Uploaded by Horácio Toco

#4 Na pia da cozinha eu chorei (1)

advertisement
Eu acordei pela manhã, assim que o sol nasceu e não havia mais ninguém em casa. Fui até a cozinha,
comecei a recolher as louças e talheres que descansavam, secando na pia, desde a noite anterior.
Encostei minha barriga no balcão, olhei para fora, e comecei a chorar.
Eu era um adolescente genioso e tinha o sonho de conquistar o mundo. Leonino, cheio de ideias e uma
cabeça dura. Do outro lado estava a minha mãe. Do lar, linha dura, extremamente organizada e
impecável com a nossa casa.
Atividades tradicionais como arrumar a cama, lavar a louça, colocar as roupas para lavar, centrifugar e
secar, eram corriqueiras. Essas tarefas se somavam, algumas vezes, com passar enceradeira, secar o
banheiro após o banho, limpar o carpete com escova de mão, entre outras. Tarefas que muito ajudaram
a moldar quem eu sou hoje.
Mas eu era um adolescente e vivia uma fase de teste de poder. Comecei a reclamar e, claro, a maionese
desandou. Ela me colocou na linha, mas à custa de muito estresse e discussão.
Isso durou um tempo.
Durante o mesmo período, resolvi colocar em prática outra ideia. Eu queria começar a trabalhar cedo.
Ganhar o meu próprio dinheiro, comprar as minhas coisas e principiar a tão sonhada conquista do
mundo.
Encontrei um emprego em uma lanchonete de um “varejão” que comercializava hortifrútis. O trabalho
começava logo cedo pela manhã, todos os finais de semana. Minha tarefa era fritar coxinhas e montar
sanduíches.
Senti que estava no caminho. Comecei a fazer algum dinheiro e conseguia guardar bastante, já que
seguia vivendo na casa dos meus pais. Continuava batendo cabeça com a minha mãe e um belo dia
achei, dentro das minhas certezas adolescentes, que era o dia de sair e ter a minha própria casa.
Minha mãe e meu pai ficaram um pouco tristes, mas, ao mesmo tempo, compreendiam que a minha
vida estava começando, apesar de ser um cedo.
A relação, antes conturbada que tinha com a minha mãe, que sempre se originava nas picuinhas do dia a
dia, mudou da água pro vinho. Apesar de não ir muito à minha casa, eu seguia sempre perto deles e ela
me dava conselhos de como arrumar as coisas, sobre cuidados que eu deveria ter e, no fundo, eu
percebia que ela começava a se orgulhar do que eu estava fazendo. Ela sempre teve conversas muito
construtivas de mãe para filho comigo.
Entrei na faculdade, fui mudando de emprego, começando novas amizades, novos namoros e, aos
poucos, me afastei do convívio familiar mais intenso. Apesar de visitá-los e vê-los constantemente, e
deles receber todo o suporte necessário, não mais viajávamos juntos nos finais de semana e nem em
feriados mais longos, como fazíamos no passado.
Eu estava ocupado, trabalhando para conquistar o mundo.
Assim foi minha vida familiar durante a minha adolescência e grande parte da vida adulta.
Foi quando me mudei para San Diego.
Com meu pai já falecido, passei a falar com minha mãe quase diariamente por videochamadas. Falamos
de cozinha, pratos, programas do Netflix, de como estão outros familiares, etc. Por certas vezes, até
senti que, quanto mais nos distanciávamos, mais nos aproximávamos.
Ela comprou uma passagem para vir me visitar, mas a pandemia não permitiu. Quase quatro anos se
passaram sem vê-la pessoalmente, até que fui para o Brasil. Lá fiquei por umas duas semanas, na casa
dela em Curitiba, e me surpreendi. Era a primeira vez que ela me recebia por tanto tempo em sua casa,
desde que saí da aba de sua saia na adolescência.
Eu tinha receio se nossa relação realmente havia evoluído, mas foi incrível. Eu me senti abraçado e
amado. Com muitas programações e compromissos a cumprir no meu país, nem vi o tempo passar e,
num piscar de olhos, já estava de volta à Califórnia.
Na metade de janeiro desse ano, ela e minha irmã mais nova finalmente conseguiram remarcar aquela
passagem comprada no passado e vieram me visitar. Pela primeira vez na minha vida, recebi a minha
mãe para morar em minha casa. E pasmem, por 30 dias.
Acredito que, desde criança, nunca havia ficado tão colado com ela. Caminhamos diariamente, fizemos
passeios incríveis, comemos em lugares maravilhosos e juntos, por diversas vezes, rimos aquelas
gargalhadas gostosas que até nos fazem derramar lágrimas e perder o ar. Mostramos um ao outro que
isso só foi possível porque nos transformamos e nos tornamos mais pacientes e compreensivos.
Relembrei o gostoso sabor de abraçar a mãe antes de ir dormir e beijar seu rosto quando amanhece. Ela
trouxe para a Califórnia um sentimento que ainda não havia experimentado nesse lugar que passei a
chamar de lar. O amor materno. Aquele que cuida, que protege, que acolhe e que compreende.
Porém, na última semana, em uma madrugada, levei-a para o aeroporto, me despedi e ela voltou para o
Brasil. Voltei para casa, dormi mais um pouco e quando acordei, foi naquela bancada da cozinha que
chorei com um vazio no peito.
Dentro do que me lembro da vida, pela primeira vez estava sentindo falta genuína da minha mãe. E foi
lindo. O que me fez perceber o quão importante é a nossa relação e quão feliz sou em poder contar com
isso.
Percebi ainda que a saudade que sentimos de alguém é a parte dessa outra pessoa que ainda pulsa
dentro de nós.
Apesar da vida nos exigir um ritmo alucinado e que muitas vezes não conseguimos controlar, existem
coisas que se mantêm guardadas para que, na hora certa, no momento exato, se nós permitirmos, elas
se revelem e deem sentido para toda a nossa trajetória.
Sou muito grato por ter encontrado esse momento na minha vida.
E você, está encontrando sentido na sua trajetória?
Download