Cinemática de cargas elétricas Alexandre Béo da Cruz - RA: 134759 Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Eletromagnetismo 1 / Estrutura Matemática do Eletromagnetismo Resumo Apresentamos a equação da continuidade para cargas em movimento, relacionando a densidade de carga com a densidade de corrente para o caso linear, superficial e volumétrico. Ainda, encontramos as condições de contorno para as equações na forma diferencial, exemplificando como utilizá-las. 1 Definições ~ com Dado um volume δV que contém uma carga δq, definimos a densidade volumétrica de corrente (J) dq δq h~v i = lim h~v i ⇒ J~ = ρ~v J~ ≡ lim →0 δV →0 δV dV δV | {z } (1) ~ v sendo h~v i a média da velocidade das cargas no volume e ρ a densidade volumétrica de cargas. Figura 1: Grandezas fı́sicas para a definição de J~ Analogamente, para o caso superficial e linear temos ~ = σ~v ~ ≡ lim δq h~v i = dq lim h~v i ⇒ K K δA→0 δA dA δA→0 (2) δq dq I~ ≡ lim h~v i = lim h~v i ⇒ I~ = λ~v δl→0 δl dl δl→0 (3) ~ a densidade superficial de corrente, σ a densidade superficial de carga, I~ a densidade linear de denotando K corrente e λ a densidade linear de carga. 2 2.1 Relação entre corrente e densidade de corrente Caso volumétrico Considere uma superfı́cie (S) no espaço que possui uma densidade de cargas (ρ) e uma densidade de corrente ~ Em um tempo δt ≈ 0 temos que uma carga δQ atravessa a superfı́cie e, se fizermos uma partição {δVj } do (J). 1 volume ocupado por toda a carga que atravessou a superfı́cie, podemos calcular δQ como X X X X ρj (vj⊥ δt) δAj = δt ρj (δlj⊥ δAj ) ⇒ δQ ≈ ρj δVj = δQ ≈ ρj vj⊥ δAj | {z } j j j j δlj⊥ sendo {δAj } uma partição da superfı́cie S, {δlj⊥ } uma partição da distância deslocada perpendicularmente a superfı́cie e vj⊥ a velocidade média perpendicular à superfı́cie das cargas (na j-ésima partição). Figura 2: Representação das partições e grandezas envolvidas na expressão de δQ ~ j , temos que Como vj⊥ δAj = ~vj · δA X δQ X ~j = ~j ρj ~vj · δA J~j · δA ≈ δt j j No limite com δt → 0, δAj → 0 e j → ∞, a carga Q(t) que atravessou S no sentido da normal escolhida para a superfı́cie até o instante t é dada por Z dQ ~ (4) = J~ · dA dt S 2.2 Caso superficial Considerando agora uma curva (γ) em uma superfı́cie (Ω ⊂ R3 ) com densidade de carga (σ) e densidade de ~ temos, analogamente, que uma carga atravessa a curva em um tempo δt ≈ 0. Fazendo uma corrente (K), partição {δAj } da área ocupada por toda a carga que atravessou a curva, temos que X X X X σj vj⊥ δlj σj (vj⊥ δt) δlj = δt σj (δlj⊥ δlj ) = σj δAj = δQ ≈ {z } | j j j j δlj⊥ sendo {δlj } uma partição da curva, {δlj⊥ } partição da distância deslocada perpendicularmente a curva e vj⊥ a velocidade média perpendicular à curva das cargas (na j-ésima partição). Mas, sendo ~n o vetor normal à superfı́cie e ~τ o vetor tangente da curva, temos que (como ~v e ~τ são tangentes a Ω) v ⊥ = |~v × ~τ | ⇒ v ⊥ = ~n · (~v × ~τ ) = ~v · (~τ × ~n) = (~n × ~v ) · ~τ | {z } versor Note que ~τ × ~n é a direção em que a velocidade é projetada. Com isso, X X δQ X ~ j ) · δ~lj (~nj × (σ~v )j ) · (~τ δl)j = σj [(~n × ~v ) · ~τ ]j δlj = ≈ (~nj × K δt | {z } j j j δ~lj 2 Figura 3: Representação das partições e grandezas envolvidas na expressão de δQ No limite com δt → 0, δlj → 0 e j → ∞, a carga Q(t) que atravessou γ no sentido de ~τ × ~n (escolhidos arbitrariamente pela parametrização de γ e Ω) até o instante t é dada por Z dQ ~ · d~l = (~n × K) (5) dt γ 2.3 Caso linear ~ Seja um ponto P de uma curva no espaço (α ⊂ R3 ) com densidade de carga (λ) e densidade de corrente (I), temos mais uma vez que uma carga atravessa o ponto P em um tempo δt ≈ 0. Dessa vez, como a carga só pode fluir por um ponto, não existe um somatório para calcularmos δQ, assim δQ ≈ λδl sendo que λ é a densidade de carga calculada no ponto P e δl é a curva formada por toda a carga que atravessou o ponto P durante o tempo δt. Como só há uma direção para as cargas se moverem (direção da curva) não há necessidade de decompor δl em uma direção perpendicular como antes, daı́ δQ ~ =I ≈ λv = |I| δQ ≈ λ (vδt) = δtλv ⇒ | {z } δt δl No limite com δt → 0, a carga Q(t) que atravessou P no sentido de I~ até o instante t é dada por dQ =I dt (6) ~ pode ser confundida com um escalar (I) desde Perceba que no caso linear a densidade linear de corrente (I) que seja permitido que este assuma valores negativos para indicar a direção. Além disso, esse escalar pode ser relacionado diretamente à corrente (dQ/dt). 3 3.1 Forma integral da equação da continuidade Caso volumétrico Da equação [4], se temos uma superfı́cie fechada orientada para fora (S = ∂V ), a carga (Qs ) que sai do volume (V ) coberto pela superfı́cie é Z dQs ~ J~ · dA = dt ∂V 3 Por outro lado, podemos calcular qual a carga dentro do volume V simplesmente integrando a densidade de carga no volume Z Z ∂ρ dQd = dV Qd = ρdV ⇒ dt ∂t V V Em um intervalo de tempo δt, a carga perdida no volume é igual a carga que saiu pela superfı́cie menos uma carga δQe que o volume pode ter recebido de um meio externo. Isto é, Qd (t) − Qd (t + δt) = Qs (t + δt) − Qs (t) − δQe ⇒ δQd + δQs = δQe ⇒ No limite com δt → 0, dQd dQs dQe + = dt dt dt Dessa forma, Z ∂ρ dV + ∂t V 3.2 Z ~ = dQe J~ · dA dt δQd δQs δQe + = δt δt δt (7) (8) ∂V Caso superficial Pela equação [5], se temos uma curva fechada orientada para fora (γ = ∂S), isto é, ~τ × ~n aponta para fora da curva, então a carga Qs que sai da superfı́cie S coberta pela curva é Z dQs ~ · d~l = (~n × K) dt ∂S Note que ~τ × ~n apontar para fora é equivalente a dizer que a curva γ está parametrizada no sentido induzido pela normal da superfı́cie Ω onde ela está contida. Além disso, também podemos calcular qual a carga dentro da superfı́cie S somente integrando a densidade de carga Z Z ∂σ dQd = dA Qd = σdA ⇒ dt ∂t S S Então, de forma análoga ao caso volumétrico, em um intervalo de tempo δt, a carga perdida pela superfı́cie S é igual a carga que saiu pela curva menos uma carga δQe que a superfı́cie pode ter recebido de um meio externo. Assim, também vale a equação [7] e temos Z Z ∂σ ~ · d~l = dQe dA + (~n × K) (9) ∂t dt S 3.3 ∂S Caso linear Considere o segmento que liga dois pontos P e Q na curva γ. Pela equação [6], a carga Qs que sai do segmento é dQs = I|Q − I|P dt Ainda, calculando a carga dentro desse segmento pela densidade de carga, temos Z Q Z Q ∂λ dQd λdl ⇒ = dl Qd = dt P ∂t P Novamente, em um intervalo de tempo δt, a carga perdida no segmento é igual a carga que saiu pelos extremos P e Q menos uma carga δQe que o segmento pode ter recebido de um meio externo. Assim, também vale a equação [7] e temos 4 Z 4 4.1 Q P ∂λ dQe dl + I|Q − I|P = ∂t dt (10) Forma diferencial da equação da continuidade Caso volumétrico Utilizando o teorema de Gauss para integrais de superfı́cie na equação [8] temos que Z Z Z ∂ρ dQe dQe ∂ρ ~ ~ dV + ∇ · J dV = ⇒ + ∇ · J dV = ∂t dt ∂t dt V V V dQe = 0, dt Z ∂ρ ~ + ∇ · J dV = 0 ∂t Quando o volume não recebe cargas externas, ou seja, V Logo, como essa equação vale para qualquer volume considerado, obtemos a forma diferencial ∂ρ + ∇ · J~ = 0 ∂t 4.2 (11) Caso superficial Utilizando o teorema de Stokes para integrais de linha na equação [9] temos que Z Z Z ∂σ ∂σ ~ · ~ndA = dQe ⇒ ~ dA = dQe dA + [∇ × (~n × K)] + ~n · ∇ × (~n × K) ∂t dt ∂t dt s S S Perceba que a normal do teorema de Stokes é a mesma normal da parametrização (~n), pois foi imposto anteriormente que ~τ × ~n apontasse para fora da curva γ. Quando a superfı́cie não recebe cargas externas, Z ∂σ ~ dA = 0 + ~n · ∇ × (~n × K) ∂t S Novamente, como essa equação vale para qualquer superfı́cie considerada, temos a forma diferencial ∂σ ~ =0 + ~n · ∇ × (~n × K) ∂t 4.3 (12) Caso linear Do teorema fundamental do cálculo para integrais de linha, a equação [10] é equivalente a Z Q P ∂λ dl + ∂t Z Q P dQe ∇I · d~l = ⇒ dt Z Q P ∂λ dQe + ~τ · ∇I dl = ∂t dt sendo ~τ o vetor tangente da parametrização do segmento que liga P e Q. Quando o segmento não recebe cargas externas, Z Q ∂λ + ~τ · ∇I dl = 0 ∂t P 5 Como essa equação vale para qualquer segmento considerado, temos a forma diferencial ∂λ ∂λ ∂I + ~τ · ∇I = 0 ⇒ + =0 (13) ∂t ∂t ∂l ~ = |λ~v |, assim ~τ · ∇I é a derivada de I na direção da Lembrando que ~τ é o vetor tangente da linha e I = |I| curva, isto é, ∂I/∂l. 5 Condições de contorno Para determinar as condições de contorno das equações diferenciais precisamos recorer as formas integrais, onde ainda não assumimos diferenciabilidade dos integrandos. 5.1 Condutor finito Se o condutor é finito, a condições de contorno é que na borda do condutor não deve haver carga saindo (dQs /dt = 0), i.e., toda a carga fica dentro do condutor ou sai pela corrente externa. Com essa condição, temos em cada caso que Z dQe ∂ρ dV = −→ condutor volumétrico (14) ∂t dt V Z ∂σ dQe dA = −→ condutor superficial ∂t dt (15) Z (16) S f i dQe ∂λ dl = −→ condutor linear ∂t dt A região de integração em negrito representa que a integral está sendo feita em todo o condutor. 5.2 Descontinuidade pela corrente externa Quando há corrente externa atuando no condutor, utilizamos a simetria do problema e as formas integrais para determinar qual é a descontinuidade para então utilizá-la como condição de contorno. Se a corrente externa chega ao condutor apenas através de um ponto do condutor (por exemplo, um fio com corrente ligado no corpo) então, tomando uma região que engloba esse ponto nas formas integrais e fazendo a região de integração tender a zero (mas sempre englobando esse ponto), temos que Z ~ = dQe −→ condutor volumétrico J~ · dA lim (17) ∂Vǫ →0 dt ∂Vǫ lim Z ∂Sǫ →0 ∂Sǫ ~ · d~l = dQe −→ condutor superficial (~n × K) dt (18) dQe −→ condutor linear (19) dt Sendo que, para encontrarmos essas expressões, utilizamos o fato das densidades de carga (ρ, σ, λ) serem sempre contı́nuas no seu domı́nio, fazendo as integrais para determinar Qd tenderem a zero. lim (I|P +ǫ − I|P −ǫ ) = ǫ→0 6 6 6.1 Exemplos Capacitor sendo carregado Considere um capacitor em formato de discos com raio a que está sendo carregado por uma corrente I constante através de fios finos que se conectam ao centro das placas. Assumindo que a corrente flui nas placas de forma que a carga superficial seja uniforme e que ela é nulo em t = 0, encontre a corrente que passa por uma circunferência de raio s no capacitor. Figura 4: Capacitor sendo carregado Solução: e O capacitor é um condutor superficial que está recebendo uma corrente externa dQ dt = I. Escolhendo ~ o sistema de coordenadas de forma que I = −I ẑ e colocando o capacitor no plano xy, temos pela equação da continuidade [12] que ∂σ ~ =0 + ẑ · ∇ × (ẑ × K) ∂t ~ = Ks ŝ + Kφ φ̂ + Kz ẑ. Como K ~ pertence à superfı́cie do disco, Kz = 0, Em coordenadas cilı́ndricas, K daı́, utilizando a ortonormalidade dos versores e o rotacional em coordenadas cilı́ndricas, ∂Kφ ∂σ 1 ∂ + (sKs ) − =0 ∂t s ∂s ∂φ Como a densidade superficial (σ) é uniforme, temos da condição de contorno [16] que Z Z ∂σ I ∂σ ∂σ dA = I ⇒ = dA = I ⇒ ∂t ∂t ∂t πa2 S S ~ é Assim, a equação diferencial para K ∂Kφ I 1 ∂ (sKs ) − + 2 =0 s ∂s ∂φ πa ~ não dependem do ângulo φ Pela simetria do problema (de rotação em torno de ẑ), as componentes de K no plano xy, então Ks = Ks (s) e Kφ = Kφ (s), daı́ 1 d I −I C (sKs ) + 2 = 0 ⇒ Ks (s) = s+ 2 s ds πa 2πa s Para determinar a constante C utilizamos a condição de contorno [18], i.e. Z ~ · d~l = I lim (~n × K) ∂Sǫ →0 ∂Sǫ 7 Pela simetria do condutor, vamos tomar ∂Sǫ um anel de raio ǫ centrado no disco. Daı́ Z Z I 1 ~ · d~l = lim Ks (s = ǫ) lim (ẑ × K) dl = I ⇒ lim (2πǫK(ǫ)) = I ⇒ K(ǫ → 0) = ǫ→0 ǫ→0 ∂Sǫ →0 2π ǫ ∂Sǫ ∂Sǫ Assim, para que essa condição seja satisfeita, C = I/2π. Logo, 1 s I − Ks (s) = 2π s a2 Finalmente, para encontrar a corrente que passa por uma circunferência de raio s, utilizamos a equação [5], i.e. Z dQ (s) = dt γ(s) ~ · d~l = (ẑ × K) Z Ks dl = γ(s) Z 2π 0 s2 Ks (sdθ) = I 1 − 2 a dQ s2 ⇒ (s) = I 1 − 2 dt a OBS: Essa corrente é necessária pra resolver o problema 7.32 da referência [1]. 6.2 Transiente de fios condutores Considere um fio condutor uniforme e isotrópico, i.e., a densidade de corrente J~ no interior do fio é proporcional ~ ao campo elétrico no fio (E), ~ −→ σ : condutividade elétrica J~ = σ E Nesse caso, pela lei de Gauss, temos que ~ = ρ/ε0 ⇒ ∇ · J~ = ∇·E σ ρ ε0 Substituindo o ∇ · J~ na equação da continuidade [11], σ σ ∂ρ + ρ = 0 ⇒ ρ(~r, t) = ρ(~r, 0)e− ε0 t ∂t ε0 Portanto, se t ≫ ε0 /σ a densidade de carga no interior do fio é aproximadamente zero. Como nenhuma carga pode ter saı́do do condutor, então toda a carga se acumula na superfı́cie do fio. Referências [1] David J. Griffiths. Eletrodinâmica - 3a Edição. [2] J. D. Jackson. Classical Electrodynamics - 3rd edition. [3] John R. Reitz. Fundamentos da Teoria Eletromagnética - 3a Edição. 8