. 10, §1º, da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro e o art. 5º, inciso XXXI, da Constituição Federal de 1988” (NEVARES, Ana Luiza Maia. Op.
cit., 2015, p. 52-53).
460
O legislador, no artigo 1.611, §1º, do Código Civil de 1916, utilizou a expressão “filhos”, ocasionando
divergência em relação ao quantum do usufruto legal sucessório teria direito o cônjuge sobrevivente. Para
alguns, como Silvio Rodrigues e Orlando Gomes, a interpretação deveria ser a extensiva da lei, lendo a
expressão “filhos” como “descendentes”. Assim, o cônjuge sobrevivente teria direito a ¼ dos bens a título de
usufruto legal sucessório. Para outros, como José Lamartine Côrrea de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz,
interpretava-se a lei restritivamente, a fim de concluir que a expressão “filhos” compreendia apenas filhos. Se na
eventualidade de o falecido ter deixado netos como descendentes, mas não filhos, então, por essa corrente, o
cônjuge sobrevivente teria aumentado seu quantum para ½. Esse mesmo ‘erro’ legislativo foi observado no
artigo 1.790, I, do Código Civil de 2002, melhor exposto na seção 3 deste capítulo.
461
Em sentido diverso, Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes, para quem o cônjuge sobrevivente com o
direito de usufruto legal sucessório deveria ser considerado mero legatário ex lege, sucedendo a título singular,
com a principal consequência de não ter a posse dos bens até o advento da partilha. Por não ter a posse dos bens,
poderia o cônjuge sobrevivente ser obrigado a desocupar o imóvel, onde residiu por toda sua existência de
casado, até que ficassem definidos os bens sob usufruto vidual.
462
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 60.
463
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit..
464
TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., 1991, p. 50.
465
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 54-63.
99
regime da comunhão universal de bens, o usufruto vidual não poderá ser afastado
pela vontade do testador, que deverá respeitá-lo, sob pena da redução das
disposições testamentárias.
Outra divergência sobre o instituto era aquela relativa à base de cálculo que incidiria
o quantum do usufruto legal sucessório. Por uma interpretação literal do artigo 1.611, §1º, do
Código Civil de 1916466, o legislador não teria feito distinção quanto aos bens, sendo,
portanto, a base de cálculo incidente sobre todos aqueles componentes do acervo hereditário,
excluídos os doados em vida pelo falecido para os legitimários467.
Parcela doutrinária majoritária defendia que, apesar de ser a base de cálculo
composta por todos os bens da herança, a incidência do benefício legal apenas recairia sobre
aqueles componentes da parte disponível do falecido468, a teor do artigo 1.723, do Código
Civil de 1916469. Por outro lado, defendia parcela minoritária que
quis o legislador, na forma do preceito em questão, que dupla fosse a devolução
sobre o mesmo bem, de tal maneira que, mantidos os chamados à propriedade, lhes
subtrai a lei civil o uso e a fruição, devolvidos ao cônjuge, temporariamente. Ambos
são chamados simultaneamente, cada qual com direitos diversos, limitados e não
conflitantes sobre o mesmo patrimônio 470.
De forma ainda mais restrita, defendiam alguns que o direito de usufruto legal
sucessório recairia tão somente nos bens adquiridos na constância do casamento, sob pena de
enriquecimento sem causa do beneficiário deste direito, vez que não teria ajudado na
formação daquele patrimônio pré-núpcias471.
Ressaltava-se ainda que, por ser considerado herdeiro o cônjuge supérstite com o
direito de usufruto legal sucessório, poderia ser este excluído da sucessão nas hipóteses
expressas de indignidade e de deserdação previstas no Código Civil de 1916472, observandose sempre a regra da impossibilidade de sua interpretação extensiva473.
No direito de usufruto legal sucessório, ao cônjuge sobrevivente cabia a posse
imediata dos bens amealhados, desde a morte do de cujus até a partilha. Momento no qual se
466
BRASIL. Código Civil de 1916. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>.
Acesso em: 04 abr. 2016.
467
TEPEDINO, Gustavo. Usufruto legal do cônjuge viúvo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 80.
468
Nas palavras de Gustavo Tepedino, em seu livro Usufruto legal do cônjuge viúvo, 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1991, p. 51-52, “[...] igualmente restritiva, entende que a massa da qual se extrai a quota legal é
formada unicamente pelos bens disponíveis, excluindo-se, assim, para efeito de cálculo da quota legal, a metade
do patrimônio que constitui a legítima. Amesquinha-se, por outro lado, o dispositivo, mediante a argumentação
de que este não pode afetar a legítima dos herdeiros necessários, de tal sorte que deva incidir, unicamente, sobre
a parte disponível. Sustenta-se, demais, que, recaindo o usufruto, exclusivamente, sobre a parte disponível, pode
ser, de fácil, proscrito, através de doações ou disposições testamentárias que esgotem o patrimônio hereditário”.
469
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit..
470
TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., 1991, p. 83.
471
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 55.
472
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit..
473
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., p. 62.
100
individualizam, recaindo agora o direito supracitado em bens específicos definitivamente, ou
até o advento de condição resolutiva. Com isso, teria o cônjuge supérstite direito de ação, por
meio das ações possessórias, para defender quaisquer perturbações de sua posse perpetradas
por terceiros, inclusive herdeiros474. Outro bônus seria a isenção pelo cônjuge da caução e do
inventário dos bens em usufruto, a teor de interpretação analógica do artigo 731, II, do Código
Civil de 1916475.
Por outro lado, cabia-lhe o ônus do passivo hereditário limitado a sua quota-parte.
Com base no artigo 736, do Código Civil de 1916476, seria, portanto, responsável o cônjuge
sobrevivente em usufruto vidual pelos “juros da dívida que onerar o patrimônio ou a parte
dele, sobre que recaia o usufruto”477. Frisa Ana Luiza Maia Nevares que essa situação “só vai
ser visualizada nitidamente quando a dívida for cobrada após a partilha de bens, pois,
evidentemente, o usufruto vidual incide no patrimônio que restar depois que todos os débitos
do de cujus estiverem saldados”478. Outro ônus seria a responsabilidade por despesas
ordinárias de conservação dos bens no estado em que os recebeu, bem como por foros,
pensões e impostos reais devidos pela posse, ou rendimento da coisa usufruída479, a teor do
artigo 733, do Código Civil de 1916480.
Interessante notar que, à época, a jurisprudência se orientava no sentido de evitar a
instituição do usufruto legal sucessório sobre todos os bens do espólio, que imporia um
condomínio forçado entre os herdeiros e o cônjuge supérstite. Isso ocasionaria deveras
confusão entre os envolvidos na administração e na posse dos bens. Nessa esteira, o
474
Ibid., p. 64-65.
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
476
Ibid.
477
“As obrigações do usufrutuário, neste caso, dependerão do objeto do usufruto. Incidindo sobre coisa singular,
em princípio, fica isento de responsabilidade sobre os juros da dívida o usufrutuário, não se tratando de despesas
de conservação, mas de encargos da dívida, atinentes ao proprietário. Tratanto-se, ao contrário, de usufruto sore
universalidade patrimonial, responde o usufrutuário pelos juros da dívida que o bem gravado garante, na
proporção de sua quota. Isso porque, neste caso, ele detém uma parte-alíquota do patrimônio, que compreende o
ativo e o passivo”. (TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., 1991, p. 43). Mais à frente, o mesmo autor assevera que “os
juros dos débitos hereditários constituem o ônus de desfrute assim como o capital devido pela herança representa
o ônus da propriedade. Ambos se responsabilizarão ultra vires, além da renda que os respectivos direitos lhes
propriciam, comprometendo-se até o valor da quota-parte, cada qual respondendo de acordo com a natureza da
quota de que são titulares no universum jus do defunto”. (Ibid., p. 70)
478
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 65.
479
“No período de duração do usufruto, ressaltam-se duas obrigações a cargo do usufrutuário: o dever de
conservação da coisa, e o de pagar os impostos, contribuições de condomínios ou os foros. Quanto ao dever de
conservação, impõe-se ao usufrutuário manter o destino econômico do bem e ainda administrá-lo, arcando com
as despesas de reparação e manutenção que a lei classifica de ‘módicas’, vale dizer, nos termos do art. 734 do
Código Civil, aquelas inferiores a dois terços do rendimento líquido anual propiciado pelo bem. Os reparos
superiores a tal quantia, considerados como extraordinários, incumbe ao dono efetuar”. (TEPEDINO, Gustavo.
Op. cit., 1991, p. 42-43)
480
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
475
101
magistrado, utilizando-se da sua discricionariedade prudente e dos limites legais, equacionava
os direitos do usufrutuário e dos herdeiros para definir quais os bens gravados com o ônus real
de usufruto vidual e quais os bens de livre disposição dos herdeiros, em sua propriedade
plena. Na impossibilidade de conciliação desses interesses, admitia-se, inclusive, a venda do
único bem imóvel do acervo hereditário para assegurar o exercício do direito de usufruto legal
sucessório pelo cônjuge481.
Em razão da discussão quanto à natureza jurídica do direito de usufruto legal
sucessório, questionava-se a possibilidade de sua renúncia. Para os que entendiam se tratar de
instituto do Direito de Família, o cônjuge sobrevivente não poderia renunciar a esse direito,
tendo em vista seu caráter alimentar e suas implicações de ordem social. Para os defensores
do usufruto vidual como Direito Real, a renúncia seria validamente viável, tendo, contudo,
que observar seus aspectos legais, isso é, (i) não poderia preceder à abertura do inventário; (ii)
não deveria ser efetuada depois de prática de atos representativos de aceitação, tácita ou
expressa, da herança; e (iii) deveria ser a renúncia expressa, em observância ao princípio da
segurança jurídica482.
Por último, a discussão sobre a natureza jurídica desse instituto também acarretou
consequências para a (im)prescindibilidade da averbação do usufruto vidual na matrícula do
bem imóvel incidente, junto ao Registro de Imóveis. A teor do disposto nos artigos 167, I, nº
7, da Lei de Registros Públicos483 e 715, do Código Civil de 1916484, se fosse considerado
como instituto do Direito de Família, não precisaria de sua averbação na matrícula, ao
contrário se for considerado Direito Real485.
Como dito anteriormente, as Leis nº 8.971/94486 e 9.278/96487 foram responsáveis
pela disciplina e normatização dos direitos inerentes à união estável. No artigo 2º, da L.
8.971/94488, previu o legislador o direito de usufruto legal sucessório para o companheiro
sobrevivente. Este teria referido direito enquanto não constituisse nova união estável ou novas
481
TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., 1991, p. 94.
Ibid., p. 95-96.
483
BRASIL.
Lei
n.
6.015
de
1973.
Disponível
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015compilada.htm>. Acesso em: 10 dez. 2016.
484
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
485
TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., 1991, p. 96-97.
486
BRASIL. Lei n. 8.971 de 1994. Op. cit..
487
BRASIL. Lei n. 9.278 de 1996. Op. cit.
488
BRASIL. Lei n. 8.971 de 1994. Op. cit.
482
em:
<
102
núpcias, diferenciando-se seu quantum, em ¼ e ½, a depender da existência de
descendentes489 ou ascendentes sobrevivos, respectivamente.
As mesmas observações feitas neste trabalho para o direito de usufruto legal
sucessório para o cônjuge supérstite são também aplicáveis para o companheiro sobrevivente.
Destaca-se, todavia, que as legislações extravagantes da união estável receberam
críticas da doutrina, por ter estabelecido, em tese, mais benefícios para os companheiros, se
comparados aos do cônjuge sobrevivente. Segundo Ana Luiza Maia Nevares490,
quanto à sucessão em usufruto, os companheiros estão em situação privilegiada com
relação aos casados sob o regime da comunhão universal de bens, pois o usufruto só
beneficia o cônjuge que não é casado por esse regime, enquanto a Lei 8.971/94
estabelece tal benefício independentemente das relações patrimoniais entre os
companheiros.
Em suma, em razão das divergências no âmbito do Superior Tribunal de Justiça491
sobre a eficácia normativa das leis extravagantes da união estável e do Código Civil de 1916
em relação ao cônjuge sobrevivente, não se sabe acerca de suas aplicações no ordenamento
jurídico vigente. Defende-se que não serem mais aplicáveis os artigos 1.611, §1º, do Código
Civil de 1916 e 2º, I e II, Lei nº 8.971/94, pelo advento do Código Civil de 2002, que conferiu
tratamento específico para o cônjuge, com aplicação jurisprudencial estendida para o
companheiro sobrevivente492. Entretanto, o estudo de ambos os institutos em suas
modalidades para o cônjuge ou o companheiro sobrevivente é fundamental para se
compreender a estrutura do ordenamento jurídico, bem como desenvolver casos concretos no
dia-a-dia forense.
489
Aqui, o legislador novamente se utilizou da expressão “filhos”, ocasionando divergência em relação ao
quantum do usufruto legal sucessório do companheiro sobrevivente. Para melhor explicação sobre a matéria,
observar a seção 3 deste capítulo.
490
NEVARES, Ana Luiza Maia. Op. cit., 2015, p. 83.
491
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.329.993/RS. Relator: Ministro Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneric
a&num_registro=201002222363>. Acesso em: 27 nov. 2016.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.436.350/RS. Relator:
Ministro
Paulo
de
Tarso
Sanseverino.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneric
a&num_registro=201400395495>. Acesso em: 27 nov. 2016.
492
Luiz Paulo Vieira de Carvalho entende “não mais subsistir o usufruto legal causa mortis quanto aos
falecimentos ocorridos a partir da entrada em vigor do novo diploma substantivo civil. Aliás, o benefício legal
em tela perdeu o sentido e a necessidade prática, tendo em vista que o cônjuge e o companheiro foram
minuciosamente contemplados em propriedade, direito real por excelência, em relação ao patrimônio do de
cuius, pelo supramencionado diploma, a não ser que lhes falte, in concreto, legitimidade para tanto”.
(CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 440-441)
103
4. PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO PATRIMONIAL: OBJETIVOS, LIMITES E
INSTRUMENTOS
Neste capítulo, apresenta-se inicialmente o conceito de planejamento sucessório a
fim de destacar seus principais objetivos e limites. Em seguida, analisam-se os instrumentos
jurídicos existentes no atual ordenamento jurídico para, no capítulo 5, solucioná-los com
intuito de atingir os objetivos do planejamento sucessório dos casos hipotéticos, apresentados
no capítulo 1.
4.1. Conceituação de planejamento sucessório patrimonial: objetivos e limites
Para se conceituar planejamento sucessório, faz-se necessário entender o instituto
jurídico da partilha de bens, visando a conhecer as bases para a distribuição volitiva do
patrimônio próprio para os herdeiros legais antes do advento morte.
Clóvis Bevilaqua, autor do anteprojeto do Código Civil de 1916, define a partilha
como sendo “a divisão dos bens da herança segundo o direito hereditário dos que sucedem, e
a consequente e imediata adjudicação dos quocientes assim obtidos aos diferentes
herdeiros”493.
A partilha é fase processual do procedimento de inventário, na qual se identifica
concretamente o quinhão de herdeiro beneficiado por herança e se promove sua efetiva
transferência aos respectivos titulares, a teor do artigo 2.017, do Código Civil de 2002494,
findando a fictícia indivisibilidade dos bens componentes do acervo hereditário, com base nos
princípios da unicidade e da saisine.
Então, “a partilha representa (...) a repartição, divisão ou distribuição das relações
jurídicas deixadas pelo falecido entre os diferentes herdeiros, na proporção dos respectivos
direitos hereditários”495 e tem natureza jurídica declaratória, e não constitutiva de propriedade.
Isso porque se transmite o patrimônio aos herdeiros no momento da morte. Presume-se daí a
assertiva de serem os efeitos da sentença homologatória de partilha, amigável496 ou judicial497,
493
BEVILAQUA apud RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: direito das sucessões. V. 7. 21. ed. São Paulo:
Saraiva, 1997, p. 245.
494
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
495
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 476.
496
Poderá ser feito o inventário por meio de partilha amigável, quando os herdeiros forem maiores e capazes e
houver consenso entre eles, não se mencionando a existência ou não de testamento do inventariado no caso
concreto. Importante ressaltar que, com o advento da Lei nº 11.441/07, criou o legislador a partilha extrajudicial,
que tem como requisitos a maioridade dos beneficiários, o seu consenso e a inexistência de testamento do
104
retroativos – ex tunc - à data do falecimento, conforme o artigo 1.784, do Código Civil de
2002498.
Entendida a partilha, passa-se ao planejamento sucessório propriamente dito,
compreendendo sua conceituação e seus objetivos e limites.
Até os dias de hoje, predomina na sociedade brasileira o desinteresse do indivíduo
pelo destino de seu patrimônio acumulado durante toda sua vida, bem como pela forma, e
suas consequências, da distribuição patrimonial aos herdeiros após sua morte499. Com essa
atitude passiva, o processo sucessório, desgastante temporal, financeira e emocionalmente,
implica conflitos entre os herdeiros e a deterioração do acervo patrimonial.
Ressaltam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald500 que
[...] a potencialidade de beligerância entre os herdeiros se agrava nos tempos
cotidianos quando se lembra que os descendentes de uma pessoa não sempre são
filhos dos mesmos pais. A pluralidade de entidades familiares, a facilitação do
divórcio, a proteção avançada da união estável são elementos facilitadores do
inventariado. A regra da inexistência do testamento foi mitigada com a entrada em vigor do Provimento nº
37/2016, da Corregedoria Geral de Justiça, em que se permite o inventário extrajudicial, mesmo com existência
de disposição de última vontade, desde que haja o incidente processual de Abertura, Cumprimento e Registro do
Testamento e, em seguida, a autorização judicial daquele juízo prevento para o prosseguimento em sede
extrajudicial do inventário e partilha dos bens deixados. Com isso, questiona-se doutrinariamente se a aplicação
do novo instituto jurídico é obrigatória ou facultativa, ou seja, preenchidos os requisitos da partilha extrajudicial,
os herdeiros serão obrigados a utilizar o novo procedimento, administrativo, ou poderão optar pela partilha
amigável, judicial, para partilhar os bens arrecadados na herança? De fato, a referida lei não traz nesse sentido
norma expressa de observância obrigatória, podendo, em tese, as pessoas escolherem qual regime jurídico irão se
submeter, argumentando-se pela liberdade de escolha dos indivíduos e pelo custo inicial maior do procedimento
administrativo, quando a realidade social é de descapitalização e de superendividamento. Por outro lado, a
justificativa legislativa para a criação desse procedimento administrativo foi justamente desinchar o Poder
Judiciário, em especial as Varas de Famílias e as de Órfãos e Sucessões, como também atender aos princípios da
celeridade e da dignidade da pessoa humana, na medida em que, na teoria, a partilha extrajudicial atende aos
anseios da sociedade e dos herdeiros para a regularização da transferência patrimonial no curto prazo. Assim,
argumenta-se a obrigatoriedade da via extrajudicial, prevista na Lei nº 11.441/07, preenchidos os requisitos,
posto (i) efetivar a observância dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da celeridade e da
economia processual; e (ii) desinchar o Poder Judiciário, em especial as varas competentes do assunto, em
observância ao movimento social de desjudicialização de problemas em contraponto à cultura brasileira de
utilização em exagero do direito constitucional de ação.
497
Quanto à partilha judicial, são critérios para sua aplicação obrigatória a existência de incapaz ou o dissenso
entre as partes envolvidas. O primeiro requisito fundamenta-se pela defesa do interesse de incapaz, que não está
apto, temporária ou definitivamente, a exprimir sua vontade e defender seus interesses. Com isso, haverá a
designação de representante ou tutor, a depender da espécie de incapacidade, bem como a presença do Ministério
Público como fiscal da ordem jurídica. Já o segundo requisito é baseado na necessidade de haver magistrado
para impor a vontade legislativa e decidir sobre a lide instaurada.
498
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
499
Nas palavras de Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, “por medo ou egoísmo, muitos não se
interessam pelo tema da própria morte. Não é um problema para eles, mas para os filhos e, havendo, para outros
herdeiros. Eles que resolvam, quando a hora chegar. Não há dúvida que, na grande maioria dos casos, é o melhor
a fazer: patrimônios pequenos, com poucos bens, famílias simples, com poucos herdeiros, podem não preocupar.
Mas há sempre um risco e é tolo achar que tudo se resolverá bem no fim das contas, ainda que se estranhem um
pouco com isso ou aquilo. O problema é que a sucessão pode se tornar o fato negativo na vida de uma família,
no ponto em que as coisas desandam e nunca mais voltam a ser como antes”. (MAMEDE, Gladston; MAMEDE,
Eduarda Cotta. Planejamento sucessório: introdução à arquitetura estratégica, patrimonial e empresarial, com
vistas à sucessão causa mortis. São Paulo: Atlas, 2015, p. 2)
500
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit, 2015c, p. 38.
105
recasamento ou da constituição de união estável. Sob o ponto de vista sucessório,
contudo, em casos tais, não é incomum notar um acirramento da situação, por conta
da existência de diferentes interesses jurídicos das partes envolvidas.
Em que pese não trazer felicidade o patrimônio líquido ou ilíquido, mostra-se
importante, seja emocional ou financeiramente, a sua manutenção para os indivíduos
agraciados pela transmissão sucessória, justificando a adoção de providências e de
instrumentos jurídicos para tanto. Caso o futuro inventariado se conscientize e opte pelo
planejamento sucessório patrimonial, haverá o diálogo entre o Direito e a Economia, à luz da
análise econômica do Direito, em que se compreende em detalhe os institutos jurídicos
utilizados e envolvidos, “a partir dos influxos da economia e do mercado”501.
Por isso, diante da sociedade pluralista, urge o estabelecimento de “estratégias e
soluções antecipadas para a administração do patrimônio que será transmitido posteriormente
pela via sucessória, evitando conflitos de interesses entre os herdeiros” 502.
Assim, conceitua-se planejamento sucessório503 como a partilha realizada pelo futuro
inventariado antes de sua morte, por objetivos e instrumentos diversos – ainda a serem
analisados neste capítulo -, a fim de transmitir seu acervo patrimonial e evitar conflitos
hereditários e deterioração dos bens.
Quanto aos objetivos, inúmeras são as razões para se realizar o planejamento
sucessório patrimonial, sendo as hipóteses mais comuns (i) a destinação racional e a
preservação de bens; (ii) a preservação da atividade empresarial familiar; (iii) a liberação
rápida de recursos e ativos; (iv) a prevenção de discussões sucessórias e de disputa pela
herança; e (v) a proteção de herdeiros ou terceiros. Ressalta-se que esses objetivos podem ser
cumulados em um único planejamento sucessório patrimonial, os quais casuisticamente irão
moldá-lo504.
Quanto aos limites do planejamento sucessório patrimonial, há (i) o direito do
herdeiro necessário; (ii) as alterações familiares; (iii) as mudanças legislativas ou
interpretativas do Direito Sucessório, Familiar e Tributário; e (iv) as mutações patrimoniais505.
Este trabalho adverte sobre as consequências dessa atitude pacífica do futuro
inventariado, haja vista as controvérsias apresentadas no capítulo 3 quanto à sucessão do
501
Ibid., p. 38.
Ibid., p. 39.
503
Considera-se planejamento sucessório como gênero, do qual a partilha em vida é espécie. Esse tema será
melhor abordado e aprofundado em trabalho ainda em elaboração, sob o título “Partilha em Vida à Luz do
Direito Civil-Constitucional”, de mesma autoria, em cumprimento a requisito do Curso de Pós-Graduação em
Direito de Família e Sucessões da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.
504
SALES, Plínio César dos Santos. Planejamento Sucessório Patrimonial. 2009. 45 f. Trabalho monográfico
(Graduação em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 19-23.
505
Ibid., p. 23-27.
502
106
cônjuge e do companheiro sobrevivente. Busca ainda conscientizar o indivíduo e incentivá-lo
à realização de planejamento sucessório de seu acervo patrimonial, com a utilização de
instrumentos jurídicos a seguir apresentados.
4.2. Instrumentos jurídicos existentes no atual ordenamento jurídico
Para a efetivação do planejamento sucessório patrimonial com observância de seus
objetivos e limites, analisam-se a seguir os instrumentos jurídicos existentes no atual
ordenamento jurídico506.
4.2.1. Testamento
Define-se esse instrumento de planejamento sucessório como sendo “modalidade de
negócio jurídico unilateral, personalíssimo, formal, revogável, mortis causa, cujo objeto é a
destinação de bens, para pessoas físicas ou jurídicas, respeitada a quota dos herdeiros
necessários, ou disposição de natureza não econômica, expressamente admitida em lei”507.
Considera-se ato unilateral, por ser forma de declaração de vontade apenas do
testador, sem necessidade de outras manifestações volitivas para se conferir efeitos no mundo
jurídico. É considerado ato personalíssimo, pela imposição legal de emanação de vontade do
próprio testador, sendo inconcebível para a produção de efeitos testamento advindo de
procurador ou representante legal com poderes específicos. É solene, porque o ordenamento
jurídico impõe a observância de forma especial e requisitos para a produção de efeitos. É
revogável, por sua própria natureza, eis que a vontade do testador pode ser volúvel e mudar a
qualquer tempo, independente de justificativa. É mortis causa, haja vista que seus efeitos
apenas se produzem após a morte do declarante, ou seja, com a abertura da sucessão, pelo
princípio da Saisine508.
A respeito da capacidade testamentária ativa, o Código Civil de 2002, em seu artigo
1.860509, dispôs que podem fazê-lo aqueles com discernimento para tanto, abrindo a
506
Para fins deste trabalho, não foram abordados os instrumentos codicilo, legado e fundos de investimento, por
limitação de espaço. Para um aprofundamento sobre questões relativas a esses temas, sugerem-se os trabalhos de
Paulo Nader, no livro Curso de Direito Civil: direito das sucessões. V. 6. 7. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2016” e Mário Tavernard Martins de Carvalho, no livro “Regime Jurídico dos Fundos de Investimento.
São Paulo: Quartier Latin, 2012”.
507
NADER, Paulo. Op. cit, 2016b, p. 230.
508
Ibid., p. 232-235.
509
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
107
possibilidade para os maiores de dezesseis anos. Em relação aos incapazes, esse artigo deve
ser interpretado em conjunto com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que, em seu artigo
123, II510, reformulou a Teoria da Incapacidade no Direito Civil. A capacidade de testar é a
regra, enquanto a incapacidade a exceção, sendo assim incumbe a quem suscitar a
incapacidade o ônus de sua prova.
Para Luiz Guilherme Loureiro511,
em outras palavras, a ausência de interdição não impede que os interessados possam
comprovar que, no momento da feitura do testamento, o testador não era capaz de
exprimir sua vontade livre e consciente por enfermidade ou deficiência mental e,
assim, pleitear a nulidade do ato. Obviamente, o testamento feito por quem já estava
interditado é nulo de pleno direito, ainda que tal pessoa aparentasse estar no gozo de
suas faculdades mentais, visto que a interdição é uma declaração insofismável de
insanidade. A interdição posterior ao testamento, entretanto, não significa, por si só,
que a pessoa era incapaz de testar. Não se pode presumir tal fato, cabendo aos
interessados prova plena de existência de enfermidade mental no momento da
lavratura do testamento.
O Código Civil de 2002 prevê espécies de testamento, sendo ordinárias o público, o
cerrado e o particular; e especiais o marítimo, o aeronáutico e o militar. Neste trabalho, atémse a enumerar essas espécies, sem adentrar em seus pormenores e especialidades, advertindose, apenas, que cada qual tem seus requisitos e formas legais para sua validade.
Em geral, aqueles não afeitos ao Direito entendem que o objetivo do testamento seja
apenas dirimir acerca das formas e da destinação patrimonial do testador. Contudo, além
desse objetivo precípuo, há outros tantos fins, como, por exemplo, as disposições
existenciais512 (testamento vital513, doação de órgãos, doação do corpo, cremação, etc.).
Além das cláusulas expressivas da vontade do testador, há também aquelas impostas
aos herdeiros testamentários restritivas dos direitos de propriedade, chamadas de cláusula de
inalienabilidade, impenhorabilidade514 e incomunicabilidade515.
A cláusula de inalienabilidade, imposta em testamento pelo futuro inventariado,
impede o herdeiro de dispor do bem recebido, em especial no aspecto de sua
510
BRASIL. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 04 jun. 2017.
511
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 7. ed. rev. atual. ampl. Salvador:
juspodivm, 2016, p. 1.084.
512
Sobre o assunto, recomenda-se a leitura do livro “A função promocional do testamento” de Ana Luiza Maia
Nevares.
513
Recomenda-se o aprofundamento na matéria por meio do livro “Testamento Vital” de Luciana Dadalto.
514
Consiste na impossibilidade, por meio do gravame, de o imóvel se penhorado, por ato de liberalidade ou por
constrição judicial, em razão de dívidas contraídas pelo titular de propriedade, ressalvadas as hipóteses legais de
obrigação propter rem e de dívidas anteriores à sua instituição.
515
Consiste no impedimento de o bem doado ou herdado favorecer por comunicabilidade de regime de bens no
casamento ou na união estável o cônjuge ou o companheiro.
108
transmissibilidade516. Dividem-se os doutrinadores a respeito da exclusividade dessa cláusula
em negócios gratuitos517.
Incide a respectiva cláusula tanto sobre bens imóveis, mais comum no dia-a-dia
forense e registral, quanto sobre bens móveis518, sendo imprescindível sua averbação na
matrícula do imóvel a fim de se proteger terceiros desavisados, a teor do artigo 979, do
Código Civil de 2002519.
Quanto à sua natureza jurídica, existem três teorias a explicar a cláusula de
inalienabilidade. Na primeira, denominada teoria da incapacidade do proprietário, o
impedimento para alienar o bem gravado com cláusula de inalienabilidade é vinculado ao
próprio proprietário, e não ao bem, eis que aquele é impedido de vendê-lo. Pela segunda, a
cláusula de inalienabilidade é, em verdade, uma obrigação de não alienar ou não fazer do
proprietário. Por último, pela terceira teoria, trata-se de uma indisponibilidade real do bem,
sendo esta majoritariamente aceita520.
Classifica-se a cláusula de inalienabilidade quanto à extensão, podendo ser relativa,
ao permitir a venda de alguns bens por pessoas específicas em situações impares e/ou apenas
parte do patrimônio transmitido é inalienável, ou absoluta, quando o testador grava todos os
bens transmitidos após sua morte com esse gravame; e quanto à duração, podendo ser
vitalícia, ao perdurar a limitação ao direito de dispor do bem enquanto durar a vida do
beneficiário521, ou temporária, quando viger por tempo determinado e inferior à vida do
beneficiário.
516
“A cláusula de inalienabilidade sempre sofreu contundentes críticas doutrinárias em função de seus efeitos.
Nessa direção, afirma-se que consiste em instrumento que implica restrição desmedida à livre circulação de
riquezas, contrária, pois, aos interesses da economia. Asseverou-se, ainda, que comportaria verdadeira
desnaturalização do domínio, vez que extirparia do proprietário a faculdade de dispor do bem, o que não se
coadunava com o conceito de propriedade. O instituto, assim, serviria apenas para propiciar fraudes, não se
justificando sua previsão no sistema legislativo pátrio. Tais críticas levaram à construção do entendimento
segundo o qual a cláusula de inalienabilidade se consubstanciaria em condição ilícita, justamente por sua
incompatibilidade com o domínio”. (ABÍLIO, Vivianne da Silveira. A Cláusula de inalienabilidade e motivação.
Civilistica, a. 2. n. 4, 2013, p. 5)
517
Pela possibilidade, Caio Mário da Silva Pereira, em Instituições de Direito Civil: direitos reais. V. 4. 20 ed.
rev. atual. Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho (atual.). Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 91. No sentido pela
possibilidade de instituição dessa cláusula em negócios onerosos, sob o fundamento da autonomia da vontade,
Álvaro Villaça Azevedo.
518
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo no Recurso Especial n. 298.585/SP.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1349092&num_regi
stro=201300415387&data=20140923&formato=PDF>. Acesso em: 08 mai. 2017.
519
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
520
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 463-464.
521
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.101.702/RS. Relator: Ministra Nancy Andrighi.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=915061&num_regist
ro=200802514191&data=20091009&formato=PDF>. Acesso em: 08 mai. 2017.
109
Antes de se adentrar nos efeitos da cláusula de inalienabilidade, entende o Superior
Tribunal de Justiça522 que os efeitos das cláusulas restritivas só se operam, quando da
transmissão do bem, no caso de inexistir dívidas contraídas, em razão da posterior
configuração de fraude aos credores523. Isso se justifica, ademais, por ser transmitida apenas a
herança líquida aos herdeiros, a teor do artigo 1.977, do Código Civil de 2002524.
O primeiro efeito é a própria proibição de alienar os bens transmitidos com a
cláusula restritiva, arrancando-se do seu titular a capacidade de dispor de seu patrimônio525.
Nesse sentido, incompatível a constituição de hipoteca e de penhor em respectivo imóvel com
a cláusula restritiva, eis que o inadimplemento de sua contraprestação acarreta a alienação da
coisa como garantia da dívida.
Por outro lado, entende-se compatível a instituição de outros direitos reais, previstos
no artigo 1.225, do Código Civil de 2002, sobre o imóvel gravado, posto que o seu titular
mantém as outras características da propriedade, exceto da disponibilidade. Dessa forma,
conforme se percebe, a restrição se impõe ao titular, sendo perfeitamente possível, portanto, a
usucapião por terceiro do bem gravado526.
A cláusula de inalienabilidade pode ser tanto instituída na disponível, quanto sobre a
legítima do testador, desde que, neste último caso, haja justa causa, a teor do artigo 1.848, do
Código Civil de 2002527. Contudo, o conceito de justa causa é aberto, compreendendo
diversas interpretações doutrinárias, jurisprudenciais, registrais, mas todas casuísticas.
522
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 998.031/SP. Relator: Ministro Humberto Gomes
de
Barros.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=746190&num_regi
stro=200500722904&data=20071219&formato=PDF>. Acesso em 01 jun. 2017.
523
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 384.
524
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
525
Nesse sentido, dispôs o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 856.699/MG: “A cláusula de
inalienabilidade implica num ônus real que limita o direito de propriedade, impedindo temporariamente o
exercício do direito de dispor da coisa. Na hipótese da doação, essa indisponibilidade parcial pode ser revogada
mediante mútuo consenso das partes envolvidas na liberalidade, livrando o bem do gravame. Tal circunstância
evidencia que, havendo a instituição da cláusula, o doador retém o exercício de parte do direito de dispor da
coisa, ainda que necessite da aquiescência do donatário para tanto. Daí exsurge o direito latente do doador de
preservar os efeitos da cláusula até a ocorrência do termo ou condição que lhe imponha fim. Nesse contexto, se
afigura razoável admitir que o doador faça uso dos embargos de terceiro na defesa do direito de ver declarada a
nulidade da penhora incidente sobre bem por ele gravado com cláusula de inalienabilidade. Mesmo que idêntica
tutela possa ser obtida via ação declaratória autônoma, não há porque privar o doador da utilização dos embargos
de terceiro, medida mais célere e eficaz, que se coaduna com os princípios da instrumentalidade das formas, do
aproveitamento dos atos processuais, da economia e da celeridade do processo”. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=866407&num_regi
stro=200601292696&data=20091130&formato=PDF>. Acesso em: 02 mai. 2017
526
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 384. Também nesse sentido, o
Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 418.945, da relatoria do Ministro Ruy Rosado de Aguiar.
527
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
110
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald528 trazem três questionamentos a
respeito da clausulação da legítima:
primus, surge a necessidade de esclarecer a consequência da não comprovação da
justa causa apontada pelo testador no instrumento. Se a motivação apontada não
restar provada judicialmente, qual o tratamento a ser dedicado à cláusula? (...) Sem
dúvida, (...), afasta-se o gravame imposto, deixando o bem livre e desembaraçado.
(...) O caso é de mera ineficácia da cláusula, que será tida como não escrita.
Secundus, (...) seria permitido ao magistrado rechaçar ex officio a cláusula restritiva,
independentemente de provocação do interessado ou do Ministério Público, quando
atuar no processo? É induvidoso que, em situações limítrofes, não se pode negar ao
julgador a possibilidade de adotar providências de ofício, quando já provocado.
Assim, no curso do inventário poderá, (...), declarar a insubsistência de uma cláusula
restritiva, percebendo a falta de justa. Tertius, outra palpitante controvérsia trata da
constitucionalidade da gravação da legítima. (...) violaria essa garantia restringir a
extensão dos seus poderes sobre a coisa? Uma reflexão inicial se inclina por afirmar
que, pertencendo a legítima de pleno direito aos herdeiros necessários (CC, art.
1.846), a eles deveria ser repassada nas condições em que estão os bens. (...) Lado
outro sustenta (...) inexistir incompatibilidade entre a clausulação excepcional da
legítima e o texto magno porque ‘decorrem da tutela da herança como direito
fundamental e da liberdade individual do instituidor, como incremento da dignidade
humana nas relações privadas’ [...]”.
Sobre o primeiro e o segundo questionamento levantado pelo jurista e a sua
consequência, apesar de seu ponderamento, critica-se tal posicionamento. Isso porque a
comprovação fática individualizada da justa causa no dia-a-dia registral e forense é quase
impossível, para não se falar completamente. O Tabelião de Notas, em seu ato privativo de
lavrar testamento, não pode se imiscuir nos motivos da imposição da cláusula restritiva sobre
a legítima. Em geral, o testador requer a previsão da restrição, apresentando justificativa
genérica, aposta no testamento. O magistrado, por sua vez, no incidente processual de
abertura, registro e cumprimento do testamento, observa se foram cumpridas as formalidades
legais para a lavratura do testamento, e o Ministério Público, se há vícios intrínsecos e
extrínsecos529, a teor do artigo 735, §2º, do Código de Processo Civil de 2015530. Dentre cada
função dos representantes do Estado de Direito, nenhuma delas diz respeito ao
questionamento da justa causa, até por ser questão de foro íntimo do testador, em que não se
tem parâmetros para sua aferição531.
528
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 387.
“A tendência que se pode verificar é a de que se deve primar pela conservação do negócio jurídico, desde que
seja possível afirmar, por um mínimo de requisitos do ato, que aquela era a vontade do testador. (...) o Superior
Tribunal de Justiça consolidou o entendimento firmado desde sua constituição de que ‘não se deve alimentar a
superstição do formalismo obsoleto, que prejudica mais do que ajuda. Embora as formas testamentárias operem
como jus cogens, entretanto a lei da forma está sujeita a interpretação e construção apropriadas às
circunstâncias’, em outras palavras, ‘o ritualismo não merece ser erigido como um fim em si mesmo”. (BRITO,
Laura Souza Lima e. Espécies de Testamento Ordinário e Hermenêutica Testamentária. In: SILVA, Regina
Beatriz Tavares; CAMARGO NETO, Theodureto de Almeida. Op. cit., 2014, p. 245).
530
BRASIL. Código de Processo Civil de 2015. Op. cit.
531
“No entanto, o ínclito Pontes de Miranda, em posição à qual nos filiamos, manifesta-se no sentido de que,
nessa hipótese, deve ser interpretada a cédula testamentária com a finalidade de verificar o fundamento da
restrição advinda da referida cláusula, prevalecendo, assim, a vontade do testador quando da confecção da
529
111
Assim como justa causa é um conceito indeterminado532, a comprovação da justa
causa também o é, impossibilitando-se faticamente a tomada de decisão pelo magistrado, por
falta de fundamentação legal, bem como o consequente afastamento da cláusula.
Isso não quer dizer que esses órgãos do Estado de Direito, entre eles o Ministério
Público, não tenha “liberdade e independência para verificar aquela consequência que melhor
realiza a legalidade e a justiça, na esteira das ponderações de interesses (...)”533.
Para Ana Luiza Maia Nevares534,
por conseguinte, não estará o Ministério Público adstrito à vontade declarada no
testamento, podendo investigar as exigências dos fins sociais e do bem comum que o
caso concreto requisitar, ainda que tenha que opinar em sentido contrário às
determinações testamentárias, hipótese na qual deverá justificar seu parecer em
interesse que, naquelas circunstâncias, seja considerado superior ao do testador.
Assim, diferencia-se a posição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,
em que se deve buscar a comprovação da justa causa para a subsistência da cláusula de
inalienabilidade, criticada neste trabalho, da posição de Ana Luiza Maia Nevares, que defende
o afastamento da cláusula em hipótese de maior legalidade e justiça. A justa causa, requerida
pelo Código Civil de 2002, é de fundamental importância para a mantença da vontade do
testador535, mas não se deve perquirir sua comprovação, mas apenas contrastá-la com
eventuais situações que figurem princípios fundamentais a serem ponderados, como se verá
adiante.
oneração, o que será fundamental para verificar se a cláusula subsistirá ou não. A propósito, vejamos: ‘se o
herdeiro ou legatário morre antes do testador, ou se renuncia à herança, ou dela foi excluído, ou, ainda, se não1
se verifica a condição sob a qual foi nomeado, tem-se de interpretar a verba testamentária, para se saber se
acompanha o bem que vai ao coerdeiro, ou ao colegatário conjunto, ou ao substituto (arts. 1.710 e 1.712), ou aos
herdeiros do remanescente. Para isso, cumpre que se verifique se o fundamento da restrição de poder foi a pessoa
do nomeado (cláusula restritiva relativamente objetiva), ou o interesse do disponente quanto ao bem (cláusula
restritiva absolutamente objetiva), ou o interesse de terceiro que haja de subsistir com a mudança de pessoa do
beneficiado (cláusula restritiva objetiva, absoluta por ser em relação a outrem). Só no primeiro caso, a restrição
de poder depende da pessoa nomeada’. (CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 470).
532
“Vale ressaltar que a validade da cláusula restritiva estará sempre submetida à análise da permanência dos
motivos que a justificaram. (...) Isso significa dizer que a permanência da inalienabilidade deve coincidir com a
manutenção de sua causa justificadora. Assim, uma vez ausente a motivação outrora existente, deve a cláusula
restritiva ser imediatamente levantada. Em outras palavras, só se justifica o gravame enquanto perdurar a causa
que o tornou legítimo à luz dos valores constitucionais. É neste sentido, portanto, que deve ser compreendido o
conceito de justa causa disposto no art. 1.848 do Código Civil, que deve ser irradiado também para as hipóteses
nas quais o testador grava a sua quota legítima, sob pena de não haver justificativa para o gravame com
fundamento constitucional, com evidente violação à propriedade como instrumento para a promoção de valores
fundamentais”. (NEVARES, Ana Luiza Maia. A Função Promocional do Testamento: tendências do direito
sucessório. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 249-250)
533
Ibid., p. 308.
534
Ibid., p. 308.
535
“[...] o testamento é instrumento que deve desempenhar uma função positiva no ordenamento jurídico, a
saber, a realização da dignidade da pessoa humana, através da ponderação dos princípios da liberdade e da
solidariedade. Trata-se do negócio por meio do qual o legislador faculta ao particular estabelecer disposições
cujos efeitos serão produzidos após a sua morte, que contém uma eficácia múltipla, servindo, portanto, a
diversos objetivos do testador”. (Ibid., p. 311).
112
O rigor do gravame sobre o bem imóvel foi relativizado pelo próprio legislador no
artigo 1.911, parágrafo único, do Código Civil de 2002536, quando permite, mediante
autorização judicial, a venda do imóvel gravado, desde que se converta o seu produto em
outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros.
Excepcionalmente, dispensa-se o gravame, total ou parcialmente, ao se constatar
estarem sendo as cláusulas restritivas da propriedade imobiliária ônus exacerbado para o
herdeiro, novo titular do bem gravado, em especial ao ferir princípio constitucionais da
dignidade da pessoa humana, do mínimo existencial e da função social da propriedade537.
Nesse sentido, entendeu o Superior Tribunal de Justiça pela “necessidade de
interpretação da regra do art. 1576 do CC/16 com ressalvas, devendo ser admitido o
cancelamento da cláusula de inalienabilidade nas hipóteses em que a restrição, no lugar de
cumprir sua função de garantia de patrimônio aos descendentes, representar lesão aos seus
legítimos interesses”538.
Outro exemplo, também de acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça539,
conquanto admissível temperar-se o disposto no art. 1.676 do Código Civil anterior,
de modo a ser eventualmente possível, em circunstâncias excepcionais, atenuar as
cláusulas de impenhorabilidade e inalienabilidade impostas pelo doador, para evitar
prejuízo aos donatários, é necessário que as justificativas apresentadas convençam as
instâncias ordinárias, o que, no caso, não ocorreu, porquanto se o imóvel é velho e
necessita de reparos, impedindo a auferição de lucro, a solução aberta pelo Tribunal
a quo, de autorização de venda vinculada à aquisição de outro, com sub-rogação da
cláusula, se afigurou mais harmônica com a necessidade dos requerentes e a vontade
do doador, mas aqueles por ela não se interessaram, resultando no indeferimento do
pleito.
Com o advento do Novo Código Civil, todos os testamentos lavrados anteriormente à
sua vigência e ainda não implementados obtiveram o prazo de um ano para se adequar à
obrigatoriedade da justa causa na cláusula restritiva de inalienabilidade, sob pena de sua
ineficácia, conforme o artigo 2.042, do referido diploma legal540.
Em caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, o testamento, lavrado em 1983,
versava exclusivamente sobre gravame da cláusula de incomunicabilidade em todos os bens
pertencentes ao seu patrimônio, não tendo sido apresentada justa causa após a vigência do
536
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit..
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 477.
538
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.422.946/MG. Relatora: Ministra Nancy
Andrighi.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1318946&num_regi
stro=201303987091&data=20150205&formato=PDF>. Acesso em: 04 jun. 2017.
539
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 327.156/MG. Disponível em: <
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=505314&num_regist
ro=200100614470&data=20050209&formato=PDF>. Acesso em: 02 mai. 2017.
540
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
537
113
Código Civil de 2002541. Além do gravame, instituiu o testador cláusula instituidora de
testamenteiro, com previsão remuneratória pelos serviços prestados nesta função. No
momento da partilha, os herdeiros pleitearam a inaplicabilidade da vintena, ante à ineficácia
testamentária. O Superior Tribunal de Justiça decidiu pela aplicação da remuneração, porque
“tendo o testamenteiro se manifestado nos autos aceitando o encargo, passou a intervir no
feito defendendo o cumprimento da disposição testamentária que gravava os bens imóvel,
com cláusula de incomunicabilidade”542.
A teor da Súmula 49, do Supremo Tribunal Federal543 e do artigo 1.911, do Código
Civil de 2002544, “a cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade,
implica impenhorabilidade e incomunicabilidade”.
Dessa forma, não se alonga no presente trabalho acerca das outras duas cláusulas
restritivas, por dever se observar as mesmas regras, lembrando ser possível a instituição
autônoma da impenhorabilidade e da incomunicabilidade, sem a inalienabilidade.
Por fim, cabe trazer novidade jurídica quanto a esse instrumento. Até pouco tempo, a
existência de testamento do inventariado importava necessariamente a realização de
inventário judicial, com a consequente demora de seu trâmite no Poder Judiciário. Ocorre que,
em meados de 2016, a Corregedoria Geral de Justiça, em seu provimento nº 37/2016, deu
nova redação ao item 129 e subitens, do capítulo XIV, das NSCGJ, segundo o qual “diante da
expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e
cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser
feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro
imobiliário”545.
Dentre todos os instrumentos de planejamento sucessório existente, aquele
considerado de mais fácil acesso para toda a população brasileira é sem dúvida o testamento,
em quaisquer de suas espécies.
541
Ibid.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.207.103/SP. Relator: Ministro Marco Aurélio
Bellizze.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1371799&num_regi
stro=201001435818&data=20141211&formato=PDF>. Acesso em: 03 jun. 2017.
543
BRASIL.
Supremo
Tribunal
Federal.
Súmula
n.
49.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=3366>. Acesso em: 03 jun.
2017.
544
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
545
BRASIL. Corregedoria Geral de Justiça. Provimento n. 37/2016. Disponível em: <
http://mundonotarial.org/blog/?p=2013>. Acesso em 04 jun. 2017.
542
114
De fato, a sociedade brasileira está muito aquém ainda de entender a real necessidade
desse planejamento, existindo um tabu cultural de não se falar nesse assunto, seja por tratar de
patrimônio/dinheiro, seja por se precisar debater a própria morte com seus entes familiares.
Como dito na introdução deste trabalho, interessa a toda a sociedade esse
instrumento, considerando-se que para todas as famílias, nas quais haja formação de
patrimônio ainda que modesto, é importante planejar a destinação do mesmo, após a morte de
seus titulares.
4.2.2. Doação
Trata-se de contrato546, em que uma pessoa, denominada doadora, por liberalidade,
transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, denominada donatária, a teor
do artigo 538, do Código Civil de 2002547, sendo classificado como contrato (i) gratuito – o
benefício auferido pela realização do contrato vai exclusivamente para o donatário, já que o
doador tem seu patrimônio diminuído com a liberalidade; (ii) unilateral – as obrigações
advindas da doação recaem por completo sobre o doador, não se podendo confundi-las com a
doação modal548; e (iii) formal – prescreve como forma para a realização da doação a escrita,
seja ela materializada por instrumento público ou particular, excepcionalmente abriu o
legislador a possibilidade de sua forma oral quando versar sobre bens móveis e de pequeno
valor, se lhe seguir incontinenti a tradição, a teor do artigo 541, do Código Civil de 2002549;
bem como caracterizado pela (i) contratualidade – já explicado em nota de rodapé acima; (ii)
liberalidade – também chamada de animus donandi550, é o elemento subjetivo da doação; e
546
Sobre a natureza jurídica da doação, questionava-se se seria um contrato ou um negócio jurídico unilateral.
Em legislações alienígenas, como a francesa, a doação é tratada como negócio jurídico unilateral, por se exigir
apenas a manifestação de vontade do doador. Todavia, o legislador brasileiro impôs a necessidade da dupla
manifestação, ainda que a do donatário seja tácita, para se concretizar a doação, o que a caracteriza como
contrato ou negócio jurídico bilateral.
547
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
548
Sobre essa classificação do contrato de doação, há divergência doutrinária em relação às obrigações
contratuais e a espécie de doação modal. Para a maioria da doutrina, nesse sentido Flávio Tartuce (TARTUCE,
Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. V. 3. 12. ed. rev. atual. ampl. Rio de
Janeiro: Forense, 2017, p. 447), a doação modal é, em realidade, um contrato unilateral imperfeito, eis que o
encargo não pode ser considerado uma obrigação, mas um ônus jurídico. Dessa forma, existem apenas
obrigações para o doador com a estipulação de liberalidade, mesmo no contrato de doação modal, sendo o
donatário livre. Já para a minoria doutrinária, na doação modal, o encargo assumido seria uma obrigação a ser
prestada pelo donatário ao receber a coisa. Dessa forma, o contrato de doação, em especial o modal, deveria ser
classificado como contrato bilateral, o que não prevalece doutrinariamente.
549
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
550
“[...], considera-se, comumente, que o espírito da liberalidade ou animus donandi integra a causa da doação.
Todavia, o puro espírito de liberalidade não está presente, como já se mencionou, em alguns tipos de doação,
como a doação remuneratória, a doação com encargo e a doação por merecimento, as quais, não obstante, estão
115
(iii) transferência de bens – observa-se na doação o deslocamento da titularidade do bem, com
o empobrecimento do doador e o enriquecimento do donatário551.
Quanto ao objeto da doação, “podem ser objeto de doação todos os bens, móveis ou
imóveis, materiais ou imateriais, inclusive direitos, desde que estejam no comércio. O que
importa é examinar se o doador tinha a disponibilidade da coisa doada, sendo irrelevante a sua
natureza e classificação”552.
Em regra, celebra-se o contrato de doação pura, mas há aqueles com a presença de
elementos acidentais, tais como a doação condicional, ao ter sua eficácia vinculada à
ocorrência de um evento futuro e incerto; a doação a termo, em que a eficácia do ato fica
subordinada à ocorrência de evento futuro e certo; e a doação modal, quando a liberalidade é
gravada com ônus para o donatário553.
Além das doações com elementos acidentais, encontra respaldo na legislação pátria,
em especial no artigo 540, do Código Civil de 2002554, a doação remuneratória, sendo aquela
feita em retribuição por serviços prestados, sem natureza exigível, pelo donatário ao doador.
Sua configuração exata é importante, na medida em que se pode alegar vício redibitório em
relação ao bem doado; ser irrevogável mesmo diante de ingratidão; e, quando o beneficiado é
contidas no tipo legal, assinalando-se, desta maneira, que o animus donandi não é efeito essencial do contrato, ao
contrário do que normalmente se sustenta. Por outro lado, numa concepção objetiva da causa, como síntese de
seus efeitos jurídicos essenciais, parece difícil remover o animus donandi da órbita dos motivos, porque ele diz
respeito ao elemento psicológico, de motivação, muito mais que ao elemento objetivamente funcional, relativo à
razão jurídica justificadora do negócio. Identifica-se, assim, mais propriamente, no animus donandi o motivo
individual e contingente que impulsiona o doador, configurando-se como o elemento psicológico, ou seja, a
finalidade prática, a razão determinante para a conclusão do contrato, mas não para a sua qualificação. O motivo
é o objetivo que faz com que o contratante realize o negócio. Normalmente, ele é irrelevante porque depende
exclusivamente de questões internas do próprio contratante. Alguém pode querer doar para ser reconhecido, por
estar agradecido, por visar a um interesse ulterior: não importam os seus motivos particulares.
Excepcionalmente, o ordenamento atribui-lhes relevância causal como quando prevê que a remuneração e o
casamento, expressos nas finalidades do contrato de doação, não permitem a sua revogação por ingratidão
(Código Civil, art. 564). Exclui-se, pois, da causa do negócio a referência ao animus donandi, bem como se
diferencia a gratuidade da ausência de sinalagmaticidade, correspondendo esta última, justamente, ao efeito
essencial do contrato. Superada a teoria voluntarista do animus donandi, o conceito de liberalidade, constante do
art. 538 do Código Civil, deve assumir o significado de finalidade, típica e constante, de conferir a outrem uma
vantagem patrimonial sem qualquer correspectivo. A causa do contrato de doação, portanto, não é o “espírito de
liberalidade” ou o “animus donandi”, mas é a liberalidade entendida como livre atribuição de uma vantagem
patrimonial sem contraprestação.” (MORAES, Maria Celina Bodin. Notas sobre a promessa de doação.
Civilistica. a. 2. N. 3. 2013, p. 8-9)
551
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: contratos, declaração unilateral de vontade,
responsabilidade civil. V. 3. 12. ed. rev. atual. Regis Fichtner (atualizador). Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.
246-248.
552
SOUZA, Sylvio Capanema. Comentários ao Novo Código Civil: das várias espécies de contrato, da troca e
permuta, do contrato estimatório, da doação e da locação das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 93.
553
TARTUCE, Flávio. Op. cit., 2017, p. 446-447.
554
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
116
ascendente do doador, não ser sujeita à colação, nos termos dos artigos 441, parágrafo único,
564, I, e 2.011, todos do Código Civil de 2002555.
Ainda existe a doação contemplativa, sendo aquela pela qual o doador contempla
terceiro por merecimento expresso no ato de celebração, com base no artigo 540, do Código
Civil de 2002556.
Sobre a doação contemplativa, dispõe o Des. Sylvio Capanema de Souza557,
não se confunde com a doação remuneratória, já que nesta o que se pretende é
remunerar serviços já prestados pelo donatário, economicamente estimáveis,
enquanto que naquela se objetiva exaltar as qualidades morais ou pessoais do
donatário, demonstrando o doador a sua admiração, respeito ou gratidão.
Pelo artigo 542, do Código Civil de 2002558, possibilita-se ao doador a elaboração de
contrato de doação em favor de pessoa por nascer, também chamado de nascituro,
dependendo a sua aceitação de expressa manifestação em concordância dos pais ou curador
com autorização judicial. Além de depender da concordância expressa, que incide sobre o
plano de validade do contrato, para haver eficácia da doação o nascituro deverá nascer com
vida559, sob pena de caducidade560.
Apesar de seus efeitos semelhantes, não se deve confundir a doação a nascituro com
o fideicomisso. Como já dito, a doação ocorrerá em favor de pessoa por nascer, enquanto o
555
Ibid.
Ibid.
557
SOUZA, Sylvio Capanema de. Op. cit., 2004, p. 96-97.
558
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
559
No Brasil, o artigo 2º, do Código Civil de 2002, põe a salvo os direitos do nascituro, desde a sua concepção.
Majoritariamente, entende-se que os conceitos de personalidade jurídica e de pessoa são indissociáveis, sendo a
primeira a aptidão genérica de qualquer pessoa para titularizar direitos e obrigações. Pela leitura do dispositivo
supracitado, reconheceu o ordenamento jurídico ao nascituro a condição de pessoa, mesmo sem personalidade
jurídica. A fim de explicar essa possibilidade de sujeito adquirir direitos antes de sua personalidade jurídico, com
no caso do nascituro, surgiram algumas teorias jurídicas, como a teoria natalista, a teoria concepcionista, a teoria
condicionista e a teoria da atividade cerebral. Em relação à teoria natalista, “para os adeptos dessa teoria, a
personalidade civil começa do nascimento com vida, e isso porque só a pessoa pode ter personalidade, e o
produto da concepção não é pessoa, é apenas uma parte do corpo da mulher. (...) Isso significa dizer que se tem
por nascido o bebê que inalou oxigênio do ar atmosférico, mesmo que faleça no instante seguinte”. Já a teoria
concepcionista “reconhece o início da vida humana no exato momento da fertilização do ovócito secundário pelo
espermatozoide, ou seja, desde o momento da concepção (...)”. Por outro lado, a condicionalista “reconhece a
personalidade jurídica do nascituro desde a concepção, sob a condição de nascer com vida”. Por último, a teoria
da atividade cerebral, que se preocupa com o marco inicial da vida em justaposição com o momento jurídico da
morte, entende que “se para o ordenamento jurídico brasileiro há vida quando presente o funcionamento do
cérebro, considerar-se-á o nascituro como ser vivo quando iniciadas as suas atividades encefálicas. A partir desse
instante poder-se-á falar em vida humana e o surgimento da pessoa, haja vista que o ser vivo, que reside no
ventre materno, não é, obviamente, um vegetal ou um animal”. (NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. O nascituro e
os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 25-49). Nas palavras de Flávio Tartuce, “o artigo 542
do Código Civil em vigor reforça a tese pela qual o nascituro não tem personalidade jurídica material, ou seja,
aquela relacionada com direitos patrimoniais e que só é adquirida pelo nascimento com vida. Nesse plano,
portanto, há mera expectativa de direitos. Mas, segundo a doutrina majoritária brasileira, o nascituro é pessoa,
tendo personalidade jurídica formal, aquela relacionada com os direitos da personalidade (...)” (TARTUCE,
Flávio. Op. cit., 2017, p. 449)
560
Ibid.
556
117
fideicomisso é instituído para contemplar pessoa ainda não concebida, no momento da morte
do fideicomitente, sob pena de se transferir a continenti a propriedade ao fideicomissário, com
gravame de usufruto ao fiduciário. Este último instituto jurídico é melhor tratado neste
capítulo, na seção 4.2.6.
Se for absolutamente incapaz o donatário, a aceitação expressa é dispensada, desde
que seja na modalidade de doação pura, a teor do artigo 543, do Código Civil de 2002561.
Justifica-se essa escolha legislativa pela presunção da doação pura ser correspondente ao
melhor interesse do incapaz, afastado quaisquer conflitos de interesse e prejuízos à pessoa em
especial condição de desenvolvimento.
Já em seu artigo 544, o Código Civil de 2002562 permite a doação entre ascendentes a
descendentes, ou de um cônjuge a outro, importando, todavia, em adiantamento de legítima.
Essa parte final pode ser afastada pelo doador, ao acrescer no título translativo de propriedade
cláusula expressa no sentido de sair aquele bem da disponível.
Questiona Fernanda de Freitas Leitão quanto à caracterização da doação entre
descendente e ascendente em adiantamento de legítima. Em resposta, entendeu não ser
possível essa afirmativa, por não haver previsão legal nesse sentido563. Ademais, corrobora-se
esse entendimento com outro argumento, qual seja, a caracterização da doação ser um
adiantamento de legítima é uma restrição ao direito do doador e do donatário, conjuntamente,
não podendo a norma contida no referido artigo ser interpretada ampliativamente a englobar
as doações de descendente a ascendente.
Além disso, Flávio Tartuce defende não ser aplicável o referido artigo no caso de
doação ao convivente, ou seja, não será considerada a doação feita nesses termos como
adiantamento de legítima, sob o fundamento de que (i) o companheiro não é herdeiro
necessário, por falta de previsão expressa legal no rol do artigo 1845, do Código Civil de
2002; e (ii) a norma é especial e restritiva, não admitindo aplicação da analogia ou
interpretação extensiva564. A depender da corrente doutrinária e jurisprudencial adotada
quanto à natureza jurídica do companheiro, se herdeiro necessário, facultativo ou sui generis,
abordadas na seção 2.1.4, do capítulo 2, segue-se ou não o entendimento exposto.
561
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
Ibid.
563
LEITÃO, Fernanda de Freitas. Breves Considerações sobre o Contrato de Doação, p. 3-4. Disponível em:
<http://www.cartorio15.com.br/arquivos/artigos/Artigo_consideracoes_sobre_o_contrato_de_doacao.pdf>.
Acesso em: 02 mai. 2017.
564
TARTUCE, Flávio. Op. cit., 2017, p. 456.
562
118
Em contraponto à permissão acima, o legislador preferiu vedar a doação feita em
favor do cúmplice do cônjuge adúltero. Na eventualidade de se perpetrar a doação nesses
termos, têm o outro cônjuge e os herdeiros necessários legitimidade para propor ação de
anulação da liberalidade, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal, a teor do
artigo 550, do Código Civil de 2002565.
Essa vedação normativa mostra preocupação do legislador infraconstitucional com a
utilização desse instituto jurídico de forma a prejudicar terceiros. Sobre esse tema, narra
Richard Hyland566, que
o direito das doações é especialmente complexo naqueles sistemas jurídicos que
consideram a realização de doações perigosa – e é ainda mais complexo quando um
sistema considera a doação perigosa não apenas para os doadores, seus cônjuges,
suas famílias e seus possíveis herdeiros, mas também para os donatários. Em certos
momentos, o perigo pareceu tão grave que os legisladores decidiram proibir a
realização de doações. Esses são momentos em que a hostilidade da lei em relação à
realização de doações se manifestou em sua forma mais pura. (...) É claro que a
proibição não produz complexidade. As coisas se tornam complexas quando o
direito não proíbe diretamente a realização de doações, mas, em vez disso, cerca-a
com proteções extraordinárias. Algumas dessas proteções tomam a forma de
formalidades requeridas antes que uma transferência por doação possa ser
considerada válida.
Há também a hipótese prevista no artigo 545, do Código Civil de 2002 567, na qual o
doador estipula uma renda a favor de terceiro. Tal contrato é denominado doação sob forma
de subvenção periódica, em que “seu objeto não se entrega, de uma vez ao donatário, mas em
prestações sucessivas”568, e terá como “causa extintiva a morte do doador ou do donatário,
mas poderá ultrapassar a vida do doador, havendo previsão contratual nesse sentido”569.
Por sua vez, o artigo 546, do Código Civil de 2002570 traz a hipótese de doação feita
em contemplação de casamento futuro, também chamada de doação propter nuptias, tendo
sua eficácia subordinada à condição suspensiva.
Explica o Des. Sylvio Capanema de Souza571, que
o casamento há de ser com certa e determinada pessoa, e a doação pode ser feita
pelos nubentes, entre si, por terceiro, a um deles ou a ambos, ou aos filhos que de
futuro venham a ter, um do outro, apresentando como característica marcante a
singularidade de não poder ser impugnada por falta de aceitação, que se presume
manifestada pelo fato dos donatários se casarem. No que tange à forma, rege-se
pelas regras que disciplinam os pactos antenupciais.
565
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
HYLAND, Richard. Doação e perigo. Civilistica. a. 5, n. 2, 2016, p. 5-6.
567
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
568
GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. rev. atual. Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de
Crescenzo Marino (atual.). Edvaldo Brito (Coord.) Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 261.
569
TARTUCE, Flávio. Op. cit., 2017, p. 451.
570
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
571
SOUZA, Sylvio Capanema de. Op. cit., 2004, p. 98-99.
566
119
Para Flávio Tartuce, não se poderia aplicar tal dispositivo à união estável, sob o
argumento da dificuldade em identificar faticamente a sua existência, por serem seus
requisitos abertos e demandarem análise casuística572. Todavia, ousa-se neste trabalho
discordar desse posicionamento, na medida em que não há óbice, por exemplo, para a
estipulação de doação em pacto de convivência573, quando os interessados declaram viver sob
união estável, sem ou com prazo anterior de convivência.
Em leitura a contrário sensu do artigo 548, do Código Civil de 2002574, considera-se
possível a doação de totalidade do patrimônio do doador575, desde que haja renda suficiente à
sua subsistência, em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao mínimo
patrimonial. “Não se pode olvidar, ainda, que a aferição da situação econômica do doador
deve ser considerada no momento da liberalidade, não sendo relevante, para esse efeito, o
empobrecimento posterior do doador”576.
A doação que inobservar os limites legais estabelecidos no momento da liberalidade,
em especial àquele da parte disponível do patrimônio do doador, é considerada nula, com base
no artigo 549, do Código Civil de 2002577. Apesar do referido diploma, em seu artigo 169,
dispor que o negócio nulo não é suscetível de confirmação e não convalesce com o tempo,
entende-se aplicável para o ajuizamento da ação declaratória de nulidade de doação inoficiosa
o prazo prescricional de 10 ou de 20 anos578, previsto no artigo 205, do Código Civil de
572
TARTUCE, Flávio. Op. cit., 2017, p. 452-453.
“[...] É possível haver estipulação de cláusulas nos contratos de coabitação sujeitas à condição suspensiva ou
resolutiva. Através desse tipo de cláusula, que tem sua eficácia subordinada a uma condição, os conviventescontraentes podem, da melhor forma, adequar os efeitos do contrato para melhor lhes atenderem. (...) Estas
condições seguirão as regras gerais do Direito Civil para esta matéria, mas terão seus limites no próprio contrato
de coabitação que estarão inseridas, respeitando sempre a caracterização da união de fato para terem validade”.
(OLIVEIRA NETO, Renato Avelino de. Contrato de Coabitação na União de Fato: confronto entre o direito
brasileiro e português. Coimbra: Almedina, 2006, p. 113)
574
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
575
Na prática diária do advogado ou do tabelião, esse requisito não é pormenorizadamente analisado, sendo, em
realidade de interesse das partes contratantes e de terceiros prejudicados verificá-lo. De igual forma, o
magistrado no cotidiano, ao se deparar com ações declaratória de nulidade de doação, em que pese vasculhar os
documentos trazidos aos autos corroborativos, ou não, dos direitos alegados, não irá além do processo em busca
de novas provas. “Mais uma vez, é bom que se esclareça que o Notário não desempenhará o papel de detetive e
não terá que comprovar se o que está sendo doado corresponde realmente ou não à parte disponível” (LEITÃO,
Fernanda de Freitas. Op. cit.).
576
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.183.133/RJ. Relator: Ministro Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1447043&num_re
gistro=201000396414&data=20160201&formato=PDF>. Acesso em 24 abr. 2017.
577
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
578
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 332.566/PR.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1348493&num_re
gistro=201301206470&data=20140924&formato=PDF>. Acesso em: 02 mai. 2017.
573
120
2002579, e 177, do Código Civil de 1916580, havendo celeuma jurisprudencial quanto ao início
do termo a quo, se do momento da liberalidade581 ou da abertura da sucessão582.
Outra espécie de doação é aquela com cláusula de reversão, prevista no artigo 547,
do Código Civil de 2002583, em que o doador estipula que determinado bem doado voltará
para seu patrimônio, na eventualidade de sobreviver ao donatário. Quando inserida no
contrato de doação, essa cláusula demonstra a vontade do doador de beneficiar pessoa
específica, intuito persona, mas não os sucessores deste.
Assim, a propriedade, de forma resolúvel, passa à titularidade do donatário, só se
consolidando em suas mãos caso sobreviva ao doador, podendo ser transmitido então aos seus
sucessores. Do contrário, implementada a condição resolutiva, pré-morte do donatário, volta o
bem à titularidade do doador.
Nesse sentido, enquanto não implementada a condição resolutiva, o donatário pode
exercer a propriedade, e suas características, em plenitude. Explicita Carlos Eduardo D’Elia
Salvatori584,
caso a cláusula de reversão venha ter eficácia, o motivo (pelo qual os frutos
percebidos são transmitidos aos herdeiros do donatário) se dá porque o de cujus era
o efetivo proprietário do imóvel, isto é, exercia o seu perfeito poder de fruição. Por
conseguinte, errônea é a afirmação no sentido de que os frutos percebidos restariam
com os herdeiros do donatário por aplicação da regra do possuidor de boa-fé.
Questão tormentosa é aquela relativa aos direitos reais de terceiros adquiridos na
pendência da condição resolutiva. A teor do artigo 1.359, do Código Civil de 2002585, com o
implemento da condição, os direitos reais concedidos na sua pendência são resolvidos,
podendo o proprietário, cuja propriedade tenha se consolidado em suas mãos, reivindicar a
coisa do poder do terceiro.
Assim, caso a transferência imobiliária tenha se dado por meio de escritura pública
com registro na matrícula do imóvel, operam-se os efeitos da norma supracitada sem grandes
conflitos, em que pese a preocupação doutrinária e jurisprudencial com os direitos de terceiro.
579
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
BRASIL. Código Civil de 1916. Op. cit.
581
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70059734707. Disponível
em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 02 mai. 2017.
582
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n. 0217130-65.2010.8.19.0001.
Disponível
em:
<http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=0004A8EA080D514F031804DEFF6265
EE97D2C5061C0D4A3B&USER=>. Acesso em: 02 mai. 2017.
583
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
584
SALVATORI, Carlos Eduardo D’Elia. Contrato de Doação: análise da cláusula de reversão e considerações
sobre a doação conjuntiva a cônjuges e a companheiros. Revista do Instituto do Direito Brasileiro. a. 2. n. 9.
2013, p. 6.
585
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
580
121
Contudo, possível sua contestação na hipótese de inexistência de registro, sob o fundamento
de não conhecimento da cláusula de reversão e de proteção de terceiro de boa-fé586.
Sobre o assunto, traz José Flávio Bueno Fischer587 um relato e possível solução a fim
de se evitar discussão no âmbito do Poder Judiciário:
recentemente, tivemos uma situação na qual o adquirente do imóvel, em negociação
onerosa, ficou apreensivo com a notícia da existência da cláusula de reversão
relativa ao imóvel, constante das negativas de ônus e de ações reais e pessoais
reipersecutórias referentes ao bem objeto do negócio. Com a intenção de dar fim
àquela condição resolutiva, o comprador do imóvel buscou saber se a doadora e a
donatária - contratantes da doação anteriormente efetivada tendo por objeto o
imóvel, onde foi instituída a cláusula de reversão-, ainda eram vivas. Felizmente,
sim, e também predispostas a firmarem o cancelamento da cláusula instituída para a
devida averbação junto à matrícula do bem. Assim, lavramos escritura pública de
declaração, na qual filha e mãe - a filha era a doadora e a mãe a donatária, na doação
anteriormente realizada - revogaram a cláusula de reversão, expressamente,
requerendo, ao Registrador de Imóveis competente, a averbação de tal cancelamento
na matrícula do imóvel. Portanto, cancelou-se a condição resolutiva a que estava
sujeito o bem. No caso em questão, veja-se, que a doadora (a filha), muito mais
jovem do que a donatária (a mãe), pela ordem natural da vida, teria grandes chances
de sobreviver à donatária. Nesta hipótese, o imóvel poderia retornar à propriedade
da doadora, caso ela assim o reivindicasse e, obviamente, dependeria do resultado de
eventual discussão judicial sobre o destino do bem.
No parágrafo único do referido artigo588, veda expressamente o legislador
infraconstitucional a prevalência da cláusula de reversão589 em favor de terceiro590.
Por sua vez, classifica-se como doação conjuntiva aquela, na qual se beneficiam da
transferência patrimonial mais de uma pessoa. A teor do artigo 551, do Código Civil de
2002591, em regra é feita igualitariamente a divisão patrimonial entre os beneficiários.
Contudo, caso seja da vontade do testador, pode dispor de forma diversa, em cláusula
expressa, a fim de beneficiar mais um em detrimento dos demais. Da mesma forma, caso haja
previsão, é permitido o direito de acrescer entre os beneficiários, hipótese muito comum em
casos de casais, subsistindo na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo.
586
SALVATORI, Carlos Eduardo D’Elia. Op. cit., p. 7-8.
BUENO, José Flávio. Considerações sobre a cláusula de reversão. Disponível em:
<http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NTYwNA==>. Acesso em: 08
mai. 2017.
588
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
589
Sugere-se, para aprofundamento sobre a cláusula de reversão no contrato de doação, em especial a proibição
de estipulação em favor de terceiro, o artigo “Contrato de Doação: análise da cláusula de reversão e
considerações sobre a doação conjuntiva a cônjuges e a companheiros”, escrito por Carlos Eduardo D’Elia
Salvatori. (SALVATORI, Carlos Eduardo D’Elia. Op. cit.).
590
Questiona-se, em razão da lógica jurídica similar empregada na doação e no testamento, se seria possível a
cláusula de reversão em favor de terceiro no testamento. Não há resposta jurisprudencial e doutrinária sobre o
assunto, ressaltando-se apenas que tal questão será abordada e respondida no trabalho ainda em elaboração de
mesma autoria, em cumprimento a requisito do Curso de Pós-Graduação em Direito de Família e Sucessões da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.
591
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
587
122
A doação manual é espécie de doação excepcional, haja vista que se permite a
doação de bem móvel de pequeno valor de forma verbal, com base no artigo 541, parágrafo
único, do Código Civil de 2002592. Por se tratar de conceito jurídico indeterminado, a
caracterização de bem de pequeno valor fica sujeita aos arbítrios dos juristas. Por um lado,
defende-se a aplicação do critério da razoabilidade e da proporcionalidade com base na
capacidade econômica do doador e do donatário e as circunstâncias da doação, o que, por si
só, também causa arbítrios. Por outro lado, utiliza-se o critério expresso no Código Civil, em
seu artigo 108593, de que bens de pequeno valor são aqueles de monta inferior a 30 salários
mínimos, o que em época de inflação e desvalorização monetária, como atualmente, também
gera críticas594.
Nos termos do artigo 554, do Código Civil de 2002595, o legislador autorizou ao
testador dispor no sentido de beneficiar entidade futura, ou seja, entidade ainda não existente
no mundo jurídico, desde que seja constituída no prazo decadencial de 2 (dois) anos, sob pena
de caducidade da disposição.
Há também a possibilidade de doação com cláusulas restritivas de inalienabilidade,
impenhorabilidade e incomunicabilidade, a teor do artigo 1.911, do Código Civil de 2002596,
que já foram tratadas na seção 4.2.1, neste capítulo, aplicando-se na íntegra ao presente
instituto de planejamento sucessório.
No ordenamento jurídico brasileiro, ainda há celeuma sobre a possibilidade jurídica
de se realizar contrato de promessa de doação. Majoritariamente, com entendimento do
Supremo Tribunal Federal597 e do Superior Tribunal de Justiça598, entende-se pela sua
impossibilidade, sob o fundamento de ser moralmente e juridicamente inaceitável a obrigação
de doar, com base na teoria voluntarista do animus donandi. Todavia, admitem a promessa de
doação em favor de filhos realizada no âmbito do acordo de partilha de bens em processo de
592
Ibid.
Ibid.
594
TARTUCE, Flávio. Op. cit., 2017, p. 459.
595
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
596
Ibid.
597
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 122.054. Relator: Ministro Carlos Velloso.
Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1495362>.
Acesso em: 08 mai. 2017.
598
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 730.626/SP. Relator: Ministro Jorge Scartezzini.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=663031&num_regist
ro=200500342701&data=20061204&formato=PDF>. Acesso em 08 mai. 2017.
593
123
separação ou divórcio dos pais, sendo despicienda, neste caso, a escritura pública
propriamente dita, eis que a sentença homologatória do acordo produz o mesmo efeito599.
Por outro lado, minoritariamente, sustenta-se a validade da promessa e de sua
exequibilidade por ação própria, posicionamento ao qual se filia. Ainda se utilizando da teoria
voluntarista do animus donandi, a liberalidade do doador é observada na promessa de doação
e nas suas consequências, na medida em que já houve uma manifestação quanto à promessa
ocorrida, sendo respeitados e querido o adimplemento contratual, por se vedar, na vigência da
teoria da confiança, a quebra de expectativa dos envolvidos600.
Maria Celina Bodin de Moraes601 traz os argumentos próprios dessa última corrente:
quanto à promessa de doação, cumpre dizer que houve a manifestação da vontade
em relação à promessa, ela já ocorreu, e quando se vai ao judiciário pedir a sua
execução é porque foi descumprida. O respeito aos compromissos assumidos
representa um objetivo do nosso ordenamento jurídico e não parece haver qualquer
razão especial que justifique a possibilidade de se descumprir, sem qualquer sanção
possível, uma promessa de doação feita a outrem. Seu cumprimento é essencial
porque uma promessa não mantida é uma falsa promessa, e não uma promessa
inexistente. O adimplemento, portanto, voluntário ou coativo, é uma consequência
lógica e necessária da promessa, isto é, é a sua premissa: de fato, posta a premissa de
que se prometeu algo, deduz-se que se deve manter o que se prometeu, seja
voluntariamente, seja com o auxílio da força do ordenamento. (...) Enfim, um
argumento legalista: o Código Civil de 2002 expressamente regulou o contrato
preliminar e não excepcionou de suas regras a doação.
Em relação à revogação da doação, trata-se de direito potestativo do doador, a fim de
revogar seu ato de liberalidade, seja por ingratidão do donatário ou por inexecução de
elementos acidentais, conforme artigo 555, do Código Civil de 2002602.
Nos artigos 557 e 558, do Código Civil de 2002603, o legislador elencou hipóteses604
motivadoras da revogação de doação, sendo elas, (i) se o donatário atentou contra a vida do
doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; (ii) se cometeu contra ele ofensa
física; (iii) se o injuriou gravemente ou o caluniou; (iv) se, podendo ministrá-los, recusou ao
doador os alimentos de que este necessitava; e (v) quando o ofendido, nos casos do artigo
anterior, for o cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador.
599
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Espacial n. 1.537.287/SP. Disponível em: <
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1547565&num_regi
stro=201402197375&data=20161028&formato=PDF >. Acesso em: 08 mai. 2017.
600
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., 2016, p. 280-286.
601
MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., 2013, p. 1-19.
602
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
603
Ibid.
604
Sobre as hipóteses, diverge a doutrina a respeito de sua taxatividade ou exemplificatividade. Há o enunciado
33, do Conselho da Justiça Federal, a espelhar o entendimento majoritário, no sentido de que estabeleceu o
Código Civil de 2002 um novo sistema para a revogação da doação por ingratidão, pois o rol do artigo 557
deixou de ser taxativo, admitindo outras hipóteses. As vozes minoritárias argumentam se tratar ainda de rol
taxativo, por ser em realidade uma matéria de ordem pública.
124
De qualquer modo, imprescindível ser o ato de ingratidão de natureza grave605.
Por fim, excepciona-se a revogabilidade da doação nos casos de doações puramente
remuneratórias; de oneradas com encargo já cumprido; de que se fizerem em cumprimento de
obrigação natural; e de feitas para determinado casamento, a teor do artigo 564, do Código
Civil de 2002606.
Todas essas espécies de doações podem ser usadas de uma forma ou de outra como
instrumento de planejamento sucessório, com o intuito de beneficiar um ou outro herdeiro ou
terceiro durante a vida do doador e após a sua morte.
Assim como o trust, instrumento de planejamento sucessório abordado neste capítulo
na seção 4.2.13, o contrato de doação é instituto de Direito para realizar objetivos do titular
dos bens, que estão diretamente relacionados ao relativismo e à subjetividade dessa pessoa.
Em razão disso, o Direito se preocupa, e converte seu foco, principalmente nas
doações entre membros de família e de caridade, podendo a primeira servir como
adiantamento de herança e a segunda ser idealizada para fins de planejamento tributário, de
prestígio, de influência, etc607.
Em geral, nessas situações, advogados estão envolvidos608, sendo as formalidades
das doações fielmente observadas. Ainda assim, conforme Richard Hyland609,
à medida em que obrigações consuetudinárias existem, os requisitos formais da lei
não as afastam. Se o cumprimento das obrigações é reprimido em uma arena, elas
irão se reafirmar em outra. Ao final, seria esperado (exceto talvez pelos juristas) que
a pressão do direito sobre a troca de doações possa alterar a sua forma, mas não a
sua extensão como um todo. Um dos aspectos fascinantes do direito das doações
envolve as repetidas tentativas do direito de restringir a realização das doações,
acompanhada com o repetido sucesso das partes em fugir de tais restrições.
605
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.593.857/MG. Relator: Ministro Ricardo Villas
Bôas
Cueva.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1520238&num_re
gistro=201502300885&data=20160628&formato=PDF>. Acesso em: 21 mai. 2017.
606
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
607
HYLAND, Richard. Op. cit., p. 12.
608
Fernanda de Freitas Leitão, Tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, em seu artigo Breves
Considerações sobre o Contrato de Doação, em razão do grau de complexidade do contrato de doação, elaborou
um checklist a ser feito ao cliente, contendo perguntas essenciais para a elaboração da escritura pública de
doação. São elas: “a) a doação será adiantamento da legítima, da parte disponível ou tratar-se-á de partilha em
vida?; b) a doação será com ou sem reserva de usufruto? E, se houver a reserva do usufruto, com ou sem direito
de acrescer, nos termos do art. 1.411, do CC?; c) a doação será com ou sem cláusula de reversão?; d) a doação
será com ou sem as cláusulas protetivas e restritivas? E, se houver a imposição das cláusulas, serão elas vitalícias
ou temporárias?; e) a doação, se feita ao casal, será com ou sem a cláusula de acrescer, art. 551, do Código
Civil? f) quando o doador for pessoa física será obrigatório que constem na escritura, as disposições contidas no
art. 548, do Código Civil, ou seja, que o doador não estará doando todos os bens sem reserva de parte, ou renda
suficiente para a sua subsistência; (...)”. (LEITÃO, Fernanda de Freitas. Op. cit.)
609
HYLAND, Richard. Op. cit., p. 13.
125
Assim sendo, o planejamento sucessório deve sempre obedecer as regras e as
restrições impostas pelo Direito, mas também deve alcançar com sucesso a vontade do futuro
inventariado, ora doador.
4.2.3. Usufruto
Trata de direito real o presente instrumento de planejamento sucessório patrimonial,
a teor do artigo 1.225, IV, do Código Civil de 2002 610, conceituado como “direito real
temporário concedido a uma pessoa para desfrutar um objeto alheio como se fosse próprio,
retirando suas utilidades e frutos, contudo sem alterar-lhe a substância”611.
São características do usufruto: (i) a temporariedade; (ii) o caráter intuito persona;
(iii) a divisibilidade; (iv) a inalienabilidade; (v) a conservação da forma e da substância; e (vi)
a posse de usufruto.
A temporariedade desse instituto jurídico foi concebida pelo
legislador
infraconstitucional com o intuito de mitigar seus efeitos negativos no tempo 612, limitando-o
taxativamente em hipóteses elencadas no artigo 1.410, do Código Civil de 2002613. Assim, a
retirada fática do bem de circulação do mercado, em que pese não ser juridicamente assim614,
foi a razão para se impedir a perpetuidade desse instituto, podendo no máximo viger até a
morte do usufrutuário615.
Por sua vez, o caráter intuito persona é observado no propósito desse instituto
jurídico, qual seja, beneficiar alguém específico com o uso e gozo da coisa gravada. Ademais,
610
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015a, p. 692.
612
Sobre esse tema, preleciona Paulo Nader, em seu livro Curso de Direito Civil: direito das coisas. V. 4. 7. ed.
rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 444, que “o usufruto, todavia, não é somente vantagem, pois
apresenta inconveniências, como a de impedir a plena circulação da riqueza e a de tolher, em relação aos
imóveis, as iniciativas que visam à reforma e ampliação dos prédios. É um patrimônio que fica estagnado,
embora oferecendo o poder de uso e fruição. Tais adversidades, todavia, podem ser amenizadas, havendo
entendimento e convergência de interesses entre usufrutuário e nu-proprietário”.
613
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
614
Em similitude à analise realizada na seção 3.4, a nua-propriedade, ocasionada pelo fracionamento da
propriedade com a instituição do usufruto, é passível de venda pelos nu-proprietários, posto que mantêm o
atributo de dispor ou alienar a coisa, inerente à propriedade, conforme artigos 1.228 e 1.196, do Código Civil de
2002. Juridicamente, portanto, não há qualquer empecilho para a alienação do bem, móvel ou imóvel, gravado
em usufruto, desde apenas sua nua-propriedade, respeitando-se o direito de usar e gozar do usufrutuário até sua
extinção. Contudo, faticamente, apesar de ser possível a venda da nua-propriedade, não existe um mercado
interessado nessa propriedade limitada por direito real, por ser economicamente indesejado e não-lucrativo.
615
“Corolário do princípio da temporariedade é a proibição dos usufrutos sucessivos. Diferentemente do direito
civil português, que os admite, à vista do art. 1.441 do Código Civil, o nosso sistema não prevê a possibilidade
de se instituir mais de um usufrutuário, para que, sucessivamente, exercitem o jus utendi e fruendi sobre o
mesmo objeto. O art. 1.441 do Códex brasileiro considera apenas a hipótese de usufrutos simultâneos. Ressaltase que no sistema luso, a fim de não se eternizar o usufruto, a sucessão só é possível se o sucessor já existia à
época em que se efetivou o direito do primeiro usufrutuário” (NADER, Paulo. Op. cit., 2016a, p. 448-449).
611
126
há “a aderência inexorável do direito à pessoa do usufrutuário, já que não se prolonga além da
vida dele (art. 1.410, I, do CC), admitindo duração menor quando pactuado a termo ou
condição resolutiva”616.
Além da temporariedade e do caráter intuito persona, caracteriza-se ainda o usufruto
pela sua divisibilidade. O artigo 1.390, do Código Civil de 2002 traz a possibilidade de o
usufruto recair sobre “patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte,
os frutos e utilidades” 617. Também pela liberdade contratual, podem ser beneficiadas uma ou
mais pessoas sobre o mesmo patrimônio, inclusive com o direito expresso de acrescer.
Conforme o artigo 1.393, do Código Civil de 2002618, a pessoa, natural ou jurídica,
beneficiada não pode transferir seus direitos de fruição da coisa a terceiro por alienação, eis
que a transmissibilidade do bem requer sua propriedade, e o usufrutuário apenas detém o
usufruto. Faz-se ressalva quanto à possibilidade de cessão de exercício, a título gratuito ou
oneroso.
Com a inalienabilidade do bem, chega-se à conclusão lógica de sua
impenhorabilidade pelos credores do usufrutuário. Nada impede, todavia, a penhora dos frutos
advindos do bem619, desde que não pendentes, com base no artigo 1.397, do Código Civil de
2002620.
Por outro lado, como já dito, a nua-propriedade pode ser alienada, sendo possível
também a sua penhora e sua alienação em hasta pública, “ficando ressalvado o direito real de
usufruto, inclusive após a arrematação ou a adjudicação, até que haja sua extinção”621.
Pela sua ambulatoriedade passiva, “o polo ativo da relação jurídica, integrado pelo
usufrutuário, é permanente, vinculado sempre à pessoa física ou jurídica em favor de quem o
direito real limitado foi constituído; já o polo passivo não é personalizado”622.
Com a instituição desse direito real, a propriedade do bem é fracionada em nuapropriedade e usufruto. Assim, o titular da propriedade pré-usufruto, ora denominado nuproprietário, mantém a substância do seu direito, perdendo apenas a faculdade de usar e gozar
616
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015a, p. 693.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
618
Ibid.
619
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 611.843/RS.
Relator:
Ministro
Mauro
Campbell
Marques.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1380892&num_re
gistro=201402919690&data=20150212&formato=PDF>. Acesso em: 24 abr. 2017.
620
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
621
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.407.840/SP. Relator:
Ministro
Paulo
de
Tarso
Sanseverino.
Disponível:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1428596&num_re
gistro=201303251023&data=20150828&formato=PDF>. Acesso em: 24 abr. 2017.
622
NADER, Paulo. Op. cit. 2016a, p. 445.
617
127
da coisa gravada de usufruto. A faculdade de usar e gozar da coisa de acordo com sua
destinação é transferida ao usufrutuário, que passa a perceber os frutos naturais, industriais e
civis e a retirar proveito econômico do bem623.
Para tanto, ensina Caio Mário da Silva Pereira624,
pressupõe-se, então, a coexistência harmônica dos direitos do usufrutuário,
construídos em torno da ideia de utilização e fruição da coisa, e dos direito do
proprietário, que os perde em proveito daquele, conservando todavia a substância da
coisa ou a condição jurídica de senhor dela. O ponto de partida para sua
configuração (...) é a distinção dos dois elementos, substância e proveito, na
propriedade: o proprietário pode tê-los ambos ou abandonar o proveito para outrem.
Assim sendo, dado o aproveitamento do bem e as faculdades concedidas, deve o
usufrutuário zelar pela conservação da coisa, em sua destinação econômica originária. Entre
seus direitos, encontra-se aquele de poder se valer das ações possessórias e petitórias em face
do possuidor indireto (nu-proprietário), enquanto durar o direito real limitado625.
Doutrinariamente, apontam-se diversas espécies de usufruto, sendo diferenciadas
quanto à causa, ao objeto, à extensão e à duração. Quanto à causa, divide-se em legal e
convencional, sendo, no primeiro caso, estabelecido em favor do beneficiado por norma legal
e, no segundo caso, por convenção das partes626.
Washington de Barros Monteiro627 elenca as hipóteses legais de usufruto,
pela nossa legislação existe usufruto legal em cinco casos: a) o do pai, em sua falta,
o da mãe, sobre os bens dos filhos menores (Cód. Civil de 2002, art. 1.689, n. I); b)
o do marido sobre bens da mulher, quando lhe competir esse direito (Cód. Civil de
2002, art. 1.652, n. I); c) o da brasileira casada com estrangeiro sob regime que
exclua a comunhão universal, por morte do marido, sobre a quarta parte dos bens
deste, se houver filhos brasileiros do casal, e de metade, se não os houver (Dec.-lei
n. 3.200, de 19-4-1941, art. 17, modificado pelo Dec.-lei n. 5.187, de 13-1-1943); d)
em favor dos silvícolas, na hipótese do art. 231 da Constituição Federal (§ 2º); e) o
da companheira ou companheiro, nas condições da Lei n. 8.971, de 29-12-1994, art.
2º, n. I e II.
Quanto ao objeto, classifica-se como geral, ao recair sobre universalidade de bens, e
particular, quando recair sobre bens determinados. Já quanto à extensão, pode-se classificar o
usufruto como pleno, ao compreender todos frutos e utilidades da coisa, e restrito, ao ser
excluída alguma utilidade no gozo da coisa628.
623
MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso de Direito Civil: direito das
coisas. 42. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 507.
624
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: direitos reais. V. 4. 20 ed. rev. atual. Carlos
Edison do Rêgo Monteiro Filho (atual.). Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 248.
625
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.291.197/MG. Relator:
Ministro
Humberto
Martins.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1406558&num_re
gistro=201102646625&data=20150519&formato=PDF>. Acesso em: 24 abr. 2017.
626
MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Ob. Cit., p. 509.
627
Ibid., p. 510.
628
Ibid., p. 510.
128
Finalmente, quanto à duração, subdivide-se em vitalício, ao se estender por toda a
vida do usufrutuário e/ou se findar apenas com o implemento de causa legal de extinção, e
temporário, ao se submeter a termo preestabelecido, extinguindo-se com o seu implemento629.
Entende-se haver ainda a classificação em próprio, quando recair sobre coisas
infungíveis, e impróprio, quando incidir sobre coisas fungíveis, conforme o artigo 1.392, § 1º,
do Código Civil de 2002630.
Em julgamento do Recurso Especial nº 1.315.606/SP, de relatoria do Min. Luis
Felipe Salomão, o Superior Tribunal de Justiça adentrou no mérito de caso versante sobre o
direito real de habitação do cônjuge, apresentado neste trabalho no capítulo 3, seção 3.4, em
confronto com o instituto jurídico do usufruto. No caso concreto, o inventariado, poucos
meses antes de se casar pelo regime da comunhão universal com sua segunda esposa, doou
em vida seu imóvel residencial aos seus filhos com reserva de usufruto. Com o casamento,
advieram outros descendentes. Após a morte do cônjuge varão, o cônjuge virago pleiteou no
inventário o direito real de habitação sobre referido imóvel doado anteriormente, mas que era
a moradia do casal em razão do usufruto estabelecido. Em seu voto, o Ministro Relator expôs
ser “possível a arguição de direito real de habitação ao cônjuge supérstite em imóvel que fora
doado, em antecipação de legítima, com reserva de usufruto”, mas, todavia, no caso concreto,
ante a inexistência de doação inoficiosa e a observância da legítima, o status e o domínio do
imóvel residencial foram mantidos nas mãos dos primeiros filhos-donatários, sem violação do
direito à moradia631.
Outro interessante julgado comprova a possibilidade da instituição do usufruto em
benefício de pessoa jurídica. No caso concreto, foi gravado um bem imóvel com esse ônus
real em favor de entidade religiosa, razão pela qual requereu a aplicação da imunidade
tributária do imposto territorial predial urbano. O Superior Tribunal de Justiça se posicionou
pela sua impossibilidade, sob o fundamento de que “a entidade religiosa não detém a
propriedade plena do imóvel, cujo IPTU se executa, mas apenas o usufruto” e de que “não há
comprovação de que o imóvel ou seus rendimentos tenham vínculo com as atividades-fim
desenvolvidas pela entidade religiosa”632.
629
Ibid., p. 510.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
631
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.315.606/SP. Relator: Ministro Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1533728&num_re
gistro=201200591587&data=20160928&formato=PDF>. Acesso em 24 abr. 2017.
632
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.483.393/DF. Relatora:
Ministra
Regina
Helena
Costa.
Disponível
em:
630
129
Por último, vale salientar que, assim como no fideicomisso - seção 4.2.6 -, o Fisco
Estadual, em visão arrecadatória, cobra dos nu-proprietários imposto de transmissão causa
mortis quando da extinção do usufruto. Nesse ponto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro, por meio do Conselho da Magistratura, promulgou enunciado sumular nº 7, em
que se firma não ser a extinção do usufruto, por renúncia ou morte do usufrutuário, fato
gerador da cobrança do ITD, sob pena de incorrer em bitributação, vez que a doação do
imóvel constitui fato gerador do imposto de transmissão inter vivos633.
Por todo o exposto, percebe-se ser o usufruto, como instrumento de planejamento
sucessório, utilizado em larga escala, ao se transferir, por meio de partilha em vida634, a
propriedade de bens do acervo a ser futuramente inventariado, com a segurança de seu uso e
gozo pelo futuro inventariado ou pelos herdeiros agraciados.
4.2.4. Fideicomisso
No ordenamento jurídico brasileiro, o fideicomisso635, também chamado de
substituição fideicomissária, está previsto no artigo 1.951 e ss., do Código Civil de 2002636.
Elucida Paulo Nader637 acerca do instrumento de planejamento sucessório,
[...] substituição fideicomissária, (...), nos termos do ordenamento pátrio, é
modalidade especial de substituição pela qual o testador (fideicomitente), após
nomear sucessor em primeiro grau (fiduciário), designa o substituto
(fideicomissário), pessoa ainda não concebida na abertura da sucessão, que recolherá
a herança ou legado com a morte do fiduciário, em certo prazo ou sob condição.
Caso o fideicomissário, na abertura da sucessão, já houver nascido, este adquirirá a
nua propriedade, e o fiduciário, o usufruto.
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1459850&num_re
gistro=201402187087&data=20151112&formato=PDF>. Acesso em: 24 abr. 2017.
633
BRASIL. Conselho da Magistratura. Enunciado Sumular n. 7. Disponível em: <
http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/30422/regist-public-cons-magist.pdf?=v23>. Acesso em 18 abr. 2017.
634
Considera-se planejamento sucessório como gênero, do qual a partilha em vida é espécie. Esse tema será
melhor abordado e aprofundado em trabalho ainda em elaboração, sob o título “Partilha em Vida à Luz do
Direito Civil-Constitucional”, de mesma autoria, em cumprimento a requisito do Curso de Pós-Graduação em
Direito de Família e Sucessões da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.
635
“Substituição é a possibilidade que possui o testador de substituir ao herdeiro ou legatário uma outra pessoa,
que tomará o lugar de quem não quiser ou não puder receber a herança ou legado (CC, art. 1.947). (...) São três
espécies de substituição: substituição vulgar ou ordinária, substituição recíproca e substituição fideicomissária ou
fideicomisso. Portanto, fideicomisso é uma das espécies ou formas de substituição, consagrada no direito
sucessório brasileiro. (...) A substituição vulgar ou ordinária decorre do próprio art. 1.947 do Código Civil, já
citado, sendo a designação pura e simples da pessoa – ou das pessoas – que deve tomar o lugar do herdeiro
instituído, ou do legatário, para o caso de um, ou outro, não querer ou não poder aceitar a herança ou o legado.
(...) A substituição recíproca dá-se quando dois ou mais coerdeiros ou dois ou mais colegatários são designados
para se substituírem entre si”. (CAHALI, Francisco José. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op.
cit., p. 406-407)
636
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
637
NADER, Paulo. Op. cit., 2016b, p. 423.
130
Deve-se, desde logo, fazer a diferenciação entre a substituição comum e o
fideicomisso, qual seja, na primeira o substituído não é sucessor do testador, enquanto no
segundo haverá, em tese, a sucessão a posteriori deste por aquele, excepcionalmente se
consolidará a propriedade do bem imóvel na titularidade do fideicomissário diretamente, sem
antes passar pelo fiduciário, a teor dos artigos 1.952, parágrafo único, 1.954 e 1.955, do
Código Civil de 2002638.
Somente se poderá instituir o fideicomisso em favor de pessoas naturais, em
interpretação sistemática dos artigos supracitados, posto que, não só “o instituto foi criado
para favorecer as relações familiares ou os nexos de amizades”, como também “em várias
disposições refere-se à morte do fiduciário e do fideicomissário, fato que se verifica apenas na
vida de pessoas físicas ou naturais”639.
O instituto do fideicomisso tem como características (i) a existência de disposição
testamentária, qualquer que seja sua forma; (ii) a dupla liberalidade, na medida em que
haverá, com sua instituição, ao mesmo tempo, a propriedade resolúvel e suspensiva do
fiduciário e do fideicomissário, respectivamente; (iii) os elementos acidentais do negócio
jurídico; (iv) o dever de conservação; (v) a aquisição sucessiva; e (vi) a capacidade passiva do
fiduciário e do fideicomissário, todos a teor do artigo 1.951, do Código Civil de 2002640.
Quanto à primeira característica, prevê o Código Civil, em seu artigo 1.951 641, que o
fideicomisso é estabelecido por meio de testamento642, em ato de última vontade do
fideicomitente, não impondo uma forma específica, todas descritas na seção 4.2.1 deste
trabalho, seja testamento público, cerrado ou particular643.
Sobre a dupla liberalidade, explicita Luiz Paulo Vieira de Carvalho 644
sem dupla vocação sucessória, não há fideicomisso, sendo imprescindível, além da
designação do fiduciário, sucessor em primeiro grau, a designação do
638
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
NADER, Paulo. Op. cit., 2016b, p. 424.
640
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
641
Ibid.
642
“A substituição fideicomissária por sua vez, é tema de grande polêmica, apresentando-se,
contemporaneamente, com muita raridade, tendo sido banida de algumas legislações. Entre nós outros, o Código
Civil de 2002 reduziu o espectro de cabimento, sem lhe negar restrita possibilidade. A Lei Civil alude ao
fideicomisso como mecanismo de substituição testamentária (CC, art. 1.952), silenciando quanto à sua
possibilidade na doação” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 416). Em
resposta aos doutrinadores, entende-se que não se pode instituir fideicomisso por doação, na medida em que o
instituto traz uma restrição ao direito de propriedade, em sua maioria das vezes do herdeiro necessário. Por se
tratar de norma restritiva de direito, não cogita em uma interpretação extensiva ou análoga da vontade
legislativa, que foi clara ao afirmar ser por testamento a instituição desse instrumento jurídico de planejamento
sucessório. Nesse último sentido, foi editado Enunciado n. 529, da V Jornada de Direito Civil.
643
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: direito das sucessões. V. 6. 16. ed. rev. atual.
Carlos Roberto Barbosa Moreira (atual.) Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 331.
644
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 737.
639
131
fideicomissário, sucessor em segundo grau, com ressalva de relevante
particularidade doutrinária: o fideicomissário, por ocasião da abertura do
fideicomisso, receberá os bens fideicomitidos não do fiduciário, mas do próprio
testador fideicomitente, pois a deixa fideicomissária implica numa só transmissão
em ordem sucessiva.
Ainda em relação à dupla liberalidade645, a Procuradoria do Estado do Rio de
Janeiro, sob a visão fiscal, tem defendido nas Varas de Órfãos e Sucessões e no Tribunal de
Justiça a dupla incidência do imposto de transmissão causa mortis, com base no artigo 1º, I,
da revogada Lei Estadual nº 1.427/89646, atualmente artigo 2º, I, parágrafo único, da Lei
Estadual nº 7.174/15647. Em outras palavras, na implementação do fideicomisso, com a
instituição da propriedade resolúvel para o fiduciário há a incidência do ITCMD, como
também com a propriedade suspensiva do fideicomissário, sendo a segunda verificada e
cobrada apenas quando do levantamento do gravame no Registro de Imóveis.
Além das críticas tecidas na seção 4.2.9 a respeito da Lei Estadual nº 7.174/15 ser
inconstitucional, a tese fiscal carece de embasamento legal, eis que não há transmissão de
propriedade entre o fiduciário e o fideicomissário na extinção do fideicomisso, apenas
consolidação da propriedade na titularidade deste, com a implementação de elemento
acidental do negócio jurídico648.
Nesse sentido, há decisão da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões649, da Dra. Andrea
Maciel Pachá,
[...] assim sendo, tendo sido recolhido o imposto de transmissão na instituição do
fideicomisso, não se poderá falar em novo pagamento na sua extinção, pois inexiste
previsão legal para a sua incidência. Por consequência, a procedência da pretensão
da Fazenda Pública violaria o princípio da legalidade do Direito Tributário, em que
só se permite a cobrança de tributo quando expressamente o legislador ditar a
incidência da norma sobre o negócio jurídico. Por todo o exposto, indefiro a
pretensão da Fazenda Pública quanto à incidência de ITD.
Corroborando tal entendimento, o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou de
forma idêntica, afastando a incidência do ITCMD, em desfavor do Fisco Estadual650.
645
“Do fideicomisso resulta o seu caráter essencial, que se resume em conservar para restituir, e daí decorrem
princípios que compõem a sua dogmática, em que está sempre presente a ideia de dupla convocação, a ser
atendida em ordem sucessiva” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., 2015, p. 333).
646
BRASIL.
Lei
Estadual
n.
1.427
de
2015.
Disponível
em:
<http://www.fazenda.rj.gov.br/sefaz/faces/oracle/webcenter/portalapp/pages/navigationrenderer.jspx?_afrLoop=174883956065930&datasource=UCMServer%23dDocName%3A98836&_adf.ctrlstate=15p81s2eg5_9>. Acesso em: 06 abr. 2017.
647
BRASIL.
Lei
Estadual
n.
7.174
de
2015.
Disponível
em:
<
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/bc008ecb13dcfc6e03256827006dbbf5/38c6d405dd5c89fd83257f1f006de
b65?OpenDocument>. Acesso em: 30 mar. 2017.
648
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 419.
649
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Processo n. 0100186-43.2011.8.19.0001.
Disponível
em:
<http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/popdespacho.jsp?tipoato=Descri%E7%E3o&numMov=30&de
scMov=Decis%E3o>. Acesso em 06 abr. 2017.
132
Além dos requisitos essenciais de um negócio jurídico, como existência, validade e
eficácia, dispostos no artigo 104, do Código Civil de 2002651, necessária a existência de
elementos acidentais na constituição do fideicomisso, a teor de seu artigo 1.951652, in fine.
Isto é, a substituição fideicomissária se extingue pela morte do fiduciário ou pelo implemento
de certo tempo ou de certa condição.
Conceitua Caio Mario da Silva Pereira653 os elementos acidentais, explicando
Diz-se que o negócio é puro e simples, quando a declaração de vontade se formula
sem a interferência de circunstâncias modificativas, operando seus efeitos, como
decorrência natural do impulso volitivo. (...) Permite, pois, a lei que a emissão de
vontade apareça limitada pelo próprio agente estabelecendo-se uma volição
complexa, em tais termos que o efeito do negócio jurídico se encontra na
dependência de fatores exógenos. A vontade, em vez de se emitir apenas com os
elementos essenciais do negócio – essentialia negotii – acrescenta-lhe modalidades
secundárias, (...). Como não integram o esquema natural do negócio, dizem-se
acidentais – accidentalia negotii -, não no sentido de que concretamente o negócio
se desenvolva sem elas, pois que na verdade vinculam-no para sempre, mas na
acepção de que a figura abstrata do ato negocial constrói-se sem a sua presença.
A teor do artigo 121, do Código Civil de 2002654, entendeu o legislador em
considerar condição como a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes,
subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto. A incerteza aqui avençada é
aquela objetivamente considerada, e não subjetiva, em que o sujeito não sabe ao certo se o
evento irá acontecer realmente, apenas eventualmente655.
Classificam-se as condições em: (i) casuais, nas quais o acontecimento independente
de vontade humana; (ii) potestativas, ao depender da vontade humana; (iii) (im)possíveis, na
hipótese é física e juridicamente (não) realizável; (iii) suspensiva, quando a eficácia do
negócio jurídico depende do acontecimento para surtir efeitos no plano jurídico; (iv)
resolutiva, ao vincular a cessação dos efeitos ao acontecimento; e (v) (i)lícita, quando o fato
(não) constitui proibição legal656.
O negócio jurídico, ao ter condição instituída, é indissociável de sua determinação
acessória, por isso, enquanto pendente, este ficará marcado pela incerteza jurídica da
650
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.004.707/RJ. Relator: Ministro José Delgado.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=786627&num_regi
stro=200702634757&data=20080623&formato=PDF>. Acesso em: 10 abr. 2017.
651
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
652
Ibid.
653
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil, teoria geral de
direito civil. V. 1. 21. ed. rev. atual. Maria Celina Bodin de Moraes (atual.). Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.
553.
654
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
655
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil, teoria geral de
direito civil. V. 1. 21. ed. rev. atual. Maria Celina Bodin de Moraes (atual.). Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.
556.
656
Ibid., p. 557-558.
133
provisoriedade quanto aos resultados657. Ainda assim, é permitido ao sujeito de direito
praticar atos de conservação e proteção, com base no artigo 130, do Código Civil de 2002658.
Já o termo ocorre quando as partes estipulam no negócio jurídico um prazo para a
eficácia daquele elemento acidental, ou seja, há “um momento em que começa ou cessa a
produção de seus efeitos”659, suspendendo o termo inicial o exercício do direito, mas não a
aquisição pelo titular, conforme artigo 131, do Código Civil de 2002660.
Para o termo, utiliza-se o tempo como fator constitutivo, podendo ser certo ou
incerto, a depender de omissão ou determinação expressa do testador-fideicomitente de data
para seu implemento661.
Na instituição do fideicomisso, o fiduciário, ao receber os bens em propriedade
resolúvel, tem o dever de conservá-los, posto que, ao se implementar a condição ou o termo
estipulado pelo testador-fideicomitente, consolidam-se, em propriedade plena, nas mãos do
fideicomissário, em respeito ao princípio da boa-fé que permeia todo o ordenamento jurídico.
Dentre esse dever, vislumbra-se sua outra face, qual seja, o direito do fiduciário de
receber os frutos percebidos e reter os bens por eventuais benfeitorias, bem como auferir
indenizações por desapropriação pelo Poder Público662.
Para Luiz Paulo Vieira de Carvalho663,
por conta do afirmado por Washington de Barros Monteiro, parte da doutrina e da
jurisprudência aceita a existência e validade da modalidade de fideicomisso sob a
forma de resíduo (ou residual, de eo quod supererit), em homenagem ao princípio da
obediência à vontade do testador. Ou seja, o testador pode permitir ao fiduciário
alienar livremente os bens recebidos, transmitindo-se ao fideicomissário apenas o
resíduo, isto é, o que vier a remanescer no dia da abertura do fideicomisso, embora
aparentemente deixe ao arbítrio do gravado decidir sobre a quantidade da herança ou
do legado que vai ser transferida ao substituto.
Todavia, não é esse o entendimento encampado pelo Superior Tribunal de Justiça, no
REsp nº 945.027/BA, de relatoria do Min. Ari Pargendler, DJe 24.11.2008, em que a venda
do imóvel, autorizada pelo Poder Judiciário, objeto de fideicomisso com sub-rogação real, foi
anulada, porque realizada “em prejuízo de menor fideicomissário ainda que mediante alvará
657
Ibid., p. 559.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
659
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil, teoria
direito civil. V. 1. 21. ed. rev. atual. Maria Celina Bodin de Moraes (atual.). Rio de Janeiro: Forense,
575.
660
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
661
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: introdução ao direito civil, teoria
direito civil. V. 1. 21. ed. rev. atual. Maria Celina Bodin de Moraes (atual.). Rio de Janeiro: Forense,
576.
662
CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Op. cit., p. 750.
663
Ibid., p. 748.
658
geral de
2006, p.
geral de
2006, p.
134
judicial em que representada pelo fiduciário, ante a aquisição de imóvel de valor
sensivelmente menor”664.
Em relação à capacidade passiva do fiduciário e do fideicomissário, trata-se de
requisito, no qual se verifica a aptidão do sujeito, herdeiro legatário ou testamentário, para
adquirir bens de acordo com a disposição de vontade do futuro inventariado, a teor dos artigos
1.798 e 1.799, do Código Civil de 2002665.
Presumidamente, por conflito de interesse, não podem figurar como beneficiários do
testamento, (i) a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou
companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos; (ii) as testemunhas do testamento; (iii) o
concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do
cônjuge há mais de cinco anos666; e (iv) o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou
escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento, com base no
artigo 1.801, do Código Civil de 2002667.
O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que isso é verificado, quanto ao
fiduciário, no momento da abertura da sucessão, e ao fideicomissário, por ocasião da
substituição.668
Por último, há duas vedações legais impostas pelo Código Civil, em seus artigos
1.952 e 1.959669.
A primeira se refere à restrição da instituição do fideicomisso apenas em favor dos
não concebidos ao tempo da morte do testador, a teor do artigo 1.952, do Código Civil de
2002670, ou seja, somente a prole eventual pode ser instituída como fideicomissária pelo
testador. Para alguns doutrinadores, essa vedação legal restringiu o alcance do instituto, uma
664
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 945.027/BA. Relator: Ministro Ari Pargendler.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=734904&num_regist
ro=200700921312&data=20081124&formato=PDF>. Acesso em: 10 abr. 2017.
665
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
666
Em decorrência da Emenda Constitucional n. 66 de 2010, não se discuti mais culpa, muito menos se exige
tempo para o cômputo dos institutos jurídicos de Direito de Família. Dessa forma, deve ser entendido tal
dispositivo sem as restrições de culpa e tempo, consideradas restrições não mais aplicáveis no Direito de Família
atual.
667
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
668
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 757.708/MG. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=855685&num_regi
stro=200500947370&data=20090226&formato=PDF>. Acesso em: 10 abr. 2017.
669
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
670
Ibid.
135
vez que “agora, os fideicomissos só poderão ser instituídos para beneficiar a prole eventual671
de pessoa indicada pelo titular do patrimônio transmissível mortis causa”672.
Apesar de existir essa restrição legal quanto ao fideicomissário, nada se impõe nesse
sentido quanto ao fiduciário. Sendo assim, pode o testador-fideicomitente nomear para
substituto-fiduciário pessoa de sua escolha, nomeando-se terceira pessoa estranha à relação
paterno-filial673.
Já a segunda vedação caracteriza-se pela impossibilidade de instituição do
fideicomisso além do segundo grau, sob pena de nulidade, a teor do artigo 1.959, do Código
Civil de 2002674. Em outras palavras, não se pode ter fiduciários sucessivos, nem
fideicomissários que se transformem, após implemento de condição ou termo, em fiduciários
de bens a serem transmitidos a outros fideicomissários675.
Não se deve confundir a nulidade pela instituição do fideicomisso de duplo grau com
a substituição vulgar no fideicomisso676, o que é permitido pelo Superior Tribunal de Justiça,
no caso de “o testador pode dar substituto ao fideicomissário para o caso deste vir a falecer
antes do fiduciário ou de se realizar a condição resolutiva, com o que se impede a caducidade
do fideicomisso”677.
Assim, por mais que ainda esteja previsto no ordenamento jurídico e seja um
instrumento de planejamento sucessório, opta-se por não incluí-lo como solução para os casos
hipotéticos selecionados - capítulo 1 - e solucionados - capítulo 5 -, em razão de sua
controvérsia e falta de aplicabilidade no dia-a-dia forense-registral.
671
O tema “prole eventual” trouxe, e ainda traz, muito debate doutrinário e jurisprudencial no Direito das
Famílias e das Sucessões. A discussão se inicia com a evolução tecnológica, que permite a reprodução assistida,
até o congelamento de embriões, com implicações na sua natureza jurídica, no nascimento de sua personalidade
jurídica e no seu direito sucessório. Apesar de se tratar de fascinante estudo, não se pode adentrar nessa seara,
sob pena de se fugir do tema principal deste trabalho (planejamento sucessório). Dessa forma, recomenda-se a
leitura de NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Nascituro e os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro: GZ, 2012
sobre os direitos do nascituro.
672
CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p. 347.
673
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., 2015c, p. 417.
674
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
675
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.221.817/PE. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1288361&num_re
gistro=201002032105&data=20131218&formato=PDF>. Acesso em: 10 abr. 2017.
676
“Alguns autores chamam a substituição fideicomissária também de compendiosa. Outros distinguem as duas
espécies, afirmando, com razão, que ‘esta substituição chama-se compendiosa, porque compreende a
substituição vulgar e a substituição fideicomissária; mas a substituição pode ser fideicomissária, sem que seja
compendiosa. Assim acontece se o testador dá substituto ao herdeiro instituído, quando este falecer depois de ter
aceitado a herança; e não para o caso de não querer, ou de não poder, o herdeiro instituído aceitar a herança’”
(GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., 2012, p. 297).
677
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.221.817/PE. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1288361&num_re
gistro=201002032105&data=20131218&formato=PDF>. Acesso em: 10 abr. 2017.
136
4.2.5. Bem de família
No ordenamento jurídico brasileiro, em decorrência de evolução legislativa,
doutrinária e jurisprudencial, existe atualmente uma visão dualista sobre o instituto do bem de
família – legal e voluntário -, sendo o primeiro disposto na Lei nº 8.009/90678 e o segundo no
Código Civil de 2002679.
Sob a ótica civil-constitucional680, com a funcionalização dos institutos jurídicos e a
promoção dos valores constitucionais, em especial a tutela da dignidade da pessoa humana 681,
“o bem de família é um meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde a
mesma se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e
até que os filhos completem sua maioridade”682.
Para Rolf Madaleno683,
[...] esse conceito tornou-se insuficiente diante do advento do Código Civil de 2002,
ao instituir bem de família voluntário, cuja abrangência foi ampliada para adiante da
proteção da moradia familiar, e assim procedeu ao permitir pelo artigo 1.712 do
Código Civil a constituição de um fundo patrimonial proveniente de valores
mobiliários e cuja renda será aplicada na conservação do imóvel familiar e no
sustento da família.
Em que pese a denominação em comum, o tratamento dispendido se diferencia para
cada um deles684, o que se passará a analisar.
678
BRASIL. Lei n. 8.009 de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8009.htm>.
Acesso em: 31 abr. 2016.
679
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
680
“A partir de 1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituição passou a desfrutar já não
apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica,
potencializada pela abertura do sistema jurídico e da normatividade de seus princípios. (...) Nesse ambiente, a
Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia -, mas também um
modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores
como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da
Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. (....) O direito de família, especialmente, passa por
uma revolução, com o destaque para a afetividade em prejuízo de concepções puramente formais ou
patrimoniais”. (BARROSO, Luís Roberto. A Constitucionalização do Direito e o Direito Civil. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Op. cit., 2008, p. 253-254; 258)
681
Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana dentro do Direito de Família, o Min. Luiz Edson Fachin
introduz a teoria do patrimônio mínimo a embasar o instituto do bem de família no ordenamento jurídico atual.
Afirma que “muito embora a teoria do patrimônio mínimo perpasse toda a ordem civilística, justamente, porque
não pode haver campo no direito privado em que o sujeito fique desagasalhado de sua dignidade, o lócus da
presente discussão se dará no campo do Direito de Família. (...) Reitere-se que o instituto do bem de família não
se confunde com a própria noção de patrimônio mínimo, contudo, inegável a sua importância na efetivação desta
teoria. De fato, a impenhorabilidade do bem de família resguarda um local de dignidade de indivíduos que não
pode se submeter a interesses meramente creditícios e patrimoniais. Nítida, portanto, a relação guardada entre
este conceito do Direito de Família e a essa teoria [...]” (FACHIN, Luiz Edson. Bem de Família e o Patrimônio
Mínimo. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Op. cit., p. 684). A fim de se aprofundar no tema,
recomenda-se, ainda, a leitura do livro de mesma autoria, sob o título “Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo”.
682
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família: comentários à Lei n. 8.009/90. 5. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 93.
683
MADALENO, Rolf. Op. cit., 2016, p. 1096.
684
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 679.
137
O bem de família legal é instituído pela Lei nº 8.009/90685, na qual, em seu artigo 1º,
dispõe que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e
não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra
natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele
residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.
Com base na interpretação conjunta686 de Código de Processo Civil de 2015, Código
Civil de 2002 e Lei nº 8.009/90 à luz da Constituição Federal de 1988, depreende-se que a
incidência do bem de família legal é automática e irrenunciável, sem necessitar de
requerimento das partes, tendo o legislador democratizado o instituto. Isso porque, apesar de
ter adentrado no ordenamento brasileiro por legislações anteriores687, sua efetiva
popularização se deu apenas com a entrada em vigor da Lei nº 8.009/90. Ressalta-se, ainda,
que sua eficácia retroagiu para atingir penhoras constituídas anteriormente688, a teor da
Súmula 205, do Superior Tribunal de Justiça689.
Nas palavras de Edson Fachin690,
com a instituição desta recente espécie de bem de família, nota-se uma preocupação
legislativa clara no sentido de assegurar maior guarida às famílias em face das
intempéries da vida e das mudanças a que todos estão submetidos, de modo que
685
BRASIL. Lei n. 8.009 de 1990. Op. cit.
Maurício Bunazar entende que as referidas legislações somadas à Constituição Federal de 1988 formam
Estatuto Jurídico da Impenhorabilidade, por trazerem o regramento completo da impenhorabilidade no
ordenamento jurídico brasileiro. (BUNAZAR, Maurício. O duplo tratamento legal do bem de família e suas
repercussões práticas. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José
Fernando. Op. cit., p. 416).
687
Em breve contextualização legislativa brasileira, relata Maurício Bunazar que “foi Coelho Rodrigues quem
primeiro se preocupou com o bem de família no Brasil, tendo-o feito em seu projeto de Código Civil de 1893,
(...). Percebamos que a proteção resumia-se à inalienabilidade e indivisibilidade do bem, o que em época de
acentuado prestígio da autonomia da vontade era considerável avanço. O Código Civil de 1916, em seu projeto
original, não continha a previsão do bem de família, mas graças a uma emenda durante a tramitação no Senado o
instituto foi incluído, tendo por sítio inicial a Parte Geral, no livro das Pessoas. Não tardou para que a matéria
fosse transferida para o Livro dos Bens. Posteriormente, a Lei 8.009, de 1990, baseada em trabalho de Álvaro
Villaça Azevedo, instituiu o bem de família legal, cuja principal vantagem é a de instituir a impenhorabilidade
do imóvel residencial independentemente de qualquer manifestação dos seus titulares, algo que sem dúvida
proporciona muito mais efetividade ao instituto. Finalmente, o Código Civil em vigor, Lei 10.406, (...), cuidou
do bem de família voluntário (...), tomando o cuidado de declarar textualmente a manutenção da vigência do bem
de família legal”. (BUNAZAR, Maurício. O duplo tratamento legal do bem de família e suas repercussões
práticas. In: Ibid., p. 413).
688
“E a Lei 8009/90 fez uma coisa que suscitou, na época, terríveis discussões, porque ela mandou cancelar as
penhoras anteriores à lei. Discutiu-se muito se isso não violaria o ato jurídico perfeito, o direito adquirido. Houve
centenas de ações em que se discutia a validade, ou não, das penhoras anteriores. Decidiu-se, finalmente, que a
lei não era inconstitucional, que não havia direito adquirido, nem ato jurídico perfeito, porque a penhora é um
mero ato de constrição judicial, que apenas garante um efeito futuro, que é a efetividade da sentença
condenatória.” (SOUZA, Sylvio Capanema de. O Bem de Família no Novo Código Civil. Coletânea de textos
CEPAD: direito das obrigações, vícios do ato jurídico, teoria das nulidades, bem de família. Rio de Janeiro:
Espaço Jurídico, 2005, p. 5).
689
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Verbete Sumular n. 205. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=@num=%27205%27>. Acesso em: 31 jan. 2017.
690
FACHIN, Luiz Edson. Bem de Família e o Patrimônio Mínimo. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.).
Op. cit., p. 687-688.
686
138
todos possam ter garantido seu acesso à moradia, direito constitucionalmente
previsto e de tutela obrigatória pelo Estado. Percebe-se também que entre a
segurança jurídica de acesso ao crédito pelo credor e o direito à moradia do devedor,
o legislador optou por este último, de cunho existencial, preferindo a tutela de sua
dignidade em face de dívidas que possa contrair a partir de negócios jurídicos
realizados. A partir dessa maior proteção conferida ao devedor, protege-se também
sua família e demais dependentes, de modo a evitar que fiquem sem domicílio.
Pode-se dizer que tal proteção é um ponto positivo na Lei n. 8.009/1990. Mesmo
assim, alguns autores como Sílvio de Salvo Venosa apontam algumas dúvidas
quanto aos seus propósitos sociais, já que segundo ele não há distinção entre a
moradia humilde e tosca e o palacete luxuoso e ostentativo. Ademais, segundo o
autor, esta Lei certamente dificultou o acesso dos credores ao crédito, prejudicando
diversas relações negociais.
Pela dicção legal, apenas entidades familiares se beneficiam com o instituto. Por
meio da funcionalização do Direito de Família691, o conceito de família se alterou, abrangendo
agora entidade familiares antes não protegidas692, como, por exemplo, unipessoais,
binucleares, homossexuais, etc. Em consequência dessa mudança, o instituto, idealizado
somente para a família tradicional – marido, mulher e filhos -, passou a proteger todos os
atuais tipos de entidades familiares, em observância de sua função social e da tutela da
dignidade da pessoa humana693.
691
“A passagem de família como instituição, protegida em si mesma, à família instrumental, isto é, aquela que
propicia um ambiente adequado ao desenvolvimento da personalidade de todos e de cada um de seus membros,
suscitou, indiscutivelmente, uma forte individualização e, em consequência, uma maior liberdade, ensejando, em
contrapartida, o confronto de duas forças claramente paradoxais: de um lado, a autonomia e a possibilidade de
crescimento individual e, de outro, a imprescindibilidade de compartilhamento de projetos comuns” (MORAES,
Maria
Celina
Bodin
de.
A
Família
Democrática.
Disponível
em:
<
http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/31.pdf >. Acesso em: 01 abr. 2016, p. 9)
692
“Quanto à diversidade na família, cabe reafirmar que o fenômeno familiar deixou de ser unitário, não se
constituindo o casamento mais como a única referência constitutiva do grupo familiar, como ocorria
antigamente. Juridicamente, de fato, admitem-se entidades diferenciadas. A própria Constituição, como se
salientou, reconhece, em rol exemplificativo, estruturas distintas de relacionamento familiar. De modo que outras
configurações são possíveis e até desejáveis. Além das uniões estáveis, das chamadas famílias recompostas e das
famílias monoparentais devem usufruir de proteção formas alternativas, tais como as famílias concubinas, as
famílias homoafetivas, a adoção de adultos, entre outras” (Ibid., p. 13).
693
“Rolf Madaleno entende que mesmo o bem de família voluntário se destina ao imóvel que cumpre o papel de
domicílio familiar, no entanto, seguindo a posição defendida por Paulo Lôbo, não há necessidade que o
instituidor de fato more no imóvel dado bem de família, visto que a instituição do bem de família voluntário,
pode ter caráter de garantia de subsistência, de modo que se a família do instituidor estiver residindo em outro
imóvel e este seja alcançado pela penhora, terá como garantia de refúgio o bem alçado ao patamar de bem de
família. Não poderá ser instituído o bem de família voluntário sobre direitos reais limitados (v.g. usufruto,
enfiteuse) ou sobre bens imóveis alheios, nem mesmo sobre a posse. Entretanto, não há qualquer óbice à
instituição de bem de família sobre bens com gravame real (v.g. hipoteca), uma vez que, considerando que a
proteção do bem de família consensual se projeta para o futuro, a garantia real instituída anteriormente à
elevação do bem ao status de bem de família voluntário não será atingida, podendo o bem imóvel ser executado
hipotecariamente, por exemplo” (FACHIN, Luiz Edson. Bem de Família e o Patrimônio Mínimo. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha (Coord.). Op. cit., p. 685). Sobre a instituição do bem de família em imóvel já gravado com
ônus reais (v.g. hipoteca), “há uma grande discussão entre os doutrinadores (...), J. M. Carvalho Santos, J.
Marques dos Reis e Serpa Lopes sustentam a possibilidade de instituição do bem de família sobre imóvel
hipotecado. Clóvis Beviláqua e Eduardo Espínola têm opinião contrária. Entendemos que a razão está com o
primeiro grupo de doutrinadores. Nada impede que um bem já onerado seja alienado, mas o adquirente recebe o
bem com o ônus. Da mesma forma, nada obsta que o bem hipotecado seja instituído como bem de família, mas,
neste caso, prevalece a hipoteca anterior, não podendo ser o bem isento da execução hipotecária. Aplica-se a
regra prior in tempore mellior in iure: o direito real registrado anteriormente prevalece sobre a instituição do
139
O Supremo Tribunal Federal694 e o Superior Tribunal de Justiça em várias
oportunidades demonstraram seguir essa nova vertente, tendo inclusive formulado enunciados
sumulares695 para retirar quaisquer dúvidas sobre a impenhorabilidade do bem de família dos
novos tipos de entidades familiares696.
Sobre a impenhorabilidade, característica do instituto, a Lei nº 8.009/90 abarca, em
seu artigo 1º, parágrafo único, “o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações,
as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional,
ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”. A teor de seu artigo 2º, parágrafo
único, “no caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados
que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário”. Por último, seu artigo
5º considera “residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para
moradia permanente”, a fim de ser abrangido pelo efeito da impenhorabilidade. Em seu
parágrafo único, explicita-se que “na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor
de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor
valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do
art. 70 do Código Civil”. 697
Além das exceções legais à impenhorabilidade, adiante abordadas nesta seção,
retirou desde logo o legislador essa proteção quanto aos veículos de transporte, as obras de
arte e os adornos suntuosos, de acordo com o artigo 2º, da Lei nº 8.009/90698, sob a
justificativa de não ser considerado bem essencial para a manutenção da vida, proteção do
indivíduo e de sua dignidade.
Passa a discorrer, então, Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego
Freitas Dabus Maluf699 sobre
vaga de garagem ou box de estacionamento que tenha matrícula diversa da matrícula
do bem de família não está resguardado pela impenhorabilidade, segundo julgou o
STJ. Todavia, a jurisprudência tem considerado impenhoráveis, quando guarnecem a
bem de família. No entanto, a família fica resguardada da ação de outros credores, cujas obrigações foram
constituídas posteriormente à instituição do bem de família” (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 681).
694
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, nas Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277/DF e ADPF n.
132/RJ, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar. Para tanto, entre outros argumentos, o
substantivo ‘família’ utilizado pela Constituição Federal de 1988 deve ser entendido como categoria sóciocultural e princípio espiritual, em que pessoas do mesmo sexo tem o direito subjetivo de constituir sua própria
entidade familiar.
695
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Verbetes Sumulares n. 364 e 486. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=@num=%27364%27>
e
<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=@num=%27486%27>. Acesso em: 31 jan. 2017.
696
MADALENO, Rolf. Op. cit., 2016, p. 1.099.
697
BRASIL. Lei n. 8.009 de 1990. Op. cit.
698
Ibid.
699
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Op. cit., p. 748-749.
140
residência, viabilizando a vida cotidiana, os seguintes bens: eletrodomésticos como
televisão, aparelho de som, fogão, geladeira, freezer, máquina de lavar roupa,
secadora, máquina de lavar louça, armários de cozinha, dormitórios, estofados,
aparelhos de jantar, etc. Por outro lado, são considerados penhoráveis bens como:
aparelho de ar condicionado, videocassete, aparelhos eletrônicos sofisticados, microondas, bicicleta, piscina de fibra de vidro, tidos por sofisticados pela jurisprudência.
(...) Excepcionalmente, já foi considerado impenhorável o bem que era destinado à
moradia e passou a ser alugado para que suas rendas servissem à manutenção da
própria família – entendido como bem de família indireto. Também imóvel deixado
pela família em razão da sua ínfima dimensão já foi considerado impenhorável.
Outra situação de interesse para a aplicação da indisponibilidade do bem de família
foi abordada pelo Des. Sylvio Capanema de Souza do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, em que, na eventualidade de o devedor ser condômino do imóvel, tal bem não poderá
sofrer medidas assecuratórias de satisfação do crédito, sob pena de violação de direito de
terceiro e do princípio da dignidade da pessoa humana.
Em relação às exceções legais, previstas no artigo 3º, da Lei nº 8.009/90, o bem
poderá sofrer penhora em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária,
trabalhista ou de outra natureza, quando (i) pelo titular do crédito decorrente do financiamento
destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos
constituídos em função do respectivo contrato; (ii) pelo credor da pensão alimentícia,
resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre
união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;
(iii) para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função
do imóvel familiar; (iv) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia
real pelo casal ou pela entidade familiar; (v) por ter sido adquirido com produto de crime ou
para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de
bens; e (vi) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação700.
Essa última exceção, prevista no inciso VII do referido artigo, inserido pela Lei nº
8.245/91701 – Lei do Inquilinato -, suscitou na época divergência doutrinária e jurisprudencial
quanto à discriminação do fiador ao seu direito de moradia. Em 2006, o Supremo Tribunal
Federal, no RE nº 407.688/SP702, de relatoria do Min. Cezar Peluso, em plenário, decidiu pela
inexistência de violação ao direito de moradia, previsto no artigo 6º, da Constituição Federal
700
BRASIL. Lei n. 8.009 de 1990. Op. cit.
BRASIL. Lei n. 8.245 de 1991. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm>.
Acesso em: 04 fev. 2017.
702
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 407.688/SP. Relator: Ministro Cezar Peluso.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=193&dataPublicacaoDj=06/10/2006&i
ncidente=2174853&codCapitulo=5&numMateria=32&codMateria=1>. Acesso em: 04 fev. 2017.
701
141
de 1988703, quando houver a penhora do bem de família do fiador pelos débitos do afiançado,
dos quais é responsável solidário. Em razão da teoria dos precedentes704, positivada pelo
Código de Processo Civil de 2015705, ainda em sua vacatio legis, o Superior Tribunal de
Justiça editou a Súmula nº 549706, posicionando-se em igual teor ao Supremo Tribunal
Federal.
Percebe-se que todas essas exceções legais gravitam em torno do imóvel, sendo
créditos contraídos pelo devedor em função do bem de família. O Poder Judiciário, em sua
função típica707, conseguiu de forma paulatina diferenciar a “moradia humilde e tosca” do
“palacete luxuoso e ostensivo”, em resposta às críticas doutrinárias à época708. Ademais, o
legislador infraconstitucional atento a eventuais distorções, relativizou a impenhorabilidade
do bem de família, dispondo em numerus clausus as exceções legais para o credor requerer
seu crédito.709
703
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
Nas palavras de Luís Roberto Barroso, “O Novo Código de Processo Civil acolheu categorias muito
semelhantes àquelas do direito estrangeiro, (...). Determinou=se em primeiro lugar, que o teor vinculante do
procedente, a ser observado pelas demais instâncias, corresponderá à tese jurídica afirmada pela corte ao decidir.
O conceito de tese jurídica adotado pelo novo Código parece guardar correspondência com o conceito de ratio
decidendi, (...). A tese jurídica constitui uma descrição da interpretação constitucional produzida pela Corte
como uma premissa necessária à decisão. Não se confunde com os próprios fundamentos da decisão, embora
estes sejam importantes para determinar-lhe o teor e o alcance. (...) Assim, a nova norma processual admite que
fatos diferentes podem ensejar o debate sobre questões jurídicas diversas. E prevê que um precedente só deve ser
aplicado quando o caso subsequente versar sobre a mesma questão de direito tratada no primeiro e desde que os
fundamentos utilizados para decidi-lo sejam aplicáveis à nova demanda. Do contrário, deve-se proceder à
distinção entre os casos, tal como ocorre no common law”. (BARROSO, Luís Roberto. MELLO, Patrícia
Perrone Campos. Trabalhando com uma Nova Lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Revista
da AGU, Brasília-DF, V. 15, n. 03, p. 34-35, jul./set. 2016)
705
BRASIL. Código de Processo Civil de 2015. Op. cit.
706
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Verbete Sumular n. 549. Disponível em: <
http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=@num=%27549%27>. Acesso em 04 fev. 2017.
707
“Explica Arruda Alvim: ‘podemos, assim, afirmar que função jurisdicional é aquela realizada pelo Poder
Judiciário, tendo em vista aplicar a lei a uma hipótese controvertida, mediante processo regular, produzindo,
afinal, coisa julgada, com o que substitui, definitivamente, a atividade e vontade das partes’. Dessa forma, a
função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, ou seja, julgar, aplicando a lei a um caso concreto, que lhe é
posto, resultante de um conflito de interesses. O Judiciário, porém, como os demais Poderes do Estado, possui
outras funções, denominadas atípicas, de natureza administrativa e legislativa. São de natureza administrativa,
por exemplo, concessão de férias aos seus membros e serventuários; prover, na forma prevista nessa
Constituição, os cargos de juiz de carreira na respectiva jurisdição. São de natureza legislativa a edição de
normas regimentais, pois compete ao Poder Judiciário elaborar seus regimentos internos, com observância das
normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos
respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32. ed.
rev. atual. São Paulo: Gen, 2016, p. 532-533).
708
Sobre o tema, há o artigo de Paulo Franco Lustosa, “de volta ao bem de família luxuoso: comentários sobre o
julgamento do recurso especial nº 1.351.571/SP”, publicado na Revista Brasileira de Direito Civil, V. 10, Abr.Jun./2016.
709
. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 1.35.571/SP, da relatoria para
acórdão do Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, DJe 11/11/2016, “em virtude do princípio da especificidade lex
specialis derogat legi generali, prevalece a norma especial sobre a geral, motivo pelo qual, em virtude do
instituto do bem de família ter sido especificamente tratado pelo referido ordenamento normativo, é
imprescindível, tal como determinado no próprio diploma regedor, interpretar o trecho constante do caput do
704
142
Já o bem de família convencional710, previsto no artigo 1.711, do Código Civil de
2002711, se constitui pela vontade do proprietário712, dando-se especial proteção à parcela de
seu patrimônio (imóvel, acessório, pertenças e valores mobiliários), desde que observado o
limite legal de 1/3 do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição.
Apenas essa espécie de bem de família é admitida para fins de registro na matrícula
do imóvel, a teor do Enunciado nº 4, do Conselho da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro713.
Não quis o legislador determinar um valor máximo específico, mas apenas uma
fração, por critério subjetivo, que resultará em diferentes limites a depender do caso concreto,
porque “o montante irá depender das condições econômico-financeiras deste, considerando a
relatividade de um terço do patrimônio do instituidor de classe baixa representar muito pouco,
enquanto o proveniente de um instituidor de classe média ou alta representa valores muito
mais significativos”714.
Tece Maurício Bunazar715 comentários a respeito:
via de regra, a doutrina aponta como vantagem do bem de família convencional o
fato de, respeitado o limite de um terço, (i) poder incidir sobre o imóvel de qualquer
valor – enquanto que na lei especial, havendo mais de um imóvel residencial, a
proteção é sobre o de menor valor -, (ii) bem como o fato de não excetuar da
incidência da proteção acessórios de elevado valor e, finalmente, (iii) só permitir a
penhora do imóvel por dívidas provenientes de tributos relativos ao prédio ou
despesas de condomínio. Porém, tais vantagens são criticáveis: só haverá a
possibilidade de voluntariedade instituir bem de família sobre imóvel de elevado
valor se o patrimônio do instituidor for alto, pois, além da existência de mais de um
imóvel residencial, deverá ser respeitada a limitação de um terço do patrimônio
líquido.
Essas vantagens só poderão ser realmente aproveitadas pelas famílias abastadas, não
sendo condizente com a realidade brasileira e, menos ainda, com a finalidade do instituto, que
visa proteger aqueles com dificuldades econômicas716.
artigo 1º ‘salvo nas hipóteses previstas nesta lei’, de forma limitada. Por essa razão, o entendimento do STJ é
pacífico no sentido de que às ressalvas à impenhorabilidade ao bem de família obrigatório, é sempre conferida
interpretação literal e restritiva. Precedentes”.
710
“A partir da vigência do novo Código, não apenas o prédio residencial, mas parte do patrimônio poderá ficar
isento das dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio ou as
despesas de condomínio. Portanto, o instituto é hoje muito mais amplo, visto que o patrimônio compreende não
só o prédio utilizado como residência da família, mas também outros bens suscetíveis de avaliação econômica”
(LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 680).
711
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
712
Para tanto, faz-se necessário registro anterior de título aquisitivo, a fim de instituir a propriedade como bem
de família, em observância do princípio da continuidade registral, com base no artigo 195, da Lei n. 6.015/73.
713
BRASIL. Tribunal do Estado do Rio de Janeiro. Enunciado n. 4, do Conselho da Magistratura. Disponível
em: < http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/30422/regist-public-cons-magist.pdf?=v23>. Acesso em: 07 abr.
2017.
714
MADALENO, Rolf. Op. cit., 2016, p. 1.101.
715
BUNAZAR, Maurício. O duplo tratamento legal do bem de família e suas repercussões práticas. In:
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Op. cit., p. 418419.
143
Ademais, o legislador infraconstitucional, ao condicionar a instituição do bem de
família convencional à lavratura de escritura pública ou testamento, não observou a finalidade
do instituto jurídico de proteção daqueles em dificuldade, tendo favorecido ao revés os
credores. A solenidade, exigida pelo Código Civil de 2002717, de fato dá maior segurança
jurídica às relações patrimonial, ante à publicidade registral718, mas, por outro lado, dificultou
o acesso dos menos favorecido à proteção, posto acarretarem maiores custos719. Excepcionase aqui as pessoas albergadas pela proteção legal da gratuidade de justiça, prevista nos artigos
88 e 89, do Código de Processo Civil de 2015720, naqueles não revogados da Lei nº
1.060/50721 e no artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal de 1988722.
Em geral, o instituidor do bem de família é integrante de seu núcleo duro, mas, pela
previsão do artigo 1.711, parágrafo único, do Código Civil de 2002 723, abre-se a possibilidade
de terceiro beneficiar, por meio de testamento ou doação, uma família, seja por afeto, seja por
dever moral, dependendo sua eficácia de expressa aceitação da entidade familiar beneficiada.
716
Ibid., p. 419.
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
718
“A oponibilidade erga omnes, que é características fundamental dos direitos reais, bem como da eficácia real
dos direitos obrigacionais, não pode ser alcançada pela pura dicção legal, no sentido de que um tal direito, tratase de um, trata-se de um direito real, sem que seja dado aos terceiros a possibilidade real de conhecer tais direitos
que lhe devam afetar. Mister se faz, para tanto, que haja um meio de cognoscibilidade para os terceiros que não
participaram da relação jurídica, mas que podem ser por ela afetados, sem que, não lhes pode ser oponível a
situação jurídica, a qual, portanto, não pode ter eficácia real. Tal cognoscibilidade é alcançada pela publicidade
jurídica. (...) O registro cria uma publicidade muito mais sólida e eficiente do que os institutos da publicidade até
então existentes, como a tradição e a posse. (...) Há uma tendência mundial de concentrar no Registro Imobiliário
todas as situações jurídicas que digam respeito aos imóveis e que devam ser oponível a terceiros, sem o que não
poderá tal oponibilidade de maneira absoluta, mas somente diante de uma análise casuística que reclama a
verificação acerca de ter havido, ou não, no caso concreto, conhecimento da situação jurídica por parte de
terceiro. (...) É patente a necessidade hodierna de se levar ao registro imobiliário todas as situações jurídicas
imobiliárias, reais e pessoais, que tenham o condão de atingir terceiros. Sem o registro, os terceiros de boa-fé não
podem ser atingidos porque não se lhes pode exigir o conhecimento da situação jurídica sobre a qual não há
cognoscibilidade (a não ser que se prove que tivesse conhecimento do fato por outro meio). (...) Se o devido
registro, ou o direito não nascerá, ou ele não será oponível erga omnes. É o que preconiza o princípio registral
imobiliário da inscrição, decorrente dos arts. 1.227 e 1.245 do CC/02, bem como dos arts. 167, 169 e 172 da Lei
6.015/1973. (...) Todas as situações jurídicas que devam ser oponíveis a terceiros contêm previsão legal para sua
publicidade registral no álbum imobiliário, vale dizer, todas as situações jurídicas que devem ser oponíveis a
terceiros devem ser publicizadas no registro imobiliário, sem o que não atingirão referida oponibilidade,
permanecendo na esfera meramente obrigacional, com eficácia inter partes. (...) Desse modo, nada inova a Lei
13.097/2015. Contém ela duas virtudes inegáveis. A primeira é a de trazer, novamente, a discussão a respeito da
eficácia material do registro imobiliário, tornando possível colocá-la no rumo certo, resgatando-a das tortuosas
digressões a que se a tem submetido em certos momentos, sem o devido estudo sistemático. (...) A segunda é de
ratificar o sistema registral existente, sua eficácia, e a necessidade de serem publicizadas certas situações
jurídicas sob pena de não se obter certo efeito jurídico (trata-se, portanto, de um ônus jurídico”(BRANDELLI,
Leonardo. Publicidade Registral Imobiliária e a Lei 13.097/2015. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 962, a.
104, p 219-236, dez, 2015).
719
MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Op. cit., p. 741.
720
BRASIL. Código de Processo Civil de 2015. Op. cit.
721
BRASIL.
Lei
n.
1.060
de
1950.
Disponível
em:
<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L1060compilada.htm>. Acesso em: 10 fev. 2017.
722
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
723
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
717
144
Para o Des. Sylvio Capanema de Souza724 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro:
[...] instituir bem de família por testamento vai trazer uma consequência
interessante. É que, em relação às dívidas do instituidor, os herdeiros vão ter que
pagá-las e o imóvel vai ter que ser penhorado. Por quê? Porque, se o bem de família
é constituído em testamento, é claro que a constituição só produzirá efeitos após a
morte do instituidor, que é o testador. E, consequentemente, todas as obrigações do
instituidor se considerarão anteriores à constituição e admitirão execução sobre o
imóvel. Portanto, o imóvel só vai ficar impenhorável em relação às obrigações dos
herdeiros, mas jamais do instituidor. Portanto, a instituição através de testamento,
vai perder um pouco do seu interesse prático.
Quanto ao procedimento de constituição, o bem de família voluntário só se
constituirá quando do registro do título - escritura pública, formal de partilha, carta de
adjudicação725 - na matrícula do imóvel, no Registro de Imóveis correspondente, a teor do
artigo 1.714, do Código Civil de 2002726. Contudo, a “imutabilidade de destinação e a
inalienabilidade não carecem de averbação para valer em face de terceiro, pois decorrem
diretamente do próprio registro do bem de família”727.
A teor do artigo 261, Lei nº 6.015/73728, “o instituidor apresentará ao oficial do
registro a escritura pública de instituição, para que mande publicá-la na imprensa local e, à
falta, na da Capital do Estado ou do Território”. Após o recebimento do título pelo Oficial
Registrador, dará este recibo ao apresentante, sendo a data do protocolo o marco temporal
para determinar a prioridade na inscrição, em observância do princípio da prioridade, com
base no artigo 182, do mesmo diploma legal. Em seguida, o Oficial Registrador terá 30 dias,
contados do protocolo, para realizar exame formal do título apresentado, em seus aspectos
intrínsecos e extrínsecos729. Observada alguma irregularidade, o Oficial Registrador não
efetuará o registro do título, ao contrário, de forma fundamentada, o recusará, explicitando as
razões de recusa, bem como as exigências a serem cumpridas 730. O apresentante poderá
cumprir as exigências levantadas ou suscitar dúvida731 à Vara de Registros Públicos732.
724
SOUZA, Sylvio Capanema de. Op. cit., 2005, p. 7.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 685.
726
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
727
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 20. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 647.
728
BRASIL. Lei n. 6.015 de 1973. Op. cit.
729
Para saber mais sobre o alcance e os limites do exame de qualificação pelo Oficial de Registros quanto aos
títulos apresentados, em seus aspectos intrínsecos e extrínsecos, recomenda-se a leitura de LOUREIRO, Luiz
Guilherme. Op. cit., p. 546-553.
730
“[...] Todas as exigências devem ser apresentadas de uma só vez, vedando-se a exposição por ‘capítulos’.
Embora a lei não estabeleça prazo para o término da qualificação, normas das Corregedorias de Justiça dos
Estados determinam que seja realizada no prazo de 10 dias, a partir do protocolo, para que sobrem 20 dias para o
cumprimento das exigências pelo apresentante (o prazo máximo para a realização do registro é de 30 dias)”.
(Ibid., p. 553)
731
O procedimento de dúvida registral está previsto no artigo 198, da Lei nº 6.015/73, tendo sua regulamentação
na Consolidação Normativa Parte Extrajudicial da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, formulado pelo Oficial Registrador e requerido pelo
725
145
Em que pese haver doutrina contrária733, os artigos 262 a 265, da Lei nº 6.015/73734,
estão em vigor e trazem as regras procedimentais específica para a constituição do bem de
família, tendo em vista que o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.714735, nada dispôs de
forma contrária, bem como a Lei de Registros Públicos ser especial quanto ao procedimento
registral a ser adotado.
Assim sendo, não havendo exigências, dúvidas e/ou reclamações, o Oficial
Registrador efetivará o registro deste instituto jurídico, transcrevendo a escritura,
integralmente, na matrícula do imóvel competente e no Livro nº 3 – Registro Auxiliar -736,
com remissões recíprocas, conforme artigo 263, da Lei nº 6.015/73737. Havendo reclamação
no prazo, o registro será suspenso, bem como cancelada a prenotação, com base no artigo 264,
do mesmo diploma legal738.
interessado, quando houver exigências a serem satisfeitas pelo apresentante do título a registro. Nos casos de não
concordar ou não puder cumpri-la, o interessado requere ao Oficial Registrador seja formulada dúvida ao juiz
competente, sendo no Estado do Rio de Janeiro o Juízo de Direito de Registros Públicos, conforme artigo 48, II,
Lei de Organização e Divisão Judiciária - LODJ. Suscitada a dúvida, o interessado é notificado para tomar
ciência do procedimento, com abertura de prazo de 15 dias a fim de impugná-la. No procedimento de dúvida, a
falta ou a intempestividade de impugnação do interessado não acarreta a decretação de revelia e suas
consequências formais e materiais. Em seguida, o Ministério Público é ouvido no prazo de 10 dias, como fiscal
da ordem jurídica, a teor dos artigos 200, da Lei nº 6.015/73 e 178, do Código de Processo Civil de 215.
Ressalta-se que, por ser procedimento de jurisdição voluntária, não há dilação probatória, com a realização de
perícia e de oitiva de testemunha, mas apenas documental, apresentada no original. Ademais, pode o juiz de
ofício determinar produção de prova documental complementar, pois o princípio da verdade real se impõe nos
casos de registros públicos em prol da segurança jurídica, da fé pública e do interesse social. Da sentença
proferida apenas caberão embargos de declaração e apelação pelo interessado, pelo Ministério Público e pelo
terceiro prejudicado, a teor do artigo 202, Lei nº 6.015/73, sendo as decisões interlocutórias e os despachos
irrecorríveis. Por último, em conformidade com o artigo 48, §2º, LODJ, as decisões proferidas na dúvida
registral são sujeitas ao duplo grau de jurisdição ao Conselho da Magistratura, não produzindo efeitos até sua
confirmação.
732
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 685.
733
“A constituição do bem de família produz efeitos a partir de sua inscrição no Registro Imobiliário (CC, art.
1.714), ou desde a data da prenotação da respectiva escritura pública. Não basta, portanto, a escritura pública de
instituição do bem de família voluntário, sendo necessária a sua inscrição no Registro de Imóveis. O artigo 261
da Lei n. 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos) exige a publicação de edital, nos expressos termos do artigo
262 (LRP), para que, em trinta dias, contados da publicação, algum prejudicado possa reclamar, e, se porventura
for apresentada alguma reclamação, é suspenso o registro e cancelada a prenotação. No entanto, o artigo 1.714
do Código Civil dispôs de forma distinta e manda unicamente registrar a escritura no Ofício de Imóveis, não
mais vigendo os artigos 261 e 262 da Lei dos Registros Públicos, também tendo sido revogados os seus artigos
263 e 264, pertinentes à reclamação de terceiros, isto porque eles poderiam reclamar no prazo de trinta dias
contados da publicação do edital, mas não há mais edital”. MADALENO, Rolf. Op. cit., 2016, p. 1.101.
734
BRASIL. Lei n. 6.015 de 1973. Op. cit.
735
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
736
“Se a instituição recair sobre bem de outra natureza, como valores imobiliários, o registro é feito apenas no
Livro 3, já que não há mutação jurídico-real a ser informada no cadastro imobiliário” (LOUREIRO, Luiz
Guilherme. Op. cit, p. 686).
737
BRASIL. Lei n. 6.015 de 1973. Op. cit.
738
Sobre ser o cancelamento da prenotação e, portanto, a perda da prioridade registral, há divergência doutrinária
sobre o momento em que ocorrerá. Para Ademar Fioranelli, em seu livro Direito Registral Imobiliário, p. 26-27),
“bastará haver reclamação, por mais absurdo ou infundada que seja, para propiciar o cancelamento da
prenotação”. Em sentido contrário, Valmir Pontes e Murillo Renault Leite. Na visão desses doutrinadores, o
146
De toda sorte, o princípio constitucional do contraditório será respeitado, podendo o
interessado ainda assim requerer o registro do ato, produzindo em juízo a prova de
solvência739.
Cumpre ressaltar que a extinção do bem de família convencional ocorre com a morte
do instituidor e, existindo, de seu cônjuge ou companheiro, como também com a maioridade
dos filhos, no caso já terem ocorrido esse(s) falecimento(s), a teor do artigo 1.722, do Código
Civil de 2002740.
Por último, as Lei nº 6.015/73, Lei nº 8.009/90 e Código Civil de 2002 poderão ser
aplicadas simultaneamente, desde que respeitado o princípio da especialidade e a
interpretação restritiva das exceções legais. Contudo, “quando se constatar a preferência e
escolha do bem de família voluntário respeitar-se-á a vontade da família e afastar-se-á a
incidência do bem de família legal, pois só se permite a aplicação de apenas um deles no caso
concreto”741.
Assim sendo, a depender dos objetivos do planejador sucessório, estando entre eles
uma maior proteção do cônjuge ou companheiro e/ou dos filhos menores, o presente
instrumento jurídico possui um importante papel, em especial quanto às dívidas posteriores ao
planejamento, se for por escritura pública, e ao óbito, se for por testamento.
efetivo cancelamento da prenotação só ocorreria após o pronunciamento judicial, que é irrecorrível, pois a
reclamação pode ser abusiva, apenas para prejudicar direito de terceiro, o que não é protegido pelo Direito.
739
O tema foi questão de prova da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, em 18/03/2014,
destinada a auferir conhecimento dos alunos do CPI A, com a seguinte redação: “Em relação ao bem de família
convencional, importante instrumento de proteção do núcleo familiar, pergunta-se: A) Poderia o Oficial do
Registro do RGI exigir a comprovação do estado de solvência dos instituidores no ato da constituição do bem de
família convencional? B) E como ficaria a situação jurídica do credor dos instituidores que já tenha crédito
assegurado no momento da instituição”. Em resposta, dissertou-se “A) Doutrinariamente, elucida haver dois
tipos de bens de família, o legal e o convencional. O segundo está previsto nos artigos 1.711 a 1.722, do Código
Civil de 2002. No artigo 1.711, explica-se que para constituir bem de família deverá ser feito por autonomia
privada através de escritura pública ou testamento, ou seja, é ato voluntário. Contudo, essa voluntariedade está
limitada pelo próprio artigo, quando aduz não poder ultrapassar 1/3 do patrimônio líquido. Assim, interpretandose tal dispositivo, pode-se concluir que não poderá exigir o Oficial do Registro comprovação do estado de
solvência, mas sim o requisito legal. Essa limitação, por si só, já é uma garantia para os credores de não serem
ludibriados com a impenhorabilidade da instituição do bem de família convencional, pois haverá patrimônio
líquido (2/3) suficiente capaz de garantir as dívidas. B) O artigo 1.715, do Código Civil de 2002 explicita regra,
em que só será isento de execução o bem de família por dividas posteriores, ou seja, a impenhorabilidade só se
impõe àquelas dívidas constituídas pós registro. A contrário senso, pode-se afirmar que aqueles credores com
dívidas anteriores ao momento da constituição do bem de família poderão executar livremente, não podendo-lhes
ser oposta a impenhorabilidade”. Em complemento, Walter Ceneviva dispõe que “[...] o instituidor não é
obrigado a produzir, perante o cartório imobiliário, prova antecipada de sua solvência. Só a reclamação detona o
procedimento probatório, o qual não carece de ter, necessariamente, feição contenciosa, podendo processar-se
perante o juiz corregedor ao qual estiver subordinado o cartório” (CENEVIVA, Walter. Op. cit., p. 654).
740
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
741
FACHIN, Luiz Edson. Bem de Família e o Patrimônio Mínimo. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.).
Op. cit., p. 687.
147
4.2.6. Planos de previdência complementar privada
Em seu artigo 202742, a Constituição Federal de 1988 previu o regime da previdência
privada complementar, assegurando-lhe sua autonomia e seu caráter facultativo em
contraposição ao regime geral da previdência social.
Por seus elementos limitativos e sócio-ideológicos743, a Constituição Federal de 1988
dispôs, em linhas gerais, direitos sociais do ser humano, garantindo, a depender da autonomia
da vontade, a aposentadoria complementar. A estrutura propriamente dita e os direitos dos
indivíduos foram posteriormente positivados pela Lei Complementar nº 109/01744, que tãosomente serviu para efetivar as garantias constitucionais estabelecidas, sem modificá-las ou
restringi-las745.
Elucida Patrícia Bressan Linhares Gaudenzi746, que
a ausência de definição, pela Constituição Federal, de critérios rígidos para a
previdência complementar tem sua razão de ser por se tratar de um regime
autônomo, facultativo e voltado para a iniciativa privada. Por isso, não caberia à Lei
Magna impor limites rigorosos para sua operacionalização, reservando-se ao
legislador complementar a definição de princípio gerais, parâmetros contratuais,
atuariais, financeiros e de investimento, bem como a imposição de responsabilidade
aos agentes operadores do sistema.
Por meio da Lei Complementar nº 109/01747, definiram-se os objetivos principais das
entidades de previdência complementar e do Estado; as classificações dessas entidades em
742
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 44.
744
BRASIL.
Lei
Complementar
n.
109
de
2001.
Disponível
em:
<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp109.htm>. Acesso em 04 mar. 2017.
745
Nas palavras de Luís Roberto Barroso, “o direito constitucional não é apenas um sistema em si, mas uma
forma – na verdade, a forma adequada, de ler e interpretar as normas dos demais ramos do Direito, isto é, todas
as normas infraconstitucionais. Além disso, no caso brasileiro, em que vige uma Constituição especialmente
analítica, nela se encontram os grandes princípios dos diferentes domínios jurídicos. (...) Nessa linha, o direito
constitucional se identifica com o conjunto de normas dotadas de superioridade hierárquica em relação às demais
normas do sistema jurídico, às quais fornecem fundamento de validade, não estando elas próprias fundadas em
qualquer outra forma”. (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 74)
746
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Tributação dos Investimentos em Previdência Complementar
Privada: fundos de pensão, PGBL, VGBL, FAPI e outros. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 41.
747
“Quando da edição da Emenda Constitucional nº 20/98, que passou a prever o regime de previdência privada
no texto da Constituição Federal de 1988, este segmento estava regulado em esfera infraconstitucional pela Lei
nº 6.435/77, isto é, por lei anterior à própria instituição da ordem constitucional vigente. Apesar de tratar de
alguns dos importantes aspectos da previdência complementar privada – como, por exemplo, a definição de
parâmetros mínimos de operacionalização dos planos de benefícios, a sua administração por entidades abertas e
fechadas de previdência privada, e a atuação do Estado como agente regulador e fiscalizador do setor -, a Lei nº
6.435/77 não preenchia, integralmente, o perfil traçado pelo art. 202 da Carta Magna. Por esta razão, a Emenda
Constitucional nº 20/98 previu, em seu artigo 7º, que ‘os projetos das leis complementares previstas no art. 202
da Constituição Federal deverão ser apresentados ao Congresso Nacional no prazo máximo de 90 dias após a
publicação desta Emenda’. A Lei Complementar nº 109/01, porém, somente foi publicada quase dois anos e
meio após a reforma constitucional, o que significou a disciplina defasada da Lei nº 6.435/77 por mais dois anos
após o estabelecimento de disciplina constitucional da previdência privada”. (Ibid., p. 42)
743
148
fechadas ou abertas; os princípios específicos aplicáveis; os limites legais na estruturação dos
planos de benefícios previdenciários complementares; a responsabilidade civil, administrativa
e penal das entidades e seus dirigentes; a fiscalização pelo Estado; a intervenção e a
liquidação extrajudicial das entidades de previdência complementar; e os critérios gerais de
custeio dos planos748.
Nessa esteira, depreende-se que o regime de previdência complementar privada tem
como características: (i) a complementariedade; (ii) a autonomia em relação ao regime geral
de previdência social; (iii) a independência financeira em relação ao Poder Público; (iv) a
facultatividade; (v) a regulamentação em lei complementar específica; e (vi) a publicidade na
gestão749.
Trata-se de instituto jurídico do direito privado, de cunho predominantemente
patrimonialista, em que se formaliza, por meio de contrato, a vontade das partes de constituir
reserva financeira a fim de garantir benefício previdenciário complementar 750 ao da
previdência social e dos servidores públicos751. A contraprestação para a entidade
previdenciária será a disposição dos aportes recursais e consequentes juros compensatórios,
bem como o pagamento de taxas próprias pelo participante.
Dessa forma, os benefícios assegurados, a forma de pagamento, as contraprestações
mútuas, os deveres e as responsabilidades das partes são definidos no próprio contrato,
valendo no mundo jurídico, desde que respeitados os limites legais e os princípios contratuais.
A teor do artigo 3º, da Lei Complementar nº 109/01752, o Estado fica restrito, em sua
participação, ao controle e à fiscalização das normas aplicáveis na relação privada, sem
qualquer complementação ou suplementação nos custeios do plano753.
Em que pese o termo complementar a indicar a existência de uma base anterior, a
previdência privada, por seu caráter autônomo, é acessível a todos, não necessitando de
vínculo jurídico prévio com os regimes da previdência social e dos servidores públicos para
contratá-la754, com base no artigo 68, §2º, da Lei Complementar nº 109/01755.
748
BRASIL. Lei Complementar n. 109 de 2001. Op. cit.
MORAES, Alexandre. Op. cit., p. 876-877.
750
“No caso específico das entidades de previdência privada, o texto constitucional e o texto legal mencionam o
termo complementar, a fim de indicar que, efetivamente, não se trata de substituir benefícios assegurados pelo
regime geral da previdência social, ou de instituir um regime previdenciário alternativo ao regime geral, mas,
sim, de servir como meio para complemento, como um adicional aos benefícios assegurados pela previdência
social geral” (GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 50).
751
MORAES, Alexandre. Op. cit., p. 877.
752
BRASIL. Lei Complementar n. 109 de 2001. Op. cit.
753
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 46.
754
No tocante ao tratamento tributário das contribuições efetuadas pela pessoa física para o plano de previdência
privada, será possível observar adiante que a sua dedutibilidade para fins de apuração do imposto de renda está,
749
149
Para Heloisa Hernandez Derzi e Fabiana Ulson Zappa756:
afirma-se que o traço constitucional de complementariedade da previdência privada
fica profundamente maculado quando a atual legislação dissocia a necessidade de
haver obtido a necessária implementação do benefício no regime previdenciário
público para que se dê a cobertura do Plano Privado. (...) Na previdência privada, ao
revés, existe a ordem de sucessão vocacional do Direito Civil, que beneficia os
herdeiros necessários ou o beneficiário indicado na proposta de inscrição do plano.
Por seu caráter facultativo, ninguém é obrigado a aderir um plano de previdência
privada, seja ele fechado ou aberto, conforme artigo 16, §2º, da Lei Complementar 109/01 757.
Qualquer um poderá contratar com as entidades de previdência privada um plano, desde que
assim deseje e observe os ditames procedimentais. Após aderir à previdência privada, a
facultatividade permanecerá sempre na relação jurídica, a fim de permitir ao indivíduo a
manutenção, a rescisão ou a alteração das condições contratadas.
Ademais, diferencia-se também a previdência complementar privada do regime geral
da previdência social e dos servidores públicos, na medida em que sua capitalização se dá
pela acumulação de capital, enquanto no regime geral utiliza-se a ideia da força de trabalho
das gerações posteriores para garantir o benefício das gerações anteriores758.
As entidades de previdência complementar devem, ao instituir seus planos, atender
aos fins econômicos do contrato, buscando-se o equilíbrio da relação, bem como a segurança
atuarial, a liquidez e a solvência, por determinação do artigo 29, I, da Lei Complementar nº
109/01759 e dos princípios contratuais.
De acordo com os artigos 14, III e 27, da Lei Complementar nº 109/01760,
diferenciam-se os planos de previdência privada do regime geral da previdência social ou dos
servidores públicos, entre outros aspectos, quanto à possibilidade de resgate761 dos aportes
contudo, condicionada à contribuição para o regime geral da previdência social ou para o regime próprio da
previdência dos servidores públicos – condição não aplicável apenas aos participantes aposentados por um
desses regimes (Ibid., p. 51).
755
BRASIL. Lei Complementar n. 109 de 2001. Op. cit.
756
DERZI, Heloisa Hernandez; ZAPPA, Fabiana Ulson. A Tributação e o Caráter Social da Previdência
Complementar. Revista de Direito Social, V. 6, nº 21, Porto Alegre, Ed. Notadez, Jan./mar., 2006, p. 11/35.
757
BRASIL. Lei Complementar n. 109 de 2001. Op. cit.
758
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 58.
759
BRASIL. Lei Complementar n. 109 de 2001. Op. cit..
760
Ibid.
761
Além do resgate, outros institutos podem estar inseridos no âmbito do regime de previdência complementar
(benefício proporcional diferido, portabilidade e autopatrocínio). A respeito deles, vale mencionar o
esclarecimento pontual e objetivo dado por Andréa Nogueira Neves e Fabiana Ulson Zappa: ‘Além desses
benefícios previdenciários, a Lei Complementar nº 109/01 também estabelece alguns institutos que
necessariamente devem estar previstos nos planos de benefícios de caráter previdenciário administrados por
Entidades Fechadas: (i) o benefício proporcional diferido, que é a possibilidade de o participante do plano
coletivo, em razão da cessação do vínculo empregatício com o patrocinador ou associativo com o instituidor,
antes da aquisição do direito ao benefício pleno, permanecer vinculado ao plano até que cumpridos os requisitos
de elegibilidade ao benefício; (ii) a portabilidade do direito acumulado pelo participantes para outro plano,
administrado por Entidade Aberta ou Entidade Fechada; (iii) o resgato (...); (iv) o autopatrocínio, faculdade de o
150
financeiros realizados, mesmo antes do termo a quo para pagamento do benefício contratado.
Tal resgate pode ser parcial ou total e repercute na dinâmica contratual762.
Compõem relações jurídicas de um contrato de previdência privada complementar:
(i) participante e entidade administradora do plano de benefícios; (ii) pessoa jurídica
patrocinadora e a entidade de previdência, nos planos fechados, e (iii) entre o patrocinador e o
participante, nos planos fechados. O entrelaçamento dessas relações jurídicas intersubjetivas
garante ao final o recebimento pelo participante, ou terceiro nomeado, de aposentadoria
complementar privada763.
Para efeitos legais, considera-se participante a pessoa física que aderir ao plano de
benefícios, e assistido o participante ou seu beneficiário em gozo do benefício de prestação
continuada, com base no artigo 8º, da Lei Complementar nº 109/01764.
O que se percebe, assim, é não ser a manutenção do vínculo empregatício ou
associativo com o patrocinador algo essencial para a continuidade do contrato já firmado de
previdência complementar. A condição de participante é adquirida no momento do ingresso
no plano de benefícios. Por outro lado, condição de assistido – participante ou beneficiário
nomeado – advém apenas após a fase de acumulação de capitais765.
Ademais, ambas as figuras – participante e assistido – são necessariamente pessoas
físicas, pois o pagamento dos benefícios assegurados por planos previdenciários não é
compatível com a natureza jurídica de pessoas jurídicas766.
Apesar disso, a pessoa jurídica pode se inserir na relação contratual, observada a
autonomia da vontade, como patrocinadora de plano de benefícios previdenciários, bem como
participante manter-se vinculado ao plano, opção na qual será obrigado a arcar com o valor de sua contribuição e
a do patrocinador, no caso de perda parcial ou total da remuneração recebida. Por sua vez, em relação aos planos
administrados pelas Entidades Abertas, o artigo 27 da Lei Complementar nº 109/01 garante aos participantes o
direito irrestrito ao exercício do resgate e portabilidade de recursos das reservas técnicas, provisões e fundos,
total ou parcialmente (...)’”. (GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 60-61)
762
Importante lição traz Patrícia Bressan Linhares Gaudenzi, em seu livro Tributação dos Investimentos em
Previdência Complementar Privada: fundos de pensão, PGBL, VGBL, FAPI e outros, ao ressaltar a
diferenciação entre resgate e pagamento do benefício. Para a autora, “diferencia-se essencialmente do pagamento
de benefícios de aposentadoria, porque, enquanto o resgate corresponde a um pagamento extraordinário,
ocorrido por solicitação do participante, conforme sua conveniência, ou por desligamento do plano (no caso dos
planos operados por entidades fechadas de previdência complementar), o pagamento de benefícios é definido
desde a contratação do plano, com a finalidade primordial de proporcionar complementação à aposentadoria do
participante ou de auxiliar na subsistência de seus beneficiários, em não ocorrendo a sobrevivência do
participante. Observe-se, portanto, que, independentemente da forma como é pago – se em parcelas periódicas
ou em parcela única -, o resgate não se confunde com o pagamento de benefícios, por sua natureza jurídica. Tal
distinção torna-se importante não apenas para fins contratuais, mas também para determinação do tratamento
tributário ao qual tais institutos estão sujeitos” (Ibid., p. 60).
763
Ibid., p. 64.
764
BRASIL. Lei Complementar n. 109 de 2001. Op. cit..
765
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 65-67.
766
Ibid., p. 65.
151
entidade administradora da previdência complementar. Na primeira hipótese, o indivíduo
interessado em adentrar no plano patrocinado deve exibir vínculo empregatício ou associativo
com a patrocinadora767.
Expõe Roberto Quiroga Mosquera768:
as pessoas jurídicas, nos planos de previdência complementar, podem figurar apenas
como patrocinadores, instituidores ou averbadoras, sendo: (i) as primeiras, aquelas
que participam do custeio de plano de benefícios oferecido por entidades fechadas
de previdência complementar; (ii) as instituidoras, pessoas jurídicas que participam
do custeio do plano de benefícios oferecidos por entidades abertas de previdência
complementar; (iii) as averbadoras, as que, em planos também oferecidos por
entidades abertas de previdência complementar, não participam do custeio, mas
figuram como intermediárias na relação jurídica entre o participante e a entidade de
previdência, inclusive para arrecadar as contribuições devidas pelo participante.
Em razão da autonomia da vontade, os planos de benefícios previdenciários
complementar são considerados unidades separadas, ou seja, cada um tem suas características
próprias com seus respectivos regulamentos e normas, a depender da contratação efetivada
entre particular e entidade de previdência privada.
A entidade de previdência complementar, aberta ou fechada, pode administrar mais
de um plano de benefícios, conforme artigos 16 e 26, da LC nº 109/01 769 e Resolução nº
14/04, do Conselho de Gestão Previdenciária Complementar770. Nesse sentido, “os ativos e
passivos de cada um deverão estar segregados contábil, financeira e atuarialmente, para o fim
de individualizar os planos de benefícios, visto que cada um é específico no tocante às suas
condições de operacionalização, conforme contratualmente firmado” 771.
Dentre os planos disponibilizados, classificam-nos segundo a modalidade do
benefício concedido.
Consideram-se (i) “benefícios definidos” aqueles aquele cujos
benefícios programados têm seu valor ou nível previamente estabelecidos, sendo o custeio
determinado atuarialmente, de forma a assegurar sua concessão e manutenção; (ii)
“contribuições
definidas”
aquelas
cujos
benefícios
programados
têm
seu
valor
permanentemente ajustado ao saldo de conta mantido em favor do participante, inclusive na
fase de percepção de benefícios, considerando o resultado líquido de sua aplicação, os valores
aportados e os benefícios pagos; e (iii) “contribuições variáveis” aquelas cujos benefícios
programados apresentem a conjugação das características das modalidades de contribuição
767
Ibid., p. 68.
PÓVOAS, Manual Soares. Previdência Privada: planos empresariais. Fundação Escola Nacional de Seguros
– Editora, 1991, p. 31-32.
769
BRASIL. Lei Complementar n. 109 de 2001. Op. cit.
770
BRASIL. Conselho de Gestão Previdenciária Complementar. Resolução n. 14 de 2004. Disponível em:
<http://www.previdencia.gov.br/arquivos/office/3_081014-110811-827.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2017.
771
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 78.
768
152
definida e benefício definido, a teor dos artigos 2, 3 e 4º, respectivamente, da Resolução nº
16/05, do Conselho de Gestão da Previdência Complementar772.
Além de classificados pela modalidade do benefício, também se distinguem os
planos quanto ao sujeito, podendo ser coletivos ou individuais. Os planos coletivos são
“oferecidos exclusivamente a pessoas físicas que possuam vinculo empregatício com uma
determinada pessoa jurídica ou a pessoas físicas que possuam vinculo empregatício com
pessoas jurídicas integrantes de um grupo de controle societário comum – neste caso,
assemelham-se, quanto à sua destinação, com os planos fechados”, custeados pelo
participante e/ou pessoa jurídica com relação contratual. Já os planos individuais são aqueles
que qualquer sujeito pode aderir, independente de vínculo com a pessoa jurídica, custeados
exclusivamente pelo participante773.
A fim de facilitar seu acesso ao público, as entidades de previdência complementar,
de forma sistemática, padronizaram os planos oferecidos, denominando-os: Plano Gerador de
Benefícios Livres - PGBL, Plano de Atualização Garantida e Perfomance – PAGP, Plano
Remuneração Garantida e Perfomance – PRGP, Plano com Remuneração Garantida e
Performance sem Atualização – PRSA e Plano de Renda Imediata - PRI774.
Não se deve confundir, apesar de comum no dia-a-dia, plano de previdência
complementar privada com fundo de pensão e/ou seguro de vida. Todos são instrumentos de
planejamento sucessório, mas cada qual com suas características específicas.
Em decorrência de sua versatilidade atrelada à autonomia da vontade, os planos de
previdências complementar privada são inúmeros, não sendo possível, pois, neste trabalho
adentrar mais nesse instrumento. Como dito, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
202, dispôs normas gerais a serem aplicadas indistintamente aos planos, sendo, em verdade,
limite claro a eventuais ingerências das entidades de previdência, em proteção aos
participantes e beneficiários.
No âmbito do Direito Sucessório, em especial do planejamento sucessório, vê-se a
aplicação desse instituto moderadamente, sendo aos poucos substituído, apesar de não
idênticos, com os seguros de vida. A previdência complementar privada foi desenvolvida
claramente para assegurar ao participante mais conforto em sua idade avançada. Além desse
óbvio benefício, o instituto também pode ser usado, no planejamento sucessório, como forma
772
BRASIL. Conselho de Gestão Previdenciária Complementar. Resolução n. 16 de 2005. Disponível em:
<http://www.previdencia.gov.br/arquivos/office/3_081014-110808-216.pdf >. Acesso em: 17 mar. 2017.
773
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 80.
774
BRASIL. Superindentência de Seguros Privados - SUSEP. Previdência Complementar Aberta. Disponível
em: < http://www.susep.gov.br/setores-susep/cgpro/copep/previdencia_aberta>. Acesso em: 17 mar. 2017.
153
de disposição rápida de patrimônio líquido, a fim de manter os herdeiros nos primeiros
momentos de desamparo após o falecimento do participante.
4.2.7. Seguro de vida
Como forma alternativa para os planos de previdência complementar privada, em
uma elisão tributária775, instituiu-se o seguro de vida, denominados Vida Gerador de
Benefícios Livre - VGBL, Vida com Atualização Garantida e Performance – VAGP, Vida
com Remuneração Garantida e Performance - VRGP776 – no ordenamento jurídico. Esses
planos securitários se diferenciam dos planos de previdência complementar privada, na
medida em que não é possível sua dedução (i) na declaração ao Fisco do Imposto de Renda de
Pessoa Física; e (ii) consequentemente, no recebimento dos valores pagos pela entidade de
previdência privada777.
O seguro de vida, espécie de seguro de pessoas, é disciplinado no Código Civil de
2002 em seus artigos 789 e ss778. Trata-se de tipo contratual, em que se assegura o risco morte
mediante contraprestação de prêmio, até a extinção contratual ou o falecimento. Nesse último
caso, implementado o sinistro, fica a seguradora obrigada ao pagamento de indenização
acordado para os beneficiários indicados pelo falecido ou, na sua omissão, os beneficiários
legais779.
Pela sistemática do Código Civil de 2002, ao regulamentar a matéria, resta claro que
o seguro de vida tradicional tem dois elementos essenciais: (i) o titular segurado não se
beneficia da cobertura do risco contratada, bem como dos valores pagos em contraprestação à
seguradora; e (ii) com o advento do sinistro, a indenização paga pela seguradora aos
beneficiários mantém uma correlação aos valores dos prêmios pagos pelo titular780.
Todavia, nessas novas modalidades contratuais de seguro de vida, quais sejam,
VGBL, VAGP e VRGP, também chamado de seguro de vida com cobertura por
sobrevivência, esses elementos essenciais supracitados se modificam, apesar de manterem sua
775
“A elisão fiscal é a conduta consistente na prática de ato ou celebração de negócio legalmente enquadrado em
hipótese visada pelo sujeito passivo, importando isenção, não incidência ou incidência menos onerosa do tributo.
A elisão é verificada, no mais das vezes, em momento anterior àquele em que normalmente se verificaria o fato
gerador. Trata-se de planejamento tributário, que encontra guarida no ordenamento jurídico, visto que ninguém
pode ser obrigado a praticar negócio da maneira mais onerosa”. (ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário
Esquematizado. 7. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 269)
776
BRASIL. Superindentência de Seguros Privados - SUSEP. Previdência Complementar Aberta. Op. cit.
777
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 83.
778
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
779
GAUDENZI, Patrícia Bressan Linhares. Op. cit., p. 84.
780
Ibid.
154
estrutura. Explica-se: “o titular do seguro poderá receber o valor em vida e o valor a ele pago
guardará correspondência com os aportes de recursos (prêmios) por ele realizados ao plano”
781
.
Com essas novas características, tem-se um contrato de seguro de vida com
contornos de previdência complementar, trazendo maior versatilidade ao instrumento jurídico
e enquadrando-o como instrumento de planejamento sucessório782.
Ademais, importam também em incidência diferenciada de tributação em relação ao
imposto de renda. Apesar do benefício quanto ao imposto de renda, esse investimento
securitário gera impactos em outros tributos a serem pagos, tais como o IOF783.
Além dessa peculiaridade da tributação, os planos de seguro de vida se assemelham
aos planos de previdência complementar privada, em especial quanto à sua estrutura
financeira, atuarial, administrativa, etc784.
Apesar disso, mesmo tendo sido criados para suprir uma demanda do mercado
referente à poupança previdenciária, os planos de seguro de vida estão subordinados ao
regime jurídico do seguro, com base no Código Civil de 2002 e leis extravagantes 785. Já os
planos de previdência privada complementar se amoldam àquele regime constitucional,
delineado na seção 4.2.8, deste capítulo.
A Lei nº 7.174/15 do Estado do Rio de Janeiro, em seu artigo 23786, prevê como
hipótese de incidência de Imposto de Transmissão Causa Mortis ou Doação – ITCMD787 – a
transmissão de valores e direitos relativos a planos de previdência complementar com
cobertura por sobrevivência, devendo ser pago pelos beneficiários indicados pelo falecido ou
pela legislação especial.
781
Ibid.
Ibid.
783
Ibid.
784
Ibid., p. 85.
785
Ibid.
786
BRASIL. Lei Estadual do Rio de Janeiro n. 7.174 de 2015. Op. cit.
787
Sobre esse imposto, enquanto se discutia em repercussão geral a (im)possibilidade de progressividade de sua
alíquota, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 562.045/RS, elucidou, por meio do voto do
Rel. Min. Ricardo Lewandowski, características importantes do ITCMD, tais como sua natureza real e sua
seletividade. Assim, em que pese não ser vedada a progressividade em impostos reais, esta “só poderá ser
instituída quando existir autorização no texto constitucional. E mesmo nesses casos, ela só é admitida para dar
concreção aos efeitos extrafiscais desejados pelo constituinte, desprezando-se a capacidade econômica deste. (...)
De fato, não se coaduna com a lógica do sistema admitir que um ente federado possa facilitar ou obstaculizar,
mediante a progressividade do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações, a concentração da renda, ao
alvedrio das preferências ideológicas daqueles que, de forma transitória, ocupam o poder local, quando mais não
seja porque compete, privativamente, à União, a teor do disposto no artigo 22, I, da Constituição, legislar sobre
direito civil, o que inclui, como é sabido, a disciplina geral da propriedade”. (BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Recurso Extraordinário n. 562.045/RS. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: <
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630039>. Acesso em 31 mar. 2017)
782
155
O legislador infraconstitucional, em observância ao princípio da legalidade aplicável
ao Direito Tributário788, elaborou essa lei, a fim de se tornar legítima a cobrança do imposto
sobre essas operações securitárias. Isso porque antes o Estado do Rio de Janeiro deixava de
cobrar, por inexistência legal de hipótese de incidência789, o imposto sobre todas as operações
securitárias, nas quais, ao final, se transmitia patrimônio líquido.
Antes da vigência da Lei nº 7.174/15, as Varas de Órfãos e Sucessões da Capital do
Estado do Rio de Janeiro, com aval de seu Tribunal de Justiça790, declaravam a não incidência
de imposto sobre esses valores transmitidos, inclusive retirando-os do arrolamento de bens,
por se tratar de benefício securitário, e não de bem do espólio, a teor do artigo 794, do Código
Civil de 2002791.
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ, em reação
legislativa792, elaborou e promulgou a Lei nº 7.174/15, em vigência, impondo a cobrança de
ITCMD em benefícios securitários, por retenção diretamente pelas entidades de previdência
complementar, a teor de seu artigo 13, II793, e, consequentemente, seu arrolamento nos bens
da herança.
788
“O fenômeno tributário, como atividade estatal, obedece ao princípio da legalidade, mas não à simples
legalidade genérica que rege todos os atos e atividades administrativas. Subordina-se a uma legalidade
específica, que, em verdade, se traduz no princípio da reserva de lei. Esta legalidade específica constitui garantia
constitucional do contribuinte, em forma de limitação ao poder de tributar que veda à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I). Esse princípio
da estrita legalidade tributária compõe-se de dois princípios que se complementam: o da reserva de lei e o da
anterioridade da lei tributária” (SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 428-429).
789
Em alguns Estados, entre eles, o Rio de Janeiro, faz-se uma diferenciação entre fato gerador e hipótese de
incidência, apesar de o Código Tribunal Nacional e a Constituição Federal não a observar e, muitas vezes, serem
atécnicos em suas disposições. Tecnicamente, corresponde a hipótese de incidência à situação hipoteticamente
descrita no texto legal, à abstração normativa. Já fato gerador é a ocorrência da hipótese de incidência no mundo
fático, é um fato real e concreto efetivamente ocorrido.
790
Nesse sentido, há acórdão da 17ª Câmara Cível, no Agravo de Instrumento n. 0062338-20.2014.8.19.0000, do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em que se decidiu, por unanimidade, “considerando a natureza
securitária do referido plano, deverá ser aplicada a regra prevista no art. 794 do C. Civil. O juízo singular deu
correta solução à controvérsia, uma vez que não sendo a verba em comento considerada herança, deve ser
afastada a incidência do imposto de transmissão causa mortis. Isenção que pode ser declarada pelo Juízo do
inventário”.
791
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
792
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.105/DF, ao tratar sobre ‘direito de antena e de acesso aos
recursos do fundo partidário às novas agremiações partidárias criadas após a realização das eleições’, entendeu o
Supremo Tribunal Federal ser possível, por emenda constitucional, lei complementar ou ordinária, superar-se a
jurisprudência consolidada do Poder Judiciário, na chamada reação legislativa ou reversão jurisprudencial,
devendo, para tanto, apenas observar as restrições legais. Na hipótese de lei ordinária, esta nasceu com
presunção relativa de inconstitucionalidade, tendo o Poder Legislativo o ônus demonstrar que a correção do
precedente jurisprudencial se afigura legítima. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de
Inconstitucionalidade
n.
5.105/DF.
Relator:
Min.
Luiz
Fux.
Disponível
em:
<
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ADI%24%2ESCLA%2E+E+5105%
2ENUME%2E%29+OU+%28ADI%2EACMS%2E+ADJ2+5105%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&ur
l=http://tinyurl.com/poewblt>. Acesso em: 01 abr. 2017.)
793
BRASIL. Lei Estadual do Rio de Janeiro n. 7.174 de 2015. Op. cit.
156
Apesar de constitucional a possibilidade de reação legislativa, a Lei nº 7.174/15 não
observa, de forma insanável, alguns mandamentos, extrapolando seus poderes legislativos.
A primeira delas é sua inconstitucionalidade formal794, haja vista ter sido promulgada
a matéria por meio de lei estadual ordinária. O ITCMD é imposto de competência estadual,
previsto expressamente na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 155, I, §1°, II795, em
que se autoriza o Estado a instituir imposto sobre bens móveis, títulos e créditos. Em seu
artigo 146, III, a, a Constituição Federal de 1988796 traz regra, afirmando caber à lei
complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, em especial de
respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, quanto aos impostos
discriminados nela própria. Como dito, o ITCMD é imposto previsto em texto constitucional,
e não no Código Tributário Nacional, razão pela qual seu fato gerador, sua base de cálculo e
seus contribuintes devem vir previstos em lei complementar797. A Lei nº 7.174/15 é lei
ordinária estadual, que traz em seus artigos 8°, 10, 13, 23798, respectivamente, o fato gerador,
o contribuinte, o responsável tributário e a base de cálculo do ITCMD em relação ao benefício
do seguro de vida após o implemento do sinistro, sem observância da forma legal prescrita
constitucionalmente.
A segunda delas é a afronta ao artigo 794, do Código Civil de 2002 799, na medida em
que a natureza securitária do benefício concedido impede seu reconhecimento como bem do
inventariado. Para haver incidência de imposto de transmissão causa mortis, imprescindível a
transferência de titularidade do bem móvel – benefício do seguro de vida, a teor do artigo 155,
794
“[...] De outra parte, haverá inconstitucionalidade formal propriamente dita se determinada espécie normativa
for produzida sem a observância do processo legislativo próprio. O processo ou procedimento legislativo
completo compreende iniciativa, deliberação, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação. (...) Há
matérias que são reservadas pela Constituição para serem tratadas por via de uma espécie normativa específica.
Somente lei complementar pode dispor acerca de normas gerais de direito tributário (art. 146, III) ou sobre
sistema financeiro nacional (art. 192). Se uma lei ordinária contiver disposição acerca de qualquer desses temas,
será formalmente inconstitucional. É que o quórum de votação de uma lei complementar é diverso do da lei
ordinária”. (BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6. ed. rev.
atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 49-50)
795
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
796
Ibid.
797
“A doutrina não raro confunde ou não distingue suficientemente o princípio da legalidade e o da reserva de
lei. O primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador.
O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias há de fazer-se necessariamente
por lei formal. Embora às vezes se diga que o princípio da legalidade se revela como um caso de reserva relativa,
ainda assim é de reconhecer-se diferença entre ambos, pois que o legislador, no caso de reserva de lei, deve ditar
uma disciplina mais específica do que é necessário para satisfazer o princípio da legalidade. (...) Tem-se, pois,
reserva de lei quando uma norma constitucional atribui determinada matéria exclusivamente à lei formal (ou a
atos equiparados, na interpretação firmada na praxe), subtraindo-a, com isso, à disciplina de outras fontes, àquela
subordinadas” (SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 422).
798
BRASIL. Lei Estadual do Rio de Janeiro n. 7.174 de 2015. Op. cit.
799
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
157
II, da Constituição Federal de 1988800. Contudo, esse benefício, por suas próprias
características contratuais, não irá integrar o patrimônio do futuro inventariado, vez que é
devido aos beneficiários pela entidade de previdência complementar com a realização do
sinistro, morte. Assim, contraditória a cobrança do ITCMD por não haver transferência de
titularidade de bem móvel do falecido para os beneficiários. Por essa interpretação, imiscuiuse a lei estadual em matéria cível, de competência legislativa privativa da União, ao tentar
modificar natureza jurídica do beneficio securitário, em afronta ao artigo 22, I, da
Constituição Federal de 1988. Nesse conflito aparente de normas801, houve usurpação de
competência legislativa da União pelo Estado, ao se instituir imposto de transmissão causa
mortis sobre nova hipótese de incidência com modificação de natureza jurídica de instituto
prementemente civilista. Utiliza-se, pois, o critério da especialidade802 para solucioná-lo,
importando na inconstitucionalidade material da lei estadual ante a existência de lei específica
sobre a matéria.
Já se têm decisões de Varas de Órfãos e Sucessões do Estado do Rio de Janeiro,
reconhecendo a inconstitucionalidade de referida lei e deixando de aplicá-la nos casos
concretos803. Entendimento este ao qual se filiam os autores.
Apesar de se entender pelo não arrolamento do benefício do seguro de vida como
bem no inventário, situação diferente é aquela, em que o inventariado, ainda em vida,
800
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
Nas palavras de Pietro Perlingieri, “por ‘fonte de direito’ entende-se comumente não a norma, mas os fatos ou
atos dos quais, através da interpretação, se extrai a norma. As fontes, por sua vez, são individuais por (outras)
normas, denominadas frequentemente ‘normas sobre a produção jurídica’. A distinção normalmente indicada nos
manuais é aquela entre fontes ditas formais e fontes ditas substanciais. (...) O ordenamento globalmente
considerado se compõe de normas diversas que têm a sua origem nos poderes mais distintos, no poder do
Parlamento, do Governo, dos sindicatos, dos particulares, mas estabelece entre elas normas uma hierarquia
rígida, representada por uma pirâmide. No seu ápice está a norma constitucional, conforme previsto nos arts. 134
e 138 da Constituição Italiana. As leis ordinárias do Estado, (...), devem harmonizar-se com a Constituição. (...)
Imediatamente depois, colocam-se as leis regionais (...). (PIERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil:
introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 7-9)
802
“Como a norma fundamental é o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma
ordem jurídica, ela constitui a unidade na pluralidade destas normas. Esta unidade também se exprime na
circunstância de uma ordem jurídica poder ser descrita em proposições jurídicas que não se contradizem. (...)
Como, porém, o conhecimento do Direito – como todo conhecimento – procura apreender o seu objeto como um
todo de sentido e descrevê-lo em proposições isentas de contradição, ele parte do pressuposto de que os conflitos
de normas no material normativo que lhe é dado – ou melhor, proposto – podem e devem necessariamente ser
resolvidos pela via da interpretação. Como a estrutura da ordem jurídica é uma construção escalonada de normas
supra e infra-ordenadas umas às outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da norma do
escalão inferior, o problema do conflito de normas dentro de uma ordem jurídica põe-se de forma diferente
conforme se trata de um conflito entre normas do mesmo escalão e de um conflito entre uma norma de escalão
superior e uma norma de escalão inferior”. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. João Baptista Machado
(trad.) São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 143-146).
803
“Do ponto de vista subjetivo ou orgânico, o controle judicial de constitucionalidade poderá ser, em primeiro
lugar, difuso. Diz-se que o controle é difuso quando se permite a todo e qualquer juiz ou tribunal o
reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma e, consequentemente, sua não aplicação ao caso
concreto levado ao conhecimento da corte.”. (BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., 2014, p. 69).
801
158
transferiu grande(s) soma(s) em curto espaço de tempo para um plano específico com o
intuito de fraudar a legítima. Nesse caso, possível a vinda dessa(s) quantia(s) para o monte a
ser partilhado, com a declaração de doação inoficiosa804 e sua redução805, por violação à
garantia constitucional da legítima, a teor dos artigos 5°, XXX, da Constituição Federal de
1988806 e 1.846, do Código Civil de 2002807.
No âmbito do Direito Sucessório, tanto nas Varas de Órfãos e Sucessões, quanto no
planejamento sucessório, vê-se a aplicação desse instituto jurídico diuturnamente, sendo de
grande valia para assegurar aos beneficiários maior conforto durante o processo de inventário,
ao ser usado como forma de rápida disposição patrimonial líquida, a fim de manter os
herdeiros nos primeiros momentos de desamparo após o falecimento do participante.
Contudo, em razão das recentes controvérsias sobre a incidência do imposto de transmissão
causa mortis, bem como a sua utilização para fraudar legítima, tal instrumento começa a
formar dúvidas quanto à sua segurança, quando se tem em mente um planejamento sucessório
e seus objetivos.
4.2.8. Conta conjunta
No Direito Brasileiro, existem diversas espécies de contratos bancários, sendo o de
conta corrente um dos mais comuns no dia-a-dia. Nesse âmbito, diferenciam-se a conta
corrente bancária e a conta corrente comum808, das quais apenas a primeira será objeto de
estudo como instrumento de planejamento sucessório.
804
Sobre o tema, Zeno Veloso em entrevista ao Instituto Brasileiro de Direito de Família. Disponível em: <
http://www.ibdfam.org.br/noticias/5226/Entrevista%3A+Zeno+Veloso+fala+sobre+doa%C3%A7%C3%A3o+in
oficiosa>. Acesso em: 01 abr. 2017. Ademais, “já decidiu esta Corte Superior, 'a caracterização da doação
inoficiosa é vício que, se não invalida o negócio jurídico originário - doação -, impõe ao donatário-herdeiro,
obrigação protraída no tempo, de que, à época do óbito do doador, deverá trazer o patrimônio à colação, para
igualar as legítimas, caso não seja herdeiro necessário único, no grau em que figura”. (BRASIL. Superior
Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1519524/RS. Relator: Ministro Marcos Buzzi. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1535538&num_re
gistro=201300563144&data=20161010&formato=PDF>. Acesso em 24 abr. 2017.)
805
“[...] A redução das doações efetua-se sobre a parte excedente daquilo que o doador poderia dispor,
aplicando-se não só aos descendentes e o cônjuge sobrevivente, mesmo que tenha havido dispensa da colação,
como também a outros donatários, sejam herdeiros ou estranhos à sucessão, para que se resguarde a legítima dos
herdeiros necessários, que são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge sobrevivo” (OLIVEIRA apud
GAGLIANO, Pablo Stolze. O contrato de Doação: análise crítica do atual sistema jurídico e os seus efeitos no
Direito de Família e das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 79).
806
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
807
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
808
Diferencia-se o contrato de conta corrente comum, ou ordinária, da conta corrente bancária pela reciprocidade
de remessas, bem como pela reunião “em massa homogênea alguns ou todos os seus negócios, (...) que, anotadas
na conta, se tornam partidas ou artigos de crédito e débito, verificando-se, por ocasião do encerramento, o saldo
que deve ser pago por aquele que se mostrar devedor”. (MENDONÇA apud SCHONBLUM, Paulo Maximilian
159
Conceitua-se conta corrente bancária como “o contrato pelo qual o banco presta um
serviço de caixa para o cliente, obrigando-se a cumprir os negócios jurídicos solicitados pelo
correntista”809. Ademais, por sua natureza jurídica, o banco-devedor, dentre os serviços a
prestar, faz-se de mandatário810.
Após a abertura da conta corrente, passa o correntista a movimentá-la, por meio de
remessas, sendo o remetente credor e titular da conta ou terceiro, enquanto o recipiente, o
banco-devedor. Essas remessas perdem sua individualidade, constituindo-se em um bloco
unitário, em que desaparecem eventuais garantias e direito de ação sobre aqueles valores, haja
vista a relação contratual típica que lhes deram causa. Com isso, a remessa passa a ser
irrevogável811.
Por outro lado, diferentemente da conta corrente comum, na conta corrente bancária
“o crédito resultante da conta é sempre disponível sobre a base do saldo diário” 812, também
chamado de saldo provisório.
Classifica-se o contrato de conta corrente bancária como consensual, informal, de
trato sucessivo e bilateral. A consensualidade se observa pelo acordo de vontades entre o
banco e o titular, exteriorizando-se, em regra, pela assinatura na abertura de conta corrente. A
informalidade é percebida por não exigir a lei uma forma específica, apesar de os bancos
terem instrumentos próprios para tanto. Faz-se de trato sucessivo pelo seu prolongamento no
tempo, não se encerrando com a prática de um único ato. A bilateralidade é percebida por
causa do sinalagma, ou seja, possuem titular e banco obrigações recíprocas813.
Quanto às modalidades, elucida Thiago Ferreira Cardoso Neves814:
a primeira modalidade de conta corrente diz respeito à titularidade do correntista. A
conta corrente pode ser individual ou coletiva, sendo que essa última ainda pode ser
indivisível ou conjunta. (...) A primeira espécie de conta coletiva é a indivisível, ou
não solidária. Nela, a movimentação da conta só pode ser efetuada, em regra, por
todos os titulares conjuntamente. A segunda espécie, e mais comum, é a conta
corrente coletiva conjunta, ou solidária, chamada costumeiramente de conta
conjunta. Nessa espécie, qualquer um dos titulares, isolada ou conjuntamente, pode
movimentar a conta. Daí decorre a solidariedade, pois todos podem, isolada ou em
conjunto, reclamar o saldo credor da conta corrente, bem como o banco pode exigir,
de um, de uns, ou de todos, as obrigações decorrentes das operações realizadas.
Já a solidariedade passiva, em uma conta corrente bancária coletiva conjunta – conta
conjunta -, só se perfaz perante o banco, em decorrência do próprio contrato mercantil. Nas
W. Mendlowicz. Contratos Bancários: o novo direito empresarial.3. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 2009, p. 74)
809
NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Contratos Mercantis. São Paulo: Atlas, 2013, p. 142.
810
SCHONBLUM, Paulo Maximilian W. Mendlowicz. Op. cit., p. 77.
811
ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 13. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 247.
812
Ibid., p. 253.
813
NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Op. cit., 2013, p. 143.
814
Ibid., p. 144.
160
obrigações assumidas por um dos correntistas fora dessa relação jurídica, não se verifica
solidariedade, podendo o credor apenas requerer a constrição de valores daquele único
correntista. Assim o é, pois, a solidariedade não se presume, necessitando-se de imposição
legal ou da vontade das partes nesse sentido, de acordo com o artigo 265 815, do Código Civil
de 2002816.
É possível ao outro cotitular da conta conjunta opor embargos de terceiros, a fim de
comprovar que aquele numerário constrito lhe pertence, seja por apenas ele aportar dinheiro
naquela conta, seja por outras razões. Se não houver qualquer prova ou não entender o juízo
ser suficiente, presume-se a igualdade na composição do saldo provisório. Em outras palavras,
reparte-se em iguais partes aquele valor, podendo o terceiro-credor constringir o quinhão de
seu devedor817.
Isso se mostra relevante, na medida em que o cotitular, em geral, é o cônjuge ou o
companheiro sobrevivente e também o inventariante, em caso de falecimento do devedor, ora
espólio, por expressa ordem legal, a teor do artigo 617, I, do Código de Processo Civil de
2015818. Assim, além do interesse próprio em proteger seu patrimônio de dívidas não
contraídas, deve o inventariante defender os interesses do espólio, ou seja, diminuir ou
extinguir a responsabilidade do espólio sobre aquela dívida, com consequente levantamento
da constrição, com base no artigo 75, VII, do Código de Processo Civil de 2015819. Nesse
caso, em que pese haver confusão entre o cotitular da conta conjunta e o inventariante, ainda
assim não existe conflito de interesse, por se tratar de vontades convergentes.
No âmbito do Direito Sucessório, quando do falecimento de um dos cotitulares, os
princípios específicos desse ramo são aplicáveis e observados. Portanto, a conta conjunta
compõe a universalidade de bens para a posterior partilha, mas não em seu valor total, apenas
quanto ao quinhão daquele cotitular. Como dito, a cotitularidade de conta corrente bancária é
uma espécie de condomínio, havendo responsabilidade solidária frente ao banco, mas não em
815
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.184.584/MG. Relator: Min. Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201000420774&dt_publicacao=15/08/2014>.
Acesso em: 18 fev. 2017.
817
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.184.584/MG. Relator: Min. Luis Felipe
Salomão.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201000420774&dt_publicacao=15/08/2014>.
Acesso em: 18 fev. 2017.
818
BRASIL. Código de Processo Civil de 2015. Op. cit.
819
Ibid.
816
161
relação a terceiro. Igual na constrição, na sucessão é facultado ao cotitular fazer prova de seu
patrimônio, caso contrário há a presunção de igualdade entre os quinhões820.
Nesse sentido, entendeu-se, em decisão monocrática, que "ocorrido o falecimento de
um dos titulares da conta, a metade caberá ao outro titular, que poderá efetuar o saque
independentemente de qualquer formalidade judicial. A quantia restante deverá ser atribuída
aos sucessores do falecido, devendo ser incluída no monte partível"821.
Para fins de planejamento sucessório, a conta conjunta faz papel de instrumento,
quando se tem o objetivo de liberar quantia rapidamente para o cônjuge ou o companheiro
sobrevivente, bem como privilegiar financeiramente o cotitular com uma maior monta.
4.2.9. Regime de bens
Sobre o presente instrumento de planejamento sucessório, suas principais
características e consequências no Direito Sucessório já foram abordadas em momento
anterior deste trabalho, em especial às (in)comunicações dos bens do casal, a depender do
regime adotado. Dessa forma, despiciendo abordar o tema novamente neste capítulo, reportase, portanto, ao capítulo 3, em especial à seção 3.1.
4.2.10. Trust
Define-se822 esse instituto jurídico, e instrumento de planejamento sucessório
patrimonial823, como “quando uma pessoa cede seus direitos: (a) a uma outra pessoa ou (b)
820
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.511.976/MG. Relator: Min. Moura Ribeiro.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201400118160&dt_publicacao=12/05/2015>.
Acesso em 18 fev. 2017.
821
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.450.487. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGeneri
ca&num_registro=201400932458>. Acesso em: 18 fev. 2017.
822
“Atualmente, a configuração do truste encontra-se consolidada no contexto da jurisprudência como negócio
pelo qual uma pessoa destaca de seu patrimônio certos bens e transmite a outra pessoa sua propriedade formal
(legal tittle), obrigando-se esta última (trustee) a administrá-la em favor de uma terceira pessoa (cestui que trust
ou beneficiário), que terá a propriedade de fruição, ou econômica, sobre o bem objeto do trust” (CHALHUB,
Melhim Namem. Negócio Fiduciário: alienação fiduciária. 4. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.
24).
823
No Blog “Acontece nas melhores famílias”, por Lúcia Deccache, disponibilizou-se notícia sobre o
planejamento sucessório de Michael Jackson. Então, foi criado trust, cujo patrimônio afetado restou
expressamente dividido entre os seus três filhos, a sua mãe e uma instituição de caridade, nas proporções de
40%, 40% e 20%, respectivamente. Outrossim, estipulou-se a cláusula de reversão do quinhão da genitora do
astro, afim de que seu quinhão, ou o que restar dele, seja revertido aos três filhos de Michael Jackson, ao invés
162
para realização de qualquer fim particular, diz-se que ela possui seus direitos sob a forma de
trust (em confiança ou consignação), em relação a essa outra pessoa ou para esse fim: e nós a
chamamos de trustee”824.
Aquele que institui o trust, ou seja, aquele que entrega os bens em confiança, é
chamado juridicamente de settlor (instituidor). Ao fazer a entrega de bens, o settlor transmite
efetivamente sua propriedade ao trustee, aquele em que se confia. Por último, denomina-se
cestui que trust a pessoa, natural ou jurídica, instituída como beneficiária do trust. 825
Como se percebe pela conceituação do referido instituto, o seu segredo não repousa
mais sobre a propriedade, “mas sobre os modelos de confiança e de consciência impostos pela
Corte826 de Chancelaria” 827. Portanto, essa tem como funções controlar e restringir o trustee,
a fim de mantê-lo dentro dos limites convencionados pelo settlor, e proteger o cestui que
trust.
Nas palavras de Melhim Namem Chalhub828,
a Corte é, assim, em primeiro lugar, um instrumento para disciplinar os trustes e ela
não é senão, em segundo lugar, e indiretamente, o meio de proteger os beneficiários.
O trustee não pode ser liberado de suas obrigações, transferindo a propriedade a
outrem por meio de doação. Nesse caso, aquele que recebe a doação será
considerado implied trustee, e não poderá requerer a assistência da Corte para fugir
às demandas dos beneficiários – que prior est in tempore, portior est in jure -: os
interesses equitativos dos beneficiários do trust serão, então, protegidos, mas o
comprador não se encontrará suficientemente liberado: equity do not assist a
volunteer. A equity não irá de encontro ao comprador de boa-fé que adquiriu o título
legal: equity follows the law, mas aquele que não é um comprador a título gratuito
não se encontra na mesma situação: ele deverá tomar a propriedade com seus
encargos equitativos e os trusts.
Assim, elementos essenciais do trust são o respeito e a confiança829. O trustee, apesar
do legal tittle (titularidade) sobre bens, não os possui, senão para usá-los em fins específicos e
dos descendentes da genitora, após o falecimento desta. (DECCACHE, Lúcia. Acontece nas Melhores Famílias.
Disponível em: < http://acontecenasmelhoresfamilias.com/blog/planejamento-sucessorio-de-michael-jackson/>.
Acesso em: 02 mai. 2017)
824
MAITLAND apud CHALHUB, Melhim Namem. Op. cit., p. 19.
825
Ibid., p. 18.
826
“É a partir da Idade Média que a Corte de Chancelaria passa a acolher, na prática da equity, os recursos do
fiduciante contra o fiduciário, para compelir este a restituir os bens, revestindo-se essas decisões de força
coercitiva (...). O trustee (aquele que recebia os bens mediante trust), que na common law era tido como único e
verdadeiro proprietário, na Corte de Chancelaria não passava de um proprietário provisório, um intermediário; o
trustee tinha um direito legal (legal right) e o beneficiário um direito substancial de fruição (equitable right),
sendo certo que, no conflito com a lei, prevalecia a equidade, podendo o beneficiário, portanto, assegurar seu
direito mediante recurso à Corte. No processo de formação do instituto, são dignos de nota o Estatuto de Usos,
aprovado pelo Parlamento em 1535, no reinado de Henrique VIII, e a condensação da jurisprudência da Corte,
no Trustee Act, de 1893, quando o instituto se consolidou com a configuração atual, pela qual se conceitua o
trust como o negócio em que uma pessoa (fiduciante) transfere seus direitos a outra (fiduciário) para que esta os
administre segundo condições definidas no contrato, em proveito do próprio fiduciante ou de um terceiro
beneficiário, obrigando-se a restituí-los ao fiduciante, ou ao beneficiário, uma vez implementada a condição
convencionada”. (Ibid., p. 19)
827
Ibid., p. 18.
828
Ibid., p. 20.
163
limitados, que foram estabelecidos pelo settlor ou pela Corte Chancelaria. Vê-se claramente o
desdobramento da propriedade, de forma análoga aquele do capítulo 3, seção 4, deste
trabalho, quando da análise do direito real de habitação e do usufruto legal sucessório do
cônjuge e do companheiro sobrevivente830.
Todavia, esse desdobramento da propriedade no trust é diferente daquele previsto no
ordenamento jurídico brasileiro, sendo, em realidade, instrumento próprio do direito anglosaxão, em que há dois direitos de propriedade sobre o mesmo bem – legal property do trustee
e equitable property do cestui que trust831.
Para Walter G. Hart832, são aspectos fundamentais do instituto jurídico:
1) a existência de uma obrigação que pode ter sido convencionada expressamente ou
que pode decorrer da lei; 2) a restrição do poder jurídico que o trustee tem sobre os
bens objeto do trust; 3) a separação entre o controle dos bens e a integridade do
direito do beneficiário sobre os mesmos, na medida em que o obrigado (trustee)
pode ser uma das pessoas que gozem do direito de beneficiário; 4) a legitimação de
qualquer dos beneficiários para exigir o cumprimento da obrigação.
Importante ressaltar que settlor, após a instituição do trust, sai desse cenário jurídico,
do qual apenas permanece sua vontade formalmente manifestada no ato jurídico perfeito. Os
direitos, as ações e os interesses do settlor sobre os bens do trust “são transferidos e divididos
entre o trustee e o cestui que trust, daí porque os frutos da coisa devem ser entregues a este
último, a quem também devem ser prestadas contas, e não ao settlor”833.
Em relação ao trustee, na instituição do trust ocorre uma segregação de bens, com a
consequente criação de patrimônio de afetação, totalmente desvinculado de seu criador, o
settlor834. É de responsabilidade do trustee administrar esse patrimônio afetado, mas haverá
sempre uma incomunicabilidade entre o patrimônio do trust e do trustee. Isso tudo com o
intuito de garantir ao cestui que trust uma especial proteção de seus direitos, com a maior
certeza de ao final recebê-los. Na eventualidade de insolvência do trustee, em razão da
incomunicabilidade e afetação do patrimônio do trust à finalidade contratual, não haverá
arrecadação desses bens para pagamentos de credores835.
829
“As duas fontes dessa ideia de respeito e confiança são a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, frequentemente
citada nas Cortes de equidade nos tempos da Rainha Elizabeth O, e a moral cristã interpretada pelos Chanceleres
que, até o primeiro leigo, Thomas More, foram os eclesiásticos” (Ibid., p. 21).
830
“Como se sabe, o direito anglo-saxão contempla a existência de mais de um direito de propriedade sobre uma
só coisa, cada uma dessas propriedades com qualificação peculiar, delimitada, estabelecendo-se para tanto um
regime de graduação. A propriedade da coisa objeto de um trust, assim, estará atribuída a mais de um titular,
tendo o trustee o legal tittle, que se poderia entender como propriedade formal, e o cestui que trust (beneficiário)
o equitable ou beneficial tittle, significando propriedade econômica ou de fruição” (Ibid., p. 21).
831
Ibid., p. 26.
832
HART apud CHALHUB, Melhim Namem. Op. cit., p. 23.
833
Ibid., p. 24.
834
SALOMÃO NETO, Eduardo. O Trust e o Direito Brasileiro. São Paulo: Trevisan, 2016, p. 72-74.
835
CHALHUB, Melhim Namem. Op. cit., p. 24.
164
Quanto ao trust836 e ao cestui que trust, no ato de instituição do instrumento jurídico,
devem-se identificar expressamente as pessoas beneficiárias. Caso contrário, serão
consideradas beneficiárias aquelas indicadas pela lei ou jurisprudência837.
Além disso, segundo Melhim Namem Chalhub838,
os direitos a serem auferidos pelos beneficiários no trust devem ser explicitamente
definidos no ato de sua constituição, podendo ser representados pelo pagamento de
uma renda periódica, para fins determinados ou não, pela entrega do bem dado em
trust ao beneficiário, ao final de certo evento ou de certo tempo, pela realização de
determinado propósito, como, por exemplo, a manutenção de uma instituição, etc.
Como se percebe por meio das características do instituto jurídico, que é um
instrumento de planejamento sucessório, seu dinamismo e sua flexibilidade permitem ao trust
ser utilizado e aplicado aos casos concretos de formas infindáveis, sempre tendo em vista os
objetivos do próprio cliente, sob a orientação do advogado e supervisão do Estado.
Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal839 entendeu se tratar de crimes de
lavagem de dinheiro, evasão de divisas e falsidade ideológica para fins eleitorais o caso de
Deputado Federal que afetou patrimônio para a formação de um trust, estipulando, em
seguida, ser o único beneficiário de dito instrumento de planejamento sucessório, sem
contanto comunicar a existência dessa conta ao Banco Central:
dinheiro mantido no exterior integrando trust revogável cujo instituidor e
beneficiário é a mesma pessoa deverá ser declarado ao Banco Central. Foi
encontrada conta bancária em nome de um Deputado Federal no exterior na qual
estavam depositados milhões de dólares. Vale ressaltar que o Parlamentar não
comunicou a existência dessa conta ao Banco Central e que, na declaração que os
candidatos a cargos eletivos devem prestar à Justiça Eleitoral sobre seus bens, ele
também não mencionou a existência desse dinheiro no exterior. Diante disso, ele foi
denunciado pela prática de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613/98), evasão
de divisas (art. 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86) e falsidade ideológica para
836
No Direito Anglo-Saxão, classificam-se os trusts em express trust (trusts expressos), que se constituem
mediante expressa manifestação de vontade, seja por ato entre vivos, seja por testamento, ou implied trusts
(trusts implícitos), que são constituídos por força de decisões dos tribunais, com fundamento em uma vontade
presumida do settlor, ou, mesmo, como resultado de uma interpretação de equidade, não necessariamente
fundada em presumida vontade das partes. Os express trusts subdividem-se em executed trusts (trusts
executados), quando o ato inicial do settlor implica a transmissão da propriedade, ou executory trusts (trusts a
executar), quando o que se contrata é uma transmissão futura da propriedade. De outra parte, segundo a extensão
dos poderes outorgados ao trustee, o trust expresso pode ser instrumental ou discretionary, aquele prevendo que
o trustee deve obedecer rigorosamente ao mandato do instituidor e este admitindo que o trustee use poderes
discricionários na gestão do negócio, valendo-se de seus próprios critérios de avaliação. Desdobram-se, ainda, os
trusts expressos em private trusts (trusts privados), que têm como objeto interesses privados, e public ou
charitable trusts (trusts públicos), em que o objeto do trust são interesses públicos, que têm utilidade para a
sociedade em geral. Quanto aos implícitos, os trusts se subdividem em constructive trusts ou resulting trusts, os
primeiros constituídos por um tribunal para evitar que um indivíduo se aproprie de determinados bens em
prejuízo de terceiros, enquanto os segundos são criados por tribunais quando há motivos para se presumir que
uma pessoa tenha pretendido constituir um trust expresso mas que, por circunstâncias alheias à sua vontade, não
chegou a formalizar o pacto”. (Ibid., p. 25)
837
SALOMÃO NETO, Eduardo. Op. cit., p. 36-38.
838
CHALHUB, Melhim Namem. Op. cit., p. 25.
839
BRASIL.
Supremo
Tribunal
Federal.
Informativo
n.
831.
Disponível
em:
<
http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo831.htm>. Acesso em: 04 jun. 2017.
165
fins eleitorais (art. 350 do Código Eleitoral). Em sua defesa, o denunciado alegou
que a conta bancária encontrada não está em nome dele. A sua titularidade pertence
a um trust e, portanto, ele não teria obrigação de declará-la ao BACEN nem à
Justiça Eleitoral. Esta tese não foi aceita pelo STF no momento do recebimento da
denúncia. O Deputado Federal foi o instituidor do trust e figura como beneficiário.
Além disso, o trust era revogável, de forma que a relação contratual poderia ser a
qualquer momento desfeita e o patrimônio voltaria à sua titularidade. Logo, para o
STF, ele detém a plena disponibilidade jurídica e econômica dos valores que
integram o trust. Assim, se ele não declarou a existência de tais valores ao Banco
Central e à Justiça Eleitoral, praticou, em tese, os crimes de lavagem de dinheiro
(art. 1º da Lei nº 9.613/98), evasão de divisas (art. 22, parágrafo único, da Lei nº
7.492/86) e falsidade ideológica para fins eleitorais (art. 350 do Código Eleitoral). O
fato de as quantias não estarem formalmente em seu nome é absolutamente
irrelevante para a tipicidade da conduta.
Em que pese essa gama de possibilidades, há um ponto crítico a seu respeito que
sempre pesará na escolha do trust como instrumento a ser utilizado no Brasil. Por ter sido
desenvolvido e criado no Direito Anglo-Saxão, necessita-se de adaptação e regulamentação
para implementá-lo no Direito Romano-Germânico840.
Assim, em razão das diferenças estruturais de ambos os sistemas – common law e
civil law -, em especial quanto à dicotomia da propriedade, o trust ainda não foi incorporado
no atual ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, “é perfeitamente admissível o
aproveitamento, nos sistemas da civil law, da ideia geral do trust, (...) com vistas à construção
de institutos que exerçam funções análogas às do trust, sem que isso implique afronta ao
princípio da exclusividade da propriedade” 841.
Por mais juridicamente interessante que seja esse instituto, para efeitos deste trabalho
não se abordará com maior profundidade o assunto, com a consequência de não ser utilizado
como solução para os casos hipotéticos selecionados - capítulo 1 - e solucionados - capítulo 5
-, em razão de sua insipiência no Direito Brasileiro842.
4.2.11. Holding
840
SALOMÃO NETO, Eduardo. Op. cit., p. 93-110.
CHALHUB, Melhim Namem. Op. cit., p. 28.
842
De fato, em relação ao trust, o Brasil ainda não conseguiu incorporar esse instituto ao ordenamento jurídico,
em razão das dificuldades de compatibilizar a common law – na qual foi criado – com a civil law, existindo em
consequência uma significativa lacuna legal. Até recentemente, a sociedade brasileira não tinha conhecimento
sobre a existência do instituto jurídico, sendo restrito aos nichos societários. Todavia, com a divulgação pelo
Jornalismo da conjuntura sócio-política brasileira dos últimos anos, democratizou-se um conhecimento, embora
leigo, sobre a matéria, juntamente com uma imagem exclusivamente negativa do trust. Assim, traz-se aqui, para
contrabalançar, outro exemplo do instrumento. Em 2014, foi lançado o documentário “Attacking the Devil:
Harold Evans and the last nazi war crime”, dirigido por Jacqui Morris e David Morris, em que se narra, por
meio de depoimentos dos stakeholders e noticiários da época, a história da Talidomida e suas consequências no
Reino Unido. Ao final, no depoimento de uma das vítimas, portadora da Síndrome da Talidomida, relatou-se a
criação de um trust, cujo patrimônio de afetação era proveniente da indenização milionária paga pela indústria
farmacêutica às famílias lesadas, sendo o cestui que trust os portadores da Síndrome da Talidomida, com o
intuito de fornecer-lhes subsídio/renda por toda suas vidas. Faz-se aqui um alerta: o trust é um instrumento do
Direito para realizar objetivos de seu criador, que estão diretamente relacionados ao relativismo e à
subjetividade.
841
166
Na Lei nº 6.404/76, em seu artigo 2°, §3°, previu o legislador infraconstitucional a
holding no ordenamento jurídico brasileiro. Esta se caracteriza pela constituição de sociedade
com o objetivo precípuo de participar do quadro societário de outras sociedades, independente
de previsão em seu estatuto, desde que seja meio de realizar seu objeto social ou se beneficiar
de incentivos fiscais843.
No contexto de planejamento sucessório, denomina-se holding familiar aquela
sociedade cujo objeto social seja o controle das diversas atividades empresariais das quais
participem os membros de uma família844. O intuito da holding familiar é “servir ao
planejamento desenvolvido por seus membros, considerando desafios como organização do
patrimônio, administração dos bens, otimização fiscal, sucessão hereditária, etc”845.
Elucidam Roberta Nioac Prado e Renato Vilela846 algumas vantagens da formação de
holding familiar, no contexto de planejamento sucessório patrimonial,
em uma empresa com mais de uma família controladora ou com uma família
controladora dividida em vários subgrupos, cada uma destas pode ser abrigada na
sua respectiva holding, (...). Outra vantagem trazida pela holding respeita a sucessão
quanto a sua participação societária. Cada holding pode, ao seu modo e nos limites
da Lei, estabelecer regras próprias para a transferência das suas ações ou cotas, seja
pela morte de um dos familiares ou em razão de sum divórcio, contemplando
método específico de avaliação, prazo e forma de pagamento dos haveres, ingresso
de terceiro, preferência de compra, entre outros vários dispositivos facilitadores da
sucessão.
Identificam-se como espécies desse instrumento de planejamento sucessório (i) a
holding pura, em que se tem como atividade-fim, em seu estatuto, a mantença de quotas ou
ações de outras sociedades; e (ii) a holding mista, cujo objeto social, além de ser o da
participação em outros quadros societários, prevê também outras formas de exploração de
atividade empresária847.
843
BRASIL.
Lei
n.
6.404
de
1976.
Disponível
em:
<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404compilada.htm >. Acesso em 29 mar. 2017.
844
Para SILVA et ROSSI, em seu livro Holding Familiar: visão jurídica do planejamento societário, sucessório
e tributário, “a doutrina faz menção a outras espécies de holding, como, por exemplo, holding familiar, holding
administrativa, holding de participação e holding de controle. Parece-nos, contudo, que não se trata de definições
jurídicas apropriadas, visto o contorno legal contido no artigo 2°, parágrafo terceiro, da Lei n. 6.404/76. Essas
demais espécies são na verdade caracterizadas por sua finalidade, tratando de mera definição para fins didáticos,
sem qualquer efeito jurídico em particular”. (SILVA, Fábio Pereira da; ROSSI, Alexandre Alves. Holding
Familiar: visão jurídica do planejamento societário, sucessório e tributário. São Paulo: Trevisan, 2015, p. 21)
845
MAMEDE, Gladson; MAMEDE, Eduarda Cotta. Holding Familiar e suas Vantagens: planejamento jurídico
e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 11-12.
846
PRADO, Roberta Nioac; VILELA, Renato. Empresas Familiares: governança corporativa, governança
familiar e planejamento patrimonial e sucessório. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares; CAMARGO NETO,
Theodureto de Almeida. Op. cit. 2014, p. 225.
847
EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. V. 1. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 39.
167
Em sua constituição, podem-se estabelecer diversos tipos societários, tais como
sociedade anônima, sociedade limitada, EIRELI, etc., sendo decorrência direta dos objetivos e
das necessidades de seus constituidores848.
Todavia, por não ser direito empresarial e direito tributário o cerne deste trabalho,
mas o direito sucessório, em especial o planejamento sucessório patrimonial, não se adentrará
nas características e nos aspectos dos tipos societários, bem como nas vantagens tributárias849
para se constituir uma holding, bastando, para tanto, o indicativo dos tipos possíveis.
No estatuto ou contrato social, é imprescindível delimitar o objeto social da
sociedade a ser constituída, inclusive a gestão da sociedade por membro da família, a cessão
de quotas e a liquidação parcial da sociedade, etc., diante de falecimento850. Além de se
identificar a espécie de holding pelo objeto social, sua descrição, caso imprecisa, traz
consequências civis e tributárias851. No seu agir, devem os administradores da sociedade
atender ao seu objeto social, sob pena de responsabilização pelos prejuízos causados, pela
aplicação da teoria ultra vires, a teor do artigo 1.016, do Código Civil de 2002852.
São cláusulas principais, a constarem nos estatutos ou contratos sociais: (i) definição
da espécie de sociedade; (ii) definição do valor do capital social e sua distribuição; (iii)
inscrições nos órgãos competentes, devendo também se inscrever no CRA caso tenho por
objeto a administração de bens próprios ou de terceiros; (iv) estabelecimento de prazo para a
duração da sociedade; (v) nomeação de administrador da sociedade; e (vi) indicação da sede
social e razão social853.
São apontadas como principais funções da holding: (i) manter majoritariamente
ações de outras empresas, possibilitando concentração do controle de grupos empresariais; (ii)
poder de controle, não significando ter totalidade das ações ou quotas, mas o suficiente para
influir diretamente nas decisões; (iii) ter caráter de internacionalidade, mantendo ações de
companhias que não estejam no mesmo país; ter grande mobilidade; (iv) pode manter
848
SILVA, Fábio Pereira da; ROSSI, Alexandre Alves. Op. cit., p. 23-24.
A fim de adentrar mais concretamente na matéria, em especial com a abordagem de um caso hipotético para
se demonstrar as vantagens tributárias, reporta-se ao artigo de ROCHA, Valéria Aparecida Pena da; RIOS,
Ricardo Pereira. Holding para Planejamento Sucessório: estudo de caso em uma empresa familiar. Revista
Eletrônica Gestão e Negócios. V. 5. n°1. 2014.
850
TEIXEIRA, João Alberto. Holding Familiar: tipo societário e seu regime de tributação, 2007, p. 10.
Disponível em: <http://www.ibrademp.org.br/UserFiles/Artigo_Holding_Familiar.pdf>. Acesso em: 30 mar.
2017.
851
SILVA, Fábio Pereira da; ROSSI, Alexandre Alves. Op. cit., p. 63.
852
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
853
TEIXEIRA, João Alberto. Op. cit.
849
168
minoritariamente ações de outras empresas como de investimento ou administração, através
de acordos societários estabelecendo parcerias854.
Segundo Valéria Aparecida Pena da Rocha e Ricardo Pereira Rios 855,
uma das principais vantagens da holding é a simplificação e solução no que se refere
à herança, patrimônio e sucessões familiares através de um artifício estruturado e
fiscal; a holding atua como procuradora de todas as empresas de uma grupo
empresarial aumentado seu poder de barganha e imagem; facilita o planejamento
fiscal e tributário; obtém redução de carga tributária incidente de pessoa física
(Imposto de Renda Pessoa Física – IRPF); mas as consequências tributárias mais
consideráveis são as de um processo de sucessão patrimonial com imposto de renda,
imposto de transmissão causa mortis, e doação de qualquer bem ou direito (Imposto
de Transmissão Causa Mortis e Doação).
Nesse âmbito societário, de forma atécnica, denomina-se o planejamento patrimonial
também como blindagem patrimonial, dando aos clientes e aos operadores do Direito
desavisados a impressão de que o patrimônio objeto da blindagem está livre de riscos
decorrentes de dívidas856. Contudo, esquecem-se da existência do instituto da desconsideração
da personalidade jurídica, em sua teoria maior e menor857, a depender em qual ramo do
Direito será aplicada, pelas quais se extirpa a pessoa jurídica temporariamente da sua
autonomia patrimonial em relação aos sócios, a fim de atingir o patrimônio privado desses
últimos e satisfazer os créditos existentes.
Sobre o assunto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul proferiu
decisão, em Agravo de Instrumento n. 70058590910, para redirecionar a execução para o
grupo econômico familiar. Em seu voto, o Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack ressalta que
“trata-se de uma sucessão de negócios jurídicos realizados por meio de institutos legítimos,
porém com uma finalidade diversa daquela para a qual foram criados, (...). A devedora, ora
agravada, utiliza-se da teoria da separação da personalidade jurídica como véu protetor para
frustrar o crédito da ora agravante, bem como de outras pessoas, físicas ou jurídicas”. No caso
854
LODI, Edna Pires; LODI, João Bosco. Holding. 4. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2011, p. 1-138.
ROCHA, Valéria Aparecida Pena da; RIOS, Ricardo Pereira. Op. cit., p. 8-9.
856
SILVA, Fábio Pereira da; ROSSI, Alexandre Alves. Op. cit., p. 61.
857
A teoria maior da personalidade jurídica está disposta no artigo 50, do Código Civil de 2002, sendo aplicável
na maioria dos ramos do Direito, excetuado o Direito Ambiental e o Direito do Consumidor, nos quais se aplica
a teoria menor da personalidade jurídica, prevista no artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor.
Diferenciam-se entre si em relação aos seus requisitos para aplicação no âmbito do Poder Judiciário, sendo
necessário para a segunda apenas a evidência de ser a personalidade jurídica da sociedade um obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados. Já para a primeira faz-se necessária o abuso da personalidade jurídica, ou
seja, uma vontade específica, caracterizada pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. A isso,
complementa-se que “para a teoria da formulação maior, estaria sendo sufocado o direito constitucional do
devido processo legal e invertido o ônus da prova, não havendo como desconsiderar a pessoa jurídica por sua
mera insolvência no cumprimento de suas obrigações, sendo exigida, ainda, a prova do desvio de finalidade
societária ou a demonstração de confusão patrimonial, tudo a ser debatido no devido processo judicial, com a
citação e participação da pessoa jurídica e dos seus sócios, o que não afasta a possibilidade de decretação
incidental da desconsideração”. (MADALENO, Rolf. A desconsideração Judicial da Pessoa Jurídica e da
Interposta Pessoa Física no Direito de Família e no Direito das Sucessões. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro:
Forense, 2013, p. 77)
855
169
concreto, o grupo econômico familiar, inclusive algumas holdings, desvirtuou o instituto do
planejamento patrimonial com uma aparente blindagem patrimonial, em tentativa de auferir
os proveitos de suas atividades empresariais, sem arcar com os necessários encargos858.
Ressalta-se que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica
em sociedades anônimas causa debate jurídico e jurisprudencial, em razão da natureza jurídica
desse tipo societário e dos limites da responsabilidade do sócio acionista859.
Ainda sobre o tema, há também a desconsideração inversa da personalidade.
Segundo Rolf Madaleno860,
essa técnica jurídica de responsabilizar a sociedade empresária por ato abusivo de
seus sócios ou administradores é chamada de desconsideração inversa, só se
legitimando quando a sociedade se tornou mera extensão da pessoa física do sócio,
como pode acontecer quando um cônjuge transfere maliciosamente os bens do
casamento para a empresa da qual é sócio, entre tantas outras previsíveis situações
de fraude a direitos e obrigações de ordem civil e especialmente familiar.
Como se percebe por meio das características do instituto jurídico, que é um
instrumento de planejamento sucessório, seu dinamismo e sua flexibilidade permitem, assim
como no trust, ser utilizado e aplicado aos casos concretos de formas infindáveis, sempre
tendo em vista os objetivos do próprio cliente, sob a orientação do advogado e supervisão do
Estado.
4.2.12. Acordo de acionistas
O presente instrumento de planejamento sucessório denomina-se, como gênero,
acordo de acionista, mas engloba três espécies distintas, tais como controle; voto dos
minoritários e compra e venda preferencial de ações ou de opções, a teor da Lei nº
6.404/76861.
Conceitua-se o acordo de acionistas como sendo “um contrato submetido às normas
comuns de validade e eficácia de todo o negócio jurídico privado, concluído entre acionistas
de uma mesma companhia, tendo por objeto a regulação do exercício dos direitos referentes
858
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento n. 70058590910.
Relator:
Des.
Umberto
Guaspari
Sudbrack.
Disponível
em:
<http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php%3Fno
me_comarca%3DTribunal%2Bde%2BJusti%25E7a%26versao%3D%26versao_fonetica%3D1%26tipo%3D1%2
6id_comarca%3D700%26num_processo_mask%3D70058590910%26num_processo%3D70058590910%26cod
Ementa%3D5738250+70058590910++++&proxystylesheet=tjrs_index&client=tjrs_index&ie=UTF8&site=ementario&access=p&oe=UTF8&numProcesso=70058590910&comarca=Comarca%20de%20Porto%20Alegre&dtJulg=17/04/2014&relator=
Umberto%20Guaspari%20Sudbrack&aba=juris>. Acesso em: 29 mar. 2017.
859
SILVA, Fábio Pereira da; ROSSI, Alexandre Alves. Op. cit., p. 57.
860
MADALENO, Rolf. Op. cit., 2013, p. 81.
861
BRASIL. Lei n. 6.404 de 1976. Op. cit.
170
às suas ações, tanto no que concernente ao controle como ao voto dos minoritários ou, ainda,
à negociabilidade dessas ações”862.
No acordo de acionista, figuram como partes, no sentido formal, apenas os
acionistas, titulares de voto ou de disposição das ações, na medida em que aos
administradores e à sociedade é-lhes vedado participar de tais contratos, excetuado em (i)
operações de resgate, reembolso ou amortização previstas em lei; (ii) aquisição, para
permanência em tesouraria ou cancelamento, desde que até o valor do saldo de lucros ou
reservas, exceto a legal, e sem diminuição do capital social, ou por doação; (iii) alienação das
ações adquiridas nos termos da alínea b e mantidas em tesouraria; e (iv) compra quando,
resolvida a redução do capital mediante restituição, em dinheiro, de parte do valor das ações,
o preço destas em bolsa for inferior ou igual à importância que deve ser restituída, a teor do
artigo 30, Lei nº 6.404/76863.
Para Modesto Carvalhosa864,
o fundamento da proibição é que, não tendo a companhia direito de votar, o acordo
que transferisse a ela a orientação do sentido do voto, torná-la-ia indiretamente
acionista, fazendo-a titular de um direito que lhe é vedado. (...) E o administrador
que for também acionista sofre uma restrição no que diz respeito ao objeto do
acordo, na exata medida em que não poderá configurar nas cláusulas da avença uma
situação conflitante entre o seu interesse uti singuli como acionista e aqueles
relacionados com o exercício de sua função de gestor.
No sentido substancial, a sociedade faz parte do acordo de acionistas, haja vista seu
interesse próprio e absoluto na sua execução. Isso porque “o conceito de parte não diz respeito
unicamente àquele que manifestou formalmente sua vontade no negócio jurídico, mas
relaciona-se basicamente com o titular do interesse envolvido”865, que no caso é a sociedade,
juntamente com seus administradores, a fim de alcançar seu interesse social866.
Quanto à forma do acordo de acionistas, em que pese o artigo 118, §1º, da Lei nº
6.404/76867 prever a oponibilidade contra terceiros depois de sua averbação nos livros de
registro e nos certificados das ações, se emitidos, não se trata de um contrato solene, eis que a
862
CARVALHOSA, Modesto. Acordo de Acionistas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 23.
BRASIL. Lei n. 6.404 de 1976. Op. cit.
864
CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 35.
865
Ibid., p. 43.
866
“O interesse da companhia é, assim, intrínseco e inseparável da própria existência e permanência do acordo
de controle nela instituído. É evidente o caráter unitário dos interesses envolvidos, na medida em que a
companhia realiza o seu fim mediante o exercício do controle, na qualidade de órgão de pessoa jurídica. (...)
Desse modo, o acordo de controle não é alheio ao ato constitutivo da companhia, nem ao seu estatuto, sendo,
pelo contrário, instrumento indispensável para a efetivação de ambos. No negócio jurídico da sociedade, o
acordo de controle é o instrumento necessário e suficiente à consecução do objeto social, sendo, portanto,
intrinsecamente um negócio social e não parassocial, como referido”. (Ibid., p. 44-45)
867
BRASIL. Lei n. 6.404 de 1976. Op. cit.
863
171
legislação específica e o Código Civil de 2002868 não impõem forma específica para sua
validade. Todavia, apesar de não ser nulo, será ineficaz contra a sociedade 869 e terceiros, que
não são partes formais no acordo de acionistas870.
A respeito da duração do acordo de acionista, a Lei nº 6.404/76 871 é omissa,
digladiando-se doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade de haver convenção
permanente na omissão legislativa e/ou na disposição de vontade. Prevalece, por
indeterminação legislativa, a possibilidade de realização do acordo de acionistas por prazo
indeterminado872, ressalvado o caso de compra e venda preferencial de ações ou de opções,
em razão de sua própria natureza873.
Por sua vez, a natureza jurídica do acordo de acionista é controvertida, a depender da
espécie tratada, que poderá ser de sociedade; contrato plurilateral; ato coletivo e complexo;
parassocial; e sui generis874.
Para fins de planejamento sucessório, Modesto Carvalhosa875 faz interessante
comparação entre dois instrumentos jurídicos, o acordo de acionistas e a holding, no que
tange às suas funções:
[...] comparado às holdings, as vantagens do acordo de acionistas são reconhecidas.
Isto porque, ao constituírem uma sociedade de participação, os acionistas trocam
suas ações da companhia que controlam ou de que participam por ações da própria
holding, deixando, assim, de serem sócios da companhia operacional. A perda da
propriedade direta das ações daquela companhia operacional é irretratável, (...).
868
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 1.620.702/SP de relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas
Cuevas, entendeu que “o arquivamento do acordo de acionistas na sede da companhia impõe à própria sociedade
o dever de observância quanto ao que fora pactuado, inclusive perante terceiros quando averbados nos livros de
registro e nos certificados das ações, se emitidos, consoante o disposto no § 1º do art. 118 da Lei nº 6.404/1976”.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.620.702/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas
Bôas
Cuevas.
Disponível
em:
<
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1557387&num_regi
stro=201600901455&data=20161129&formato=PDF >. Acesso em: 06 abr. 2017)
870
O artigo 118, da Lei n. 6.404/76, em seu caput, impõe dever às partes em acordo de acionistas, em qualquer
das suas espécies, de arquivar o documento com suas cláusulas estabelecidas na sede da sociedade. Esse
arquivamento irá vincular a sociedade e dar publicidade interna corporis do acordo realizado. “A propósito, a
sociedade, no caso de arquivamento do acordo e seu efeito de publicidade, não pode ser considerada terceiro na
relação jurídica instituída entre os acionistas. Isto porque, na medida em que o acordo de acionistas é arquivado
na sede social, a companhia, ipso facto, torna-se interveniente, pois é na sua esfera jurídica que esse contrato
deverá ser exercido. Terceiros, portanto, serão os demais acionistas não convenentes e todas as demais pessoas
no mundo jurídico” (CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., 2015, p. 52).
871
BRASIL. Lei n. 6.404 de 1976. Op. cit.
872
“[...], contrato por prazo indeterminado é aquele em que as partes não estipulam, direta ou indiretamente, a
sua duração. Será ainda contrato por prazo indeterminado se, para sua extinção, tornar-se indispensável a
declaração de vontade de qualquer das partes”. (CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 64)
873
Ibid., p. 63.
874
Ibid., p. 75-76.
875
Ibid., p. 78.
869
172
Ademais, ressalta-se que, em um acordo de acionistas, é vedada a disposição de
direitos e garantias individuais de herdeiros, podendo-se apenas vinculá-los nas obrigações de
caráter convencional ou patrimonial876.
Por se tratar de instituto de Direito Empresarial, não se irá aprofundar no tema,
ressaltando-se que as espécies de acordo de acionistas, em que pesem estarem tipificadas no
artigo 118, da Lei nº 6.404/76877, não se limitam aí, podendo as partes interessadas
formularem de comum acordo espécies atípicas, desde que preservados os limites legais e
constitucionais.
Por último, percebe-se na sociedade uma tendência de elevar os institutos jurídicos a
níveis cada vez mais complexos, ante a realidade em que se vive. Por esse motivo, vê-se cada
vez mais a preferência de indivíduos pela ‘societarização’ das relações jurídicas, levando os
operadores do Direito a utilizarem com maior frequência esse instrumento de planejamento
sucessório.
4.2.13. Planejamento tributário
Assim como o planejamento sucessório, tema deste trabalho, o planejamento
tributário é tema de grande relevância prática e doutrinária, inserindo-se entre os instrumentos
do primeiro, pela afinidade e suas consequências nesses ramos do Direito. No planejamento
sucessório, seu objetivo precípuo é a regularização patrimonial na titularidade dos herdeiros
com o falecimento do titular de bens e direitos. Já o planejamento tributário pretende, por
meio de engenharia tributária878, procurar meios lícitos que permitam aos contribuintes
suportar menor carga tributária possível em suas atividades ou na vida pessoal, dentro dos
limites da legalidade, ante a ineficiência estatal para realocar tais receitas a favor da gestão
pública e a elevada carga tributária brasileira879.
Aprofunda-se sobre a relevância do planejamento tributário André Folloni880,
[...] além da complexidade, a relevância prática do tema é evidente: é na prática, no
mundo real onde as condutas se manifestam e se sucedem, que se dão os
comportamentos qualificáveis como planejamento tributário. Cotidianamente os
contribuintes realizam operações que podem ser, em seguida, questionadas pela
Administração Pública. Das interações complexas entre a multiplicidade de
876
Ibid., p. 87.
BRASIL. Lei n. 6.404 de 1976. Op. cit.
878
Define-se engenharia tributária como “a aptidão para escolha das formas jurídicas mais adequadas ao
exercício da atividade econômica com o menor ônus tributário”. (MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento
Tributário. In: _________. Planejamento Tributário. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 24)
879
Ibid., p. 20-21.
880
FOLLONI, André. Planejamento Tributário e Norma Antielisiva no Direito Brasileiro. In: Ibid., 2016, p. 68.
877
173
condutas, de normas de várias espécies e níveis hierárquicos e de interpretações de
consultores advogados, fiscais, procuradores, juízes, professores e pesquisadores
emergem as interpretações e as decisões pela licitude ou pela ilicitude das condutas
particulares, ou sobre que efeitos essas condutas devem produzir, e diante de quem.
Essas decisões passam a ser novos agentes naquelas interações, suscitando novas
interpretações, sendo elas próprias reinterpretadas como precedentes, do que
emergem novos conceitos – e assim por diante. Tanto novas práticas vão aparecendo
quanto novas regras e interpretações vão surgindo; o planejamento tributário é um
tema em evolução, e as condutas de Fisco e contribuinte vão se adaptando. Por isso,
a Ciência do Direito Tributário, quando se volta sobre o planejamento, não pode
dedicar-se apenas ao que é relativamente permanente, estável, previsível ou
determinador; precisa lidar também com o que é relativamente fugaz, instável,
imprevisível e contingente (...).
O planejamento tributário tem por fundamento jurídico princípios e direitos
constitucionais, tais como a livre-iniciativa e a legalidade estrita tributária, dispostos nos
artigos 1°, IV, e 150, Constituição Federal de 1988881.
O legislador infraconstitucional, atento às movimentações dos contribuintes para
diminuir carga tributária, editou a norma geral antielisiva, prevista no artigo 116, do Código
Tributário Nacional, incluído pela Lei Complementar nº 104/01882. Trata-se de norma, por
meio da qual pretende o legislador considerar como ocorrido o fato geral e,
consequentemente, seus efeitos, quando se tratando de situação de fato, desde o momento em
que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que
normalmente lhe são próprios; e tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que
esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável883.
Em que pese a atecnia legislativa, a intenção do legislador, ao promulgar a artigo
antielisivo, foi barrar atos ou negócios jurídicos caracterizadores de elusão e evasão fiscal, a
teor do parágrafo único do supracitado artigo, mas isso não impede o contribuinte de exercer
seu direito de se organizar para diminuir tributação incidente, em elisão fiscal. O desafio dos
aplicadores do Direito hoje está em saber calcular o risco inerente do planejamento tributário,
em razão do subjetivismo interpretativo impregnado pelo Fisco884.
Em 2002, promulgou-se a Medida Provisória nº 66, que dispunha sobre “a não
cumulatividade na cobrança da contribuição para os Programas de Integração Social (PIS) e
de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), nos casos que especifica; sobre os
procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários; sobre
o pagamento e o parcelamento de débitos tributários federais, a compensação de créditos
881
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
BRASIL.
Lei
Complementar
n.
104
de
2001.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp104.htm>. Acesso em 03 abr. 2017.
883
BRASIL.
Código
Tributário
Nacional.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm>. Acesso em: 03 abr. 2017.
884
ELALI, André. ZILVETI, Fernando. Planejamento Tributário – resistência ao poder de tributar.
MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Op. cit., 2016, p. 59.
882
<
<
In:
174
fiscais, a declaração de inaptidão de inscrição de pessoas jurídicas, a legislação aduaneira, e
dava outras providências”885.
Transcorrido o prazo de 60 dias, prorrogável por igual período, a teor do artigo 62,
§2º, da Constituição Federal de 1988886, a não conversão da Medida Provisória nº 66/02 em
lei implicou a perda de sua eficácia legal, inclusive o procedimento próprio estabelecido para
a norma geral antielisão, previsto em seus artigos 13 e seguintes887.
No ordenamento jurídico atual, inexiste procedimento específico a ser adotado pelo
Fisco Municipal, Estadual, Distrital ou Federal, a fim de se desconsiderar os atos ou negócios
jurídicos tidos “com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a
natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária” 888. Assim, diante de situação,
em que a autoridade fiscal vislumbre a configuração de elisão, elusão ou evasão fiscal889,
passou-se a lavrar indiscriminadamente auto de infração com início de procedimento
administrativo de lançamento de ofício890.
Isso resultou em prejuízo ao contribuinte, na medida em que, não só não lhe é
reconhecido o efetivo direito de buscar soluções tributárias menos onerosas, a título de elisão,
sem configuração de elusão ou evasão fiscal, como também foi tolhido do direito de pagar o
tributo sem acréscimos de penalidades, já que instaurado o procedimento administrativo de
lançamento de ofício891.
885
BRASIL.
Medida
Provisória
n.
66
de
2002.
Disponível
em:
<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2002/66.htm>. Acesso em: 03 abr. 2017.
886
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Op. cit.
887
BRASIL. Medida Provisória n. 66 de 2002. Op. cit.
888
BRASIL. Código Tributário Nacional. Op. cit.
889
“A elisão fiscal é a conduta consistente na prática de ato ou celebração de negócio legalmente enquadrado em
hipótese visada pelo sujeito passivo, importando isenção, não incidência ou incidência menos onerosa do tributo.
A elisão é verificada, no mais das vezes, em momento anterior àquele em que normalmente se verificaria o fato
gerador. Trata-se de planejamento tributário, que encontra guarida no ordenamento jurídica, visto que ninguém
pode ser obrigado a praticar negócio da maneira mais onerosa. (...) A evasão fiscal é uma conduta ilícita em que
o contribuinte, normalmente após a ocorrência do fato gerador, pratica atos que visam a evitar o conhecimento
do nascimento da obrigação tributária pela autoridade fiscal. (...) Nos casos denominados pela doutrina de elusão
fiscal (ou elisão ineficaz), o contribuinte simula determinado negócio jurídico com a finalidade de dissimular a
ocorrência do fato gerador. Trata-se de um ardil caracterizado primordialmente pelo que a doutrina denomina de
abuso das formas, pois o sujeito passivo adota uma forma jurídica atípica, a rigor lícita, com o escopo de escapar
artificiosamente da tributação”. (ALEXANDRE, Ricardo. Op. cit., p. 269-270).
890
MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento tributário. In: _________. Op. cit., 2016, p. 46.
891
Nas palavras de Hugo de Brito Machado, em Comentários ao Código Tributário Nacional. 2. ed. V. 2. São
Paulo: Atlas, 2008, p. 358-359, “tivessem sido aprovados os dispositivos da Medida Provisória 66/2002, que
cuidavam do procedimento de desconsideração de atos ou negócios jurídicos, uma vez praticada a
desconsideração, depois de exercido o direito de defesa pelo contribuinte, seria este cientificado do despacho da
autoridade competente e a partir de então teria o prazo de 30 dias ‘para efetuar o pagamento dos tributos
acrescidos de juros e multa de mora’. Rejeitados, como foram, os dispositivos instituidores do procedimento
específico para a desconsideração de atos ou negócios jurídicos, a desconsideração está sendo praticada mediante
a simples lavratura de auto de infração, do que resulta a imposição da penalidade própria do lançamento de
ofício, podendo até ser o contribuinte acusado do cometimento de crime contra a ordem tributária. O
175
Isso porque, segundo André Elali e Fernando Zilveti892,
[...] no direito civil, constata-se uma difícil delimitação entre negócio aparente,
abuso do direito, negócio indireto, dissimulação e simulação. Esse fato influencia o
intérprete do Direito na sua apreciação da criação de negócios jurídicos sob o ponto
de vista formal, no campo da autonomia privada. O direito tributário desempenha
papel importante nesse conflito hermenêutico. Quando se analisa a obrigação
tributária sob a ótica do contribuinte, é inegável o intuito e adotar a via mais
econômica. O intérprete fiscal não pode coibir o planejamento tributário por meio da
utilização de mecanismos forfetários, fazendo uso da praticabilidade. A qualificação
dos negócios jurídicos deve seguir a legislação de direito privado. Por outro lado, a
interpretação segue a lógica fiscal do Código Tributário Nacional e legislação
ordinária aplicáveis. Há, como ressalta Crezelius, de ambas as partes, relativo
exagero na questão do planejamento tributário, em especial naquilo que diz respeito
à norma antielusiva presente no ordenamento nacional.
Autores, como Hugo de Brito Machado, sustentam que a norma geral antielisiva,
prevista no artigo 116, do Código Tributário Nacional, é inconstitucional, “se interpretada de
modo a amesquinhar o princípio da legalidade tributária”, e inútil, “se interpretada dentro dos
limites desse princípio”, visto poder o Poder Público, independente de tal regra, desconsiderar
o ato ou o negócio jurídico quando praticado na forma de abuso de direito893.
Em suma, ainda que seja considerado excelente instrumento para o planejamento
sucessório, o planejamento tributário deve ser utilizado com as devidas cautelas, a fim de não
onerar o contribuinte, pessoa física ou jurídica, a depender da vontade do futuro inventariado,
com lançamento de ofício de tributos considerados devidos e suas respectivas multas, juros e
correção monetária. Tal instrumento jurídico deve ser utilizado apenas por aqueles que
entendem inteiramente da matéria tributária, juntamente com boa noção dos outros ramos do
direito, preferencialmente com equipe interdisciplinar para assessoramento, sob pena de o
próprio cliente sofrer as consequências pesadas da visão fiscal.
comportamento das autoridades da Administração Tributária em tais casos consubstancia mais uma
demonstração de que o Fisco não tem nenhum respeito pelo Direito, preocupa-se apenas com a arrecadação”.
892
ELALI, André. ZILVETI, Fernando. Planejamento Tributário – resistência ao poder de tributar. In:
MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Op. cit., 2016, p. 59.
893
MACHADO, Hugo de Brito. Planejamento tributário. In: _________. Op. cit., 2016, p. 42-43.
176
5. A SUBSUNÇÃO DOS INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO AOS
CASOS HIPOTÉTICOS
Neste capítulo, após a análise dos casos hipotéticos no capítulo 1 e a apresentação
dos instrumentos de planejamento sucessório no capítulo 4, selecionam-se aqueles que mais
se adequam aos objetivos e limites da vontade do futuro inventariado, com base nas
peculiaridades de cada caso. Busca-se, dessa forma, contribuir para o efetivo planejamento da
transmissão patrimonial, à luz das controversas da ordem de vocação hereditária do cônjuge e
do companheiro.
5.1. Solução do caso hipotético 1
O caso hipotético 1, representado graficamente na figura 2 no capítulo 1, caracterizase pela existência de cônjuge sobrevivente, casado com o futuro inventariado pelo regime da
separação legal, com descendentes vivos. Neste caso, há objetivos de preservar os bens na
transmissão patrimonial e de liberar rapidamente recursos e ativos para os sucessores, a fim de
que possam sobreviver sem maiores dificuldades com a morte do inventariado.
Em concreto: trata-se de uma família mosaico, em que os cônjuges já se encontravam
em idade mais madura ao se casarem pelo regime da separação legal. Bem afortunado, o
cônjuge varão amealhou, anteriormente a este matrimônio, patrimônio respeitável, qual seja,
um apartamento grande e um médio, em bairros bem localizados no Estado do Rio de Janeiro,
e dois carros. Após a sua aposentadoria, não obteve mais expressivo avanço nesse sentido,
adquirindo apenas um novo carro e um apartamento diminuto, em bairro menos privilegiado
naquele mesmo Estado. Além desses bens, mantém duas contas bancárias em instituições
financeiras tradicionais, bem como detém direito de receber, em precatório, indenizações
advindas de ações judiciais já transitadas em julgado. Por último, apesar de já ter sido sócio
em uma empresa de consultoria na sua área de formação, já não mais possui as quotas
societárias, tendo-as cedido há tempos.
Com relação às controvérsias desse caso hipótetico, conforme descrito no capítulo 1,
na seção 1.2.5, esclarece-se que, de acordo com o artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002894,
em observância às elucidações feitas na seção 3.2 do capítulo 3, o cônjuge sobrevivente não
concorrerá com os descendentes do inventariado como herdeiro na partilha de bens,
894
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
177
ressalvados os bens adquiridos na constância do casamento com prova do esforço em comum,
pela aplicação da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal895 - seção 3.1 do capítulo 3 e
4.2.9 do capítulo 4.
Assim, os bens particulares - apartamento grande e médio, dois carros e verbas
indenizatórias - e os bens adquiridos na constância sem prova de esforço em comum do futuro
inventariado irão exclusivamente para os seus descendentes, enquanto os bens adquiridos na
constância com prova de esforço em comum - apartamento diminuto, um carro e contas
bancárias - serão repartidos entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes.
Feita essa divisão, já não se pode falar em eventuais disputas entre os herdeiros do
planejador sucessório, ante as claras regras e as posições jurisprudenciais adotadas. Ademais,
de forma a evitar disputa quanto ao entendimento aplicável, recomenda-se, neste caso, a
lavratura de um testamento com disposição expressa nesse sentido, ou seja, explicitando-se
qual o posicionamento jurisprudencial irá ser adotado. Esse instrumento não importará na
concretização do medo do planejador sucessório de excessiva demora do inventário no Poder
Judiciário, frente ao Provimento nº 37/2016, da Corregedoria Geral de Justiça896, a permitir o
inventário extrajudicial com a autorização judicial, estando as partes concordes e sendo
maiores - seção 4.2.1 do capítulo 4.
Tendo em vista o objetivo de preservar os bens, sob o fundamento de demora
excessiva dos processos de inventário pelo abarrotamento do Poder Judiciário; de incansáveis
disputas entre herdeiros; e de incapacidade inicial administrativa e financeira dos
interessados, utiliza-se a doação com reserva de usufruto, dispensando-se a colação, para
transferir a titularidade dos bens imóveis - apartamentos grande e médio -, que sofrem
maiores deteriorações e descuidos no dia-a-dia forense, mantendo o doador o poder de fruir da
coisa doada até sua morte - seção 4.2.2 e 4.2.3 do capítulo 4.
Além disso, a caracterização do único bem imóvel - apartamento diminuto - do autor
da herança como bem de família, seja legal, seja convencional, também será de grande valia
para impossibilitar a constrição judicial e a eventual penhora pelas dívidas contraídas pelo
inventariado ou pelos sucessores, em detrimento de incapacidade inicial administrativa e
financeira - seção 4.2.5 do capítulo 4.
Quanto ao segundo objetivo desse planejamento sucessório, sugere-se a utilização de
conta conjunta - contas bancárias - para a liberação rápida de recursos e ativos para o cônjuge
895
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 377. Op. cit.
BRASIL. Corregedoria Geral de Justiça. Provimento
http://mundonotarial.org/blog/?p=2013>. Acesso em 04 jun. 2017.
896
n.
37
de
2016.
Disponível
em:
<
178
sobrevivente, até porque este não será muito beneficiado pelo regime de bens adotado. Como
forma de beneficiar todos rapidamente, os planos de previdência complementar privada e os
seguros de vida são as opções ideais, apontando-os como beneficiários em cada contrato
estipulado - seção 4.2.8 do capítulo 4.
Assim sendo, o cônjuge sobrevivente, casado pelo regime da separação legal, ao final
desse planejamento não restará desamparado, tendo ainda algum tempo hábil estipulado pelo
futuro inventariado para que aquele se reorganize em suas finanças e suas atividades, sem
sofrer maiores baques financeiros e emocionais inadvertidamente. Aos descendentes, foi-lhes
concedida a maior parte do patrimônio do futuro inventário, também protegendo-os de
eventual desorganização financeira.
179
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjugue
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Objetivos do
planejamento
sucessório
Variável
Instrumentos
jurídicos
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
Testamento
Doação
Usufruto
Fideicomisso
Bem de
família
Estado 6
Estado 7
Estado 8
Estado 9
Estado 10
Estado 11
Estado 12
Estado 13
Planos de
previdência
complementar
privada
Seguro de
vida
Conta
conjunta
Regime
de bens
Trust
Holding
patrimonial
Acordo de
acionistas
Planejamento
tributário
Figura 6 – Proposição de instrumentos de planejamento sucessório para o caso hipotético 1
180
5.2. Solução do caso hipotético 2
O caso hipotético 2, representado graficamente na figura 3 no capítulo 1, caracterizase pela existência de companheiro sobrevivente, casado com o futuro inventariado pelo
regime da separação convencional, com descendentes vivos. Neste caso, há objetivos de
preservar a situação a fim de não haja discussões e disputas sucessórias; e de proteger
herdeiros naturais ou terceiros.
Em concreto: trata-se de uma família, em que os companheiros estão unidos há 30
anos, pelo regime da separação convencional de bens, com descendência híbrida. Todo o
patrimônio - um carro e uma conta bancária -, construído por ambos os companheiros, foram
adquiridos onerosamente na constância da união estável, exceto um casarão antigo herdado
pelo companheiro em decorrência de morte de colateral; e uma bicicleta comprada antes da
vigência da união estável. Apesar dessa história de amor, o futuro inventariado tem um amor
paternal incondicional em relação a um de seus filhos, bem como fraternal em relação ao seu
próprio irmão.
Esclarece-se que, de acordo com o artigo 1.790, I, do Código Civil de 2002897, em
observância às elucidações feitas na seção 3.3 do capítulo 3, com aplicação do entendimento
majoritário, a companheira sobrevivente irá concorrer com os filhos, mesmo havendo filiação
híbrida, em quotas equivalentes.
Contudo, destaca-se, como dito naquela seção, que esta concorrência apenas se dará
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, a teor do artigo 1.790,
caput, do Código Civil de 2002898. Assim, o carro e a conta bancária serão repartidos entre os
filhos e a companheira, mas o casarão antigo, adquirido gratuitamente, e a bicicleta, bem
particular, serão partilhado apenas entre os filhos.
Esse entendimento era aplicado enquanto vigia o artigo 1.790, do Código Civil de
2002899, no ordenamento jurídico. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso
Extraordinário nº 878.694900, em que houve a declaração de inconstitucionalidade do citado
artigo, passou a viger apenas o artigo 1.829, do Código Civil de 2002901, também em relação
aos companheiros sobreviventes.
897
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
Ibid.
899
Ibid.
900
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 878.694. Relator: Ministro Roberto Barroso.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004>. Acesso
em 27 out. 2016.
901
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
898
181
Assim sendo, pela escolha do regime da separação convencional, haverá a
concorrência da companheira sobrevivente, na qualidade de herdeira, com todos os
descendentes, sendo-lhe assegurada uma quota mínima de 1/4 sobre o patrimônio do falecido,
com base no artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002902 - seção 3.1 do capítulo 3 e 4.2.9 do
capítulo 4.
Ressalta-se que a qualidade de bem particular ou bem comum do casal não incide no
caso concreto, sendo a titularidade auferida no próprio ato da aquisição, sem a comunhão dos
bens, pela inaplicabilidade da Súmula 377, do Supremo Tribunal Federal903, em observância
às elucidações feitas na seção 3.3 do capítulo 3. A companheira sobrevivente será herdeira do
patrimônio do falecido, todo formado por bens particulares, ainda que em condomínio.
Por todo o exposto, o carro, a conta bancária, o casarão e a bicicleta serão igualmente
repartidos entre os descendentes e a companheira sobrevivente, com respeito da quota mínima
desta última.
Diante disso, observam-se os objetivos do planejamento sucessório deste caso
hipotético, a fim de previnir discussões sucessórias e disputas, bem como proteger mais
fortemente os herdeiros naturais e terceiro.
As disputas careadas pela redação do artigo 1.790, do Código Civil de 2002904, foram
extintas, ante a decisão do Supremo Tribunal Federal, pela sua inconstitucionalidade. As
eventuais disputas agora neste caso hipotético se dará pelo inconformismo dos herdeiros em
repartir o patrimônio de seu falecido pai em igualdade com a companheira sobrevivente,
mesmo quando unidos pela separação convencional de bens.
Para tanto, a maior proteção dos herdeiros naturais, por instrumentos de
planejamento sucessório, irá, por si só, aplacar essa disputa.
Em relação ao segundo objetivo deste planejamento, a fim de agraciar o irmão do
futuro inventariado, utiliza-se o instrumento da doação com usufruto apenas, ao invés do
testamento, observando-se a diferença da tributação incidente - seção 4.2.2, 4.2.3 e 4.2.13 do
capítulo 4. Para agraciar com maiores quinhões o herdeiro natural favoritos, o melhor
instrumento no presente caso seria o testamento, em que se deixa toda a disponível para ele,
restando a legítima para ser dividida entre a companheira e os todos herdeiros naturais - seção
4.2.1 do capítulo 4.
902
Ibid.
BRASIL.
Supremo
Tribunal
Federal.
Súmula
n.
377.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=4022>. Acesso em 04 jun. 2017.
904
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
903
182
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjugue
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Objetivos do
planejamento
sucessório
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
Instrumentos
jurídicos
Testamento
Doação
Usufruto
Fideicomisso
Bem de
família
Variável
Estado 6
Estado 7
Estado 8
Estado 9
Estado 10
Estado 11
Estado 12
Estado 13
Planos de
previdência
complementar
privada
Seguro de
vida
Conta
conjunta
Regime
de bens
Trust
Holding
patrimonial
Acordo de
acionistas
Planejamento
tributário
Figura 7 – Proposição de instrumentos de planejamento sucessório para o caso hipotético 2
9
183
5.3. Solução do caso hipotético 3
O caso hipotético 3, representado graficamente na figura 4 no capítulo 1, caracterizase pela existência de companheiro sobrevivente, casado com o futuro inventariado pelo
regime da comunhão parcial de bens, sem ascendente ou descendente, com colaterais vivos.
Neste caso, há objetivos de preservar a situação a fim de não haja discussões e disputas
sucessórias; e de proteger herdeiros naturais ou terceiros.
Em concreto: trata-se de uma família, em que os companheiros estão unidos há 1
ano, pelo regime da comunhão parcial de bens, não advindo descendentes anteriores ou
posteriores a esta união. Os ascendentes do futuro inventariado já faleceram há anos. Todo o
patrimônio - três casas, uma fazenda, um carro, quatro contas bancárias, quotas societárias,
verbas indenizatórias trabalhistas e civis - foi construído com exclusividade pelo
companheiro, antes da união estável.
Como estipulado pelo artigo 1.640, do Código Civil de 2002 905, o regime
suplementar, estipulado pelo legislador, é o da comunhão parcial de bens. Na ausência de
estipulação expressa na Escritura Declaratória de União Estável, assume-se o da comunhão
parcial de bens como o regime da união, conforme elucidações feitas na seção 3.1. do capítulo
3.
Pela sistemática erigida pelo legislador no artigo 1.790, caput e III, do Código Civil
de 2002
906
, os colaterais existentes competem com o companheiro sobrevivente quantos aos
bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, a teor das informações
prestadas na seção 3.3 do capítulo 3. Como se percebe pelo caso apresentado, o acervo
patrimonial do futuro inventariado, de grandes proporções, foi exclusivamente formado
anteriormente à junção dele com a companheira.
Assim sendo, não tendo nenhum bem sido adquirido na constância da união estável,
a companheira, no caso concreto, não tem direito aos bens do futuro inventariado, a teor do
artigo 1.790, do Código Civil de 2002907. Em outras palavras, os colaterais, a despeito da
existência de companheira sobrevivente, heradarão todo o monte arrecadado, em consonância
com o entendimento de que o companheiro é herdeiro facultativo, e não necessário, conforme
esplanado na seção 3.3 do capítulo 3.
905
BRASIL. Código Civil de 2002. Op. cit.
Ibid.
907
Ibid.
906
184
Ou seja, aos colaterais três casas, uma fazenda, um carro, quatro contas bancárias,
quotas societárias e verbas indenizatórias trabalhistas e civis; à companheira sobrevivente
nada, fundamentando o questionamento da constitucionalidade do artigo sobre a sucessão do
companheiro sobrevivente.
Com base no próprio artigo 1.790, do Código Civil de 2002 908, o objetivo precípuo
de proteger herdeiros naturais ou terceiros já está garantido. Quanto ao objetivo de se prevenir
discussões sucessórias e disputas, ainda tendo em mente o entendimento de que o
companheiro sobrevivente é herdeiro facultativo pela sistemática do legislador, bastaria ao
futuro inventariado dispor de última vontade seu afastamento de sua sucessão.
Contudo, pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal, em que se decretou a
inconstitucionalidade do artigo 1.790 e a aplicação integral do artigo 1.829, ambos do Código
Civil de 2002909, com fins de amparar o companheiro sobrevivente na sucessão do falecido, a
solução do presente caso hipotético se modifica completamente.
Com vistas a proteger os colaterais, por ser o objetivo do futuro inventariado, aportase grande parte da quantia depositada nas contas bancárias em um seguro de vida, tendo como
único beneficiário os colaterais, observando-se o disposto na seção 4.2.7 do capítulo 4. Pela
sua natureza securitária, a indenização devida com a ocorrência do sinistro morte não será
incluída no inventário, e nem irá compor o patrimônio a ser inventariado, recebendo os
colaterais tal quantia sem questionamentos.
Em seguida, afeta-se a fazenda e a casa de menor valor, integrantes do patrimônio do
futuro inventariado, como patrimônio de afetação para a formação de um trust, tendo sede em
país estrangeiro, estipulando-se como trustee o próprio futuro inventariado e como cestui que
trust os colaterais, em consonância com os objetivos de favorecer tais pessoas e preservar os
bens do acervo patrimonial - seção 4.2.10 do capítulo 4.
Ato seguinte, doa-se a casa de maior valor, enquanto há ainda bens suficientes no
acervo, a fim de se evitar a configuração de excesso na liberalidade, a teor do artigo 2.007, do
Código Civil de 2002910, estabelecendo usufruto exclusivamente em favor do futuro
inventariado, bem como passando a residir os companheiros naquele imóvel doado - seção
4.2.2 do capítulo 4.
Além disso, inserem-se os colaterais como cotitulares da única conta bancária
restante, a fim de que haja a presunção relativa de ser o numerário disponível na conta
908
Ibid.
Ibid.
910
Ibid.
909
185
bancária, no momento do falecimento, pertencente em quinhões iguais aos seus titulares seção 4.2.8 do capítulo 4. Assim, se forem 3 colaterais e o futuro inventariado, no advento de
sua morte, apenas 25% da quantia disponível na conta bancária será presumidamente do
falecido, indo a inventário. O restante, 75%, não se amealha, podendo os colaterais sacarem e
usufruirem.
Ato contíno, vende-se a última casa restante e injeta-se esse numeário na conta
bancária em cotitularidade com os colaterais - seção 4.2.8 do capítulo 4.
Por último, faz-se um testamento, em que, respeitada a legítima devida de sua
companheira sobrevivente, a disponível irá exclusivamente para os colaterais - seção 4.2.1 do
capítulo 4. Nesse momento, o patrimônio do futuro inventariado é composto apenas por
fração de sua conta bancária, um carro, as quotas societárias e as indenizações a receber de
ações trabalhistas e cíveis.
Tendo esse patrimônio em vista, retira-se a quota disponível e entrega-se a quota
legítima em sua integralidade para a companheira sobrevivente, com base no artigo 1.829, III,
do Código Civil de 2002911. Ressalta-se que a companheira neste caso não terá direito real de
habitação, e nem usufruto, sobre o imóvel residencial da família, eis que seu companheiro não
tinha mais a propriedade dele, apenas a sua fruição - seção 3.4 do capítulo 3.
Assim sendo, esvaziou-se em vida o patrimônio do futuro inventariado, reduziu-se ao
máximo o quinhão da companheira, sem infringir qualquer disposição normativa, observandose a vontade do planejador sucessório de privilegiar seus colaterais ao invés de sua
companheira sobrevivente e preservar os bens de seu acervo patrimonial sem disputas
hereditárias.
911
Ibid.
186
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjugue
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Objetivos do
planejamento
sucessório
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
Instrumentos
jurídicos
Testamento
?
Doação
?
Usufruto
?
Fideicomisso
?
Bem de
?
família
Variável
Estado 6
Estado 7
Estado 8
Estado 9
Estado 10
Estado 11
Estado 12
Estado 13
Planos de
previdência
complementar
privada
Seguro de
vida
Conta
conjunta
Regime
de bens
Trust
Holding
patrimonial
Acordo de
acionistas
Planejamento
tributário
Figura 8 – Proposição de instrumentos de planejamento sucessório para o caso hipotético 3
187
5.4. Solução do caso hipotético 4
O caso hipotético 4, representado graficamente na figura 5 no capítulo 1, caracterizase pela existência de cônjuge sobrevivente, casado com o futuro inventariado pelo regime da
comunhão parcial de bens, com descendentes em comum. Neste caso, há objetivos de
preservar a situação dos bens e da atividade empresarial familiar, com a rápida liberação de
recursos e ativos.
Em concreto: trata-se de uma família mosaico, em que os cônjuges estão casados há
15 anos, pelo regime da comunhão parcial de bens, com descendentes anteriores e posteriores
a esta união. Os ascendentes do futuro inventariado já faleceram há anos. O futuro
inventariado é político e homem de negócios, que construiu, antes do seu atual casamento, um
império empresarial, no qual aloca seus familiares em cargos estratégicos. Além das três
sociedades componentes do império empresarial, formam ainda o seu patrimônio, adquiridos
na constância do casamento, uma ilha paradisíaca, uma frota de carros, uma casa em Angra
dos Reis, uma lancha, batizada de Nova Iorque, um apartamento na praia do Leblon, bairro
nobre do Rio de Janeiro, um helicóptero, algumas contas bancárias, joias, obras de arte, tudo
avaliado em torno de R$120 milhões.
Como explicado na seção 3.2 do capítulo 3, o artigo 1.829, I, do Código Civil de
2002 tem uma redação truncada, em que se discute a extensão dos direitos sucessórios do
cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão parcial de bens, em situação análoga
ao caso concreto. Neste caso, utiliza-se a corrente majoritária, qual seja, além da meação,
haverá concorrência entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do falecido na sucessão a
título de herdeiro, desde que existe bens particulares no acervo, tendo como base de cálculo,
para fins da concorrência, apenas os bens particulares, enquanto os bens comuns serão dividos
à metade para formar a meação.
Dessa forma, o cônjuge sobrevivente terá direito, a título de meação, a metade da ilha
paradisíaca, da frota de carros, da casa em Angra dos Reis, da lancha, batizada de Nova
Iorque, do apartamento na praia do Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro, do helicóptero,
das contas bancárias, das joias e das obras de arte, tudo avaliado em R$60 milhões. Além
disso, concorrerá com os filhos do futuro inventariado, a título de herdeira, em relação às
sociedades do império empresarial.
Estabelecido isto, passa-se aos objetivos do planejamento sucessório patrimonial sob
análise.
188
Com intuito de não desestabilizar as sociedades construídas pelo futuro inventariado,
propõe-se a formação da holding empresarial, com a delimitação em seu estutato ou contrato
social de sua gestão por membro da família com a melhor aptidão para tanto, bem como a
forma de cessão de suas quotas quando do advento de sua morte, trazendo benefícios fiscais e
perpetuidade da atividade econômica - seção 4.2.11 e 4.2.13 do capítulo 4.
A formação da holding empresarial também será importante para atingir o objetivo
de liberação rápida de recursos e ativos para os sobreviventes. Isso porque, bem estabilizadas
e operantes, as sociedades continuarão a gerar lucros, que ao final de um período serão
distribuídos entre os sócios.
Por fim, a preservação dos bens, ante à monta envolvida, se dará por meio de
inventário extrajudicial, a fim de se desembaraçar com agilidade os bens, permitindo aos seus
novos titulares disporem da forma que lhe convierem.
189
Estado
Estado 1
Estado 2
Situação civil
Cônjugue
Companheiro
Regime de
bens
Comunhão
universal
Vocação
hereditária
Estado 3
Estado 4
Estado 5
Comunhão
parcial
Separação
convencional
Separação
legal
Divisão de
aquestos
Existência de
ascendentes
Existência de
descendentes
Existência de
cônjuge ou
companheiro
Existência de
colaterais
Poder público
Objetivos do
planejamento
sucessório
Preservação
dos bens
Preservação
da atividade
empresarial
familiar
Liberação
rápida de
recursos e
ativos
Prevenção
de discussões
sucessórias e
disputas
Proteção de
herdeiros
naturais ou
terceiros
Instrumentos
jurídicos
Testamento
?
Doação
?
Usufruto
?
Fideicomisso
?
Bem de
?
família
Variável
Estado 6
Estado 7
Estado 8
Estado 9
Estado 10
Estado 11
Estado 12
Estado 13
Planos de
previdência
complementar
privada
Seguro de
vida
Conta
conjunta
Regime
de bens
Trust
Holding
patrimonial
Acordo de
acionistas
Planejamento
tributário
Figura 9 – Proposição de instrumentos de planejamento sucessório para o caso hipotético 4
190
CONCLUSÃO
O presente trabalho contribuiu para demonstrar a relevância do planejamento
sucessório patrimonial para a sociedade brasileira, mas principalmente para os profissionais
da área do Direito. A transmissão patrimonial aos herdeiros, entre eles, o cônjuge ou o
companheiro sobrevivente, pode vir a ser tormentosa, em razão das discussões travadas em
situações nas quais não sejam utilizados os diversos instrumentos jurídicos de planejamento
sucessório disponíveis e aplicáveis.
Os resultados obtidos ao longo da pesquisa aqui relatada permitiram que o objetivo
geral da monografia fosse alcançado, ou seja, foi possível demonstrar que as interpretações
distintas dos artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil de 2002 influenciam na escolha dos
instrumentos jurídicos quando da elaboração de planos sucessórios patrimoniais. Com o uso
da análise morfológica, foram gerados quatro casos hipotéticos, nos quais foram aplicados os
conhecimentos normativos, doutrinários e jurisprudenciais discutidos ao longo dos capítulos
desta monografia.
Nesse sentido, a partir da análise das questões controversas da ordem de vocação
hereditária e do direito sucessório do cônjuge e do companheiro sobrevivente, a identificação
dos principais instrumentos de planejamento sucessório patrimonial e a disposição das normas
aplicáveis foram essenciais para a escolha daqueles mais adequados para cada caso hipotético
gerado.
A pesquisa bibliográfica e documental permitiu conceituar sucessão e planejamento
sucessório patrimonial, fundamentando assim a discussão da abrangência dos direitos
sucessórios do companheiro e do cônjuge sobrevivente. Além disso, identificaram-se as
principais posições e orientações a serem observadas quanto à sucessão do cônjuge e do
companheiro sobrevivente e estabeleceram-se os objetivos e os limites de um planejamento
sucessório patrimonial. Finalmente, selecionaram-se os principais instrumentos de
planejamento sucessório patrimonial.
Os resultados apresentados no capítulo 5 contribuíram para o efetivo planejamento
da transmissão patrimonial dos casos hipotéticos gerados à luz das controversas da ordem de
vocação hereditária do cônjuge e do companheiro.
Como futuros desdobramentos da presente pesquisa, recomenda-se a inovação
legislativa neste tema com o intuito de eliminar ou aplacar as divergências aqui apresentadas,
dando maior segurança jurídica às partes envolvidas. Sugere-se ainda a especialização de
191
operadores do Direito em técnicas de solução de conflitos, incluindo o planejamento
sucessório patrimonial.
192
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