APDL - Final

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Entre o desespero e a impassibilidade
Cheguei à hora do sono dos justos. Acanhado, o suor escorria-me frio, pegajoso; seria
iniciado no desconhecido, imerso em crendices, boatos de rituais lúgubres. Tentava convencerme dos boatos, apenas boatos, boatos apenas. Não me foram explicadas as etapas do processo
tortuoso. Buscava alento em algumas mentiras descabidas, grosseiras, até. Coisa de petiz
inexperiente rodeado pelo conforto paternal, e agora largado ao acaso, solto, livre. Situação
inquietante; a liberdade é desconfortável, estar livre é condenar-se às probabilidades, às
oportunidades.
Difícil precisar por quanto tempo andei. Foi por um corredor curto, claro; pequenos
candelabros iluminavam por fora uma luz calma, leve, graciosa. Por dentro, estava eu a
implodir-me: a bexiga estourava, o coração subia-me à boca, esperando a chance única de
parar, relaxar; angustiavam-me os pulmões: filtravam aquele ar untuoso, carregado de
superstições e baboseiras. Olhava para trás, e tinha medo do que vinha à frente. O colarinho
irritava-me a cerviz, as mangas apertavam-me os pulsos; desconfortável, sentia pinicar-me a
seda ao tato. Arrefeci minhas preocupações ao avistar alguns outros semblantes. Surpreendime com a variedade dos selecionados: espichados, hercúleos, tísicos. Captei alguns nomes
soltos, palavras sobre rituais, passagens lidas de um documento módico vermelho, carregado
por todos. Olhos efebos dançavam por entre a multiplicidade corpórea. Deitaram-se em um
mancebo, jovem rapaz de constituições magnânimas, sorridente, de humor volátil que me
introduziu um discurso longo, arrastado numa voz gutural; pouco me lembro do que nos foi
dito, apenas de certas frases de despreocupação, acalmando-nos a palpitação dos corações
imberbes. Viraram-nos todos para a parede, mãos sobre a cerviz e, depois, postas ao ar. Neste
momento, preocupações infantis, até mesmo impúberes, sacolejavam-me no crânio.
Passou-se a pilhéria, taparam-me os olhos. Naquele sacrifício jocoso, entendi então a
dificuldade, a labuta diária do não ver. Não via, e me desesperava. Subiu-me novamente a
aflição, a agonia da exígua liberdade forçada, provisória, porém, infinda. Socaram-nos em
carros apertadíssimos. Sufocados pela música rutilante, pregando-nos aos ouvidos proposital
confusão, entendi a labuta diária do não ouvir. Não ouvia, e me amargurava. Necessário relaxar,
pensar no fim do dia; estar livre, sujeito ao descontrole e à entropia diária dos sentidos.
Buscava, numa lógica barata e despropositada, saber íamos a algum lugar conhecido.
Despropositada, pois de nada adiantou: faziam trajeto meandroso, objetivando tapear-nos,
gracejar-nos os resquícios de autocontrole.
Chegamos, enfim. Estávamos ainda sujeitos à escuridão dos sentidos, mas nos guiavam,
calmos e experientes, com uma mão ponderada sobre os ombros. Aberta uma porta, adentrei
um lugar resfriado, descomunalmente frio, impressionantemente só (provavelmente haviam
levado-me a um outro recinto, separado dos outros). Largaram-me ao relento, lambido pela
ventania que açoitava meus flancos, arrancando-me os restolhos de calor que possuía. Despido
de qualquer tato, entendi então o valor da companhia humana, de seu calor. Perdido em
pensamentos aborrecidos, lembrava-me da recente mão amiga que me conduzia pelos ombros:
não sabia o porquê, mas confiava naqueles rapazes; desconhecia-os, porém, creditava-lhes
confiança exacerbada.
O tique-taque pachorrento do relógio analógico indicava-me, talvez, que, já perdida a noção
de tempo, alguns minutos haviam se passado: longos, esticados por horas. Doíam-me já os
sapatos, aparato desconfortável, visando a boa aparência e o asseio; esmagado pelo esforço
intraduzível, meu tornozelo gritava por ajuda, escrachado pela massa que carregava silencioso,
intrépido: vez ou outra cansava-se e queria desmazelar o fardo denso. Entendia esse achaque:
buscava, inutilmente, revertê-la, alongando-me. Findado o exercício, estiquei-me, e de pé, senti
o espaço que me circundava, e nada mais havia. Restava esperar.
Ora tédio, ora impaciência. Aguardava uma voz, um sinal de companheirismo, amizade.
Afinal, consegui. Conduzido por entre voltas e revoltas, desci um degrau um tanto íngreme.
Qual o sentido de tantos meandros e tortuosidades? Abstraí. Entendi que um caminho reto é
sempre mais fácil e que a facilidade é dificilmente orientada. Aplicando este silogismo dual,
refleti; concluí que a vida, se seguida por caminhos de retidão, é facilitada. “Ritual
esplêndido!”, pensei. Ora, em alguns segundos compreendi do que se tratava tudo aquilo:
desprover-nos dos sentidos, flagelar-nos com a reflexão, esgrouvinhar-nos com o pensamento,
torturar-nos com a consciência; em suma, dar-nos uma amostra da vida, ensinar-nos que a
liberdade é inerente ao homem e, esse, orgulhoso e presunçoso, sem o outro, perde-se na
insensibilidade, na ignorância. Rememorei de algum filósofo estudado na modorra da sala de
aula que dizia que os outros são o inferno, algo assim; não me importava quem era: sentindo o
temor de estar desconexo, estupidamente só, o outro era o paraíso, a síntese mecânica da minha
divindade, bastião orgânico de minha crença. Necessários segundos para estabelecer uma
filosofia de vida. O que criaria eu, então, se ali permanecesse? Martelou-me esta dúvida,
incessante e irritante.
Após algum tempo, julgo algumas horas, estávamos apertados numa saleta cheirando a
marasmo quando vieram preparar-nos para os rituais. Escutava ao fundo uma sequência de
batidas secas, madeira contra madeira, algum arrastar de cadeiras. Depois, o Hino Nacional,
joia poética parnasiana, tocou e escutei, como nunca havia escutado, o grito fremente do
patriotismo, da liderança juvenil. Espantei-me primeiramente, depois aliviei-me a saber que
estava a reger esta cerimônia o rapaz de humor volúvel e gracioso de antes. Via nele uma
espécie de líder e estava disposto a segui-lo, influenciado pela sua retórica fraternal.
Foram guiando-nos novamente pelas tortuosidades. Tornava-se lamentável o estado em que
me encontrava: meus olhos estavam baços, abatidos pelo esforço descomunal; o espinhaço,
antes teso e rijo, agora amolecia, bambo. Sentia os pés inchados, intumescidos. Escutava, subreptício, menções à nossa denominação: iniciáticos. Aparentava-me um nome burlesco, jocoso,
até, mas carregado de certas responsabilidades, que alguns seletos detém. Essa sobriedade nos
apelidos encantou-me absurdamente. De qual forma, não sei explicar.
Concatenaram-nos em frente a uma porta grossa de madeira. Ouvia cada vez mais próximas
as falas, as batidas, as cadeiras. Enfim entramos. Liturgias, sentenças, juramentos, alívio,
liberdade. Conversei, familiarizei-me com meus gêmeos no processo; conheci o galardão de
retórica imperiosa, de humor volúvel. Vi meus pais, abracei-os, senti neles o frescor e a
vivacidade dos sentidos: a posse natural das sensações inebriava meu ser. Fui apresentado
triunfalmente à Ordem DeMolay.
Finalmente, casa, recanto augusto de compêndios. Fui ao meu quarto, busquei ler uma
brochura interessantíssima, metamorfose anestésica da realidade, mas não pude. Interessavame mais pensar, entregar-me ao ato da razão, refletir a validade das experiências, esclarecer a
dúvida satírica que me impelia à maiêutica solitária: ficaria? Reflexões, inflexões, devaneios,
contestações, constatações, lembranças, pilhérias, insinuações. Fui acolhido pelos, agora, meus
irmãos; trataram-me com fraternidade, respeito. Conheci, ainda que um tanto atribulado, os
tributos da retidão moral e o patriotismo. Sentia comichar-me nas vísceras um certo ânimo,
intempestividade juvenil, frenesi gritante por experiências. Saiu-me um grito, surdo, abafado
pelo travesseiro. Havia acordado como profano e dormia como um DeMolay. E jamais deixei
de sê-lo.
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